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1º simpósio Sudeste

da ABHR
1º simpósio Internacional
da ABHR

Diversidades e
(in)tolerâncias religiosas

Anais

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (org.).

ISSN - 2318-518X

São Paulo, 2013


Anais do 1º Simpósio Sudeste da ABHR /
1º Simpósio Internacional da ABHR

Tema: Diversidades e (in)tolerâncias religiosas


Local: FFLCH/USP, 29 a 31 de outubro de 2013
São Paulo, São Paulo, Brasil

ABHR – Associação Brasileira de História das Religiões


Anais na internet disponíveis em http://www.abhr.org.br/?page_id=1568
Caderno de Programação e Resumos: disponível na internet em
http://www.abhr.org.br/?page_id=1593

A Comissão Editorial se responsabilizou pela revisão da formatação dos textos


de acordo com as normas de edição do evento. Eventuais erros ortográficos,
assim como o conteúdo dos textos e imagens, são de inteira responsabilidade
dos/as autores/as. Foram publicados textos de Minicursos (MCs) e de Grupos de
Trabalho (GT) nestes Anais.

Maranhão Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.).


2013
Anais do 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º Simpósio
Internacional da ABHR – Diversidades e (in)tolerâncias religiosas
/ Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (org.); 3110 p.

1. 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º Simpósio Internacional


da ABHR.
2. Diversidades e (in)tolerâncias religiosas.
I. Maranhão Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). II.
Título.
II. 2318-518X
Associação Brasileira de História das Religiões
– ABHR
Presidente Secretário de divulgação
Wellington Teodoro da Silva, PUC/MG Daniel Rocha, UFMG
Tesoureiro
Ítalo Santirocchi, UFRRJ
Secretário geral
Vasni de Almeida, UFT

Universidade de São Paulo – USP


Reitor Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras
João Grandino Rodas e Ciências Humanas – FFLCH
Sérgio França Adorno de Abreu

Vice-reitor
Vice-diretor da FFLCH
Hélio Nogueira da Cruz
João Roberto Gomez de Faria

Pró-reitora de Cultura e Extensão


Universitária Chefe do Departamento de Antropologia
Maria Arminda do Nascimento Arruda Vagner Gonçalves da Silva

Chefe do Departamento de História


Maurício Cardoso
Organização do evento
Coordenação Organização Geral
Vagner Gonçalves da Silva , USP Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Fo, USP

Comissões

Comissão Organizadora Comissão Editorial


• Helena Morais Manfrinato, USP Editor-chefe
• Jacqueline Moraes Teixeira, USP Eduardo Meinberg de Albuquerque
Maranhão Fo, USP
• Jacqueline Ziroldo Dolghie, UMESP
• João Enicelio da Silva, Mackenzie
Editores/as Assistentes
• Joelma Santos da Silva, UFMA
• Daniel Rocha, UFMG
• Rosenilton Silva de Oliveira, USP
• Ítalo Santirocchi, UFRRJ
• Sandra Duarte de Souza, UMESP
• Joelma Santos da Silva, UFMA
• Talita Sene, UFSC
• Kate Rigo, EST
• Sandra Duarte de Souza, UMESP
• Talita Sene, UFSC

Fazendo Arte
• Andrea Gomes Santiago Tomita,
Messiânica (coordenação)
• Juliana Graciani, Messiânica
• Ricardo Vital, USP
Comissão Científica • Maria José Fontelas Rosado-Nunes,
• Adone Agnolin, USP PUC/SP
• Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, UFMA
• Andréa Gomes Santiago Tomita,
Messiânica • Sérgio Figueiredo Ferretti, UFMA
• Antonio Máspoli de Araujo Gomes, • Silas Guerriero, PUC/SP
Mackenzie • Solange Ramos de Andrade, UEM
• Airton Luis Jungblut, PUC/RS
• Sônia Weidner Maluf, UFSC
• Artur César Isaia, UFSC
• Wellington Teodoro da Silva, PUC/MG
• Edgard Leite Ferreira Neto, UERJ
• Zwinglio Motta Dias, UFJF
• Edin Sued Abumanssur, PUC/SP
• Edlaine Campos Gomes, UniRio
Comissão de Seleção de Pôsteres
• Eduardo Gusmão de Quadros, UEG
• Lauri Emílio Wirth, UMESP
• Eliane Moura da Silva, UNICAMP
• Leonildo Silveira Campos, UMESP
• Elizete da Silva, UEFS
• Lyndon de Araújo Santos, UFMA
• Elton Nunes, Messiânica
• Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, UFMA
• Émerson José Sena da Silveira, UFJF
• Sérgio Figueiredo Ferretti, UFMA
• Ênio Brito, PUC/SP
• Solange Ramos de Andrade, UEM
• Etienne Higuet, UMESP
• Fernando Torres-Londoño, PUC/SP
• Flávio Augusto Senra Ribeiro, PUC/MG
• Frank Usarski, PUC/SP
• Gedeon Freire de Alencar, ICEC
• Gisele Zanotto, UPF
• João Marcos Leitão Santos, UFCG
• José Guilherme Cantor Magnani, USP
• Paula Montero, USP
• Karina Kosicki Bellotti, UFPR
• Lauri Emilio Wirth, UMESP
• Leonildo Silveira Campos, UMESP
• Lyndon de Araújo Santos, UFMA
• Marcelo Tavares Natividade, UFC
• Magali do Nascimento Cunha, UMESP
• Maria Luisa Tucci Carneiro, USP
Realização
Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR

Patrocínio
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

Apoio
• Universidade de São Paulo – USP • PLURA, Revista de Estudos de Religião
• Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da ABHR
Humanas – FFLCH
• Casa de Cultura Japonesa –
CCJ/FFLCH/USP • Fonte Editorial
• Departamento de Antropologia –
• Editora do Mackenzie
DA/FFLCH/USP
• Departamento de Geografia – • Editora Arché
DG/FFLCH/USP • Korin
• Departamento de História –
DH/FFLCH/USP

• Centro de Estudos de Religiosidades


Contemporâneas e das Culturas Negras –
• Faculdade de Teologia Umbandista – FTU
CERNe
• Faculdade Messiânica • Grupo de Estudos em Gênero, Religião e
• Programa de Pós-graduação em Ciëncias Política – GREPO – PUC/SP
da Religiáo da Universidade Metodista – • Grupo de Estudos de Gênero e Religião
PPGCR/UMESP Mandrágora – UMESP
• Núcleo de Antropologia Urbana da USP –
NAU
Créditos
Anais Designer do material do evento
Neon Cunha
Organização
Eduardo Meinberg de Albuquerque Arte do evento
Maranhão Fo, USP Alexandra Abdala, Arché Editora

Revisão da formatação dos textos


Daniel Rocha, UFMG Financiamentos
Ítalo Santirocchi, UFRRJ
Joelma Santos da Silva, UFMA Livro Religiões e religiosidades em
Kate Rigo, EST (con)textos (conferências e mesas do
Sandra Duarte de Souza, UMESP evento) e subsídio doCaderno de
Programação e Resumos impresso
Talita Sene, UFSC
Fonte Editorial

Diagramação
Bolsas
Eduardo Meinberg de Albuquerque
Faculdade de Teologia Umbandista
Maranhão Fo, USP
Talita Sene, UFSC
CDs
Faculdade Messiânica
Design da capa
Neon Cunha
Canetas
Editora do Mackenzie

Créditos gerais do evento


Coquetel de lançamento de publicações,
coffee breaks e águas
Secretário Korin
Cleto Junior Pinto de Abreu, USP
Apoio financeiro
Coordenação da leitura de história de GREPO – PUC/SP
vida religiosa
Marcela Boni Evangelista, NEHO/USP
Mychelle Aguinel, Troupe Drao

Webdesigners
Carlos Gutierrez, UNICAMP
Talita Sene, UFSC
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . 31

Minicursos . . . . . . . . . . . 34

MC 3 – Direito, Estado laico e religião no Brasil: limites, conflitos e


convergências . . . . . . . . . . 35

Direito, Estado laico e religião no Brasil: limites, conflitos e convergências 36


Carlos Augusto Lima Campos e David Carlos Santos Sarges

MC 4 – Fundamentos da arquitetura islâmica . . . . . 47

Introdução à arquitetura islâmica . . . . . . 48


João Henrique dos Santos

MC 6 – História e religiões: teoria e metodologia . . . . . 56

Teoria e metodologia em História das Religiões. . . . . 57


Elton de Oliveira Nunes

MC 9 – Iconografia budista . . . . . . . .
82 Budismos . . . . . . . . . . 83
Fernando Carlos Chamas

MC 10 – A Fé Bahá’í: incompreendida e perseguida . . . . 98

A Fé Bahá’í: incompreendida e perseguida . . . . . 99


Cristina Angelini Melchior

Grupos de Trabalho . . . . . . . . . . 108

GT 1 – Bruxaria à brasileira: a presença da Wicca no Brasil . . . 109

A construção da identidade masculina na Wicca . . . . 110


Welington Pinheiro

A Wicca no Recife: uma história . . . . . . . 126


Karina Oliveira Bezerra

O Coven: Múltiplas pertenças, legitimação de um discurso histórico


e as tipologias clássicas em relação à moderna bruxaria . . . 142
Celso Luiz Terzetti Filho

GT 2 – Catolicismo brasileiro: neocristandade e práticas religiosas


associativas (1889-1964) . . . . . . . . 155

Aggiornamento x continuidade: o choque entre a modernidade e a


Tradição nas representações e visões de mundo de três Padres
Conciliares . . . . . . . . . . 156
Alfredo Moreira da Silva Júnior

A Igreja Católica e os mecanismos de atuação no meio rural


brasileiro (1955- 1964) . . . . . . . 171
Bruna Marques Cabral

Congadeiros e hierarquia católica na primeira metade do século


XX em Minas Gerais . . . . . . . . 187
Sueli do Carmo Oliveira

Notas sobre a atuação da vice-província redentorista de aparecida


na revolução constitucionalista de 1932. . . . . . 202
José Tadeu de Almeida

Os fundadores do Centro Dom Vital . . . . . . 221


Guilherme Ramalho Arduini

Os museus de arte sacra da Arquidiocese de Mariana: projetos


eclesiásticos (1926-1964) . . . . . . . 237
Riler Barbosa Scarpati

GT3 – Corpo, cultura e religião . . . . . . . 254

“Agora eu canto assim...”: impactos da afrofagia neopentecostal


sobre a Música Popular Brasileira. O caso Bezerra da Silva e o CD
“Caminho de Luz” . . . . . . . 255
Patrício Carneiro Araújo, Maria Célia Virgolino Pinto

A renovação do sacrifício de Cristo: Ritual, práticas corporais e


experiências afetivas na Santa Missa do Opus Dei . . . . 270
Asher Grochowalski Brum Pereira

Corpo e religiosidade: binômio indissociável na construção da


História da Enfermagem . . . . . . . . 283
Maria Helena Leviski Alves e Tania Mara da Silva

Crianças e psicoativos: a ingestão e a relação corpo saúde nos rituais


do Santo Daime . . . . . . . . . 292
Theresa Jaynna de Sousa Feijão, Francisca Verônica Cavalcante
Êxtase religioso e sua manifestação: o corpo como um instrumento
divino . . . . . . . . . . 306
Cláudia Neves da Silva, Fabio Lanza

Fala e gestos na glossolalia: observações em uma comunidade da


renovação carismática católica . . . . . . . 317
Detian Machado de Almeida

O grito da Cruz ou o grito da Cultura? . . . . . . 332


Marcos Teixeira de Souza

Renascimento iniciatório revelado nos adornos e pinturas da


muzenza . . . . . . . . . . 345
Ivete Miranda Previtalli

Um “ballet do Espírito”: breve reflexão sobre corporeidade e


pentecostalismo . . . . . . . . . 359
Valdevino de Albuquerque Júnior

Vadeia dois dois,Vadeia no mar, A casa é sua dois dois, Quero ver
dois dois vadear . . . . . . . . . 373
Francy Eide Nunes Leal

GT4 – Dietrich Bonhoeffer: ética e teologia a serviço da vida . . . 395

Contemporaneidade e Discipulado: Interfaces entre o pensamento


do humano em Zygmunt Bauman e Dietrich Bonhoeffer . . . 393
José Nilberto de Oliveira Júnior

Diálogo entre a filosofia de Friedrich Nietzsche e a teologia de


Dietrich Bonhoeffer . . . . . . . . 401
Manoel Ferreira da Silva

Nadando contra a correnteza: A ação a favor da vida na prática


pastoral de Dietrich Bonhoeffer . . . . . . . 418
Sivanildo Ribeiro Martins

GT5 – “Edificando para Deus”: a arquitetura do sagrado nas suas


diferentes manifestações . . . . . . . 415

A arquitetura religiosa, entre paradoxos e possibilidades . . . 416


João Henrique dos Santos

A Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro: Uma via crúcis de 300


anos. . . . . . . . . . . 426
Estela Maris de Souza
A presença dos anjos na Capela de Nossa Senhora das Necessidades . 442
Fernanda Maria Trentini Carneiro

Arquitetura e religião: o caso da igreja da Irmandade do


Santíssimo Sacramento . . . . . . . 457
Claudia Barbosa Teixeira

Mística e devoção carmelita: a arquitetura religiosa dos Terceiros


em Minas Gerais . . . . . . . . . 469
Nívea Maria Leite Mendonça

O patrimônio religioso e sua preservação em Nova Iguaçu (RJ) . . 481


Luiza Georgia Viana Cunha, Nathalia Borghi Tourino Marins

O significado da luz em templos religiosos – uma análise da


influência da luz na arquitetura religiosa .. . . . . 492
Alfredo Damian Pacher Majul, Camila Szczerbacki Costa,
Mariana Campos Lima Rocha
Projeto moderno de globalização da Companhia de Jesus:
reflexos na arquitetura religiosa da América Portuguesa . . . 503
Fernanda Santos

GT6 – Escolas das religiões afro-brasileiras e diálogos . . . . 517

A dinâmica religiosa do Candomblé em Goiânia a partir da


hermenêutica da ação humana . . . . . . . 518
Rodolfo Ferreira Alves Pena

A diversidade das Religiões Afro-Brasileiras em Curitiba/PR: o


"mito do embranquecimento" revisitado . . . . . 535
Camila B. C. Martins, Renata Issa Gomes e Ana Paula Farias

A presença de valores culturais africanos iorubás nas religiões


afro-brasileiras . . . . . . . . . 549
Fernanda Leandro Ribeiro

Aprendendo yorubá no Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá . . . . 565


Marta Ferreira e Stela Caputo

Ciclo do Marabaixo: uma das expressões da religiosidade


afrodescendente no Amapá . . . . .. . . 581
Alysson Brabo Antero

Corpo e saúde: uma perspectiva comparada entre religiões


afro-brasileiras e neopentecostais. . . . . . . 594
Érica Ferreira da Cunha Jorge
Entre Dois Mundos: entre o pragmatismo da umbanda e o
salvacionismo espírita . . . . . . . . 605
Ana Maria Valias Andrade Silveira

Entre linhas e falanges: A diversidade da umbanda na


Contemporaneidade . . . . . . . 620
Saulo Conde Fernandes

Inclassificáveis: arcaísmos nos estudos das religiões afro-brasileiras . . 633


Antonio José Vieira da Luz

O catimbó de ontem não é apenas a Jurema de hoje: (in)


visibilidade da tradição em um culto das Religiões Afro-brasileiras . . 645
João Luiz Carneiro

O conceito de Escolas como garantidor da diversidade sem


prejuízo do fundamento: esoterismo e exoterismos nas tradições
espirituais afro-brasileiras . . . . . . . 659
Thomé Sabbag Neto e Rafael Gapski Moreira

Panorama histórico da formação do campo religioso e


estabelecimento das religiões afro-brasileiras na sociedade . . . 673
Silvino Paixão da Silva

Símbolos e sinais sagrados da Umbanda: o ponto riscado . . . 681


Osvaldo Olavo Ortiz Solera

Tambor de Mina: uma abordagem a partir de seus elementos visuais . 699


Wgercilene Machado Martins

Tem arruda? Tem guiné e espada? Tem magia e poder!


Abordagem etnobotânica de três espécies vegetais na rito liturgia
das religiões afro brasileiras . . . . .. . . 709
Wandir Vieira Leal Santos

Transe, possessão e êxtase religioso nas religiões afro-brasileiras . . 723


Jociane Neves Negrão

GT7 – Escolas públicas e (in)tolerância religiosa . . . . . 742

A (in)diferença e (in)tolerância em escolas públicas . . . . 743


Sueli Martins

A escola e suas devoções . . . . . . . . 755


Nilton Rodrigues Junior
Articulando religião, história e transformação social em escola pública
Mineira . . . . . . . . . . 765
Sônia Aparecida Rodrigues

Em travessia de [des]lugares: o corpo que dança o diferente incorpora-si


e faz poesia . . . . . . . . . . 774
Pedro Vitor Guimarães Rodrigues Vieira

Ensino Religioso: assertivas e incertezas nas escolas públicas . . . 790


Jacirema Maria Thimoteo dos Santos

Ensino religioso: ciência e religião na atuação de professores . . . 800


Kellys Regina Rodio Saucedo e Vilmar Malacarne

Identidades religiosas na escola pública: uma análise etnográfica


do cotidiano escolar . . . . . . . . 813
Bóris Maia e Patrícia Marys

Interfaces entre educação escolar e saberes religiosos na Amazônia . . 828


Maria Betânia Barbosa Albuquerque

O Sagrado como objeto de estudo no ensino religioso: a experiência do


Paraná . . . . . . . . . . 828
José Antonio Lages

Uma história de combate ao racismo no Marajó . . . . 860


Maria do Carmo Pereira Maciel e Rodrigo Oliveira dos Santos

GT8 – Estados Unidos: religião e sociedade . . . . . . 877

A Jeremiad fundamentalista: política, identidade nacional e


escatologia no fundamentalismo norte-americano (1970-1980). . . 878
Daniel Rocha

A religiosidade e o direito norte-americano à luz das contribuições


de Ronald Dworkin . . . . . . . . 894
Carlos Augusto Lima Campos

Fundamentalismo X Neo-Ateísmo: eixos da guerra de culturas


nos Estados Unidos .. . . . . . . . 908
Roney de Seixas Andrade e Ivan Dias da Silva

O legado fundamentalista do Seminário Teológico de Westminster


reformistas x reconstrucionistas . . . . . . . 924
Andréa Silveira de Souza

“Religião e Progresso”: a presença da religião em Brazil and The


Brazilians – portrayed in historical and descriptive sketches de Daniel
P. Kidder e James C. Fletcher, 1857. . . . . . . 939
Débora Villela de Oliveira

Religião, política e a ‘guerra cultural’ pelos jovens e entre os jovens


nos EUA . . . . . . . . . . 951
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza

Teologia da Libertação na terra do dólar . . . . . 965


Jorge Claudio Ribeiro

GT9 – Fundamentalismos religiosos . . . . . . 974

Fundamentalismo ou fundamentalismos? Uma análise da


problemática conceitual e sociocultural que transcendeu o seu sentido
e razão local . . . . . . . . 975
José Honório das Flores Filho

Fundamentalismo protestante e pentecostalismo: distanciamento e


proximidade . . . . . . . . . 990
Osiel Lourenço de Carvalho

Fundamentalismo religioso nas testemunhas de Jeová: observação


participante em uma congregação . . . . .1003
João Daniel de Lima Simeão

Intolerância religiosa no espaço público: estudos de casos . . .1013


Isabella Menezes

Nova tolerância intolerante: Mudanças de relações de gênero nas


Assembléias de Deus . . . . . . . .1029
Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa

O uso do corão como justificativa para ações de violência urbana . .1044


Magno Paganelli

Solus christus: exclusivismo cristão e tolerância religiosa . . .1059


Alceu Lourenço de Souza Junior

GT10 – Gênero e religião . . . . . . . .1073

A Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular: gênero e


religiosidade através dos discursos de religiosas (1946-1988) .. . 1074
Clarissa Milagres Caneschi

Do Axé à Aleluia: um rosto feminino do pentecostalismo . . .1082


Lizandra Santana da Silva
Festejo de Nossa Senhora Mãe dos Homens – identidades,
sincretismo, religião e poder na Comunidade Remanescente
Quilombola de Juçatuba . . . . . . . .1096
Flávia Leite Gomes

Participação de lideranças femininas na construção de políticas


públicas para afrorreligiosos em Belém, Pará . . . . .1108
Daniela Cordovil

Novas configurações das famílias contemporâneas: rupturas e/ou


Continuidades nos discursos e práticas de metodistas e luteranos
acerca do divórcio e novos casamentos . . . . . .1118
Noeme de Matos Wirth

Representações de gênero permeadas por violência


simbólico-religiosa no discurso midiático paraibano . . . .1134
Silvia Silveira e Fernanda Lemos

Representações de gênero no Espiritismo: como se dá a distribuição


de papéis ali? . . .. . . . . . .1135
Roger Bradbury

GT11 – Hereges, judeus e infiéis e a intolerância religiosa no decorrer


da Idade Média . . . . . . . . . 1162

A carta de Conrad Grebel (1498-1526) para Thomas Müntzer


(1490-1525) . . . . . . . . . 1163
João Oliveira Ramos Neto

A doutrina do pecado, fé, obras e o paradoxo do antissemitismo


em Lutero . . . . . . . . . 1171
Filipe de Oliveira Guimarães
A investigação das religiões e a formação políticocultural do
principado Rus´ de Kiev. Diversidade religiosa e trocas culturais . .1179
Fabrício de Paula Gomes Moreira

Adversus Iudaeos – a criação do antissemitismo no pensamento


cristão . . . . . . . . . 1195
Saul Kirschbaum

Conflitos entre monarquia e clero no processo de aceitação do rito


romano na Igreja Compostelana . . . . . . .1206
Jordano Viçose

Duas baleias na rede de pesca: a terceira via hussita de Petr


Chelčický . . . . . . . . . .1214
Thiago Borges de Aguiar
Eusébio de Cesareia e a nova história, eclesiástica . . . .1226
Daniel Sleder

O conceito de Jihad clássico à luz do Corão e dos hadith . . .1236


Michele Rosado de Lima Castro

O paradigma de Iudas-Iudei: Judas Iscariotes como uma


representação do judeu no Juízo Final e a Missa de São Gregório
(MASP 428P) . . . . . . . . .1249
Doglas Morais Lubarino

O Venerável Beda e o combate ao paganismo na Grã-Bretanha


do século VIII . . . . . . . . .1262
Itajara Rodrigues Joaquim

Sobre a controvérsia entre Martim Lutero e os judeus na


reforma do século XVI . . . . . . . .1270
Marcos Jair Ebeling

GT12 – História cultural das religiões . . . . . .1285

A África lusófona no período de descolonização: Missões e


alteridades na Revista O Campo é o Mundo . . . . .1286
Harley Abrantes Moreira

A emperie Católica como parte de uma filosofia ultramontana:


as missões capuchinhas no nordeste mineiro (1873-1889) . . .1295
Tatiana Gonçalves de Oliveira

A Lavagem de Santana: disputas e expressões de fé . . . .1309


Rennan Pinto de Oliveira

A produção conflituosa e controversa do aspecto religioso do


Espiritismo nos tempos de Allan Kardec (1857-1869) .. . . .1324
Alexandre Ramos de Azevedo

As representações do bispado brasileiro nos debates sobre a lei da


Separação do Estado das Igrejas em Portugal (1910 – 1911) .. . .1339
Carlos André Silva de Moura
Cândidas Palavras: literatura e missões protestantes no romance
“Candida” de Mary Hoge Wardlaw . . . . . .1354
Sergio Willian de Castro Oliveira Filho

Comer o tatu antes ou depois da comunhão? As manifestações


religiosas dos brasileiros e o conhecimento das normas católicas
(segunda metade do
séc. XIX) . . . . . . . . . .1371
José Leandro Peters

Congreganismo e anticongreganismo: A situação eclesiástica


em Portugal entre 1820 e 1834 . . . .. . . .1382
Gustavo de Souza Oliveira

Disseminação de idéias no milieu esotérico: notas sobre a influência


de Gurdjieff no Movimento Gnóstico de Samael Aun Weor . .1397
Marcelo Leandro de Campos

Entre a modernidade e a barbárie: o discurso redentorista acerca


do progresso em Goiás (1894-1930) . . . . . .1412
Robson Rodrigues Gomes Filho

O anticatolicismo norte-americano como bandeira protestante


na luta pelo Estado Laico no Brasil (1930 – 1945) . . . .1424
Paulo Julião da Silva

O Cristianismo na África agostiniana em Peter Brown . . .1435


Adailson Nascimento Souza

O rosto ambíguo do monoteísmo: libertação e violência na


instituição do monoteísmo no Antigo Testamento . . . .1444
Luiz José Dietrich

Protestantismo e culturas populares tradicionais: arranjos, r


earranjos e interações . . . . . . . .1458
Lauana Ananias Flor
Reflexos da União Prussiana na formação de luteranismos no
Rio Grande do Sul: das comunidades livres até a fundação
de sínodos confessionais evangélico-luteranos . . . . .1474
Renato Rodrigues Farofa

GT13 – História e historiografia do protestantismo no Brasil . . .1488

A ignorância de um pensar: a história da ausência do pensamento


protestante sobre a questão social no Brasil . . . . .1489
José Edson do Carmo Lima e Wagner Pinheiro da Silva

“A saga” de Eurico Nelson em Belém do Pará: relatos de


outra história . . . . . . . . .1499
Ezilene Nogueira Ribeiro

Educação protestante em perspectiva na imprensa batista . . .1514


Anna Lúcia Collyer Adamovicz

Émile-G. Léonard e seu lugar na historiografia protestante brasileira 1528


Marcone Bezerra Carvalho

História e historiografia da imprensa presbiteriana no segundo


reinado . . . . . . . . . 1548
Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros

O protestantismo e a historiografia no Brasil: crise conceitual . 1563


João Marcos Leitão Santos

Pensamento político do metodismo em Belém do Pará: registros


históricos do jornal O Apologista Christão Brazileiro na transição
republicana do Brasil (1890-1891) . . . . 1578
Tony Welliton da Silva Vilhena

GT14 – Igrejas inclusivas LGBTT e a luta contra a intolerância


religiosa . . . . . . . . . . 1592

A diferença se tornando unidade: análise dos temas da semana nos


grupos de discussão na Igreja Missionária Inclusiva em Maceió . 1594

Oiara da Silva Aureliano


A pomba-gira sou eu: aspectos da identidade transexual com a
religiosidade afro . . . . . . . . 1603
Tássio Acosta Rodrigues

Comunidade Cristã Inclusiva: movimento LGBTTIS ou


pentecostal? . . . . . . . . 1612
Regiane Ap. de Lima

Evangélicos e as relações de gênero na implantação de uma Igreja


Inclusiva em Campinas . . . . .. . . 1624
Livan Chiroma

Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo: o perfil


de uma igreja inclusiva e militante. . . . . . 1639
Aramis Luis Silva

Espaços religiosos de inclusão e diversidade sexual: um estudo


sobre uma igreja inclusiva paulistana e os elementos sagrados e
profanos em torno da noção de sexualidade . . . . 1653
Marina Santi Lopes Garcia e Ana Keila Mosca Pinezi

Igrejas Inclusivas: novo movimento religioso ou mais


uma igreja cristã emergente? . . . . . . 1686
Cosme Alexandre Ribeiro Moreira
GT15 – (In)tolerância, gênero e religião . . . . . 1686

Comunidades de terreiro: relatos da intolerância . . . 1687


Lucas de Deus da Silva

Da ortodoxia ao clericalismo: Igreja, Estado e as tentativas


de influência eclesiástica no poder público . .. . . 1702
Guilherme Borges Ferreira Costa

Discurso, poder e mulheres na cibercultura: uma análise das


consequências sócio-políticas do conceito de corporeidade
difundido no ciberespaço por adeptas das novas espiritualidades
femininas e formação de capital simbólico e social . . . 1717
Sabrina Alves

“Eu amo homossexuais como eu amo bandidos”: o pensamento


religioso de Silas Malafaia. . . . . . . 1730
Andrew Feitosa do Nascimento

“Intolerância religiosa no Brasil: características, estratégias de


enfrentamento e tendências no Serviço Social. . . . . 1742
Graziela Ferreira Quintão

GT16 – Marketing, espetáculo e ciberespaço: entre diversidades e


(in)tolerâncias religiosas . . . . . . . 1756

A internet e seus perigos: individualismo e poder entre as


Testemunhas de Jeová . . . . . . . 1757
Suzana Ramos Coutinho

A mão de Deus está aqui e na televisão: análise etnográfica dos


cultos da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), na Sede
Regional, em São Luís – MA . . . . . . 1772
Jaciara Fonseca dos Santos
A propagação da fé através do e-mail numa visão da Mística
e do Sagrado . . . . . . . . 1788
Valter Luís de Avellar

Anjos, demônios sociais e canções de amor . . . . 1802


Claudefranklin Monteiro Santos

Catolicismo renovado nas mídias sociais: o discurso


mercadológico de um popstar da fé. . . . . . 1817
Adriana do Amaral Freire e Karla Regina Macena Pereira
Patriota Bronsztein
E quando Deus vira Google? O adolescente e sua
percepção sobre Deus no Facebook .. . . . . 1832
Kate Fabiani Rigo

Lápides, flores e velas virtuais: os rituais post-mortem nos


cemitérios on-line (1990-2013) . . . . . . 1843
Julia Massucheti Tomasi

Mborai: o canto sagrado guarani . . . . . . 1858


João José de Félix Pereira

Narrativas digitais nas diversas redes educativas que


atravessam as aprendizagens em terreiros de Candomblé no Brasil . 1867
Máira Conceição Alves Pereira

O marketing eletrônico como instrumento de manipulação da fé . 1887


José Wagner Ribeiro

O que dizem os evangélicos sobre o incêndio na boate Kiss:


lazer e (in) tolerância cultural . . . . . . 1899
Waldney de Souza Rodrigues Costa

O Testemunho Religioso no ciberespaço: uma forma (cri)ativa


de interpelar o outro . . . . . . . 1912
Ronivaldo Moreira de Souza

Religião e ciberespaço: cultura do imaterial e estética classicista


no portal dos Arautos do Evangelho . . . . . 1926
Flávia Gabriela da Costa Rosa Amaral

GT17 – “No templo, no quartel e no porão”: os protestantes e a


ditadura militar brasileira . . .. . . . . 1937

“Nadando contra a corrente”: a atuação da juventude protestante


através da juventude batista baiana (1960-1970) . . 1948
Luciane Silva de Almeida

“No Brasil vivemos numa democracia”: os batistas e os direitos


humanos nos anos derradeiros da ditadura militar no Brasil
(1978-1988) . . . . . . . . .1959
Adriano Henriques Machado

O cristão frente às autoridades civis: a mentalidade dos


protestantes pernambucanos no Golpe Militar de 1964 . . 1974
Zilma Adélia Soares Lopes

Presbiterianos e apoio ao governo militar: reação e intolerância


Internas . . . . . . . . . 1983
Silas Luiz de Souza

GT18 – O Oriente e suas diversidades religiosas . . . . 1998

A Mesquita da Luz: uma abordagem do islã sunita no


Rio de Janeiro .
Janoí Joaquim Mamedes . . . . . . . 1999

A prática do dzochen e a tradição vajrayana no budismo tibetano . 2014


Igohr Brennand e Maria Lucia Abaurre Gnerre

Diversidade étnica e dificuldades de integração no Catolicismo


contemporâneo japonês . . . . . . . 2030
Antonio Genivaldo C. de Oliveira

Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da


tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng . . . . 2049
Matheus Oliva da Costa

GT19 – Pentecostalismos brasileiros: novas perspectivas . . . 2060

A confissão positiva: o movimento de cura no Brasil e suas


fundamentações teológicas . . . . . . 2061
Emmanuel Roberto Leal de Athayde

A estrutura ritualística do culto adventista realizado na


comunidade quilombola Dezidério Felippe de Oliveira em
Dourados/MS . . . . . . . . 2076
Gabrielly Kashiwaguti Saruwatari

A Igreja Presbiteriana Renovada e a sua inserção no campo religioso


Brasileiro . . . . . . . . . 2092
José Rômulo de Magalhães Filho

A religião, a racionalidade protestante e a sociedade de Fausto . 2108


Carlos Antonio Carneiro Barbosa

A teologia da prosperidade e Igreja Universal do Reino de Deus . 2119


Fernanda Vendramini Gallo

Estevam Ângelo de Souza: Pastor, escritor e liderança


carismática no Maranhão (1957-1996) . . . . . 2129
Elba Fernanda Marques Mota

Pentecostalismos e questão social: novas formas de enfrentamento? . 2145


Edson Elias de Morais e Luiz Ernesto Guimarães
Neopentecostalismo e as mudanças na concepção escatológica
das Assembleias de Deus . . . . . . . .2158
Ismael de Vasconcelos Ferreira

O diálogo inter-religioso nas Assembleias de Deus: desafios e


Possibilidades . . . . . . . . .2167
Adriano Sousa Lima

Os protestantes da Amazônia: uma análise da onda evangélica


na cidade de Juína no noroeste do estado do Mato Grosso . . .2180
Renato da Silva, Marina Silveira Lopes

Terceira Face do Pentecostalismo no Brasil . . . . .2192


Samuel Pereira Valério

Um diálogo católico-pentecostal sobre “tornar-se cristão” . . .2209


Luiz Ernesto Guimarães

GT20 – Religião e ciência: tensão, diálogo e experimentações . . .2220

A ciência espiritual da bhakti-yoga: epistemologia e revelação . .2262


Rafael Grigório Reis Barbosa

A contracultura e a emergência da ideia de saúde como integração


corpo e mente . . . . . . . . .2236
Maria Regina Cariello Moraes

A religiosidade como fator estruturante do novo espírito do


capitalismo . . . . . . . . . 2251
Maroni João da Silva

Crenças e experiências religiosas dos "sem religião" nas


Comunidades virtuais . . . . . . . 2262
Rafael Lopez Villasenor

Espiritismo e Medicina: interfaces entre ciência, saúde e


espiritualidade . . . . . . . . 2276
Gustavo Ruiz Chiesa

Plantas utilizadas nas religiões afro-brasileiras: ciência e crença . .2290


José Luis Rojas Vuscovich

Religião e ciência entre Kardecistas e Messiânicos . . . 2303


Leila Marrach Basto de Albuquerque
Teatro da ciência, espetáculo do sobrenatural: as
sonâmbulas e os magnetizadores nos palcos do século XIX . . .2319
Michelle Veronese

Teísmo, ateísmo e cenários de evolução no multiverso . . .2328


Osame Kinouchi

Transe mediúnico: estado alterado de consciência ou distúrbio mental? . .2344


Diogo F. Tenório

Umberto Eco, Carlo Maria Martini, Jacques Derrida: saber e fé no


Deserto do Deserto . . . . . . . . 2356
Alexandre de Oliveira Fernandes

GT21 – Religião e hierofania: história, espaços e símbolos . . 2367

A oração como cultura: Observando o papel da hierofania entre os


membros da comunidade de vida da Comunidade Católica Shalom . 2368
José Germano Neto

Barroco: arte e educação no universo colonial luso-brasileiro. . 2377


Andrea Gomes Bedin

Epistemologia da controvérsia e seu diálogo com o inefável da


Hierofania . . . . . . . . . 2392
José Altran

Espaço das representações da morte: arte tumular como


expressão da
cultura . . . . . . . . . .2406
Thiago Nicolau de Araújo

Espaço sagrado: a construção da memória de migrantes


Ouro Preto do Oeste-RO . . . . . . . 2421
Amanda Rayery de Aguiar Soares e Eduardo Servo Ernesto

Hierofania e (in)tolerância – o espaço religioso na história das


Cidades . . . . . . . . . 2435
Sérgio Gonçalves de Amorim

Hieropólis: fragmentos do pensamento católico nos dizeres sobre o


urbano em Caxias-Maranhão em meados do século XX . . 2443
Mirian Ribeiro Reis

Nos muros, os secretos: iconografia nos muros dos terreiros


de Candomblé, Mina e Umbanda em Santarém/PA . . . 2457
Carla Ramos
O tempo e o espaço sagrados na Umbanda . . . . 2471
Claudio Pereira Noronha

Todo ano tem: levantamento do mastro na cultura campesina


maranhense . . . . . . . . . 2484
Keliane da Silva Viana e Ronilson de Oliveira Sousa

GT22 – Religião e política . . . . . . . 2499

“A Bancada Religiosa e o Kit Gay”: elementos de um fazer político


cristão .
Yuri Galvão Sabino . . . . . . . . 2500

A disputa pela coroa de rei do candomblé em Alagoas no período


de 1970 a 1990 . . . . . . . 1300
Alícia Poliana Ferreira

A ignorância de um pensar: a história da ausência do pensamento


protestante sobre a questão social no Brasil . . . . .1489
José Edson do Carmo Lima e Wagner Pinheiro da Silva

A Igreja Católica e a questão da hegemonia . . . . 2532


Elza S. Cardoso Soffiatti

A política religiosa “evangélica”: o comportamento das lideranças


protestantes e seu engajamento no processo político eleitoral nas
eleições de 2010 . . . . . . . . 2542
Rogério da Costa

“Ai de quem tiver a audácia de falar de injustiça”: espionagem


militar na Igreja Católica no Maranhão . . . . . .2557
Camila da Silva Portela

Doutrina social da igreja católica como fundamentos históricos do


serviço social no Brasil . . . . . . . 2572
Jefferson Pinto Batista

Ensinai o respeito à ordem e à autoridade! O papel da


Igreja Católica na consolidação do Império Brasileiro . . . 2580
Ítalo Domingos Santirocchi

Intelectuais católicos em diálogo com o fascismo no Brasil do


início dos anos 1930 . . . . . . . 2597
Alexandre José Gonçalves Costa

Interações entre Estado e religião na regulação da ayahuasca


no Brasil . . . . . . . . 2607
Janaína Alexandra Capistrano da Costa

Louvar e protestar: eventos políticos e culturais do “povo de santo” . 2622


Jaqueline Vilas Boas Talga

O ideal católico progressista na ditadura militar (1964-1985) nas


cartas de dom Fragoso de Crateús CE . . . . . 2638
Anderson Pereira Brito, José Wilson Neves Jr

Poder e Religião: possibilidades de análise historiográfica das


constituições eclesiásticas do império português (século XVI) . 2658
Durval Saturnino Cardoso de Paula

Religião, política e memória nos escritos de D. Luciano Mendes


de Almeida . . . . . . . . . 2666
Virgínia Buarque

GT23 – Religião e violência . . . . . . . 2678

A superação da violência angolana nos ritos culturais de morte . 2679


Francisco José Barbosa

A violência de Lars von Trier em Anticristo . . . . 2693


Flávia Santos Arielo

“Em Busca da Palavra”. Exemplo e ressignificação nas dinâmicas


de uma igreja do pentecostalismo tradicional em um
contexto de favela . . . . . . . . 2706
Evandro Cruz Silva

Intolerância religiosa e religiões afro-brasileiras . . . 2721


Celia Morgado Vaz

O universo religioso do povo indígena como forma de


superação da violência sofrida ao longo da história . . . .2734
Luiz Alberto Sousa Alves

“Se o irmão falou, meu irmão, é melhor não duvidar”


Políticas estatais e politicas criminais referentes a homicídios
na cidade de Luzia (2001-2011) . . . . . 2747
José Douglas dos Santos Silva

Sobre armas e orações: religião e crime a partir de uma pesquisa


etnográfica . . . . . . . . . 2759
Evelyn Louyse Godoy Postigo
Yorubás e Malês: conflito e aliança no Brasil escravocrata . . .2774
Lidice Meyer Pinto Ribeiro

GT24 – Religiosidade, identidade e intolerância: (novas)


re-configurações da religião . . . . . . 2797

A folclorização das religiões afro-brasileiras em Alagoas (1970-1980) 2798


Gabriela Torres Dias

A religiosidade e o direito entre o ateísmo e


a (a)confessionalidade: ressignificando os parâmetros de
laicidade estatal . . . . . . . . 2807
David Carlos Santos Sarges, Marina Lima Campos

Distintos e invisíveis: perspectivas sobre a Umbanda no


espaço público de Teresina . . . . . . 2018
Ariany Maria Farias de Souza

Entrei numa batalha: a legitimação das religiões da ayahuasca . .2811


Luciane Ferreira de Melo

Evangélicos divergentes: uma nova sexualidade cristã . . . 2846


Evanway Sellberg Soares

Identidade, política e ritual: algumas notas sobre a configuração do


campo afro-religioso em Santarém-PA . . . . . 2864
Telma de Sousa Bemerguy

Intolerância religiosa na percepção dos adeptos das religiões


afro-brasileiras . . . . . . . . 2876
Lana Lage da Gama Lima, Leonardo Vieira Silva

Louvores a Jah/Jesus: reggae e espaços de fronteira religiosa . . 2892


Thiago de Menezes Machado

O campo religioso brasileiro e o fenômeno dos sem religião . 2903


José Álvaro Campos Vieira

Religião e modernidade: uma análise da presença religiosa no meio


estudantil da Universidade Estadual de Londrina (2011-2012) . 2921
Pedro Vinicius N. M. F. Rossi

Religiões tradicionais africanas e filosofia bantu entre os


Nyungwe e Dema de Moçambique . . . . . 2914
Antonio Alone Maia, Maria Luisa Lopes Chicote
Uma análise da religiosidade dos sem religião no Brasil: uma nova
forma de crer? . . . . . . . . 2950
Ronaldo Robson Luis e José Roberto de Souza

Uso religioso da Ayahuasca como patrimônio nacional: repercussõe


s e análises . .
Maíra de Oliveira Dias . . . . . . . 2966

GT25 – Representações, (re)leituras e relações entre religiões e


(in)tolerâncias religiosas no cinema . . . . . 2980

Martinho Lutero no Brasil na década de 1950: entrada


permitida ou não? . . . . . . . 2981
Geovano Moreira Chaves

Os sete pecados capitais e a dicotomia entre a moral católica


medieval e a moral católica pós-moderna no filme Seven de
David Fincher . . . . . . . . 2992
Albert Drummond

Representações da fé em Dexter: entre a ação doentia e a


doação ao totalmente outro . . . . . . 3088
Lucila Jenille Moraes Vilar

S(C)em sertões: Canudos e Conselheiro nas telas do cinema . . 3025


Amauri Araujo Antunes e Anahy Sobenes

Transcendência, transitoriedade e transgressão: o indivíduo


entre tradição e modernidade na cinematografia brasileira . . 3042
Joe Marçal Gonçalves dos Santos

GT26 – Saúde, religião e cultura: um diálogo a partir das


Práticas terapêuticas culturais e religiosas . . . . . 3057

A cultura como paciente e como promotora da saúde


pelas danças dos povos e contemporâneas em círculo: a vivência
do sagrado em grupo nas grandes cidades brasileiras . . . 3058
Tânia Pessoa de Lima

A cultura e as práticas terapêuticas alternativas na busca


pela cura . . . . . . . . . 3074
Adrielle Macêdo Fernandes da Silva

A cura espiritual Kardecista um fenômeno cultural na


pós-modernidade . . . . . . . . 3092
Cristiane Martins Gomes
A pajelança maranhense: elementos para a compreensão de uma
religião ilega . . . . . . . . 3102
Thiago Lima dos Santos

Cura na umbanda: caminhos complementares entre saúde


e religião . . . . . . . . . 3115
Maria do Amparo Lopes Ribeiro

Práticas terapêuticas populares na Amazônia: curandeirismo


e plantas poderosas . . . . . . . 3130
Dayana Dar’c da Silva e Silva

GT27 – Universos simbólicos de religiosidades no Japão . . . 3145

“A procura do sagrado”: a metáfora nas expressões linguística dos


textos do fundador da Igreja Messiânica Mundial . . . 3146
Emilson Soares dos Anjos

A sucessão do carisma nas Novas Religiões Japonesas: uma


perspectiva de gênero . . . .. . . . 3157
Ediléia Mota Diniz

Interação de múltiplas tendências religiosas: a religião messiânica


no Japão e no Brasil . . . . . . . 3174
Andréa Gomes Santiago Tomita

O ato purificador do Johrei e as diferentes concepções


de Cura e Doença . . . . . . . 3190
Renato Müller Pinto
Apresentação

Sejam bem vindas/os ao 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º Simpósio Internacional da


ABHR – Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas. Este evento é uma promoção da
Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR), e realizado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

A ABHR tem realizado simpósios nacionais anualmente desde sua fundação em 1999 em
Assis, São Paulo. Em todos os simpósios há participação significativa de estudiosos/as das
religiões e religiosidades, provenientes de áreas como História, Antropologia, Sociologia,
Ciências da Religião, Teologia, Psicologia, Letras e outras. A produção científica destes
eventos é demonstrada em Anais com comunicações em GTs e em coletâneas com
conferências e palestras em Mesas. A produção acadêmica da ABHR se estende ao seu
periódico, a PLURA – Revista de Estudos de Religião, disponível gratuitamente no
endereço www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/plura/index.

Durante o 12º Simpósio Nacional, em Juiz de Fora (2011), percebeu-se a importância de se


(re)estruturar a associação a partir da criação de seções e eventos regionais que considerassem
as especificidades locais nos campos religioso e acadêmico. Em maio de 2012 foi realizado o
13º Simpósio Nacional, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e em assembleia, foi
decidida a realização do 1º Simpósio Regional Sudeste na Universidade de São Paulo (USP),
em 2013. O tema escolhido foi Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas, dada a urgência
em se aprofundar os estudos sobre as diferentes (im)possibilidades e obstáculos à livre
manifestação religiosa de sujeitos e coletivos na sociedade do tempo presente.
Posteriormente, percebeu-se a possibilidade de ampliação do evento através do diálogo com
pesquisadores/as de outros países, estimulando o evento a se tornar concomitantemente
regional sudeste e internacional.

O 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º Simpósio Internacional da ABHR pretende


apresentar e aprofundar temas associados à (in)tolerância, discriminação e/ou violência a
diversas pessoas, como os/as fiéis de religiões afro, afro-brasileiras, orientais e de novos
movimentos religiosos (NMR), a crentes e a descrentes. As reflexões também incidirão sobre

31
a discriminação em razão de marcadores sociais como identidades de gênero e orientações
sexuais, imbricações da religião com a política, deslocamento físico e identitário de fiéis e
instituições e teoria e metodologia dos estudos sobre religiões e religiosidades.

A direção da ABHR e a organização do evento, da qual participa o CERNe (Centro de


Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras do DA-USP) gostariam de
reforçar nossas boas-vindas e desejar que o compartilhamento de experiências durante o
evento vise, antes de tudo, um mundo mais acolhedor a todos/as. Vamos fazer um bom evento
juntas/os.

Eduardo Meinberg de
Wellington Teodoro da Silva Albuquerque Maranhão Fo Vagner Gonçalves da Silva
Presidente da ABHR
Organizador Geral do Evento Coordenador do evento

32
33
Minicursos
34
MC3 – Direito, Estado laico e religião noBrasil:
limites, conflitos e convergências

Coordenadores

Carlos Augusto Lima Campos David Carlos Santos Sarges


Mestrando em Ciências da Religião pela Mestrando em Ciências da Religião pela
UEPA. Especialista em Direito Penal e UEPA. Especialista em Ciências da
Processual Penal pelo Centro Universitário Religião pela Universidade Cândido
de Ribeirão Preto/SP. Mendes/RJ.

Resumo

A afirmação de que o Brasil é um Estado laico geralmente é produzida como mero argumento
retórico divorciado da compreensão do modelo de laicidade encampado. E o sentido de tal
declaração nem sempre fica claro para o interlocutor, já que há uma enorme distância entre
afirmar que o Brasil é um Estado laico e compreender os contornos dessa laicidade. O
presente minicurso se propõe a analisar a questão relativa à liberdade de consciência e de
credo, bem como as emblemáticas relativas à influência da religiosidade judaico-cristã nos
institutos do direito pátrio, perpassando a seara de temas atuais vinculados às expressões
políticas da religiosidade brasileira, enquanto marcos no Estado e na esfera pública, com
destaque para o Direito de Família, a Liberdade de Expressão e Manifestação do Pensamento
Religioso, bem como as perspectivas de Laicidade e Confessionalidade Estatal, por meio de
exposição teórica e apresentação de estudos de casos, que subsidiarão os debates promovidos.

35
Direito, Estado laico e religião no Brasil: limites, conflitos e
convergências
Carlos Augusto Lima Campos1, David Carlos Santos Sarges2

Introdução

A afirmação de que o Brasil é um Estado laico geralmente é produzida como mero argumento
retórico divorciado da compreensão do modelo de laicidade encampado. E o sentido de tal
declaração nem sempre fica claro para o interlocutor, já que há uma enorme distância entre
afirmar que o Brasil é um Estado laico e compreender os contornos dessa laicidade.

Imperiosa, destarte, a iniciativa de se analisar a questão relativa à liberdade de consciência e


de credo, bem como as emblemáticas relativas à influência da religiosidade judaico-cristã
nos institutos do direito pátrio, perpassando a seara de temas atuais vinculados às expressões
políticas da religiosidade brasileira, enquanto marcos no Estado e na esfera pública, com
destaque para o desenvolvimento histórico da religião, enquanto objeto epistemológico do
conhecimento científico, assim como a construção das perspectivas de laicidade estatal, que
envolvem discussões acerca da liberdade de expressão e manifestação do pensamento
religioso, bem como de temáticas relativas aos Direitos Transindividuais, e aspectos pontuais
de laicidade e confessionalidade estatais.

O ponto de partida sempre converge para o fato de que mesmo diante do fortalecimento dos
movimentos religiosos, e da concepção de que estes, há muito, não estão adstritos aos templos
e aos espaços litúrgicos, a ideia de se atribuir um caráter científico à religião, enquanto objeto
de investigação, ainda gera um certo desconforto e, não raro, protestos. O surpreendente é que
muitas das vozes que se opõem à compreensão dos sentidos e argumentos do fenômeno
religioso pertencem a um universo – a Academia – que, ao contrário do que se verifica,
deveria incentivar a proliferação de estudos aprofundados acerca desta que é mais que uma
simples tendência, constituindo-se em verdadeira realidade: a interrelação existente entre a
religião, a democracia e o espaço público.

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro
Universitário de Ribeirão Preto (UNISEB), bacharel em Direito pela UFPA. Contato:
prof.carloscampos@gmail.com.
2
Especialista em Ciências da Religião pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), graduação em Licenciatura
Plena em Ciências da Religião pela UEPA. Contato: davidsarges.sarges@gmail.com.

36
O discurso comum aponta para o fato de que o Estado é laico e que, portanto, a religião
deveria se recolher à penumbra de igrejas, lares e congregações, isto é, ao âmbito da vida
privada, como é possível verificar em alguns países europeus, notadamente na França.
Todavia, além de vazio, tal discurso despreza de maneira pouco sábia o caráter histórico-
cultural que permeou o desenvolvimento do pensamento científico no Brasil e no mundo.

É neste contexto que nossas linhas se desenvolvem a partir dos limites “impostos” aos
homens pelo conhecimento científico da era moderna, serão problematizados, frente à
incompatibilidade com a concepção hodierna de laicidade, que se pretende confrontar.

Da Caverna de Platão ao Emílio de Rousseau: Uma abordagem epistemológica da


religião a partir da concepção kantiana de aufklärung

Preambularmente, urge ressaltar a afirmação de Ivan Ap. Manoel (2008, p. 18), segundo a
qual

religião e religiosidade são produções humanas situadas na esfera da cultura, ou da


superestrutura (...); são históricas, portanto, mas que por vezes são interpretadas como a-
históricas e, além disso, se propõem elas mesmas, estabelecerem um conceito e uma
filosofia da história. (p.18).

Tal postulado, embora aparentemente despretensioso, se presta a introduzir (e não raro


“desfechar”) uma espécie de hipótese metodológica onde não é lícito sustentar a ideia de que
uma expressão religiosa, manifestada por meio de escritos tidos como sagrados, se mantém
intacta no interregno temporal de sua perspectivação. E aqui, essencial a contribuição do autor
ao aludir que a multiplicidade teleológica do termo história não pode ser restringida a excertos
etimológicos, razão pela qual tal empreendimento, sequer, será cogitado.

Neste diapasão, não é difícil contemplar interlocutores aborrecidos, ou mesmo indignados


com implicações semelhantes às acima ventiladas, e tal se manifesta – basicamente – pelo fato
de que a ideia de “sagrado” está, ainda que inconscientemente, atrelada à de “pureza”. E, no
contexto em comento, pureza denota unicidade, inércia e linearidade factual. A título
ilustrativo, a simples suposição (portanto, hipotética) de que um texto revestido de sacralidade
possa ter sido modificado (ou pior: manipulado!) poderia transformar castelos de pedra em
casebres de areia!

37
A referida alegoria apenas reforça a aparente angústia, presente na circunspecção ordinária,
segundo a qual ciência e religião não podem dialogar. Entrementes, outra vez se faz
imperioso o “socorrer-se” de Ivan Ap. Manoel, de onde é possível reiterar que a religião é
fruto das vicissitudes da cognição humana, o que possibilitaria a sua inserção enquanto objeto
epistemológico do conhecimento.

Em se tratando de uma investigação acerca do caráter científico da religião, à luz da doutrina


kantiana, é natural que alguns conceitos deste filósofo prussiano predominem no
desenvolvimento teórico da pesquisa. Dessa maneira, a inclusão inicial de três algoritmos
constitui conditio sine qua non para uma compreensão otimizada do estudo. São eles: (I) a
menoridade, (II) o aufklärung e (III) o conhecimento.

A concepção de menoridade, em Immanuel Kant, está relacionada à ideia de incapacidade,


isto é, o ser humano não apresenta autonomia cognitiva, de maneira que fica impossibilitado
de fazer uso do seu próprio entendimento. Para o autor, a permanência do homem na
menoridade se deve ao fato de ele não “ousar pensar”. A covardia e a preguiça são apontadas
como as causas que levam os homens a permanecerem na menoridade. Um outro motivo seria
o comodismo, já que aparentemente é bastante confortável que terceiros tomem decisões que,
paulatinamente, façam com que o indivíduo se torne cada vez menos atuante, já que passa a
abrir mão de sua identidade intelectual.

O segundo conceito, aufklärung, diz respeito à saída do homem de sua menoridade, da qual
ele próprio é culpado. Em tradução livre, o referido termo significa iluminação ou mesmo
esclarecimento, que seria a característica do ser humano que, ousando se libertar dos grilhões
da menoridade, busca a própria autonomia frente àqueles que o dominam/manipulam
intelectualmente. É importante enfatizar que o ato de se insurgir contra o comodismo é a
principal característica do que Kant (1983, p. 122) denominou “emancipação das trevas”.

Por meio das perspectivas de menoridade e aufklärung, chegar-se-á a um ponto de suma


importância no desenvolvimento da presente investigação, qual seja, a temática relativa ao
conhecimento, sob a égide do papel constitutivo do mundo pelo sujeito transcendental, isto é,
o sujeito que possui as condições de possibilidade da experiência. Aqui, simbolicamente
equivaleria afirmar que o conhecimento é possível porque o homem apresenta faculdades que
o torna possível. Com isso, seria viável o desenvolvimento de métodos científicos aplicados à
religião, de maneira que se possibilitaria aferi-la à luz da razão e dos seus limites, ao invés de

38
investigar como deve ser o mundo para que se possa conhecê-lo, como a filosofia vinha
fazendo até então.

Talvez possa causar algum estranhamento o “valer-se” de Kant para corroborar com a
possibilidade metodológica que admite a religião como objeto de investigação científica, já
que contraria o discurso comum, segundo o qual o autor teria aberto o caminho do filosofar
da Idade Moderna, o que representaria um fenômeno de “destruição e degeneração”, que
forçosamente desaguaria no niilismo ou no ateísmo. Certamente que as reações, em princípio,
não são simpáticas. Entretanto, será mesmo que a “ideia” de que a Filosofia Moderna sofreu a
“perda de Deus” (como Nietzsche proclamou) deve ser entendida tanto para perspectivas pós-
metafísicas quanto para o pensamento “pós-cristão”?

Evidentemente que tal questionamento apresenta um caráter retórico, uma vez que a
preocupação que aqui se apresenta como central diz respeito ao caráter epistemológico da
religião a partir da concepção kantiana de aufklärung. Todavia, sou afeiçoado ao ponto de
vista sustentado por Essen & Striet (2010, p.10), segundo o qual:

A modificação crítica da tradição metafísica trazida por Kant abre a possibilidade de que
seja transposto o abismo entre teologia e filosofia, aberto desde o começo da Idade
Moderna, quando a teologia se debruça positivamente sobre o pensamento de sujeito e
liberdade engendrado por Kant.

Por oportuno, insta mencionar que a caverna de Platão e o Emílio de Rousseau, na presente
investigação, são categorias alegóricas das trevas e das luzes, em nítida referência à crise e ao
despertar da teologia, e da religião enquanto objeto epistemologicamente considerado. Daí ser
imperioso associar as trevas ao medo, ao conformismo e à condição de indigência a que a
religião fora relegada diante da então moderna compreensão de ciência. Ao seu tempo, as
luzes se referem à concepção de razão que Rousseau sustentava frente aos demais
pensamentos iluministas, onde o indivíduo passa a ser valorizado e, logo, ressignificado,
perante à concepção predominante de razão social. Objetiva-se, com tal analogia, enfatizar a
perspectiva de que o homem, enquanto sujeito cognoscente e ontológico, também é partícipe,
e pode transformar e ser transformado pela heterogeneidade da religião e, por conseguinte, da
cultura.

39
A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro

Como inferimos preambularmente, o Brasil é um Estado laico, e tal assertiva –


obstinadamente reverberada por religiosos quando vislumbram numa ação governamental
uma interferência indevida em questões religiosas, e de igual maneira pelas autoridades
estatais, quando ambicionam impor uma política pública que contrarie interesses religiosos –
é difundida, majoritariamente, de maneira abstrata, como se a simples afirmação de que um
país é laico possibilitasse o delineamento de tal acepção.

Uma análise mais cautelosa de um determinado ordenamento jurídico permite visualizar que a
laicidade adotada pelos diferentes Estados comporta matizes. Tal constatação deriva,
obviamente, da tese de que o arquétipo de laicidade adotado por cada país deve ser coligido
enquanto gradação do seu ordenamento jurídico constitucional. Isto equivale a compreender
que são os preceitos constitucionais que vigoram em cada Estado que determinam os
contornos da laicidade por ele adotada.

Uma primeira distinção a ser estabelecida é a de que Estado laico não se confunde com
Estado anti-religioso. A experiência histórica tem demonstrado que tanto o Estado
confessional quanto o ateísta atentam contra os ideais democráticos, porque não permitem
ao ser humano o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. O Estado confessional,
quando entroniza determinada ideologia religiosa e reprime a exteriorização de outras
crenças (ou descrenças), asfixia a realização das mais elementares aspirações do espírito
humano. Do mesmo modo, o Estado ateísta, que substitui o conteúdo ideológico religioso
por um conteúdo supostamente anti-religioso não raramente marcado por características
fortemente religiosas (por exemplo, culto ao Estado ou ao líder político). Ambos
representam modelos que se servem do ser humano como mero instrumento para a
realização de uma ideologia política ou religiosa e não como um fim em si mesmo. Neste
sentido, um e outro são exemplos de desrespeito à dignidade humana. Algo muito
preocupante atualmente é a tendência que se observa em alguns setores da imprensa para se
opor ao direito de líderes religiosos expressarem suas opiniões a respeito de questões éticas
relacionadas com alguma política pública. A Política governamental, com certeza, não deve
ser orientada para atender os valores éticos defendidos por este ou aquele grupo religioso,
mas não se pode negar o direito que os religiosos – como os lideres de outros segmentos da
sociedade – têm de se manifestar sobre qualquer política pública, exercendo de modo pleno
a cidadania. Por exemplo, é plenamente legítima a atitude dos bispos católicos de se
insurgirem contra a distribuição de preservativos. Ao fazê-lo, estão tão somente
expressando o ponto de vista religioso sobre o assunto. Posso não concordar com tal
posicionamento, mas de modo algum me é lícito negar-lhes o direito a que o manifestem.
Qualquer pessoa pode considerá-lo retrógrado e expor os motivos para que as políticas de

40
saúde pública não o acolham. Porém, o argumento que muitas vezes tem sido utilizado – o
de que eles deveriam ficar calados porque o Brasil é um país laico – nada mais é do que
uma falácia autoritária. Democracia é convivência dos contrários. A tentativa de influenciar
a política governamental é prerrogativa de qualquer grupo social, consectário inevitável da
cidadania, não consistindo, em si, afronta à laicidade estatal. (CAMPOS, 2010, p. 81-82).

Outro aspecto que deve ser visualizado, em cátedra, é o de que o Estado laico não é aquele
absolutamente refratário a influências religiosas. Os protótipos de Estados laicos que
adotaram políticas públicas que diretamente (ou não) desaguaram em movimentos
capitaneados por líderes religiosos são inúmeros, e não raro a motivação religiosa constitui
fator determinante para as lutas principiadas por determinados segmentos sociais, com o fito
de viabilizar a adoção de políticas governamentais que melhorassem a vida da sociedade,
coletivamente sopesada. Em particular, reputamos o emblemático Martin Luther King Junior,
onde ninguém, em sã consciência, poderia desconsiderar que muitas das políticas
governamentais americanas foram fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos
Civis, liderado pelo pastor batista, a despeito das latentes motivações religiosas.

Então, se as políticas estatais não são diametralmente desprovidas de influência religiosa, e se


o Estado laico não é sinônimo de anti-religioso (ou ateísta), qual a melhor hermenêutica para
interpretá-lo, se é que tal questionamento pode ser encarado como “lícito”?

Na verdade, laico nada mais é do que o caráter de neutralidade religiosa do Estado. O


Estado laico é aquele que não privilegia nenhuma religião em particular e cuja política não
é determinada por critérios religiosos. Significa dizer, ainda, que os Estados e as
comunidades religiosas não sofrem interferências recíprocas no que diz respeito ao
atendimento de suas finalidades institucionais. Vale lembrar, todavia, que interferência não
se confunde com influência. Uma ilustração pode aclarar a distinção. Nada mais natural que
dois jovens recém-casados tragam para o seu casamento a carga cultural recebida de seus
pais. O modo pelo qual foram criados certamente contribui para sua visão de mundo e, de
alguma maneira, influencia a vida do casal. Eventualmente, marido e mulher podem ouvir
alguma sugestão dos seus pais sobre algum assunto em particular (a aquisição de um
imóvel, por exemplo) e o jovem casal pode seguir ou não o conselho recebido. Isso pode
ser rotulado como influência. Todavia, se a sogra da jovem esposa liga para a residência do
casal e determina à cozinheira qual o cardápio diário a ser seguido, mesmo que motivada
por preocupações com a saúde do seu filho, estamos diante de uma interferência e não mais
de uma mera influência. Do mesmo modo, as políticas públicas não podem ser ditadas pelo
pensamento religioso ou idealizadas para satisfazer este ou aquele grupo religioso, porque o
que se busca numa comunidade política é a satisfação dos interesses de todo o grupo social,
composto por cidadãos de todas as matizes ideológicas (religiosas ou não). Nada impede,

41
entretanto, que grupos de pressão (religiosos ou não) postulem pela adoção de políticas
públicas neste ou naquele sentido, conquanto o critério para a decisão estatal jamais deva
ser determinado pelo pensamento religioso (TOURRANE, 1996, p. 14).

Nesse diapasão, e excetuados os sistemas jurídicos que adotam oficialmente um arcabouço


ideológico anti-religioso (ou até ateísta) – e que não constituem propriamente modelos de
Estado laico, mas alegorias de totalitarismo político), há dois modelos básicos de laicidade
estatal. O primeiro é o que promove uma separação tendente a confinar a religião ao foro
íntimo das pessoas, procurando afastá-la do espaço público. Este é, aparentemente, o modelo
que vem paulatinamente sendo adotado nos países mais secularizados. O caso paradigmático é
o da França, onde a religião tem sido gradualmente expulsa do espaço público, a ponto de o
Parlamento francês ter aprovado uma lei (a 2004-228, de 15 de março de 2004) coibindo a
utilização de símbolos e indumentárias que representem uma manifestação ostensiva de uma
identidade religiosa, por parte de estudantes de instituições públicas de ensino.

O segundo modelo de Estado laico é o que, vislumbrando no fenômeno religioso um


importante elemento de integração social, não almeja afastá-lo por completo da esfera
política. Antes, chega a incentivar expressões de religiosidade no espaço público,
chancelando-as de diversos modos, como, por exemplo, favorecendo o estabelecimento de
capelanias em corporações militares.

Entre um modelo e outro, evidentemente, há diversos entretons, tendo em vista as


especificidades de cada ordenamento jurídico nacional, bem como a tradição de cada povo.
As dimensões da muralha que separa a comunidade política das organizações religiosas
variam, assim, de Estado para Estado. Certamente há circunstâncias históricas específicas que
explicam os porquês da preponderância, em um determinado sistema jurídico, de uma
concepção mais próxima deste ou daquele padrão, circunstâncias estas que estão ligadas ao
desenrolar do processo de secularização vivenciado por cada sociedade.

Importante salientar que a secularização – compreendida como o processo pelo qual a


sociedade se afastou do controle da Igreja, de forma que a ciência, a educação, a arte e a
política ficaram livres da conformidade com as hierarquias eclesiásticas, bem como do dogma
teológico – enquanto fenômeno que alcança todo o mundo ocidental, manifesta-se de distintas
maneiras nos diversos Estados, por razões igualmente diversas, dentre as quais se inclui até
mesmo a concepção teológica sustentada pela expressão religiosa tida como majoritária,
sendo válido ressaltar, exemplificativamente, que o processo de secularização em países de

42
tradição calvinista não se dá na mesma celeridade que em países de tradição católica. Do
mesmo modo, quando a analogia se perfaz, alegoricamente, entre países tradicionalmente
muçulmanos e países tradicionalmente budistas. Outro aspecto singular, dentro de nossas
considerações, diz respeito à motivação cardinal da separação entre as organizações religiosas
e o Estado, uma vez que

as opiniões variam quanto ao que a doutrina constitucional da separação entre Igreja e


Estado tem como intenção primeira. A intenção é proteger as Igrejas da interferência
governamental ou proteger a política de grupos de pressão religiosos? Não parece
desarrazoado que, embora o princípio da separação seja capaz de atender a ambos os
interesses, dependendo das particularidades históricas de cada país que o adotou, tenha
havido historicamente a precedência de uma intenção sobre a outra. Nos Estados Unidos,
por exemplo, vê-se claramente que a intenção primeira dos constitucionalistas foi a de
proteger as igrejas da interferência governamental, sobretudo para garantir proteção ao
pluralismo religioso que marcou a história norte-americana desde os seus primórdios. Já na
França, a intenção primeira – claramente perceptível na Declaração de Direitos do Homem
e do Cidadão, de 1789 – foi a de proteger o Estado da interferência religiosa. Sem
pretender superestimar tal dado, é plausível que os modelos de Estado laico que se
desenvolvem em ambos os países tenham guardado alguma relação com a intenção inicial
que determinou a adoção por cada ordenamento constitucional do princípio da separação
entre Estado e confissões religiosas. A par disso, há também outro aspecto a ser
considerado: em muitos países os movimentos sociais e políticos que levaram ao
estabelecimento do princípio de separação entre a Igreja e o Estado, também agasalhavam
representantes das confissões religiosas minoritárias, ora perseguidas, ora apenas toleradas
pelo poder público. As confissões religiosas, a cujos integrantes não era conferida a
plenitude dos direitos – não podiam, por exemplo, ser funcionários públicos – também se
mobilizaram na luta pelo estabelecimento de um Estado laico, vendo aí a solução para que
lhes fosse assegurada a cidadania plena. Se isso é verdade, não se pode dizer que
necessariamente o processo de secularização levou à adoção do princípio da separação
entre o Estado e as organizações religiosas. Muitas vezes, a adoção do princípio da
separação resultou muito mais do interesse dos próprios grupos religiosos, receosos de que
a organização política privilegiasse um determinado grupo em detrimento dos outros ou,
pelo menos, de que esta adotasse uma postura invasiva em relação ao domínio religioso.
Por isso, na evolução histórica de alguns países o princípio da separação pode não ter
representado um efeito imediato do processo de secularização e, ao invés disso, ter até
contribuído para a aceleração deste processo (SMITH, 2001, p. 101).

43
O que cumpre salientar, entrementes, é que o princípio da separação é uma via de mão dupla:
serve tanto para apartar a interferência estatal na esfera religiosa quanto para refutar a
interferência religiosa na esfera estatal.

Considerações finais

A perspectiva sociológica tem sido um paradigma na caracterização da paisagem religiosa


contemporânea, diante de perspectivas que privilegiam a ideia de diferenciação funcional
como algo peculiar ao mundo moderno. Neste diapasão, procuramos “lançar sementes” no
sentido de que a religião não pode (e nem deve) regular o sistema político de uma nação,
enquanto ente autônomo e que detêm seu modus operandi particular. Entrementes, diante de
tal sistema, mister reconhecer que a religião possui a capacidade de influenciar o aparelho
estatal, sobretudo se tomarmos como exemplo performances pautada no protesto coletivo
contra a fragmentação da sociedade diferenciada, onde seria possível admitir a cooperação
entre a religião e o próprio sistema político dito diferenciado.

Nosso intuito é fomentar possibilidades, de maneira que os algoritmos teóricos, na relação


política-direito-religião, possam ser problematizados a partir dos sentidos que esta relação
pode produzir, conquanto os movimentos religiosos possuem o condão de imprimir, no
âmbito político, seus anseios por apreço e relevo, configurando um cenário em que a retórica
religiosa encontra visibilidade à medida que consegue repercutir pontos inteligíveis da vida
pública, produzindo modalidades de ação marcadas por atos morais, éticos, jurídicos e
ideológicos, durante procedimentos de sedimentação e ressignificação da própria identidade,
o que fortalece a existência de uma espécie de iconicidade estatal.

Esperamos, com sinceridade, que nossas linhas gerais possam incentivar todos aqueles que se
debruçam na produção relativa ao delineamento dos contornos desse diálogo instaurado entre
a religião e a esfera política, independentemente da matriz religiosa tomada como objeto
epistemológico do saber.

44
Referências

CAMPOS, Carlos. Ensaios acerca da influência judaico-cristã nos institutos do direito de


família. 2ª edição. Belém: EDUFPA, 2010.

ESSEN, Georg; STRIET, Magnus. Kant e a Teologia. Tradução de Werner Fuchs. 1ª edição.
São Paulo: Edições Loyola, 2010.

KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de las costumbres. Tradução de M.


García Morente. 8ª Edição. Madrid: Espasa-Calpe, 1983.

MANOEL, Ivan Ap. História, Religião e Religiosidade. Dossiê Identidades Religiosas e


História. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 1, nº 1 – Curitiba, p. 18-33, 2008.

SMITH, Huston. Por que a religião é importante? O destino do espírito humano num tempo
de descrença. Tradução de Cleusa M. Wosgrau e Euclides L. Calloni. 1ª edição. São Paulo:
Cultrix, 2001.

TOURAINE, Alain. O que é democracia? 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996.

45
46
MC4 – Fundamentos da arquitetura islâmica

Coordenador

João Henrique dos Santos


Professor no departamento de História e Teoria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
UFRJ. Coordenador do GP “Todos os tempos, todos os templos” (UFRJ).

Resumo

Este Minicurso visa propiciar um panorama sobre a Arquitetura Islâmica, desde o seu
alvorecer, na primeira metade do século VII, até a contemporaneidade. Neste sentido, serão
abordados os fundamentos teológicos que têm influenciado a Arquitetura Islâmica e sua
evolução histórica, considerando-se os seus marcos referenciais que sirvam como balizadores
do recorte temporal em questão.

47
Introdução à Arquitetura Islâmica

João Henrique dos Santos1

'Todas as vezes que um grupo de pessoas se reunir em uma das casas de


Deus, para recitar o Livro de Deus e estudá-lo, a serenidade e a
tranquilidade Divinas os cobrem, a Misericórdia de Deus os envolve e os
Anjos os cercam, e Deus os menciona junto aos que estão perto dele Hadith
relatado por Muslim

Introdução

A concepção da espacialidade e da sua sacralização no mundo islâmico remonta aos tempos


do Profeta Muhammad 2, em seus anos de pregação pública do Alcorão (610-632 3). O
primeiro espaço sagrado assim pensado foi o da casa do Profeta, em Medina, onde se
juntavam seus seguidores e familiares para ouvir a recitação (al-Kuran, em árabe) dos versos
do Livro Revelado.

A própria Hégira (“fuga” em árabe) do Profeta em 622 de sua cidade natal, Meca, para
Medina, então o oásis de Yathrib, doravante denominada Medinat al-Nabi, “Cidade do
Profeta”, implica uma reorientação e redefinição dos espaços sagrados. O contato com os
“povos do Livro”, cristãos e judeus, desenvolvido por Muhammad o fez conhecer a veneração
dedicada por judeus e cristãos à cidade de Jerusalém que, em árabe, passou a ser denominada
al-Quds, “A Sagrada”. Desta forma, parece claro que o Profeta sabia que o estabelecimento de
uma cidade como referencial de sacralidade podia servir aos propósitos de identificação
quando uma nova religião era estabelecida.

Assim, é em sua casa, em Medina, que ele manda orientar um caramanchão ao norte na
direção de Jerusalém, enquanto que outro, ao sul, orientava-se em direção a Meca, onde se
encontrava a Kaaba, o santuário com o aerólito, cuja construção se credita, segundo a
tradição, ao Patriarca Abraão, de quem os árabes descendem. Estabelecia-se, desta forma,

1
Doutor. Professor Adjunto da FAU/UFRJ. Coordenador do GP “Todos os tempos, todos os templos”. Contato:
santosjh@uol.com.br.
2
Na tradição islâmica, não se traduz o nome do Profeta, que deve ser grafado Mohammed ou Muhammad. Desta
forma, preferi o uso tradicional ao uso comum “Maomé”.
3
As datas aqui mencionadas tomam por base o calendário cristão. O calendário islâmico inicia-se com a Hégira,
no ano 622 da era cristã.

48
uma axialidade entre três cidades – Jerusalém e Meca, com Medina ao centro – que subsiste
até hoje no mundo islâmico.

A própria planta trapezoidal da casa do Profeta inspiraria em parte a construção das primeiras
mesquitas, que divergiam das basílicas cristãs por estas apresentarem um eixo longitudinal
maior do que o horizontal, enquanto que nas mesquitas inverte-se a relação. As sucessivas
ampliações sofridas por essa primeira mesquita mantiveram sua planta trapezoidal.

A sucessão de Muhammad pelos Califas (“sucessores” em árabe) e a vertiginosa expansão do


Islã (em 710 os muçulmanos já haviam chegado à Península Ibérica, tendo conquistado todo o
Norte da África, assim como tinham se expandido ao norte, até Pérsia) deu nova dinâmica à
religião e, por consequência, à sua arquitetura.

A fundação da dinastia Omíada em 660, a cujo clã pertencia Othman, significou, por um lado,
a expansão do Islã e, por outro, a consolidação da separação entre xiitas e sunitas. O
estabelecimento da capital em Damasco, na Síria, e o bloqueio do acesso a Meca e Medina,
imposto em razão da rebelião na Arábia liderada pelo autoproclamado califa Ibn al-Zubair,
fez com que Jerusalém fosse valorizada pela corte omíada. Lá, o califa Abd al-Malik decidiu
pela construção de um santuário, circundando a Rocha sobre a qual o Profeta teria ascendido
ao céu e contemplado Deus, como narrado na surata XVII do Alcorão 4.

O deslocamento do eixo do poder civil para Damasco fez com que se travasse contato com os
estilos arquitetônicos paleocristão e bizantino. Este, dominante na região, é rapidamente
assumido pelos omíadas. Desta forma, sob as ordens de Abd al-Malik, é construído o
Santuário da Cúpula do Rochedo, lugar que se encontrava sobre as ruínas do Segundo Templo
de Salomão e que, visava a atrair multidões de peregrinos, dada a inacessibilidade de Meca e
Medina.

Este Santuário tem sua planta octogonal, característica da arquitetura bizantina 5, com dois
deambulatórios, a fim de que os peregrinos contornem a Rocha a partir da qual teria ocorrido
a ascensão do Profeta. Seus 85 m de diâmetro fazem dela uma construção magnífica. Uma vez
que os árabes não tinham o que se poderia chamar de uma tradição arquitetônica, sobretudo
que pudesse eclipsar a santidade da Kaaba ou o esplendor das basílicas bizantinas, como

4
Este episódio é conhecido como a “viagem noturna de Muhammad”, sendo assumido que foi um sonho, e não
um fato real.
5
O oitavo dia é o primeiro dia da criação sem a ação criadora de Deus; portanto os templos bizantinos tinham e
têm planta octogonal.

49
desejava Abd al-Malik, este recorreu a arquitetos cristãos que viviam em Jerusalém e que
construíssem esse memorial. Não uma mesquita, mas um memorial, projetado especialmente
para a deambulação e a adoração dos peregrinos.

Se este saiu com planta bizantina, a mesquita vizinha a ele, na mesma esplanada, a Mesquita
de al-Aqsa, foi construída com planta cruciforme, típica do paleocristão. Neste caso, para o
reconhecimento de elementos arquitetônicos da mesquita, faz-se necessário retomar a questão
da casa do Profeta, em Medina.

Mesquita (masjid em árabe) significa “lugar onde os homens se prostram diante de Deus”). O
espaço sagrado no Islã é organizado segundo as necessidades cultuais, determinadas pelos
pilares sobre os quais a religião se alicerça: a profissão de fé (shahada 6), a oração (salat), a
esmola (zakat e sadaqqa 7), o jejum ( Saum) e a peregrinação (hajj). Desta forma, o espaço
para a religião deveria servir igualmente para o encontro social, do qual derivariam algumas
das obrigações religiosas.

A casa do Profeta, o primeiro haram (“casa de oração”) derivaria possivelmente do templo de


Huqqa, na Arábia do Sul, do século II a.C., e da segunda sinagoga de Douros-Europos, às
margens do Eufrates, a qual o Profeta deve ter conhecido quando viajava como comerciante.
A conquista de Meca, em 630, levou-o a orientar sua casa em direção a essa cidade também,
estabelecendo o primeiro mihrab, o nicho orientado àquela cidade, cuja forma parece
remontar ao armário com os Rolos da Torá, da sinagoga de Douro-Europos, este orientado a
Jerusalém. Isso estabeleceu a primeira qibla (“orientação”) do Islã, fazendo com que
muçulmanos se refiram a si como Ahl al-Qibla (“Povo da Orientação”), diferenciando-se
daqueles aos quais passaram a designar como Ahl al-Kitab (“Povo do Livro”), a saber judeus
e cristãos.

Como já dito, seu muro ao norte era orientado para Jerusalém e o muro ao sul em direção a
Meca. A expansão que foi feita já durante a dinastia Omíada, em 705, quadruplicando sua
área, manteve-lhe a planta trapezoidal, acrescentando um salão hipostilo circundando a
mesquita original.

6
A shahada consiste na recitação da frase “Somente Alá é Deus e Muhammad é seu Profeta” e sua recitação é a
única exigência para que alguém seja considerado convertido ao Islã.
7
Zakat é a obrigação anual de todo muçulmano, que deve contribuir para causas assistenciais: sadaqqa é o ato de
caridade.

50
A expansão do islamismo sob os Omíadas fez com que os Califas decidissem que a
arquitetura deveria refletir o poder e a grandeza islâmicos e adquirir características próprias,
descolando-se das influências arquitetônicas cristãs – sobretudo bizantinas – e pagãs.

Neste sentido, começa a ser estabelecido um novo cânone: cúpulas, arcos em ferradura e
abóbadas passam a constituir um padrão construtivo que se expande de Damasco, sede do
Califado, à Península Ibérica. Para além dos palácios, construções da administração civil,
novas e imponentes mesquitas e banhos são construídos pelos califas.

Um dos aspectos arquitetônicos mais notáveis das mesquitas é o minarete 8, o torreão do qual
o muezim entoa o azam 9, o chamado à oração, mandatória cinco vezes ao dia dentro do
preceito do salat. Os minaretes derivam, muito provavelmente, das torres das igrejas
paleocristãs e bizantinas da Síria, nas quais havia torreões, especialmente no Martírio de São
Simeão, que se destacavam por sua elevada altura. De diferentes estilos, são um traço comum
a todas as mesquitas, variando seu número, de um a seis, com sete somente na cidade de
Meca.

A expansão dos Omíadas até a Península Ibérica e sua sucessão pelas dinastias dos Abássidas
e Almorávidas (assim como pelos Seljúcidas, no Egito) fez com que em Córdoba se
estabelecesse novo Califado, que rivalizava com o de Damasco em opulência. A construção
da Alhambra, em Granada, é um dos mais eloquentes exemplos do esplendor da Ibéria
muçulmana.

A sucessão dinástica manteve o cânone arquitetônico estabelecido no período Omíada, vindo


este somente a ser alterado com o advento do Império Otomano. Nada obstante, deve ser
10
lembrado que houve algumas adaptações construtivas em alguns países islamizados . Desta
forma, a islamização do subcontinente indiano fez com que algumas mesquitas e madrassas 11
lá construídas sejam diferentes em alguns aspectos daquelas da Arábia e Norte da África,
surgidas na “primeira onda” do Islã.

8
Do árabe, manarah, pelo turco minare: farol.
9
O azam constitui-se da recitação do seguinte texto: “Alá é grande! Eu testifico que não existe outro Deus que
não seja Alá. Vinde à oração. Vinde à salvação!”. Sua recitação ritma a vida dos crentes, tendo sido estabelecida
inicialmente em Medina, faz-se presente não apenas em todos os países muçulmanos, mas onde quer que haja
uma mesquita.
10
As regiões islamizadas são chamadas de “mudejares”.
11
Madrassas ou madraçais: escolas religiosas islâmicas, que provêm educação fundamental e , em alguns casos,
podem funcionar como seminários.

51
Um dos cânones estabelecidos pelo Islã é derivado da prescrição corânica da
irrepresentatividade de Deus e do interdito de representações de formas vivas. Assim, a
decoração das mesquitas, madrassas e demais espaços sagrados islâmicos recorre à azulejaria,
à caligrafia e à geometrização. Jogos de imagens com estrelas de 4, 8 e 12 pontas repetem-se
recorrentemente. Algumas dessas edificações ainda apresentam estrelas de Davi, de seis
pontas, símbolo intrinsecamente associado ao Judaísmo.

Na Pérsia, originalmente, e posteriormente expandidos a outras terras, islâmicas ou


mudejares, fazem-se arcos alveolados, que criam um efeito de trompe l’œil, parecendo criar
reentrâncias nos alvéolos dos arcos através da decoração dos azulejos, de tal forma que não se
pode, em uma primeira observação, identificar quais alvéolos são verdadeiros e quais os que
são arcos normais recobertos por azulejos decorados imitando alvéolos.

A caligrafia árabe é um capítulo à parte na arte decorativa islâmica. Versos do Alcorão e dos
12
Hadith foram inscritos e escritos nas paredes internas, frisos e outras partes das mesquitas.
As mais elaboradas e requintadas caligrafias foram utilizadas para decorar as mesquitas.

Estas, do ponto de vista da planta baixa, mudaram pouco desde os tempos iniciais. Plantas
retangulares com um grande salão de preces, no qual destacam-se as presenças do minbar 13,
da qibla e do mihrab. A necessidade de que os pés não toquem diretamente o solo faz com
que haja, em todas as mesquitas, tapetes recobrindo o chão. Não se trata de acarpetar o piso,
mas de deixá-lo recoberto por tapetes, devendo ser salientada a interdição de se entrar calçado
em uma mesquita. Da mesma forma, as abluções rituais prescritas para antes das preces (lavar
as mãos, os pés, o rosto e as orelhas) levam a que todas as mesquitas tenham fontes de água
corrente, tanques ou poços para que os fiéis possam fazê-las antes das orações 14.

O surgimento do Império Otomano, após a conquista da região da atual Turquia pelos árabes
muçulmanos no inicio do século XV, com a consolidação da hegemonia da tribo dos turcos,
altera paradigmas em todos os níveis, do militar ao político, do econômico ao social, do
artístico ao arquitetônico. Havia o interesse de celebrar aquele que se erguia como o mais

12
“Ditos”. Compilação de frases, aforismos e dizeres do Profera, compilados por parentes e seguidores.
13
Cadeira em madeira, sobre degraus, com função de púlpito, da qual o líder religioso dirige-se à assembleia dos
fiéis.
14
Na impossibilidade de que seja encontrada água para as abluções, os fieis são autorizados a esfregar com areia
as partes que seriam abluídas com água. Tal solução é absolutamente lógica em uma religião que se origina e se
expande inicialmente em uma região desértica.

52
importante Império, erguido sobre os escombros do Império Bizantino e, ao fim e ao cabo, do
próprio Império Romano.

O estabelecimento dos sultões em Constantinopla, à qual rebatizaram Istambul, e que passou a


ser conhecida como Bab’ Ali, a “Sublime Porta”, fez com que a Turquia se transformasse no
novo centro de poder, sucedendo a Damasco, do qual se irradiariam os novos padrões
arquitetônicos e artísticos. Estes, porém, ficavam limitados e determinados pelo conjunto de
crenças e prescrições corânicas.

Devem-se destacar, neste aspecto, as cúpulas. Estas, em um primeiro momento, são rasas
como as de Haghia Sophia, tornada mesquita após a tomada de Constantinopla em 1453, mas
também assumem a forma de “cúpula de cebola” que, com a expansão do Império a leste e a
oeste 15, faz-se presente nessas regiões quando islamizadas

Eis um exemplo claro da circularidade de informações, com tais cúpulas sendo usadas não
apenas nos limites do Império Otomano, mas também em suas fímbrias, como nos Bálcãs e
no Império Russo, tornando-se também características do cristianismo ortodoxo.

O apogeu da arquitetura otomana ocorre com o arquiteto Koca Mimar Sinan Ağa, ou
simplesmente Mimar Sinan (c.1490-1588), arquiteto dos sultões: Selim I, Suleiman I, Selim II
e Murad III, cujas obras-primas são as Mesquitas Selimiye, em Edirne, e Süleymaniye, em
Istambul.

Este padrão permanecerá como o último estilo arquitetônico próprio do Islamismo, uma vez
que os posteriores são dele derivados sob a forma de reapropriação, releitura ou recriação.

Referências

BARAKAT, Halim. The Arab World: Society, Culture and State. Berkeley: University of
California Press, 1993.

BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe. Rio de Janeiro: 2012.

CHEBEL, Malek. Symbols of Islam. Paris: Assouline, 1997.

15
Importante lembrar que os turcos chegam às portas de Viena, tendo islamizado parte da Europa Central e
Oriental – especialmente a Bósnia-Herzegóvina – e regiões do Cáucaso.

53
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54
55
MC6 – História e religiões: teoria e
metodologia

Coordenador

Élton de Oliveira Nunes


Doutor em Ciências da Religião e Pós-Doutor em História das Religiões pela PUC/SP.
Professor na Faculdade Messiânica.

Resumo

Os estudos das diversas manifestações religiosas nas áreas que compõem as ciências sociais
vêm, ao longo das décadas, transformando o entendimento de como essas manifestações
influenciaram e ainda influenciam o Brasil. Os estudos sobre temas ligados às religiões
crescem nas diversas áreas, notadamente na área de História. Por este motivo, necessário se
faz buscar o embasamento teórico metodológico para análise desses fenômenos, visto serem
transdiciplinares e tratarem de diversas matrizes importantes para os historiadores e cientistas
sociais. A proposta desse mini-curso é apresentar e discutir as linhas teórico-metodológicas
para a análise e produção de trabalhos científicos dentro do âmbito da História das Religiões.
Iniciando pelos clássicos nas áreas de Antropologia e Sociologia como Durkheim e Mauss até
os atuais teóricos das Escolas Inglesa e Francesa, em especial relevo à Escola Italiana de
História das Religiões.

56
Teoria e metodologia em História das Religiões

Elton de Oliveira Nunes1

Introdução

O Brasil é um país de proporções continentais2 com uma rica e complexa História que o
distingue de seus vizinhos na América do Sul3. Em sua riqueza e complexidade, encontra-se a
formação de sua gente, composta de imigrantes de diversas partes do mundo em uma base
étnica que conta em sua matriz, portugueses, africanos e indígenas. A estes se somam nas
mais variadas regiões do País uma amálgama composta por espanhóis, judeus, árabes,
orientais, alemães, italianos, letos, enfim, uma miríade de povos e grupos que contribuíram
com suas culturas, olhares e visões de mundo para tornar o Brasil uma terra de toda a gente 4.
Dentre as diversas riquezas que podemos citar encontra-se a cosmovisão religiosa, com seus
rituais, demonstrações de fé e de pertença mística. De fato, uma das mais complexas heranças
e manifestações que podemos atribuir a essa babel étnico-cultural que adentrou a terra
brasilis a partir de 15005, já encontrando aqui um fluxo contínuo de povos e nações indígenas
que circulavam por este imenso território. Essa característica é notada pelo historiador da
religião Artur César Isaia6:

Pensar as transformações pelas quais passou o campo religioso brasileiro é pensar, antes de
tudo, na extrema complexidade do universo de crenças entre nós. Essa não é uma
característica atual. Historicamente já nascemos sob o signo desta complexidade, a partir
da experiência ibérica totalmente distante da uniformidade católica com que foi
identificada. Para além da idéia de uma monarquia portuguesa, cuja fidelidade à ortodoxia
católica foi a característica dominante, a experiência dos colonizadores já acenava para
uma complexidade étnica, cultural, lingüística e religiosa notáveis.

1
Pós-doutor em História das Religiões pela PUC/SP, doutor e mestre em Ciências da Religião pela UMESP,
professor da Faculdade Messiânica. Contato: eltononunes@gmail.com.
2
Para um panorama geral sobre o Brasil, ver: MADEIRA, VELOSO, 2000; VELOSO, MADEIRA, 1991.
3
Sobre as diferenças entre o Brasil e os demais países da América do Sul, ver: BETHELL, 1997; SANTOS,
2003, pp. 11-28.
4
Para um panorama sobre esta diversidade, ver: PIERUCCI, 1996; MENEZES, TEIXEIRA, 2006.
5
O Brasil é “descoberto” oficialmente em 1500, com a chegada dos portugueses conduzidos pela esquadra de
Pedro Alvarez Cabral. Para uma discussão sobre este tema, ver: MOTA, 2001; ODÁLIA, 2001; REIS, 2001.
6
ISAIA. 2009, p. 95.

57
A colonização portuguesa, a partir do padroado real7, imprimiu uma base cristã ibérica que
acompanhou até os dias atuais os desdobramentos da História do Brasil, vindo a se tornar a
maior nação católica do mundo8. Os diversos grupos escravos africanos trazidos ao Brasil em
um período de duzentos anos inseriram na matriz brasileira um componente religioso diverso,
porém ligado às tradições espirituais da África, dando origem a hibridações com o catolicismo
e as religiões indígenas, como já dizia Freyre9:

O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a
africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português,
fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de
influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais
antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles
resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do
Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus
começos e ainda hoje sobre antagonismos.

As imigrações do final do século XVIII introduziram diferentes denominações protestantes 10,


após tentativas de implantação da mesma em regiões do Brasil em tempos anteriores 11. A
chegada de imigrantes de diferentes etnias na segunda metade do século XIX e início do
século XX propiciaram a implantação de colônias e grupos religiosos protestantes e católicos,
mas, também, árabes e judeus que puderam manifestar sua religião de forma mais aberta12. A

7
Para uma definição e aprofundamento do tema, ver: KUHNEN, 2005.
8
Os dados sobre esta questão podem ser encontrados em: PALMER, O’BRIEN, 2008, pp. 90-94.
9
FREYRE, 2000, p.82.
10
Desde a chegada do chamado Protestantismo de Missão, vindo dos EUA, o Brasil vem em um crescendo na
influência evangélica. Um dos exemplos mais significativos está na exportação de missionários das diversas
denominações protestantes no Brasil: Em 1996 eram 1209; em 1997 o número este número aumentou para 1449
missionários no exterior. Partiram para o exterior uma média de 5 missionários por semana, 1 missionário em
cada dia útil da semana. Em anos anteriores (1993, 1994, 1995) a média era de 3 missionários por semana.
Dados da Associação Brasileira de Missões Transculturais (ABMT). Disponível em www.infobrasil.org.
Acessado em 20/06/2005.
11
Diversos pesquisadores dividem a História do Protestantismo no Brasil em quatro grandes blocos ou
momentos: O primeiro momento ocorre nos séculos XVI e XVII, com as incursões dos viajantes europeus atrás
de terras e especiarias, interessados em estudar a fauna e a flora e os colonizadores, huguenotes da França
Antártica (1555) e os calvinistas da Igreja Evangélica Holandesa do Nordeste (1630-1645). O segundo momento
ocorre no século XIX desenvolvido por técnicos, funcionários de missões diplomáticas, marinheiros, colportores.
O terceiro momento ocorreu na imigração para o Brasil a partir do século XIX. Esse Protestantismo de
Imigração surgiu como uma consequência direta do esforço colonizatório, para cultivo e ocupação dos espaços
geográficos brasileiros. O último momento se dá com o estabelecimento Protestante no Brasil no período da
chamada República Velha, com a chegada de missionários estrangeiros. Dentro desses grandes blocos, os
historiadores levantam uma série de ações migratórias, situações de viagem, casos particulares, esporádicos de
curta e média duração, que podem ser classificados como tentativas de inserção do protestantismo no grande
território brasileiro em formação. Op. Cit. AZEVEDO, 1996, pp. 23-34.
12
Temos, nos vários períodos da história do Brasil, situações que conseguiam ultrapassar a barreira imposta pelo
catolicismo à presença de outras religiões. Um exemplo é a questão da presença de estrangeiros protestantes que
vinham realizar comércio em terras lusas, os escravos africanos ou mesmos os mulçumanos e judeus que
aportavam no Brasil. Para uma discussão sobre este tema, ver: SOUZA, 1997.

58
vinda de grupos orientais no início do século XX, trouxe religiões como a seicho noie, igreja
messiânica, o budismo, entre outras13. As chamadas missões protestantes modernas também
implantaram no Brasil, no início do século XX, diversas ramificações que, posteriormente,
seriam a base do chamado Pentecostalismo e Neo-pentecostalismo14. Os novos movimentos
religiosos e as mais variadas formas de manifestações religiosas dão uma conotação
diferenciada e própria a um país onde as religiões fazem parte integrante da multiplicidade
cultural de povo multi-étnico. Porém, ainda que sejam reconhecidas tais diversidades e
complexidades, a História das Religiões, área fundamental para o entendimento e
aprofundamento da compreensão da História do Brasil, ainda carece de referenciais teórico-
metodológicos que ajudem os pesquisadores brasileiros no entendimento de sua própria gente.

A formação da área de História no Brasil atual

Uma das grandes dificuldades que os historiadores no Brasil enfrentam é dar conta da
multiplicidade de objetos que compõem sua área15. Ao longo das décadas, a academia
brasileira viu-se entre agendas de prioridade sobre identidade, resistência, cultura e
desvelamento do povo, das elites, do atraso econômico e social, enfim, uma multiplicidade de
temas que foram, por sua vez, tomando espaço, ditando os trabalhos e selecionando os temas
ao sabor dos eventos e dos interesses acadêmicos e políticos dominantes. Por sua vez, o
Brasil, ou melhor, a academia brasileira, recebeu influxos e influências que determinaram o
modo de pensar e escrever a história de acordo com essa agenda ou apesar dela. Diante disso,
refletir sobre o modo como as religiões foram tratadas na área de História no Brasil só pode
ser realizado de forma transversal, já que carecemos justamente de pesquisas sobre essa área e
ainda estão por serem realizados trabalhos sobre a questão das religiões como objeto de
pesquisa histórica no Brasil16. Para tentar dar conta desse tema, apresentamos em linhas gerais
quatro grandes tendências ou escolas que influenciaram de forma decisiva as pesquisas no
campo da História do Brasil Moderno.

13
Os trabalhos sobre as religiões orientais no Brasil ainda carecem de um aprofundamento maior. Para uma
exemplificação dessa situação, ver: ANDRÉ, 2008.
14
Para um aprofundamento sobre os termos e conceituações, Cf. MARIANO, 2001.
15
Para uma lista de textos que buscam apresentar a problemática da produção historiográfica brasileira, ver:
ABREU, SOIHET, 2003; CAPELATO, 1995; FICO, POLITO, 1992; FICO, POLITO, 1996; FREITAS, 2001;
LAPA, 1985; NOVAIS, 1990; SAMARA, 2002; WEHLING, 2000; BURMESTER, 1998; CARDOSO, Ciro
VAINFAS, 1997; FREITAS, 1998.
16
Um dos raros trabalhos sobre este tema encontra-se em Albuquerque, que buscou dar conta das influencias e
tratamento dos estudos de religião pelos historiadores no Brasil. Cf. ALBUQUERQUE, 2007.

59
A primeira, fruto da herança positivista e liberal que marcou a transição dos estudos históricos
e sociais desde que à República, como aponta Refkalefsky e Patriota17:

A temática sobre Religião e Religiosidade na Comunicação Social ainda não recebeu da


comunidade acadêmica brasileira — apesar de importantes estudos pioneiros — a
relevância necessária. Em primeiro lugar, devido à ênfase positivista na formação da
universidade brasileira, como relacionou Antônio Gouveia de Mendonça. Por conta deste
enfoque, somente em 1999 os cursos de Teologia ganharam status de bacharelado perante
o MEC. Além disso, algumas áreas de conhecimento acadêmico sobre Ciência da Religião
— e variações, como Religiões Comparadas ou Esoterologia — apresentam produção
científica pouco significativa no País.

Refletindo sobre a questão positivista na academia brasileira, Fonseca indica que durante o
período de ditadura militar no Brasil intensificou-se a presença do positivismo nos
fundamentos teóricos da história18:

(...) a História tradicional positivista adequava-se aos interesses do Estado autoritário, na


medida em que apresenta o quadro de uma sociedade hierarquizada, cuja vida é conduzida
de cima para baixo e onde a ordem é máxima a ser seguida pelos seus membros. Sem
espaço para a interpretação crítica, não há como instrumentalizar o indivíduo para a
interpretação e a análise crítica.

A segunda tendência vem do Marxismo Clássico, na interpretação sobre o atraso brasileiro e


sua dependência econômica, na vertente aberta por Caio Prado Júnior, Celso Furtado,
Fernando Novais, Antônio Barros de Castro, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender19.
Vemos essa tendência em Belloti, quando a mesma faz referência aos trabalhos na área de
História da década de setenta20:

Pode-se observar essa premissa no trabalho de Anita Novinsky. Apesar de publicado em


1972, consumiu dez anos de pesquisas, em uma época em que as tendências
historiográficas não elegiam as religiões como um tema relevante no Brasil. A história
social de inspiração marxista predominava na academia brasileira desde a década de 40, e
após o golpe militar de 1964, muitos historiadores e cientistas sociais sentiram-se
incumbidos de fazer frente à ditadura, com trabalhos ligados à política e economia.

17
REFKALEFSKY, PATRIOTA, 2006, p. 02.
18
FONSECA, 1995, p. 31.
19
Cabe citar os estudos empreendidos Cardoso e Gorender sobre os modos de produção; das relações entre as
economias coloniais e o capitalismo em formação, como é o caso de Novais, ou os trabalhos sobre as formas de
riqueza e acumulação nas obras de Castro, Fragoso & Florentino. Cf. CARDOSO, 1979; NOVAIS, 1978;
GORENDER, 1985; FRAGOSO, FLORENTINO, 1993.
20
BELLOTTI, 2005, p.05.

60
A terceira tendência vem na influência da Escola dos Annales21, trazida para o Brasil quando
da fundação da Universidade de São Paulo (USP) e, posteriormente, a Escola Marxista
Inglesa22 e os estudos culturais, oriundos das interpretações da História realizados por Eric
Hobsbawm, Christopher Hill, Rodney Hilton, Thompson, Royden Harrison entre outros.
Todas essas influências marcaram profundamente os estudos brasileiros. A questão do
tratamento dado ao tema das religiões está diretamente ligado a essas correntes e escolas. Tal
trajetória é destacada no texto de Karina Kosicki Bellotti23, que apresenta através da análise
de três historiadoras de referência, as diversas tendências da Nova História. A partir das
pesquisas sobre religião de Anita Novinsky, que trabalha nas décadas de 70 e 80, a História
das Mentalidades, de Laura de Mello e Souza, que publica seus textos sobre religiosidades no
Brasil colonial nas décadas de 80 e 90, seguindo as teorizações de LeGoff, LeRoi, Carlo
Ginzburg, Keith Thomas e Jean Delumeau e, por fim, de Mariza Soares, que publica nas
décadas de 90 e 2000, seguindo os estudos culturais presentes nas teorizações dos marxistas
ingleses.

O que se verifica, entretanto, é que apesar dos estudos sobre a religião alcançarem no fim do
século XX uma posição crescente e mesmo privilegiada, os historiadores no Brasil não têm,
no atual aporte metodológico, centrado em algumas escolas, as condições de exploração dessa
riqueza e diversidade24. Essa dificuldade é apontada por Albuquerque25:

Seria preciso um outro lugar para examinar a produção brasileira dos historiadores voltada
para a religião. Antropólogos e sociólogos, em várias oportunidades, realizaram balanços
sobre seus estudos sobre as religiões. Os historiadores estão ausentes nestas recensões.
Ademais, ao elaborarem o mapeamento do próprio campo, os historiadores silenciam sobre
a religião, a história da Igreja e da religiosidade popular, apesar de comparecerem, nestes
levantamentos, temáticas renovadas na historiografia.

Essa situação se constata por uma série de fatores históricos e de escolhas metodológicas a
partir das influências que a Academia brasileira sofreu ao longo de sua formação e

21
Para um aprofundamento sobre a influência francesa na historiografia brasileira, ver SILVA, 2001.
22
Para um aprofundamento sobre o impacto e repercussões da Escola Inglesa na historiografia brasileira, ver:
SADER, 2000.
23
BELLOTTI, 2005.
24
Como bem constata Albuquerque no seu balanço da historiografia brasileira sobre os estudos de religião. Cf.
ALBUQUERQUE, 2007, pp. 19-52.
25
ALBUQUERQUE, 2007, p. 48.

61
consolidação. Sobre os problemas do modelo de formação dos historiadores e pesquisadores
na área de história no Brasil, Falcon comenta26:

Nossos historiadores têm por hábito analisar a produção historiográfica contemporânea no


Brasil, a partir de 1970/1, isto é, da chamada institucionalização da pós-graduação entre
nós. Trata-se da eleição de um ‘evento fundador’ responsável por alguns esquecimentos e
silêncios dos mais significativos. Esquecimento, por exemplo, das mudanças em curso nos
anos 60, dos debates e conflitos então travados no ‘território da História’: esquecimento,
também de como e quanto o ensino de pós-graduação herdou do ensino de graduação em
termos de quadros docentes, compartimentações disciplinares, visão conteudística de
currículos, orientações teórico-metodológicas – em termos da pesquisa e da historiografia
existentes. [...] Um outro silêncio, cujos efeitos ainda perduram, é o que envolve o modelo
de pós-graduação adotado. Bem sei que, hoje em dia, mestrado e doutorado, tal como os
conhecemos, parecem tão naturais que é como se sempre houvessem existido. No entanto,
à época da nossa narrativa, doutora do era algo totalmente diverso, pois sequer era um
curso. Quanto ao mestrado, bem, recordo-me de discussões, no final dos anos 50, sobre o
termo mais adequado: ‘mestria’ ou ‘mestrado’? Mais importante, porém, é que estavam
postas em discussão concepções diversas, baseadas em modelos europeus e no norte-
americano, além de uma tradição já consolidada e respeitável que era a da USP. Mais que
fruto deste debate, o modelo adotado foi legislado e imposto como o único legalmente
válido, sem deixar espaços para outras experiências. Ironicamente, internalizou-se de tal
maneira o modelo que raros se dão conta efetivamente do quanto ele predeterminou as
características da Pós-Graduação entre nós, aí incluídas muitos dos seus problemas.

Entre os problemas do modelo adotado, podemos elencar as religiões como um deles.


Seguindo uma lógica de centralidade de formação, a área de História teve profunda influência
na estrutura estabelecida no curso de pós-graduação da USP27, Universidade de São Paulo,
que não apenas formou, mas estruturou os diversos cursos de formação de professores e
pesquisadores no Brasil. Sobre esse ponto, é esclarecedor a opinião de Malerba28:

No plano historiográfico, é sabido que Lucien Febvre sempre manifestou fascínio por esse
campo privilegiado de estudos que era a América do Sul. E, quando os próprios Annales
tinham uma presença apenas marginal no cenário historiográfico francês, desde muito cedo
começam a entabular vínculos importantes entre os Annales e alguns expoentes da
historiografia e das ciências sociais na América Latina. Exemplo notório dessa aproximação foi
a presença, entre 1935 e 1937, de Fernand Braudel como um dos primeiros professores da

26
FALCON, 1998, pp. 112-113.
27
Para Campos, “a fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, com a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, e dentro dela a Seção de História (hoje departamento de História), é o marco inicial de uma
formação eminentemente acadêmica no campo da História no Brasil”. CAMPOS, 1954, pp. 491-503.
28
MALERBA, 2009, p. 67.

62
cátedra de história das civilizações da recém fundada Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais
e Letras da Universidade de São Paulo. A presença de Braudel deitou profundas raízes na
historiografia brasileira. O Programa de Pós Graduação da USP foi o pioneiro no Brasil, uma
verdadeira matriz que formou quase a totalidade dos historiadores brasileiros.

Para Emília Viotti da Costa, esta influência já perpassava a própria cultura brasileira desde o
século XIX29:

Na História da cultura brasileira há um momento em que ela passa direta e nitidamente a sofrer
influência da cultura francesa. Essa época é o século XIX. Durante anos e anos, inúmeros
traços foram acrescentados à vida brasileira graças aos contatos com homens, costumes, ideias
e coisas de procedência francesa. Os velhos jornais, o relato de viajantes que percorreram o
país nesse período e as memórias da época, oferecem excelente documentação que atesta a
importância dessa influência, consignando, por vezes choques com outras, sobretudo a inglesa.

Desse modo, a influência francesa na área de História e na formação dos historiadores no


Brasil se fez sentir de forma decisiva. O próprio projeto de fundação da USP30 e, mais
especificamente, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), foi concebido pelos
fundadores como órgão prioritário para a constituição de uma unidade de pensamento
nacional. Georges Dumas, professor de sociologia da Sorbonne, foi a ponte para trazer ao
Brasil, anualmente, professores de várias universidades francesas. A importância dos
professores franceses, tais como Roger Bastide, Claude Lèvi-Strauss, Paul Arbousse-Bastide,
Fernand Braudel, foi decisivo para a consolidação das ciências humanas na USP. Esse modelo
de ensino seguia o modelo alemão e francês, influenciado pelo modelo napoleônico. A
estrutura de formação das instituições brasileiras de ensino superior vinha recebendo críticas
desde a época imperial de líderes como Fernando de Azevedo que defendiam o modelo
europeu, mais precisamente o francês e o alemão:31

A adoção do modelo francês (tanto Mesquita Filho como Duarte tinham estudado em Paris)
implicou que os professores estrangeiros eram vistos não apenas como cientistas e
especialistas, mas como intelectuais, fundadores de uma nova intelligentsia cosmopolita. De
fato, eram percebidos como tal; suas palavras e realizações estavam sempre em destaque, ao
que muito contribuiu a cobertura permanente do influente jornal de Júlio de Mesquita. Com
exceção dos franceses, porém, os professores estrangeiros nunca assumiram eles próprios esse
29
DA COSTA, 2000, pp. 142-143.
30
O Plano de fundação da USP foi redigido por Fernando de Azevedo, a pedido de Júlio de Mesquita Filho e
Armando de Salles Oliveira. O projeto de fundação da USP foi assinado por Fernando de Azevedo, Vicente Rao,
Júlio de Mesquita Filho; Fonseca Telles e Teodoro Ramos, Raul Briquet e André Dreyfus, Rocha Lima e A.
Bittencourt e Almeida Júnior. In: CARDOSO, 1982, p. 96.
31
Para um aprofundamento sobre a influência da França na formação da Universidade de São Paulo, ver:
CAPELATO, PRADO, 1989.

63
papel. Mas o mesmo não se pode dizer de seus discípulos não apenas nas ciências sociais, mas
também nas ciências naturais, e particularmente na física. O prédio da antiga Faculdade de
Filosofia na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, tornou-se o símbolo da união da
intelligentsia brasileira por cima e além das barreiras disciplinares. Entre os físicos, o grande
desafio era trazer os benefícios da energia atômica para o Brasil; veio deles o apoio intelectual
e técnico das políticas de auto-suficiência atômica de sucessivos governos brasileiros desde os
anos 1950, com todos os altos e baixos decorrentes da guerra fria. Da sua parte, os cientistas
sociais adotaram uma abordagem mais à la francesa, de orientação marxista, que parecia
fornecer respostas aos problemas socioeconômicos do país e apontar o caminho para as
soluções. Eles escreviam em jornais, publicavam para o público em geral e se envolviam em
política partidária. Muitos deles, cientistas naturais e sociais, se filiaram ao Partido Comunista
em algum momento da vida e permaneceram identificados com a esquerda tradicional.

A preocupação era a formação das elites, a pesquisa e a unidade entre ensino e investigação
científica; ênfase na formação geral e humanista, autonomia relativa da universidade diante do
Estado, concepção idealista e não-pragmática de universidade, estreita ligação entre a
formação das elites dirigentes e o projeto de nacionalidade32. Segundo Capelato, Glesser e
Ferlini33:

Os professores vindos da França, para o primeiro semestre do curso, permaneceram pouco


tempo, sendo substituídos por outros, também franceses, em início de carreira, que ficaram, no
mínimo, dois anos. Alguns estabeleceram relações mais estreitas com o país, prolongando sua
permanência. Formaram discípulos, com os quais dividiram a docência. No plano intelectual,
os franceses introduziram a preocupação com a orientação metodológica e com o rigor da
análise documental, iniciando uma relação com temas da historiografia francesa, especialmente
a dos Annales, vanguarda na época.

Ao longo do tempo, a concepção alemã sofreu uma série de modificações e desvios, em


detrimento ao modelo pragmatista norte-americano de universidade. O modelo norte-
americano influenciou, não apenas as universidades brasileiras, mas também as universidades
latino-americanas34. No Brasil, essa concepção foi amplamente difundida a partir da Reforma
Universitária de 196835, atingindo a estrutura organizacional e as finalidades de todas as

32
Tal ligação fica evidente no Decreto nº 6.283, de 25 de janeiro de 1934, que institui as bases da fundação da
universidade. In: FÁVERO, 1980, p. 179.
33
CAPELATO, GLESSER, FERLINI, 1994.
34
MALERBA, 2009, pp. 49-91.
35
Em 1968, foi instituído o Grupo de Trabalho encarregado de estudar a reforma da Universidade brasileira,
constituído por representantes dos Ministérios da Educação e Planejamento, do Conselho Federal de Educação e
do Congresso. Era afirmada no novo projeto político em implantação as linhas gerais confirmadas pela lei 5.540,
a forma ideal de organização do ensino superior, na sua tríplice função de ensino, pesquisa e extensão,
enfatizando-se a indissolubilidade entre essas funções, particularmente entre ensino e pesquisa. Para um
aprofundamento sobre este tema, ver: CUNHA, 2000; GUSSO, 1985; SCHARTZMAN, 1986.

64
universidades. Porém, se as reformas atingiram o campo político e estrutural, a visão sobre as
religiões permaneceram inalterados. As religiões continuavam a ser consideradas como etapas
a serem vencidas ou mesmo simples detalhes explicativos do componente econômico ou da
dominação colonizadora36. O fato é que a visão negativa sobre as religiões no Brasil é de
longa data. Desde a República, as diversas religiões eram entendidas como parte da idéia de
atraso cultural do povo brasileiro ou mesmo uma excentricidade regional, como nos relata, a
título de ilustração, a obra de Freyre37.

É assim que a noção de caiporismo, tão ligado à vida psíquica do brasileiro de hoje, deriva-se
da crença ameríndia no gênio agourento do caipora; este era um caboclinho nu, andando de
uma banda só, e que quando aparecia aos grandes era sinal certo de desgraça. Sumiu-se o
caipora, deixando em seu lugar o caiporismo, do mesmo modo que desapareceram os pajés,
deixando atrás de si primeiro as “santidades” do século XVI, depois várias formas de
terapêutica e de animismo, muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de magia
ou de religião africana, ao baixo espiritismo, que tanta concorrência à medicina e ao exorcismo
dos padres, nas primeiras cidades e por todo o interior do Brasil.

Para tanto, a leitura teórico-metodológica dos Annales foi fundamental para a área de História na
medida em que os estudos sobre as religiões poderiam ser tratados pela via da despersonalização do
objeto. Os Annales, a partir das análises quantitativas e séries estatísticas, no seu primeiro período,
baseavam-se nos em paradigmas compartilhados pelas ciências econômicas e sociais. Mesmo com a
mudança para a História das Mentalidades, nos anos 70, com novas considerações acerca dos objetos
de estudo e aproximando-se de algumas técnicas da análise semântica e lingüística, além de alguns
modelos da Antropologia e se aproximando de uma história das crenças, metodologicamente, não
rompia com o aparato utilizado pela historiografia econômica e social: recorria às ferramentas
estatísticas da Sociologia e da Economia. Dessa forma, a religião continuava dentro de uma lógica
apoiada pelas mesmas técnicas positivistas de negação de uma autonomia ou mesmo como
possibilidade de ser entendido como um objeto histórico. Para os Annales, a temática religiosa seguia a
interpretação durkheiminiana de representação social. Um dos exemplos desse posicionamento é a obra
de Marc Bloch, “Os Reis Taumaturgos”. As propostas de Bloch para a leitura da História a partir da
análise de um tema religioso como representação política e social marcaram os Annales e foram
incorporados na metodologia de leitura da História dos temas religiosos no Brasil. Ao propor novos

36
Verdade é que algumas religiões eram tratadas de forma diferenciada dentro da academia brasileira.
Principalmente pelo viés da idéia de resistência popular, as religiões afro tiveram um tratamento diferenciado do
cristianismo. O Protestantismo e, em especial, o Pentecostalismo, parece ter o seu lugar garantido nos estudos
históricos e sociológicos sob via negativa. Para um debate sobre essa redução nos estudos sobre o Protestantismo
brasileiro, ver: GIUMBELLI, 2001, pp. 111-112.
37
FREYRE, 2000, p. 165.

65
questionamentos em “Os Reis Taumaturgos”, Bloch proporciona um referencial para se ler a religião
como uma janela para a sociedade. Claramente, na esteira da leitura durkheimiana, o sagrado é
definido como uma representação da sociedade. Portanto, a própria formação do historiador, seja ele
pesquisador ou professor, no Brasil, está eivada da influência de alguns centros de formação que foram
privilegiados. Constata isso, Silva, quando diz que38:

A grande influência das escolas historiográficas francesas na formação dos historiadores


brasileiros garantiu que, a partir do trabalho de historiadores como Georges Duby, a literatura
fosse utilizada como fonte histórica. E as novas influências da Nova Histórica Cultural, ou seja,
de métodos e técnicas da Lingüística, da Teoria Literária e da Antropologia, têm garantido a
continuidade da relação entre Literatura e História. Em vista das influências desta formação
sobre os historiadores brasileiros, e pelo etnocentrismo ainda presente tanto no imaginário
coletivo brasileiro, quanto na indústria editorial e nos currículos de História dos ensinos
fundamental, médio e superior do Brasil, as obras dos historiadores franceses, assim como a
própria História da França, ocupam grande espaço tanto na prateleira das livrarias, quanto em
nossas salas de aula.

Assim, é possível afirmar que a escolha dos centros de influência privilegiou olhares e
objetos, e relegaram outros. Um dos objetos relegados foi a religião, ou melhor, as religiões,
como objeto histórico a ser investigado. Apesar disso, as abordagens sobre a religião no Brasil
continuam a crescer, seja pela quantidade de fontes e de acervos inéditos ou não totalmente
explorados, seja pelo crescente interesse da nova geração de historiadores que busca por
outros objetos, outras fontes, outros interesses39. Sobre esse ponto, já nos alertava Freitas,
quando dizia que40:

Para investigar a historiografia brasileira, a distancia de posicionamentos como historiador do


micro ou do historiador do macro, é necessário, por assim dizer, surpreender os olhares sobre
as fontes, não olvidando que, muitas vezes, no caso da pesquisa histórica a fonte faz o olhar de
quem olha. É preciso também ir além: perceber a emergência constante de novas fontes para
novos olhares.

É necessário, portanto, ampliar o leque teórico-metodológico para dar conta dos estudos sobre
as religiões no Brasil. Em um levantamento realizado sobre os programas de pós-graduação
na área de História, se verificou que, dos cinqüenta e dois programas, apenas dois oferecem a

38
SILVA, 2006, p. 02.
39
Sobre este ponto, é importante salientar a obra Historiografia brasileira em perspectiva, organizada pela
Editora Contexto, em 2005, que procurava justamente apontar um balanço da historiografia brasileira, suas
influencias e mesmo seus limites teóricos. FREITAS, 2005.
40
FREITAS, 2005, p. 12.

66
disciplina de História das Religiões em sua matriz curricular41. Esse dado demonstra que a
religião não é tratada devidamente pela área de pesquisa histórica no Brasil. Ainda assim, os
historiadores das religiões sempre buscaram espaços institucionais para divulgação de sua
produção. Um desses espaços foi a ABHR, Associação Brasileira de História das Religiões42,
que congrega historiadores, antropólogos, cientistas da religião e sociólogos para produzir e
refletir sobre os trabalhos que estes pesquisadores realizam. Porém, especificamente em
relação aos historiadores, persistiam e persistem as dificuldades em relação às teorias de
abordagem, como bem nos demonstra Watanabe43:

No caso dos historiadores, ao analisarmos a seleção dos objetos, fontes, problemas, e a


preferência teórica dos professores fundadores desse grupo no Brasil, apontamos para a
chamada Nova História Cultural francesa. A primeira pesquisadora a expor essa aproximação
da História cultural e o estudo dos evangélicos brasileiros foi Karina Bellotti (2005). No seu
texto Mídia, Religião e História Cultural a autora fez um levantamento sobre a consolidação
da chamada História Cultural Francesa na academia. Incitada pelas possibilidades e limites
dessa metodologia, problematizou uma história estritamente marxista ou demasiadamente
positivista no estudo da religião.

Outras iniciativas foram constituídas durante a criação da ABHR, bem como do GT de


História das Religiões e Religiosidades, da Associação Nacional de História44, mas, ainda
buscando agregar e difundir a importância do estudo das religiões no Campo da História e,
especificamente, entre os historiadores brasileiros. Tudo isso vêm demonstrar a necessidade
de ampliação do leque teórico-metodológico para tratar do tema religião/religiões no Brasil.

41
AUTOR, 2009. Baseado em: CAPES – 2007. Disponível em www.capes.org.br. Acesso em 10/06/2009.
42
A Associação foi criada em 1991 por um grupo de professores historiadores e cientistas da religião para suprir
um espaço de diálogo e representação dos estudiosos em religião que não encontravam guarida nos meios
acadêmicos para seus objetos de pesquisa. Para um aprofundamento sobre a história da ABHR, ver:
www.abhr.org.br.
43
WATANABE, 2008.
44
Segundo o site da ANPUH, em 19 de outubro de 1961 foi fundada, na cidade de Marília, estado de São Paulo,
a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, ANPUH. A entidade trazia na sua fundação a
aspiração da profissionalização do ensino e da pesquisa na área de história, opondo-se de certa forma à tradição
de uma historiografia não acadêmica e autodidata ainda amplamente majoritária à época. Atuando desde seu
aparecimento no ambiente profissional da graduação e da pós-graduação em história, a ANPUH foi aos poucos
ampliando sua base de associados, passando a incluir professores dos ensinos fundamental e médio e, mais
recentemente, profissionais atuantes nos arquivos públicos e privados, e em instituições de patrimônio e
memória espalhadas por todo o país. O quadro atual de associados da ANPUH reflete a diversidade de espaços
de trabalho hoje ocupados pelos historiadores em nossa sociedade. A abertura da entidade ao conjunto dos
profissionais de história levou também à mudança do nome que, a partir de 1993, passou a se chamar Associação
Nacional de História, preservando-se, contudo, o acrônimo que a identifica há mais de 40 anos. Cf.
http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=1. Acesso em 10/08/2009.

67
A Escola Italiana de História das Religiões

Uma das mais fecundas escolas teóricas na área de História das Religiões na Europa é a
Escola Italiana, fundada há oitenta anos por Raffaele Pettazzoni (1883-1959)45. As discussões
de Pettazzoni, resultado de um intenso trabalho acadêmico, de um programa educacional
voltado para a pesquisa filológica, etnológica e bibliográfica, de um profícuo debate com
diversas correntes da época, engendraram uma proposta original, com uma concepção teórico-
metodológica até então não experimentada. Seu pensamento foi uma conquista do fruto de
intensos trabalhos de campo e de diálogo acadêmico e político em uma Itália refratária aos
estudos sobre religião sob a égide de uma herança do liberalismo pós-renascentista, renovada
na filosofia historicista de Benedetto Croce46. Este negava a possibilidade de uma autonomia
categorial na esfera do espírito para o fenômeno religioso, aceitando a religião apenas como
uma das manifestações da ética, da filosofia e da estética.

A Escola Italiana, no entanto, teve seu amadurecimento em um processo de pesquisa e


produção de Pettazzoni e de seus alunos e sucessores ao longo de mais de três décadas, com
nomes como Angelo Brelich, Ernesto De Martino, Dario Sabbatucci e Vittorio Lanternari.
Essa Escola continuou a se expandir e refinar os insights do grande mestre italiano até hoje.
Não podemos deixar de mencionar os nomes de Ugo Bianchi, Marcelo Masenzio, Gilberto
Mazzoleni, Adriano Santiemma, Nicola Maria Gasbarro, dentre outros. Procuramos destacar
que os insights de Pettazzoni, se constituem fonte de inspiração que foram mais
desenvolvidos por uns que por outros. Este fato demonstra o quanto Pettazzoni estava à frente
de seu tempo em uma proposição quase inconsciente de sua amplitude, revelada por ele ao
final de sua obra em uma análise feita como ato revisor de uma trajetória intensa47:

[...] não me foram sempre assim claros em mente como o são agora. Nem eu os apreendi
inicialmente em nenhuma escola. Aliás, eles foram se esclarecendo e se desenvolvendo
gradualmente no curso do próprio trabalho. E desse progressivo delinear-se de um pensamento
experimentado e vivido são visíveis as marcas no complexo dos meus escritos, até este último
que vê agora à luz como coroação de uma pesquisa começada há muitos anos.

45
Historiador italiano de religiões e educador, fundador e presidente (1950-59) da Associação Internacional para
o Estudo da História das Religiões. Para um aprofundamento sobre a biografia acadêmica de Pettazzoni, ver:
MIHELCIC, 2003; GANDINI, 2009.
46
Benedetto Croce (1866-1925). historiador, escritor, filósofo e político italiano. Os seus escritos giram em torno
de um largo espectro temático, sobretudo estética e teoria/filosofia da história. É considerado uma das
personalidades mais importantes do liberalismo italiano no século XX. Para um aprofundamento sobre sua
biografia e idéias, ver: REALE, 1991.
47
PETTAZZONI, 1955, pp. 10-11 [tradução pessoal].

68
Para alcançar seu intento de introduzir o ensino de História das Religiões dentro do programa
dos estudos universitários italianos, Pettazzoni teve de superar também grandes dificuldades
com os adeptos de um historicismo radical, fruto do positivismo que dominou a academia
européia a partir do iluminismo e, posteriormente, com o marxismo clássico, que
desqualificava a religião como uma das etapas a serem superadas na militância ideológica de
transformação da sociedade capitalista. Ao comentar sobre este período Agnolin, diz48:

Neste sentido, desde seu nascimento a “Escola Italiana de História das Religiões” encontrou-se
instalada, epistemológica e historicamente, no entrelaçamento entre as disciplinas da
Antropologia e da História, tendo que encarar, conseqüentemente, a polêmica aberta e crítica
com a Filologia, com a Fenomenologia e com todas as outras escolas de pensamento que, de
fato, privilegiavam abordagens não-históricas ou, quando pior, des-historicizantes.

Pettazzoni alcança a cátedra de História das Religiões na Universidade de Roma em 1924 e


introduz, na Itália, uma disciplina que buscava superar as rejeições aos estudos históricos da
religião por todas essas correntes citadas.

Sua busca incessante e seu intenso debate sobre a possibilidade de uma História das Religiões
o levou a investigar diversos temas como a questão do Deus único (Urmonotheismus entre
1922; 1957; 1958; 1965); as religiões locais (como constam em suas primeiras monografias
de 1909 a 1914, que tratam da Sardenha e da Tracia); o zoroastrismo (em 1920); as religiões
de mistério (em 1924); a religião grega (em 1953); estudos sobre mitologia (inclusive sobre
mitologia japonesa, nos estudos realizados e publicados entre 1929; 1946; 1948-1959); sobre
teoria e metodologia (1954; 1954 e 1959) e diversos temas gerais (de 1929 a 1936). Ao longo
de vinte e cinco anos de pesquisas e trabalhos publicados, Pettazzoni desenvolve sua teoria na
prática e nos constantes debates acadêmicos. Sua vasta produção ainda é motivo de
investigação, contendo artigos acadêmicos e cartas inéditas49, mantidas com diversos
pesquisadores e intelectuais de sua época.

O pensamento de Pettazzoni apresenta algumas linhas gerais de afirmação metodológica que


deixam claro sua abordagem sobre as religiões. A primeira linha é que a religião constitui-se

48
AGNOLIN, 2008, p.10.
49
O arquivo Pettazzoni foi inaugurado pela Universidade de Bologna na cidade de San Giovanni in Persiceto em
2009 com o maior acervo da produção pettazzoniana e contém o material inédito sobre o mestre italiano. Para
maiores informações, ver: GANDINI, 2009.

69
em um fenômeno histórico-social-civilizacional50 que tem autonomia de existência em relação
aos demais objetos históricos como a economia, a arte e a política51. Essa posição, oriunda do
positivismo conteano, e mesmo do marxismo clássico, que desqualificavam os estudos de
religião e com os posicionamentos da fenomenologia e da teologia que buscavam um
“descolamento” da religião (e das religiões) do âmbito meramente histórico52:

L’alternativa appare dunque nettamente delineata tra una fenomenologia priva di vigore
storiografico ed una storiografia senza una adeguata sensibilità religiosa. Resta da vedere se Le
due posizioni si escludano realmente a vicenda o non siamo invece complementari, trovando
l’una la sua integrazione in ciò che è proprio dell’altra, e viceversa. In sede metodologica si
tratta di vedere se la comparazione non possa essere altro che una meccanica registrazione di
somiglianze e di differenze , o se non si dia-invece-una comparazione che, superando il
momento descritivo e classificatorio, valga a stimolare il pensiero alla scoperta di nuovi
rapporti e all’approfondimento della conscienza storica.

Dessa forma, constitui-se passível de análise o fenômeno objetificável a partir da análise


histórica, superando tanto a historiografia positivista, que exclui a possibilidade da religião
como objeto de análise histórica, quanto a fenomenologia que anula a religião da investigação
histórica em um processo de des-historicização. Ao tornar possível a análise do fenômeno
religioso através do processo de investigação histórica, Pettazzoni cunha a idéia de que “cada
phainomenon é um genomenon”. Essa declaração estabelece a premissa de pensamento de
Pettazzoni que busca superar os “becos sem saída” das duas vertentes teóricas que
desqualificavam a religião e os estudos religiosos, como demonstra Agnolin53:

Assim, o próprio Pettazzoni formulou seu programa manifestando o fato de que “cada
phainomenon é um genomenon”: formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade,
queria destacar como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetivação – é possível
re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-objetizá-lo”.
Tratava-se, finalmente, de opor às indagações fenomenológicas a necessidade da interpretação
histórica. Isto significa que, para compreender um fato cultural qualquer, dever-se-ia procurar,
antes de mais nada, a reconstrução da sua gênese, da sua formação.

50
É necessário fazer um esclarecimento de fundo em relação ao pensamento pettazzoniano: ao tratar de cultura,
Pettazzoni entende tratar, sobretudo, de civilização. Este entendimento é fundamental na produção e no
aprofundamento das ideias de Pettazzoni.
51
Considerados no pensamento croceano a manifestação do espírito absoluto, na esteira do pensamento
hegeliano. Para um aprofundamento sobre o tema, ver: REALE, 1991, pp. 520-529.
52
PETTAZZONI, 1966, pp. 107-108.
53
AGNOLIN, 2008, p.10.

70
Ora, essa des-objetificação, de que trata Agnolin, em relação ao pensamento de Pettazzoni, é
uma objetificação histórica do religioso ou do reconhecimento de que a religião/religiões
pertence ao campo da análise histórica, não como algo de “segunda monta”, ou mesmo como
“algo que se refere a algo” mas, como um objeto de investigação histórica privilegiado. A
partir dessa linha teórica, Pettazzoni constrói o entendimento da manifestação do religioso
como elemento de investigação histórica, novamente apontando para premissas não
examinadas até então.

Outra linha teórica estabelecida ao longo de suas pesquisas e suas reflexões diz respeito à
relação de mútua influência entre a sociedade (local) e as religiões em um jogo de forças.
Vale ressaltar que a sociedade influência a religião e a religião influência a sociedade. Essa
premissa desvela e afirma a importância do entendimento da religião como fenômeno
objetificável histórica e localmente constituído, relevante no entendimento do processo
civilizacional de um determinado grupamento humano. Para Pettazzoni, as religiões
participam no processo de constituição civilizacional e cultural de uma determinada sociedade
mas, não apenas isso. Essa sociedade local, influência o processo religioso, transformando-o e
caracterizando-o no cotidiano em uma mútua relação e em um permanente jogo de forças e de
transformações quase imperceptíveis, como cita Pompa54:

Para o estudioso italiano, a alteridade meta-histórica do sagrado não é ontológica e prioritária


sobre o profano, como para Eliade, mas é o produto do pensamento dialético, antítese de uma
tese. É o homem quem constrói o cosmos e o caos, isto é, o mundo dos arquétipos, como
quadro de referência de sua vida normal.

Assim, a História das Religiões se preocupa com a relação das influências entre localidade e
religião (institucional e prática), demonstrando que a intercessão entre elas revela a
comunidade e as suas transformações civilizacionais. A partir da análise do cotidiano para o
entendimento dos processos de relacionamento e mútua influência, Pettazzoni antecipa
diversas linhas de pesquisa que entendem que a prática cotidiana retém a realidade última
para o pesquisador. Importante notar que o historiador, para Pettazzoni, é um pesquisador que
cruza as informações bibliográficas produzidas no campo com as ações cotidianas da
comunidade que produz as informações. Dessa forma, é na prática cotidiana que se manifesta
a religiosidade e transparece a religião e não apenas nas ações institucionalizadas ou nas

54
POMPA, 1998.

71
manifestações extremas, sejam elas entendidas como miraculosas ou extraordinárias, como
bem lembra Massenzio, citando Pettazzoni55:

Não é necessário erigir a exceção à norma! O dado positivo é a norma, a rotina, à vida
cotidiana do homem. À exceção são os momentos de vida mais intensos. Em primeiro lugar
aqueles nos quais a existência está em jogo: a caça, a guerra. Está aqui o mundo da religião. É
um mundo real. Também o mundo da norma é real [...]. E também aqui opera a religião
(eliminação mágica do pecado) etc. não é verdade que apenas o mundo dos arquétipos é
realidade: também a história é realidade, porque toda a vida é realidade.

Essa concepção traz diversas conseqüências epistemológicas. A mais importante que


destacamos é o necessário cruzamento das informações documentais produzidas pela
comunidade e sua interseção com a análise das práticas da comunidade onde se ocorre a
religião/religiões. A fonte primária dos estudos e das pesquisas do historiador é a produção
bibliográfica da comunidade e sobre ela, mas é na análise das práticas de campo que se dá a
interpretação da vivência da religião. A intercessão entre análise documental e análise de
campo é um contributo importante para o entendimento da religião que transparece no
cotidiano das formas singulares, no dia-a-dia. O historiador necessita da análise
bibliográfica56, dos estudos das fontes escritas. Porém, o seu trabalho será incompleto se não
houver a pesquisa de campo das ações cotidianas no entendimento dos processos religiosos
que se dão no seio da comunidade, verificando as inter-relações de influência entre religião,
processo civilizacional e produção cultural. Esse é o ponto onde se inicia o método histórico
comparativo de Pettazzoni, como bem salienta Almagro-Gorbea57:

Sin embargo, una metodologia válida para una reconstrucción plenamente histórica debe seguir
el camino iniciado por Brelich (1954), basado en la Historia de lãs Religiones de Pettazzoni,
que permite rastrear con método crítico procesos diacrónicos, sistema que apenas ha sido
cultivado (vid supra, § B. Método). Este campo de estudios de tanto potencial hacia el futuro
exige huir de aproximaciones antropológicas generalistas y seguir una metodología histórica
inspirada en la Historia de las Religiones, buscando documentar relaciones históricas
filogenéticas, como ocurre con el método filológico en Lingüística, para evitar falsos
paralelismos e interpretaciones errôneas.

55
MASSENZIO, 2005, p. 153.
56
O próprio percurso de pesquisa de Pettazzoni ao analisar e produzir diversas monografias sobre a religião
constata a preocupação lingüística e de sentido religioso (grosso modo, entendido como teologia).
57
ALMAGRO-GORBEA, 2007, p. 31.

72
O método comparativo de Pettazzoni58 busca a singularidade a partir da base fornecida pelas
nossas pressuposições de origem, nossa cultura, conceitos e civilização. Ao analisar outra
cultura, encontramos outros conceitos, distinguimos outra civilização. Dessa maneira, o
processo comparativo busca a diferença e a singularidade, não o igual ou o supostamente
mesmo entre culturas e civilizações diferentes. Tratando de forma resumida, Scarpi assim
apresenta a questão do método comparativo em Pettazzoni59:

Già dai primi anni Venti del secolo scorso, tuttavia, l'immenso castello costruito da padre
Schmidt, e poi l'irrazionalismo e l'ipoteca teologica della scuola fenomenologica vennero messi
in discussione da Raffaele Pettazzoni, il fondatore della scuola storico-religiosa italiana, per
quanto egli e parte dei suoi allievi abbiano cercato di conciliare la prospettiva storica con la
sistematicità del metodo fenomenologico al fine di elaborare modelli e individuare costanti
nell'universo delle religioni. In ogni caso, per la scuola storico-religiosa italiana, una storia
delle religioni fondata sulla comparazione non avrebbe mai potuto né dovuto ridurre «ad un
medesimo livello» i fatti religiosi comparati, e nemmeno spiegarli «l’un con l’altro facendo
astrazione da um reale svolgimento storico». Essa invece avrebbe dovuto rilevare «le
differenze sostanziali e di sviluppo dei fatti esaminati», una volta individuati e una volta
stabilita La possibilità di compararli, perché la vera storia non può farsi che attraverso le
differenze, che permettono di distinguere e di cogliere le specificità individuali delle diverse
religioni.

Para que tal ocorra, é necessário postular um mínimo de conceitos flexíveis para a análise de
campo. Conceitos estes que deverão, necessariamente, ser descartados, revisados,
modificados, ao longo do processo de análise entre documentação e prática cotidiana, como
explicita o próprio Pettazzoni60:

[...] um concetto così largo della religione che comprenda nella sua universalità tutte le forme
particolari, in ciò risolvendosi concretamente l’universalità stessa della indagine storico-
religiosa, anziché in una chimerica storia universale delle religioni.

Por fim, apresentamos aqui uma síntese do pensamento teórico e metodológico de Raffaele
Pettazzoni com as conseqüentes implicações que se fazem necessárias sobre seus insights que
foram desenvolvidos ao longo de gerações de estudantes e de sucessores de seu pensamento e
constituem uma teoria e uma metodologia próprias as quais denominamos de Escola Italiana
de História das Religiões:

58
Para um aprofundamento sobre o método comparativo, tal e qual proposto por Pettazzoni, ver. PETTAZZONI,
1956, pp. 1-18.
59
SCARPI, 2009-2010.
60
PETTAZZONI, 1955, p. 10.

73
1. A religião é um fenômeno privilegiado que dialoga com a cultura-civilização,
influencia e é influenciada por esta.

2. As múltiplas formas para se entender o diálogo entre a religião e a cultura se iniciam


pelas fontes escritas e continua na análise de campo das práticas cotidianas.

3. Como diálogo cultural-civilizacional, é necessário entender os processos locais de


interação e relação entre religião e a região em que esta está inserida.

Esses pontos se apresentam como uma síntese de um pensamento teórico metodológico muito
mais rico e complexo do que aqui explanado, mas, tem por objetivo apresentar a essência do
pensamento pettazzoniano que se desenvolveu em diversos aspectos através das gerações que
se seguiram na Escola Italiana.

Considerações finais

Atualmente outras escolas como a Micro História e o Neo-Historicismo e tendências como os


estudos sobre gênero têm alcançado proeminência na historiografia no Brasil. Estes
movimentos, ainda não plenamente consolidados, mas fortemente orientados
metodologicamente, ampliam ainda mais o escopo teórico dos estudos no Brasil. Ainda assim,
é necessário diversificar os centros de diálogo sobre as teorizações para o estudo das religiões.
É imprescindível essa abertura, pois o Brasil figura entre os países com uma grande riqueza
em relação aos fenômenos religiosos, citados na mídia e no cotidiano, nas diversas regiões
que compõem este país. Um desses centros é, certamente, a Escola Italiana de História das
Religiões. Apesar de seu grande alcance e renome internacional, ainda não há textos dessa
escola traduzidos e publicados aqui, somente citações esparsas, algumas referências de
pesquisadores e artigos em revistas especializadas que não chegam a penetrar no dia-a-dia da
academia e, por isso, desconhecidos da maioria dos historiadores.

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80
81
MC9 – Iconografia budista

Coordenador

Fernando Carlos Chamas


Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa com enfoque em Cultura Budista pela USP.

Resumo

O Budismo abarca influências culturais de meio mundo, ou como se acostumou dizer,


“mundo oriental”. Nasceu na Índia como um fruto que se opõe ao bramanismo, e de lá é então
“empurrado” para fora. Acompanhando a Rota da Seda, abraça as religiões nativas dos reinos
que acolheram a intensa atividade de monges. Juntou-se ao xamanismo tibetano, ao taoismo e
confucionismo da China, entra na península coreana e, depois de mil anos desde suas origens,
chega ao Japão e se junta ao xintoísmo. Considerando que a arte, foi, inicialmente, sua
principal força de expansão, este minicurso objetiva expor algumas obras artísticas principais,
entre pinturas e esculturas cujas formas arquetípicas sugerem discussões tanto religiosas
quanto psicológicas em suas interrelações, soteriologia e escatologia.

82
Budismos

Fernando Carlos Chamas1

Introdução

Dharma, Samsara e Karma são conceitos centrais encontrados nos ensinamentos de todas as
correntes budistas, mas já eram conceitos védicos escritos em sânscrito, assim como muitos
termos usados pelo budismo. Os Vedas são as escrituras mais antigas do mundo e as mais
sagradas do hinduísmo, antes dito bramanismo. Os brâmanes fazem parte dos descendentes
arianos que há 2000 a.C. dominaram as civilizações nativas e desenvolvidas (Mohenjo Daro e
Harappa) da bacia do rio Indo e impuseram as quatro castas, entre elas, a dos guerreiros,
xátrias. Siddharta Gautama teria nascido no ano 563 a.C. em Kapilavastu (hoje Lumbini,
Nepal), norte da Índia, de um dos clãs xátrias, os Shakyas e, como príncipe herdeiro, foi
instruído com todo o conhecimento efervescente dos Vedas e tradições pré-arianas não
inteiramente sufocadas. Gautama será o shakya-muni (“O sábio silencioso dos Shakyas”).
Histórias e lendas de uma vasta literatura budista narram sua vida e são largamente
confrontadas, pois nenhuma escritura ou romance contém todos os detalhes, ensinamentos e
circunstâncias históricas necessárias como datas e atividades específicas para um enfoque
mais científico da vida de Buda, tendendo mais obras complementares para ilustrar os ideais
budistas. Os primeiros ensinamentos e biografia foram escritos cerca de 400 anos após sua
morte e muito longe do cenário histórico, no Ceilão (Sri Lanka), dos dialetos da Índia (Buda
falava no dialeto magadhi) para o pali e depois para o sânscrito, e assimilaram a mitologia
característica dos salvadores do mundo. Assim foi Asita, brâmane sábio e eremita, que viu na
criança Gautama traços de um líder, espiritual ou mundano, baseado nas tradições hindus e
iogues, entre elas a fisiognomia. Essas características seriam originalmente evidentes no corpo
de um Rei Sagrado chamado Cakravarti da mitologia hindu. Também havia a crença na
décima encarnação de Vishnu. Não obstante seu pai, o rei Suddhodana, logicamente desejasse
um herdeiro-guerreiro, Gautama, com 29 anos de idade, abandonou a confortável vida
palaciana para se tornar um asceta mendicante. Havia muitos líderes ascetas, alguns Jainas e
Ajivikas, que nas florestas competiam pelo número de discípulos, debatiam questões

1
Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa com enfoque em Cultura Budista pela USP. Contato:
fernandocarloschamas@gmail.com .

83
transcendentais e praticavam variadas mortificações corporais mais em busca da compreensão
e domínio do mundo material do que de um estado de buddha (“de consciência plena”) para
escaparem deste mundo material, livres dos renascimentos. No caso de Gautama, destacam-se
os seguintes aspectos. Primeiro, tornar-se asceta era, e ainda é, um comportamento tradicional
de um estágio de vida na sociedade hindu, os sadhus, com tendências niilistas e céticas, mas
nunca, até então, de um príncipe erudito da casta guerreira com o destino garantido de tornar-
se rei. Realizou a tonsura, renunciando não só às convenções mundanas, mas a sua família
Real, inclusive esposa e filho. Segundo, Gautama, experimentando o ascetismo por seis anos,
compreendendo seus limites e abandonando essa prática, também desafiou tanto a tradição
ascética (“sacrifícios e orações seriam inúteis”) quanto, ainda mais, o sistema de castas (“não
existe um criador supremo personificado, dito Brahma, do qual se originou as castas e,
portanto, os Vedas teriam sido manipulados pelos brâmanes”). Terceiro, pelo esforço pessoal
na meditação, “despertou” (“iluminação” se tornou a palavra mais popular) em Bodh Gaya e
decidiu ficar no nosso mundo, adiar sua “extinção” (nirvana, aqui, uma elevação espontânea e
imediata) e pregar, começando em Sarnath. Segundo o Sutra de Lótus, foi Brahma que rogou
para que Buda adiasse sua “partida” e o ensinasse para que também atingisse a liberdade do
ciclo de renascimentos sucessivos. Para Brahma, os ensinamentos de Buda eram a própria
“restauração” do Dharma, pois objetivava que a compreensão humana atingisse um nível de
libertação da dor para esta Era (yuga. Estamos na Kali Yuga, Idade do Ferro, da corrupção
desenfreada, iniciada em 3102 a.C. com a duração de 5000 anos, segundo o Manvantara.).
Para “suportar” a dor dessa Era, um dos princípios budistas de todos os budismos é a
compaixão. O primeiro discurso é conhecido como “acionamento da Roda da Lei”, que como
Buda mesmo disse, “nunca deixou de girar”. Cabe aos Budas relembrar a Lei, o Dharma, que
de um ponto de vista pode ser uma “restauração”. Ele não fala nem sobre um princípio divino
não-personificado, como Brahman do bramanismo, nem de assuntos metafísicos, como
defende a corrente mais antiga. Os budismos que serão mencionados em todas as discussões
metafísicas são correntes que defendem as conseqüências metafísicas dos ensinamentos.
Embora Buda impedisse a discussão entre os membros da sua comunidade, após a sua morte o
budismo se dividirá em budismos, numa extensa e sofrida história de difusão do budismo pela
Índia até sua extinção neste país e seu sucesso fora dele.

A Iluminação é uma experiência indescritível e Buda passou 49 dias e noites meditando sobre
o ocorrido. Segundo os ensinamentos que resultarão dessa experiência, seria um paradoxo
“desejar” o próprio fim do desejo ou o desejo de não sentir a dor. Entre ensinar métodos para

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a iluminação (corrente tradicional) e falar sobre a iluminação (o metafísico), decidir ensinar o
caminho para a “grande experiência” é o que fez de Buda um Mestre, e por 44 anos viajou e
pregou pela Índia. Começou ensinando As Quatro Nobres Verdades e O Caminho do Meio. O
número de convertidos de todas as castas, de brâmanes a leigos, de homens e mulheres da
Índia, foi formando uma tradição e uma comunidade crescente, inclusive com parentes, reis e
outros grandes ascetas com poderes paranormais. Buda, seus discípulos e seguidores
peregrinavam pela Índia e viviam de esmolas, somente alimento, só parando na estação das
chuvas em mosteiros (vihara) ofertados. Morreu como um homem comum, aos 80 anos, 483
a.C., em Kusinagara e suas cinzas e espólio foram divididos entre os discípulos e mais tarde,
estupas (pagodes) foram construídas para guardá-las por todas as partes para onde o Budismo
se difundiu. Particularmente, os budistas podem contar o ano a partir da morte de Buda, seu
paranirvana (“extinção física neste mundo e a passagem para outra dimensão”).

A Difusão do Budismo

O príncipe Ashoka (cerca de 304–232 a.C.), após uma guerra sangrenta contra Kalinga em
259 a.C., converteu-se ao Budismo e tornou-se o terceiro imperador da dinastia Maurya. Ele
amparou o Budismo elevando-o à categoria de religião oficial, mas sem impô-la, sendo o
principal responsável pela difusão do Budismo inicial na Índia, erguendo vários marcos em
locais consagrados, por onde Buda passou e pregou. Por outro lado, acirrou a discórdia contra
o Bramanismo. Durante o seu reinado, a região de Gandhara (hoje, noroeste do Paquistão e
leste do Afeganistão), tornou-se um cenário de intensiva atividade de missionários budistas. A
dinastia Maurya entrou em declínio até perder o poder em 185 a.C. e a partir daí, várias
dinastias ocuparam a Índia. A tradição hindu retomou o seu poder a partir do séc. IV com a
dinastia Gupta (A Era Clássica ou Era de Ouro da antiga Índia), que unificou o poder e
diminuiu a influência do Budismo, hoje praticamente extinto na Índia. Quando se leva em
conta a adaptabilidade do Budismo, muitas vezes se ignora os diversos obstáculos enfrentados
e ainda pouco conhecidos dentro da Índia. Além de Ashoka, mais dois reis são considerados
Reis Budistas Indianos: Meneandro ou Milinda (125-95 a.C.) e Kanishka (78-127? d.C.). O
fim do Budismo na Índia é marcado pela destruição da Universidade de Nalanda em 1199 por
invasões.

85
Entre os séculos V e III a.C. os ensinamentos foram sendo revistos oralmente e transmitidos
em reuniões pouco formais. A partir do séc. III a.C., concílios foram realizados para a
discussão em torno da transmissão, correção dos ensinamentos, disciplinas monásticas,
organização doutrinária, dissidências e problemas internos das comunidades. Os livros
mostram datas e personagens principais quase inconciliáveis, devido também às fontes
originariamente discordantes segundo o ponto de vista das dissidências.

No início da ordem monástica budista, os monges eram errantes, e não missionários. Eles
raspavam a cabeça e vestiam-se de laranja, rompendo com coisas mundanas e se
desprendendo totalmente dos valores materiais, só recebendo esmolas em comida dadas pelos
leigos que acreditam que, com esse gesto, acumular méritos (punya).

Embora Buda não desejasse, a ordem foi se divergindo em atividades religiosas restrita aos
monges ou para o ambiente social, resultando em duas grandes correntes. Uma
exclusivamente baseada no Buda histórico (Gautama) e nos seus ensinamentos, theravada, e
outra, mahayana. A tradição theravada, “dos anciões”, foi incluída de modo preconceituoso
dentro da corrente rotulada de hinayana (“Pequeno Veículo”) e seu ideal é do arhat (“ser
perfeito”) em sabedoria (prajna) e a “extinção”, não voltado para leigos. O mahayana
interpreta isso como egoísmo, mas deve ser visto como complementar, e o pejorativo
hinayana ignorado em qualquer estudo sério.

O mahayana (“Grande Veículo”), de caráter reformador, via Gautama como mais um dos
numerosos Budas que estão presentemente ativos através do cosmos e, nos seus
ensinamentos, defendia uma miríade de verdades esotéricas.

O theravada se difundiu para Sri Lanka, Birmânia (atual Mianmar), Tailândia, Camboja e
Laos, e o mahayana foi levado para as montanhas e desertos de Ghandhara (Índia), Tibete
(subcorrente, o vajrayana) e China (subcorrente, o Zen), através de rotas comerciais
conhecidas como Rotas da Seda. Daí atingiu a Mongólia, ao Vietnã, a Coréia e o Japão. Pelo
século I d.C., uma comunidade seguidora do mahayana tinha se estabelecido na China, mas
foi somente no final do século IV que eles foram incentivados pelos governos das dinastias
chinesas. O Budismo atingiu o seu auge como religião estatal da China durante as dinastias
Sui (581-618) e Tang (618-907). O Sutra de Lótus foi traduzido para o chinês por Nagarjuna
(cerca de 150-250) fazendo surgir várias escolas. Por volta do século VI, já havia cerca de
trinta mil monastérios e dois milhões de monges na região norte da China. O monge budista

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indiano Malananda foi da China para Paekche (reino coreano) em 384, quando seu rei
oficializou o Budismo e monges coreanos foram para a China e Índia, entre 523 e 554,
trazendo textos budistas, nos quais as escolas se baseavam. Na Coréia se tornou a principal
força cultural para unificar a península, mas como a China, ainda carecemos de maior estudos.
Enquanto isso, monges coreanos, devido às guerras, refugiavam-se no Japão, levando suas
crenças, mas só foi no séc. VI que o Budismo quando foi introduzido oficialmente no Japão
pelo reino coreano de Paekche que queria o apoio militar do Japão. Estimulado por líderes da
aristocracia japonesa, o budismo se tornou a religião oficial japonesa em 594. Monges
japoneses foram estudar em templos chineses.

Dois monges que foram estudar na China, fundaram as escolas mais influentes no Japão, a
Tendai, em 805 por Saichō (767-822) e a Shingon, em 806 por Kūkai (774-835). Saichō e
Kūkai são responsáveis pela divulgação do “sincretismo” xinto-budista que afirmava que os
kami do xintoísmo, deuses da crença nativa japonesa, haviam encarnado como Budas no
ocidente para trazer o Budismo ao Japão (teoria honji-suijaku).

Hoje há cerca de 400 milhões de budistas no mundo e maioria está na Tailândia (religião
oficial), cerca de cinquenta milhões. No Brasil chega a 3% da população, número apenas
aparente.

Os Bodhisattva

O termo bodhisattva em chinês é bodaisatsu, e em japonês, bosatsu. Em tibetano, significa


“ser heróico”, indicando aquele que pratica os ensinamentos do budismo na vida mundana.
Um bodhisattva expressa o ideal mahayana, em contraposição ao arhat injustamente rotulado
como uma iluminação egoísta. Jurando adiar o seu nirvana, fez votos de compaixão para
trabalhar pelos sofredores até todos os seres sencientes alcançarem a iluminação. Os três
ideais de um bodhisattva são conservar todos os preceitos, praticar sistematicamente todas as
virtudes perfeitas e dar graças a todos os seres vivos, pois o fator determinante de sua ação é a
compaixão sustentada pela mais alta sabedoria. Portanto, é um ser constituído de forças
contraditórias combinadas pela grandeza de seus votos, isto é, adiou, por compaixão, sua
própria liberdade espiritual.

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Zen-Budismo

A escola Chan (jap. Zen) vem do sânscrito dyhana (meditação). Mahakashyapa, discípilo de
Buda que presidiu o primeiro concílio budista, é considerado o primeiro patriarca pelo Zen
chinês. Noutra versão, o estilo de prática Zen foi levado da Índia à China pelo lendário monge
indiano Bodhidharma (jap., Daruma), por volta do ano 520 d.C., sendo também um patriarca
do Zen chinês. Na época em que surgiu e se desenvolveu, o Zen pode ser visto como uma
escola de reforma dentro do mahayana, revalorizando a importância da simplicidade do
pensamento para atingir verdades mais profundas. O Zen dá mais importância à meditação do
que outras linguagens, subprodutos da dualidade da mente e nunca a realidade. Por isso vale-
se do kōan, pequenos diálogos com o objetivo de quebrar o raciocínio lógico e levar a uma
iluminação imediata e constante, tirando o ego de sua inércia. O Zen se estabelece no Japão
(séc. XII) com as escolas Rinzai, de Eisai (1141-1215), e Soto, de Dogen (1200-1253), e lá se
desdobra como peculiar a sua tradição, como se lá tivesse nascido. Enquanto a escola Rinzai
utiliza meios mais chocantes contra a distração da mente, como bater no discípulo com uma
vara, a Soto é mais contemplativa.

O Budismo chegou ao Brasil pelos imigrantes com construção de igrejas e templos budistas e
igrejas católicas com padres imigrantes que oram em japonês nos bairros com grande número
de descendentes. Esses não deixam de ter em suas casas os altares budista e xintoísta para os
antepassados, com imagens de Buda, patriarcas e santos católicos, onde pode se oferecer
velas, incensos e flores. Mais contemporâneas são as traduções em português dos estudos
norte-americanos sobre budismo e das novas religiões japonesas com latente sincretismo entre
Budismo e Xintoísmo, mas também as assumidamente budistas, como a Sokagakkai de
Nichiren Daishonin (1222-1282), todas com sua Sede no Japão.

O Budismo Tibetano

O mahayana que foi para o Tibete no séc. VII durante o reinado do rei Srongtsen Gampo e é a
terceira grande corrente do mahayana, o vajrayana (“Veículo Diamante”) liderado pelos
Lamas, responsáveis pela transmissão direta do “conhecimento primordial sem a dualidade
própria da mente”. Escola vajrayana ou Escola dos Segredos foi fundada no século VII pelos
indianos Shuvhakarasimha (637-735), Vajrabodhi (663-723) e Amoghavajra (705-774). O
vajrayana é baseado nos ensinamentos dos tantras, textos esotéricos com doutrinas especiais

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para a transformação da mente. Enquanto vajrayana é a corrente “esquerda” do tantrismo, a
contraparte feminina das divindades budistas, o mantrayana é a corrente “direita” e sobrevive
na escola Shingon, que enfatiza o gesto das mãos, e foi para a China e Japão. Também é
praticado no Nepal, Mongólia, Tibete e Butão. No séc. VIII, Padmasambhava é o introdutor
do vajarayana no Tibete. É comum um Lama ser procurado no mundo todo, reencarnado e
ainda criança, para ser levado ao Tibete e treinado como possível líder. No século VII, Trisog
Detsen convidou missionários da Índia e construiu um mosteiro. A partir do século XI, esse
budismo foi sendo propriamente a Escola Tibetana, ou tântrica do budismo. O tantrismo é
caracterizado pelos exercícios com mudras (gestos simbólicos das mãos que expressam
momentos da vida de Buda, estado de consciência, conceitos e ensinamentos específicos da
ioga), mandalas, mantras e dhyana (meditação). Atualmente, Tenzin Gyatso é a autoridade
espiritual, religiosa e política do Tibete, o 14º Dalai-Lama (“Mestre grande como o oceano”)
da tradição tibetana Gelugpa, e agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1989. Ele é
considerado uma emanação do bodhisattva Avalokitesvara. Porém, em 1959, Tenzin foi
forçado a fugir devido à invasão chinesa iniciada em 1951 que fez do Tibete sua província em
1965 com uma dos mais terríveis genocídios mais a depredação da sabedoria universal. (Ver
filme Kundun, de Martin Scorcese). Rinpoche é um título de respeito apenas dentro do
budismo tibetano. Entre as práticas artísticas tibetanas estão as cerimônias thangka.
Representam enormes pinturas budistas e mandalas numa complexa simbologia de cores,
posturas (do corpo e das mãos), pedestais, ornamentos, utensílios e instrumentos.

Arte Budista

Supõe que os primeiros budistas acreditavam ser aquele conhecimento religioso tão sagrado
que não poderia ser escrito ou gravado numa pedra, assim como alguns templos que, hoje, não
permitem fotografar as imagens ou são mantidas ocultas. Assim se representava apenas
imagens sugestivas de sua presença, como uma árvore bodhi ou um guarda-sol real aberto.
Após a iluminação, também significa que a personalidade Gautama não podia mais ser vista.
Pegadas de Buda esculpidos em uma placa de pedra é uma das mais velhas formas de
Budismo antes dos gregos influenciarem os hindus a fazerem imagens budistas representando
Buda. Até por volta do século I da era cristã, a arte budista estava sendo realizada em
esculturas e desenhos como elementos constitutivos de construções arquitetônicas, entre as
quais as mais importantes seriam os pagodes que entesouravam os restos mortais de Buda. Foi

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na região de Gandhara, coração do Império Kushana, parte superior do Rio Indo sob o
domínio do rei Kanishka, que a iconografia de um homem santo em formas reconhecíveis
gradualmente foi tomando forma, fazendo surgir a imagem de Buda. Gandhara conseguiu
absorver as tradições fisiognômicas perfeccionistas da religião romana e representou Buda
com uma jovem face apolínea e vestes semelhantes àquelas das estátuas imperiais.

Por causa da proximidade geográfica, o império Kushana foi a raiz das primeiras estátuas
de Buda transmitidas à China. Os Budas e as divindades bodhisattva são encontrados em
cerâmicas, espelhos e pequenas figuras de bronze até o séc. IV. No século V, quando a
China começou a se dividir em norte e sul, a escultura budista chinesa começou a se
desenvolver em suas próprias linhas. As pinturas floresceram posteriormente, nas cavernas
e em monastérios. As cavernas, que foram iniciadas em 460, não apresentam um quadro
geral da arte do século V, mas como exemplos anteriores são raros, atestam um grande
movimento civilizatório para se construir tantos e tão grandes Budas. Os budas em baixo-
relevo dessas cavernas, de Yunkang e Lungmen, são massivos e cheios de dignidade.

Nesse caminho da arte budista, Buda ganhou os traços da etnia amarela de uma forma tão
bem sucedida que se tornou um protótipo universal a imagem budista de um monge asiático
meditando como arquétipo da serenidade.

A arte budista contemporânea tem se vulgarizado numa arte decorativa como jardins de pedra
e cabeças de Buda, em busca de uma atmosfera espiritual e exótica não completamente
desconectada de seus princípios, ainda sim evocando sua simplicidade e a prática da
meditação, e assim, pelos seus exemplos representativos, o Budismo continua a sua difusão
completamente despretensiosa, silenciosa e perene.

A Samsara

Para o Budismo, até os deuses buscam a iluminação. Eles têm que renascer no estado humano
em incontáveis reencarnações e acumular incontáveis méritos de compaixão para que enfim,
numa última encarnação como humano, atinjam a sabedoria absoluta e perfeita e escapem
(Nirvana) da Roda da Vida, essa presa nas garras de Yama, o demônio da morte da mitologia
indiana. A Roda da Vida (bhavachakra) foi criada pela extinta escola Sarvastivada,
precursora do mahayanismo. Assim como muitas pinturas e esculturas, foi um dos meios de
se difundir os ensinamentos. Ela representa simbolicamente a impermanência dos doze elos
da existência interdependente, dos seis mundos da existência cíclica e dos venenos da mente.

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Como um todo, a Roda da Vida é mais conhecida como Samsara. Aparentemente, o conceito
de renascimento está para a mudança de mundo, no budismo, transmigração, e o de
reencarnação, para as várias vidas dentro de um mundo material incluindo concepção e
gestação. Ainda os conceitos se confundem se considerarmos os seis mundos e o
renascimento na Terra Pura. Todos os mundos dentro da Roda da Vida são materiais, não
necessariamente visíveis da dimensão humana. O conceito de “mundo”, assim como de eras,
baseiam-se na fantástica mitologia hindu sobre a existência do universo. Mundos podem
realmente ser estados do ser, outros planetas ou outras dimensões, mas nunca ignorando o
conceito de unicidade. Há a questão se um ser humano pode renascer como animal ou ao
contrário. Renascer sim, reencarnar não. Se a base da questão é a matéria, estes conceitos não
podem ser confundidos com a materialização e a manifestação de deuses, iogues e médiuns
com essa capacidade específica de manipulação da matéria.

Em torno dos seis mundos há os doze elos da Existência Condicionada. O condicionamento é


uma das chaves para se entender o processo de ilusão. A consciência do processo sensorial
que constrói a realidade se baseia n’As três características da existência: temporalidade,
desprendimento e insatisfação. A meditação mais simples pode partir do enfrentamento dessas
três características, sentado em reclusão ou na reta concepção dos acontecimentos do dia,
enfatizando uma correta atenção no presente.

Conceito de Vazio (shunyata)

As coisas não têm uma natureza independente, são todas interligadas casualmente e todas ao
mesmo tempo participam da mesma natureza do “vazio”. A existência do universo é um
fenômeno do vazio. O ego é vazio. O vazio da existência pode ser representado tocando um
sino e percebendo a sua evanescência. Para o Budismo, estamos todos “dormindo”, e daí o
paradoxo “despertar” para a compreensão absoluta da realidade como um sonho, ou pesadelo
da ilusão primária, a personalidade, tão manipulável que se torna um foco de interesse da
psicologia comportamental e atrações de hipnotismo. Entretanto, é leviano concluir que o
budista nega a realidade e almeja a morte. É do vazio que surgem todas as coisas, mas apenas
são projeções mentais. A realidade não é uma ilusão, é como uma ilusão, e no budismo e em
português, sendo chamado de delusão. Se a mente está distraída e não conhece o seu potencial
de gerar realidades, essas a seduzem como existências separadas da mente do observador, e

91
pelas sensações instáveis de prazer e dor, criam-se tendências psíquicas difíceis
(condicionamentos) de serem quebradas, pois elas se sedimentam nas reações mais sutis do
corpo que chamamos de mente. Como essas realidades são instáveis, a mente nunca se
satisfaz, deseja mais, e o desejo causa dor e sofrimento. Essas são as Quatro Nobres
Verdades: a vida humana é dor; a dor é causada pelo desejo; o desejo é gerado pela
personalidade. Portanto, a dor só pode ser eliminada pela extinção da personalidade. Esta
verdade é mais um processo de cura do que de salvação. Mas nem a verdade nem acura
podem ser impostos. A pessoa precisa saber que está num estado “não desperto” e se ela quer
uma cura. Não significa se auto-afirmar “doente” nem viver sem desejos nem se
automortificar, como alguns exemplos vivos na Índia usados pelos críticos do Budismo e
julgado como niilismo. Para Buda, insensatez é ignorância. Significa chegar à sensatez de que
as condições da vida humana são extremamente limitadas e frágeis, física e psiquicamente,
com altíssima probabilidade de sofrimento, por melhores que sejam as condições de conforto.
A utilização dos termos “personalidade” ou “ego” vêm, claro, do desenvolvimento da
psicologia e da psicanálise, o que mais próximo traduz o conceito de mamata, diferente de
uma consciência superior, do “não-eu” (anatta), malha do cosmos, o próprio Dharma, o Eu
Superior, a Consciência Crística ou Cósmica, transcendente. Isto é do Vedanta (“a meta de
todo conhecimento”) explicada nos Upanishads. O mamata, na prática Zen, é representado
como um touro marruá a ser domesticado, mas nunca morto e, adiante, esquecido. O nirvana,
portanto, deve ser entendido como extinção da personalidade para um estado além de
qualquer definição condicionante e efêmera, um tathagata. Mais uma vez, Buda se refere aos
Vedas ao abordar a liberação (moksha) da Samsara pela filosofia (jñana) e pela sabedoria
(vidya), mas o Budismo nasce no momento em que ele ensina outros métodos, opostos à
mortificação. Se a religião tem um papel de dar sentido à vida, o Budismo o tem bem claro,
“tornar-se consciente”, inclusive livre de qualquer religião, mas sem negar a sabedoria de
todas elas. Uma vez desperto, ganha-se a compreensão do destino enquanto “caminho
percorrido” ou “experiências vividas” para se chegar a graus maiores de consciência.
Portanto, mais uma vez, o despertar não é apenas o resultado da quantidade de experiências,
tecidas pela complexidade de forças do destino (Samsara, Karma e Dhrama), de uma única
encarnação.

92
Soteriologia

O único modo de encaixar o conceito de salvação dentro do Budismo é a crença no Paraíso


Budista. Este é chamado de Terra Pura e foi muito representado em pinturas e paisagismo dos
templos budistas. Suas características são de imensas riquezas e belezas naturais e espirituais.
Na época em esta crença ascendeu, a decadência de um Budismo dominado pela aristocracia,
que teria essa exclusividade de ir para lá após a morte, levou ao desenvolvimento de seitas
que pregavam a salvação apenas acreditando em Buda Amida, Buda de uma era anterior a
nossa. É o Amidismo (reavivamento da crença na Terra Pura, Jōdo). A história da crença em
Amida e sua Terra Pura têm origens no noroeste da Índia, entre o Irã e Índia numa época
anterior a Buda. Segundo o sutra Maha-ratnakuta, Buda teria pedido a seu pai e a 60.000
pessoas do clã Shakya que tivessem a aspiração de nascer na Terra Pura. Na montanha do
Abutre Sagrado, Buda discursa sobre os votos de Amida para trabalhar e meditar pela
salvação de todos os seres por incontáveis anos. O taoísta chinês Tan-luan (Donran, 476-542),
convertido ao budismo em 530, desenvolveu a escola da Terra Pura com uma tradição
distinta. Ele enfatizava a prática da “recitação de Buda” (jap. nenbutsu), isto é, a recitação do
nome de Amida. A prece original era “tomo refúgio em Buda Amida” (sânsc., Namo
Amitabhaya Buddhaya). Posteriormente, em 847, o monge japonês Ennin (Jikaku Daishi,
793-846), introduziu a prática da recitação do nome de Amida, que se tornou popular nas
escolas Tendai e Shingon. A crença em Amida e sua Terra Pura podem ser traçadas no
passado, na época das Seis Dinastias da China (317-589). Foi fundada na China em 402 pelo
monge Hui-yüan (334-416), mas o culto a Amida se originou no noroeste da Índia. No Japão,
as escolas Jōdo-shū (Escola da Terra Pura) e Jōdoshin-shū (Nova Escola da Terra Pura) foram
fundadas, respectivamente, pelos monges Hōnen (1133-1212) e seu discípulo Shinran (1173-
1262). Ambas ensinavam que qualquer pessoa poderia renascer na Terra Pura apenas
evocando o nome de Amida com devoção. Isto é autossalvação.

Neste paraíso, criado pela força espiritual de Buda Amida, o crente pode renascer na lagoa do
paraíso dentro de uma flor de lótus. O nascimento na Terra Pura é espontâneo, ou seja, sem a
necessidade de gestação. Por estar fora da “existência cíclica” (Samsara), os seres poderiam
permanecer lá até atingir o despertar, sem o perigo de regredir a um estado anterior.
Dependendo do seu grau de esclarecimento (nove níveis), a flor se abre e o crente passa a
desfrutar deste mundo onde não há obstáculos para o Despertar, onde Amida e seus auxiliares
estão sempre pregando e orientando, onde tudo é ornado de indescritíveis belezas. O tempo,
no Budismo, segue a contagem de tempo hinduísta, de imensas eras aparentemente eternas

93
como milhões de eras. Os infernos são inúmeros e suas representações superam qualquer
tragédia ou sofrimento das pinturas do inferno cristão, mas ninguém fica nos infernos budistas
para sempre, não há uma condenação eterna e irrevogável. Não é um purgatório, mas há uma
espécie de julgamento. A mencionada flor de lótus assim foi simbolizada como um
casulo/botão de prática e purificação até que o crente floresça no mundo, livre de qualquer
impureza e corrupção que a sociedade mundana cultiva em suas mentes. Já que não há como
escapar da Samsara, renascer na Terra Pura significa continuar todo aprendizado necessário
lá, aliviado do peso do processo carmático.

Na morte, o budista geralmente é cremado depois da recitação de mantras que agem sobre o
processo de desencarne e renascimento. No Brasil, as orações realizadas para os falecidos
pelos imigrantes japoneses foram sendo chamas de missas de sete e quarenta e nove dias.
Outras ainda podem ser realizadas. O culto aos antepassados faz parte da cultura japonesa
desde sua pré-história e relacionada aos milhões de deuses a na necessidade de manter a paz
dos falecidos. A chegada do budismo com sua teologia milenar não sufocou esta cultura, mas
trouxe uma profunda e marcante reflexão sobre os estados infernais dos espíritos
“despreparados” pelos novos ensinamentos. A forma resultante com o sincretismo budista no
Japão é o Obon, ritual aos antepassados.

O tantrismo do vajrayana é caracterizado pelos seus ensinamentos ocultos, e portanto se


restringe a poucos discípulos preparados que os recebem secreta e oralmente. Embora não
menos oculto pela divulgação, temos como exemplo O Livro Tibetano dos Mortos (Bardo
Thödol, “Libertar-se após a morte, ouvindo”). Ele foi traduzido pelo professor Lama Kazi
Dawa-Samdup (1868-1922) e compilado e publicado no Ocidente pelo antropólogo teosófico
Dr. Walter Yeeling Evans-Wentz (1878-1965) em 1927. É um livro de orientação para que o
recém-falecido não se desespere com o desencarne, mantenha sua atenção diante da nova
dimensão e encontre seu caminho enquanto ele se encontra no Bardo por 49 dias simbólicos.
Tal preocupação com a consciência não deve ser diferente da do encarnado pelos
ensinamentos. Nos seis estados intermediários ou de transição chamados Bardo, a força do
pensamento pode gerar grande confusão mental. Orientando-a, com a leitura do livro em voz
alta, de como se comportar, a alma não fica perdida e encontra um novo renascimento. Assim
ele fica o inverso da escatologia cristã, visto que prepara não só “morto” para reencarnar
como também o tempo/espaço dessa para melhor evolução. Embora a origem do livro seja
desconhecida, as orientações para lidar com as visões após a morte física estão baseadas na
cultura tibetana, donde provavelmente Jung, que o estudou avidamente e prefaciou uma das

94
edições, desenvolveu seu conceito de arquétipos (O Homem e seus símbolos), neste caso,
sobretudo as expectativas humanas universais em relação à morte. O Budismo Tibetano
também se tem popularizado no Brasil com a enorme presença de inúmeros centros das
tradicionais escolas do vajrayana.

Considerações finais

Acredito que Buda, como Cristo, ensinou coisas de forma muito simples e acessível, pois sem
dúvida essa foi a intenção destes sábios que sequer escreveram qualquer coisa. Porém, a
quantidade de sutras supõe que Buda tenha falado 24 hs sem parar durante 40 anos. É místico
pensar que isso pode ter acontecido mesmo em silêncio ou dormindo, e daí as possibilidades
de especulação religiosa. Não há nenhum estudo que possa resumir essa quantidade de
informação, que por ser imensa, pressupõe uma complicação mais baseada nas suas
interpretações. Nesse sentido, o Budismo está entre as coisas mais complicadas do mundo.
Portanto, o modo como aqui eu apresento os fatos seria para orientar qualquer estudo sobre o
Budismo, com essas considerações básicas acumuladas em diversas leituras e repensadas no
sentido de serem acessíveis ou, ao menos, intrigantes para outras discussões. Como um
amante de Buda, reservo-me um espaço para dizer que os ensinamentos continuam simples ou
tão puros como nasceram, e é necessário um esforço menos intelectual para compreendê-los,
senão, decididamente, será um esforço incompleto se o pesquisador não for apto ao exercício
da meditação. E não diria isso se a meditação não fosse cada vez mais cientificamente
pesquisada e aprovada como uma das necessidades humanas mais essenciais e esquecidas. O
que nos faz esquecer isso?

Referências

CHAMAS, Fernando Carlos. A Escultura Budista Japonesa. A Arte da Iluminação, Tomos I e


II. Orientação da Profa. Dra. Madalena Hashimoto Cordaro. Dissertação de Mestrado no
Programa em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006.

COOMARASWAMY, Ananda Kentish e Irmã Nivedita. Mitos hindus e budistas. São Paulo:
Landy, 2002.

95
GANERI, Anita. O que sabemos sobre o Budismo? Trad. Helena Gomes Klimes. São Paulo:
Callis, 1999.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião Oriental. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1963.

KHARISHNANDA, Yogi. O Evangelho de Buda. Trad. Cinira Riedel de Figueiredo. São


Paulo: Pensamento, 1988.

MASON, Penelope. History of Japanese Art. New York: Harry N. Abrams, inc. Publishers,
1993.

PEACOK, John. O livro tibetano da vida, da morte e do renascimento: um guia ilustrado da


sabedoria tibetana. São Paulo: Pensamento, 2005.

SUZUKI, Daisetsu Teitaro. Zen-Budismo e Psicanálise. São Paulo: Fromm e Martino, Editora
Cultrix, 1960.

SUZUKI, Takeshi. Budismo, do Primitivo ao Japonês. São Paulo: Editora do Escritor


(Coleção Ensaio 18), 1942.

USARSKI, Frank. O Budismo e as Outras. São Paulo: Idéias & Letras, 2009.

YOSHINORI, Takeuchi, org. A espiritualidade budista. Volumes I e II. São Paulo:


Perspectiva, 2006.

ZIMMER, Heinrich Robert. Filosofias da Índia. Compilado por Joseph Campbell. São Paulo:
Palas Athena, 1986.

96
97
MC10 – A Fé Bahá’í: incompreendida e
perseguida

Coordenadora

Cristina Angelini Melchior


Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP.

Resumo

A Fé Bahá’í é um sistema religioso que nasceu no Irã do século XIX. De acordo com dados
divulgados pela Comunidade Internacional Bahá’í, existem mais de 7 milhões de adeptos
representados em 178 países e 46 territórios do mundo, com seus textos traduzidos para mais
de 800 idiomas. No Brasil, o número de Bahá’ís chega a 57 mil residentes em
aproximadamente 1.215 cidades e municípios em todas as regiões. O objetivo é delinear os
fundamentos desta que é hoje a quarta religião mundial em número de adeptos, e sua origem
dentro do Islã Xiita. Relataremos os desafios que seus adeptos enfrentam tanto em relação à
perseguição por eles sofrida no Irã e as razões para essa perseguição, além dos desafios da
proposição de ser uma religião mundial.

98
A Fé Bahá’í: incompreendida e perseguida

Cristina Angelini Melchior1

Introdução

Este texto pretende apresentar a nova face do discurso religioso proposta pela Fé Bahá’í
através da interpretação da linguagem simbólica realizada por Bahá’u’lláh, seu profeta-
fundador.

A partir do conceito de Revelação Progressiva, Bahá’u’lláh afirma que, como parte do plano
de Deus para a humanidade, sucessivos Manifestantes são enviados para revelar a religião de
Deus. Todo o ensinamento trazido por cada um desses Manifestantes representa um estágio na
evolução dessa religião, e cada revelação estaria preparando o caminho para a seguinte.

Sendo Bahá’u’lláh um pós-muçulmano que reconhece a importância e a igualdade entre todos


os Manifestantes de Deus, uma das questões com a qual ele se depara é o fato do Islã
considerar Muhammad o Selo dos Profetas, negando a possibilidade de futuras revelações
divinas e assegurando o Alcorão como a última e a mais sagrada lei de Deus.

A partir da interpretação inter-escritural da simbologia das escrituras sagradas, Bahá’u’lláh


não só reafirma essa característica do profeta Muhammad, como a estende aos outros
Manifestantes de Deus.

Breve histórico da Fé Bahá’í

A Fé Bahá’í e sua precursora, a Fé Babí, nasceram no Irã na segunda metade do século XIX.
O Irã faz parte do ramo minoritário do Islã adepto do Xiismo dos Doze Imames que nasceu a
partir da disputa de poder após a morte de Muhammad, quando Ali (656-661 d.C.), sobrinho e
genro do profeta, reivindicou para si e para seus herdeiros a liderança da umm2 a com base no
princípio da sucessão pelos laços de parentesco com Muhammad. Após a morte do Profeta,
uma assembléia com os seguidores do Profeta escolheu Abu Bakr como líder da comunidade

1
Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP. Contato: cristinamelchior@uol.com.br.
2
Umma é um termo árabe que exprime a idéia de nação, comunidade.

99
islâmica, o Califa3. O terceiro califa, Uthman ibn Affan (644-656 d.C.) foi assassinado e
sucedido por Ali. A família Umayyad, à qual pertencia o califa Uthman, nunca se conformou
com o califado de Ali e, após um período de revolta que culminou com seu assassinato
enquanto rezava em uma mesquita, iniciou-se a dinastia dos Umayyad.

O princípio das disputas pela sucessão nasceu com o que ficou conhecido mais tarde como o
partido de Ali, shi’at Ali, dando início à chamada grande discórdia. Os Xiitas (derivado de
shi’at) não reconheceram, nem reconhecem até hoje, os califas eleitos pela assembléia de
seguidores de Muhammad logo após sua morte, e consideraram que, após a morte de Ali, foi
seu filho Hasan (661-669 d.C) quem se tornou o segundo Imame (Líder Espiritual). Após a
morte de Hasan, Husayn (669-680 d.C.), o segundo filho de Ali, ficou conhecido como o
terceiro Imame.

A questão da sucessão de Muhammad, marcada pela derrota de Husayn que defendia os ideais
da shi’a, é o principal fator da divisão do Islã em duas facções que tomaram rumos diversos: o
Islã Xiita e o Islã Sunita. Xiitas e Sunitas discordaram não apenas sobre quem seria o sucessor
do Profeta, mas também sobre a natureza do papel desse sucessor. Para os Xiitas, Ali deveria
ter ocupado não apenas a posição de líder temporal (califa) da umma, mas também a de líder
espiritual (Imame), como legítimo sucessor do Profeta e guardião da verdade última encerrada
na Revelação.

O décimo segundo e último Imame designado, no ano de 873 d.C. teria se retirado para um
esconderijo para fugir de seus inimigos que pretendiam assassiná-lo pela disputa de poder.
Desta forma, ele teria desaparecido, entrando em uma fase de ocultamento (não é mais visível
aos olhos dos seres humanos) da qual por fim sairá para retornar como o Salvador-Juiz da
humanidade inteira.

A crença nos Doze Imames e no iminente retorno do último que está oculto, designa o Xiismo
dos Doze Imames. Outros movimentos Xiitas como os ismaelitas, os zaiditas e os fatimidas,
surgiram como dissidências reivindicando o Imamato, uma vez que divergiam entre si tanto
sobre a linha de sucessão de Muhammad quanto em relação ao papel do Imame. Nossa
abordagem restringe-se ao Xiismo dos Doze Imames, do qual se originaram tanto os
precursores quanto o fundador da Fé Bahá’í.

3
Literalmente, “sucessor” ou “vice-regente”. O califa surgiu na comunidade muçulmana após a morte do Profeta
Muhammad em 632 A.C., inicialmente com a função de assegurar a segurança e o bem-estar da umma, assegurar
a aplicação apropriada da Shariah e supervisionar a administração e a governança do território sob seu domínio.

100
É praticamente consenso entre os seguidores dos Doze Imames que o Décimo e o Décimo
Primeiro Imames, em função da hostilidade de seus opositores, viveram ocultos e raramente
mostravam-se em público. Esse período foi chamado de Pequena Ocultação. O contato com
os seguidores era feito através de agentes responsáveis por comunicar as mensagens dos
Imames e coletar as verbas (Zakat) ofertadas. Quatro foram os agentes do Imame Oculto, cada
um deles chamado de Báb (Porta, em árabe). Durante o período de vigência do Décimo
Segundo Imame morre o quarto Báb. A partir de então, inicia para os Xiitas o período
conhecido como Grande Ocultação, o período de tempo quando não existe na terra nenhum
agente do Imame Oculto. Desde então o Décimo Segundo Imame veio a ser identificado com
o Mahdi4 ou Qa’im.

O retorno do Imame Oculto está previsto para o período imediatamente anterior ao Dia do
Juízo Final, quando então retornará como o Mahdi, o Salvador, liderando as forças da justiça
contra as forças do mal, em uma batalha apocalíptica na qual os inimigos do Imame serão
derrotados. O início do século XIX foi um período de expectativa messiânica para o Islã Xiita.
A aproximação do ano de 1844 d.C. trazia a expectativa do retorno do Imame Oculto. Isto
porque aquele ano marcava o milésimo aniversário do desaparecimento do Duodécimo Imame
e o começo do período de Ocultação.

Foi exatamente no ano de 1844 que o Xiita Siyyid Ali-Muhammad não só afirmou ser o Báb
como também o próprio Qa’im. Entre vários aspectos de sua missão, como anunciar o fim da
Shariah5 islâmica e iniciar uma nova Shariah, profetizou o aparecimento de outra figura
messiânica que viria depois dele, ao qual ele se referia como “Aquele que Deus tornará
Manifesto”. Segundo a doutrina do Islã, Muhammad é considerado o Selo dos Profetas, o
portador da revelação final de Deus para a humanidade até o Dia do Julgamento. Os Xiitas
aguardavam o aparecimento do Imame com a certeza de que ele reafirmaria as palavras do
Alcorão. Portanto, as pretensões do Báb ao anunciar um novo código de leis proveniente de
outra fonte que não o Alcorão foi considerado ultrajante, deflagrando um período de
perseguição tanto ao Báb como a seus seguidores.

O movimento iniciado pelo Báb ficou conhecido como Fé Babí e, apesar do curto período de
seu ministério, pois ele foi executado em 1850 a mando do Xá do Irã, muitos foram os que
aderiram a seus ensinamentos. Entre eles, destaca-se Mirzá Husayn Ali Nuri (1817-1892),

4
Mahdi - O Divinamente Guiado.
5
Conjunto de leis sagradas do Islã.

101
também ele um adepto do Xiismo que, aos vinte anos tornou-se um fervoroso discípulo do
Báb. Em 1852, Mirzá Husayn e outros tantos seguidores Babís foram acusados de tentar
assassinar o Xá. Aqueles Babís que não foram executados foram aprisionados na prisão em
Teerã conhecida como Síyáh-Chál (Cova Negra). Este foi o destino de Mirzá Husayn, que
passou a ser conhecido como Bahá’u’lláh6. Mais tarde, Bahá’u’lláh escreveu que nesse
período os detalhes de sua missão foram anunciados por um espírito divino na forma de uma
Donzela Mística. No entanto, esse segredo messiânico só foi revelado a seus seguidores dez
anos depois.

Após quatro meses de prisão Bahá’u’lláh foi solto, seus bens e propriedades foram
confiscados e, junto com sua família e alguns amigos próximos, iniciou seu período de exílio,
que perduraria durante toda sua vida. Bahá’u’lláh partiu para Bagdá, atual Iraque, onde após
dez anos de permanência, em 1862 declarou-se como “o prometido de todos os profetas do
passado”, aquele que o Báb havia prenunciado como “Aquele a quem Deus tornará
Manifesto”. Logo depois foi exilado para Constantinopla, Adrianópolis e, finalmente, Acre,
Israel, onde permaneceu até sua morte em 1892.

Durante todo o período de seu ministério, a produção escrita de Bahá’u’lláh foi incessante,
com o registro de todos os princípios do que denominou como Fé Bahá’í, inclusive um livro
de leis intitulado O Livro Sacratíssimo e um testamento no qual registra que seu filho mais
velho, Abdul-Bahá, deveria ser seu sucessor após sua morte.

Fundamentos da Fé Bahá’í

De acordo com Bahá’u’lláh, Deus prometeu que enviaria uma sucessão de Manifestantes para
guiar e instruir a humanidade. Como a sucessão de Manifestantes não teve início, também não
terá fim. A revelação Bahá’í não reivindica ser o estágio final da evolução espiritual humana
sob a orientação de Deus. Segundo Bahá’u’lláh, Deus continuará a enviar seus Mensageiros
até “o fim que não tem fim”7 e os escritos Bahá’ís garantem que, ao expirarem mil anos

6
“A Glória de Deus”.
7
Bahá’u’lláh, citado em S. EFFENDI, A Ordem Mundial de Bahá’u’lláh, p.158.

102
completos8, outro Manifestante surgirá para levar adiante o processo evolucionário da
humanidade.

O sistema religioso elaborado por Bahá’u’lláh baseia-se em três conceitos fundamentais: o


Princípio da Unidade, Manifestante de Deus e Revelação Progressiva.

O Princípio da Unidade pressupõe, em primeiro lugar, a existência de um único Deus,


onipotente, onipresente e onisciente. Em segundo lugar, os Bahá’ís rejeitam qualquer tipo de
superioridade baseada em raça, etnia, nacionalidade ou gênero; é o conceito de unidade na
diversidade, no lugar da uniformidade, pois não suprime as diferenças, ao contrário, valoriza-
as. O princípio da unidade da humanidade significa que a raça humana, a mais elevada forma
de vida criada por Deus, pois é a única que tem consciência da Sua existência, é uma só
espécie unificada. Por último, o princípio da unidade da religião, que depende dos outros dois
conceitos fundamentais: Manifestante de Deus e Revelação Progressiva.

Os Manifestantes de Deus são enviados divinos para intervir na história da humanidade, de


tempos em tempos, como porta-vozes responsáveis por compartilhar com a humanidade os
desígnios de Deus através da religião revelada. Todos esses Mensageiros provêm de Deus e
todos os seus ensinamentos são provenientes de uma única fonte, sendo parte de um único
plano divino comandado por Deus para a humanidade. Desta forma, Bahá’u’lláh considera
que só existe uma religião, a religião de Deus, em contínua evolução e, cada sistema religioso
estabelecido por cada um dos Manifestantes representa um estágio na evolução dessa religião.
Esse processo é chamado de Revelação Progressiva, no qual cada revelação estaria
preparando o caminho para a seguinte. Isto implica que só se pode compreender os
ensinamentos de um Manifestante de Deus uma vez que se reconheça a importância e
magnitude de todos os Manifestantes anteriores e suas mensagens. A Revelação Progressiva
age como a força motriz do progresso humano, sendo que a Manifestação de Bahá’u’lláh é a
mais recente etapa dessa revelação, mas não a última.

Esses Mensageiros, cuja influência de seus ensinamentos espirituais capacita o progresso


coletivo da humanidade, são os principais educadores e fundadores das grandes religiões
mundiais, desde Abraão, Moisés, Krishna, Buda, Zoroastro, Jesus, Muhammad, o Báb até
Bahá’u’lláh. Todos os Manifestantes são seres humanos, possuem uma alma racional, são
Manifestações divinas, têm a mesma natureza metafísica e a mesma grandeza espiritual. No
8
“Antes de expirado um milênio completo, quem afirmar ser portador de uma Revelação direta de Deus será
seguramente um impostor mentiroso” (BAHÁ´U´LLÁH, O Livro Sacratíssimo, p. 27).

103
entanto, são a natureza de Deus, não a sua essência. Todos são expressão dos atributos e da
perfeição de Deus e partilham de absoluta igualdade entre Eles.

A visão pós-islâmica do Selo dos Profetas

Com base nesses princípios foi possível para Bahá’u’lláh propor uma doutrina pós-islâmica e
encarar o impasse da finalidade revelatória. O Islã é fundamentado na convicção de que
Muhammad é o último Mensageiro de Deus, O Selo dos Profetas9. Nenhuma outra doutrina é
mais primordial no Islã do que a doutrina da finalidade revelatória, que nega a possibilidade
de futuras revelações de Deus, assegurando o Alcorão como a última e a mais sagrada lei de
Deus.

Bahá’u’lláh, contrariando a maioria das interpretações muçulmanas, não considera que o texto
bíblico esteja corrompido. Ele considera que corrupto é o clero que interpreta os textos
sagrados erroneamente (inclusive o Alcorão) e, portanto, ele se utiliza a todo o momento das
escrituras sagradas para explicar, exemplificar e comprovar seus propósitos proféticos. Uma
vez que ele também considera que todas as escrituras sagradas são provenientes de uma única
fonte, que é Deus, faz todo o sentido utilizar-se de uma para explicar o conteúdo de outra. A
prática inter-escritural, entre textos sagrados de diferentes tradições religiosas, é recorrente em
seus escritos.

Bahá’u’lláh considera que os textos sagrados são erroneamente interpretados por serem
interpretados literalmente. Os textos sagrados são construídos a partir de símbolos e
metáforas, sendo que o mundo natural é apenas uma metáfora do mundo espiritual. Para ele,
buscar um significado intrínseco ao texto é inútil, uma vez que o verdadeiro significado que
deve ser procurado, para não se perverter as escrituras, é o espiritual, que, por sua vez, só
pode ser compreendido a partir da interpretação da simbologia implícita no texto.

É desta forma que Bahá’u’lláh faz a interpretação inter-escritural da Sura 33:40 do Alcorão:
“Em verdade Muhammad não é o pai de nenhum de vossos homens, mas sim o Mensageiro

9
Referência ao Alcorão 33:40: “Em verdade Muhammad não é o pai de nenhum de vossos homens, mas sim o
Mensageiro de Allah e o derradeiro dos profetas“. No Livro da Certeza, escrito por Bahá’u’lláh, as palavras
desse versículo foram transcritas diferentemente: “Maomé é o Apóstolo de Deus e o Selo dos Profetas”. Apesar
da tradução do Alcorão utilizado neste trabalho não utilizar a palavra “Selo”, no índice remissivo a Sura 33:40 é
referida como “selo dos profetas”.

104
de Allah e o derradeiro dos profetas“. Para o Islã, ser o derradeiro dos profetas significa que
não poderia haver nenhum outro profeta após Muhammad, o que lhe atribui o título de Selo
dos Profetas. Ciente de que este princípio é o coração da teologia muçulmana e jamais poderia
ser revogado, Bahá’u’lláh recorre a uma tradição Ismaelita, a partir da qual Muhammad teria
afirmado “Eu sou Jesus”10, para relativizar a exclusividade reservada a Muhammad e
distribuí-la igualmente entre os outros Mensageiros de Deus.

Tanto de uma perspectiva islâmica quanto Bahá’í, a similaridade dos profetas é mais profunda
do que suas diferenças, independente da personalidade ou da era na qual cada Mensageiro
apareceu, ou o caráter de suas respectivas revelações. Partindo do princípio de que todos os
Manifestantes de Deus possuem a mesma grandeza espiritual e partilham de absoluta
igualdade entre eles, Bahá’u’lláh, utilizando-se da exegese inter-escritural, relativiza o
conceito de Selo dos Profetas, estendendo-o para além dos limites islâmicos.

Podemos chegar à conclusão sugerida por Bahá’u’lláh se efetuarmos as seguintes


equivalências: “Muhammad é Jesus. Muhammad é o Selo dos Profetas. Jesus é, portanto, o
Selo dos Profetas, mas não foi o último profeta. Logo, Muhammad também não foi o último
profeta “11. A lógica dessa afirmação está baseada nas características que Bahá’u’lláh atribui
aos Manifestantes de Deus e na afirmação de Muhammad: “Eu sou Jesus”.

Sob esta ótica, Bahá’u’lláh retoma o conceito de que se todos os profetas partilham a mesma
natureza deveriam também partilhar os mesmos atributos, inclusive o de Selo. Este argumento
permite que se conclua que Jesus é totalmente igual a Muhammad, uma vez que ambos são
considerados como Selo dos Profetas. O conceito de Selo como Último permanece intacto, no
entanto, Último passa a indicar autoridade ao invés de sucessão.

Considerações finais

Ao resolver a questão da finalidade revelatória, sem denegrir a importância do Profeta


muçulmano, Bahá’u’lláh confere o mesmo grau de autoridade e importância ao papel
espiritual desempenhado pelos fundadores das grandes religiões mundiais como parte do
plano maior estabelecido por Deus.

10
Citado em BAHÁ’U’LLÁH, O Livro da certeza, p.17. “A tradição “Eu sou Jesus” que Bahá’u’lláh cita é
atestada principalmente nos círculos ismaelitas” (C. BUCK, Symbol and Secret, p.208).
11
C.Buck, Symbol and Secret, passim.

105
Em relação à posição de igualdade entre todos os Manifestantes de Deus, Bahá’u’lláh faz a
seguinte observação:

e se todos proclamassem “Sou o Selo dos Profetas”, realmente só diriam a verdade, sem
qualquer sombra de dúvida. Pois eles todos não são mais que uma só pessoa, uma só alma,
um só espírito, um único ser, uma única revelação. Todos manifestam o “Princípio” e o
“Fim”, o “Primeiro” e o “Último”, o “Visível” e o “Oculto” – tudo o que se refere Àquele
Que é o mais íntimo Espírito dos Espíritos e a eterna Essência das Essências.12

Desta forma, não só Jesus, mas todos os Manifestantes de Deus poderiam ser proclamados
Selo dos Profetas, pelo simples fato de que a mensagem e os ensinamentos de cada um deles
gozam da mesma autoridade dentro do plano de Deus para a humanidade.

Com toda certeza, esta inovação introduzida por Bahá’u’lláh foi um dos principais motivos
pelos quais ele foi perseguido, durante toda sua vida, pelo clero Xiita; e seus seguidores, ainda
hoje, são acusados de apóstatas pelos líderes religiosos iranianos, sendo perseguidos e jurados
de morte.

Referências

BAHÁ’U’LLÁH. Kitáb-i-Íqán, O Livro da Certeza. Rio de Janeiro: Editora Bahá’í do Brasil,


1977, 2ª ed.

BAHÁ’U’LLÁH. Kitáb-i-Aqdas, O Livro Sacratíssimo. Mogi Mirim: Editora Bahá’í do


Brasil, 1995, 1ª ed.

BUCK, Christopher. “Symbol and Secret: Qur'an Commentary in Baha'u'llah's Kitáb-i-Íqán”,


in: LEE, Anthony A. Studies in the Babi and Baha'i Religions Volume 7. Los Angeles:
Kalimat Press, 2004.

EFFENDI, Shoghi. A Ordem Mundial de Bahá’u’lláh. Mogi Mirim: Editora Bahá’í do Brasil,
2003.

EL HAYEK, Samir (trad.). O Significado dos versículos do Alcorão Sagrado. São Paulo:
MarsaM Editora Jornalística, 2004.

12
BAHÁ’U’LLÁH, O Livro da Certeza, p. 111.

106
107
Grupos de Trabalho

108
GT1 – Bruxaria à brasileira: a presença da
Wicca no Brasil

Coordenadores

Celso Luiz Terzetti Filho Janluis Duarte de Oliveira


Doutorando em Ciências da Religião pela Doutorando e mestre em História pela
PUC /SP. UnB.

Resumo

Desde sua formação na Inglaterra na década de 40 até hoje a Wicca, religião mais conhecida
dentro da miríade de religiosidades e espiritualidades presentes no moderno (neo) Paganismo,
vem cada vez mais se fazendo presente em solo brasileiro. Uma religião legitimamente
britânica que se espalhou por muitos países em um pouco mais de meio século, como afirma
o historiador Ronald Hutton. A Wicca é uma religião em constante mudança, que dialoga de
uma forma geral não só com a modernidade do qual é fruto, mas com a sociedade específica
que a acolheu. Nos Estados Unidos ganhou seus contornos de maior ênfase: a valorização do
feminino e o culto a natureza, tendo sido descrita como “Religião da Natureza”. No Brasil,
atualmente, a Wicca passa a ser mais estudada, tanto em seus aspectos históricos, de
permanência e dissidência dos adeptos, quanto em relação aos aspectos de diálogo com a
sociedade brasileira. Neste sentido este GT propõe reunir trabalhos que tratem sobre a Wicca,
sua história e seu desenvolvimento.

109
A construção da identidade masculina na Wicca

Welington Pinheiro1

Introdução

A Wicca é conhecida por ser uma religião com forte ênfase na construção de uma identidade
feminina afirmativa e crítica aos padrões estabelecidos. Em geral, segundo pesquisas
anteriores, como as realizadas por Andréa Osório (2004), as bruxas – como se auto-
denominam as praticantes – afirmam que há uma presença muito grande de mulheres e
homossexuais masculinos na religião, provavelmente por causa do modo como o feminino é
considerado, invertendo a histórica relação de poder entre gêneros da cultura judaico-cristã.
Essa consideração maior para com o feminino criaria um espaço de maior tolerância para
esses homossexuais. A própria pesquisadora, assim como também esta pesquisa, chegou
mesmo a constatar que a presença de mulheres nessa religião é massiva em relação a de
homens e mesmo entre estes, há de fato muitos homossexuais assumidos.

Tendo em vista tal ênfase no feminino, nesta pesquisa coloca-se a questão sobre o que levaria
homens que se dizem heterossexuais a se interessar pela religião. O que esperam dela e nela?
E como lidam com a construção de sua identidade, do lugar de seu gênero neste sistema de
valores que os retira preponderância?

A pesquisa vem se realizando através de entrevistas e observação de rituais de um grupo em


específico, o Coven Chuva Vernal, na cidade do Rio de Janeiro, durante os anos de 2012 e
2013. Foi também realizada uma análise de trajetória dos membros do grupo, de modo a
possibilitar compor um perfil norteador do seu modo de vivenciar a religião.

O que é Wicca

Segundo a definição da UWB (União Wicca do Brasil), uma associação que visa representar a
religião na esfera pública, “a Wicca é uma religião neopagã, mítica, politeísta, iniciática, de
culto dualista e orientação matrifocal”2.

1
Mestrando em Ciências Sociais (PPCIS) pela UERJ. Orientadora: Cecília Mariz. Contato:
welpinsil@yahoo.com.br.

110
A religião não possui uma estrutura clerical. No caso brasileiro, há associações como a
ABRAWICCA (Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Religião Wicca), a UWB (União
Wicca do Brasil) e a IBWB (Igreja de Bruxaria e Wicca do Brasil), de ação apenas
representativa frente à sociedade, com pouca ênfase no aspecto regulador das crenças.

Não há unidade de estilos, a religião se dividindo em várias denominações chamadas de


“tradições”. Estas denominações não combatem umas às outras, o que ocorre é um
reconhecimento e respeito mútuo, tal divisão sendo justificada pelo próprio caráter diverso da
experiência mágica e das particularidades de cada história individual. O nome “tradições” é
oriundo da tentativa de vinculação com um passado perdido que estaria sendo resgatado, mas
que na prática se aproxima mais do processo de invenção de tradições tal como identificado
por Hobsbawn e Ranger (1984), em “A Invenção das Tradições”.

Dado o caráter de sacralidade atribuído à natureza, os principais ritos e festivais estão ligados
aos ciclos naturais. Os 8 sabás estão ligados à roda das estações, enquanto os 13 esbás, aos
plenilúnios.

O bruxo wiccano pode ser um praticante solitário ou fazer parte de um coven – grupo de
bruxos com “afinidade mágica”. Por tradição, um coven não pode ter mais de 13 indivíduos,
número a partir do qual deve dar origem a outro grupo. Um conjunto de covens irmãos
compõe um groove.

Em virtude de sua característica contracultural, conforme identificaram Tuitéan e Daniels


(2006), a Wicca foi uma religião muito bem recebida por grupos de contestação ao status quo
nas décadas de 60 e 70, tais como o movimento hippie e o feminismo. Por ser uma religião
que tem a prática da magia como fundamento, ela foi desde sua primeira aparição, na década
de 50, com Gerald Gardner3, vista como algo avesso ao Cristianismo e por este considerada
diabólica.

2
Disponível em <http://uniaowiccadobrasil.org.br/definindo-a-wicca/a-wicca-e> Acesso em 6, ago, 2013.
3
Gerald Gardner foi um burocrata e folclorista amador inglês que escreveu o livro “Witchcraft Today”, em
1954, onde apresenta a Wicca ao mundo. Segundo ele, não estaria criando nada novo, mas apenas revelando um
conhecimento antigo que mantivera-se secreto através dos séculos para manter-se a salvo das perseguições
religiosas da Igreja. Segundo ele, teria sido iniciado na bruxaria e recebido “o conhecimento da arte” através de
um coven em New Forest, onde vivia com sua esposa.

111
O Mundo como Gênero

Uma característica inseparável da visão de mundo da Wicca é o caráter de gênero. Talvez


menos pela codificação realizada por Gardner do que pela influência do feminismo ao longo
de sua história, a Wicca fundamentou sua cosmogonia inseparável da questão de gênero.
Segundo material produzido pelo coven para ser usado nas aulas que ministram no seu
“Grupo de Estudos e Aspiração” (GEA) – um curso básico de Wicca para pessoas
interessadas em fazer parte do coven – o real é descrito como a interseção entre duas esferas
arquetípicas opostas e complementares – o Sagrado Feminino e o Sagrado Masculino.
Segundo Trilhadovento4, isto englobaria “todas as coisas que existem”, sejam elas concretas
ou abstratas, humanas ou divinas, evidentes ou sutis.

E na representação desses princípios fundamentais, ocorre uma vinculação de atributos a cada


lado. Segundo Andrea Osório (2004), com base na pesquisa que realizou entre bruxas na
cidade do Rio de Janeiro, nos anos de 1999 e 2000, “a Wicca atribui ao masculino os papéis
ativos, a guerra, a força, a luz, o selvagem. Ao feminino estão guardados os atributos da
passividade, da fragilidade, da loucura, da escuridão e da cultura” (2004, p. 159).

Representação semelhante da realidade é encontrada no Chuva Vernal, porém no tocante à


cultura percebe-se uma diferença sutil e que é bastante relevante levar em consideração, dada
a diferença de gênero dos grupos comparados. A ciência, a razão e o modelo de civilização
não-sustentável que é dominante no Ocidente são vistos como um desequilíbrio de forças
onde o masculino sufocou o feminino. A civilização não é necessariamente vista como um
algo sofisticado, como no grupo analisado por Osório, mas sim como uma construção
deficiente e que vive um estado doentio. Os atributos do Sagrado Feminino seriam os
elementos dos quais estaria carente o mundo moderno para superar a crise ecológica e
humana em que se encontra: amor, consideração pelo outro, dedicação à família,
espiritualidade, sensibilidade e ecologia.

O Chuva Vernal

O coven existe há 11 anos na cidade de São Gonçalo e adjacências, área a que denominam
“Território Tamoio”, embora hoje em dia estenda suas atividades também para a cidade do

4
Membro efetivo, 32, professor de artes, separado, pai de 1 filha, maior articulador das atividades do coven.

112
Rio de Janeiro. Contrariando a tendência mais difundida na Wicca, ou seja, de grupos com
forte presença feminina, o Chuva Vernal começou como uma iniciativa de 5 jovens, 4 rapazes
e 1 moça, todos universitários e de classe média baixa. Tais jovens se encontravam
inicialmente num grupo de estudos sobre “cultura celta” que organizaram informalmente no
campus da UERJ em São Gonçalo.

Ao longo dos anos, o grupo não se manteve o mesmo, mas a característica


predominantemente masculina permaneceu. Hoje o grupo é composto por: 4 membros
efetivos, sendo 3 homens e 1 mulher, esta sendo namorada de um dos homens; e 4
“aspirantes”, que são bruxos menos experientes que estão passando pelo chamado “período de
dedicação”, uma etapa de 1 ano e 1 dia, onde o bruxo aspirante ao coven será observado e
orientado por um membro mais antigo, que será seu “tutor”.

Nos rituais do grupo, todavia, não apenas o coven e os aspirantes participam, mas também
pessoas convidadas que são estimadas e tenham algum interesse pela bruxaria. Seriam
“amigos do coven”. O sabá de Beltane -, um festival relacionado com sexualidade e
fertilidade – realizado em novembro de 2012, chegou a reunir 16 pessoas, tendo sido
convidadas mais de 20.

Conversei com estas pessoas principalmente nos sabás, mas também mantive contato com
eles pela internet, através de redes sociais. Cheguei mesmo a marcar reuniões informais em
minha casa, onde alguns vieram. Estes contatos me permitiram traçar um perfil de dados
gerais sobre o grupo e os que estão de certo modo relacionados aos seus eventos. Considerei
15 indivíduos, dentre membros permanentes do coven, aspirantes e amigos. Destes, todos têm
nível superior ou são universitários; todos estão na classe média, com o predomínio de
profissões relacionadas ao nível superior; 8 homens, 7 mulheres, sendo o grupo principal,
predominantemente masculino; nenhuma pessoa confessamente homossexual, embora uma
das amigas do coven se diga bissexual; 8 desses indivíduos têm filhos; 7 são casados ou
mantêm uniões estáveis; todos adultos, o mais jovem com 19 anos e o mais velho com 41.
Todos moram em ambiente urbano, a grande maioria de Niterói e São Gonçalo, embora o
grupo mantenha um curso numa sala alugada na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de
Janeiro.

O grupo gosta de se mobilizar por questões políticas, principalmente no que diz respeito a
bandeiras como defesa da pluralidade, Estado laico, ecologia e direito das minorias. Não há,

113
no entanto, uma unidade no que diz respeito a assumir um partido ou uma filosofia política
como dominante para o coven. Pude ver desde membros que se declaram anarquistas com
forte simpatia por alas radicais, como o Black Block, até indivíduos com certa carga de
discursos reacionários, apesar disso conseguindo conviver em aparente harmonia.

O grupo é atuante em eventos públicos de diálogos interreligiosos como a “Caminhada Contra


a Intolerância Religiosa”, onde buscam representar o neopaganismo na luta por projeção
social e reconhecimento na esfera pública e também aparece em posições centrais em eventos
da comunidade neopagã do Rio de Janeiro, como: “O Dia do Orgulho Pagão” (DOP) e o
“Encontro Social Pagão” (ESP).

O Lugar do Homem na Wicca

Apesar de sua trajetória como um grupo composto principalmente por homens, o Chuva
Vernal segue a tendência matrifocal do discurso central da Wicca. Quando perguntei a
Guaraucária5, se no Chuva Vernal não havia esta centralidade da mulher, mas sim uma
estrutura mais igualitária devido à própria história do coven, ele me respondeu que mesmo
entre eles, a mulher é o elemento central. Utilizou expressões como “homem no coven tem
que baixar a bola” e “nós gostamos de mulher guerreira, mulher que grita na cara, sem medo
de dizer verdades necessárias”. Inquiri-lhe então se ao afirmar estas coisas não estaria
legitimando a mesma estrutura opressora de gênero, operando apenas uma inversão de lados
do que historicamente ocorrera em nossa cultura. Seria o processo definido por Figueira
(1987) como “modernização reativa”, onde se reproduz a dominação de um sexo sobre o
outro. Guaraucária, porém, respondeu-me com a justificativa histórica de que a mulher “vem
sendo oprimida em todos esses anos de dominação judaico-cristã e que, portanto ela é o
desfavorecido da história, sua opressão nunca seria considerável frente ao que seria o
patriarcado”.

Guaraucária foi estudante de ciências sociais6 e tem uma boa leitura acadêmica nas áreas de
seu interesse. Hoje, segundo como ele próprio afirma, “tornou-se o índio”, expressão que ele
usa para dizer que prefere uma visão de mundo não-acadêmica por considerar esta algo muito
engessado, que não dá conta das diversas nuances da realidade, coisa que outros sistemas
5
Membro efetivo do coven, solteiro, 39 anos, professor da rede pública de São Gonçalo.
6
Segundo ele, fez todas as disciplinas exigidas, só não entregou a monografia, assim não concluindo o nível
superior.

114
referenciais a que tomou contato ao longo da vida, lhe possibilitaram. Declara-se
heterossexual e não apresenta nenhum dos sinais folclóricos do homossexual masculino, nem
sequer deixa dúvidas de sua heterossexualidade entre aqueles que o conhecem. Tem 39 anos e
apesar de não haver constituído família, é uma pessoa com histórico de muitos
relacionamentos. Ele se define como uma pessoa emotiva, não gosta da postura séria e sisuda
típica da representação que faz do chefe de família brasileiro tradicional. Na sua idealização
do que deveria ser o homem aparecem elementos como: espontaneidade, sensibilidade,
emotividade, engajamento. O homem ideal é representado em seu imaginário como
espontâneo, aberto aos sentimentos, dado a uma luta apaixonada por construir um mundo
mais justo, um tanto hedonista por não gostar de se prender a rigores morais e sempre
considerado no aspecto jovem. Tal aspecto estaria presente até mesmo na sua “invocação do
Deus” (o Sagrado Masculino), que é visto como “o eternamente jovem”, o “ousado”, “caçador
e caça”7, “gargalhada da floresta” (ele usa a palavra “matreiro”). Há um vídeo na internet8
onde o mesmo praticante faz uma “invocação do deus” numa performance na Quinta da Boa
Vista onde as palavras são praticamente as mesmas, com algumas adições. Estes adjetivos
parecem compor o que seria uma representação do masculino para este praticante e onde se
percebe que os atributos mais valorizados estão sempre relacionados à etapa de juventude da
vida. Segundo Trilhadovento, tais atributos são caros para todo o coven, embora não sejam os
únicos que descrevem o Deus.

A subversão do patriarcado, para Guaraucária, não implica a construção de um matriarcado


nos mesmos termos, ou seja, da opressão de um sobre o outro. Ele parece bem consciente
disso. Em suas palavras, “a gente [os homens wiccanos] bebe, a gente brinca, a gente briga,
mas a gente cuida dos filhos”. Ao que me disse este praticante, a principal característica do
homem wiccano é que ele “não se sente dono da família, ele não quer dominar a família”.

Essa característica do homem wiccano já fora brevemente sugerida por Andréa Osório: “Os
homens que acompanharem as bruxas wiccanas, portanto, terão que ser homens pós-revolução
feminista” (OSÓRIO, 2004, p. 161). Quando perguntei a “Terra Molhada”9, sobre o que o
atraiu em sua religião, ele me revelou uma via menos politizada que a de Guaraucária.
Segundo ele, o “Chamado da Deusa” aconteceu na sua época de solteiro, no fim de sua
7
A expressão “caçador e caça” talvez seja um resquício de uma representação do masculino relacionada a um
elemento provedor.
8
Chuva Vernal – Mitodrama Caçada Selvagem. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=5Oi3TKuFA00>. Acesso em 8 ago. 2013.
9
Membro efetivo do Chuva Vernal, funcionário do Banco do Brasil e artista plástico, em união estável com uma
mulher há quase 10 anos e pai de um menino de 5.

115
adolescência. Ao que ele me disse, na época não era uma pessoa dada à religiosidade. Sua
mãe era protestante, seu pai não tinha religião e “nenhuma forma de espiritualidade”. Ele teve
acesso às religiões mais tradicionais do contexto brasileiro, notadamente o Cristianismo, mas
não conseguia ver nada de espiritual nelas. Conheceu a Wicca através de um amigo que por
sua vez conheceu através da internet e posteriormente de livros.

O papel da internet na difusão dessa religião não pode ser desconsiderado. Em todas as
trajetórias que analisei a grande maioria dos praticantes ganharam conhecimento sobre a
religião através da rede. E quanto mais se recua para os bruxos mais antigos, se percebe quase
sempre um indivíduo de classe média com domínio das ferramentas básicas da internet, leitor
fluente de inglês.

Este dado é relevante porque percebe-se que ele influenciou significativamente os rumos que
a religião tomou posteriormente no Brasil, à medida que compõe um elemento de classe.
Talvez em virtude de difundir-se entre classes com considerável nível de instrução, o
principal meio de difusão da bruxaria wiccana vem sendo livros escritos por praticantes mais
experientes e cujos anos de prática e capacidade de teorização e sistematização lhes confere
alguma autoridade, mas que nunca passa da ordem meramente intelectual, como um teólogo.

No entanto, só a partir da década de 90 passaram a existir livros traduzidos para o português,


o que significa que os primeiros wiccanos no Brasil eram pessoas que liam em inglês e tinham
acesso a material literário importado, seja na forma de livros ou mesmo pelo meio virtual.
Ora, considerando o contexto brasileiro dos anos 80 – época em que os praticantes mais
antigos e hoje mais influentes afirmam ter começado a estudar a religião – saber ler em inglês,
saber operar computador e ter interesse em importar livros eram ferramentas dominadas
principalmente por segmentos médios instruídos da sociedade. Estes indivíduos transmitiram
seu então recente sistema de crenças àqueles que lhe estavam mais próximos, que faziam
parte de seus círculos sociais mais imediatos. Ou então propagaram pela rede mundial de
computadores, o que seria acessado quase sempre por indivíduos de condições sociais
semelhantes ou até melhores. Não se pode perder de vista que a difusão dos computadores
pessoais e da internet no Brasil é um fenômeno muito recente, dos últimos 15 anos.

Argumento que este modo como se deu a difusão da religião foi fundamental para a
configuração de classe social mais presente nesta, a saber indivíduos de classe média, quase
sempre com elevado nível de instrução e com amplo uso cotidiano da informática. Este dado,

116
juntamente com a característica de pós-revolução feminista salientada por Osório, talvez
também ajude a compreender o tipo de homem que tomou contato com esta religião e o
quanto os círculos sociais freqüentados por este, influenciaram os principais conteúdos da
religião e o seu modo de difusão na sociedade brasileira. Max Weber (2009) já fazia esta
correlação entre o modo como a visão de mundo das camadas sociais responsáveis pela
difusão de uma religião influenciava os principais conteúdos da mesma e o modo como esta
se comporta.

Terra Molhada me explicou que quando conheceu a Wicca, os valores fundamentais daquela
religião não lhe eram novidade, mas que ele já era afeito àquela moral, adquirida
principalmente pelos livros e demais produções culturais que consumia – contracultura – bem
como os círculos sociais que freqüentava – Escola de Belas Artes da UFRJ. Quando tomou
contato com a Wicca o que aconteceu foi apenas “encontrar um caminho espiritual condizente
com o que ele era”. Desse modo, o que ocorreu com Terra Molhada foi um encontro com um
sistema de representações que sacralizava muitos dos seus pressupostos éticos, muitas
características de sua sensibilidade que não eram contempladas – ou talvez até marginalizadas
– pelas religiões dominantes no cenário brasileiro. A Wicca teria sido o único caminho
espiritual capaz de promover no seu caso um “encantamento do mundo”, pensando com as
categorias weberianas.

Usando a tipologia cunhada por Daniéle Hervieu-Léger (2008), o caso de Terra Molhada
parece, contudo atípico dentre a amostragem cujos dados se baseiam os argumentos dessa
pesquisa. Ele aproxima-se do tipo ideal do “convertido”, pois vivenciou uma mudança e
aderiu ao grupo de forma exclusiva. Era alguém que levava uma vida sem imersão em
nenhuma forma de religião, sem cultivo de nenhuma forma de espiritualidade, mas que em
determinado momento de sua vida, encontra uma religião e passa a limpo sua história pessoal,
recontando sua trajetória dessa vez a partir dos elementos oriundos do sistema de crenças ao
qual escolheu pertencer. A maioria dos praticantes, contudo, parece identificar-se muito mais
com o tipo ideal do “peregrino”, um indivíduo cuja religiosidade é marcada principalmente
pelo movimento, pelo trânsito entre diversas religiões e crenças que compõem o que aparece
como o elemento fundamental de sua religiosidade: a busca.

Da amostragem principal dessa pesquisa, a saber, os 16 indivíduos que se ligam de alguma


maneira às atividades do coven, todos têm ou tiveram algum contato com outras formas de
religiosidade ou cultivo da espiritualidade, notadamente os conteúdos relacionados ao que

117
Champion (1990) denominou “nebulosa místico-esotérica”, com fortes influências do
universo Nova Era. As práticas identificadas por Elisete Schwade (2006a), tais como artes
divinatórias (tarô, runas e quiromancia), “cultura psi”10, holismo terapêutico, cultivo da
interioridade, construção de uma nova visão ecológica do mundo (a chamada “ecologia
profunda”), conforme identificou Colin Campbell no seu artigo “A Orientalização do
Ocidente” (1997). O Espiritismo, contudo, aparece com freqüência como religião presente na
família dos praticantes, em geral, uma mãe, um pai ou um irmão, de modo que já se tem
contato com crenças como reencarnação, carma, chakras, centros vitais, bem como um certo
apreço pela ciência como discurso legitimador de conhecimento, já no seio familiar.

A Bruxaria como Identidade de Projeto

O que se percebe como um elemento comum a todos os homens com os quais conversei é
uma cultura de convívio com um contexto de ampla diversidade religiosa, seja na família
como nos círculos em que freqüentam. Paralelo a isto há também uma cultura que estimula o
papel do indivíduo como elemento de agência, crítico da realidade em que está inserido e
elemento de transformação da mesma.

Esta “visão crítica” é adquirida pelos meios mais diversos ao longo da vida. Não
necessariamente através do estudo ou de algum tipo de literatura, mas também pelos grupos
de amigos na adolescência onde se cultivava determinado gosto musical – geralmente ligado
ao mundo do rock – ou mesmo através de produções ficcionais do cinema e da televisão.
Diana Paxson, ela mesma pagã, que escreve sobre o Asatru, religião pagã com características
sociais muito semelhantes as da Wicca afirma:

Quando me deparei pela primeira vez com o Asatrú, na década de 60, o seguidor típico dos
deuses nórdicos era um jovem solteiro cujas idéias sobre religião teriam sido formadas, ao
menos em parte, pela leitura de ‘Conan’ e ‘O Senhor dos Anéis’ (PAXSON, 2009, 181).

Esta afirmação de Paxon sobre o Asatrú coincide com o que Terra Molhada diz sobre a
sensibilidade estética que lhe foi fundamental para a “escolha da Wicca” como religião.
Segundo o bruxo, desde a infância fora aficcionado por literatura de fantasia, jogos de
representação (RPG), seriados e filmes com esta temática. Embora filho de pais que

10
Uma determinada linguagem psicanalítica que extrapolou o universo da clínica e passou a fazer parte da
cultura de segmentos médios urbanos. Ver Figueira (1985, apud Maluf, 1996).

118
permaneceram casados durante toda sua infância e adolescência, estes nunca foram muito
atentos a seus dilemas pessoais e seu pai não foi uma figura muito presente na construção de
seus valores morais e visão de mundo. Desse modo, Terra Molhada adquiriu boa parte de sua
sensibilidade e de seus valores morais a partir das produções culturais que consumia.

Assim, enquanto indivíduos de classes sociais muito envolvidas com a modernização da


sociedade, estes praticantes construíram-se como sujeitos a partir da ideia de indivíduos que
criticam a sociedade tradicional, vista como injusta e arcaica e que agem como agentes
transformadores da cultura. Por outro lado, a modernidade também não lhes figura como um
paraíso terreal, sendo responsável por muitos problemas com os quais precisam se defrontar,
notadamente a perda de referenciais decorrentes da falência de sistemas tradicionais de
valores, o fenômeno que Giddens (1991) chamou de “desencaixe”.

Se por um lado sua religião defende a pluralidade, a laicidade do Estado, o combate ao


machismo e à homofobia, a ecologia e a liberdade religiosa, bandeiras de modernização, por
outro lado, ela recusa a vida pautada por um individualismo extremo e pela prosperidade
material como sentido da existência, características muito comuns a muitos indivíduos dos
grandes centros urbanos atuais.

Andréa Osório havia observado este aspecto na construção da identidade feminina nas bruxas
com as quais conversou. Para a autora “é possível enxergar a identidade da bruxa tanto como
fruto da modernização quanto como um recurso à tradição” (2004, p. 166). As bruxas não
abrem mão das conquistas da mulher moderna, tais como a independência financeira, a
conquista do mercado de trabalho e a construção de sua identidade não mais vinculada
exclusivamente aos papéis tradicionais de esposa e mãe. No entanto, também recusam o que a
autora considerou como a condição da mulher pós-moderna de pautar sua identidade apenas
pelas conquistas profissionais. O que as bruxas que Osório estudou fazem é operar uma
inversão valorativa dos papéis tradicionais da mulher buscando resgatá-los e torná-los parte
da vida da mulher de hoje. Desse modo, do mesmo jeito que conquistou o mercado de
trabalho e sua independência financeira, a bruxa, enquanto mulher moderna, mas que opera
uma releitura da tradição, é também esposa, mãe, curandeira, afeita à arte culinária, à
divinação e à dedicação ao lar, sem hierarquia de valores entre o que é moderno e o que é
tradicional. É a família, a interioridade e a harmonia com o meio que são privilegiados em
detrimento do mundo do trabalho, domínio historicamente masculino. O trabalho, embora
indispensável, deixa de ser visto como a realização da mulher, para ser apenas uma das

119
facetas de sua vida, uma das inúmeras possibilidades que tem diante de si. Contudo, conforme
afirma Osório, “não há um retorno à tradição, mas uma utilização moderna desta” (2004, p.
166).

Fenômeno semelhante ocorre com os homens, no entanto não no sentido de buscar resgatar os
papéis tradicionais. O que ocorre é que o sistema de valores que mencionei acima passa a
figurar como um projeto de mundo; um ponto de partida através do qual se pode recusar uma
realidade social, que é criticada e vista como injusta, em prol da construção de uma sociedade
mais justa e igualitária fundamentada nos valores da religião em questão. Esses homens não
se sentem sendo roubados ou perdendo o papel de preponderância na sociedade, mas sim
como construtores de uma nova sociedade. Ao que pude observar no discurso sobre gênero do
Chuva Vernal, os papéis tradicionais reservados ao homem não lhes figuram como
interessantes. A vida dedicada apenas ao trabalho; a ideia de chefe da casa – que para
Guaraucária, por exemplo, é o mesmo que um homem que vê a família como sua propriedade;
a ideia de submeter a natureza, conquistá-la e explorá-la; o casamento da sociedade
tradicional, visto como hipócrita e negador das emoções; a distância para com os filhos, cujo
cuidado é sempre deixado para as mulheres, todos esses aspectos fazem parte da
representação do masculino tradicional que é visto como fundamento de um mundo de
injustiças.

Em lugar deste, ao que se pode perceber na visão desses praticantes, vem a proposta de
mundo de sua “religião matrifocal”, centrada na Terra, que concebe a felicidade do homem na
harmonia com a natureza e na vivência comunitária com a família e “com o clã” (o coven e os
que lhe são próximos). A ideia de uma felicidade como resultado apenas de conquistas
financeiras seria responsável pela crise que a humanidade enfrenta e é este modelo que a visão
de mundo do coven parece recusar.

Este modo de construção da identidade atrelado à construção de um mundo à parte que recusa
e contesta a sociedade dominante, se adéqua perfeitamente ao conceito de identidade de
projeto, apresentado por Manuel Castells em O Poder da Identidade:

Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material


cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na
sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda estrutura social (2010, p. 24).

120
Isto é o que faz o bruxo wiccano. Embora na Wicca o homem não ocupe o mesmo lugar de
preponderância do passado, através dela este homem pode recusar os papéis tradicionais que
não lhe são mais interessantes em prol de uma identidade que não mais vincule a
masculinidade a papéis de dominação, à violência e a conquistas materiais, o que conflita com
seus sistemas de valores previamente adquiridos à aceitação da Wicca como religião.

A Wicca também possibilita que esses homens, cujos gostos e sensibilidade bastante
diferentes dos de seus colegas de trabalho, irmãos e vizinhos, encontre outros que pensem
como ele e comunguem de uma comunidade onde encontrem pares que professam os mesmos
valores, saindo assim de uma situação de isolamento. O praticante “Coruja”11, chegou mesmo
a afirmar uma vez em conversa comigo que, embora goste de cultivar a magia a seu próprio
modo e ter adquirido a maior parte de seus conhecimentos em buscas solitárias, não abre mão
de fazer parte de um coven. Percebe-se o quanto a dimensão comunitária é importante para
este praticante. Segundo ele, sempre foi “diferente dos outros na escola e, por gostar de
estudar, sempre fora mal compreendido”; não possui um bom relacionamento com seus pais e
irmão, com os quais ainda mora junto, nem convive muito com seus vizinhos. Coruja não se
interessa por futebol, funk e pagode, segundo ele “os principais assuntos da maioria dos
rapazes da sua idade”, o que o tornaria uma pessoa sem muitos amigos. No coven, ele estaria
entre seus iguais. Ali todas as suas leituras, todo seu estudo teriam importância para alguém;
ali a pessoa que ele era seria valorizada por outros que ele considerava semelhantes.

Considerações finais

O que as conversas com os membros do Chuva Vernal e outros bruxos relacionados ao coven
permitiram concluir é que a identidade masculina na Wicca está diretamente relacionada a
uma identidade de projeto, à vinculação com um sistema de ideias que permite criticar a
realidade social e construir outro mundo baseado nos valores de sua comunidade. Está
diretamente ligada a um elemento de agência.

Como sugeriu Andréa Osório, o bruxo wiccano “é um homem pós-revolução feminista”. Para
ele o mundo do trabalho não é mais importante que a esfera doméstica, da qual é motivado a
participar ativamente junto com sua mulher. Até mesmo é convidado a ver a presença do
sagrado nestes aspectos da vida: o cuidado com os filhos, o ato de cozinhar, de preparar
11
Aspirante ao coven, 23 anos, solteiro, estudante universitário.

121
remédios e, mesmo o trabalho, é valorizado principalmente enquanto atividade provedora da
família e não apenas como sinal de distinção e poder.

O que atrai esses homens para o projeto de mundo wiccano, matrifocal e onde eles perderiam
o domínio da família e deixariam de ser o centro do universo social, é que tal projeto de
mundo é portador de outros valores morais que lhes são mais caros. Mais valiosos do que a
vida reservada pela sociedade ao modelo tradicional de homem, modelo este que não mais se
lhes figura como interessante. Poder-se-ia dizer aqui que o feminismo subjacente à Wicca não
lhes aparece como libertador apenas para a mulher, mas também para o homem, à medida que
o libera de exigências e imposições que lhes sufocavam a sensibilidade e se colocavam como
obstáculos a sua felicidade. As concepções de homem que esses bruxos veem como
antiquadas, como não cultivar sentimentos, ter as emoções endurecidas; primar pelo racional e
desprezar o emocional; banalizar o sexo como instrumento de mera diversão, fuga da
realidade ou objeto de demonização; a obrigação de dominar a mulher, tais concepções não
são atraentes para os bruxos com os quais conversei.

Em lugar disso, preferem uma vida onde não se sintam obrigados a seguir estes padrões. Onde
possam cultivar um hedonismo que não lhes seria possível na sociedade que criticam, seja por
causa da demonização dos prazeres, seja pelo uso dos prazeres como algo viciante, elemento
de fuga da realidade, todos estes aspectos que seriam negativos na visão wiccana. O
hedonismo desses homens se aproximaria mais de uma forma de epicurismo moderno, ou
seja, não se trataria de uma vida de vícios e libertinagens, mas sim de uma ressignificação do
prazer. O bruxo pode consumir bebidas alcoólicas em seus rituais e apreciá-las tanto quanto o
faz com as inúmeras iguarias de suas refeições em comum; vê o sexo com outra carga
valorativa que sacraliza não só a reprodução, mas também o desejo, podendo o sexo até ser
parte de rituais de iniciação ou de celebrações como o Festival de Beltane, relacionado ao
amor sexual e à fertilidade; pode usar a magia, uma força acima de qualquer moral, embora
seja motivado a não praticar o mal.

A bruxaria wiccana oferece um aparato simbólico e um sistema de valores que permite


criticar as instituições tradicionais, notadamente a família e a religião, mas num nível mais
profundo, até mesmo a cultura como um todo. Por conta disso, ela é especialmente atraente
para indivíduos insatisfeitos com esses padrões estabelecidos e que gostariam de fazer parte
da construção de uma nova realidade.

122
Por se difundir principalmente através do uso da internet, a Wicca oferece a pessoas
anteriormente solitárias por conta de seus valores, uma comunidade de indivíduos que
professam valores fundamentais semelhantes, inserindo-os num grupo onde podem desfrutar
do suprimento de afeto oriundo deste.

A opção desses homens pela Wicca é a escolha por um sistema simbólico que lhes permite
criticar a cultura e por uma comunidade onde seu estilo de vida, escolhas, ideologias e valores
encontram não só aceitação, mas fundamentação no sagrado. Ser bruxo seria sentir-se, de
certo modo, um revolucionário dos costumes.

Referências

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um novo milênio. Religião e Sociedade, nº 18, p. 5-23, 1997.

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<http://www.youtube.com/watch?v=5Oi3TKuFA00> . Acesso em 8 ago. 2013.

124
125
A Wicca no Recife: uma história

Karina Oliveira Bezerra1

Introdução

A história da Wicca se inicia na Inglaterra na década de 1950. Quando Gerald Gardner


divulgou uma religião que propunha resgatar ritos e crenças dos povos pré-cristãos, ou
pagãos. Misturando magia com celebrações sazonais, a religião das bruxas de pequenos
grupos semifechados, viajou para o mundo e se estabeleceu em vários países; e hoje obtém
grande popularidade nos Estados Unidos. No Brasil, temos sinais de sua existência desde o
final da década de 1980.

Para traçarmos a história da Wicca na Região Metropolitana do Recife, tanto da atuação do


movimento como da vida dos adeptos, realizamos os seguintes métodos2. Empregamos
pesquisa documental em apostilas. Também utilizamos a pesquisa documental na internet,
imprescindível para a composição do trabalho, visto que os blogs e os sites de
relacionamentos sobre o tema estão cheios de informações sobre suas atividades. E ainda
realizamos observação participante em atividades e grupos.

Aplicamos questionário com 40 pessoas, cada um com 26 questões. O foco do questionário


era descobrir como se dava a entrada e permanência dos adeptos. Dessa forma, metade das
questões correspondeu à entrada dos adeptos, e a outra parte a permanência. Então a segunda
parte foi respondida apenas por quem pertencia mais de 01 ano na religião, e estes
contabilizaram 35 pessoas.

Fizemos entrevistas com duas ex-ativistas wiccanas, e com uma ativista que começou como
Wicca e depois passou a se denominar apenas neopagã. Está última é Tara3, coordenadora do
Encontro Social Pagão4 de Pernambuco - ESP-PE, representante no Recife do Círculo

1
Graduada em História e mestre em Ciências da Religião pela UNICAP. Professora de Filosofia e Ética,
Sociologia, e Metodologia Científica na Faculdade Joaquim Nabuco. Integrante do GP "Religiões, Identidades e
Diálogos", da UNICAP. Contato: karina@cliografia.com.
2
O presente trabalho é fruto de pesquisa de mestrado desenvolvida no ano de 2011. Portanto todos os dados
referem-se até o ano de 2011.
3
Os nomes apresentados correspondem ao nome pagão das entrevistadas e não aos seus nomes civis.
4
O Encontro Social Pagão surgiu no Rio de Janeiro em 2003. O ESP é um evento gratuito, com a finalidade de
promover a união e desmistificação do paganismo, sendo aberto a qualquer um que deseje conhecer o

126
Sagrado de Visões Femininas – CSVF, e organizadora da Federação Pagã Internacional em
Pernambuco (Todos na época da entrevista). As ex-ativistas wiccanas são: Atalanta, ex-
coordenadora da Associação Brasileira da Arte e Filosofia da Religião Wicca - Abrawicca-
PE; e Khalijnka também ex- coordenadora da Abrawicca5-PE. O material colhido foi rico,
visto que os wiccanos deixaram pouquíssimos relatos escritos (antes da disseminação dos
sites na internet) sobre as atividades do movimento no Recife. E como nossas entrevistadas
também foram inquiridas com as mesmas perguntas dos questionários, suas réplicas serviram
intensamente para exemplificar as respostas dos questionários.

Neste trabalho citamos as duas mais importantes organizações neopagãs na história da Wicca
no Recife: a Abrawicca-PE e o ESP-PE. A primeira surgiu em 2001 quando Khalijkha
escreveu para os pernambucanos cadastrados no site da Abrawicca e os convidou para uma
reunião em sua casa. Ela disse que “as pessoas foram meio desconfiadas, mas, a partir daí
surgiu então o primeiro grupo”. Em 2004 a organização muda, tornando-se a organizadora
Atalanta, que deixa o cargo em 2007 devido a sobrecarga de tarefas em sua vida pessoal, tal
como trabalho, estudos e filhos. Desde então não houve mais atuação da associação no Recife.
A outra organização o ESP-PE teve início em 2003, mudou algumas vezes de organização, e
permaneceu com suas atividades até o momento de finalização de nossa pesquisa, em 2011.
Como aporte teórico para a pesquisa usamos o conceito de escolha racional, desenvolvido na
sociologia da religião de Stark e Bainbridge.

Perfil dos praticantes

Para contarmos a pequena história da Wicca no Recife, vamos começar pelo perfil dos
adeptos, desenvolvido à partir dos questionários. Os praticantes da Wicca no Recife, em sua
maioria, possuem ou estão cursando o Ensino Superior, estão na faixa etária entre 21 e 30
anos e praticam a Wicca entre 2 e 9 anos. Para Rodney Stark (2006, p. 51).

enquanto as seitas conseguem tocar as pessoas de menor capacidade intelectual, inculcando


a velha e familiar cultura, as novas religiões encontram dificuldade para falar a esse tipo de

paganismo, independente de credo, posição social, idade, cor ou orientação sexual. Possui caráter social, sem
nenhum tipo de atividade ritualística, ou pretensão de formar covens ou círculos. (O QUE É O ESP, 2011).
5
A Abrawicca surgiu em 1998, com o projeto de ser “uma associação que representasse e atendesse aos anseios
dos bruxos brasileiros, centrando sua preocupação em defesa jurídica e institucional contra o preconceito”
(CERIDWEN, 2011).

127
público. Desse modo, devem conquistar sua audiência entre indivíduos socialmente bem
estabelecidos e detentores de privilégios (STARK, 2006, p. 51).

Stark (2006, p. 55-56) ainda mostra uma tabela, com base na Pesquisa Nacional de
Identificação Religiosa de 1989-1990, feita nos EUA, e revela que os movimentos cúlticos
são os com maior percentual de membros que frequentaram faculdade. A Wicca se encontra
nessa tabela com um percentual de 83%. Essa taxa não se diferenciou muito da nossa, nossos
questionários nos mostraram, 41% com ensino superior completo e 35% estão cursando, ou seja,
76%.

Então, sob a análise de Stark, nossos pesquisados são socialmente bem estabelecidos. No
Brasil, antes da popularização da Wicca, que ocorreu em a partir de 2001, sem dúvida seus
praticantes eram do grupo dos socialmente bem estabelecidos. A leitura de livros e sites
(sendo a maioria em inglês) só era possível para essa parcela da população. No entanto, a
chegada de revistinhas em bancas de revistas com o tema Wicca, filmes de Hollywood como
Harry Potter e logo depois a crescente popularização da internet, pluralizou o perfil dos
wiccanos. Por isso, não arriscamos dizer que o perfil dos wiccanos recifenses é aquele. Apesar
do estudo e leitura terem sido fortes nas repostas, pelas nossas visitas aos encontros e grupos,
e mesmo por depoimentos como o furto de livros, não consideramos os adeptos como
detentores de privilégios econômicos.

Para confirmar nossa teoria da primeira geração da Wicca como privilegiadas, citamos os
perfis de nossas entrevistadas. Khalijnka possui 49 anos, conheceu a Wicca em seu primeiro
momento - no início da década de 1990- e é doutora em Ciências Socias. Atalanta, com idade
entre 30 e poucos anos, conheceu-a na segunda metade da década de 1990, e é psicóloga com
especialização. E nossa entrevistada mais jovem Tara, com 25 anos, conheceu-a um pouco
antes do momento de popularização, e é conciliadora jurídica.

O gráfico abaixo apresenta a porcentagem à esquerda, e o tempo de prática abaixo. Por esse
último, conclui-se que a maior parte dos recifenses conheceram a Wicca pós-ano 2002, depois
da sua popularização. E pertinentemente, os altos e baixos do gráfico coincidiu com as
atividades da Abrawicca-PE. Em 2001 foi criada, em 2004 mudou a coordenação. Em 2005
eram realizados rituais abertos, e no final de 2007, as suas atividades se encerram. Em 2010,

128
aumentam as discussões entre os membros sobre a Wicca no Brasil, por conta da criação da
IBWB6. E em 2011, o ESP-PE renova seu quadro de organizadores.

Outra análise do perfil de nossos pesquisados foi em relação a laços familiares, ou seja, estado
civil e filhos. Os resultados foram quase absolutos: os wiccanos são solteiros (87,5%) e não
possuem filhos (90%). Os sem vínculo formal somaram (7,5%). Esses dados nos mostram que
os wiccanos no Recife são pessoas, diga-se “cuidadosas” quanto à constituição familiar.

Primeiro contato com a Wicca7

Fazendo um cruzamento das idades específicas dos que agregam a categoria 21-30 anos, e o
tempo de prática dos mesmos, descobrimos que dos 22, apenas 03 conheceram a Wicca com
21 anos, e 01 com 24. Todos os outros conheceram com menos de 20 anos. Então, somando
esses 18, mais os 08 da categoria de 11-20 anos, concluiu-se que 26 pessoas, ou seja, (65%)
conheceram a Wicca com menos de 20 anos, significando que eram adolescentes. E desses
que conheceram adolescentes, 11: (27,5%) conheceram a Wicca entre 2002-2005, na sua
popularização. Os outros 10% que completam o percentual dos ingressos nessa época, ou seja,
as outras 04 pessoas, estão nas outras idades: 03 entre 21-30 anos, e 01 com mais de 50 anos –
e todos com superior completo. Dessa forma, vemos que a popularização não só atraiu
adolescentes. E que a entrada dos adeptos se deu, na maioria, na adolescência.

E por quais meios, essas pessoas conheceram a Wicca?

6
Igreja de Bruxaria e Wicca do Brasil
7
Respostas múltiplas

129
O resultado dessa questão nos surpreendeu um pouco, pois o primeiro contato, se deu por
livros (47,5%) e amigos (42,5%). Achava-se que a internet se destacaria mais. De acordo com
RUSSEL e ALEXANDER (2008, p. 190), no século XXI, a internet é um dos principais
veículos de informação para se estabelecer o primeiro contato com a Wicca. No Recife os
livros e os amigos predominaram, corroborando a teoria de Stark (2008, p.30) “do
crescimento por intermédio de redes sociais, por meio de uma estrutura de vínculos
interpessoais e diretos”. O processo de adesão na Wicca aqui predominou do mesmo modo
que nos seus primórdios na Inglaterra.

Houve marcações com mais de uma resposta, onde o item internet foi marcado em sua
maioria junto ao item livros, no entanto, o item mais votado sozinho foi Livros (20%),
seguido de Amigos (15%). A internet só foi marcada isoladamente por duas pessoas, uma
com 06 anos, e a outra com 01 ano de pertencimento.

A praticante com 20 anos de participação na Wicca, que é nossa entrevistada, teve seu
primeiro contato exclusivamente por livros. Naqueles que têm de 10-13 anos predominaram
os livros, apareceu a internet, e não houve contato com membros ou revista. Os com 6-9 anos,
correspondendo aos anos de 2002-2005, os livros e amigos ainda são maiores, mas aparecem
os membros, revistas, e televisão. Justamente coincidindo com a venda da revista Wicca, e
com a criação da Abrawicca-PE, e de dois grupos de Wicca no Recife. Também, em 2003
evidenciou-se nas feiras de ciências das escolas no Recife, o tema Wicca. Os com 2-5 anos, os
membros ultrapassam os amigos, a internet aumentou, mas os livros continuam liderando. Os
com 01 ano ou menos, que correspondem ao ano de 2010-2011, os amigos lideraram,
seguidos pela internet.

Observamos que o suposto papel da Abrawicca-PE que delineamos no tópico perfil, pode ter
contribuído na disseminação das informações que chegaram por amigos, em seu tempo de
atuação. Mas o que predominou como revelador da Wicca foram os livros. Contudo a
amostragem do ano 2010-2011, pode revelar uma nova tendência, para nova década.

As opções predominantes da nossa pesquisa podem ser conferidas na experiência de Tara.


Quando questionada sobre como conheceu a Wicca, ela respondeu que tinha 11 anos e disse:

Eu conheci a Wicca através de uma amiga de escola, ela praticava a religião e ai comecei a
procurar livros, essas coisas, sozinha. A pesquisa foi feita sozinha assim, não foi por
indicação de ninguém não. [...] Achei a temática em livros, ganhei alguns livros e fui

130
pesquisando. [...] Foram os livros de Gardner acho que todo mundo já leu, e alguns livros
de Claudiney Pietro só, assim o começo foi isso mesmo.

Atrativos para ingresso e permanência8

No passado a imprensa relutou em chamar a Wicca de religião.

Quando a Wicca começou a aparecer na imprensa, está a chamou de várias formas, fé das
bruxas, culto pagão da Bruxaria, menos como os próprios wiccanos a denominavam, “uma
religião nobre aplicável à vida do século XX” ou mais comumente “a Arte” ou a “Antiga
Religião” (BEZERRA, 2010, p.5).

Hoje em dia, o termo religião, na maioria das referências à Wicca, precede-a. Na prática os
resultados da nossa pesquisa evidenciaram de forma esmagadora que o ingresso e a
permanência dos adeptos são norteados pelo elemento religioso.

Quais elementos da Wicca que atraíram seus adeptos? (82,5%) dos nossos pesquisados
responderam o culto a natureza e (60%) a magia. Sobre os elementos que motivaram a
permanência no primeiro ano e hoje em dia, foram marcados os mesmos: Era (é) a religião
que mais se encaixava no meu modo de pensar (82,5 %), e Os rituais faziam- me (fazem-me)
religar com a divindade (67,5 %). Em resumo, isso significa que os wiccanos: cultuam a
natureza, que é a divindade, em ritos mágicos para a religação com os deuses. Tudo isso da
maneira que eles acreditam ser a melhor.

Destacamos também que 05 pessoas acrescentaram em outros o sentimento de ter se


despertado para o que já era, que está ligado ao terceiro elemento mais marcado O chamado
da Deusa/Uma vez brux@, sempre brux@ (51,42 %). Encontramos aqui a crença na
reencarnação e a certeza e responsabilidade da condição de bruxo. Outro elemento destacado
em outros, que por falha nossa não foi posto em opções, e que revela essa responsabilidade,
foi o autoconhecimento - lembrado por quatro pessoas.

Na entrevista de Tara é evidente a presença das palavras paganismo e culto à natureza. Sobre
a atração inicial que ela teve pela Wicca, diz: “Primeiramente me atraiu o fato, não é que me
atraiu, sempre ouvia assim, sentia que meu caminho era pagão. [...] Foi realmente o culto a

8
Respostas múltiplas

131
natureza assim, a ideia que a natureza era sagrada e que todas as coisas são sagradas.” Sobre
sua permanência no primeiro ano ela diz:

Bom eu gostava muito dos rituais, assim, porque eu sentia, me sentia realmente, me
conectando com algo sagrado, algo divino, algo acima de mim e eu sentia que a divindade,
ela não vinha de fora para dentro, e sim de dentro pra fora, e eu me sentia mais viva, assim,
parecia que eu estava fazendo alguma coisa que realmente estava mudando o universo, e
não rezas programadas que todo mundo decora pra poder rezar entendeu? Mais ou menos
isso, bem eu gostava de fazer parte de uma religião pagã, porque foi aquilo que eu busquei,
eu estudei varias religiões, eu estudei varias coisas. Frequentei alguns lugares pra poder
tomar minha decisão, então aquela era minha decisão, basicamente isso.

Sobre a motivação de hoje, para permanecer Tara reproduz novamente o pensamento sobre a
sacralidade no paganismo.

Já Atalanta foi mais plural em suas respostas. Ela, no começo, apenas citou a divindade
feminina, e seguiu dissertando sobre o pensamento wiccano de que “as ações que você faz,
você é responsável”. Mas ao mesmo tempo em que isso apareceu como uma atração, por
admiração a esse modo de pensar, foi revelado mais na frente como uma dificuldade para pôr
em prática. Então, ela disse: “Agora tentando lembrar o porquê que eu segui, foi de cara, foi,
porque assim tudo que eu me interessava, cristais, é incensos, é leitura de áurea, leitura de
mão.” Então perguntamos: elementos do esoterismo? E ela prontamente respondeu:

Isso! tudo que era elementos do esoterismo tinha uma consonância né. Vamos lá, desde os
09 anos eu me interessava por isso e passava por um conflito muito grande porque eu tava
inserida na religião católica né, e isso era visto, muito mau visto, e mesmo assim eu não
conseguia deixar [...] Tinha uma época que eu tava tão assim, sei lá, que eu oraculava até
com dados de jogos, eu conseguia oracular sabe, era de eu pegar qualquer coisa e conseguir
oracular. Agora nem tanto, que depois passa um pouquinho, era como que o negócio tivesse
fervendo sabe.

Sobre sua motivação para permanecer, hoje, ela conta:

Cara, eu não consigo imaginar sem ter isso, sem ter esse contato com a Deusa, sem ter esse
contato sabe com o divino feminino, com a ideia do pagão mesmo, do ligado a terra, poder
trabalhar isso, o trabalho com os elementais, trabalho com os dragões, trabalho com os
animais de poder. Eu não consigo me imaginar não tendo isso, é como perder um braço,
perder...um sentido mesmo.

132
Khalijnka, na sua entrevista, deixa muito clara a presença do “chamado da Deusa/uma vez
brux@, sempre brux@”, e o “contato com povos antigos”.

Eu acho que o que me atraiu na Wicca foi o resgate de um modo de vida antigo. Como
outras pessoas, muita gente chega na bruxaria com esse sentimento de voltar a casa. Eu
tenho pra mim que todas as pessoas que chegam na bruxaria, já foram bruxos sem dúvida, e
essa foi a experiência que a alma delas mais sente a necessidade. Então elas vão buscar isso
o tempo inteiro. Então, pra mim...é...pra mim é...a presença dos deuses antigos!

Em qual situação religiosa se encontrava antes de conhecer a Wicca?

A maioria (63%) das pessoas não estava querendo encontrar uma religião e já tinha uma
religião antes de conhecer a Wicca (72%). A seguir com o intuito de pormenorizar a análise
trabalharemos com números cardinais.

De todos os nossos 40 entrevistados, a maioria, 29 pessoas, já tinha uma religião antes de


migrar para a Wicca, e 25 não queriam encontrar uma. Então porque, mesmo não querendo
encontrar uma religião, as pessoas entraram para a Wicca? E porque os que já tinham uma
religião ingressam nela?

Rodney Stark diz sobre o processo de conversão o seguinte: Algumas vezes, existe profundo
descontentamento com a fé convencional entre os mais privilegiados (2006, p. 51) ou “o
buscador religioso procura ativamente uma nova filiação religiosa, busca compensadores que
substituam as explicações específicas de sua igreja que foram desacreditadas” (2008, p. 284).

Esses dois problemas apresentados por Stark se encaixam na experiência de nossa


entrevistada Tara. Ela foi a que teve experiências mais elucidativas quanto à migração
religiosa. Enquanto para as outras foi uma mudança rápida, assim que conheceram a Wicca, a
de Tara demorou dois anos até haver o desligamento com a religião anterior, o catolicismo.
Destaca-se a sua pouquíssima idade como motivo elementar da situação, além da proferida a
seguir. Ela diz

eu comecei a estudar a Wicca com 11 anos, com 13 anos eu saí da religião católica. Eu fui
excomungada mesmo da igreja. [...] eu fui excomungada, teve uma, por que assim, eu
gostava muito de metal essas coisas, me vestia toda dark, ai teve um episódio que o padre
me excomungou da igreja, porque eu fui com uma blusa de Marilyn Maison pra igreja, ai
ele realmente me expulsou da igreja. [...] disse que eu era a imagem do demônio, [risos]

133
dentro da igreja, e que eu me retirasse.[...] Ai eu fiz a pergunta a ele: eu pensei que a casa
de Deus qualquer uma pessoa poderia entrar. E ai foi quando começou toda minha
discussão interior. Eu já discutia alguns aspectos da igreja, assim, coisas que, por exemplo,
Jesus ser judeu ortodoxo e nunca ter sido casado, tipo não rola entendeu? Mas ai piorou
depois disso, ai eu comecei a rebater mais. [...] Tem pessoas que buscam, por exemplo, com
11 anos normalmente você ia querer o que? Um namoradinho né? O primeiro amor, aquelas
coisas todas. Eu, eu não tava nem aí pra isso, eu tava querendo, parecia que eu tinha que me
livrar da igreja católica assim, eu me sentia muito reprimida, me sentia muito mal, tinha
alguma coisa errada naquilo tudo, eu era muito nova pra entender, mas mesmo assim, eu
sentia aquela força me, meio que me expurgando dali sabe? Tipo sai que esse não é o teu
caminho, teu caminho é outro, vai procurar teu caminho. Mais ou menos assim [risos].

Dizer ser de uma religião, e não querer encontrar uma, também não indica o compromisso
religioso do fiel. Por exemplo, nossa entrevistada Atalanta diz que: “Fazia alguns anos que
não ia pra missa sabe. Na verdade, eu nunca me senti bem, ia quando era pequena, tinha que ir
obrigada e tal. Então, mas assim, rezava e tal aquelas coisas toda, mas meio solta.” Mas
mesmo com esse descaso para sua religião, ela diz que não estava procurando nenhuma
religião. Então foi trabalhar na Alemdalenda9, começou a ler os livros de bruxaria,
identificou-se bastante, e logo se iniciou. Essa experiência retrata a defesa de Rodney Stark
por um mercado desregulado, ou seja, pluralista, pois nele, acontece o fortalecimento da
economia religiosa, cujos níveis de compromisso religioso irão aumentar.

Nesses casos, observa-se que as praticantes do catolicismo eram insatisfeitas, e uma


procurava, mas não se desligava, e a outra não procurava por outra religião. Outro fator para
as pessoas não estarem procurando uma nova religião, é a religião familiar, observado nos
casos dos protestantes. Outros casos em que não temos depoimentos do motivo da saída,
podem ser analisados com as respostas de atração e permanência na Wicca e vislumbrado no
testemunho de uma depoente que era mórmon, que exemplifica o chamado da Deusa, quando
ela diz que deixou a antiga fé quando descobriu a Wicca e viu que era o que realmente a
preenchia.

Serão analisados agora Sem religião. Rodney Stark propõe (2006, p.49, 50) que “o ceticismo
religioso predomina com maior intensidade entre indivíduos mais privilegiados.”. E que
aquele grupo constitui o que tem “maior probabilidade de manifestar interesse pela crença em
doutrinas místicas, mágicas e religiosas não convencionais.” Duas das explicações que ele dá
para esse fenômeno são: nas classificações de adeptos a novos movimentos religiosos,
9
Loja brasileira que oferece produtos esotéricos e ligados às tradições pagãs.

134
predominam os que se declararam antes Sem religião; E a conversão para uma nova religião,
implica o interesse e a capacidade de dominar uma nova cultura. Em nossa pesquisa, não
predominou os Sem religião, como vimos, esses foram 11 pessoas. Mas desses os que não
estavam procurando religião foram 08, ou seja, a maioria. Essa última percentagem poderia
dizer ser dos mais céticos. Então, para confirmar a teoria de Stark, de que ser cético é mais a
falta de convicção em uma marca tradicional de fé, do que ser fundamentalmente humanista
secular (2006, p. 50); e mostrar que uma pessoa não interessada mais em religião, pode se
interessar pela Wicca, será citada a experiência da nossa entrevistada Khalijnka. Ela não
estava em busca, e nem tinha uma religião quando conheceu a Wicca, mas já tinha passado
por diversas religiões. Ela diz que:

Eu já tinha passado por “N” religiões, eu fui bem católica na adolescência, depois eu
conheci uma coisa que você não conhece porque não é do seu tempo, chamado “Meninos
de Deus” [...] Fui pra Seicho-no-ie. Enfim né, houve uma aproximação, mas houve também
um.. não é. Então eu não tava mais procurando nenhuma religião, até porque eu tinha uma
chamada marxismo [risos][...]era uma curiosidade que não tinha sido satisfeita,
basicamente. Não estava em busca não.

Dificuldades10

As dificuldades iniciais mais marcadas foram: Minha família não aceitava (37,5%), Não tinha
dinheiro para comprar livro (35%) e Não conhecia ninguém da religião (32,5%). E as
dificuldades ao longo da permanência foram: Não ter um local adequado para praticar os
rituais (68,57%), Pré-conceito da família (45,71%) e Pré-conceito da sociedade em relação a
minha escolha (45,71%). Antes de examinar, destacamos que as dificuldades iniciais tiveram
frequência muito baixa, não sendo representativas.

A dificuldade inicial com relação aos pais permanece e aumenta, mas ainda é menos do que a
metade. Sobre isso, das nossas entrevistadas, Atalanta e Tara sofreram com esse problema.
Tara diz que:

aconteceu [de] minha mãe jogar todos meus livros fora, queimou meu livro das sombras, ai
já aconteceu umas coisas assim meio, jogou objetos meus do altar. [...] Ela me mandou pra
um psiquiatra, eu fiz uma seção lá com ele [risos] foi uma resenha [risos]. E depois eu fiz
terapia durante 4 anos, ela pensou que eu ia mudar, mas não adiantou [risos].[...] Meu pai

10
Respostas múltiplas.

135
não, ele é muito mente aberta, ele sempre apoiou, ele diz que não entende, mas apoia
[risos]. Mas assim, a minha mãe ela acha, ela finge que eu não sou mais isso entendeu, na
cabeça dela ela finge que já passou. E eu faço as coisas sem entrar em choque assim com
ela, sempre que tem alguma coisa eu nunca falo, se tem um ritual, eu não digo: eu vou pra
ritual. Eu falo qualquer outra coisa, que é pra não chocar entendeu.

Com relação a Atalanta, sua mãe, que é lituana, quando recebeu a noticia disse: “é então eu
tenho uma coisa pra te dar. Ai pegou o caldeirão lá dentro, o caldeirão da minha bisavó né, e
disse então isso aqui é seu e eu vou fazer sua manta”. Ou seja, Atalanta descobriu que sua
bisavó era bruxa. O problema para Atalanta foi que ela morava com tias da parte do pai, que
tinham preconceito. Ela diz que foi uma dificuldade ela própria se aceitar, por conta disso, e
explica:

Me aceitar no sentido de preconceito da família e de amigos. Dos amigos e de pessoas mais


próximas também [...] era um incomodo ser a piada da família. Entenda eu tenho 16 tios,
uma penca de primos, todos são católicos, e daqueles apostólicos romanos e tal, então ficou
bem complicado principalmente porque meus pais estavam lá longe, por mais que eles
aceitassem, estavam longe. [...] várias tias minhas vinham com santinhos depois pra mim,
vinham com bíblia pra me dar. [...] Mas era muito engraçado, porque todas vinham pedir
pra eu colocar tarô”.

Uma dificuldade que antes existia, mas que cresceu com o passar dos anos, igualando-se com
a dificuldade dos pais, foi o preconceito da sociedade. Khalijnka diz nunca ter sofrido, e
Atalanta sofreu principalmente com relação a emprego. Tara sofreu bastante nos primeiros
anos, mas conta que melhorou bastante hoje em dia. Ela diz:

Me chamavam de macumbeira, de bruxa, de sei lá, de tanta coisa, ate aquela mãe Diná que
na época tava na moda todo mundo ouvia falar mãe Diná, me chamavam de mãe Diná. Me
tacaram pedra na rua[...] Na escola todo mundo parou de falar comigo, eu fiquei sozinha
assim, o povo passava por mim ficava meio abrindo caminho pra eu passar, [risos] [...] E no
trabalho eu nunca tive problema assim, eu sempre uso meu pentagrama, ninguém nunca
pediu pra eu tirar, nem nada do tipo, porque eu já ouvir muita história disso, mas comigo
não. E todo mundo adora ter uma bruxa por perto, porque qualquer coisa me pergunta, quer
que eu leia o tarô, quer que eu leia a mão. Você é meio uma atração no local de trabalho.

136
Prática em grupo ou solitária

A questão sobre o tema acima, não foi de múltipla escolha, e foi respondida por 35 pessoas11.
Então a frequência mais marcada de uma opção, não foi interessante para análise. Decidimos
então trabalhar com número cardinal. 26 pessoas marcaram opções em que houve, em algum
momento, participação em grupos. Dessa forma, é mais uma vez corroborado que a maioria
dos praticantes não teve problemas de contato com outros membros. Desses, 10 foram
solitários, mas depois participaram de grupos e, por vezes, voltam a ser solitários, 06 foram
solitários, depois interagiram com outros membros pela internet, e em grupos, 06 sempre
tiveram grupos, e 04 foram solitários mas depois participaram de grupos e discussões na
internet e por vezes voltam a ser solitários.

Dos 09 solitários, apenas 03 não tiveram interação com outros membros, 03 interagiram com
outros membros pela internet, e 03 interagiram com outros membros pela internet e
pessoalmente. Ou seja, a maioria desses que nunca participou de grupos, interagiu com outros
membros pela internet, e um terço teve contato pessoalmente.

Dos 26 que participaram de grupos, a maioria, 16 pessoas, só participou de um grupo, 06


participaram de dois grupos, 03 de três grupos e apenas 01 pessoa participou de quatro
grupos.

Concluímos que, no geral, os wiccanos recifenses não se prendem a grupos, a maioria


participou deles, mas, por vezes, volta à prática solitária. E quando só permanece na última
condição não a leva no sentido literal da palavra, mantém contato, principalmente pela
internet, com outros membros. E a maioria participou de apenas um grupo.

Sobre a iniciação

A iniciação é um tema que causa muita discussão dentro da Wicca. Tradicionalmente, o


neófito deve passar por um período de dedicação que é de um ano e um dia, para então se
iniciar. E antes da década de 1980, só existia a iniciação dentro de um grupo, feita pelo
sacerdote ou sacerdotisa; não existia autoiniciação. Hoje em dia, existem várias
possibilidades.

11
Pois dos 40 pesquisados, foram 35 que tiveram mais de um ano na religião, portanto aptos para responder
sobre a trajetória ou permanência na Wicca.

137
Dos nossos pesquisados, a maioria, (65,7%), fez iniciação. Dos que se iniciaram (47,8%) foi
entre 01 ano e 02 anos, e (73,9%) foi autoiniciação.

No Recife, de Wicca, só temos conhecimento de uma tradição12, que é do GEW, Tradição


Eclética Sifodr. Isso explicaria o fato de apenas (25,9%) terem marcado que foram iniciados.
Mas, apenas um dos nossos pesquisados é do GEW. Os outros iniciados por alguém são: um
de um grupo do interior do estado, em Surubim, chamado Trisketa; outros dois foram
iniciados em grupos não identificados; outro foi na Tradição Wanen que é de São Paulo; e
outro disse não poder revelar o nome da tradição.

Nossa entrevistada Tara, que não se iniciou, exemplifica um dos motivos de escolher essa
opção: a busca por uma iniciação tradicional. Ela diz:

Eu ainda não me iniciei, porque [risos] eu tive alguns problemas assim, em questão de
iniciação. Quando eu entrei em um grupo, numa tradição, depois eu descobri que não era
uma tradição, era tudo mentira. E ai depois eu entrei em outra tradição, mas eu tive
incompatibilidade de pensamentos com a sacerdotisa. Ela era meio ortodoxa, eu acho que
paganismo não cabe no sistema de igreja sabe, é outra coisa, então eu sai também. Ai hoje a
gente, eu tenho um grupo de estudo, que se transformou no círculo, a gente fez a dedicação,
mas ainda não fizemos a iniciação, porque ninguém é iniciado no grupo. Então a gente vai
ter que buscar alguém pra iniciar, porque eu acredito muito na iniciação repassada, e não na
autoiniciação. Eu poderia ter feito a autoiniciação, mas eu não quis fazer. Eu acho que a
passagem de poder deve ser feita s por alguém, que seja um pouquinho mais sábia do que
eu, e possa me ajudar em alguma coisa.

Já Atalanta, revela outra visão, pois fez sua iniciação com 3 a 4 meses. Ela explica que sua
ansiedade, por se iniciar rápido, foi o seguinte: “Eu já tinha uma consonância, eu já tava na
vibração disso, então quando surgiu os livros, eu olhei, disse: é isso que eu sempre quis, é isso
que eu quero e é isso que eu vou seguir”. Ela disse que fez a iniciação no banheiro da casa da
tia super católica, que era onde ela morava. Mas admite que não estava segura, ela diz que
sentiu uma

sensação de abandono, do tipo, meio que assim: agora é você e se vire. Foi a mensagem que
eu recebi: se vire se organize e agora é contigo, não tem mais essa de rezar papai do céu me
ajude, faça o seu por onde. Então eu senti primeiro uma sensação de abandono, pra depois
eu sentir, assim a medida que eu ia sentir mais a ... mas vários momentos eu senti: será que
eu fiz certo, será que ta legal, será que não é moda.

12
Existe uma tradição que está em processo de criação, chama-se Tradição Telúrica.

138
Esse depoimento dela complementa o elemento dificultoso que ela nos declarou quando certa
vez pensou desistir, que foi o medo da responsabilidade. Dessa forma, a experiência de
Atalanta nos mostra quão plural são as experiências no universo wiccano, e que a intuição, a
vontade, e o desejo são os motores das ações no mundo wiccanos e não regras estabelecidas
por algum outro.

Considerações finais

Após essa série de dados, resultados, e analises, consideramos que no início da década de
1990, já existia praticante de Wicca no Recife. E essa mesma adepta, Khalijnka, foi a
responsável por fundar no Recife, em 2001, a primeira organização wiccana, a Abrawicca. E
esse mesmo ano também foi o marco, dos primeiros grupos de Wicca que temos
conhecimento no Recife. Ou seja, a Wicca está no Recife há mais de 20 anos.

Os wiccanos recifenses são majoritariamente jovens e com nível superior, mas não das classes
mais abastadas. A maioria conheceu a Wicca depois de 2002, ou seja, após a popularização
da religião. Tendo como primeiro contato os livros e amigos principalmente. Já no ano 2010-
2011, a internet ultrapassa o livro, mostrando uma nova tendência.

A popularização que assolou a Wicca recuou nos últimos anos, mas deixou um estereotipo
negativo para a religião. E a inatividade da Abrawicca, e de grupos wiccanos, deixou espaço
para a aderência de neófitos para outros caminhos neopagãos. No entanto, ainda, a maior
parte das pessoas que estão adentrando no universo neopagão ainda têm a Wicca como
primeiro contato. Se outras tradições neopagãs começam a avançar, ainda não chegam nem
perto da organização nacional wiccana, e da primazia que a Wicca lidera. Ma maior parte dos
casos ela é a porta de entrada para o mundo neopagão.

Observamos um nível de comprometimento forte, exemplificado no enfretamento de


dificuldades para manter-se na fé, assim como a trajetória dentro da religião. No geral, os
wiccanos recifenses não se prendem a grupos, a maioria participou deles, mas, por vezes,
volta à prática solitária.

A busca pelo caminho que melhor lhes conectem com os deuses é sua meta. O wiccano não se
adapta a grupos, ele procura um que atenda sua necessidade espiritual. Através dos estudos e
da prática, avalia quais as formas que mais lhe fazem entrar na sintonia com o universo, com a

139
natureza. Sua permanência na Wicca é uma eterna busca de união com o divino e aprendizado
para vida na Terra. A atração pelo ideal pagão da natureza e a magia, assim como o
pensamento de escolhidos e privilegiados por fazerem parte dessa religião, são ideais que
aproximam os neófitos.

Referências

BEZERRA, Karina O. Esboço geral da magia na Wicca: segundo a perspectiva de Marcel


Mauss. In: IV Colóquio de História da UNICAP, 2010.

RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da bruxaria. São Paulo: Aleph,
2008.

STARK, Rodney. Uma teoria da religião. São Paulo: Paulinas, 2008.

________. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo:


Paulinas, 2006.

VAN FEU, Eddie. Wicca: rituais. Ano I, nº 4. São Paulo: Escala.

Internet
CERIDWEN, Mavesper Cy. História da associação. Brasil, 05 de jan. 2011. Disponível em
<http://www.abrawicca.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=50&Itemid
=56> Acesso em 05 de jan. de 2011.

ESP-PE. O que é ESP? Recife, 20 de abril. 2009. Disponível em http://www.esppe.


net/2009/04/esp-pe.html> Acesso em 26 de jul. 2011.

140
141
O Coven: múltiplas pertenças, legitimação de um discurso
histórico e as tipologias clássicas em relação à moderna bruxaria

Celso Luiz Terzetti Filho1

Introdução

As pesquisas sobre Wicca tem dado pouca atenção ou quase não considerado a questão da
organização em relação às tipologias clássicas da religião. Essa falta de interesse pode se dar,
provavelmente pelo aparente sentido pejorativo que termos como, seita e culto carregam em
determinados contextos. Apesar de haver entre a literatura acadêmica e nativa uma
preocupação em distanciar a Wicca de tais categorias, essa preocupação repousa muito mais
numa dinâmica de combate a uma retórica de aniquilação do que propriamente uma
preocupação efetiva de se compreender como a Wicca pode ser entendida dentro das
tipologias clássicas.

Neste artigo pretendemos discutir as conclusões que tem levado os pesquisadores do


Paganismo Moderno a sugerir novas formas de se pensar a organização religiosa dos grupos
que o compõem. Para isso, escolhemos como autores base para nosso diálogo o pesquisador
dos Novos Movimentos Religiosos Michael York e o historiador Ronald Hutton. Ambos
prolíficos na pesquisa sobre o Paganismo Moderno e Wicca, eles tem proposto novas
tipologias que buscam de certa forma dar conta da complexidade desta forma de religião.
Michael York baseia-se no conceito de cultic milieu cunhado por Colin Campbell e
counterculture para propor a noção de counter Cult. Já Hutton, preocupado muito mais com a
definição e classificação do Paganismo Moderno dentro de uma perspectiva mais substancial
propõe o termo revived religion. É no rastro destes dois conceitos e passando brevemente
pelos argumentos mais significativos de Hutton que buscamos tentar analisar o alcance das
tipologias clássicas, bem como as novas propostas.

É necessário, no entanto, colocar que nossa intenção não se esgota neste artigo, já que esta
discussão é parte de uma tese em andamento. O ponto de partida que tem me levado a pensar
1
Doutorando e mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP, especialista em Docência no Ensino Superior pela
Faculdade de Ensino e Pesquisa de Itajubá (FEPI), membro do CERAL (Centro de Estudos de Religiões
Alternativas), Secretário Geral da REVER (Revista de Estudos da Religião) e Professor de História e Sociologia
da SEESP. Contato: clterzetti@gmail.com.

142
na organização religiosa foi a forma de organização de grupos presentes na religião Wicca, já
que os grupos se organizam em uma estrutura chamada coven2. Sendo assim, meu diálogo
com os autores aqui apresentados tem como objetivo principal a compreensão dessa forma de
agrupamento e pertença.

As tipologias clássicas e as novas classificações

Muito se tem falado da religiosidade moderna como sinônimo de individualismo. A noção de


um fim da religião seguiu de perto as discussões acerca da secularização. A ideia de uma
religiosidade em toda parte e a espiritualidade Nova Era parecia estar em maior consonância
com a noção de um individualismo moderno que minaria a vida religiosa comunitária. Porém
como descreve a socióloga da religião Danièle Hervieu-Léger,

a pulverização de identidades religiosas individuais não implica, necessariamente, o


enfraquecimento ou mesmo o desaparecimento completo de toda forma de vida religiosa
comunitária. Muito ao contrário, como o aparato das grandes instituições religiosas se
mostram cada vez menos capazes de regular a vida de fiéis que reivindicam sua autonomia
de sujeitos que creem, assiste-se à uma efervescência de grupos, redes e comunidades
dentro das quais indivíduos trocam e validam mutuamente suas experiências espirituais. As
formas desse desdobramento associativo, que se manifesta tanto no interior quanto no
exterior das grandes confissões religiosas, são extremamente variadas. Da rede móvel que
não requer de seus membros nenhuma pertença formal e garante, simplesmente, laços
mínimos entre eles através de um manual ou de um boletim, até a comunidade intensiva
que regula a vida cotidiana dos adeptos até a comunidade intensiva que regula a vida
cotidiana dos adeptos até em seus mínimos detalhes: todas as formas de organização
existem, de maneira mais ou menos estável e permanente. A gestão dessas formas inéditas e
renovadas de congregações espirituais coloca problemas temerários às instituições
religiosas, ao emergirem de dentro delas (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 28).

É em vista de novas formas de organização religiosa e diferentes formas de pertencer que


buscamos compreender o que a estrutura primária da Wicca, ou seja, o coven é. As múltiplas
formas de pertencer a este formato de comunidade religiosa nos leva a questionar as
concepções clássicas de organização religiosa. Aqui vale fazermos uma observação quanto à
questão de ser o coven a estrutura primária. Esta forma de organização é a estrutura desejada

2
Segundo Barbara Jane Davy (2007, p. 38) “A estrutura básica dos grupos pagãos é o círculo, que é chamado de
coven na Wicca e em outras tradições da Bruxaria”. Aqui vale colocar que em determinados grupos no Brasil se
utiliza também a denominação grove.

143
dentro da Moderna Bruxaria. Sua idealização pode ser explicada através de uma perspectiva
de legitimação histórica3.

As discussões que permeiam o tema da organização religiosa no Moderno Paganismo, bem


como suas religiões mais expressivas costumam vir acompanhadas de tentativas de
classificação dessa forma de religiosidade.

Em nossa análise dos principais estudos dos autores que trabalham com o tema nos
deparamos com argumentos e descrições que analisavam lado a lado as classificações que
buscavam compreender que tipo de religião é a Wicca e a funcionalidade de tipologias
relativas à organização para compreender a mesma.

Em seu aclamado livro, Triumph of the moon, o historiador Ronald Hutton não se limitou a
perspectiva histórica do desenvolvimento da Wicca, buscando nos últimos capítulos elaborar
algumas reflexões sobre seu presente e futuro. Nessas considerações finais, nos interessa o
capítulo, Grandchildren of the shadows onde um dos temas é relativo à organização da
Wicca. Em sua análise, Hutton parte de perguntas que norteiam seus argumentos até chegar
em sua conclusão. Simples questões são lançadas ao final do capítulo: A Wicca é uma seita?
Representa um culto? É parte do movimento New Age? É um Novo Movimento Religioso?
As respostas, porém, não são simples e não podem ser fechadas na conclusão de Hutton, já
que este, apesar de não ter escrito um livro com este único objetivo, dialoga com poucos
autores e referenciais teóricos sobre organização religiosa. Além disso, sua análise transita
entre reflexões sobre formas de organizações religiosas e seus alcances em relação a Wicca
terminando em uma classificação do que é a Wicca. Devemos estar ciente de que sendo um
historiador e não um sociólogo da religião, Hutton, privilegia e tem mais domínio em sua
área, mas, nem por isso devemos deixar de dar crédito, por ser um dos poucos trabalhos que
se preocupam em discutir esta questão.

Outro autor, dentre os poucos que se preocupa com a questão das tipologias em relação ao
movimento pagão é Michael York, em seu livro The Emerging Network: A Sociology of New
Age and Neo Pagan Movements (1995) dedica dois capítulos à organização religiosa traçando
considerações importantes sobre as tipologias clássicas e as contribuições mais significativas
em relação a este campo. Em Church-Sect Typologies York apresenta as definições e os

3
Em relação à noção de legitimação histórica baseio-me em meu artigo anterior, “A Velha Religião: O discurso
histórico de legitimação na Wicca” (História Agora, 2013) Disponível em <http://www.historiagora.com/revista-
atual/dossie/343-a-velha-religiao-o-discurso-historico-de-legitimacao-na-wicca>.

144
diversos autores que trabalharam com as categorias de igreja, seita, culto e Novos
movimentos Religiosos. No capítulo oito Conclusions: Evaluating Church-Sect Theory, its
Modifications, and Replacements in Application to the New Age and Neo-Pagan Movements,
propõe o conceito de counter cult entendendo este, menos como organização do que como um
comportamento a ser observado no milieu pagão.

Comecemos nossa análise com as observações de Hutton.

Para que possamos entender a conclusão deste autor em relação a Wicca vale a pena nos
guiarmos por um breve resumo de seus argumentos em relação a cada pergunta norteadora
colocada por ele no fim do referido capítulo.

A Wicca é uma seita? Para responder essa questão Hutton recorre ao sociólogo da Religião
Bryan R. Wilson. Essa escolha de Hutton recai a nosso ver, sob a importância de Wilson na
ampliação do conceito de seita desenvolvida em seu famoso artigo A typology of sects in a
dynamic and comparative perspective (1963) onde o autor fornece sete tipos de categorias de
seita. As definições e conceitualizações de Wilson diferem em relação a noção de uma
separação de um corpo religioso, no sentido de uma ruptura e formação de um grupo sectário.

Hutton entende que para este autor a definição de seita, a saber, como sendo um grupo
religioso separado que professa uma crença e/ou fé diferente dos outros corpos religiosos da
sociedade é de certa forma limitada para se entender a Wicca. Concordamos com Hutton neste
sentido, já que Wilson trabalha com uma definição claramente abrangente do ponto de vista
funcional. O que os sete tipos de seitas tem em comum dentro da tipologia construída por
Wilson, é sua definição primária que descreve a seita como “movimentos ideológicos cujo
objetivo explícito e declarado é a manutenção e a propagação de certas posições ideológicas”
(WILSON, 1980, p. 330).

A definição de Wilson torna-se abrangente, e como descreve Hutton, a definição de seita para
Wilson poderia comportar uma série de novos movimentos religiosos, que seriam definidos
como seitas. Apesar da ineficácia da funcionalidade de tal conceito em relação aos novos
movimentos religiosos, Hutton nos lembra que para Wilson, “o termo seita pode ser aplicado
a qualquer grupo religioso que seja distinto do que é considerado como uma normalidade
religiosa, pelo menos no ocidente” (HUTTON, 1999, p. 409).

145
A opção por partir de uma discussão que considere como ponto inicial as conclusões e
apontamentos sobre a definição de seita feitas por Brian Wilson, vai de encontro a sua
ampliação do conceito, já que não se limita a buscar compreender e descrever esse tipo de
agrupamento apenas como uma ruptura. Como o próprio autor descreve em seu artigo de
1963, um de seus objetivos é “empregar categorias que não dependem exclusivamente da
oposição entre igreja conservadora e seita perfeccionista” (WILSON, 1980, p. 329). Essa
dicotomia é uma referência à concepção da sociologia da religião clássica que tem como
principais artífices das categorias igreja e seita, Max Weber (1864 – 1920) Ernst Troeltsch
(1865-1923).

Para que tenhamos uma noção das concepções clássicas das tipologias organizacionais da
religião vale aqui recorrermos a uma breve descrição das categorias clássicas4.

O primeiro autor a utilizar a dicotomia entre igreja e seita foi Max Weber. Em A ética
protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905) o autor descreve, em contraste com as
seitas, que a igreja seria como uma instituição que abrangeria necessariamente justos e
injustos, seja para aumentar a glória de Deus, seja para dispensar aos humanos os bens de
salvação. A seita, portanto, seria uma comunidade exclusivamente composta de pessoas
crentes e renegadas, ou seja, uma comunidade formada por aqueles que se consideram os
verdadeiros fiéis (WEBER, 2004, p. 131). Em seu artigo escrito na época de sua viagem aos
Estados Unidos, Sect, Church and Democracy, Weber ampliou sua perspectiva para incluir
outras religiões distintas do cristianismo, entre elas o judaísmo e o brahamanismo,
considerados também como igrejas (HILL, 1976, p. 75).

Porém foi Ernst Troeltsch que forneceu definições tipológicas que tornaram-se as principais
referências na concepção de igreja e seita. Colega e discípulo de Weber, Troeltsch foi quem
mais analisou extensivamente os diversos tipos de organização religiosa no contexto do
cristianismo (Ibid., p. 76).

Na perspectiva deste autor, a igreja seria um organismo grande e bem estabelecido,


caracterizado “pela sua universalidade e tendência a funcionar como extensão da sociedade,
ao acolher todas as pessoas e conviver tolerantemente com seus desvios, buscando remediá-
los” (MARTELLI, 1995, p. 181 apud CAMURÇA, 2013, p. 289). Diferentemente, a seita
4
Para um painel geral e introdutório sobre as tipologias clássicas sugerimos as seguintes leituras: “Religião
como organização” de Marcelo Ayres Camurça presente no “Compêndio de Ciência da Religião (Paulinas e
Paulus, 2013), o livro “Como a religião se organiza” de João Décio Passos (Paulinas, 2006). No presente artigo
utilizamos o texto de Camurça e suas referências a Steffano Martelli em relação a categorização de Troeltsch.

146
seria um corpo menor de fiéis, que se separa do corpo maior. Este tipo de organização
“caracteriza-se por uma rejeição ao mundo por julgá-lo lugar de corrupção e pecado. Como
consequência, desenvolve um comportamento social de isolamento e de espera escatológica
do fim dos tempos” (Idem).

Além das categorias de seita e igreja, Troeltsch acrescenta um terceiro tipo, que é o do
misticismo. Este, “caracteriza-se também por formar pequenos grupos, mas em vez da ética
rigorosa das seitas, desenvolvem uma mística individual marcada pela subjetividade” (Ibid., p.
289).

Essa classificação considera como foco privilegiado as tradições cristãs5. Obviamente


devemos levar em consideração que tais tipologias eram concebidas como tipos ideais, neste
sentido, igreja e seita seriam ferramentas heurísticas que serviriam para compreensão dos
movimentos religiosos e a sociedade circundante.

Outras categorias também foram pensadas partindo-se da tipologia seita e igreja. Além destas
duas, Howard Becker acrescentou outros dois tipos: denominação e culto. Para este autor,
uma denominação seria uma seita que se acalmou e se transformou e um organismo
institucionalizado. O culto seria menos organizado, com foco nas experiências pessoais.

Em relação à ampliação dos conceitos, a seita e o culto, à medida que foram sendo discutidos,
recebiam novas definições.

Aqui vale destacar a contribuição das tipologias de Wilson em superar essa miopia ocidental
cristã das classificações da sociologia da religião clássica, já que o autor busca com sua
proposta de classificação desenvolver classificações de seitas que tenham utilidade para
análise de movimentos sectários em contextos não cristãos e também não ocidentais
(WILSON, 1980, p. 331). O ponto chave da classificação de Wilson é o elemento que ele
toma como critério de sua classificação, a resposta da seita ao mundo, ou seja, é uma
classificação que não está apoiada em concepções teológicas, mas sim preocupada com as
respostas ao mundo exterior.

Mesmo que haja de alguma forma uma tentativa de superação da categoria seita como um
agrupamento puramente cismático de caráter separatista, ainda sobra o tom pejorativo do
termo que na grande maioria das vezes é utilizado ao lado de elementos negativos, como
5
Para uma análise das implicações relacionadas a concepção das tipologias construídas a partir de um foco
cristão ver: Michael Hill, “Sociología de la religión” (Cristandad, 1973).

147
lavagem cerebral, abusos, extorsão, entre outros. Esse sentido pejorativo desta tipologia
impregnou de certa maneira, principalmente, o grande público e a mídia, que entendem e
enquadram minorias religiosas que escapam ao que é considerado um mainstream religioso
normal como seitas6.

Hutton, que estudou o nascimento e desenvolvimento da Wicca na Inglaterra, está certo de


que esta não é uma religião nascida de uma ruptura ou de qualquer outra forma de cisma, pelo
contrário é uma religião nova.

A segunda questão colocada por Hutton refere-se à categoria de culto. Seria a Moderna
Bruxaria um culto? Para responder esta questão o historiador recorre a Colin Campbell,
Rodney Stark e William S. Bainbridge.

Para Campbell, o culto tem servido como um termo Cinderela na família de termos que
constituem a taxonomia das coletividades religiosas (CAMPBELL, 2002, p. 119). Neste
sentido sua categorização teria como objetivo funcional dar conta das formas de organizações
que escapam a clássica concepção de igreja e seita. No geral, as referências mais comuns em
relação ao culto caracterizam-no como uma forma de organização semelhante às seitas, porém
com ênfases diferenciadas, sendo menos coesos e com um fluxo transitório mais evidente;
valorizando a experiência individual o que decorre daí a pertença menos formal, já que os
indivíduos não ingressam formalmente em um culto, seguindo teorias específicas ou
determinados tipos de comportamento (GIDDENS, 2005, p.434)7.

Uma contribuição significativa em relação a uma nova categorização do culto, e é a que mais
se aproxima da Moderna Bruxaria, foi a de Colin Campbell. A noção de cultic milieu proposta
por este autor mostrou-se funcional principalmente em relação a correntes esotéricas e crenças
desviantes. O cultic milieu compreenderia a ciência não ortodoxa, medicina desviante
(práticas alternativas), temas relacionados a extraterrestres etc. Inclui-se também
organizações, instituições e coletividades associadas a estes temas; sistemas mágicos,
ocultismo, espiritualismo, misticismo, civilizações perdidas crença na cura natural. Essas
crenças aparentemente diversas compõem uma unidade chamada de cultic milieu.

6
Para se ter uma ideia da abrangência dessa noção negativa, podemos dar o exemplo da religião aqui estudada.
No site da ABRAWICCA há um esclarecimento sobre o termo e a explicação de porque a Wicca não é uma
seita.
7
Para uma breve análise teórica e histórica dos usos e definições do termo culto sugerimos a leitura do artigo de
James T. Richardson, Definitions of Cult: From Sociological-Technical to popular-negative em: Review of
Religious Research, Vol. 34, No. 4 (Junho, 1993).

148
(CAMPBELL, 2002, p.122). A base que unifica essas tendências é a posição heterodoxa e
desviante em relação à cultura ortodoxa dominante. Característica esta, segundo Campbell,
compartilhada por todos estes mundos (Idem). No cultic milieu a figura central não é o
convertido, mas o seeker (buscador em tradução livre).

Hutton refuta o conceito de Campbell em relação à Moderna Bruxaria como sendo um culto.
O historiador britânico não cita a categoria de cultic milieu, já que esta foi cunhada mais tarde
por Campbell, porém sua recusa em aceitar a noção de culto relaciona-se a outro artigo de
Campbell, escrito no final da década de 70, Clarifying the Cult (1977). Neste artigo Campbell
relaciona a categoria culto à concepção de Troeltsch. Neste sentido o culto se caracteriza não
por um agrupamento social, mas sim por ser puramente pessoal. E é exatamente aqui que
Hutton não concorda. É necessário lembrarmos que este autor questiona o que a Moderna
Bruxaria é dando respostas de como ela se organiza. Aqui temos uma confusão de propostas
que elucida muito bem a falta de um aprofundamento desta categoria em relação à Moderna
Bruxaria.

Adiante, Hutton dialoga com Rodney Stark e William S. Bainbridge. Entre os trabalhos mais
recentes relativos à conceitualização das diferentes tipologias da organização religiosa, o que
mais tem contribuído para uma discussão mais abrangente é o da Teoria da Escolha Racional
(TER). Uma grande contribuição neste sentido tem sido as definições propostas por Stark e
Bainbridge. Em The future of religion (1985), os autores propõem três modelos de formação
inovação de um culto que são aprofundados em “Uma teoria da religião” (1987). Também
propõe três formas de culto, o client Cult, o audience Cult e os Cult movements (STARK e
BAINBRIDGE, 1985, p.209). A formação destas formas de culto se dá dentro de um processo
de inovação de duas fases: (1) a invenção de novas ideias religiosas; (2) a aceitação social
dessas novas ideias pelo menos a ponto de criar um grupo de devotos. Sendo assim,
diferentemente da seita e da igreja que são definidas pelos autores da seguinte forma: “Uma
igreja é uma organização religiosa convencional” e “um movimento de seita é uma
organização religiosa desviante, com crenças e práticas tradicionais”, o culto é caracterizado
como “uma organização religiosa desviante, com crenças e práticas novas” (STARK e
BAINBRIDGE, 2008, p.159).

Acredito que o processo de formação de culto, principalmente o modelo de evolução


subcultural, descrito pelos autores pode ser adotado, quando se analisa a organização da
Wicca e sua formação em seus anos iniciais.

149
A crítica de Hutton em relação ao modelo proposto por Stark e Bainbridge está muito mais
ligada a uma aproximação pejorativa do termo culto do que propriamente como ferramenta
teórico empírica para análise da organização da Moderna Bruxaria. Além disso a crítica de
Hutton está ligada ao que o autor enxerga como uma imposição acadêmica. Ele diz que nunca
encontrou um pagão britânico (e bruxo) que não considerasse a aplicação do termo culto a sua
religião como ofensivo (HUTTON, 1999, p. 410). Mais uma vez podemos perceber a
confusão de Hutton em relação à definição de religião e a compreensão da organização da
religião. As tipologias até aqui referenciadas não funcionam como legitimação e validação de
uma religião. No entanto, isto não quer dizer que tais tipologias não serviram, em alguns
contextos e épocas com tal finalidade. Porém, do ponto de vista do sociólogo da religião que
trabalha com a questão da organização religiosa, esta utilização não seria nem um pouco
desejada.

É a Moderna Bruxaria parte do Movimento Nova Era? Aqui há um problema em relação às


delimitações específicas de cada campo. Michael York, em seu livro aqui já citado, tentou
esboçar uma série de similaridades e diferenças entre o Neo paganismo e a New Age8. Hutton,
de cera forma, vai por essa direção, pinçando alguns elementos que ele acredita estarem em
desacordo com os princípios básicos do paganismo. Ele descreve que os pagãos são menos
utópicos e mais voltados para elementos históricos, que os new agers procuram guias e gurus,
enquanto os pagãos valorizam mais a dinâmica de grupo. Enfim, as delimitações são porosas
e não dão conta de avaliar outros contextos e situações. No Brasil, por exemplo, os autores
não veem uma distinção tão clara entre Neo paganismo e Nova Era. Claro que aqui, não
podemos perder de vista que o termo Nova Era tem sido utilizado muitas vezes como algo
pejorativo. Não é raro encontrarmos grupos e pessoas que buscam se desvincular dessa noção.

As pesquisas sobre Wicca no Brasil tem passado necessariamente pelo contexto da Nova Era
e novas espiritualidades9.

8
Outras obras trabalharam sob essa perspectiva. Ver por exemplo: New Age and Neopagans Religions in
American (2004) de Sarah Pike.
9
É o caso dos seguintes trabalhos: Karina Oliveira Bezerra. A Wicca no Brasil. 2012. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Religião) - Universidade Católica de Pernambuco, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior. Orientador: Gilbraz de Souza Aragão. Ana Carolina Chizzolini Alves. Wicca e corporeidade: a
bruxaria moderna e o imaginário do corpo. 2011. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Orientador: Silas Guerriero. Marina Silveira Lopes. Sob a sombra do carvalho: a espacialização do imaginário
neodrúidico na metrópole paulistana. 2008. 0 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, . Orientador: Silas Guerriero.

150
É a Moderna Bruxaria um Novo Movimento Religioso? Mais uma vez a resposta é negativa,
já que como outros autores tem pontuado, a definição dos NMR é complicada, na medida em
que o tempo é um fator decisivo, ou seja, quando um movimento religioso deixa de ser novo?
Segundo Silas Guerriero, “o critério de para definição de novo seria (...) o de ruptura com os
moldes tradicionais de vivenciar a religião em cada sociedade” (2006, p.97).

Hutton acredita que deva haver uma nova classificação, sendo assim, propõe o termo revived
religion. Segundo o autor, esta é a única e verdadeira forma de fazer justiça àquilo que é visto
como argumento central e característico da Moderna Bruxaria pagã, a apropriação de ideias e
imagens antigas para necessidades modernas (HUTTON, 1999, p. 415).

Agora devemos nos ater a outro autor que propõe também uma nova tipologia, Michael York.
Assim como Hutton, York perpassa uma série de autores e pesquisadores que trabalharam
com diversas tipologias, porém, sua análise das diversas categorias é mais abrangente e
aprofundada. Mas ao contrário de Hutton, York não cai na confusão de misturar definições
tipológicas com classificações do que é religião. O caminho percorrido por York é delineado
através da categoria de culto, ele sugere uma categoria que está de certa forma em
consonância com a tipologia de cultic milieu proposta por Campbell. O counter-cult descrito
pelo autor está relacionado muito mais a um comportamento do que uma forma de
organização como se tem entendido dentro das tipologias clássicas. Este comportamento, que
é compartilhado com as religiões do mainstream, tem como característica ser inconsciente,
automático e universal. Além disso, pode ser observado através da expressão devocional
(YORK, 1995, p. 324).

Essa tipologia é funcional, no entanto, extremamente abrangente. E não podemos deixar de


ressaltar que as fronteiras entre a Nova Era e o Neo paganismo não são tão claras assim no
caso do Brasil.

Considerações finais

Apesar de haverem trabalhos interessantes que contribuíram para a compreensão do Moderno


Paganismo e suas formas religiosas mais expressivas, busquei ao longo deste artigo elucidar
alguns problemas que dizem respeito a classificação e formas de organização da Wicca.
Como pudemos perceber, alguns autores buscam entender e classificar essa religião (o que é?)

151
a partir de conceitualizações que levam em conta definições puramente organizacionais (como
se organiza?).

As definições tipológicas relacionadas à organização da religião não devem funcionar como


ferramenta de legitimação e validação da mesma.

Meu humilde objetivo foi elucidar as lacunas relacionadas às tentativas de se compreender a


organização da Wicca. Acredito que um grande passo será dado no momento em que os
pesquisadores interessados nessa religião começarem a buscar entendê-la por sua forma de
organização mais significativa, o coven, do que perguntarem o que é a Wicca. Para responder
essa última questão basta perguntar a um wiccaniano.

Referências

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LÖÖW, Heléne (eds). The cultic milieu: oppositional subcultures in age of globalization.
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HUTTON, Ronald. The triumph of the moon: A history of a Modern Pagan Witchcraft.
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152
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma teoria da religião. São Paulo:
Paulinas, 2008.

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Wicca. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). Dossiê Gênero e
Religião. História Agora, v. 2, n. 14, p. 67-93, 2012.

WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

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de la religión. México, 1980.

YORK, Michael. The emerging Network: A sociology of the NewAge and Neo-Pagan
Movements. Londres: Rowman & Littlefield, 1995.

153
154
GT2 – Catolicismo brasileiro: neocristandade
e práticas religiosas associativas (1889-1964)

Coordenador/a

Mabel Salgado Pereira Diego Omar da Silveira


Doutora em História pela UFMG Doutorando em História pela UFMG e
Professora da PUC/MG. mestre em História pela UFOP. Professor
da UEA.

Resumo

O contexto de implantação da República no Brasil representou um novo momento nas


relações entre Igreja Católica e Estado. Ao prescrever o ideal de laicidade, os governos da
primeira República produziram nova ambientação social, política e cultural para os grupos
religiosos. A partir dos primeiros anos do século XX, no entanto, o processo de
reaproximação entre os dois poderes foi demarcando um novo modelo de relação entre os
católicos e a política: a Neocristandade. Do auge dos governos populistas até os anos do
Concílio Vaticano II, transformações se processaram no campo das atividades religiosas do
clero e dos leigos, com a implantação de modelos associativos cada vez mais direcionados
pela Santa Sé. O presente grupo acolhe trabalhos dedicados à investigação das práticas e
imaginários católicos situados nesse contexto. Trocar experiências de pesquisa, debater
fontes,discutir marcos teóricos e metodológicos sobre esses movimentos no interior do
catolicismo são os principais objetivos.

155
Aggiornamento x continuidade: o choque entre a modernidade e a
tradição nas representações e visões de mundo de três Padres
Conciliares
Alfredo Moreira da Silva Júnior 1

Introdução

Durante o Concílio Vaticano II, o grupo de Bispos Conservadores auto-intitulado Coetus


Internationalis Patrum, embora representasse a minoria dos padres conciliares, causou
bastante “barulho” naquele evento. O espírito de aggiornamento proposto por João XXIII,
entrou em choque com a visão medievalista dos adeptos do coetus. Diante de tais
divergências, o Concílio passou por diferentes interpretações face a grupos de interesses
diversos, seja ao longo de suas fases, seja Pós-Concílio; ao ponto de o Concílio Vaticano II,
ser chamado pelo Papa João XXIII de aggiornamento e, mais tarde, por Paulo VI, de
Fumaça de Satanás. Esta última ideia, talvez tenha prevalecido no pontificado de João
Paulo II e Bento XVI . No Brasil não foi diferente, surgiram interpretações variadas a
respeito do Concílio conforme as correntes teológicas defendidas pelos diversos grupos de
interesse dentro da Igreja.

Dentre o clero brasileiro, três religiosos se destacaram por sua postura firme em defesa de
suas interpretações sobre o Concílio, numa perspectiva conservadora. Dom Geraldo de
Proença Sigaud e Dom Antonio de Castro Mayer e, num viés progressista, D. Hélder Câmara.

Basearemos nossa análise na proposta hermenêutica de Ricoeur (1978), em especial sobre sua
teoria sobre o mundo do texto e o mundo do leitor, ou seja, mais que o interesse pelos textos
em si, nos dedicaremos em desvendar como as informações de seus conteúdos foram
extraídas e interpretadas. Para avançarmos neste último intento, recorreremos os
apontamentos de Chartier (1991) segundo os quais, a construção de uma realidade se dá
através das representações coletivas, pela multiplicidade de elementos simbólicos
interpretados de diferentes maneiras através de diferentes olhares.

1
Professor Assistente do Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade Estadual do Norte do Paraná
– UENP, doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP, bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Pe. João
Edênio Reis Valle. Contato: alfredo@uenp.edu.br.

156
D. Geraldo de Proença Sigaud: a contra-revolução na Igreja brasileira

Dom Geraldo de Proença Sigaud, natural de Belo Horizonte, nasceu em 1909, tendo sido o
primeiro Sacerdote da nova capital mineira, ordenado, e também, o primeiro Bispo eleito,
nascido em Belo Horizonte. Foi o quarto Arcebispo Metropolitano de Diamantina, porém,
inicialmente foi designado para a diocese de Jacarezinho, no Paraná, onde foi bispo de 1946
a 1960. Durante seu bispado em Jacarezinho, tratou de organizar melhor a diocese, na época
muito vasta, dividida, alguns anos depois, em outras seis. Incentivou a construção de mais
escolas católicas na diocese e fundou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Jacarezinho.

Os bispos tradicionalista como Sigaud, elaboravam textos que tinham uma mensagem clara: a
condenação do comunismo como um dos grandes males que assolavam a humanidade, nos
seus textos também era constante a repulsa à modernidade . Sua mensagem era direcionada a
um público especifico, ou seja, pessoas das classes mais elevadas e profissionais liberais
formadores de opinião da classe média urbana, nem podia ser diferente pois, em sua redação,
predominava muito mais a preocupação em mostrar erudição e conhecimento sobre os
documentos pontifícios e o magistério da Igreja, do que com uma mensagem voltada para a
população em geral .

Esta estratégia de focar a conscientização sobre os problemas entre a Igreja e o mundo


moderno nas classes mais abastadas ou, ao menos, nas classes com maior acesso à
escolaridade, remete às práticas de D. Geraldo enquanto Bispo na Diocese de Jacarezinho, um
verdadeiro ensaio para buscar uma maior visibilidade política para seus projetos e
consequentemente maior apoio do Estado.

O projeto de D.Geraldo incluiu a formação das consciências para a Igreja, ou seja, a


ampliação da educação católica na região com a criação de escolas católicas voltadas para a
educação das crianças e de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras para formar os
educadores que atuariam, sobretudo, na rede de educação pública. Para conseguir viabilizar
seus projetos, exorta aos padres e fiéis que cobrassem o apoio dos políticos do Estado do
Paraná e do Governo Federal.

157
As atitudes de D.Geraldo em Jacarezinho, lembram a Carta Pastoral de 1916 de D. Sebastião
Leme , porém num outro contexto, uma neocristandade tardia.2

Para formar um clero diocesano, conseguiu do governo do estado a doação de 50 alqueires de


terra onde foi instalado o Seminário que também funcionava como fazenda, utilizando-se do
trabalho dos próprios seminaristas.

Em relação aos costumes, demonstra, não sem razão, preocupação sobretudo com o
comunismo e a maçonaria, realmente, o desenvolvimento do norte pioneiro paranaense3,
impulsionado pela cultura cafeeira, trouxe também, a disseminação das lojas maçônicas por
toda a região, quanto ao comunismo, as características agrárias da economia cafeeira, com a
predominância de grandes latifúndios, dificultou sua proliferação4.

O maior temor dos católicos nessa época era de uma Revolução que acabasse com a religião
(ao menos oficialmente) como na Rússia, porém, no caso de um bispo integrista como D.
Geraldo, este temor chegava a extremos como podemos perceber em duas de suas obras: a
Pastoral contra seita comunista (1962) e o Catecismo anticomunista (1963). O primeiro
documento traz uma análise filosófica, histórica e teológica sobre as origens e o
desenvolvimento do comunismo internacional, tendo como referenciais autores europeus e a
própria Europa como palco, não faz uma análise específica das questões brasileiras, no
entanto, chama a atenção para a formação do pré-capitalismo europeu, para as corporações de
ofício e o campesinato, alguns momentos da história em que ainda não havia se formado o
proletariado urbano e as pré-condições para uma revolução, assim, fala que quando a família,
a religião, as tradições familiares e culturais ainda existem e são respeitadas, não existem
condições para a proliferação do comunismo, de certa forma, esta parte da Pastoral se
aplicaria às regiões economicamente mais atrasadas do Brasil. No catecismo anticomunista5,
existe apenas um apanhado de perguntas sobre comunismo e as respostas numa perspectiva
integrista.

2
O termo neocristandade, utilizado primeiramente por Thomaz Bruneau em Catolicismo Brasileiro em Época de
Transição ( 1974 ) e dizia respeito às estratégias de D. Leme para buscar uma reaproximação entre a Igreja e o
Estado . No caso de Jacarezinho, houve uma retomada das estratégias próprias da neocristandade num momento
em que os desafios para a Igreja católica brasileira eram outros, daí o termo neocristandade tardia, a este
respeito, ver SILVA Jr., 2006.
3
O termo Norte Pioneiro ou Norte Velho é uma alusão às terras do norte paranaense colonizadas entre 1890 e
1930.
4
Os nomes das Ruas de Jacarezinho documentam o mandonismo local das famílias dos coronéis da região,
temos como exemplo as ruas : Coronel Figueiredo, Coronel Batista, Coronel Alcântara e Coronel Cecílio Rocha
5
Publicado por Sigaud em 1961 para ser utilizados em grupos de estudo sobre a situação política brasileira no
início dos anos 1960.

158
Em sua visão conservadora6, Dom Geraldo propôs uma alternativa de reforma agrária, com
vistas às pertencentes ao estado do Paraná. As negociações com o governo do Estado se
iniciaram na década de 50, quando a Diocese de Jacarezinho que, inicialmente se estendia até
o extremo oeste do Paraná, na região de Foz do Iguaçu, é desmembrada. D. Geraldo passa,
então, a fazer articulações conjuntas com os demais bispos para conseguir concretizar seu
intento. Para tanto traçou algumas estratégias uma das quais foi a de utilizar a pressão
popular. Assim, confidencialmente7, Sigaud pede aos padres de sua diocese que incitassem os
fiéis8 a pressionar os deputados para a aprovação do projeto de doação.

Atendendo aos apelos de D. Geraldo, a Liga Eleitoral Católica cuidou de enviar aos
candidatos a Deputado uma correspondência onde são apresentados seis pontos que a Liga
considerava essenciais para constarem nos programas de ação de cada candidato e que seriam
condição indispensável para o apoio e o voto do eleitorado católico.

Tais esforços produzem resultado no longo prazo e, em 1960, o governador do Estado do


Paraná, Moisés Lupion, entrega às dioceses de Jacarezinho, de Londrina e de Foz do Iguaçu, a
propriedade de uma gleba de 3.000 alqueires paulistas. É então, fundada pelos bispos das
dioceses a SIPAL (Sociedade de Incremento à Propriedade Agrícola Ltda), que, sob o
controle de D. Geraldo. Essa empresa foi encarregada de lotear a gleba, promover o projeto de
urbanização e promover a venda dos lotes.

Na alternativa integrista de reforma agrária, colocada em prática pela SIPAL, o princípio do


respeito à propriedade privada deveria ser mantido. Assim, D. Geraldo pede aos responsáveis
pelo projeto de colonização que fossem respeitados os princípios proclamados em duas
encíclicas : a Rerum Novarum, de Leão XIII; e a Mater et Magistra, de João XXIII. SIMON
(2008) entrevistou um dos responsáveis pelo projeto, o Engenheiro Roberto Brandão de quem
ouviu o seguinte: “Sigaud dizia que o crescimento da região deveria ser sustentável, onde
você dava ao agricultor a oportunidade de comprar a terra, pois, se a tivesse de graça não

6
O conservadorismo de Sigaud nega a possibilidade de mudanças porém, insere-se numa perspectiva de
conservadorismo que Mercadante ( 2003) coloca que “norteia-se pela experiência do passado;parte do princípio
de que tudo que existe possui um valor nominal e positivo em razão de sua existência lenta e gradual.Trata-se
assim do aproveitamento do passado para uma experiência real, isto é, como se o passado se experimentasse
como um presente virtual.”
7
Carta Confidencial de 05 de janeiro de 1956 citada por SIMON ( 2008).
8
Nos arquivos da Diocese de Jacarezinho encontram-se circulares que atestam esta prática até corriqueira de D.
Geraldo , utilizou-se da mesma para pedir votos pra o candidato a deputado federal Plínio Correia de Oliveira ,
para combater os projetos de reforma agrária tidos por ele como de “cunho socialista” e, mais tarde , já em
Diamantina, para ajudar a organizar a “Marcha da Família por Deus pela Liberdade”.

159
daria valor, por isso, planejaram meios para dar instrumentos para o desenvolvimento e a
sustentação dos colonos.”

Curiosamente os colonos instalados na Gleba eram basicamente de origem alemã e católicos.


Fato esse decorrente de forte propaganda da Volksverein (Sociedade popular), fundada pelo
Padre Teodor Amstad, sobre a bischofsland (terra dos bispos), o que influenciou a migração
de colonos catarinenses e gaúchos. Pe. Teodor alegava que tinha o objetivo de reunir os
alemães para preservar os bons costumes, a cultura e a religião católica.

O projeto de colonização incluía a fundação de uma cidade, a qual foi chamada de Missal,
evidentemente, em referência a importância do catolicismo na região.

Em 1968, face ao crescimento das tensões envolvendo os movimentos de esquerda e de direita


no mundo e de militância contra o comunismo, a partir de sua atuação junto à TFP, é levado a
atacar até mesmo outros bispos os quais considerava vermelhos. Assim, segundo Antoine
(1980): “Em agosto, Dom Geraldo pronuncia uma conferência para oficiais do Círculo Militar
do Rio de Janeiro. Abordando o tema da campanha da TFP9 em curso, pede explicitamente
aos militares que procedessem à prisão de Dom Hélder Câmara.” Quanto a este fato, Beozzo
(1993) coloca que:

O Semanário ‘O Catolicismo’ tornou-se o porta-voz de suas posições extremadas e a


sociedade civil TFP (Tradição, Família e Propriedade) seu principal suporte e
propagandista. Depois de ampla campanha nacional, em 1968, denunciando D. Hélder
Câmara como um comunista e pedindo a expulsão do país de um de seus teólogos e
professor no Instituto Teológico do Recife, o Pe. José Comblin, a CNBB advertiu a TFP,
declarando-a uma sociedade desligada de qualquer reconhecimento da hierarquia, como
sociedade católica. Mais tarde, D. Sigaud afastou-se da TFP (op.cit. p. 88 e 89).

Oficialmente, teria renunciado a Arquidiocese em 1980, por motivo de enfermidade 10,


transferindo-se para a capital mineira, sua terra Natal, como Arcebispo Emérito de
Diamantina. Veio a falecer no dia 05 de setembro de 1999. A seu pedido, em Testamento, foi
sepultado no túmulo de seus pais, no Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, ficando

9
Embora D. Geraldo Sigaud tivesse sido um dos sócios fundadores da TFP, a partir de 1969, começou a
divergir da posição de Plínio Correia de Oliveira em não acatar a reforma litúrgica, assim, em 1970, D. Sigaud
rompe com a TFP declarando-se obediente ao Papa Paulo VI .
10
Sigaud chegou a pedir ao presidente João Figueiredo a expulsão do padre espanhol Pedro Casaldáliga,
representante da chamada Teologia da Libertação. Três dias depois, pediu aposentadoria, alegando problemas de
saúde.

160
acordado com os seus familiares que, após 05 anos de seu falecimento, os seus restos mortais
seriam transladados para a cripta da Catedral Metropolitana de Diamantina

D. Antonio de Castro Mayer: o Concílio e os “erros modernistas”

Dom Antonio de Castro Mayer nasceu em 20 de junho de 1904, em Campinas interior do


Estado de São Paulo. Filho de família numerosa - onze irmãos - seu pai faleceu quando tinha
apenas sete anos. Segundo o próprio Castro Mayer, teria sido a influência do pai, católico de
origem alemã (da Baviera), que o fez seguir a vida religiosa. Com doze anos ingressa no
seminário menor de Bom Jesus da Pirapora, em 1922 inicia seu curso no Seminário Maior de
São Paulo e, mais tarde, é enviado a Roma para completar sua formação na Universidade
Gregoriana. Em 30 de outubro de 1927 é ordenado padre, pouco tempo depois doutorou-se
em teologia.

De volta ao Brasil, é nomeado professor no Seminário de São Paulo. Durante 13 anos ensina
Filosofia, História da Filosofia e Teologia Dogmática.

Em 1940, o Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, nomeava-o
assistente geral da Ação Católica, então em fase de organização.

Em 1941 é nomeado cônego catedrático do Cabido Metropolitano de São Paulo, com o cargo
de primeiro Tesoureiro. Pouco depois, torna-se Vigário Geral (1942).

Em 1945 é transferido para o cargo de Vigário Ecônomo da Paróquia de São José do Belém,
ao mesmo tempo ocupa as cátedras de Religião e Doutrina Social Católica, respectivamente
na Faculdade Paulista de Direito e no Instituto Sedes Sapientiae, ambas as escolas superiores
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A seis de março de 1948, D. Antônio é elevado a Bispo Coadjutor de Campos, sendo em 23


de maio, realizada a cerimônia de Sagração por D. Carlo Chiarlo, Núncio Apostólico do
Brasil que teve como assistentes D. Ernesto de Paulo Bispo de Piracicaba e D. Geraldo
Sigaud Bispo de Jacarezinho. Em 03 de janeiro de 1949, torna-se bispo diocesano.

Na época, além das atividades desenvolvidas como Bispo, leciona também, primeiro na
Faculdade de Filosofia depois, na Faculdade de Direito de Campos.

161
Em termos de atividades pastorais, empreendeu esforços para fortalecer as enfraquecidas
ordens terceiras da diocese (Ordens Franciscana e Carmelita), bem como para fixar diversas
ordens religiosas como os Beneditinos, Salesianos, Redentoristas, Carmelitas Descalças,
Franciscanos e Crúzios.

Na sua Carta pastoral sobre os problemas do apostolado moderno de 06 de janeiro de 1953,


chama a atenção dos fiéis para a necessidade de se buscar um comprometimento com a
verdadeira fé, segundo ele, baseada na tradição católica e contrária às seduções do mundo
moderno.

Essa carta pastoral irá nortear suas atitudes durante toda a duração de seu bispado. Assim,
quando de sua participação no Concílio Vaticano II, renega o aggiornamento e exige,
juntamente com D. Geraldo Sigaud, condenação ao comunismo, reivindicação que não foi
acatada pelo Vaticano.

Um ano após o término do Concílio, D. Antonio já mostra sinais de que não acataria o teor de
seus documentos, assim, publica uma “Carta Pastoral com suas Considerações a propósito da
aplicação dos documentos promulgados no Concílio Ecumênico do Vaticano II”.

Mais interessante que a visão que teve do evento conciliar, é a percepção que D. Antonio fez
do andamento dos trabalhos sob a forma colegiada, discutindo-se os problemas em comissões,
para ele, tudo o que ocorreu não teria passado de uma estratégia dos inimigos da Igreja para
implantar os erros modernistas em seu interior.

D. Antonio não se conformou com o aggiornamento que predominou no Concílio, a não


condenação ao comunismo e a tolerância às demais religiões, para ele, o espírito conciliar
privilegiou, sobretudo o ecumenismo, uma verdadeira traição às tradições da Igreja e seus
preceitos.

Durante a década de 70, recusa-se a adotar na diocese de Campos o Novus Ordo Missae, a
Missa proposta por Paulo VI, o que causa muita polêmica e um rompimento com a Santa Sé.
Na diocese de Campos temos, a partir de então, dois Bispos, um fiel ao Vaticano e aos
desígnios do Concílio Vaticano II e outro D. Antonio seguidor do rito tridentino. Em Campos,
tivemos uma reprodução do que ocorreu em Econe (Suiça), onde D. Lefebvre11, mantém o rito

11
Em 1977 Lefebvre publica Le coup de maitre de satan – Econe face la persécution, uma obra que já seria o
prenúncio dos futuros acontecimentos em Econe ou em Campos.

162
tradicional e acaba sendo excomungado pelo Papa João Paulo II após nomear juntamente com
D. Marcel quatro bispos.

Em 1972, D. Antonio mostra-se preocupado com os Cursilhos da Cristandade, aos quais


dedica uma Carta Pastoral acusando os cursilhos de levar os fiéis a adotarem uma concepção
modernista da religião e uma visão teologicamente antropocentrista, relativizando o próprio
pecado e as obrigações dos fiéis perante a Igreja. Para o bispo, os cursilhos também seriam
responsáveis pela disseminação de idéias comunistas e heréticas.

Em 1982, Dom Antonio rompe com a TFP, organização da qual era um dos fundadores, o
motivo, segundo ele, era que a TFP havia se desvirtuado em uma seita que prestava culto ao
seu próprio líder, Plínio Correia de Oliveira e à mãe deste, Dona Lucília.

D. Antonio falece em 1991. O cisma na diocese de Campos somente é solucionado em 2002


quando os Padres Conservadores de Campos aceitam o Vaticano II e são autorizados a
manter o Missal Tridentino (autorização de 10 de julho de 2002, da Congregação Para o Culto
Divino e Disciplina dos Sacramentos) .

Hélder Câmara: a opção preferencial pelos pobres

Verdadeira antítese das posições conservadoras na Igreja brasileira a partir dos anos 50, D.
Hélder Câmara foi um dos maiores expoentes da chamada ala progressista da Igreja
Católica brasileira . Nascido em 07 de fevereiro de 1909, filho do guarda-livros João Eduardo
Torres Câmara Filho e da Professora Adelaide Rodrigues Pessoa Câmara, uma típica família
de classe média baixa, sem grandes bens patrimoniais, porém, de cultura acima da média para
a época. Tal característica familiar parece ter sido transferida para o filho Hélder que, aos 14
anos, ingressou no Seminário Diocesano de São José, em Fortaleza. Oito anos mais tarde,
com apenas 22 anos de idade foi ordenado padre.

Nos anos 30 se engajou nos movimentos da Igreja na Neocristandade12, organizando e


apoiando movimentos católicos como a Legião Cearense do Trabalho, Os Círculos Operários
e a Juventude Operária Católica (1931), bem como a sindicalização operária feminina e a liga
do Professor Católico do Ceará (1933).

12
Como neocristandade entendemos as práticas empregadas por D. Sebastião Leme enquanto líder da Igreja
Brasileira, para romanizar e ao mesmo tempo aproximar a Igreja do Estado notadamente na Era Vargas.

163
Sua militância na Liga Eleitoral Católica o aproximou do integralismo e após os candidatos
apoiados pela Liga vencerem as eleições de 1933 e 1934, o Pe. Hélder é convidado a assumir
a Diretoria de Instrução Pública do Ceará em 1935, já em 1936, desentendimentos com o
governador do Estado o levaram a demitir-se do cargo, partindo para o Rio de Janeiro onde é
acolhido pelo Cardeal Leme, que restringe suas atividades pastorais. O Pe. Hélder passa,
então, a dedicar-se aos serviços burocráticos e ao serviço público no Ministério da Educação
e Saúde, onde permaneceu de 1939 a 1946 quando, com o incentivo do novo arcebispo do
Rio, D. Jaime Câmara, reassume, em tempo integral, a vida religiosa destacando-se
rapidamente no cenário político religioso nacional. Em 1949 tornou-se conselheiro da
nunciatura, em 1955 organiza o Congresso Eucarístico Internacional (17 a 24 de julho de
1955), e ajuda a fundar o CELAM.

Até o início dos anos 60 concentra seus esforços em implementar oganizações


assistencialistas como a Cruzada de São Sebastião (1955) e a Cáritas Brasileira (1954). Em
1959, criou o Banco da Providência.

Durante a Fase Preparatória para o Concílio Vaticano II (1959-1962), vão se desenvolvendo


idéias de uma Igreja voltada para os pobres e para a transformação social. Após a 3ª reunião
do CELAM, em novembro de 1958, o Papa João XXIII solicita a elaboração de um plano
capaz de deter o avanço do comunismo sobre as massas latino-americanas.

Participou ativamente nos bastidores do Concílio defendendo a idéia de uma Igreja voltada
para os mais necessitados, como atestam as cartas que redigiu durante as madrugadas e
destinou a poucos amigos e colaboradores do Rio de Janeiro e Recife.

Sua estratégia deu bons frutos. Através de seu permanente contato com Cardeais que
compartilhavam sua visão de uma Igreja voltada para os mais necessitados, conseguiu que
outros padres conciliares também aderissem a seu propósito. Para Comblin, “Ele sabia que
sua influência seria muito maior se permanecesse oculto. Ele queria se esconder e conseguia.
Freqüentemente, seus próprios colegas ignoravam de onde vinham as proposições que eles
votavam” (apud BROUCKER, 2008, p. 48).

O contato com bispos de outras partes do mundo e com próprio Cardeal Rufini, foi
proporcionado pelo fato de serem acomodados num mesmo ambiente, a Domus Mariae
(MACHADO, 1998, p. 32 ).

164
Como resultado de seu convívio e de sua articulação com outros bispos progressistas de
outras partes do mundo, no dia 16.11.1965, Dom Hélder assinou, juntamente com outros 39
bispos, um documento denominado Pacto das Catacumbas - foi nas catacumbas de Domitila
que este grupo se reunia. O documento era breve e dava enfoque a um novo modo de vida e
uma nova ação pastoral dos bispos, voltadas para a Igreja dos Pobres.

Pelo Pacto das Catacumbas, os Bispos se comprometiam a procurar viver “conforme o modo
de vida da maioria da população”. Abrindo mão do luxo dos palácios episcopais, abriam mão
da ostentação da riqueza e do poder hierárquico, priorizando uma ação pastoral voltada aos
mais necessitados, em detrimento das atividades administrativas que seriam relegadas a
segundo plano e ocupadas sempre que possível, por leigos. Os bispos assumiriam um papel de
engajamento político junto à comunidade internacional, no sentido de evitar a adoção pelos
governos de estruturas econômico-sociais que levassem à proliferação da pobreza e à miséria.

O reflexo do Pacto das Catacumbas, junto ao clero progressista brasileiro, foi imediato e
aprofundou ainda mais as diferenças entre aqueles e os religiosos apegados às tradições
tridentinas e incapazes de entender as exigências dos novos tempos.

Seu posicionamento em defesa dos mais pobres foi interpretado, muitas vezes, pelos
governantes na Ditadura Militar (1964-1985) como atividade subversiva, de forma que
infligiram a D. Hélder uma série de sanções e trataram de desconstruir sua imagem e sua
reputação, seja através da censura, seja através da difamação.

Se no Brasil D. Hélder teve de ficar no ostracismo por vários anos, no exterior teve um
importante papel, denunciando a tortura e os crimes da ditadura.

Morreu em 27 de agosto de 1999. Em seus últimos anos de vida mostrou-se preocupado pelos
rumos que a Igreja Popular tomava.

No início do século XXI, os temores de D. Hélder, de certa forma, se concretizaram.


Referimo-nos à gradual substituição dos bispos alinhados à ala progressista por outros de
linha mais ortodoxa ou com atuação pastoral mais voltada para a espiritualidade do que às
causas sociais.

165
Considerações finais

O choque entre as visões tradicionalista e progressista acerca das questões sociais nos
remetem ao exemplo de GINZBURG (2001) que nos lembra Montaigne e a história de três
índios brasileiros que haviam sido levados à França, em sua inocência quanto ao
funcionamento da sociedade européia, os indígenas:

Perceberam que havia entre nós homens cheios até o pescoço de todo o tipo de riquezas e
que as metades deles estavam mendigando às suas portas, mirradas pela fome e pela
pobreza; e achavam estranho que essas metades necessitadas pudessem tolerar tal injustiça
e não agarrassem os outros pelo colarinho ou não tocassem fogo na casa deles.
(GINZBURG, Op. Cit. p. 39)

Ginzsburg chama a atenção para o fato de que os indígenas, desconhecendo os hábitos e as


convenções sociais européias não entendiam o porquê das desigualdades econômicas e
sociais. Por outro lado, num contexto de quinhentos anos de exploração e miséria pelas quais
a maioria das populações latino-americanas foi submetida, o enriquecimento de poucos em
detrimento de muitos se tornou regra socialmente aceita e o estranhamento dessa situação
pelos índios citados por Ginzburg se tornou tabu.

Vejamos o caso do centro sul do Brasil e do Nordeste, contextos de ocupação territorial e


desenvolvimento econômico totalmente diferentes.

No caso nordestino, historicamente as melhores terras e a posse da água ficou nas mãos dos
latifundiários, descendentes dos senhores de engenho que exerciam e exercem de certa forma,
o mandonismo local até hoje. Alguns nomes familiares tornaram-se conhecidos
nacionalmente através da política e esta os trouxe um enriquecimento ainda maior através das
benesses do poder. A população de modo geral, precisou se submeter a estes senhores de
terras para conseguirem sobreviver e qualquer contestação a este sistema de exploração
sempre foi duramente reprimida.

O documento Eu ouvi os clamores do meu povo subscrito por trinta e seis bispos do nordeste
e publicado em 08 de maio de 1973 não apresentou nenhum conteúdo ofensivo ou radical do
ponto de vista da análise conjuntural, apenas demonstrou um panorama bastante claro das
condições de vida da população nordestina, porém, foi considerado subversivo pelos donos do
poder, pois, evidentemente, tocava na ferida, de certa forma, cobrava das autoridades ações

166
afirmativas contra aquela situação que perdurava. Apesar dos avanços econômicos pelos quais
o Brasil passava, o agravamento das condições de vida da população mais carente era latente.

Os esforços pela romanização do catolicismo nesta região do país se concentrou apenas nas
capitais e nas instituições de formação do clero, seria impossível fazer frente à séculos de um
catolicismo ainda caboclo, que misturava elementos culturais africanos e indígenas mas que,
nem por isso, fazia a fé dos fiéis menos sincera.

Neste contexto, os bispos nordestinos foram compreendendo as especificidades daquela


região e que os desafios que se impunham eram, às vezes, bem diferentes daqueles colocados
pelos bispos de outras regiões, sobretudo ao do centro-sul, pois, o cenário era bem diferente,
havia sem dúvida, a presença do latifúndio e resquícios de um coronelismo, mas ambos com
características bem diferentes daquelas encontradas no nordeste, os fazendeiros do sul e
sudeste foram se adaptando às mudanças econômicas e diversificando os investimentos, se,
nos primeiros anos da república se envolveram diretamente na política chegando mesmo a
nomear um período republicano (República do Café com Leite) , depois preferiram usar de
seu poder econômico para patrocinar a eleição de outros e assim, podendo cobrar este apoio
mais tarde , continuaram se dedicando aos seus negócios. 13

Portanto, estamos falando de modelos de desenvolvimento e de exploração bem diferentes, de


relações de produção capitalistas que desde sua gênese ainda nos sistemas de parceria e
colonato, proporcionaram formas de distribuição de renda e de enriquecimento que ampliaram
a dinâmica do próprio sistema de exploração capitalista, o surgimento de um proletariado
urbano foi sendo acompanhada também de um crescimento do poder aquisitivo, ainda que
pequeno no caso das camadas assalariadas e de uma evolução da escolaridade de todas as
classes sociais.

Por sua vez, o êxodo rural e a imigração provocaram um desequilíbrio gradual nas grandes
cidades do centro sul, mas nada que levasse aos extremos de pobreza do nordeste do país.

Num cenário sócio-econômico mais favorável, bispos originários de famílias tradicionais e


abastadas, formadas num contexto de romanização do catolicismo, tiveram dificuldade de
entender as novas necessidades sociais que se impunham, talvez tenha sido este o caso de D.
Geraldo Sigaud.
13
A este respeito ver : FRAGOSO;João Luís e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos . A política no Império
e início da República Velha:dos barões aos coronéis . apud LINHARES, Maria Yedda ( org.) História Geral do
Brasil . 6.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1996.

167
Referências

ANTOINE, Charles. O integrismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil de João XXIII a João Paulo II de Medellín a Santo
Domingo. 2.ed. Petrópolis, Vozes, 1993.

BROUCKER, José de. As noites de um profeta Dom Hélder Câmara no Vaticano leitura das
circulares conciliares de Dom Hélder Câmara (1962-1965). São Paulo: Paulus, 2008.

FRAGOSO;João Luís e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos . A política no Império e


início da República Velha: dos barões aos coronéis. LINHARES, Maria Yedda (org.) História
Geral do Brasil . 6 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1996.

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre distância. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

LEFEBVRE, Marcel. Le coup de maitre de satan – Econe face a la persécution. Mertigny-


Suiça: Éditions Saint Gabriel, 1977.

MACHADO, Adelmo. Memória do Concílio Vaticano II. São Paulo: Loyola, 1998.

MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 4 ed. Rio de Janeiro:


Universidade Editora, 2003.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:


Imago, 1978.

SIGAUD, Geraldo de Proença. Catecismo anticomunista. 3. ed. são Paulo: Vera Cruz, 1963.

______. Pastoral sobre a seita comunista. 2 ed. São Paulo: Vera Cruz, 1962.

SIMON, Eric. Neocristandade: religião, política e educação na diocese de Jacarezinho.


Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e
Letras de Jacarezinho, Jacarezinho, 2008.

S.A. Livro de Circulares da Diocese de Jacarezinho. Tomo I.

168
Internet

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av. [online]. 1991, vol.5, n.11
[cited 2010-07-21], p. 173-191. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340141991000100010&lng=en
&nrm=iso>.

169
170
A Igreja Católica e os mecanismos de atuação no meio rural
brasileiro (1955- 1964)
Bruna Marques Cabral1

Introdução

O pressuposto fundamental deste artigo envolve a compreensão dos mecanismos utilizados


pela Igreja Católica, a fim de manter sua hegemonia no meio rural brasileiro entre 1955-1964.

Não deixaremos de fora de nosso horizonte de análise, o posicionamento da referida


instituição acerca da reforma agrária, no período em que setores da sociedade brasileira se
radicalizavam e o problema agrário encontrava-se no âmago das disputas de então. Assim,
examinaremos a Revista Eclesiástica Brasileira2 como principal fonte documental para a
compreensão dos discursos supracitados. Tal publicação periódica foi fundada pelo Frei
Thomas Borgmeier no ano de 1941, com o intuito de ser um elo entre o clero brasileiro, que
se encontrava disperso pelo enorme território nacional, o que resultava em grande dificuldade
de comunicação. Sendo assim, a revista serviu como um espaço de debates, no qual padres,
freis e teólogos, expuseram suas reflexões a cerca de diversos temas, tais como, teologia,
espiritualidade e realidade sócio-religiosa.

A ‘Revista Eclesiástica Brasileira’ se torna assim, espontaneamente, um ponto de


referência, para todo o clero, de norte a sul, secular e regular, das cidades e dos sertões.
Suprimindo as distâncias e aproximando os corações, despertando o zelo de uns e excitando
a coragem de outros, a REB será um laço de união entre o clero do Brasil. Em “Revista
Eclesiástica Brasileira” se retrata a marcha do catolicismo em nosso país. Temos certeza de
que imediatamente isso será compreendido. Trabalha-se muito, entre o clero
brasileiro...nossas secções não se limitam a Teologia Dogmática, Moral Pastoral, Direito
Canônico, exegese, Homilética, Catequética, Liturgia, Ascética, etc., mas comportam
qualquer assunto a fim, desde que se relacione com as coisas da religião, como sejam
Filosofia, Ciências naturais, Pedagogia, História, Sociologia, Arte religiosa, etc. (R.E.B.,
1941, p. 02-03)

1
Mestranda em História pela UFRRJ. Orientadora: Profª Drª Vania Losada Moreira. Contato:
brunaclio@uol.com.br.
2
A Igreja Católica possui diversos veículos de comunicação, no entanto utilizei a Revista Eclesiástica
Brasileira, uma vez que tem sido uma fonte pouco analisada na compreensão das questões políticas do período
estudado.

171
Podemos dizer que a Igreja Católica sempre desempenhou um papel importante nas temáticas
políticas do país. Desta forma, ao ser afastada dos centros de decisões na sociedade moderna,
a presente instituição buscou nos grupos subalternos da população, o novo sustento para
reconstruir seu poder. Assim, ela teria que construir o seu discurso por meio de uma releitura
de sua tradição, concomitantemente à apropriação das representações dos desfavorecidos,
tendo em vista uma ampla base social.

Com efeito, a estrutura desta pesquisa pode ser dividida da seguinte forma. Na primeira parte
deste artigo, as análises se focarão nas estratégias utilizadas pela Igreja para conservar sua
influência no campo. E, também decidimos contextualizar a Igreja na conjuntura maior do seu
tempo, para isso promovemos um pequeno debate bibliográfico com alguns autores que
refletiram sobre o tema.

No momento seguinte, procuramos demonstrar como a Igreja se inseriu nos debates sobre a
reforma agrária, haja vista que diversos segmentos da sociedade apresentavam um
determinado posicionamento acerca da questão agrária brasileira.

A Igreja Católica apresenta um novo modelo de influência

A Igreja Católica no Brasil durante a década de 1950 se afinou com o desenvolvimentismo,


uma vez que este possibilitava à referida instituição não entrar em contradição com os
fundamentos de sua doutrina social, além de permitir que ela se valesse de um discurso
técnico e político com escopos e metas bem delineados para interferir na política nacional.
Percebemos que a Igreja seguiu a lógica desenvolvimentista, a fim de aprofundar sua aliança e
influência sobre o Estado. No entanto, devemos ter em mente que apesar da Igreja ter
assimilado alguns aspectos daquela ideologia, a referida instituição apresentou seu próprio
projeto, no qual buscava nas classes populares um novo sustento para executá-lo.

Durante as décadas de 50 e 60, a Igreja reconstruiu seu modelo de influência e isso gerou uma
alteração nas relações entre esta, o Estado e a sociedade. Nesse sentido, Krische (1985) expõe
uma proposta dentro da lógica marxista, onde as instituições da sociedade civil (dentre as
quais a Igreja) apresentam um nível definido e conjuntural de combinação ou confrontação
entre as classes da sociedade, e que uma de suas funções seria a de servir como mediadora
dessa correlação de forças. Deste modo, o Estado deixaria de ser o mediador entre a Igreja e a

172
sociedade civil, e a Igreja é quem se colocaria como mediadora entre o aparelho de Estado e a
sociedade civil.

Por outro lado, Roberto Romano (1979) define a Igreja como um Corpo Místico, isto é,
instituição dotada de uma coerência própria – designada pelo autor como um projeto
teológico-político. Por tal razão, para Romano, a Igreja não pode ser interpretada como um
instrumento ideológico do Estado, dado o alto grau de independência em seus projetos. Logo,
ele parte da premissa que a Igreja possui uma política e uma lógica próprias, no entanto faz
alianças com o Estado para continuar exercendo influência na sociedade. Em contrapartida a
esta linha teórica, temos em Bruneau (1974) um outro olhar sobre a instituição, pois este
acredita que a Igreja não é um ator totalmente livre em suas relações sociais, ou seja, tal
instituição está presa em seu arrolamento com outros atores, inclusive o Estado, e depende
deles para sua sobrevivência.

Segundo Mainwaring (1989), a Igreja Católica não é uma instituição política, no entanto têm
um efeito político inegável, como tantas outras instituições sociais. Deste modo, o autor
argumenta que a função da Igreja é a de encorajar a mudança sem assumir, todavia, o controle
dos processos da mesma, tendo em vista a defesa de seus interesses e a expansão de sua
influência. É, portanto, um raciocínio pautado nas condições sociais condicionadoras de tais
inquietações, na medida em que estejam ameaçadas. Dentro dessa perspectiva Mainwaring
(1989) construiu o seu problema, centrado na atuação da Igreja no âmbito político e não,
como faz Bruneau (1974), procurando compreender como esta participação se realiza.

A partir desse breve debate bibliográfico observamos, sobretudo, nos trabalhos de Bruneau
(1974), Krische (1985) e Mainwaring (1989), que apesar de apresentarem perspectivas
distintas, partem do mesmo problema, isto é, a relação da Igreja Católica com a política. Eles
não procuram perceber tal Igreja como um Corpo Místico, no qual possui uma verdade
transcendente. Assim como Romano (1979) enxergamos a presente Igreja, como uma
instituição que se move no tempo histórico com profundo sentido de permanência.

De acordo com a pesquisa que estamos desenvolvendo, compreendemos a Igreja Católica


como instituição relativamente autônoma por situar-se com uma certa independência em
relação às esferas políticas e econômicas da sociedade.Destarte, entende-se que a Igreja não
deve ser concebida como aparelho ideológico, tampouco como de hegemonia política do
Estado porque tal definição implica em subsumi-la à burocracia estatal.

173
No período de 1955 a 1965 a Igreja Católica encontrava-se na iminência de uma crise e
buscou renovar sua política através de um discurso modernizador e de uma reforma de
consciências. Deste modo, a instituição procurou fazer concessões ao operariado rural para
não perder a sua influência no campo. Assim sendo, ressaltamos a importância do conceito de
3
hegemonia para analisarmos os mecanismos e as estratégias políticas adotadas pela
instituição católica na área rural, no referido período.

Percebemos que a Igreja utilizou-se do fato de existir uma industrialização desigual no Brasil,
além de persistirem estruturas rurais obsoletas na região Nordeste do país, para incentivar a
criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) 4, que visava
modernizar a região e diminuir as diferenças sócio-econômicas do país. Nesse aspecto, foram
organizados pela Igreja dois encontros no Nordeste, o de Campina Grande, em 1956, e o de
Natal, em 1959. Ambos contaram com a presença de Juscelino Kubitschek. Evidencia-se que
este processo de libertação econômica será pautado em uma ação conjunta entre Igreja e
Estado, expressa através da SUDENE.

Dentro dessa conjuntura, em 1956, foi realizado o primeiro Encontro dos Bispos do Nordeste,
em Campina Grande, que visava debater os problemas de ordem social suscitados pelas secas
e pelo baixo nível de vida das pessoas desta região. A seguir citaremos um trecho da
R.E.B.,sobre o referido encontro:

Sem dúvida, na medida do nosso alcance, velaremos para que a experiência se inicie,
prossiga e chegue a bom termo, pois vemos, sabemos, sentimos que o povo já não suporta
ilusões [...] Poderíamos dizer, mesmo, para melhor situar a questão, que o exatamente
necessário, no domínio do bem-estar social, se torna uma exigência cristã para salvaguardar
a dignidade da pessoa humana, na sua tarefa de viver. Por isso ninguém poderá dizer que
seja estranho a uma reunião de Bispos o debate dos problemas sociais, não só na equação
doutrinária, mas ainda nas decisões para uma ação direta e imediata. (R.E.B., 1956, p. 503)

Nesse contexto, percebemos que a instituição supracitada atuava em prol das modernizações
das relações econômicas na área rural, a fim de atenuar as tensões sociais na região. Nesse

3
O conceito supracitado refere-se à liderança de uma classe social sobre as demais, no qual o sistema de poder
assenta-se não só na coerção, mas também no consentimento voluntário da classe dominada. Gramsci
desenvolveu tal conceito após analisar a ampla base social que apoiou o Estado burguês após a Revolução
Francesa em contraste com o Risorgimento italiano que contou com uma fraca base de apoio por parte dos
demais setores da população.
4
A SUDENE foi criada em 1959 durante o governo de Juscelino Kubitschek, tendo à frente o economista Celso
Furtado, como parte do programa desenvolvimentista adotado no período. Portanto, o governo usaria o novo
órgão como elemento de administração e planejamento dos recursos públicos, a fim de promover o
desenvolvimento e diminuir as desigualdades entre as regiões geoeconômicas do país.

174
sentido, a Igreja organizou, em 1959, o segundo Encontro dos Bispos do Nordeste, em Natal,
no qual firmou-se uma importante declaração, com minuciosas conclusões.Observemos um
trecho da R.E.B. que menciona o encontro supracitado:

[...] o desenvolvimento econômico do Nordeste só atingirá sua eficiência plena se, se apoiar
no esfôrço consciente e voluntário das fôrças atuantes de tôda a comunidade, para o que há
urgência, em todos os seus níveis, de líderes, especializados em modernas técnicas de
organização comunitária, tais como a promoção do corporativismo, do serviço de extensão
rural e de outros processos de educação de base. (R.E.B., 1959, p. 461-462)

Podemos dizer que as modificações ocorridas na Igreja resultaram de um conjunto de


transformações no campo político, econômico e social, além das mudanças ocorridas no
posicionamento social católico em um plano internacional. Assim sendo, isolar as condições
sociais e políticas ou a nova doutrina institucional como fator único de mudança, é deixar de
perceber o caráter dialético desse processo.

As encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), promulgadas pelo Papa
João XXIII, mudaram o pensamento católico oficial da época e desenvolveram uma nova
concepção de Igreja, em conjunto com o mundo secular moderno. Tais medidas estavam
comprometidas em melhorar o destino dos seres humanos e promover a justiça social dentro
da ordem econômica capitalista, que se mostrava bastante excludente com amplos setores da
população mundial. Além disso, teve início em 1962 o Concílio Vaticano II, sob a orientação
do Papa João XXIII, no qual reuniu bispos do mundo inteiro em Roma para discutir uma
concepção mais aberta de Igreja.

Desta forma a Igreja pregava a necessidade de uma nova organização filosófico-religiosa


aliada às reformas sociais, sobretudo à reforma agrária, a fim de melhorar as condições
humanas no meio rural e extirpar os pretextos para a difusão de idéias comunistas; além de
destacar que a missão da Igreja não é apenas levar a mensagem religiosa para a população,
mas perpassar a esfera dos assuntos temporais.

A Igreja Católica reformula sua atuação no meio rural

Durante as décadas de 50 e 60, a Igreja Católica propôs um determinado modelo de reforma


agrária para o país. Qual tipo de reforma agrária a Igreja propôs? Será que visava unicamente

175
os interesses dos grupos desfavorecidos? Neste momento, iremos expor como a Igreja se
inseriu nos debates sobre a reforma agrária, no período em que setores da sociedade brasileira
se radicalizavam e o problema agrário encontrava-se no âmago das disputas de então.

Dentro da perspectiva nacional-desenvolvimentista, a reforma agrária era fundamental para


que o capitalismo no país conseguisse atingir um nível superior de desenvolvimento
econômico. Por sua vez, era necessário elevar a produção agrícola e, concomitantemente, se
buscava expandir o mercado interno para os bens manufaturados. Por tais razões, propunha-se
uma melhor redistribuição de terras improdutivas a fim de combater os conflitos sociais e
gerar um maior desenvolvimento econômico.

Apesar de a instituição católica ser um tanto conservadora, quando o que está em questão, são
os direitos de propriedade, havia na Igreja amplos setores que vislumbravam a necessidade de
uma mudança radical na nossa estrutura fundiária como a única forma de evitar o
agravamento dos conflitos no campo. Como exemplo, podemos citar a I Semana Ruralista da
diocese de Campanha, localizada no interior de Minas Gerais, onde o bispo Dom Inocêncio
Engelke, escreveu uma carta pastoral intitulada Conosco, sem nós ou contra nós se fará a
reforma rural (1950), no qual expressava o receio da Igreja Católica deixar de exercer a sua
influência no meio rural, nesse sentido o bispo fazia alertas, como o da necessidade de
precipitar as reformas sociais no campo para a Igreja não perder o operariado rural, após ter
perdido o urbano. Portanto, este documento expunha as preocupações que se mantiveram no
centro das inquietações de amplos setores da Igreja nas décadas seguintes, como: o êxodo
rural; os efeitos desagregadores da vida na cidade; o perigo do comunismo e a agitação
política no campo.

A luta pela cidadania política dos trabalhadores rurais também estabeleceu uma nova
realidade na história social do Brasil. Assim, as Ligas Camponesas 5 surgem no cenário
nacional como instrumento de resistência de pequenos agricultores e não-proprietários, que
lutavam contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam e posteriormente
apresentaram uma rápida expansão na região nordeste do país.

O presente movimento contestava, sobretudo, a dominação econômica e política a que as


populações rurais estavam submetidas havia séculos. Em alguns lugares, incidiram conflitos
armados entre proprietários de terras e camponeses.
5
As Ligas Camponesas surgiram em 1955, no estado de Pernambuco e eram lideradas por Francisco Julião, além
ter recebido o apoio do Partido Comunista Brasileiro.

176
Na luta em prol da reforma agrária, as Ligas se associaram com outras organizações políticas
de cunho progressista, participando de passeatas, comícios e manifestações no Congresso em
defesa das reformas de base.

Dentro desse panorama, ocorreu uma modificação das forças políticas nacionais, mormente,
as que compuseram o pacto populista. Destarte, o movimento social repercutiu fortemente
dentro da lógica populista, e a Igreja Católica entrou na disputa para conquistar espaço
ideológico, político e, sobretudo, não perder sua influência sobre a classe camponesa. É
importante ressaltar que com a chegada dos meios de comunicação as idéias progressistas
ganhavam força no campo, deste modo, era desmitificada a imagem do homem rural como
um ser passivo, que não faz questionamentos a respeito das desigualdades sociais, atribuindo
a estas explicações divinas. 6

Durante a década de 1950, a Igreja se deparou com diversas modificações sócio-culturais


advindas do aceleramento da industrialização, de maneira que a população urbana possuía
acesso a outras correntes religiosas e a correntes político-filosóficas como o pensamento
marxista. No entanto, essas religiões e o ideário de esquerda, que tanto desafiavam a
hegemonia católica nas cidades, ameaçavam atingir também o campo, e a Igreja, por sua vez,
considerou imprescindível a mudança em sua linha de ação.

Nesse contexto, devemos ressaltar a permanente idéia de missão da Igreja, isto é, a sua
necessidade de evangelização e orientação moral, para tanto, o rádio era tido como o meio
mais eficaz para atingir as massas. Desta forma, acreditavam que uma emissora de rádio
católica facilitaria a transmissão dos valores cristãos a um maior número possível de pessoas,
e por sua vez se sobreporia aos discursos exógenos ao meio rural. Vejamos o que disse um
missionário francês a respeito do tema, na seção Assuntos Pastorais da R. E. B.:

Vejo nesta diocese, onde exerço meus ministérios, muitos sacerdotes ocupados em fazer ou
reparar igrejas. Empregam somas enormes para isso. Pergunto para mim mesmo para que
serve tudo isso sem a propaganda anticomunista; apoderando-se do país, este regime
condenará a Igreja ao silêncio das catacumbas. As igrejas se transformarão, como na China
e alhures, em salas de cinema ou de bailes. Não digo que não seja necessário construir
igrejas, mas ao mesmo tempo seria mister provocar em todo o país um movimento, a fim de
se conseguir quanto antes uma grande estação de rádio católica. E então que força

6
Para um aprofundamento a respeito do tema, recomendo ler: AZZI, Riolando; GRISP, Klaus Vander.
“Assistência rural e reforma agrária” História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo.
Tomo II terceira época - 1930 -1964. Petrópolis: Vozes, 2008.

177
maravilhosa para atingir esses milhões de operários do Rio, São Paulo, etc., que são os mais
poderosos sustentáculos do comunismo? Não, lerão o jornal católico, mas muitos ouvirão o
rádio. (R.E.B., 1955, p. 415)

Nesse sentido, temos o surgimento do Movimento de Educação de Base (MEB)7 que foi
criado em 1961, através de um acordo entre o presidente Jânio Quadros e o bispo progressista
de Aracaju, Dom José Távora. Deste modo, o Estado iria financiar e a Igreja executar um
programa de educação básica, no qual apresentava como um dos seus principais objetivos: a
alfabetização e a mobilização social, através da conscientização. Assim sendo, ao
pesquisarmos a R.E.B. observemos a aliança entre a Igreja e o Estado expressa através do
MEB:

Por decreto presidencial de 21-3-1961 foi criado o MEB (Movimento de Educação de


Base), mediante um convênio entre o Ministério da Educação e Cultura e a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil. O MEB tem por objetivo ministrar educação de base às
populações das áreas subdesenvolvidas do país – Norte, Nordeste, Centro-Oeste – através
de programas radiofônicos especiais com recepção organizada. Por ‘educação de base’
entende-se a alfabetização em massa das regiões subdesenvolvidas do país, a educação
sanitária, a iniciação agrícola, a iniciação democrática, a diversão sadia e a formação cristã.
(R.E.B., 1961, p. 496)

Percebemos que, para manter sua hegemonia, a Igreja Católica seguiu o lema de evangelizar e
orientar a população rural utilizando como instrumento o MEB, pois este movimento possuía
a finalidade de introjetar os valores cristãos no homem rural e não apenas dar-lhe uma
educação e qualificação formais que o preparasse para a vida em um país que passava por
rápidas transformações econômicas. Deste modo, os camponeses se posicionariam mais
facilmente em prol de uma reforma agrária nos moldes legais, dentro da ordem, que garantiria
o direito de propriedade e a conservação da religião católica. Nossa opinião é endossada pelo
discurso de um padre franciscano na R.E.B., no início da década de 1960: “Reiteramos nossa
confiança no MEB e estamos certos de que sem educação de base será vão o esfôrço de mera
recuperação econômica, por mais aparato técnico de que se revista o planejamento.” (R.E.B.,
1961, p. 952)

Nesse sentido, para sustentar os valores cristãos, era mister reformar as consciências das
populações campesinas. E acreditamos ser essencial a utilização de Gramsci em nosso

7
Segundo Bruneau, depois do MEB, o sindicalismo rural foi o programa mais importante a fim de promover a
mudança social.

178
referencial teórico para compreendermos as estratégias adotadas pela Igreja Católica para
continuar vivendo na mente do povo.

Em 1960 ocorreu a declaração dos arcebispos e bispos presentes à reunião das províncias
eclesiásticas de São Paulo, a fim de discutir o projeto de Revisão Agrária do governo paulista.
Nesta declaração, os bispos dirigiam-se primeiramente aos proprietários rurais fazendo um
apelo no qual, afirmavam que a paz social do país encontrava-se nas mãos de tais
proprietários, e pediam que estes examinassem com cautela o projeto em questão.

No que concerne aos trabalhadores, os bispos solicitavam que procurassem um sacerdote, a


fim de orientá-los no plano de Revisão Agrária. Isto evitaria que os camponeses
interpretassem mal o referido projeto. Vejamos o que diz a declaração a esse respeito,
publicada na R.E.B.:

Vossa responsabilidade também é muito grave. Procurai, quanto antes, uma pessoa
esclarecida e cristã que vos dê a palavra exata sôbre o alcance da Revisão Agrária, pois
seria uma lástima desconhecê-la e seria um perigo entendê-la mal, caso ela vos fôsse
apresentada de modo tendencioso por agitadores interessados em explorá-la [...] Quando o
comunismo vos convidar para grupos e ligas de defesa dos vossos interêsses, já deveis estar
organizados em núcleos democráticos e construtivos que desejamos ajudar a criar,
independente de qualquer exigência religiosa. (R.E.B., 1961, p. 136-137)

A partir do fragmento citado acima percebemos que a Igreja Católica procurou persuadir o
operariado rural a aderir este projeto, argumentando que a Revisão Agrária visava melhorar as
condições de vida no campo e que para isso não teria necessidade de nenhuma “agitação
vermelha”, logo percebemos uma disputa de hegemonia entre um projeto de esquerda
revolucionário e um projeto legalista cristão.

Em relação aos sacerdotes, sobretudo os párocos, o projeto atribuía uma enorme


responsabilidade, no sentido de procurar os proprietários rurais e explicar o objetivo do plano
sobredito, mostrando que nesta conjuntura a reforma agrária tornou-se inevitável. Ao mesmo
tempo cabia-lhes a responsabilidade de tutelar os trabalhadores rurais na interpretação do
projeto. Portanto, os padres se apresentavam como mediadores entre as classes em conflito e
como líderes na defesa de um projeto da Igreja em aliança com o Estado. Então:

Procurai, um a um, os proprietários rurais que têm propriedades em vossas paróquias.


Transmiti-lhes o espírito autentico da Revisão Agrária. Afastai dúvidas. Removei possíveis
preconceitos. Conciliai boa vontade. Não vacileis em afirmar que a Reforma Agrária é

179
inevitável; a escolha é entre uma reforma equilibrada e razoável e a revolução rural que o
comunismo ateará explorando a situação precária e, por vêzes explosiva, do meio rural.
(R.E.B., 1961, p. 136-137)

Desta forma, os bispos mencionavam que seria um erro imaginar que todo modelo de reforma
agrária conduziria ao socialismo, ao contrário, existiria um modelo que o evitaria. E
concluíam que neste momento existiam duas opções: a primeira seria uma reforma agrária
dentro dos moldes legais, comedida e benéfica a sociedade; e a segunda seria a revolução
agrária nos padrões comunistas, que faria ruir toda a ordem e valores até então existentes.

Fica evidente, desta forma, que existia um temor, por parte da Igreja, de que houvesse uma
revolução no campo. Assim, a mobilização da instituição católica em prol de um modelo
pacífico de reforma agrária, que promovesse a justiça social sem a alteração do status quo,
demonstra o seu empenho em considerar o projeto paulista como exemplo para todo o país.

Percebemos que a Igreja possuía uma idéia de missão, ou seja, ao pelejar contra os problemas
sociais, a referida instituição e sua doutrina permaneciam na consciência do povo e ao indicar
soluções para tais questões, ela se propunha como fazendo parte da solução. Assim, ao
pesquisarmos a Revista Eclesiástica Brasileira compreendemos que a Igreja defendia a
utilização de uma doutrina social cristã, a fim de resolver os problemas do meio rural.

Não serão as doutrinas marxistas, atéias e desumanas, que irão salvar o homem do campo e
o operário de um País Cristão e de tradições pacíficas como é o Brasil. Aí está a doutrina
social da Igreja, consubstanciada na Rerum Novarum, na Quadragesimo Anno e, agora, na
oportuníssima Mater et Magistra, de João XXIII, capaz de resolver todos os problemas que
afligem o homem do trabalho em nossa querida Pátria. (R.E.B., 1961, p.780)

Nessa conjuntura, foi aprovado em 1963 o Estatuto do Trabalhador Rural, onde se estendeu
ao campo muito dos direitos do operariado urbano, inclusive o da sindicalização. Desta forma,
a luta pela reforma agrária foi seriamente atingida, uma vez que o Estatuto resolveria o
problema de uma parte dos trabalhadores rurais, e, por conseguinte, os afastaria do combate
em prol de tal reforma.

Podemos dizer que a Igreja avançou em muitos aspectos ao defender a sindicalização rural e
uma determinada reforma agrária. No entanto, concordamos com a tese de que essas medidas
progressistas eram uma forma de garantir a hegemonia de líderes católicos nas organizações
que fariam a interposição política das demandas dos camponeses junto ao poder público.

180
Posteriormente ocorreu o golpe civil-militar de 1964, e um de seus objetivos era impedir uma
revolução agrária no Brasil, a fim de evitar que a população rural interferisse no pacto de
classes que sustentava o país. Assim, o referido golpe teve, também, a finalidade de manter
um pacto que impedia a entrada dos trabalhadores rurais no processo político, tal ingresso dos
camponeses implicaria em uma redefinição do direito de propriedade no Brasil.

Neste período conflituoso foi lançado o Estatuto da Terra, que, segundo Martins (1975), foi
uma maneira de armar o Estado de instrumentos capazes de administrar os conflitos sociais no
campo. Devemos ter em mente que o Estatuto não apresentava um caráter unilateral (a favor
das elites), ou seja, isso demonstra que em momentos mais graves, a pressão dos
trabalhadores levava o Estado a aplicar os dispositivos a favor das classes subalternas
contidos neste documento.8

Assim, o Estatuto da Terra estabeleceu que a reforma agrária fosse prioritária nas terras
ocupadas por arrendatários e posseiros. Desta forma, o Estado promoveria o apaziguamento
de tensões sociais latentes no seio da sociedade rural, tensões estas que poderiam colocar em
xeque, a qualquer momento, o status quo.

Considerações finais

Percebemos que no período estudado, a Igreja Católica ocupou um lugar significativo nos
assuntos políticos do Brasil, mormente, em relação à reforma agrária e aos mecanismos
utilizados pela referida instituição para a manutenção de sua influência no campo.

No decorrer das décadas de 1950 e 1960 ocorreram mudanças nos projetos da Igreja no
campo social. Estas transformações foram perceptíveis principalmente no Nordeste do país,
onde os bispos da região passaram a discutir programas de desenvolvimento econômico,
reforma agrária, projeto de educação para reduzir o analfabetismo e sindicalização rural.
Nesse sentido foi lançado em 1965, um manifesto elaborado pelos três arcebispos e
secretários da CNBB no Nordeste, e apresentou o intuito de elaborar estudos e solucionar os
problemas da região supracitada.

8
Devemos ter em mente que apesar de algumas concessões feitas ao operariado rural, o que prevaleceu com o
Estatuto da Terra foi os interesses dos latifundiários, enquanto que as causas dos trabalhadores foram postas em
segundo plano. Para uma maior compreensão do Estatuto da Terra ver o seguinte site:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em 06 de abr. 2013.

181
No nordeste, como nas demais regiões do país, as estruturas sociais não estão preparadas
para aceitar a promoção das massas humanas. Abrir mão de privilégios excessivos; ter
olhos abertos para a situação dos trabalhadores rurais, ir além do assistencialismo,
atingindo a integração econômica e social da maioria dos nordestinos, ainda é exceção. E
como se isso ainda fôra pouco, comentam os Bispos, devido ao despertar do homem do
campo, açulado pelos comunistas, vivemos, então, um período de pressões, de violência e
sobressaltos. A Igreja não endossa os abusos nem olha com complacência o clima de tensão
que se criou pois ela tem sua linha que é a do Evangelho e querer confundi-la com qualquer
tendência ou atividade diferente significa desconhecê-la e julgá-la fora de seu espírito
próprio. (R.E.B., 1965, p. 131)

Portanto este plano, citado na R.E.B., apresenta uma parte pastoral, mas também abrange um
lado econômico e social, que compreende o movimento de educação de base, a sindicalização
rural e o interesse pelas reformas sociais. Assim, os bispos pretendiam continuar orientando
os trabalhadores, além de intensificar uma ação de esclarecimento junto aos empresários.

A Igreja Católica possuía um discurso de modernização do campo, através do qual acreditava


que ocorreria a libertação do homem rural. Assim, com as reformas sociais, a Igreja pretendia
integrar a população rural ao sistema capitalista, através da garantia à pequena propriedade
privada, visando diminuir a marginalização social. Por conseguinte, tal instituição supunha
que ao defender um projeto de Revisão Agrária, conseguiria primeiramente melhorar a
situação do homem do campo a fim de impedir o êxodo rural e, concomitantemente, evitar o
processo revolucionário defendido pelos comunistas.

Grosso modo, o projeto de reforma agrária busca uma distribuição justa das terras e também
uma descentralização da estrutura fundiária. No entanto, este é um problema recorrente em
nosso país, uma vez que os grandes proprietários dificultam a desapropriação de suas terras,
utilizando até mesmo a jurisprudência para cobrarem valores acima do preço pelas suas terras
desapropriadas.

Logo, o programa político e social do episcopado não supera, e nem poderia superar, o
horizonte capitalista, uma vez que a Igreja compreende o direito de propriedade como um
direito natural. Entretanto, amplos setores da instituição entenderam que para ocorrer um
desenvolvimento pleno do capitalismo fazia-se necessário uma redistribuição das terras e uma
modernização do campo para que a economia rural não ficasse defasada.

182
Por fim, as profundas desigualdades sociais no meio rural e a manutenção do latifúndio foram
fatores decisivos para a conservação de uma democracia política muito distinta das reais
necessidades das classes populares. O que vemos é uma democracia extremamente limitada,
por ser incapaz de superar o clientelismo, os currais eleitorais e o poder dos latifundiários.

Referências

AZZI, Riolando. O catolicismo popular no Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes,


1978.

________; GRISP, Klaus Vander. Assistência rural e reforma agrária. História da Igreja no
Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo. Tomo II terceira época - 1930 -1964.
Petrópolis: Vozes, 2008, p.92-101.

BENEVIDES, Maria Victoria. O governo Kubitschek: a esperança como fator de


desenvolvimento. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: FGV,
2002, p.21-37.

BRUNEAU, Thomas C. Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola,


1974.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere - Volume 1. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2006.

KRISCHE, Paulo José. Problemas teóricos das relações entre a Igreja e o Estado na crise de
1964 In: SOARES, Ricardo Prata et al. Estado, participação política e democracia. Brasília:
CNPq/ Coordenação Editorial; São Paulo: ANPOCS, 1985.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989.

MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Pioneira, 1975.

_________. O poder do atraso: Ensaios da sociologia da História lenta. São Paulo: Editora
Hucitec, 1994.

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979.

183
Internet

Mater et Magistra (1961). Disponível em


<http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/>. Acesso em 09 de jul. 2013.

Pacem in Terris (1963). Disponível em


<http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/>. Acesso em 09 de jul. 2013.

Pacem in Terris (1963)

Estatuto da Terra. Disponível em <http:/www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>.


Acesso em 06 de abr. 2013.

Fontes primárias

Periódico: Revista Eclesiástica Brasileira, pesquisado na Biblioteca Nacional.

Revista Eclesiástica Brasileira, volume 01, fascículo 01, março-junho 1941, p. 02-03. Cód.
2- 134, 01, 01.

Pregai por sobre os telhados, volume 15, fascículo 02, junho 1955, p. 415. Cód. 2-135,
01,12.

O encontro dos bispos do nordeste, em Campina Grande, volume 16, fascículo 02, junho
1956, p. 503. Cód. 2-135, 01,16.

Segundo encontro dos bispos do nordeste, volume 19, fascículo 02, junho 1959, p. 461-462.
Cód. 2-135, 01,25.

Líderes para a revisão agrária, volume 21, fascículo 01, março 1961, p. 136-137. Cód. 2-
136, 01,01.

Escolas radiofônicas para educação de base, volume 21, fascículo 02, junho 1961, p. 496.
Cód. 2-136, 01,01.

A ofensiva das Ligas Camponesas, volume 21, fascículo 03, setembro 1961, p. 780. Cód. 2-
136, 01,02.

184
A Igreja e a situação do meio rural brasileiro, volume 21, fascículo 04, dezembro de 1961, p.
952. Cód. 2-136, 01,02.

Episcopado nordestino faz estudo e lança manifesto, volume 25, fascículo 01, março 1965, p.
131. Cód. 2-136, 01,09.

Documentos da CNBB

Dom Inocêncio Engelke. Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural. Campanha,
Minas Gerais, 1950 In: CNBB. Pastoral da Terra (Estudos da CNBB 11). São Paulo: Edições
Paulinas, 1976.

185
186
Congadeiros e hierarquia católica na primeira metade do século
XX em Minas Gerais
Sueli do Carmo Oliveira1

Introdução

As festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário constituíram-se como principal evento


devocional organizado pelas Irmandades negras no Brasil Colonial. As Irmandades foram
eixos dinamizadores de um modo peculiar de vivência católica, de um catolicismo leigo que
marcou de forma indelével a formação religiosa das Minas Gerais. As Irmandades do Rosário
foram lócus privilegiado de solidariedade entre seus membros e de negociação dos vários
sistemas simbólicos dos distintos grupos culturais em contato (BORGES, 2005, p. 139).

Nessas irmandades, em ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário, reis e rainhas negros
eram entronizados e celebrados ao som de músicas e bailados executados pelos irmãos do
Rosário. Novos sentidos para a existência eram buscados, no momento em que os irmanados
reagrupavam-se a partir de novos laços e identidades. Foi, então, consolidando-se uma
religiosidade e uma identidade católica negra, fruto de uma história de encontros culturais
desiguais que se iniciaram ainda em solos africanos e que se intensificaram a partir da
diáspora imposta pelo tráfico de escravos (SOUZA, 2002, p. 259-310).

Formou-se nas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, um catolicismo peculiar, fato que
provocou, não raras vezes, disputas de poder entre os irmãos negros e os párocos em
diferentes contextos históricos. Mas, apesar do jogo permitir e reprimir, esse modo de
vivência religiosa gestada, principalmente, no interior das Irmandades negras, em que Nossa
Senhora do Rosário é louvada em meio a batuques, cânticos e danças e que a comunidade
elege seus Reis Congos e Rainhas Congas, manteve-se enraizado na vida dos devotos da Mãe
do Rosário que ainda hoje a louvam de modo singular em várias partes do Brasil. Atualmente,
no estado de Minas Gerais, é grande o número de cidades que sediam o chamado Congado ou
Reinado.

1
Mestre em Ciências da Religião pela UFJF. Contato: sueliufop@yahoo.com.br.

187
Várias foram às ações proibitivas dos rituais congadeiros no contexto de implementação das
diretrizes do Ultramontanismo em solos mineiros. A Reforma Ultramontana que começou a
ser implementado no Brasil em meados do século XIX e atingiu seu ápice nas primeiras
décadas do século XX, trata-se de um movimento que preconizava a romanização das práticas
do catolicismo e o estabelecimento de vínculos mais estreitos com o Vaticano. Esse novo
modelo eclesial, ancorado na ortodoxia tridentina, mostrou-se intransigente frente às múltiplas
formas de ser católico no Brasil ao buscar uma única identidade católica.

O ultramontanismo tentou substituir a realidade presente, completamente multifacetada,


plural, por outra nova, positiva e absolutamente única. Estabeleceu uma marca de
polaridade entre o velho e o novo, o bom e o mau, o presente e o futuro, o existente e a
realidade a ser criada. Acreditou-se na possibilidade de se gerar um homem novo,
envolvido na neo-espiritualidade tomista, depurado de suas antigas crenças, tidas então
como atraso e crendices (GAETA, 1997, p. 4).

Hierarquia católica, Reforma Ultramontana e congadeiros nas primeiras décadas do


século XX

A paróquia de Santana em Itaúna/MG ficou sob jurisdição da diocese de Mariana até 1921,
quando foi criada a diocese de Belo Horizonte.2 Esse período foi marcado por um grande
crescimento do número de dioceses no país. Era o momento de construção institucional da
Igreja Católica no Brasil, levado a cabo após a proclamação da república e o fim do regime do
padroado. Essa expansão das estruturas institucionais durante a Primeira República
correspondeu a critérios associados às novas configurações do poder no período republicano.
Belo Horizonte tornou-se capital de Minas Gerais em 1897 e não tardaria em se tornar sede de
bispado. A criação das novas dioceses efetivou-se em consonância com processo de
estadualização (MICELI, 2009, p. 161).

A dita Reforma Ultramontana estava em curso desde a segunda metade do século XIX. No
entanto, não deixemos nos enganar pela homogeneidade que o termo deixa transparecer.
Como afirmou Ivan Manoel, várias foram às mudanças ocorridas no longo período de tempo
que o termo sugere abarcar. No início do século XX, período de construção institucional, a
hierarquia católica procurou exercer um maior controle sobre as práticas religiosas que se

2
A diocese de Mariana e a diocese de Belo Horizonte foram elevadas à categoria de Arquidiocese em 1906 e
1924, respectivamente.

188
distanciavam do cânone oficial. O fortalecimento institucional pode ser que tenha sido um dos
fatores que propiciaram esse maior enrijecimento. Nesse período, vamos notar uma série de
eventos que demonstram uma maior integração do episcopado brasileiro. Entre os quais,
destacamos: a proliferação das circunscrições eclesiásticas3, a realização do Concílio Plenário
Latino Americano em 1899 e de várias assembleias episcopais das províncias do norte e do
sul do Brasil e, por conseguinte, a publicação de um número significativo de documentos
coletivos, sendo um dos mais importantes do período, a chamada Pastoral Coletiva dos Bispos
do Brasil de 1915.4 Um importante documento canônico, essa pastoral coletiva regeu a Igreja
por aproximadamente três décadas, até que fossem promulgados os decretos do Concílio
Plenário Brasileiro em 1941 (LIMA, 2001, p.154). Essas são algumas evidências do
progressivo fortalecimento do episcopado brasileiro durante a primeira metade dos
Novecentos.

A partir de sua posse, Dom Antônio dos Santos Cabral, primeiro bispo da (arqui)diocese de
Belo Horizonte, procurou exercer maior domínio sobre as práticas religiosas heterodoxas no
interior do catolicismo. Uma série de recomendações foi dada ao clero diocesano para que
tomassem providências com vistas a disciplinar tais práticas e promover novas devoções
condizentes com o espírito tridentino. Verificamos no Livro de Avisos e Mandamentos da
Cúria de Belo Horizonte, por exemplo, além de recomendações disciplinadoras das devoções
tradicionais, grande preocupação, durante o bispado de Dom Cabral, com a promoção da
Festa de Cristo Rei, do Mês do Rosário e da Novena do Espírito Santo. São recorrentes os
avisos publicados com a finalidade de lembrar os párocos de suas obrigações de promover tais
solenidades em detrimento de outras, as quais se consideravam como barreiras para o êxito do
projeto ultramontano. É nesse contexto que se inscrevem as proibições episcopais às práticas
rituais do congado.

Grande número de documentos eclesiásticos, de caráter coletivo, foi publicado nessas


primeiras décadas do século XX. A carta pastoral foi um dos principais instrumentos
mobilizados pela autoridade episcopal no exercício de sua missão docente. Os conteúdos dos
documentos coletivos, em geral, eram retomados pelas pastorais emitidas para a circunscrição
de uma determinada diocese, sugerindo uma interpenetração das decisões episcopais coletivas
e aquelas mais localizadas. Conteúdos relativos à proibição do reinado na circunscrição

3
Foram criadas sessenta novas dioceses e outras treze foram elevadas a arquidiocese entre 1900 e 1942.
4
Sobre o impacto da pastoral coletiva de 1915 na relação entre Igreja hierárquica e catolicismo popular, conferir:
OLIVEIRA. Op cit., 1985.

189
eclesiástica de Belo Horizonte estiveram presentes em cartas pastorais e diversos avisos ao
longo da primeira metade do século XX.

A primeira referência à proibição do reinado que aparece nos registros eclesiásticos da


diocese de Belo Horizonte data de 1923, dois anos após a posse de Dom Cabral. Trata-se do
Aviso nº 5, o qual reafirma a recomendação do bispo para que os párocos tomassem medidas
para suprimir o reinado. Pois, ao que parece essa recomendação já havia sido feita “por
ocasião do Retiro Espiritual” daquele mesmo ano.

Aos Revmos srs. Vigários, lembro de ordens do Sr. Bispo Diocesano, a necessidade de
suprimir-se a festa conhecida pelo nome de reinado. Não se faz mister acrescentar aqui
nenhuma outra razão àquelas que o Exmo. Sr. D. Cabral lhes apresentou por ocasião do
Retiro Espiritual. Daquelas considerações feitas então, resulta esta afirmação: é pensamento
e desejo da autoridade diocesana que desapareçam os reinados, que os fiéis sejam bem
instruídos sobre as vantagens da utilíssima devoção do rosário. 5

No início de cada ano eram realizados os chamados Retiros Espirituais, ocasião em que
membros do clero das várias paróquias da diocese reuniam-se. Era o momento em que o bispo
assinava os Livros de Tombo das paróquias e dava orientações pastorais ao clero ali presente.
O trecho acima afirma que durante um desses Retiros Espirituais, Dom Cabral havia elencado
algumas razões para que o reinado fosse suprimido em toda a diocese. Esse aviso foi
expedido no mês de agosto, período no qual geralmente iniciam-se os festejos do Reinado.
Podemos pensar que esse era um momento oportuno para lembrar aos párocos do “desejo da
autoridade arquidiocesana que desapareçam os reinados”.

Todavia, o que vamos perceber é que a motivação seja também outra. É bem provável que a
atuação dos párocos não estava sendo condizente com o discurso episcopal no que se refere à
proibição do Reinado. Pois, vamos encontrar a repetição do mesmo texto no aviso de nº 24,
publicado em 1924, ou seja, no ano seguinte. Ora, um aviso cujo fim era reafirmar as ordens
dadas no Retiro Espiritual é republicado. Essa falta de sintonia entre as ordens episcopal e sua
efetivação no âmbito das paróquias poderá ser aferida tanto nas reiteradas alusões à proibição
do Reinado nos documentos diocesanos quanto nas declarações do clero itaunense presentes
nos Livros de Tombo da paróquia. Como veremos a ordem de supressão dos Reinados não foi
acatada de imediato, haja vista a importância social desses festejos. Havia um espaço de
compartilhamento, mesmo que imbuído de tensões, de símbolos, e as festas em honra a Nossa
5
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 5: “Proibição da Festa chamada Reinado”. 10 de
agosto de 1923.

190
Senhora do Rosário congregavam vários grupos sociais, a despeito das diferentes vivências
rituais que esse evento englobava.

Ao que parece os párocos tiveram bastante dificuldade na efetivação da proibição episcopal e,


como veremos mais adiante, ao tentar empreendê-la, os congadeiros reagiram de imediato e
ainda contaram com o apoio de outros fiéis. Em nossa análise buscaremos reconhecer, no
interior das relações entre clero, congadeiros e demais fiéis, os diferentes posicionamentos
sociais e as múltiplas vozes que ecoam na história do reinado de Itaúna.

No caso do posicionamento do episcopado frente aos rituais do Reinado, notamos um


enrijecimento da postura que até então havia vigorado nas ações empreendidas em prol da
romanização do catolicismo no Brasil. Enquanto algumas práticas devocionais bastavam que
fossem, na ótica do episcopado, apenas disciplinadas, no caso do Reinado foi diferente. As
ordens de Dom Cabral era que medidas fossem tomadas objetivando o seu desaparecimento,
sua supressão. Ao tratá-lo como prática indisciplinável, incompatível com o novo modelo
eclesial que se buscava implantar, a autoridade episcopal buscava excluí-lo do elenco das
práticas católicas.

Além do mais, intentava-se a substituição da devoção a Nossa Senhora do Rosário estruturada


em torno da forte presença dos ritos congadeiros, pela promoção do modelo romanizado
conforme as instruções contidas na Pastoral Coletiva de 1915, inclusive incentivando a
instalação do Apostolado da Oração.

Destarte S. Excia. Revma. espera, pois, que o mês do Santíssimo Rosário seja para a
Diocese de Belo Horizonte a fonte de abundantes graças. Aproveito o ensejo para
comunicar o Revmo. clero que , por ordem do Exmo Sr. D. Cabral a secretaria do Bispado
fornece tudo o que é necessário para a instalação do Apostolado da Oração como também
se encarrega de pedir a agregação canônica de centros paroquiais à sede. 6

A devoção ao Rosário foi largamente recomendada pelo Papa Leão XIII e entrava em
contradição com a estruturação do culto à Senhora do Rosário que historicamente havia sido
estruturado por aqui, principalmente nas Irmandades de Homens Pretos, tão difundidas em
Minas no período colonial, local privilegiado dos congados e das coroações de reis negros. Se
por um lado o bispo buscava combater as práticas congadeiras, via-se, ao mesmo tempo, por
outro lado, diante da necessidade de promover a devoção ao Rosário em outros moldes. Essas
orientações para a realização do Mês do Rosário foram constantemente reafirmadas. Outro
6
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 7. 21 de setembro de 1923.

191
aviso, de nº 7, veiculado no final do mês de setembro do mesmo ano de 1923, fora publicado
especificando inclusive os artigos a serem observados da Pastoral Coletiva de 1915 para
estruturar a devoção do Rosário, de acordo com o modelo tridentino.7

Já em relação às medidas proibitivas ao Reinado, elas reaparecem no aviso de nº51, publicado


em outubro de 1926. Agora o arcebispo lembra aos párocos o aviso nº4, expedido como
vimos três anos antes, e se utiliza das diretrizes da Pastoral Coletiva de 1915 para legitimar a
proibição. Note-se ainda que o tema do gasto das esmolas, no excerto citado da Pastoral
Coletiva, aparece associado à realização das festas e folias.

De ordem do exmo Vigário Geral, Mons. João Rodrigues de Oliveira, para governo dos
Revmos párocos e conhecimento de todos, vimos pelo presente, lembrar o aviso nº4 editado
pelo “O Horizonte” de 11 de agosto de 1923, em que o Sr. Arcebispo Metropolitano
suprimiu a festa de danças, conhecidas pelo nome Reinado. Para comprovar o acerto da
autoridade espiritual eliminando as tais danças consideradas com prejuízo e erro unidas aos
atos litúrgicos, basta aqui lembrar-se o conteúdo do nº903, título IV da Pastoral Coletiva
dos Srs. Bispos das Províncias Meridionais do Brasil. ‘Procurem os Revmos Párocos dar às
festividades religiosas o seu próprio caráter, eliminando-se os abusos, como sejam as folias,
danças etc, impeçam o desvio das esmolas recolhidas, a título de festas, para profanidades,
ou qualquer emprego alheio ao seu próprio destino’. 8

A primeira menção à proibição do Reinado em uma carta pastoral acontece em 1927, quando
foi publicado um documento que promulgava as “Determinações da Conferência Episcopal”
da província eclesiástica de Belo Horizonte realizada naquele ano. Essa carta pastoral
afirmava a “necessidade de cultivar as vocações sacerdotais” e alertava o clero sobre os
perigos da “invasão protestante” e do “contágio do espiritismo”, em concordância com a
tônica dos discursos do episcopado brasileiro nas primeiras décadas dos novecentos. É com o
mesmo tom enfático com que trata o protestantismo e o espiritismo, que essa pastoral refere-
se ao Reinado. No entanto, enquanto para o combate ao espiritismo, os párocos deviam lançar
mão de meios como “a divulgação de impressos que primem pela clareza na refutação dos
erros espíritas e reprovação dos seus processos de propaganda”, a supressão do Reinado devia
ser efetivado, ao que parece, pelo simples ato proibitivo.

Lamentamos que não tenham ainda desaparecido totalmente os chamados ‘Reinados’ ou


‘Congados’ que põem quase sempre uma nota humilhante nas festas religiosas. São
7
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 7. 21 de setembro de 1923.Esse mesmo aviso é
replicado em setembro de 1924. Aviso nº 24.
8
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 51: “As festas do Reinado”. 09 de outubro de
1926.

192
particularmente dignos de reprovação, quando tais Reinados intervêm nas procissões ou
funções da igreja, pretendendo até distinções litúrgicas. Ainda mesmo que não se
verifiquem tais abusos, essas danças são indesejáveis, porque se prolongam por tempo
excessivo, obrigando os dançantes a beber em demasia, donde se originam as
consequências de costume.9

Estamos diante de um documento, que quatro anos depois do primeiro aviso expedido
orientando a supressão do Reinado, reafirma a postura do arcebispado ante as práticas
congadeiras. Desta vez, além de lamentar o não desaparecimento do Reinado, alguns motivos
são explicitados. Das suas justificativas para a dita reprovação, podemos perceber a
importância do Reinado na organização do culto de Nossa Senhora do Rosário: era comum
que as guardas de congado participassem das procissões, inclusive com distinções litúrgicas.
Com relação aos motivos elencados para justificar a proibição do congado, vamos perceber
que a argumentação parte de razões internas ao culto religioso (“congados que põem quase
sempre uma nota humilhante nas festas religiosas”) e alcança argumentos de cunho moral e de
ordem pública (o fato dos dançantes “beber em demasia, donde se originam as consequências
de costume”). Talvez fosse essa uma estratégia para ampliar o número de adesões ao projeto
de supressão do Congado junto ao clero e a outros grupos da sociedade, em um momento em
que rituais e práticas da comunidade negra e seus convivas eram vistos, em geral, como
ameaças à ordem, segurança e moralidade públicas (SEVCENKO, 1998, p. 21).

Ao nos debruçarmos sobre a atuação pastoral frente a essas determinações episcopais, vamos
notar um descompasso nas ações pastorais. Essa irregularidade na execução de ordens da
autoridade diocesana foi o que gerou, por vezes, uma implementação tardia das diretrizes de
Dom Cabral com relação à proibição do congado. A Reforma ultramontana no âmbito das
paróquias assumira, portanto, um caráter fragmentário.

Se as relações entre congadeiros e hierarquia eclesiástica se deram, às vezes, de forma


vertical, obedecendo às posições em cima e em baixo. Vimos que a recepção das diretrizes do
episcopado pelo pároco de Itaúna obedeceu a um movimento complementar, que não está
dissociado do primeiro, mas que se relaciona de forma mais detida com os espaços de ação e
convivência dos agentes. Trata-se de uma relação centro-periferia. O espaço de convivência
será fundamental para analisarmos as relações entre a hierarquia, o congado e os demais fiéis.
O fato dos párocos estarem mais próximos da vivência dos congadeiros do que o bispo será
9
Pastoral Coletiva do Episcopado da Província Eclesiástica de Belo Horizonte, contendo as determinações da
quinta conferência episcopal da província realizada em Luz, de 17 a 20 de setembro de 1941. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1941.

193
fundamental para mapearmos a atitude do clero frente ao Reinado nesse período.

No mesmo ano em que os párocos haviam sido orientados a tomarem medidas de supressão
do congado no Retiro do Clero e obtiveram reafirmação dos propósitos do bispo por meio de
aviso, encontramos o seguinte registro no Livro de Tombo da Paróquia de Santana em Itaúna,
datado de 1923:

Reinado. É a festa mais popular de Itaúna, parece estar na massa deste bom povo. Até esse
ano ainda o fiz, mas em vista do texto diocesano, publiquei sua abolição. Acredito que a
autoridade diocesana será instada para licenciá-la não só para aqui como para outros
lugares. É a festa a quase única fonte de renda para a igreja. Em caso de consentir
novamente a festa, tenho certeza de que a forma será completamente modificada pela
inteligente autoridade.10

Esse registro é do Pe. João Ferreira Alves que estava à frente da paróquia desde 1902 e não
via incompatibilidade entre o Reinado, “festa mais popular de Itaúna” e o “bom povo”
daquele município. O Reinado não era visto como prática que corrompia a moral e os
preceitos da fé católica. Há mais de vinte anos como pároco em Itaúna, Pe. João deixa
transparecer que bastavam impingir medidas disciplinadoras ao Reinado, tal qual era a
orientação da autoridade episcopal para as demais festividades tradicionais. Acreditava ainda
que Dom Cabral fosse examinar cuidadosamente a questão e voltar atrás em sua postura
proibitiva, licenciando o Reinado não só para Itaúna “como para outros lugares”. Pe. João
Ferreira mobiliza um bom argumento para esse licenciamento do Reinado, pois, segundo ele,
“é a festa a quase única fonte de renda para a igreja”. Em um momento em que o bispo, ao
assumir o governo da diocese, afirmava que ela estava em um estado “de carência de tudo” e
reclamava do clero empenho em contribuir para o aumento da renda, esse podia ser um bom
argumento!11 No entanto, parece que as rendas auferidas pelo Reinado não eram de tal monta
que levasse o bispo a ensejar uma orientação contrária ao ato proibitivo. Coincidência ou não,
o ano de 1923 foi o penúltimo de Pe. João Ferreira à frente da paróquia de Santana.12

10
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1923. p. 4
11
Circular n°1 – “Tributo sagrado” – Apelo ao clero e ao povo de Belo horizonte. Belo Horizonte, 1922.
Em 1929, outra circular é publicada e, por conseguinte, registrada no Livro de Tombo da paróquia de Santana,
cujo conteúdo lembrava os paroquianos do compromisso de contribuírem com a construção do novo seminário e
que para tal era sugerida a realização de festivais: “Aos 16 deste mês, D. Cabral publicou uma circular nº16
relembrando ao clero e fiéis, o sério compromiso; e mandando que faça coleta em todas as missas, em todos os
domingos, em todas as matrizes e capelas do Arcebispado, logo que se tenha conhecimento da referida circular.”
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1929. p. 20.
12
O Pe. Cornélio Pinto da Fonseca assume primeiramente o cargo de coadjutor, mas em dezembro de 1924
torna-se vigário. Pe. João Ferreira, nessa ocasião, foi nomeado capelão da Santa Casa.

194
Uma das motivações para a severa regulamentação das festas religiosas estava em estreita
relação com a alocação de recursos coletados. Grande parte das coletas era empregada em
decoração, banquetes, fogos e apenas pequena parcela era repassada para a Igreja.
Encontramos um aviso (nº 30) expedido em 1925 – cujo intuito era orientar os párocos nos
preparativos para a visita pastoral – alusões a práticas muito próximas das características das
práticas congadeiras e que explicita restrições às tais “despesas imoderadas”.

Consoante às práxis já observadas nas visitas pastorais, chama a atenção dos Revmos
Vigários o Exmo Arcebispo para que em tempo estabeleceu, não permitindo festas,
banquetes, nem outras manifestações ruidosas, que possam determinar despesas
imoderadas, sem maior proveito espiritual. Muito particularmente encarece dos Revmos
Vigários que instruam os paroquianos anunciando-lhes as inestimáveis mercês que lhe
estão reservadas pela visita pastoral convenientemente compreendida e executada. Por isso,
desde o início dos trabalhos da visita deverá inspirar nas localidades o maior recolhimento,
o espírito de oração, a assídua assistência aos piedosos exercícios não sendo tolerado, de
modo algum, folgança, dissipações e profanidades, que só poderiam ser para frustrar o êxito
da santa visita.13

O interessante é notar que o aviso começa com uma declaração de que “festas, banquetes e
outras manifestações ruidosas” faziam parte da “práxis observadas nas visitas pastorais”, o
que motivara as determinações desse documento. Fato esse que demonstra a existência de
dissonâncias entre as diretrizes episcopais e a prática do catolicismo observada nas paróquias.
É ainda curioso, que o posicionamento já citado do Pe. João Ferreira favorável à continuidade
do Reinado, não parece ter sido um fato isolado nesse contexto. No aviso nº 51, publicado em
1926, encontramos uma alusão a pedidos de párocos em favor da permanência das práticas
congadeiras que possivelmente, como o Pe. João Ferreira, não viam o Reinado com maus
olhos. E ainda, sabiam da importância social que tais práticas assumiram na formação do
catolicismo em solos brasileiros. Após renovar as determinações do arcebispo referentes à
proibição do Reinado e à promoção da devoção do Rosário, o texto desse aviso é concluído
com os seguintes dizeres: “Espera S. Exa. Revma. cessem de vez os pedidos para se
justificarem as danças que outrora abusivamente se introduziram nos atos litúrgicos da festa
de Nossa Senhora do Rosário.”

No âmbito paroquial, identificamos a partir da substituição de Pe. João Ferreira uma


rotatividade bastante intensa de párocos em Itaúna. Se ele ficara nesse posto por mais de vinte
anos, veremos que a permanência dos párocos que o sucederam tendeu a ser um espaço de
13
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 30: “Visita Pastoral”. 22 de abril de 1925.

195
tempo bem mais breve, o que pode ter desfavorecido vínculos mais consistentes entre párocos
e congadeiros. Durante quatro anos, entre 1924 e 1928, em que o Pe. Cornélio Pinto fica à
frente da paróquia de Santana, nenhuma alusão ao Reinado e à festa de Nossa Senhora do
Rosário foi constatada no Livro de Tombo. Há referência apenas à realização do Mês do
Rosário, dentro dos padrões tridentinos.

Mês do Rosário. Foi celebrado conforme a Pastoral Coletiva, com muita frequência aos
sacramentos e muita animação por coincidir com a reconstrução da igreja do Rosário que se
achava em franca ruína. As solenidades tiveram no centro praticar no dia de Cristo Rei,
festejado com tríduo, procissão, sermão, benção e numerosa comunhão. 14

Apesar do registro de que foi realizada uma procissão, não há nenhuma menção à participação
do Reinado nesse Mês do Rosário. Não obstante, em 1929, o novo pároco, Pe. José Joaquim
de Queiroz, afirma ter promovido a Festa de Nossa Senhora do Rosário, com a realização de
procissão, mas desta vez, explicita que a presença do Reinado não havia sido permitida. De
forma suscinta, ele registra que no ano de 1929 “levantou-se esta festa [de Nossa Senhora do
Rosário] fazendo-se a procissão como as demais não se permitindo o chamado Reinado. Tudo
correu bem.” 15

Essa forma abreviada com que o pároco relata a Festa de Nossa Senhora do Rosário, contrasta
com o registro do ano seguinte. Se na leitura da passagem acima somos levados a acreditar
que os ritos do Reinado foram totalmente extintos das festividades em honra a Senhora do
Rosário, talvez não tenha sido bem assim. A forma suscita com qual o pároco fez o registro,
pode ter facultado-lhe a omissão de alguns detalhes desse festejo. Pois, ao registrar a
realização dessa mesma festa em 1930, aponta que teria sido feita a “coroação dos Reis” e o
“cumprimento de promessas”, apesar da procissão não ter sido acompanhada pelas guardas de
Reinado.

Extinção da Festa do Rosário. Em agosto não se registrou nada de importante. Apenas se


fez uma ligeira Festa do Rosário com a coroação dos “Reis” e cumprimento de promessas,
tudo acompanhado pela banda. Deve-se considerar esta festa extinta, pois não se permitiu a
mais, a autoridade eclesiástica, nem mesmo só com estes atos, não pode haver mais esta
coroação de “Reis”. Far-se-á só o Mês do Rosário.16

Esse assunto foi tratado de forma melindrosa. Desta vez, apesar de explicitar a realização de

14
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1926. p. 18
15
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1929. p. 20
16
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1930. p. 23

196
alguns ritos do Reinado (no caso, a coroação de reis e o pagamento de promessas), o registro
da Festa de Nossa Senhora do Rosário já aparece com o título indicando sua extinção. É
possível perceber que o pároco usa de recursos retóricos atenuadores em seu relato, como por
exemplo, inicia-o com uma frase minorando sua importância: “em agosto não se registrou
nada de importante. Apenas se fez uma ligeira festa de Nossa Senhora do Rosário”. Ele ainda
ameniza tal evento, ao empregar o adjetivo ligeira. Melindres empregados diante de uma
determinação episcopal que ao que parece não encontrava muita legitimidade no âmbito
paroquial em Itaúna. A estruturação da devoção do Rosário em moldes tridentinos, no
contexto local, mostrava-se mais como desejo e expectativa do episcopado do que uma
realidade pastoral. As forças contrárias podem ter sido várias: o enraizamento histórico do
Reinado nas festividades em devoção a Nossa Senhora do Rosário, o dissenso dos párocos e a
pressão social contrária à proibição exercida por parte da sociedade itaunense e,
principalmente, por aqueles que têm essa devoção como um sinal diacrítico de suas
identidades, os congadeiros.

Após o Retiro do Clero de janeiro de 1931, Pe. José Joaquim de Queiroz é afastado da
paróquia Santana. Como pudemos perceber, sua permanência em Itaúna como pároco foi por
um período inferior a três anos. O novo vigário, Pe. Inácio Fidelis Campos, ao que parece,
mantivera a proibição do Reinado em 1931, mas não deixou de registrar a insatisfação do
povo com a medida.

Celebrou-se na capela deste nome, a festividade de Nossa Senhora do Rosário este ano, sem
grande entusiasmo e animação como antigamente devido achar-se o povo mal satisfeito
com a proibição do Reinado. Houve intenso movimento espiritual nas associações. 17

A insatisfação dos fiéis itaunenses com a proibição do Reinado gerou um esvaziamento das
festividades em honra a Nossa Senhora do Rosário no município. O pároco, todavia,
contrapôs essa situação de pouco “entusiasmo e animação” ao “intenso movimento espiritual
nas associações”. Seria o fim do Reinado e o fortalecimento de uma nova forma de
organização do culto à Virgem do Rosário em conformidade com os princípios tridentinos?

Os congadeiros reagiram de forma imediata à proibição. Já em 1933, o Pe. Inácio Fidelis


Campos registrou no Livro de Tombo da paróquia, que “apesar de estar proibido o tal
Reinado, os negros assim mesmo o fizeram, sem, entretanto o vigário ter dado permissão,
contrariando, assim a determinação da arquidiocese. A igreja do Rosário permaneceu
17
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1931. p. 26

197
fechada.” 18

Aproveitando-se da insatisfação de parte da sociedade itaunense com a proibição do Reinado,


os congadeiros mantiveram os festejos em honra a Nossa Senhora do Rosário. Primeiramente,
continuaram a realizar o Reinado ao redor da igreja de Nossa Senhora do Rosário, na parte
externa, uma vez que o pároco mantinha-a fechada. Porém, logo os congadeiros lançaram
mão de outra estratégia que lhes garantissem a realização do ritual em honra à Senhora do
Rosário de forma autônoma. Os congadeiros de Itaúna fundaram em 1935 a Sociedade Nossa
Senhora do Rosário (atual Irmandade das Sete Guardas Nossa Senhora do Rosário) e deram
continuidade aos festejos dissociados da hierarquia católica. Eles tinham herdado das antigas
gerações uma organização ritual regida por comandantes internos ao grupo, bastante
independente do clero.

Considerações finais

O novo modelo eclesial instituído com a implementação da Reforma Ultramontana no Brasil


foi um dos fatores que influenciou a postura contrária da hierarquia católica às manifestações
festivas de fé. As Festas de Nossa Senhora do Rosário tal como haviam sido consolidadas no
interior das irmandades leigas que foram, por vezes, bem vistas por estarem integradas em
uma religiosidade colonial pautada nas devoções e festividades católicas, passaram a ser
combatidas. Esse catolicismo peculiar passou a ser contestado pela hierarquia católica num
momento em que a Igreja empreendeu um movimento de purificação dos conteúdos da fé,
buscando eliminar as contribuições estranhas ao catolicismo romano por meio de um maior
controle das idéias e práticas religiosas vigentes.

No caso do posicionamento do episcopado de Belo Horizonte frente aos rituais do Reinado,


notamos um enrijecimento da sua postura se comparadas com outras ações que visavam
disciplinar práticas católicas desviantes dos padrões romanos. Enquanto para algumas práticas
devocionais parecia bastar que fossem, na ótica do episcopado, apenas “disciplinadas”, no
caso do Reinado foi diferente. As ordens de Dom Cabral eram no sentido de que medidas
fossem tomadas objetivando o seu desaparecimento, sua supressão. Ao tratá-lo como prática
indisciplinável, incompatível com o novo modelo eclesial que se buscava implantar, a
autoridade episcopal buscava excluí-lo do elenco das práticas católicas.
18
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1933. p. 32

198
Os primeiros documentos episcopais que explicitavam o posicionamento contrário à
continuidade dos festejos do Reinado na diocese de Belo Horizonte datam da década de 1920.
Ao adentrarmos o universo da paróquia de Santana em Itaúna pudemos perceber que as
ordens de Dom Cabral não foram cumpridas imediatamente pelos párocos. Foi possível
apreender em nossas pesquisas que houve certa falta de sintonia entre tais ordens episcopais e
sua efetivação no âmbito das paróquias, fato que pôde ser aferido tanto nas reiteradas alusões
à proibição do Reinado nos documentos diocesanos quanto nas declarações do clero
itaunense, presentes nos Livros de Tombo da paróquia. Acreditamos que a ordem de
supressão dos Reinados não foi acatada de imediato devido à importância social alcançada por
esses festejos. As festas em honra a Nossa Senhora do Rosário, nas primeiras décadas do
século XX, congregavam vários grupos sociais, a despeito das diferentes vivências rituais que
esse evento englobava. Elemento que dificultava a efetivação da proibição episcopal no
âmbito das paróquias.

Paralelo às proibições do Reinado, o episcopado buscou incentivar a estruturação da devoção


do Rosário em moldes tridentinos. No entanto, tal propósito mostrava-se mais como desejo e
expectativa do episcopado do que uma realidade pastoral. Várias forças agiam no sentido
contrário à proibição episcopal: o enraizamento histórico do Reinado nas festividades em
devoção a Nossa Senhora do Rosário, o dissenso dos párocos e a pressão social contrária à
proibição exercida por parte da sociedade itaunense e, principalmente, por aqueles que têm
essa devoção como um sinal diacrítico de suas identidades, os congadeiros.

Os congadeiros continuaram a agir no sentido de resguardar suas práticas rituais e com o


tempo organizaram-se em associações e adquiririam maior legitimidade social para dar
continuidade ao cumprimento de suas obrigações rituais no espaço público.

Referências

AZZI, Riolando; GRIJP, Klaus Van Der. História Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a
partir do povo (terceira época 1930-1964). Petrópolis: Vozes, 2008.

BORGES, Célia. Escravos e libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em


Minas Gerais, séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

199
GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. A Cultura clerical e a folia popular. Revista
brasileira de História. vol.17, nº 34.1997.

LIMA, Maurílio César. Breve História da Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: Restauro, 2001.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. Belo


Horizonte: Mazza; São Paulo: Perspectiva, 1997.

MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira (1890-1930). São Paulo: Cia das Letras, 2009.

SEVCENKO, Nicolau. Introdução: O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do


progresso. In: História da vida privada Brasileira. Vol. 3. São Paulo: Cia. das Letras. 1998.

SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: História da festa de coroação
de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

200
201
Notas sobre a atuação da vice-província redentorista de aparecida
na revolução constitucionalista de 1932
José Tadeu de Almeida1

Introdução

Este trabalho visa analisar a orientação da Igreja brasileira durante a chamada Revolução
Constitucionalista de 1932, com especial foco sobre a região de Aparecida (SP), onde
localiza-se o Santuário da padroeira do Brasil, N.S.Aparecida, e sobre a comunidade de
sacerdotes da Congregação do Santíssimo Redentor (Redentoristas).

A Revolução Constitucionalista de 1932, por seu caráter fortemente crítico ao recém-


instaurado governo de Getúlio Vargas, culminando com uma luta tradicionalmente vista como
fratricid', haja visto que brasileiros digladiavam-se com brasileiros, impôs um grande
questionamento à Igreja em terras paulistas: a adesão aos revolucionários paulistas implicaria
em grandes celeumas com a instituição religiosa no plano nacional, articulada com o Governo
Provisório desde o ano anterior; a articulação com as forças ditatoriais, por sua vez, traria
intenso desconforto à atuação pastoral no estado durante a vigência do conflito. Como se nota,
a política implementada pela Arquidiocese – liderada à época por Dom Duarte Leopoldo e
Silva – residiu, em linhas gerais, em uma política de controle de danos, que lhe permitisse
manter a autonomia de atuação evitando conflitos políticos, a despeito de algumas atitudes
mais extremadas de prelados de hierarquia inferior.

Mais que isso, é importante perceber o enfoque de D. Duarte sobre o Santuário de Aparecida
– que à época, além de ser um centro de peregrinação e irradiação da doutrina católica,
mantinha um parque gráfico de imprensa católica e sustentava financeiramente a
Arquidiocese com as rendas de seus cofres. Os papéis desempenhados pela comunidade
Redentorista de Aparecida – liderada à época pelo pe. Antão Jorge Hechenblaickner – na
intermediação entre as partes envolvidas e no trabalho pastoral, além da operação de retirada
da imagem de Nossa Senhora Aparecida de seu Santuário, na iminência de bombardeio sobre

1
Doutorando em História Econômica pela USP. Contato: josetadeu_almeida@yahoo.com.br.O autor agradece
calorosamente ao Centro de Documentação de Memória 'Pe. Antão Jorge', do Santuário Nacional de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, na pessoa do sr. Edson e das sras. Dorothéa, Deise e Maria Laura, pela
paciência, apoio logístico e pela cessão de documentos para a execução deste trabalho.

202
a cidade, contribuem também para a realização de um estudo que verifique parte do
desempenho da Igreja Católica em São Paulo entre Julho de Outubro de 1932.

Neste sentido, é importante definir um referencial metodológico para a análise dos temas.
Quanto a este trabalho, dividimo-lo em quatro partes. Em um primeiro momento, à guisa de
introdução ao tema, explicitamos alguns detalhes no que diz respeito ao status quo da
Arquidiocese de São Paulo no início dos anos 1930, e a posição do Santuário de Aparecida
neste contexto.

No segundo tópico, buscamos realizar uma análise sobre os desdobramentos da Revolução


propriamente dita no setor do Vale do Paraíba, recorrendo a documentos de época e fontes
primárias em geral. A seguir, analisar-se-á com mais detalhe a posição da Igreja em
Aparecida em relação ao conflito armado, no que diz respeito ao papel desempenhado pelos
sacerdotes redentoristas ao longo dos acontecimentos de 1932, verificando que sua atuação
junto à Revolução, ainda que pontuada por aparentes contradições, denota a importância do
Santuário durante o período, dentro do modelo de Igreja da Neocristandade que se verifica no
meio católico brasileiro até meados da década de 1950. Seguir-se-ão algumas considerações
finais, em caráter conclusivo.

Do Santuário de Aparecida no contexto da Igreja paulista

A análise do papel exercido pelo Santuário de Aparecida (que se origina no encontro da


imagem da Senhora da Conceição por três pescadores em 1717, com a posterior ereção da
capela em 1745, e sua consagração como Episcopal Santuário em 1893), bem como pela
Congregação Redentorista a partir de 1894, deve levar em conta o fato de que esta
comunidade religiosa no Vale do Paraíba consolidou-se, ao longo do século XIX, em um
importante ponto de peregrinações, com romarias vindas dos estados de São Paulo, Minas
Gerais, e regiões mais distantes, como Mato Grosso, Goiás e Paraná. Com base nesta
dinâmica, Aparecida tornou-se um centro de irradiação da doutrina católica no pós-Concílio
Vaticano I e, principalmente, após a liberdade religiosa concedida pelo governo republicano
após o Decreto 119A de 1890 (BRUSTOLONI, 1998).

203
A reformulação do modus operandi no Santuário no início do século XX deriva de duas
fontes principais: Por um lado, pela interferência direta da Arquidiocese de São Paulo 2, que
como administradora deste templo podia atuar diretamente na administração dos bens da
Basílica; e por outro, pela Congregação Redentorista, cujos primeiros padres enviados para
Aparecida, de formação alemã, aplicaram uma catequese para as multidões impregnada da
doutrina romanista presente na Igreja européia do século XIX3.

A partir de 1894, a administração pastoral do Santuário foi entregue à Congregação


Redentorista. Sob a sua égide foram celebradas a coroação da Imagem, em 1904 – o evento
católico de maior participação popular até então, com a presença de 15.000 fiéis –, a elevação
do Santuário à dignidade de Basílica Menor, em 1908, e a proclamação de N.S.Aparecida
como padroeira principal do Brasil, em 30 de maio de 19314(ALMEIDA, 2005; DIAS, 1996) .

Mais que isso, porém, é importante ressaltar que o controle do Santuário esteve reservado à
Arquidiocese de São Paulo, conforme aludimos anteriormente: Em 1908, quando da criação
de novas dioceses sufragâneas e da elevação da Sé de São Paulo à categoria de Arquidiocese,
a cidade de Aparecida pertenceria à Diocese de Taubaté. Contudo, como as rendas do
Santuário eram, em boa medida, responsáveis pela sustentação financeira da Igreja em São
Paulo, os arcebispos do Rio de Janeiro – Dom Joaquim Arcoverde, já cardeal – e São Paulo,
Dom Duarte Leopoldo e Silva, realizaram um intenso jogo diplomático no Vaticano a fim de
manter Aparecida sob o controle da Arquidiocese de São Paulo. Conseguida a permissão – e
para a provável frustração de D.Epaminondas, bispo de Taubaté – o Santuário e suas rendas
continuaram submissas à capital paulista5. (FREITAS, 2004).

2
A diocese de São Paulo foi criada em 1745 através da bula Candor Lucis Aeternae, do papa Bento XIV; seu
primeiro prelado foi Dom Bernardo Rodrigues Nogueira (1745-48). Na gestão de Dom Duarte Leopoldo e Silva
há a elevação ao status de Arquidiocese (1908).
3
Maiores informações a respeito do desenvolvimento do Santuário de Aparecida no período anterior a 1930
podem ser encontradas em BRUSTOLONI (1998) e ALMEIDA (2005).
4
Celebração realizada por D. Sebastião Leme na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, perante uma multidão
calculada em mais de um milhão de pessoas, com a presença do presidente Getúlio Vargas e todo o corpo
diplomático.
5
É importante frisar que as rendas líquidas do Santuário contribuíram para o soerguimento da Arquidiocese,
através das construções do Seminário Central do Ipiranga, do Arquivo Metropolitano, da criação de novas
paróquias e, obra gigantesca para os padrões de então, a nova Catedral da Sé.

204
Figura 01 - D. Duarte Leopoldo e Silva (segurando a Veneranda Imagem) e D. Sebastião Leme. Proclamação do
Padroado de N.S.Aparecida, Rio de Janeiro, 1931.6

Em 1932 o cenário para o Santuário de Aparecida era bastante favorável: a recente


proclamação do Padroado de N.S.Aparecida impulsionaria o fluxo de peregrinos, colaborando
para a difusão do ideário católico do período. Sua localização muito propícia – à beira da
Estrada de Ferro Central do Brasil – facilitava o transporte dos romeiros em busca do conforto
religioso7. Falava-se já em construir um templo maior, destinado a melhor atender aos fiéis,
idéia logo recusada por D.Duarte, dadas as enormes despesas que a Arquidiocese enfrentava
em seus primeiros anos de vida8 (BRUSTOLONI, 1998; BEOZZO, 1995).

Será, contudo, a instabilidade política a afetar o desenvolvimento da atividade pastoral no


Santuário de Aparecida, e esta situação tornou-se bastante nítida após a eclosão do
movimento armado de São Paulo em 9 de Julho de 1932.

6
Fonte: Centro de Documentação e Memória do Santuário Nacional.
7
Grande número de peregrinos também chegava ao Santuário por outros meios, como cavalos, automóveis –
estes mais raros – ou mesmo à pé, contudo, linhas regulares de ônibus para a cidade só começaram a surgir em
1935.
8
Os primeiros contatos em prol da construção de um novo templo em Aparecida remontam a 1926; a partir de
1935, a idéia toma vulto, contudo D.Duarte afirmava ‘estou velho, a Nova Basílica fica para meu sucessor’. Dom
José Gaspar de Afonseca e Silva, que assume a Arquidiocese em 1939, endossa o plano, mas sua morte
prematura frustra as expectativas gerais. Será apenas em 1955, na gestão do Cardeal Motta, que as obras do
Santuário novo terão início.

205
Da Revolução e as operações militares da Revolução no Setor Norte

Não pretendemos, neste tópico, delongarmo-nos a respeito das causas que engendraram a
eclosão do movimento revolucionário de 1932. De todo modo, convém enfatizar algumas
nuances específicas, a fim de situarmos nosso objeto temático ao eixo das discussões.

Em 1930, no ocaso da chamada República Velha, um golpe de estado articulado entre os


estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba derruba o presidente Washington Luís
e impede a sucessão do governador de São Paulo, Júlio Prestes; assume o governo da nação o
gaúcho Getúlio Vargas.

Apesar de ter sido conduzido ao poder através de uma proposta de modernização política e
econômica do país, Vargas a princípio acena com uma implementação destas mudanças em
um corte mais autoritário, depondo governadores, fechando o Congresso e derrubando a
Constituição de 1891. Tal situação traz intenso desagrado de algumas elites tradicionais,
notoriamente a elite paulista, que passam a trabalhar de maneira oposta ao governo Vargas.

Fortalecendo-se progressivamente através de bandeiras de luta como o estabelecimento do


voto direto, a constitucionalização do país e a escolha de um dirigente civil e paulista para a
condução do estado, o movimento sedicioso intensifica-se nos primeiros meses de 1932. Em
23 de maio do mesmo ano, esta tensão culminou em um conflito aberto no centro de São
Paulo, entre manifestantes e tenentistas, que prefiguravam grupos paramilitares que apoiavam
a Vargas, com um saldo de quatro mortos Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo, cujos
nomes formaram a sigla da sociedade M.M.D.C. (FIGUEIREDO, 1981)

Esta sociedade prestaria apoio logístico e financeiro à chamada Revolução Constitucionalista,


que eclodiu de fato na noite de 9 de julho de 1932. No dia seguinte, tropas paulistas, com
pequeno apoio de um contingente militar sul-matogrossense, estabeleciam-se nas principais
divisas do Estado, a fim de estabelecer um anteparo para a invasão do estado do Rio de
Janeiro, com o fito de depor o presidente Getúlio Vargas.

No campo de operações do Vale do Paraíba, onde se localiza a cidade de Aparecida, os


primeiros conflitos ocorreram a 13 de julho, na região de Queluz, cidade próxima à fronteira
do estado do Rio de Janeiro, entre soldados paulistas acantonados nas imediações da estação
ferroviária de Eng. Passos, já dentro do estado vizinho e a vanguarda das tropas ditatoriais.
No dia seguinte, novo tiroteio entre fuzileiros navais que haviam ocupado a cidade de Cunha,

206
e civis paulistas armados. O Quartel-General da 2a Divisão de Infantaria em Operações,
comandada pelo Cel.Euclydes Figueiredo, foi montado em Lorena, deslocando-se dias após
para Cachoeira Paulista, alguns quilômetros adiante (DONATO, 1982).

A campanha do Vale, porém, seria marcada constantemente por lances ousados – como a
conquista e manutenção, por dois meses, do Túnel Ferroviário da Mantiqueira, na divisa entre
São Paulo e Minas Gerais – e tentativas de ofensiva constantemente repelidas pelas tropas
federais. Contra os 7.049 homens em armas de São Paulo9, formados por batalhões da Força
Pública, soldados regulares do Exército, milícias M.M.D.C. e civis armados, arrojaram-se
mais de 20.000 soldados regulares do Governo Provisório, que teve de recrutar soldados de
lugares como Pará e Amazonas para assegurar um número suficiente de combatentes ao longo
dos 82 dias do conflito.

Com o avanço das tropas federais, dada a superioridade em homens, armas, artilharia
(incluindo canhões navais montados em vagões) e aviação, os paulistas foram obrigados a
recuarem constantemente, perdendo terreno: As posições no estado do Rio de Janeiro foram
abandonadas em fins de julho, tendo os paulistas montado novas trincheiras em Queluz, na
fábrica de pólvora de Piquete, e no setor do Túnel.

Esta linha de resistência foi quebrada a 8 de Setembro, sendo ordenado recuo geral: a partir de
Cachoeira Paulista, o comando das forças retraiu-se para Lorena, para Guaratinguetá e, por
fim, para Aparecida, onde passou a funcionar já nos estertores da Revolução, a 19 de
setembro. Para tentar deter novas ofensivas, monta-se uma nova linha de trincheira,
perpendicular à ferrovia Central do Brasil, junto à estação de Engenheiro Neiva. A batalha,
porém, não acontece: Em fins deste mesmo mês, um armistício celebrado em separado entre a
Força Pública de São Paulo e o comando das tropas do Governo Provisório torna
insustentável a manutenção do conflito armado, que foi oficialmente encerrado às 8 horas do
dia 2 de outubro de 1932 (DONATO, 1982).

A comunidade de Aparecida e a Revolução: notas para um debate

O desenvolvimento das operações táticas no Vale do Paraíba colocou a cidade de Aparecida


no eixo do deslocamento das tropas paulistas, constituindo-se ali um centro logístico e parada

9
FIGUEIREDO (1981), Parte II.

207
dos trens de transporte de tropas. Contudo, com o recrudescimento do conflito, e a recuada
das forças constitucionalistas, a região tornou-se paulatinamente mais sensível ao bombardeio
e á ocupação por forças do Governo Provisório. Em 19 de Setembro, o Quartel-General da
Frente Norte foi montado na estação ferroviária local: Em 2 de Outubro, importante ofensiva
seria desfechada pelas forças leais a Vargas, e a cidade entraria na linha de tiro: O término do
conflito algumas horas antes, porém, não precipitou tais acontecimentos.

No que alude ao papel da Igreja local, liderada pela Comunidade Redentorista, toda a sua
atuação foi documentada pelo padre que acumulava as funções de Superior da Comunidade e
Vigário da Basílica10, Pe. Antão Jorge Hechenblaickner. Conforme pode-se depreender em
suas anotações, a consciência da Igreja local residia em tentar eximir-se do debate político,
frisando o atendimento espiritual e a caridade através da cessão de gêneros de primeira
necessidade aos pobres e refugiados.

A narrativa de Pe. Antão é de tal modo conclusiva que é possível utilizá-la em sua plenitude,
fazendo apenas os adendos necessários para fins de localização e informação. Ela tem como
objetivo fornecer explicações públicas sobre alguns eventos ocorridos na cidade, além de
atitudes tomadas pela Congregação para a preservação da vida e da propriedade da
comunidade religiosa, e que foram interpretadas como “entreguistas” e “traidoras”. Procurou-
se manter a grafia original:

Atuação dos P. Redemptoristas de Apparecida no Movimento Constitucional de São Paulo


de Julho-Outubro de 1932.

Pouco depois do levante paulista orientou S. Exa. D. Duarte, nosso chefe espiritual, as
consciências catholicas, approvando-o junto com os homens mais eminentes do estado num
manifesto publico11. Em telegrama dirigido ao vigário da Basílica pediu S.Exa. todo o
auxílio (espiritual) possível aos soldados. Os P. Andrade 12 e Alves13 seguiram logo como
cappelães militares para a linha de frente 14, e mais tarde também o p. Pires15.

10
Cargo semelhante ao hoje desempenhado pelo sacerdote reitor do Santuário.
11
O manifesto requerido, em grande possibilidade, é o intitulado ‘Ao povo brasileiro’, lançado em 14 de julho e
cujo principal signatário é D.Duarte.
12
Padre Antônio Pinto de Andrade (1894-1968), missionário redentorista, vigário e superior da casa de
Aparecida na década de 1940. Seu necrológio assim o define: “Um grande confrade, não só pela sua gordura,
mas principalmente pela sua imensa candura. Grande, generoso e compreensivo, seu coração estava em todo seu
modo de falar e de agir”.
( http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_antonio_pinto_de_andrade.)
13
Padre Francisco Braz Alves (1887-1964), superior das casas de Tietê e Sorocaba, além de mestre de noviços e
professor da casa de Aparecida. Pregador de missões e confessor junto aos romeiros no Santuário Nacional.

208
A Basílica tornou-se durante os 3 meses da luta o centro predilecto do conforto moral e
religioso para civis e militares. 3 vezes ao dia reuniram-se os fiéis para preces fervorosas
nestes tempos afflictivos, pedindo à Excelsa Padroeira paz para o Brasil. A Archiconfraria 16
chefiava este movimento levando os convites ao povo. Nas communhões gerais destes 3
meses se distribuíram 30,000 partículas.

As tropas indo para a luta ou regressando faziam questão de estar ao menos alguns
momentos ao pé da Imagem Milagrosa e levar alguma medalha benta. Consoladora foi a
freqüência aos actos religiosos e dos sacramentos pelos soldados da lei. O próprio Estado-
Maior do setor Norte, o cel. Euclydes Figueiredo na frente, carregou numa procissão
(ilegível) no largo o pallio. Diversas veses pediram chefes do movimento, sr. João Neves,
aviadores, etc, para que se abrisse a Basílica de noite, por não dispor de tempo.

O Delegado Techinico, Dr. Valter Sócrates, nomeou o Vigário para as commissões do


hospital de emergência e da campanha do ouro. Durante quasi 2 meses providenciou a
referida commissão tudo quanto necessario para o tratamento dos soldados doentes que
foram hospitalizados no grupo local. Para o serviço de cozinha, assistencia aos enfermos,
prestaram-se as senhoras e senhoritas de Apparecida de dia e de noite gratuitamente. Em
donativos angariou a commissão cerca de 2 contos apesar da crise. Muitos soldados se
instruíram melhor na religião e receberam os sacramentos 17.

Ficando a cidade de Cruzeiro na zona de combate, acceitou o vigário os asylados para


nosso Asylo, onde ficaram durante 2 meses. As irmãs do Asylo daqui, embora carregadas
de trabalho, prestaram auxílios valiosos no hospital de emergência no grupo, e mais tarde
quando se installou alli o hospital de sangue, no mesmo Asylo 18.

Trabalhou na edição do Almanaque ‘Ecos Marianos’, da Editora Santuário de Aparecida.


(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_francisco_braz_alves)
14
Pode-se ter em mente que a referida frente é a Frente Norte, ou do Vale do Paraíba, onde se localiza a cidade
de Aparecida; a divisa com o estado do Rio de Janeiro encontra-se 80 quilômetros a Leste.
15
Padre Geraldo Pires de Souza (1895-1969), Superior Provincial de São Paulo entre 1944 e 1947. Conferencista
e escritor, deixou como último pedido “Doar os restos de minha espinha doente a um ortopedista católico, para
ele mostrar a seus clientes a anormalidade da espinha enferma.”
(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_geraldo_pires_de_souza)
16
A ‘Archiconfraria de Nossa Senhora Apparecida’ tinha como objetivos principais, segundo o ‘Manual do
Devoto de Nossa Senhora Apparecida’, cultivar a devoção mariana, favorecer o aumento e santificação do clero
(mediante orações e contribuições materiais anuais) e ‘conseguir a extirpação das seitas hostis ao culto mariano,
particularmente do protestantismo’.
17
O carisma da Congregação Redentorista – copiosa apud eum Redemptio, ‘junto Dele é copiosa a Redenção’ –
leva os missionários a realizarem missões de catequese e introdução aos sacramentos. Nota publicada no jornal
Santuário alude a este fato.
18
O ‘Asylo dos Pobres’ funcionava contíguo ao prédio da Santa Casa de Aparecida, no caminho para
Guaratinguetá, em terreno doado para estes fins em 1929: Uma indulgência de 300 dias era oferecida aos
‘piedosos católicos que visitarem o Asylo e lhe oferecerem algum auxilio’. Havia também na cidade uma ‘Vila
dos Pobres’, que por sua localização – em terreno afastado do centro da cidade – guardava mais as características
de um albergue do que de propriamente um asilo: era reservado a ‘doentes pobres’ que por alguma circunstância
não podiam ser internados.

209
A comissão da colecta do ouro recolheu donativos avaliados em 6 contos que, findo o
movimento paulista, foram entregues à Sta. Casa desta cidade 19. Inaugurando-se o hospital
de sangue no grupo, tomou o pe. João Baptista20 sobre si os auxílios espirituaes dos feridos.
2 imagens de N.S.Apparecida acompanharam nossos capellães em seu trabalho (frutuoso)
junto dos combatentes.

Nas ultimas semanas da luta, após insistência repetitiva do governo paulista, formou-se
aqui um corpo de voluntários que ganharam a simpathia geral, denominando-se Batalhão de
Nossa Senhora Aparecida21. Com grande enthusiasmo benzem-se o estandarte ou a
bandeira, que apresentou sobre as cores do Pavilhão nacional a Imagem da querida
Padroeira. Attendendo aos pedidos dos voluntários apparecidenses, acompanhou-os o
Vigário até S.Paulo, promettendo de lhes arranjar o pe. Macedo 22 como capellão, si
realmente tivessem de seguir para a lucta. Dando-se este caso inesperadamente, enquanto
estavam recebendo instrucções militares, lá mesmo foi nomeado o Capellão. 3 semanas
estiveram no fogo, mas com a protecção de N.S. todos voltaram illesos para seus lares.

Figura 02 - Pe. Antão Jorge e os voluntários aparecidenses do ‘Batalhão de N.S.Apparecida’, 1932. 23

19
Praticamente toda a arrecadação não empenhada no esforço de guerra foi doado à instituições beneficentes.
Para o caso da campanha ‘ouro para o bem de São Paulo’, o saldo, da casa de milhares de contos de réis, foi
revertido para a Santa Casa de Misericórdia da capital.
20
Padre João Batista Kiermeier (1874-1958). Nascido em Reichetsheim, Alemanha. Vice-Provincial de São
Paulo, e jornalista do ‘Santuário d’Apparecida’.
(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_joao_batista_kiermaier)
21
Com 53 voluntários enviados, o ‘Batalhão N.S.Apparecida’ mal completaria os efetivos de um pelotão, sendo
agregado a outros grupos para compor o efetivo do grupo de combate, de 700 membros. Permaneceu por alguns
dias no QG do M.M.D.C. na praça da República, na capital, seguindo depois para a zona de operações de
Campinas. Foi liderado pelo Cap. Trita, do Estado-Maior do destacamento comandado pelo Cel. Eduardo
Lejeune (CANAVÓ & MELO (1978), p.287).
22
Dom Antônio Ferreira de Macedo (1902-1989), sacerdote redentorista, Bispo auxiliar de São Paulo (1955-
1958), Administrador apostólico da Arquidiocese de Aparecida (1958-1964) e Arcebispo auxiliar (1964-1978).
Um dos grandes responsáveis pela construção da ‘Basílica Nova’ e do Seminário Santo Afonso, em Aparecida.
(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/memorial_sp.asp)
23
Fonte: Centro de Memória do Santuário Nacional.

210
Recuando as forças paulistas das fronteiras do estado, tornou-se cada vez maior o número
dos necessitados que de perto e de longe se refugiaram à sombra de N.S.Apparecida. O
Vigário obteve da M.M.D.C. e de outras instituições caritativas mantimentos que distribuiu
auxiliado pelos vicentinos e damas de caridade. Principalmente mostraram-se assíduos e
abnegados nestas distribuições o vicentino Nico Reis e a thesoureira das Damas de
Caridade D. Mariquinha Veiga. Muitas veses, enquanto centenas de indigentes se
acotovelavam na frente da dispensa das 8-14 hs, os aereoplanos (sic) voaram em cima e
jogaram bombas na visinhança24. De 20/9 a 12/10 foram distribuídos a 9265 pessoas 3701
litros de feijão, 4150 l de arroz, 1148 litros de farinha, 1722 de fubá, 515 kg de banha, 1236
kg de assucar, 708 k de xarque, 229 kg de café, 100 kg de macarrão, 57 kg de sal e 100 l de
aseite.

Finda a Revolução, recebeu o Vigário um longo telegramma anonymo de Barra Mansa,


accusando-o da formação do Batalhão de N.S.Apparecida25, e ao p. Valentim26 declarou S.
Ema. D. Sebastião27, que havia accusações contra os P. Redemptoristas no Rio. Afim de
desfaser qualquer informação inveridica, pediu o Vigário abaixo assinado que o Prefeito
local lhe desse uma declaração sobre os seus trabalhos durante o movimento paulista. O Sr.
Cardeal, a quem enviou este documento, devolveu-o com a carta que fica archivada com
este relatório.

O P.Andrade foi incansavel como capellão, ganhando por seu zelo, sua jovialidade e seu
espírito de sacrifício a estima de todos os soldados e dos próprios officiaes. O P. Pires
trabalhou também muito, enquanto o P. Alves demorou-se pouco na frente por ter outros
capellães no mesmo setor.

A accusação a que se refere o Sr. Cardeal foi motivada pelo seguinte: Nós tínhamos de
ceder o edifício onde funcionava o Colégio de Santo Affonso28 ás tropas paulistas. Por isso

24
As crônicas de guerra não fazem menção direta a esta constância de ataques à cidade de Aparecida, salvo no
dia 26 de Setembro de 1932, quando um bombardeio aéreo atingiu a estação ferroviária da cidade onde, como
vimos, estava instalado o QG da 2ª D.I.O., com uma morte e vários feridos. Possivelmente, nem mesmo a
artilharia de terra do Governo Provisório fosse capaz de causar os danos afirmados pelo Pe. Antão, dado que a
principal linha de frente constitucionalista era em Engenheiro Neiva, distrito de Guaratinguetá distante cerca de
10 quilômetros de Aparecida: as ‘bombas na visinhança’ poderiam constituir-se em ilustração. Contudo, a
vivacidade e precisão do Pe. Antão ao situar as áreas atingidas por bombas conferem significativa cota de
veracidade aos fatos.
25
Este telegrama visava dar à comunidade de Aparecida a mesma iniciativa do Bispo de Botucatu, D. Carlos
Duarte Costa, que formou um batalhão de combatentes com os seminaristas e jovens da sociedade local,
conhecido como o ‘Batalhão do Bispo’. Este ato, aliado à postura ‘liberal’ de D. Carlos na administração dos
bens da Diocese, engendraram o seu afastamento. Posteriormente, D. Carlos ficaria conhecido por romper com a
Igreja Católica Romana e fundar a Igreja Católica Brasileira, em 1945.
26
Padre Valentim Mooser (1892-1975). Chegou em 1922 ao Brasil, radicando-se em Aparecida. Responsável
pela edição do ‘Almanaque de N.S.Apparecida’ por mais de trinta anos, retornou após este período para a
Alemanha, onde faleceu. http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_valentim_mooser
27
Dom Sebastião Leme, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro.
28
Seminário menor da comunidade Redentorista, onde estudavam os jovens admitidos á Congregação antes de
serem enviados para os estudos de Filosofia e Teologia no Rio Grande do Sul, na Argentina ou na Europa. Teve
suas dependências ocupadas posteriormente pelo Hotel Recreio, que por pertencer à comunidade redentorista,

211
ficaram os alumnos no próprio convento 29. Diariamente lançaram os aereoplanos
dictatoriaes bombas sobre os arrabaldes de Apparecida. Na nossa chácara cahiram (muitas)
bombas, no Asylo ficou ferido um velho, outros cahiram na padaria de Jayme Ribeiro, perto
da Redacção da Luz30 e do Hotel Fidêncio; na estação foram incendiados vários vagões,
matando 1 homem e feridos outros. Para garantir a vida e a propriedade da Congregação
Redemptorista, não tínhamos outro recurso, que colocar, após prévia autorização do
embaixador allemão no Rio, a bandeira allemã. Além da garantia contra os aereoplanos
queríamos uma segurança contra os engenhos de alguns militares e médicos paulistas, de
obter nosso convento para allojamento de officiaes ou hospital de sangue. Como já
cedemos tudo que era possível, o collegião 31 e a chácara32, os salões da U.M.C. (União
Catholica de Moços, nota do autor)33 e dos romeiros, não podíamos sahir da nossa casa e
abandonar a Basílica. Tendo içado a bandeira allemã éramos livres de uma requisição
forçada.

Um 3º motivo ainda nos aconselhou a pôr a bandeira, o perigo de um saque numa invasão
possível de tropas contrárias a S. Paulo, casos que se deram realmente nas egrejas e casas
parochiaes de Silveiras e Cachoeira e no Collegio S. José, de Lorena34.

No dia 25 de setembro, veio o rev. Vigário Geral, Mons. (ilegível) Pinto 35, para buscar, por
ordem do Sr. Arcebispo a Imagem milagrosa que devido aos bombardeios de aereoplanos
não estava segura aqui36. Durante a sua ausência foi substituída por um fac-símile, de modo
que poucas pessoas notaram a mudança. No dia 6 de Outubro o Vigário foi procural-a na
Capela particular do Palácio S. Luiz em São Paulo.

Apparecida, aos 25 de Novembro de 1932.

tinha suas rendas aplicadas, conforme a propaganda do hotel, ‘em prol das vocações sacerdotais’. Hoje o Hotel
Recreio é administrado por iniciativa privada.
29
O convento da praça N.S.Aparecida (Figura 04) foi residência dos missionários até 3 de Outubro de 1982,
quando a comunidade redentorista se mudou para o convento da Basílica Nova, recém-construído.
30
Luz d’Apparecida, jornal local de duração efêmera e cujas instalações estavam situadas nas imediações da
atual igreja de São Benedito.
31
Seminário Bom Jesus, também conhecido por Colegião, propriedade da Arquidiocese de São Paulo que ali
tinha como meta instalar um seminário menor. Situado às margens da atual Rodovia Presidente Dutra, ganhou
notoriedade recente por haver hospedado os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco em suas visitas ao
Brasil.
32
A ‘chácara dos padres’ era formada por um grande terreno situado em um pequeno vale, utilizado pelos
sacerdotes para o plantio de gêneros alimentícios e uvas para a fabricação artesanal de vinhos, e pelos romeiros
para descanso e lazer. Hoje, em seu lugar existem o Seminário Santo Afonso, as oficinas da Editora Santuário e a
Via Dutra.
33
Dependências do antigo Cine Aparecida, transformado hoje em espaço cultural, atrás da ‘Basílica Velha’.
34
Em Cruzeiro, Cachoeira Paulista e Lorena, cidades ocupadas pelas tropas do Governo Provisório, os saques se
deram de forma constante, com a invasão de casas fechadas e lacradas (FIGUEIREDO,1981). Com os templos
religiosos, a situação não teria sido diferente.
35
Monsenhor Gastão Liberal Pinto, Vigário Geral da Arquidiocese de São Paulo e segundo Bispo de São Carlos
(1935-1947)
36
Efetivamente, no dia seguinte à retirada secreta da Imagem a cidade foi bombardeada pela aviação ‘ditatorial’,
visada desde o dia 19 por ali estar instalado o Q.G. da 2ª D.I.O.

212
P. Antão Jorge, C.S.S.R – Vigário.

Figura 03: Instante de uma das celebrações realizadas na ‘Basílica Velha’ em prol da paz no Brasil. 37

A formação do Batalhão de N.S.Apparecida teve uma certa repercussão negativa no Rio de


Janeiro, dado que a interpretação conferida ao fato dava conta de que a Congregação
Redentorista, aliada ao M.M.D.C., teria incentivado a montagem do grupo armado,
secundando iniciativas como a de Dom Carlos Duarte Costa, em Botucatu. Alguns anti-
clericais mais exaltados pretendiam conferir à participação e envolvimento do Pe. Antão –
que, como se percebe, foi meramente conjuntural, dada a sua importância na Igreja local – um
status de conspiração contra o Governo Provisório.

Diante deste cenário, Pe. Antão solicita a Benedito Barreto, prefeito afastado após o conflito,
que emita uma declaração sobre o referido sacerdote e seu papel ao longo da Revolução. O
documento resultante tem o seguinte teor:

A BEM DA VERDADE

Benedicto Julio Barreto, prefeito efectivo de Apparecida, actualmente em goso de licença e


que esteve em exercício de seu cargo durante quase todo o período revolucionário paulista,
iniciado em 9 de julho, declara, a bem da verdade, o que se segue:

Durante os dias que durou o movimento revolucionário, o Governo Paulista constantemente


solicitava, por meio de telegrammas, officios e circulares, com insistência, que se enviasse
não só gêneros, animaes, etc, como também e principalmente, voluntários.

Em uma dessas solicitações, até, o senhor diretor do Departamento de Administração


Municipal estranhava o facto da prefeitura local estar inativa, pois nada constava em S.

37
Fonte: Centro de Documentação e Memória do Santuário Nacional.

213
Paulo quanto a remessa de voluntários deste município. Por isso e por iniciativa do
Delegado Techinico local, cuja delegacia funcionava anexa à Prefeitura, foi organisada a
comissão municipal do M.M.D.C., cujos objectivos principaes eram, como é publico e
notório, a formação de batalhões e a propaganda da causa abraçada por S.Paulo. Em virtude
dos trabalhos desta comissão, que foi secundada pelo delegado techinico e delegado de
policia, diversos rapazes iniciaram-se nos serviços militares e foi formado um pelotão que,
reunido a vários grupos em São Paulo, constituio o ‘Batalhão Nossa Senhora Apparecida’.
Na formação deste batalhão outros elementos, alem dos acima citados, não tomaram parte
activa.

O Revdmo. Sr. Padre Antão Jorge, DD.Vigario desta Parochia, durante os afflictivos dias
da revolução, cumprio com seus deveres de Ministro de Deus, espalhando á mancheia, não
só os socorros espirituaes aos doentes e feridos como também fartos socorros em gêneros
alimentícios e dinheiro aos inúmeros retirantes das localidades ocupadas pelas tropas e que
para aqui vinham.

Para isso aquele boníssimo sacerdote visitava diariamente o hospital provisório, que aqui
funcionava...(última linha ilegível)

...auxílio em dinheiro e em gêneros. Graças ao seu elevado espírito de grande bondade,


formado nos bellos ensinamentos de N.S. Jesus Cristo, muitas e muitas famílias deixaram
de soffrer os horrores da fome e innumeras criancinhas tiveram um agasalho que o
ampararam os rigores do frio d’aquelles tormentosos dias.

Como padre, como Ministro de Deus, pois, foi que ele agio incansavelmente, para o bem
d’aquelles que sofriam as terríveis conseqüências da guerra.

Na formação do batalhão ‘N.S.Apparecida’ – que contava apenas com 53 rapazes que aqui
se alistaram – a sua atuação limitou-se apenas às cerimônias da bênção do pavilhão, que se
realisou na Basílica, bem como acompanhar os soldados até S.Paulo, afim de arranjar o
capellão para os mesmos e prestar-lhes, durante a viagem, os socorros espirituaes. Isso
mesmo só foi feito em virtude dos insistentes pedidos da comissão local do M.M.D.C., que
desejava sempre a sua assistencia espiritual, dado o espírito de religiosidade que sempre
rege todos os actos e acontecimentos desta terra essencialmente catholica.

Acostumado como estou a conviver com este illustre sacerdote, posso afirmar, por ser isto a
expressão mais pura da verdade, que elle, durante os tormentosos dias da revolução agio
desassombradamente pelo –BEM– do povo, emprestando a todos os afflictos uma palavra
de conforto e resignação, bem como chamando os seus parochianos, diariamente para a
Basílica de N.S. Apparecida, onde ele dirigia pessoalmente as orações PELA PAZ DO
BRASIL.

214
Eis como agio o DD.Vigário de Apparecida, Revdmo. Sr. Padre Antão Jorge, pelo qual é
credor de nossa estima de governador da cidade e da gratidão do povo.

Apparecida, 4 de novembro de 1932

Benedicto Julio Barreto – Prefeito Municipal licenciado

A origem e repercussão destes fatos se manifestou no Rio de Janeiro, espraiando-se para São
Paulo. Da então capital federal, a autoridade mais influente da Igreja brasileira no período, o
Cardeal D.Sebastião Leme, envia missiva ao pe. Antão Jorge, em que defende as posições
assumidas pelo sacerdote e desaprova o denodo do mesmo em dar visibilidade à sua atuação
neutra durante a vigência do conflito, em uma tentativa de aplicar panos quentes ao celeuma
então latente:

Rio, 19-XI-193238

Meo caro pe. Antão

Acabo de receber sua carta. Devolvo-lhe o documento. É melhor não tocar mais no assunto.
Depois da cessação da luta armada, surgiram lendas de toda a sorte. Foi uma inundação de
accusações tendenciosas. Devo diser-lhe que ninguém escapou... Nunca, porém, chegou aos
meus ouvidos o seu nome, ou o caso dos batalhões. O que me vieram falar foi uma noticia
de bandeira allemã. Expliquei, justifiquei e defendi: Depois... não se falou mais. Por que
revolver estas coisas? Seria dar-lhes vulto que não tiveram.

Alguns dos vossos são impressionáveis demais. São elles que avolumam em perigo certas
lendas que se esboçaram apenas na cabeça de um ou dois exaltados anti-clericaes. Fique
tranqüilo. Estou alerta. Nada houve e nada haverá contra padres e bispos.

Penso em ir passar a festa de N.Senhora ahí 39. Conversaremos. Rese muito por mim.

+ Seb, C.L.

Observa-se, portanto, que Dom Leme busca não dar prosseguimento ao jogo de acusações
levantado após o cessar-fogo, visando resguardar a imagem da comunidade Redentorista de
Aparecida, em duas frentes: defendendo a postura dos padres durante o conflito (como no
caso do hasteamento da bandeira alemã), e por outro lado estimulando Pe. Antão a manter-se

38
Percebe-se que a data deste documento é anterior ao relatório de padre Antão: pode-se intuir que o relatório de
25 de Novembro é uma cópia de algum relatório anteriormente enviado ao cardeal Leme; mas este teria sido
devolvido, segundo a missiva do Cardeal. Ou por outra, seria a resposta de uma carta enviada antes pelo pe.
Antão. Em quaisquer hipóteses, onde estão estes relatos primeiros do Vigário de Aparecida?
39
Para o caso, seria a festa da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro.

215
em ‘silêncio obsequioso’ até que os murmúrios se reduzissem, sobretudo tendo-se em conta
que o número de pessoas simpáticas à causa paulista no Rio de Janeiro era significativo40.

A imprensa católica em Aparecida, formada basicamente pelo jornal Santuário de Apparecida


e pelo Almanaque ‘Ecos Marianos’, ambos de responsabilidade das Officinas Graphicas do
Santuário de Apparecida, registrou uma atuação modesta, limitando-se a divulgar fatos de
interesse geral, como horários de missas e visitas ilustres:

Assistência espiritual aos combatentes.

Na Basílica há diariamente uma missa para os soldados, às 8 ½ horas, e ocasião de


receberem os sacramentos. No dia 18 houve missa campal com sermão e, em seguida, o
beijamento da Imagem41. (Santuário d’Apparecida, 17/09/1.932, p.2)

Coronel Euclydes de Figueiredo.

Esteve aos pés da gloriosa Padroeira do Brasil o Exmo.Sr.Cel. Euclydes de Figueiredo, com
seu Estado-Maior. (Santuário d’Apparecida, 17/09/1.932, p.2)

Assistência aos necessitados.

Tendo sido completamente paralisados os negócios durante as últimas semanas, organizou


o Revmo. Vigário da Basílica um posto de assistência. O M.M.D.C., de São Paulo, e outras
instituições caritativas forneceram generosamente os víveres. Auxiliados pelos vicentinos e
pelas damas de caridade, foram distribuídos, desde o dia 20 próximo passado até o dia 11
do corrente, 1.505 vales. Foram auxiliadas 8.701 pessoas 42. (Santuário d’Apparecida,
15/10/1.932, p.3)

"Bicentenário da Congregação Redemptorista.

Devido às circunstâncias atuaes, celebraram os redemptoristas residentes em Apparecida o


200º aniversário de sua fundação só na intimidade da família religiosa, no Colégio Santo
Afonso43." (Santuário d’Apparecida, 12/11/1.932, p.3)

40
Durante a Revolução Constitucionalista em São Paulo, ocorreram diversas passeatas e manifestações
favoráveis ao movimento paulista. Tratadas pelo governo como flagrantes perturbações da ordem, foram
dispersadas a tiros e espaldeiradas pela polícia da capital.
41
O ritual do ‘beijamento’ da Imagem remonta ao século XVIII, onde a Imagem era, basicamente, retirada de
seu nicho e dada a beijar pelos fiéis presentes: este ritual, por questões de higiene e segurança, dada a fragilidade
da Imagem, foi abandonado em meados do século XX.
42
Percebe-se que a soma dos atendidos é diferente da cifra fornecida pelo pe. Antão, denotando a possibilidade
de ocorrência de erros de cálculo ou diferença sobre o momento de coleta da amostra de população.
43
Referência à instabilidade decorrente das acusações de formação dos batalhões e da postura relacionada ao
hasteamento do pavilhão alemão.

216
Considerações finais

Pode-se, à guisa de fechamento, entabular as fontes levantadas ao longo deste trabalho a fim
de tecer algumas premissas e encaminhamentos. Em primeiro lugar, podemos verificar que o
Santuário de Aparecida consolidou e ampliou seu papel de irradiador da doutrina cristã no
cenário religioso brasileiro: atuando na pastoral dos romeiros e na imprensa escrita e falada –
a partir de 1935 pela Rádio Record de São Paulo, e a partir de 1951 pela Rádio Aparecida – a
Congregação Redentorista consolidou em Aparecida um centro importante na disseminação
da doutrina da Igreja da Neocristandade (MAINWARING,2004): O uso constante de
celebrações de vulto para a reafirmação da Igreja Católica no ideário do povo brasileiro.

Este papel, por sua vez, é reflexo direto da atuação da Arquidiocese de São Paulo em
Aparecida: ainda que as rendas do cofre do Santuário sustentassem as grandes obras da Sé
paulista, é preciso avançar na análise; D.Duarte não era necessariamente um avaro, sequioso
por fundos: sua preocupação, e que está suficientemente documentada, residia também no
atendimento aos peregrinos e no trato com as autoridades a respeito do desenvolvimento
regional44.

Um outro foco possível de ser realizado é que no Santuário denotam-se os conflitos de ordem
política que agitavam a Igreja brasileira: Ainda que segundo o Cardeal Leme estas agitações
proviessem de ‘um ou dois agitadores’, elas existiam, e forçavam a Igreja a retomar sua
presença no cenário social, seja no meio intelectual, com a formação do Centro D. Vital, ou
no campo político, com a fundação, anos mais tarde, da Liga Eleitoral Católica (LEC): as
acusações sobre os batalhões hipoteticamente formados pelo pe. Antão e as denúncias de
impatriotismo ressaltam estas diversas escaramuças enfrentadas pela instituição no início da
década de 1930.

Por fim, o exame atento da correspondência de Pe. Antão, que como líder da comunidade
Redentorista local é o mais capacitado a emitir opiniões sobre a atividade de seus confrades, e
também das notícias emitidas pelo Santuário d’Apparecida, mostram-nos que os
Redentoristas procuraram manter-se afastados do jogo político o quanto possível, em uma
postura de equidistância pragmática, concentrando-se no atendimento espiritual e no auxílio à
população. Em períodos de crise, esta postura é de certa forma insólita, dado que a Igreja

44
O diálogo entre as autoridades civis e eclesiásticas sempre se entrecruzou no Santuário, seja por conta de obras
de infra-estrutura urbana realizadas pela Igreja, ou pelo apoio político a obras de fé, como a concessão da
freqüência para a Rádio Aparecida.

217
brasileira oscilou entre o apoio incondicional à causa paulista45 e a defesa também
incondicional do Governo Provisório46.

De qualquer forma, é importante frisar, como nota final, que as hostilidades foram encerradas
com as tropas legalistas às portas de Aparecida, sendo que a cidade não foi invadida,
causando maiores derramamentos de sangue. Coincidência ou Providência? Não podemos
afirmar. Contudo, o estudo sobre o Santuário de Aparecida durante a guerra civil em São
Paulo abre possibilidade para a expansão da temática proposta, em torno de uma discussão
maior a respeito da Igreja Católica no Brasil ao longo da Revolução Constitucionalista de
1932, campo fértil para estudos futuros.

Referências

ALMEIDA, José Tadeu de. O Santuário de Nossa Senhora Aparecida no eixo das
transformações da Igreja Católica no Brasil: 1890-1931. In: Anais do Simpósio do CEHILA-
BR (Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina – Área Brasil) – As Muitas
faces do Cristianismo: Goiânia, 2005.

ALTEMEYER, Fernando. Aparecida: caminhos da fé. São Paulo: Loyola, 1998.

BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado novo e a


Redemocratização. In: História Geral da Civilização Brasileira. V. 4. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1995.

BRUSTOLONI, Júlio. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o


santuário e as romarias. Aparecida: Santuário, 1998.

CANAVÓ, José; MELO, Edilberto de Oliveira. Polícia Militar: Asas e glórias de São Paulo.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1978.

DIAS, Romualdo. Imagens de Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922-
1933). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.

45
O ‘batalhão do bispo’ em Botucatu, iniciativa pessoal de D. Carlos Duarte, constitui-se no mais claro exemplo
do apoio da hierarquia da Igreja ao ideário paulista.
46
“No Túnel da Mantiqueira, um padre austríaco, residente em Passa-Quatro (MG), distribuía munição aos
soldados legalistas, batendo-lhes nos ombros e dizendo ‘Coragem, rapazes, balas certeiras contra aqueles
rebeldes paulistas.’ (BARROS, Guilherme, citado por DONATO (1982), p.207)

218
DONATO, Hernani. A Revolução de 32. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

FIGUEIREDO, Euclydes. Contribuição à História da Revolução Constitucionalista de 1932.


São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1981.

FREITAS, Nainora Maria Barbosa. A formação da Província Eclesiástica de São Paulo. In;
CehilaNET, São Paulo, N.1, Ano 1, janeiro-março de 2004.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo:


Brasiliense, 2004.

MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

RIBEIRO, Zilda Augusta. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida a seus


escolhidos. Aparecida: Santuário, 1998.

S.A. Manual do Devoto de Nossa Senhora Aparecida. Aparecida: Santuário, 1934.

TIRAPELI, Percival. Igrejas Paulistas: barroco e rococó. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2003.

Internet
História [da Arquidiocese de São Paulo]. Arquidiocese de São Paulo. Disponível em
<http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/historia>. Acesso em 09 de jul de 2013.

219
220
Os fundadores do Centro Dom Vital

Guilherme Ramalho Arduini1

Introdução
A década de 1920 vê se consolidar um grupo de intelectuais cuja identidade nasce da
confluência de interesses em atender ao chamado do Cardeal Sebastião Leme por um novo
papel do laicato, especialmente do grupo de letrados, que deveriam assumir para si a tarefa de
atuar sobre o meio artístico e literário do país, então majoritariamente contrário aos católicos.2
É preciso compreender quem respondeu a esse chamado:quais as condições para a emergência
desse perfil de intelectual? Para esse artigo, foram escolhidos quatro representantes deste
grupo cujos textos dialogam entre si.

O principal espaço de convivência entre estes autores foi a revista A Ordem, publicada
mensalmente. Seu nome dá o tom de suas doutrinas, sobre as quais há estudos consolidados
(RODRIGUES, 2006). Foi para prover a revista de artigos e de ajuda financeira que se criou o
Centro Dom Vital, o projeto mais forte de união entre estes personagens. Embora Leonel
Franca tenha assumido o papel de diretor espiritual da instituição apenas após a morte de
Jackson, ele acompanhou de perto a iniciativa pioneira dos outros três, na qualidade de
confessor e amigo íntimo de Figueiredo. Dado que a instalação do Centro e seu
funcionamento interno já foram um texto deste mesmo autor (ARDUINI, 2012), o enfoque
aqui será mais compreender o modo como as trajetórias pessoais se cruzam dentro da
instituição e menos as maneiras pelas quais a instituição molda os indivíduos que passam por
ela.

Outro ponto de contato das trajetórias diz respeito aos temas que os motivaram a escrever
durante a década de 1920. Entre os autores escolhidos, Figueiredo foi aquele que publicou
mais obras: Afirmações e Do nacionalismo na hora presente (ambos de 1921); Pascal e a
inquietação moderna e Reação do Bom Senso (ambos de 1922) e Literatura reacionária
(1924). Existe, uma linha contínua que percorre todas as obras: a percepção de que tudo está

1
Doutorando em Sociologia pela USP, mestre em História pela Unicamp. Contato:
guilherme.arduini@gmail.com.
2
Cabe aqui apenas a menção à Carta Pastoral de Dom Leme ao assumir a Diocese de Olinda e Recife em 1916,
arquiconhecida como uma espécie de momento fundante dessa estratégia, que viria ser posta em prática durante
seu período como bispo e depois Cardeal do Rio de Janeiro.

221
em crise – o país, o mundo, as artes e a filosofia. E que a solução estaria na volta aos valores
esquecidos pela modernidade, como o catolicismo.

Leonel Francaredige Noções de História da Filosofia, apontando para o retorno da metafísica


como tendência da filosofia de seu tempo.Os outros dois autores compartilham o costume de
escrever biografias de nomes famosos dentro da cena católica brasileira, uma estratégia que
serviria tanto para confirmar a importância de seu objeto de estudo quantopara se afirmar
como escritores. Serrano publica Júlio Maria em 19243, enquanto Nogueira faz aparecer seu
Jackson de Figueiredo em 1928. Embora não tivesse sido concebido por este motivo, o livro
acabou coincidindo com a morte do biografado. Poucos meses depois, já pensado desde o
início como uma homenagem póstuma,A Ordem publica um número especial a seu respeito,
que também fará parte de nossas fontes pesquisadas.

Algumas biografias sobre os personagens nos ajudarão a selecionar elementos importantes


dessas trajetórias, mas elas serão utilizadas por motivos distintos entre si. A obra de Hamilton
Nogueira e o volume especial d’A Ordem podem ser compreendidos em suas diversas
camadas, isto é, tanto como fonte de informação sobre o biografado quanto sobre o próprio
autor e o momento em que ela foi escrita, ainda dentro de período de interesse desse artigo.
As outras biografias foram redigidas em contextos bastante distintos desse, por pessoas que
não necessariamente conviveram com os biografados, mas que desejavam homenageá-lo.

Para cumprir seus objetivos, este texto se dividirá em duas partes.Na primeira delas, estarão
em pauta as trajetórias sociais destes personagens ena segunda, será a vez dos livros
produzidos pelos próprios personagens citados, que nos permitem enxergar a posição destes
autores em alguns dos debates mais importantes do período. Para fechar o texto,as
considerações finais apresentam algumas interpretações mais gerais.

Parte I: Perfil comparativo dos personagens

Na década de 1920, todos os quatro nomes eram jovens em busca de afirmação social e
profissional. Apenas Jônathas Serrano é natural do Rio de Janeiro, embora todos tenham
exercido sua carreira nessa cidade. Hamilton Nogueira nasceu no interior do estado do Rio de

3
Júlio Maria foi um promotor público que decidiu tornar-se padre ao final do Império, sendo ordenado em 1891.
Tornou-se um pregador itinerante de considerável sucesso na defesa dos valores do catolicismo em uma
sociedade que vivia a separação oficial entre Igreja e Estado.

222
Janeiroe criou-se em Niterói. Jackson de Figueiredo nasceu e cresceu no Sergipe e, por fim,
Leonel Franca nasceu no extremo sul do país, mas viveu boa parte de sua infância na Bahia
até perder a mãe e ser acolhido, graças ao auxílio de um tio religioso, no colégio dos jesuítas
em Nova Friburgo. Ele não foi o único com histórias de crise familiar: Serrano foi criado pela
mãe e pela avó materna e Figueiredo vinha de duas famílias em franco processo de
decadência financeira. Seu avô materno perdeu toda a fortuna da família e seu pai teve de
trocar a faculdade de Medicina pela de Farmácia, pois não tinha condições de arcar com as
despesas do curso. Durante a infância de Jackson, Luiz Figueiredo teve de deixar este
emprego por conta de uma doença grave e atuou como professor.

Este aspecto é importante para compreender a dificuldade deste autor se instalar no Rio de
Janeiro, de onde escrevia cartas a seus amigos nas quais frequentemente reclamava da falta de
perspectivas de melhorias por não ter contatos que pudessem ajudá-lo nem uma fortuna capaz
de lhe oferecer a tranqüilidade necessária para trabalhar seus próprios textos. (FERNANDES,
1989) Além desses traços em comum, Serrano e Figueiredo possuem o fato de que ambos são
formados em Direito, mas nunca exerceram profissão que fosse ligada ao título que
obtiveram.

Franca constitui um caso à parte porque se tornou clérigo e cursou as faculdades de Filosofia
e de Teologia em Roma, o que equivale a dizer que foi escolhido para desfrutar da melhor
formação possível. A oportunidade foi bem aproveitada, a ponto de Franca tersido convidado
a permanecer em Roma como professor do mesmo instituto onde estudara. Entretanto, obteve
a permissão de voltar ao Brasil como desejava, em grande medida por conta de sua saúde
frágil (D’ELBOUX, 1956). Sobre o período de estudos de Hamilton Nogueira, pouco se sabe,
exceto que cursou Medicina na capital federal e logo depois de formado foi trabalhar em
Muzambinho, onde conheceu Figueiredo.

Em termos de reconhecimento social e profissional, os quatro encontravam-seem níveis


bastante desiguais no começo da década de 1920. Por seu compêndio Noções de Filosofia,
que seria reeditado com acréscimos duas vezes durante a década seguinte, Leonel Franca era
nome já reconhecido nos meios católicos brasileiros. Figueiredo também havia obtido algum
destaque por suas obras e por sua participação na imprensa, mas estava longe de ser
consensual. Optou por um caminho distinto de Franca ao dedicar-se aos artigos de jornal e
pequenas obras, em geral publicadas por editoras sem grande renome. Seu estilo agressivo de
escrita e sua necessidade confessada de publicar às pressas para cobrir necessidades

223
financeiras contribuíam para diminuir seu reconhecimento, mas ele permaneceu como a
principal liderança do laicato católico até sua morte, em 1928.

Serrano havia se formado em Direito, em 1909, e desde então exercera o


magistério.Alcançaria sucesso com seus manuais de História da década de 1930, cujas vendas
desdobraram-se em diversas edições.Assim que Hamilton Nogueira regressou ao Rio de
Janeiro, em 1921, obteve um cargo no Hospital D. Pedro II e se tornou professor universitário
de Medicina, dando início a uma longa carreira. Mas seu primeiro livro seria a biografia
publicada em 1928.

Nos quatro casos, suas carreiras estiveram parcial ou totalmente ligadas ao ramo da educação.
Serrano foi professor de História eparticipou da reforma educacional empreendida por
Fernando Azevedo na capital federalem 1928. Figueiredo atuou como professor de ensino
secundário e superintendente das instituições escolares do Ministério da Agricultura;
Nogueira fez brilhante carreira no ensino de Biologia e Medicina em diversas instituições. A
partir de 1929, foi livre-docente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Leonel Franca esteve sempre ligado ao ensino no colégio de sua ordemno Rio de Janeiro. O
resultado desse envolvimento é que nas décadas seguintes eles participariam de projetos de
faculdades e universidades confessionais, especialmente Leonel Franca, a quem se deve em
grande medida a fundação da PUC-RJ, a primeira de seu gênero no país.

Parte II: Os livros

Em Afirmações, Figueiredo analisa a história da literatura brasileira. Dedica seu livro a Alceu
Amoroso Lima e se diz consciente de que o único critério adotado para avaliar as obras foi a
certeza de que tudo que existe de positivo na civilização ocidental é criação da Igreja
Católica. Desse modo, Machado de Assis é classificado como estéril por sua ironia cética e
materialista, em oposição a Xavier Marques, tido como exemplar. Mas o livro não trata
exclusivamente de literatura; a política aparece através da discussão sobre o papel das
revoluções na história dos países. A palavra revolução é compreendida nesse contexto como
os movimentos de independência das colônias americanas frente às metrópoles europeias.

Para Figueiredo, esta não seria uma luta inconclusa no caso do Brasil, e por isso se tornaria o
tema de seu livro seguinte: Do nacionalismo na hora presente (1921). Nele procura explicar

224
as razões de seu sentimento antilusitano. Não se trata de condenar a colônia portuguesa, mas
de exigir dos brasileiros uma postura mais firme contra os privilégios que esta colônia possuía
em nosso meio. Segundo Figueiredo, os portugueses dominavam o comércio e a imprensa no
Brasil e sufocavam as possibilidades de os brasileiros se desenvolverem de forma autônoma.
Ainda, o patriotismo seria algo natural e perfeitamente católico, e se trabalhadopor uma elite
bem preparada poderia se transformar em um movimento de ideais superiores, o
nacionalismo.

A obra seguinte de Figueiredo foi Pascal e a inquietação moderna, ensaio de filosofia no qual
seu autor desejava se estabelecer na cena intelectual ao promover a imagem de Pascal. A
aposta (para usar um termo pascaliano) de Figueiredoé de que a preocupação religiosa do
autor francês poderia interessar à cena intelectual brasileira de seu período e, dessa forma,
trazer o centro do debate para um terreno que lhe fosse favorável. Em certa medida, descreve
a si próprio ao definir a imagem de Pascal como um filósofo que pecou por alguns excessos,
como o jansenismo, mas que nunca deixou de acreditar na Igreja Católica como a realidade
última do homem. Figueiredo quer convencer seu leitor de que Pascal não foi um filósofo
individualista nem acreditou que a realidade última do mundo fosse trazida pela razão.

Outra forma de compreender este ensaioé compará-lo a Noções de filosofia moderna4, de


Leonel Franca, na medida em que ambos sãotentativas de fundar os cânones a partir dos quais
os filósofos ditos católicos deveriam produzir. Mais precisamente, eles cumprem tarefas
complementares: Franca fornece as linhas gerais, isto é, de uma visão global da história da
filosofia. Isso inclui indicar quais são os bons autores, de quem se pode extrair alguma lição
ou, ao contrário, quais devem combatidos.

Depois de Franca apontar a trilha a seguir, restava a Figueiredoocupar seu espaço através de
um trabalho mais intensivo sobre uma filosofia específica. Sua escolha se deu por um filósofo
posterior a Descartes, portanto em diálogo com a filosofia moderna. Outros nomes
fundamentais da doutrina católica, como Santo Agostinho ou Santo Tomás, nãoatenderiam a
este critério, o que poderia ajudar a compreender a escolha por Pascal. Com isso ele
permanece inscrito nos cânones filosóficos já estabelecidos, mas aberto a uma interpretação
favorável ao projeto de tornar a Igreja Católica a legitimadora de todas as esferas sociais no
Brasil dos anos 1920. Também trabalha a favor dessa escolha o fato de se tratar de um autor

4
A versão que analisaremos algumas páginas abaixo será a de 1928, mas a primeira e a segunda publicações
datam respectivamente de 1918 e 1921, portanto anteriores ao livro de Figueiredo.

225
francês, país tido como modelo do pensamento filosófico no Brasil.Pela soma de todos esses
fatores, o resultado é que Pascal é considerado como o filósofo que respondia à angústia do
homem moderno:

Pascal e a angústia são o elemento que mais vivamente agita a consciência contemporânea,
sendo causa de primeira ordem, não só da reação espiritualista que vai estrangulando o
materialismo moderno, mas também da já tão notada renascença, senão católica de um a
outro extremo, pelo menos, cristã, entre as camadas intelectuais superiores, em todo o
Ocidente (FIGUEIREDO, 1922a, 159).

Em Reação do Bom Senso (1922), coletânea de artigos publicados em O Jornal.A maioria dos
artigos tem temas relacionados à eleição presidencial de 1922, durante a qual surgiu a
malfadada campanha contra Arthur Bernardes. Ele foi alvo de uma série de cartas
supostamente falsas atribuídas a ele e que desprezariam a importância do Exército. O quadro
traçado nos artigos escritos durante a campanha é de um país à beira do abismo do caos por
ação de alguns desordeiros no Exército, inspirados por teses “positivóides”.

Por este termo, Figueiredo pretende diferenciar os verdadeiros positivistas, para os quais
reservava o respeito, dos que interpretam de forma equivocada os preceitos de uma crença que
teria tudo para ser conservadora. Outros alvos da críticasão: Nilo Peçanha (opositor de Artur
Bernardes na eleição de 1922), Edmundo Bittencourt (dono do Correio da Manhã) e Oldemar
Lacerda, que foi um dos inventores das cartas atribuídas a Artur Bernardes, nas quais o
presidente em exercício teria demonstrado falta de consideração pelas forças armadas. Parte
dos militares apoiou a campanha de Nilo Peçanha, que contou também com o suporte de
oligarquias descontentes com o status quo– como era o caso da Bahia, Rio Grande do Sul e
Rio de Janeiro – e a realização de comícios populares.

Todas as práticas da Reação Republicana foram duramente criticadas por Figueiredo,


inclusive o envolvimento dos militares na subversão. Um tema recorrente no livro é de que os
militares deveriam manter-se em suas casernas e deixar de fazer política. Para Figueiredo,
existe uma continuidade entre o liberalismo da Reação Republicana, o apego à maçonaria que
ele identifica em Nilo Peçanha e o “positivoidismo” dos militares. Tudo concorreria para a
destruição da ordem pública e da Autoridade legalmente constituída, em benefício de uma
democracia popular que levaria ao caos.

É relevante destacar que Jackson não mistura a democracia popular com o regime
republicano. Este não é condenado;seuserrossão os mesmos do Império, tais como a Igreja

226
subjugada ao poder civil e a maçonaria/liberalismo contaminando a cultura nacional. Críticas
também sobravam para os principais apoiadores da Reação Republicana, como é o caso de
José Joaquim Seabra (presidente da Bahia e vice na chapa de Nilo Peçanha) e de Borges de
Medeiros (presidente do Rio Grande do Sul, apoiou Nilo Peçanha). A coletânea é resultadoda
reunião de textos publicados em O Jornal,interrompida de forma abrupta, com uma “Nota
Final” reproduzida no livro que não explica muito bem o porquê do final da colaboração no
jornal. Ela apenas afirma que a revolução estava derrotada depois do levante de julho de 1922,
rapidamente sufocado por Epitácio Pessoa.

O livro permite enxergar um Figueiredo totalmente imerso nas disputas políticas nacionais, o
que confere outra cor às suas ideias. Os nomes de Joseph de Maistre e De Bonald são
constantemente citados, além de Santo Tomás de Aquino, principal referência para
argumentar que a obrigação de todos os descontentes era resistir aos desmandos dentro da
legalidade, sem contestar a ordem estabelecida. Mas a maior parte do livro são comentários
diretos sobre a vida política partidária brasileira, produzidas sob o impacto dos
acontecimentos.

Em Literatura Reacionária, reunião de diversos artigos publicados na imprensa carioca ao


longo do ano de 1924, Figueiredo volta suas atenções para os nomes que povoam seu
universo de referências e de modelos de pensamento. Com Ronald de Carvalho e Tristão de
Athayde, o debate é sobre a função da arte e a necessidade de que ela esteja relacionada à
moral e à defesa da ordem. Figueiredo também mira na literatura portuguesa, comentando os
trabalhos de Antonio Sardinha e Fialho de Almeida, e na literatura francesa, comentando
autores católicos como Paul Bureau e Henri Massis. Seus colegas de Centro Dom Vital
também não deixam de ser citados, a começar por Leonel Franca, cujo elogio ao à segunda
edição deNoções de História da Filosofia o eleva ao estatuto de obra criadora de uma tradição
da filosofia católica no Brasil:

O padre Leonel Franca é, como disse, autor de uma ‘História da Filosofia’, de que a
segunda edição constituía, por assim dizer, a sua revelação ao mundo das letras brasileiras
[...] talvez só por modéstia não deu em volume à parte as últimas cem páginas que são,
realmente, a primeira tentativa séria de uma história das ideias no Brasil, de uma história e
de uma crítica dessas mesmas ideias, do ponto de vista de um sistema com direito de cidade
no mundo da filosofia, no caso, graças a Deus, o da filosofia tradicional, católica
(FIGUEIREDO, 1922a, 29).

227
Jonathas Serrano também merece comentários pela sua obra a respeito de Júlio Maria. Ela é
considerada como uma conquista para o mundo das letras católicas brasileiras, tendo em vista
a capacidade de seu autor de saber aliar seu apego ao tema com uma capacidade de análise
objetiva do pensador. Nestes e nos demais artigos, asustentação da definição do que consiste
uma obra católica – de literatura, filosofia ou história -- se dá por meio da ideia de que toda
obra possui em si um conceito de moral e de ordem. E que, portanto, nem a arte é indiferente
aos problemas concernentes a estas duas ordens de valores. Para Figueiredo, é impossível que
uma ação humana seja moralmente neutra – ou ela é boa ou é ruim – e isso vale também para
a obra de arte. E para saber se a obra é moralmente boa, o único guia confiável é a própria
Igreja Católica, cuja doutrina moral se mostra igualmente válida, hoje e sempre.A conclusão é
de que toda obra de arte precisa satisfazer igualmente os requisitos impostos por uma estética
– que Figueiredo não define qual – e pela doutrina católica.

Essa ideia se torna mais evidente ao longo da crítica ao francês Henri Massis, que vem em
auxílio à sua definição de arte. Se toda atividade humana é moral, logo ela expressa a ordem
moral presente na consciência de seus autores. Mas também é necessário que tenha senso
estético, que persiga o belo. Ora, o belo, o bom e a verdade se identificam; se a realidade mais
profunda das coisas é aquela proferida pela fé católica, logo, ela deveria estar presente nessa
realidade mais profunda. Portanto, para o crítico católico não basta que uma obra seja
esteticamente bela; é preciso que ela expresse, de algum modo, a verdade da única fé
verdadeira. Figueiredo aplica um raciocínio semelhante à sociologia, a partir das
considerações de Bureau, parâmetro para medir como deveria ser um bom sociólogo cristão,
em consonância com a ideia de que a sociologia – assim como a arte – tem seu aspecto moral
que precisa ser valorizado:

Bureau, para quem a ciência era sempre amoral, julgava que a sociologia poderia ser
organizada como outra qualquer ciência, mas ‘completada’ pela ‘arte social’, ‘a arte de
conduzir as instituições sociais’, de ‘dirigir a ação humana’, porque o espírito humano –
dizia ele – ‘jamais fica inteiramente separado das aplicações práticas’. 5

O acerto de Bureau estaria no equilíbrio deste novo conceito de sociologia, capaz de evitar
dois extremos. Entre as teses que conferiam um peso exagerado a forças impessoais e outras a
proclamar a força das grandes individualidades como formadoras de uma sociedade, Bureau

5
p. 162-3.

228
teria permanecido “no meio termo aconselhado há séculos pela Igreja Católica [...] afirmando
ainda a existência de uma lei moral transcendente.” 6

Em seu compêndio de Filosofia, Leonel Franca estabelece uma hierarquia entre os filósofos.
No Brasil, por exemplo, tudo que teria sido escrito antes deste período era digno de
reprovação, como é o caso de Sylvio Romero. Para Tobias Barreto, existe até uma cerca
condescendência tendo em vista que ele aceita a presença de um padre em seu leito de morte.
Essa ato é entendido como uma aceitação de Barreto da validade da religião. Ao contrário
destes autores, Farias Brito é visto como o modelo de intelectual a ser reproduzido, pois seu
sistema filosófico permite conceber ligações com a metafísica religiosa e transformar a
filosofia em antesala da teologia.

A estrutura de Júlio Maria é feita de duas partes: a primeira se dedica ao promotor e a


segunda ao padre. Em sua curta vida política, ocorrida no final do Império, o promotor não se
envolveu com o abolicionismo e nem com o republicanismo. Jonathas Serrano descreve-o
como alguém que encontrou o princípio do liberalismo na ação do partido coservador, mas
que em nenhum dos partidos conquistou o apoio necessário para tornar-se deputado. A
justificativa de Serrano para o fato de Júlio Maria não fazer parte dos abolicionistas era a de
que ele era favorável a uma abolição lenta e gradual, que ficasse para as gerações seguintes.
(Vale dizer que era essa a opinião mais conservadora no cenário político). Sobre sua vida de
padre, o clímax do livro são suas palestras realizadas em Belém do Pará no ano de 1902. A
imprensa local confere grande espaço aos artigos de opinião de militares positivistas, mas
também abre espaço para defensores de Júlio Maria, como é o caso de Farias Brito. Neste e
em todos os outros fatos narrados pelo livro, a tentativa de Serrano é chamar a atenção para a
capacidade de Júlio Maria em converter sua erudição e sua habilidade retórica em benefício
das pregações que realiza. Ele simbolizaria, portanto, a união perfeita entre fé e inteligência,
servindo como modelo a todos os católicos daquele momento. A primeira semente estaria
lançada pelo exemplo, mas a plantação deveria continuar com a ação de novos filósofos e
teólogos, pois Serrano faz questão de enfatizar que nem Júlio Maria nem Farias Brito
poderiam ser considerados verdadeiramente filósofos. Antes do que isso, eles teriam iniciado
incursões no mundo intelectual que deveriam ser sucedidas pelos esforços de outros, como
deixa perceber a seguinte passagem:

6
p. 162-3.

229
Cabe aos intelectuais a reação que Júlio Maria chamou a ‘revolução do pudor’, usando da
expressão de Lamartine para o movimento político francês de 1848. É oportuno reler o que,
em 1909 pregava o eloquente orador da Catedral:’Eia, homens de letras! Eia, também,
artistas! Iniciai no Brasil a revolução do pudor; que ninguém vos saia ao encontro com
fórmulas vãs, romantismo ou realismo, na prosa, parnasianismo ou simbolismo; no verso;
fórmulas vãs, repito. Só há duas literaturas: a literatura honesta e a literatura imoral. Contra
esta, quanto antes, a vossa campanha, a qual será mais do que um troféu para vossos
talentos; será um impulso à reconstrução cristão do Brasil. 7

Essa passagem possui uma afinidade com a discussão sobre a fé e as artes propiciada por
Jackson de Figueiredo em passagem já citada acima e mostra o grau de entrosamento entre
estes autores.

A respeito desse personagem, em especial, existe a biografia publicada por Hamilton


Nogueira, na qualsão constantes as digressões sobre temas como os destinos políticos do
Brasil, os problemas sociais, de filosofia e de arte, nas quais Nogueira expõe sua própria
opinião ou cita a de Jackson por longos trechos. Por essa natureza do livro, é possível levantar
a hipótese de que se trata na verdade de uma aposta de Nogueira para entrar no hall dos
autores católicos consagrados. A escolha do tema ajudaria nesse sentido, embora a vida de
Figueiredo também já tivesse merecido um livro de Perillo Gomes. Segundo Nogueira, o livro
de Gomes teria enfoque maior em seu pensamento político. Posteriormente, Tasso da Silveira
também escreveria uma biografia a respeito de Figueiredo.O dado de que os três autores de
biografias de Figueiredo sejam membros do Centro Dom Vital é relevante na medida em que
comprova sua importância na formatação dos temas e gêneros de interesse das pessoas que o
freqüentaram.

A influência do Centro também ocorria no modo como estes autores enxergaram Figueiredo,
sempre com vistas a considerá-lo um modelo de intelectual, com base em características
distintas. No livro de Hamilton Nogueira, ele é descrito ainda como uma figura perpassada
por dilemas morais e filosóficos que comprometiam sua saúde e se coadunavam com a
incerteza de sua vida profissional no Rio de Janeiro. Figueiredo encontra remédio para esses
problemas em suas amizades com o círculo de amigos, especialmente Farias Brito, a quem
trata com admiração e de quem esposará uma das filhas. Ou seja, ele se torna um modelo de
convertido para a causa católica, exemplo que os leitores são convidados a seguir.

7
p. 118-9.

230
Depois da conversão, sua obra conhece uma grande popularidade nesse meio, sendo inclusive
comentada por revistas católicas de outros países, como a francesa Études, a qual publica uma
resenha de seu livro sobre Pascal. Depois que as certezas essenciais da vida foram adquiridas,
Figueiredo torna-se um pensador requisitado por um vasto público, outra marca de incentivo
das novas gerações à conversão de seus escritos em benefício de fins apologéticos. Essa
imagem do Jackson que traz para dentro de si as dúvidas e as processa antes de tornar-se o
grande pensador que foi é essencialmente diferente da imagem construída pelo texto
publicado em sua homenagem póstuma pela revista A Ordem. Nessa última, não há espaços
para concessões a dúvidas e medos interiores: Figueiredo é apresentado como um bloco
monolítico, dotado de todas as características que fazem dele o líder da corrente católica.
Vários nomes são chamados a escrever textos curtos de apresentação de algum aspecto de sua
vida, tais como “O Filósofo”, “O Apologeta”, “O Sociólogo” e assim por diante.

O volume se abre com alguns textos inéditos de Figueiredo. Há dois capítulos de uma obra
que Figueiredo pretendia escrever sobre Joseph de Maistre. A obra pretendia mostrar como o
problema da revolução francesa e toda a negação da tradição católica eram na verdade
oriundos do período do humanismo, no meio da idade moderna. Ao primeiro raiar da ideia de
que as liberdades individuais deveriam ser superiores as de autoridade (da Igreja em primeiro
lugar, e em seguida do Rei), todo o arcabouço que permitia uma boa sociedade estava em
perigo. Este era um artigo que se pretendia de teoria política centrado exclusivamente em
Joseph de Maistre, mas com algumas citações de Berdiaeff e Maritain. Todos os autores são
mobilizados com o objetivo de demonstrar que toda a filosofia de Descartes em diante
constituiu uma grande decadência.

O artigo seguinte é uma resposta a um dossiê organizado por Augusto FrederichoSchmidit


sobre a situação da literatura brasileira naquele momento. Figueiredo arrisca-se a dizer que a
geração do presente era aquela que mais sofria, mais do que a que proclamou a
independência, por exemplo. Os problemas brasileiros resultavam da inclusão de um
pensamento social estrangeiro no país, desviando-os de seus valores clássicos de catolicidade.
A literatura poderia contribuir justamente para a retomada destes valores católicos.

Em carta endereçada a Amoroso Lima e transcrita neste volume, os dois discutem o problema
da autoridade em um momento de aparente desordem no país. Figueiredo afirma que diante
desse quadro julgado como caótico, a única resposta possível seria refazer o senso de
autoridade, mesmo que isso representasse abrir mão de algumas características suas cristãs,

231
para não perder o essencial. O problema político era, em sua visão, a manifesta preocupação
do século XX e fora da Igreja não haveria solução possível para esse conflito.

A característica do bloco monolítico atribuído a Figueiredo é perceptível desde o primeiro


artigo a seu respeito, uma biografia escrita por Olegário Silva. Este afirma que o jovem
Figueiredo era perseguido por alguns professores e por isso tinha que mudar de colégio. No
tempo de universidade, manteve um estilo de vida de fausto e pouco regramento.

Diante dessa parte espinhosa na vida de quem se pretende transformar em exemplo


hagiográfico, Olegário Matos resolve o problema com o seguinte argumento: Figueiredo
sempre havia sido admirado pelos colegas pela bravura e lealdade aos companheiros. Por
estes motivos, sua coragem de praticar atos maus não seria o contrário de uma natureza boa a
qual ele teria, mas um desejo de viver intensamente que poderia resultar em grande vantagem
para a Igreja, depois que Figueiredo se convertesse.

A ideia de um santo moderno é continuada pelos artigos seguintes, como o de Perillo Gomes,
que o apresenta como um apologeta cuja força retórica era mais forte do que a força de suas
ideias. Sua conclusão é de que este seria o tipo de apologia possível na idade contemporânea.
Na apresentação de Jackson como filósofo, Alexandre Correia destaca como Pascal conseguiu
abraçar o ideal de alma moderna e faz de Jackson um defensor das ideias do filósofo de Port-
Royal. Antes disso, porém, faz uma alusão de algumas páginas ao livro de Leonel Franca
(Noções de Filosofia) em defesa da tese presente no livro de que haveria apenas dois filósofos
brasileiros: Tobias Barreto e Farias Brito. Para Correia, Brito teria sido mais filósofo, isto é,
mais autoral e teria encontrado a fé ao final de sua vida, assim como Jackson a encontrou
depois de um período nas trevas.

O ápice do volume é o texto de Félix Contreras Rodrigues, que escreve sobre o lado
sociológico de Figueiredo, o mais denso entre eles. Aponta em Figueiredo um monarquista
que aceitou a imposição de Leão XIII de se aceitar a República francesa como se valesse
também para o Brasil. (É importante lembrar que o mesmo Papa teve relações muito mais
tensas com a República italiana). Portanto, a discussão não deveria ser qual o melhor regime
político para o país e sim como recristianizá-lo, independentemente do regime.

Em primeiro lugar, significaria dar a devida importância à Igreja, centro da tradição brasileira.
Para Figueiredo, as pátrias são criadas por desejo divino; no caso do Brasil, por exemplo, a
religião esteve presente desde o início de sua formação história. A religião seria um dogma

232
nacional, cujo desprezo condenaria qualquer regime instalado no país à decadência. Desse
dogma nacional decorrem as conseqüências que voltariam a formar a pauta de reivindicações
nos anos 1930: a escola com ensino religioso, o casamento religioso com efeito civil e o
privilégio da Igreja como a religião oficial do país. O artigo não pretende indicar em
Figueiredo um intolerante das outras religiões, mas Figueiredo pensa que a Igreja deveria ser
tratada com privilégios.

A partir dos elementos empíricos apresentados até o momento nesse artigo, já é possível tecer
algumas considerações finais.

Considerações finais

Este artigo pretendeu demonstrar como é possível compreender em seu conjuntoa produção
bibliográfica de quatro autores cariocas: Jônathas Serrano, Jackson de Figueiredo, Hamilton
Nogueira e Leonel Franca. Tal comparação permite enxergar como seus textos dialogam entre
si constantemente e por diversas formas. A primeira delas é que todos defendem certos
valores em comum, apresentados como essenciais ao catolicismo e vistos como a salvação do
país. Todos os quatro se confirmam uns aos outros na iniciativa de defender uma organização
social muito distinta daquela propalada por outros grupos do mesmo período como a solução
para o Brasil. Em certos momentos, escrevem diretamente uns sobre os outros, em manifesto
apoio às teses dos colegas. Existe também uma especialização na produção entre os autores.
Leonel Franca era o responsável pela filosofia, enquanto Figueiredo assumia o papel de porta-
voz político do grupo. Nogueira e Serrano forneciam hagiografias, alimentando o panteão
católico.

A trajetória pregressa dos quatro ajuda a compreender os motivos de sua proximidade durante
os anos 1920. Com a exceção de Nogueira, sobre quem não há maiores informações
disponíveis, todos os outros viveram dramas familiares para os quais o apego à estrutura da
Igreja Católica proporcionou respostas psicológicas e financeiras. Tal auxílio veio da Ordem
dos Jesuítas ou da Arquidiocese do Rio de Janeiro, esta última impulsionada pelo comando
revigorador do Cardeal Sebastião Leme, condição primordial para o amadurecimento das
carreiras destes pensadores. Se o papel do Cardeal foi significativamente reconhecido desde
os anos 1940, resta ainda o esforço por compreender as condições sociais de emergência do

233
intelectual católico e o que ele representou em termos de produção intelectual. Este artigo
espera ter dado uma pequena contribuição neste sentido.

Referências

ARDUINI, Guilherme Ramalho. O Centro d. Vital: estudo de caso de um grupo de


intelectuais católicos no rio de janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: PAULA, Christiane
Jalles& RODRIGUES, Candido Moreira. Intelectuais e Militância Católica no Brasil.
Cuiabá: FAPEMAT/Editora UFMT, 2012.

D’ELBOUX, Luiz Gonzaga da Silveira. O Padre Leonel Franca. Rio de Janeiro: Agir, 1953.

FERNANDES, Cléa de Figueiredo. Jackson de Figueiredo: uma trajetória apaixonada. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1989.

FIGUEIREDO, Jackson. Affirmações.Rio de Janeiro: Centro D. Vital/Tipografia Anuário do


Brasil, 1921a.

________. Do nacionalismo na hora presente. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1921b.

________. Pascal e a inquietação moderna. Rio de Janeiro/Lisboa. Centro D. Vital/Anuário


do Brasil/Renascença Portuguesa, 1922.

FIGUEIREDO, Jackson. Reação do bom senso. Contra o demagogismo e a anarquia militar.


O Jornal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil, 1921-1922.

MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NOGUEIRA, Hamilton. Jackson de Figueiredo. Rio de Janeiro/São Paulo: Hachette/Loyola,


1976 (1ª ed. 1928).

RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos. Belo


Horizonte/São Paulo: Autêntica/FAPESP, 2006.

SERRANO, Jonathas. Júlio Maria. Rio de janeiro: Livraria Boa Imprensa, 1941.

ZANATTA, Regina Maria. Jonathas Serrano e a escola nova no Brasil: raízes católicas na
corrente progressista. Tese (Doutorado) USP, São Paulo, 2005.

234
Verbetes de dicionário

Hamilton Nogueira. In: BELOCH, Israel. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de


Janeiro: Ed. FGV, 2003.

Jônathas Serrano. In: RIBEIRO FILHO, João de Souza. Dicionário de escritores cariocas.
Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965.

Jônathas Serrano e Xavier Marques. In: MENEZES, Raimundo. Dicionário literário


brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1969.

235
236
Os museus de arte sacra da Arquidiocese de Mariana: projetos
eclesiásticos (1926-1964)
Riler Barbosa Scarpati1

Introdução

Nos últimos anos, a perspectiva de análise que tem como foco a memória social tem ganhado
espaço cada vez maior nos meios acadêmicos. A sedução pela memória é tal que Andreas
Huyssen chega a afirmar que vivemos num mundo cada vez mais museificado e questiona se
o objetivo final dessa centralidade da memória nas sociedades ocidentais não seria uma
espécie de recordação total (HUYSSEN, 2000, p. 12-15). Um dos vieses desse tipo de análise
é o que se debruça exatamente sobre instituições que constroem e institucionalizam
determinadas memórias sociais, como os museus, selecionando aspectos do passado e
excluindo outros.

O primeiro museu da Arquidiocese foi criado em 1926 e nomeado de Museu Eclesiástico da


Arquidiocese de Mariana, dedicado a Arte e História Antigas. Esta instituição teve em D.
Helvécio Gomes de Oliveira, arcebispo de Mariana na época, o seu principal mentor. Segundo
consta de matéria publicada no jornal A noite, o eclesiástico teria criado o Museu para
“resguardar o que resta do custoso patrimonio artístico de nossas egrejas2”. Esta primeira
Instituição teve a duração de 18 anos, fechando em 1944.

Em 1961, novamente, a Arquidiocese de Mariana cria um novo Museu, dedicado à arte sacra.
O Museu Arquidiocesano de Mariana (MAM) teve em D. Oscar de Oliveira, arcebispo de
Mariana desde 1960, seu principal idealizador. Segundo o estatuto da instituição, o MAM foi
criado “visando salvaguardar peças de valor artístico ou histórico [...] 3”.

Partindo das considerações de Michel de Certeau, ao analisar a função da escrita e após a


analisar as cartas e as correspondências trocadas entre os prelados, entendemos que estas
1
Mestrando em História pela UFOP. Contato: riler.scarpati@hotmail.com . Este texto é parte da dissertação que
desenvolvo intitulada. “Para a glória da Roma Mineira: Museu Arquidiocesano de Mariana (1926-1964)”,
orientada pela Profª. Drª Virgínia Albuquerque de Castro Buarque.
2
Arte e Religião: o Sr. Arcebispo de Mariana sócio benemérito da S.B de Bellas Artes. A noite. Belo Horizonte.
28/06/1926. In: Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (doravante AEAM). Arquivo 5, Gaveta 2,
Pasta 19: Museu de arte sacra.
3
Ata de fundação e dos estatutos do Museu Arquidiocesano de Mariana. In: AEAM. Arquivo 6. Gaveta 2. Pasta
20: Museus. 23/07/1962.

237
justificativas oficiais apresentam-se como insuficientes4. O historiador e jesuíta francês afirma
que a escrita, essa “prática mítica moderna”, tem como função dar sentido ao mundo.
Evidentemente, que ela não é capaz de captar toda a realidade, pois a experiência é sempre
mais ampla e complexa do que a escrita pode apanhar. Para o autor, sobretudo, devemos nesse
importante trabalho de hermenêutica identificar os rastros do Outro. O Outro é, no caso da
historiografia, o passado e, no caso da escrita, aquilo que não se diz, o silenciamento, ou seja,
o não dito (CERTEAU, 1982; CERTEAU, 1998, p.221-245; BRANDIN, 2010).

Para tanto, é necessário identificar quem são os interlocutores privilegiados nessa relação,
qual o lugar social que eles ocupam nas relações sociais; e devemos lembrar que o lugar
social possibilita o dizer e legitima o que se diz, tudo isso por que a escrita é uma prática
política, que está ligada a lugares sociais, que na prática são lugares de poder.

Desta forma, argumentamos que a criação destes dois Museus apresentou-se como um projeto
universalista de determinados grupos de eclesiásticos que intercruzou ideais iluministas de
erudição e civilidade com valores católicos de evangelização das nações. Tratava-se, em
nossa concepção, da construção de uma memória de si próprio, de grupos que tinham como
referências a si mesmos.

Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (1926-1944)

Este primeiro Museu criado pela Arquidiocese, e que teve em D. Helvécio Gomes de Oliveira
seu principal idealizador, foi instalado na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Mariana. Em
sua inauguração, em 29 de agosto de 1926, notamos a presença de lideranças da área política,
cultural e religiosa da época como o Presidente do Estado de Minas Gerais Fernando de Melo
Viana, o escritor e diretor do Museu Histórico Nacional (MHN) Gustavo Barroso e o
Encarregado de Negócios da Santa Sé junto ao governo brasileiro, Dom Egídio Lari, além de
membros da comunidade marianense e eclesiásticos.

O ato maior da inauguração do Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana foi o


translado da Bandeira do 17º Batalhão de Voluntários da Pátria (imagem 1) que lutou na

4
Quando dizemos insuficiente, de forma alguma negamos que não houvesse efetivamente perda e roubo de
peças das igrejas e capelas pertencentes à Arquidiocese de Mariana. Esta era uma tônica existente entre os anos
1920 e 1960 e foi abordada por Letícia Julião. JULIÃO, Letícia. Enredos museais e intrigas da nacionalidade:
museus e identidade nacional no Brasil. Tese (doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.199-200.

238
Guerra do Paraguai. Essa Bandeira era importante marco histórico e simbólico da cidade e
extremamente ligada à sua memória.

Figura 1- Monsenhor Horta ladeando a bandeira do 17º. Batalhão dos Voluntários da Pátria (Campanha do
Paraguai), 1926. Peça hoje exposta no Museu da Inconfidência - Ouro Preto5.

A Igreja de São Pedro dos Clérigos (figuras 2 e 3) parece ter sido escolhida com propósito
específico. Trata-se de uma igreja de construção do século XVIII, mas que até aquele
momento estava inacabada e a sua escolha seria mesmo uma forma de valorizar e revitalizar
tal edifício. Como afirma D. Helvécio em carta a Lúcio dos Santos de 1938 ao recapitular os
motivos que o levaram a criar a instituição,

Com o propósito de resguardar do risco certo de se perder o que, no nosso já bastante


defraudado patrimônio sacro, ainda nos resta de valor histórico e artístico, resolvi fundar
nesta tradicional Cidade, um Museu de arte religiosa. Essa iniciativa que se firma, como se
vê, sobre os intuitos mais patrióticos, tem sido acolhida geralmente com animadores
applausos, sobrelevando os do Santo Padre Pio XI, a mim comunicados em uma carta do
Eminentíssimo Cardeal Secretario de Estado, que acompanhou o rescripto com o qual a

5
Acervo Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

239
Santa Sé, benignamente, facultou aproveitar para este fim a egreja de São Pedro, que é,
ainda inacabada, um dos mais característicos monumentos do Estado6 (grifo nosso).

Parece-nos que a criação de um Museu de Arte Sacra, nos anos 1920, com o objetivo de
proteger o patrimônio móvel ameaçado é uma atitude que atenta ao conceito de preservação e
o papel da Igreja no que tange a esse tema, pois nem mesmo o Estado brasileiro possuía uma
política de salvaguarda desses bens7.

Figura 2 - Foto de Ruínas da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Mariana. S/d. 8

6
Carta de D. Helvécio Gomes de Oliveira a Lúcio dos Santos. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 19: Museu
de Arte sacra. Mariana. 03/03/1938.
7
A atuação de Dom Helvécio no campo da cultura não se resume a criação do Museu. Ele também foi o
principal mentor da criação do Arquivo Eclesiástico, do Parque Estadual do Rio Doce e de um grande legado na
área educacional. Como afirma Mabel Pereira, a Neocristandade, da qual D. Helvécio foi um artífice, se realiza,
sobretudo, na esfera social, fora dos limites da Igreja. Sobre essas outras ações ver: PEREIRA, Mabel. In: Dom
Helvécio Gomes de Oliveira, um salesiano no episcopado: artífice da Neocristandade (1888-1952). Tese
(doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2010. p.298-322.
8
Acervo Arquivo Público Mineiro. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=29452>. Acesso em:
07/07/2013.

240
Figura 3- Foto da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Mariana, 2013.9

Porém, a tentativa da Igreja Católica em levar as peças para o Museu, evitando roubos,
implicava tanto numa reação à espoliação material e financeira de que estava sendo objeto,
como também demonstrava uma determinada valorização do estético, de cunho letrado (o
Museu era dedicado a um tipo de arte). Afinal, o desaparecimento físico de algumas peças,
apesar de lamentado pela Igreja, tanto por sua antiguidade como por sua beleza artística, não
chegava a ameaçar o imaginário religioso, continuamente reafirmado pela liturgia. Preservar
não implicava, aqui, apenas em não deixar sumir, mas, sobretudo em realçar algo já
conhecido, mas nunca demasiadamente festejado – ao menos, segundo a consideração da
Igreja.

É preciso que lembremos que a Arquidiocese, nos anos 1920, era a quarta mais importante do
Brasil ficando atrás apenas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo (PEREIRA, 2010).
Também por este fato, a criação da instituição adquire certo reconhecimento no cenário
artístico-cultural da época, conforme notamos em matéria publicada pelo Jornal A Noite,

A Sociedade Brasileira de Bellas Artes, em cujos estatutos incluiu o compromisso de


trabalhar pela creacao da Inspetoria de Monumentos Publicos de Arte, de accordo com o
projecto do illustre ex-deputado pernambucano Dr. Luiz Cedro, vem acompanhando com o
maior agrado, o Desvelado esforco que V. Ex. Revdma. vem desprendendo em prol das
artes brasileiras. Na ultima reuniao da Sociedade Brasileira de Bellas Artes, nosso
Presidente,depois de fazer longas considerações encomiasticas a sabia pastoral redigida por

9
Acervo Arquivo Público Mineiro. Disponível em
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=29450> Acesso em:
07/07/2013.

241
iniciativa de V. Excia. Com a collaboracao do alto clero de Minas, na qual estabelece
medidas de protecao as obras de Arte Sacra de Minas e bem assim a fundacao de um museu
de arte religiosa na cidade de Mariana, solicitou da assembleia fosse concedido a V. Ex. o
titulo de sócio benemerito, pelos grandes servicos que vem prestado a arte brasileira. Tenho
a honra de comunicar a V. Ex. que a proposta do nosso presidente foi immediatamente
acceita. Prevaleco-me na opportunidade para apresentar a V. Ex. os protestos da mais alta
estima e consideracao. Jose Mariano Filho –Presidente10.

Os anos 1920 são marcados por mudanças no catolicismo no Brasil. A Igreja propõe uma
reação de cunho religioso-moral, um projeto de intervenção no público, embora não de forma
partidária, sequer governamental (CALDEIRA, 2011, p. 244-245). Para fazê-lo, a atuação no
campo cultural mostrava-se imprescindível, mas era uma atuação voltada para as camadas
médias urbanas e para as elites, uma vez que a maioria da população estava excluída do
sistema educacional, através, sobretudo, da imprensa. Esse movimento, nos anos 1920,
assume novos contornos com a reaproximação da Igreja com o Estado, a chamada
Neocristandade, da qual D. Helvécio Gomes de Oliveira foi um dos seus principais artífices
(PEREIRA, 2010). Se nos primeiros anos da República Brasileira a relação entre Estado e
Igreja era vista como problemática por causa do regime do Padroado reinante durante o
período colonial e Imperial, nos anos 1920 o Império deixava de representar perigo à
República.

D. Helvécio Gomes de Oliveira procurava atuar em diferentes âmbitos, ou seja, tanto na


esfera religiosa quanto na esfera político-cultural. O que de comum perpassava a sua atuação
era o fato de considerar a Igreja o substrato moral da sociedade. Paralelo a esse cenário, a
própria Igreja Católica já se propunha a pensar a questão da preservação dos bens móveis e
imóveis de que era proprietária, nesse sentido destacando-se a própria Carta Pastoral de
1926, assinada pelo episcopado Mineiro e constando entre seus signatários o Arcebispo de
Mariana.

No que tange aos museus, os anos 1920 apresentam-se como momento de inflexão. As
coleções dos museus passaram a apresentar como foco a temática histórica. Neste sentido,
ocorreu a criação de novas instituições como o Museu Histórico Nacional (ABREU, 1996) e
outras instituições tem suas coleções modificadas de modo a privilegiar o discurso histórico
através da exposição de fragmentos do passado como o Museu do Ipiranga ou Museu Paulista

10
Arte e Religião: o Sr. Arcebispo de Mariana sócio benemérito da S.B de Bellas Artes. A Noite. Belo
Horizonte. 28/06/1926. In: AEAM. Arquivo 5, Gaveta 2, Pasta 19: Museu de arte sacra. Esta citação também é
usada por Mabel Pereira em sua tese já citada. Cf. PEREIRA, M. In: Op. Cit., p.291-292.

242
(BREFE, 1998). O cenário de fundo desta mudança são as comemorações do Centenário da
Independência do Brasil em 1922 e as mudanças no seio da intelectualidade brasileira, mais
preocupada em debater o passado nacional e a sua herança.

Em 1944, o Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana é fechado e suas peças e objetos


transferidos ao Museu da Inconfidência que seria criado pelo Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN), fundado em 1937 pelo decreto-lei nº25. Mas qual a lógica de
fechamento deste Museu? Porque a transferência de peças ao Museu da Inconfidência?

Acreditamos que parte da resposta se encontra na mesma lógica de composição que permitiu a
abertura da instituição em 1926, ou seja, trata-se de mais uma aproximação do universo
religioso-eclesiástico com a esfera política, nunca de maneira explícita. Tratava-se de uma
relação de troca entre pares. Dentro dessa estratégia de atuar junto ao Estado, mas não
explicitamente, e estabelecer essa relação como uma troca entre pares, em 1943 o SPHAN
escreve a D. Helvécio Gomes de Oliveira salientando que a restauração da Matriz de São
Caetano, pertencente à Arquidiocese, foi aceita “Tenho o prazer de levar ao conhecimento de
V. Excia. Revdma. que, de acordo com o estabelecido no artº 19, 3, do decreto-lei nº 25 de 30
de novembro de 1937, êste Serviço deliberou iniciar obras de reparação na Igreja Matriz de
São Caetano”11.

Por outro lado, é importante lembrar que essa composição não se faz sem vetos e disputas,
que não se tornaram públicas. D. Helvécio Gomes de Oliveira veta algumas peças,
pertencentes às Igrejas da Arquidiocese, solicitadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade:

Apresenta-me V. Excia. [...] uma relação de objetos do culto, pertencentes à Matriz de


Catas Altas, as quais – danificados pelo tempo – se encontram afastados do serviço
religioso. Manifesta em seguida o desejo de que sejam cedidos ao Museu da Inconfidência,
a inaugurar-se brevemente. Não me oponho a tal desejo, antes verei em satisfação tais
objetos ali figurando. Apenas excluo as três seguintes que me parecem ainda necessárias ao
culto daquela Matriz12.

De toda forma, e apesar dos vetos, o Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana foi
fechado em 1944 e suas peças transferidas ao Museu da Inconfidência. Entre 1944

11
Carta de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Dom Helvécio Gomes de Oliveira. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta
2. Pasta 18: SPHAN/Patrimônios. 01/11/1943.
12
Carta (manuscrita) de Dom Helvécio Gomes de Oliveira a Rodrigo Melo Franco de Andrade. In: AEAM.
Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 18: SPHAN/Patrimônios. 28/07/1944. As peças vetadas são: um pelicano maior, com
cabeça separada; dois anjos ajoelhados; e um andor com vinte e um anjos.

243
(fechamento do Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana) e 1961 (inauguração do
Museu Arquidiocesano de Mariana/MAM), as lideranças da Arquidiocese mantiveram
relativa correspondência com diversos interlocutores, eclesiásticos ou não, relativos ao tema
do patrimônio móvel pertencente à instituição católica. Entre os pontos mais importantes, os
casos de dois objetos merecem destaque: o primeiro é o da Bandeira do 17º batalhão de
Voluntários da Pátria e o segundo é o quadro intitulado “Desposório de São José”. Esses dois
objetos foram alvo de disputas com o Museu da Inconfidência/DPHAN, embate não público,
diga-se de passagem. Essas duas tensões não serão objeto de nossa análise neste trabalho, mas
mostram que a Arquidiocese não se descuidou de todo em relação ao seu patrimônio móvel,
mesmo que ela não possuísse mais um Museu neste período.

Museu Arquidiocesano de Mariana (MAM)

A situação de ausência de um Museu para salvar as peças ameaçadas de desaparecimento


físico começou a mudar em 1959. Nesta data, D. Oscar de Oliveira retornou a Mariana, após
ter sido Bispo de Pouso Alegre entre 1954 e 1959, na condição de Bispo Coadjutor de D.
Helvécio Gomes de Oliveira13 e expõe seu plano de fundar (ou refundar) um Museu dedicado
à arte sacra. Pelo menos é o que se depreende de certa memória que se construiu sobre a ação
deste prelado14.

Com base no argumento de que o roubo de peças de arte sacra permanecia ininterrupto, as
lideranças eclesiásticas da Arquidiocese, tendo em D. Oscar de Oliveira o ator principal,
lançaram-se a uma tarefa: a fundação do MAM em 8 de abril 1961, que teve em D. Oscar de

13
Há importância da figura de D. Helvécio Gomes de Oliveira na vida de D. Oscar de Oliveira considerável. Foi
D. Helvécio quem permitiu que D. Oscar arrecadasse fundos que possibilitassem sua manutenção como
estudante do Seminário e fora ele quem ordenara D. Oscar padre e, posteriormente, bispo auxiliar de Pouso
Alegre entre 1954 e 1959. Em 1944, segundo Mabel Pereira, D. Helvécio nomeou o então padre Oscar como
diretor da Banda de Música São José. PEREIRA, M. In: Op. Cit., p.274.
14
Na Ata de Fundação do Museu, escrita em Setembro de 1962 por outra pessoa, que não D. Oscar, há um
trecho em que se afirma esta vontade do prelado anterior ao seu retorno a Mariana. Também em carta do Padre
Acrísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra já existe uma referência a peças a serem transportadas para o
museu vindas da localidade de Itaverava e que teriam sido escolhidas e solicitadas por D. Oscar de Oliveira em
julho de 1960. Carta de Padre Anísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6, Gaveta 2,
Pasta 20: Museus.Itaverava. 23/08/1962.

244
Oliveira seu presidente e no cônego Pedro Terra15o primeiro diretor, a quem competia “[...] a
administração ordinária do Museu e representá-lo juridicamente.16”.

Estes dois eclesiásticos assumiram uma função de liderança no que concerne ao projeto do
MAM e de todos os trâmites necessários para a sua execução. Desta forma, é preciso que
tenhamos em mente que eles se lançaram a uma tarefa de múltiplas frentes para colocar o
MAM em funcionamento, escolhendo desde o local onde seria instalado, as possíveis e até
necessárias adaptações, as peças que seriam expostas (e a complexa negociação em torno de
se consegui-las), a divulgação em meios católicos e não católicos e o apoio de entidades
públicas e privadas, tais como governos municipal, estadual e federal e empresas.

O local para se instalar o MAM foi o prédio anexo à Igreja da Sé, conhecido como Casa
Capitular (figura 4). Sobre este prédio pairava a dúvida de ter sido no passado uma prisão
(aljube), conforme vemos em carta ao diretor do Museu

Muito me alegrou saber que tal empreendimento seria entregue aos seus cuidados. Tal obra
será muito bem sucedida, sob a direção de um intelectual de seu naipe. [...] Desejaria
apenas saber se se trata sòmente de arte sacra, ou se o futuro museu a se instalar no ex-
aljube (?)abrirá suas portas, também, às outra espécie de arte17 (grifo nosso).

Figura 4 - Fachada do Museu Arquidiocesano de Mariana. Correio da Manhã. 30 mar. 1963.

15
Cônego Pedro Terra era professor de arte sacra no Seminário Maior São José, em Mariana, e ocupava o cargo
de Chanceler do Arcebispado. O Chanceler do Arcebispado é um notário e secretário da Cúria.
16
Ata de fundação e dos estatutos do Museu Arquidiocesano de Mariana. In: AEAM. Arquivo 6. Gaveta 2. Pasta
20: Museus. 23/07/1962.
17
Carta de Danilo (?) a Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 19: Museus. Belo Horizonte.
22/08/1962.

245
Todo museu se constitui como sendo um acervo de peças, e o MAM não foi diferente. Suas
peças vieram de igrejas e paróquias pertencentes à Arquidiocese. Importante neste momento,
além de mostrar como se deu a constituição do acervo, é entender como o valor de erudição,
característica das práticas de colecionar, permeava as relações sociais desses líderes
eclesiásticos.

D. Oscar de Oliveira, através de suas visitas a paróquias e igrejas e Cônego Pedro Terra,
através do envio de cartas aos prelados, se articulavam para formar o acervo do MAM. Pelo
menos estas estratégias são notadas em carta do padre Acrísio de Assis Reis, da localidade de
Itaverava, ao cônego Pedro Terra:

Por intermédio do Sr. Henrique Aleixo de Paula, presidente do Conselho Vicentino e meu
sacristão, venho fazer a V. Revdma. a entrega das imagens e objetos, escolhidos pelo
Exmo. Sr. Arcebispo, por ocasião de visita pastoral em julho de 1960 e destinados por S.
Excia. ao Museu Arquidiocesano. Segue anexa, a lista das mesmas ficando as despesas do
transporte sob a responsabilidade desta paróquia. (Grifo nosso) 18

Parece ter havido boa recepção à notícia de criação do MAM, pois alguns prelados davam
preciosas indicativas às lideranças do Museu de onde poderiam conseguir peças para a
formação do acervo, conforme lemos abaixo

Acompanho com alegria e satisfação os preparativos para a inauguração do novo Museu na


velha Casa Capitular de minha saudosa cidade de Mariana. [...]Senhor Cônego Pedro Terra,
Sr. Professor de arte sacra, Sr. Diretor do Museu, é bastante rica em arte religiosa a zona
por onde, ainda hoje, passa o antigo caminho que da cidade dos Bispos conduz ao Santuário
Ermitão do Caraça = Santa Rita Durão - Catas Altas - Santa Bárbara – Brumal. [...] Uma
das vantagens da fundação do Museu, o maior benefício que vai fazer é justamente o de
impedir a perda de nosso patrimônio, dos nossos bens de família, das riquesas artísticas e
das imagens devotas que se guardam e veneram nas antigas igrejas barrocas que herdamos
dos nossos antepassados19 (grifo no original).

O MAM também contou com doações. Entre elas, destacam-se uma ermida doada pelo Sr.
Afrânio Martins da Costa, de Itabira (MG), ermida que “pertencera aos seus antepassados” e
um “esmoler da Capela de São José” doado por Augusto de Lima Júnior, intelectual e
historiador mineiro. Entretanto, é preciso que tenhamos em mente que o significado dessas

18
Carta (manuscrita) de Padre Acrísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6, Gaveta 2,
Pasta 20: Museus. Itaverava. 23/08/1962.
19
Carta de Pe. Samuel (ilegível) a Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 20: Museus. Rio
de Janeiro. 11/09/1962.

246
doações no acervo total do Museu é muito pouco. Como nos afirmou a museóloga Maria da
Conceição Brito, na constituição do acervo do Museu essa doação de particulares representa
muito pouco do total, “somando uns três ou quatro objetos apenas”20.

Figura 5 – Fotografia de Santo Antônio de Santa Bárbara.21

Houve colaboração para a inauguração da instituição da Prefeitura e da Câmara Municipal da


cidade onde só se viam “seminaristas”. Acreditamos que essa ajuda se dava principalmente
por que órgãos públicos da cidade e Arquidiocese compartilhavam de determinada visão de
mundo. Se houvesse disputas (e elas existiam), não se tornavam públicas. Sobre o
compartilhar visão de mundo, o prefeito de Mariana, em 1962, Daniel Carlos Gomes assim se
pronunciava sobre a criação da instituição

Agora que a estrada rodoviária para Ouro Preto começa a ser consoladora esperança, o
Museu Arquidiocesano vai ser um ponto de atração muito grande para os turistas cultos,
que nos vierem visitar. – Os senhores sabem que paízes como a Itália e a Suiça têm no
turismo suas principais fontes de renda. A cidade de Mariana, apresentando novas atrações,

20
Entrevista realizada com Maria da Conceição Brito. 14/08/2012. Entrevistador: Riler Barbosa Scarpati. UFOP.
21
Acervo Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

247
chamará a atenção dos visitantes, que aqui virão tomar um conhecimento com as fontes da
história e da arte em Minas.22 (Grifo nosso)

As empresas doadoras foram em número considerável. Mais importante do que listar o que
elas doaram é evidenciar que elas compartilhavam da mesma visão da direção do MAM,
como podemos notar na correspondência enviada pela Shell Brasil S.A à direção do Museu:
“A propósito, desejamos comunicar a V. Revdma. que esta companhia de bom grado acede à
sugestão contida na supracitada carta, de acôrdo com sua tradição de prestigiar as iniciativas
de natureza sócio-cultural.23”

Paralelamente, diretor e presidente do MAM fizeram publicar a notícia da inauguração do


Museu, como notamos no Correio de Minas de 22 de setembro de 1962

O Sr. Antônio Joaquim de Almeida, diretor do Museu do Ouro de Sabará, disse que vai
indicar o nome de Dom Oscar de Oliveira para membro do Conselho Internacional de
Museus, porque êle fundou o Museu Arquidiocesano de Mariana, dando ao Brasil e
sobretudo a Minas um grande presente. (...) O Museu Arquidiocesano será inaugurado hoje,
às 15 horas, com a presença do governador e de todos os diretores de museus em Minas24.

A solenidade de inauguração do Museu começou no dia 20 de setembro de 1962 e durou três


dias, sendo o destaque concentrado no sábado, 22 de setembro, decretado feriado municipal
pelo prefeito. Nesse tríduo comemorativo enalteceu-se a memória do mestre Manoel da Costa
Ataíde, “gênio e amigo do Aleijadinho”, com conferências, palestras e números de arte. O
importante parece-nos ser mostrar que a Arquidiocese de Mariana, ao criar o Museu, lançou
mão da construção de determinada memória sobre si mesma, no sentido mesmo de
enquadramento da memória de que nos fala Michel Pollak (1989, p. 3-15), e que, de alguma
maneira, essa memória era compartilhada por outras pessoas, o que não impedia que outras
construções de memória na cidade de Mariana e no espaço de atuação da Arquidiocese se
colocassem em disputa com esta da instituição e que poderiam ora se afastar, ora se aproximar
das concepções dos prelados.

Entre as pessoas convidadas a participarem da inauguração como conferencistas estão o


escritor e jornalista Sérgio D. T. Macedo, os professores Ivo Porto de Menezes, Carlos del

22
O Museu Arquidiocesano de Mariana. In: O Arquidiocesano. 19/08/1962. p.3.
23
Carta a J.E. de Macedo Soares ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6. Gaveta 2. Pasta 20: Museus. Rio
de Janeiro. 13/12/1963. Evidentemente, que não descartamos aqui a dimensão mais pragmática da ajuda das
empresas ao Museu, pois além da publicidade das mesmas, isso de alguma maneira poderia servir para algum
tipo de isenção fiscal, já que a instituição museal estava se tornando de utilidade pública.
24
Mariana abre museu barroco hoje de tarde. In: Correio de Minas. 22/09/1962. p.1.

248
Negro e Edson Mota. No caso de Ivo Porto, ele foi convidado a palestrar sobre o tema
“Manoel da Costa Ataíde, sua vida e obras”, já Carlos del Negro teve como temática de sua
apresentação “Pintura de Ataíde” e, por fim, Edson Mota “Pintura Mineira no século XVIII e
os problemas de sua restauração”. Mas quem são essas pessoas convidadas a palestrar? Em
nosso ponto de vista, mais significativo parece ser a evidência de que a direção do Museu ao
convidar pessoas para falar sobre arte e cultura do século XVIII tenha recorrido a letrados,
pessoas com as quais eles tinham identificação e compartilhavam determinados pontos de
vista sobre a cultura e a cultura civilizada. Desta forma, valemo-nos, mais uma vez, das
contribuições de Michel de Certeau ao afirmar que o lugar social possibilita aquilo que se diz,
mas também autoriza esse dizer.

A criação do MAM não pode ser deslocada das mudanças no cenário dos museus e do
catolicismo brasileiro nos anos 1960. Ocorreu um crescimento do número de museus que o
filósofo alemão Hermann Lubbe definiu desta maneira “O que são, então, os museus? Visto
desta perspectiva, os museus não são mais do que necrotérios de relíquias civilizacionais”
(LUBBE, 2009, p.161). O crescimento do número de museus é tanto em termos de quantidade
e de temáticas, quanto em termos de esferas de poder que o criaram, ou seja, passam a surgir
museus estaduais e municipais, além dos nacionais. Esse crescimento se deve a dois fatores:
nova linguagem dos museus com maior participação do público e o desenvolvimento do
turismo e das comunicações, de modo que os museus se tornassem produtos de consumo
cultural25.

As mudanças no catolicismo brasileiro surgiram nos anos 1950. Expressa pela ideia de
catolicismo militante, este novo movimento no quadro religioso pregava maior aproximação
das camadas populares e grupos ligados às transformações sociais. A Igreja não atuava apenas
no nível institucional, mas também na própria realidade social. Nem por isso, podemos
afirmar que toda a Igreja está envolvida nesse processo: são setores, grupos, alas (DELGADO
& PASSOS, 2007, P.97-98).

No caso da Arquidiocese de Mariana, o impacto dessas novas ideias, veiculadas sobretudo


pelo Concílio Vaticano II26, foi fragmentado por esse eclesiástico. A Arquidiocese era

25
Myriam Sepúlveda dos Santos diz que mais de 80% dos museus brasileiros criados até 2004 surgiram depois
dos anos de 1960. SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Op. Cit., p.59.
26
Fazemos referência ao Concílio Vaticano II (1962-1965), mas não acreditamos que suas determinações
tenham tido importância na constituição do Museu, já que o Concílio termina apenas em 1965 e nessa parte do
trabalho exploramos apenas até o ano de 1964, por conta da já mencionada falta de documentação e também por

249
considerada conservadora e as palavras de D. Oscar sobre ela vão nessa direção “‘nimbo de
pureza e santidade’, berço que originou um povo catolicíssimo, apegado à tradição e aos
‘valores patriarcais’ e que se mantinha ligada aos princípios da moralidade e da fé”
(SILVEIRA, 2009, p.94).

Considerações finais

A perspectiva de se propor uma interpretação histórica de Museus pertencentes a uma


Arquidiocese pode nos trazer novas formas de abordar o catolicismo no Brasil no século XX,
elucidando tanto suas auto-representações mais apregoadas, como as intensas disputas
travadas no interior da Igreja Católica. Em parte, foi essa uma das tarefas que pretendemos ter
evidenciado.

É possível notar, e espero ter conseguido mostrá-lo, que os projetos de criação dos Museus
dedicados à arte sacra pela Arquidiocese possuem várias similitudes. Os valores de erudição e
civilidade expressos pelo ato de colecionar e expor objetos, a tentativa de uma valorização do
próprio passado pela via de um tipo de arte e a dimensão de tentar expandir a fé católica
através dos lugares de memória. A dimensão (ou retórica) de perda (GONÇALVES, 2002)
tão aludida pelos eclesiásticos, e que estava no âmago das políticas de preservação do
patrimônio no Brasil no período, não pode ser subdimensionada27. As diferenças talvez
estejam mais no entorno da própria Arquidiocese e da temática dos museus. Esta, nos anos
1920, possuía preeminência em Minas Gerais, já nos anos 1960 havia perdido muito de sua
importância em parte pela fragmentação e criação de novas dioceses e pela importância que a
própria Arquidiocese de Belo Horizonte ganhava desde então.

Por fim, uma questão perpassou toda a exposição anterior: como, a partir das lições de Michel
de Certeau, podemos identificar o(s) Outro(s) que ele menciona? Em nossa visão, o Outro
desse processo de institucionalização de memórias sociais são os fiéis da Arquidiocese. Há, na
escrita epistolar, uma mescla entre silêncio em relação aos fiéis e a tentativa de taxá-los como
ignorantes. O povo ou os fiéis só eram consultados sobre as ações dos Museus caso
reclamassem de algo. E, quando reclamavam, eram taxados de ignorantes em termos

que em fins de 1964, Cônego Pedro Terra recebe uma bolsa de estudos para estudar Arte Sacra nos Estados
Unidos e só retorna em Março de 1966.
27
Agradeço à professora Letícia Julião por me atentar a este ponto.

250
culturais. Algo próximo do que acontecia com as políticas de preservação do patrimônio em
âmbito nacional durante todo o período aqui abordado (CALABRE, 2009, p.17).

Referências

Primárias

1Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 19: Museu de Arte Sacra.

Arquivo 6, Gaveta 2, Pasta 20: Museus.

Periódicos

O Arquidiocesano (1961-1964)

CARPEAUX, Otto Maria. Contrastes de Mariana: Museu e não. In: Correio da Manhã. Rio
de Janeiro. 30/03/1963. 2º caderno. Sem página.

Mariana abre museu barroco hoje de tarde. In: Correio de Minas. 22/09/1962. P.1.

Arquivo Público Mineiro. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br>. Acesso


em 07 de jul. 2013.

Secundárias

ABREU, Regina. Memória, História e Coleção. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro: volume 28, 1996, p.37-64.

BREFE, Ana Cláudia F. Um lugar de memória para a nação: O Museu Paulista reinventado
por Affonso d’Esgragnolle de Taunay (1917-1945). Tese (Doutorado em História),
UNICAMP, Campinas, 1999.

CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009.

251
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. O catolicismo militante em Minas Gerais: aspectos do
pensamento histórico-teológico de João Camillo de Oliveira Torres. In: Revista Brasileira de
História das Religiões. ANPUH, Ano IV, nº10, maio 2011, p. 233-278.

DELGADO, L.A.N & PASSOS, M. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (1960-
1970). In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo da ditadura
militar: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, (O Brasil Republicano; v.4) p.93-132.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio


cultural no Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 2002.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Tradução de


Sergio Alcides. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2000.

JULIÃO, Letícia. Enredos museais e intrigas da nacionalidade: museus e identidade nacional


no Brasil. Tese (Doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG, 2008.

PEREIRA, Mabel. Dom Helvécio Gomes de Oliveira, um salesiano no episcopado: artífice da


Neocristandade (1888-1952). Tese (doutorado em História). Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH, 2010.

POLLAK, Michael.Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,


vol.2 nº3, 1989, p.3-15.

SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19, nº55, Junho/2004, P.53-73.

SILVEIRA, Diego Omar. Sacerdos Magnus: Dom Oscar de Oliveira, O Arquidiocesano e a


recepção fragmentada do Concílio Vaticano II na Arquidiocese de Mariana (1959-1988).
Dissertação (Mestrado em História). Mariana: UFOP, 2009.

252
253
GT3 – Corpo, cultura e religião

Coordenador/a

Anaxsuell Fernando da Silva Ana Carolina Rigoni


Doutorando em Antropologia Doutora em Educação Física pela
pela UNICAMP. UNICAMP.

Comentadores

Ronaldo Almeida Amurabi Pereira de Oliveira


Pós-doutor pela École des Hautes Études Doutor em Sociologia pela UFPE.
en Sciences Sociales de Paris. Professor do Professor permanente do Programa de Pós-
PPGAS UNICAMP. Graduação em Educação da UFAL.

Resumo

O corpo posiciona o indivíduo em um espaço de experiência e sociabilidade, de modo que,


este pode ser compreendido como parte importante do processo pelo qual o conhecimento
religioso é integrado a certas disposições corporais e modos de orientação. Propomos com
este GT fomentar a discussão que se estabelece entre a dimensão corpórea e o sagrado,
compreendendo o corpo não como mero receptáculo do sagrado, ou mesmo como apenas
expressão deste, mas como elemento fundamental para se compreender o universo religioso.
Ao se presentificar no encontro sudeste da ABHR, este GT dá continuidade aos esforços
empreendidos na etapa nacional do encontro desta associação ocorrido no ano anterior, bem
como em outras etapas regionais ao longo deste ano e se consolida como um espaço aberto às
mais o sagrado: gênero, saúde, festa, rituais etc.

254
“Agora eu canto assim...”: impactos da afrofagia1 neopentecostal
sobre a Música Popular Brasileira.
O caso Bezerra da Silva e o CD “Caminho de Luz”
Patrício Carneiro Araújo2, Maria Célia Virgolino Pinto3

Introdução

Quase sempre o encontro entre o proselitismo neopentecostal e as religiões afrobrasileiras


resulta em choques e conflitos. Tais conflitos, na maioria das vezes, tomam proporções de
diferentes formas de violência, sendo que uma delas é a intolerância. O dossiê organizado por
Vagner Gonçalves da Silva e publicado sob o título de Intolerância religiosa: impactos do
neopentecostalismo sobre o campo religioso afrobrasileiro (SILVA, 2007), nos dá seguras
pistas dos efeitos da ação neopentecostal no seu desejo de se impor como religião
hegemônica. Historicamente, o universo religioso afro-brasileiro manteve uma relação muito
estreita com o da Música Popular Brasileira, um exemplo claro disso é a história do samba e a
grande contribuição dos afro-sambas para a configuração de uma música popular que fosse
capaz de representar uma identidade nacional. Contudo, isso tem mudado substancialmente
com a ascensão, cada vez maior, das religiões neopentecostais que possuem um grande poder
de influência, inclusive na produção musical dos artistas que a elas se convertem. Neste
trabalho pretendemos analisar o caso do sambista negro Bezerra da Silva, tendo como objeto
de análise sua trajetória antes e depois da sua adesão à Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD). Através da sua discografia veremos que sua conversão representa um bom exemplo
de como a adesão às igrejas neopentecostais pode provocar um efeito profundamente
afrófago, no que se refere à produção musical desses artistas egressos do universo religioso
afrobrasileiro e que migram para igrejas que vem a herança ligada a essas religiões como uma

1
Afrofagia: termo tomado de empréstimo a Ari Pedro Oro (2007), a partir do neologismo utilizado por ele
Religiofagia, ao se referir às características da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), nas suas relações com
as outras religiões. Refere-se à prática da IURD de “comer” e se alimentar de elementos e símbolos das religiões
afrobrasileiras.
2
Doutorando e mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP. Bolsista FAPESP. Membro do Núcleo de Estudos
Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, da PUC/SP. Contato: patricionisoji@hotmail.com.
3
Professora da UFPA e UEPA. Doutoranda e mestre em Ciências Sociais, PUCSP. Membro do Núcleo de
Estudos Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, da PUCSP. Contato: celiavirgo@ufpa.br.

255
história a ser negada. Trata-se de uma forma bem peculiar de violenta negação do outro e que,
portanto, pode ser vista como uma forma de intolerância religiosa.

“Agora eu canto assim...”: entre o silêncio e a negação

Nosso ponto de partida é o documentário de Eduardo Coutinho intitulado O Fio da memória.


Este documentário, de 1991, tinha a intenção de apresentar a história do negro no Brasil nas
suas produções culturais, religiosas, simbólicas, etc., no momento em que a abolição da
escravidão no Brasil completava cem anos. O documentário conseguiu atingir boa parte de
suas pretensões. Uma delas foi demonstrar a estreita relação que existe entre religiões
afrobrasileiras, música e racismo. Privilegiaremos dois aspectos da produção negra presente
no documentário: a música e a religião.

Entre as muitas personagens que Eduardo Coutinho conseguiu trazer para seu documentário
destaca-se uma família negra que entra em cena a partir dos 35 minutos do filme. Trata-se da
família de Dona Derci da Cruz e Souza, e foi o depoimento dela que deu nome a este trabalho,
“Agora eu canto assim...”.

No diálogo entre Eduardo Coutinho e Dona Derci, religião, música, afirmação e negação de
identidades se encontram. Esposa de um neto do famoso poeta simbolista Cruz e Souza, Dona
Derci faz um emocionante relato que inclui seus sonhos de juventude (ser cantora), seu
casamento precoce (com doze anos), sua vida sofrida de mulher negra provedora da família
(vendedora de acarajé) e sua transição religiosa do candomblé para o pentecostalismo
(Assembléia de Deus). A música permeia todas essas experiências típicas de uma mulher
negra e pobre da sua época. O diálogo entre Eduardo Cotinho e Dona Derci se dá na seguinte
sequência: Dona Derci (D.D): - Esse é meu marido. Eduardo Coutinho (E.C): - Como é que
se chamava ele? D.D: - Silvio Cruz e Souza. (...).

A partir desse momento D. Derci começa o relato que nos será útil para pensar a relação da
sua história de vida com a de Bezerra da Silva:

D.D: - Eu era cantora. Depois que eu saía às seis horas, vendendo acarajé:
“Iemanjá olodô ê, wà lodô. Ê, ê Ijenã, wá lodô”. E.C: - A senhora era de
candomblé pra cantar isso, ou não? D.D: - Eu não era de candomblé. Mas
metia o nariz em candomblé. Mas eu hoje sou cristã! Sou da Assembleia!

256
E.C: - Assembleia de Deus? D.D: - É. Os cânticos agora eu canto assim:
“Jesus chorou, entrando em Jerusalém. Jesus chorou, entrando em
Jerusalém. Ele veio buscar o que era seu, eles rejeitaram Jesus agora é
meu... Ele veio buscar o que era seu, eles rejeitaram Jesus agora é meu.
Jesus agora é meu, Jesus agora é seu. Jesus, é meu é meu, Jesus, agora é
seu”.

Ora, o caso de D. Derci é emblemático no que diz respeito a pessoas egressas das religiões
afro-brasileiras que se convertem ao neopentecostalismo. Grosso modo, o que acontece é que
tais pessoas, depois que se tornam evangélicas, podem assumir três tipos básicos de
comportamento em relação a seu antigo pertencimento religioso: (i) em respeito à sua
ancestralidade (pertencimento étnico) e aos familiares e amigos que permanecem ligados aos
antigos vínculos religiosos, preferem silenciar em relação ao seu passado; (ii) passam a negar
esse passado, seja através de palavras (depoimentos, testemunhos públicos, desconstrução do
discurso feito anteriormente, etc.) ou de ações e (iii) combate aberto e assumido à religião
anterior. No caso de D. Derci a postura assumida (negação) se assemelha muito ao que
aconteceu a Bezerra da Silva. E, diga-se já no início, essa prática tem sido comum entre muita
gente, principalmente entre artistas que durante sua passagem pelas religiões afrobrasileiras
produzem uma arte fortemente ligada a esse universo religioso e depois que se tornam
evangélicos, são influenciados, tanto pelo discurso das suas igrejas quanto por um desejo
pessoal, a desconstruírem publicamente o seu passado religioso. Vejamos como esse processo
se deu com Bezerra da Silva.

Biografia de Bezerra da Silva4

José Bezerra da Silva nasceu em Recife, em uma data cercada de incertezas, 23 de fevereiro
de 1927. Se o ano pode ser indicado com segurança, o dia não é tão seguro assim. De família
pobre, antes mesmo de nascer, Bezerra foi abandonado por seu pai (Alexandrino Bezerra da
Silva) que largou sua mãe, Hercília Pereira da Silva, e foi viver no Rio de Janeiro onde se
engajou na Marinha Mercante. Tempos depois, já com dois filhos, José e Vanda, Dona

4
As principais informações sobre a vida e obra de Bezerra da Silva aqui apresentadas foram retiradas da obra de
Letícia C. R. Viana: Bezerra da Silva: produto do morro. Trajetória e obra de um sambista que não é santo
(Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998). Também se consultou o dicionário digital Cravo Albin da Música
Popular Brasileira (www.dicionariompb.com.br), além da própria discografia de Bezerra e outras fontes digitais.

257
Hercília também se muda para o Rio onde se casa novamente com aquele que seria o pai do
seu terceiro filho.

Antes mesmo da mudança da família, José já possuía inclinações para a música, o que era mal
visto pela família por ser tido como inclinação à malandragem e vagabundagem, visão
estereotipada dos artistas na época. O desejo da família era que José se dedicasse a uma
“profissão séria” como pedreiro, marceneiro, mecânico, ou alguma coisa do gênero. Porém, o
garoto insistia na música, se engajando, posteriormente, em uma banda composta por amigos.

Para se livrar dos constantes conflitos em família, José resolveu ir para a Marinha Mercante,
como já fizera seu pai. Forçado pelas circunstâncias da entrada na Marinha, Bezerra se vê
obrigado a fazer um contato com o pai que o abandonara ainda no ventre da mãe. Isso porque
seu ingresso na Marinha dependia de uma certidão de nascimento. Recusando o documento
assinado pelo padrasto, ele procurou o pai biológico que concedeu a certidão com uma data
contestada pela mãe.

Na Marinha do Recife, Bezerra se viu novamente envolvido em confusões. Segundo ele, um


superior o assediou sexualmente. Ao fazer estardalhaço sobre o episódio, foi exposto
publicamente em uma cerimônia solene convocada para expulsá-lo da corporação. Ele, então,
saiu da Marinha gritando aos quatro ventos que ali “só tinha veado”.

Não querendo voltar para a casa da sua família foi então para o Rio de Janeiro em uma
viagem cujos relatos são cheios de elementos desencontrados, como atesta Letícia Viana, na
sua pesquisa sobre a vida do cantor (1998, p. 20).

A partir desse momento, Bezerra da Silva, resolvendo permanecer no Rio, passou a procurar
emprego até encontrar na construção civil, reduto de muitos nordestinos que acorriam para
aquela cidade em busca de emprego. Sempre na tentativa de manter seu vínculo com a
música, deu um jeito de conseguir uns “bicos” em algumas rádios e com isso foi mantendo o
emprego de pedreiro e a ocupação de músico instrumentista. Permaneceu assim por muito
tempo. Em 1954 a situação se agravou e ele perdeu os dois empregos. Bezerra passou então
por um dos momentos mais difíceis da sua vida, ao qual ele mesmo chamou de “Os sete anos
nas ruas da amargura” (idem, p. 24).

258
A mendicância e a experiência com a umbanda

É entre o período de 1954 a 1961 que José Bezerra passará pela metamorfose que o
transformará em Bezerra da Silva. Segundo a sua principal biógrafa, Letícia Viana, sem
emprego e numa crise de criatividade musical grave, José Bezerra foi rejeitado também por
seus dois irmãos que já viviam no Rio. Assim, ele caiu na mendicância total, passando a
perambular pelas ruas de Copacabana. Comendo lixo e dormindo entre os mendigos, José
viverá uma situação de total abandono, extrema miséria e crise existencial, sendo inclusive
rejeitado pelos próprios colegas de infortúnio, já que uma vez um membro do grupo entre o
qual dormia insinuou que ele era muito azarado e atraira incômodos sobre ele durante uma
noite fria no arpoador. Segundo Letícia Viana assim se deu esse fato:

Certa vez estava vagando à noite pela praia de Ipanema e acabou indo dormir no meio de
outros mendigos, num canto das pedras do Arpoador. De repente uma onda enorme
arrebentou na pedra e molhou todo mundo. O chefe dos mendigos disse que dormia ali
havia muito tempo e aquilo nunca tinha acontecido: devia ter alguém muito “carregado”.
Bezerra da Silva achou que era com ele e foi embora (ibidem, p.25).

Outro episódio que marcaria muito Bezerra foi quando ele “Voltou a vagar todo molhado pela
noite fria. Olhou para uma mulher que ia passando, talvez buscando uma centelha de calor
humano, e ela o encarou e disse: ‘Sai pra lá, Exu!’”. Assim, rejeitado por se assemelhar a
Ele, tempos depois Bezerra seria acolhido e reerguido por Exu, em um terreiro de umbanda.
Tudo aquilo era demais pra José. É então, que ele tenta o suicídio. Porém, essa tentativa de
suicídio começaria a lhe revelar um mundo que ele ainda não conhecera bem. Letícia Viana
descreve esse episódio:

Um dia resolveu se matar. Arranjou formicida e um copo. Foi para o meio da mata e
quando foi beber o veneno o copo voou de sua mão, como se alguém tivesse dado um tapa.
Mais tarde soube que o tapa fora dado por seu guia Ogum, Caboclo Rompe Mato. “Então
você acredita que quando eu fui levantar o copo assim, eu levei um tapa e o copo voou da
minha mão. Não vi ninguém, só senti o tapa. O copo saiu voando, sumiu no meio do mato,
acabou... Fiquei com aquilo na cabeça e voltei para a rua de novo. Mais tarde é que eu fui
saber, né”.

Após a tentativa frustrada de suicídio e a intervenção sobrenatural de Ogum, José volta para
as ruas. E é ali, que, através de uma senhora que às vezes lavava as suas roupas e lhe dava
pratos de comida, que ele tem seu primeiro contato com a umbanda. Depois de se lamentar
para Dona Paula, José recebe dela um papelzinho com um endereço e uma certa quantia em

259
dinheiro suficiente para a condução e o pagamento de uma consulta com uma mãe de santo.
Tratava-se do terreiro Caboclo Junco Verde, em Rocha Miranda. A mãe de santo era Dona
Iracema. Ali uma Preta Velha lhe fez grandes revelações. Segundo ela, em tempos anteriores,
José havia desafiado com arrogância um certo Exu Tranca Ruas, além de ter desprezado uma
amante que fez questão de lhe enviar feitiços. E, para que não houvesse dúvidas, a Preta
Velha fez questão de lhe mostrar, em um copo d’água, o rosto da amante preterida, vingativa
e feiticeira.

Depois de mostrar porque sua vida estava travada, a Preta Velha o encaminhou para outro
terreiro, a fim de se tratar. Dessa vez seria em um terreiro da Gávea, na Rua Embaixador
Graça Aranha, chefiado por Pai Nilo de Almeida Filho. Ali José Bezerra teria o grande
encontro com seu guia espiritual, Ogum, em um retiro espiritual de quatro anos. Ora, para
quem já havia passado três na mendicância e na miséria, quatro anos de caridade e roupa
branca não seriam tão longos assim. Seria justamente ali que José Bezerra entraria em contato
com muitos dos elementos que passariam a povoar as letras tanto dos sambas que ele viria a
compor quanto daqueles que ele passaria a cantar.

O samba de Bezerra da Silva

Uma vez no terreiro de umbanda, ao mesmo tempo que purgava seus vacilos com Exu Tranca
Ruas, Bezerra aprimorava seu talento musical e ainda se apropriava de muitos dos elementos
que comporiam seus sambas. Afinal, não era por ali que passavam os malandros, os manés, os
vacilões, as mulheres valentes ou maltratadas pelos companheiros, os trabalhadores, os
políticos em busca de sucessos eleitorais, os moradores dos morros, os ricardões, as piranhas,
os cachaceiros, os metidos, os espertos, e os outros tipos humanos que povoariam as letras dos
sambas interpretados por ele? É ali então que amadurece o talento de Bezerra da Silva. E, por
muito tempo, os elementos constitutivos das culturas dos terreiros serão a marca dos sambas
interpretados por ele, a ponto de muitos classificarem seu samba como sambandido. Sua
identificação com esse universo e as populações que o povoam foi tão forte que ele passou a
ser identificado como legítimo representante dos anseios desse povo. “Bom malandro”,
“Embaixador da favela”, “Porta-voz dos excluídos e marginalizados”, “Cantor bandido”,
“Artista marginal” e “Porta-voz da favela”, foram rótulos assumidos por Bezerra, sendo que
todos eles revelam como esse sambista assumiu de forma clara uma posição politizada em

260
relação às condições de vida em que viviam ele e seus interlocutores na música. É nesse
sentido que Bezerra absorve e assume os elementos e as linguagens dos povos de terreiros
como elementos dos seus sambas. Com uma discografia vasta, grande parte dos seus trabalhos
inclui elementos das culturas dos terreiros, como mostram as letras a seguir:

Quadro sinótico de sambas cantados por Silva que apresentam elementos ligados às religiões afro-brasileiras

Meu pai é general de umbanda (Regina do Bezerra, Miltinho, Jorge Garcia. 1987.)

Tudo que eu peço a vovó ela faz/Também o que eu peço a vovô ele faz./Ele é rei de Aruanda,mas vovó também
manda/Quando os dois pedem juntos ninguém me passa pra trás/O que eu quero mais, o que eu quero mais/Tenho plena
consciência e sempre andei correto./Por isso sou bem protegido por Vovó Catarina e Pai Anacleto/Eles são meus protetores
e garantem minha paz./O que eu quero mais, o que eu quero mais./Meu pai é general de umbanda e assim é seu grito de
guerra/Se Ogum perder demanda nunca mais desce na terra,/E em seguida ainda disse que filho de umbanda não cai./O que
eu quero mais, o que eu quero mais...

Zé fofinho de Ogum (Embratel do Pandeiro, Dario Augusto. 2003)

Zé fofinho de Ogum/Era um tremendo cento e setenta e um/Dizia que os búzios falavam/Tudo o que ele queria saber/Desde
a hora de nascer/Até a hora em que ia morrer/Amarrava mulher, amansava marido/O Zé só faltava era fazer chover/E da
esposa do delegado faz-me-rir/Ele tomou de montão/Pra dizer que o doutor andava lhe traindo/E ela pensando que ele era
bom/Uma linda imagem de São Jorge/Em suas costas, muito bem tatuado/O Zé com um papo de caô-caô/Dizia que tinha o
corpo fechado/E quando sujou geral/Ele pelo Santo não foi avisado/De repente pintou a caçapa/Era o Zé zero a zero com o
delegado/O doutor muito invocado/Gritou o coro vai comer/Tira a roupa do malandro/E bate até o cavalo correr...

Pai Véio 171 (Luiz Moreno, Geraldo Gomes. 1999)

Qué falá com pai véio vem agora/Porque pai véio já qué ir se embora /I mai meu fio tá todo macumbado/As piranhas estão
te devorando/Não tem um lugar nem prá dormir/E ainda meu fio mora andando/Escute o que o véio vai falá/E num papé tú
vai iscrivinhando/I mai me traga oito quilo di feijão/Deis galinha bem gorda e bem pelada/Deis quilo de arroz e macarrão/E
deis lata de doce de marmelada/Deis garrafa de vinho do bonzão/Que a tua mironga tá curada/I mai me traga também um bi
e meio/Que meu fio vai ganhá grande tesouro/Vai ser o maior dos fazendeiros/Vai vendê muita vaca e muito touro/Se meu
fio não tivé dinheiro vivo/Pode ser cheque verde ou cheque ouro/I mas meu fio tú vai na paz de Deus/Que agora meu fio tá
seguro/E vai ganhá tudo o que perdeu/Pai véio vai lhe dá grande futuro/E voltá com todo povo teu/Por favor não me traga
ninguém duro...

Candidato Caô Cão (Pedro Butina e Walter Meninão. 1988)

Ele subiu o morro sem gravata/Dizendo que gostava da raça/Foi lá na tendinha/Bebeu cachaça/E até bagulho fumou/Jantou
no meu barracão/E lá usou/Lata de goiabada como prato/Eu logo percebi/É mais um candidato/Às próximas eleições
(3x)/Fez questão de beber água da chuva/Foi lá no terreiro pediu ajuda/E bateu cabeça no congá/Mais ele não se deu
bem/Porque o guia que estava incorporado/Disse esse político é safado/Cuidado na hora de votar/Também disse:/Meu
irmão se liga/No que eu vou lhe dizer/Hoje ele pede seu voto/Amanhã manda a polícia lhe bater/Meu irmão se liga/No que
eu vou lhe dizer/Hoje ele pede seu voto/Amanhã manda os homem lhe prender/Político engana todo mundo../Menos o
caboco..ele deu azar na macumba do malandro..ah lá/O caboco /caguetou ele.

261
Bata da Vovó (E. Rodrigues e Darcy de Souza. 2000)

Vovó nunca pediu nada/Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não deu/Vovó nunca pediu nada
Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não deu/Você anda desviado, passando fome, dormindo na
rua/Vovó fez trabalho forte, sua sorte continua/Agora você tem bango, já se esqueceu da vovó/Olha que dor de/arriga
muleque, nunca dá uma vez só/Vovó nunca pediu nada/Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não
deu/Mas vovó nunca lhe pediu nada/Foi você mesmo quem prometeu/Você disse que dava uma bata a vovó/E até hoje não
deu/Não brinca com preta-velha por que ela faz uma boa contigo/Ela sabe que quando você tava preso entregava ouro na
mão dos bandidos/Se sexta-feira que vem você não fizer o que lhe prometeu/Vou bagunçar teu coreto moleque, você vai ver
quem sou eu...

Como se pode ver, são muitos os elementos que fazem referência ao mundo das religiões
afro-brasileiras. Acima podemos perceber termos e expressões como: Ogum, búzios, amarrar
mulher, amansar marido, imagem de São Jorge, corpo fechado, cavalo (como sinônimo de
médium), Vovó (entidade de umbanda), Vovô (idem), Aruanda (mundo mítico na umbanda),
general de umbanda, Vovó Catarina, Pai Anacleto, protetores, demanda, filho de umbanda,
trabalho forte, bango, preta-velha, sexta-feira, terreiro, bater cabeça, congá, guia, macumba,
azar, incorporado, entidade, caboco, pai véio, macumbado, mironga, entre outros. Todos
compõem um campo de sentido muito específico do universo religioso afro-brasileiro. E a
presença deles aí não é à toa. Como vimos, isso se deve tanto ao pertencimento de Bezerra à
umbanda quanto à ligação dos seus compositores a essa religião. Bezerra, então, através da
sua música, assume o discurso dos povos de terreiros, assim como também assume às vezes
de arauto dos favelados, pobres e oprimidos, como ele mesmo gostava de se afirmar.
Contudo, em 2001, com sua conversão à IURD isso vai mudar significativamente.

Conversão à IURD e afrofagia do samba

A conversão de Bezerra da Silva à IURD, em 2001, não chamou a atenção da grande


imprensa brasileira. O lançamento do seu CD gospel, Caminho de Luz (2004), chamaria ainda
menos a atenção da indústria fonográfica. Talvez apenas os círculos mais próximos do
sambista tenham entendido de fato o que essa conversão poderia representar para o seu
samba. Para muitos, o malandro virara mané no fim da vida. Afinal, como o próprio Bezerra
já havia ensinado em seus sambas, havia uma diferença muito grande entre ser malandro e ser
mané. E para aqueles que sempre o consideraram malandro, sua adesão à IURD só podia ser
vista como uma inversão no sentido da assunção da conduta do mané. Ele mesmo sabia que

262
sua mudança iria lhe render, no mínimo, a pecha de maluco. E isso aparecerá em uma das
suas composições gospel (O Gente fina, faixa 4 do CD Caminho de Luz).

Como é de praxe entre artistas que se tornam evangélicos, a conversão implica em uma
mudança radical de vida. Isso também inclui a produção artística, até então associada às
coisas do mundo e que, em função do novo estilo de vida, deve se submeter à nova condição
de “crente”. Na maioria dos casos, essa mudança se materializa na adoção de um novo estilo
de arte. No caso dos cantores e cantoras o novo estilo adotado é o chamado gospel.5 A música
então, mesmo que não adote um novo ritmo, sempre adota uma nova temática. Grosso modo,
quanto mais próximo do universo mundano maior é a mudança a ser adotada. No caso de
cantores de samba a mudança exigida deve ser ainda maior, uma vez que é um estilo musical
fortemente ligado ao universo religioso afro-brasileiro, tido pela maioria dos neopentecostais
como religiões demoníacas. Não era de se esperar outra coisa de Bezerra após a sua
conversão. Contudo não se deve achar que mudanças desse tipo atingem apenas os sambistas.
Dos cantores de repente do sertão nordestino aos sambistas das grandes escolas de samba do
Rio de Janeiro, a conversão a essas igrejas tem demonstrado um forte poder deletério em
relação aos antigos pertencimentos religiosos desses artistas. Principalmente quando se trata
de conversão à IURD. Trata-se de uma verdadeira afrofagia. Essa religião, como bem lembra
Ari Pedro Oro (2007)6, possui um grande poder de “comer as outras religiões” com as quais
se choca.

Mas o pentecostalismo da IURD, não come apenas religiões. Ele também come culturas.
Também come estilos musicais. Ricardo Mariano, grande pesquisador do pentecostalismo e
neopentecostalismo brasileiros, em suas pesquisas sobre o neopentecostalismo no Brasil já
falava na década de 1990, da ação corrosiva e fágica da cultura gospel sobre o Rock, o samba
e o carnaval no Rio de Janeiro (MARIANO,1999, p. 219). No mesmo livro, ele dedica uma
descrição da influência afrofágica da cultura dos “crentes” sobre o samba carioca da
comunidade da Mangueira. Era “o samba virando crente”, segundo palavras da própria Dona
Zica, ao comentar a conversão do sambista Padeirinho da Mangueira (1927-1987). Mas esse
processo não se contenta apenas com a música afro-brasileira. Vagner Gonçalves da Silva

5
Mesmo sabendo que Gospel se refere mais a uma marca do que a um estilo musical, adotaremos o termo aqui
como sinônimo de estilo musical e não nos deteremos em uma exposição acerca dos seus sentidos. Para maiores
esclarecimentos sobre este assunto aconselhamos a leitura de MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia
do novo pentecostalismo no Brasil. Ed. Loyola, São Paulo, 1999.
6
ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In: Intolerância
religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro (Vagner Gonçalves da Silva,
org.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007, p. 29-67.

263
(2007) também demonstrou como o pentecostalismo se apropriou tanto da capoeira quanto do
acarajé, parasitando-os e dando-lhes outros sentidos ao classificarem-nos de “capoeira de
Jesus”, “bolinho de Jesus” e coisas que o valham (SILVA, 2007, p. 255). Pode-se, então,
perceber como essa pentecostalização do mundo pode chegar ao seu paroxismo, através da
afrofagia que lhe é peculiar.

Ao analisar a intolerância religiosa iurdiana e as reações afro no Rio Grande do Sul, Ari Pedro
Oro explica como se dá esse processo de “comer a cultura do outro” por parte da IURD. Ele
faz questão de ressaltar três das características da IURD: (i) “a apropriação e atribuição de
novos significados a elementos de crenças tomados de outras igrejas e religiões (igreja
religiofágica); (ii) a amplificação desses elementos e de outros já existentes no campo
religioso (igreja da exacerbação) e (iii) a metamorfose dessa igreja, sobretudo em
determinados rituais, que ao invés de distanciá-las das religiões afro-brasileiras que combate,
delas se aproxima (igreja macumbeira)” (ORO, 2007, p. 29-30). Portanto, no seu universo de
crença e nas suas práticas, a IURD é uma igreja ‘comedora de religiões’ (religiofágica),
multiplicadora de símbolos (exacerbadora) e parasitária (macumbeira). Deve-se lembrar que,
estrategicamente, na sua prática a IURD assume uma ou mais dessas posturas. Tudo depende
da conveniência. Quando é conveniente combater, ela combate. Quando convém assimilar, ela
assimila. Sendo que em cada região ou país em que ela se instala, os alvos do combate ou da
assimilação assumem roupagens locais, de acordo com as culturas existentes no seu entorno,
como comprovam os vários pesquisadores e pesquisadoras que participaram das pesquisas
que deram origem à coletânea organizada também por Ari Pedro Oro (2003).7 E, mirados nos
seus líderes, os fiéis agem da mesma forma. Foi dessa compreensão de Oro sobre o caráter
religiofágico da IURD que chegamos a perceber a IURD como, acima de tudo, afrofágica.
Até porque, no Brasil, não pode haver outro universo religioso que tenha sido mais comido
por ela do que o afro-brasileiro. Tem sido desse meio religioso que a IURD retira a seiva que
a tem nutrido nesses seus 36 anos de existência. E essa afrofagia pode ser percebida
claramente no processo de conversão de Bezerra da Silva e na total mudança pela qual o seu
samba passou depois dessa conversão. A velha história de Dona Derci se repete. Antes
Assembléia de Deus e Dona Derci, hoje IURD e Bezerra da Silva. Em 1988 era ela falando
para Eduardo Coutinho. Em 2004 foi Bezerra da Silva, através do CD Caminho de Luz,
dizendo: “hoje eu canto assim...”. Períodos e personagens diferentes. Posturas e discursos

7
ORO, Ari Pedro & CORTEN, André & DOZON, Jean-Pierre. Igreja Universal do Reino de Deus, os novos
conquistadores da fé. São Paulo, Paulinas, 2003.

264
semelhantes. Mas, como essa afrofagia aparece no CD Caminho de Luz? Vejamos a letra de
cinco das músicas constantes desse CD. Comparem com os sambas apresentados
anteriormente:

Quadro sinótico de letras de músicas cantadas por Bezerra da Silva no CD Caminho de Luz

Muita responsabilidade (Ailton)

Agora é muita responsabilidade/eu assumi a verdade/meu caminho é Jesus/andei por caminhos tortos como
bobo/mas graças a Deus com Cristo/é que eu nasci de novo/o mundo lá fora /é um grande desafio/muitos corações
vazios/das coisas que levam a Deus/mas oro muito /pelos meus irmãos lá fora/que entendam que é hora e busquem o
Senhor como eu/fé no Senhor /é sempre fazer o bem/e passar pra mais alguém /as boas novas de Jesus/é confiar /com
muita fé na palavra/de uma vida que não acaba/sempre tinha que dar luz.

Achei a vida (Bezerra da Silva)

Achei a vida mais bonita que eu queria/com muito amor bastante paz no coração/pois esta vida Deus me deu com
muita unção/acredite quem quiser só Jesus é salvação/meu pai é quem segura todo o mal que nos consome/aqui na
terra destruindo a mulher e o homem/no seu caminho eu aprendi a caminhar/vida em abundância sei que Jesus vai
me dar/é tão gostoso ser feliz sem agonia/pedindo a Deus para todos a sua proteção/pois quem tem fé neste Santo
abençoado/jamais vai ficar jogado como lixo pelo chão/você está no fundo do poço meu irmão/só existe Jesus Cristo
que vai lhe estender a mão.

Casa santa (Bezerra da Silva)

Você tem uma casa santa pra morar o tempo inteiro/sem se preocupar com nada/se alimenta sem dinheiro/pois esta
casa tem uma porta e uma janela/é um reino abençoado com bastante oração/bem diferente da casa onde você
mora/que nela tem tudo bonito mas está faltando a salvação/eu vou morar com Jesus eu vou morar/foi ele quem me
escolheu e mandou eu te convidar/tem muita gente que já está morando lá/pois nesta casa lá eu vou morar
também/porque Jesus sempre foi um grande pastor/dá tudo para os seus filhos sem cobrar nada a ninguém/eu vou
morar com Jesus eu vou morar/foi ele quem me escolheu e mandou eu te convidar/eu vou morar com o Espírito
Santo que me conduz/foi ele quem me batizou e mandou eu ganhar alma pra Jesus.

O gente fina (Bezerra da Silva)

Nasceu numa família tradicional/o nome conhecido na coluna social/era tudo aparência/orgulho no coração/empregada
sem salário/mas uísque no armário/carro velho todo enferrujado/mas ele era chamado: o gente fina/fumava três maços por
dia/acordava de noite tossia/acendia outro cigarro/e aí já não dormia/tanto cheque pré-datado/o cartão tava
bloqueado/condomínio alugue atrasado/sete dentes cariados/jornal no sapato furado/mas ele era chamado: o gente
fina/agora encontrou Jesus/na igreja universal/foi liberto de todos os vícios /aprendeu a humildade/não passa a noite
acordado/não está endividado/é dizimista fiel/e vive muito abençoado/tudo nele está mudado/mas agora ele é chamado de
maluco/e sorrindo ele responde/é verdade eu sou maluco/eu sou maluco/é verdade eu sou maluco/eu sou maluco/é verdade
eu sou maluco/sou maluco por Jesus (...).

265
Acreditar na palavra (Bezerra da Silva)

Se você acreditar na palavra/Que Jesus é a Porta, Luz, Caminho e Verdade/Sua vida se transformará/Em um rio de amor
e de felicidade/Assim como Jó suportou provações/Eu também vou suportar/Segurando na mão do meu Deus/Jamais o
mal vai me alcançar/Na hora de tribulações clamando a Jesus eu pude perceber/Que tudo na vida é força/Somente a
palavra de Deus tem poder/Se você acreditar na palavra/Que Jesus é a Porta, Luz, Caminho e Verdade/Sua vida se
transformará/Em um rio de amor e de felicidade/Eu que vivia no mundo perdido, iludido, sem direção/Clamei a meu Deus
que é fiel lá do alto do céu ele me deu a mão/Até mesmo os meus inimigos que pensaram ter vencido meu pai não deixou/É
por isso que hoje eu canto por todos os cantos pro meu Salvador.

Os nomes das músicas constantes do CD estão todos relacionados com a conversão do cantor,
como podemos ver: (Faixa 1) Muita responsabilidade; (2) Achei a vida; (3) Casa Santa; (4)
Gente fina; (5) Eu andava nas trevas; (6) Filho do dono; (7) Nossos irmãos; (8) Chave do
milagre; (9) Vendo que era bom; (10) Redenção; (11) Acreditar na palavra; (12) Me chamo
Jesus e (13) Conselho de Luz.

Como era de se esperar, apesar de manter o ritmo de samba, o conteúdo das letras de Bezerra
mudou totalmente. Sumiram todas e quaisquer referências aos personagens das periferias e às
entidades e divindades das religiões afro-brasileiras. Desaparecerem também as gírias (tema,
inclusive, do seu CD de 2002 – A Gíria é a cultura do povo) e as denúncias da pobreza ,
miséria e exploração pelas quais os pobres passam. Tudo isso deu vez à exaltação do encontro
com Jesus e à ênfase na necessidade de transmitir a nova mensagem de salvação encontrada
na IURD. Se no samba Pai Véio criticava-se a entidade de umbanda que, muito malandro,
arrancava dinheiro do consulente desavisado, agora, em O gente fina, Bezerra exorta a todos a
se tornarem dizimistas fiéis da IURD, a fim de serem abençoados, como manda a teologia da
prosperidade (MARIANO,1999). Diferentemente do que afirmara em Meu Pai é general de
umbanda, agora, em Acreditar na palavra, Bezerra adverte seus inimigos que foi seu pai
(Jesus) que frustrou suas investidas, na tentativa de o derrubar. E, como fizera em A Bata de
vovó, ao advertir um consulente ingrato que prometeu e não deu uma bata à Preta Velha,
agora Bezerra adverte a todos que nunca é tarde para encontrar Jesus. E melhor que seja na
IURD, onde ele próprio o encontrou, se batizou e renasceu, tornando-se dizimista fiel. Assim
ele teria encontrado a felicidade, depois de ter vivido e andado como bobo por caminhos
tortos, no mundo. Perdido, iludido e sem direção. Em Muita responsabilidade, suas palavras
são contundentes: “busquem o senhor como eu”. E, em Casa Santa, explica qual será seu
destino dali pra frente: “Eu vou morar com o Espírito Santo que me conduz”, já que “Foi ele

266
quem me batizou e mandou eu ganhar almas pra Jesus”. Estava findo o processo de afrofagia
da IURD sobre a música de Bezerra da Silva.

Considerações finais

Com essa análise não queremos subestimar a importância da experiência de conversão vivida
por Bezerra Silva. Queremos apenas chamar a atenção para o efeito deletério de certas
conversões religiosas quando se trata de choques com outras culturas, principalmente quando
os sujeitos em questão são religiões afrobrasileiras e neopentecostais. Lembro-me, inclusive,
de quando era criança, no sertão da Paraíba, e via pessoas idosas se converterem à Assembleia
de Deus. Como todas as pessoas do povoado eram católicas e possuíam altares, oratórios e
imagens de santos para o culto doméstico, quando os/as chefes de família se convertiam, e sob
o efeito iconoclasta do discurso dos pastores, uma das primeiras atitudes simbólicas que
funcionavam como marcadores sócio-religiosos da conversão era justamente o desfazer-se
publicamente dos objetos de culto católico. Vi muitas vezes quadros e imagens de santos
jogados no lixo ou sendo doados para famílias que continuavam “no pecado do catolicismo”.
Com isso quero dizer que sabemos que as religiões afro-brasileiras não são as únicas vitimas
da ação deletérea de algumas denominações neopentecostais. Contudo, qualquer análise
minimamente profunda das dinâmicas do campo religioso brasileiro poderá confirmar que
entre todas as religiões aqui existentes, as afrobrasileiras são as mais atingidas pela ação e
crescimento de igrejas como a IURD. E o caso de Bezerra da Silva e do CD Caminho de luz é
um bom exemplo disso.

Pouco tempo depois de lançar o famoso CD ele faleceu, em 17 de janeiro de 2005.


Ironicamente, seu samba anterior continuaria vivíssimo entre seus ouvintes que relevaram sua
conversão à IURD. E o Caminho de Luz, como um ornitorrinco tanto da Música Popular
Brasileira quanto da Música Gospel, também continuou vivo. Caberia se perguntar qual das
mensagens continua mais ouvida. Uma resposta possível pode vir de um breve passeio pelas
periferias das cidades brasileiras. Tal passeio seria mais do que suficiente para ouvir a voz de
Bezerra cantando: “Quer falá com Pai Véio venha agora, que Pai Véio já quer ir simbora”.

267
Referências

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. Ed.


Loyola, São Paulo, 1999.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2ª edição. – Rio de
janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. E Inf. Cultural, Divisão de
Editoração, 1995.

ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In:
Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.
ORO, Ari Pedro.et AL.; SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007. p. 29-70.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo


nocampo religioso afro-brasileiro. Ari Pedro Oro... et AL.; Vagner Gonçalves da Silva (org.).
– São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

VIANA, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro. Trajetória e obra de um sambista


que não é santo. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.

268
269
A renovação do sacrifício de Cristo: ritual, práticas corporais e
experiências afetivas na Santa Missa do Opus Dei
Asher Grochowalski Brum Pereira1

Introdução

Este trabalho, de caráter etnográfico, consiste na descrição e análise de um dos aspectos


daquilo que experimentei durante a pesquisa de campo com o Opus Dei. Mais
especificamente, trago uma descrição etnográfica da Santa Missa do Opus Dei e pretendo,
com isso, propor uma interface entre ritual e corporalidade. Interpreto a Missa pela chave da
construção de sujeitos e subjetividades, por meio da configuração de experiências afetivas. Os
significados dessas experiências são estendidos e tornam-se metáforas (WAGNER, 2010) e,
desse modo, transformam-se nos símbolos e rituais da Missa. Ao mesmo tempo, seu caráter
performático, que envolve uma corporalidade específica, abre portas subjetivas para novas
experiências afetivas. Os sujeitos criados aí são efetivamente disciplinados para experiências
afetivas determinadas. A experiência pessoal que se configura no sujeito ao participar da
Missa é dificilmente explicada em termos de representações ou verbalizações, uma vez que,
na sua constituição, está um conjunto de sentimentos e afetos, os quais, por conseguinte,
geram um todo complexo de relações e práticas sociais dentro e fora da Missa.

Entendo a Missa como um ritual que possui uma sequência estereotipada de atividades
envolvendo gestos, palavras e objetos, que são desempenhadas em um lugar “separado” e das
quais se espera algum efeito (TURNER, 1973). Tambiah (1979) também oferece uma
definição interessante para o ritual que me parece apropriada para pensar a Missa. Para ele,
ritual é um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica, constituído de
padrões e sequências ordenadas de palavras e atos, muitas vezes expressos por múltiplos
meios cujos conteúdos e arranjos são caracterizados em vários graus pela formalidade
(convencionalidade), estereótipo (rigidez), condensação (fusão de vários elementos) e
redundância (repetição). Participar do ritual da Missa implica em determinadas experiências
afetivas e em uma determinada regulação da corporalidade. O corpo, por sua vez, é onde estão
imbricados afetos, formas de agir e espiritualidade, sendo difícil separá-los analiticamente.

1
Doutorando em Ciências Sociais pela UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Ronaldo de Almeida. Bolsista
da FAPESP. Contato: asherbrum@yahoo.com.br.

270
Entendo, pensando a partir de Foucault, que o disciplinamento e performatização dos corpos
na Missa está relacionado com processos mais amplos de subjetivação, uma vez que essa
criação de sujeitos está associada ao corpo e à regulação disciplinar do comportamento. Um
dos aspectos dessa subjetividade construída são as experiências afetivas, tal como entendidos
por Favret-Saada (1977; 2005).

A Santa Missa, por conseguinte, pode ser interpretada pela chave das práticas e padronizações
corporais que configuram experiências afetivas. Essas experiências e a repetição dessas
práticas corporais organizam processos de subjetivação, criando sujeitos aptos a santificar o
mundo, deformado pelo pecado, a partir da sua atividade cotidiana. Aqui, ritual e práticas
corporais conectam-se para criar sujeitos e orientar condutas. O ritual da Santa Missa é, antes
de tudo, a repetição da vida e morte de Cristo, dramatizada por atores específicos. É entendida
como um evento “separado” do mundo secular, mas que prepara os indivíduos para voltarem
a ele.

A Santa Missa no Opus Dei

Os membros do Opus Dei assistem à Santa Missa diariamente, pela manhã, como forma de
abastecer-se espiritualmente – ao receber o corpo de Cristo na Comunhão – para enfrentar o
labor do dia e, desse modo, buscar a santificação. Compreendo esse ritual como um eixo em
torno do qual se configuram experiências afetivas e que, certamente, não cessa com o simples
término da Missa. Durante a pesquisa etnográfica que realizo, desde 2011, em um Centro do
Opus Dei, na cidade de São Paulo, escutei muitas vezes que a Missa é (ou deveria ser) o ponto
alto do dia de todo cristão-católico, pois é quando pode ter uma experiência íntima com Deus
por meio da Comunhão. Desse modo, o indivíduo torna-se apto espiritualmente a orientar seu
dia para o grande ensinamento do Opus Dei: santificar o mundo a partir de dentro. Ora, se o
mundo é o lugar onde reina o pecado, nada mais plausível do que fortalecer-se espiritualmente
por meio do contato direto com Deus no início de todos os dias. Além de uma preparação
prévia para a missa, como não estar em pecado mortal (ou seja, não ter quebrado nenhum dos
10 mandamentos) e estar recolhido em oração, devem-se buscar na missa quatro fins
fundamentais: 1) ação de graças (dar graças a Deus e receber a Comunhão); 2) expiação
(pedir perdão dos pecados); 3) adoração (adora-se somente a Deus); 4) petição (dirigir
pedidos a Deus).

271
* * *

A Santa Missa ocorre diariamente no oratório do Centro do Opus Dei. Trata-se de uma sala
ampla, com duas fileiras de bancos de madeira. Os bancos estão voltados para o altar de
mármore, adornado com quatro candelabros altos e dourados e, entre eles, um crucifixo. A
toalha do altar é branca e adornada com o símbolo do Opus Dei nas extremidades, que caem
delicadamente pelos lados do altar. Na parte da frente desse altar de mármore também há esse
mesmo símbolo, metálico e dourado. Trata-se de um círculo perfeito, representando o mundo,
e, no seu interior, há uma cruz – a cruz de Cristo no meio do mundo. Logo atrás do altar está o
sacrário com a hóstia a ser consagrada durante a Missa. Logo acima, há uma grande imagem
de Nossa Senhora segurando, em uma mão, uma rosa e, no outro braço, o menino Jesus. À
direita, há um retrato de São Josemaria Escrivá. À esquerda, uma porta e uma mesinha, onde
costumam ficar os objetos que serão usados na Missa. O ambiente, ali, é solene. Silencioso.
Não se conversa ali dentro e, ao entrar, se faz o mínimo de ruído possível. As pessoas
começam a chegar para a missa e vão sentando nos bancos.

Rito inicial e ato penitencial

Após fazer uma breve oração em frente à cruz, na saleta atrás do oratório, o padre sai
lentamente, com as mãos unidas em frente ao peito, precedido pelo numerário leigo que vai
auxiliá-lo na missa. O padre enverga, sobre a batina cotidiana, uma espécie de longa camisa
de renda fina e, por sobre esta, um manto com o símbolo do Opus Dei bordado em dourado às
costas. Ainda, sobre esse manto, usa uma estola que lhe cai por sobre os ombros e vai até
pouco abaixo da cintura. A cor da estola varia de acordo com o período litúrgico. Quando o
padre entra, todos se levantam, pois, nas circunstâncias da missa, o padre empresta seu corpo
ao próprio Cristo, que fala e age através dele. O leigo auxiliar prostra-se em um canto
próximo e o padre posiciona-se diante do altar, de frente para a assembleia. O padre diz: “em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” e a assembleia responde “amém”. Esta fala é
acompanhada, concomitantemente, por toques, com a mão direita, na cabeça, no peito, no
ombro esquerdo e no ombro direito. Em seguida, o padre abre os braços e, com as palmas das
mãos voltadas para cima, proclama: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai, e
a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. A assembleia responde: “Bendito seja Deus
que nos reuniu no amor de Cristo”. A Missa começou.

272
A primeira parte da missa, o chamado ato penitencial, é dedicada a pedidos de perdão a Deus
pelos pecados cometidos. O ato penitencial começa quando o padre diz, ainda com os braços
abertos: “irmãos e irmãs, reconheçamos as nossas culpas para celebrarmos dignamente os
santos mistérios”. Faz-se uma pausa de alguns segundos onde, introspectivamente e de cabeça
baixa, cada membro da assembleia reflete rapidamente sobre os próprios pecados. O padre
continua: “Confessemos os nossos pecados”. A seguir, todos proclamam em uníssono a
seguinte oração: “confesso a Deus todo-poderoso, e a vós irmãos [só tem homens na
celebração], que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões [e batendo
no peito com a mão direita dizem] por minha culpa, minha tão grande culpa. E peço à Virgem
Maria, aos anjos e santos e a vós, irmãos, que rogueis por mim a Deus, nosso Senhor”. Ao fim
dessa proclamação, o padre diz: “Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os
nossos pecados e nos conduza à vida eterna”. Todos respondem: “Amém”.

Essa primeira parte do ritual da Missa conduz à introspecção. É o momento em que a


assembleia é chamada a reconhecer os próprios pecados diante de si mesmo, de Deus e dos
demais. Após um voltar-se a si silencioso, mapeando as próprias culpas, com o corpo ereto e
cabeça baixa, as pessoas são conduzidas a reconhecer em voz alta seus pecados e pedir
perdão, humilhando-se, desse modo, diante de Deus e dos demais. Ademais, o gesto de bater
no peito, celebrado no Ato Penitencial, simboliza a penitência, o reconhecimento dos pecados,
o pedido de perdão e a conversão perante Deus. Esse momento da Missa envolve uma
construção corporal bem definida. Por meio do reconhecimento simbólico da própria
condição de pecador, o engajamento nas práticas rituais, valores e símbolos começam a
configurar, gradualmente, uma corporalidade e uma subjetividade específicas. Esse
engajamento do corpo informa às pessoas habilidades, gestos, linguagens e saberes que
precisam dominar. Portanto, o universo simbólico e estrutural da Missa remodela os corpos
das pessoas que vivenciam esse ritual, criando experiências, concepções de mundo e formas
de agir.

Liturgia da palavra

A segunda parte da celebração da Missa é a liturgia da palavra, cujo intuito é dar glória e
adorar a Deus por meio da contemplação do Evangelho. O padre, após o ato penitencial,
senta-se ao fundo e, com ele, todos se sentam. A seguir, o numerário, que jazia em pé a um

273
canto, caminha até uma pequena tribuna e, abrindo a bíblia na página marcada previamente,
anuncia: “primeira leitura”. O leigo faz a breve leitura e, ao final, proclama: “Palavra do
Senhor”. Todos respondem: “graças a Deus”. Logo em seguida, o numerário abre o
Evangelho em uma segunda parte selecionada previamente. É a parte do Salmo Responsorial.
Nessa parte da Liturgia, a leitura do Salmo é intercalada pela fala da Assembleia. Para ilustrar
essa parte, recorro a uma Missa que assisti na JMJ (Jornada Mundial da Juventude Rio de
Janeiro - 2013) celebrada por um sacerdote do Opus Dei, lembrando que, apesar da leitura
variar, a fórmula é sempre a mesma. O numerário proclama: “o amor do Senhor Deus, para
todos os que o respeitam, existe desde sempre e para sempre existirá”. A assembleia repete
exatamente a mesma oração. O numerário, então, continua: “bendize, ó minha alma, ao
Senhor, e todo o seu ser, seu santo nome! Bendize, ó minha alma, ao Senhor não te esqueças
de nenhum de seus favores!”. Ao final dessa aclamação, todos repetem, novamente, a
primeira oração: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário leigo prossegue: “pois ele te
perdoa toda a culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida e te cerca
de carinho e compaixão”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário continua: “o
Senhor realiza obras de justiça e garante o direito aos oprimidos; revelou os seus caminhos a
Moisés, e aos filhos de Israel, seus grandes feitos”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. Por
fim, o numerário diz: “o Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e
compassivo. Não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas
culpas”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário, finalmente, fecha a Bíblia e dirige-
se novamente ao canto.

Nesse momento, o padre levanta-se ao fundo e, com ele, toda a assembleia. Então, dirige-se à
bíblia que jaz sobre a tribuna e o numerário a abre cuidadosamente na página marcada. Com
os braços abertos e sem tocar na bíblia, o padre, inclinado diante dela, reza em voz baixa: “ó
Deus todo-poderoso, purificai-me o coração e os lábios, para que eu anuncie dignamente o
vosso santo Evangelho”. Após, erigindo o corpo e ainda de braços abertos, declara: “o Senhor
esteja convosco”. Todos: “ele está no meio de nós”. O padre, então, anuncia, fazendo três
cruzes com o polegar sobre o Evangelho aberto: “proclamação do Evangelho de Jesus Cristo
segundo [nome do autor do Evangelho]”. Ao mesmo tempo em que o padre diz essas
palavras, todas as pessoas da assembleia fazem três cruzes com o polegar, uma na testa, uma
nos lábios e uma no peito e, concomitante e silenciosamente, proclamam: “pelo sinal da santa
cruz, livrai-nos Deus, nosso Senhor, dos nossos inimigos”. Ao término da fala do padre, a
assembleia responde: “Glória a vós, Senhor”. Todos ouvem em pé enquanto o sacerdote faz a

274
leitura. Terminada, ele diz: “Palavra da Salvação”. Todos: “glória a vós, Senhor”. Então, o
padre beija o Evangelho e reza em silencio: “pelas palavras do santo Evangelho sejam
perdoados os nossos pecados”. Em seguida, mandando a assembleia sentar-se, inicia a
homilia. A homilia é a parte mais espontânea da celebração. Em outras palavras, é o sermão
do padre. Geralmente constrói sua fala em cima da leitura do dia.

Nessa parte da Missa, configura-se a experiência afetiva de ouvir. O Evangelho, entendido


como a palavra do próprio Deus, é oferecido para que as pessoas o admirem, reflitam sobre
suas palavras e interajam com ele por meio de fórmulas prontas. Ademais, as palavras do
padre durante a homilia oferecem diretrizes, reflexões e condutas para a vida cotidiana.

Profissão de fé

Terminada a homilia, o padre volta para o altar e puxa o Credo Niceno-constantinopolitano


que todos, pondo-se de pé, rezam em uníssono com ele: “Creio em um só Deus, Pai todo-
poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só
Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos. Deus
de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial
ao Pai. Por Ele todas as coisas foram feitas. E, por nós, homens, e para a nossa salvação,
desceu dos céus, se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem.
Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou dos
mortos ao terceiro dia, conforme as Escrituras; e subiu aos céus, onde está sentado à direita de
Deus Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o Seu reino
não terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, e procede do Pai; e com o Pai e o
Filho é adorado e glorificado. Ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja una, santa, católica
e apostólica. Confesso um só batismo para remissão dos pecados. Espero a ressurreição dos
mortos; e a vida do mundo que há de vir. Amém”.

A fórmula do Credo Niceno-constantinopolitano é mais complexa e detalhada e constitui-se


pelo ato de fé. Rezar o Credo em conjunto é professar a crença em Deus, após os pedidos de
perdão do início do ritual.

275
Liturgia eucarística

Após rezar o Credo, a assembleia senta-se para acompanhar a liturgia eucarística. É o início
do momento apoteótico da celebração. O numerário, tendo a mão protegida por um lenço
branco, pega o cálice de uma mesinha, sobre cuja boca há uma espécie de envelope quadrado
de tecido, e, cuidadosamente, o deposita sobre o altar. O padre abre o envelope e de dentro
dele tira um pano branco que estende sobre o altar. Entrega o envelope para o numerário, que
o guarda. Sobre essa toalha, o padre coloca uma espécie de disco, plano e dourado, chamado
patena e, sobre ele, a hóstia que será consagrada. Abrindo os braços novamente e com os
olhos voltados para o Evangelho que jaz sobre o altar, em um pequeno pedestal dourado, diz:
“bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da
terra e do trabalho humano, que agora vos apresentamos e para nós vai se tornar pão da vida”.
Todos respondem: “bendito seja Deus para sempre!”. A seguir, o numerário leva até o padre
um pequeno suporte com duas jarrinhas, uma contendo água e a outra contendo vinho. O
padre, então, derrama um pouco de vinho no cálice e, com uma minúscula concha, derrama
uma gota de água no mesmo. Enquanto realiza esse ato ritual, o padre reza em silêncio: “pelo
mistério desta água e deste vinho possamos participar da divindade do vosso Filho, que se
dignou a assumir a nossa humanidade”. Após, abre os braços e diz: “bendito sejais, Senhor
Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho
humano, que agora vos apresentamos e para nós vai se tornar vinho da salvação”. Todos:
“bendito seja Deus para sempre!”. Inclinando levemente o corpo, o padre reza em silencio:
“de coração contrito e humilde, sejamos, Senhor, acolhidos por vós; e seja o vosso sacrifício
de tal modo oferecido que vos agrade, Senhor, nosso Deus”. Em seguida, o numerário
aproxima-se segurando o suporte de vidro (que tem o formato de uma pequena bacia) em uma
mão e a jarrinha de água na outra. O sacerdote estende as mãos e o leigo derrama a água, na
qual o padre lava as pontas dos dedos das duas mãos. Em seguida, seca-se na toalha
pendurada no braço do auxiliar. O padre, então, une as mãos em oração e volta ao centro do
altar: “orai, irmãos, para que nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”. Todos:
“receba o Senhor por tuas mãos este sacrifício, para a glória do seu nome, para o nosso bem e
de toda a santa Igreja”. Abrindo os braços, o padre proclama e todos se levantam: “o Senhor
esteja convosco!”. Todos: “Ele está no meio de nós”. Olhando para cima, o padre volta a
falar: “corações ao alto”. Todos: “o nosso coração está em Deus”. O padre fala: “demos
graças ao Senhor nosso Deus”. Todos: “é nosso dever e nossa salvação”. Então, o padre
retoma a palavra: “na verdade, ó Pai, vós sois santo e fonte de toda santidade. Santificai, pois,

276
estas oferendas, derramando sobre elas o vosso Espírito a fim de que se tornem para nós o
corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor Nosso. Todos: “santificai nossa
oferenda, ó Senhor!”.

Em seguida, inicia-se o momento apoteótico da Missa. O padre começa a falar e todos se


ajoelham: “estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão, ele tomou o pão, deu
graças, e o partiu e deu a seus discípulos dizendo: “tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo
que será entregue por vós””. O padre pronuncia estas palavras observando cuidadosamente o
Evangelho, de modo que não se engane. Tem o corpo inclinado e segura a hóstia com ambas
as mãos muito próximas do altar. Ao terminar a fala, erige o corpo e, cuidadosamente, eleva a
hóstia acima da cabeça, com o olhar fixo nela. Durante esse ato ritual, o auxiliar, que também
está de joelhos, faz soar três vezes um sino. O padre abaixa as mãos e, cuidadosamente,
deposita a hóstia consagrada sobre o disco dourado. Novamente o padre inclina o corpo e,
desta vez, toma o cálice em suas mãos, tendo o cuidado para não utilizar os polegares e
indicadores (antes lavados) para tocar no cálice. Usa somente os três outros dedos para
manuseá-lo. Segurando o cálice muito próximo ao altar, proclama, olhando atentamente para
o Evangelho: “do mesmo modo, ao fim da ceia, ele tomou o cálice em suas mãos, deu graças
novamente, e o deu a seus discípulos dizendo: “tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu
sangue, o sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para a
remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim””. Ao término dessas palavras, o padre
erige o corpo e, acompanhado pelos três toques do sino, eleva o cálice acima da cabeça e,
alguns segundos depois, o deposita sobre o altar. Por fim, o padre diz: “eis o mistério da fé”.
Todos respondem, levantando-se e ficando em pé: “anunciamos, Senhor, a vossa morte, e
proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.

O padre continua: “celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos
salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu; e enquanto esperamos a sua nova
vinda, nós vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida e santidade”. Todos
respondem: “recebei, ó Senhor, a nossa oferta!”. O padre prossegue: “olhai com bondade a
oferenda da vossa Igreja, reconhecei os sacrifícios que nos reconcilia convosco e concedei
que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito
Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”. Todos: “fazei de nós um só
corpo e um só espírito!”. O padre continua: “que ele faça de nós uma oferenda perfeita para
alcançarmos a vida eterna com os vossos santos: a Virgem Maria, mãe de Deus, os vossos
Apóstolos e Mártires, São Josemaria, e todos os santos, que não cessam de interceder por nós

277
na vossa presença”. Todos: “fazei de nós uma perfeita oferenda!”. O padre prossegue: “E
agora, nós vos suplicamos, ó Pai, que este sacrifício da nossa reconciliação estenda a paz e a
salvação ao mundo inteiro. Confirmai na fé e na caridade a vossa Igreja, enquanto caminha
neste mundo: o vosso servo, o Papa Francisco, o nosso Bispo Prelado Javier, com os bispos
do mundo inteiro, o clero e todo o povo que conquistastes”. Todos: “Lembrai-vos, ó Pai, da
vossa Igreja!”. O padre continua: “atendei às preces da vossa família, que está aqui, na vossa
presença. Reuni em vós, Pai de misericórdia, todos os vossos filhos e filhas dispersos pelo
mundo inteiro”. Todos: “lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos!”. O padre diz: “acolhei com
bondade no vosso reino os nossos irmãos e irmãs que partiram desta vida e todos os que
morreram na vossa amizade. Unidos a eles, esperamos também saciar-nos eternamente da
vossa glória, por Cristo, Senhor nosso”. Todos: “a todos saciai com vossa glória!”. Por fim, o
padre fala: “por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do
Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”. Todos: “amém!”.

A liturgia eucarística trata-se do momento apoteótico da Missa, quando o próprio Cristo


manifesta-se e o vinho transforma-se em sangue e o pão em carne por meio de uma série de
atos rituais. Desse modo, todos devem ajoelhar-se durante a transubstanciação. Para um
católico do Opus Dei, a força e significação desse ato ritual é intensa, pois é o próprio Cristo
que está ali. É possível, por meio desse ritual, ter a experiência de contemplar o próprio
Cristo. Nesse momento, direcionam-se palavras a Ele diretamente.

Rito de comunhão

O padre, então, abre os braços e proclama: “obedientes à palavra do Salvador e formados por
seu divino ensinamento, ousamos dizer [e todos rezam em uníssono]: Pai nosso que estais no
céu, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade,
assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos do mal”. Diferente do que já percebi nas paróquias, as pessoas da
assembleia nas missas do Opus Dei rezam essa oração com as mãos abaixadas. Nas paróquias,
a maioria das pessoas imita o gesto do padre ao abrir os braços. O padre continua: “livrai-nos
de todos os males, ó Pai, e dai-nos hoje a vossa paz. Ajudados pela vossa misericórdia,
sejamos sempre livres do pecado e protegidos de todos os perigos, enquanto, vivendo a

278
esperança, aguardamos a vinda de Cristo salvador”. Todos respondem: “Vosso é o Reino, o
poder e a glória para sempre!”. O padre prossegue: “Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos
apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a
fé que anima vossa Igreja; dai-lhes segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois
Deus, como Pai e Espírito Santo”. Todos: “Amém!”. O padre, por fim, fala: “a paz do Senhor
esteja sempre convosco”. Todos: “o amor de Cristo nos uniu”.

A seguir, o padre toma a hóstia consagrada e a parte sobre a patena e coloca uma pequena
fração no cálice com vinho, rezando em silêncio: “esta união do corpo e do sangue de Jesus, o
Cristo e Senhor nosso, que vamos receber, nos sirva para a vida eterna!”. Todos falam:
“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus,
que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do
mundo, dai-nos a paz”. Então, o padre, de mãos unidas, reza em silêncio: “Senhor Jesus
Cristo, Filho do Deus vivo, que, cumprindo a vontade do Pai e agindo com o Espírito Santo,
pela vossa morte destes a vida ao mundo, livrai-me dos meus pecados e de todo mal; pelo
vosso corpo e pelo vosso sangue, dai-me cumprir sempre a vossa vontade e jamais separar-me
de vós”. Após esse momento de silêncio, o padre inclina-se, aproximando a cabeça do altar, e
come a hóstia partida sobre a patena. Após, pega a patena e, com a ajuda de um lenço, faz
com que as migalhas que jazem ali caiam dentro do cálice. A seguir, após movimentar o
cálice em círculos para misturar o conteúdo, bebe o vinho. Na sequência, declara: “felizes os
convidados para a Ceia do Senhor! Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.
Todos: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e
serei salvo”. O padre, então, leva a hóstia sagrada, primeiro, à boca do auxiliar. Em seguida,
caminha até a frente do altar, onde já se forma uma fila para receber a comunhão. As pessoas
que, por terem perdido o estado de graça, tendo pecado mortalmente, permanecem sentadas
ou ajoelhadas. O primeiro da fila ajoelha-se diante do padre e este, dizendo “o corpo de
Cristo”, leva a hóstia consagrada à sua boca. O auxiliar, por sua vez, segura a patena abaixo
da hóstia a ser entregue, de modo que não se perca nenhuma migalha. Aqueles que recebem a
hóstia, voltam solenemente para seus lugares e ajoelham-se, em um momento extremamente
introspectivo. Assim que a fila termina, o padre volta ao altar, lava o cálice com a jarrinha de
água e bebe os resquícios do vinho. Seca o interior do cálice com um lenço, guarda o pano
que jazia sobre o altar no envelope e entrega tudo ao auxiliar, que devolve os objetos à
mesinha no canto.

279
Ao terminar, o padre fala e as pessoas levantam-se: “o Senhor esteja convosco”. Todos
respondem: “ele está no meio de nós!”. O padre continua: “abençoe-vos Deus Pai todo-
poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo”. As pessoas fazem o sinal da cruz e respondem:
“amém!”. Finalmente, o padre declara: “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”. Todos:
“graças a Deus”. O padre, precedido pelo auxiliar, volta à saleta atrás do oratório. Assim que
o padre desaparece, todos tornam a sentar-se. Segue-se um período de 13 minutos de silêncio
após o término da Missa. É a ação de graças, um tempo de oração e introspecção. Os 13
minutos referem-se ao tempo em que a hóstia permanece no estômago. Dados esse tempo, o
numerário mais antigo presente na Missa ajoelha-se e, com ele, todos os outros, e diz: “Santa
Maria, esperança nossa, sede da sabedoria”. Todos respondem: “rogai por nós”. Depois disso,
todos saem do oratório. A Missa está terminada.

O momento apoteótico estende-se até a Comunhão, quando cada pessoa em estado de graça
recebe, de joelhos, o corpo de Cristo e comunga com ele. É a metáfora do alimento do
espírito. Durante os 13 minutos seguintes, seguem-se momentos de introspecção, no qual cada
pessoa experimenta, de modo muito pessoal, a conexão direta com o sagrado.

Considerações finais

Não pretendo atribuir a este trabalho um caráter conclusivo, mas sugerir a importância da
interface entre ritual e corporalidade na criação de sujeitos e subjetividades no Opus Dei. A
Missa do Opus Dei tem por intuito alimentar espiritualmente as pessoas, de modo que estejam
aptas às práticas ascéticas no meio do mundo. Para Foucault (2006), a ascese consiste na
relação de si consigo mesmo, de voltar o olhar para si, articulando uma dupla necessidade: a
de voltar-se para si e a de conhecer o mundo, concomitantemente. Depreendo de Foucault que
a ascese configura uma modalidade de espiritualização do saber no mundo – um sujeito ético
se constitui. A Missa, por conseguinte, orienta práticas ascéticas de conversão a si mesmo,
mas que só ganham efetividade na vida mundana, no meio do mundo. Essas práticas ascéticas
configuram processos sofisticados de subjetivação. Trata-se, aqui, de modos de ser, de existir,
de estar no mundo. Durante a pesquisa de campo, não poucas vezes ouvi que a Missa é o
alimento para que o cristão enfrente santamente a vida cotidiana. Estará, dessa forma, apto a
santificar o mundo com o seu trabalho. Além disso, os atos corporais desempenhados na

280
Missa, claramente, não são performances vazias, mas atos rituais carregados de significado e
que, por sua vez, abrem portas subjetivas para experiências afetivas com o sagrado.

Referências

FAVRET-SAADA, Jeanne. Les mots, la mort, les sorts. Paris: Gallimard, 1977.

________. “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de


Campo, n°. 13, p. 155-161, 2005.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 29ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

________. História da sexualidade 3: o cuidado de si. 8ª. Ed. São Paulo: Graal, 2005.

________. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). São


Paulo: Martins Fontes, 2006.

________. Microfísica do poder. 24ª. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

GOLDMAN, Marcio. Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia. Cadernos de Campo, n°.


13, p. 149-153, 2005.

Livro Litúrgico: Jornada Mundial da Juventude Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bandeirantes,
2013.

TAMBIAH, S. J. A performative approach to ritual. London: British University Press, 1979.

TURNER, Victor. “Symbols in Africa Ritual”. Science, New Series, Vol. 179, No. 4078, pp.
1100-1105, 1973.

________.. “Dramas sociais e metáforas rituais”, in: Dramas, campos e metáforas. Niterói:
EdUFF, pp. 19-54, 2008.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac e Naify, 2010.

281
282
Corpo e religiosidade: binômio indissociável na construção da
História da Enfermagem
Maria Helena Leviski Alves1, Tania Mara da Silva2

Introdução

Estudo bibliográfico, com foco qualitativo, exploratório descritivo, que tem como tema o
corpo e a religiosidade, delimitado na história da enfermagem e que busca responder a
seguinte indagação, que norteia o processo da pesquisa: De que forma o cuidado com o corpo
e a religião contribuíram para a construção da ser e do fazer na enfermagem? Tem como
objetivo principal identificar a importância e a influência do binômio corpo e religiosidade na
construção da enfermagem enquanto profissão e como objetivos específicos na busca do
objetivo maior procura reconhecer a Idade Média como marco do início da organização do
processo de cuidar fora do domicílio, a origem dos mitos que marcam a profissão, o corpo
como objeto e expressão do fazer enfermagem e a religião como base para a construção deste
fazer.

Justifica-se este desenho de pesquisa no fato de que o cuidado, atividade essencial do ser e do
fazer enfermagem sempre se constitui base para manutenção da vida do ser humano com
qualidade, bem como garantia de perpetuação da sua espécie ao longo do tempo.

A enfermagem se torna profissão concreta a partir do século 19 e sua história é construída a


partir das realizações marcadas pela religiosidade, cuidado da alma e do transcendente, bem
como cuidado com o corpo, expressão terrena destas dimensões. Neste tempo histórico nasce
o que se denomina de Enfermagem Moderna, voltada para o substrato da profissão médica, na
instituição hospitalar, marcada pelo cuidado do corpo individual, compondo com outros
elementos forma de controle usos, costumes e hábitos das populações (KRUSE, 2006).

1
Enfermeira. Mestre em Educação. Professora Adjunta dos cursos de Enfermagem e Medicina da PUC/PR.
Membro do GP Processos de Educação, Cuidado e Gerenciamento de Enfermagem. Contato:
mlenna.leviski@gmail.com.
2
Mestranda em Bioética. Professora Auxiliar do curso de Enfermagem da PUC/PR. Contato:
taniamasilva@ibest.com.br.

283
A Idade Média como precursora da atividade profissional na enfermagem

A reflexão sobre a organização da enfermagem como profissão poderia remontar aos


primórdios do homem em nosso planeta, pois o cuidado quer como atividade de manutenção e
perpetuação da espécie, quer como demonstração de interesse e carinho, sempre existiu.
Paralelamente a isto, são identificadas atividades profissionais relacionadas com o cuidar na
cultura Budista na Índia, e nos vários povos da Antiguidade a parteira é figura recorrente dos
relatos das atividades relacionadas com a saúde e o cuidar na busca de melhor condição de
vida e saúde. Porém para este estudo opta-se pela Idade Média como marco inicial da
idealização e conformação do cuidado com o corpo como atividade profissional a ser
concretizada na enfermagem (WALDOW, 2001, ELLIS; HARTLEY, 1998).

Desta época e seu entorno surgem três heranças que marcaram profundamente o ser e o fazer
enfermagem e ainda hoje podem ser identificados em várias atitudes e comportamentos destes
profissionais que são identificados por Ellis e Hartley (1998), como as imagens folclórica,
religiosa e servil da enfermeira. A imagem folclórica relaciona-se pelo caráter empírico de
acumulação e transmissão de conhecimento ao longo do tempo acumulado principalmente
pelas mulheres na arte de cuidar. A religiosidade imprime sua marca na Enfermagem, pois o
início da atividade de cuidar como processo contínuo e com o objetivo de assistir aos pobres,
viúvos, órfão, doentes, idosos, escravos, prisioneiros, isto é da população que se encontrava as
margens dos padrões sociais da época, deriva do estabelecimento das primeiras igrejas na era
Cristã, com a marca da caridade e do amor em Cristo pelo amor ao próximo. Este cuidado era
desenvolvido principalmente por mulheres de classe social elevada, solteiras ou viúvas e
destas mulheres era exigida uma rigorosa disciplina e hierarquia de poder. O Renascimento
que sucede a Idade Média, sucessão esta também marcada pelo movimento da Reforma
Protestante, imprime na enfermagem o estigma da servidão, pois a época deste movimento de
cisão na Igreja Católica, separando a Igreja do Estado, também a atividade de cuidar que era,
pode-se por assim dizer, atividade exclusiva das mulheres ligadas ao catolicismo e as suas
ordens religiosas, impregnada por forte estigma caritativo e doméstico, com objetivo primeiro
de salvação da alma e a segurança da conquista de um lugar no céu, passa a ser
responsabilidade do Estado. Por ser uma atividade menor, sem atrativos uma vez que
principalmente não garantia mais as benesses religiosas, que exigia grande sacrifício físico,
em decorrência de um fazer fortemente ligado aa atividades manuais, com extenuantes
jornadas de trabalho, e possibilidades frequentes de contaminação pelos doentes, levando
também a cuidadora a adoecer e morrer, não era um trabalho desejável e, portanto era

284
desenvolvido apenas pelas mulheres ditas incomuns, isto é aqueles com dívidas com a
sociedade, principalmente as prostitutas, ladras e assassinas. Esta época que ficou conhecida
como Anos Negros da Enfermagem a enfermeira era considerada a mais subalterna das
serventes.

Em que pese que nesta época o cuidado representado pelas atividades de higiene, alimentação
do doente e organização do ambiente buscando diminuir o sofrimento deste era considerado
um fazer menor e, portanto delegado às mulheres (BADINTER, 1986, In: SANTOS;
LUCHESI, 2002), possibilitou que em um futuro não tão distante, nos olhos visionários de
Florence Nightingale pudesse se transformar em uma parte do ser e do fazer profissional da
enfermagem, como uma atividade reconhecida e aceita socialmente e principalmente uma
oportunidade para aquelas mulheres que não encontravam motivação para o casamento,
significado social para as sua existências.

O cuidado profissionalizado na enfermagem

Para discorrer sobre a profissionalização é preciso primeiro falar sobre Florence Nightingale.
Nascida em 1820, em Florença, fato que deu origem ao seu nome, era, porém filha de
diplomata inglês, que se encontrava a época do seu nascimento em viagem pela Itália com sua
família. Portanto esta mulher pertencente a uma abonada e aristocrática família inglesa, que
possuía uma formação e uma cultura pouco vista mesmo nos homens do período vitoriano,
conhecia geografia, economia, política, falava várias línguas e desde muito cedo , segundo ela
por um chamado de Deus, tomou por propósito de vida não seguir o tradicional destino das
mulheres da época, que era o casamento, mas dedicar-se ao cuidado dos doentes, e para tanto
busca em suas viagens de férias capacitar-se em escolas tanto católicas quanto protestantes.
Têm seu marco profissional na Guerra da Criméia, em 1854, quando com um grupo de
mulheres desloca-se para Scutari, onde transforma um cenário de desolação e morte em
possibilidade de cura, recuperação e reinserção dos soldados ingleses nas frentes de batalha.
Na volta do cenário da guerra, bastante debilitada por doenças contraídas neste período, não
desanima e cria uma escola que busca formar profissionais baseados em seus ideais de ordem,
organização, disciplina e respeito hierárquico, como base para o funcionamento das
instituições destinadas ao cuidar na época, identificadas como hospitais. Sua participação no
cenário da saúde inglesa foi tão importante que após o seu sucesso na guerra, seus métodos

285
que foram tão eficientes no cuidado com o corpo dos soldados, agora era estendido ao
cuidado com os corpos dos trabalhadores, que representavam a força de trabalho que
sustentava o capitalismo inglês da época (KRUSE, 2006).

O legado de Florence esta registrado em livros, sendo que o mais famoso deles denomina-se
Notas sobre a Enfermagem publicado em 1860, e que preocupava-se principalmente com o
cuidado dos doentes no domicílio, juntamente com outros materiais escritos por ela, ajudaram
a consolidar a Sistema Nightingaleano de Ensino que propiciou que a Enfermagem agora
consolidada como profissão pudesse se disseminar por todos os países e formasse um corpo
de profissionais envolvidos com a arte e a ciência de cuidar.

Corpo e religiosidade na enfermagem

A relação entre corpo e enfermagem torna-se evidente a partir de um pensar no medievo de


que o cuidado com o corpo devesse ter somente a finalidade de expiação de culpa e pecado e
de garantia de um lugar no céu da eternidade, cuidado este do qual se ocupavam mulheres de
classe abastada, viúvas ou solteiras com possibilidade de dedicação integral a esta atividade,
evoluindo até o cuidado com o corpo concretizado na Idade Moderna para recuperação
principalmente da força de trabalho dos soldados bem como para alívio do sofrimento das
pessoas em geral (PADILHA; MANCIA, 2005).

Os séculos 16 e 17 na Europa são marcados por muitos autores como os tempos da trilogia
negra, isto é fome, peste e guerra. Neste sentido as atividades das cuidadoras não poderiam
ser diferentes daquelas voltadas eminentemente ao cuidado do corpo, uma vez que era
prioritária a higienização dos corpos individuais na busca da limpeza dos corpos coletivos.
Aqui mais uma vez apresenta-se a conjugação com a religião, pois não só os grupos de
cuidadores foram organizados a partir das ordens religiosas, como este cuidar nada tinha de
científico ou tecnológico e sim era embasado nos dogmas e crenças do cristianismo, tendo em
São Vicente de Paula e Luísa de Marilac da ordem das Irmãs da Caridade as suas maiores
expressões (HELLIS; HARTLEY, 1998).

Florence Nightingale em seu primeiro livro sobre a enfermagem destaca o importância do


cuidado com o corpo, pelo ângulo do fisiológico e também do psicológico/ espiritual,
confirmando assim a indissociabilidade do binômio corpo/ religiosidade nas práticas de cuidar

286
em enfermagem. Nesta obra a autora deixa explícito que cuidar do corpo é cuidar do espírito
uma vez que, um projeta-se no outro e que a doença pode representar uma negligência ou
impureza de espírito da pessoa acometida por uma enfermidade (ICN/ IAPO, 2010).

Estudo de Moreira (1999) que relaciona a mulher, a enfermagem e a modernidade possibilita


a associação do cuidado com o corpo doente, com a postura a ser assumida pelas mulheres
cuidadoras. Cuidar da matéria que tem formas e deformações, continuidades e rupturas,
vontades e necessidades, beleza e incorreções e principalmente possui determinação sexual,
de certa forma assusta e compromete. Em consequência exige da cuidadora que a mesma
apresente um corpo perfeito, invisível, assexuado e imaculado para que a relação do cuidar/
cuidado também se processo de forma impessoal, incolor, descaracterizada de sentimentos,
embasada em técnicas e práticas que buscam cuidar do biológico, enquanto o concreto que se
manuseia e não da força propulsora que acalenta, anima e significa os corpos humanos.

No movimento histórico, vivemos na atualidade um paradoxo em relação a questão do corpo


ou do cuidado com o corpo, pois como afirma Corbellini (2006) as práticas direcionadas para
a higiene corporal, mudança de decúbito, medidas de conforto e prevenção de ulcerações dos
corpos adoecidos, ações que sempre foram consideradas de berço, da área de atuação e
qualificadoras do trabalho do enfermeiro/ enfermagem, hoje são consideradas um saber/ fazer
menor, por não reunirem/ exigirem cientificidade tecnológica de ponta, migrando então a
prática profissional para cenários considerados mais qualificados e valorizados por
envolverem aparato tecnológico de ponta e cientificidade no cuidado da doença/ doente,
seguindo como exemplo o saber biomédico, derivando na submissão do trabalho do
enfermeiro ao trabalho do médico. Também a busca da cientificidade para a enfermagem,
ancorada em teorias desenvolvidas especialmente para embasar o saber fazer e o saber ser
enfermeiro/ enfermagem construídas em espaços geográficos definidos, e portanto aplicáveis
a realidades de grupos sociais também definidos e restritos são consideradas, são consideradas
desvios de prática profissional. Pois, trazem como consequência quando da sua
universalização uma submissão a um saber diferente e diferenciado, que muitas vezes não se
enquadram em realidades para quais foram simplesmente transpostas, como por exemplo a
utilização direta e não refletida das teorias criadas pelas enfermeiras norte americanas em
cenário brasileiro, causando igualmente ao binômio médico/ enfermeiro, submissão de um
saber dito maior ou mais qualificado a um saber menos ou menos qualificado. Esta reflexão
reforça a questão da importância do corpo no ser e fazer enfermagem quer quando dele nos
aproximamos em demasia, alienando-nos da necessidade do olhar para o outro como um todo

287
indivisível, quer quando nos afastamos do corpo daquele com quem cuidamos considerando
este um fazer menor, erroneamente esquecendo que o corpo é a expressividade concreta do
que somos em essência.

A religiosidade por sua vez sempre teve um destaque essencial na arte de cuidar e na
organização desta atividade como profissão. Grandes nomes ao longo da história sempre
estiveram ligados primeiramente a Igreja Católica e depois principalmente aos dissidentes
Protestantes. O cuidar principalmente aquele ligado a figura feminina sempre foi considerado
uma das formas (se não a principal) de praticar a caridade nas mais variadas denominações
das instituições religiosas. O pensar principalmente do cristianismo dos primórdios de amor e
fraternidade marcam a conformação do desenvolvimento das sociedades em geral e de modo
particular a enfermagem desenvolvida como ocupação inicialmente e depois como profissão.
O cuidar como consequência deste pensar também passa a ser desenvolvido com forte espírito
religioso tanto para com a pessoa a ser cuidado, quanto a hierarquia, disciplina e rigor dos
cuidadores, herdados do perfil e das características das ordens religiosas (HELLIS;
HARTLEY, 1998).

Os locais institucionais onde o cuidado era desenvolvido se transformaram em campo fértil


para o desenvolvimento dos dogmas cristãos e estes ideais também marcaram profundamente
os espaços de ensino desta nova profissão, que exigia das pessoas que por ela optassem
comportamento, perfil e moralidade, muito semelhante aos das ordens religiosas, mesmo
quando a enfermagem já era considerada uma atividade laica. No Brasil o desenvolvimento da
enfermagem a exemplo do ocorrido na Europa também aconteceu embasado nos princípios
ético, morais e dogmáticos do cristianismo. O pensamento cristão além de embasar a
atividade das mulheres cuidadoras, marcam ideologicamente o ser e o fazer a enfermagem em
nosso país e também impregnam as instituições cuidam dos doentes, principalmente aqueles
que são indigentes e nestas instituições principalmente a enfermagem se caracteriza como um
fazer por penitência, purgação e purificação (GUSSI; DYST, 2008). Estas mesma autoras
citam Padilha (1999) que elaborou estudo sobre o modelo pré profissional da enfermagem em
nosso país, em que o mesmo afirma que:

No século XIX a partir do regimento do novo hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio
de Janeiro (1852), por ocasião da chegada das irmãs de caridade da Congregação de São
Vicente de Paula. Elas “imprimiam sua marca na prática da enfermagem que se segue atéos
dias de hoje, principalmente nas qualidades esperadas da Enfermeira, como obediência,

288
humildade, abnegação, serviço ao próximo, disciplina, respeito à hierarquia, entre outras”. A
autora afirma em seu estudo que “este ideal de comportamento molda as ações de
enfermagem até os dias dede hoje, influenciando o pensamento e o imaginário social”
(GUSSI; DYST, 2008). Portanto não só em sua história, mas também nos dias atuais a
enfermagem encontra-se relacionada e profundamente marcada pelos ideais e postulados
religiosos.

Considerações finais

Resultados desta pesquisa apontam para a importância e expressividade do corpo e da religião


na organização da enfermagem como profissão, visto que até hoje, mesmo com um crescer
para a autonomia e cientificidade a enfermagem ainda é vista por muitos e vivenciada por
alguns dos seus profissionais com marcas profundas de religiosidade, subserviência e
empirismo.

Cabe não negar estas questões, mas compreendê-las e utilizá-las para qualificar de forma
mais particular a prática do enfermeiro/ enfermagem entendendo que somos, os seres que
cuidam bem como os seres que são cuidados, multifacetados, compostos de corpo e espírito,
de massa e transcedência, de bios e energia e que precisamos igualmente satisfazer
necessidades e vontades, ressaltando e valorizando os caminhos já trilhados e aprendendo
com eles a traçar novos rumos, construir novas vivências e valores que façam com que o
binômio cuidador/ cuidado bem como corpo/ espiritualidade continuem se tangenciando na
história da humanidade, na busca da qualidade, cientificidade, autonomia e mudança para um
melhor viver para todos.

Referências

ELLIS, Janice Rider; HARTLEY, Celia Love. Enfermagem contemporânea desafios,


questões e tendências.5ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

Internacional Council of Nurses (ICN); Internacional Alliance of Patient’s Organizations


(IAPO). Notas de enfermagem: um guia para cuidadores na atualidade. Traduzido por Telma
Ribeiro Garcia. Rio de janeiro: Elsevier, 2010.

289
Internet

CORBELLINI, Valéria Lamb. Fragmentos da História de Enfermagem: um saber que se cria


na teia do processo da submissão teórica. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília 2007
mar-abr; 60(2):172-7. Disponível em
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GUSSI, Maria Aparecida; DYTZ, Jane Lynn Garrison. Religião e espiritualidade no ensino e
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KRUSE, Maria Henriqueta Luce. Enfermagem Moderna: a ordem do cuidado. Revista


Brasileira de Enfermagem. vol.59. Brasília, 2006. Disponível em:
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PADILHA, Maria Itayra Coelho de Souza; MANCIA, Joel Rolim. Florence Nightingale e as
irmãs de caridade: revisitando a história. Revista Brasileira de Enfermagem, 2005 nov-dez;
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MOREIRA, M.C.N. Imagens no espelho de vênus: mulher, enfermagem e modernidade.


Rev.latino-am.enfermagem, Ribeirão Preto, v. 7, n. 1, p. 55-65, janeiro 1999. Disponível em
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SANTOS, Claudia B. dos; LUCHESI, Luciana Barizon. A imagem da enfermagem frente aos
estereótipos: uma revisão bibliográfica. An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002.
Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000052002000200009&script=sci
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WALDOW, Vera Regina. Cuidado humano o resgate necessário. 3. ed. Porto Alegre: Sagra
Luzzatto, 2001.

290
291
Crianças e psicoativos: a ingestão e a relação corpo saúde nos
rituais do Santo Daime
Theresa Jaynna de Sousa Feijão1, Francisca Verônica Cavalcante2

Introdução

A comunicação proposta é parte da pesquisa “Gira gira criancinha: um olhar antropológico


sobre as crianças do Santo Daime no espaço religioso ‘Céu de Todos os Santos em Teresina –
PI’” em andamento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPI. O problema é
compreender a ingestão de substâncias psicoativas por crianças e como a relação corpo/saúde
é significada pelos adeptos e pelas crianças nos rituais e no cotidiano dos sujeitos
pesquisados. O objetivo é compreender como o corpo e o cuidado com a saúde são
significados pelos adeptos e pelas próprias crianças nos rituais em que há a ingestão da bebida
sagrada (ayahuasca) por todos os participantes.

O diálogo teórico com o nosso campo contempla os seguintes autores: Macrae (1992); Mauss
(2003); Le Breton (2011); Cavalcante (2009); Amaral (2002); Foucault (2007). A
metodologia utilizada: etnografia, observação participante, caderno de campo, oficinas,
imagens fotográficas e fílmicas.

Podemos afirmar que a religião do Santo Daime é marcada por uma “nova” maneira de lidar
com a saúde e a doença e se expressa na ingestão da bebida sagrada e na relação corpo-mente-
espírito, o que produzirá “uma educação” e “emoções” expressas e manifestas nos corpos dos
adeptos e das crianças participantes.

1
Bacharel em Ciências Sociais e pós graduanda em Antropologia pela UFPI. Orientadora: Prof. Dra. Francisca
Verônica Cavalcante. Contato:jay_feijao@hotmail.com.
2
Doutora em Antropologia, professora permanente do PPG em Antropologia da UFPI, professora do
Departamento de Ciências Sociais da UFPI, pesquisadora do Núcleo de Estudo sobre Crianças, Adolescentes e
Jovens – NUPEC (UFPI – CNPQ), pesquisadora externa do GP de Sociologia e Antropologia das Emoções –
GREM (UFPB – CNPQ). Contato: fv.cavalcante@uol.com.br.

292
A regulamentação da ayahuasca e a ingestão por adeptos da religião do Santo Daime,
particularmente, por mulheres grávidas e crianças

O Santo Daime é uma religião brasileira originada na floresta amazônica fundada por um
maranhense, Raimundo Irineu Serra, que atraído pela efervescência da borracha (em 1912 a
produção amazônica da borracha atinge seu auge histórico) muda-se para Rio Branco, capital
do Acre em 1910 e depois integra a Comissão de Limites e Fronteiras no ponto intitulado
“Três fronteiras” – pois ali, Peru, Bolívia e Brasil se encontram. Foi no Peru que Irineu teve o
primeiro contato com a bebida sagrada. Por volta do ano de 1930 começa a “receber” de uma
entidade feminina (identificada como Nossa Senhora da Conceição) que aparece em suas
“mirações”- estado alterado de consciência sob o efeito da ayahuasca - as primeiras lições
dessa doutrina que é também tida pelos adeptos como uma escola espiritual e, por vezes,
comparada a um exército, o Batalhão da Rainha.

A doutrina do Santo Daime tem como sacramento eucarístico o chá da Ayahuasca (preparado
da cocção do cipó jagube - banisteriopsis caapi e da folha Rainha ou chacrona- psicotria
viridis), que na língua quéchua significa “Vinho das Almas” o que nos remete a uma ligação
com o divino. Entre o debate acerca do termo mais apropriado para referir-se à bebida, a
palavra enteógena que é de origem grega e significa Deus dentro de si (LIRA, 2009),
(MACRAE, 1992), parece ser a mais apropriada, já que termos como psicoativos,
alucinógenos ou alteradores de consciência parece não contemplar a experiência vivenciada
pelos adeptos ao ingerirem a bebida (LIRA, 2009).

A discussão bastante explorada pela mídia, enfocando argumentos e opiniões de lideranças


religiosas do Santo Daime e de outras religiões, bem como de profissionais da saúde, de
políticos, dentre outros, em torno da ingestão da bebida sacramental ayahuasca ou Santo
Daime por seus adeptos, dentre eles, mulheres grávidas e crianças, gera polêmica em função
da regulamentação sobre o uso da substância no Brasil e no mundo.

A polêmica em torno do consumo da ayahuasca faz parte da discussão que envolve o


‘problema do uso de drogas’, assunto presente na agenda política contemporânea, da qual
resulta uma série de acordos e tratados internacionais a exemplo do Internacional Narcotics
Control Board3, que estabelece quais substâncias são consideradas drogas ou não, gerando
assim a adoção de políticas proibicionistas em relação às mesmas (REGINATO, 2010). Em

3
Órgão criado no âmbito das Nações Unidas

293
sua lista aparece a DMT ou Dimetiltriptamina, alcaloide presente em uma das plantas que
compõem a bebida sacramental ayahuasca. No entanto, o que se entende por drogas, é fruto
de um contexto histórico, social e cultural.

É importante pontuar que, desde o início dos anos de 1980, a regulamentação e o uso da
ayahuasca no Brasil, vem sendo estudado e discutido multidisciplinarmente por antropólogos,
psiquiatras, psicólogos, representantes da divisão de narcóticos da polícia federal, teólogos,
entre outros (LEMOS & POLARI, 2003) e é pioneiro no que diz respeito ao tema.

Em 1985 a DIMED – Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde - através da


Resolução 02/85 inclui a banisteriopsis caapi na lista de substâncias proibidas para adequar-se
aos tratados internacionais tornando assim, o uso da ayahuasca um crime. Ainda no mesmo
ano, o COFEN – Conselho Federal de Entorpecentes - cria uma comissão interdisciplinar para
estudar o fenômeno religioso in locus, retirando a bebida da lista de substâncias proibidas por
lei. No ano de 1987, foi expedido o parecer final ficando assim o uso recomendado apenas
para fins ritualísticos. Em 1992 num reexame pelo mesmo COFEN foi reafirmado a
legitimidade do uso da ayahuasca. No ano de 2002 o CONAD – Conselho Nacional
Antidrogas -, órgão que substituiu o COFEN cria um novo grupo de trabalho e em agosto de
2004 a Câmara de Assessoramento Técnico e Científico sobre o uso da Ayahuasca, levando
em consideração os pareceres anteriores do COFEN entre outros, apresenta parecer favorável
ao uso religioso da bebida sacramental.

Portanto, em dezembro de 2004, através da Resolução 05/04 o CONAD reconhece a


legitimidade jurídica do uso inclusive por mulheres grávidas e crianças. Um novo grupo
multidisciplinar de trabalho é criado e em novembro de 2006 produz um relatório, do qual a
versão final foi aprovada na íntegra em 25 de janeiro de 2010 através da Resolução 01/10
CONAD. Em abril do mesmo ano é apresentado na Câmara um projeto visando a suspensão
da Resolução 01/10 do CONAD, o que tornaria o uso da ayahuasca crime novamente. Um dos
motivos elencados, não apenas por este projeto, mas também pela mídia sensacionalista, que
dramaticamente discutiu o assunto, foi a morte do cartunista Glauco Vilas-Boas, comandante
de uma igreja do Santo Daime em São Paulo, morto em março do mesmo ano por um dos seus
adeptos vítima de um surto psicótico.

Em se tratando da ingestão da bebida por adeptos, dentre eles, grávidas e crianças lembramos
que o respeito à diversidade e liberdade religiosa é garantido pela Constituição Federal, bem

294
como é importante destacar que não há nenhuma prova científica ou empírica de malefícios
no uso por esses grupos, posto que o seu uso é regulamentado e só é permitido dentro de um
contexto religioso, ou seja, permeado por um conjunto de práticas e por um sistema cultural
compartilhado, muito particulares que norteiam e exercem um controle social sobre o
indivíduo e os grupos.

O corpo como categoria de estudos antropológicos

O corpo é o campo primeiro das experiências da cultura. Ele significa e é significado de


acordo com o mundo, as experiências vivenciadas, o capital simbólico compartilhado. Mauss
nos diz que “o corpo é o primeiro e mais natural instrumento do homem” (MAUSS, 2003, p.
407). Para Le Breton “O homem não possui seu corpo, ele é seu corpo” (LE BRETON, 2011,
p. 375).

Tradicionalmente, existe uma maneira, imposta pela cultura, dos homens servir-se de seus
corpos, de expressarem seus sentimentos, que nada mais são do que técnicas corporais. Mauss
compreende a técnica como “um ato tradicional eficaz [...] Ele precisa ser tradicional e
eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não há tradição” (MAUSS, 2003, p. 407).
Essas técnicas expressam um sistema simbólico ao qual o indivíduo está inserido e do qual
compartilha. O corpo e as emoções, segundo Mauss (2003), são educados socialmente. Uma
“educação” que não é apenas imitação, mas antes, encontra-se fundamentada numa
autoridade.
Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano, os fatos de educação
predominavam.. A noção de educação podia sobrepor-se a noção de imitação. [...] O que se
passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos bem sucedidos que ela
viu ser efetuado por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato impõem-se
de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. [...]
É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado, autorizado,
provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social. (MAUSS,
2003, p. 405)

Embora o ser social atuante não vislumbre a capacidade dos “detalhes” na educação do seu
corpo biológico para o funcionamento da vida em sociedade, é exatamente o conjunto de
técnicas disciplinadoras (capazes de, coercitivamente, educarem e garantirem resultados que

295
“obtêm êxito”) que orientam o grupo e criam, ao longo do tempo, comportamentos basilares,
que deverão ser seguidos por todos os membros.

[...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações. [...] A escala, em primeiro lugar, do controle:
não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga,
de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder
infinitesimal sobre o corpo ativo.[...] implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela
sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma
codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos
que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar
as "disciplinas" (FOUCAULT, 2007, p. 118).

A eficácia simbólica da técnica garante que os membros da sociedade, regulem os seus


comportamentos cotidianos, ao longo do tempo, constituindo em tradição as posturas
concernentes a todos os membros que integram o grupo.

Esta educação do corpo, através das técnicas disciplinadoras que constituem um grupo social
é um campo fértil para a compreensão da própria estruturação conceitual da sociedade. Em
suma, permite vislumbrar como se dá o processo de educação desse corpo ao “corpo dócil”,
resumido por Foucault como “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2007, p. 118).

A relação corpo/saúde no Santo Daime

O grande mercado disputado pelas religiões é o de bens simbólicos de cura e salvação. Alguns
sistemas religiosos já têm sua tradição firmada na cura como o espiritismo, por exemplo. As
práticas religiosas afro-brasileiras também têm seus sistemas de crenças baseados na cura
através das folhas, infusões, chás, entre outros. Dessa forma, as religiões afirmam a sua
função como terapêutica.

No Brasil, antes da medicina oficial, a medicina praticada aqui era a dos indígenas juntamente
com as dos africanos escravizados.

296
A doutrina fundada por Raimundo Irineu Serra tem no seu mito de origem, íntima ligação
com a cura de malefícios espiritual, físico e mental, assim como o uso da ayahuasca por
xamãs vegetalistas da Amazônia (antecessores no uso da bebida sacramental) também está
associado a atividades de cura: “os xamãs são grandes conhecedores da floresta e das
propriedades das plantas, que usam com frequência, especialmente para as atividades de cura”
(MACRAE, 1992, p. 28).

O Santo Daime é uma religiosidade Nova Era. Para Amaral (2000) e Cavalcante (2009) a
religiosidade Nova Era é uma religiosidade produzida por uma miscelânea de diversas
culturas e tradições, que engendra uma integração holística do homem, proporcionando
experiências voltadas ao bem estar do indivíduo e da humanidade, bem como do planeta. A
questão da espiritualidade é voltada para o autoconhecimento, chave para a transformação do
ser, e, consequentemente sua cura, através da experiência mística ou extática, entre outras.

A doutrina daimista é cosmocentrista, para seus seguidores, Deus está presente em todas as
coisas, inclusive dentro de nós mesmos, é uma relação de transcendência e imanência; resgata
e valoriza intensamente os estados alterados de consciência (chamados pelos adeptos de
miração) como forma de alcançar a iluminação espiritual, não só por meio da ingestão do chá
(também conhecido como Daime, yagé, ayahuasca, Vegetal, caapi), mas também através do
canto e da dança.

O Santo Daime é uma doutrina musical. Os hinários são um conjunto de hinos, ditados
diretamente do mundo do astral e que contêm ensinamentos, poder de cura e revelação. Para
os adeptos o conjunto de hinários basilares4 compõe o Terceiro Testamento. Os hinos
assemelham-se a mantras por suas melodias repetitivas. Nos trabalhos, também são usados
diversos instrumentos musicais como violões, tambores variados, flautas, maracás, entre
outros. O bailado divide-se em três diferentes passos: marcha, no qual baila-se dando dois
passos para a esquerda, dois para a direita; valsa, um passo para esquerda, um para a direita e
a mazurca, onde dá-se três passos para cada lado, começando sempre pela esquerda. Os
maracás também são tocados de acordo com os tipos de bailado: na marcha dá-se três toques
para baixo e um para cima; na valsa inicia-se com um toque para baixo e dois toques pra
cima; as mazurcas são tocadas com três toques pra cima e três para baixo. Os maracás são

4
Mestre Irineu, fundador do Santo Daime, foi o primeiro a receber hinário, que chamou “O Cruzeiro Universal”,
seguido por seus discípulos: Germano Guilherme (Sois Baliza), Antônio Gomes (O Amor Divino), Maria
Damião (O Mensageiro) e João Pereira (Seis de Janeiro) formando assim o conjunto de hinários que
fundamentam a doutrina, tendo o do Mestre fundador maior relevância dentre eles.

297
instrumentos importantes para a marcação dos passos no bailado, tudo deve estar em
sincronia.

O calendário litúrgico daimista é composto por trabalhos de Concentração, ocorridos aos dias
15 e 30 de cada mês; Festejos (também conhecidos como bailados), que seguem algumas
datas do calendário católico como Dia de Reis, os santos juninos, Nossa Senhora da
Conceição, Finados, além de aniversários de membros importantes da doutrina, nestes
trabalhos também acontecem os ritos sociais: casamentos, batizados e as cerimônias de
fardamento – ritual de iniciação do adepto, momento em que o iniciado recebe sua estrela, e
passa a ser “um soldado da Rainha da Floresta” ou ainda um “aluno da escola da Rainha”; os
Feitios – momento em que se realiza a feitura da bebida sacramental e que têm uma duração
variando de acordo com a quantidade de daime a ser produzido (um feitio em que se prepara
600 litros, leva, em média 4 dias); as Missas – trabalhos dedicados aos mortos e realizados à
primeira segunda-feira de cada mês, além do aniversário de morte (passagem) de membros
importantes. Podem acontecer também trabalhos extraoficiais, os chamados trabalhos de cura
ou de estrela que não têm datas específicas, acontecendo de acordo com a conveniência de
cada centro. Em todos estes trabalhos espirituais se comunga a bebida sacramental e cantam-
se hinos de acordo com o trabalho a ser realizado.

As indumentárias, também chamada pelos adeptos de farda e que devem estar sempre bem
limpas e engomadas, são de dois tipos e devem ser usadas de acordo com o trabalho a ser
realizado: para os trabalhos de serviço: Concentrações, Trabalhos de Cura ou Trabalhos de
Estrela usa-se a farda azul: uma longa saia azul marinho pregueada; camisa branca de mangas
curtas com bolso localizado do lado direito onde encontram-se bordados as inscrições CRF,
que significa Centro de Regeneração e Fé; uma estrela de seis pontas, também chamada de
estrela de Salomão; com uma águia sobre a mesma; e uma gravata estilo borboleta da mesma
cor da saia formam a farda das mulheres; para os homens, a farda azul é formada por uma
calça azul marinho, do tipo alfaiataria, camisa branca de mangas compridas e uma gravata
também azul marinho, os homens também ostentam uma estrela de seis pontas, tal qual a das
mulheres, porém não bordada, mas como um broche e a localização, seja do lado esquerdo ou
direito vai depender do estado civil: casados e/ou pais usam do lado esquerdo, já os solteiros a
usam do lado direito. Para os Trabalhos de Bailados ou Festejos em que cantam-se os hinários
oficias, usa-se a farda branca. A feminina é composta de saia branca pregueada, blusa de
mangas compridas, também branca, um saiote verde bandeira, também pregueado e uma faixa
que transpassa o ombro esquerdo, de onde pendem fitas coloridas chamadas de “alegrias” e

298
termina em um laço do lado direito na altura da cintura. Para os homens, calça, terno e camisa
brancos, além de gravata azul marinho.

As disposições dos adeptos no salão de serviços obedecem a uma ordem que, segundo os
membros, visa buscar um equilíbrio de forças. O salão tem o formato de uma mandala de seis
lados e divide-se em duas tríades dispostas dos lados esquerdo e direito do salão. Ao centro
localiza-se a mesa eucarística, que também tem o formato de uma estrela de seis pontas e ao
redor da qual sentam-se doze pessoas, seis homens e seis mulheres. Do lado esquerdo da mesa
ficam as mulheres, dispostas da seguinte maneira: ao fundo, na parte mais interna do salão,
ficam as meninas, ou as crianças; no meio ficam as jovens e na parte mais próxima à porta
ficam as casadas. Do mesmo modo os homens são dispostos no lado direito do salão, no
entanto os casados localizam-se mais ao fundo do salão e na parte mais externa ficam os
meninos, ficando assim os meninos frente-a-frente com as meninas; os casados frente-a-frente
com as casadas; e os jovens frente-a-frente com as jovens.

Durante os rituais a bebida é servida algumas vezes. Nos trabalhos de Concentração, em


média, é aberto três despachos (expressão usada para designar que a bebida está sendo
despachada, distribuída), mas, dependendo do tipo de trabalho a ser realizado, pode-se abrir
mais ou menos despachos.

Desde a gestação as crianças “ingerem” daime, através da ingestão feita por suas genitoras;
segundo Mauss (2003) existem técnicas do nascimento e da obstetrícia, além de técnicas da
infância. Na doutrina do Santo Daime a ingestão da bebida se configura como uma dessas
técnicas tanto de parto quanto de nascimento, pois na hora do parto algumas mães tomam a
bebida para darem a luz, sob a luz do Santo Daime sob a alegação de que a bebida dá força
para parirem, já que entre a maior parte delas há um desejo pelo parto natural; ao nascerem,
antes mesmo da primeira mamada, as crianças tomam uma gotinha ou, por vezes, lhes é dado
o sacramento embebido em algodão; além disso, na cerimônia de batismo (alguns pais
batizam seus filhos comutativamente na igreja católica e no daime, por questões muitas vezes
sociais), lhes é oferecido também embebido em algodão. Outra situação comum, percebida
nos relatos é a utilização da bebida em outros momentos que não nos rituais, associados
exatamente à cura de alguma enfermidade: uma mãe nos relatou que quando seu bebê tem
problemas de constipação ela lhe oferece uma ‘colherzinha’ de daime, em outro caso,
presenciamos a utilização da bebida em uma criança com conjuntivite, ocasião em que a
bebida não foi ingerida, mas sim, passada sobre os olhos doentes, ainda pudemos observar no

299
nosso campo um outro caso em que a bebida foi utilizada como uma espécie de bálsamo em
cima de uma queimadura, constatamos então que no universo simbólico do daimista a bebida
tem poder de cura não somente quando ingerida nos rituais, mas em diversas situações
extraordinárias, porém sempre ligadas ao processo de cura, até mesmo de casos como
depressão, cólicas menstruais, dores de garganta, entre outras. Pois o conceito de saúde e
doença também é ressignificado nesse contexto. Saúde e doença são dois lados da mesma
moeda que para os adeptos do Santo Daime pode ser um estado de espírito.

Considerações finais

Destaco a experiência de participar do Santo Daime como algo que faz com que a afirmativa
de Durkheim sobre a tarefa essencial de “manter, de uma maneira positiva, o curso normal da
vida” (DURKHEIM, 1996, p. 10) presente em toda religião seja vivenciada aqui a partir do
ritual que envolve a ingestão do “vinho das almas”. Com a ingestão, o bailado, o entoar dos
hinos queremos ser transportados para a “zona diurna da vida”, que significa saúde, ou busca
da cura, no sentido inverso atribuído ao termo “zona noturna”, para significar doença, por
Sontag (2007). O equilíbrio buscado pelo fruidor daimista é a experiência mística, a
“miração” que contempla para além de um estado alterado de consciência, ou de expansão da
consciência, mas buscam, sobretudo, uma experiência enteógena, a qual objetiva levar o
adepto ao autoconhecimento, a busca de preservação da natureza e assim viver em harmonia,
estabelecendo a conexão corpo-mente-espírito.

A disposição dos corpos dos participantes no ritual, suas fardas, homens de um lado, mulheres
do outro, o círculo se forma, são cantados os hinos, tocados os instrumentos e os corpos se
movimentam num bailado, os corpos se estendem para um lado e para o outro, em sintonia,
cadência, disciplina, harmonia. Os corpos das crianças, transitam, trafegam por entre os
corpos dos adeptos, familiares, pais ou simplesmente membros do espaço ‘Céu de Todos os
Santos’. Forma-se uma fila: toma-se a bebida sagrada, canta-se, dança-se, toma-se novamente
o vinho das almas. Observando o cotidiano dos rituais do Santo Daime que envolve o uso da
bebida sagrada, percebe-se que, às vezes, as crianças bebem várias vezes a bebida: entram na
fila e, ao chegarem sua vez tomam a bebida e, entram novamente na fila... Independe do sexo
biológico destas crianças elas têm liberdade para circular nos espaços destinados, divididos
em espaços femininos e masculinos.

300
Os corpos dos adeptos são “educados”, “disciplinados”, docilizados. São os corpos que
representam o “Homem-máquina” escrito simultaneamente em dois registros: anátomo-
metafísico e técnico-político. Como lembra Foucault:

Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. [...]
ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou
cujas forças se multiplicam. [...] O objeto [...] do controle (é) [...] a economia, a eficácia dos
movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os
sinais, a única cerimônia que realmente importa é a do exercício (FOUCAULT, 2007, p.
117-118).

Assim se refere Foucault sobre a disciplina do corpo na modernidade que nos ajuda a
compreender os corpos dos adeptos no cotidiano e nos rituais do Santo Daime no espaço ‘Céu
de Todos os Santos’.

Os corpos das crianças parecem que ao fruírem desta liberdade, desta licenciosidade que lhes
permitem trafegar por espaços indistintamente são também “controlados”, “docilizados”,
“disciplinados” de maneira sutil. Certa vez, em um ritual de cura uma criança disse não gostar
de ser chamada de “fofinha” porque era “homem”. Assim, observa-se que aos olhos
desavisados ou pouco treinados do senso comum, parece que naturalmente ou
espontaneamente a criança passa gradativamente a comportar-se de acordo com o seu sexo
biológico. Ocupando lugares destinados aos homens quando o sexo biológico é um pênis e,
espaços destinados às mulheres quando o sexo biológico é uma vagina, representando desta
maneira o masculino e o feminino no espaço religioso ‘Céu de Todos os Santos’.

A respeito das microfísicas do poder engendradas por esta rede de sociabilidade presente
cotidianamente e nos rituais do espaço religioso em questão vemos as crianças
desempenharem ações de imitação dos adeptos com quem dividem o espaço da comunidade
daimista e que exercem para elas uma autoridade, um modelo a ser imitado.

Foucault afirma:

Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência


inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias
inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza[...] A disciplina é uma anatomia
política do detalhe (FOUCAULT, 2007, p. 120).

301
Mauss (2003), como já enfatizamos, afirma que o ser humano aprende com o adulto que lhe é
importante imitando seus gestos, suas ações, suas maneiras de andar, de correr, de nadar, de
fazer sexo, enfim, maneiras de ser são técnicas corporais e todas têm suas especificidades. No
caso das crianças que ingerem o vinho das almas e gradativamente passam a ocupar os lugares
demarcados por gênero dentro dos rituais daimistas elas parecem agir por imitação,
representando através de seus corpos e gestos o cuidado com a saúde e com o corpo.

Entendemos que a ação imitativa das crianças do espaço religioso daimista não está separada
ou deslocada do contexto social e cultural em que estão inseridas, portanto, as crianças
frequentadoras do espaço religioso ‘Céu de Todos os Santos’ não são como seres incompletos
a serem formados e socializados, mas, sim, sujeitos sociais. Como nos lembra Cohn:

[...] a criança não é apenas alocada em um sistema de relações que é anterior a ela e
reproduzido eternamente, mas atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas das
relações sociais dentre aquelas que o sistema lhes abre e possibilita (COHN, 2005, p. 28).

Assim, para entender a ingestão da bebida sagrada pelas crianças e a relação corpo/saúde, o
cuidado e significado corpo/saúde para elas, devemos compreender, primeiro, o seu contexto
social e cultural, isto é, os significados de corpo, saúde, ingestão do vinho das almas para os
adeptos que são “imitados” por estas crianças. Obviamente, pensando nos dizeres de Cohn:
“[...] a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança
não sabe menos, sabe outra coisa” (COHN, 2005, p. 33). Para nós antropólogas importa saber
o ponto de vista das crianças e dos adeptos deste espaço religioso estudado.

As maneiras de lidar com as emoções e sentimentos de pertença a religião do Santo Daime no


espaço ‘Céu de Todos os Santos’ são atravessadas pela ideia dos cuidados com o corpo e com
a saúde. O termo emoções é aqui compreendido como “uma categoria de entendimento capaz
de apreender a noção de humano e de sociedade como um todo” (KOURY, 2009). As
emoções engendradas pela ingestão da bebida sagrada nos rituais daimistas são vivenciados
pelos participantes e expressas nos seus gestos, corpos, danças, cantos. No que se referem às
crianças, os hinários evidenciam a visão cristã da pureza, da beleza enaltecidas como atributos
e qualidades próprias das crianças. Portanto, pensar o significado da ingestão da bebida
sagrada, da relação corpo/saúde para os participantes do espaço religioso em questão requer
um mergulho em suas subjetividades.

302
Como ainda estamos em uma fase incipiente da pesquisa, o método etnográfico e as técnicas
de desenho, colagens, imagens audiovisuais a serem realizadas em breve nos servirão para
refletir e poder afirmar mais sobre as nossas interpretações sempre relativas e em acordo com
o que entendemos ser o ponto de vista dos participantes do espaço ‘Céu de Todos os Santos’
no que diz respeito aos significados aqui tratados.

Referências

AMARAL, L. Carnaval da alma: Comunidade, Essência e Sincretismo na Nova Era. Rio de


Janeiro: Vozes, 2000.
CAVALCANTE, F. V. Os Tribalistas da Nova Era. Teresina: Fundação Quixote, 2009.
COHN, C. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.


São Paulo: Martins Fontes, 1996.

FOUCAULT, M. Os corpos dóceis. In: Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 117-142

LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.


LEMOS, José Augusto; POLARI, Alex. Céu do Mapiá 20 ANOS: Uma comunidade espiritual
no coração da floresta. Amazonas, 2003.
LIRA, W. L. Os trajetos do êxtase dissidente no fluxo cognitivo entre homens, folhas,
encantos e cipós: uma etnografia ayahuasqueira nordestina. Orientação de Eduardo Duarte
Gomes da Silva. Dissertação (Mestrado em Antropologia) UFPE, Recife, 2009.
MACRAE, E. Guiado pela lua: xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo
Daime. São Paulo: Editora brasiliense, 1992.
MAUSS. M. As técnicas corporais. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU, 2003.
399-422.
________. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: Antropologia. Organizador: Roberto
Cardoso de Oliveira. São Paulo: Ática, 1979.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
KOURY, M. Emoções, sociedade e cultura: a categoria de análise emoções como objeto de
investigação na sociologia. Curitiba: Editora: CRV, 2009.

303
Internet
REGINATO, A.D.A. Regulamentação de uso de substância psicoativa para uso religioso: o
caso da ayahuasca. In: TOMO, São Cristóvão – SE, V01, Nº 17, 2010. Disponível em <
http://200.17.141.110/pos/sociologia/down/Revista_TOMO-n17.pdf > Acesso em 10
jul.2013.

304
305
Êxtase religioso e sua manifestação: o corpo como um
instrumento divino
Cláudia Neves da Silva1, Fabio Lanza2

Introdução

A temática do êxtase religioso permeia parte significativa do mundo religioso, e foi a partir
desta constatação que surgiu o interesse de estudar o êxtase religioso, dando ênfase às
manifestações religiosas pentecostais.

Inicialmente é preciso destacar que os conceitos analíticos sobre a temática religiosa são
plurais e não possuem consenso entre os autores especializados. Dentro desta perspectiva,
definir o que é religião é um exercício teórico parcial, provisório e arbitrário; e para superar
esse obstáculo epistemológico do campo das Ciências Sociais e da História foi adotada a
contribuição de Otto Maduro (1983), que delimita o referido conceito como

[...] uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a algumas
forças (personificadas ou não, múltiplas ou unificadas) tidas pelos crentes como anteriores e
superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa
dependência (criados, governados, protegidos, ameaçados etc) e diante das quais se
consideram obrigados a um certo comportamento em sociedade com seus “semelhantes”
(MADURO, 1983, p. 31).

Dessa forma, os estudos sobre a temática das religiosidades e suas instituições implicam
reconhecê-las, compreendê-las e interpretá-las dentro do processo histórico-social e
permeadas pelos conflitos instituídos nas diferentes formas de organização social.

Definido o que entendemos por religião, podemos dar continuidade a este artigo, cujo objetivo
é investigar e entender a emoção individual e coletiva, ou seja, o êxtase religioso, expressão
do contato direto com o divino. Para tanto, recorremos à observação de celebrações religiosas
de natureza pentecostal e entrevistamos líderes religiosos de Igrejas Pentecostais da cidade de
Londrina/PR.
1
Professora do Departamento de Serviço Social da UEL. Doutora em História Social. Componente do
Laboratório de Estudos das Religiões e Religiosidades. Contato: claudianevess@uel.br
2
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UEL. Doutor em Sociologia. Componente do Laboratório de
Estudos das Religiões e Religiosidades. Contato: lanza1975@gmail.com.

306
Para estes líderes, documentos e discursos não são considerados importantes na relação
daquele que crê em Deus, porque pelo batismo no Espírito Santo, ele se faz presente na vida
do crente. Neste contato íntimo com Deus, não há a necessidade de intermediários, pois ele e
seu filho Jesus Cristo se tornaram presentes de forma real e ativa na vida do crente, mediante
o Espírito Santo. A Bíblia, que conteria a palavra e as determinações de Deus, é a fonte de
inspiração e modelo para a leitura do mundo; e é somente a partir dela que os dirigentes
espirituais elaboram seus discursos.

1 - Êxtase Religioso: a busca da experiência do encontro com o divino

Ao falar de êxtase religioso, logo vem à mente a ideia de uma experiência religiosa
vivenciada por aqueles que se entregam, de corpo e alma, a um ritual e crença religiosa.
Homem e/ou mulher que entraria em um transe e estaria em ligação direta com o divino.
Neste sentido, algumas indagações nos saltaram à mente: qual é a natureza e o significado do
êxtase religioso? Onde, como e em quem ele se manifesta? Por que ele ocorre?

Ao buscar um significado para a experiência extática consideramos fundamental que ela deve
ser compreendida em seu próprio cenário, ou seja, analisá-la tendo em vista o momento
histórico, o contexto social, cultural, econômico onde é vivenciado, visto que, não obstante o
êxtase religioso acontecer em diferentes períodos históricos, diferentes sociedades e religiões,
há um significado social que vai além do ritual e da emoção.

Portanto, a análise será a partir de uma perspectiva sociológica, porém não deixando de
também enfocar a perspectiva histórica e antropológica, seguindo os passos de Lewis (1977),
Mendonça (2008) e Silva (2006), que em seus estudos, vêem o êxtase como um fenômeno
religioso que se associa a outras situações e definições subjacentes. Santos (2004) aprofundou
a análise deste fenômeno também na perspectiva da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
Segundo esta pesquisadora:

[...] para os estados alterados de consciência que compõem o espaço imaginário e simbólico
entre o exercício da razão e a vivência do êxtase [...] descobrimos que ele pode ser um
ponto de chegada ou de passagem para estados novos de consciência. Êxtase é um dos
estados de nossa consciência (SANTOS, 2004, p.13).

307
Para iniciar, é preciso destacar que nos limitaremos a analisar o êxtase religioso no universo
cristão, mais especificamente na sociedade brasileira contemporânea, pois esta experiência
ocorre em diferentes religiões e culturas, e não daríamos conta de analisá-la neste curto
espaço.

Se até poucos anos atrás denominações religiosas cristãs não estimulavam a vivência extática,
aqui estamos nos referindo às igrejas tradicionais – católica, protestantes históricas - observa-
se que atualmente há um incentivo, discreto, é verdade, por parte de alguns líderes religiosos
destas denominações para a prática de tal experiência em encontros e reuniões para este fim.
Situação que decorre do crescimento, diríamos vertiginoso, das igrejas que têm como atração
principal em seus cultos a prática da oração, com o reforço da espontaneidade, da
subjetividade e da emoção: o êxtase religioso.

Estamos nos referindo às igrejas que surgiram no rastro do movimento pentecostal, e cuja
teologia é construída tendo por base a bênção do Espírito Santo e o seu sinal, a glossolalia,
assim como a cura e libertação das forças malignas. De acordo com a teologia pentecostal,
Deus está presente em tudo e em todos os lugares e tempos; fatos passados, presentes e
futuros estão relacionados em uma verdadeira fusão, cabendo ao Espírito Santo levar tudo e
todos à sua plenitude, porque uniria vida corporal, sexual e psicológica (MAGALHÃES,
2000).

Deus penetra aquele que crê levando-o a uma experiência pessoal e exclusiva, assim como a
uma vivência íntima com aquele que lhe dará um novo sentido à vida. Para essa revelação e
contato íntimo com Deus, não há a necessidade de intermediários, pois Ele e seu filho Jesus
Cristo se tornaram presentes de forma real e ativa na vida do crente mediante o Espírito Santo.

A teologia pentecostal prega que o homem e a mulher são criados à imagem de Deus estando,
portanto, no centro de toda a criação e tendo por vocação explorar todas as riquezas da
natureza. Mas, ambos somente serão considerados como tais à medida que permanecerem
sujeitos a Deus: “ele só é livre na servidão ao seu Deus”. Fora dessa liberdade só há
escravidão e o seu fim.

O maligno é quem levaria, segundo essa perspectiva, a mulher e o homem a saírem dos trilhos
de Deus, ocasionando uma vida de penúria, dor, miséria. Escutamos em uma celebração
religiosa o pastor pregar: “Muitos chegaram a Jesus viciado, quebrado [...] é Jesus que cura, é
Jesus que traz a salvação. É Jesus que vence o diabo. Ele sai e vai embora [...]. Tudo o que

308
não presta, o ciúme, o vício naquela família, o diabo está lá, entronizado na família [...]”
(culto).

2 - O êxtase e sua relação com a realidade a sua volta

Para melhor entendimento da manifestação extática e para demonstrar que esta se deu em
diferentes épocas, regiões geográficas e culturais, iniciamos com Lewis (1977), que ao se
propor a entender o êxtase religioso, já de início destaca que esta experiência extática deve ser
relacionada com o contexto social onde é vivenciada, porque carrega em si a marca da cultura
e da sociedade em que aparece, necessitando ainda, investigar como este fenômeno é
entendido e utilizado nas diversas condições sociais em que é produzido: “o uso que é feito da
experiência extática varia de acordo com as várias condições sociais em que ocorre.”
(LEWIS, 1977, p. 15)

O autor propõe então, apresentar as condições sociais singulares que favorecem o


desenvolvimento da “ênfase mística na religião”, e investiga a manifestação extática em
comunidades asiáticas, no norte da África e na América do Sul.

Outro aspecto que nos interessa destacar do texto de Lewis (1977, p. 35), é o fato de este
afirmar que os líderes religiosos buscam o êxtase quando visam “fortalecer e legitimar a sua
autoridade”.

Também buscamos em um estudioso do campo religioso judaíta do século VIII a.C., a


compreensão do movimento extático. Em seu artigo, Silva (2006) teve por finalidade analisar
o fenômeno intuitivo no antigo Oriente Próximo, notando, no material documental com o qual
trabalhou, “que o êxtase, entendido no sentido mais amplo da palavra, ou seja, como um
estado psíquico excepcional, é um processo comum na busca de inspiração profética”
(SILVA, 2006, p. 56).

Em sua análise, fundamentado em um enfoque histórico-social de versículos do Antigo


Testamento (1Sm19,18-24), o autor destaca que este texto reforça a ideia de que “o êxtase tem
uma maior incidência entre as camadas mais baixas da população, uma vez que dele
necessitam como estratégia para chamarem a atenção dos grupos dominantes [...]” (SILVA,
2006, p. 69).

309
A escolha desses autores não foi aleatória, porque também partimos da premissa que o êxtase
religioso é fruto de seu ambiente religioso, social, cultural, econômico, político e apresenta
uma intencionalidade; e é neste contexto que deve ser estudado e compreendido, afastando-
nos desta forma, de uma perspectiva exclusivamente antropológica ou psicológica.

Em uma sociedade onde as necessidades humanas, as atitudes e os desejos individuais e


coletivos são regulados pelas exigências do mercado para adquirir todos os bens à disposição
de quem pode comprar, onde não ter condições de possuir e apropriar-se das riquezas
materiais da comunidade e utilizar os serviços sociais que deveriam ser ofertados pelo poder
público, mas não o são, os sentimentos gerados, como frustração e impotência, provocam a
exclusão dos espaços sociais que são frequentados por aqueles que atendem às expectativas
do mercado (SILVA, 2008).

Portanto, ir a um local onde há a valorização das emoções, onde não há censura a quem
expresse sentimentos como tristeza, dor, alegria, onde se é recebido por pessoas na porta da
igreja com sorriso nos lábios, com um abraço ou aperto de mão e palavras acolhedoras,
passou a ser uma possibilidade de encontrar respostas para situações da dura realidade da
vida, porque lá será o local onde se encontram homens e mulheres portadoras de habitus
similares (SILVA, 2008).

Tudo isso faz reconhecer um igual entre aqueles que vivenciam problemas, sentimentos e
experiências semelhantes. Sentir-se acolhido e pertencente a um grupo social ajuda a
fortalecer-se para enfrentar as dificuldades e obstáculos do dia-a-dia. Observamos em um
culto o pastor falar: “Jesus toma o corpo do crente... O Espírito Santo sabe tudo que tem em
nós. Espírito Santo sabe o número do meu CPF, da minha identidade... O crente tem que ter a
marca do crente, que todos têm que reconhecer” (Culto).

Nesse sentido, se, por um lado, os crentes vão à igreja em busca de consolo e conforto para
enfrentar a dor e os sofrimentos físicos e emocionais, por outro, segundo Bourdieu (2004,
p.48) os fiéis: “contam com ela (religião) para que lhes forneça justificações de existir em
uma posição social determinada, em suma, de existir como de fato existem, ou seja, com todas
as propriedades que lhes são socialmente inerentes.” Resumindo, vão à procura de
entenderem porque se encontram em uma posição social que lhes gera dívidas,
impossibilidade de adquirir bens de consumo ou mesmo alimentos.

310
A celebração religiosa, quando estão todos os fiéis reunidos, é o momento de fazer os
pedidos, de expor as fragilidades, é também o momento do êxtase. Como pregou o dirigente
espiritual: “dias melhores virão, porque você está servindo a Deus [...]. Nós necessitamos
invocar, porque nós somos bem-aventurados” (culto).

É o momento em que todos aplaudem e cantam, porque há a certeza de que Jesus Cristo
cura e liberta do inimigo que impede a vitória, a superação das aflições: “muitos chegaram
(ao culto) angustiados, mas já estão aliviados, em nome do Senhor!” (culto); “Jesus chega e
destrona o diabo [...]. Jesus vem...Você quer ficar na miséria, pode ficar. Eu não! Quero
prosperidade, saúde, alegria. Eu quero Deus na minha vida” (culto).

Como pudemos verificar nas visitas a algumas igrejas, o culto é a expressão coletiva de fé e
louvor, regidos por uma forte emoção, com hinos alegres e vibrantes que mexem com todo o
corpo – as mãos, os braços, as pernas, os quadris – e cujas letras simples, com refrões
repetitivos e compreensíveis, falam do poder de Jesus Cristo e da fé, conclamando todos à
entrega a um deus triunfante, preocupado e interessado em cada um em particular, porque
conhece seus problemas, suas dificuldades, suas ansiedades, e se compadece como um pai
atencioso e amoroso, que não julga e muito menos condena seus filhos, como ouvimos um
líder religioso dizer durante um culto:

O irmão foi escolhido por Deus, foi separado... Deus conhece teus problemas, você invoca
o nome do senhor e é salvo...esquece os problemas lá fora, porque o senhor se fez presente
no nosso meio (culto).

Nas igrejas pentecostais, os cultos são desprovidos de rituais complexos e ausentes de gestos
carregados de significados simbólicos (tão comuns nas celebrações das igrejas tradicionais) e,
portanto, compreensíveis aos fiéis. Há hinos, orações, pedido para a oferta e o dízimo,
testemunhos dos que encontraram Jesus Cristo e mudaram de vida, a pregação da palavra
ministrada pelo pastor, invariavelmente falando de um Deus que ouve a cada um dos seus
filhos, da necessidade da entrega total e plena a Jesus Cristo: “Se você está em Cristo, você
terá vitórias...” (culto).

A oração comandada pelo pastor e seus auxiliares, assim como a oração de cada um dos
presentes, é espontânea e guiada pelo clamor a Deus para a solução de problemas financeiros,
do desemprego, para a compra da casa ou do carro, problemas de saúde, como a cura do
câncer, diabetes e outras doenças graves e crônicas, problemas emocionais e afetivos. A
exaltação do líder espiritual que em alta voz clama, ora e louva vai aumentando a ponto de
atingir o clímax com todos os presentes respondendo e orando também em voz alta.

311
O choro, as mãos na cabeça e todos repetindo a frase que o líder religioso diz em alta voz:
“somos forte, não somos fracos”, vem corroborar o que Santos (2004) afirmou, ou seja, o
êxtase religioso é um dos estados alterados da consciência e neste estado:

As emoções são percebidas, mas a racionalidade não é abandonada. Estar em êxtase não é
atitude irracional, a razão está lado a lado com a emoção. É por meio da razão que o
julgamento das ideias religiosas se estabelece, e a emoção é o resultado do sentimento
religioso, vivenciado na experiência de sentido (SANTOS, 2004, p. 14).

Nesse sentido, podemos afirmar a partir do que observamos que os líderes religiosos
conduzem as celebrações de modo a estimular as emoções: daí as músicas serem vibrantes,
com letras de fácil compreensão e ritmos contagiantes. Mendonça (2008, p. 128-129) coloca
que:

[...] técnicas como o movimento do corpo, gestos repetidos, cânticos ritmados e orações de
intensidade crescente podem levar ao êxtase coletivo, em que o grau de alteração de
consciência, embora variável de indivíduo para indivíduo, configura o culto extático.

As orações conduzidas pelo líder também é outro recurso utilizado para atingir o êxtase, fala-
se de um deus forte que se coloca ao lado daquele que crê, daquele que quer mudar a sua vida,
que quer saúde, que quer vencer. Sua voz vai aumentando de intensidade, levando todos a
orarem.

Muitos dos presentes passam a impressão de estarem em transe – olhos fechados, falando,
gesticulando e chorando, outros oram em voz baixa, gestos e lágrimas contidas. Vários
minutos se passam e então, o dirigente vai abaixando a voz, a fala se torna mais suave, e os
presentes também vão baixando a voz, diminuindo os gestos corporais. A música fica quase
inaudível, todos se sentam.

Interpretamos esses eventos como êxtase porque são utilizados os mesmos recursos para o
aparecimento do êxtase, como descreveu Santos (2004, p. 184) “[...] a necessidade e o desejo
pela emoção, a percepção que o fiel tem de que lhe é concedido experimentar variada
sensações e a percepção do líder.”

Há também uma diferença do estado original dos participantes, isto é, a expressão facial e a
corporal transformam-se, dando lugar a uma expressão de angústia, ansiedade, dor e/ou
alegria. As mãos, os braços, todo o corpo demonstram que há uma conexão com o sagrado.
Há um êxtase, individual e coletivo.

312
Como disse Santos (2004, p. 111): “o êxtase religioso tem a mesma conotação: é pessoal, tem
a ver com a racionalidade da pessoa, independentemente da cultura ou da religião, e é uma
busca que em si promete momentos de euforia e bem-estar”.

Se, por um lado, o êxtase religioso no Antigo Oriente Próximo, como Silva (2006) nos
apresentou em seu texto historiográfico, tinha uma incidência maior entre os profetas, um
“especialista religioso”; por outro, em nossos dias ele é acessível a todos aqueles que assim o
desejam. E vamos ao encontro das observações do autor quanto a atitude extática, ou seja,
aqui também o êxtase religioso é uma forma de se colocar contra a ordem estabelecida.

Homens e mulheres em precárias condições materiais de sobrevivência, excluídos do acesso


aos bens e serviços sociais, como educação, saúde, habitação, mas que são ouvidos e
atendidos por um deus forte e poderoso, que não faz distinção de classe social, cor, sexo. Uma
possibilidade de se fortalecer perante as dificuldades do cotidiano.

Ao voltar-se para Deus, teriam a vitória e a recompensa já aqui na terra, não somente no céu,
após a morte. As pessoas vão à igreja em busca de um deus vitorioso e transbordante de
alegrias e bênçãos, não querendo mais ouvir sermões que falam de um deus inquisidor e
censurador. Disse o pastor em sua pregação: “O que Deus te prometeu, ele vai cumprir [...].
Você tem um Deus que cuida de você [...] Deus não esqueceu de você, ele tem um milagre
para você” (culto).

Sob esse ponto de vista, o homem que deseja as bênçãos de Deus deve afastar-se de toda a
maldade e mau pensamento. Se algo de bom lhe suceder, não o atribuirá a si mesmo, a sua
habilidade, diligência e boa fortuna, senão a Deus, reconhecendo-o como o autor, e a ele
agradecerá. É uma concepção de vida e fé reforçada sistematicamente pelos dirigentes
religiosos, os quais também insistem em afirmar que a falta de Deus leva o homem a cometer
erros.

Gostaríamos de concluir afirmando que nos dias de hoje, buscam-se relações fundadas no
afeto, no desejo de ser feliz, na satisfação e no prazer, tendo a liberdade individual e a
liberdade de escolha como essenciais para a conquista da felicidade no plano terreno, assim
como destaca-se a importância de viver o presente, o agora, o dia-a-dia, não cabendo a
necessidade ou a obrigação de dedicação e filiação a uma luta ou causa, seja ela social,
política ou ambiental, porque não estaria diretamente ligada ao cotidiano e os resultados se
dariam a longo prazo.

313
Uma espiritualidade reelaborada por meio do sentimento de que a sociedade, e nela as
relações sociais, comerciais e de trabalho, não poderia ser transformada, mas reconstruída a
partir de alternativas variadas de viver e pensar as quais possibilitariam ao indivíduo
compreender qual o seu lugar na família, no mundo e mesmo no universo.

Segundo esse modo de pensar e agir, cada pessoa escolheria a sua própria religião, a sua
própria crença, desde que se adequasse aos objetivos da mesma. Para os que se encontram em
situação econômica desfavorável, a busca pela religião baseia-se na promessa e esperança de
superar o caos diário, os sofrimento, as enfermidades e dar sentido à vida, enquanto que para
os que pertencem aos grupos mais privilegiados economicamente, o interesse religioso funda-
se no fato de terem uma vida correta e perfeita, mas vez por outra acometida por problemas
sem justificativas – doenças, brigas familiares, morte.

E o êxtase religioso seria a possibilidade de contato com o divino e o possível encontro de


respostas para suas angústias e necessidades.

Algumas considerações

A experiência da fé não é única, mas é individual, ou seja, é possível vivenciá-la de diversas


formas, mas cada pessoa terá uma experiência própria, a partir do lugar que ocupa na
sociedade. Ser batizado no Espírito Santo, e expressar este batismo pode representa a luta, a
esperança, as lágrimas e as alegrias daquele que é batizado. Sente-se mais forte e em uma
nova condição diante da própria vida e dos demais. Essa nova condição, aquele que crê
demonstra em sua maneira de viver, rompendo com as coisas do mundo, sendo compreendida
pelos membros das igrejas como um novo nascimento, um novo “renascer em Cristo”,
provocando uma nova visão de si e do mundo.

Essa situação verificamos nas igrejas que registram menos de cem anos de existência. Pelas
observações e entrevistas realizadas, concluímos que há a busca de espaços onde não haja
limites à experiência do emocional, onde é permitido e legítimo expor as emoções e angústias,
na maioria das vezes, reprimidas no dia-a-dia.

E as igrejas que atenderam a essa busca, viram o número de fiéis cresce de forma vertiginosa,
em oposição ao observado na Igreja Católica, que ao longo de centenas de anos de existência,
consolidou sua hierarquia, “estratificando” a instituição, normatizando e ritualizando a

314
manifestação da fé por meio da publicação de Encíclicas, Bulas, racionalizando, desta forma,
o encontro com o sagrado, não obstante o surgimento e o incentivo à Renovação Carismática,
por parte de membros da hierarquia. Como a Igreja Católica responderá a esse desafio, é um
bom motivo para iniciar uma nova investigação.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

LEWIS, Ioan M. Êxtase religioso. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977.

OTTO, Maduro. Religião e Luta de Classes. Petrópolis: Vozes, 1983.

MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. O Espírito Santo como tema central da teologia:
conflitos, perspectivas, desafios. Via Teológica, Curitiba, nº 2, p. 67-102, dez. de 2000.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. Protestantes, pentecostais & ecumênicos: o campo


religioso e seus personagens. 2ª Ed. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São
Paulo, 2008.

SANTOS, Rosileny Alves dos. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados
alterados de consciência. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.

SILVA, Cláudia Neves da. As ações assistenciais promovidas pelas igrejas pentecostais no
Município de Londrina (1970 – 1990). 181 p. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de História, Universidade Estadual Paulista. Assis, 2008.

Internet

SILVA, Fernando Cândido da. Êxtase e sociedade no Antigo Oriente Próximo. In: Caderno
de pesquisa em ciências da religião - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da
Religião/PUC-SP. Último Andar, São Paulo, (14), 55-77. Disponível em
<http://www.pucsp.br/ultimoandar/download/UA_14.pdf>. Acesso em 15 jan. de 2013.

315
316
Fala e gestos na glossolalia: observações em uma comunidade da
renovação carismática católica
Detian Machado de Almeida1, Sueli Ribeiro Mota Souza2

Introdução

Este artigo objetiva descrever a cena de uma manifestação do falar em línguas em um grupo
da Renovação Carismática Católica da Paróquia Nossa Senhora do Resgate, no Bairro Cabula,
localizado na cidade de Salvador - BA. A glossolalia, também conhecida como falar em
línguas estranhas, é um fenômeno que pode ser encontrado em diversas religiões
(NOGUEIRA, 2009). De acordo com Oliveira Junior (2000), a Bíblia refere-se à glossolalia
com diversas nomenclaturas, tais como:

Língua dos anjos (1 Coríntios, 13,1); palavras inefáveis ditas no paraíso (2 Cor. 12,4);
cantos em espírito (1 Cor. 14, 15; Efésios 5, 19); gemidos inefáveis (Rom 8, 26), linguis
loqui (1 Cor 12, 10); diversas línguas, genera liguarum (1 Cor 12, 28); palavras
ininteligíveis (1 Cor 14, 9). (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 43).

Este estudo considera a glossolalia como diferente da xenolalia. Segundo Souza e Almeida
(2012), a glossolalia refere-se ao falar em línguas não condizentes com nenhuma língua
humana, ao passo que xenolalia significa falar em língua estrangeira desconhecida pelo
falante. Para Pommerening (2008), a glossolalia, além de conferir status social “supera as
divisões da linguagem humana, na medida em que capacita os adoradores a se unirem a um
sagrado transcendental” (CAMPOS e GUTIERREZ, 1996, p.100 apud POMMERENING,
2008, p.12). Chesnut (1997) e Quadros (2005) afirmam que o falar em línguas estranhas dá
voz aos calados na sociedade, sendo uma “compensação simbólica” de quem não é valorizado
no seu meio social.

O falar em línguas estranhas tem, segundo Csordas (2008), força na sua falta de sentido
aparente, uma vez que a ausência de significado nos moldes padrão favorece a construção de
novos significados. Freire (2007) menciona que a glossolalia envolve fala e também gestos.

1
Fonoaudióloga pela UNEB. Mestranda do PPG em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC). Contato:
detian@gmail.com.
2
Cientista Social. Doutora em Ciências Sociais pela UFBA. Professora do Departamento de Educação e do PPG
em Educação e Contemporaneidade (Campus I) da UNEB. Contato: sumota@oi.com.br Orientadora da
mestranda Detian Machado de Almeida, no programa de PPGEduC, Linha 1. Título provisório: Estratégias
fonéticas e de disposições corporais: a aprendizagem nas experiências de falar em línguas entre carismáticos e
pentecostais. Início: 2012.

317
Está, portanto, experimentado no corpo da pessoa. E é nesta corporeidade que a cultura se
apresenta. Para Csordas (2008), o corpo não é algo restrito ao biológico, mas um fenômeno,
sede das relações pessoais e dos frutos dessas, incluindo a cultura.

Para Csordas (2008), a cultura realiza-se no corpo e o corpo é, portanto, sua base de existência
cultural. Assim, a cultura está imersa no corpo. Rabelo (2011) corrobora com essa afirmação
ao colocar que corporeidade é um termo utilizado para enfatizar que cultura e relações sociais
estão encarnadas, ou seja, estão numa dimensão corporificada. É na corporeidade que Csordas
(2008) tece a análise de hábito.

Para Norbert Elias (2006), o hábito consiste em um modo de comportar-se, um conjunto de


comportamento que dá às pessoas a pertença de um grupo. Consiste em um modo de ser
civilizado. O Conceito de civilização em Norbert Elias (2006) consiste em:

uma auto-regulação individual de impulsos do comportamento momentâneo, condicionado por afetos e pulsões,
ou o desvio desses impulsos de seus fins primários para fins secundários, e eventualmente também sua
reconfiguração sublimada. (NORBERT ELIAS, 2006, p.21)

Mauss (2003) esclarece que habitus é muito mais do que uma ação individual: é uma
faculdade adquirida e que variam não apenas entre indivíduos, mas entre grupos e sociedades.
Mauss (2003) opta por usar o termo em latim, pois diz que habitus ultrapassa o significado de
hábito.

A palavra exprime infinitamente melhor que “hábito”, a “exis” [hexis], o “adquirido” e a


“faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos metafísicos, a
“memória” misteriosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam
não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades,
as educações, as conveniências, as modas, os prestígios.” (MAUSS, 2003, p. 404)

O hábito é, segundo Norbert Elias (2006) e Mauss (2003), aprendido, onde o corpo é colocado
sofre um processo educativo, que ultrapassa a imitação. Rabelo (2011) menciona que o corpo
está imbuído no processo de produção de conhecimento, ou seja, de compreensão. Aqui,
Rabelo (2011) critica a dualidade corpo-mente, quando outros estudos afirmam que a mente é
a responsável pelo aprendizado. A definição de Rabelo (2011) corrobora com a concepção de
Merleau-Ponty (1999). O mesmo define corpo como algo uno, sem a dicotomia trazida por
Descartes (2005). Para Merleau-Ponty (1999). o corpo é responsável pela aprendizagem,

318
sendo instrumento ativo da mesma. Esta relação define o ser-estar-no-mundo3, uma vez que a
pessoa e o mundo não são dissociados: só é possível ser pessoa por esta desenvolver
experiências, sendo e estando no mundo.

Se o hábito, por ser aprendido e encarnado – corporificado (RABELO, 2011), está presente no
que Mauss (2003) intitulou de “técnicas corporais”. Para Mauss (2003) as técnicas corporais
consiste em rearranjos aprendidos pelo corpo que estabelece suas diferentes formas de
movimentar-se e, por consequência, relacionar-se com o mundo. Consistem em atos
tradicionais eficazes. Desse modo, da mesma forma que existem diferentes formas de nadar,
mudadas a cada geração, pode-se dizer que existem diferentes formas de falar em línguas,
mudando de acordo com o grupo. Assim, são formas que o corpo se serve que não vêm no
nascimento, mas se aprende. As técnicas corporais não estão limitadas à religião, mas neste
âmbito estão obrigatoriamente presentes.

Albuquerque (2006), ao falar de Mauss, menciona as existências das técnicas corporais


adotadas pelas pessoas que participam dos rituais religiosos. Segundo Mauss (1974) apud
Albuquerque (2006), as técnicas corporais envolvem questões psicológicas, sociais e também
bioquímicas:

Ao defender o caráter de montagens fisio-psico-sociológicas dos atos corporais, [MAUSS,


1974] mostra que a autoridade social desempenha papel importante em fazer adaptar o
corpo ao seu emprego. Porém, a educação do corpo, por seu lado, acarreta também
profundas consequências biológicas e psicológicas (ALBUQUERQUE, 2006, p. 3).

Dessa forma, é possível afirmar que o corpo educado modifica-se. Como exemplo,
Albuquerque (2006) cita que os estados de transe, de cunho social e psicológico, geram
também mudanças no metabolismo:

Talvez o seu exemplo [MAUSS, 1974] mais eloquente, e ao mesmo tempo desafiador,
esteja no universo religioso quando relaciona algumas técnicas corporais na origem de
nossos estados místicos. Ele menciona a ioga. Particularmente, eu identifico três grandes
grupos, como as técnicas centradas na respiração, nos movimentos e nos alimentos, como
portas de entrada para estados alterados de consciência, próprios das experiências místicas.
Isoladamente ou combinados, esses grupos nos dão as iogas, as meditações, as

3
Para Heidegger (2006), o ser-estar-no-mundo é o ser que está presente e não ausentará (diferente de anjos e
Deus que são, mas não existem – não estão no mundo) Este ser da pre-sença (Dasein) só o é, porque está
vinculado ao mundo. Assim o ser representa o mundo como parte dele. Para Merleau-Ponty (1999), ninguém
pode desvencilhar-se do mundo para observá-lo, pois está imbricado nele. Olha-se um fenômeno ao mesmo
tempo que o habita.

319
peregrinações, as danças, os jejuns, a seleção de alimentos, a ingestão de ervas. E, ao lado
destes, os nossos sentidos contribuem com a emissão e audição de sons, a inalação de
aromas e o controle da visão. Tudo isso mostra como somos bioquímicos e simbólicos, ao
mesmo tempo (ALBUQUERQUE, 2006, p. 3).

Neste processo, tem-se portanto que mesmo questões de cunho biológico mostram que, para
Mauss (2003), o corpo sofre ações externas, de maneira a educar-se. Este educar-se envolve
um forma-se envolto de proteção à própria pessoa. Envolve o que Foucault (2005) chama de
cuidados de si. Consistem em práticas de si que tem como objetivo proteger a si próprio,
garantindo a integridade do self. São técnicas corporais adquiridas, ensinadas e seguidas com
o intuito de proteção. Foucault (2005) ainda menciona que os cuidados de si são realizados
pelas pessoas apesar de estes não darem garantias sobre tal proteção.

O cuidado de si passa, segundo Foucault (2005), para a conversão a si. Afinal, são estes
cuidados, incluindo as práticas e o cuidado a esses atos que fazem parte da identidade, de um
ethos. O cuidado de si acaba por formar uma pessoa. Este processo de formação é uma
aprendizagem, já que estes cuidados podem ser passados de gerações para gerações. A adesão
a estes cuidados representa a aprendizagem adquirida. O falar em línguas é constituído de
cuidados de si e estes cuidados são aprendidos.

Uma vez que as técnicas corporais são aprendidas, já que são adquiridas pela educação, é
preciso esclarecer que tipos de aprendizagem estamos falando. Trata-se de uma aprendizagem
que faz parte do “mundo da vida” (GOHN, 2006). De acordo com a autora, caracteriza-se por
educação informal “como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de
socialização – na família, bairro, clube, amigos, carregada de valores e culturas próprias, de
pertencimento e sentimentos herdados”. (GOHN, 2006, p. 2). Os agentes educadores na
educação informal são todos aqueles com que a pessoa convive e aprende algo. (GOHN,
2006). Além disso, esta tem seus espaços e aprendizagem:

demarcados por referências de nacionalidade, localidade, idade, sexo, religião, etnia [...]. A
casa onde se mora, a rua, o bairro, o condomínio, o clube que se frequenta, a igreja ou o
local de culto a que se vincula sua crença religiosa, o local onde se nasceu etc. (GOHN,
2006, p. 2).

Esta forma de conhecer o mundo envolve o que Csordas (2008) chamou de pré-objetividade
ou pré-reflexividade. Csordas (2008) ao falar de Merleau-Ponty, informa que o mesmo utiliza
o termo pré-objetivo porque considera que o final da percepção seriam os objetos ao qual

320
conhecemos. Assim, o momento pré-objetivo é o período da percepção antes de chegar na
etapa final. Dessa forma, consiste naquele “momento de transcendência no qual a percepção
começa e, em meio à arbitrariedade e à indeterminação, constitui e é constituída pela cultura”
(CSORDAS, 2008, p. 107). Importante frisar que apesar de a cultura está vinculada a pré-
objetividade, não se fala em pré-cultura, pois “a percepção sempre esteve integrada em um
mundo cultural, de modo que o pré-objetivo não implica de forma alguma um 'pré-cultural'”
(CSORDAS, 2008, p. 370). Consiste em um aprendizado realizado antes da tomada de
consciência. A pessoa não sabe explicar como aprendeu, mas sente que aprendeu.

Considerando os conceitos acima explanados, este estudo objetiva descrever a cena de uma
experiência do falar em línguas em um grupo de oração. Para tanto, o artigo consiste na
descrição de uma cena observada no grupo de oração Anunciação do Senhor, pertencente à
Igreja Nossa Senhora do Resgate, localizada no bairro do Cabula, Salvador – BA.

Teoria metodológica

Para a descrição da cena, foram observadas as disposições corporais que constituíam a cena
no momento da glossolalia, bem como a descrição fonética. Com a finalidade de alcançar o
objetivo acima exposto, utiliza-se a Fenomenologia como pano de fundo. A metodologia foi
traçada a partir de uma visão hermenêutica que foi escolhida para ser não somente um
instrumento, mas como um estudo a ser utilizado. Em Gadamer (1999), a hermenêutica está
relacionada com o “ir às coisas mesmas” e deve cuidar para que ideias sem o compromisso de
livrar-se de preconceitos influenciem na captação da compreensão do sentido. Conforme
Gadamer (1999) afirma:

Toda interpretação correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrência de


“felizes ideias” e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar sua
vista “às coisas elas mesmas” (que para os filólogos são textos com sentido, que também
tratam, por sua vez, de coisas) (GADAMER, 1999, p. 272).

Assim, aquele que segue a hermenêutica, ao realizar a interpretação dos significados e


sentidos de algo, deve manter a vista atenta à coisa que se estuda. “Essa exigência
fundamental deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que na realidade
exercemos sempre que compreendemos algo” (GADAMER, 1999, p. 273). Consiste em ir ao
que está sendo interpretado a partir do hábito linguístico da época e do autor.

321
Segundo Barros (2012), a hermenêutica em Ricoeur, ao captar o significados e sentidos,
articula o texto em questão com a própria vida. Afinal, ela permite o “ir às coisas mesmas”,
conforme menciona Husserl (1985). Portanto, ao utilizar a Fenomenologia na elaboração
deste estudo, admite-se que não será possível contemplar todas as possibilidades.

O presente estudo, ao descrever as cenas, utiliza da hermenêutica ao tentar atentar-se para “a


coisa mesma” - a reunião do grupo de oração da renovação carismática. Numa tentativa de
utilizar os aspectos linguísticos de quem está no fenômeno estudado, conforme orienta
Gadamer (1999), são utilizadas categorias êmicas, ou seja, as nomenclaturas, em especial
referentes ao falar em línguas, são dadas pelos próprios participantes da pesquisa. Sendo
assim, preocupa-se em descrever os fenômenos observados, com base em ir à essência das
coisas, conforme Husserl (1985), entendendo, no entanto que os fenômenos têm várias abas e
que é impossível abranger todas, seja pela limitação do tempo, seja pela limitação de
percepção humana.

Quanto ao delineamento, o estudo caracteriza-se como uma pesquisa de campo, com


abordagem qualitativa. A descrição do falar em línguas ocorrida foi realizada a partir de
gravação das performances ocorridas em uma reunião do grupo de oração. A gravação foi
utilizada conforme os estudos de Pinto (2001). De maneira análoga a este autor, utilizou-se o
que Pinto (2001) denomina de “câmera como caderno de anotações”. Dessa forma, as
gravações são utilizadas como se fosse uma escrita de rabiscos, sem preocupação prévia com
delimitação, a fim de captar as primeiras impressões e, a partir daí, realizar a análise.

Para o entendimento da descrição da cena, é importante elucidar os conceitos de performance


e paisagem sonora. De acordo com Csordas (1997), performance consiste em representações
de crenças e, mais que isso, experiências que modificam a vida de uma pessoa. “Thus cultural
performances are primary arenas not only for representation but also for the active
constitutions of religions forms of life”4 (CSORDAS, 1997, p. 160). Assim, seguindo o
parâmetro de Csordas (1997), as performances descritas, mais do que representações de
crenças, são meios de experiências, capazes de modificar e criar formas de vida dos membros
que delas participam. Turner e Schechner (1982) apud Pinto (2001) descrevem performance
como, em última instância, um tipo de comportamento, uma maneira de vivenciar
experiências. Dessa forma, as performances estão inseridas nos rituais e celebrações, mas não

4
Logo as performances culturais são áreas primárias não apenas para representação mas também para
construções ativas de formas de vida religiosa (tradução da pesquisadora).

322
estão restritas aos mesmos. Além disso, Csordas (1997) coloca que as performances são mais
do que uma manifestação cultural individual: constituem eventos em que existe interação
entre os membros.

Vê-se, portanto, que as performances são um cenário complexo em movimento, onde


representações de crenças e experiências estão envolvidas. Neste cenário, além de gestos e
falas, os sons estão presentes e constituem uma paisagem sonora5. A paisagem sonora,
segundo Toffolo e Oliveira (2008), corresponde ao cenário de sons percebidos pela pessoa.
Esta percepção sofre influência direta das experiências sonoras passadas pelo indivíduo.
Ressalta-se que experiências sonoras não estão restritas às experiências auditivas, uma vez
que o som também provoca vibração.

Tendo a percepção como princípio de seu fundamento, as paisagens sonoras são composições
subjetivas, que expressam o modo como cada pessoa percebe a sonoridade no meio. A
paisagem sonora é composta de sons, mas estes, por sua vez, estão intrinsecamente
relacionados com as percepções do sujeito e suas experiências sonoras anteriores.

A paisagem sonora é colocada, segundo Oliveira e Toffolo (2008), como constituída por som
e o que está em sua volta, entendendo que o ambiente é responsável por compor este som,
assim como a pessoa que está inserida neste ambiente percebe a sonoridade. A percepção
ocorre não porque o som está separado da pessoa, mas porque a pessoa, o som e o ambiente
são indissociáveis. Os autores seguem, portanto, a Fenomenologia de Merleau-Ponty (1999)
quando o mesmo diz que é possível perceber o mundo porque se está inserido nele. Há,
portanto, segundo Oliveira e Toffolo (2008) uma inexistência de oposição interno/ externo,
também na composição das paisagens sonoras.

Por ser constituída de percepção, a paisagem sonora não tem todos os sons enfatizados de
maneira idêntica. Alguns sons são enfatizados em detrimento a outros. Por isso é possível, por
exemplo, um grupo de oração falar em línguas estranhas e ignorar o som proveniente do lado
externo do local. Assim, Oliveira e Toffolo (2008) mencionam que, ao descrever uma
paisagem sonora, deve-se levar em conta o ouvinte, uma vez que ele é participante do

5
Maturana (1995) apud Oliveira e Toffolo (2008) afirmam que a aprendizagem, dada pela percepção, ocorre
através do corpo fazendo rearranjos com o meio. Neste sentido, Oliveira e Toffolo (2008) explicam que a pessoa
não capta informações desorganizadas do meio e as organiza internamente. Fugindo da lógica dualista, o corpo,
ligado ao mundo, faz acoplamentos do meio, criando reajustes. Ele organiza não as informações vindas do lugar,
mas a própria dinâmica eu-meio, entendendo como inseparáveis, sendo algo uno. Assim, pode-se dizer que as
paisagens sonoras são cenários de rearranjos de percepção dos sons através da pessoa com o meio.

323
processo. É ele que perceberá o som. A partir dos conceitos aqui postos, segue a descrição da
cena da glossolalia presente no grupo de oração Anunciação do Senhor.

A reunião do grupo de oração Anunciação do Senhor observada e descrita para este estudo foi
realizada como de costume, no local de celebração das missas da Paróquia Nossa Senhora do
Resgate, localizado no bairro do Cabula, Salvador - BA. O local possui uma grande porta no
centro, constituindo a entrada para o local de celebrações de missa e também de reuniões. Ao
ultrapassar a entrada, vê-se fileiras de bancos de madeiras compridos. À frente dos bancos,
pode-se observar o altar, com a imagem de Jesus à esquerda, de Nossa Senhora à direita e o
símbolo do Altíssimo no centro, coberto por um pano roxo. Abaixo, ainda no altar, em cima
da mesa, encontra-se uma caixa com a imagem de Nossa Senhora do Resgate. Nela as pessoas
depositam seus pedidos de oração, através de pequenos pedaços de papel. Entre as cadeiras e
o altar encontra-se o púlpito, com a Bíblia aberta. À direita do púlpito localizam-se os
instrumentos onde a banda executa os louvores.

A reunião inicia com a oração do terço. Duas pessoas na frente do púlpito rezam o terço com
microfone, enquanto a membresia segue. Em seguida, uma pessoa vai à frente do púlpito e
começa, junto com a banda, a entoar louvores, incluindo coreografias. Em seguida, outra
pessoa, Ester (nome fictício) é chamada por quem estava louvando e a substitui, para realizar
a pregação. Lê-se um trecho do evangelho e, em seguida começa-se a pregar. Em dado
momento, Ester narra sobre as qualidades fornecidas pelo Espírito Santo e pede para todos
cantarem louvores que falem do Espírito. Durante os louvores, Ester começa a falar em
línguas.

Durante a pregação, ela pediu para todos ficarem de pé e de olhos fechados. Começou a
pregar, pedindo para que todos “rasgassem seus corações”, pois as pessoas precisam ser
renovadas. Durante a pregação, Ester começou a falar em línguas. Em seguida, outras duas
pessoas (uma mulher e um homem) que estavam na banda, na parte instrumental, começaram
a falar em línguas. Ester começou a pregar normalmente e depois voltou a falar em línguas.
Alternava a glossolalia com a língua portuguesa. Ela foi a última que terminou a glossolalia.

324
Resultados

Pode-se notar que durante a glossolalia, Ester não apresentou o seu desvio de comunicação
característico (ceceio – projeção anterior da língua entre os dentes, que provoca distorção em
alguns fonemas). Provavelmente isso ocorreu porque os fonemas utilizados por ela não
englobavam o grupo das fricativas alveolares (/s/ e /z/) - que são comumente distorcidas por
quem apresenta o ceceio. No entanto, não foi notada a presença de fricativas alveolares nos
outros falantes, logo é descartada a ideia de que foram utilizadas manobras para evitar os
fonemas que a mesma distorce.

Em Ester, notou-se a presença predominante das líquidas laterais - /l/ (lata) e líquidas não
laterais, também conhecidas como vibrantes - /ſ/ (caro). Em menor quantidade, houve
produção da fricativa posterior surda (som de “ch” no Português Brasileiro). O falar em
línguas começou com a vogal fechada /e/. Durante a glossolalia, três ficaram de olhos
fechados e uma de olhos abertos. Todos estavam com as palmas abertas viradas para a frente e
com os dedos juntos. Apesar de, nessa performance, o foco da descrição ter ficado em Ester,
notou-se que a presença de líquidas é bastante forte na predominância dos outros três
membros (duas mulheres e um homem) que também falaram em línguas.

Durante a pregação e o falar em línguas, a membresia fica voltada para a pessoa que prega e
que começa a falar em línguas. Alguns membros estão ajoelhados no momento em que Ester
começa a pregar, outros estão de pé. Porém todos ficam voltados para Ester. A grande maioria
fica com as mãos abertas, porém com os dedos juntos, em uma posição verticalizada, com as
palmas voltadas para frente. Os demais que falaram em línguas estavam de pé.

A descrição acima posta nos mostra a presença de uma modelagem comportamental, já que há
um padrão de gestos seguidos. A imposição das mãos e o momento de iniciar e terminar e
falar em línguas ocorrem seguindo uma lógica, demostrando, portanto, que o corpo
carismático do grupo de oração observado possui técnicas corporais que o habilita a engajar-
se na performance religiosa, particularmente a glossolalia. Csordas (2008) menciona que os
gestos de imposição de mãos parecem ser universais no campo carismático. Este acompanhou
um grupo de oração norte-americano e detectou tais gestos, também encontrados no grupo do
Cabula observado neste estudo.

A predominância de consoantes líquidas foi encontrada em outros estudos sobre a glossolalia.


Souza e Almeida (2012) em uma análise de uma pessoa falando em línguas, identificaram

325
líquidas no falar glossolálico. Nas transcrições fonéticas de Freire (2007), pode-se notar que
as líquidas foram as consoantes mais presentes. Tanto na pesquisa de campo deste estudo,
quanto nos estudos acima citados mostram que não há, seja no campo assembleiano, seja no
carismático católico, fonemas que não pertençam à Língua Portuguesa.

Em um dos estudos citados por Freire (2007), tem-se a seguinte transcrição:

ratara ratara ratara

atara tatara rana

otara otara katara

otara retara kana

ortura ortura konara

kokona kokona koma

kurbura kurbura kurbura

(ARTAUD, 2000 apud FREIRE, 2007)

Já em uma das transcrições realizadas no campo da pesquisa, na comunidade RCC, tem-se o


seguinte trecho:

Ê:(vibrato) Ôialá Ierê

Solte a voz, irmão

ialá iê ialárá ialará ialárê ialárá iê:(vibrato)

(anotações de campo).67

Em ambos os trechos, há uma predominância forte das líquidas laterais (/l/) e líquidas
vibrantes (/ſ/). A predominância dessas consoantes parece uma constante não somente nas
comunidades pesquisadas neste estudo, mas também em outros estudos realizados no
território brasileiro. Segundo Câmara Jr (1964) as consoantes líquidas dão um aspecto de
maior fluidez e velocidade na fala (por isso o nome líquido – alusão aos fluídos). De fato, a
glossolalia, no estudo realizado, apresenta à audição do ouvinte uma sensação de fala rápida.

Assim, inferências podem ser feitas a partir destes estudos. A princípio, parece que há uma
linguagem fonética comum, ao menos no campo brasileiro. Os estudos foram feitos em
regiões do Brasil diferentes e, ainda assim, foi notado um padrão fonético importante. Além

6
O vibrato consiste em uma oscilação da frequência de uma nota feita de maneira regular. (VIEIRA, 2004).
7
Dois pontos no interior de uma transcrição indicam prolongamento da vogal que antecede (BABINI, 2002).

326
disso, o padrão da organização fonética – cv (consoante e vogal) foi encontrado em todos os
estudos citados. O padrão silábico, vv (vogal e vogal), além do cv, foi encontrado nos estudos
de Souza e Almeida (2012) e na presente pesquisa em campo.

Estudos defendem a existência de um padrão no falar em línguas. Ambee apud Chesnut


(1997) acredita que a fala glossolálica é fruto do inconsciente que utiliza referências de
palavras bíblicas, originadas do Hebraico e do Aramaico. Assim, a autora defende que a fala
glossolálica lembra o hebraico. Nogueira (2009) também defende a existência de um padrão.
Esta existência é defendida pelo autor com bases em Goodman (1974).

O falar em línguas inicia por quem realiza a pregação em seguida, outras pessoas começam a
falar em línguas. Foi percebido que ninguém continua falando em línguas depois que Ester
para. Aquela que prega se encontra à frente, pela própria condição de detentor da palavra.
Todas as pessoas, que falam em línguas ou não, estão de pé neste momento, pois há
comumente uma convocação antes da glossolalia para a membresia se levantar.

Têm-se que o hábito é incorporado na relação de uns com os outros, constituindo a


modelagem de sociedade e de si próprios. Para Hunger, Rossi e Souza Neto (2011), o hábito é
o que a pessoa individualiza, em algum grau, deste comportamento que modela a sociedade e
a cada pessoa. Importante mencionar que, ao falar de hábito, Norbert Elias (2006) fala de um
comportamento aprendido e corporificado que representa um grupo, mas que nem por isso tira
a autonomia da pessoa. Assim, conforme Landini (2007), a criatividade da pessoa existe
dentro do hábito, embora ela está relacionada nas inter-relações do eu e das outras pessoas,
não é, portanto, uma autonomia isolada de outras. Se há um hábito na glossolalia, então é
esperada uma modelagem de comportamento em quaisquer grupos que falem em línguas.

Considerações finais

Pode-se ver no estudo realizado no grupo de oração Anunciação do Senhor, que o falar em
línguas é aprendido. As autoras identificaram a presença de um padrão comportamental
durante o fenômeno da glossolalia. Se há um hábito na glossolalia, então é esperada uma
modelagem de comportamento em quaisquer grupos que falem em línguas. Corroborando
com os dados acima, Goodman (1974) apud Nogueira (2009) relata que, de acordo com seus
dados, a glossolalia não é um procedimento automático. O mesmo coloca que, baseado em

327
sua pesquisa, o comportamento envolvido na glossolalia é aprendido. Nogueira (2009) afirma
que os membros que falam em línguas adequam-se a um comportamento de grupo, uma
“obrigação” que é assumida ao juntar-se a este. É o dar e receber o presente, mencionado por
Mauss (2003). A adequação de comportamento pode ser entendida dentro do conceito de
hábito de Norbert Elias (2006), uma vez que se tem a modelagem de comportamento.

Ressalta-se que a aprendizagem vista nesta pesquisa não é a da educação formal, mas a que
faz parte do “mundo da vida” (GOHN, 2006) que envolve não somente atos conscientizados,
reflexivos, mas também atos pré-reflexivos (CSORDAS, 2008). Este padrão comportamental,
que envolve gestos e fala, é aprendido no campo das relações vividas entre sujeitos.

Pode-se constatar que, de acordo com o conceito de performance de Csordas (1997), durante a
glossolalia, ainda que uma única pessoa fale em línguas, esta interage com outros membros.
Está dentro do que Csordas (1997) fala sobre performance: ela realiza-se com a interação
entre as pessoas. Na cena observada e descrita, pode-se ver claramente que, mesmo quando a
animadora – a mulher que estava louvando e que falou em línguas -e a pregadora começaram
a falar em línguas, aparentemente sozinhas, os gestos das mesmas bem como os seus
respectivos corpos estavam voltados para a membresia. Havia, portanto, uma interação
gestual entre as pessoas ali presentes.

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330
331
O grito da Cruz ou o grito da Cultura?
Marcos Teixeira de Souza1

Introdução

O mosaico cultural, étnico e religioso presente no Brasil, se por um lado, permite dizer que a
diversidade constitui uma marca identitária da nação; por outro lado, enseja o desafio de
entender, neste contexto, as particularidades e os sincretismos oriundos desta dinâmica, sem
cair nas armadilhas nos moldes, por exemplo, da dicotomia região e religião predominante:
baiano candomblecista, paulista católico, nordestino devoto de padre Cícero, evangélico da
periferia, entre outros, insídia, epistemologicamente falando, perigosa.

No senso comum, tem-se a construção e a perpetuação de estereótipos religiosos que não se


limitam a dicotomia região e filiação religiosa. Outras imagens se sedimentam na sociedade,
tais como: a de evangélico com baixa escolaridade; a de espírita com nível superior; a do
negro associado às religiões de matrizes africanas. Para além do estereótipo, este artigo visa a
discutir os pomeranos luteranos de Santa Maria de Jetibá durante a Festa Pomerana, principal
evento da cidade, pontuando a secularização como um processo importante para a translação
de um rito em uma manifestação cultural, cujo corpo que grita retroalimenta uma memória
social da religião pagã – do ponto de vista cristão-luterano – costume e rito presentes entre os
pomeranos da antiga Pomerânia, um artifício utilizado com o intuito de afastar espíritos maus,
mas que, ressignificado, não insulta o luteranismo santa-mariense, porque se reveste
primordialmente como um resgaste cultural, sem conotação religiosa.

Ao observar as religiões primitivas australianas, Durkheim, em As formas Elementares da


Vida Religiosa (1983), defende a tese de que em todas as religiões, das consideradas mais
simples até as mais complexas, haveria entre si componentes comuns, como a dualidade
sagrado e profano, e que tais se expressariam na vida social dos indivíduos. Partindo desta
concepção, a Religião não se encontraria distante da sociedade, ao contrário, dar-se-ia um
diálogo, conflituoso ou não, entre estas, cuja influência uma sobre outra seria visível. Ao
aproximar religião e sociedade, Durkheim destrona, de certo modo, o ente divino, e coloca
peso sobre as dinâmicas sociais, que envolvem processos de interação, empoderamento,
subalternização entre culturas, crenças, tradições, normas, leis, entre outro, presentes em um

1
Doutorando em Sociologia pelo IUPERJ. Contato: prof1marcos@hotmail.com.

332
espaço social, sendo a religião uma das engrenagens: A Religião é uma coisa eminentemente
social (DURKHEIM, 1983, p. 212).

Santa Maria de Jetibá: pomeraniedade e luteraniedade

Aproximadamente a oitenta quilômetros da capital Vitória, com cerca de 34 mil habitantes,


dados do censo 2010, situada na região serrana do Estado do Espírito Santo, Santa Maria de
Jetibá se individualiza entre os municípios brasileiros por ser uma cidade que se orgulha em
preservar a cultura dos imigrantes pomeranos chegados ao estado nos anos cinquenta do
século XIX, dotando para si a perífrase a cidade mais pomerana do Brasil. O município tem
em sua zona rural um celeiro da agricultura familiar, conciliada com o crescente agronegócio,
que tem implicado no seu crescimento populacional e econômico. Segundo informações do
site da Prefeitura2, é dividida em dois distritos e trinta e sete comunidades, onde a igreja
luterana exerce forte influência religiosa, diferentemente do Brasil como um todo.

A imagem de um Brasil católico contrasta com os municípios considerados pomeranos, Santa


Maria de Jetibá, Vila Pavão, Laranja da Terra, cujo luteranismo impõe sua marca. A díade
pomeranos e luteranos parece formar uma associação identitária, sendo importante frisar que
outras religiões também detém representatividade na região.

No tocante à religião na História do Brasil, sabe-se que o Catolicismo ocupara a posição de


religião oficial do Império, conforme normatizava o artigo quinto da Constituição Política do
Império, de 1824: A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular
em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.3

Apesar desta imposição legal no Império, não conta muitos registros de atritos entre grupos
religiosos diversos, a não ser contra as religiões de matrizes africanas. A queda da monarquia
suscitou uma sutil mudança. Isto porque a própria ideia de República abrigava princípios, pelo
menos em tese, mais democráticos e conciliatórios com os diversos setores da sociedade,

2
Disponível em: http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24518/o-municipio-dados-gerais/. Acesso em 05 de Agosto de
2013.
3
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em 05
de Agosto de 2013. Sem alterações na grafia.

333
inclusive as organizações religiosas. Na esteira do novo regime, crescem – começam aparecer
com mais ímpeto – outras confissões como o protestantismo, o espiritismo, entre outras.

Obviamente, a República não significou plena liberdade religiosa, haja vista a perseguição às
religiões de matrizes africanas, atacadas com o braço do Estado. Entre os protestantes, os
luteranos talvez tenham sido as maiores vítimas de perseguição no Brasil republicano, de
Getúlio Vargas, em especial, a Campanha de Nacionalização formulada no governo Vargas,
que visava à integração dos migrantes à cultura brasileira, principalmente nos anos trinta. As
medidas desta campanha se concentravam em proibir o ensino de língua estrangeiras nas
escolas, coibir; eliminar nomes de estrangeiros em placas de ruas, de comércios; censurar
publicações escritas em outros idiomas; coibir as ações das associações recreativas nas
colônias, entre outras ações restritivas, amparadas sob um ideário nacionalista. Sobre esta
questão, escreve Giralda Seyferth (1997):

Entre 1937 e 1945 uma parcela significativa da população brasileira sofreu interferências na
vida cotidiana produzidas por uma “campanha de nacionalização” que visava ao
caldeamento de todos os alienígenas em nome da unidade nacional. A categoria
“alienígena” — preponderante no jargão oficial — englobava imigrantes e descendentes de
imigrantes classificados como “não-assimilados”, portadores de culturas incompatíveis com
os princípios da brasilidade (SEYFERTH, 1997, p. 95).

Embora os maiores alvo e zona de conflito tenham sido o Sul do Brasil, o Estado do Espírito
Santo, dado seu relevante percentual de descendentes alemães, italianos e pomeranos, também
abrigou tal querela, sobretudo durante a segunda guerra mundial. Municípios capixabas com
significativa presença de descendentes alemães e pomeranos abrigam relatos, trazidos pelas
memórias de seus mais idosos, quanto à invasão a propriedades, roubo de bens, ameaças de
espaçamentos e morte. Entre os pomeranos, ressalta Jorge Kuster Jacob (2011):

Na época da II Guerra Mundial os pomeranos no Espírito Santo eram confundidos com


alemães nazistas; eram torturados e perseguidos pelos “bate-paus” de Getúlio Vargas. Os
“Bate-paus” muitas vezes eram bandidos civis que se disfarçavam de militares de Getúlio
Vargas, e assim saqueavam comida, bebida, animais encilhados, objetos de valor como
relógios, dinheiro, tudo que podiam carregar. Em especial, tudo que tinha escrita alemã era
destruído ou confiscado. Para “proteger” o Brasil do nazismo muitas barbaridades foram
cometidas contra estes humildes agricultores que nem sabiam o que acontecia no outro lado
do mundo. A maioria sequer tinha um rádio. As informações não chegavam às grotas,
serras, matas e montanhas destes agricultores, longe da agitação política da época (JACOB,
2011, p. 26).

334
Desde sua chegada ao Espírito Santo, nos anos cinquenta do século XIX, a história do povo
pomerano neste estado fora marcada por uma série de dificuldades econômicas e sociais.
Estabelecendo-se em regiões de difícil acesso do Estado, onde inexistiam ou pouco existiam
estradas, serviços de saúde e escolas, a maioria deles se estabeleceu em colônias, que
orbitavam em torno da agricultura familiar e da igreja luterana, a qual agregavam a
comunidade. Sobre os pomeranos capixabas, teólogo Rogério Sávio Link (2004) em sua
dissertação de mestrado, destaca:

No caso dos pomeranos do Espírito Santo, viu-se acima que eles se definem culturalmente a
partir de sua etnicidade, a partir de seu etos camponês e a partir de sua religiosidade, ou
seja, para ser um pomerano, é necessário pertencer etnicamente ao grupo, compartilhar o
seu modo de vida e também a sua religiosidade. A igreja luterana, nesse sentido, constitui-
se uma das maiores fontes identitárias dos pomeranos (LINK, 2004, p. 63).

Link (2004), ao concentrar sua pesquisa nos pomeranos emigrados para o estado de Rondônia,
mostra como a igreja luterana e os pomeranos se encontram irmanados. Tal característica se
apresenta mais verídica ainda ao olhar a presença luterana em municípios com percentual
significativo de pomeranos: Vila Pavão, Laranja da Terra, etc. Em alguns momentos, a
religião luterana é confundida com a pomerana. Exemplo disso é a informação do site da
prefeitura de Santa Maria de Jetibá, no qual se vê o termo religião pomerana4, em detrimento
de religião luterana. O uso inadequado do predicativo não revela, de todo, um equívoco: ser
pomerano é, por extensão, ser um luterano. Contudo, tal associação não se constitui unívoca,
uma vez que há descendentes pomeranos pertencentes a outras filiações religiosas,
geralmente, membros de outras igrejas protestantes.

Segundo dados do Censo 20105, a Igreja Luterana no Brasil totaliza com quase um milhão de
membros (999.498), dos quais 686.349 em áreas urbanas, e 313.149 em áreas rurais, tendo,
portanto pouca representatividade no protestantismo, como um todo, com seus 42.275.440
membros. Diferentemente do que ocorre no país, no que tange à representatividade luterana
em Santa Maria de Jetibá, de acordo com o mesmo, há 22.325 pertencentes à igreja luterana, o
que representa em torno de 65% da população residente. Outro fato que, de certa forma, a
singulariza por ser um grande dos produtores de ovos do país, tendo recentemente inclusive

4
Disponível em: http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24550/cultura-religiao-pomerana/. Acesso em 05 de Agosto de
2013.
5
Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_
Religiao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf

335
sido criado uma festa para comemorar tal mérito, a FenaOvo, também conhecida como a
Festa do Ovo e da Galinha.

A Festa Pomerana: o lócus da memória social

Em se tratando de festas, além da FenaOvo, Santa Maria de Jetibá possui mais outras três
importantes, sendo inclusive, historicamente mais relevantes para o município: a Festa do
Colono, o Festival da Diversidade Cultural e a Festa Pomerana.

Esta última perfila como o principal evento festivo da cidade, ocasião em que se comemora
também a emancipação do município, desmembrado de Santa Leopoldina, em 06 de Maio de
1988. O azul e o branco, cores da bandeira da extinta Pomerânia, enfeitam a cidade durante os
dias de festa, sendo comum o comércio local, as repartições públicas e algumas casas ornar-se
com faixas, bandeiras, adereços, dando um tom festivo na cidade. No início de maio de cada
ano, com duração geralmente de cinco dias (quarta-feira a domingo), a Festa Pomerana tem
uma programação diversificada que inclui danças realizadas por grupos folclóricos da região e
de outras cidades, atividades culturais, musicais e religiosas, em vários pontos da cidade,
convergindo no centro dela as atrações mais renomadas, em geral, cantores famosos regionais
de música sertaneja, secundarizadas no evento, além de músicas de origem germânica, o
forró.

A Sexta-feira à noite, o sábado e o domingo da festa atraem milhares de pessoas, grande


maioria, das circunvizinhas, Santa Teresa, Santa Leopoldina, Itarana, Domingos Martins,
entre outras, que se aglomeram na cidade para assistir aos shows musicais e saborear diversas
iguarias e fast foods típicos da cultura brasileira: cachorro-quente, espetinho de churrasco,
cerveja, etc. É comum durante os dias de festas, os santa-marienses irem trabalhar no
comércio local com trajes típicos da antiga região da Pomerânia. Até onde se saiba, não há
dados oficias sobre a quantidade de visitantes e turistas na festa, mas quem já foi, pelo menos,
nas últimas edições do evento, sobretudo no último dia da festa, tem impressão semelhante a
que consta na narrativa de Rafael Munduruca:

No último dia de comemoração, Santa Maria de Jetibá parecia ter o dobro de sua
população; pessoas de toda a região compareceram à arena central para assistir às últimas
apresentações das bandas típicas, tentar a sorte no bingo e prestigiar o show de Leonardo,
com direito a muito chope e cerveja. Os pomeranos santa-marienses trazem para a festa

336
elementos que consideram típicos de sua cultura nativa, buscando reafirmar uma identidade
de origem que foi passada de geração para geração, mas também alterada ao longo dos
anos. A festa também demonstra o quanto essa comunidade se apropriou de características
brasileiras na alimentação, nos gostos musicais, na eterna busca pela sorte e nas formas de
comemorar, seja na atualização do casamento, seja na organização de um evento que em
muito lembra as festas agropecuárias país afora (MUNDURUCA, 2009, p. 119).

Na festa, mais estritamente na remissão à cultura pomerana, além de alguns shows de danças
pomeranas, os desfiles, nos quais é recontada a saga da chegada e estabelecimentos dos
imigrantes pomeranos na região, com encenações de elementos característicos da cultura
pomerana, como o casamento pomerano, notabilizando o desfile, pela avenida principal da
cidade, a Frederico Grulke, compondo um contingente de mais de mil pessoas em trajes
típicos e carros alegóricos, reconstruindo um cenário de imigração e vida comunitária dos
primeiros colonos pomeranos no Espírito Santo. Geralmente realizados no domingo pela
manhã, desfilam praticamente todas as faixas etárias, desde crianças de colo acompanhadas de
seus pais até idosos com mais de oitenta anos, o que demonstra que o ideário de valorização
da cultura pomerana se achega a várias gerações de pomeranos santa-marienses.

A cultura pomerana na Festa: o grito como lembrança

Assim como outros municípios com ascendência pomerana, Santa Maria de Jetibá tem feito
esforços no sentido de não só preservar, como também valorizar e divulgar a cultura
pomerana, auferindo, com a festa, capital cultural e econômico. Um dos principais empenhos
se dirige à preservação do Pomerano, língua (ou dialeto, para alguns), cujo número de falantes
na cidade não se sabe oficialmente, mas se constata, por empirismo, ao andar nas cidades
onde há descendentes pomeranos, que Santa Maria de Jetibá concentra a maior comunidade
linguística do Pomerano.

O resgaste da língua (ou dialeto) pomerana possibilita a recuperação e manutenção de


aspectos culturais, sociais e religiosos dos pomeranos, já que a língua é um portador de
cultura, que perpassa temporalidades, revelando semânticas, heranças identitárias. Um
exemplo disso são algumas palavras presentes no Dicionário Enciclopédico Pomerano –
Português, do linguista Isamel Tressamann, por exemplo, Aschamuter e ascharfater,
respectivamente, mãe das cinzas e pai das cinzas (TRESSMANN, 2006, p. 29), assim
aspectos religiosos na cultura pomerana, que podem estar na festa ou em outros contextos.

337
Na Festa Pomerana, é relevante observar que, embora esta não tenha uma proposta religiosa,
algumas situações ocorridas nela engendrariam a priori uma problemática para os pomeranos
luteranos: o limiar entre o sagrado e o profano. Partindo da tese de que o sagrado para o
pomerano luterano seja a doutrina cristã, com viés interpretativo em Lutero, um
comportamento comum durante a Festa Pomerana, proporcionaria uma característica de
profanidade: o grito, que representaria, num olhar histórico-religiosa dos pomeranos, um
artifício, revestido de características mágicas, com o objetivo de afastar espíritos ruins na
natureza, crença esta alimentada pelos antigos pomeranos, e que persiste ainda entre alguns
pomeranos até hoje. Salienta a antropóloga e pesquisadora da cultura pomerana Joana Bahia,
que:

Para os pomeranos, a narrativa do aspecto mágico está presente em todas as esferas da vida
social, especialmente na economia camponesa. Narrar o mágico constitui um dos
procedimentos que fazem parte das operações técnicas necessárias tanto para o plantio e a
colheita dos produtos como para a criação de animais (BAHIA, 2000, p.155).

Para Gladson Pereira da Cunha (2011), o pomerano exprime uma identidade, em que o
cristianismo e as antigas crenças, consideradas pagãs, permeiam a vida:

Assim, em toda a vida existem momentos, rituais, religiosos ou mágicos, que propiciam a
esse pomerano típico uma boa morte para si mesmo e para os seus. Do batismo até a última
comunhão, do cumprir suas obrigações para com a Igreja até estar atento aos enfermos,
tudo o que for possível fazer para dar uma morte tranquila ao moribundo, isso será feito. O
pavor que os espíritos perturbados voltem para atormentar os que ficaram faz parte da
crença popular desse grupo. Daí se chega a dois caminhos diferentes: o primeiro é do amor
cristão, pelo qual os mortos devam receber um tratamento digno desde o preparo do corpo
até a inumação e, posteriormente, pela conservação de seus túmulos. O segundo caminho é
o do medo; medo de que as almas voltem para atrapalhar a vida, por meio de doenças,
infortúnios no campo, na cidade, e até mesmo com a morte (CUNHA, 2011, p.80).

Os trabalhos de Joana Bahia abordam também o sincretismo religioso entre os pomeranos,


evidenciando mormente o papel da mulher nas tradições mágicas herdadas da antiga
Pomerânia e na educação dos filhos segundo às doutrinas da igreja luterana; bem como os
ritos de passagem, como pontos importantes para compreender a religiosidade entre os
pomeranos.

Neste sentido, os rituais mágico-religiosos dos pomeranos participam desta exigência


classificatória na medida em que cada gesto, canto ou invocação colocam cada coisa em seu
lugar. A causalidade mágica é efeito da causalidade social. Os atributos mágicos que

338
marcam cada momento do desenvolvimento do pomerano constituem parte da tradição oral
transmitida de geração em geração pelas mulheres da família. Trabalho, comércio e
cotidiano são os temas preferidos dos homens. Crianças e religião, por sua vez, são
considerados como assuntos de mulher (BAHIA, 2000, p. 156).

Em outra obra: A ida aos cultos bem como as atividades organizadas comunitariamente na
Igreja contam sempre com a presença de mulheres da comunidade, sempre acompanhadas de
seus filhos (BAHIA, 2006, p.70). A ênfase da produção e difusão de crenças se daria, para a
autora, entre outros espaços, no lar e na igreja. Estes dois espaços divergem do espaço rua. O
lar e a igreja são espaços mais íntimos, ao passo que a rua conserva uma característica menos
familiar, e mais hostil. É na rua que se dá com mais propensão à secularização, pois se trata de
um espaço em que a sociedade molda primeiramente os indivíduos. Em Santa Maria de Jetibá,
a Festa Pomerana é um exemplo oportuno deste processo. Embora se saiba que a festa, desde
seu início, não tinha uma proposta de ser um evento de cunho religioso, por ser, aliás, uma
festa com o propósito de comemorar a emancipação da cidade, em alguma medida, reproduz a
extinta land Pomerâna, onde a religião, considerada pela doutrina cristão-luterana, pagã
assume presença.

Um dos pontos marcantes para adentrar no processo de secularização no evento é o rito de


gritar durante as apresentações típicas, especialmente nos desfiles, em detrimento da liturgia
dos cultos luteranos, onde o silêncio e cantoria concatenados compassam a cerimônia na
plateia ouvinte. Para Silas Guerriero, a secularização é definida:

O significado profundo da secularização é o declínio gera do compromisso religioso na


sociedade. A religião deixa de ser o conhecimento fundador da visão de mundo, dos
comportamentos e da ética. A sociedade moderna conta agora com outros elementos de
controle que independem da religião. A secularização possibilitou o avanço do pluralismo e
do trânsito religioso, uma vez que não havendo as amarras das instituições religiosas, o
indivíduo pode manipular os bens simbólicos construindo seus arranjos religiosos sem
medo de quebrar o eixo central onde está apoiado (GUERRIERO, 2008, p. 168).

Mas é válido frisar que secularização não significa o desaparecimento, por completo, da
religião. Durkheim, em As Formas Elementares da vida religiosa, obra tardia e robusta do
autor francês, iria identificar e teorizar como os fenômenos religiosos se encontram
consorciados com os fenômenos sociais, divergindo de muitas teses até então dominantes de
que o universo espiritual se restringia à experiência particular do indivíduo com o divino.

Partindo da análise do totemismo, forma religiosa considerada por ele como a mais elementar

339
de vida religiosa e encontrada na Austrália, Durkheim acreditava que poderia compreender
como o fenômeno religioso nasce e se desenvolve nas sociedades tidas como as mais
primitivas até as consideradas mais complexas.

O totemismo é uma expressão religiosa (ou religião), em que um objeto, planta ou animal é
visto na sociedade como um deus, sendo o Totem o divisor na sociedade entre o que é sagrado
e profano. Em outras palavras, é partir do Totem que o mundo social classifica os fatos sociais
como profanos ou sagrados. Tais categorias, profano e sagrado, constituem um par
importante no olhar durkheimiano sobre os fenômenos religiosos numa sociedade. Em sua
teorização, o sagrado se expressa por meio da existência de crenças e ritos e
consequentemente da obediência a eles. Por outro lado, o profano se revela no cotidiano, no
dia-a-dia dos indivíduos, fora das práticas religiosas. Convém dizer que o profano, na
concepção de Durkheim, não se traduz por atitude de aberração ao sagrado, desviando assim
do sentido comum do termo profano.

A Festa Pomerana é, em termos durkheimianos, o lócus do profano, que não necessariamente


afronta ao sagrado. Este não-afrontamento ao sagrado decorre da secularização inerente não
só à Festa Pomerana, mas a diversas situações promotoras. No cenário nacional, as diversas
mudanças sociais ocorridas no Brasil, sobretudo o acesso aos meios de comunicação e
internet, que facilitaram o conhecimento e o trânsito de novas informações científicas,
diminuindo a primazia da religião, com aspectos mágicos. E localmente falando, a crescente
urbanização da cidade e o acesso a ela, bem como os deslocamentos dos moradores santa-
mariense com outras cidades e a capital, colaboraram para secularizar ritos mágicos trazidos
da antiga Pomerânia, não obstante, mantendo-os como identidade cultural.

A Festa Pomerana, como uma oportunidade da expansão na área de turística e econômica,


descaracteriza feições religiosas, ou então, as tornam palatáveis para o público visitante, e o
grito assim passa a fazer parte de um cenário teatral, como panorama cultural. O grito é uma
lembrança da Pomerânia extinta, onde os antigos pomeranos utilizavam deste para espantar
espíritos ruins. Por ser lembrança, o grito, para os pomeranos santa-marienses, deve ser
resgatado pela cultura local, como identidade pomerana. A avenida Frederico Grulke
contempla gritos de uma massa humana desfilante, composta por pomenanos luteranos, entre
outros, então, não como ritual, mas como cultura, secularizada.

340
O processo de secularização preceitua a retirada das instituições religiosas o domínio
coercitivo sobre os membros de uma sociedade. Obviamente, não é um processo que se
constrói de forma instantânea, mas que, pouco a pouco, em meio ao avanço tecnológico e
científico, mitiga a influência das instituições religiosas sobre uma sociedade. As igrejas
luteranas de Santa Maria de Jetibá, neste contexto, rumam para reorganizar e ressignificar sua
função espiritual e social entre os pomeranos. Num contexto mais amplo da atuação das
igrejas luteranas, não diferente do que ocorre em Santa Maria de Jetibá, Antonio Gouvêa
Mendonça entende que:

Na atualidade, tanto a IECLB como a IELB avançam firmemente no caminho da integração


cada vez maior com a sociedade brasileira, impulsionadas pelos deslocamentos
populacionais em direção às cidades. A IECLB, ao fundar em 1946 a Faculdade de
Teologia em São Leopoldo (RS) - hoje Escola Superior de Teologia - foi se abstendo de
enviar seus candidatos ao ministério pastoral para estudar na Alemanha, assim como de lá
receber pastores. A língua portuguesa passou a dominar os espaços do ensino e do culto,
assim como seus antigos círculos fechados se abriram para as áreas pioneiras de
colonização interna brasileira (MENDONÇA, 2004, p. 53).

A Igreja Luterana, como já fora dito, pouco a pouco, tem-se aproximado da cultura brasileira,
o que tende a acelerar um pouco mais o processo de secularização, que não deve ser entendido
como a queda da igreja, mas a reorganização da igreja dentro do espectro social. Deve-se
lembrar também que a secularização não pressupõe essencialmente um movimento de fora
para dentro, ou seja, da sociedade para dentro das instituições religiosas, embora este seja o
vetor mais comum. O movimento de dentro para fora também ocorre, por exemplo, religiosos
que secularizam suas práticas rituais. Isto de ser explicado porque a secularização não se faz
apenas no âmbito institucional ou interinstucional, mas também nos e entre os indivíduos.

Considerações finais

Sem dúvida, não se pode responsabilizar unicamente ao processo de secularização ocorrido no


mundo, e, mais especificamente no seio da sociedade santa-mariense, como causa
determinante da transposição do grito, outrora como rito entre pomeranos para se tornar um
componente da cultura pomerana. Contudo, constitui-se como situação interferente, ao pensar
que as mudanças sociais ocorridas em Santa Maria de Jetibá vão ao encontro dos pressupostos
de um processo de secularização, tais como: a necessidade de comunicação cada vez mais

341
com o global e suas demandas sociais, culturais e econômicas; a expansão da zona urbana
santa-mariense; o aumento de pomeranos com mais anos de escolaridade, entre outros fatores.

De modo geral, o pomerano atualmente rememora o grito, mas não o internaliza como crença
ou significado espiritual, apenas como manifestação cultural e identitária. A religião perde seu
campo de influência. A Festa Pomerana sintetiza um pouco desta perda, embora, acredita-se
que nos distritos rurais de Santa Maria de Jetibá, onde a igreja luterana centraliza sua presença
e enraizamento na comunidade local, tal dinâmica seja mais lenta. Como a Festa Pomerana se
localiza na sede (centro) da cidade, as diversas instituições e espaços sociais, como escolas,
estabelecimentos comerciais, praças, pulverizam a centralidade da igreja luterana. Por certo,
não é coerente afirmar que o todo grito dado por um pomerano luterano tenha intenção
deliberada e convicta de preservar a cultura pomerana, mas sinaliza o caminho do processo de
secularização, à medida que o grito deixa de ser pertencente à esfera religiosa, para adentrar à
arena da cultura. Ainda incipientes, mas problematizadoras, estas observações demandam
estudar o fenômeno com mais profundidade, razão pela qual já serem crescentes as pesquisas
sobre o universo religioso-pomerano em Santa Maria de Jetibá.

Referências

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cotidiano camponês. In: WOORTMANNN, Ellen F.; HEREDIA, Beatriz; MENASCHE,
Renata (Orgs.). Margarida Alves Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília:
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CUNHA. Gladson Pereira da. A simbologia mortuária pomerana: simbolismos e significados


dos elementos componentes dos cemitérios pomeranos na região de Santa Maria de Jetibá.
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342
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JACOB, Jorge Kuster. Cidades irmãs pomeranas Vila Pavão (ES) e Espigão Oeste (RO).
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LINK, Rogério Sávio. Luteranos em Rondônia: o processo migratório e o acompanhamento


da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (1967 – 1987). Orientação de Wihelm
Wachholz. Dissertação (Mestrado em Teologia), Escola Superior de Teologia. São Leopoldo,
2004.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantismo brasileiro, uma breve interpretação histórica.


In: SOUZA, Beatriz Muniz de & MARTINO, Luís mauro Sá. Sociologia da Religião e
Mudança Social; católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. 2ª ed. São
Paulo: ed. Paulus, 2008.

MUNDURUCA. Rafael. Pomeranos santa-marienses: tradições e costumes. Revista


Observatório Itaú Cultural, número 08, São Paulo, p. 119 – 124, 2009.

GUERRIERO, Silas. A visibilidade das novas religiões no Brasil. In: In: SOUZA, Beatriz
Muniz de & MARTINO, Luís mauro Sá. Sociologia da Religião e Mudança Social; católicos,
protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. 2ª ed. São Paulo: ed. Paulus, 2008.

TRESSMANN, Ismael. Dicionário Enciclopédico Pomerano – Português. Santa Maria de


Jetibá: Gráfica e Encadernadora Sodré Ltda, 2006.

Internet

http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24518/o-municipio-dados-gerais/

ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Defi
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm

343
344
Renascimento iniciatório revelado nos adornos e pinturas da
muzenza

Ivete Miranda Previtalli1

Introdução

A dissolução dos laços familiares após a travessia do Atlântico, além de desfazer as linhagens
de muitos africanos, também alterava a organização de vida do sujeito, uma vez que as
referências que orientavam a vida da pessoa eram radicalmente transformadas. Mesmo que
fosse possível refazer laços familiares, não foi possível substituir o que fora deixado e perdido
em África. Contudo, no infortúnio da vida, “durante a árdua travessia do Atlântico, amizades
eram feitas, alianças eram estabelecidas, novas redes de parentesco eram estabelecidas”
(SWEET, 2007, p. 51). A ligação com novos sujeitos conhecidos durante a travessia do
Atlântico criava novos laços sociais, aos quais dariam continuidade ao chegarem no Brasil.

Mesmo separados da Terra-Mãe, desfeitos seus laços familiares e obrigados, na maioria das
vezes, a serem batizados, essas diferentes etnias encontraram, nas palavras de Bernardo, “um
inimigo em comum: o sistema escravagista que faz com que diferentes etnias, ao entrarem em
contato, se unam, em vez de se destruírem como receava Bastide. Mais do que isto, algumas
delas constituíram aqui o Candomblé” (BERNARDO, 1997, p. 108).

O candomblé pôde se constituir por meio do intercâmbio religioso entre diferentes grupos
étnicos africanos que vieram para o Brasil, facilitado pela presença de muitos elementos
culturais em comum. Se essas similaridades culturais facilitaram a constituição do candomblé,
elas não significaram o desaparecimento da diversidade, pois, conforme Sweet, “ainda que os
africanos de diferentes grupos étnicos conseguissem encontrar pontos culturais em comum,
continuavam a agarrar-se aos seus passados étnicos particulares” (SWEET, 2007, p. 22).

Pensando as diferentes nações de candomblé que foram constituídas no Brasil e acreditando


que a diferenciação entre elas tem a ver com a diversidade étnica em sua fundação, percebo

1
Doutora em antropologia pela PUC/SP. Este trabalho faz parte da tese de doutorado Tradição e traduções
financiada pela Capes e CNPq, sob orientação da Professora Teresinha Bernardo. Contato:
ogunilori@hotmail.com.

345
que há uma cosmovisão introjetada na nação angola que revela suas particularidades, isto é, o
que não chegou a fundir-se. Sobre o reconhecimento do que contém de desgarre nos processos
de hibridação, Canclini afirma: “Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma
consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer ou não pode ser
hibridado” (CANCLINI, 2008, p. XXVII).

Sendo assim, penso que a nação angola pode revelar valores, costumes e mundividências,
mesmo que ressignificados remetem a uma origem africana. A África vive no candomblé
angola, na linguagem, no ritmo da música, na estrutura organizacional dos terreiros, nos
passos de dança. Essa não é somente a África sudanesa, de onde se originou o candomblé
queto, mas também a África banta, de onde vieram elementos das culturas dos povos da
África Central, que, ressignificados, estão presentes no candomblé angola.

Em pesquisas bibliográficas2, relatos de viajantes, principalmente de sacerdotes católicos


sobre a cosmogonia, encontram-se rituais e mitos, aos quais presenciaram na África-central e
que eram muito semelhantes entre si, e que são também similares a certos rituais do
candomblé angola paulista.

Não proponho valorizar os africanismos que denotam maior ou menor pureza dos terreiros.
Ao contrário, é para o processo de hibridação que pretendo olhar, no sentido de que as
misturas podem ser produtivas, mas que também geram conflitos devido ao momento
histórico, no qual elas podem se tornar incompatíveis. Nas palavras de Canclini (2008), seria a
possibilidade de “entrar e sair da hibridez” (apud CORNEJO POLAR, 1997).

O saber da nação angola e os saberes ancestrais bantos

Pe. Placide Tempels, no seu trabalho realizado nos anos de 1940, intitulado Philosophie
bantu, admitiu a existência de uma filosofia banta, fundamentada no conceito de força vital.
Segundo esse autor, na ontologia banta a força vital está presente tanto no reino animal,
2
A pesquisa bibliográfica que embasará este artigo foi produzida sobre grupos bantos centro-africanos, e são
trabalhos datados do século XVII, outros que tratam do século XVIII , XIX e começo do século XX. Os autores
aqui estudados são: P.e João António Cavazzi de Montecúccolo, que esteve na África – Central, onde
permaneceu de 1654 a 1667 e 1672 a 1677; o etnólogo missionário Padre Carlos Estermann, que no começo do
século XX estudou etnias bantas do sudoeste de Angola – Ambós, Hereros e Nhanecas-humbes) e não-bantos -
Cuísses, Cuandos e Curocas, Khoisan, Bochimanes, Kedes e Ovi-Womu; José Redinha (1905‐1983), um
importante etnógrafo que produziu vários trabalhos e relatórios sobre diversas zonas culturais de Angola; o
antropólogo Maccgaffey, que estudou os bakongos do nordeste de Angola no século XIX. Em muitos casos, terei
que filtrar os preconceitos ocidentais, mas sem dispensar o que de interessante podemos ler nestas fontes.

346
quanto no vegetal e no mineral. Ela pode se propagar, aumentar ou diminuir, devido às forças
dos seres estarem relacionadas entre si.

A energia vital que articula todo o universo do candomblé transparece em mitos e rituais que
no candomblé angola se amalgamaram com os de origem nagô. Isso é explicável, uma vez
que, se havia muitas diferenças entre a cosmogonia banta e a ioruba, também havia muitas
similaridades, como podemos perceber com o conceito de “força vital” que era fundamental
para os dois grupos, embora receba nomes diferentes segundo a língua de cada um. Nguzu
para os congo/angola e Axé para o grupo jêje/nagô.

Uma das características principais da força vital é que ela é própria dos seres viventes,
contrapondo-se à morte ou aos seres do outro mundo, que significam a ausência de nguzu ou
axé. Encontramos, dessa forma, tanto na nação angola quanto na queto, a crença de que a vida
não acaba com a morte. A vida se transforma.

A morte é um desafio para o homem, pois ela afeta sua vida. O homem, ao perceber a morte
de seu semelhante ou ver o seu corpo inanimado, descobre que um dia ele também não “será
mais”, isto é, percebe objetivamente que seu corpo se deteriorará e que ele não estará mais
entre os vivos. Assim, face à irrupção da morte na vida humana, o homem, por meio de ritos e
da magia, reconhece-a também como um processo de transformação.

Desta forma, no candomblé, o homem ao morrer pode se tornar um ancestral ou retornar ao


mundo dos vivos através da reencarnação. Essa concepção é a ponte que une um universo
dividido entre dois “mundos”: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Conforme Morin:

Juntamente com a consciência realista da transformação, a crença de que essa


transformação resulta numa outra vida na qual se mantém a identidade do transformado
(renascimento ou sobrevivência do “duplo”) indica-nos que o imaginário irrompe na
percepção do real e que o mito irrompe na visão do mundo. A partir de então, ambos
passariam a ser, ao mesmo tempo, os produtos e os co-produtores do destino humano
(MORIN, 1975, p. 103).

Por conseguinte, a relação entre os dois mundos pode ser feita, segundo a cosmovisão do
candomblé, seguindo algumas regras que são estruturadas para que não haja a contaminação
do mundo dos viventes, detentor da força vital (nguzu ou axé) pelo outro mundo, o mundo da

347
morte, onde há ausência da força vital. Desta forma, são realizadas cerimônias de morte, onde
o morto, por meio de ritual específico, é encaminhado para o outro mundo.

Ainda é Morin quem nos explica:

a irrupção da morte, no sapiens, é, ao mesmo tempo, a irrupção de uma verdade e de uma


ilusão, a irrupção de uma elucidação e do mito, a irrupção de uma ansiedade e de uma
segurança, a irrupção de um conhecimento objetivo e de uma nova subjetividade e,
principalmente, de sua ligação ambígua. Trata-se de um novo desenvolvimento da
individualidade e da abertura de uma brecha antropológica (MORIN, 1975, p. 104).

Desta forma, os elementos mágicos, míticos, rituais e estéticos, que sobrevêm do encontro do
Homo sapiens com a morte são elementos que constituem o universo antropológico.

Baseado em pesquisas bibliográficas, encontro assim como no candomblé, também o universo


dos Bakongo dividido em duas partes: uma é esse mundo (nza yayi), outra é a terra dos
mortos (nsi a bafua). (MACGAFFEY,1986). O mundo dos vivos e dos mortos, na concepção
dos bakongos, funcionam, segundo MacGaffey, “em oposição espelho dentro de um universo
estático e repetitivo. A vida é uma movimentação cíclica ou oscilatória entre os mundos,
assemelhando-se ao caminho do sol.” (MACGAFFEY, 1986, p. 43) [tradução livre]. Quando
o sol está presente é o mundo dos viventes que domina. Quando ele se põe e a noite cai, o
mundo dos vivos se transforma no mundo dos mortos.

A repetição de nascimentos e mortes equivale ao eterno nascimento do dia, seguido de sua


morte e do consequente nascimento da noite, num ciclo infinito. Desta maneira, seria o que
Eliade classificou como o “verdadeiro eterno retorno, a eterna repetição do ritmo fundamental
do cosmo: sua destruição e recriação periódica” (ELIADE, 2001, p. 95).

Essa relação e a passagem entre a vida e a morte são metaforicamente entendidas pelos
Bakongo como a troca de pele da serpente, que ao descartar sua pele antiga recebe uma nova.
Assim, nesse entendimento do universo, a primeira pele é a do homem vivo, e é negra, como
são as dos congoleses, e a segunda pele, a do outro mundo, é branca, “como o osso, ou a
mandioca depois de socada e tirada a casca ou como giz, mpemba3 o qual é também o nome
do outro mundo” (MACGAFFEY, 1986, p.52) [tradução livre].

3
Mpemba, o mesmo que pemba. Giz de cor branca.

348
Pela analogia entre o tempo do dia e da noite, a vida e a morte, a troca de pele da serpente e as
cores branca e preta, percebemos que há uma complexidade na cosmovisão dos Bakongo, na
qual nada no universo está isolado e tudo está integrado. Essa complexidade, segundo Morin,
“tem a ver com o que Pascal havia visto muito bem. Pascal disse há três séculos: todas as
coisas são ajudadas e ajudantes, todas as coisas são mediatas e imediatas, e todas estão
ligadas entre si por um laço que conecta uma às outras, inclusive as mais distanciadas.”
(MORIN, 1996, p. 274)

Também no candomblé todas as coisas estão relacionadas entre si. Assim, na nação angola, a
utilização das cores branca e preta em seus rituais também pode se referir ao mundo dos
mortos e ao mundo dos vivos, tal qual a encontramos na cosmologia bakongo. Morin escreve
que “o estudo das sociedades arcaicas mostra-nos que a decoração, o adorno, a escultura e a
pintura podem ter valor de proteção e de sorte, estando ligados a crenças mitológicas e as
operações rituais” (MORIN, 1975, p. 106). Para podermos entender essa magia, a que se
processa tanto no candomblé quanto nos ritos bakongo, devemos ter em mente a ideia do
duplo que se processa na imagem. Conforme Morin,

a imagem já não é uma simples imagem, ela tem em si a presença do duplo do ser
representado e permite, por meio desse intermediário, agir sobre esse ser; é esta ação que é
propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de
possessão da imagem (encantamento) (MORIN, 1975, p. 106-107).

A utilização das cores na nação angola, nas vestimentas, nas pinturas da pele do recém
iniciado, a utilização do pó branco que é o giz sagrado pemba tem um sentido e um
significado que estão relacionados com a vida e a morte.

Pemba – o branco

A cor branca é a preferida do candomblé angola. As vestimentas nas cerimônias de iniciação,


assim como nas saídas das muzenzas4, sempre são brancas, bem como nas cerimônias de
morte. Simbolizando a cor branca, o candomblé angola e também o queto utilizam a pemba 5
para pintar os recém iniciados com pequenas pintas que lhe cobrem o corpo, significando que

4
Saída de Muzenza: é uma festa pública em que o recém-iniciado no candomblé angola é apresentado para o
público. Por sua vez, Muzenza é o recém iniciado no candomblé angola.
5
Pemba: giz de cor branca utilizada no candomblé, para pintar o neófito, soprar na sala, entre outros rituais, com
intuito de afastar maus espíritos e fazer a ligação com o mundo ancestral.

349
o neófito passou por um processo iniciático que está sendo finalizado e que ele está limpo das
influências do mundo em que vivemos.

A utilização da pemba (ralada) em pó nas quizombas pode ser identificada como um ritual
próprio do candomblé angola6. Em São Paulo, não é somente a nação angola que utiliza o pó
de pemba nas festas públicas, pois há terreiros de nação queto que a utilizam, talvez pela
herança da iniciação do pai ou mãe de santo, que se deu na nação angola. Contudo, não
encontrei a utilização da pemba em pó soprada no salão de festas, por exemplo, no terreiro
baiano de nação queto, o Axé Opo Afonjá.

Assim, sobre esse assunto, ouvi de um pai de santo de São Paulo que transitou para a nação
queto a seguinte observação: “- Ele (ao comentar sobre outro pai de santo de angola) canta
tudo aquilo no começo (da festa pública)?” Daí cantarolou um pedaço da cantiga da pemba e
continuou: “- Eu não faço mais nada disso. No queto não tem nada disso.”

O pai de santo fez esse comentário, porque no início das festas públicas da nação angola, após
cantar o pedido de licença ao inquice Inkossi7, iniciam-se as cantigas da pemba. Neste
momento, o pai ou a mãe de santo apanha um punhado de pemba em pó e o assopra no centro,
nos quatro cantos do salão, para a porta de saída. Em algumas casas, um pouco deste pó é
depositado em pequenas porções nas palmas das mãos dos participantes da roda de angola e
dos tocadores de atabaques, que se ungem com esse pó branco antes do chamado aos inquices.

Os adeptos dizem que a pemba é soprada no salão de festas para limpar o local. Entretanto,
sabendo que pemba (mpemba) é um nome quimbundo e a designação do mundo dos mortos,
portanto, de origem Congo/Angola, e conhecendo a relação da cor branca com a morte,
ousaríamos pensar que a pemba tem um significado muito mais profundo do que
simplesmente proporcionar a limpeza transcendental.

Segundo Eliade: “Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal
ordinária e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa.” (ELIADE, 2001,
p. 64). O tempo e o espaço religioso não são homogêneos nem contínuos, pois se constituem
no limiar entre o mundo profano e o sagrado, que se abrirá para a comunicação com os deuses
por meio de rituais.

6
Quizomba: festa pública do candomblé angola em louvor a algum inquice ou por motivo de uma iniciação ou
obrigações de filhos com sete, quatorze ou vinte e um anos de iniciado.
7
Inquice Inkossi. Divindade do candomblé angola similar ao orixá Ogum divindade da nação queto.

350
Assim, no começo da quizomba, isto é, a festa pública, quando o pai ou a mãe de santo solta a
pemba no salão de festas, a brancura deste pó, que simboliza o mundo dos inquices e dos
ancestrais, estimulará o contato com o outro mundo, tornando mais fácil a chegada dos deuses
que virão confraternizar com os vivos. Ao mesmo tempo, o pó de pemba afastará os maus
espíritos que por acaso estiverem presentes devido a alguma contaminação no mundo dos
viventes. Na maioria dos terreiros, à pemba ralada são acrescentadas sementes e folhas
maceradas que são consideradas como purificadores de ambiente.

O sacerdote, ao soprar o pó branco no salão e nos filhos de santo, proporciona uma inversão
dos mundos, pois é por meio da pemba ritualizada que será efetuada a abertura para a
comunicação com os deuses. Daí sua grande importância para o candomblé angola, pois ela
torna possível e segura a comunicação com o mundo dos deuses, que poderão descer a terra
enquanto o homem, simbolicamente, subirá para o céu. Também nos rituais de iniciação do
candomblé angola, a presença da cor branca é muito importante, e é neste rito de passagem
que a comunicação com o inquice se dará através do transe.

Iniciação para os inquices – um rito de passagem

A iniciação é o renascimento místico. Os filhos de santo, ao se iniciarem no candomblé,


passam por diversos processos que fazem parte do simbolismo do renascimento. Eles são
recolhidos à clausura, passam pela tonsura, aprendem um novo vocabulário pertencente à
língua sagrada, são proibidos de usar talheres para se alimentar, são zelados como crianças,
pois abandonarão a vida passada, receberão um novo nome e, simbolicamente, renascerão
para uma nova vida.

Redinha registrou entre os povos de Angola processos iniciáticos, que assim como no
candomblé angola e em outras nações, envolviam a tonsura e o recolhimento do neófito:

As liturgias dos diversos rituais incluem tonsuras ou tosquias praticadas com freqüência nas
diversas regiões e grupos, nomeadamente na entrada dos jovens nos retiros puberbáticos,
nos ritos de viuvez, na iniciação das raparigas desde Cabinda ao Alto-Zambeze, nos
indivíduos sujeitos a estágios expurgatórios de faltas contra a sociedade, e outros de variada
prática (REDINHA, 1974, p. 371).

351
Há uma distinção entre os ritos de puberdade e as cerimônias de iniciação para admissão de
um sujeito em uma sociedade religiosa ou secreta. Enquanto nos ritos de puberdade todos os
adolescentes têm que passar pela iniciação, as iniciações religiosas não são para todos, mas
apenas para certo número de pessoas. Como escreveu Redinha, as iniciações em África eram
de diversas modalidades, mas no Brasil restringiram-se à sociedade religiosa, isto é, ao
sacerdócio e aos filhos de santo. As iniciações em São Paulo são normalmente precedidas de
um sinal, como uma doença, ou de algum acontecimento extraordinário que perturba a
harmonia da vida de alguma pessoa, o qual será a indicação para que se inicie.

Também em África, as iniciações religiosas eram anunciadas por uma enfermidade. É sobre
isto que escreve Estermann:

Para se obter este poder estimado e sagrado é preciso uma iniciação em forma. Quase
sempre o candidato foi primeiro molestado por uma doença prolongada. Um dia, enfim, um
mestre-feiticeiro descobre a razão do mal: o doente é possesso por um espírito dum
antepassado que era feiticeiro. Não deixará este em paz a pobre criatura na qual encarnou
enquanto ela não consentir continuar a exercer este mister entre os vivos (ESTERMANN,
1983, Vol. I, p. 29).

Estermann, ao descrever a iniciação na África, divide-a em duas partes. A primeira consiste


no sacrifício de um bode ou de um boi, e a segunda torna-se interessante pela semelhança que
tem com uma cerimônia do candomblé angola chamada bolonã: “logo que o espírito entrou, o
médio cai no chão parecendo desmaiado. Algum tempo depois o médio se levanta retomando
sua vida normal” (ESTERMANN, 1983, Vol. I, p. 317).249

A cerimônia chamada bolonã é um momento do processo iniciático no candomblé angola de


São Paulo anterior ao recolhimento, em que ao ritmo dos tambores o neófito cai como que
desmaiado. Neste momento, os tambores cessam, e o neófito é coberto com um pano branco,
levantado do chão por quatro adeptos iniciados no culto, e ainda em decúbito ventral é
recolhido, começando formalmente a iniciação.

Para a compreensão do sentido da iniciação no candomblé, é preciso entender que o adepto do


candomblé não se considera acabado. Isto é, nessa concepção de mundo, o homem, tal como

249
O processo iniciático descrito por Estermann aconteceu no sul de Angola, e tem a ver com um culto que foi
introduzido 30 ou 40 anos antes da escrita da etnografia, que é datada de 1935. Este culto se diferencia dos cultos
tradicionais, pois ao invés de serem cultuados os espíritos dos antepassados, quer sejam do soba quer do clã, são
cultuadas novas categorias de espíritos. que são antepassados dos mbundos do planalto do Huambo. Estes
espíritos são apelidados de espíritos do Nano (Estermann, 1983, vol. I, p. 317).

352
se encontra ao nível natural da existência, não é um ser completo. Assim, “para se tornar um
homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para a vida
superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural” (ELIADE, 2001, p. 152).

Por conseguinte, no processo iniciático do candomblé, alegoricamente, a vida antiga do


neófito é deixada para trás. Por meio de ebós250, da clausura e de sacrifícios de produtos da
terra e animais, o filho de santo passará para uma nova esfera da existência. Metaforicamente,
o neófito irá transpor o portal da morte, para ingressar no mundo espiritual, e finalmente, ao
término do processo, simbolicamente atravessará outra vez esse portal, a fim de retornar,
renascido, para o mundo dos vivos.

Por isso, o uso da cor branca, por ser a cor do outro mundo, é um importante requisito tanto
para as roupas na clausura quanto para a roupa e pinturas usadas pela muzenza, na sua
primeira aparição em público, que se dará em uma grande festa.

A iniciação e as cores branca, vermelha e preta

As festas de saída de muzenza são divididas em três partes principais. Embora todos os
inquices sejam homenageados com cantigas próprias, os momentos mais importantes da
festividade são aqueles em que o neófito é apresentado para a sociedade do candomblé. Na
primeira apresentação da muzenza, seu corpo vem coberto de pintas brancas e sua cabeça, que
está raspada, vem adornada com círculos brancos produzidos com pó de pemba. Além disso
um cone confeccionado com uma massa sagrada específica está assentado no centro da
cabeça e é chamada oxu.

Pensando a relação do branco da pemba com a morte, a cor da roupa e a decoração do corpo
do neófito indica que, durante a clausura, passou por uma morte iniciática, para que pudesse
transitar para o mundo espiritual e receber o nguzu de seu inquice. Uma vez do outro lado da
vida, o neófito pode, no final dos rituais, renascer para uma nova vida terrena, na qual
receberá outro nome e um novo destino.

A ritualização da morte e do renascimento nas iniciações do candomblé revela que, para os


adeptos, a vida como um todo é suscetível de ser sacralizada. Há um contínuo da vida profana
com a religiosa, de forma que a iniciação, ao representar a morte e o renascimento, reproduz
250
Ebó: oferenda de comidas e sacrifício de animais votivos aos inquices, orixás ou voduns.

353
no duplo o nascimento no mundo comum. Ao exibir as decorações corporais de cor branca na
pele a aparição pública do neófito revela que esteve durante o período de recolhimento no
mundo dos espíritos e dos inquices. Para a comunidade do candomblé que assiste a festa o
iniciado ainda não renasceu, pois a cor branca de suas vestes e da decoração em seu corpo
narra a trajetória da muzenza durante seu recolhimento, que se iniciou no mundo dos
ancestrais e dos deuses, onde o branco é sua principal marca. A marca daqueles que ainda não
estão no mundo dos vivos.

Assim, o neófito, ao transitar para o mundo dos vivos isto é renascer, traz não só a cor branca
do mundo dos espíritos, o outro mundo, como também apresentará em aparições subsequentes
o vermelho e o preto, cada qual com seu próprio significado, como veremos adiante.

Dando continuidade à festa da apresentação do iniciado para a comunidade do candomblé,


após a primeira saída da clausura, quando vem apresentando o branco, ele é novamente
recolhido, para ser preparado para uma segunda apresentação ao público. Assim, retornando
para o salão de festa, o neófito, nessa saída veste roupas coloridas, e além da pintura branca
efetivada com a pemba, vem também com as cores do waji251, que é um azul intenso e o
vermelho obtido com o pó de osun252.

A partir deste momento, podemos pensar que o retorno do neófito de sua jornada iniciática ao
mundo dos espíritos está inscrito nas pinturas de sua pele. Desta maneira, o vermelho, que
aparece entre o preto e o branco, simboliza o sangue do nascimento, que também pode estar
relacionado com o nascer do sol, pois é o amanhecer que representa a morte da noite para o
nascimento do novo dia. Por sua vez, o waji, que representa o preto, simboliza o surgimento
do dia, portanto o mundo dos vivos, para onde a muzenza está voltando.

Em outras palavras, o branco, o preto e o vermelho estampados na pele do neófito,


alegoricamente reproduzem uma viagem que começa com a sua morte e o ingresso no mundo
dos ancestrais e dos inquices, para após certo tempo de reclusão e rituais específicos, ter um
renascimento simbólico, e, finalmente, na festa pública, reintegrar-se ao mundo dos vivos.

251
Wáji ou Uaji é um tipo de pó azul, conhecido também por índigo extraído da árvore Indigofera (sp.
Leguminosae Papilionoideae).
252
Osun é obtido da Baphia nitida Lodd. Legumenosae, nativa do centro-oeste da África, ocorre na Serra Leoa,
Libéria, Costa do Marfim, Togo, Benin, sul da Nigéria, Republica dos Camarões, Guiné, Gabão, Gana e Zaire.
http://www.fao.org/ag/Agp/agpc/doc/GBASE/data/pf000146.htm.
José Redinha também faz referência às cores branca e vermelha nos rituais dos bantos de angola: “As argilas,
principalmente as que resultam de feldspatos, e os vermelhos oriundos de cernes de Pterocarpus, de chistos
vermelhos, de red-rock alterado, ou de argilas ferroginosas, depois de devidamente preparadas são matérias
indispensáveis no liturgismo e na pragmática social da vida dos Bantos angolanos” (REDINHA, 1973, p. 22).

354
Essa sequência reproduz a escuridão da noite que se esvanece com o amanhecer para
finalmente dar lugar à luz no nascer do dia e da vida.

Após estas duas saídas da clausura, o neófito é novamente recolhido para uma nova
apresentação. Desta vez, aparecerá sem as pinturas, sem o oxu, estará vestido com roupas
coloridas e festivas. Esta é a roupa de gala do inquice para o qual foi iniciado. A cabeça vem
ornada com uma coroa, elmo ou chapéu, decorado com contas, búzios ou penas. O rosto vem,
muitas vezes, parcialmente encoberto por uma cortina de contas ou máscara dependendo da
característica do inquice ao qual foi iniciado e que ali está presente. Nesta apresentação é o
inquice que vêm confraternizar com a sociedade do candomblé. Traz nas mãos apetrechos
simbólicos da divindade. Não é mais o mesmo homem que entrou na reclusão da camarinha,
mas é ele junto ao seu deus que viverão em permanente contato a partir daquele momento.
Esta saída é chamada de “saída do nome”, pois é nesta parte da cerimônia que o inquice
gritará o novo nome do iniciado, pelo qual será conhecido por toda a comunidade do
candomblé. Ele renasceu para um novo destino, para uma nova família, com um novo nome e
assim se reintegrará no mundo dos vivos.

Considerações finais

A estética aqui apresentada está ligada a magia e a religião. Além de seu simbolismo mágico,
ela também tem o sentido de prestígio, pois, ao ser iniciado, o adepto cresce na hierarquia do
terreiro. Ele renasce em uma nova família, com um novo nome e acrescido do nguzu de seu
inquice, pois ele “só se torna um homem completo depois de ter ultrapassado, e em certo
sentido abolido, a humanidade “natural’ de morte e ressurreição, ou de segundo nascimento”
(ELIADE, 2001, p. 152).

É a partir do surgimento do homem imaginário que, “a mitologia e a magia serão


complementares e estarão associadas a todas as coisas humanas, até mesmo as mais
biológicas (morte, nascimento) ou as mais técnicas (a caça, o trabalho); elas vão colonizar a
morte e arrancá-la do nada” (MORIN, 1975, p. 109).

É a possibilidade de morrer que leva o homem à construção de um sistema de organização de


vida ao qual sempre estará reconstruindo e ordenando. Segundo Edgar Morin, entre as duas

355
visões do homem, uma objetiva e outra subjetiva253, “há uma brecha, que a morte abre até a
dilaceração e que é preenchida com os mitos e os ritos da sobrevivência, que finalmente
integram a morte” (MORIN, 1975, p. 104). É a brecha antropológica (MORIN, 1975) que
surge no diálogo entre a razão e a desrazão, que proporciona ao Homo sapiens ir do simbólico
ao imaginário para, desta forma, descobrir, por meio da morte, o sentido da vida.

Devido à crença no ciclo contínuo da existência, a morte não será o final da vida, mas sim
uma transformação. Assim, a concepção de um universo dividido entre mundo dos vivos e
mundo dos mortos, encontrada tanto no universo Bakongo quanto no candomblé angola,
permite pela continuidade entre os dois mundos, dar sentido à existência humana.

Referências

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São Paulo, p. 105-116, 1997.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - Estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.4a edição. São Paulo, EDUSP, 2008.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. Essência das religiões. 5° tiragem, Tradução de


Rogério Fernandes. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

ESTERMANN, Carlos. Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Coletânea de artigos


dispersos. Volume I. 1a edição. Lisboa. Instituto de Investigação Científica Tropical 1983.

MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa. The BaKongo of lower Zaire.
Chicago and London, The University of Chicago Press, 1986.

MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Para uma Nova Antropologia. Tradução de Fernando
de Castro Ferro, 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

__________. Epistemologia da complexidade. In: SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos


paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996b, p. 274-289.

253
Morin escreve que: “a consciência da morte que emerge no sapiens é constituída pela interação de uma
consciência objetiva que reconhece a mortalidade e de uma consciência subjetiva que afirma senão a
imortalidade, pelo menos uma transmortalidade” (1975, p. 103).

356
REDINHA, José. Etnias e Culturas de Angola. Premio Banco de Angola, 1974. Luanda.
Instituto de Investigação Científica de Angola, 1974.

SWEET, James H. Recriar África – cultura, parentesco e religião no mundo afro-português


(1441-1770).Tradução de João Reis Nunes. Lisboa, Edições 70, 2007.

Internet

TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. Tradução do holandês para o francês por A.


Rubbens. Lovania (Elisabethville), 1945. Texto integral digitalizado e apresentado pelo
Centre Aequatoria. Disponível em <http://www.aequatoria.be/tempels/FTLovaniaFR.htm>.
Acesso em 17, ago., 2013.

357
358
Um “ballet do Espírito”: breve reflexão sobre corporeidade e
pentecostalismo
Valdevino de Albuquerque Júnior1

Introdução

Em abordagem sobre os estudos relativos ao universo pentecostal, Leonildo Campos ressalta


que “não há pentecostalismo no singular” (1995, p. 27). De fato. Para além da questão da
pluralidade e diversidade nas releituras e reapropriações hermenêuticas que fazem das
manifestações pentecostais – dos grandes e médios centros aos rincões da nação – um
verdadeiro ninho de teologias, parece interessante e digno de pontuação destacar a maneira
como tais teologias vem à tona no espaço propriamente ritual da experiência religiosa do
sujeito.

Dessa forma, surge uma indagação: é a força da cultura brasileira – e sua matricialidade
religiosa – a responsável pelo plasmar de uma religiosidade em que o corpo assume,
dialeticamente, a função de 1) libertar-se do pecado por via de um ascetismo intramundano
(que prescreve e estatui a repressão do corpo sob a tutela de uma herança puritana que se
estendeu do protestantismo ao pentecostalismo clássico) e ao mesmo tempo 2) libertar-se
daquele mesmo estilo repressivo do velho protestantismo de limitar o corpo à ação passiva (da
recepção de sermões), restrita ao “sentar-se (somente) para ouvir” e “levantar-se ou ajoelhar-
se (somente) para orar”?

Digo força da cultura no sentido de concebê-la como o padrão de significados que é, onde as
experiências encontram sua razão de ser na transmissão histórica da significação das coisas,
na concepção herdada, essa significação incorporada em símbolos através dos quais os
homens comunicam seus conhecimentos. Sendo essa mesma concepção o significado dos
símbolos (GEERTZ, 2008), parece legítimo sugerir (ou até mesmo afirmar) que a matriz
religiosa brasileira (BITTENCOURT, 2003) atravessa a história, fazendo do tempo e do
espaço das experiências religiosas dos sujeitos, em sua dinâmica de lugar (RABELO, 2005),
autênticas usinas semânticas, no sentido de produtoras de um novo rejunte interpretativo da

1
Mestrando em Ciência da Religião pelo PPG da UFJF, comunicólogo habilitado em Jornalismo pelo Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF, SVD/SMC). Membro dos GPS Religião, Modernidade e Ecologia
(PUC/MG) e Núcleo de Estudos em Protestantismos e Teologias (NEPROTES/UFJF). Bolsista da Capes.
Contato: jr.albuquerque@gmail.com.

359
mitologia bíblica da manifestação de pentecostes. Rejunte que promove a fusão cotidiana de
novos olhares teológicos, novas trações que fazem girar a engrenagem social dessa usina
produtora de novos sentidos de vida, de novos símbolos; ora: de novos pentecostalismos!

De forma sucinta, esta reflexão apresenta duas experiências sensíveis da manifestação da


presença de Deus: dois jovens crentes2, ambos engajados na busca contínua por vivenciar a
experiência de “receber o Espírito Santo” (RABELO, 2005).

“Ou não sabeis que o nosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de
Deus, e que não sois de vós mesmos?” 1 Co 6.19 3

Na concepção pentecostal, o corpo é receptáculo do sagrado. Isso não é novidade na


cosmovisão cristã enquanto cultura [puritana] de repressão ao corpo (SOUZA, 2004;
COMBLIM, 2005). Isso ocorre em diversas teologias (cristãs, sobretudo pentecostais), uma
vez que o corpo já era sagrado no protestantismo histórico; tanto o ascetismo extramundano
quanto o intramundano implicavam renúncia às “superfluidades”, talvez mais objetivamente,
aos prazeres terrenos vividos no e para o corpo (WEBER, 2004). O que salta aos olhos no
pentecostalismo é a leitura bíblica trazida à prática da igreja de modo a reafirmar a postura
hermenêutica que estabelece o corpo como território demarcado pela divindade como sua
propriedade. Eis um ponto chave que traz à baila e consagra, “legitimando”, a manifestação
dos dons espirituais, dos carismas, no culto pentecostal; pois se o corpo é de Deus, o Todo-
Poderoso faz dele e nele o que quiser: inclusive bailar 4. Um aspecto que deve, desde já, ser
ressaltado, é a diferença entre a ideia de “estar cheio do Espírito Santo” e de “ser possuído
pelo Espírito Santo”. Esta é a mais distante da concepção pentecostal.

A partir de algumas pistas sensíveis que se mostram em seus cultos, tais como a coreografia
[imprevisível e diversificada] do crente que, “pentecostalmente trajado” em seu terno e
gravata, marcha (literalmente) entre as fileiras de bancos bradando línguas estranhas, pode-se
observar que a comunicação dos símbolos da crença se dá na comunhão mesmo dessas
2
Ora representados por pseudônimos, a preservar-lhes o anonimato.
3
A teologia pentecostal prescreve que “nosso corpo é o templo do Espírito Santo. Se somos cristãos, nosso
corpo é a morada pessoal do Espírito Santo (ver Rom 8.9,11, onde vemos que o Espírito Santo é o selo de Deus
em nós, mostrando que lhe pertencemos). Porque Ele habita em nós e pertencemos a Deus, nosso corpo nunca
deve ser profanado por qualquer impureza ou mal, provenientes da imoralidade, nos pensamentos, desejos, atos,
filmes, livros ou revistas. Pelo contrário, devemos viver de tal maneira que glorifiquemos e agrademos a Deus
em nosso corpo (v. 20)” (STAMPS, p. 1745).
4
O termo “bailar” é tomado de empréstimo à abordagem de Miriam Rabelo (2005) sobre a dinâmica da
experiência de “receber o Espírito Santo” no pentecostalismo.

360
crenças, além do fato de que a própria fluidez na comunicação ritual dos símbolos constitui,
de forma seminal, a plausibilidade5 do arcabouço teológico do sistema de crenças,
legitimando os mitos na expressão sensível do crente, na festa da coletividade. A participação
ativa nos atos de louvação constitui troca de informações que se processa na reatualização dos
mitos6 na ação ritual da manifestação carismática, onde aquela “sensação (mística) de ‘mover-
se na presença de Jesus’” (CORTEN, 1996, p. 123) dá o tom das reuniões, trasladando o
ambiente imagética e acusticamente para o quadro da realidade mítica reatualizada,
emoldurado pela leitura teológica pentecostal de Atos 2. É quando “o fogo desce”, celebra o
pentecostal.

“Eu vejo como que um vaso sendo compretado. Um vaso sendo completado. (“Ô Glória a
Deus”, acentua irmão Leandro). Num tem o filtro, cê num vai tirano a água dele, ele num
vai esvaziano, depois cê num pega e num enche ele novamente? É como se fosse assim 7.

Se, diz Geertz, “a cultura de um povo é um conjunto de textos” (1989, p. 212) e portanto – tal
qual assumo nesta reflexão – pode ser lida e interpretada, o culto pentecostal (enquanto
cultura particular) é um enredo, uma repetição, e transcreve, da forma mais prazerosa (festiva)
possível, a relação entre a textualidade mitológica e sua verdade, sublimada na experiência
contemporânea do mito. O corpo do crente (e o lugar onde o culto se realiza) é, nesse sentido,
o contexto onde ethos e visão de mundo se fundem ao sentimento de pertença; tal fusão
encontra sua aparência de objetividade no espaço da manifestação do Espírito Santo: a
expressão gestual (1989, p. 96).

“Eu sinto o fogo descer do céu, um arrepio, um arrepio muito gostoso, da cabeça até os pé,
vindo de cima pra baixo, e me envolveno o calor do Espírito Santo... meu olho, eu sinto
pegar fogo em meus olhos, sinto minha mão quente, pegano fogo... me dava uma alegria,
me dá... eu sinto uma alegria, uma vontade de pular, de rodar... Já aconteceu, assim, eu te
falo que, quando eu tô ‘tomado’ assim, quando eu tô recebeno, sentino ali a presença de
Deus memo, já aconteceu d’eu dançar... no louvor... falando em línguas... d’eu dançar... e

5
Plausibilidade no sentido que Peter Berger (2008) atribui ao termo, i.e., a ideia de que um indivíduo só pode
manter/conservar sua autoidentificação em um grupo que confirma tal identidade. Essas “estruturas de
plausibilidade”, acentua Faustino Teixeira, é que “conferem a base social para a conservação da realidade,
eliminando o risco dissolvedor da dúvida” (2003, p. 224).
6
O sentido dessa reatualização dos mitos à qual tento me reportar é conceitualmente descrito por Mircea Eliade
da seguinte maneira: “Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua
existência profana” (2008, p. 88) e “Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se
sucederam os acontecimentos de que falamos (...) Em suma, supõe-se que o mito aconteça em um tempo – se nos
permitem a expressão – intemporal, em um instante sem duração, como certos místicos e filósofos concebem a
eternidade. (...) O mito reatualiza constantemente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve a um
plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona a abordagem de uma Realidade
impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana (1991, p. 53-56).
7
Irmão Paulo.

361
também d’eu impor as mãos sobre uma pessoa que estava enfermo, e el ser curada. O
Senhor me toca e me leva8.

Entre as várias e por vezes imprevisíveis maneiras pelas quais o Espírito Santo se manifesta
nos fieis, resolvi pinçar uma delas: o efluir9 da presença de Deus na experiência sensível do
crente e como tal efluir evolui para a expressão gestual, haja vista a possibilidade de comparar
as impressões com os dados obtidos pela cientista social Miriam Rabelo (2005), alimentando
um circuito de inferências, interligadas ao prisma interpretativista ora assumido, na tentativa
de uma leitura que reconheça a experiência sensível como fronteira de sentido entre o
universo simbólico da teologia pentecostal e a legitimação dessa hermenêutica na
performance ritual, admitindo o pano de fundo da matriz religiosa brasileira como rejunte
cultural que sugere, a priori, elementos de continuidade entre o engajamento corporal das
manifestações carismáticas de certos pentecostalismos e das religiões afro-brasileiras. Tal
continuum entre as expressões gestuais de ambos os credos encontra fulcro em elementos
culturais de contato, tais como a arte da música – e as ligações desta com as práticas
religiosas10 – e a influência exercida pela música no espírito da coletividade brasileira.

Em A religião dos brasileiros, Sanchis fala da contaminação que caracterizaria as transações


simbólicas entre os universos religiosos no Brasil: “Dois mundos diferentes na sua
intencionalidade simbólica, mas profundamente (...) contaminados um pelo outro” (1997, p.
38). Em outro lugar o mesmo autor assevera: “Religião é cultura. Mas religião não se
confunde simplesmente com cultura. É cultura no superlativo” (2008, p. 77). No mesmo texto,
Sanchis lança mão de observações sobre o itinerário cotidiano do povo brasileiro,
especificamente algumas expressões correntes na comunicação popular: “Vá com Deus!”, “Se
Deus quiser” e etc., expressões que fizeram incursão em muitas letras de músicas populares. E
Sanchis ainda fala de uma “cultura crente” (1994, p. 97) ao referir-se às “transformações
culturais” operadas pelos padrões moralizantes de alguns pentecostalismos em bairros
populares.

8
Irmão Leandro.
9
Quando o fiel fala sobre sua experiência em “receber o Espírito Santo”, a voz da crença, em sua tentativa de
verbalizar tal vivência religiosa, geralmente utiliza expressões metafóricas (quase sempre com paralelos
bíblicos), tais como “eu sinto rios de água viva a jorrar do céu”, “eu sinto as labaredas do Espírito a queimar”,
“quando o fogo desce a presença de Deus flui no meio de Seu povo”, etc. Essa concepção de um efluir é muito
presente nessas experiências.
10
Entre alguns dos textos aqui considerados, mostram-se interessantes o de Reginaldo Prandi (2005), Uéslei
Fatareli (2008), Othon Jambeiro (1975), Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (2012) e Rogério
Budasz (2009).

362
Cultura e religião se entrelaçam no processo de formação de identidades, podendo-se
considerar a religião de fato como um “sistema cultural” (GEERTZ, 2008), enquanto a
cultura, propriamente dita, sendo um “sistema de significados” (Ibid, 1989), move-se
dialeticamente no sentido de ser produzida pelo povo ao mesmo tempo em que instaura na
consciência popular, via aparatos simbólicos, relações de concepções e significados do
mundo. Sendo a cultura “uma produção constante e dinâmica de significados” (NOVAES,
1998) por onde transitam os sentidos, o culto pentecostal, como instrumento de uma cultura
maior chamada pentecostalismo, promove o encontro entre a emoção que (re)alimenta a
crença e o sistema simbólico que compõe a cultura pentecostal, fazendo do espaço de culto
uma usina produtora de novos e infinitos sentidos, manifestados nos cantos, nas aplausos, nas
lágrimas, “na água viva que desce do céu”, “no fogo que cai”: manifestado no corpo. “O fiel
que assiste a um culto sai carregado de ‘um acontecimento’” (CORTEN, 1996, p. 62). De
fato.

II

De longe se faz ouvir o ressoar das palmas de louvação. Ao passo em que se encurta a
distância entre este ato observador e aquela fonte sonora, intensifica-se e se mostra mais
nítido que os aplausos intermitentes são coadjuvantes efêmeros de um fenômeno ainda mais
inusitado: a festa pentecostal. Ou melhor, um culto pentecostal. Aliás, festa e culto no
pentecostalismo são [quase] sinônimos, lembra Rivera (2005). Porém, não se trata de uma
festa caracterizada pelo conceito de “festa” propriamente dito – um espaço onde imperam
descontração e certo descompromisso com as regras e formalidades do cotidiano: pelo
contrário. A teologia pentecostal prescreve aos crentes um cotidiano menos afeito às festas
[seculares] e mais próximo da sobriedade contínua de um fiel que atravessa os dias sob o
estatuto puritano da santidade pentecostal.

Ora, falar em “santidade pentecostal” no Século 21, transcorrida quase uma década após as
“bodas de prata” do neopentecostalismo no Brasil, parece um comentário impróprio11. No

11
Interessante lembrar que as mudanças ocorridas no campo religioso brasileiro, pelo menos nos últimos 10
anos, conforme atesta o último censo, confirmam o avanço pentecostal frente às demais manifestações religiosas.
Autores já consagrados nos estudos do pentecostalismo lançam luz sobre os mais variados segmentos desta linha
teológica do cristianismo de raiz protestante, e em boa hora cabe aqui esta observação. Várias transformações
fizeram [e fazem, por serem ininterruptas] do universo pentecostal um verdadeiro ninho de teologias, e as
reflexões de Ricardo Mariano (1999), Ari Oro (1992; 2001; 2005-2006), Andre Corten (1996), entre outros,
mostram uma nova face assumida pelo ramo pentecostal à qual Mariano denomina Neopentecostalismo: nesses
cultos, o pentecostalismo toma outra feição, ora maquiado pela tinturaria de novas concepções teológicas
contrastantes às bases históricas do pentecostalismo tradicional (entre elas a teologia da prosperidade), ora pelo

363
entanto, tal impertinência/improcedência temática vê-se pulverizada pela resistência e
sobrevida, em terrenos religiosos, reveladas pelos “pentecostalismos da antiga”, comunidades
e igrejas estabelecidas que mantêm a hermenêutica primitiva do pentecostalismo que aportara
no país, em fins dos anos de 1910. Por fim, e por conta de um denso conteúdo informativo
sobre a história, estrutura, teologia e desenvolvimento do pentecostalismo (e suas formas) no
Brasil, as pesquisas até hoje realizadas sobre esta religiosidade mais que explicitam sua
importância no campo religioso brasileiro.

É fato que a supracitada “hermenêutica primitiva” não se isenta dos processos de transação
simbólica que fazem do Brasil o que ele é, um feixe de leituras e releituras de múltiplas
crenças, caleidoscópio de pluralidades cosmogônicas, alimentado por representações e
imagens embutidas em signos de crenças, a refletir tais signos em todos os sentidos e níveis
de religiosidade, dos sistemas racionalizantes da esfera litúrgica das religiões dos livros aos
rituais das religiões de tradição oral (nem por isso, menos complexas). Por vias rituais, teias
de comunicação canalizam mitos através da história das religiões e da história das
experiências religiosas dos indivíduos e seus grupos.

A “festa pentecostal” é uma comemoração da presença do Espírito Santo entre os fieis,


momento em que corpos adornados pelo formalismo e recato dos ternos e dos vestidos
compridos vivem o “paradoxo” dos movimentos livres, desmedidos e alternados, no
compasso da experiência religiosa e carismática. Afinal, é o Espírito Santo o regente das
expressões gestuais do crente que louva (e baila), fazendo do corpo – e no corpo – um
instrumento vivo de significação da presença divina.

Eu vejo anjos... fogo! Um fogo amarelado, descer em chamas, assim... vejo uma bola rodar,
de fogo, ela roda assim, vai girando, igual uma roda. Falo diante do Espírito Santo! (...)
Quantas vezes eu tô em casa, assim, eu ‘cabo de orar, de sentir a presença de Deus, de falar
em línguas, quando eu vou deitar, que eu deito assim, essa bola ela vem rodando. Ela vem e
clareia o quarto inteiro. Um círculo de fogo, uma roda. Vejo ela clareando o quarto, desde
que eu recebi o batismo com o Espírito Santo e com fogo 12.

Um “bailar” que é também linguagem que simboliza o diálogo da crença com a legitimação
dessa crença. Deus, “O Sagrado”, diria Otto (2007), está presente, através do Espírito Santo
(WILLIAMS, 2011), e “é o próprio Deus”, através do Espírito Santo, diz o crente, que induz

verniz que cobre um novo estilo de cristianismo pentecostal diluído na influência de líderes carismáticos que se
instrumentalizam do capital simbólico adquirido na ascendência representativa no universo político brasileiro.
12
Irmão Leandro.

364
os sentimentos, emoções e o corpo a expressar a manifestação dos carismas. Aliás, os
carismas são o manifestar dos dons de Deus, preconiza a Teologia Pentecostal. É o “carimbo
da bênção”, afirma, de púlpito, num culto de meio de semana, um dos pastores da
denominação na qual realizo os trabalhos de campo254.

Começa sempre na cabeça... é da cabeça pra baixo. Eu sinto muito as mãos aquecidas, mas
começa sempre na cabeça. É uma realidade, mesmo, o fogo vem no corpo inteiro, o calor
do Espírito255!

A começar pela resposta ativa do público às interlocuções dos pregadores, em contraste


absoluto com o tradicionalismo protestante no silêncio parcial de uma igreja a intercalar
escutas insonoras e améns, o culto pentecostal ressoa seu alarido próprio na característica que
o distingue dentre outras religiosidades, característica que toma sua forma nos próprios
agentes do culto, através dos quais o pentecostalismo desenha sua presença nos quadros
sociais. Na ação de louvar e expressar sua devoção nos cultos, o pentecostal se abre à ação
direta do Espírito Santo.

Eu não perco o controle. Eu sou controlado pelo Espírito Santo. Quando Ele tá me encheno
de alegria, Tá encheno, vem a certeza deque, eu creio, que muitas barreiras cai. Muitas
barreiras espirituais cai. Barreiras, lutas, obstáculos do dia a dia. Isso cai tudo por terra.
Problemas, tudo cai256.

Esse abrir-se ao outro, na experiência pentecostal, não diz respeito ao fenômeno da


possessão, no sentido ser dominado pela divindade, perdendo a consciência; antes, a
experiência de êxtase no pentecostalismo como um estado de plena consciência associado a
sensações de alegria e encanto,/admiração (MAUÉS, 2003)257, reflete uma dinâmica de
intercâmbio comunicacional: o ato de deixar-se inundar pelo sagrado comunica ao mesmo a
predisposição a recebê-lo258; a inspiração enquanto ação direta do sagrado sobre o crente é

254
Trata-se da Igreja Evangélica Preparatória, igreja que pode ser classificada como deuteropentecostal
(MARIANO, 1999), fundada em Minas Gerais no final dos anos 1980 por um ex-evangelista da Assembleia de
Deus. O objeto de minha pesquisa de mestrado é justamente a análise de alguns elementos simbólicos que
estabelecem a relação entre a performance gestual e os corinhos de fogo.
255
Irmão Leandro.
256
Irmão Leandro.
257
No referido artigo há interessantes abordagens sobre as experiências de êxtase, transe e possessão, sob a
perspectiva de Marion Aubrée.
258
A teologia pentecostal reconhece, da mesma forma que o cristianismo em geral, a onisciência como um dos
atributos de Deus (SOARES, 2008, p. 69). Neste sentido, não há contradição em afirmar que o crente
“comunica” a Deus que este pode se manifestar, sendo que a divindade tem conhecimento pleno da consciência
do crente. Antes, a oração significa diálogo com o transcendente, meio através do qual se efetivam várias tipos
de informação, quer restritamente intelectivas, quer por vias mais sensitivas, na sensibilidade carismática, por
exemplo.

365
uma resposta da divindade que, suscitando no fiel a alegria da presença divina, comunica a
aceitação, o também “recebimento” daquela ação de louvar. O culto pentecostal é uma festa
porquanto o personagem central da estrutura mitológica convida aos crentes para compô-la,
alegrando-se com Ele, o anfitrião ubíquo que faz de qualquer espaço – incluindo aí o território
da experiência sensível do fiel – o templo para tal celebração.

(...) Nós somos o templo do Espírito Santo, o Espírito Santo habita em nós, tá escrito na
palavra de Deus isso (...) Ele habita em nós, entendeu? Ele habita em nós, Ele nos enche
com a glória dEle, como a presença dEle. Eu já senti vontade de pular, de gritar (dar
‘glórias’, falar em línguas estranhas) em casa mesmo, sozinho259

Uma vez fazendo parte de uma cultura, os símbolos são expressos quer pela língua,
pelas crenças, pelos costumes, quer pela arte; todavia não se limitam a tais pontos, já que
o “espírito ‘próprio’ a cada cultura influi sobre o comportamento dos indivíduos” (CUCHE,
2002, p. 45). E não é difícil observar em volta e encontrar, nas diversas modalidades de culto
– das tradicionais às alternativas, em todas as sociedades – a presença do passado no
presente, quadros em que os elementos simbólicos religiosos “objetivam” a realidade das
crenças nas ações rituais.

Os rituais encenam a crença no palco da atualidade, reatualizando a história da origem. Eles


sacralizam o espaço, lembra Eliade (2008). Rituais são manifestações simbólicas. E “os ritos
falam entre si", como observava C. Lévi-Strauss para os mitos, e “constroem uma música e
um enredo de interpretação da experiência humana em perspectiva religiosa; um concerto
cultural que teve uma enorme importância no passado e continua tendo no presente”
(TERRIN, 2004, p. 284).

Em cada espaço e tempo, os ritos parecem assumir a moldura cultural de seu contexto. E
em sua heterogeneidade, cada rito particular regula o conteúdo simbólico de forma a
preservar a substância de seus efeitos, quer dizer, a manter sua característica de regulador de
ethos e de visão de mundo. Como se dá essa regulação de mecanismos simbólicos? Como
podem comportamentos, inspirações e tendências seguirem a cadência ideológica dos
símbolos religiosos organizados? Pode a estrutura simbólico-religiosa, além de atuar na
produção de sentido, estabelecer pontes entre o mundo objetivo e o universo das
representações? De fato, trata-se de perguntas que trazem consigo outros questionamentos,
imbricados nas inúmeras possibilidades de respostas. Portanto, mostra-se óbvia a necessidade

259
Irmão Paulo.

366
de limitar a presente reflexão a uma cultura em particular, a um grupo social, a uma ‘classe
simbólica individual’, no sentido de buscar uma [embora vaga] interpretação das relações
estabelecidas entre os símbolos e o sentido por eles produzido no campo confessional da
religiosidade.

Em se tratando do campo religioso brasileiro, há que considerar a grande complexidade que


define um espaço de credos por onde transitam elementos simbólicos altamente sincretizados,
por via de uma pluralidade religiosa que afugenta qualquer possibilidade de analisar uma
religião em particular desconsiderando sua relação com outras formas de manifestação
religiosa, como já observaram Camurça (2009), Prandi (2007), Sanchis (1994) e outros.
Mesmo na delimitação de um credo em particular, há de ser especificado ainda que
‘fração’ desse culto vai ser analisada.

Entre as várias estruturas simbólicas recorrentes no culto pentecostal – e também


protestante, sabe-se da importância conferida à música (MENDONÇA, 1995;1999;2008).
Pois, quando a experiência religiosa é conduzida pela música, “que coloca o fiel em
comunhão imediata com Deus” (1999, p. 81), pode-se perceber a capacidade que esse signos
estético-acústicos têm de apresentar (e representar), eficientemente, a grade miológica que
sustenta o sistema de crenças do grupo.

O corinho e a palavra é como se fosse um vento soprano, fuuu!!!, uma fogueira pra ela
acender. Cê num abana uma fugueira pra ela ‘cender? Assim é o corinho e a palavra. Cê
num rega uma pranta pr’ela crecê? Assim é a palavra e o corinho 260.

Nos variados ‘cultos pentecostais’, pode-se observar que elementos performáticos de vários
níveis se entabulam, concatenando, ao fim das contas, uma ordem em meio à
heterogeneidade ritualística. Associadas aos sermões, testemunhos de fiéis e às demais
manifestações anárquicas do culto (CORTEN, 1996), as realizações musicais do culto
pentecostal se particularizam por conta dos agregados da produção sígnica deste grupo
religioso, a saber, a ação [e reatualização] do mito na e através da narrativa das canções,
especificamente nos chamados “corinhos de fogo”.

Esse tipo de canção, popular nos segmentos pentecostais chamados de “pentecostalismo


autônomo” (BITTENCOURT,1994) (e também em outros movimentos pentecostais, daí a
dificuldade de afirmações terminológicas categóricas), revela um intenso processo de inter-

260
Irmão Leandro.

367
relação simbólico-dialógica com outros universos religiosos, particularmente o culto afro.
Vale lembrar Prandi (2005), ao destacar a importância conferida ao elemento ‘música’ no
candomblé. Naquela religião, a música não representa simplesmente um “consumo estético
para a fruição de sentimentos e emoções” (p. 179); antes, trata-se de um instrumento de culto
e de identidade com o mundo espiritual. Ora, as louvações, glossolalias e expressões
gestuais no culto pentecostal – inclusive durante as músicas, são, da mesma forma, bens
simbólicos instrumentalizados a serviço de Deus, signos de manifestação pública das
intenções religiosas, manifestações fortemente pronunciadas no corpo dos crentes,
deslocando-os, ritual e dialeticamente, do espaço profano ao sagrado, sacralizando o profano
na ação sagrada de ser “vaso nas mãos do oleiro”, instrumento de Deus.

Considerações finais

Ao afirmar que “sob o símbolo, é preciso atingir a realidade que representa e que lhe dá sua
significação verdadeira”, Émile Durkheim pontuava uma questão que emergiria para
todo sempre na observação dos fenômenos religiosos (2008, p. 30). Porque entre o sentido e
o símbolo ocorrem processos contínuos de articulação de códigos e informações que
conformam a realidade existencial à lógica dos mitos (GEERTZ, 2008). E para além do
interpretante individual, há o sistema de crenças que reúne e aloja em torno de si a estrutura
simbólica que funciona como norte ideológico, conferindo sentidos de vida e existência no
mundo objetivo.

Dessa forma, o universo simbólico [religioso] confere sentido aos fenômenos que
documentam os acontecimentos de um grupo; o r a , a dinâmica da própria vida é regida
pelos padrões da verdade mitológica, e o espaço onde vivem as crenças é o espaço
sagrado, onde os mitos se reatualizam (ELIADE, 2008). E se reatualizam em várias
instâncias da sensibilidade, através dos sentidos. Um exemplo está nas visões e revelações,
manifestações carismáticas ancoradas na leitura pentecostal das narrativas bíblicas.

Logo, as expressões performáticas, para além de elementos rituais, são linguagens que
transcrevem a crença. Nascida nos mitos, ela viaja na diacronia da história através da
reescrita continua da cultura. A religião é um texto na cultura, destaca Nogueira (2012). O
culto é um texto na religião. As músicas religiosas, as performances e expressões rituais são
textos no culto. Pode-se ler o texto do culto, do fenômeno. Este fenômeno acontece, é escrito

368
à nossa frente, no espaço semiótico261 por onde os signos se articulam no processo de
formação de sentido (LOTMAN, 1996). Logo as performances rituais constituem-se
materialidade do sistema de crenças, da estrutura simbólico-mitológica do grupo. É a
comunicação que torna o diálogo possível. Que torna o conhecimento possível. Que
torna a religião possível. Promover a leitura do texto cultural-religioso, por via de seus
constituintes cênicos e a análise “ interpretativa” dos veículos de linguagem e expressão do
grupo é [também] uma forma de ler tais expressões, entendendo (ou pelo menos tentando
entender) o sentido nelas encerrado.

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261
Esse espaço semiótico diz respeito à semiosfera, termo cunhado pelo semioticista estoniano Júri Lotman
(1990;1996), fundador da Semiótica da Cultura (É Segundo Lotman, é unicamente através deste espaço, a
semiosfera, que se dão as relações simbólicas entre os signos). Vide SCHNAIDERMAN, 2010 e MACHADO,
2007. Observar características semióticas das experiências carismáticas, aqui, é justamente a tentativa de “uma
etnografia dos veículos que transmitem significados” (GEERTZ, 2012, p. 122).

369
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373
374
Vadeia dois dois, vadeia no mar,
A casa é sua dois dois, quero ver dois dois vadear
Francy Eide Nunes Leal1

Introdução

Neste artigo considero a religiosidade como fator fundamental da realidade social que pode
desvelar as sócio-dinâmicas da comunidade quilombola Terra Dura, situada no interior do
Território Negro da Jahyba às margens do rio Verde Grande no município de São João da
Ponte. A religião vivenciada individual e coletivamente pela interação com os pares e com os
membros dos grupos sociais da circunvizinhaça, resulta da articulação entre o catolicismo
popular e a umbanda. E a religiosidade é vivida por meio de um conjunto de ritos em que há o
manuseio de símbolos sustentados por crenças que dão fundamento à cosmologia dessa
comunidade. Este conjunto, de práticas rituais, símbolos e códigos de conduta possibilitam o
ajustamento dos comportamentos nas relações sociais vividas no interior da comunidade e
com as circunvizinhanças. A gramática social desse grupo é transmitida no cerne da família
pela oralidade e pelas práticas corporais, conhecimentos, crenças e valores, que são
incorporados pelos homens, mulheres e crianças de Terra Dura em seus processos de
socialização. No ato de celebrarem seus Guias espirituais e santos protetores essa comunidade
negra se recria e se reafirma em suas relações intercomunitárias.

Terra Dura é uma comunidade quilombola situada no limite do município de São João da
Ponte com o município de Janaúba, no norte de Minas, é composta por dezoito famílias e um
total de setenta membros entre mulheres, homens e crianças. Localizada às margens do rio
Verde Grande, a comunidade é circundada pelas comunidades, também negras, Barra, Sete
Ladeira e Nativos – atualmente chamada de Bela Vista – e pela comunidade de brancos,
Manicós. Saliento que a coletividade se autorreconheceu como comunidade remanescente de
quilombo em consonância com o disposto constitucional, foi “certificada” pela Fundação
Cultural Palmares como tal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária já deu
partida para o processo de regularização fundiária.

Na comunidade focalizada neste trabalho a religiosidade foi construída pela articulação de


crenças e ritos vinculados ao catolicismo popular e à umbanda, propiciando a cada um de seus

1
Mestranda em Antropologia Social pela UFG, bolsista Capes. Contato: francyeide@hotmail.com.

375
membros e das comunidades que a circundam vivenciar ricos processos rituais que são
sustentados por um conjunto diversificado de símbolos e de códigos religiosos e de conduta
social. Este conjunto possibilita o ajustamento dos comportamentos nas relações sociais
vividas no interior da comunidade e com as circunvizinhanças. Considero com Geertz que;

O objetivo do estudo sistemático da religião é, ou pelo menos deveria ser, não só a


descrição de ideias, de atos e de instituições, mas determinar como e de que maneira ideias,
atos e instituições particulares sustentam, deixam de sustentar ou até mesmo inibem a fé
religiosa, isto é, a firme adesão a alguma concepção supra temporal da realidade (GEERTZ,
2004, p. 16).

Sendo assim, em meu processo de pesquisa procurei me aproximar do arcabouço desses


aspectos para construir minha compreensão das crenças e das praticas religiosas, vinculadas a
Guias espirituais, e que são vividas individual e coletivamente pelos homens, mulheres e
crianças em Terra Dura.

Para realizar o entendimento da cosmologia que sustenta a religiosidade local tomo os


símbolos rituais como vetores da ação social, conforme proposição teórico-metodológica de
Turner (2005). Em seus estudos sobre os rituais Ndembu, este autor considera que o símbolo
constitui-se a menor unidade do ritual e procurou compreender, por meio da simbologia
presente, os processos sociais vividos nessa sociedade africana. Em sua concepção, o símbolo
é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades específicas do comportamento
ritual; é a unidade última específica em um contexto ritual (TURNER, 2005, p. 49).

Em Terra Dura, múltiplos símbolos são manuseados nos rituais religiosos e são lidos por mim
para compreender a religiosidade vivida localmente pelos indivíduos e pela coletividade, seja
no domínio propriamente religioso ou no domínio mundano porque os significados dos
símbolos deslizam para os processos sociais que afetam as relações dessa população negra
com o mundo que a cerca.

Iluminada por estes dois antropólogos procuro refletir sobre a religião como fenômeno
fundamental para entender os processos sociais vivenciados em Terra Dura, que faz da
coletividade e de cada indivíduo um sujeito quilombola.

376
Caminhos metodológicos

Partindo do pressuposto que a abordagem da realidade sócio-cultural de uma unidade social


negra norte mineira deve ocorrer por meio da articulação entre o método historicamente
desenvolvido para estudos antropológicos, que é o de trabalho de campo com deslocamento
do pesquisador para junto do grupo em que pretende estudar alguma coisa, pois como disse
Geertz (1989), na antropologia não se estuda uma aldeia, mas em uma aldeia. E em Terra
Dura procurei apreender e compreender sua realidade social, considerando a cultura vivida e a
identidade construída nas relações sociais por meio da religiosidade que homens, mulheres e
crianças vivenciam.

Ciclo religioso de Cosme e Damião

A antropologia se dedicou desde o seu inicio a compreender os momentos extraordinários da


vida de grupos e de povos tradicionais por ocorrerem diversas dinâmicas em suas realizações
e que propiciou a Mauss (2003) construir o conceito teórico-metodológico de fato social total.
Esses momentos, tratados como rituais, passaram a ser considerados como momentos chave
para a compreensão de uma sociedade nela mesma, pela possibilidade de apreensão de uma
dada realidade social em decorrência da condensação de todas as dinâmicas ocorrentes. Essas
dinâmicas são vinculadas a questões religiosas, políticas, dentre outras. Dedicar-me-ei a um
desses momentos extraordinários na vida da comunidade Terra Dura, o Ciclo de Festas a
Cosme e Damião para apreender a religiosidade experienciada pelos membros desta
coletividade de fiéis.

Neste trabalho procuro apresentar os eventos presenciados por mim quando fui a campo em
Janeiro de 2011 e setembro de 2011 e que constituem o ciclo festivo de Cosme e Damião.
Parafraseando Turner (2005), vejo o ritual como um sistema de significados composto de uma
multiplicidade de festas e eventos religiosos que ocorrem durante o ano. A vivência da
religião nessa comunidade é marcada pelo culto aos santos no qual é realizado o pagamento
de promessas.

377
O Terço a Cosme e Damião

As celebrações do terço a Cosme e Damião iniciaram com a construção do templo espiritivo


há vinte e oito anos e desde o principio é realizada a reza do terço todo dia quinze de cada
mês, como determinado pelos Guias. Essa mesma determinação definiu a celebração da Festa
em setembro de cada ano.

Qualquer religião ou culto religioso para Radcliffe Brown (1989) implica um conjunto de
ideias ou crenças e obrigações. Estas podem ser positivas ou negativas e em suas
concretizações os fiéis podem realizá-las ou delas se absterem. A esse conjunto de ações e
abstenções o autor nomeia como rito.

Para a interpretação do contexto do simbolismo de um sistema religioso Geertz (2004),


considera que

embora não o único, em que os símbolos religiosos operam para criar e sustentar a crença é
evidentemente o ritual (...) Para a esmagadora maioria dos que aderem a religião em
qualquer população, contudo, o engajamento em alguma forma de tráfico ritualizado com
símbolos sagrados é o principal mecanismo por meio do qual eles chegam não só a
encontrar uma visão de mundo, mas, na realidade, a adotá-la, internalizá-la como parte de
sua personalidade (2004, p. 107).

Em sua teorização sobre os símbolos rituais, Turner (2005) distingue os mesmos em duas
categorias, a primeira, os “símbolos dominantes” - que tendem a ser fins em si mesmo – e a
segunda – os “símbolos instrumentais” – que são os elementos variáveis que servem de meios
para fins implícitos ou explícitos de um dado ritual.

Considerarei no ciclo de Cosme e Damião que a cosmologia do terço é os símbolos


instrumentais operados pela comunidade religiosa de Terra Dura e que o símbolo dominante é
a incorporação dos Guias espirituais. Vejo isto porque compreendo que todos os demais
símbolos manuseados caminham para o ápice, que é a possessão pelos os Guias.

A ritualização do terço acontece em duas etapas, a limpeza da igreja, que consiste no


momento de purificação do ambiente, e a celebração do terço, que serão descritos a seguir.

378
Purificando o templo

O processo de purificação da igreja acontece no dia anterior à celebração do terço e é


realizado pelos médiuns Senhor Benjamim, Dona Bernarda, Nildinha e Rosa. Dona Zefa, a
principal agente do sagrado é impedida de participar deste momento ritual, em decorrência
das forças que são expulsas do espaço sagrado, que podem enfraquecê-la. Se isto ocorrer, ela
não poderá coordenar a celebração do terço propriamente dita. Quando estive em campo
presenciei um momento desses e percebi que há uma serie de restrições de quem pode fazer,
como e o que realizar. O principal requisito para realizar a limpeza da igreja é ter passado
pelo processo de iniciação como filho de santo, ou seja, ser limpo e batizado e freqüente as
celebrações religiosas.

A agente do Sagrado não participa do processo de purificação, dado ela ser proibida de
participar, pois no momento de incorporação dos Guias seu corpo é utilizado como aparelho
para ação dos mesmos. Nem se aproxima da igreja no momento de purificação, pois seu corpo
material não suporta tanta força, tanta energia negativa que é colocada para fora do templo e
pode adoecer se tiver contato com as mesmas.

Debulhando o rosário

A preparação para o terço começa cedo, a Dona Zefa acorda por volta de cinco horas da
manhã e prepara o café. Junto com sua família cuida dos animais e da horta para em seguida
dar faxina em sua casa, pois a noite terá muitas visitas de gente da redondeza como Sete
Ladeiras, Manicó e Nativos. Em Terra Dura, e creio que em toda comunidade negra rural, o
zelo, a higiene e o cuidado com a casa significam status e simbolizam a presença feminina na
família. Quando é dia de comemoração ou quando acontece a gira, ou batuque religioso,
algumas mulheres, principalmente Dona Zefa, fazem biscoitos, bolos, roscas, chá e café, para
oferecer às visitas. A alimentação das pessoas é importante, pois o ritual se estende até a
madrugada e não tem previsão de término.

Para um batuqueiro alimentar visitas é obrigação religiosa e regra de interação importante


para o grupo, dado que a comida tem papel fundamental por agrupar as pessoas em torno da
religião e, por extensão, propiciam o convívio cotidiano. Os membros de um grupo religioso

379
afro-brasileiro se reúnem com frequência para tomar um cafezinho, comer um doce, etc,
conforme discutido por Pólvora (2001).

A agente do Sagrado dá inicio à celebração rezando o ato penitencial, enquanto


simultaneamente acende quatorze velas para dar sustentação à sua mesa. Essas velas são parte
do processo ritual que desencadeia a visita dos Guias e a quantidade, de acordo com a
simbologia numérica dos orixás, corresponde a Cosme e Damião que é vinculado ao número
sete. E sendo gêmeos todas as oferendas a eles tem que ser em dobro. Após acender as velas a
Mãe de Santo toca por três vezes o adijá, ou seja, que em Terra Dura é uma campainha feita
de metal com um cristal pendurado no centro. O adijá ao ser balançado faz o cristal tocar no
metal e emitir uma sonoridade suave. Com isto é enunciada a abertura e o fechamento do
ritual, dado que é considerada uma forma de Deus ouvir o seu pedido,quando toca, faz um
pedido, como fui informada por Dona Zefa.

Vestida de branco e com o terço na mão a Mãe de Santo senta ao lado da mesa, separada das
demais pessoas. Nesse momento prepara-se tanto corporal como espiritualmente para a
incorporação, ou seja, o ápice da celebração. Quem reza todo o terço são suas médiuns,
geralmente as gêmeas Luciana e Luciamar, que possuem essa obrigação com os Guias.

Nildinha, com o incenso, purifica o ambiente, as mulheres e crianças rezam a Salve Rainha.
Mulheres e crianças se organizam nos bancos e alguns dispersos pelo chão. As mães que tem
filhos pequenos levam lençóis ou lonas, para acomodar as crianças quando adormecerem. Os
homens casados se organizam do lado de fora do templo, sentados em cadeiras ou de cócoras
e passam todo o evento em conversas diversas, adentram na igreja somente para receber a
benção dos Guias espirituais. Os rapazes e os meninos permanecem em alguns momentos no
interior da igreja. Somente o Senhor Benjamim, por ser médium e mesário, permanece todo o
tempo dentro do templo.

O terço é iniciando por um ato penitencial em que se pede a remissão dos pecados. Em
seguida reza-se o Credo quando se afirma a crença na Santíssima Trindade, um Pai Nosso e
uma Ave Maria. Após esse momento inicial são rezadas as cinco dezenas de ave-marias
intercaladas por um Pai Nosso. Ao final a Salve Rainha e a Ladainha de Nossa Senhora são
cantadas, assim como três ou cinco benditos, que são cantigas religiosas. Para rezar o terço as
mulheres manuseiam o catecismo da igreja católica, que é um livro onde se encontra a
estrutura do terço, diversas orações e cânticos, Cada uma possui o seu próprio livro que é

380
adquirido em Bom Jesus da Lapa quando, em setembro, fazem romaria a este importante
centro de peregrinação no sertão brasileiro.

Terminado os benditos Nildinha acende duas velas lado a lado, uma vermelha e outra
amarela, que simbolizam Cosme e Damião. Cada orixá possui cor própria. As velas
representam junto com o tocar do adijá , os panos e as guias2, ou seja, colares feitos de contas
com cores diferenciadas, o portal que liga as entidades ao mundo humano. Ao mesmo tempo,
a vela representa a luz necessária para dar força e sustento ao ato religioso.

Em seus estudos sobre os rituais Ndembu, Turner (2005) informa que símbolo é algo
encarado pelo consenso geral como tipicamente ou representando ou lembrando algo através
da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou pensamentos. Assim,
as velas, os panos, as guias, os incensos e o tocar do adijá possuem para os membros da
coletividade são associados aos orixás que os protegem e que são invocados durante os cultos
religiosos.

Na perspectiva deste autor, já informado anteriormente, vejo que os mesmos constituem-se


símbolos instrumentais que são manuseados para criar condições para a incorporação do Guia
espiritual na Mãe de Santo e que considero o símbolo sênior ou dominante.

Ajoelhados em frente ao altar, a Mãe de Santo começa a ofertar e arrematar o terço


oferecendo aos Guias um Pai Nosso e uma Ave Maria. Em coro toda a comunidade em
assembleia reza com muita devoção e a agente do sagrado faz orações espontâneas ofertando
as suas preces aos orixás, como se segue:

Rezamos tanto um Pai Nosso como uma Ave Maria em intenção de todos os santos do céu
e da terra, as imagens que no presente altar, os santos de nossa guarda de cada um de nós
que está aqui presente. Pedimos a Nossa Senhora Aparecida o socorro e que tende
compaixão em vossa piedade de nós. O socorro a todas as crianças nossas, livra-nos do
perigo e do castigo, do inimigo, da violência, livra-nos dos assassinos, dos males
contagiosos, das doenças ruins. Peço a vós, Nossa Senhora Aparecida, que nos cubra com
saúde com o seu manto divino, hoje, por amor e amanhã, por todos os santos dias. Que vós
há de nos abençoar, nos socorrer e nos defender. Que nunca vai chegar meu Deus, a
tempestade, vós há de nos arrebater. Nossa mãe Maria e também Nossa Senhora da Guia,
Nossa Senhora do Desterro, Nossa senhora do Perpetuo Socorro e Todos os Santos e Santas

2
Informo ao leitor que utilizo a grafia g minúscula quando me referir aos colares de contas que representam o
orixá e com g maiúsculo quando se refere ao próprio orixá ou Guia Espiritual.

381
que estão presentes em teu altar, Menino Jesus de Praga e Divino Espírito Santo (Dona
Zefa, Terra Dura em 2011).

Vejo no oferecimento às imagens no altar como um legado do catolicismo popular que, na


perspectiva discutida por Queiróz (1973), para quem o santo é a um tempo natural e
sobrenatural pela imagem modelada em argila ou talhada em madeira [e sendo] humano sua
imagem torna-o inteiramente presente no desenrolar da existência do grupo” (QUEIRÓZ,
1973, p. 73).

Após o oferecimento e a reza do Pai Nosso e da Ave Maria, assembleia repete o ato e, assim,
é aberta a segunda etapa da oferenda.

Humildemente, meu Jesus, oferecemos esses dois Pai Nossos e essas Ave Marias, Santa
Marias e esse terço que nós rezamos em intenção de Nossa Senhora Aparecida, São José,
Menino Jesus de Praga, São Cosme e Damião, Senhora do Desterro, Senhora do Perpetuo
Socorro, Santo Expedito que é o santo das nossas causas urgentes, Senhor Coroado, São
Roque e Senhora dos Livramentos, Santa Joana D’Arc, Santa Terezinha, Nossa Senhora
das Cabeças, Senhora do Varre Tudo, que varre todos os males, todas as dificuldades.
Combate a mortandade, livrai–nos todos do inimigo e das tentações, conforta nossos anjos
e santas almas. Por todo santo dia que chamamos por vós, hoje, agora e amanhã, por todo
dia. Socorre as crianças e todos nós pecadores. Perdoai nossos pecados pelo amor de Deus.
Varre pela minha vida Deus [todo o mal]. Tem compaixão de nós aqui presentes, aqui no
altar, tem compaixão, perdoa-nos. Pelas famílias que estão chorando, tende compaixão,
não deixe cair [uma tempestade eminente], que nós estamos aqui com o coração doendo
pedindo a vós não deixe cair aqui pelo amor de deus. Tenha compaixão dos vossos filhos e
eu peço com o coração aberto, com minha fé viva, seja por mim, por minha família, por
essa romaria que aqui está presente, cada um de nós presentes tanto eu como minha família,
como eles também sobre todos nossos parentes que estão aqui fora, derrama a santa benção
do poder, do milagre e do sustento nesse beneficio que eu peço a vós. Perdão, todos nós
somos pecadores oh Deus, sempre nós temos que sofrer, mas nós temos que lutar. Nossa
mãe Maria valei-me, tenha compaixão de nós, nunca deixe nós sofrer meu Deus. Socorre-
nos meu Deus. Recebe esses Pai Nossos com essas Ave Marias, esse terço que nós
rezamos, esse pedido que nós estamos fazendo, se tiver bem feito, rezado e oferecido vós
aceitai, se não tiver rezado e oferecido o senhor há de perdoar , se nós não souber rezar e o
oferecer meu Deus, meu senhor Jesus cristo e a Virgem Santíssima mãe do meu senhor...
(Dona Zefa, Terra Dura, em 2011).

Importante salientar a enunciação de santos do catolicismo e da religiosidade afro-brasileira,


tanto na oração acima transcrita integralmente quando no momento que separa o ofertar do
arrematar é a enunciação de preces que são respondidas como um rogai por nós proferidos

382
por todos em resposta à Mãe de Santo. Esta fala o nome dos santos da sua mesa e cada nome
os romeiros respondem: rogai por nós. No arrematar é o momento que a Mãe de santo pede
benção e proteção para si aos seus Guias que irá incorporar.

Dai sustento e dai firmeza, proteção! Com as forças do Santo Poder, força de milagre, eu
me entrego na mão de vós. Nos socorre! Nos defenda! Minha guia me proteja, me ajude
minha mãe Aparecida vencer minha batalha que eu sempre peço todo santo dia. Por Deus e
a Virgem Maria que cada um de nós seja protegido, varrido e defendido do mau e do
perigo, do castigo, do mal contagioso, das tragédias, das travessas, da violência, peço a vós.
Esses passos que nós damos vós estais na nossa guia, nossa companhia tanto à noite como
no dia que eu peço (Dona Zefa, Terra Dura, 2011).

Na religiosidade batuqueira, os agentes do sagrado cedem seus corpos para os Guias


espirituais vinculados à cosmologia afro-brasileira. Neste momento denominado de possessão,
incorporação ou ocupação é importante focalizar a representação corporal por ela ser, na
maioria das vezes, um importante símbolo para os fundamentos batuqueiros. A Mãe de Santo,
no caso Dona Zefa, cede seu corpo para que uma divindade o ocupe e se manifeste no mundo
dos humanos.

Ao finalizar o arremate com a seguinte frase, esses passos que nós damos vós estais na nossa
guia, nossa companhia tanto à noite como no dia que eu peço (Dona Zefa, 2011). Ao terminar
de pronunciar as palavras grifadas o seu corpo é tomado por uma expressão forte, com
movimentos trêmulos, a face se cerra, uma voz forte e pausada toma conta dos lábios da
possuída. Neste momento ele torna-se um “aparelho” para que um Guia espiritual possa
estabelecer relações com a comunidade religiosa. Vestidos de brancos, os assistentes da Mãe
de Santo dão amparo ao seu corpo e a vestem com uma túnica, também branca, que somente é
utilizada quando o Guia se manifesta. Importante salientar que o aparelho não tem
conhecimento de como está vestido.

O Guia que abre a corrente geralmente é o Arcanjo Gabriel, mas quando presenciei a
incorporação Cosme e Damião foram eles que iniciaram a mesa. Chegam alegres, saudando
seus romeiros e cantando. Após todo o frenesi, eles começam a falar para seus adeptos, como
uma pregação em que, pelo poder de coerção e com autoridade chamam a atenção das
pessoas. Os Guias, então, relatam que as tragédias e as catástrofes que estavam ocorrendo no
mundo eram por falta de oração. Informa, cobrando, que as pessoas da comunidade andassem
com o rosário junto a eles sempre rezando para evitar catástrofes naturais que poderiam
atingir Terra Dura. Importante salientar o respeito que os membros da comunidade religiosa

383
têm para com as palavras dos seus Guias Espirituais. No dia seguinte as pessoas portavam
rosários em seus pescoços, sejam crianças, idosos e, até mesmo, um recém–nascido, todos
temendo o castigo divino. Para essa gente, há em sua memória uma historia de sofrimento
com as enchentes do rio Verde Grande em que a água levou casas, derrubou plantações,
matou animais e deixou muitos desabrigados.

Terminada a preleção de Cosme e Damião, é organizada frente a ele uma fila para que eles,
com um frasco de perfume em mão, façam o sinal da cruz com o líquido vinculado a sua
sacralidade em seus adeptos. Ao mesmo tempo eles cantam diversas canções. Como a voz dos
mesmos nesse momento é muito gutural não consegui apreender os conteúdos que são
enunciados.

O batuque religioso

No Ciclo de Cosme e Damião, o batuque religioso constitui-se como um momento de festa


entre os romeiros e divindades, o que propicia construir uma relação mais próxima e densa, na
qual a divindade e seu povo reafirmam pactos e celebram a si mesmos. Essa tradição é
transmitida oral e corporalmente, dado que o processo de iniciação começa cedo, com a
participação das crianças, desde que nascem, nos rituais realizados na comunidade de Terra
Dura. As crianças possuem uma consideração imensa pelos Guias, pois são respeitados pela
família e pela comunidade e aos poucos vão incorporando os valores que são transmitidos
oralmente pela família e que é reafirmado quando chegam à fase adulta.

Em uma das minhas idas a campo presenciei uma gira, como em Terra Dura é denominado o
batuque religioso. Na cosmologia religiosa afro-brasileira a gira é o momento onde os orixás
incorporam na Mãe de Santo e ou nos Filhos de Santo que tem permissão para incorporá-los.
As pessoas, todas vestidas de branco batem palmas e se movimentam com passos que
lembram a dança do samba, com vai e vem dos quadris evidenciando um caráter de
sensualidade das pessoas. Nesta comunidade negra às margens do rio Verde Grande, a dança
é localmente denominada Lundu.

Nesse momento do ritual, ou seja, do batuque ou da gira como querem os membros da


comunidade, a Mãe de Santo veste uma saia branca rendada e uma blusa de algodão. E na
ciranda em movimento as mulheres entoam pontos que são cantos para invocar os orixás,

384
ocorre, então, a incorporação e começam a haver rodopios pelo salão e o tambor começa a ser
tocado quando a agente do sagrado entra na roda e começa a cantar. As batidas do tambor são
fortes, viscerais, produzindo um frenesi em quem ouve e estimulando o corpo a se
movimentar. Musicalidade e movimentos corporais é um binômio inseparável nesse ritual.

Os Filhos de Santo entoam cânticos de invocação aos Guias. Essas canções e suas melodias
são vinculadas a cada um dos Guias, com suas especificidades. As letras exaltam as
características de cada um e o toque do tambor propicia movimentação de corpo conforme as
características do Guia incorporado.

A Mãe de Santo começa a cantar:

Chegou crispim,

Crispim Crispiniano,

Chegou no terreiro

Chegou vadiando

(várias repetições)

E, então, Crispim e Crispiniano que são Guias gêmeos e crianças, incorporam trazendo suas
características que é a brincadeira excessiva e a malinesa. O toque do tambor faz com que o
passo na gira da roda seja saltitante parecendo uma criança sapeca a correr pelo terreiro, é um
saltito suave. O Crispim, então se arrasta no chão como uma criança e traz na face um sorriso
sapeca.

O corpo de Dona Zefa, que é uma senhora de cinqüenta e sete anos, se comporta como uma
criança de sete a oito anos. Essa transformação ocorre porque ela cede seu corpo como
aparelho para a incorporação do Guia espiritual. Ao ser possuído por seu orixá, o Filho de
Santo tem seu corpo alterado em sua totalidade, não, apenas, na postura corporal, mas
também e muito em sua expressão facial. É no rosto que ocorre a primeira modificação visível
quando da ocupação por um orixá em seu Filho de Santo.

Na incorporação de Guias durante a realização do batuque religioso, além dos movimentos


corporais vinculados a cada um há uma coreografia própria, individual e específica que, vista
de longe por algum membro da comunidade religiosa, este saberá quem está no giro da roda.

385
Em seguida a Cabocla Jurema possui seu aparelho e com a guia verde e branca na mão
intercala momento curvado para baixo com as mãos encobrindo o rosto, com momentos em
que em pé e com os braços abertos ela se mostra em sua sensualidade. Seu rosto traz os olhos
fechado e com a cabeça faz movimentos de negação. Assume uma fisionomia seria mesclada
com um gingado sensual. Sua principal característica é a sedução e a exaltação da sexualidade
e canta com acompanhamento de todos os presentes, com sua voz doce e amigável:

Seu Juremeu matou um pássaro de pena,

Seu Juremeu matou um pássaro de pena,

Eh!Eh! É na passada da Jurema!

Eh!Eh! É na passada da Jurema!

(várias repetições)

Caboclinho da Jurema,

Eta! vem vê!

Venha cá meus caboclos.

Eta! vem vê!

venha cá meus caboclo

Eta! vem vê!

(várias repetições)

Há Guias espirituais que incorporam no exato momento em que um se despede do seu


aparelho e é percebido pela sua passada ou sua fisionomia que muda imediatamente. Ao
mesmo tempo em que um ponto a ele vinculado começa a ser cantado pelo incorporado. A
postura corporal do possuído vai variar de acordo com a entidade que se manifesta e nas
imagens materiais que representa. Presenciei a transição da Cabocla Jurema para o Caboclo
da Fita Vermelha, demorei perceber a troca que ela tinha ido embora e que ele havia chegado.
Como não domino a gramática corporal dos Guias espirituais que orientam os membros da
coletividade religiosa de Terra Dura, só fui tomar ciência depois de algum tempo, mas para os
iniciados que se construíram como sujeitos de religiosidade afro-brasileira e que aprenderam
pela oralidade e pela observação perceberam imediatamente a troca de Guias. Em seu canto
ele diz:

386
Chamei! Chamei! Chamei!

Chamei na minha aldeia!

Chamei caboclo velho,

Caboclo da Fita Vermelha.

(várias repetições)

O caboclo da Fita Vermelha no momento da incorporação faz movimentos com os braços


como um maestro que dirige uma orquestra. Ele abre e fecha os braços. Havendo frenesi ele
salta com os braços para cima, com movimentos fortes e marcados agitando a cabeça para
frente e para trás. Curvado impõe os braços firmes e cruzados sobre o rosto, ele se movimenta
para frente e para trás. Muitas vezes com os braços abertos e punhos cerrados movimenta o
corpo de forma tremula. Os acessórios que o Caboclo da Fita vermelha utiliza é uma Fita de
cetim cumprida e estreita na tonalidade vermelha. O Guia segura cada extremidade do
acessório, coloca nas costas e começa a rodopiar com os braços abertos. Ele estica a fita se
impondo com movimentos fortes para frente e para trás diante das pessoas. Este caboclo
reverencia a mesa, sua voz é forte lembra a voz de um homem rude de poucas palavras, sua
expressão sonora que marca a identidade é o hohohho!! Recorrentemente ele pronuncia seu
bordão em meio a outras palavras.

São nesses momentos de incorporação que Barros e Teixeira (1989) afirmam poder ser
compreendida a gramática corporal. Para eles, ela é marcada por uma variedade de códigos e
símbolos. [...] Crenças e sentimento básico na vida social dos Terreiros estão associados e são
remetidos ao corpo humano, constituindo-se um conjunto de representações que ultrapassam
as características biológicas inerentes ao ser humano (BARROS E TEIXEIRA, 1989, p.40).

Em Terra Dura para terminar a brincadeira Cosme e Damião são invocados. Eles sendo os
donos da corrente religiosa que ali girando ao som de palmas, toque do tambor e na
sensualidade do Lundu uniram-se seres divinos e humanos para festejarem a relação existente,
vêm para fechá-la. O ponto entoado é o seguinte:

Vadeia dois dois,

Vadeia no mar,

A casa é sua dois dois,

Quero ver dois dois vadear.

387
Esse orixá é muito alegre e traz consigo a felicidade estampada no rosto, sendo uma das suas
características mais relevantes o cuidado e o carinho pelas crianças. O acessório que usa para
marcar seu traço são balas distribuídas a todos. As crianças presentes ficam eufóricas e
alegres. Eles ainda sugerem que de dois a dois as pessoas se dêem as mãos, cantem e dancem
o seu ponto. Ele adora dançar com as crianças e é perceptível em seu rosto sua satisfação ao
bailar.

Para finalizar, o dono da corrente abençoa e faz o sinal da cruz com perfume em cada
romeiro. Em seguida ele pede que cantem novamente o seu ponto enquanto vai para o centro
da roda. Ele dança alguns segundos e desincorpora.

Todos os orixás que incorporaram nesse batuque pediram perfumes e incenso o que reafirma
leitura feita por Pólvora (2001) nos batuques religiosos de Porto Alegre em que a visão, o
olfato e o paladar não são só estimulados, mas intensamente exercitados na religiosidade afro-
brasileira.

Percebi na fala de todos os Guias uma crítica aos fieis, remetendo ao tempo de antes como
melhor, como a fala do Caboclo Fita Vermelha que disse que não brinca mais porque o povo
do lugar não ajuda nós. Assim ele chama a atenção dos romeiros que ficam temerosos, com
olhos arregalados e com o corpo encolhido.

Considerações finais

Neste trabalho utilizo da perspectiva etnográfica para apreender e compreender a realidade


social da comunidade Terra Dura. Para compreender a transformação ocorrida que deu um
fim à religiosidade nômade, foi necessário apreender a trajetória de vida de Dona Zefa, o
agente do sagrado local em torno do qual se organiza a vida religiosa em Terra Dura. A Mãe
de Santo descobre seu dom espiritual ainda na infância e o seu processo de desenvolvimento
espiritual é marcado por um longo período de sofrimento e de autoconhecimento em cuja
iniciação se fez Filha de Santo, ate chegar à compreensão e ao domínio do dom espiritual,
etapas fundamentais na formação de uma Mãe de Santo.

Articulando seu dom espiritual e suas obrigações religiosas, Dona Zefa instaurou um
calendário de festas e rituais religiosos na comunidade em que vive. Vale ressaltar que o
processo de construção do calendário religioso em Terra Dura não rompeu o elo dessa

388
coletividade com as outras comunidades vizinhas, mas ampliou a possibilidade de usufruto
religioso.

Esse calendário é constituído por rituais religiosos, associados a obrigações com os Guias
espirituais e pagamento de promessas aos Santos protetores.

A religiosidade nessa comunidade negra rural é marcada pela articulação de crenças e ritos
vinculados ao catolicismo popular e à umbanda, sendo sustentada por um conjunto múltiplo
de crenças, de símbolos, de códigos religiosos e de formas de conduta que propiciam a cada
membro da comunidade e dos grupos que a circundam vivenciar processos rituais, que
estabelecem as regras morais tecidas interna e externamente.

No estando lá pude perceber que as hierarquias religiosas refletem a estrutura social desse
grupo, marcado pela fé e força de mulheres e homens que buscam melhores condições de vida
para seus pares e juntos resistem subalternamente aos processos de expropriação que sofreram
e sofrem.

Para compreender a religiosidade vivida localmente, tomo os múltiplos símbolos e rituais


desenvolvidos ao longo do ano que sustentam a cosmologia desse grupo. No decorrer da
preparação dos diversos eventos que compõem esse ciclo festivo são transmitidos pela
oralidade e por práticas corporais, conhecimentos, crenças e valores, que são incorporados
pelos homens, mulheres e crianças de Terra Dura.

A religião é vista por mim como o elo mais denso que articula os membros de cada uma das
comunidades articuladas pelo Centro Espiritivo entre si e com sua circunvizinhaça. A cada
rito, a comunidade religiosa constrói a si mesma e a seus membros pela atualização de seu
modo de vida, com suas regras morais, seus pactos sociais que vincula essa coletividade
religiosa e seus membros ao mundo afro-brasileiro em sua especificidade local.

389
Referências

GEERTZ, Clifford. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na


Indonésia;tradução de Plínio Dentzien.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2004

TURNER, Victor. Os símbolos no ritual Ndembu. In: Floresta de Símbolos. Tradução de


Paulo Gabriel Hilu da R.P, Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2005, pp.
49-82.

__________. Simbolismo ritual, moralidade e estrutura social entre os Ndembu. In: Floresta
de Símbolos. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Niterói: Editora da
Universidade Federal Fluminense,2005, pp. 83-94.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3ª. Edição. Brasília: Editora da UnB, 1994, Volu
COSTA, J. B. de A. Do Tempo da Fartura dos Crioulos ao Tempo de Penúria dos Morenos.
Identidade através de Rito em Brejo dos Crioulos (MG). Brasília: Departamento de
Antropologia/UnB, 1999. (Dissertação de Mestrado).

RODRIGUES, Leila Ribeiro. A casa como um microcosmo: processos sociais nas


comunidades veredeiras de Gigante e Pé da Serra. Montes Claros: Unimontes / Ciências
Sociais, 2010 (Monografia de Graduação).

BRITTO, Jaqueline Pólvora. O corpo batuqueiro: uma expressão religiosa afro-brasileira.


ANJOS, J. C. G. dos. O corpo nos rituais de iniciação do batuque. In LEAL, O. F. (Org.).
Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2 edição. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS,
2001, pp. 123-136.

ANJOS, José Carlos Gomes dos. O corpo nos rituais de iniciação do batuque. In LEAL, O. F.
(Org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2 edição. Porto Alegre: Ed. Da
UFRGS, 2001, pp. 137-152.

390
391
GT4 – Dietrich Bonhoeffer: ética e teologia a
serviço da vida

Coordenador

Carlos Caldas
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor do IBAD.

Comentador

Ricardo Gouvea
Doutor em Teologia pelo Westminster Theological Seminary. Professor do Mackenzie.

Resumo

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), pastor luterano e teólogo alemão notabilizou-se não apenas
por sua contribuição à reflexão teológica no século XX como também por sua postura
ecumênica e sua resistência ousada e comprometida até às últimas consequências ao governo
nazista em seu país. Bonhoeffer é um dos poucos teólogos contemporâneos que é respeitado e
estudado por pessoas em todo o espectro teológico, desde círculos evangelicais conservadores
a liberais abertos, por protestantes, evangélicos, pentecostais e católicos. Bonhoeffer, sem
embargo de sua confessionalidade luterana convicta, foi ativo integrante do movimento
ecumênico protestante (que depois da guerra seria organizado como o Conselho Mundial de
Igrejas). Quanto à sua trajetória de vida, vale lembrar que se valendo de sua posição de
integrante da Abwehr, a inteligência militar alemã da época, ajudou a salvar a vida de judeus.
A radicalidade de sua atitude eventualmente o levou à morte. Daí pode-se afirmar que em
Bonhoeffer ética e teologia estão a serviço da vida. Pode-se afirmar ainda que tanto sua
reflexão teológica como sua prática de vida são exemplos de tolerância e aceitação das
diversidades religiosas.

392
Contemporaneidade e Discipulado: Interfaces entre o pensamento
do humano em Zygmunt Bauman e Dietrich Bonhoeffer
José Nilberto de Oliveira Júnior1

Introdução

A presente sociedade, com apenas um clique, pode saber o que está acontecendo nos lugares
mais remotos, mas às vezes não é capaz de perceber o que acontece a sua volta, entre elas, as
mudanças repentinas e surpreendentes de pensamento, vontades e atitudes; desvalorização de
absolutos, perda de identidade de seus integrantes; superficialidade e fragilidade dos
relacionamentos. Tudo isso em virtude da valorização excessiva do consumo, da posse de
bens e do individualismo, fatores que aumentam a distância e a afetividade entre as pessoas.

A igreja, como um organismo vivo, é afetada, direta ou indiretamente, por todo esse contexto,
uma vez que ela está situada no tempo e no espaço. Essas influências vão constantemente de
encontro aos valores cristãos que perpassam o tempo. Diante disso, é importante verificar que
valores, apesar das mudanças sociais devem ser preservados para que a igreja permaneça fiel
ao discipulado proposto por Jesus Cristo. Para isso, é importante examinar as propostas de
Dietrich Bonhoeffer para o ser humano contemporâneo, contrapondo a leitura de Zygmunt
Bauman, sociólogo polonês, faz desse contexto.

No presente estado da sociedade, os cristãos estão cada vez menos comprometidos com o a
igreja. Por motivos banais, ou mesmo sem motivos, saem de suas comunidades à procura de
outras que lhe satisfaz. Com esse cenário, o objetivo é a própria satisfação, causando cada vez
mais o desapego à instituição ou a comunidade de fé. Um dos diagnósticos que Bauman dá a
presente sociedade é que ela se encontra num estado de emancipação. Situação esta que um de
seus desejos é torna-se livres, sendo ser livre significa “não experimentar dificuldade,
obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou
concebíveis” (BAUMAN, 2001, p.22).

1
Graduando em Teologia pelo Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD). GP Dietrich Bonhoeffer: ética
e teologia a serviço da vida, tendo como orientador o Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho. Contato:
nilbertojr@gmail.com.

393
No passo em que a sociedade vive dessa forma, Bonhoeffer acreditava que o verdadeiro
cristão deve seguir e obedecer a Jesus Cristo. Afirma que no discipulado “não se trata
essencialmente de decisões a favor ou contra essa ou aquela ação; trata-se sempre da decisão
contra ou a favor de Jesus Cristo” (BONHOEFFER, 2004, p. 140). Assim, todas as decisões
passam pelo crivo da aprovação de seu discipulador.

Objetivos

O presente trabalho tem por objetivo verificar as interfaces entre o pensamento do humano em
Zygmunt Bauman e Dietrich Bonhoeffer e propor o discipulado deste, teólogo alemão, como
paradigma ao homem contemporâneo. Para isso, será apresentada uma breve biografia dos
autores mencionados e apresentado o contexto histórico comum a ambos, que tiveram rumos
diferentes. Em seguida, será apresentada a visão do humano de Zygmunt Bauman,
concentrando-se no ser humano líquido, individualizado e consumista (segundo capítulo); e a
visão do ser humano compromissado, que vive em comunhão e que vive para o outro na
perspectiva de Bonhoeffer (terceiro capítulo). Não se tem como objetivo dissecar por
completo o pensamento do humano de ambos os autores, visto que suas obras são vastas
demais para a intenção do trabalho em questão.

Justificativa

Os indivíduos, após o Holocausto da Segunda Guerra Mundial, acreditavam que a sociedade


se tornaria ideal, mas perderam a esperança com o fracasso do positivismo e ascensão do
pensamento niilista. Com isso, passaram a ter um estilo de vida muito diferente da geração
imediatamente anterior. Embora que muitos acreditem que o Holocausto afetou apenas os
judeus, Bauman (1998, p.10) afirma ele fora uma “interrupção do curso normal da história um
câncer no corpo da sociedade civilizada” e que “a experiência do Holocausto contém
informação crucial sobre a sociedade da qual somos membros” (BAUMAN, 1998, p.16).

Com isso, o presente trabalho justifica-se na tentativa de aplicar as ideias de Bonhoeffer para
a vivência ao homem contemporâneo, visto que seu exemplo ficou como inspiração para seus
leitores e seus pensamentos ainda ecoam no tempo. Barcala (2010, p. 9) foi feliz quando
descreve sobre Bonhoeffer, afirma que “essa fé íntegra, que encontra expressão na vida, e sua

394
teologia, que busca respostas concretas na vida como um todo, são elementos que tornam o
legado de Bonhoeffer tão atrativo”.

Escolheu-se Zygmunt Bauman para diagnosticar o modo de pensar contemporâneo. É


respeitado na academia e esmiúça com propriedade a sociedade atual, encaixando-se
adequadamente na proposta desse trabalho. Bonhoeffer, por sua vez, traz um viver cristão
radical. Quase profético, vem com afirmações e ideais que vão de encontro ao que encontra-se
em grande parte das igrejas brasileiras. Então vê-se a necessidade de propor o discipulado de
Dietrich Bonhoeffer como desafio à vivência do cristão hoje.

Fundamentação Teórica

“Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final
do século XX” (HALL, 2005, p. 8). Neste sentido, Bauman tem uma significativa quantidade
de obras escritas sobre a contemporaneidade e o comportamento das pessoas nesse tempo.

Uma das características da sociedade atual é a liquidez. Bauman usa a metáfora da


modernidade líquida para afirma que no estágio da era moderna as pessoas “não podem mais
tolerar o que dura” (BAUMAN, 2001, p.6). Tendo em vista que fluidez,

É a qualidade de líquidos e gases. O que os distingue dos sólidos. Como a Enciclopédia


Britânica, com a autoridade que tem, nos informa é que eles ‘não podem suportar uma força
tangencial ou deformante quando imóveis’ e assim ‘sofrem uma constante mudança de
forma quando submetidos a tal tensão. Em contraste, as forças deformantes num sólido
torcido ou flexionado se mantêm, o sólido não sofre o fluxo e pode voltar à sua forma
original (BAUMAN, 2001, p.6).

Um mundo em contínuo movimento faz com que seus habitantes também tenham a mesma
atitude, mesmo sem saber para onde devem ir. Por consequência disso, o ser humano se sente
inseguro, os deslocamentos rápidos fazem com que se preocupe em sempre mudar, e
mudanças contínuas, de forma que “deixa qualquer pessoa na constante preocupação de
manter o ritmo das mudanças, de não ficar de fora dos acontecimentos”.2

2
CUGINI, Paolo. Identidade, Afetividade e as Mudanças Relacionadas na Modernidade Líquida na Teoria de
Zygmunt Bauman. São Paulo, SP: 2008, p. 162. Disponível em:
http://www.faculdadesocial.edu.br/dialogospossiveis/artigos/12/artigo_10.pdf > Acesso em 03 de Agosto de
2013, p. 162.

395
Segundo Cugini (2008, p. 162), “tudo flui de um jeito extremamente rápido, de uma forma
que, aquilo que era certo ontem, não é mais. Neste mundo líquido, assistimos a algumas
passagens importantes, que marcam o novo clima cultural”. Numa entrevista, Bauman afirma
que:

Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado
da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de
manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e
convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e
verdades “auto-evidentes”. É verdade que a vida moderna foi desde o início
“desenraizadora” e “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e
Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente “reenraizado”,
agora as coisas todas [...] tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. 3

A sociedade líquida foi composta a partir de derretimentos formados pela modernidade, foi
“fruto maduro do desmoronamento da modernidade”.4 Bauman (2001, p. 10) afirma que “os
primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais,
os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e
restringiam as iniciativas”.

Desse modo, de uma sociedade que tinha lealdades tradicionais, que fixavam num solo uma
oportunidade e por lá ficavam, construíam suas carreiras e firmavam sua vida com suas
famílias, a liquidez forçou a “não fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laços com
compromissos mutuamente vinculares, pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas
oportunidades que surgem em outros lugares” (BAUMAN, 2001, p.21). Assim, tudo se torna
mais efêmero e como afirma Cugini (2008, p. 169), “permanecer fixo, com uma identidade
fixa, neste mundo rápido e fluido, não é aconselhável”.

Nesse contexto líquido, Bonhoeffer se comportou como indivíduo diferente. Num momento
em que a igreja alemã estava tumultuada, já que alguns líderes sentiram a necessidade de
aderir ao Parágrafo Ariano no intuito de conciliar com o regime nazista (METAXAS, 2011,
p.166-167), Bonhoeffer manteve seus ideais, comprometido por sua causa. Para ele, há uma
vontade absoluta que domina que é “fazer a vontade de Deus em conformidade com a
revelação de Jesus Cristo” (BARCALA, 2010, p.81). E a ainda afirma que a “‘vontade de

3
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A Sociedade Líquida de Zygmunt Bauman. São Paulo, 2003.
Entrevista concedida à Folha de São Paulo, 19 de Outubro de 2003.
4
Ibid, p. 163.

396
Deus’ é sempre única e consiste na concretização da vida de Jesus Cristo no ser humano e no
mundo” (BARCALA, 2010, p.81).

Para que tal concretização seja feita, Bonhoeffer afirma que é necessário seguir a Cristo, ser
seu discípulo. Pois,

O chamado concreto de Jesus e a obediência simples têm sentido irrevogável. Jesus chama
a uma situação concreta em que a fé se torna possível; chama de forma concreta, e também
quer ser compreendido concretamente, por saber que só na obediência concreta o ser
humano fica livre na fé (BONHOEFFER, 2004, p. 41).

Ser discípulo implica necessariamente em levar a cruz. O teólogo alemão ainda afirma que
“quem não quiser tomar a sobre si a cruz, quem não quiser expor sua vida ao sofrimento e à
rejeição por parte dos seres humanos, perde a comunhão com Cristo e não é seu discípulo”5
Somente carregando a cruz e sofrendo o que é imposto ao discípulo é que se torna um
seguidor, pois compartilha da comunhão do crucificado (BONHOEFFER, 2004, p. 61).

Segundo Mondin (2003, p. 206) Discipulado “não responde mais às exigências especulativas,
mas sim às exigências da vida espiritual”. Ainda afirma que Bonhoeffer se inspira numa amor
totalmente entregue a Jesus Cristo e no desejo de submissão a Ele. A vida cristã é sempre uma
opção de segui-lo e não um manual de doutrina. Mondin (2003, p. 224) afirma que “é em
Jesus Cristo que se define a relação de Deus com o mundo”. A verbalização da igreja ao
mundo deve ser a palavra de Deus ministrada. A verdadeira palavra “é a palavra da
Encarnação de Deus, do amor de Deus pelo mundo no envio do seu Filho e do Juízo de Deus
sobre a incredulidade”.6 É nesse sentido que a igreja se identifica com o discipulador, é a
comunidade de estranhos que se consola na cruz (BONHOEFFER, 2004, p. 61).

“Comunidade é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora” (BAUMAN,
2001, p.108). Parece que esse termo e seu significado vão se perdendo de forma que não será
muito difícil esquecer, pois o termo “rede” está substituindo o termo “sociedade” (BAUMAN,
2008, p.9). De encontro a isso, Bonhoeffer acredita que “facilmente esqueceu-se que a
comunhão dos irmãos cristãos é um presente gracioso procedente do reino de Deus”
(BONHOEFFER, 1997, p.12) e que “é bom derramar o coração na solidão e não engolir a
aflição. No entanto, quanto mais estou só, mais tenho desejo por comunhão com outros

5
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 48,
6
MONDIN, Battista. Os Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 224.

397
cristãos, por culto em comunidade, por oração e canto, louvor, agradecimento e celebração em
conjunto” (BONHOEFFER, 2007, p.30).

Ao passo em que a sociedade torna-se líquida e individualizada, passa a ser consumista


também. Para Bauman, as pessoas numa sociedade consumista são “promotoras de
mercadorias” e ao mesmo tempo “as mercadorias que promovem” (BAUMAN, 2008, p.13).
Para ele, na sociedade de consumidores,

Ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura sua subjetividade se reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as
capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável (BAUMAN, 2008, p.20).

Percebe-se que a sociedade faz com que as pessoas sejam reduzidas à mercadoria. Em
contraposição a isso, o teólogo alemão tem em sua compreensão teológica que,

A Igreja é Igreja somente se estiver aí para os outros. Para começar, deve entregar tudo aos
necessitados. [...] A Igreja tem que participar das tarefas da vida comunitária, não
dominando, mas ajudando e servindo. Ela deve dizer às pessoas de todas as profissões o
que significa uma vida com Cristo, o que significa, ‘estar-aí-para-outros’ (APPEL;
CAPOZZA, apud, BONHOEFFER).

Metodologia

Realiza-se esse trabalho a partir da pesquisa bibliográfica, ou seja, está baseada em livros,
artigos e escritos acadêmicos. Não se tem como objetivo esgotar toda compreensão do ser
humano em ambos os autores em questão, visto que seus escritos são amplos e não teria como
dissecar todos eles nessa modalidade de trabalho.

Considerações finais

Este ensaio teve como objetivo verificar interfaces entre o pensamento do humano em
Zygmunt Bauman, focando nos aspectos líquido, individualista e consumista e em Dietrich
Bonhoeffer, dando atenção a outros três aspectos, o ser humano comprometido, o que vive em
comunhão e o que vive para o outro. É certo que o assunto é vasto e que demanda mais
pesquisas e considerações sobre o tema.

Referências

398
BARCALA, Martin. Cristianismo Arreligioso: uma introdução à cristologia de Dietrich
Bonhoeffer. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

__________. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

__________. Vida para Consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

__________. Prédicas e Alocuções. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

__________. Vida em Comunhão. 7. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1997.

CAPOZZA, Nicoletta e KURT, Appel. “Estar-aí-para-outros” como participação da


realidade de Cristo: sobre a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Porto Alegre, RS: 006.
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/1750/1283

CUGINI, Paolo. Identidade, Afetividade e as Mudanças Relacionadas na Modernidade


Líquida na Teoria de Zygmunt Bauman. São Paulo, SP: 2008, p. 162. Disponível em:
http://www.faculdadesocial.edu.br/dialogospossiveis/artigos/12/artigo_10.pdf > Acesso em 03
de Agosto de 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.

METAXAS, Eric. Bonhoeffer. Pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão,
2011.

MONDIN, Battista, Os Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Editora Teológica,
2003.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A Sociedade Líquida de Zygmunt Bauman. São


Paulo, 2003. Entrevista concedida à Folha de São Paulo, 19 de Outubro de 2003.

399
400
Diálogo entre a filosofia de Friedrich Nietzsche e a teologia de
Dietrich Bonhoeffer
Manoel Ferreira da Silva1

Introdução

A presente comunicação pretende apresentar um diálogo entre a filosofia de Friedrich


Nietzsche e a teologia de Dietrich Bonhoeffer que geograficamente atuaram no mesmo
cenário, Alemanha, porém separados pelo tempo. Por isso será levantado uma breve biografia
dos pensadores citados acima, além de apontar os pontos em que ambos convergiram e
divergiram. Assim é possível detectar o que esses dois grandes pensadores nos expuseram em
seus escritos plausíveis e coerentes, tendo em vista a oposição de ideias entre ambos, para o
mundo contemporâneo.

Friedrich Nietzsche

Nietzsche nasceu em 1844 e morreu em 1890, em Rocken dentro de um lar cristão luterano,
filho de pastor. Como filho de pastor teria o mesmo destino, o que não foi possível, pois o que
aprendeu sobre teologia se desfez quando ainda jovem deixou a sua fé nos estudos de
filosofia. O que lhe cercava eram indagações como Loren Eiseley aponta: o homem é a única
criatura no universo que pergunta: Por quê? Diferente dos animais que têm os seus instintos
para guiá-los, o homem não! Aprendeu a fazer perguntas. Quem sou eu? Por que estou aqui?
De onde vim? Durante anos estas e outras perguntas eram respondida conforme o sagrado2.

No Iluminismo o homem sacudiu de si os grilhões da religião procurando responder a suas


perguntas sem fazer referência a Deus. No entanto as respostas obtidas não foram um tanto
otimistas, mas tenebrosas e terríveis como essa: você é subproduto acidental da natureza,
órfão cósmico, resultado de matéria mais tempo mais acaso. Não há razão para que exista.
Tudo que lhe espera é a morte. Nietzsche compartilha com esse pensamento, é tanto que em

1
Graduando em Teologia pelo IBAD. Orientado pelo professor Carlos Caldas. Contato:
alexandre/ferreira88@hotmail.com.
2
CRAIG, William Lane. O absurdo da Vida sem Deus. “The Absurdity of Life without God”. Texto disponível
na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god.

401
sua A Gaia ciência o filosofo apresenta a parábola de um louco corendo pelas ruas em busca
de Deus, mas não consegue encontrá-lo. E ele afirma Deus estar morto!

Num dado momento até parece, e é o que muitos pensadores fazem, afirmar a morte real de
Deus. Nietzsche não matou Deus literalmente. O que fez foi uma leitura do seu tempo. De
fato o homem já vinha tomando atitudes radicais desde o século XVIII com o Iluminismo
onde as pessoas tomaram coragem de se expor deliberadamente como ateias. Passou-se a
travar uma luta contra tudo quanto é absolutismo ou totalitarismos ideológicos, que não são
contestados. Esse período foi marcado pela confiança no poder da razão para chegar a
essência das coisas: matéria, mente, natureza humana, sociedade e religião. Os pensadores
dessa época acreditava que o absolutismo alimentava a ignorância e a ignorância alimentava o
absolutismo (ALLEN; SPRINGSTED, 2011, p.224).

Diferente da pré-modernidade onde a teologia reinava como rainha de todas as ciências Deus
acima de tudo explicava e Nele se achava todas as respostas. Com o avança das ciências a
teologia perde o seu trono, Deus se torna desnecessário ao homem moderno que colocou o
mundo e a história sobre a razão esclarecida: o que era explicado em Deus o homem já
conseguiu explicar sozinho: por exemplo, com o advento do darwinismo, Deus deu um
grande passo para trás. A ideia teológica de uma criação especial imediata, somente pela
palavra de uma divindade caprichosa, fora descartada. Sem Deus a questão foi respondida de
forma natural.

O homem moderno se desvaleu de Deus sem deixar-lhe espaço em qualquer área da vida
publica, nem tão pouco permitir que ele se refugie na esfera pessoal e privada, no mais íntimo
do intelecto humano, por que de fato também já se encontra exposto e compreendido, à luz da
psicanálise. Com a ascensão da psicologia freudiana, Deus é lançado mais uma vez para trás.
Diante disso Nietzsche como todo bom filósofo faz uma leitura relevante do seu tempo. Na
realidade não errou quando disse que “Deus estava morto”. Muitos podem até interpretar de
maneira radical essa leitura, mas o que Nietzsche quis dizer na verdade é que Deus não serve
mais como legislador absoluto para o homem, porque ele mesmo explica seu significado.
Portanto a morte de Deus remete dizer que a crença no Deus cristão caiu em descrédito.
“Deus está morto”, o velho Deus foi desmascarado, sumiu do nada, isso é destacado nas
próprias palavras de Nietzsche (1990, p. 137):

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e
correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “procuro Deus! Procuro Deus!”? – E

402
como lá se encontravam muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso
uma grande gargalhada. Então ele estar perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como
uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num
navio? Emigrou? – gritavam e riam um para com os outros. O homem louco se lançou para
o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “ para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes
direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos assassinos! Mas como fizemos isso?
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora?
Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sois? Não caímos continuamente?
Para traz, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda “em cima” e “em
baixo”? não vagamos como que atrás de um através de um nada infinito? Não sentimos na
pela o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos
que acender lanterna de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiro a enterrar Deus? não
sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus estar morto!
Deus continua morto! E nós o matamos! (...) “o que são ainda essas igrejas, se os
mausoléus e túmulos de Deus?”

Dietrich Bonhoeffer

Dietrich Bonhoeffer nasce dezesseis anos depois da morte do filósofo Nietzsche, em 1906 na
cidade de Breslau e morre em Berlim 1945 como mártir enforcado pelo chanceler Adolf
Hitler. O pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer não apresenta nenhuma crise quanto às
palavras de Nietzsche levantadas acima. O que aconteceu, não é ato para desespero. No
crescimento da vida isso é algo normal e inevitável, segundo Bonhoeffer o mundo chegou a
maioridade:

O ser humano aprendeu a dar conta de se mesmo em todas as questões importante sem
apelar para a hipótese Deus. Nas questões cientificas, artistas e ética isto se tornou uma
obviedade que dificilmente alguém ainda ousaria questionar; mas desde cerca de 100 anos
isso vale, de modo crescente também para as questões religiosas, fica evidente que tudo
funciona também sem “Deus”, e tão bem quanto antes. Assim como no campo cientifico,
também na esfera humana em geral “Deus” estar sendo afastado cada vez mais da vida; ele
estar perdendo terreno (BONHOFFER, 2003, p. 434).

A crise bonhoefferiana é contra a segurança do homem, a sua autoconfiança, as más


interpretações do seu contexto, e a inquietude em si mesmo. O mundo saiu do berço está de
maior, mas mesmo assim precisa do tutor, Deus, ainda existem as questões últimas que só Ele
pode dar uma resposta, o que o homem tem que descarta é a religião.

403
Segundo Stanley Grenz (2011, p.88), quando Bonhoeffer diz que o mundo chegou à
maioridade e não precisa mais de religião quer dizer que o mundo pode dispensar a
religiosidade. Crescia em Bonhoeffer uma forte preocupação sobre a forma que a igreja
deveria se relacionar com o mundo adulto. Por que de fato acreditava que “Deus”, das
lacunas, estava sendo expulso dele. Mas não era o Deus judaico-cristão, era um Deus da
religião tradicional invocado para preencher as questões do nosso entendimento sobre o
cosmos e nós mesmos. Obviamente como o avanço da ciência e o rumo em que ela tomou,
esse Deus foi banido totalmente da sociedade moderna, é tanto que Nietzsche o achou morto.

Convergências e divergências entre Nietzsche e Bonhoeffer

Tanto Nietzsche quanto Bonhoeffer parecem estar de acordo no mesmo pensamento de que o
homem não precisa desse “Deus”. A sua morte segundo Bonhoeffer é algo bom, ao passo que
esse “Deus” não é realmente o Deus do cristianismo genuíno. O quanto mais breve possível
nos livrarmos dele mais cedo possibilitamos para nós o Deus do cristianismo autêntico (Ibid.,
2011, p. 91). Nietzsche exclui totalmente a hipótese de Deus e não há outro. Como não admiti
a existência de Deus e com o despertar do mundo para sua fase adulta, junto com Deus
também morre a possibilidade da criação, da matéria, da vida, e da energia, por um ser
supremo.

Nietzsche entende que se o mundo não foi criado, logo já existia e que toda a realidade é
movida por uma força (MATTOZO, 2010, p.44). Craig destaca que se não há Deus, a vida em
si mesma é um absurdo, não tem significado, valor nem propósito maiores.3 A realidade e os
valores da vida em Bonhoeffer estão no Deus do cristianismo genuíno. Não é assim na ótica
nietzschiana que apresenta a vontade de poder como fundamento, e impulso que possibilita a
criação de valores e a afirmação da vida. Acredita num jogo de força que move o mundo e
envolve o homem em seus movimentos. Somos constituídos por uma vontade que é a
condição de possibilidade da existência humana, superação, de auto superação, vontade de
poder que nos dá à possibilidade de viver sempre a busca de algo, concluindo, pois a ideia do
ser humano estar sempre em movimento:

3
CRAIG, William Lane. O absurdo da Vida sem Deus. “The Absurdity of Life without God”. Texto disponível
na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god

404
E sabeis sequer o que é pra mim ―o mundo? [...] Este mundo: uma monstruosidade de
força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior
nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu
todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos,
cercado de ―nada como de seu limite, [...] mas antes como força por toda parte, como jogo
de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo, [...] eternamente mudando,
eternamente recorrentes, [...] partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto,
mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo,
e depois outra vez voltando da plenitude ao simples [...] esse meu mundo dionisíaco do
eternamente criar a si próprio, do eternamente destruir a si próprio, [...] sem nome para esse
mundo? [...] Esse mundo é a vontade de potência e nada, além disso! E também vós
próprios e nada, além disso! (NIETZSCHE, Apud MATTOZO 2010, p.44).

Na figura do Ubermensch, “o super homem”, nós entendemos melhor a ideia do filósofo, ao


passo que trata se do homem superar a vida de maneira radical e aceitar os fatos da realidade
em seus aspectos trágicos, a finitude e a morte sem os consolos metafísicos.

Vejamos que tanto em Nietzsche quanto em Bonhoeffer há uma aclamação a viver sem apelar
pela metafísica. Para Bonhoeffer a maioridade do mundo nos proporciona uma forma de
enxergarmos a imanência de Deus em nossas vidas, nos ajudar pela fraqueza e sofrimento no
mundo, deixar de lado a possibilidade de sermos ajudados pela sua onipotência transcendental
e sobrenatural. Bonhoeffer não acredita ter na alma do ser humano um vazio no formato de
Deus, de modo que seja uma pessoa insatisfeita até o ponto de ser preenchido:

Mas especificamente, não existe uma priori religiosa, conforme acreditava Friedrich
Schleiermacher, pensador alemão do século XVIII. A “consciência numinosa”, ou a
percepção profunda da presença divina tida como centro da religião autentica, de Rudolf
Otto, contemporâneo mais velho de Bonhoeffer, é para maior parte das pessoas uma
experiência distante e irreconhecível. Santo Agostinho estava simplesmente equivocado
quando disse que o coração continuara inquieto enquanto não repousa em Deus (GRENZ,
2011, p. 89).

O homem moderno intelectualmente, moral e religioso pode viver bem e ser feliz, de fato sem
Deus. Deus foi ultrapassado como hipótese no trabalho da moral, na política e na ciência, e o
mesmo aconteceu à filosofia e religião. Temos se locomovido para um tempo totalmente sem
religião, com isso se vai também aquele Deus todo envolvido com o sobrenatural e com a
esfera eclesiástica; sempre a mão resolvendo os nossos problemas. (GRENZ, 2011, p. 90).

405
Considerações finais

Diante disso a razão é dada pelo próprio Deus, para tanto somos responsáveis por sua
mordomia, como cristão não podemos ser racionalistas, devemos entender que a razão reflete
a imagem de Deus que é fundamental para compreendermos não só a sua palavra, mas
também o mundo por ele criado. Ao passo que, fica conosco a responsabilidade de usá-la de
maneira correta (SAYÃO, 2001, p. 51).

Nietzsche e Bonhoeffer caminharam juntos em seus pensamentos racionais. Com a morte do


Deus das lacunas como aponta Bonhoeffer há um rompimento no viver no mundo sem os
consolos metafísicos, já Nietzsche traça o viver trágico como em busca da superação que se
destaca na figura do Ubermensch. Bonhoeffer trata a possibilidade do viver do homem como
viver a verdade de Deus, feito homem que também precisa se superar, é o que ele chama de
metamorfose. Não como Nietzsche propõe no próprio esforço humano sem referência, mas na
pessoa de Jesus Cristo como referencial de superação.

Referências

ALLEN, Diogenes; SPRINGSTED, Eric O. Filosofia para entender Teologia. Tradução


Daniel da Costa, 3ªEd. Santo André: Paulus, 2010.

BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: Cartas e anotações escritas na prisão.


Tradução Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2003.

CRAIG, William Lane. O absurdo da Vida sem Deus. Disponível em:


<http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god>. Acesso em: 21 jul. 2013.

MATTOZO, Israel da Cunha. O problema de Deus e sua relação com os ideais ascéticos na
filosofia de Nietzsche. Belo Horizonte, 2010. Disponível em:
<www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/141112-110tsbsoum86l.pdf.>. Acesso em: 17 ago. 2013.

MILLER, Ed. L., GRENZ, Stanley J. Teologias contemporâneas. Tradução Antivan G.


Mendes.1ª Ed. São Paulo: Vida Nova, 2011.

SAYÃO, Luiz Alberto Teixeira. Cabeças Feitas: filosofia pratica para cristãos. 3ª Ed. São
Paulo: Hagnos, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich Wilheim. A gaia ciência. Tradução Paulo César de Souza, 1ª Ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

406
407
Nadando contra a correnteza: A ação a favor da vida na prática
pastoral de Dietrich Bonhoeffer
Sivanildo Ribeiro Martins1

Introdução

Desde seu início, no primeiro século da era cristã, a igreja sempre esteve na mira de críticas,
avaliações e julgamentos emitidos, tanto por aqueles que são participantes dela e, portanto se
considera “a Igreja” (Corpo de Cristo), quanto, pelos que estão fora e exercem o poder de
opinião. O exame que se faz da igreja (comunidade de fé/igreja local), positivo ou negativo,
por meio das críticas, não é mal em si mesmo, haja vista, serve de parâmetro para observar
qual papel tem sido exercido pela igreja no decorrer desses mais de vinte séculos.

No século XX, a partir do qual esta pesquisa pretende se situar, a igreja continuava na mira de
quem vive, nesse tempo, um período marcado por expressivas mudanças e transformações:
econômica, política, social e religiosa, resultado das guerras mundiais. A teologia,
companheira no tempo, não se ausentou, mas passou por modificações e confrontações.

Na Alemanha, o evento que chamou a atenção do mundo inteiro na primeira metade do século
passado foi o Holocausto que, conduzido pelo Chanceler Adolf Hitler, matou milhões de
judeus numa clara demonstração de racismo e intolerância. Na época a igreja poderia ter sido
uma voz em defesa dos inocentes, lutar contra a opressão, combater a injustiça e proteger os
mais fracos e desprovidos de poder. Contrário a isso, foi conivente com o governo e assistiu
“aos irmãos” morrerem, em massa, sem piedade alguma por parte do exército nazista.

Essa situação leva-nos a refletir sobre o envolvimento, a ação, e a missão da igreja no mundo,
que no pensamento do Cardeal Arns “deve consistir na ação pela qual procura conformar o
mundo segundo as exigências do Evangelho, anunciando, vivendo e explicitando estas
mesmas exigências” (CARDEAL ARNS, 1980, p. 28). Portanto, a decisão de calar-se e ser
indiferente, diante de catástrofes e mazelas que rebaixam o ser humano e toda a criação de
Deus não conforma o Evangelho.

1
Bacharel em Administração pela UNILAGO, bacharel em Ciências Contábeis pelo UNIRP, bacharelando em
Teologia pelo IBAD. Orientado pelo Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho. Contato: siva.martins@hotmail.com.

408
O pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer foi um personagem que no contexto exposto
surge, profeticamente, como uma voz que protesta e exige que a atuação da igreja seja
traduzida pelo conteúdo do Evangelho de tal modo que através da Igreja Cristo esteja presente
no mundo. A vida e o testemunho de Bonhoeffer é um desafio à igreja de nossos dias como
referencial que resiste, até a morte, os conceitos e as ações não pautados nos princípios do
Evangelho.

A prática pastoral de Dietrich Bonhoeffer

Poucas são as pessoas que pautam suas vidas por aquilo que pensam e, assim, na prática
vivem em discrepância, ou seja, as ações não coadunam com o discurso. Dietrich Bonhoeffer
não se encaixa nesse perfil, sua vida representa unidade no que se pensa e faz. Segundo Apeel
e Capozza (2006), “em poucos teólogos a unidade entre vida e pensamento serve de tal forma
como chave hermenêutica quanto para Dietrich Bonhoeffer. Bonhoeffer pensou o que viveu e
viveu o que pensou”. Defendia que igreja tinha de estar no mundo “participando da vida
social humana, não dominando, mas servindo” (MALSCHITZKY, 2005).

Por isso, esse trabalho tem por objetivo identificar, a partir da teologia de Bonhoeffer, a
possibilidade de uma igreja voltada para o mundo, que se envolve com o mundo servindo-o e
que, tal como Cristo, promova a justiça no mundo, entre os filhos de Sua criação. Para isso
será feita uma análise da vida e da teologia de Bonhoeffer através de uma síntese biográfica;
uma verificação da sua compreensão sobre vida cristã; e o seu pensamento sobre a igreja
como comunidade de fé.

A esperança da Igreja é um dia sair do mundo. Não há nenhuma confusão ao afirmar isso,
contudo essa esperança vindoura não pode servir de motivação para que a Igreja fuja do
mundo e isente-se das tarefas da humanidade. A igreja não pode, estando no mundo, viver
como se fora dele estivesse, pois isso a torna alienada e alienante, ficando insensível aos
problemas do mundo, ao sofrimento das pessoas, às injustiças cometidas diariamente pelos
opressores e, desta forma não atua como seguidora de Jesus, num mundo restaurado e
reconciliado por Ele.

Segundo Malschitzky (2005), “o mundo é de Deus e, portanto, para a sua criatura. Ninguém
pode usurpá-lo para interesses particulares [...] é preciso resistir para que o mundo seja

409
mundo, o mundo de Deus para a vida da criação e da criatura”. Portanto, este trabalho
justifica-se por propor que a igreja assuma compromisso com o mundo, importando-se com a
criatura e a criação; não seja conivente com poderosos que usurpam e oprimem; viva para os
outros e não para si mesma; e não busque medida no poder ou dinheiro de modo a obter
vantagens, mas em Cristo, Senhor do mundo.

O texto bíblico escrito no início do Evangelho de João cap. 1. v.14 (ACR) registra: “e o Verbo
se fez carne e habitou entre nós [...] cheio de graça e de verdade”. É importante evocar esse
texto sagrado, pois ele aponta para a forma como pensava Bonhoeffer. Segundo Milstein
(2006), Bonhoeffer afirma que “a Igreja é o Cristo que existe como comunidade; Cristo é a
palavra de Deus para mim, ele não é apenas pregado na igreja, mas a igreja, ela mesma, é este
corpo de Cristo”. Em Bonhoeffer a reflexão e a prática se unem de tal modo a levá-lo da
universidade, como professor, à comunidade para atuar como pastor.

Tal decisão demonstra que Igreja e mundo não podem separar-se, pois são elementos de uma
mesma criação, de Deus, que se converge em Cristo. “Bonhoeffer sustentava que Cristo era o
único lugar em que podem ser considerados unidos Deus e a realidade, sem que Deus tenha
que desagregar o real e sem que o real se distancie de Deus” (CUNHA SOBRINHA, 2006,
p.31). Ainda segundo Sobrinha, Igreja-Cristo-Mundo estão presentes no pensamento
teológico de Bonhoeffer como seus principais temas (2006, p. 30), Deus em Cristo se une
com o mundo, sem perder a transcendência, e, em Jesus Cristo se reconhece a “a estrutura; a
forma; o centro da realidade”.

Se reconhecermos o senhorio de Cristo, a Igreja pode viver dentro do mundo e amar o mundo
com os olhos e na companhia de Deus. Segundo Malschitzky (2005), “não precisa celebrar e
louvar a Deus desprezando o mundo e nem precisa viver no mundo marginalizando Deus”,
pois vida diária e “adoração a Deus, estão definitivamente interligadas, na pessoa de Jesus
Cristo” (2005, p. 77). Martinho Lutero, com quem Bonhoeffer muito simpatizava já dissera:
“o lugar do cristão é o mundo”. “Existem muitos hinos e textos cristãos que em nome da
esperança do reino de Deus, desprezam o mundo e o que nele há e desconsideram também o
ser humano como ele é” (MALSCHITZKY, 2005, p. 75). Não foi assim que Bonhoeffer
enfrentou a realidade, para ele os cristãos, discípulos de Jesus, que são a Igreja, tem um lugar
de atuação, o mundo de Deus, “tendo o agir do próprio Cristo como medida”
(MALSCHITZKY, 2005, p. 61).

410
Dietrich Bonhoeffer e a Igreja no mundo: a proposta

A igreja voltada para o mundo e que se envolve com o mundo2, é uma proposta que já possui
releituras e interpretações, portanto, por se tratar de uma iniciação à pesquisa, além das obras
de Dietrich Bonhoeffer as quais são: Sanctorum Communio Resistência e Submissão: cartas e
anotações escritas na prisão; Ética; Discipulado e Vida em Comunhão. Serão explorados,
também, os textos: Discípulo-Testemunha-Mártir, de Harald Malschitzky; Vida e
Pensamento, de Werner Milstein; Cristianismo e Testemunho, da Irmã Mirian Cunha
Sobrinha. Outras leituras que também serão úteis e, em algum momento serão utilizadas são:
Cristianismo Arreligioso, de Martin Barcala; Pastor-Mártir-Profeta-Espião, de Eric Metaxas;
Vítima e vencedor do Nazismo, de Georges Hourdin; O Mártir, de Craig Slane; Discutindo o
papel da Igreja, do Cardeal Arns; Fundamentos da teologia da Igreja, de Carlos Caldas;
Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo e Igreja carisma e poder, de Leonardo Boff;
e Teologia sistemática, histórica e filosófica, de Alister E. McGrath.

A proposta do presente trabalho será realizado a partir da análise bibliográfica tendo como
fontes livros, artigos, revistas e periódicos que tratem do assunto em questão. O trabalho está
organizado de modo a ser produzido em três capítulos. Sendo assim, no primeiro capítulo será
feita uma síntese sobre Dietrich Bonhoeffer e o seu contexto; no segundo será feita uma
abordagem da compreensão de Bonhoeffer do que é vida cristã; e por ultimo, a Igreja como
comunidade de fé, no pensamento do teólogo em questão, que servirá como lente para uma
leitura da atual situação da igreja, especialmente no contexto brasileiro.

Considerações finais
O trabalho, ainda que em processo de desenvolvimento, já aponta claramente o problema e
possíveis apontamentos. A igreja, segundo a perspectiva de Dietrich Bonhoeffer, só é, de fato,
igreja se estiver para o outro, e, à luz do seu Mestre, Jesus, é uma comunidade que se faz
presente no mundo se importando com os problemas e as aflições do povo, agindo como o
próprio Cristo agiu, oferecendo paz e justiça, valores intrinsecamente integrantes do Reino de
Deus.

2
Tema do trabalho de conclusão de curso do aluno Sivanildo Ribeiro Martins, em processo, do qual este texto é
parte integrante.

411
A igreja que se cala, conforma-se e, pior, se ajunta a poderosos e gente que provoca dor e
sofrimento às criaturas de Deus, não é a Igreja de Jesus, não é igreja a partir do crivo do Novo
Testamento. Porque a Igreja de Jesus, aquela formada por Ele mesmo, atuante na Nova
Aliança, é uma igreja que está no mundo a serviço de Deus servindo o mundo para a
glorificação do Cristo. É uma igreja que não se dobra diante de totalitaristas, impostores e
governantes que ao invés de servir o povo, usa-os para se beneficiar. A igreja de Jesus é
aquela que cumpre o Evangelho, vive no Evangelho e, à luz do Evangelho, promove a justiça
de Deus que beneficia os homens, Sua criatura.

Referências

BARCALA, Martin. Cristianismo Arreligioso: uma introdução à cristologia de Dietrich


Bonhoeffer. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo. São Paulo: Vozes, 1991.

__________. Igreja carisma e poder. São Paulo. Vozes, 1994.

BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 9ª ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2009.

__________. Discipulado. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004.

__________. Vida em Comunhão. 7ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 1997.

__________. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo:


Sinodal, 2003.

CALDAS, Carlos. Fundamentos da teologia da igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

CAPOZZA, Nicoletta e KURT, Appel. “Estar-aí-para-outros” como participação da


realidade de Cristo: sobre a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Porto Alegre: 2006.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/1750/1283>. Acesso em:
30. Abril. 2013.

CARDEAL ARNS, Paulo Evaristo. Discutindo o papel da igreja. São Paulo: Edições Loyola,
1980.

CUNHA SOBRINHA, Mirian. Dietrich Bonhoeffer: cristianismo e testemunho. Bauru, SP:


Edusc, 2006.

HOURDIN, Georges. Vítima e vencedor do nazismo: Dietrich Bonhoeffer. São Paulo:


Paulinas, 2002.

412
MALSCHITZKY, Harald. Dietrich Bonhoeffer: discípulo, testemunha, mártir: Meditações.
São Leopoldo: Sinodal, 2005.

McGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia


cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

METAXAS, Eric. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão,
2011.

MILSTEIN, Werner. Dietrich Bonhoeffer: vida e pensamento. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

413
414
GT5 – “Edificando para Deus”: a arquitetura
do sagrado nas suas diferentes manifestações

Coordenador

João Henrique dos Santos


Doutor em Ciência da Religião pela UFJF. Professor do Departamento de História e Teoria
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.

Resumo

Ao longo de sua história, o homem construiu muito mais para Deus do que para si próprio. As
construções religiosas, desde os menires sagrados aos grandes templos contemporâneos, para
muito além do testemunho da fé, são marcos arquitetônicos referenciais sobre o modo de
perceber a maneira pela qual se deveria edificar a Casa do Senhor sobre a terra, muitas vezes,
espelho da morada que o homem deseja para si próprio na eternidade. Desta forma, a presente
proposta de GT visa aprofundar a troca de experiências e percepções sobre essa importante
temática na História das Religiões, buscando acolher todas as propostas de comunicações
sobre a temática da arte e arquitetura religiosas, que abranjam todas as manifestações
religiosas, da Antiguidade à contemporaneidade, de qualquer matriz religiosa. Valorizar-se-
ão, de modo especial, as comunicações sobre a Arquitetura Religiosa no Brasil.

415
A arquitetura religiosa, entre paradoxos e possibilidades
João Henrique dos Santos3

Introdução

A edificação dos espaços sagrados em todas as civilizações reveste-se das características de


um paradoxo epistemológico. Por um lado, o espaço sagrado representa, na conceituação de
Juan Antonio Ramírez (Cf. RAMIREZ, 1991, p. 19 ss), uma fronteira tênue entre a utopia (o
“não-lugar”) e a eutopia (o “bom-lugar”, o “lugar verdadeiro”). Nada obstante, a Arquitetura
dá-se no topos, no lugar. Desta forma, cria-se o paradoxo de construir o não-lugar dentro do
espaço. E foi a busca da resolução dessa contradição que tem possibilitado aos
construtores/arquitetos ao longo do tempo, em todas as civilizações e em todas as
manifestações religiosas, lançar-se à busca da perfeição edificada.

O homem e a sacralização dos espaços

A reação entre o homem e o sagrado remonta desde os primórdios da Humanidade, como


apontam diversos autores, especialmente Mircea Eliade (ELIADE, 1999, p. 15 ss.). Registros
arqueológicos apontam para a sacralização dos espaços naturais ou mesmo de elementos da
natureza, tais como montanhas, árvores, rios, campinas, cachoeiras, lagos, etc.

Dão testemunho disso as narrativas mitológicas do Olimpo grego ou do Walhala nórdico.


Nesses lugares naturais, mítico um (o Walhala) e com existência real (o Monte Olimpo) o
outro, habitavam os deuses. Eram lugares da manifestação privilegiada dos deuses, que neles
faziam sua morada.

Se a morada dos deuses era em lugar determinado ou que se imaginava e generalizava, como
o orun da tradição nagô-iorubá ou os céus da tradição judaica, por exemplo, sua área de ação
era todo o mundo conhecido, podendo os deuses agir através de elementais (sinais específicos
de sua ação por intermédio de elementos da natureza) ou em todas as áreas de necessidades
humanas.

3
Doutor. Professor Adjunto do Depto. de História e Teoria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da UFRJ. Contato: santosjh@uol.com.br.

416
Para apresentar suas súplicas ou manifestar sua gratidão, aponta Rykwert (RYKWERT, 2010,
p. 10), o homem criou a necessidade de construir moradas terrenas para seus deuses; lugares
apropriados para que se lhes prestasse culto. Esses lugares constituiriam uma tentativa de criar
algo de intermédio entre a casa do homem e o que se imaginava ser a casa dos deuses.

Arquitetonicamente, tais divinas moradas terrenas assemelhavam-se às moradas humanas,


visto a quase universalização da crença de ser o homem semelhante a(os) deus(es) ou mesmo
sua imagem. Contudo, filosoficamente – embora isso estivesse absolutamente distante
racionalmente das preocupações dos homens – criou-se um paradoxo, uma antítese entre o ser
e o vir-a-ser, visto a casa do homem existir em um lugar e tempo dados e atendendo a
necessidades humanas, sobretudo a necessidade de abrigo.

Como estabelecer as necessidades dos deuses? Como dimensionar sua morada? Qual o lugar
no qual ela seria construída e que lugar ela representaria na terra?

A construção de um paradoxo

4
A construção da casa do homem dá-se em topoi específicos, escolhidos de acordo com a
necessidade e a conveniência humana, a casa dos deuses entre os homens deveriam
corresponder a um lugar não existente (a utopia, o não-lugar) ou a um lugar ideal, perfeito (a
eutopia, o bom lugar; o lugar ideal).

Ao fazer isso, porém, traz-se a utopia para dentro da topia, em tentativa de fixar em um lugar
aquilo que, por definição, é um não-lugar. Para usar uma expressão que julgo feliz, seria algo
como corporificar os incorpóreos. Não há modelos físicos a se copiar nem necessidades
objetivas dos moradores a se atender. Em verdade, a construção das moradas dos deuses
reveste-se inteiramente de subjetividades, a partir daquilo que os construtores/cultuadores
definirem serem os locais ideais e as necessidades dos deuses que irão habitar aqueles espaços
sagrados.

Inicialmente, estes tomam a forma de lugares perfeita ou grandemente integrados à natureza,


como Stonehenge ou os cromeleques e dólmens da Bretanha e de outros sítios europeus,
constituindo-se em meros alinhamentos de menires a sacralizar o espaço. Não se constituíam
em moradas dos deuses, mas em lugares privilegiados para o seu culto.
4
Do grego τοποι, “lugares”, pl. de τοπος, “lugar”.

417
É destes primeiros templos naturais que se evoluiu até a concepção da morada dos deuses,
trazendo para a longa duração – o habitar – o que ocorre esporádica ou sazonalmente – o
cultuar. O lugar para o culto não tem, em si, a necessidade de materializar a utopia, mas tão
somente assinalar o lugar de manifestação da eutopia. Contudo, o lugar para a morada dos
deuses precisa ser, de alguma forma, utópico, espelho da perfeição, somatório daquilo que se
imagina ser a melhor tradução do lugar nunca visto e, objetivamente, não existente. Trata-se,
neste caso, de trazer a utopia para dentro da topia.

Não se trata unicamente da escolha de um local onde se desse a teofania, o lugar de


manifestação privilegiada dos deuses, mas também de como dar forma material àquele lugar.
Qual a edificação a ser erigida em honra aos deuses, que lhes servisse de morada e com a qual
estes se identificassem ou às quais fossem identificados pelos fiéis?

Christoph Engels (ENGELS, 2010, p. 6-8) salienta que parte desses lugares escolhidos nos
primórdios da arquitetura do sagrado estavam relacionados a teofanias naturais, como
Stonehenge ou Men-an-Tol, tal como os cromeleques na Bretanha. Sobre a importância de
Stonehenge, Livio Vacchini escreve: “A arquitetura nasceu fazem cinco mil anos em
Stonehenge. Uma vez ultimada a colocação da primeira arquitrave, nasceu uma forma de
conhecimento humano cuja verdadeira natureza consistirá na construção da luz” (VACCHINI,
2009, p. 17).

Eis a estratégia utilizada pelos primeiros arquitetos/construtores: tratar a luz, associada à


manifestação do divino, como elemento construtivo.

Um elemento comum a todas essas edificações é sua verticalidade, correspondendo a um tipo


elementar, arquetípico da Arquitetura: os menires. Se estes, como estruturas não edificadas,
podem ser árvores, rochas ou mesmo montanhas, quando construídos correspondem a
alinhamentos de rochas ou mesmo edifícios com expressiva verticalização.

É o que se vê, por exemplo, nas arquiteturas mesoamericana e sul-americana pré-


colombianas, com a construção de pirâmides e de complexos dispostos ao longo de eixos.
Essa axialidade parece ser uma constante tanto na Mesoamérica quanto na Grécia. Ao tempo
em que os gregos, na construção do Partenon, por exemplo, estruturaram-na a partir do
propileu, os astecas, em Teotihuacán, no México, ao mesmo tempo, erigiam seu complexo de
templos ao longo de um eixo, representando, ainda segundo Vaccchini, “o desejo de possuir a
terra” (VACCHNI, op. cit.,p. 26), associando as dimensões humana e divina na empreitada.

418
A Antiguidade Clássica

Um destaque na edificação dos templos na Antiguidade Clássica é a centralidade de suas


plantas. Não é difícil entender a imagem mental de que, se o Templo é o centro do mundo, sua
planta deveria ser centralizada e em seu centro deveria estar o Santuário, sua parte mais
sagrada.

Esta estruturação constituía em uma ruptura com o mais importante modelo preexistente, que
era o egípcio. Este traduzia a compreensão da vida e da morte pelos egípcios, como, por
exemplo, a rigorosa simetria e os estreitamentos horizontal e vertical, colocando o Santuário
(localizado no fundo do templo) exatamente no ponto focal do observador a partir da entrada
do templo.

Desta forma, os egípcios reproduziam em seus templos a imagem de si, de seu mundo e do
que seria a perfeição do mundo dos deuses.

Já os gregos utilizavam largamente os topos dos montes (as acrópoles) para construir seus
templos, que exerciam simultaneamente o papel de santuários e tesouros. Assim, esses
menires naturais também eram os lugares mais protegidos e mais bem defendidos das cidades,
quer nas ilhas, quer nos continentes.

Um marco na arquitetura religiosa helenística (e mundial) foi a construção do Partenon, em


Atenas, no século V a.C.. Sua construção, executada em grande parte por Fídias, é concebida
a partir de uma fachada toda ela feita na proporção áurea 5, como se vê na figura 1:

5
A proporção áurea ou “seção áurea” consiste na aplicação do número “phi” (φ = 1,618).

419
Figura 1 – A proporção áurea na fachada do Partenon 6

De tal forma a seção áurea parece refletir a busca dessa perfeição que transformaria o utópico
em eutópico que em, pelo menos dois outros grandes monumentos de caráter religioso têm
suas fachadas com a proporção áurea: o Taj Mahal, em Acra, Índia, e a Catedral de Notre
Dame de Paris, na França.

As evoluções construtivas introduzidas pelos romanos, especialmente o uso do concreto, que


oferecia a plasticidade necessária para transitar do sistema trilítico ao abobadado, que permitia
vencer grandes vãos livres, fez com que as plantas dos templos pudessem passar a ser
circulares, alterando o paradigma da localização do Santuário, mas não a da centralidade do
templo como espelho da sua centralidade no mundo.

A tradição judaico-cristã

Na teofania judaica, a revelação de Deus aos homens dá-se por vezes através de fenômenos
naturais ou em lugares específicos. Após a outorga dos Dez Mandamentos, é por ordem do
próprio Deus que foi construída uma Arca para abrigar as Tábuas da Lei, e que deveria
peregrinar com o povo de Israel pelo deserto até que ele se estabelecesse na terra que lhe tinha
sido prometida.

Somente no reinado de Salomão é que se constrói em Jerusalém um Templo que abrigaria a


Arca da Aliança, que se tornaria o lugar mais sagrado do judaísmo. Esse Templo teria
medidas precisas, dadas em revelação pelo próprio Deus. Mais uma vez, a própria divindade
determinava, segundo a crença, como e onde queria sua morada entre os homens.

Destruído uma primeira vez, o Templo de Salomão foi reconstruído mantendo as mesmas
medidas do primeiro, até ser destruído pelas tropas romanas no ano 70 d.C., dele restando
atualmente somente um muro, o Kotel, considerado o mais sagrado lugar do Judaísmo, ao
qual se orientam os armários com os Rolos da Lei das sinagogas em todo o mundo.

Segundo Juan Antonio Ramirez, o Templo de Salomão foi utilizado como modelo para as
Igrejas cristãs (cf. RAMIREZ, op. cit., cap. 2), sendo esse modelo prototípico reproduzido em

6
Foto da Internet com superposição dos elementos geométricos da seção áurea pelo autor.

420
várias igrejas medievais. Desta forma, entendia-se que o Templum Salomonis corresponderia
ao ideal do Templum Domini.

Uma vez mais, a transposição da utopia para a topia.

Segundo Kenneth Frampton (apud BRUZZI, 2001, p.75 ss), a Igreja luterana de Bagsvaerd,
projetada por Jørn Utzon em 1968, sintetizaria a busca da universalidade e do regionalismo,
do utópico e do eutópico.

Ao longo da história do cristianismo, a construção de catedrais e igrejas tem buscado


reproduzir a utopia, quer seja buscando a robustez estrutural românica, a busca dos céus
gótica ou mesmo a utopia barroca. A vertente oriental do cristianismo partia, em sua planta-
base original oitavada, da premissa de que o número oito representaria o oitavo dia da
Criação, aquele no qual, na narrativa bíblica, Deus deixou que o homem agisse; “o primeiro
dia sem que Deus criasse”.

A questão do não-lugar

Persiste uma questão, envolvendo a arquitetura religiosa e do sagrado: a questão do não-lugar.


Como refere Bruzzi, “a palavra ‘edifício’ remete ao construir, edificar, por extensão educar,
instruir (...) No latim, aedes, aedificare associadas a um edifício ou a um ‘lar’, têm latentes
em si o aspecto permanente, portanto público, expresso no ‘ficare’ (BRUZZI, op. cit. P. 37).

Deste modo, pode ser pensada, quanto à edificação religiosa, a permanência da divindade
simultaneamente à permanência dos homens no edifício religioso e deste no meio dos
homens. São edificações para a eternidade. Eis a corporificação do não-lugar, sua
transformação em lugar tangível, visível, palpável.

Disso ocupou-se Martin Heidegger em um brilhante ensaio, Construir, habitar, pensar, de


1951 (HEIDEGGER, 1958, p. 170-193). Embora o foco do filósofo alemão fosse a questão
das cidades, sua contraposição à ideia latina do espaço como um continuum supostamente
infinito com o uso do termo alemão para espaço, Raum, que delimita e circunscreve o espaço,
leva-se à premissa arquitetônica de que não pode haver arquitetura sem topos, sem um espaço
determinado, circunscrito, limitado.

421
A mesma linha é seguida por Otto Friedrich Bollnow, ao pontuar que, “para o arquiteto, a
ideia do espaço infinito não pode sequer ser tomada como possível” (BOLLNOW, 2007, p.
27).

Contudo, os deuses, as divindades, por serem onipresentes, habitam todos os lugares, habitam
o infinito, o que, em uma reductio ab absurdo, significaria dizer que os deuses moram em um
lugar não arquitetônico por excelência e definição. Daí, como construir-lhes morada entre os
homens?

Faz-se necessário recordar que o islamismo, reconhecido pelo esplendor das mesquitas após o
Califado Omíada e o Império Otomano, teve, na figura do próprio Profeta, objeção à
construção de lugares de oração. Uma das esposas de Muhammad, Umm Salama, construiu
um anexo à sua casa em tijolos cozidos quando de uma das viagens do Profeta em 626.
Quando este retornou, recriminou sua mulher, dizendo-lhe “Verdadeiramente, a coisa menos
proveitosa para o bem-estar de um crente é um edifício!” (HOAG, 1979, p. 10). Tal opinião
perdurou durante o período do chamado califado ortodoxo, encerrado com a dinastia Omíada.

Os espaços de transição entre o espaço profano e o espaço sacro, ou entre a topia e a


utopia

Eliade (op. cit., pp 22 ss) salienta que uma das questões mais importantes na construção dos
espaços sagrados é a transição que é feita entre o espaço profano e aquele que é destinado ao
sagrado.

Diversas estratégias arquitetônicas têm sido empregadas pelos arquitetos para que o fiel
transite do mundo para um espaço que, por excelência está no mundo mas não pertence a ele.
O propileu grego sucedeu os grandes salões hipostilos egípcios, e foram sucedidos pelos
átrios romanos.

Herdeiro da tradição arquitetônica romana, o cristianismo adotou também o átrio como espaço
transicional entre esses dois mundos. Tal como no mundo clássico, a estilobata das igrejas
apresentava uma escada, a indicar a ascensão que aqueles lugares sagrados deveriam
proporcionar aos fiéis.

422
No extremo Oriente, esse espaço transicional é composto por jardins e/ou corpos d’água,
podendo os jardins, na tradição zen budista, ser de areia, pedra ou grama.

Qualquer que seja o estratagema arquitetônico, a ideia é que o fiel vá se desligando das coisas
profanas e, gradualmente, conecte-se às coisas sagradas.

Considerações finais

Não se pretende, neste breve texto, responder a todas as muitas questões suscitadas pela
arquitetura religiosa e os paradoxos e possibilidades dela derivados. Não importa o quanto se
considerem os cânones da arquitetura moderna: a arquitetura religiosa está condicionada a
cânones considerados pelos fiéis muito mais elevados e, em muitas situações, imutáveis.

A questão principal que se põe aos arquitetos que se propõem construir templos e espaços
religiosos é a compreensão da linha que separa o utópico do eutópico; o desafio de trazer ao
topos algo que somente existe na utopia, como lugar mágico, mítico ou imaginado; em
essência, um lugar não existente, um não-lugar.

Neste sentido, as conexões que tornam possível a tradução da utopia na topia são, dentre
outras, a utilização de elementos naturais, como a luz e os grandes espaços a ser ocupados
pelas pessoas, representando o elemento ar. A terra, que dá sustentação e base física para a
construção do templo, é outro elemento que, naturalmente e por excelência, está associado ao
espaço sagrado.

Tem-se, portanto, a ideia da sacralização e da posse da terra a partir da edificação de espaços


sagrados. Sem exagero, pode-se afirmar que a arquitetura religiosa não apenas une utopia e
topia, mas também os céus e a terra, os homens e os deuses.

Referências

BOLLNOW, Otto Friedrich. Homem e espaço. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.

BRUZZI, Hygina Moreira. Do visível ao tangível: em busca de um lugar pós-utópico. Belo


Horizonte: C/Arte, 2001.

423
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. S. Paulo: Martins Fontes, 1999.

ENGELS, Christoph. 1000 lugares sagrados. Köln: H.F. Ullmann, 2010.

HEIDEGGER, Martin. “Bâtir, habiter, penser”. Essais et conférences. Traduit de l’allemand


par André Preu avec préface de Jean Beauffret. Paris: Gallimard, 1958, p. 170-193.

HOAG, John D.. Islamic Architecture. London: Faber and Faber/Electa, 1979.

RAMIREZ, Juan Antonio. Edifícios y sueños. Madrid: Nerea, 1991.

RYKWERT, Joseph. A casa de Adão no Paraíso. S. Paulo: Perspeciva, 2010.

VACCHINI, Livio. Obras maestras. Barcelona: Gustavo Gili, 2009.

424
425
A Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro: uma via crúcis de
300 anos
Estela Maris de Souza1

Introdução

O tema em questão aborda um assunto pouco discutido e mesmo esquecido pela cidade do
Rio de Janeiro. Como uma cidade que já foi Sede do Governo Geral passou 300 anos com sua
Catedral itinerante. E como esse espaço sagrado foi ser construído nesse espaço mal
conformado, Esplanada de Santo Antônio, fruto de várias intervenções urbanas e projetos
incompletos.

O texto tem por objetivo mostrar a trajetória da Catedral do Rio de Janeiro desde seu princípio
no Morro do Castelo até sua construção em sede própria na Esplanada de Santo Antônio, no
centro de negócios da cidade. Do ponto inicial ao final, a catedral ocupou três igrejas de
irmandade, pleiteou duas outras igrejas e ainda iniciou a construção de uma sede própria.
Além de ter sido objeto de dois projetos de revitalização da cidade.

Essa via crúcis durou 300 anos e só teve fim em 1976, quando se comemorou o tricentenário
da criação da Diocese do Rio de Janeiro pelo Papa Inocêncio XI no Reinado de D. Pedro II
em Portugal assim como a inauguração da atual Catedral Metropolitana num espaço sagrado
próprio.

A representação do sagrado na vida urbana

As cidades em suas origens sempre tiveram a representação do sagrado. Sejam elas as


ermidas, capelas, igrejas, templos, sinagogas, catedrais, etc. No princípio a expressão do
sagrado acontecia dentro das casas em frente aos altares individuais. Conforme os núcleos
sociais foram crescendo fez-se necessário a construção de espaços que congregassem pessoas
no entorno de uma mesma representação religiosa.

1
Doutoranda em Urbanismo pela UFRJ, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFF. Contato:
emaris711@gmail.com.

426
No Brasil, como um país de colonização portuguesa e no caso específico do Rio de Janeiro, a
definição desses espaços sagrados ficava a cargo da Coroa Portuguesa. Fazia parte do
processo de colonização, a presença do Estado como da Igreja. E assim várias ordens
religiosas se instalaram no Rio de Janeiro com o pretexto de catequizar, entende-se segundo
MENDES et al. (2007), catequizar como um processo de explorar, aculturar e fazer adotar a
estrutura de trabalho colonizador/catequizador. Além disso, também foram construídos vários
templos com características distintas.

Segundo MENDES et al. (2007) as cidades luso-mulçulmanas definiam seu centro cívico e
administrativo em local elevado. No Rio de Janeiro não foi diferente, os portugueses
ocuparam os morros por medida de segurança, no sentido de visualizar a entrada da baía, mas
também havia a dificuldade de ocupar as várzeas alagadiças. Consequentemente as primeiras
igrejas também foram construídas nos morros que compunham o centro da cidade do Rio de
Janeiro. Cada morro foi ocupado por uma ordem religiosa (Mapa 01).

Mapa 01- Mapa com a localização das ordens religiosas. 2

2
Mapa realizado pela autora sobre mapa da metade do século XIX (ANDREATTA, 2006, Pg. 33).

427
A via crúcis...

A catedral tem seu início no Morro do Castelo ou São Januário na época, na modesta Igreja
Matriz de São Sebastião (Figura 01). Construída por Salvador Correia de Sá em 1583. Na
Igreja Matriz foram enterrados os restos mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade. Com a
criação da Diocese do Rio de Janeiro em 1676, a Igreja Matriz foi ocupada como Sé
(Catedral).

Figura 01: Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo3

Sua localização, no entanto, nunca foi do agrado do Cabido que a considerava longe dos
acontecimentos da cidade. Quando do desmonte do Morro do Castelo, a catedral já passava
por um processo de abandono e antes mesmo da demolição do morro, já havia se mudado para
a várzea. A Igreja de São Sebastião veio abaixo junto com o desmonte do Morro do Castelo
em 1922.

3
Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/memorias-do-morro-do-castelo-o-1/next?context=user
4
Mapa realizado pela autora sobre imagem do Google Maps.

428
Mapa 02- Mapa com a localização das Igrejas que sediaram a Catedral4

Portanto, antes do desmonte do morro em 1922, já havia um pleito para que a catedral
descesse para a várzea em 1702 e ocupasse a capela de São José ou a Igreja de Santa Cruz dos
Militares. A partir desse momento começa a via crúcis da catedral (Mapa 02) que não tinha
sede própria e foi ocupando igrejas de irmandade pela cidade. Nessa mesma época, em 1703,
também cogitou um projeto para a nova Sé. Padre Francisco Tinoco chegou a projetar em
Lisboa a Sé, mas não foram atendidos e as súplicas se arrastaram até 1714 com o pleito pela
Igreja Nossa Senhora da Candelária (Figura 03). Mudança que nunca ocorreu.

Figura 03- Igreja da Candelária (no 1 no Mapa 01) 5

5
Fonte: http://capeladomeninodeus.blogspot.com.br/2011/02/paroquia-nossa-senhora-da-candelaria.html

429
Finalmente em 1733 foi transferida para a igreja Santa Cruz dos Militares (Figura 04) onde a
irmandade não recebeu com satisfação a função de Sé e o Cabido na igreja. Tanto que o
Cabido mudou-se na calada da noite, sem solenidade no ano de 1734 juntamente com a
imagem de São Sebastião. No entanto, a fragilidade da construção e ameaça de ruína fez com
que a hospedagem fosse curta. E assim em agosto de 1737, numa solenidade, o Bispo e os
Cônegos foram recebidos com desprazer na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
(Figura 05), uma Irmandade de pretos, permanecendo aí até 1808. Curiosamente essa

Irmandade surgiu na Sé do Morro do Castelo.

Figura 04 - Igreja Santa Cruz dos Militares (no 2 no Mapa 01) 6

Figura 05 - Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (no 3 no Mapa 01) 7

Nesse meio tempo houve a tentativa de se construir uma Sé no Largo de São Francisco
(Figura 06) no terreno da antiga Escola Politécnica da UFRJ, mas as obras iniciadas não
foram levadas a cabo. O engenheiro militar, José Fernandes Pinto Alpoim foi o responsável
por uma primeira planta que não foi aprovada em Lisboa em 1746. A planta foi alterada em
1747 e em 1749 foi lançada a pedra fundamental da tão almejada catedral (Figura 07). As
obras começaram, mas por falta de incentivo e por conta de outros interesses na época, a obra
6
Fonte: próprio autor, jan 2013.
7
Idem 5

430
foi sendo abandonada. As pedras foram inclusive utilizadas na construção do Teatro João
Caetano que segundo a crença popular teve seus dois incêndios em função do uso indevido
das pedras sagradas.

Figura 06 - Igreja São Vicente de Fora, fachada principal, Armando Serôdio, 1960 – inspiração para o projeto
(no 4 no Mapa 01) 8

8
Fonte: http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=231

431
Figura 07 - Planta Baixa e Planta de Situação projeto proposto para o

Largo de São Francisco (no 4 no Mapa 01) 9

Com a chegada do Príncipe Regente em 1808 não fazia sentido que o séquito real se
misturasse aos pretos e D. João eleva a Capela Real a Igreja do Convento do Carmo (recém
reformada) (Figura 08). Na Igreja do Carmo a Catedral fincou raízes até a inauguração da
atual Catedral Metropolitana na Avenida Chile em 1976.

Figura 08 - Igreja do Carmo (No 5 no Mapa 01) 10

9
Fonte: SEPARATA DA REVISTA DE CULTURA DO PARÁ. ANO 6 – Nos 24 e 25 – JULHO/DEZEMBRO
– 1976. BELÉM – PARÁ

432
Figura 09 - Catedral Metropolitana (no 6 no Mapa01) 11

De igreja em igreja, uma catedral...

Igreja de São Sebastião (1567)

A igreja de São Sebastião foi construída logo após a construção do Forte de São Januário em
1567. A igreja tinha duas torres sineiras que eram utilizadas na observação da baía. Nessa
igreja foi instalada a Sé da cidade junto à qual estava o marco de pedra da fundação da cidade
assim como os restos mortais do fundador, Estácio de Sá.

Igreja de Nossa Senhora da Candelária (1811)

Em 1630 foi erguida uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Candelária e quatro
anos mais tarde se tornaria a primeira matriz da várzea. Em 1710 foi reedificada e em 1775
foi completamente reconstruída. Sendo que sua inauguração só ocorreu em 1811 com a
presença do príncipe regente D. João. Segundo Oliveira (2008) sua fachada tem analogia com
a basílica da Estrela, em Lisboa.

10
Fonte: próprio autor, jan 2013
11
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=17229966

433
Figura 10 – Basílica da Estrela (Lisboa) 12 Figura 11 – Igreja Nossa Senhora da Candelária13

Igreja de Santa Cruz dos Militares (1811)

Originalmente no local da igreja foi construído um forte, Forte da Santa Cruz no início do
século XVII. Ficando o forte em desuso, de 1623 a 1628, construiu-se no local uma capela
para a Irmandade dos Militares. Em 1780 foi decidida a reconstrução do templo. Após cerca
de trinta anos de obras, a igreja foi consagrada em 1811, com a presença de D. João VI, então
príncipe regente. Sua fachada é semelhante à Igreja Jesuítica de Roma (Il Gésu) assim como à
Igreja de Nossa Senhora dos Mártires em Lisboa. Funcionou com Catedral de 1703 a 1733.

12
BASÍLICA DA ESTRELA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Bas%C3%ADlica_da_Estrela&oldid=35972542>.
Acesso em 10 de ago. 2013.
13
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas igrejas do Rio de Janeiro. Brasília, DF:
Iphan/Programa Monumenta, 2008. 3 t. (396 p.): il.; 13cm. (Roteiros do Patrimônio; 2) – VOL. 2, pg. 50.

434
Figura 12 – Il Gesú (Roma) 14 Figura 13 – Nossa Senhora dos Mártires (Lisboa) 15

Figura 14 – Igreja Santa Cruz dos Militares 16

14
BASÍLICA DA ESTRELA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Bas%C3%ADlica_da_Estrela&oldid=35972542>.
Acesso em: 10 ago. 2013.
15
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=239197&page=6
16
Foto: Luiz Antonio Doria. http://www.rdvetc.com/2011/recantos-do-rio-a-tradicional-rua-direita/

435
Igreja Nossa Senhora do Rosário e do São Benedito (1725)

A Irmandade carioca de Nossa Senhora do Rosário data do século XVIII e sua igreja começou
a ser construída em 1700 e estava terminada em 1725. A fachada de igreja foi remodelada em
meados do século XIX tendo sido conservado, no entanto, o pórtico de excelente gosto e
fatura e as torres brilhosas. Internamente, nada tem a ver com a decoração original, pois se
incendiou em 1967, restando-lhe apenas a estrutura das paredes. As dependências do
consistório da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito foram utilizadas em
períodos destacados de nossa História, ali foram realizadas diversas Seções do Senado da
Câmara às vésperas da Independência, assim como foi redigida a representação popular que
culminou no Dia do Fico. No templo repousam os restos mortais do Mestre Valentim.

Figura 15 – Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (1817/1818) 17

Igreja de Nossa Senhora do Carmo da antiga Sé (1770)

A igreja surge a partir de uma capelinha dedicada a Nossa Senhora do Ó em 1590. Os frades
construíram um grande convento ao lado da capela que deu lugar à atual igreja a partir de
1761. O novo templo foi sagrado em julho de 1770.

Com a chegada da família real portuguesa e de sua corte ao Rio de Janeiro, em 1808, o
vizinho Paço dos Vice-Reis (atual Paço Imperial) foi utilizado como casa de despachos da
corte. Como D. Maria I foi instalada no Convento do Carmo, os edifícios foram ligados por
um passadiço elevado sobre a Rua Direita (atual Primeiro de Março). D. João VI designou a
17
Igreja do Rosário e São Benedito ainda com o frontão maneirista setecentista, Thomas Ender, 1817-18.
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br/2010/11/igrejas-historicas-do-centro-do-rio.html

436
Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo como nova Capela Real Portuguesa e mais tarde
como Catedral.

Como capela real, a Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo foi palco de importantes
eventos, como a sagração de D. João VI como rei de Portugal, em 1816, após a morte de D.
Maria I. Aqui, também se casaram o príncipe D. Pedro, futuro imperador do Brasil, com D.
Leopoldina de Áustria, em 1817. Sagração de D. Pedro I na Capela Imperial em 1822. Após a
Independência do Brasil, a igreja passou a ser a Capela Imperial e sediou as cerimônias de
sagração dos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, bem como o casamento da Princesa Isabel
com Louis Phillippe Gaston d’Orléans, o Conde D’Eu, em 1864.

Figura 16 – Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé 18

Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro (1979)

Sua pedra fundamental foi lançada em 1964. Em 1976, Ano do Tricentenário da


Arquidiocese, o altar-mor da Catedral de São Sebastião foi sagrado, mas o verdadeiro marco
18
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Catedral1.jpg

437
de inauguração foi em 1979. O projeto foi do arquiteto Edgar Fonceca, professor da PUC do
Rio. O engenheiro foi Newton Sotto Maior e o mestre de obras Joaquim Corrêa.

A Catedral tem as seguintes medidas: 75 metros de altura externa e 64 metros de altura


interna, 106 metros de diâmetro externo e 96 de diâmetro interno, cada vitral: 64,50 x 17,80 x
9,60 metros; área de 8.000 m2, com capacidade para abrigar 20.000 pessoas em pé ou 5.000
sentadas. Seu símbolo maior é a cruz no teto no centro da catedral. Os quatro vitrais de
fechamento estão localizados segundo os pontos cardeais e representam quatro características
da igreja: Una, Santa, Católica e Apostólica.

Figura 17 – Teto Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro19

O rompimento da tipologia arquitetônica

Pode-se concluir que a arquitetura religiosa no Brasil colonial ficou condicionada à presença
das ordens religiosas. O desenvolvimento urbano no Rio de Janeiro esteve intimamente ligado
à Igreja Católica assim como a tipologia arquitetônica religiosa. Isso em função da proibição
da Coroa portuguesa em professar outros credos. Os edifícios religiosos juntamente com
edifícios representativos do Estado foram muito influentes no sentido de delimitar
espacialmente assim como denominar morros e logradouros. Um exemplo são os principais
morros do centro do Rio de Janeiro sendo ocupados por ordens religiosas distintas.

19
Foto da própria autora.

438
A tipologia arquitetônica utilizada pela Igreja Católica era bem peculiar: corpo da igreja
propriamente dito e o claustro acoplado a esse corpo. Em termos ornamentais, as igrejas do
período colonial tiveram influência barroca e maneirista. A riqueza dessas ornamentações
dependia da ordem a que pertencia. Algumas das catedrais brasileiras datam do período
colonial ou são reformas de igrejas matrizes da época.

A Catedral atual traduz o período de transformações modernistas em que o antigo dava espaço
ao novo, ao moderno através da cidade espetáculo. Impõe-se pela escala e sua forma insólita,
alterando o paradigma tipológico consagrado na construção de edificações religiosas no Rio
de Janeiro colonial.

Considerações finais

Nessa via crúcis é necessário ressaltar que essas igrejas de irmandades por onde passou a
Catedral não ficavam nem um pouco felizes em receber a estrutura da Sé, pois perdiam a
liberdade e seus custos eram onerados, fora as reformas de partido arquitetônico que se era
necessário fazer para receber a função de Sé e o Cabido. Portanto, foram 300 anos de
atribulações desde que a Catedral deixou o Morro do Castelo e se instalou na Esplanada de
Santo Antônio.

(...) São trezentos anos de vida episcopal na mui heróica e leal Cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro à espera de sua muito sonhada ‘Domus Dei’. (...) Três séculos de via-sacra,
de esperança, de peregrinações e lutas. (...) Que estas páginas sejam uma recordação
modesta de um grande ideal perseguido e conquistado, onde não faltaram a fé e a
perseverança de tantos, apesar das muitas ‘pedras ‘havidas nessa via-sacra, ‘pedras que,
simbolicamente, construíram a nova mole de concreto: ‘Ad majorem Dei Gloriam’.
(JUNIOR, 1976, pg. 42).

Hoje as torres das igrejas, que outrora marcavam a paisagem da cidade, são refletidas pelas
torres envidraçadas dos edifícios de negócios. O que fora edificado para Deus e marcava a
vida da cidade dá lugar ao profano, mas isso já é outra história...

Referências

CALLIARI, Ivo Antonio. Trezentos anos depois. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977.

439
BITTAR, William; MENDES, Chico; VERISSIMO, Chico. Arquitetura no Brasil: de Cabral
a D. João VI. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2007.

JÚNIOR, Donato Mello. A Catedral que o Rio de Janeiro não chegou a ter. Revista de cultura
do Pará, ano 6, nº 24 e 25, Belém, julho/dezembro, 1976.

PILAGALLO, Oscar. Crenças e templos: devoção e fé. São Paulo: Folha de São Paulo, 2012.

Internet

FRIDMAN, Fania e MACEDO, Valter L. A ordem urbana religiosa no Rio de Janeiro


colonial. Disponível em: <http://www.ifch.unicamp.br/ciec/revista/

artigos/dossie2.pdf> Acesso em 08 de fev. 2013.

PORTAL UM. Catedral de São Sebastião – Rio de Janeiro. Disponível em:


<http://www.portalum.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1621:

catedral-de-sao-sebastiao-rio-de-janeiro&catid=93:turismo-religioso&Itemid=451> Acesso
em 22 de fev. 2013.

440
441
A presença dos anjos na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades
Fernanda Maria Trentini Carneiro1

Introdução

Este artigo propõe apresentar a imagem do anjo presente na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades, localizada na Freguesia de Santo Antonio de Lisboa, em Florianópolis. Estas
imagens se encontram talhadas em retábulos e pintadas em tábuas que cobriam o pano de
fundo do nicho do altar-mor. Pretende-se comparar a imagem destes anjos com referências da
história da arte, especialmente a influência da arte barroca, que caracterizou um ponto forte da
Igreja Católica na representação de imagens divinas, como referência e importante fator na
construção do repertório visual e artístico. A apresentação sugere a significativa aparição do
anjo, bem como a valorização destas pinturas como memória artística local.

Na arte religiosa cristã, o anjo se fez necessário como mediação entre o divino e o profano.
Muitas das imagens aladas foram construídas tendo como referência modelos artísticos
passados e de diferentes culturas, com propósito de representarem vícios, virtudes e estados
da vida utilizados como alocução em um verificado contexto. Os anjos, seres de significado
religioso, possuem a função determinante de serem os mensageiros de Deus e que “ocupariam
para Deus as funções de ministros: mensageiros, guardiões, condutores de astros, executores
de leis, protetores dos eleitos, etc., [...] e também o papel de sinais de advertência do
Sagrado”. Em sua maioria, a figura do anjo, aparece como seres do bem, aquelas que fazem
boas ações, “que formam o Exército de Deus, sua corte, sua morada. Transmitem suas ordens
e velam sobre o mundo”, como anjos da guarda e acompanhantes (CHEVALIER, 2003, p. 60-
61).

Ainda assim, nas Sagradas Escrituras, a construção figurada apresentada nas passagens serve
para demonstrar a amplitude de Deus e sua potência diante das criaturas e da natureza. Como
o ser divino incorpóreo não se faz presente, é por meio das aparições de símbolos instantâneos
e duradouros que se comete mostrar diante dos olhos mundanos. Assim, para a compreensão
do incompreensível, para ensinar e projetar mensagens confusas à visão humana, “[...] a
1
Mestre pelo PPG em Artes Visuais da UDESC. Artigo resultante do trabalho de dissertação “Sobre anjo e suas
asas na arte” (2010). Membro do GP História da Arte: imagem-movimento (UDESC).
Contato:fetrentini@gmail.com.

442
imagem impressiona mais facilmente o espírito que a palavra” (BOAVENTURA, 2004, p.
47).

Sobre a arte colonial luso-brasileira

A imagem do anjo teve grande predomínio na arte cristã, principalmente nas construções
decorativas cenográficas da Sagrada Escritura no interior das instituições religiosas. Dentro
das igrejas e das capelas, a inserção das imagens divinas deu-se visando à educação,
principalmente para aqueles que desconheciam as Escrituras Sagradas por não saberem ler.
Retomavam-se atitudes sagradas como referência para as atitudes humanas, pois as imagens
são mais bem compreendidas e gravadas pela memória, sendo relembradas posteriormente.
Assim, as imagens introduzidas e produzidas, principalmente nas igrejas, são para recordar as
ações divinas e as atitudes esperadas pelos homens na terra.

O que contribuiu para o aprofundamento e mobilização de novas formas de representações


simbólicas foi a instauração persuasiva da Contra-Reforma, possibilitando à Igreja Católica a
construção de um repertório vasto e rico da iconografia cristã, principalmente no período dos
séculos XVI e XVII, originariamente na Europa, na ocasião das divergências quanto às
questões éticas, sociais e morais e especialmente religiosa. À tensão ocorrida neste período
deu-se o nome de Barroco. Termo este que se caracterizou como resposta a algumas
instigações ocorridas durante esse tempo, enfatizadas na história e história da arte (figura 1).
O Barroco é um conceito vasto e estudado por muitos teóricos, exigindo-se o manuseio de um
considerável número de informações profundas.

443
Figura 1 - Murillo, Bartolomé Esteban. The Immaculate Conception (1678).

Oil on canvas, 274 x 190 cm. Museo del Prado, Madrid.2

Figura 2 – Peter Paul Rubens. Assumption of the Virgin. c. 1620. Oil on canvas, 458 x 297 cm.
Kunsthistorisches Museum, Vienna.3

2
Disponível em <http://www.wga.hu/art/m/murillo/3/311muril.jpg>, acesso em 01 ago. 2013.
3
Fonte: Disponível em <http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/r/rubens/12religi/>, acesso em 01 ago. 2013.

444
O aspecto dado no barroco religioso teria como motivo expressar e propagar características
repletas de signos, símbolos e significados, e o interior dos templos religiosos, como igrejas e
capelas, foram palco e cenário de enorme execução artística no entrecruzamento de
linguagens, como escultura, pintura e arquitetura, caracterizando um espaço que enfocasse a
suntuosidade da casa do Senhor Deus. Nessa ocasião, precisava-se apelar para as emoções
frente aos fiéis que pudessem provocar temeridade à religião e, ao mesmo tempo, o
envolvimento com ela (figura 2).

As ocorrências das estruturas históricas na Europa atingiram o Novo Mundo, a colonização


das Américas, no reflexo das características artísticas, principalmente entre as portuguesas e
espanholas. Cabe ressaltar que os aspectos predominantes da arquitetura religiosa no Brasil
são provenientes do conhecimento artístico português:

Muito simples no exterior, que praticamente só exibe ornamentação na fachada, as igrejas


possuem interiores forrados de talha dourada, que em geral cobre por inteiro as paredes e o
teto. Esse tipo de ornamentação adquiriu extraordinária exuberância [...] caminhou para a
unidade e a harmonia sob a influência do rococó (BAZIN, 1993, p. 235).

O Brasil, na condição de colônia portuguesa, teve grande diversidade cultural de extensão


europeia, que pode ser encontrada nas construções religiosas, como igrejas e capelas,
difundidas para representar e inserir na construção social a ordem e os mandamentos da Igreja
Católica. As igrejas trouxeram, além da religião, uma forma de iniciar o povoamento local e
os aspectos artísticos da época, sendo apresentados em seu interior e seu exterior.

Como centro irradiador e construtor cultural e histórico da sociedade nesse período, a Igreja
esteve submissa aos domínios do poder político português. Ricamente ornamentada, a Igreja
cumpria seu papel de disseminadora das ideias persuasivas da religião, e como local
explorado pelo reinado português como difusor de normas sociais, possibilitando-nos ver em
algumas obras a presença figurada da imagem do rei. Nisso, no contexto colonial luso-
brasileiro, o Padroado português era tido como referência fundamental da vida religiosa do
período.

A relação entre a religião e a fundação de vilas não se limita, porém, aos patrimônios:
Igreja e Estado, no período colonial, formavam um só poder; tendo o rei a autoridade – a
ele concedida pelo papa, mediante um tratado denominado ‘Padroado’ – de instituir bispos,
padres e demais membros do clero secular. Ao rei de Portugal, e unicamente a ele, cabia,

445
também, desde a concessão das fundações das vilas até a salvação da alma dos vassalos
(TIRAPELI, 2005, p. 16).

A preocupação da Igreja na construção, conservação e controle por parte dos fiéis com base
nos preceitos religiosos, principalmente na relação dos fiéis com a igreja, tanto espiritual
quanto estrutural, ou seja, administrativa e arquitetônica, fez com que houvesse uma
responsabilidade ainda maior na construção arquitetônica e ornamentação das igrejas
aplicadas sob regulamentos eclesiásticos. Por meio do decoro, pressupunha-se como costume,
como constância, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados para o
desenvolvimento conveniente na construção, execução e imitação da arquitetura e artes
(BASTOS, 2009). O decoro foi responsável pela conformidade dogmática da Igreja Católica.
Essa orientação caberia para que os fiéis pudessem imitá-lo e, assim, seriam conduzidos à
moralidade e compostura religiosa católica. Dentre eles, destacamos Manoel da Costa Ataíde
(Figura 3), artista mineiro, cujas pinturas e esculturas apresentam as proposições dogmáticas
cristãs, como a representação de anjos, santos, padroeiros das igrejas e capelas e outros.

Dessa maneira, a preocupação com o decoro instaurada em Portugal também refletiu na


execução decorosa em suas colônias, mesmo auxiliada pelos modelos trazidos da Corte com a
limitada elaboração artística e arquitetônica pelos materiais regionais, repertório local e
desenvolvimento econômico.

Figura 3 - Manuel da Costa Ataíde. Forro da nave da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto.

Pormenor do quadro central.4

4
Fonte: ANDRADE, J. P. D.; FROTA, L. C.; MORAES, P. D. Ataíde: vida e obra de Manoel da Costa Ataíde.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira S.A., 1982.

446
Inicialmente, a arte religiosa colonial luso-brasileira deu-se no litoral em função da
colonização, principalmente Nordeste e Sudeste, em que grande parte da imponência dos
materiais preciosos era originada da extração do ouro. Assim, em meados dos Séculos XVII e
XVIII, com o ciclo do ouro, a decoração interior de igrejas e capelas, com as talhas e os
objetos, foram suportes e palcos para a suntuosidade do poder ocasionado pelo material
precioso (figura 4 – A e B).

Figura 4 (A e B) - Igreja e Convento de São Francisco (1782). Salvador, Bahia.5

Na Região Sul, o desenvolvimento da arte colonial luso-brasileira, entre os séculos XVII e


XVIII, havia uma limitação para o desenvolvimento, devido ao fato de sua economia estar
voltada para a agricultura, pois a extração de ouro e o ciclo da cana-de-açúcar eram ausentes
na região.

O Sul foi pobre, e o eco das minas de ouro e diamante talvez nem tivesse chegado até lá. O
sul foi o grande enjeitado do Brasil-colônia; medrou na luta contra os castelhanos e
manteve-se em pé de guerra para se sustentar. Não teve possibilidade alguma de uma fuga
da realidade monótona, em busca de um ideal religioso. Tudo era rotina e isolamento. O
barroco que nos legou foi esporádico, frio e tranqüilo. Existiu, por certo, até mesmo belo na
sua modéstia, mas sem emoção. Frio e calculado, mas nem por isso menos barroco. A
religião e a forma de governo foram as mesmas, mas não houve condições econômicas para
qualquer tipo de exaltação coletiva. Houve um ideal no Sul, mas, por exceção, não foi

5
Fonte: Fotografia da autora (2009).

447
religioso, foi político: o ideal das pátrias, pois seus habitantes, portugueses, defenderam
para suas pátrias, e para nós, a terra que ocupavam. O élan político sobrepujou o religioso
(ETZEL, 1974, p. 56).

Uma das consequências para essa ausência de investimento cultural no Sul foram os conflitos
ocorridos entre espanhóis e portugueses. Os investimentos estavam voltados à segurança do
espaço, por meio do povoamento das terras. Dessa forma, foram pouquíssimos os recursos
investidos nas edificações e decorações, e as que foram erguidas e decoradas possuem certa
singeleza e simplicidade, mas continuaram com as características devocionais da fé do povo.

As igrejas acompanharam o homem do barroco; nelas ele deixou a marca de suas angústias,
representadas por uma arquitetura cheia de profunda fé, opulenta em ouro e arroubos
plásticos, que marcou esta época frenética da nossa história, perpetuando e como que
desmentindo a dura realidade do mundo exterior, o fim da opulência da época do ouro do
Brasil - colônia (ETZEL, 1974, p. 48).

Destacamos a fundação da Póvoa de Nossa Senhora do Desterro, atual cidade de


Florianópolis (1673). Inicialmente, a ilha permanecia deserta e, em consequência das invasões
e necessidades em povoá-la, executaram procedimentos enérgicos para o povoamento da
região. A colônia portuguesa enviou a Póvoa famílias açorianas, que tiveram grande
contribuição na formação urbana, na história, na cultura e nos costumes.

Ausente o progresso, faltavam o dinheiro e o alento, promotores das grandes realizações


artísticas. [...] podemos compreender o porquê dos raros remanescentes barrocos do Sul,
presentes, belos, embora modestos, em plena harmonia com a história do Brasil-colônia.
Outras, completamente alteradas na sua feição exterior e, sobretudo na interior, com
acentuada mistura de estilos e até figuras antropomorfas de sabor missioneiro (ETZEL,
1974, p. 237).

Os carpinteiros e artesãos açorianos, movidos pela religião católica, construíram dessa forma
igrejas, capelas e retábulos. Pela falta de especialização, a execução nem sempre obedecia às
especificidades exigidas, mas a iconografia cristã permanecia na representação da iconografia
da Contra-Reforma, destacando a motivação pela fé cristã.

O material regional propiciava a exploração da madeira no interior das igrejas, sendo


elaboradas as talhas com detalhes. Ao contrário da parte externa, pela carência de amplos
recursos e de materiais apropriados, a decoração tornou-se mais simples e singela. Algumas
dessas características são apontadas por Etzel:

448
Em contraposição, temos que reconhecer que nem sempre o barroco no Brasil foi assim
representado, pois houve regiões onde as condições socioeconômicas determinaram outro
tipo de construções. Neles, teve expressão modesta, sem ouro; a talha, ambiciosa na sua
pobreza,manifesta-se em alguma coluna salomônica, em raras volutas simétricas, em linhas
curvas, numa que outra folha de acanto, em raros e grosseiros anjos. O intuito na fé foi o
mesmo, os recursos é que foram mínimos (ETZEL, 1974, p. 29).

O interior das igrejas e capelas apresenta-nos uma preciosidade de detalhes, pois sua execução
requereu destreza e qualificação na utilização dos materiais corretamente. Os elementos
alegóricos e signos encontrados tiveram como modelo reproduções ou representações de
materiais propagadores dessas imagens, como pinturas e gravuras. A partir desses exemplares,
criavam outras formas das partes de um todo, apresentando diversos jogos de composição.

Os anjos da Capela de Nossa Senhora das Necessidades

Dentre esses elementos, podemos observar a presença de anjos. As figuras antropomórficas


são formas de aproximar o homem ao semelhante, tornando-se assim um caminho mais
estreito à chegada ao paraíso. Os anjos nas talhas e pinturas luso-brasileiras muitas vezes
possuem corpos sedutores, olhares sensuais e delicados, formas angulosas, movimentos e
gestos sinuosos. Parecem dançar e voar entre os veios da madeira, em poses delicadas e
sensuais ao mesmo tempo. Percebemos que nas igrejas onde foram executadas intensas
ornamentações a presença do anjo torna-se um símbolo figurativo e decorativo, como um
figurante nesse cenário do teatro sacro, quase desaparecendo entre outros elementos nos veios
das talhas e cenas alegóricas de pinturas (figura 5).

Figura 5 – Retábulos laterais e Altar-mor. Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Florianópolis,
Santa Catarina.6

6
Fonte: Fotografia da autora (2005).

449
No entanto, apesar do imenso número de elementos compositivos em uma mesma igreja, os
anjos são executados com detalhes, harmonia e destreza. Nisso, confere uma imagem doce,
sinuosa e delicada, mesmo apresentando muitas vezes um semblante envelhecido e um corpo
desproporcional.

Nas igrejas da Ilha de Santa Catarina que possuem a imagem do anjo demonstram um caráter
singular. Mesmo estando em torno das imagens divinas, os anjos estão dispostos tão
separadamente que conferem uma posição de protagonistas dentro desse cenário sacro.
Contudo, os anjos aqui presentes mostram pouco movimento, confecção pouco rebuscada e
simplicidade das formas e figurabilidade. Isso demonstra o baixo investimento cultural,
porém não ignorado, devido à escassez de materiais e qualificação dos artesãos.
Apresentamos a Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755), localizada na Freguesia
de Santo de Lisboa, na Ilha de Santa Catarina, e que possui imagens de anjos em suas talhas e
pinturas, porém de forma simples e escassa, em comparação com as demais igrejas
observadas no Sudeste e Nordeste do País (Figura 6 A e B).

Figura 6 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).

Nave lateral com sacrário. Florianópolis, Santa Catarina. 7

A presença dos anjos na Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) pode ser vista em
maior número em seus dois retábulos laterais. Aqui “notável nos dois retábulos são as
numerosas cabeças de anjos que se encontram no frontão, nos coartelões e no sacrário. No
7
Fonte: Fotografia da autora (2008).

450
mais, enfeites fitomorfos com margaridas e guirlandas” (ETZEL, 1974, p. 246). No altar-mor,
a presença do anjo se dá pelo olhar minucioso, pois devido às inúmeras camadas de tinta
branca, a presença do anjo na talha torna-se de difícil identificação -. Apesar dessa
complicada assimilação, Etzel (1974) dá pistas de sua localização: “[...] o escudo do frontão
do altar-mor, a nosso ver, esclarece a disparidade apontada”, cujo apontamento explicava a
falta de figuras antropomorfas no altar-mor, diferentemente dos laterais, “ostenta o Divino,
encimado por um querubim e uma grande coroa [...]”. Etzel supõe que provavelmente esse
escudo foi inserido posteriormente. Os anjos encontrados na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades demonstram a simplicidade de ornamentos, e suas formas são simples, com
poucos detalhes pictóricos elaborados (Figura 7 A e B).

Figura 7 (A e B) - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).

Altar-mor e escudo. Florianópolis, Santa Catarina. 8

Ainda assim, na Capela de Nossa Senhora das Necessidades, na pintura do nicho principal do
altar-mor, são encontradas figuras de anjos, especificamente cabeças aladas em seis tábuas
ordenadas e que circundam uma imagem não identificável, mas que é visível a presença de
linhas retilíneas que apresentam ao seu redor, como uma silhueta de luz resplandecente
(Figura 8). Muitas vezes, esses anjos estão ao redor de uma imagem, não identificada, mas
que podemos interpretar como uma figura de santo, Virgem, Jesus ou padroeiro da Capela,
que está sendo adorado ou acompanhado na sua ascensão pelos anjos (figuras 1 e 2). Em

8
Fonte: Fotografia da autora (2009).

451
algumas pinturas do período colonial luso-brasileiro, alguns anjos velam ou carregam a
imagem central “sobre nuvens encapeladas e querubins apinhados em torno dela, como
enxames de insetos em redor de uma vela acesa” (KITSON, 1966, p. 46) (Figura 3).
Entretanto, ao observarmos o interior das igrejas, principalmente aquelas do período colonial,
que dispõem de anjos na composição decorativa, existem repetições em seu arranjo, porém
contidas com certa singularidade.

Figura 8 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).

Nicho principal do Retábulo do altar- mor e detalhe. Florianópolis, SC.9

Esses anjos observados na capela, de modo geral, possuem um semblante sóbrio e ameno. São
poucos aqueles que demonstram movimento, conferido em alguns anjos da Capela de Nossa
Senhora das Necessidades, no posicionamento de estar voltado para diagonal ou para cima,
mas, em sua maioria, os anjos estão apresentados apenas como cabeças aladas de frente e
estáticas. Seus traços são rápidos e há pouco movimento dado às asas (figura 9).

9
Fonte: Fotografia da autora (2009).

452
Figura 9 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).

Nicho principal do Retábulo do altar- mor (detalhe). Florianópolis, SC.10

Assim, encontra-se a presença da figura antropomórfica nessas igrejas, nesse caso,


representada pelos anjos, em conjunto aos demais elementos com predomínio de
características do rococó, em que “[...] as cintilações douradas dos ornatos são postas em
evidência pelos fundos claros ou em tonalidades suaves [...], configurando uma decoração
suntuosa, simultaneamente leve e graciosa [...]” (OLIVEIRA, 2003, p. 13), predominando
elementos de flores, frutos, pássaros e anjos.

A presença do anjo no decoro encontra-se na construção da composição artística das


instituições religiosas, como ser divino que aproxima o homem do divino, do celeste, de
Deus. O repertório para a inserção dos anjos na proposição decorativa é encontrado em
gravuras, em livros, em catálogos da época ou anteriormente a ela, de forma a seguir os
preceitos exigidos no momento. A utilização do anjo no decoro foi como elemento decorativo,
plástico-artístico e persuasivo de um espaço sacro. A imagem do anjo como corpo persuasivo
aos ideais exigidos foi construída como corpo sedutor e sagrado, mediador do celeste ao
terreno, e vice-versa. A utilização do anjo procurou direcionar o olhar do espectador para o
espaço e o cenário sagrados. Encontrados nas construções religiosas, os anjos seguiram
composições próximas, sendo localizados em ascensão à imagem sagrada, adorando-a ou
guardando-a, entre nuvens, ou posicionados como guardiães. Eles aparecem frequentemente
em torno do padroeiro, como mediador entre sagrado e profano, carregando objetos religiosos
e divinos, como alegoria no cenário sacro (figura 10).
10
Fonte: Fotografia da autora (2009).

453
Figura 10 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).

Detalhe da talha. Florianópolis, SC. 11

Esse povo de devoção forte da fé católica ergueu suas igrejas na esperança e no conforto de
serem acolhidos e salvos dos acontecimentos em uma terra desconhecida. Mesmo com as
invasões, saques e destruições, e, ainda, pelas funções de povoamento da ilha para manter a
segurança e garantir as terras da colônia, estes não impediram de o povo aplicar seus
costumes, suas histórias e sua religião.

Considerações finais

As imagens, por meio da arte, na representação dos símbolos e pela iconografia cristã,
aproximam o mundo opaco dos símbolos de Deus às formas visíveis aos homens. Mas essa
aproximação de Deus à perfeição não caracteriza a totalidade dada à imagem, pois esta
desconhece o contexto completo que só Deus pode ter e caracteriza a obra como execução do
presente construído nas bases do passado e projeções do futuro (GROULIER, 2004). A
aparição de Deus aos homens continuamente teve relação com os objetos materiais e visíveis,
com os símbolos, “já que a Deus é mesmo impossível de se representar, porque é
incomensurável, circunscrito e invisível [...]” (DAMACENO, 2004, p. 30).

Assim, os seres alados, como os anjos, são fonte de referência e modelo ao ser humano. Os
anjos encontrados no interior de igrejas e capelas sugerem não apenas uma imagem com
caráter decorativo e aproximação do ser humano ao espaço celeste. Desta forma, as

11
Fonte: Fotografia da autora (2009)

454
características permanecem vivas quando se observa a presença de figuras carregadas de
elementos alegóricos, como os anjos, e que sua presença tornou-se um símbolo figurativo e
decorativo, como um figurante nesse cenário do teatro sacro. Tanto na arte quanto na
arquitetura colonial luso-brasileira, tendo o decoro como o cerne na execução das artes nas
igrejas, ou seja, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados, a representação dos
símbolos pela iconografia cristã, os seres alados, como os anjos, são fonte de referência e de
modelo como espelho humano.

Referências

BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura


religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado Área de Concentração:
História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo) – Núcleo de Pós- Graduação da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2009.

BAZIN, German. Barroco e rococó. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BOAVENTURA, S. O livro das sentenças. In: LISCHTENSTEIN, J. A teologia da imagem e


o estatuto da pintura. São Paulo: Ed. 34, v. 2, 2004. p. 47-50.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 19. ed. Rio de Janeiro: Olympio, 2003.

DAMACENO, João. Discurso apologético contra os que rejeitam as imagens sagradas. In:
LISCHTENSTEIN, J. A teologia da imagem e o estatuto da pintura. Tradução de Magnólia
Costa. São Paulo: Ed. 34, v. 2, 2004. p. 26 – 46.

ETZEL, Eduardo O barroco no Brasil. Psicologia - remanescentes em São Paulo, Goiás,


Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos,
1974.

GROULIER, Jean-François. A teologia da imagem e o estatuto da pintura. In:


LISCHTENSTEIN, A. A teologia da imagem e o estatuto da pintura. São Paulo: Ed. 34,
2004, v. 2, p. 9-15.

KITSON, Michael. O mundo da arte: O barroco. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1966.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O rorocó religioso no Brasil e seus antecedentes
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TIRAPELI, Percival. Arte sacra: barroco memória viva. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2005.

455
456
Arquitetura e religião: o caso da igreja da Irmandade do
Santíssimo Sacramento
Claudia Barbosa Teixeira1

Introdução

No período colonial, em função do regime de padroado, a construção de templos por


iniciativa da Igreja Católica era lenta. Porém, a religiosidade da pequena população
portuguesa os levava a erigir ermidas e capelas dedicadas aos santos de sua devoção. Em
diversos casos estas capelas eram mantidas por irmandades ou confrarias. O leigo passou a
ocupar uma posição mais participativa na igreja do Brasil, ao contrário do que acontecia na
Europa (Hoonaert, 1979). Eram os sinos das igrejas que ditavam a rotina dos moradores da
cidade. Eram as festas religiosas que permeavam a vida social desde os menos favorecidos até
os mais abastados. Enfim, a igreja era o centro da vida comunitária, animada pelas diversas
Irmandades leigas.

Essas associações se implantaram em diversas igrejas na cidade. Verificou-se que a partir da


construção dos templos dedicados ao santo de sua devoção, algumas áreas da cidade ainda
desabitadas e sem nenhuma infraestrutura, receberam melhoramentos devido à sua
implantação naquela região. Igualmente através das Irmandades religiosas os leigos puderam
manifestar seu sentimento religioso nas construções de seus templos e, dessa forma exercer
um importante papel na manutenção da fé católica na cidade do Rio de Janeiro, mesmo
quando as Ordens Religiosas em meados do século XVIII perdem seu prestígio.

Uma das primeiras Irmandades a se constituir na cidade foi a do Santíssimo Sacramento, com
seu altar de devoção na igreja de São Sebastião no Morro do Castelo. Este trabalho tem como
objetivo apresentar na paisagem urbana da cidade a construção da igreja do Santíssimo
Sacramento da antiga Sé, no ano de 1816, identificando os elementos construtivos que
atendiam as disposições eclesiásticas da época. A escolha pelo templo dessa Irmandade se deu
por dois motivos. O primeiro diz respeito ao curioso fato de que essa associação foi uma das
primeiras a ser instituída na cidade e uma das últimas a erguer seu próprio local de culto. Em

1
Doutoranda em História pela UERJ, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFF. Bolsista pela CAPES.
Contato: claudiabarbosa@ibest.com.br.

457
segundo porque não há na historiografia um número significativo de trabalhos sobre as
Confrarias do Santíssimo Sacramento. Boschi (2006) chama a atenção para essa questão:

Observe-se que a absoluta preponderância, quase que exclusividade, das pesquisas sobre as
irmandades coloniais brasileiras se concentram naquelas que foram criadas e promovidas
por negros e mulatos. São raros, na atual historiografia brasileira, os estudos dedicados às
associações leigas de brancos.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé

Algumas Irmandades iniciaram sua devoção em altares ou capelas “emprestadas” no interior


de algumas igrejas. Esse foi o caso do Santíssimo Sacramento, instituída na cidade entre os
anos de 1567 e 1569, que possuía uma capela na igreja matriz de São Sebastião no alto do
Morro do Castelo. Sua finalidade é o culto da real presença de Cristo na Eucaristia, a hóstia
consagrada2. Por se tratar de entidade sacrossanta, em pouco tempo havia irmandades do
Santíssimo Sacramento nas freguesias da Sé, Candelária, São José e Santa Rita.

Todas essas associações eram compostas apenas por fiéis de cor branca, sendo necessária a
comprovação da pureza de sangue. Traziam em seus compromissos normas para a admissão
de pessoas ilustres e honradas. Pela pesquisa realizada acredita-se que seus membros faziam
parte da elite econômica, social e política da cidade, uma vez que para ingressar era
necessário pagar altas taxas, além disso, Cavalcanti (2004) destaca que:

Senhores do poder político e econômico e também religioso, os brancos dominavam a


cidade do Rio de Janeiro com suas irmandades e igrejas, enquanto os pardos tinham apenas
uma, a de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, e os pretos, quatro: Rosário,
Lampadosa, Santa Efigênia e Santo Elesbão e a de São Domingos. Todas as demais
pertenciam a brancos.

2
A festa do Santíssimo Sacramento, conhecida como Corpus Christi, foi instituída em 1264 pelo Papa Urbano
IV em homenagem a presença real de Cristo na Eucaristia. No período colonial e ainda hoje se comemora a data
com missas festivas e procissões. Em várias paróquias os fiéis enfeitam as ruas com um tapete de sal utilizando
desenhos que enfocam principalmente a Eucaristia.

458
Por não possuir seu próprio templo, a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé
acompanhou a peregrinação da Sé por suas sucessivas mudanças para as igrejas de São José,
Santa Cruz dos Militares e Nossa Senhora do Rosário, onde permaneceu até a construção de
sua igreja no ano de 1816, na atual avenida Passos. Em 1820, estava concluída a capela-mor,
iniciando-se o culto nessa parte do edifício. Mesmo sem estar concluída, tamanha era a sua
importância para a sociedade da época que no ano de 1826, foi instituída a freguesia do
Santíssimo Sacramento, passando a igreja a funcionar como matriz, o que lhe conferiu maior
status. De acordo com Oliveira (2008) as obras de construção prosseguiram até 1859, quando
em procissão solene, a igreja recebeu sete imagens da antiga Sé do Morro do Castelo, que
estavam em depósito na igreja do Carmo.

A Irmandade era responsável pela procissão de Corpus Christi, quando:

A cidade engalanava-se, toda ornamentada. [...] O préstito era extensíssimo porque quase
todas as irmandades faziam questão de acompanhar a procissão, muitas delas trazendo o
andor do padroeiro, para render preito ao Sacramento (COARACY, 2008, p.174).

A arquitetura religiosa das Ordens Leigas

As disposições do Concílio de Trento (1545-1563), conhecido como o concílio da


Contrarreforma, como resposta da Igreja Católica às crescentes denominações protestantes
que assolavam a Europa à época, previam principalmente, tornar a instituição mais próxima
de seus fiéis. Portanto, a arquitetura religiosa buscou acompanhar esse objetivo no partido
adotado nas igrejas construídas na cidade do Rio de Janeiro projetando a composição da nave
em cruz latina com a consequente valorização do altar, onde se apresenta o Corpo e Sangue de
Jesus Cristo. Da mesma forma buscou-se com a introdução dos púlpitos dar maior
importância à pregação dos sacerdotes, deixando-os mais próximos dos fiéis.

O barroco surgiu como uma expressão arquitetônica que correspondeu aos anseios da Igreja
na era pós-tridentina. No Brasil, no período colonial, a maior parte dos templos construídos
foi concebido nesse estilo, incluindo os das Ordens Leigas que em sua maioria utilizou os
seus elementos, caracterizados pelo apelo dramático.

Externamente, o barroco se materializava “nas formas grandiosas das construções, com


ornamentação abundante e desenho variado e complexo de plantas e fachadas, com emprego

459
de secções curvilíneas” (OLIVEIRA, 2008, v. 1, p. 119). Internamente se verificava o
contraste de luz e sombra, o “revestimento integral das superfícies e uso de materiais nobres e
preciosos, como os mármores policromos e o bronze dourado” (ibid. p. 119). Destacam-se,
igualmente no interior das igrejas, as imagens dos anjos e santos, particularmente da Virgem
Maria, sob diversas invocações. Oliveira (ibid. p. 121-122) ressalta que essa proliferação de
imagens poderia ser vista “como uma reação direta ao iconoclasmo protestante, que varrera as
imagens do interior de seus templos para se ater apenas à leitura do texto bíblico”.

O estilo rococó se caracterizava pela leveza, com uma decoração menos opulenta, ambientes
claros e arejados pela implantação de amplas janelas. Chegou ao Rio de Janeiro em meados
do século XVIII, principalmente nos ornamentos internos das igrejas e em elementos isolados
das fachadas, influenciando pouco a arquitetura. Alvim (1999) explica essa singularidade:

Portugal não consegue filiar-se integralmente a este estilo, por sua leveza, assimetria e por
negar a clareza das estruturas arquitetônicas, tão caras ao gosto luso. O mesmo ocorre no
Rio, onde as decorações de caráter rococó são pesadas e a assimetria e leveza, próprias
desta estética, são obtidas com sucesso apenas em pequena escala (p. 318).

O ano de 1816, quando se inicia a construção da igreja da Irmandade, coincide com a chegada
da Missão Francesa à cidade que introduziu o estilo neoclássico ao gosto dos cariocas. Porém,
com relação à arquitetura religiosa o apreço dos fiéis ainda se daria pelo estilo barroco e
rococó. Portanto a igreja foi construída dentro desse estilo, seguindo a linha das construções
coloniais das igrejas da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de
Paula, ambas no centro da cidade.

Alvim (1999) chama a atenção para a questão da hierarquização dentro das Ordens Leigas,
onde os cargos ocupados pelos seus membros passam a ser meios de ascensão social. Em
planta, tal problema é parcialmente resolvido pela introdução de tribunas no programa
arquitetônico dos templos, “local nobre que evidencia, no espaço da nave e da capela-mor, a
posição do fiel na irmandade” (ALVIM, 1999, p. 95). Tal fato pode ser comprovado nas
igrejas de meados dos Setecentos como as mencionadas acima.

460
As irmandades eram órgãos vivos, com intensa atividade social e religiosa, funcionando
muitas vezes com um órgão de registro civil. Eram em seus livros onde unicamente se
registravam batizados, casamentos e óbitos. Portanto, a construção das igrejas das
irmandades, principalmente a partir de meados dos setecentos passou obedecer a um projeto
mais elaborado para corresponder à necessidade funcional das mesmas. Os espaços
secundários ou dependências3 aumentaram em número e tamanho. Alvim (1999) aponta tal
mudança como uma característica das igrejas dos Oitocentos:

Os esquemas das dependências das plantas cariocas materializam graficamente a evolução


da sociedade e da religiosidade locais, sendo assim um rico testemunho histórico do
processo de desenvolvimento cultural do Rio. As dependências, singelas e pequenas
durante a primeira metade do século XVIII, quando as irmandades se afirmavam, tornaram-
se mais tarde grandiosas. Em alguns casos, no Oitocentos, chegaram a ser maiores que os
espaços principais – nave e capela-mor (ALVIM, 1999, p. 90).

A igreja da irmandade do Santíssimo Sacramento

A localização do terreno da igreja não era das mais nobres à época em que foi construída. A
cidade até o final do século XVIII se limitava à Rua da Vala (atual Uruguaiana), sendo a
região a partir daí considerada arrabalde. Porém, se verificou que a partir da construção dos
templos de Irmandades de pretos e pardos nessa região, a malha urbana começou a se estender
permitindo um melhor acesso às edificações religiosas onde ocorriam festas e procissões de
seus santos padroeiros. Portanto, a instalação da igreja nesse local acarretou em
melhoramentos urbanos na região de entorno. O próprio logradouro foi denominado como
Rua do Sacramento, até o seu prolongamento no governo Pereira Passos (1902-1906) que
passou a dar o nome à avenida.

3
“Entende-se por dependências ou espaços secundários a sacristia, o consistório, o coro, as tribunas, os
corredores, as galerias e as capelas fora do espaço da nave” (ALVIM, 1999, p. 72).

461
Mapa 1 - Planta de localização da igreja4

O projeto, de autoria do arquiteto português João da Silva Muniz que veio para o Brasil como
arquiteto da Casa Real em 1813 estabeleceu o partido de nave única retangular com capela-
mor e corredores laterais. Por eles se chega às dependências evitando a passagem pela capela-
mor, local considerado sagrado. Como apontado por Alvim (1999), na igreja do Santíssimo
Sacramento se verifica uma área de dependências maior do que a área destinada ao culto. Tal
fato é explicado por ter sido a igreja construída já nos Oitocentos, quando a Irmandade vivia
um período de grande movimentação social, sendo seu espaço utilizado para diversas funções
além do culto religioso.

4
Disponível em: < https://maps.google.com.br/>. Acesso em 20 jun. 2013.

462
A igreja apresenta uma fachada monumental, com um corpo centralizado e duas torres
sineiras laterais separadas por pilastras. A porta de entrada principal é em arco pleno
emoldurada pelo frontispício, sendo ladeada por duas estátuas: de São João e São Lucas.
Compõem ainda a fachada, no andar superior, cinco janelas encimadas pelo
típico frontão clássico triangular. Uma larga cornija separa o segundo piso do frontão
superior, com estátuas e pináculos. A altura das pirâmides de coroamento das torres sineiras
confere verticalidade, tendo sido inseridas no ano de 1871, pelo projeto do arquiteto Francisco
Joaquim Bittencourt da Silva. A fachada apresenta um elaborado trabalho de cantaria, que
demonstra o aprimoramento da arquitetura carioca.

Internamente a igreja ainda apresenta um ótimo estado de conservação, e logo à entrada se


percebe a harmonia e a beleza do conjunto de elementos construtivos e ornamentais. Oliveira
(2008) destaca o altar–mor, local dedicado ao Santíssimo Sacramento, pelo relevo com a
representação da Santa Ceia colocado no alto de um trono de oito degraus, cujo provável
autor seria Antônio de Pádua e Castro, executor do retábulo e toda a talha da igreja.
Destacam-se igualmente as ricas talhas em rococó que adornam os demais retábulos e
elementos estruturais. No batistério, abaixo do coro, se encontra a pia batismal mais antiga do
Rio de Janeiro. Como em outras igrejas de Irmandades verificam-se a existência de tribunas
no andar superior do templo, próximas ao altar-mor destinado aos membros mais importantes
da Irmandade.

Alvim (1999) afirma que a planta dessa igreja destacou-se pela importante participação de
seus vãos no projeto, que interrompeu as linhas das paredes conferindo leveza, e pela
qualidade geral de sua composição.

463
Foto 1 - Fachada da igreja5

A iluminação dessa igreja, como muitas outras do século XIX, contou com lunetas, aberturas
no alto do templo, que também foram utilizadas como elementos decorativos. Verifica-se a
introdução no projeto da claraboia, uma nova técnica de iluminação natural direcionada que
viria a ser amplamente utilizada em outras igrejas dos Oitocentos. A instalação da claraboia
valorizou a posição do altar-mor, conferindo um destaque à elevação da hóstia consagrada,
principal elemento de devoção dessa Irmandade.

5
Disponível em: < https://pt.foursquare.com/v/igreja-matriz-sant%C3%ADssimo-sacramento-da-antiga-
s%C3%A9/4e47f788d22d12b08bd577a0>. Acesso em 14 abr 2013.

464
Foto 2 – Interior da igreja6

Foto 3 – Interior da igreja - detalhe dos altares laterais no interior da nave7

6
Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do Sant_S%C3%ADssimo_Sacramento _ da _
Antiga_ S%C3%A9(Rio_de_Janeiro)Brasil.jpg.> Acesso em 14 abr 2013.
7
Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do Sant_S%C3%A Dssimo_Sacramento _ da _
Antiga_ S%C3%A9(Rio_de_Janeiro)Brasil_4.jpg.> Acesso em 14 abr 2013.

465
Considerações finais

No período colonial predominava o aspecto devocional, caracterizado por manifestações


externas da fé através de procissões, festas dedicadas aos santos, orações em torno de ermidas
e dos diversos oratórios espalhados pela cidade. Essa religiosidade se expressou
espacialmente com a construção de igrejas que, em muitos casos, foram responsáveis pela
urbanização da região onde estavam inseridas. A construção da nova igreja matriz do
Santíssimo Sacramento foi de grande importância e afirmação para seus associados
acompanhando a evolução urbana da cidade do Rio de Janeiro, após a chegada da Família
Real. O templo se tornou um espaço de grande relevância religiosa, social e política, onde
seus membros poderiam manifestar sua participação na vida pública, servindo inclusive como
um meio de ascensão social.

A arquitetura no período colonial expressou o conteúdo ideológico de uma cultura


impregnada de religiosidade, refletindo as disposições apresentadas pelo Concílio de Trento.
Pode-se concluir, por este estudo, que o projeto da igreja do Santíssimo Sacramento recebeu
influência das disposições eclesiais da época em que foi construída, tais como a valorização
do altar e da pregação, visando atrair novos fiéis e trazer de volta os desgarrados. Enfim, o
templo da Irmandade funcionou como um importante emissor da mensagem religiosa.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento mantém suas atividades nessa igreja, localizada na


Avenida Passos nº 50, que permanece em destaque na paisagem como herança que embeleza
e enaltece a cidade até hoje. Devido ao seu valor histórico, a igreja e todo seu acervo foram
tombados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no ano de
1938.

Referências

ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro: plantas, fachadas e


volumes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN; Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro,
1999.

BOSCHI, Caio César. Espaços de Sociabilidade na América Portuguesa e historiografia


brasileira contemporânea. Varia Historia, v. 22, nº 36, Belo Horizonte, p. 13, 2006.

466
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro: quatro séculos de histórias.
Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2008.

HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil – Primeira Época, tomo II. Petrópolis:
Vozes, 1979.

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas Igrejas do Rio de Janeiro.
Vol.1. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2008.

467
468
Mística e devoção carmelita: a arquitetura religiosa dos Terceiros
em Minas Gerais
Nívea Maria Leite Mendonça1

Introdução

Durante o período Colonial, a capitania de Minas Gerais foi fortemente marcada pelos
preceitos Tridentinos, esses preceitos só foram possíveis de serem vivenciados graças à
atuação de leigos que conseguiram se unir em torno de associações religiosas como as
irmandades e Ordens Terceiras, porém em especial a Ordem Terceira do Carmo se
caracterizava como uma associação de leigos cuja existência dependia de autorização
conferida por uma Ordem Primeira, e cujo ingresso de irmãos obedeciam a critérios,
rigidamente, seletivo. Os Estatutos da Ordem Terceira previam toda a forma de organização
da Mesa Administrativa, assim como a função desempenhada por cada irmão na
Administração da Ordem; também nos estatutos verificamos as principais datas festivas e
celebrativas deste sodalício.

No que diz respeito às cerimônias, havia todo um clima de contemplação mística dentro dos
templos dos terceiros, já que como analisou Adalgisa Arantes que a religiosidade barroca era
indispensável recorrer às artes plásticas, já que o imaginário barroco levaria ao máximo a
tendência de representar com naturalismo o sofrimento de Cristo e dos Santos. Por isso,
vemos nos templos os altares laterais que relembram os últimos passos de Jesus. Logo, todo o
aparato cenográfico das igrejas desse período servia para mexer com o modo de ver e pensar
daquela população que a ali habitava. Daí também, o temor e a preocupação com a morte.
Essa preocupação ocupava constantemente o pensamento das pessoas, as iconografias
remetiam ora o bem morrer, isto é, o céu, o Paraíso; ora o mal morrer, ou seja, o Purgatório e
as chamas do inferno. Tanto as irmandades como as Ordens Terceiras apresentavam como
motivações: as pompas fúnebres da paróquia, a assistência aos pobres e a segurança para a
eternidade (ARIÈS, 198, p. 197). Dentro dessa perspectiva, muitos irmãos eram seduzidos ao
entrar em uma associação religiosa pelo fato de desfrutarem, após a morte, de uma vida
eterna, além de garantirem sepultamento digno dentro dos templos, uma vez que estes espaços

1
Mestranda em História pela UFJF. Este trabalho faz parte da pesquisa que venho desenvolvendo no mestrado,
relacionada à temática da religiosidade e às Ordens Terceiras mineiras no século XVIII, em especial a Ordem
Terceira do Carmo de Vila Rica e Mariana. Contato: niveajf@hotmail.com.

469
eram revestidos de sacralidade, assim, os confrades, além de receberem as missas especiais de
sufrágio pelas suas almas, eram lembrados durante todas as missas.

As Ordens Terceiras e suas características

As associações de leigos se espalharam por toda a Capitania de Minas Gerais com o objetivo
de promover o culto e a devoção dos santos, um dos princípios lançados pelo Concílio
Tridentino. Os termos irmandade, confraria e Ordem Terceira apresentam importantes
diferenças organizacionais e legislativas. Como observa Caio César Boschi

As irmandades, apesar de possuírem características semelhantes às das pias uniões,


particularizam-se por ter organização hierárquica, bem retratada no seletivo e restritivo ato
de admissão de seus membros. Nas pias uniões, são frágeis os laços que ligam seus
integrantes, pois estes não chegam a se organizar em uma autêntica agremiação (BOSCHI,
1986, p. 15)

Como define o mesmo historiador, as associações que congregavam os terceiros se “vinculam


a uma ordem religiosa, da qual extraem e adaptam regras para uma vida cristã no mundo.
Tais, regras, no entanto, devem ser aprovadas pela Santa Sé” (BOSCHI, 1986, p. 19). Essa
vinculação a uma Ordem Primeira é que distingue as Ordens Terceiras das demais associações
religiosas. As Ordens Terceiras em Minas Gerais agregavam, sobretudo, os homens bons da
Colônia; para se ingressar nestas Ordens, os pretendentes a irmãos terceiros obedeciam a
processos criteriosamente seletivos, isto é, deviam ser limpos de sangue, ou seja, não serem
negros, nem cristãos novos ou de origem racial duvidosa – ou a eles ligados por ocasião de
casamento (BORGES, 2005, p. 53). Os candidatos a irmãos deveriam se preparar num
período chamado de noviciado cujas principais características eram suas rigorosas práticas
religiosas, além disso, o noviciado consistia “na prática de exercícios espirituais e instrução na
Regra da Ordem e nos estatutos, sem o conhecimento dos quais não era admitido na profissão
(...). Na congregação dos terceiros carmelitas, a oração mental e a disciplina no noviciado
eram feitas sempre logo depois das Aves Marias” (EVANGELISTA, 2010, p. 106-107).

Mas, em síntese, tanto as irmandades como as Ordens Terceiras funcionaram como agentes de
solidariedade grupal, congregando anseios comuns frente à religião e realidade social
(BOSCHI, 1986, p. 14).

470
Em Os leigos e o poder, Caio Boschi (1986) relaciona a quantidade de cinco (5) Ordens
Terceiras invocadas sobre a proteção de Nossa Senhora do Monte do Carmo, que existiram na
Capitania de Minas Gerais, durante o período do grande apogeu aurífero; podemos observar
que as Ordens Terceiras do Carmo se estabeleceram em Vilas de maior importância social e
econômica da época como nas vilas: Ribeirão do Carmo, Vila Rica, Sabará, São João Del Rei
e Tejuco (Diamantina). Nestas vilas, estabeleceram-se uma quantidade maior de homens
bons, ricos e brancos da capitania, já que foram eles que trouxeram e difundiram a Ordem
Terceira por essas terras.

A religiosidade barroca em Minas

As ações da Igreja foram limitadas durante o Brasil Colônia, devido aos interesses políticos e
materiais da Coroa, por causa do Padroado2. Com tal atitude de autonomia, a Coroa deliberou
sem precedentes banir, não só frades sem autorização, mas também o estabelecimento de
ordens religiosas em Minas Gerais (BOXER, 2000, p. 76). No entanto, mesmo diante de tal
controle, a Coroa ordenava aos bispos do Rio de Janeiro e da Bahia para que se enviassem
eclesiásticos para criar paróquias e ministrar os sacramentos (BOSCHI, 1986, p. 80).

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, corporizadas por Sebastião Monteiro da


Vide, em 1707, inauguram, por assim dizer, o programa reformador na Colônia (BORGES,
2005, p. 65). Assim, os bispos assumiram a responsabilidade direta pela execução do
programa de reformas segundo as normas Tridentinas (Idem, 2005, p. 65).

Diante de tal situação, veremos o surgimento e estabelecimento de associações religiosas que


foram as principais promotoras dos ofícios e das celebrações, dentro e fora dos templos,
também por elas edificados e mantidos. Como destaca Fritz T. Salles que a “Coroa tratou de
estimular as irmandades, a fim de, com elas e através delas, transferir ao próprio povo, isto é,
aos mineradores, comerciantes e escravos, os encargos tão dispendiosos de construir os
grandes templos, e cemitérios” (SALLES, 2007, p. 59).

Nosso objeto de estudo é a Ordem Terceira do Carmo que foi (e continua sendo) uma
importante associação de leigos em Minas Gerais. Dentro do contexto do grande apogeu
aurífero, percebemos a proliferação de grandiosos templos em Minas Gerais. Contudo,
2
O Padroado foi uma instituição tipicamente ibérica, e pode ser definido como um conjunto de direitos, deveres
e privilégios, concedidos pelo Papa aos reis portugueses (BOSCHI, 1986, p. 42).

471
somente na segunda fase dos setecentos foram edificados os monumentos da mais alta
significação estética, destacando-se neste cenário, além das igrejas do Carmo, as igrejas
pertencentes às Ordens Terceiras de São Francisco (SALLES, 1982, p. 51). Naturalmente, a
arquitetura encontrada neste período, possuía características européias - ibéricas. Esta
religiosidade que chegou ao território mineiro, do tipo barroco-rococó recorria nas artes
plásticas toda forma de simbolismo, já que o aparato cenográfico das igrejas servia para
mexer com o modo de ver e pensar da população, cuja principal preocupação era com a
morte.

Sabe-se que o barroco é o movimento artístico da Contra-Reforma Católica, daí sua


suntuosidade e rebuscamento. A Igreja Católica encontrou neste movimento artístico os
signos visuais e catequéticos que expressavam seu poderio, reforçada na presença de muito
ouro para provar a realeza e poder temporal; riqueza de detalhes para mostrar a inteligência e
conhecimento; escalas gigantescas para demonstrar ligação com o divino; contrastes de luz e
sombra com função pedagógica, reafirmando a efemeridade da existência terrena
(CUSTÒDIO, 2011).

A Capitania das Minas Gerais foi desenvolvida ao longo do século XVIII, nesta época o
conjunto artístico mais expressivo que predominava o Brasil Colônia era o chamado Barroco.
Já na metade deste século, este estilo artístico foi incrementado por outro, que era um pouco
mais suave: o chamado Rococó. Tal produção artística se sustentou em grande parte na
riqueza produtiva proporcionada pela extração do ouro e diamantes descobertos a partir de
1693 e 1727, respectivamente (SILVA, 2006).

A Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Vila Rica foi
construída entre 1766/1772, onde no local já existia uma capela dedicada a Santa Quitéria.
Porém, de acordo com o Cônego Raimundo Trindade mostra que os irmãos carmelitas já
celebravam a festa dedicada a Nossa Senhora em 1745 (1746) na capela do Senhor dos
Perdões (atual Igreja Nossa Senhora das Mercês; popularmente conhecida como Mercês de
Baixo).

Mostra-se por parte da Venerável Ordem do Carmo que os terceiros da dita Ordem
festejaram a dita Senhora na capela de Santa Quitéria no ano de 1747 como constava da
provisão a fls.68 e que também tinham feito festa a Senhora na capela do Senhor dos
Perdões no ano de 1745 e 1746 pelo que constava do documento fls.66 e legitimamente se
mostra pela certidão de fls. 70 em diante que a instituição e confirmação de fls.60 da dita

472
venerável Ordem do Carmo fora em quinze de maio de 1751 e pela certidão de fls.79 da
provisão Régia se mostra que a S. Mag.° Fid. ma concedeu licença para erigirem a dita
Irmandade e que seria obrigada a dar conta no Juízo Secular e outrossim se alega que fora a
primeira que fizera nesta Vila a sua festividade e como tal devia ter a preferência[...]
(TRINDADE,1951, p. 104) .

No que diz respeito à construção da igreja dos Terceiros Carmelitas em Vila Rica, Augusto de
Lima Junior diz que

[...] erigiram eles a belíssima sede para o seu sodalício, ricamente guizada e ornada, não só
com obras de arte escultoria, como a bela fonte da sacristia (gravada segundo os riscos
característicos das esculturas de Mafra), como no capricho com que se rematam o escudo
do frontispício, portas e janelas, magnífico mobiliário e tudo o mais concernente ao culto
divino [...] (LIMA JUNIOR, 1957, p. 199).

Ainda há outros estudos feitos por Germain Bazin, que destacam a genialidade de Aleijadinho
para com o templo dos terceiros Carmelitas de Vila Rica “igreja desenhada por seu pai em
1766 e reformada em 1770-1771 [...] o brasão do Carmelo liga-se harmoniosamente ao olho-
de-boi, mas se destaca talvez um pouco demais, do motivo da portada, que ainda é bastante
escasso [...].” O autor destaca que uma das mais perfeitas obras empreendidas por
Aleijadinho, além do templo dos terceiros franciscano de Vila Rica, é a igreja dos terceiros
Carmelitas de Sabará (BAZIN, 1971, p. 134 e 137). Também Sylvio de Vasconcellos destaca
que sobre o templo dos carmelitas de Vila Rica:

O projeto é de Manuel Francisco Lisboa, modificado por Antônio Francisco após a morte
do pai. As modificações suprimem janelas e portas, ondulam as paredes e acrescentam
decorações sobre a portada, com querubins e coroa, aprovadas na experiência feita na
capela carmelita de Sabará. Aqui o desenho se amplia e a fachada ganha monumentalidade
pela incorporação do óculo a sua parte inferior, configurado em olho de boi (LEFÈVRE &
VASCONCELLOS, 1968, p. 28-29).

Já Maria Agripina lembra que além da intervenção de Aleijadinho, quanto ao risco da igreja
do Carmo de Vila Rica, há dois altares laterais que foram feitos pelo artífice – os altares
dedicados a “São João Batista e a Nossa Senhora da Piedade, bem como os guarda-pós e
camarins dos altares de Jesus no Horto e Santa Luzia e do Senhor dos Passos e São José de
Botas” (NEVES, 2011, p. 168-170).

473
No que diz respeito à Ordem dos terceiros Carmelitas da Vila do Ribeirão do Carmo3 foi
concedido pela Santa Sé à criação desta na dita Vila em 1786, pois antes dessa concessão os
irmãos professavam na Ordem de Vila Rica. Após a deliberação a construção do templo foi
iniciada. (SALLES, 2007, p. 100). A igreja foi construída numa praça da cidade onde se
defrontam três monumentos.

um deles é a Casa de Câmara e Cadeia [...] em frente estão as capelas de São Francisco de
Assis e de Nossa Senhora do Carmo [...] ambas as igrejas incorporam o estilo inconfundível
de Antônio Francisco Lisboa, notado na ornamentação da portada, nas sineiras cilíndricas e
no desenho dos frontões (LEFÈVRE &VASCONCELLOS, 1968, p. 34).

Em Sabará, a igreja dos terceiros Carmelitas exibe uma importante arquitetura, como
observou Sylvio de Vasconcellos “é importante porque corresponde a evolução do modelo
tradicional provindo da metrópole, e que pela primeira vez se traduz em pedra na Matriz de
Caeté e o esquema nativo que no final do século, se implantaria nas Minas” (Idem, 1968, p.
18). Na sobre-porta, Aleijadinho ensaia o baixo e alto-relevo em composições que
testemunham seu gosto pessoal e que caracterizariam a arquitetura religiosa mineira. E no
interior da igreja duas obras primas completam o trabalho extraordinário do gênio: são as
imagens de São João da Cruz e de São Simão Stock (idem, p. 19).

Uma das peculiaridades dos templos das Ordens Terceiras Carmelitas espalhadas por todo o
Brasil Colônia são as distribuições espaciais dos templos, isto é, praticamente todos os
templos têm no altar-mor a imagem de Nossa Senhora do Carmo, Santa Teresa D’Ávila e
Santo Elias e na nave da igreja composta por seis altares laterais (algumas igrejas com menos
altares laterais como no caso de Mariana e Sabará4 com dois altares cada uma) dos quais se
remetem a paixão de Cristo. William Martins mostrou que também a igreja da Ordem
Terceira do Carmo no Rio de Janeiro possui seis altares laterais, dos quais, representam à cena
da Paixão de Cristo.

As capelas das filiais da ordem carmelita converteram-se em palco privilegiado para a


encenação das imagens da Paixão de Cristo. Com poucas variações, a composição dos seis
altares laterais e do altar-mor alocados na capela dos terceiros do Rio de Janeiro reproduz-
se em outros templos dos irmãos fundados em diferentes regiões. Os altares laterais
dispostos ao longo da capela eram seis, três no lado da Epístola e três no do Evangelho,

3
Atual cidade de Marina.
4
Em Sabará, os altares laterais remetem aos santos Carmelitas (São Simão Stock e São João da Cruz) e não a
Paixão de Cristo.

474
onde contemplava Jesus no Horto, na prisão, atado à coluna, representado no sudário, o
Senhor da Cana Verde e o dos Passos (MARTINS, 2009, p. 293-295).

A religiosidade barroca recorria nas artes plásticas toda forma de simbolismo, já que o aparato
cenográfico das igrejas servia para mexer com o modo de ver e pensar da população, como
analisou Adalgisa Arantes Campos:

Para a religiosidade barroca era indispensável recorrer as artes plásticas, armações de


cenário e teatro litúrgico, visando dar figuração precisa as passagens bíblicas e ao relato da
vida dos santos penitentes. O imaginário barroco levou ao máximo a tendência a
representar com muito naturalismo o sofrimento. [...] Nesse sentido, em vez de se restringir
o abundante número de imagens alusivas ao sofrimento de Jesus, a tendência geral na
Época Moderna foi desdobrá-las. Tais obras, dotadas da capacidade de predispor
sentimentos, atingiram grande difusão no Barroco luso- brasileiro, apoiada na tradição
devocional dos colonizadores e na própria legislação Tridentina (CAMPOS, 2007, p. 104).

De acordo ainda com Adalgisa Arantes Campos, todos os cenários que as igrejas desse
período tinham mexiam com o modo de ver e pensar daquela população que a ali habitava.
Daí também, o temor e o cuidado para com a morte. Essa preocupação ocupava
constantemente o pensamento das pessoas, as iconografias remetiam ora o bem morrer, isto é,
o céu, o Paraíso; ora o mal morrer, ou seja, o Purgatório e as chamas do inferno
(MENDONÇA, 2012).

E essa preocupação com o bem morrer foi reforçada e reavivada com o Concilio Tridentino
através da Devotio Moderna (DAVIDSON, 1991, p. 6), cujo sustentáculo era a imitação de
Cristo. Essa imitação à Cristo se baseava na solidariedade e na caridade empreendida por
aqueles irmãos que mais precisavam, quando doentes e ou quando estavam no leito de morte.

Na historiografia sobre as associações religiosas, é comum dizer que a grande participação


dos irmãos devia-se, principalmente, pela garantia de salvação de suas almas. Havia toda uma
preocupação com a morte seja no preparo com as sepulturas (no interior da Igreja e
posteriormente, com o Cemitério da Ordem) e também, com as missas pelas almas dos irmãos
defuntos como lembra Célia Borges: “A distribuição espacial das sepulturas obedecia a
distinções na hierarquia confrarial; quanto mais alto o posto do irmão na composição da
Mesa, mais próximo seu cadáver ficava dos lugares investidos de maior sacralidade, isto é,
junto aos nichos das imagens dos santos [...]” (BORGES, 2005, p. 166).

De acordo com as Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia diz que

475
É costume pio, antigo e louvável na Igreja Católica enterrarem-se os corpos dos fiéis
cristãos defuntos nas Igrejas e cemitérios delas: porque como são lugares a que todos os
fiéis concorrem para ouvir, e assistir as Missas e Ofícios divinos e orações tendo à vista as
sepulturas se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor as almas dos ditos defuntos
especialmente os seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório e
esqueceram-se da morte, antes lhes será aos vivos muitos proveitos ter memória delas nas
sepulturas.5

Tendo como sepulcro o espaço do sagrado, isso assegurava ao irmão defunto a sensação de
ser constantemente lembrado, seja durante as missas específicas, seja nas missas cotidianas.
Em “O sagrado e o profano” Mircea Eliade (2010) nos aponta que o Templo é o lugar santo
por excelência, a casa de Deus, o templo santificaria continuamente o Mundo (IDEM, p. 56).
Para este mesmo autor diz que “A basílica cristã e mais tarde a catedral retoma e prolonga
todos esses simbolismos. Por um lado, a igreja é concebida como imitação da Jerusalém
celeste e isto desde a antiguidade cristã; por outro lado, reproduz igualmente o Paraíso ou o
mundo celeste.” (Idem, p. 57). Por isso, muitos irmãos desejavam ser sepultados no interior
das igrejas, e principalmente, perto do altar-mor ou dos altares laterais, mas para ter tal
privilégio, os irmãos precisavam ter participado, durante a sua vida terrena, da Mesa
Administrativa da Ordem.

Assim, os irmãos sempre recorriam às Ordens Terceiras e Irmandades implantadas em Minas


Gerais para socorrê-los nesta hora derradeira; após a proibição de enterrar no interior das
igrejas, as Câmaras das vilas conferiram as mesmas associações religiosas, autorização para
construir seus próprios cemitérios particulares (TRINDADE, 1951, p. 475).

Uma vez garantida à sepultura, era necessário o cuidado com o destino da alma, por isso,
muitos irmãos, antes de morrerem, deixavam, em testamento, pagas as missas de sufrágios
pelas suas almas. Este número de missas variava de acordo com a posse de cada irmão. As
possibilidades de salvação das almas atraíam as pessoas abastadas a ingressarem nas
associações religiosas mineiras.

De acordo com o Estatuto da Ordem do Carmo de Vila Rica o Padre Reverendo era o
responsável na aplicação das missas de sufrágios “que se houverem de fazer pelas almas dos
Irmãos e Irmãs defuntos se farão com toda a brevidade possível”.6

5
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia Livro IV Tit. LIII
6
ACCOP: Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica de 1755. Microfilme 199. Vol. 2418

476
Considerações finais

Enfatizamos que, durante muito tempo, foi à população laica que ao ingressar em associações
religiosas, dedicaram-se, não somente com a caridade grupal, mas também, se empenharam
para a construção dos templos, além da participação nas celebrações cotidianas.

Os colonizadores, que aqui se estabeleceram, trouxeram uma forte herança cultural européia,
o barroco, que encontrou características próprias nas terras do ouro, este barroco teve terra
fértil nas Minas, já que os grandes mestres mineiros como Aleijadinho e Ataíde foram os
representantes máximos deste estilo; que se fundiu ao Rococó, um barroco-rococó até então
nunca visto, criando inovações singulares, únicas, admiradas até os dias atuais, nas igrejas das
Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco de Vila Rica (Ouro Preto).

O fenômeno religioso se propagou e continua a se propagar graças à devoção de irmãos leigos


que mantiveram as principais práticas dos seus estatutos. Foi através desses irmãos leigos, que
contribuindo com seus anuais, mantiveram e mantêm seus templos e seus cemitérios próprios,
garantindo os sepultamentos dos irmãos associados, além das missas de sufrágio pela alma do
irmão defunto.

Referências

ACCOP - Arquivo Casa dos Contos de Ouro Preto: Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de
Vila Rica de 1755. Microfilme 199. Vol. 2418.

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1981.

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BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e


solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.

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Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, 1986.

BAZIN, Germain. O aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Conservador do Museu do


Louvre. Tradução Marisa Murray. Distribuidora: RECORD. RJ- SP, 197.

477
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Discursos Fotográficos, v. 7, nº 10, Londrina, p. 173-194, jan./jun. 2011. Disponível em
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478
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ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º
arcebispo e do Conselho de sua Magestade: proposta e aceita em Sínodo Diocesano, que o
dito senhor celebrou em 12 de junho de 1707. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2007.

479
480
O patrimônio religioso e sua preservação em Nova Iguaçu (RJ)
Luiza Georgia Viana Cunha, Nathalia Borghi Tourino Marins1

Introdução

A presente comunicação é o desdobramento de Projeto de Extensão em curso no âmbito da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, já distinguido com Menção Honrosa pela Pró-
Reitoria de Extensão daquela Universidade. Sob responsabilidade da Diocese de Nova Iguaçu
existem alguns templos tombados pelo INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e
Cultural), dos quais se destacam pela importância a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe
(Igreja Velha), a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu e a Igreja de Santo
Antonio de Jacutinga, atual Igreja da Prata.

Apesar do tombamento provisório dos três templos, verificou-se com o levantamento até
agora conduzido que houve descaracterização e deterioração dessas igrejas, cuja preservação
torna-se importante quando se deseja pensar aquela microrregião como polo irradiador de
turismo religioso. Christian Oliveira (2004, p. 90), numa reflexão ideológica sobre a
sustentabilidade do turismo religioso, traz a importância da preservação das formas originais
dos templos, considerando o santuário natural (original) como um conveniente atrativo no
âmbito do turismo religioso. Face à importância histórica desses templos, também na
construção da identidade do Bispado de Nova Iguaçu (a Diocese de Nova Iguaçu foi criada
somente em 26 de março de 1960), o trabalho desenvolvido não é apenas o de resgate de
história, mas, na conceituação de Jacques Le Goff, de história e memória, pois o
levantamento documental e presencial trabalhará não apenas com o registro histórico, mas
também com o memorialístico.

A noção de patrimônio cultural

Bens culturais, patrimônio material e imaterial, objetos de culto tangíveis e intangíveis.


Integrantes da cultura erudita e popular, material e imaterial, importa-nos entender que os
bens culturais são social e culturalmente produzidos e apropriados pelos homens, que lhes

1
Discentes do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Bolsistas do PIBEX (Programa Institucional de
Bolsas de Extensão). Orientadas pelo Prof. Dr. João Henrique dos Santos. Contatos: luiza.gviana@gmail.com;
nathaliabtmartins@gmail.com.

481
dão forma, conteúdo, função e sentido diversos, de acordo com as épocas e as necessidades
do instante passageiro. (COSTA; SCARLATO, 2011, p. 37).

A compreensão da necessidade de preservação do patrimônio religioso na área da Diocese de


Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, passa por esse entendimento. Meneses (1986) nos diz que o
estudo dos bens culturais precisa ir além do nível da corporeidade dos objetos. O tombamento
provisório dessas igrejas pelo INEPAC sinaliza a necessidade de preservação dos templos e
do seu entorno, produzindo, dessa forma, a ressignificação e revalorização desses bens, além
da criação de roteiros de turismo religioso nas cidades (Mesquita, Belford Roxo e Nova
Iguaçu) compreendidas no âmbito administrativo da Diocese de Nova Iguaçu. A preservação
do entorno dos espaços sagrados e a criação de roteiros turísticos são parte indispensável do
turismo religioso na medida em que possibilitam ao turista o vivenciar da transição do espaço
profano ao sagrado. Esses percursos, para o peregrino, são tão carregados de significado
quanto o espaço sagrado em si.

Os caminhos do peregrino – percursos de ida do profano ao sagrado – são reconhecidos no


turismo religioso como Caminhos da Fé. Se de um lado os destinos religiosos, enquanto
polos de convergência (altares, templos, santuários e cerimoniais), são responsáveis pela
principal motivação do peregrino, de outro não se pode ignorar a força mística que
historicamente vai sendo impressa nas vias de acesso mais utilizadas por esse devoto
viajante. Os caminhos tornam-se tão fundamentais quanto os destinos. (OLIVEIRA, 2004,
p. 20).

Em certa medida, essas ações representariam uma mudança de paradigma, visto que, nas
palavras de Christian Oliveira, “os espaços religiosos, por força de uma separação
estabelecida pelos agentes católicos ou estudiosos da religião, são verbalmente
desqualificados de seu papel turístico” (OLIVEIRA, 2004, p. 27). Efetivamente, a região
abrangida pela Diocese de Nova Iguaçu não tem qualquer tradição de turismo religioso, seja
por festas de romaria e procissões devocionais, quer seja pela visitação a templos histórica e
culturalmente importantes.

Segundo o mesmo autor, a recriação do símbolo é necessária na região para que possa haver,
por parte da população, uma reapropriação e ressignificação do mesmo, podendo-se, talvez,
dar início a uma tradição de turismo religioso ainda inexistente.

A Diocese de Nova Iguaçu possui vários templos sob sua responsabilidade tombados pelo
INEPAC, dos quais três foram privilegiados para estudo e avaliação de seu estado

482
preservacional, a saber a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe (Igreja Velha), a Igreja de
Nossa Senhora da Conceição de Marapicu e a Igreja de Santo Antonio de Jacutinga, atual
Igreja da Prata.

A primeira foi construída entre 1750 e (presume-se) 1753, data inscrita em seu frontão.
Predomina o estilo barroco, de forte influência jesuítica, em sua construção, muito embora
apresente referências de outras épocas em sua composição. Localiza-se na Rua da Capela s/nº,
no bairro de Marapicu e foi tombada provisoriamente na mesma data da Igreja de Santo
Antonio de Jacutinga, através do Processo E-12/0.117/89. A Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Marapicu é, dos três bens tombados, o mais antigo, pois sua construção data de
1736, tendo sido ampliada e reformada em 1853. Seu interior foi descaracterizado no século
XX, com o desaparecimento dos altares colaterais e a venda da talha do altar-mor. Foi
tombada provisoriamente na mesma data dos outros dois templos, através do mesmo
Processo, e localiza-se no Largo do Marapicu. A Igreja de Santo Antonio de Jacutinga, ou
Igreja da Prata, como é conhecida atualmente, foi construída em 1773. Localiza-se no
município de Belfort Roxo, sob a jurisdição episcopal de Nova Iguaçu, e remonta a tempos
anteriores à criação do município de Nova Iguaçu, à época denominado Engenho da
Maxambomba. Foi tombada provisoriamente em 12/06/1989, através do mesmo Processo dos
outros dois templos, e localiza-se na Estrada Plínio Casado s/nº.

Como se observa da breve descrição dos templos estudados, fez-se necessário um


levantamento sobre o estado de conservação desses bens tombados e a produção de um
relatório que identificasse a necessidade de intervenção a fim de restaurar as características
originais (ou, se não for de todo possível, das características aceitas pelo INEPAC para
realizar o tombamento).

A noção de turismo religioso

No âmbito do presente trabalho, é importante que se faça uma breve análise sobre o conceito
de turismo religioso, na esfera do turismo.

Turismo religioso é aquele empreendido por pessoas que se deslocam por motivações
religiosas e/ou para participação em eventos de caráter religioso. Compreende romarias,
peregrinações e visitação a espaços, festas, espetáculos e atividades religiosas. (DIAS;
SILVEIRA, 2003, p. 17).

483
Como se pode depreender do trecho acima, o turismo religioso compreende as atividades
religiosas de um modo geral, vivenciadas em outra localidade, que não a de habitação do
turista. Somente isso, entretanto, não responde à dúvida recorrente da relação entre turismo e
religião, ou, melhor ainda, entre o turista e o religioso, cumpridor de seus deveres espirituais.
Antes é preciso que fique clara a motivação que leva um turista ao turismo religioso. Como
bem nos traz Christian de Oliveira, “O turismo religioso – e isso é essencial – não é de
religiosos, nem de religião. É um turismo motivado pela religiosidade, pela cultura religiosa”
(OLIVEIRA, 2004, p.52). Sendo assim, deve-se compreender o turista em turismo religioso
como um indivíduo em busca de cultura religiosa, seja essa a sua própria cultura, e assim ele
estaria em busca de locais sagrados para sua crença, seja essa outra cultura, e então ele pode
estar sendo movido pela curiosidade e interesse em novos conhecimentos.

O turismo religioso sempre está muito relacionado com outras formas de turismo, e
principalmente com o cultural. Devemos ter sempre em mente que o turismo religioso
utiliza as mesmas formas de organização e infra-estrutura que qualquer outra forma de
turismo, o que caracteriza mais ainda a multifuncionalidade (DIAS; SILVEIRA, 2003, p.
18).

De acordo com os mesmos autores, ainda que se pense que as motivações religiosas não são
compatíveis com as motivações turísticas no sentido de lazer de um modo geral, não se pode
deixar de ter em mente que o turista religioso, na condição de ser humano, continua
necessitando de alimentação, descanso e relaxamento (DIAS; SILVEIRA, 2003, p. 15).

O turismo religioso em Nova Iguaçu, a partir da recuperação do patrimônio da região, é uma


possibilidade de desenvolvimento do município em termos financeiros e sociais. Reinaldo
Dias e Emerson Silveira dizem, sobre o Brasil, que:

Na maioria das localidades, onde existem santuários ou ocorrem manifestações religiosas, a


infra-estrutura para receber os visitantes ainda é precária, muitas vezes devido à pouca
compreensão do potencial econômico da visitação periódica (DIAS; SILVEIRA, 2003, p.
15).

Considerando que a região abrangida pela Diocese de Nova Iguaçu não possui a tradição do
turismo religioso, como já dito, seja por festas de romaria e procissões devocionais, quer seja
pela visitação a templos histórica e culturalmente importantes, a recuperação das igrejas cujo
levantamento foi realizado e de outras também pertencentes à Diocese é uma forma de

484
explicitar para as autoridades o grande potencial turístico (e, consequentemente, econômico),
não explorado, da região.

As igrejas e seu estado preservacional (relatório)

A Igreja da Prata, construída à imagem e semelhança das igrejas e capelinhas que existiam na
região, às margens do antigo caminho que ligava o engenho de Maxambomba, atualmente a
cidade de Nova Iguaçu, à fazenda do Brejo, entre 1733 e 1791, localizada em uma elevação
que, hoje em dia, domina a paisagem urbana circundante. A igreja pode ser vista até mesmo
por quem passa pela Via Dutra (BR 116, rodovia que liga Rio e São Paulo). O terreno é
ajardinado e cercado por gradis de ferro e conta com construções recentes, para uso da
paróquia, que interferem na qualidade arquitetônica do conjunto. Os membros da comunidade
local tem um enorme apreço pela construção, o que colabora para manter a igreja em um bom
estado conservacional. Entretanto, algumas reformas feitas comprometeram a caracterização
da edificação, como as construções adjacentes e a pavimentação do acesso principal à igreja,
que, originalmente, consistia de piso pé-de-moleque, foi acimentado em placas retangulares.

O conjunto arquitetônico sofreu outras mudanças que contribuíram para sua descaraterização
ao longo dos anos, tais quais: bancos de jardim e postes de iluminação colocados junto à
fachada frontal e o antigo cruzeiro, junto à entrada, foi demolido. Em entrevistas com
autoridades da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, estas têm sugerido que o piso original seja
restaurado e que um mobiliário menos conflitante com o exterior da igreja seja adotado.

O processo de tombamento conta com fotos de Waldick Pereira, de 1968, que mostram o
exterior da igreja, ainda com poucas construções adjacentes e o altar principal que se situa a
frente da ábside que foi demolida e substituída por uma parede revestida de pedras.

Uma notícia de jornal, integrada aos processos de tombamento, cita um caso em que a Igreja
sofreu com obras que alteraram suas características originais. A noticia se refere ao terceiro
centenário da Igreja da Prata, datada de 03 de abril de 1976, publicada no Jornal de Hoje
(Nova Iguaçu), relatando uma festa comemorativa com inauguração dos novos salões, pelo Sr.
Bispo Diocesano Dom Adriano Hipólito, provavelmente as novas instalações responsáveis
pela descaracterização da igreja, e plantas baixa e de cobertura, mostrando os novos cômodos.

485
A segunda igreja citada é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Queimados, do final do
século XIX, localizada na Praça Nossa Senhora da Conceição em Queimados. De acordo com
o inventário de bens culturais, a igreja se encontra em bom estado de conservação e de
preservação, embora tenha sofrido algumas alterações. O entorno da igreja engloba a linha de
trem da antiga RFFSA (atual SuperVia) e a estação de Queimados, bem como ruas com
intenso comércio varejista com edificações de alturas iguais ou menores que a da igreja.

A igreja é pequena e pintada de azul, com um oratório embutido no frontão da fachada e,


atualmente, se encontra levemente descaracterizada com um letreiro pintado com seu nome.
Seu interior conta com um altar-mór, dois altares auxiliares e mais pequenos oratórios e é rico
em imagens, embora estejam descaracterizadas, também, mas com decorações não-
permanentes. A decoração do interior tem motivos primitivistas, contando com adornos de
motivos florais, pinhas e colunas, realizada pelo senhor Abílio e vitrais que acompanham os
motivos florais. O forro do teto é algum tipo de contraplacado (sic) pintado de azul, com
tesouras de madeira aparentes.

As obras da igreja tiveram início em 1878, nas cercanias onde Queimados teve o início de
sua povoação. A cidade surgiu após a inauguração da estação de trem, em 1858. Em 1949, foi
realizada a obra da fachada atual, após parte da antiga fachada, bem como algumas paredes,
ter desabado. A fachada antiga contava com um frontão triangular de estilo neoclássico, ao
passo que, a nova é composta por uma torre central mais alta, que domina a visão da
edificação, onde foi embutido um oratório. Também pela década de 50, foram refeitos os
altares.

O inventário dos bens culturais segue com fotos do altar-mór, altar lateral e um oratório que
abriga uma imagem de São Jorge Guerreiro. A identificação fotográfica mostra detalhes do
exterior. Na planta anexa, vê-se a simplicidade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição: em
suma, conta com a nave principal, que recepciona os visitantes e leva ao altar-mór, ladeado
por dois corredores que levam à sacristia e, além dela, a um anexo, construído recentemente.
Há, também, uma foto de 1932, publicada em Polyanthéa Comemorativa ao Primeiro
Centenário do Município de Nova Iguassú, mostrando a igreja com seu antigo frontão
neoclássico triangular.

A igreja não conta com tipo algum de proteção existente, embora tenha sido feita a proposta
de um tombamento estadual. O levantamento realizado para o INEPAC foi feito, bem como

486
os das outras igrejas por nós estudadas, por Ney Alberto Gonçalves de Barros, do grupo de
trabalho para a preservação do patrimônio natural e cultural de Nova Iguaçu.

A Igreja de Nossa Senhora de Conceição de Marapicu se localiza no Largo de Marapicu, em


Nova Iguaçu, ao lado de um cemitério e próxima à Estrada de Madureira. Suas obras foram
concluídas no ano de 1737 e, à época do relatório de tombamento, possuía um bom estado de
conservação, com seu exterior preservado, embora a caracterização de seu interior tenha sido
parcialmente alterada. Ela é um marco paisagístico, o que pode contribuir para ser, também,
um marco turístico, nos moldes das outras igrejas da baixada, por ser situada sobre uma colina
que é circundada pela Estrada de Madureira, o que permite que seja avistada de vários pontos
da estrada.

O acesso até a entrada, no alto da colina, é feito por um caminho rusticamente calçado de
pedras. Para se chegar ao cemitério próximo (que ainda se encontra em uso), existe um
caminho por uma aleia arborizada, aos fundos da igreja. À direita da mesma, foi levantado um
coreto de concreto.

A igreja possui uma fachada simples, com uma porta de acesso principal ao centro e três
janelas horizontalmente distribuídas, encimadas por um frontão triangular. À esquerda da
fachada, há uma torre acoplada ao corpo principal, a qual possui uma pirâmide de concreto
em seu topo. Outros elementos importantes são: o coro, o sino, a pia batismal em lioz e a pia
de água benta. Apesar de sua beleza e importância, até pela localização elevada, a fachada
principal se encontra encoberta por eucaliptos plantados em uma área particular, reduzindo
assim, sua imponência, a qual é lembrança direta da ocupação pioneira de Nova Iguaçu, mas,
ainda assim, a igreja sofreu algumas alterações, como a substituição do forro da nave por uma
laje pré-moldada curva e o desaparecimento, tanto do altar-mór, quanto dos altares auxiliares.

As terras onde a igreja se encontra pertenciam, em 1736, ao capitão Manuel Pereira Ramos e
à sua mulher, Helena de Andrade Soto Maior, e foi então que, provavelmente, eles permitiram
que se iniciasse a construção dessa edificação. No ano seguinte, a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Marapicu já estava em pleno funcionamento. No ano de 1752, a igreja recebeu a
autorização do bispo do Rio de Janeiro para a construção de uma tribuna de honra, condição
que o casal impôs para realizar a doação das terras para a construção da igreja.

Em 1853, a igreja passou por reformas, contando com reparos na sacristia e no altar-mór,
reedificação da tribuna de honra e uma ampliação dos fundos, para locar a residência dos

487
párocos. Em 1968, entretanto, a igreja passou por reformas que a descaracterizaram, como,
por exemplo, a construção de um lanternim sobre o altar-mór. Mais tarde, esse lanternim foi
retirado e a volumetria original foi recomposta.

A Capela de Nossa Senhora de Guadalupe situa-se sobre uma pequena elevação, em uma
área desocupada que, atualmente, serve de pasto. De todos os templos religiosos estudados, a
capela é a que se encontra em pior estado preservacional, com um grau precário de
conservação. Ela possui uma caracterização preservada, embora tenha sofrido leves
alterações.

O acesso à capela ocorre através de uma estrada de terra, Rua da Capela, que está com um
trecho interrompido. Os outros caminhos que levam à igreja também são tão rudimentares
quando essa estrada, além de se tratarem de trilhas alagadiças. As áreas que a cercam são
limítrofes a um terreno não ocupado da prefeitura de Nova Iguaçu e são intensamente
arborizados.

A capela foi fundada pelo capitão Manuel Pereira Ramos, com uma procissão, em 4 de março
de 1750 e, apesar de não haver documentos que atestem que o início da construção se deu
nesse mesmo ano, ela provavelmente foi concluída em 1753, data inscrita em seu portal. Há
notícias de que, em 1956, a capela, ainda com diversos ornamentos que desapareceriam
posteriormente (como, por exemplo, o ornamento da portada, o altar-mór e peças do
madeiramento do coro), foi usada como um depósito de laranjas, produto que já foi
importantíssimo para o mercado agrícola da cidade. De fato, Nova Iguaçu já teve a fruta como
centro de sua economia. A cidade abrigava diversas fazendas com imensos laranjais e, até
hoje, é conhecida como cidade das laranjas.

Desde o final dos anos 50, a capela passou por um período severo de abandono, chegando até
mesmo a ser usada com um estábulo. Em 1977, a comunidade local voltou a ocupar a capela,
que recebeu reparos no revestimento e no madeiramento da cobertura, sob a chefia da irmã
Célia Tavares dos Santos.

Na fachada, uma sobreverga desaparecida encimava o portal, em rocaille, que apresenta


características barrocas, assim como o frontão e o antigo altar. Este foi substituído por uma
composição de elementos em cantaria, tais quais volutas e colunas (provavelmente
remanescentes dos ornamentos originais). Acoplado à esquerda da nave, ergue-se um
campanário que, originalmente, não possuía janelas. O telhado em duas águas termina nas

488
laterais em beira-sobeira. Também na fachada, em uma abertura na lateral, há uma esquadria
com um vitral. Uma das mais célebres características da capela é sua integração à paisagem,
característica compartilhada com as outras igrejas estudadas de alguma forma, o que pode ser
pensado ser um tipo de padrão arquitetônico das construções dessa região, reunindo uma série
de marcas de épocas diferentes. Infelizmente, é a que possui estado mais precário atualmente.
A sacristia e a tribuna, à esquerda e à direita do altar-mór, respectivamente, parecem ter sido
demolidas, e o coro se encontra em estado deplorável.

Recentemente, a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe passou por reformas realizadas por
membros da comunidade local, visando minimizar a ação do tempo e de vândalos. Isso mostra
o tamanho do apreço dos moradores da área pelo templo, outra característica que, felizmente,
é compartilhada por todas as igrejas estudadas.

Considerações finais

O levantamento, ainda em andamento, propiciará às autoridades responsáveis os subsídios


necessários para a realização de intervenções no sentido da conservação e do restauro desses
patrimônios históricos e culturais. Além disso, poderá ser promovida a produção de espaços
turísticos ainda inexplorados nas cidades abrangidas pela Diocese de Nova Iguaçu.

O impacto social da implementação das medidas de preservação, restauro e requalificação


poderá estabelecer uma forte reação dialógica com a sociedade; não apenas com a Mitra
Diocesana, mas também com o poder público, cidadãos e setores organizados, públicos e
privados.

Referências

COSTA, Everaldo Batista; SCARLATO, Francisco Capuano. A dialética da construção


destrutiva na consagração do Patrimônio Mundial. São Paulo: Humanitas, 2011.

489
DIAS, Reinaldo; SILVEIRA, Emerson J. S.. Turismo religioso: ensaios e reflexões.
Campinas: Alínea, 2003.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

MENEZES, Pedro Ivo. Arquitetura sagrada. S. Paulo: Loyola, 2006.

OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro. Turismo religioso. São Paulo: Aleph, 2004.

490
491
O significado da luz em templos religiosos – uma análise da
influência da luz na arquitetura religiosa
Alfredo Damian Pacher Majul1, Camila Szczerbacki Costa2, Mariana Campos Lima Rocha3

Introdução

A luz (natural ou artificial) na arquitetura pode possuir diversas funções e significados além da iluminação em si. A
luz, segundo Paulo Marcos Mottos Barnabé é um material instável no processo de projetivo, assim como os odores, os
sons, etc. Esses materiais são caracterizados por interferir diretamente na nossa percepção de um espaço (cores e
estrutura) e dos materiais estáveis que são os elementos físicos usados para a construção. Além desses fatores não
podemos deixar de mencionar que cada indivíduo, influenciado por suas experiências e personalidade, terá uma
interpretação daquilo que vê, não totalmente diferente, mas nem totalmente igual. Fato é que a luz pode alterar o
estado de ânimo de uma pessoa.

Neste universo confinado de sombras a luz dá forma e sentido às entidades materiais e as


conecta entre si. A luz constrói e media a relação entre o espaço e a dimensão psíquica do
usuário, torna perceptível o movimento, ordena e define todos os fenômenos reais. As
trevas, o olhar escravizado, dirigido para as sombras, pode dar ao homem uma visão
distorcida do mundo (BARNABÉ, 2005).

Este trabalho se propõe a mostrar exemplos disso e tentar de forma empírica (a partir da leitura de memoriais e artigos
e pura observação) interpretar o significado ou a função da luz em cada obra.

Significados

As contribuições da luz para um espaço e os significados de seu uso podem ser divididas
primeiramente em claro e escuro. Um templo com pouca (ou nenhuma) iluminação é um
espaço solene e às vezes opressor que induz o fiel à reflexão, ou pode estar relacionado com o
medo ou a morte. Um templo bem iluminado pode significar o oposto. Os casos de presença
de luz têm um leque maior de significados para a luz. Geralmente objetiva ascender ao divino,
mas pode ter outros significados associados. A luz pode ser tema principal do edifício, sendo
um elemento decorativo; indicar trajetos; induzir o olhar para pontos importantes como altar
de uma igreja católica e definir elementos construtivos.

1
Graduando pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: pacher_alfredo27@hotmail.com.
2
Graduanda pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: camila.szczerbacki@gmail.com.
3
Graduanda pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: marianacamposlr@gmail.com.

492
A seguir estão os exemplos analisados organizados em ordem cronológica para permitir a
observação e comparação dos usos e significados da luz através do tempo e sua evolução.

Na Catedral de Notre-Dame de Paris, construída nos séculos XII e XIII, notamos claramente a
influência do estilo gótico. Esse estilo permite a ligação da terra ao céu e no interior de uma
catedral do estilo, o crente é impelido à ascensão pela afirmação constante da verticalidade,
pela monumentalidade das paredes que parecem erguer-se segundo uma teoria contrária à da
gravidade, tornando-as leves, deixando por elas filtrar o colorido dos grandes vitrais numa
aura etérea. Vitrais esses que ao serem penetrados pela luz do Sol, reforçam o efeito de
espiritualidade do ambiente, por suas imagens religiosas que são realçadas e pelo jogo de
cores que eles conferem. A rosácea presente no interior da Igreja faz alusão a personagens
cristãos como Jesus Cristo (que é representado pelo sol) e Maria (representada pela rosa),
mais uma vez o uso da luz mesmo que não puro auxilia o arquiteto a fazer a conexão do
visitante e o mundo religioso.

Figuras 14 e 25 – Exterior e rosácea da Catedral de Notre Dame de Paris.

A Capela Monastério Beneditino da Santissima Trindade de Las Condes, no Chile é


basicamente uma composição de dois cubos brancos que se encaixam e são penetrados pela
luz natural. A luz entra de forma variada iluminando por completo o interior. A iluminação se
faz nas naves por cima e na capela do santíssimo por baixo da rampa e por uma abertura

4
Disponível em <http://www.bigviagem.com/wp-content/uploads/2009/06/catedral-notre-dame-de-paris.jpg>.
Acesso em: 18 de ago. 2013.
5
Disponível em <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d8/North_rose_window_of_Notre-
Dame_de_Paris,_Aug_2010.jpg>. Acesso em 18 de ago. 2013.

493
vertical atrás dos bancos. Essa abertura explora a luz como elemento palpável, aproximando o
visitante de um elemento não-palpável, retratando de forma incomum, porém eficaz, a
conexão que a igreja tenta estabelecer entre o nível material e um nível superior. A luz nesta
igreja contribui tanto para a iluminação como para a conformação do espaço. O espaço
resultante é o de um cubo formado por planos que são separados em suas arestas pelos rasgos
de luz.

6
Figuras 3 e 4 – Interior da Capela do Monastério Beneditino.

Com grande armação de vidro no teto, A Catedral de Brasília é uma das grandes obras de
Niemeyer. A catedral foi inaugurada em 1970. A estrutura, que possui 40 metros de altura,
conta com 16 arcos de concreto que apontam para cima. No interior, o que mais chama
atenção é o vitral do teto, que rodeia em 360° a estrutura da catedral. A armação de vidro
permite que a capela seja iluminada pelo céu da capital federal. Considerando o trajeto que o
visitante faz para chegar podemos identificar o mais importante significado da luz nessa
catedral. Primeiro o visitante precisa descer por uma passagem subterrânea escura, assim
experimenta a submissão, pois se curva para entrar, já dentro do espaço escuro ele avista uma
luz ao fim desse túnel, o que representa a redenção, para então adentrar a nave principal. O
visitante vem de um espaço de intensa luminosidade, passa por um espaço escuro e termina
num espaço muito claro, porém abrandado pelos vitrais.

6
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-48834/classicos-da-arquitetura-capela-do-monasterio-
beneditino-gabriel-guarda-e-martin-correa>. Acesso em 7 de out. 2012.

494
Niemeyer cria um cosmo onde a luz se expressa, revela a forma e a sombra contrastante
que enfatiza leveza. Não enfatiza em um jogo de claro-escuro, não se interessa pelos
volumes sombreados, mas apela para posição dualística da figura sobre o fundo, o forte
contraste entre áreas iluminadas e áreas sombreadas. O volume sob o sol. (YÁVAR, 2013).

Figuras 57 e 68 – Exterior (mostrando a entrada) e interior da Catedral de Brasília.

Aqui vale falar sobre dois exemplos de catedrais que são contemporâneas e embora não sejam
idênticas, se desmembradas em partes, tem muitas semelhanças, na forma, na função e no
significado dos elementos. São elas: a Catedral de Santa Maria da Assunção e a Catedral
Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira está localizada em São
Francisco, Califórnia e é um projeto realizado pelos arquitetos Pier-Luigi Nervi e Pietro
Belluschi no ano de 1971. Já a segunda é carioca, localizada no Centro, Rio de Janeiro e foi
projetada pelo arquiteto Edgar Fonseca. Primeiramente o elemento mais marcante para este
estudo; ambas catedrais possuem uma cruz na cobertura cujos braços se estendem pelo corpo
da construção. Elas parecem ser o símbolo máximo da aproximação de Cristo com seus fiéis e
a luz tem papel fundamental nessa representação já que as cruzes são feitas de elementos de
vidro. Na de Santa Maria da Assunção a cruz possui hastes esbeltas e é a própria cobertura já
na do Rio a cruz é do tipo grega (as quatro hastes são iguais) e de largas proporções e está
inserida num círculo. A forma das duas catedrais ajuda a reforçar o sentido de aproximação
com Deus, as duas indicam o céu. Em Santa Maria seu corpo é formado por hiperbolóides que
fazem a transição da base quadrada até a cobertura. Em São Sebastião o corpo é um tronco de
cone, ou seja, afunila. Quanto ao prolongamento de cada haste da cruz, que são vitrais
também; não se sabe ao certo em Santa Maria, mas em São Sebastião cada um possui uma cor
e um significado e são eles as quatro notas características da Igreja: una, santa, católica e

7
Disponível em <http://4.bp.blogspot.com/_WHXkQnHsnQw/TBjl2h_7WiI/AAAAAAAABXU/i3tAQtE-
6ds/s1600/Brasilia-Cathedral.jpg>. Acesso em: 18 de ago. 2013.
8
Disponível em <http://www.gazetadopovo.com.br/midia/tn_620_600_catedral_de_brasilia_040509.jpg>.
Acesso em 18 de ago. 2013.

495
apostólica. Os vitrais (rasgos de luz) presentes no corpo das catedrais evidenciam a
verticalidade, ou seja, a ascensão ao céu. Em Santa Maria existem ainda mais alguns vitrais
nas laterais, mas neles luz tem função apenas de ressaltar a imagem, ou seja, decorativa.
Quanto à iluminação geral; em Santa Maria não parece ser eficiente se considerarmos apenas
a luz natural proveniente da cruz e seus prolongamentos, mas a base quadrada é formada por
alguns painéis de vidro que desempenham bem a função; em São Sebastião os vitrais são
largos que facilitam a entrada de luz.

Figuras 7 e 8 – Exterior e interior da Catedral de Santa Maria da Assunção. 9

Figuras 9 e 10 – Exterior e interior da Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. 10

A arquitetura de Tadao tem como característica forte valorizar e usar os elementos da


natureza. Nesta obra, a Igreja da Luz no Japão, a luz é o único elemento que entra e é
trabalhada como um elemento de aproximação espiritual e também de realce. A parede atrás
do altar é recortada formando um vazio em forma de cruz (que não é a cristã, visando não

9
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-97753/classicos-da-arquitetura-catedral-de-santa-maria-da-
assuncao-pier-luigi-nervi-e-pietro-belluschi>. Acesso em 14 de ago. 2013.
10
Disponível em <http://www.catedral.com.br/fotos.php#fotos/catedral_frontal.jpg>. Acesso em: 14 de ago.
2013.

496
remeter a uma deidade específica). Para destacar este elemento e a sombra que se projeta ao
longo do dia no chão conforme a posição do sol, o arquiteto limitou as outras aberturas.
Assim podemos identificar relações de luz e movimento, cheios e vazios, e ainda escuro e
serenidade. A luz, aqui, não tem como foco a iluminação, ela é um elemento decorativo, mas
tão bem pensado é o projeto que, como já foi citado aqui, a sombra se projeta no chão e vai
formando um desenho ao longo do dia, que varia conforme a hora e também conforme a
estação do ano.

Figuras 11 e 12 – Exterior e interior da Igreja da Luz. 11

Um dos principais aspectos da arquitetura de Álvaro Siza é a relação de seus edifícios com a
luz natural, como podemos perceber na Igreja de Santa Maria em Portugal.

Este espaço está inundado por uma luz que também pode ser atravessa uma janela na torre. Os
dois grandes painéis de vidro da outra torre simbolizam a transparência da igreja, e atuam
como uma entrada adicional.

Neste exemplo concreto, a luz natural entra através de três grandes aberturas que se cortam no
nível máximo da parede curva. No altar há dois grandes espaços iluminados que admitem a
luz na capela. A abertura horizontal ao longo da parede sul-leste atua como um marco das
montanhas que rodeiam o terreno. Fazendo nesse caso não apenas uma alusão a elementos da
Igreja e sim estabelecendo uma relação com o exterior, a natureza. A Igreja tem como papel
conectar o espaço físico com o imaterial e nesse caso se alcança essa conexão sem isolá-lo.

11
Disponível em <http://www.galinsky.com/buildings/churchoflight/>. Acesso em 10 de out. 2012.

497
Figuras 13 e 14 – Exterior e interior da Igreja de Santa Maria.12

Este exemplo parte da idéia de construir o silêncio num mundo cheio de ruído. A Igreja Nossa
Senhora das Necessidades de Célia Faria e Inês Cortesão em Portugal, representa uma pausa,
seu carácter espiritual está presente, mas não intimida, protege.

A escolha dos materiais, a forma de moldar a luz natural e artificial e o despojamento do


espaço de imagens tiveram como objetivo principal a busca da harmonia. A sua presença
física de um ser superior está representada numa cruz em latão polido, sobre uma cruz feita de
luz, um rasgo recortado na parede no centro do altar. A partir dos recortes do alçado foi
desenhado o teto e introduzida iluminação zenital quer artificial ligando cada um dos recortes
do alçado curvo com os vãos situados sobre o altar. Esta forma, que se assemelha a um
ostensório, procura reforçar a ideia de luz divina, ao convergir o nosso olhar para o ponto
cardeal onde a luz naturalmente nasce e onde está situada a cruz. Daí é espalhada, à
semelhança dos raios de sol, para todo o espaço.

A forma inclinada do teto da assembleia é repetida na capela, sem tocar na parede do altar,
permitindo que a luz entre e se espalhe, enfatizando o momento solene. A luz que se faz
presente mesmo silenciosa é usada não só como iluminação mas como uma metáfora, um
mesmo elemento quando moldado de diferentes formas pode atribuir um valor ao ambiente,
nesse caso um valor espiritual.

12
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-56992/igreja-de-santa-maria-alvaro-siza/>. Acesso em 10
de out. 2012.

498
Figuras 15 e 16 – Interior da Igreja Nossa Senhora das Necessidades.13

Nesta igreja a mensagem cultural é comunicada através do jogo de luz (facilitado pela
localização numa montanha) e sombras que se dá a partir das aberturas feitas. A Igreja de
Seed, na China, possui em sua fachada sudeste uma abertura cruciforme que permite a entrada
de luz na parte da manhã. O recorte de luz substitui um objeto comum na Igreja, a luz, mas ao
mesmo tempo o faz de forma a conectar o seu interior com o exterior. A fachada oeste é
sólida e protege do sol da tarde. Ao redor da construção estão distribuídas três aberturas com a
altura do edifício, são os acessos que também contribuem para a iluminação. Há ainda as
aberturas que juntas lembram uma escada no teto. A lembrança da escada remete ao paraíso,
um jogo de luz fazendo uma metáfora em que o visitante ali presente pode alcançar aos céus.
As aberturas somadas formam um espaço que possui iluminação eficiente durante o dia. O
jogo de luz e sombra aliado aos materiais e texturas tem como objetivo contribuir para a
conformação do espaço, bem como sua iluminação.

Figuras 17 e 18 – Exterior e interior da Igreja de Seed14

13
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-56243/igreja-nossa-senhora-das-necessidades-celia-faria-
ines-cortesao/>. Acesso em 11 de set. 2012.

499
Considerações finais

A partir desse estudo percebemos que a iluminação, assim como a arquitetura de uma maneira
geral, acompanha a mentalidade da sociedade de seu tempo. Na arquitetura religiosa a
tradição tem bastante peso, mas podemos perceber que mesmo de forma sutil ela também
acompanha as inovações tecnológicas. A inovação permitiu projetos mais ousados, mas que
em sua essência são como seus antepassados. Os bons projetos usam a luz com o objetivo de
reforçar a tradição, colocam significados no uso da luz, não é apenas uma iluminação geral e
puramente funcional. Outra conclusão tirada é que o uso da luz em templos não tem um certo
ou errado, não há um padrão a ser seguido. As intenções, os símbolos e significados podem
ser expressos de diversas formas (principalmente com o advento da tecnologia). Há que se ter
coerência com o que se pretende, e isso basta.

Referências

BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. A luz natural como diretriz de projeto para a concepção
do espaço e da forma na obra dos arquitetos modernos brasileiros – 1930/60. Tese
(Doutorado em Arquitetura). FAU-USP, São Paulo, 2005.

Igreja de Seed. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-63887/igreja-de-seed-o-


studio-architects/>. Acesso em 11de out. 2012.

MASCARÓ, Lucia. Iluminação e arquitetura: sua evolução através do tempo. Arquitextos,


São Paulo, 06.063, sep. 2005. Disponível em
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.063/438>. Acesso em 9 de ago.
2013.

Internet
A importância dos vitrais na arte gótica. Disponível em
<http://noticias.vidrado.com/historia/a-importancia-dos-vitrais-na-arte-gotica/>. Acesso em
16 de ago. 2013.

ANDO, Tadao. Igreja da Luz. Disponível em


<http://teturaarqui.wordpress.com/2011/02/02/igreja-da-luz-tadao-ando/>. Acesso em 10 de
out. 2012.

14
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-63887/igreja-de-seed-o-studio-architects/>. Acesso em 11
de out. 2012.

500
BELLUSCHI, Pietro; NERVI, Pier-Luigi. Clássicos da Arquitetura: Catedral de Santa Maria
da Assunção. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-97753/classicos-da-
arquitetura-catedral-de-santa-maria-da-assuncao-pier-luigi-nervi-e-pietro-belluschi>. Acesso
em 14 de ago. 2013.

Catedral de Brasília é um dos marcos da ousadia de Niemeyer. Disponível em


<http://brasilimperdivel.tur.br/catedral-brasilia-niemeyer/>. Acesso em 10 de out. 2012.

Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. Disponível em


<http://www.catedral.com.br/index.php>. Acesso em 14 de ago. 2013.

CORREA, Martín; GUARDA, Gabriel. Clássicos da Arquitetura: Capela do Monastério


Beneditino. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-48834/classicos-da-
arquitetura-capela-do-monasterio-beneditino-gabriel-guarda-e-martin-correa/>. Acesso em 07
de out. 2012.

CORTESÃO, Inês; FARIA, Célia. Igreja Nossa Senhora das Necessidades. Disponível em
<http://www.archdaily.com.br/br/01-56243/igreja-nossa-senhora-das-necessidades-celia-
faria-ines-cortesao/>. Acesso em 11 de set. 2012.

Igreja da Luz - Ibaraki, Osaka, Japão_1987-89. Disponível em


<http://www.arquitetura.eesc.usp.br/arquiteturascontemporaneas/sites/Equipe1_dri_lu_nick_t
obi/tadao_igreja.htm>. Acesso em 12 de set. 2012.

SIZA, Álvaro. Clássicos da Arquitetura: Igreja de Santa Maria. Disponível em


<http://www.archdaily.com.br/br/01-56992/igreja-de-santa-maria-alvaro-siza/>. Acesso em
10 de out. 2012.

YÁVAR, Javiera. Luz natural e Arquitetura: o legado deixado por Oscar Niemeyer.
ArchDaily Artigos. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-87960/luz-natural-e-
arquitetura-o-legado-deixado-por-oscar-niemeyer>. Acesso em 9 de ago. 2013.

501
502
Projeto moderno de globalização da Companhia de Jesus: reflexos
na arquitetura religiosa da América Portuguesa
Fernanda Santos1

Introdução: arquitetura religiosa no Brasil

Os primeiros templos religiosos construídos no Brasil seguiam o estilo tardo-renascentista ou


maneirista português, conhecido como estilo chão. Esta estética se caracterizava pelas
fachadas compostas por figuras geométricas básicas, frontões triangulares, janelas próximas
ao quadrado e paredes marcadas pelo contraste entre a pedra e as superfícies brancas, de
caráter bidimensional (CARVALHO, NÓBREGA, SÁ, 2000, p. 2000). A decoração se
apresentava escassa e circunscrita em geral aos portais, ainda que os interiores fossem ricos
em altares, pinturas e azulejos. Assim, as primeiras igrejas brasileiras eram compostas por
nave e capela-mor de planta retangular, com uma ou três naves, janelas simples e uma fachada
retangular ou quadrada encimada por um frontão triangular, podendo ter uma ou duas torres
laterais. Ao longo do século XVII apareceram frontões adornados com volutas de caráter
maneirista. Nessa primeira fase, os principais modelos das igrejas coloniais foram as igrejas
de São Roque, São Vicente de Fora de Lisboa. Hoje em dia restam poucos exemplos da
arquitetura quinhentista no Brasil, uma vez que boa parte das edificações mais antigas foi
destruída ou ficou muito alterada.

Desde o século XVI, os Jesuítas construíram igrejas e colégios em regiões isoladas para
promover a conversão dos indígenas ao Cristianismo. Alguns exemplos importantes de igrejas
jesuítas dos primeiros tempos da colonização são as de São Pedro d’Aldeia (Rio de Janeiro),
Nova Almeida (Espírito Santo), Embu (São Paulo) e a Capela de São Miguel (São Miguel
Paulista, São Paulo), todas datando do século XVII ou início do XVIII.

Várias igrejas do século XVII, de caráter maneirista, ainda sobrevivem no Brasil. Um


exemplo é a igreja do Mosteiro de São bento do Rio de Janeiro, construído entre 1633 e 1677
com base a um projeto de 1617. A fachada é composta por formas geométricas, com um
frontão triangular, ladeada por duas torres e com uma galilé com três portais, semelhante à
Igreja de São Vicente de Fora de Lisboa. Um exemplo mais tardio é a antiga igreja jesuíta,

1
Doutoranda em História pela UFSC. Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal. Contato:
fercris77@gmail.com.

503
atualmente Catedral de Salvador, datada de 1652-1672 (SMITH, 1948), com uma fachada
maneirista encimada por volutas e com duas torres, características semelhantes à igreja jesuíta
de Coimbra (atual Sé Nova de Coimbra) (TELLES, 1980, p. 75). O interior, de nave única
com capelas laterais e transepto e capela-mor pouco profundos, é baseado em São Roque de
Lisboa. A igreja jesuíta de Salvador inspiraria outras na região, como a igreja do Convento de
São Francisco, de Salvador (TELLES, 1980, p. 76).

Por volta da metade do século XVII surgiram igrejas que, apesar de não terem plantas curvas
barrocas, apresentavam fachadas principais cenográficas, fugindo das rígidas formas
anteriores. Um importante exemplo é a Igreja do Convento Franciscano de Cairu, na Bahia,
construída a partir de 1654. A entrada da igreja é precedida por uma galilé, formada por cinco
arcos, com dois andares superiores escalonados flanqueados por volutas. O frontão da igreja,
no terceiro andar, contém um nicho com a imagem de Santo Antônio, e a torre única da igreja
encontra-se recuada em relação à fachada. Esse esquema de fachada, cujo protótipo
maneirista pode ser a da igreja franciscana de Ipojuca, de fez escola no Nordeste, dando
origem, entre outras, às igrejas dos conventos franciscanos de Paraguaçu (Bahia), Olinda,
Igarassu (Pernambuco) e João Pessoa (Paraíba), este último construído já no século XVIII
com uma fachada ricamente decorada. Os conventos franciscanos nordestinos estavam
organizados ao redor de um nobre claustro de dois pisos (datando já do século XVIII), de
ordem toscana, frequentemente decorados com azulejos portugueses. Em frente aos
conventos, um amplo adro com um cruzeiro aumentava a imponência urbanística do conjunto
(TELLES, 1980, p. 25-30).

A Companhia de Jesus no Brasil

No Brasil, como na Ásia, a principal ordem missionária foi a Companhia de Jesus, com uma
organização internacional de quartel-general fixado em Roma. A atividade missionária foi
desenvolvida, maioritariamente, por clérigos portugueses e gerida no âmbito da estrutura
organizacional do Império português, como no caso asiático (DISNEY, 2010, p. 320). Desse
modo, as missões ultramarinas da Companhia de Jesus são de origem portuguesa, da
iniciativa do Dr. Diogo de Gouveia, antigo reitor da Universidade de Paris e principal do
Colégio de Santa Bárbara. Embora a Companhia só fosse aprovada oficialmente a 27 de

504
setembro de 1540, já meio ano antes tinham partido de Roma para Lisboa, a caminho das
missões portuguesas, os Padres Simão Rodrigues e Francisco Xavier (LEITE, 1965, p. 1).

A fundação canônica da nova Ordem religiosa acabaria por irradiar uma ampla evangelização
de sociedades não-europeias, uma novidade no carisma da Companhia encontrada nos
espaços ultramarinos, frequentados pelas conquistas e pelos tratos ibéricos. Subjacente a este
impulso evangélico esteve a dinâmica da conquista espiritual dirigida para a conversão à
fidelidade da Igreja de Roma de todo aquele que ignorava ou que se tinha afastado das
doutrinas católicas. O caráter universalista do Cristianismo ajudava a legitimar as atividades
político-diplomáticas expansionistas, e os próprios eclesiásticos acabaram por ganhar
interesse em aproveitar aquela oportunidade que lhes surgia e que lhes permitia espalharem-se
pelo mundo até aí conhecido pelos europeus, propagando o Evangelho. Os surtos missionários
não foram imediatos, mas perante uma revolução geográfica, atuava-se com um novo modelo
de evangelização (COSTA, 1998, p. 24).

Durante a sua permanência de duzentos e dez anos no Brasil até à sua expulsão em 1759, os
Jesuítas foram um agente importante na exploração geográfica e na colonização europeia. Por
um lado, foram os primeiros a desbravar o sertão e a floresta. Por outro lado, os colégios e
outras casas constituíram o núcleo inicial de vilas e cidades brasileiras. Este caráter pioneiro
dos Jesuítas tornou-os no corpo missionário mais numeroso e mais espalhado no Brasil, de tal
forma que em 1553 para 1556 o seu número tinha ascendido de treze para trinta e seis jesuítas
(OSSWALD, 2010, p. 135). Os Jesuítas foram, no século XVI, os únicos religiosos presentes
em muitas regiões brasileiras. Devido à escassez de clérigos seculares e regulares, mesmo em
cidades importantes como o Rio de Janeiro, os jesuítas pregavam e confessavam a maior parte
dos portugueses e restantes fiéis. Para além da Companhia de Jesus, outras Ordens
começaram a atuar no terreno, com as quais nem sempre os Jesuítas tiveram um
relacionamento fácil ou pacífico na disputa pelo domínio do monopólio das instituições
educativas. No decurso do século XVI e começo do século XVII, a ação de Franciscanos, de
Carmelitas, de Beneditinos e, principalmente, de Jesuítas, conseguiu atenuar a incompetência
dos clérigos seculares originários de Portugal. As Ordens religiosas passaram a tomar conta
da formação de religiosos. Também as referidas Ordens cumpriram a mesma tarefa educativa,
num grau menor, contudo, com vista à formação de novos sacerdotes (SERRÃO, 1991, p.
376-377).

505
Os Jesuítas do Brasil viveram em diferentes instituições, à semelhança de todas as províncias
jesuítas: casas, residências, colégios, noviciados, hospícios, recolhimentos, hospitais e
seminários. As casas (ou residências) eram a princípio escolas de ler, escrever e contar,
voltadas para os meninos índios e os filhos dos portugueses. Aos poucos começavam a
oferecer estudos mais avançados e, com a dotação real e o reconhecimento oficial, passavam a
colégios. No que se referem às residências, estas podiam ser habitações fixas ou temporárias.
Os colégios mais importantes reuniam uma série de funções e albergavam uma grande
variedade de habitantes, reunindo uma série de edifícios. Parte destes aposentos tinha uma
função distinta das funções mais comuns nos colégios europeus (OSSWALD, 2010, p. 135-
136). As prescrições internas da Companhia determinavam que todas as províncias tivessem
áreas rurais (cercas) localizadas fora dos aglomerados urbanos, e que seriam não só áreas de
lazer, mas também fontes de abastecimento para as comunidades jesuítas nas cidades
(ALDEN, 1996, p. 211).

O estilo jesuítica na arquitetura religiosa

O considerável acervo de obras de arte que os padres da Companhia de Jesus nos legaram é
uma das mais significativas. A circunstância de se ter iniciado a ação da Companhia em fins
do Renascimento, quando os primeiros sintomas do barroco já se faziam sentir, e de se
desenvolverem, depois, os dois movimentos paralelamente, levou alguns críticos a
pretenderem englobar sob a denominação comum de arte jesuítica todas as manifestações de
arte religiosa dos séculos XVII e XVIII.

A expressão arte jesuítica, que supõe um estilo próprio da Companhia de Jesus, apresenta
manifestações diversas, de acordo com as conveniências e recursos locais e com as
características de estilo próprias de cada período. Apesar dessas diferenças, o espírito
jesuítico aparece marcado na arquitetura. À medida que as obras se vão afastando dos padrões
mais definidos dos finais do século XVI e da primeira metade do século XVII, as formas, os
materiais e as técnicas vão mudando. As marcas do seu estilo existentes nas composições em
conjunto ou nas particularidades constituem o verdadeiro estilo dos padres da Companhia.
Tratando-se de uma ordem nova e diferente, livre de compromissos com as tradições
monásticas medievais, e, por conseguinte, em situação particularmente favorável para se
deixar impregnar, logo de início, do espírito moderno, pós-renascentista e barroco, é natural

506
que tenha sido mesmo assim. As obras arquiteturais da Companhia mostram a globalização
deste estilo.

Todavia, no Brasil, a expressão estilo jesuítico tem um sentido mais limitado e preciso. Na
Europa, estilo jesuítico lembra as manifestações mais desenvoltas do barroco; enquanto para
os hispano-americanos, onde a ação da Companhia prosseguiu ininterruptamente durante todo
o século XVIII, a ideia da arte jesuítica abrange o ciclo barroco completo. No Brasil, onde a
atividade dos padres, já atenuada na primeira metade do século, foi definitivamente
interrompida em 1759, as obras dos Jesuítas, ou pelo menos grande parte delas, representam o
que há de mais antigo. Consequentemente, quando se fala aqui em estilo jesuítico, o que se
quer significar, de preferência, são as composições mais renascentistas, mais moderadas,
regulares e frias, ainda imbuídas do espírito severo da Contra-Reforma.

Plano da arquitetura jesuítica: igrejas e colégios

O programa das construções jesuíticas era relativamente simples, podendo ser dividido em
três partes, correspondendo cada uma destas a uma determinada utilização: para o culto, a
igreja com o coro e a sacristia; para o trabalho, as aulas e oficinas; para residência, os
cubículos, a enfermaria e trabalho, as aulas e oficinas; a enfermaria e mais dependências de
serviço, além da cerca, com horta e pomar. Sendo o objetivo da Companhia a doutrina e a
catequese, a igreja devia ser ampla, a fim de abrigar número sempre crescente de convertidos,
e localizada, de preferência, em frente a um espaço aberto – um terreiro – onde o povo se
pudesse reunir e andar livremente, não se prevendo, na maior parte das vezes, a construção
ordenada de casas em volta dessa praça.

Ao contrário do que se observa nas missões do sul, onde cada núcleo jesuítico constituía por
si mesmo o povo, isto é, a cidade, os principais colégios do Brasil faziam parte de
organizações urbanas distintas, ou então, quando sucedia a algum dos numerosos aldeamentos
formados pelos padres, tomar corpo – como foi o caso de São Paulo de Piratininga, por
exemplo – ele era logo repartido com as demais ordens religiosas e as autoridades civis.
Assim, mais modesto e menos independente, o programa jesuítico brasileiro não comportava
os traçados urbanísticos integrais tão característicos das missões da Província do Paraguai, das
quais ficaram os chamados Sete Povos das Missões.

507
Note-se a importância atribuída pelos Jesuítas à localização espacial dos seus colégios.
Fatores como o clima, o meio, o ambiente, eram para ser tidos em conta, e por isso os
colégios deveriam estar em pontos mais salubres e elevados das capitais. Contavam ainda os
arvoredos e a luminosidade do local, condições que julgavam indispensáveis ao meio em que
o aluno deveria viver, crescer e ser formado. Estes princípios eram universais, na ótica dos
Jesuítas, e aparecem discriminados nas Constituições da Companhia de Jesus.

Por esse motivo, é notável a semelhança das linhas principais de todos os colégios, sendo
estas instituições educativas ramificações de um mesmo tronco. Outra explicação plausível é
o fato de todos os desenhos e projetos dos colégios serem sujeitos à revisão do Padre Geral,
justificando-se assim a analogia do critério de uniformidade dos planos das novas edificações
com os de outros colégios anteriormente construídos, se aproveitando de igual modo a
experiência acumulada, na construção de um novo edifício, aperfeiçoando as instalações
(MADUREIRA, 1929, p. 614-616). Outro aspecto a ter em conta é que a organização de um
colégio jesuíta era exímia, lembrando “uma cidade dentro de outra cidade” (BUTEL, 1990, p.
446).

A Igreja do Colégio da Bahia, orientada em direção norte sul, foi, a princípio, edifício
autônomo. Em 1552, a primeira igreja de taipa ameaçada por arruinamento foi reconstruída
com o mesmo material. Em 1561, a terceira igreja, já com utilização de materiais mais
resistentes, pedra e cal, é iniciada (LEMOS, 1999, p. 10).

Logo depois, entretanto, viu-se incorporada a um plano de construção em quadra – partido


seguido, aliás, pelos Jesuítas desde as suas primeiras edificações na Bahia. Francisco Dias,
arquiteto, vindo de Portugal em 1577 incumbido da construção do Colégio de Jesus na Bahia,
projetou novo edifício formando conjunto com ela. Presumivelmente esses planos também
previam a ereção de uma igreja maior e mais moderna, de acordo com o estilo e a
grandiosidade do colégio definitivo. Só no século seguinte, porém, foi possível levantar-se
essa igreja, a atual Catedral Basílica do Salvador. Em 1572, na festa do Divino Espírito Santo,
foi consagrada a 3.ª igreja, iniciada em 1561. Em 1581 foram colocados os sinos vindos de
Portugal, ocorrendo a complementação com imagens e painéis em 1585. O colégio continuou
com sua construção em taipa. O local onde fora erguida a 3.ª igreja é muito controverso:
segundo alguns historiadores, seria onde hoje está a sacristia da 4.ª igreja – Catedral; para
outros corresponde ao ponto do prédio da Secretaria de Trabalho e Bem Estar Social (Antiga
Coelba) e Cine Excelso. A 3.ª igreja do colégio estava totalmente concluída em 1584, e o

508
colégio já se encontrava em pleno funcionamento com todos os seus compartimentos
construídos (LEMOS, 1999, p. 11).

A técnica utilizada, excluídas as primeiras construções sumárias de cobertura vegetal, de


pouca dura – como diziam, então, os padres – teve uma primeira série de edificações ainda
provisórias, estruturas de madeira e barro de mão, quase sempre assobradadas, com
compartimentos forrados e cobertura de telha. As referências a umas e outras, nas cartas, nas
crônicas etc., são numerosas e muitas delas já pareciam velhas quando, de 1583 a 1585, o
padre Cristóvão de Gouveia as visitou. Não eram, porém, tais construções tão precárias como
se tem dado a entender.

Quanto às construções ditas de pedra e barro, como, por exemplo, a igreja do Colégio de São
Paulo, representavam, de certo modo, um compromisso entre essa técnica e a de pedra e cal.
As edificações em alvenaria de pedra - tanto religiosas como civis - já eram bastante comuns
na segunda metade do primeiro século. Foram várias as construções jesuíticas, igrejas e
colégios, feitas com essa técnica.

Ainda hoje a igreja do colégio de São Vicente - atual matriz - conserva, tanto externa como
internamente, as proporções e o aspecto geral das igrejas mais antigas, embora os vãos e o
frontão datem do século XVIII, e o revestimento, a cobertura, o coro etc. tenham sido
recentemente desfigurados.

A igreja de N. Sra. da Graça, do Colégio de Olinda, cuja construção foi iniciada, em pedra e
cal, em 1597, com semelhanças à de S. Roque, tem sido dada como reduzida a cinzas pelos
holandeses, considerando-se o edifício atual uma reconstrução de fins do século XVII,
destituída de maior interesse. Os estudos efetuados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional mostram, entretanto, de forma inequívoca, que essa igreja é, de fato, a
primitiva.2

2
1°) os altares colaterais são contemporâneos da construção de fins do século XVI, conforme se poderá constatar
adiante, quando tratarmos com mais vagar da arquitetura interna das igrejas jesuíticas; 2°) o risco da igreja, tanto
pelo seu interior como pela fachada, baseia-se, efetivamente, na "traça" da igreja de São Roque, da Casa Professa
dos Jesuítas, em Lisboa, cujo frontispício - a única parte do prédio que sofreu com o terremoto - foi, ao que
parece, reconstruído com aproveitamento do material primitivo; 3°) no panorama de Olinda, de Franz Post, aqui
reproduzido, observa-se muito claramente que os danos causados pelo incêndio - da mesma forma que em
Lisboa com o terremoto - não foram de molde a desmantelar o edifício. O fogo, ateado, é de presumir-se, no
altar-mor, que, este sim, desapareceu, teria passado ao forro e ao madeiramento da cobertura; daí ao coro e às
janelas da fachada principal, janelas cujos vãos foram recompostos já em desacordo com o estilo da construção
quinhentista.

509
Esta igreja de Olinda, projetada pelo arquiteto jesuíta Francisco Dias, um dos colaboradores
de Filipe Tersi - o arquiteto levado de Roma para Lisboa pelos Jesuítas, especialmente para
construir a igreja de São Roque - é, pois, a única igreja jesuítica quinhentista ainda existente
no Brasil.

Além do antigo Colégio da Bahia, e do de Belém do Pará, são também dispostos em quadra,
entre outros, o Colégio de Olinda, os do Espírito Santo e do Estado do Rio, o de Embu - este
com pátio bem modesto - e, ainda, diferente de todos os demais pelo seu aspecto sombrio e
pesado de praça-forte, o de Paranaguá (COSTA, 1941, p. 138-139).

Um dos quartos da quadra era sempre ocupado pela igreja, cujo frontispício, mantido no
alinhamento do quarto contíguo, formava com este, em elevação, um plano só,
correspondendo ao colégio uma linha horizontal contínua e ao corpo da igreja um frontão de
empena, com a torre servindo de remate à composição. Essa disposição, clara e coerente, era
geralmente adotada quando, de início, não fazia parte do programa a construção de uma
segunda torre.

Quando os planos previam a possibilidade de se vir a construir, futuramente, uma segunda


torre, aquela que primeiro se fazia era a de ligação entre a ala do colégio correspondente ao
terreiro e a igreja, como nos colégios do Castelo, no Rio de Janeiro e de São Paulo. Torres
que, na maior parte das vezes, não foram concluídas ou nem mesmo sequer iniciadas, ou que
só se fizeram depois da expulsão, muito mais tarde, sem se atender às características da
construção primitiva.

No que se refere à planta baixa das igrejas, o partido aqui adotado pelos Jesuítas foi, quase
exclusivamente, o de uma só nave. Apenas em dois casos se mostra solução diferente. Na
igreja de São Pedro d'Aldeia, construção pura, tanto do ponto de vista técnico como plástico,
onde se vê, na sua forma mais rudimentar, o partido de três naves tão apropriado às igrejas
missioneiras (os esteios centrais, aliviando o peso da cobertura, permitem maior amplitude e
daí a possibilidade de abrigar um maior número de fiéis) - e na da antiga Reritiba. O partido
geral de uma só nave inclui, no caso das igrejas jesuíticas brasileiras, plantas de diversos tipos
diferentes.

Primeiro o tipo mais singelo, que teria sido o das capelas rudimentares dos primeiros tempos e
no qual a capela-mor e a nave constituem um mesmo corpo de construção dividido
convencionalmente em duas partes por um arco cruzeiro. Essa forma primária, hoje muito

510
rara, é a que vamos encontrar na já referida capela de Santo Antônio, do segundo século, que,
apesar da invocação e do fato de ser uma capela particular, não deixa contudo de ser, também,
uma capela de inspiração jesuítica.

Outro grupo reúne as igrejas cujo traçado corresponde a uma acomodação entre essa forma
singela mais geral e o partido já o seu tanto complexo das igrejas maiores do século XVII.
Nessas igrejas, mantêm-se ainda os três altares usuais do modelo anterior, com a
particularidade, porém, de se criarem, também para os colaterais, pequenas capelas
apropriadas, de maior ou menor profundidade, como no caso da igreja de Olinda, onde tais
capelas formam conjunto com a capela-mor. Nesta igreja, os dois nichos localizados acima
dos arcos dessas capelas parecem acréscimos ao traçado primitivo, contemporâneos da
reforma do segundo século. Vamos encontrá-lo na importante igreja do Seminário de Belém
de Cachoeira, onde os nichos são em número de quatro, dois de cada lado do altar-mor, e
também em igrejinhas modestas, como a de Vinhais, no Maranhão. Na igreja de Socorro, em
Sergipe, os padres adotaram o partido, bem mais frequente, de dispor as duas capelas no
sentido transversal, repetindo-se, assim, a velha norma de planta em cruz latina. O arco de
uma dessas capelas, em cantaria e ricamente ornamentado, parece único, no seu estilo, em
todo o país.

Na do Colégio de São Luís, no Maranhão, o partido é o mesmo, embora, pelas proporções,


esta igreja talvez se enquadrasse melhor entre as do último tipo - o das igrejas maiores
seiscentistas, já influenciadas pelo padrão de planta então corrente da igreja jesuítica romana
de Gesù. Pertencem ou pertenceram a esta categoria, além da igreja do Colégio do Salvador,
espécie de matriz da Companhia, as de São Paulo de Piratininga e de Belém do Pará. Em vez
dos três altares - caso mais geral nas igrejas do tipo anterior - contam-se aqui numerosos
altares dispostos em capelas laterais, sendo que as duas mais próximas da capela-mor faziam-
se quase sempre mais largas e mais altas, quando não também mais profundas, com aquele
mesmo objetivo de marcar, em planta, o cruzeiro (COSTA, 1941, p. 142-143).

A intervenção da Companhia na construção das Igrejas

Na construção de suas igrejas os padres, embora acompanhassem, como os demais religiosos,


a evolução normal do estilo de cada época, atuaram em numerosos casos como autênticos
renovadores, apoiando e adotando as concepções artísticas mais modernas, como o barroco

511
ainda classicista da primeira fase da Contra-Reforma, quando, fora da Itália, as formas
ornadas do primeiro Renascimento ainda prevaleciam, bem como depois, na época de maior
eloquência do estilo barroco, com as inovações de alguns artistas.

Correspondendo grande parte das construções jesuíticas brasileiras definitivas ao período do


domínio espanhol em Portugal (1580-1640), as construções da Companhia refletiram, nas
suas proporções, o gosto severo e frio, até porque as dificuldades locais impunham à
arquitetura no Brasil um certo comedimento.

Filipe II encontrara também em Portugal, na pessoa de Terzi3, o arquiteto dos jesuítas, um


artista da nova escola, capaz de lhe traduzir, de forma condigna, os ideais da Contra-Reforma.
Confiou a esse artista as obras dos Paços da Ribeira e, em 1590, deu o seu visto às famosas
plantas da igreja de São Vicente de Fora, na mesma cidade de Lisboa.

O estilo sóbrio e de formas geométricas definidas, de Herrera em Madri e de Terzi em Lisboa,


veio para o Brasil quinhentista, trazido em primeira mão pelo arquiteto Francisco Dias,
colaborador de Terzi na construção de São Roque. Estilo cujas características aristocráticas
ainda se podem observar nos três arcos de pedra, o da capela-mor e os colaterais, da igreja do
antigo Colégio de Olinda. A presença de um arquiteto profissional de sua categoria no Brasil
daquele tempo foi sem dúvida decisiva, não só no sentido de fixar, de forma definitiva e logo
de início, as características de estilo próprias da arquitetura jesuítica no Brasil, como também
no de influir nas construções contemporâneas não jesuíticas.

Aliás, a própria igreja seiscentista atual do Colégio da Bahia, cuja planta obedece igualmente
à de São Roque, deve ser baseada em risco de autoria dele, já que viera ao Brasil
especialmente para projetar e dirigir a construção daquele colégio. Encontrando uma igreja
relativamente modesta, que ficou formando um dos corpos da quadra desse colégio, por certo
terá incluído no seu plano de conjunto, como não podia deixar de o fazer, o risco da nova
igreja, aquela que deveria ser, juntamente com o colégio, definitiva. Tanto assim que em 1604
já se estava providenciando a obtenção de material para a construção dessa nova igreja que
ainda não havia sido iniciada. Conforme refere Lúcio Costa sobre a fachada da igreja baiana

3
Francesco Lana Terzi (n. Bréscia, 13/12/1631, m. 22/02/1687), foi um jesuíta matemático, e naturalista italiano
que ficou conhecido por ser o precursor da aeronáutica, concebendo uma aeronave. Em 1670 Terzi
publicou Prodromo ovvero saggio di invenzioni nuove all’Arte Maestra, livro em que apresentava diversas
invenções, dentre as quais uma barca aérea suspensa por quatro globos de cobre, grandes, finos e vazios em seu
interior. A elevação da aeronave seria propiciada pelo empuxo do ar.

512
denota ter havido, da parte do arquiteto que a projetou - ou dos que o sucederam durante o
andamento das obras - uma certa hesitação na escolha do partido definitivo. Hesitação
resultante do desejo, aliás mal sucedido, de conciliar a solução tradicional de duas torres, com
o traçado erudito em voga desde que Vignola e Giacomo della Porta, e depois Maderna, nas
igrejas de Jesus e de Santa Susana, respectivamente, fixaram o novo padrão de frontispício
sem torre, geralmente conhecido por jesuítico (COSTA, 1941, p. 147-148).

Apesar dos exemplos importantes de Salvador, de Belém do Pará, de São Luís do Maranhão,
e mais alguns outros, de igrejas já da primeira metade do século XVIII, o frontão reto é o que
melhor caracteriza as igrejas jesuíticas brasileiras, pois que elas não alcançaram o pleno
desenvolvimento do barroco em meados e na segunda metade de setecentos. O tipo de
transição entre essa forma regular e a forma livre barroca é o que apresenta volutas rampantes
sobrepostas ao frontão clássico primitivo, mantendo-se assim, apesar da nova silhueta, a
rigidez da empena retilínea, como nos mostra a igreja de São Pedro d'Aldeia.

Quanto às portadas, tanto se encontram frontispícios de uma porta só, como conjuntos
formados por cinco vãos, partido que, depois da construção da igreja nova do Salvador,
repetiu-se no Recife, em Belém do Pará e em numerosas igrejas de menor interesse, já de
meados do século XVIII, inclusive na grande igreja inacabada do Castelo, com portais de
mármore de Lioz, enquanto a igreja velha tinha apenas a porta central, com uma cercadura de
granito do país, de risco severo, ainda com frontão inteiro, de fins do século XVI.

Convém observar, entretanto, que no desenho de todas essas portadas, com exceção talvez das
de Santo Alexandre, prevalece a linha elegante e o pormenor apurado e que são muitas vezes
delicadamente ornamentadas, como ocorre com as da igreja do Espírito Santo, no Recife.
Decoração classicista que vamos encontrar em outras portadas jesuíticas, como, por exemplo,
na cercadura de pedra do chamado Engenho Retiro, em Sergipe, ou ainda, aberta na madeira,
com boa técnica e muito gosto, no portal da capelinha do Município de São Roque, em São
Paulo (COSTA, 1941, p. 150-151).

513
Considerações finais

A Companhia de Jesus teve uma ação decisiva na arquitetura do Brasil ao longo de duzentos
anos voltados para a moralização dos costumes, educação dos colonos e catequese dos índios
até a expulsão pelo Marquês de Pombal. Aqui deixaram um rico patrimônio não só de
arquitetura como cultural.

Os Jesuítas apostaram não na criação de uma nova técnica ou de soluções novas, mas na
divulgação pelo interior do país, através dos seus colégios e aldeias, das soluções e das
técnicas de uso corrente, apreendidas primeiro por eles do próprio elemento civil e ajustadas,
depois, às necessidades particulares do seu programa, também em grande parte residencial.

Vê-se pelo exposto que a arquitetura da Companhia, no Brasil foi quase sempre
despretensiosa, muitas vezes pobre, obedecendo, em suas linhas gerais, a uns tantos padrões
uniformes. A sobriedade foi um conceito chave na sua arquitetura. Sobriedade presente
também nos retábulos, mesmo os mais ricos. Sobriedade que se impõe, e que ainda souberam
manter no mais pretensioso de seus templos, a atual Sé da Bahia. O partido arquitetônico
tradicionalmente empregado pelas ordens religiosas nos seus mosteiros e conventos, ou seja, o
de dispor os vários corpos da construção em quadra, como então se dizia, formando-se assim
um ou mais pátios, foi mantido também pelos Jesuítas. Convém, entretanto, desde logo notar
que, em consequência talvez da vida ativa dos padres, atividade esta decorrente do espírito da
Companhia e da sua Regra, faltam quase sempre nesses pátios - nos colégios brasileiros, pelo
menos - aquela atmosfera de sossego e de recolhimento, peculiar aos claustros dos conventos
das demais ordens religiosas.

Referências

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514
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TELLES, A.C. da Silva. Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil.


MEC/SEAC/FENAM, 1980.

515
516
GT6 – Escolas das religiões afro-brasileiras e
diálogos

Coordenador/a

Érica Jorge João Luiz Carneiro


Mestranda em Ciências Sociais pela Doutorando em Ciências da Religião pela
UFABC e teóloga pela FTU. PUC/ SP e mestre em Filosofia pela GD /
RJ.

Comentadora

Maria Elise Rivas


Mestranda em Ciências da Religião pela PUC/SP e teóloga pela FTU.

Resumo

O GT “Escolas das Religiões Afro-brasileiras e Diálogos” abordará projetos de pesquisa que


têm em comum a recorrência de demandas advindas da sociedade quando se trata de pensar a
formação, transformação do diálogo entre ciência e religião sobre a construção identitária das
religiões afro-brasileiras. O conceito de Escolas traduz as possibilidades de compreender e
vivenciar o Sagrado no universo afro-brasileiro. Cada Escola é formada por um corpo de
conhecimento (Epistemologia), uma conduta (Ética) e uma forma de transmissão
(Metodologia). Para entender o processo de identificação das Escolas Afro-brasileiras torna-se
necessário compreender a linguagem, a simbologia utilizada e realizar um meticuloso
processo de pesquisa, considerando a gama de metodologias existentes para analisar os vários
templos-terreiros. São bem vindas neste GT pesquisas que investiguem essas temáticas nas
áreas das Ciências Sociais, Ciências da Religião, História e Teologia.

517
A dinâmica religiosa do Candomblé em Goiânia a partir da
hermenêutica da ação humana
Rodolfo Ferreira Alves Pena1

Introdução

O Candomblé, no contexto das Religiões de Matriz Africana, é vivenciado a partir do seu


cotidiano prático e materializado em suas formas simbólicas. Muitas vezes, sua comunicação
e sua expressão não obedecem à lógica formal ocidental, ocorrendo através de diversas
manifestações de linguagem, sejam elas os elementos sagrados, como os búzios, sejam elas as
ações, como a dança e os ritmos. O objetivo da presente comunicação é estabelecer uma
proposição de estudo do Candomblé em Goiânia a partir dos aportes filosóficos de Paul
Ricoeur (1913-2005), com base em uma metodologia que vise estabelecer uma hermenêutica
da ação humana.Para tanto, estabeleceremos, em primeiro lugar, um corpo teórico-
metodológico que fundamentará o nosso projeto hermenêutico a partir de uma análise do
pensamento do autor supracitado; em segundo lugar encaminharemos as definições realizadas
para o nosso estudo de referência, na intenção de compreendê-lo sob a ótica do espaço e do
tempo; o terceiro momento será o de abordar a prática do xirê – a festa do Candomblé
realizada em aclamação aos orixás – no sentido de compreendê-la a partir da expressão
textual de seu tempo e de seu espaço.

A mediação da compreensão e a dupla hermenêutica em Paul Ricoeur

“Poder-se-á afirmar que as duas noções fundamentais presentes na metodologia ricoeuriana


são a de sentido e a de existência”, comenta Madison (1999, p.40, grifos no original). Essa
informação inicial nos revela que elaborar uma proposição teórico-metodológica a partir da
filosofia de Ricoeur perpassa pelo enfrentamento dos dois conceitos citados e
aconsideraçãodestes ao longo das obras do referido autor.De tal modo, pode-se observar que,
através da leitura de algumas de suas contribuições teóricas (RICOEUR, 1978; 1989; 1990a),
o seu objetivo foi o de debateras aporias acerca da existência através de uma abordagem

1
Mestrando em Geografia pela UFPR. Pesquisador vinculado ao Centro Interdisciplinar de Estudos África-
Américas (CieAA-UEG) e ao Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER). Contato:
pena.geografia@gmail.com.

518
conceitual, isto é, utilizando-se de conceitos e definições para explicitar questões referentes ao
ser.Nesse contexto, é possível sublinhar que a grande preocupação de Ricoeur foi a de buscar
o entendimento de questõesacerca de três pressuposições principais: “a filosofia como
reflexão, a filosofia como fenomenologia e depois a hermenêutica, ou seja, as mediações
sucessivas pelos sinais, pelos símbolos e pelos textos” (MOGIN, 1997, p.36).

No que concerne ao processo de constituição desua hermenêutica, Ricoeur realiza um amplo


debate com Husserl. Nesse contexto, ele herdará a tradição metodológica descritiva
husserliana ao não questionar a existência das coisas, procurando, assim, visar o sentido da
experiência humana. No entanto, Ricoeur (2009) problematiza as relações proclamadas pela
redução fenomenológica e pelo idealismo transcendental, com base na interpretação de um
“poder constituinte” da consciência pautada na descrição das ações do voluntário e do
involuntário. Não obstante, o autor promove a tentativa de uma “passagem de uma
fenomenologia descritiva e constitutiva para uma ontologia da consciência” (RICOEUR,
2009, p.62). Realiza, pois, suas considerações sobre o sujeito a partir de uma via interpretativa
do ser-no-mundo, haja vistaesse ser constitui sua existência antes de sua essência.

Além do mais, ele propõe a superação, pela via hermenêutica, do método descritivo
husserliano que, em tese, circunscreve-se a uma lógica idealista. Ricoeur (1978) conceberá,
então, a hermenêutica como um enxerto da fenomenologia. Primeiramente, tal fundamento
parte do princípio de que a hermenêutica é mais antiga que a fenomenologia; em segundo
lugar, pelo fato de o filósofo considerar que não há a possibilidade de a fenomenologia
ultrapassar a hermenêutica, ou seja, de ir além dela sem lhe fazer o devido uso.

A partir disso, podemos elencar a influência decisiva que Heidegger exerceu em seu itinerário
filosófico –leitura essa que Ricoeur realiza a partir de um avanço que vem deSchleiermacher,
passando por Dilthey e se estendendo a Gadamer. O autor pondera a respeito do processo da
interpretação filosófica heideggeriana, idealizada a partir do que Ricoeur denomina por "via
curta" da compreensão humana e pautada sobre os fundamentos da ontologia. Nesse percurso,
Ricoeur (1978, p.09) alega que o modo de pensar heideggeriano se refere “ao plano de uma
ontologia do ser finito, para aí encontrar o compreender, não mais como um modo de
conhecimento, mas como um modo de ser” (RICOEUR, 1978, p.09, grifos no original). Dessa
forma, não se chega gradativamente à compreensão, uma vez que essa é o próprio ser em si,
que já existe compreendendo.

519
Em contrapartida, Ricoeur considera que a liberdade humana em interpretar diretamente a sua
realidade é limitada, momento em que rompe parcialmente com sua filiação existencialista.
No entanto, ele não advoga a desconstrução da via curta, mas a sua extensão por uma “via
longa” do entendimento, no sentido de ampliar as etapas de compreensão do ser-no-mundo.
Tal posição evoca a necessidade da fenomenologia em ultrapassar a problemática do sujeito x
objeto e se interrogar sobre o sentido do ser.

Assim, seu projeto hermenêutico é o de construir uma via interpretativa que conceba a
compreensão a partir de uma mediação.Considera, então, que o significado das coisas não é
produto da reflexão de um sujeito, mas do encontro entre esse mesmo sujeito com
determinados símbolos que os leve a pensar, conferindo aos elementos simbólicos uma
significação que lhe é própria. Em uma importante reflexão, ele considera que:

‘o símbolo dá a pensar’: essa sentença que me encanta, diz duas coisas. O símbolo dá. Não
ponho o sentido, é ele que dá o sentido. Mas o que ele dá é ‘a pensar’, do que pensar. A
partir da doação, a posição. A sentença sugere, pois, ao mesmo tempo, que tudo já está dito
em enigma e que, contudo, é preciso sempre tudo começar e recomeçar na dimensão do
pensar (RICOEUR, 1978, p.243).

Para o autor, o símbolo é doador de um sentido primeiro de interpretação, o que nos faz ter
uma compreensão sobre o sentido simbólico dos fenômenos, sem que necessariamente
tenhamos adquirido consciência desse processo. Por isso ele é doador, porque é uma
intencionalidade que designa um segundo sentido. A partir de então, Ricoeur amplia o seu
foco de preocupação interpretativa dos símbolos aos textos.

Para explicar a lógica da mediação da compreensão, Ricoeur recorre àqueles que denomina
por “mestres da suspeita”, a saber: Freud, Nietzsche e Marx. Tal adjetivação se refere ao fato
de que cada um desses pensadores encontrou uma forma própria de duvidar dos fatos
conforme eles se expressam, de modo que o conhecimento imediato é sempre um
conhecimento aparente, que pode ser superado.

Para Ricoeur (1978, p.128-129), esses autores não obliteram a consciência, mas promovem
uma extensão dela. Sobre Marx, afirma que ele pretendia “liberar a práxis pelo conhecimento
da necessidade; mas essa liberação é inseparável de uma ‘tomada de consciência’ que retruca
vitoriosamente às mistificações da consciência falsa”. Já Nietzsche, na visão do
autor,obstinava o “aumento do poder do homem [...]; mas aquilo que a Vontade de poder quer
dizer deve ser recoberto pela meditação das cifrações do ‘super-homem’, do ‘retorno-eterno’ e

520
de ‘Dionísio’, sem as quais esse poder seria apenas a violência de um aquém”. Freud, por sua
vez, objetaria fazer com que “o analisado, ao fazer o seu sentido que lhe era estranho, amplie
seu campo de consciência [...], com a condição de dizer que a análise quer substituir uma
consciência imediata e dissimuladora por uma consciência mediata e instruída pelo princípio
de realidade”.

Nesse entendimento, Ricoeurafirma que não há uma compreensão imediata e intuitiva de si. O
filósofo então propõe a instauração de uma hermenêutica pluritópica, que mediante o sentido
falso, busque o duplo sentido, o significado oculto, que revele a plurivocidade dos
acontecimentos, sejam eles no campo do texto, sejam no campo da ação.Além disso, a própria
ação consciente é, por si própria, produtora de um discurso e, assim, pode ser lida e
interpretada como um texto, uma manifestação de linguagem. Ricoeur (1990b) considera que
essa questão se estabelece pelo fato de que todo ato de agir ocorre a partir de um contexto, o
que nos remete a importância da textualidade.

Com isso, chegamos à conclusão de que é possível fazer uma leitura interpretativa
textualidade da religião do Candomblé. Para realizar essa leitura, torna-se necessário
compreender a rede de significados que integram as suas espacialidades e temporalidades.

As múltiplas espaço-temporalidades do Candomblé: os mitos, as ações e os símbolos

O Candomblé se constitui historicamente através da ressignificação dos elementos religiosos


africanos, o que assinala a emergência de uma cadeia de sentidos que se posicionam entre o
tradicional e o moderno, ou seja, entre as suas práticas milenares em outro continente e suas
fundações atuais em território brasileiro. Redefiniram-se as crenças e transformaram-se as
visões de mundo, o que corroborou para a emergência de uma nova posiciocionalidade
cultural e religiosa que resguarda as memórias de suas origens.

As reminiscências referentes aos diferentes povos da África, entre as quais se inclui os ritos
do Candomblé, difundiram-se no Brasil com a ocasião histórica da escravidão, em que os
habitantes desse continente foram sistematicamente aprisionados e forçados a migrar para as
terras ameríndias para servir de mão-de-obra. Assim, os mais diversos grupos étnicos
oriundos de diferentes regiões do continente africano vieram ao Brasil e aqui permaneceram,

521
com a tentativa de resguardar, ao menos parcialmente, seus costumes originais (SILVA,
1994).

Durante a formação do Candomblé, diferentes tradições africanas constituíram uma


confluência religiosa, incluindo alguns valores presentes em terras brasileiras, o que propiciou
a difusão e o crescimento de uma elevada riqueza ritual para essa religião. Assim, conforme
destaca Rocha (2000), o Candomblé formou-se a partir da designação de variadas “nações”,
cada qual com as suas especificidades ritualísticas e mitológicas. Prandi (1996, p.16) assinala
que essas diferentes nações “vieram da área cultual banto (onde hoje estão os países de
Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique) e da região sudanesa do golfo da Guiné [...],
circunscritos ao atuais territórios da Nigéria e do Benim”. Constituíram-se, a partir dessas
duas ramificações, as nações religiosas denominadas, respectivamente, Ketu (correspondente
aos yorubás), Angola (de origem banto) e Jeje (cujas tradições derivam dos povos de língua
ewê-fon).

Para fins metodológicos, assumimos no presente artigo apenas a leitura e análise das
configurações religiosas dos Candomblé de nação Ketu, sem desconsiderar a importância das
demais denominações. Essa elevada gama de variações forma-se sobre contextos muito
plurais, de difícil apreensão quando vistos em conjunto.

O expressão espaço-tempo da mitologia dos orixás – aqui, como já explicamos, no


Candomblé nação de Ketu – pode ser abordada sobre as mais diversas formas. Por se tratar de
uma tradição puramente oral, existem, em alguns casos, diversas versões sobre uma mesma
história. Deste modo adiantamos que não é oportuno, para a presente abordagem, considerar
ou até nutrir essas divergências, pois cada versão das histórias sagradas pode ser uma
constituição de verdade para quem a advoga, uma vez que elaconcede o contexto em que as
respectivas práticas religiosas estão imbuídas. Assim, buscaremos uma breve apresentação
das lendas e histórias mais correntemente seguidas pelos praticantes.

No sistema explicativo da origem formadora do mundo mítico pelos candomblés yorubás, há


uma multiplicidade de divindades. Acima de todas está Olorum2, o grande criador. Por seu
uma divindade relativamente distante – que habita apenas o Orum3–e que não possui um

2
“Olorum” é apenas um dos vários nomes designados para tratar da deidade suprema dos Yorubás, porém o
mais popular dentre eles. Seu nome vem da união das expressões Ol, que significa “posse” ou “comando”, e
Orum, que significa “céu” (BENISTE, 2006).
3
Orum corresponde os noves céus aos quais habitam as divindades sagradas da religião do Candomblé.

522
sistema direto de intervenção sobre o Ayê4, sua figura não é cultuada pela religião, que, por
isso, é circunscrita como a religião dos Orixás5.

Abaixo de Olorum, estão os Orixás, que são os entes que realizam a conexão do Orum com o
Aiyê por meio da incorporação. Porém, um deles possui uma relação e uma forma de culto
diferenciada dos demais: Orumilá, também conhecido como Ifá6. É o ser da intuição, das
adivinhações e do conhecimento sobre o futuro. Apesar de haver um culto específico a ele em
algumas ramificações, no Candomblé de Ketu ele é representado apenas pelos jogos de
búzios, que nada mais são do que consultas a Orumilá.

Segundo o seu itan, desde de que abandonou o Aiyê pela primeira vez e passou a habitar o
orum, ele decidiu que jamais retornaria e, portanto, não incorpora em nenhum filho de santo.
Os homens ofereceram diversas oferendas para que ele retornasse à Terra, porém ele apenas
deixou um conjunto de dezesseis nozes de dendê e afirmou: “quando tiverem problemas e
precisarem falar comigo, consultem este Ifá” (PRANDI, 2001b, p.443).Dessa forma, Orumilá
tornou-se a própria forma da comunicação dos Orixás para com os homens.

Seu sistema de adivinhação perpassa pela constituição dos seus odus, de forma que cada um
deles domina uma área de entendimento. No total, existem 16 tipos de odus diferentes que
representam “os mitos da criação e o complexo relacionamento dos seres divinos entre si e
com os homens e a Natureza” (PÓVOAS, 1989, p.180). Eles apontam, assim, conhecimentos
sobre o nascimento, a morte, os negócios, a fartura, as guerras, as perdas, a amizade, a traição,
a família, o destino e a sorte (PRANDI, 2001b).

Orumilá é, assim, um dos principais demonstrativos da maneira com que o espaço e o tempo
do mundo das tradições míticas transformam o mundo da religião. As expressões simbólicas
agem diretamente sobre as demais expressões. As inferências de Ifá, por meio do jogo de
búzio, conduzem às ações práticas do líder de santo e de seus filhos, adeptos e,
principalmente, de seus clientes, que enxergam nesse rito uma forma de contato com o
Candomblé.

4
Em oposição ao Orum, o Ayê é o mundo terreno, não necessariamente visto como profano, em que habitam os
homens e, por ventura, os Orixás.
5
Segundo Beniste (2006, p.38), Olorum não é cultuado no Brasil, de acordo com a via explicativa mitológica,
porque “ele é o Rei e Juiz, o Criador e o Senhor da Vida, o Invisível e o Sempre-Presente; com tais atributos é
impossível conceber de que forma a Divindade poderia ser representada. Nem pensar em poder confina-lo dentro
de um espaço, da forma como é feita com os orixás”.
6
“Orixá da adivinhação; o oráculo do Candomblé. Conjunto de 16 búzios ou meia nozes do fruto do dendezeiro,
para o jogo divinatório onde se lê a fala do orixá” (PÓVOAS, 1989, p.172).

523
Temos, depois, os 16 orixás que compõem o panteão ketu/nagô. Segundo demonstra Verger
(2002), cada um deles possui um comportamento arquetípico específico, definido em
personalidades previamente demarcadas. É interessante observar que os filhos, quase sempre,
irão reproduzir os comportamentos ou o caráter do Orixá que rege a sua cabeça, ou seja, o seu
ori. Rocha (2000, p.55) ressalta que “ao falar de um Orixá, automaticamente associamos suas
características à personalidade de seus filhos [...]. Portanto, falar dos Orixás é também falar de
nós mesmos”. São espaço-temporalidades contextuais do mundo transcendente se
entrecruzando com as do mundo das ações humanas.

Com base em apontamentos e indicações gerais presentes em algumas bibliografias


especializadas (PRANDI, 1996; SIQUEIRA, 1998; ROCHA, 2000; VERGER, 2002),
construímos um esquema representado na Tabela 01, indicando os principais orixás cultuados
pelo Candomblé de Ketu, seus domínios sagrados e algumas de suas características de
personalidade e comportamento.Trata-se de uma síntese explicativa, que está longe de
acumular de forma aprofundada os conhecimentos de uma cultura tão rica e complexa, mas
que nos serve como elemento norteador.

Tabela 01 – Esquema-resumo representativo dos domínios, poderes e personalidades dos Orixás.

Orixá Domínio Poder Personalidade

Exú Encruzilhadas e entradas Comunicação e Alegria, esperteza, ao


movimento mesmo tempo bom e mau.

Ogum Estradas e Tecnologia Guerra e Abertura de Fúria, nervosismo, justiceiro


caminhos e lutador

Oxóssi Floresta e os animais que a Caça, Fartura e Inteligência e astúcia do


habitam. alimentos caçador e solidão.

Ossaim Matas Manipulação mágica Cautela, equilíbrio e


das folhas serenidade

Oxumaré Riqueza e ciclos Movimento e Renovação e mudança


continuidade dos constante de
fenômenos comportamento.

Obaluaiê Terra, Pragas edoenças. Causa e cura das Pessimismo, teimosiae


doenças sofrimento.

524
Xangô Trovão e fogo Justiça Guerreiro, justiceiro e
vaidoso

Iansã Relâmpagos, fogo e espírito Chuvas, relâmpagos, Beleza, esperteza,


dos mortos raios e ventos sexualidade

Obá Encontro do rio com o mar Poder sobre os rios Feminismo, poder da
mulher

Oxum Água doce e metais preciosos Amor e fertilidade Sensualidade, vaidade,


tranquilidade.

Logun-Edé Rios que correm nas florestas Caçador e rei das Ora é doce e calmo como
águas Oxum, ora é solitário como
Oxóssi, seus pais.

Euá Matas virgens, mulheres Domínio sobre a Bipolaridade, mudança de


castas e tudo o que é violência e sobre a comportamento conforme a
inexplorado. felicidade ocasião.

Iemanjá Mares e Oceanos Saúde mental, Maternidade, vaidade,


sucesso familiar beleza

Nanã Lama e do pântanos Morte e fecundidade Calma, lentidão,


benevolência.

Irôko Árvores sagradas Tempo Ciúme, eloquência,


comunicação

Oxalá Criação e ar Vida, cultura Sabedoria (Oxalufã),


material, Virilidade (Oxaguiã)
sobrevivência

Ao analisar as características e personalidades dos orixás, podemos concluir que eles


reproduzem, de certa forma, as adjetivações humanas, como a vaidade, os ciúmes, o amor, a
fúria, o sentimento de justiça, entre outros. No entanto, se se considerao ponto de vista da
linguagem mítica, são os indivíduos quem, na verdade, reproduzem os traços típicos dos
orixás. Não é raro ouvir depoimentos do tipo “eu sou filho de Xangô e não tolero injustiças”
ou “sou calmo, afinal, quem rege o meu ori é Oxalufã”. Assim é possível observar a
transposição do espaço-tempo sagrados sobre a materialidade simbólica e sobre as ações

525
humanas, uma vez que cada orixá possui um domínio sobre a natureza, bem como uma forma
pré-determinada de comportamento.

Outra forma de ação no mundo mítico sobre o mundo das ações são as narrativas envolvendo
as deidades candomblecistas, os itans. Com base neles, explica-se muito das práticas
cotidianas realizadas em um terreiro. Por exemplo: sacrifícios e oferendas destinados aos
orixás Obaluaiê e Nanã não utilizam metais durante o corte e preparo de suas comidas, pois
eles são rivais de Ogum, a deidade que rege o ferro e os instrumentos de corte. Assim, em
seus cultos utiliza-se, geralmente, instrumentos de madeira afiados para o corte ou outras
técnicas. Aparentemente banal, essa forma de agir é regida por uma lógica contextual, que se
posiciona em um sentido transcendental específico da religião, formando uma rede interna de
significados que não pode ser compreendida por um olhar externo, desprovido de alteridade.

A textualidade espaço-temporal das ações, constitui-se interligada com as expressões


sagradas, porém são inteiramente relacionadas a elas. Ela pode, inclusive, ser concebida a
partir de uma dualidade: de um lado a posicionalidade central do pai de santo e, de outro, as
ações e vivências dos filhos de santo.

O líder de uma casa costuma ser uma figura muito conhecida no âmbito da religião e
respeitada em função de sua vasta sabedoria e do carisma que possui. Por isso, constrói em
torno de si umaespaço-temporalidade específica, particularizada e que atende a uma
correspondência própria. Essa se estrutura, principalmente, com base em seus valores e em
sua filiação tradicional.

Desde as fundações iniciais do Candomblé no Brasil é possível notar essa questão. Silva
(1994, p.93) afirma que, ao longo do processo de reconfiguração territorial das tradições
religiosas africanas no Brasil, “a organização social dos terreiros estruturou-se a partir de uma
hierarquia de cargos e funções”. Essa conformação de poderes se reordenou em diversos
aspectos, acumulando sobre a figura do pai e da mãe de santo, atribuições que antes não lhes
eram circunscritas. Oautor supracitado comenta que “o pai-de-santo, por exemplo, tornou-se a
figura central assumindo várias funções, como a de babalaô7”.

Forma-se uma hierarquia que “nasce” na centralidade do pai de santo e se estende ao demais,
perpassando pelo tempo de vivência de cada indivíduo na religião. Carneiro (1967) realizou
7
Babalaô é o responsável por realizar as adivinhações por intermédio dos búzios. É o adivinho. Na África, essa
função era dada a um sacerdote específico, ao contrário do que ocorre no Brasil, quando é designada ao pai ou à
mãe de santo.

526
alguns relatos e apontamentos referentes a esse tema. Para ele, os chamados “mais velhos de
santo”, aqueles que realizaram um número maior de obrigações8, possuem maior poder e
prestígio. Observa-se assim o princípio da sabedoria e da senioridade. A figura do líder de um
terreiro será sempre o ponto chave dessa estrutura e, por isso, construirá em torno de si uma
textualidade própria, que, em alguns casos, pode-se sobrepor a outros contextos.

Dessa hierarquia,emana então uma outra textualidade, a dos filhos de santo mais novos e
situados na porção inferior da hierarquia interna do terreiro. Esses filhos, juntamente com
abiãs9 e clientes, são de importante função para a religião: em primeiro lugar, garante a ela a
sua continuidade, cabendo a eles a reinterpretação dos mitos que serão realizados no futuro;
em segundo, eles são o elo entre a religião e o mundo que a ela lhe é externo, função essa
garantida principalmente por aqueles que se consultam em busca dos mais diversos serviços.

São esses últimos que, de certo modo, garantem a sobrevivência da casa, através do
pagamentos desses serviços (PRANDI, 2005). Além disso, conforme ressalta Opipari (2009),
esses clientes estabelecem-se conforme uma rede, que se estrutura por um viés informal, do
“boca a boca” e que é responsável por articular uma demanda de serviços rituais os mais
diversos. Estes, de certa forma, estabelecem uma espaço-temporalidade religiosa específica,
pois cria uma linguagem diferenciada no âmbito da religião.

A religião do Candomblé passa a ser então concebida por se apresentar em um espaço e em


um tempo que confluem elementos míticos e elementos oriundos das ações e práticas
humanas. Esses fenômenos encontram-se imbricados e constroem um sentido que exerce a
função de mediar a compreensão do homem sobre o real, estruturando a forma com que o
sujeito vive e transforma a sua realidade.

No entanto, é importante reconsiderar aqui uma das assertivas oferecidas pelo pensamento de
Paul Ricoeur: a de que o símbolo nos leva a pensar. Nessa perspectiva, torna-se impossível
conceber a religião do Candomblé sem considerar a sua materialidade simbólica, que se
expressa por uma série de adornos, acessórios e adereços, que também possuem uma
espacialidade contextual própria: a dos signos e dos símbolos.

8
A expressão “obrigação” é muito utilizada no Candomblé e remete a “qualquer solenidade religiosa para servir
aos orixás. Execução de uma tarefa religiosa que o filho-de-santo é obrigado a cumprir” (PÓVOAS, 1989,
p.180).
9
Abiãs são pessoas que, de certo modo, vivem a religião mas ainda não são consideradas membros efetivos.
Segundo Póvoas (1989, p.154), trata-se de um “fiel ao candomblé ainda não-iniciado”.

527
Esse mundo objetivo é o espaço do terreiro e a distribuição dos ornamentos e símbolos nele
dispersos. Nesse contexto existem algumas formas gerais que costumam se repetir entre as
diferentes casas. Tais formas se expressam, por exemplo, na distribuição dos assentamentos
do terreiro, em que, de um lado, ficam os orixás brancos e de outro, os orixás eboras 10. Além
disso, o uso dos mais variados tipos de ferramentas e instrumentos possuem um significado
específico, sendo representativo de uma cosmovisão, a própria expressão de sua
materialidade.

Sabe-se, de acordo com a mitologia yorubana, que Exú é aquele que guarda os caminhos.
Rocha (2000, p.56) assinala que “ele é tão importante que sempre é servido na frente: a
primeira oferenda é sempre dele”. Por isso, exu guarda as encruzilhadas e também as
entradas. Dessa forma, durante o ordenamento espaço-temporal material do terreiro, essa
relação deve estar bem expressa, como podemos verificar nas figuras 01 e 02.

Figura 01 – Assentamento de Exu na entrada do Barracão do Ilê Axé Oya Igbem Bale, Aparecida de Goiânia
(GO). Fonte: Acervo CieAA (2010)11

10
Os orixás brancos – também chamados de orixás funfuns – são aqueles que compõem o mais alto escalão
dentre as deidades candomblecistas; a eles foi dada a missão de construir o mundo dos homens, o Ayê,
exemplos: Oxalá e Iemanjá. Os Orixás Eboras fazem parte de uma espécie de segundo escalão dentre os orixás,
e são aqueles que surgiram das figuras de importantes reis e heróis que viveram em algumas regiões da África, a
exemplo de Xangô, Iansã, Ogum, Oxum e outros.
11
Essas fotografias foram registradas durante a execução dos projetos História do Candomblé em Goiás e Mães
de Santo, ambos vinculados ao Centro Interdisciplinar de Estudos África Américas e coordenados,
respectivamente, por Eliesse Scaramal e Mary Anne Vieira Silva, os quais estive vinculado como pesquisador
integrante.

528
Figura 02 – Assentamento de Exu na entrada do Ilê Axé Onilewá Azanadô, Aparecida de Goiânia (GO). Fonte:
Acervo CieAA (2010).

Assim, podemos concluir que, nesse caso, a posição de um assentamento de Exú nas entradas
dos salões onde realizam-se as festas e boa parte dos rituais religiosos do Candomblé é uma
expressão contextual da religião. O seu sentido não pode ser lido fora do contexto em que se
insere e os seus signos, que só podem ser compreendidos à luz da teia de significações da qual
eles são partes integrantes.

Com bases em uma abordagem que considere a expressão dessas múltiplas espaço-
temporalidades, apresentaremos, a seguir, uma interpretação do Xirê e suas expressões
contextuais. A escolha desse ritual em detrimento de outros tanto é por conta da textualidade
que nele se manifesta, expressa pelas formas, pelos gestos e pelas corporeidades, que se
constituem como uma forma de linguagem. Assim, será possível observar a confluência
contingencial entre elementos textuais transcendentes, humanos e materiais.

Xirê: as múltiplas textualidades do Candomblé se encontram

O Xirê é, ao mesmo tempo, a festa e a ritualística do Candomblé. Nesse momento, registra-se


o encontro mágico entre deuses e pessoas, entre os Orixás os filhos-de-santo. Trata-se de um
momento importante, que produz o seu próprio texto na cadeia de suas ações e que
circunscreve a interposição das múltiplas espaço-temporalidades em uma mesmaconjuntura.
Para Vieira Silva (2010, p.106), a expressão do xirê “revela a existência de uma identidade

529
que se liga ao conjunto de experiências do praticante com sua religião, que o torna
candomblecista, além de evidenciar papéis exercidos por ele em funções designadas à prática
do Candomblé”.

Trata-se portanto de um momento de identidade e um lócus de expressões. Além disso, o Xirê


também é uma vitrine, é o local das ornamentações, das belezas, a apresentação que possui
tanto o seu caráter estético quanto sua dimensão religiosa. Amaral (1998, p.98) revela que a
festa no Candomblé

é um modo de mostrar ao público a identidade do culto, muito mais ampla e complexa,


mais bonita e lúdica do que o que possa parecer, num contato com finalidades
“instrumentais” do culto, como é o caso da consulta ao jogo de búzios e da realização de
ebós. A cena dos orixás vestidos com roupas brilhantes, com seus filás escondendo os
rostos dos iniciados, é a cena da festa, frequentemente vista em revistas, televisão, licros e
discos. A festa mostra o que o grupo é [...]

Forma-se um contexto ritualístico, um espaço-tempode significados e significações, que


manifestam um sentido aparente e metafórico, mas que esconde em si o seu sentido oculto.
Esse sentido é o das linguagens míticas, são os mitos dos orixás sendo revividos, são os itans
sendo recontados, é a identificação entre o terreno e o transcendente, em seus conflitos de
temporais e espaciais, dos quais emergem a simbologia e a textualidade sagradas.

Nas figuras 03, 04 e 05 podemos observar o quanto o xirê é rico em sentidos e em


significações, muitas vezes manifestos em suas materialidades, outras vezes nos gestos, nas
danças e nas músicas. É nítido, porém, que simples imagens e tão pouco descrições não serão
capazes de oferecer toda a carga semântica que se observa em uma festa de Candomblé.

Figura 03 – Xirê no Ilê Axé Oya Igbem Balé. Fonte: Acerco CieAA (2010).

530
Figura 04 – Olubajé no Ilê Axé Onilewa Figura 05 – Xirê no Ilê Axé Canto de Oxum,
Azanadô. Fonte: Acervo CieAA (2011). em Goiânia (GO). Fonte: Acervo CieAA (2011)

Torna-se flagrante o fato de que o Candomblé e o Xirê não são expressões distintas e
interligadas por um contexto, mas o próprio contexto em si, dotado de uma expressão de
linguagem que é concebida pelo tempo e pelo espaço. Portanto, o tempo do Candomblé
durante a festa é a própria festa e, por sua vez, o espaço do Candomblé, nesse contexto, é a
sua própria manifestação textual Muitas vezes o contínuo processo de reafirmações
identitárias da religião se expressa pela ininterrupta transposição de temporalidades e
espacialidades, tornando o Xirê a própria expressão religiosa. Dessa forma, fazendo uso das
palavras de Amaral (2005, p.60) “a religião passa a se confundir com a própria festa”.

Assim, o Xirê, mais do que uma festa é um evento e, como tal, porta-se na forma de um
discurso religioso propriamente dito. Segundo Ricoeur (1987, p. 24), “podemos conectar a
referência do discurso ao seu falantecom o lado eventual da dialética. O evento é alguém
falando”. Portanto, fazendo uso dessa expressão, o Xirê é a fala dos Orixás, é o dizer dos pais
e filhos de santo que ecoa em seus hábitos, ritmos e ações.

531
Considerações finais

Nesse artigo, fizemos uma tentativa de construir uma abordagem sobre a religião do
Candomblé com base na seguinte proposição: a de conceber as suas manifestações como uma
expressão textual, onde o espaço e o tempo seriam a própria cadeia de significados sobre a
qual o sentido da religião de sustenta.

Por isso, além dos mitos, todas as ações, todas os comportamentos, as falas, os gestos, os
sons, os símbolos e todos os demais elementos são expressões e, como tal, podem ser lidas.
Essa leitura, entretanto, deve ser realizada sob uma hermenêutica da suspeita, que seria a
forma com que argumentamos em procurar estender o sentido literal dos fenômenos em busca
de seu sentido oculto.

Os Orixás, para a religião do Candomblé, são elementos da natureza. Por sua vez, nas
palavras de Ricoeur (1987, p.75), “o caráter sagrado da natureza revela-se no seu dizer-se
simbólico”. Portanto, falar de sua significações é falar da sua própria disposição de sentido.
Com isso, torna-se possível a elaboração de métodos e abordagens que permitam realizar uma
leitura sobre o hábito religioso concebendo-o em sua textualidade.

Referências

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533
534
A diversidade das Religiões Afro-Brasileiras em Curitiba/PR: o
“mito do embranquecimento” revisitado
Camila B. C. Martins1, Renata Issa Gomes2, Ana Paula Farias3

Introdução

É bastante difundida a crença de que, em Curitiba, a religiosidade afro-brasileira é, senão


inexistente ou estatisticamente insignificante, pelo menos fortemente reduzida às Escolas mais
influenciadas pelas religiões do homem branco e integrante das classes mais abastadas.

Porém, essa crença na limpeza ou pureza étnica-social dos Terreiros decorre da mera
camuflagem que torna socialmente invisíveis as Escolas e Terreiros em que as influências
negras e indígenas não são renegadas ou atenuadas, que são em muito maior número do que o
indicado pelos dados oficiais e pelo senso comum.

O embranquecimento da religiosidade afro-brasileira é desvantajoso por implicar o


esquecimento das origens ancestrais (indígenas, africanas e indo-europeias) comuns a todas as
Escolas e que causaram a rica diversidade de seus ritos e doutrinas.

A comunicação demonstrará, por fotos de Terreiros e entrevistas a seus Dirigentes, que


Curitiba contempla amplíssimo espectro das Religiões Afro-brasileiras e suas Escolas.

A colonização europeia no Estado do Paraná e a resistência às Religiões Afro-brasileiras

Apesar de a colonização europeia ter sido a mais evidente no estado do Paraná, outras culturas
também contribuíram para a formação cultural do estado, como por exemplo, a indígena, a
asiática e a africana. Segundo dados do IBGE em 1950, cerca de 245 mil pessoas se
declararam negras ou pardas, ou seja, cerca de 11% da população paranaense.4

1
Doutora em Entomologia pela UFPR. Contato: camilabcmartins@gmail.com.
2
Pós-graduada em Design pela PUC/RJ. Contato: issarenata@gmail.com.
3
Graduada em Publicidade e Propaganda pela PUC/PR. Contato: anafarias@anafarias.com.
4
Biblioteca do IBGE - Censo Demográfico dos Estados Unidos do Brasil (1950). Tabela 39. População presente
por sexo e cor, segundo as regiões fisiográficas e as unidades da federação. Disponível em <
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf>. Acesso em 30 de jul. 2013.

535
Apesar disso, o orgulho da população do estado e, particularmente, a de Curitiba (nome
originário do guarani: kur yt yba)5, é ter ascendência europeia. Na página da internet da
prefeitura dessa cidade6 fica claro esse orgulho, apesar de existirem influências de outras
culturas na cidade. Lá, lê-se que “[...] Com a emancipação política do Paraná (1854) e o
incentivo governamental à colonização na segunda metade do século 19, Curitiba foi
transformada pela intensa imigração de europeus”, ou ainda que “[...] o traço fundamental que
definiu o perfil de Curitiba foi a chegada de imigrantes das mais variadas procedências”.

Não podemos negar que os imigrantes europeus (poloneses, italianos, ucranianos, alemães,
franceses e suíços) tiveram grande influência sobre a cidade de Curitiba e que de fato houve
uma transformação que se deu através da sua cultura, calcada principalmente nas tradições
das Igrejas Católica Apostólica Romana, Ortodoxa e Luterana, o que implicou e implica até
hoje na desconfiança inicial frente a outras crenças que tem estrutura diferente da sua, ou seja,
sem um profeta, sem dogmas e sem um livro sagrado codificador.

A Diversidade nas Religiões Afro-Brasileiras e o preconceito religioso

Como o próprio termo já diz, as religiões afro-brasileiras têm no nome uma pressuposta
diversidade ao se tratar não só de uma religião, mas de religiões. Nisso, está implícita a
inclusão de diferentes métodos e doutrinas rito-litúrgicas que representam a pluralidade na
interpretação e na manifestação do sagrado. Todas elas possuem pontos em comum, como a
oralidade da sua tradição, a presença dos rituais, o transe ou o culto aos deuses (Orixás), a
música e o estado superior de consciência (RIVAS NETO, 2013, p. 48). É a unidade
manifesta na diversidade.

De fato, as religiões afro-brasileiras se caracterizam pela ausência de um profeta, pela


oralidade na transmissão dos seus ensinamentos e pela ausência de codificações imutáveis.
Não existe um livro que deva ser seguido, sob pena de fracasso espiritual, como, por exemplo,
a Bíblia o é para os católicos e evangélicos e o Alcorão o é para os muçulmanos. Ao
contrário, nas religiões afro-brasileiras, e mais especialmente na Umbanda, cada uma das

5
Prefeitura de Curitiba. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/historia-fundacao-e-nome-da-
cidade/207>. Acesso em: 31 de julho de 2013.
6
Prefeitura de Curitiba. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/historia-imigracao/208>.
Acesso em: 31 de julho de 2013.

536
Escolas possui um método rito-litúrgico, uma doutrina e uma ética própria. No entanto, esta
diversidade, que é vista como ponto fraco pela sociedade, conforme a errônea impressão de
que não passa de desunião e confusão ritual e doutrinária, é o que permite a inclusão de todas
as formas de se dialogar com o sagrado, sem práticas específicas e regras rígidas a serem
seguidas.

Por conta dessa impressão preconceituosa e excludente, para serem aceitos pela sociedade,
muitos terreiros de Curitiba reforçaram aspectos da doutrina católica e do espiritismo
kardecista em seus rituais e camuflaram ou até mesmo excluíram completamente aspectos
mais polêmicos da tradição africana, como o sacrifício animal e a cobrança de salva,
geralmente condenados pela sociedade moralista, incapaz de tolerar até mesmo os elementos
mais inofensivos. Pudemos observar, por exemplo, em visitas realizadas com outro objetivo
no ano passado, a prece do Pai Nosso e da Ave Maria antes do início da gira, a presença de
santos católicos no altar em sincretismo aos Orixás, a proibição de bebidas alcoólicas e a
inclusão de centro espírita ou tenda espírita no nome do templo, ao invés de Terreiro de
Umbanda. Obviamente, nada há de errado na presença de elementos religiosos
católicos/kardecistas, pois esses constituem influências legítimas e até inevitáveis na
Umbanda. A questão que aqui se coloca é a sua intensificação paralela à atenuação/exclusão
de elementos africanos e ameríndios, em um evidente desequilíbrio das três matrizes
formadoras da Umbanda, o que gera um embranquecimento indevido de sua estrutura.

Ademais, tais terreiros geralmente sustentam que a Umbanda foi fundada no plano material
pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, em 1908, já que a Tenda Nossa Senhora da
Piedade, fundada por ele, foi o primeiro templo de Umbanda registrado no Brasil. Isso implica
um momento supostamente fundante e um fundador, que permitiria a adoção de um marco
histórico faltante que daria certa legitimidade à Umbanda perante às religiões ocidentais, já
que antes de ser pai de santo, Zélio era praticante do espiritismo kardecista. Tudo isso para
poderem ser mais bem aceitos e se diferenciarem de pessoas que se dizem umbandistas e
fazem magia negra, amarrações e separação de casais. Porém, nada disso se justifica, pois os
verdadeiros umbandistas não realizam tais práticas nefastas e o médium Zélio de Moraes não
se considerava fundador da Umbanda, nomeação que lhe foi conferida posteriormente à sua
morte.

O preconceito às religiões afro-brasileiras no Paraná é tão grande, velado ou não, que muitos
praticantes, para evitarem discriminação, se dizem espíritas e não umbandistas, informação

537
que se refletiu no número destes no Censo do IBGE/20107 no Paraná, o qual contrasta
intensamente com a realidade. Comprovar esse desfalque constitui tarefa bastante singela,
pois, em 2010, apenas 8.949 pessoas afirmaram ser praticantes das religiões afro-brasileiras e,
no entanto, dois anos antes, em 2008, havia o registro de mais de 15.000 terreiros no estado8.
Por lógica, pelo menos 15 mil praticantes deveriam ter sido contabilizados, considerando
apenas a presença dos seus dirigentes. Esse desfalque comprova sem dúvidas que o
preconceito existe e influencia a doutrina e os adeptos dessas religiões no Paraná.

(Mais) uma tentativa de codificação da Umbanda e a “Carta Magna”

É importante ressaltar que sempre existiram grupos de umbandistas que tentaram criar um
código doutrinário, rito-litúrgico e de conduta moral, com a intenção, declarada ou não, de
não serem tachados de primitivos - pela utilização do sacrifício animal, do tambor ou da
bebida alcoólica - e de mercantilistas - por cobrarem para a realização de algum trabalho
específico. É uma tentativa mal disfarçada de adaptar a Umbanda às regras morais falidas da
sociedade ocidental moderna.

Um exemplo desta aparente superioridade foi observado durante a coleta de dados para a
presente comunicação, em 26 de julho deste ano. Nesta data, nosso grupo foi a um
determinado terreiro, cujo dirigente manifestou abertamente o seu apoio a um movimento que
se destinava a definir o que é e o que não é Umbanda, posicionando-se contrariamente à
diversidade.

O viés codificador da proposta, embora não seja assumido, é evidente, pois tem como meta a
exclusão seletiva de fundamentos rito-litúrgicos mais diretamente relacionados às influências
africanas, concorrendo, mesmo que inconscientemente, para o embranquecimento da
Umbanda. Porém, a maioria absoluta dos adeptos das religiões afro-brasileiras, inclusive no
plano sacerdotal, é contrária à codificação. Nesse sentido:

7
Censo do IBGE em 2010. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 30 de jul. 2013.
8
Essa informação sobre o número de terreiros no estado do Paraná foi referenciada por Jayro Pereira Jesus,
presidente do Conselho Mediúnico do Brasil, na reportagem do Jornal Gazeta do Povo, na coluna do Caderno G,
escrita por Antonio Costa, com o título: Umbanda – Curitiba afro-brasileira, em 20 de setembro de 2008.
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=809885&tit=Curitiba-afro-
brasileira>. Acesso em: 30 de julho de 2013.

538
É óbvio que qualquer proposta codificadora das religiões afro-brasileiras, por mais
camuflada que seja, não é outra coisa senão isto: EPISTEMICÍDIO (aniquilação de
conhecimentos doutrinários com os quais o codificador autoritário ‘não concorda’ - e, aliás,
não compreende de maneira alguma!), ETICÍDIO (aniquilação dos valores morais mais
óbvios, como respeito às diferenças e apego a valores convencionais anti-espiritualistas) e
RITICÍDIO (aniquilação de ritos considerados, pela vaidade narcísica e infernal de uns e
outros, como ‘primitivos’ ou ‘esteticamente agressivos’ à sua moral tão limpa, pura e
inviolável). 9

O conteúdo das propostas, anexadas ao final deste documento, tocam mesmo que
veladamente em questões polêmicas para a sociedade como o sacrifício animal e a cobrança
de salva, embora, contraditoriamente, seja garantido que questões de cunho litúrgico não
serão abordadas. Além destas questões rito-litúrgicas, há uma tentativa de determinar padrões
éticos de conduta que seriam aceitáveis para o umbandista, aos moldes de um código
canônico simplificado de matriz católica. Essa tentativa de dizer o que é e não é Umbanda
está evidentemente fadada ao fracasso, pois quem acha que é umbandista não vai deixar de
achar, mesmo contrariando as novas regras da tal carta.

Abaixo, seguem quatro objeções que o dirigente espiritual do Templo de Umbanda Xangô
Sete Pedreiras de Curitiba, Pai Thomé de Xangô (Itarayara), fez contra a criação da tal carta.
As perguntas foram realizadas para os representantes deste movimento numa reunião onde foi
exposta a proposta da “carta magna de Umbanda” em 03 de agosto de 2013, no auditório
Chico Xavier, da Faculdade Espírita do Paraná:

1. Mesmo que seja possível discutir se Zélio de Moraes efetivamente fundou a Umbanda ou
apenas a anunciou (o que, aliás, é feito na academia), quero partir aqui da premissa de que,
de fato, ele a fundou. Partindo dessa premissa, das duas uma: a) ou ele estabeleceu pontos
fixos de doutrina e de rito-liturgia; b) ou ele não os estabeleceu. Se estabeleceu, é
desnecessário fazê-lo agora. Se não estabeleceu, é ilegítimo fazê-lo, pois se nem mesmo o
fundador da religião o fez, como poderíamos nós fazê-lo? Portanto, gostaria de ouvir dos
ilustres representantes da mesa a sua opinião a respeito desse argumento, ou seja, de que a
fixação de ‘princípios fundadores’ é desnecessária ou ilegítima.

2. Embora, no site desse movimento, os senhores digam que todas as vertentes serão
respeitadas e que não haverá intromissão em pontos de doutrina e de rito-liturgia, é óbvio
que vários pontos dos chamados ‘princípios fundadores’ são sim de ordem doutrinária e
rito-litúrgica. A crença de que Oxalá é Jesus Cristo é um ponto de doutrina, obviamente. O
sacrifício animal é um processo rito-litúrgico com toda evidência. Gostaria de ouvir da

9
Comunicação pessoal de Pai Thomé de Xangô (Itarayara), dirigente espiritual do Templo de Umbanda Xangô
Sete Pedreiras, em Curitiba-PR.

539
mesa se esses temas, tais como sacrifício animal e cobrança de salva são ou não de cunho
rito-litúrgico. Se são, eles serão abordados na Carta Magna mesmo assim?

3. Se forem excluídos da Umbanda o sacrifício animal e a cobrança de salva, por que não
excluir também outros procedimentos não adotados pela Escola de Zélio de Moraes, como
o ‘Obi’ – utilizado em muitos Terreiros, inclusive de muitos sacerdotes aqui presentes – ou
o próprio ‘Atabaque’ – utilizado em praticamente TODOS os Terreiros do Brasil? Isso não
se trata de exclusão seletiva e arbitrária de fundamentos rito-litúrgicos?

4. Por fim, qual é a legitimidade desse espaço para ‘normatizar’ os tais ‘princípios
fundadores’ da Umbanda? Como pode a parte pretender falar em nome do todo e impor a
ele a sua visão específica das coisas, mesmo que seja somente a respeito de ‘princípios
fundadores’? Será que esse Congresso terá legitimidade para ‘legislar’ sobre Umbanda?

A diversidade e a tentativa de embranquecimento das Religiões Afro-Brasileiras na


visão de pais de santo curitibanos

Nas visitas aos terreiros de Umbanda de Curitiba encontramos o que procurávamos, ou seja, a
diversidade. Esta foi expressa principalmente através das diferenças rito-litúrgicas e de
doutrina. As perguntas formuladas para os pais e mães de santo foram as seguintes:

1. Qual religião afro-brasileira é praticada em seu Terreiro? Tratando-se de Umbanda, a qual


Escola pertence a sua linhagem sacerdotal?

2. Como o(a) senhor(a) entende e valoriza a diversidade nas Religiões Afro-brasileiras?

3. Na sua visão, é acertada a ideia, consagrada pelo senso comum, de que Curitiba e o Estado
do Paraná são regiões que, ao contrário das demais regiões brasileiras, não contemplam a
religiosidade afro-brasileira em sua vasta diversidade, mas apenas no estrito espectro de
Religiões e Escolas mais diretamente influenciadas pelas religiões do “homem branco” e
integrante das classes sociais mais abastadas?

4. Por sua experiência sacerdotal e ainda na linha da pergunta anterior, o senhor/a senhora
conhece Terreiros das mais variadas tradições espirituais afro-brasileiras em Curitiba?

Abaixo, seguem as respostas dos pais de santo às perguntas indicadas e as imagens dos
terreiros e pais/mães de santo:

Ilê Asé Iba Omi. Sacerdotisa dirigente: Mãe Isabel Cristina da Osun

1. Umbanda e Candomblé. Na Umbanda recebi minha coroação como mãe de santo pelas mãos de Pai Luiz
Gulin de Ogun no Omolokô, no Candomblé nasci em raiz de kêto com Pai João de Odé e hoje tomei minhas
águas no nagô vodun pelas mãos do Babalorixá Ilson de Odé.

2. As religiões de Umbanda e Candomblé são religiões que tem em seus ritos matriz afro e tanto uma como a
outra são transferidas oralmente. Isto propicia a gama de diversidade existente hoje, pois além do conhecimento
adquirido na família de santo, contamos com a experiência de vida pessoal de cada mãe ou pai.

540
3. Discordo de pronto, pois buscando a história das religiões de Umbanda e Candomblé foram construídas
iniciadas por homens e mulheres negras, o fato de um único terreiro constituir-se de uma linhagem mais branca
não representa a dominação de seu todo. Ao contrário temos no Paraná uma ampla participação dos negros na
religião.

4. Sim, conheço. Kêto, Nagô Vodun, Omolokô, Jeje, Jeje Mani, Jeje Ijexá, Umbanda, Umbandomblé, Umbanda
Esotérica, Candomblé de Caboclo, Angola, Umbanda Zélio de Morais, Batuque oriundo do Rio Grande do Sul,
Umbanda de Nação, Umbanda das Almas e Quimbanda.

Figuras 1 e 2 – Terreiro Ilê Asé Iba Omi da Mãe Isabel Cristina da Osun

Ilê Asé Ewe Gbe mi Ijo Orunmila ati Ogboni. Sacerdote dirigente: Babalawo Ifayemi Obe Tolamise

1. Culto tradicional africano de Orunmila Ifá, Orixá, Ancestral, Das Yamis e Ogboni.

2. Todo culto é válido porque resulta da busca interna de transformação. Desde que a pessoa coloque em prática
os ensinamentos que aprendeu em sua religião.

3. Não concorda por saber que o número é maior do que indica o senso comum. Inclusive na cidade de Araucária
(região metropolitana de Curitiba) há informação de mais de 100 casas registradas.

4. Conhecemos um grande número de casas, mas não tem costume de visitar. Gostaria de visitar para troca de
conhecimento religiosos.

Figura 3 - Babalawo Ifayemi Obe Tolamise

541
Ilê de Omolu. Sacerdotisa dirigente: Mãe Orminda de Omolu

1. O meu barracão Ilê de Omolu, nação nagô vodun (já extinta). A mão da Yalorixá que plantou o meu Axé é de
Angola. Então, o meu Candomblé bate Nagô e Angola.

2. A diversificação das religiões no Brasil são muitas devido a influência de povos que aqui se afirmaram.

3. Em Curitiba, a influência maior é branca devido as etnias polonesas e italianas que aqui vivem. Mas os negros
também deixaram raízes e por isso existem muitos centros espirituais de Umbanda também Candomblé.

4. Sim, com certeza porque fui batizada, fiz 1ª comunhão na Igreja Católica, frequentei Centro Espírita Dr.
Leocádio, participei da corrente da Tenda Esp. Estrela Guia. Como Mãe de Santo – Yalorixá tenho 38 de
raspada.

Figura 4 e 5 - Ilê de Omolu da Mãe Orminda de Omolu

Ilê Axé Onigbo. Sacerdotisa dirigente: Mãe Zanete

1. Umbanda e Candomblé. Ilê Axé Onigbo. Também existe nesta casa o toque de Angola (caboclos de Angola).
A origem da casa é de Umbanda Branca.

2. A diversidade é encontrada dentro de todas as casas, para poder agregar de forma culta e clara nas religiões
afro-brasileiras.

3. Discorda da visão de que não há a diversidade, pois dentro da casa há a diversidade.

4. Não costuma fazer visitas em casas que não conhece, a não ser de filhos de santo e do seu próprio zelador.

542
Terreiro de Umbanda Tio Antonio. Sacerdote dirigente: Pai Andre de Xangô

1. Umbanda, agora querer definir uma escola de Umbanda partindo de uma linhagem sacerdotal me parece meio
temerário uma vez que a Umbanda como qualquer religião absorve valores e fundamentos com o passar do
tempo e o termo uma Escola para mim não se aplica na Umbanda, pois engessa O CONHECIMENTO. Cada
terreiro é uma escola, pois é lá que se aprende a Umbanda daquele terreiro, é claro que os terreiros sofrem
influencias de outros especialmente se esses outros forem casas ancestrais da raiz de umbanda que cada pai de
santo pertence. Exemplificando melhor, sou filho de santo de Fernando de Ogum do terreiro Pai Maneco, mas
minha iniciação foi juntamente com Fernando de Ogum no terreiro do já falecido Edmundo Ferro, onde também
se iniciou Nancy de Xangô que vem a ser a fundadora do terreiro da Vovó Cambinda e iniciadora da Mãe
Rosangela além de sua mãe carnal, que por sua vez foi a iniciadora do pai Thomé e também sua Mãe carnal, que
por sua vez é filho de santo do pai Rivas, que já pertence à outra raiz de Umbanda bem diferente da geradora de
todos estes eventos. Assim falar de escola de Umbanda é arriscado, vejam só Pai Fernando Guimarães batizou a
Umbanda praticada no terreiro do Pai Maneco de Umbanda Pés no Chão, mas ele mesmo ao começar não a
praticava dentro do próprio terreiro, e sim a Umbanda praticada no terreiro do pai Edmundo Ferro, o próprio pai
Rivas fez alterações na umbanda que ele aprendeu com pai Matta e Silva de quem é nacionalmente considerado
seu principal discípulo, é claro que estas casas assim como muitas outras foram influenciadas pelas casas que as
antecederam e influenciaram as casas descendentes delas, mas não dá para chamar isto de escola.

2. Acho que a diversidade existe e deve ser respeitada e mantida, afinal ao menos no papel o estado brasileiro é
laico. Assim todos por direito constitucional devem ter seus ritos e cultos mantidos e preservados, só lamento o
fato da falta de informação á sociedade do que é um ou outro culto, por exemplo, tomemos por base a Umbanda,
muitas casas se autodenominam de Umbanda, mas sacrificam animais em seus ritos, cobram, e em alguns casos
bem caro, por atendimentos, não reconhecem sua doutrina como cristã, e nem que a Umbanda é brasileira,
respeito os seus ritos e acho que também devem ser preservados, mas não podem ser chamados de Umbanda,
essas casas não devem se envergonhar do que são e assumir suas identidades verdadeiras.

3. Essa ideia não corresponde a realidade, o Brasil é um país de dimensões continentais, assim a religiosidade
afro-brasileira quando se formou comtemplou também a diversidade ritualística com aspectos culturais da cada
região, assim é natural que no sul do País tenham terreiros de batuque ao invés de casas de tambor de mina, ou
que no nordeste tenham mais casas de Xangô do Nordeste ou Candomblés de Caboclo do que casas de Omolokô,
embora estas já estejam rareando aqui no sul também. Agora, se esta pergunta trás embutida a ideia de que na
Umbanda há influencia kardecista, disfarçada na pergunta de r’eligiões do homem branco integrante de classes
mais abastadas”, é claro que há, e desde a sua fundação pelo caboclo das sete encruzilhadas na pessoa de Zélio
de Moraes. Mas esta influencia não ocorre somente em Curitiba e no estado do Paraná, ocorre no Brasil todo
inclusive no Estado de São Paulo de forma mais intensa ainda.

4. Sim, muitos, obedecendo aos aspectos da regionalidade brasileira, ou será que no estado de São Paulo, por
exemplo, existem casas de Xangô do Nordeste ou de Tambor de Mina, ou de Terekô?

543
Figura 6 a 8 - Ilê Axé Onigbo de Mãe Zanete

Figuras 9 a 11 - Terreiro de Umbanda Tio Antonio de Pai Andre de Xangô

Terreiro: Mensageiros de Oxalá. Sacerdote e Sacerdotisa dirigentes: Babalorixá David de Oxalá e


Yalorixá Gabriela de Yemanjá

1. Batuque Jeje-Ijexá (da bacia da Mãe Lourdes de Iansã filha de Tereza de Xângo (falecida) - Uruguaina/RS,
Umbanda Branca (Exus não são incorporados) e Quimbanda (Kiumba).
Algumas pessoas ficam em dúvida e desconfiadas do porque cultuamos 3 linhas separadamente, um dia louvam
ao senhor no outro louvam ao diabo. É simples, são linhas complementares. Na Umbanda precisamos dos Exus
para levar as energias maléficas, na Quimbanda os Exus são os que nos dão os caminhos e são eles os enviados e
mensageiros dos Orixás.

2. Entendo que o Brasil foi formado pela miscigenação de povos, logo a religião não poderia ser diferente.
Entendo os valores culturais de cada uma das raízes africanas e a mistura de crenças e formas de cultos não
desvalorizam sua matriz e sim forma um novo conceito. Por mais pura em sua raiz que possa se tentar cultuar
uma linha, ela não será da mesma forma como na África nem hoje nem antigamente, primeiro porque a cultura
africana também mudou conforme os anos se passaram e porque itens usados nos cultos como alimentos e
vestimentas são diferentes na América latina, no Brasil e até mesmo há diferenças entre regiões brasileiras como
norte e sul do País, então o que se faz é substituir certos alimentos que fazem parte de frentes ou ebós por outros
parecidos. Isso não faz perder a fé, o culto ou a linha de crença. Em falando em diversidade e valorização da
religião afro-brasileira o Batuque no Rio Grande do Sul assim como o Candomblé da Bahia ainda na época de
Mãe Menininha os cultos eram clãs familiares e fechados a qualquer tipo de visitante, ao perceber que com o
passar dos anos as Casas iam se tornando cada vez menores até desaparecerem muitas resolveram abrir suas

544
portas para os visitantes e passar a frente sua cultura e é dessa forma que o Batuque e também a Quimbanda está
sobrevivendo aos tempos.

3. Nesses anos que estou ainda conhecendo Curitiba desde 2009 tenho visto muito que as religiões afro-
brasileiras se escondem. O preconceito aqui é muito forte contra a Umbanda e o Candomblé. Aqui vejo muito a
religião dita afro-brasileira, mas é muito mais um conceito espírita e católico do que afro. As pessoas vão aos
terreiros, são médiuns mas dizem são católicos ou espíritas. Vejo apenas os maiores terreiros que se tornaram
símbolo de status serem poupados do rótulo de macumbeiros ou coisa de nível inferior.

4. Conhecemos alguns terreiros e pais de santo de outras linhas como de Umbanda de Omoloko, como a dona
Mariquinha já com 50 anos de trabalhos, do Sr. Silveira (já falecido) que fazia uma mistura de Umbanda e
Candomblé, fomos em suas giras, conversamos sobre suas doutrinas e respeitamos todas. A mistura ou a
mudança das doutrinas conforme o tempo o um novo conceito é valoroso, mas ao mesmo tempo é perigoso,
creio que o sacerdote, Babalorixa, Chefe de Terreiro precisa ter muito cuidado com linha que separa a religião
afro-brasileira da seita e do que desrespeita os valores humanos e morais da sociedade. Não se deve jamais
perder a conexão com sua linha matriz, sua origem.

Figuras 12 a 13 – Mensageiros de Oxalá - Babalorixá David de Oxalá e Yalorixá Gabriela de Yemanjá

Terreiro: Tenda Lar de Ogun. Sacerdote dirigente: Togun bara (Pai Luiz)

1. Umbanda Omolokô e Candomblé de Kêto.

2. A diversidade é importantíssima e em momento algum deve ser deixada de lado, pois é através dela que
se acha a clareza e o aprendizado. Não existe um só caminho.

3. Não concordo, existe muita diversidade. São raríssimos os terreiros que seguem a linha ortodoxa de
Zélio de Moraes. A maioria tem traços de diferentes tradições, como por exemplo, de angola e
omolokô.

4. Sim, de Umbanda e Candomblé.

545
Figuras 14 a 16 – Tenda Lar de Ogun de Togun bara (Pai Luiz)

Considerações finais

Diante do que se expôs acima e do teor das entrevistas anexadas ao presente trabalho,
concluímos que, diferente do que pode ser considerado pelo senso comum, temos do ponto de
vista qualitativo representantes de diversas, senão todas as escolas das religiões afro-
brasileiras em Curitiba. Do ponto de vista quantitativo é bastante provável, se não certo, que a
diversidade religiosa em Curitiba também apresenta índices bastante elevados, embora isso
deva ser investigado de forma autônoma com critérios estatísticos rigorosos. Outro sinal que

546
parece confirmar esta conclusão é o fato de que o movimento paulista a favor da promulgação
da “Carta Magna Umbandista” foi recepcionada com muita reserva e até mesmo com
desconfiança por parte da comunidade de santo curitibana no 3° seminário realizado pela
FUEP (Federação Umbandista do Estado do Paraná) com a intenção de apoiar o referido
movimento.

Referência

RIVAS NETO, Francisco. Assimetria do Sagrado nas Religiões Afro-Brasileiras. In: Escolas
das Religiões Afro-Brasileiras. São Paulo: Arché Editora, 2012.

547
548
A presença de valores culturais africanos iorubás nas religiões
afro-brasileiras
Fernanda Leandro Ribeiro1

Introdução

Este trabalho tem como objetivo delinear a influência de elementos culturais dos iorubás na
cultura brasileira, em especial, nas religiões afro-brasileiras.

Os termos iorubá e nagô são utilizados para se referir a grupos que vivem em cidades
localizadas no Daomé (Atual Benin) e da Nigéria, no ocidente da África, em uma vasta região
chamada de Yoru baland. Eles têm em comum a língua iorubá e a crença em uma mesma
origem mítica: crêem que sua descendência espiritual está ligada ao orixá Oduduwa. Dentre
os grupos iorubás existem os Ketu, Egbado, Egba, Sàbé, Ijesa, Ijebu, Abeokutá e outros. Os
Ketu foram os que mais influenciaram a cultura brasileira, especialmente na Bahia (SANTOS,
2002, p. 28-29). No Brasil, também é utilizado o termo nagô para se referir aos iorubás,
independente da sua origem geográfica. E em Cuba, eles são chamados de lucumi (SANTOS,
2002, p.29; 31). Os iorubás (nagôs) e os jejes, denominados sudaneses, possuíam muita
semelhança e eram vizinhos no Daomé. No Brasil, fixaram-se principalmente no norte e
nordeste. Enquanto isso, outros grupos da África equatorial e oriental se espalharam pelas
regiões sudeste e centro-oeste.

Estudos apontam que já na África, eles eram um grupo forte e possuíam uma capacidade de
preservação da cultura maior, se comparada com outras regiões africanas. Mantinham
relações com várias regiões vizinhas, mantendo certa influência política sobre elas. E
quando os europeus chegaram na África para colonizar e capturar escravos, eles
conseguiram se proteger e se preservar por mais tempo em relação a outras regiões
africanas. Isto pode explicar a preservação de valores e mesmo de estruturas sociais e
políticas até os dias de hoje em países como a Nigéria. Bem como sua preservação em
países como Brasil e Cuba.

1
Teóloga umbandista com ênfase nas religiões afro-brasileiras pela FTU. Mestranda em Ciências da Religião
pela PUC/SP. Bolsista Capes. Membro do grupo de Estudos sobre Religiões Afro-brasileiras do Programa de
Ciências da Religião da PUC/SP. Contato: fernandal_10@yahoo.com.br.

549
Um outro fator para a prevalência da influência iorubá se deve ao fato de que mesmo na
África, já havia um constante intercâmbio cultural com outras regiões. Isto acontecia em
relação aos jeje, que apresentavam uma estrutura muito semelhante a dos iorubás e com os
bantos (congo, angola), da região central (LWANGA-LUNYIIGO E VANSINA, 2010,
p.180-182). Como veremos adiante, a estrutura social nos reinos iorubás na África não se
reconstituiu completamente no Brasil. Mas, eles conseguiram preservar alguns de seus
valores e elementos de sua estrutura dentro dos terreiros das religiões afro-brasileiras.

África ocidental

Oralidade

A cultura africana, de modo geral, e dentro dela a cultura iorubá é oral. A princípio, o que
distingue uma sociedade oral de uma sociedade baseada na escrita é a forma de transmissão
do conhecimento. As sociedades orais utilizam a palavra falada, enquanto as sociedades
baseadas na escrita utilizam também a palavra escrita.

A palavra é tão importante nas sociedades orais, que a memória é fundamental, pois é o único
meio de perpetuação do conhecimento. Por isso, a maior parte dos textos sagrados e mesmo
textos culturais são declamados em forma de música, o que facilita a memorização
(WALTER ONG, 1986, p. 41). Além da palavra falada, nas sociedades orais, valorizam-se
também os gestuais e os movimentos corporais, considerados formas genuínas de expressão
de sentimentos e idéias. Por isso, a música e a dança são consideradas muito importantes
nestas sociedades (ZUMTHOR, 1997, p. 203-217).

No entanto, o que caracteriza as sociedades orais é mais do que uma forma específica de
comunicação e transmissão de conhecimento. Elas possuem como traços principais um modo
de viver baseado na experiência e no coletivo e uma visão de mundo que concebe a existência
de um mundo sobranatural, com suas forças mágicas, intimamente relacionado com o mundo
natural. É ali “entre” estas duas realidades, que se constitui a subjetividade e que se desenrola
a vida humana. O mundo dos homens é considerado um continuum do mundo dos deuses e
dos ancestrais.

Claude Lévi-Strauss (1989, p. 25) afirmou que o modo de pensar das sociedades orais implica
em uma noção de totalidade dentro da qual todas as coisas possam encontrar o seu lugar. Ele

550
notou que nestas sociedades (ditas primitivas) todos os detalhes devem ser observados, pois
tudo tem que ser incluído. O que torna uma coisa sagrada é ela estar em seu lugar. Hernandez
(2008, p 28-29) também se refere a esta noção de totalidade presente nestas sociedades.
Aponta que a tradição oral está ligada ao comportamento de uma pessoa e de uma
comunidade a partir de um certo tipo de visão de mundo considerado como um todo integrado
no qual todos os elementos interagem entre si. A tradição oral apresenta uma concepção de
homem e de seu lugar no mundo mineral, vegetal, animal e social. Essa afirmação se refere
àquele aspecto mencionado anteriormente de que as tradições orais se baseiam na experiência.
Isso implica em uma série de particularidades na vida religiosa.

Como aponta Jack Goody (1995, p.37-38), comparadas com as religiões abrâmicas como o
cristianismo, judaismo e islamismo, as tradições orais são mais regionalizadas: as práticas
religiosas estão intimamente relacionadas aos aspectos culturais locais. Por isso, as sociedades
orais são muito diversificadas, diferentemente das religiões abrâmicas, que podem ser
reproduzidas em diferentes contextos culturais, sendo, assim, mais universais.

Tradição oral, portanto, é um modo de viver no qual todas as coisas estão intimamente
relacionadas e se influenciam mutuamente. Mas não de um modo linear e unidirecional como
no pensamento científico. Baseia-se na concomitância de vários acontecimentos, que se
relacionam entre si, de maneira difusa.

Leite (1992) apud Salami (1999, p. 30) alerta para o fato de que a ausência de escrita nas
sociedades negro-africanas não deve ser confundida com analfabetismo. Segundo ele, este
tipo de perspectiva progressista não compreende a importância da palavra como elemento
vital, componente da cultura e da história destas sociedades.

Deste modo, os babalawôs (sacerdotes de Ifá) são considerados os intelectuais dentro das
sociedades iorubás. São eles que fazem as consultas oraculares por meio dos métodos Opele
Ifá e Opon Ifá.

O Ifá é o pilar central da vida iorubá, uma vez que ele veicula não somente valores religiosos
e espirituais. Ele compreende todo o conjunto de conhecimentos históricos, religiosos e
filosóficos destas sociedades, mesmo sem utilizar a escrita (ABIMBOLA, 1973, p.2).

551
Aspectos históricos e geográficos

Segundo Leila Leite Hernandez (2008, p. 20), a divisão entre África branca ao norte e a
África negra ao sul tinha como pano de fundo ideológico a intenção de justificar a África
subsaariana (negra) como um povo bárbaro, selvagem e instintivo, no qual predomina a
natureza, isto é, não se produzem cultura e história.

Esta discussão é importante para este trabalho, uma vez que a Nigéria, onde existe uma
grande concentração de iorubás (um quarto da população é iorubá) é o país mais populoso do
continente africano e maior país em população negra no mundo, segundo Salami (1999, p.
15). Os estados africanos, dentre eles, os estados iorubás, por exemplo, já existiam ou estavam
em processo de formação, mesmo antes da chegada dos mulçumanos (entre os séculos II e
VIII).

Hernandez (2008, p 164) defende que, perante a influência islâmica, os sudaneses (jejes,
nagôs e minas, grifo meu) conseguirem se preservar politicamente, sem abrir mão de seus
valores originais. Chegaram até a se converter ao Islã, sem, contudo abandonar suas próprias
tradições religiosas. E sem obrigá-los a adotar costumes africanos. Os sudaneses tinham
estados organizados, o que só foi possível em decorrência do crescimento do comércio.
Naquelas regiões da África ocidental onde não havia muito comércio, permaneceram as
sociedades sem estado (THUSTAN SHAW, p.547-548). Estas organizações sociais e
políticas na África, também chamadas reinos ou impérios, eram sistemas de governo e, ao
mesmo tempo, modos de centralização ou descentralização administrativos. Segundo
Hernandez (2008, p.35), eles foram se extinguindo a partir de 1800, momento que iniciou a
colonização européia.

Porém, ao menos na Nigéria, com todas as mudanças ocorridas durante a colonização e


mesmo depois, esta extinção completa não aconteceu. Conforme afirma Salami (1999, p.15-
16), mesmo tendo se tornado um país capitalista e presidencialista, a partir de 1960, com o
fim da colonização inglesa, a Nigéria, país mais populoso da África e onde existe a maior
concentração de iorubás, mantém ainda as administrações originárias, bem como muitos dos
costumes e valores ancestrais. O sistema político democrático, baseado em votação livre e na
centralização do poder, convive com o sistema de reinado hereditário e descentralizado.

552
Aspectos políticos, sociais e culturais

Antes da chegada dos mulçumanos (século II ao século VIII) e dos europeus no século XV, a
terra era apenas uma fonte de ganho voltada para a sobrevivência. Não existia a noção de
posse. Esta noção só passou a existir na África com a chegada do direito islâmico e do
sistema político-econômico feudal europeu (DIAGNE, 2000 p.29).

A propriedade do tipo europeu, fosse o direito de usar e de dispor dos bens e mesmo das
pessoas (ou seja, escravos), praticamente não existia. Os que se apropriavam ou
transmitiam uma parcela de terra ou área de caça, de pesca ou de colheita valiam-se apenas
de um direito de usufruto que excluía a especulação lucrativa ou o direito de venda. As
sociedades agrárias do sul do Saara criaram então o lamana – sistema de ocupação das
terras que não previa nem a locação destas, nem o arrendamento ou a meação, ainda que
taxas impostas pelo Estado e pelas autoridades como pelos chefes fossem recebidas em
cima da produção agrícola e pastoral. A economia da África negra era centrada, antes de
tudo, na produção destinada ao consumo. O homem produzia aquilo que precisava, mas não
possuía os meios de produção (DIAGNE, 2000, p.31).

Assim, a maior mudança ocorrida com a introdução do modelo feudal, foi a possibilidade de
tirar proveito dos meios de produção.

As comunidades que não possuíam uma organização estatal foram as primeiras a serem
exploradas e se constituíram como reservas de escravos. Mas, de modo geral, todas as
comunidades foram impactadas com o tráfico de escravos (ALAGOA, p. 521). Os iorubás
parecem ter conseguido se manter a salvo da influência direta dos europeus por mais tempo,
ficaram fora, inclusive, do esquema de escravidão europeu até o século XIX. De fato, eles
eram reconhecidos por terem um reino forte e isso era atribuído em grande parte aos seus reis
(oba, também chamados oni) (ALAGOA, 2010, p. 530).

E, quando os fon do Daomé se organizaram militarmente, os iorubás, que sempre foram


muito próximos, intervieram no sentido de fazê-los investir mais na política do que na
atividade militar (Idem, p. 524). O reino de Oio (localizado na atual Nigéria) - um dos mais
importantes reinos iorubás - sempre teve relação muito estreita com os demais reinos ao seu
redor. Neste sentido, a cultura iorubá parece ter se destacado pela capacidade de manter
coesão com outros grupos. Pensando que a escolha dos governantes era realizada pelos
babalaôs (sacerdotes dos mistérios) por meio da divinação de Ifá, pode-se inferir que o poder
religioso destes sacerdotes foi o que manteve esta cultura preservada por tanto tempo.

553
Os grupos africanos (não somente os iorubás) possuíam fortes laços de amizade e de
solidariedade (Idem, p. 524). O trabalho era organizado em corporações familiares, que
funcionavam de um modo cooperativo. E profissões que envolvem trabalho braçal ou manual
como forjador, camponês, pescador e pastor nômade eram muito valorizadas. (DIAGNE,
2000, p 34-35).

Com a chegada dos europeus essas corporações de trabalho são substituídas por sistemas de
castas. E as divisões de classe, raciais, étnicas e religiosas cristalizam-se cada vez mais. O
sistema feudal se sobrepõe ao lamana (Ibid). Além disso, os europeus incentivam a rivalidade
entre as diversas sociedades africanas com o objetivo de enfraquecê-las. Com a colonização
no século XVIII isto se intensifica, uma vez que as linhas de demarcação dos novos estados
não respeitaram os contornos dos grupos étnicos.

O caráter coletivo no modo de viver dos iorubás era observado também nas relações
familiares. As sociedades iorubás são patriarcais. E é comum um homem ter várias mulheres.
Moram todos numa mesma casa. Cada uma das mulheres vive com os filhos em um quarto. O
marido tem o seu próprio quarto. Existe uma área de convívio familiar, onde as pessoas se
juntam para fazer as refeições, receber visitas e realizar festivais. Quando um filho se casa,
ele traz a esposa para morar junto com a família dele (SALAMI, 1999, p. 18).

Várias famílias se agrupam em estruturas maiores denominadas Agbo-ile, também chamadas


de compounds. Este termo foi cunhado pelos britânicos durante o período da colonização
inglesa. Um Agbo-ile é um clã gerenciado por um governante local chamado bale. Vários
Agbo-ile formam um distrito, governado por um ijoy, que possui autonomia para resolver os
problemas de sua linhagem. Um conjunto de distritos formam, por sua vez, uma cidade. As
cidades são governadas pelos oba, que significa reis coroados. Apesar de terem certa
autonomia local, os bale agem sob a tutela do oba (Idem, p.19). Atualmente, na Nigéria, os
governantes atribuídos de poder ancestral continuam atuando nas comunidades,
concomitantemente a um governo central, inspirado pelo modelo ocidental. Este último se
detém mais nas relações exteriores e nas questões administrativas como cobranças de
impostos e emissão de documentação (Idem, p, 26).

554
A influência dos iorubás nas religiões afro-brasileiras

Presença na sociedade brasileira

Os iorubás (nagôs) e os jejes, denominados sudaneses, eram vizinhos no Daomé e possuíam


muita semelhança em suas estruturas. No Brasil, fixaram-se principalmente no norte e
nordeste. Enquanto isso, outros grupos da África equatorial e oriental se espalharam pelas
regiões sudeste e centro-oeste.

Segundo Verger (1964, 1968) e Viana Filho (1964) apud Santos (2002, p. 28), dentre os
africanos que vieram para o Brasil como escravos, os iorubás foram um dos últimos grupos a
chegarem, durante o final do século XVIII e início do século XIX. Silva (1994, p. 65) também
afirma que os sudaneses foram os grupos que predominaram no século XIX, quando as
condições urbanas, históricas e sociais de perseguição religiosa já estavam diminuindo.
Segundo ele, isto contribuiu dentre outros motivos, para que a estrutura religiosa iorubá
fornecesse ao candomblé seu alicerce.

Já Mattos (2011, p. 72) afirma que os escravos oriundos da África ocidental teriam vindo
entre os séculos XVI e XVIII. Dentre eles, os sudaneses (iorubás, jejes, minas) vieram entre
os séculos XVII e XVIII. A explicação para este fato é que a primeira região ocupada para a
captura de escravos foi o ocidente africano, em virtude das características geográficas, pois
os navios europeus que saíam da Europa pelo oceano Atlântico chegavam primeiro ali.

Parés (2006, p.74) afirma que os jejes chegaram há mais tempo no Brasil e teriam
constituído uma ampla rede de solidariedade. Uniram-se coletivamente para conseguirem
comprar a alforria de cada um deles. Tanto que, entre os africanos libertos em Salvador, no
início do século XIX, a maioria era jeje. Segundo o autor, este grupo influenciou
decisivamente na formação do candomblé.

A possibilidade de os iorubás terem chegado no período mais final da escravidão pode


explicar o fato deles terem conseguido reconstituir suas instituições e seu modo de viver no
Brasil, pois teriam se instalado nas cidades grandes e com a proximidade do fim da
escravidão, tinham maior liberdade para praticar sua religião.

555
Religiões afro-brasileiras

O termo religiões afro-brasileiras é utilizado para denominar um conjunto amplo e diverso


de tradições religiosas que possuem como denominador comum o fato de terem se
originado no Brasil, a partir de influências culturais e religiosas africanas, indígenas e
européias (RIVAS NETO, 2012, p. 89). Além disso, todas elas são de tradição oral (Idem, p
75).

Elas concebem a existência de uma realidade sobrenatural que influencia o mundo natural.
O mundo invisível das divindades e dos ancestrais está intimamente ligado a vida dos
homens. E, apesar de estarem inseridas em uma sociedade baseada na escrita, como é a
sociedade brasileira, nestas religiões, valoriza-se mais a experiência do que textos sagrados
escritos. Neste sentido, elas se aproximam do que Paul Zumthor denomina oralidade mista
(1997, p. 37), para se referir a sociedades nas quais coexistem elementos culturais da
oralidade e da escrita. A presença da escrita se refere não somente a escrita em si, mas ao
que ela representa. A escrita foi inerente ao desenvolvimento de sistemas de governo mais
amplos e abrangentes, que de certa forma, são também mais despersonalizados e abstratos.
(GOODY, 2012, p. 28).

Pode-se atribuir a oralidade das religiões afro-brasileiras às matrizes indígenas e africanas,


que influenciaram na sua formação, uma vez que a matriz européia (catolicismo e
kardecismo) é baseada na escrita. Alguns elementos comuns tanto às tradições indígenas
como africanas estão fortemente presentes nas religiões afro-brasileiras. A estreita relação
com a natureza é um deles. Um outro aspecto da oralidade é a presença da musicalidade e
da dança, consideradas formas genuínas de manifestar sentimentos e idéias. (ZUMTHOR,
1997, p. 203-217). Ambas estão muito presentes nas religiões afro-brasileiras.

Cada religião afro-brasileira possui uma influência maior ou menor de cada uma das
matrizes formadoras (ameríndia, africana e européia) e dentro de cada uma destas matrizes,
a influência acentuada de um determinado grupo específico, por exemplo, dentro na matriz
africana, uma influência nagô (iorubá), jeje ou angola (RIVAS NETO, 2012, p. 97-98).

Rivas Neto (Idem, p.25) utiliza o termo escolas para se referir a esta pluralidade de
expressões religiosas afro-brasileiras. Ele propõe que cada escola possui uma determinada
visão de mundo, uma forma específica de transmissão de conhecimento, bem como rituais
específicos.

556
A relação entre as diferentes matrizes na formação destas religiões nunca foi imparcial. Em
virtude de questões políticas, sociais e econômicas, sempre houve no Brasil uma imposição
de valores europeus em detrimento de valores indígenas e africanos, o que necessariamente
permeou as religiões (Idem, p. 76).

Silva (1994, p.34) explica que durante o período da colonização, a Igreja ao mesmo tempo
que tentava coptar os negros para o catolicismo por meio da catequese, muitas vezes fazia
vistas grossas às suas rezas, danças e cânticos. Os negros disfarçavam, dizendo que seus
batuques eram uma forma de homenagear os deuses católicos.

A aristocracia acabava permitindo estas práticas por considerá-las como folclore e


principalmente porque acreditavam que esta seria uma maneira de manter vivas as tradições
de cada grupo e que assim, eles rivalizariam entre si, esquecendo que tinham um inimigo
comum, os escravizadores. Com isso, as chances de acontecerem rebeliões seriam menores.
(Ibid). Porém, se a dança e a música eram toleradas, o aspecto mágico das religiões
africanas era muito combatido. Ela era denominada como magia negra.

Mas mesmo nos espaços sociais, durante este período, com o todo o controle que a Igreja e o
governo exercessem, os mestiços e os negros levavam a alegria, a música, a dança,
imprimindo sua marca na cultura brasileira, mesmo que a elite conservadora se chocasse com
seus costumes (SILVA, 1994, p. 38). As irmandades, associações católicas de leigos, eram
organizadas por cor de pele. Elas acabaram tornando-se espaços de ajuda mutua. Os filiados
de uma mesma irmandade juntavam as contribuições para comprar a alforria de um de seus
membros e também para a realização de enterros (Idem, p. 41-42).

O mesmo acontecia com os quilombos, que se formaram por todo o país. Estas comunidades,
que abrigavam escravos fugidos, tinham uma estrutura social muito organizada. Elas
produziam alimentos e comercializavam fora dos quilombos, com indígenas, comerciantes e
pequenos agricultores (MATTOS, 2011, p. 137).

No período pós-abolicionismo, não havendo mais justificação de perseguição legitimada pela


idéia de posse (entre colono e escravo), as autoridades policiais, mas também as sanitárias se
ocuparam de coibir as práticas religiosas do curandeirismo (GIUMBELLI, 2003, p. 253-254).

Surgem as noções de alto espiritismo (moralizador) e baixo espiritismo (degradante),


estabelecendo uma relação entre tudo o que advém da cultura européia com o alto espiritismo

557
e o que é negro com o baixo espiritismo. Ao primeiro se relaciona ainda a noção de religião-
ciência e ao segundo a noção de magia-superstição. O primeiro protegido pelo Estado o
segundo não (Ibid). Deste modo, todo esforço empreendido para a separação entre brancos e
negros não impediu que os negros influenciassem a cultura brasileira. A cristianização dos
negros, bem como dos índios não significou o abandono de suas crenças e tradições. Eles
continuaram acreditando em seus deuses.

Influência iorubá nas religiões afro-brasileiras

A primeira organização religiosa de influência africana no Brasil foi o calundu, termo de


origem banto utilizado até o século XVIII. O calundu compreendia invocações de espíritos,
sessões de possessão, adivinhação, danças e cura mágica (SILVA, 1994, p. 43). Ele
precedeu o candomblé, que nascia no século XIX na Bahia, também conhecido como
religião dos orixás (PRANDI, 2005, p. 20).

Este nome advém do fato de que vieram para o Brasil algumas das divindades africanas,
bem como outros aspectos religiosos africanos. O termo orixá para se referir às divindades é
utilizado apenas pelos iorubás na África, outros grupos utilizam outras nomenclaturas. No
Brasil, ele passou a ser utilizado de forma generalizada dentro das religiões afro-brasileiras.

Os negros escravizados que pertenciam a uma mesma sociedade de origem na África, foram
se agrupando e reproduzindo aqui seus rituais e sua visão de mundo. Assim, surgiram os
candomblés de nação (relativo a uma determinada cidade ou estado africano). O candomblé
Xangô em Pernambuco possui a influência da nação egbá, um seguimento dos iorubás. O
Batuque no Rio Grande do Sul apresenta influência maior da nação iorubá oió-ijexá. No
Maranhão, o Tambor de Mina tem influência nagô e também jeje (PRANDI, 2005, p 21).

Além do candomblé iorubá, existem os candomblés jeje e os de origem banto, que se


dividem em congo, angola e cabinda. Os candomblés que mais se espalharam pelo Brasil
foram o keto (iorubá) e o angola (banto) (PRANDI, p.21-22). Os candomblés baseiam-se
nas mitologias africanas, nas quais as estórias míticas, vividas pelos deuses se atualizam na
vida humana, especialmente por meio dos rituais. Realizam práticas como sacríficio,
cânticos sagrados, dança e rituais de cura. Os terreiros de candomblé formaram no Brasil as
famílias-de-santo, que reproduziam de certa forma, os laços de parentesco que existiam na

558
África. No início, elas eram compostas por africanos de um mesmo grupo. Mas com o
passar do tempo, ingressavam africanos de outros grupos, crioulos, mulatos e finalmente
brancos. A família-de-santo ia assim perdendo sua característica étnica e incluindo pessoas
de contextos sociais diversos (SILVA, 1994, p. 56-57).

A família-de-santo cria relações do tipo familiares dentro do terreiro. Tem a mãe e o pai-de-
santo, os irmãos, as tias, as avós. Além disso, ela estabelece relações de parentesco com
outros terreiros parentes, fundados por pessoas que pertencem à família (Idem, p. 57; 59).

Em relação ao culto às divindades, enquanto na África cada cidade cultuava uma única
divindade, considerada sua genitora mítica, no Brasil, com a mistura de pessoas de
diferentes cidades africanas, tem-se em um mesmo terreiro o culto a várias divindades e não
apenas uma (BENISTE, 2010, p. 20). Além disso, sendo a sociedade brasileira bastante
diversa e a adesão ao candomblé minoritária em relação ao que se tinha na África, aqui não
se cultuam antepassados coletivos, como acontecia lá. (PRANDI, 2005, p. 39). Segundo
Silva (194, p. 120), no candomblé “os deuses africanos transformaram-se de deuses
tutelares de um clã, linhagem ou cidade, em deuses pessoais, que cada pessoa recebe em seu
corpo e cultua como protetor individual”.

No entanto, o costume africano de louvar os seus ancestrais se reproduziu no Brasil. Da


mesma forma que cultuavam seus mais velhos na África, assim o- fizeram no Brasil. Mas
quem eram os ancestrais no Brasil? Os ameríndios. Foi assim que os índios (caboclos)
brasileiros tornaram-se ancestrais cultuados nas religiões afro-brasileiras.

O culto aos caboclos, tão presentes na religiosidade dos bantos, deu origem ao candomblé
de caboclo, considerado por muitos adeptos uma variação do candomblé de angola, no qual
os deuses indígenas assumiram o papel central, com o mesmo status dos orixás. Os
caboclos são os espíritos “donos da terra” e representam os índios que aqui viviam antes da
chegada dos brancos e dos negros. Quando baixam nos terreiros, vestem-se com cocar de
pena, dançam com arco e flecha, fumam charutos e bebem vinhos (SILVA, 1994, P. 87).

O culto aos ancestrais era comum em muitos grupos africanos que vieram para o Brasil, não
somente os bantos, e isso inclui os iorubás. Assim, pode-se afirmar que esta foi uma
contribuição de todos os grupos, mesmo porque na própria África eles estavam em constante
intercâmbio cultural e religioso. Apesar de alguns terreiros no Brasil terem mantido suas
origens iorubás mais intactas, em muitas partes do país, a tradição iorubá se misturou com

559
outras tradições. Foi o caso do Batuque no sul, o Tambor de Mina no Maranhão, o Xangô em
Pernambuco e a própria Umbanda no Rio de Janeiro e São Paulo (PRANDI, 2005, p. 21- 22).

Prandi (2005, p.65) afirma que os eguns, que são para os iorubás ancestrais de uma
comunidade específica, tornaram-se entidades genéricas que baixam nos diferentes terreiros
para trabalhar. A capacidade de cultuar um ancestral, que não seja de sua terra natal, pode ser
entendida como uma demonstração do caráter regionalizador das tradições orais, sugerido por
Goody, citado anteriormente. Além disso, parece refletir também a noção de terra que os
africanos tinham. Para eles, a terra era coletiva e impessoal, conforme vimos.

Na Umbanda, as entidades são seres espirituais que se manifestam nos terreiros por meio da
mediunidade e dão suas consultas. São os conhecidos caboclos, crianças, pretos-velhos, exus,
pomba-giras, baianos, boiadeiros, marinheiros, ciganos, mestres da jurema.

Elas se organizam em falanges (linhas), compostas por várias entidades que trabalham juntas,
ou seja, atuam de forma semelhante. Além disso, cada falange possui um orixá patrono.
Assim, por exemplo, os caboclos podem ser de Ogum, Oxossi, Xangô, Oxalá. As caboclas de
Yemanjá, Oxum. As crianças relacionadas a Ibeji (BIRMAN, 1985, p. 20; RIVAS NETO,
2002, p. 174; 231; SILVA, 1994, p. 120). E cada uma destas falanges juntamente com o orixá
patrono, se relaciona com um domínio da natureza ou uma atividade da cultura humana. Os
caboclos de Xangô são responsáveis pela execução da justiça e são representados pela pedra,
os caboclos de Ogum representam força e seu símbolo é o ferro, as caboclas de Yemanjá
atuam nas emoções e seu elemento é a água (RIVAS NETO, 2002, p.165).

Entre os Exús, existem aqueles que são guardiões e que cuidam da porteira, os que
trabalham com as almas nos processos de desencarne. Tem ainda, os Exus que trabalham
com o fogo nos processos de neutralização de energias deletérias e as pomba-giras, que
atuam nas questões amorosas das pessoas (RIVAS NETO, 2011, p. 111-119). Na Jurema,
também tem as entidades que dão consultas por meio da mediunidade. São os caboclos,
índios, boiadeiros, vaqueiros, baianos, pretos-velhos, erês, povo do Maranhão e os mestres
do catimbó (ASSUNÇÃO, 2010, p. 201-202).

A organização por falanges e a relação com os domínios da natureza também estão


presentes. As entidades são agrupadas por linhas associadas a domínios da natureza como
mata, água, fogo. Mas são também agrupadas por região: povo da Bahia, do Maranhão, de

560
Codó. As entidades da linha da jurema são classificadas em caboclos, índios e mestres
(Idem, p. 158).

Assim, influências iorubás como valorização da ancestralidade, senso de coletividade, e


culto às divindades repercutiram especialmente nas estruturas religiosas e menos nos
aspectos culturais mais amplos.

Considerações finais

Os iorubás conseguiram imprimir marcas de sua religiosidade nas religiões afro-brasileiras


tanto em relação a aspectos ligados à crença e rituais como em relação a processos sociais.

Nos aspectos referentes a crenças e rituais destaca-se a continuidade do culto a alguns dos
orixás cultuados na África, com a diferença que no Brasil, um mesmo grupo (terreiro)
cultua vários orixás e não apenas um, como acontecia nas cidades africanas. O próprio
termo orixá utilizado no Brasil para se referir às divindades é de origem iorubá. Os iorubás
influenciaram também no culto aos ancestrais, com a diferença de que no Brasil, os
ancestrais também não são específicos de cada linhagem. No caso, as entidades atuam nos
terreiros de forma generalizada.

Em relação aos processos sociais, o modo de viver iorubá na África estava baseado em
relações de cooperação, seja no trabalho, na família ou na relação com a terra (que não se
tornava propriedade particular). No Brasil, este modo de relação se reproduz apenas dentro
dos próprios terreiros, bem como nas irmandades cristãs e nos quilombos. A estrutura
política e social mais ampla da sociedade não sofreu o impacto da cultura iorubá e das
outras culturas africanas e mesmo dos indígenas brasileiros.

Tanto o modelo colonialista como depois, o modelo republicano e na atualidade, a


democracia associada ao capitalismo, estão pautados na noção de individualidade,
propriedade, lucro, enquanto as sociedades africanas possuíam uma economia de
subsistência e um modo de viver coletivo, baseado na experiência religiosa. Assim, os
traços de oralidade das sociedades iorubás se mantiveram principalmente nos terreiros.

Pode-se afirmar que a mistura entre diferentes tradições presentes nas religiões afro-
brasileiras possibilitou amenizar os impactos da separação social que existia entre brancos,

561
negros e indígenas. Isto foi possível, principalmente, por meio das relações de parentesco
estabelecidas nas famílias-de-santo. Elas conseguiram irmanar grupos cada vez mais
abrangentes, pois se no início entravam apenas pessoas de um mesmo grupo africano, com
o passar do tempo foram entrando africanos de outros grupos (africanos) e depois pessoas
de outras procedências.

O termo família-de-santo surgiu no candomblé, mas pode-se observar que outras religiões
afro-brasileiras possuem um tipo de estrutura similar. Em todas elas, existe uma cosmovisão
que fundamenta as relações entre as pessoas e os lugares sagrados, as atividades humanas,
os ancestrais e as divindades. Na Umbanda, por exemplo, esta cosmovisão é expressa pelas
linhagens, além da mitologia e das relações familiares do santo. Esta é uma demonstração
de que as religiões podem influenciar na sociedade produzindo não somente rupturas, mas
também laços. As religiões afro-brasileiras, em especial, têm desempenhado este papel, à
medida que acolhem pessoas das mais diversas condições sociais, econômicas e raciais.

Referências

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563
564
Aprendendo yorubá no Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá
Marta Ferreira1, Stela Caputo2

Introdução

Omolocun ajeun bó, omolocun/Omolocun ajeun bó, omolocum. A cantiga é entoada nos
terreiros de candomblé para as rodas do Òrìşà Logun Edé. São apenas duas frases em yorubá
e precisamos desdobrá-la em muitas outras. Òrìşà3, por exemplo. Para Santos (1975), alguns
autores sustentam que os Òrìşà são ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou de clãs
africanos que, através de atos excepcionais durante suas vidas, transcenderam os limites de
sua família ou de sua dinastia passando a ser cultuados por outros clãs até se tornarem
entidades de culto nacional. Nos terreiros, acredita-se que alguns filhos ou filhas de santo
incorporam essas entidades, ou a energia dessas entidades. De Logun Edé, digamos, para
resumir absurdamente, que é um Òrìşà caçador e pescador. É filho dos Òrìşà e
assumindo características de ambos. Justamente por isso, suas lendas ensinam que ele vive
metade do ano nas matas (domínio do pai) e a outra metade nas águas doces (domínio da

1
Mestranda em Educação pela UERJ/PROPED. Membro do GP Ilè Obá Òyó. Orientadora: Stela Guedes
Caputo. Contato: ferreira-martasilva@hotmail.com.
2
PhD em Educação, docente UERJ/PROPED. Coordenadora do GP Ilè Oba Oyó. Contato:
stelaguedescaputo@hotmail.com.
3
Nesse texto, sempre que for possível, utilizaremos (em itálico) as palavras em yorubá na forma como se
escrevem. Para facilitar a compreensão vale o que ensina o professor Beniste. O sistema tonal é marcado por
acentos em cima das vogais, que servem para dar um tom certo às palavras: o acento agudo indica uma
entonação alta; o grave, uma queda de voz e, sem acento, um tom médio ou a voz natural. Em algumas letras se
usa um ponto embaixo. O e E dão um som aberto; sem ele o som será fechado. adquire o som de X ou CH, sem o
ponto terá o som original da letra S. (BENISTE, 2006, pág.13). Também não há plural. Fazemos essa opção
reconhecendo a importância da oralidade na manutenção desta língua, mas acreditando também na importância
da divulgação de sua forma escrita, como mais um elemento do rico conhecimento que circula nos terreiros.

565
mãe). A cantiga que abre esse trabalho diz que Logun Edé “come todo omolocum”. Já
omolocum é uma comida também sagrada, comida de Oşun, mãe de Logun.

Para fazer o omolocun a Ìyá Bassé (responsável pela comida), reúne delicadamente erèé
(feijão fradinho), edé (camarão), àlùbósà (cebola), èpò funfun ou pupá (azeite doce ou de
dendê), cocorodi da iná (ovos cozidos). E utiliza, entre outras coisas, oberó (alguidar), obé
(faca), ianijé (prato). Esta língua também nomeia os cargos adquiridos pelos iniciados e iniciadas como: ogan
(responsável pelo toque dos atabaques) e outros. Nomeia os ritos sagrados, como o Ebòorí que, literalmente, quer dizer
dar de comer à cabeça e que tem por objetivo fortalecer a cabeça de quem o faz. Já Àşèşè, é o ritual fúnebre no
candomblé. Mitos, cantigas, rezas, comidas, artefatos, cargos, rituais. Todas essas coisas são
faladas em yorubá, uma língua africana viva, que circula cotidianamente nos terreiros de
candomblé no Brasil e que crianças, jovens e adultos conhecem.

Figura 01- Àkárá (bola de fogo) Je (comer) – Àkáráje – comer a bola de fogo (bolinho feito de massa de feijão
fradinho, camarão seco, cebola, sal, frito em azeite de dendê). Aqui, os Àkáráje estão arrumados em uma
oferenda com frutas para os Òrìşà.

Aprendemos com Beniste (2001) que o idioma yorubá pertence à família de línguas do Sudão
e é falado nas diferentes regiões da atual Nigéria. A língua, assim como outras, chega até nós
no período da escravidão e se torna a mais comum nas comunidades negras.

Seu último refúgio foi nas comunidades de Candomblé, nas modalidades Kétu, Èfòn, Ìjèsà
e demais que se utilizam de elementos culturais nagôs. Tem sido mantida através de
cânticos, rezas e expressões diversas, estando aí um dos fortes motivos para a manutenção
de tradições seculares (2001, p.317).

566
Interessa-nos aqui partilhar um pouco essa cultura preservada e recriada nos terreiros de
candomblé. Para Raymond Williams (2007), a noção de cultura está impregnada da produção
histórica, material e simbólica da sociedade e suas lutas. Cultura, na concepção de Williams é
modos de vida. As comunidades de terreiros abrigam modos de vida singulares, complexos,
constituídos de saberes específicos. São saberes que percebem, sentem, intuem, interpretam e
narram o mundo. Ou seja, há uma epistemologia, uma maneira de conhecer própria nesses
lugares de saberes que difere dos modelos epistemológicos dominantes.

A pesquisadora Nilda Alves, há muito vem reafirmando suas preocupações com a importância
dos múltiplos espaçostempos4 nos aprendizados tanto de estudantes como de professores e
professoras. A ideia principal é de que a formação se dá em múltiplos contextos. Para ela, é
preciso compreender que os muros das escolas são criações imaginárias e que vivemos todos
e aprendemos todos dentrofora das escolas. Em suas palavras: “O que é aprendidoensinado
nas tantas redes de conhecimentos e significações em que vivemos entra em todos os
contextos, porque encarnado em nós.” (2010, p.1197).

Acreditamos que os terreiros de candomblé com todo seu modo de vida singular, portanto,
com suas culturas, estão nessas redes educativas. Redes tecidas por danças, cantos, comidas,
rezas, folhas, mitos, artefatos, gestos, segredos. O yorubá5 perpassa todos esses saberes, como
um fio de linguagem que acende, organiza e mantém a comunicação dos praticantes do culto.

Há maneiras distintas de relação com esta língua nos terreiros e entre seus membros. Alguns
compreendem mais e outros menos o significado daquilo que cantam ou falam. Alguns não
acham importante entender completamente a tradução das cantigas e acreditam na
importância do ritual mesmo sem a compreensão de todo o seu conteúdo. Já outros julgam
que é cada vez mais necessário entender o idioma. O modo como se ensina e se aprende
também se diferencia de casa para casa. A oralidade manteve entre nós o candomblé e suas
línguas. Ritos, cantigas, rezas, receitas, mitos, foram passados de praticante para praticante
através de gerações trazendo essa cultura desde a escravidão até nossos dias. Ela é preservada
nas casas de aşé (os terreiros), mas também vive além de seus muros. Na grande maioria
desses terreiros, o mais comum é a repetição das palavras, rezas e cantos, até que todos ou
quase todos se expressem de forma semelhante. Mesmo em casas que se dedicam a uma
4
A autora sempre explica que usa esses termos juntos para indicar que as pesquisas nos/dos/com os cotidianos
pretende ir além do que vê como limites herdados das ciências modernas.
5
O termo aparece grafado de modos diferentes pelos autores. Em nosso texto, optamos pela grafia yorubá como
escreve o professor José Beniste (2011). Castro (2001) prefere iorubá. Quando citarmos os autores manteremos
suas opções.

567
compreensão mais aprofundada do yorubá, a prática da escrita não é tão utilizada como
instrumento de aprendizado e de manutenção da tradição. O interesse de nossas pesquisas é
pelas redes de saberes no Candomblé, seja qual for o caminho percorrido na relação com a
língua. Contudo, para este capítulo, optamos por apresentar nossas reflexões desenvolvidas no
Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá, localizado em Santa Cruz da Serra, município de Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nesse terreiro, todos os filhos e filhas da
casa possuem um caderno/diário que começa a ser usado e experenciado a partir da sua
iniciação, onde registram os rituais, mitos, trocas. Mesmo os sonhos são estimulados a
ganharem um corpo de escrita. O vocabulário e rezas em yorubá também são registrados.
Simultaneamente a fala, a oralidade, continuam sendo praticadas em yorubá.

Para escrever o que entregamos aqui, além de consultar bibliografia sobre o tema,
conversamos com o Babálórìşà6 Daniel ty Yemòjá, responsável dessa casa e principal
incentivador da partilha dos saberes e de sua escrita. Entrevistamos praticantes do terreiro,
entre crianças e jovens, numa faixa etária de oito a vinte oito anos. Gravamos conversas e
registramos imagens do cotidiano tão citado nas respostas sobre a forma como se aprende
yorubá neste espaço que não é escolar, mas é impregnado de saberes e processos educativos
que tecem sentidos para os que participam de sua cultura. É sobre a seleção e reflexões que
fizemos durante esses processos que seguiremos falando.

Àgò, mo túnbá, mo dúpė: Com licença, Eu o reverencio, Eu agradeço

Figura 2 - Ogan Patrick, Dofoninho Antônio Marcos e Omorobá João Vitor procurando ewè (folha).

6
Mais conhecido como “Pai de santo”.

568
Patrick ty Ògún, tem 9 anos e é Olóyè, uma pessoa que possui um título na religião, um chefe.
Oyè significa inteligência, sabedoria, compreensão. O menino foi iniciado aos 07 anos e tem o
cargo de Ogan. Ele toca os atabaques nos rituais, além de desempenhar outras funções
extremamente importantes no terreiro. É chamado por todos de Ogan Patrick e ninguém se
refere a ele sem chamá-lo de senhor. No terreiro, a idade iniciática e/ou o cargo que possui o
iniciado é muito importante. Ou seja, o tempo que a pessoa tem de santo é mais importante
que a idade civil e inverte a lógica adultocêntrica da sociedade, de forma geral, e das escolas
mais particularmente. Não significa dizer que os mais velhos não são importantes, pelo
contrário, mas significa compreender que crianças e jovens são tão respeitados quanto em seu
tempo-cargo de santo.

Ogan Patrick fala muitas coisas em yorubá, “principalmente no barracão, quando temos
função”, explica. O barracão é o espaço do terreiro onde acontecem as festas, os rituais
consagrados aos Òrìsà. E ter função, significa ter algum ritual. Perguntamos: “como o senhor
aprende?” “Escrevendo no caderno, lendo, estudando”. “Mas o senhor aprende sozinho?”-
queremos saber. “Sozinho não. As pessoas vão cantando e a gente aprende”, responde. Ogan
Patrick também explica que durante os rituais ele repete as palavras em yorubá e só depois
anota no caderno procurando saber com os mais velhos de santo, principalmente com Babá
Daniel, a forma correta da grafia das palavras em yorubá. Sobre os momentos em que mais
fala a língua africana, o menino diz: “Em geral falamos normal, porque as pessoas mais novas
na casa não entendem. Usamos mais o yorubá quando falamos com um Òrìsà e nas cantigas”.

Figura 3 - Omorobá Aşé João Vitor ty Ayrá.

569
O processo de aprendizado é narrado de forma semelhante por João Vitor, de 8 anos, iniciado
no Candomblé, desde os quatro anos. No terreiro, ele é Omorobá Aşé João Vitor ty Ayrá. Ou
seja, filho do rei de Aşé João Vitor de Ayrá (Şàngó). Şàngó (resumindo, outra vez
absurdamente) é o Òrìsà, do trovão, relacionado à justiça. Como seu irmão de santo, ele
aprende a língua cantando e rezando e, sobretudo, afirma, com o Babá Daniel. Sempre
chamado de Omorobá, João Vitor evidencia o mais importante elemento de aprendizado nos
terreiros. “Eu olho para as pessoas e aprendo, mas ensinei cantigas e ensinei a tocar”. As
trocas de saberes espalhadas nas redes educativas dos terreiros distribuem os conhecimentos.
Destas, participam em iguais condições, crianças, jovens e adultos respeitando-se sempre as
hierarquias dos cargos e o tempo de iniciado.

Figura 4 - Omorobá Aşé João Vitor ty Ayrá e Ogan Patrick ty Ògún

Lincoln Ferreira de Mattos tem 16 anos, foi iniciado aos 13 e é chamado de Dofonitinho de
Oşalá. O termo Dofonitinho significa que ele foi a segunda pessoa de seu barco de iniciação.
A primeira pessoa do barco é Dofono. E barco é o nome dado quando mais de uma pessoa é
iniciada ao mesmo tempo no Candomblé. A convivência cotidiana também é destacada por
ele como fundamental para o aprendizado da língua. “As pessoas pedem algumas coisas em
yorubá, então a gente vai aprendendo; as pessoas explicam e assim a gente vai aprendendo as
palavras”. Um exemplo comum pode ser quando se pede um obé (faca) ou um ianijé (prato).
Os artefatos nomeados em yorubá promovem a circulação da língua no terreiro, repetida,
praticada, memorizada e aprendida. Mas o Dofonitinho de Oşalá lembra que existe um
período dedicado especialmente ao aprendizado das práticas, das danças, das rezas, das
cantigas e da língua.

570
Figura 5 - Dofonitinho de Oşalá em fogueira ty Ayrá (ritual da fogueira de Şàngó)

“No hunko a gente aprende as rezas, depois as cantigas. A gente vai aprendendo com o tempo
as danças africanas também. Depois o Babalorişá ensina ou traduz para gente e a gente
entende mais”. Perguntamos se só o Babá ensina e o Dofonitinho responde: “ah, depois,
quando alguns dos irmãos não escutam, aí os outros falam para a gente: oh, o significado é
isso, isso e isso. A gente vai aprendendo”. Perguntamos também se é parecido com aprender
na escola e Dofonitinho responde: “não, porque na escola é um jeito mais formal de se falar.
Ah, é diferente. No barracão a pessoa ri, brinca, vai falando alguns assuntos, não é só uma
pessoa que fala. Aqui, uma pessoa tem conhecimento e passa e os outros podem passar para
os mais novos, para os novos irmãos. Na escola, só professor é o líder que passa para todo
mundo. E os alunos não passam para os outros que perderam. Aqui todo mundo passa para
todo mundo”. Mais uma vez, uma rede de aprendizagens tão coletiva quanto horizontal é
destacada pelos praticantes do culto.

Perguntamos também ao Dofonitinho o que ele mais gosta nesse espaço de aprendizagens do
terreiro. “Gosto dos itãns, as histórias, porque o Babá parece que vive a história quando ele
conta e fica mais legal de aprender. Gosto das cantigas também que falam o que os Òrìşà
faziam, tudo em yorubá, aí a gente aprende”.

O Dofono Nicholas ty Oşalá, de 18 anos, fala sobre as primeiras palavras que, em geral, todos
aprendem quando começam a vivenciar o espaço dos terreiros. E não é à toa que sejam
justamente essas, já que estão relacionadas a um comportamento de humildade e fraternidade
esperado de cada filho ou filha de santo.“Àgò, quer dizer pedir licença, mo túnbá, é pedir e dar
a benção, mo dúpé é agradecer e ajeum é perguntar se a pessoa quer comer. Aprendemos na

571
prática, na vivência de todos os dias. Mas às vezes o Babá, o Pai de Santo, senta e começa a
explicar para todos, geralmente na cozinha, mas na maioria das vezes é na prática”, revela o
Dofono, que também nos diz o que ele considera como o mais importante do aprendizado da
língua. “É como se a gente pegasse uma parte da África e trouxesse aqui para o Brasil. Não
teria como ter um curso de yorubá na escola, por exemplo, porque o que a gente aprende,
aprende mesmo na prática. Na escola é muita teoria. O professor explica, a gente pega muita
coisa, mas não praticamos. Anota no caderno e não praticamos no cotidiano. Aqui não. Aqui,
aprendemos e praticamos ao mesmo tempo. É como se nós nascêssemos para fazer um pouco
mais devagar, um pouco mais lento”, afirma o Dofono Nicholas.

Figura 6 - Dofono Nicholas ty Oşalá

Se a fala constrói a cidade, o silêncio edifica o mundo (provérbio africano)

No prefácio do livro As nações Ketu, de Agenor Miranda Rocha (2000), Muniz Sodré lembra
a frase que usamos nesse subtítulo. A máxima, diz ele, é sudanesa, mas representa toda uma
atitude generalizada na África e em sua diáspora quanto à comunicação. De acordo com o
pesquisador, há uma valorização ética do silêncio como espaço do esclarecimento e da
seriedade, enquanto à fala se atribui o perigo da leviandade e da confusão.

Apenas o ‘perigo’, fique bem claro. O homem que vive a arkhé, a tradição, não é mudo,
nem silêncio deve ser entendido como mera ausência de verbo. Pelo contrário, silêncio é a

572
realidade que engendra o verbo, que dá à luz a palavra, por ser a força que conduz o
indivíduo à sua própria interioridade e à eclosão de uma verdade. Silêncio é coisa de
‘dentro’, palavra é coisa de ‘fora’ – no jogo ponderado dos dois espaços se faz a
comunicação equilibrada do mundo (SODRÉ apud MIRANDA, 2000, p.9).

Mas o que significa viver a arkhé? a que Sodré se refere? Sodré em outro livro (1988) diz que
Arkhé, em grego, é princípio sendo que esse princípio não significa início dos tempos, começo
histórico, e sim eterno impulso inaugural da força de continuidade do grupo. Este pesquisador
explica que Arkhé também traduz-se por tradição, por transmissão da matriz simbólica do
grupo. O verbo tradere (de onde se deriva traditio), significa, diz ele, transmitir ou entregar.
Mas a tradição, acrescenta, não implica obrigatoriamente a ideia de um passado imobilizado,
a passagem de conteúdos inalterados de uma geração para outra. Esta é, explica, a tradição
negativa e não positiva, que se dá quando a ação humana é plena, isto é, quando se abre para
o estranho, o mistério, para todas as temporalidades e lugares possíveis, não obstruindo as
transformações ou passagens. “Na verdade, toda mudança transformadora, toda revolução
ocorre no interior de uma tradição, seja para recusar o negativo, seja para retomar o livre
fluxo das forças necessárias à continuidade do grupo” (SODRÉ, 1988, pág. 154).

Coutinho (2002) também distingue tradição de duas maneiras, uma dialética, outra metafísica.
Para este autor, tais concepções possuem implicações políticas, já que correspondem a
diferentes práticas de reelaboração do passado e de interpretação da história. Enquanto prática
conservadora, a reiteração da tradição morta e fixa – prolongação de um passado no presente
– aparece como restauração das relações sociais existentes. Por outro lado, diz ele, na prática
e nos discursos libertários, a tradição – tida como ação criadora do sujeito sobre as formas do
passado – é um operador político capaz de refazer a história como patrimônio das camadas
populares. Utilizando a distinção realizada pelo peruano José Carlos Mariátegui (1927), a
ação criadora, afirma Coutinho, será designada como tradição, e aquela, relativa ao
conservadorismo dominante, será chamada de tradicionalismo. De acordo com este autor, o
que predomina no pensamento hegemônico é a concepção metafísica da tradição que, “tendo
como objetivo conservar as relações sociais vigentes, pensa a cultura como objeto, peça de
coleção ou mercadoria, desconsiderando o processo pelo qual o homem, por meio de sua
práxis criadora, transforma ativamente a realidade cultural” (COUTINHO, p.16).

É no jogo de silêncios e falas que os integrantes do Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá vivenciam
não o tradicionalismo imobilizado e morto, mas uma tradição, recriada e viva em suas práticas
cotidianas, incluindo nestas, o aprendizado de yorubá.

573
Beniste, pesquisador e professor de yorubá, acentua que, como os demais idiomas, o yorubá é
um instrumento para a comunicação entre as pessoas numa sociedade em que tudo o que se
faz tem o apoio de rezas, cânticos, e declamações neste idioma. Preocupado com a
transmissão e manutenção da tradição, este autor destaca que dependendo do cuidado com
que se fale, pode-se usar a língua correta ou incorretamente. Quando usada corretamente,
assegura, consagram as normas do culto, mas, se usada incorretamente, origina vícios de
linguagem e desfiguram o idioma.

Como confirmação, basta verificar como são diferentes as formas de expressar as palavras
de muitos cânticos, rezas e conversações simples, de terreiro para terreiro. Esta é uma das
razões da dificuldade encontrada na tradução para se saber o que se canta e o que se reza. A
perda do som original de muitas palavras e os vícios já creditados como corretos impedem
a interpretação de certas palavras, que, ao serem traduzidas, não conferem com o desejo do
momento. Esta situação vem dando margem a que pessoas, no afã de traduzir, substituam
essas palavras por outras que mais lhe convenham, provocando mudança total no sentido
daquilo que se deseja naquele momento. (idem, p. 318).

O mesmo autor reforça que a linguagem é a chave cultural de um povo e que, sem rever seus
aspectos, origem e formas não há como constituir religião já que, muitas vezes, não se sabe o
que se canta e o que se reza.

O seu aprendizado será a resposta para muitas dúvidas que existem na religião. Mas não
somente em interpretar os cânticos e rezas como forma de curiosidade, mas sim pelo fato de
poder sentir mais intimamente, através do seu conhecimento o alto grau de religiosidade
que existe nas mensagens. E a sua utilização terá uma extensão maior ao ser empregada
também na literatura humana e de uso corrente. (ibidem).

Há muito o Bàbálórişà Daniel ty Yemòjá concorda com esse pensamento. Por isso, associa
uma íntima relação entre a oralidade e a escrita no aprendizado da língua em seu terreiro. “Se
não soubermos cantar, rezar e falar direito, perdemos o sentido de nossa língua e os rituais
também perdem em significado porque todos precisam compreender o que estão fazendo.
Aqui, o mais importante é distribuir o conhecimento porque assim distribuímos o Aşé que nos
une e movimenta”, afirma o Bàbálórişà.

574
Òrìşà nló ẹwá kébá

O Òrìşà vai embora e nos deixa sua proteção

Muitos elementos constituem as culturas (os modos de vidas) nos candomblés. A língua é um
elemento fundamental. Na introdução desse trabalho, dissemos com Beniste (2001) que o
idioma yorubá pertence à família de línguas do Sudão, é falado nas diferentes regiões da atual
Nigéria, chega até nós no período da escravidão e se torna a mais comum nas comunidades
negras. Então existem outras línguas africanas, períodos distintos de sua penetração no Brasil
e fatores diferentes que influenciaram suas propagação e preservação não só nos terreiros,
como no próprio português falado em nosso país. No terreiro pesquisado, o vocabulário usado
é da língua yorubá e, por isso, este é o idioma que nos move na pesquisa. Não podemos tratar
profundamente de todos os grupos lingüísticos do continente africano (por impossibilidade
completa e por não ser nosso objetivo aqui). O livro Falares Africanos na Bahia – um
vocabulário Afro-Brasileiro, de Yeda Pessoa de Castro (2001), é um importante estudo sobre
as línguas de África e deve ser consultado para um aprofundamento maior sobre o assunto.

Não o yorubá, mas o grupo banto, diz Castro, dentre todos os grupos lingüísticos sub-
saarianos (região do continente africano ao sul do Deserto do Saara), foi o primeiro a
despertar a curiosidade dos pesquisadores estrangeiros e a ser estudado relativamente cedo.

O termo banto (bantu: os homens, plural de mantu) foi proposto por W.Bleek, em 1862, na
primeira gramática comparativa do banto, para nomear a família lingüística que descobrira,
composta de várias línguas oriundas de um tronco comum, o protobanto, falado há três ou
quatro milênios atrás. Só mais tarde é que o termo passou a ser usado pelos estudiosos de
outras áreas para denominar 190.000.000 de indivíduos que habitam territórios
compreendidos em toda a extensão abaixo da linha do Equador, correspondente a uma área
de 9.000.000 Km2. Sus territórios englobam países da África, Camarões, Guiné Equatorial,
Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo (Congo Brazzaville), República
Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Zâmbia, Burundi, Ruanda, Uganda,
Quênia, Malaui, Zimbábue, Botsuana, Lezoto, Moçambique, África do Sul (CASTRO,
2001, p.25).

No Brasil, explica Castro, o povo banto ficou conhecido por denominações muito amplas,
principalmente congos e angolas, que encerram um sem número de etnias e línguas
distribuídas entre os atuais territórios dos Congos e de Angola.

575
A antropóloga Juana Elbein dos Santos lembra que os africanos de origem Bantu7, do Congo
e de Angola foram trazidos para o Brasil durante o período da conquista e espalhados em
pequenos grupos por imensos territórios nos Estados do Rio, São Paulo, Espírito Santo e
Minas Gerais, numa época de comunicações difíceis e com centros urbanos começando a
nascer (1986, p. 31). Já os Nagôs, diz Santos, foram trazidos durante o último período da
escravidão e concentrados em zonas urbanas em pleno apogeu dos estados do Norte e do
Nordeste, Bahia e Pernambuco, particularmente nas capitais desses estados, Salvador e
Recife. Segundo esta pesquisadora, o comércio intenso entre Bahia e a Costa africana
manteve os Nagôs do Brasil em contato permanente com suas terras de origem. Explica a
autora que todos os diversos grupos provenientes do Sul, e do Centro do Daomé e do Sudeste
da Nigéria, de uma vasta região que se convenciona chamar de Yoru baland, são conhecidos
no Brasil sob o nome genérico de Nagô, originados de diferentes reinos como os Ketu, Sabe,
Òyó, Ègbá, Ègbado, Ijesa, Ijebu. Já o idioma desses povos é o yorubá, este sobre o qual
refletimos até agora, praticado no terreiro de Babá Daniel, de nação Ketu.

Do ponto de vista histórico, a referência de Santos é muito importante porque contextualiza o


fato da maioria dos terreiros de candomblé no Brasil ser de tradição nagô e porque justamente
este candomblé tenha se perpetuado mais entre nós.

No entanto, Nei Lopes (2003) pontua que dentro do quadro da presença afro-negra no Brasil,
verifica-se uma predominância das culturas bantas, que colaboraram, diz ele, para a formação
da cultura brasileira, principalmente através de suas línguas, entre elas, o Quicongo, o
Umbundo e o Quimbundo. Este pesquisador contesta o que chama de suposta ascendência de
línguas sudanesas, como o nagô (yorubá) no panorama das línguas africanas faladas no Brasil
à época da escravidão e que teriam modificado o falar português em nosso país e cita outro
pesquisador, Renato Mendonça, concordando que o “quimbundo, pelo seu uso mais extenso e

7
Os autores também grafam de diferentes formas várias palavras sobre as quais nos referimos. Aqui, por
exemplo, Santos (1986) grafa Bantu. Castro (2001) usa Banto. E Lopes (2003) escreve também Banto. Este
último explica que concorda com Mário Antônio Fernandes de Oliveira (1973) quando explica que, ao grafarem
pela primeira vez as línguas bantas, os estudiosos europeus viram-se forçados a fazê-lo, naturalmente através de
caracteres românicos, usando quando necessário, alguns sinais diacríticos. Foi assim que, ao ouvirem dos
africanos a pronúncia “bântu” [bãtu], os cientistas de fala inglesa a grafaram como se fala; os franceses usaram a
forma bantou; e os portugueses preferiram banto, já que, em nosso idioma, o “o” final átono tem som
equivalente a “u”. Foi também assim que os gauleses, depois de a afrancesarem, flexionaram a palavra: bantou,
bantoue, bantous, bantoues. E os portugueses, no mesmo caminho, fizeram banto, banta, bantos, bantas. Para
Lopes, embora atualmente, uma orientação científica, inclusive do Centre International dês Civilisations Bantu
(CICIBA) condene esse recurso, propugnando pela utilização da forma Bantu, em todas as línguas, sem
nacionalizações ou flexões, sua opção, por motivos práticos e por melhor compreensão, é pela utilização da
grafia Banto. Utilizaremos a forma escolhida por cada autor, respeitando suas preferências.

576
mais antigo, exerceu no português uma influência maior do que o nagô” (p. 18). Nas palavras
de Lopes:

De fato, no vocabulário do português falado no Brasil, os termos de origem nagô estão mais
restritos às práticas e utensílios ligados à tradição dos orixás, como a música, a descrição
dos trajes e a culinária afro-baiana. [...] Tanto na fonética, quanto na morfologia e na
sintaxe, as línguas bantas influenciaram decisivamente a língua que se fala hoje no Brasil.
Mas é no vocabulário que elas se fazem, de fato, mais presentes. Com efeito, em 1938, no
seu livro ‘Africanos no Brasil’, Nelson de Senna chamava a atenção para a insuficiência
dos dicionários então existentes em relação à riqueza vocabular do português falado em
nossa terra. E atribuía essa carência à ignorância em que ‘até muita gente culta, lá na
Europa e cá na América demonstrava em relação à vultosa contribuição emprestada por
índios e africanos ao idioma de Camões’. (LOPES, 2003. p.18).

Lopes reforça que a ignorância apontada por Senna é, no seu entender, fruto de uma visão
eurocêntrica que, durante muito tempo, norteou os estudos acadêmicos no Brasil e destaca:

Uma universidade permanentemente debruçada numa imaginária janela de onde se


descortinariam o Mediterrâneo, o Báltico, etc. não via e nem podia ver o que tinha atrás de
si, ao seu lado e aos seus pés: um estonteante universo de palavras sendo criadas a cada
momento na boca daquele negro já não tão banto nem sudanês, porque brasileiro. (ibidem).

A própria palavra Candomblé, por exemplo. De acordo com Berkenbrock (1998),


provavelmente vem de candom, uma espécie de tambor. Mas a terminação blé não é
conhecida nas línguas sudanesas, como o yorubá. No entanto, encontramos kandombélé em
várias línguas bantu, significando rezar. Além disso, o samba, o jongo, as congadas, a
capoeira de Angola ou do Moçambique também são importantes aspectos de nossa cultura e
que foram trazidos pelos bantus.

De maneira alguma queremos reforçar uma disputa a respeito de qual é o melhor ou o mais
importante legado africano entre nós, principalmente entre os praticantes de candomblés. Isso,
em nada beneficia as religiões de matriz africanas. Pelo contrário. Acreditamos na
importância de todas essas culturas e reforçamos a necessidade de novos e cada vez maiores
estudos sobre o aprendizado de crianças e jovens de terreiros. Tudo é candomblé, sejam as
casas de Angola, Congo, Jeje ou Ketu. A nós, por exemplo, agradaria muito conhecer terreiros
de Angola (que existem muitos no Brasil) e perceber como se aprende o bantu (kibundo e
kikongo, por exemplo). Provavelmente são práticas tão ricas quanto parecidas de
aprendizagens.

577
Dissemos, no início desse nosso texto, que a língua é preservada nas casas de aşé (os
terreiros), mas também não se restringe a seus muros. Sim, há muito tempo e cotidianamente,
usamos diversas palavras de origem banta, fora dos terreiros, sem sequer atentar para esta sua
origem. Palavras como: quitanda, corcunda, carimbo, cachimbo, dengo, cachaça, são todas
bantas e totalmente incorporadas ao nosso português diário. Caçula (o único termo com o qual
chamamos nosso irmão mais novo) é uma palavra banta. Já do yorubá também usamos, por
exemplo, gogó, que veio de gògòngò (pomo de adão), ou jabá, que veio de jàbàjábá (pedaços
de um corte de carne, carne-seca) ou goiaba, que é uma palavra linda e uma fruta deliciosa,
vem de gòba. A história das palavras nos fala da história das sociedades, de suas belezas e
também de seus conflitos.

Há, contudo, uma palavra de origem yorubá, muito importante para nós que achamos
fundamental o combate sistemático contra a discriminação de praticantes de candomblé (seja
qual for sua nação), principalmente contra a discriminação de crianças e jovens nas escolas. A
palavra Fé que designa tantas diferentes formas de sentir-acreditar-explicar-agir e
desencadeia, muitas vezes, tanto ódio contra os candomblecistas (de qualquer origem), vem
de Fé, que em yorubá, significa querer, desejar. Lembremos outra vez da máxima sudanesa a
que já nos referimos aqui: “Se a fala constrói a cidade, o silêncio edifica o mundo”.
Aprendendo com esse ditado africano, dizemos que já falamos muito. Sugerimos um pouco
de silêncio agora.

Referências

ALVES, Nilda. A compreensão de políticas nas pesquisas com os cotidianos: para além dos
processos de regulação. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1195-
1212, out.-dez. 2010

BENISTE, José, As águas de Oxalá. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

__________. Dicionário Yorubá Português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás – um estudo sobre a experiência


religiosa no Candomblé. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares Africanos da Bahia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001

COUTINHO, Eduardo Granja, Velhas histórias, memórias futuras. Rio de Janeiro: Eduerj,
2002.

578
SANTOS, ELBEIN, J. dos. Os Nagôs e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1986.

SODRÉ, Muniz, Claros e Escuros, Identidade, Povo e Mídia no Brasil. Petrópolis:


Vozes,1999.

__________. O Terreiro e a Cidade, a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes,


1988.

Imagens

- Acervo Ìlè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá;

- Stela Guedes Caputo.

579
580
Ciclo do Marabaixo: uma das expressões da religiosidade
afrodescendente no Amapá
Alysson Brabo Antero1

Introdução

O presente artigo versa sobre uma das mais expressivas manifestações culturais e religiosas
do Amapá: o Ciclo do Marabaixo. A despeito de todo imaginário do senso comum que
enxerga o Amapá dentro de um cenário majoritariamente indígena Amazônico, o negro faz
parte da composição étnica desse Estado e sua contribuição está para além da simples
ocupação desse território e servir como mão de obra em trabalhos árduos e pesados. Sua
influência é sentida na formação social, na demografia, na economia, na cultura e na religião
Nilson Montoril (2004).

Com o objetivo de analisar a religiosidade de matriz africana em Macapá, poderíamos partir


nesse estudo investigando as religiões de terreiros como o candomblé que, segundo Decleoma
Pereira (2008), chegou ao Amapá na década de 80 do século passado e atualmente goza de
relativa expressividade, enquanto que a Umbanda, o Tambor de Mina e a Cura já se
encontravam instalados há mais tempo, todas essas formas de culto são expressões da
religiosidade afro-brasileira, sem dúvida. Todavia, optamos por analisar o Ciclo do
Marabaixo, por ser considerado pela maioria dos estudiosos como a mais autêntica
manifestação negra do Amapá, pela qual, julga-se que essa manifestação está carregada de
sentidos simbólicos que dá significado aos seus participantes, representando mais do que
simples identidade étnica, mas, também, orientação, força para viver num mundo em que faça
sentido.

Com a finalidade de verificar também a gênese, a expansão e a ressignificação dessa


manifestação afro-amapaense foi feita uma revisão bibliográfica das pesquisas já realizadas
sobre o Marabaixo e optou-se conceituar religião enquanto sistema simbólico Clifford Geertz
(1978) e movimentos religiosos de matriz africana enquanto formas de manifestações
afrodescendentes que comunica, perpetua e desenvolve as tradições herdadas de nossos
antepassados.

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA. Membro do GP Religiões de Matriz Africana na Amazônia –
GERMAA. Contato: alysson.edu@gmail.com.

581
Acredita-se que a elaboração de estudos a cerca do Ciclo do Marabaixo, além de ampliar o
conhecimento disponível sobre esse movimento afro-amapaense, contribuirá para uma maior
valorização da herança da população negra e afrodescendente na formação histórica e cultural
da sociedade amapaense e, representará um passo a mais em direção ao respeito e à
diversidade religiosa no Amapá.

A presença negra nas terras do Cabo Norte

Localizado geograficamente na região norte do Brasil o atual Estado do Amapá ao longo de


sua história, recebeu diversas nomes: Terras dos Tujucus, por conta da grande presença de
índios dessa etnia; Nueva Andaluzia, denominação espanhola ao se referir a Amazônia
incluindo o Amapá; Guiana Brasileira, para se contrapor a Guiana Francesa; Terra do
Contestado, em virtude da disputa franco-lusitana; Capitania do Cabo Norte, por parte de
Portugal, Território Federal do Amapá, quando desmembrou-se do Estado do Pará em meado
do século XX; e, Estado do Amapá, pela constituição de 1988.

Segundo Fernando dos Santos (1994) as terras que hoje compõem o Amapá foram extremante
disputadas por várias nações europeias e a presença de africanos em solo amapaense se deu
inicialmente por ingleses, franceses e holandeses. Pereira (2008) citando Vicente Salles,
afirma que a presença negra nas terras do Cabo Norte data do século XVII, introduzidos por
holandeses e ingleses. Já sobre a liderança de Portugal a inserção do negro ocorreu a partir do
século XVIII.

Fernando Canto (1998) expõe que até o ano de 1738 havia nesse território apenas um
destacamento militar português. Em 1751 inicia-se um processo de colonização, coordenado
pelo então governador do Grão-Pará: Francisco Xavier, a mando do governo de Portugal que
determina a criação de vilas e povoamentos em suas colônias. Em 1758 é fundado a Vila de
São José de Macapá.

Para Verônica Luna (2011) a lógica de fundação de vilas e povoamentos a partir do governo
Português visava dentre outros objetivos conter o avanço de outras nações sobre o território e
ao mesmo tempo manter o controle dos de dentro a partir das decisões dos que estão fora
(Portugal), esse raciocínio invisibilizou a presença de nativos e negros como indivíduos que
construíram o lugar.

582
Conforme a região do Cabo Norte ia sendo povoada pelos europeus, sobretudo pelos
portugueses, levas de negros provenientes de diversas etnias trazidos de províncias brasileiras
e de colônias portuguesas estabelecidas na África iam construindo esse território, o contato de
negros de diferentes etnias e nações foi inevitável. Para Luna (2011) o trânsito e
possivelmente as troca de informações entre negros fugitivos (até de outras nações, chamados
por ela de trânsfugas, provenientes da Guiana Francesa e Holandesa, principalmente) era
comum.

Luna (2011) argumenta como os nativos rejeitavam aceitar a condição de submissão que o
projeto de povoamento previa e com a construção da Fortaleza de Macapá (maior fortificação
portuguesa na Amazônia), a vinda de africanos para as terras do Cabo Norte foi intensificada.

Em terras estranhas europeus e africanos entram em contato com as populações autóctones e


como em toda colônia de Portugal a religião católica foi imposta como oficial, sendo que
índios e negros deveriam se converter ao cristianismo. A pesar disso, manifestações religiosas
tidas com predominância indígena e africana conseguiram sobrevir e na atualidade são vistas
como formas de resistências da ancestralidade de índios e negros, o Sahiré, o Batuque e o
Marabaixo são demonstrações dessa sobrevivência no Estado do Amapá.

Significado do termo Marabaixo

Quanto à denominação do termo Marabaixo não há unanimidade, entretanto, expomos três


explicações mais correntes sobre o significado dessa palavra.

Uma das explicações diz que o termo Marabaixo tem origem árabe (marabit) que significa
sacerdote dos malês2. Argumenta-se que das 160 famílias que se estabeleceram em Nova
Mazagão (o termo faz referência a Mazagão na África, colônia portuguesa conquistada pelos
Mouros no século XVIII), vieram negros provenientes de nações circunvizinhas de Mazagão
(África) especificamente do Império Sudanês que desde o século XVI já vinha sofrendo as
influências do Islamismo, Canto (1998).

2
Malê, forma de culto que surge na África Ocidental do entrechoque do islamismo com as religiões nativas, a
partir do século XVI (CANTO, 1998, p. 19).

583
Outra argumentação faz referência aos porões dos navios que atravessavam o Atlântico cheios
de negros, mar a baixo, Pereira (1951). Por fim, há quem defenda que o termo alude aos
negros que desciam os rios da Amazônia em canoas a cantar, R. Negrão (1990).

Gênese, expansão e a ressignificação do Marabaixo

Segundo Sheila M. Accioly e Sandro G. de Salles (2005) há registro sobre a ocorrência de


Marabaixo nas terras do Cabo Norte, nos dois núcleos de povoamento: Macapá e Mazagão, já
em 1792. Nunes Pereira (1951), Fernando Canto (1998) e Wanda Lima (2011), citam como
registro mais antigo do Marabaixo o final do século XIX: o Jornal Pinsonia, em 1899. O
jornal traz um artigo que tece um amplo comentário sobre o Marabaixo que passa pela
descrição da festa em si, seu caráter anual e o posicionamento da igreja sobre tal evento.

Pereira (1951) destaca que por conta da escassez regional e nacional de literatura informativa
sobre o Marabaixo é impossível datar a origem exata dessa manifestação. Entretanto, expõe
que o Marabaixo chegou até nós proveniente de três fontes de emoção e religiosidade: o
conquistador luso, o escravo negro e o índio, mas em Macapá, o elemento africano passou a
dominar o Marabaixo.

Lima (2011) defende que a origem do Marabaixo está associada à festa do Divino Espírito
Santo. Essa festa chegou ao Brasil introduzida pelas ordens religiosas na época da
colonização e ainda hoje é realizada em vários Estados brasileiros. A festa em solo brasileiro
se mesclou com elementos de outras culturas não europeia. Diante disso, segundo a autora, o
modelo festivo ao Divino trazidos pelas ordens religiosas para a América vai se consolidando
em terras brasileiras celebrando as concepções da religião cristã, representadas pela igreja
católica e, ao mesmo tempo, sendo influenciada por outros elementos não europeus.

Por outro lado, Lima (2011) expõe também a possibilidade da Festa do Divino ter sido
introduzida nas terras do Cabo Norte pelas famílias transportadas de Mazagão (África) e Ilhas
dos Açores para povoarem a Vila de Mazagão na segunda metade do século XVIII. Se esta
hipótese se confirmar, o Marabaixo teria surgido primeiro em Mazagão? Ou Macapá, como
primeiro núcleo populacional implementou a prática do Marabaixo? Infelizmente devido as
raras fontes documentais não há como registrar com exatidão onde teria primeiro se
manifestado essa tradição.

584
Entretanto, outra questão surge ainda com relação a origem dessa manifestação: a Festa do
Divino Espírito Santo foi transformada em Marabaixo por acréscimo de valores populares,
especificamente de tradição africana, que com o tempo se sobrepôs? ou o Marabaixo, com
características preponderantes afro-brasileiras, foi inserido na liturgia da Festa do Divino
Espírito Santo, por ação dos padres? Pereira (1951) deixa transparecer que os religiosos
aproveitaram o Marabaixo para o serviço da fé cristã, ou seja, os padres acrescentaram à
liturgia católica valores afro-brasileiros como: dança, tambor, alegria.

[...] entenderam os missionários aproveitar o Marabaixo no serviço da fé cristão,


principalmente nas solenidades que exaltavam o poder do Divino Espírito Santo. Os negros
transplantados lhes emprestaram a eloquência dos seus instrumentos, o ardor de seu sangue,
a exuberância de sua alegria, a resistência de seus músculos, a expressão mais pura de sua
arte e de sua religião (PEREIRA, 1951, p. 110).

Houve então, para Pereira (1951) uma inserção de elementos negros na liturgia da Festa do
Divino Espírito Santo, por iniciativa dos próprios padres. Não podemos esquecer, todavia, que
esse acréscimo irá trazer implicações posteriores: perseguição e conflito das lideranças
religiosas católicas que desejarão expurgar da Festa do Divino valores não europeus e uma
certa autonomia da população afrodescendente em continuar realizando a Festa do Divino,
doravante denominada Marabaixo segundo Lima (2011), com todos os acrescimentos
populares independente do aval e do controle da igreja.

Sendo assim, essa abordagem interpretativa de Pereira (1951) que os padres inseriram na
Festa do Divino elementos da tradição indígena e africana, remonta a origem primária do
Marabaixo à tradição da liturgia católica, tal como argumenta Lima (2011), mas com o tempo,
especificamente em Macapá, essa festa vai se reinventando se ressignificando. Essa hipótese
dialoga com as idéias de Carlos Alberto Steil (2001) sobre o catolicismo popular:

[...] as tradições culturais não são simplesmente transportadas de um contexto para outro, e
que toda transposição é sempre uma reinvenção. O catolicismo que se enraíza no Brasil está
marcado por sua origem europeia, mas também pelo encontro que essa tradição teve aqui
com as tradições africanas e indígenas (p. 14).

Fundado nessa ideia, poderíamos dizer ainda que o Marabaixo realizado no Estado do Amapá
representa uma espécie de Catolicismo de Preto, Henrique Cunha Jr (2001), ou seja, uma
religiosidade com característica de matriz africana, mas que mantém ao mesmo tempo,

585
práticas da liturgia católica, sem que isso traga sentimento de culpa ou desconforto aos
participantes, antes, reza e festejos acontecem harmonicamente.

Lima (2011) expõe que no início do século XX a organização do festejo de Marabaixo em


Macapá está sob a responsabilidade da família de Julião Ramos. Por essa época, Canto (1998)
apresenta um documento escrito por Zacarias Leite, aluno do Padre Júlio Maria Lombard,
como registro histórico do Marabaixo em Macapá, o documento relata a intolerância da igreja
para com os festejos de Marabaixo.

Ocorre em seguida um período de silêncio e o Marabaixo reaparece, pelo menos na literatura,


em meados do século XX, dessa vez protagonizado por Julião Ramos considerado líder do
Marabaixo no período. Em 1943, através das Cartas Magnas o Amapá é desmembrado do
Estado do Pará e é constituído Território Federal. No mesmo ano Janary Gentil Nunes é feito
pelo então presidente da República Getulio Vargas o primeiro governador do Território
Federal do Amapá. Com o objetivo de urbanizar a então Vila de Macapá, inicia-se um
processo de desocupação das populações que ali habitavam, na sua maioria afro-brasileiros,
para áreas periféricas da cidade.

Segundo Pereira (1951), a desocupação ocorreu de maneira pacífica por meio do intermédio
do mestre e líder Julião Ramos, que convenceu os moradores que a desocupação pacífica e
aceitar as terras ofertadas como forma de indenização era o melhor para comunidade.

As famílias foram então remanejadas na sua maioria para as terras do Laguinho (atualmente,
bairro do Laguinho), porém, algumas preferiram seguir para as terras que se resolveu chamar
Favela por conta das montanhas que existiam nessa área (hoje, bairro do Santa Rita).

Essa desapropriação da comunidade negra do centro de Macapá além de beneficiar o recém


criado Território Federal, solucionou a questão dos padres terem que fechar a porta da igreja
matriz para impedir a realização dos festejos do Marabaixo, fato que já vinha acontecendo há
algum tempo conforme relata Pereira (1951, p. 100): “A gente do Marabaixo já não entra,
mesmo assim, livremente, na igreja matriz, ali realizando uma série de cerimônias e elevando
cantos ou cantigas tradicionais”.

Lima (2001) expõe, porém, que esta questão do conflito da igreja católica com o Marabaixo
na verdade foi apenas remanejado do centro para as igrejas dos bairros onde essa
manifestação passou a acontecer.

586
Após alguns anos, o Ciclo que acontecia em um único local (Centro de Macapá) começou a
ser praticado nos bairros e localidades para onde os moradores foram remanejados, a saber
Laguinho e Favela. Contemporaneamente o Ciclo do Marabaixo acontece em cinco pontos
diferentes de Macapá e mais na comunidade rural de Campina Grande. Para Egídio Gonçalves
e Carlos Piru (2012) o que era para representar o fim da manifestação serviu para expandir.

Esta atitude (deslocamento dos moradores da área central de Macapá para lugares mais
distantes) dividiu famílias, mas fortaleceu ainda mais os laços culturais, pois naquele
momento, o tocar das caixas de marabaixo, não ecoavam mais em um só lugar, ecoavam,
agora, em dois, no Laguinho e na Favela (p. 9).

Ciclo do Marabaixo: uma das expressões da religiosidade afrodescendente no Amapá

Inicia-se esse tópico partindo do pressuposto que nas terras do Cabo Norte se desenvolveram
inúmeros movimentos culturais e religiosos de origem africana, como: o Batuque – dança
afro-religiosa praticado principalmente nas comunidades rurais do Estado. Geralmente é
realizado para homenagear algum santo da tradição católica, padroeiro da localidade. O
Zimba – dança de matriz africana parecida com o batuque e praticado principalmente no
município de Calçoene. O Sahiré – manifestação ligada a liturgia católica com movimento e
colorido das procissões. Teve influência preponderante de elementos indígenas. Na atualidade
é realizado apenas no Município de Mazagão, sem forte expressão popular. E o Marabaixo,
considerado pela maioria dos estudiosos a mais autêntica manifestação negra do Amapá.

O Ciclo do Marabaixo é um evento anual que ocorre paralelo ao calendário pascal da igreja
católica, no entanto, a ele não se restringe. Considera-se que o Ciclo, praticado na Capital do
Estado do Amapá, numa espécie de bricolagem amálgama elementos e símbolos que hora se
aproxima das religiões de matriz africana noutro ao catolicismo. Diante disso, a partir do
trabalho de Videira (2009), buscou-se identificar princípios e componentes presentes nessa
manifestação que, de alguma maneira, expressa traços da matriz religiosa africana no Amapá.

Comecemos então pela ancestralidade, fato evidenciado por Videira (2009) no Ciclo do
Marabaixo de Macapá

A ‘Nação Negra’, como é intitulado o bairro do Laguinho por seus moradores, recebeu a
Dança do Marabaixo como herança de seus pais, avós e familiares em geral, que, por sua
vez receberam de seus ancestrais africanos, como enfatizam os mantenedores e brincantes

587
para o fazerem com alegria, orgulho e respeito e ainda reverenciar a história, seus santos,
seus antepassados, sua crença, seus símbolos e legar toda essa riqueza cultural e históricas
às futuras gerações (p. 99).

Percebe-se pelo descrito que a ancestralidade é um princípio presente nessa manifestação.


Pelo termo entende-se o respeito e o valor que as atuais gerações atribuem ao passado que
remete à África, ou seja, o Ciclo realizado hoje é uma tradição como uma ascendência
histórica afro-brasileira. Sua manutenção representa uma prática religiosa historicamente
ligada à população de maioria negra em Macapá, que vem mantendo vivo os lamentos, o
orgulho e a fé de nossos ascendentes de origem africana.

Noutro momento a autora destaca outro princípio, ligado a ancestralidade, a saber, a oralidade

O Marabaixo é uma dança afrodescendente em que dançam adultos, jovens e crianças entre
homens e mulheres. Não há limites de participantes e se aprende a dançar e a tocar
dançando e tocando na comunidade luguinense. Em alguns casos as pessoas mais antigas
sentam com as crianças para ensinar-lhes sobre a tradição, seus princípios e sentidos. O
conhecimento sobre a dança e a história do Marabaixo é transmitido por meio da oralidade
pelos mais antigos aos mais jovens (p. 101).

As expressões religiosas de matriz africana não possuem um texto base como as religiões do
livro (judaísmo, cristianismo e islamismo). O conhecimento, a tradição, a história é repassada
oralmente de geração para geração. A oralidade então é outro princípio presente no
Marabaixo conforme pode ser depreendido do texto citado. As gerações mais velhas através
da voz, da memória, da dança, da música ensinam as mais novas. Esse ensinamento ocorre na
vivência da tradição, isto é, nos momentos ritualísticos que compõem o Ciclo do Marabaixo.
À medida que crianças e jovens se envolvem, eles aprendem a valorizar cada momento do
Ciclo como parte integrante de suas histórias de vida. Diante disso, a oralidade no Marabaixo
além de mostrar uma identidade étnica, relembra o passado, dá sentido ao presente e abre
perspectiva para o futuro.

O cooperativismo é mais um princípio citado por Videira (2009) como elemento intrínseco ao
Marabaixo

Por isso, os festeiros quase sempre são membros da família de ‘Tia Biló’, muito embora,
ela mesma até desejasse que outras pessoas se apresentassem como interassadas em ser o
festeiro/a, porque a festa exigia muito esforço para ser realizada, conforme manda a
tradição. Seu Pavão me disse que quando ele é o festeiro do ciclo do Marabaixo recebe

588
bastante ajuda da comunidade com alimentos, fogos, cachaça, condimentos e o que for
preciso para realizar a festa. Considera importantíssimo o apoio da comunidade por causa
do alto custo da brincadeira (p. 129).

Compreende-se a partir da citação a existência de uma parceria, cooperação entre os


organizadores (festeiro/a) e brincantes de Marabaixo. O Ciclo é um evento longo, envolve
momentos lúdicos e religiosos, subtende-se que o festeiro responsável pela organização tenha
um gasto para além de sua renda. Mas é aqui que se visualiza o princípio do cooperativismo, a
comunidade se envolve, ajuda, colabora, contribui para realização do evento. Acredita-se que
a tradição não sobreviveria se não fosse a capacidade de cooperação da comunidade onde o
Ciclo acontece. Na atualidade, Videira (2009) diz que com o apoio do Governo esse princípio
ficou mais raro de se ver, por conta do recurso financeiro repassado aos organizadores do
evento.

Outro elemento descrito pela autora no Ciclo do Marabaixo é a circularidade.

Figura 1 – Princípio da Circularidade no Ciclo do Marabaixo 3

A roda tem um significado muito grande, nela não há hierarquia, todas as pessoas podem se
ver e transmitir energias positivas. A roda está presente em várias manifestações afro-
brasileiras: na capoeira, no samba, no tambor de crioula, na umbanda, no Candomblé e
também no Marabaixo do Estado do Amapá. Tendo os tocadores de caixa e as cantadeiras ao
centro, em volta forma-se um grande círculo onde crianças, adultos e anciões põem-se a

3
VIDEIRA, 2009, p. 106).

589
dançar e cantar num clima de muita alegria por está perpetuando uma tradição deixada pelos
nossos antepassados.

O rufar dos tambores é outro elemento que concorre para definir o Marabaixo como símbolo
de expressão da religiosidade afrodescendente. Videira (2009) expõe

Na dança do Marabaixo o ritmo é marcado e ditado pelas caixas [...] o toque se dá da


seguinte forma: a baqueta que é tocada com a mão esquerda chama: ‘ta...ta’ e a baqueta
que é tocada com a mão direita, responde ‘tum...tum’. As duas partes juntas viram o toque:
‘tá...tá...tá...tum...tum’ (p. 109).

Tocadas por homens e mulheres o som da caixa de Marabaixo é um dos principais elementos
que faz esta manifestação ser associada às matrizes africanas, incluindo as religiões de
terreiro. Muito embora, segundo Pereira (2008), alguns participantes rejeitem essa associação.
Esta autora, valendo-se do depoimento de uma marabaixista adepta de religiões de terreiro,
explica que os atabaques e tambores nas religiões de terreiro têm fundamento, ou seja, são
tocados com um propósito: intermediar, atrair os orixás. Esse fundamento, não existe no
Marabaixo, em que as caixas são tocadas com o fim de louvar e agradecer ao santo
homenageado e ao mesmo tempo animar os participantes. Videira (2009), entretanto, não
desassocia o tambor de Marabaixo com princípios semelhantes às religiões de terreiro: “Os
tambores africanos são vivos e servem para chamar os espíritos dos antepassados” (p. 99).
Discordância a parte, o fato é que o toque de tambores presentes no Ciclo do Marabaixo
expressa traços da religiosidade afrodescendente.

Por fim, queremos destacar outro elemento presente no Marabaixo que o identifica com a
religiosidade afro-brasileira, a ludicidade. Vejamos o que Videira (2009) traz sobre isso

O festejo do Ciclo do Marabaixo é dividido em duas partes: o lado religioso e lúdico. O


primeiro envolve as ladainhas – nove para cada santo (Divino espírito santo e Santíssima
Trindade), rezadas em latim popular, missas oferendas e promessas. O segundo é composto
da dança propriamente dita, regado a gengibirra, cozidão (comida típica), cantigas, dança e
instrumento de percussão (p. 101- 102).

Apesar da divisão proposta pela autora, sabe-se que para os participantes, o momento lúdico
não ocorre como elemento a parte do Ciclo, ou seja, não há uma dicotomia religioso-profano,
antes, a presença de elementos religiosos com lúdicos fazem parte do mesmo ritual, reza e
festejos acontecem harmonicamente. Diríamos então que a ludicidade é parte intrínseca ao
Ciclo do Marabaixo, e o caracteriza como expressão da religiosidade de raiz africana.

590
Por todo o exposto, considera-se que o Ciclo do Marabaixo realizado em Macapá, em
detrimento a toda uma exterioridade católico-romana, muito visível por sinal, traz na sua
essência princípios e elementos que o identificam com a matriz religiosa africana.
Concomitantemente, acreditamos, conforme Geertz (1978) que todos esses componentes
imbricados atuam como sistemas simbólicos que modelam o comportamento de seus
participantes (re)criando seus ethos e (re)definindo suas visões de mundo, alterando o
panorama do senso e comum e como última consequência lançando luz sobre sua existência.

Considerações finais

Diante da possibilidade de olhares que o fenômeno do Marabaixo permite-nos fazer, tentou-se


nesse artigo realizar um resgate histórico dessa manifestação, além de identificar e analisar
princípios e elementos de matriz religiosa africana presente no Ciclo que o torna (ao lado das
religiões de terreiro) símbolo de expressão religiosa afro-brasileira no Amapá.

Julgamos que Ciclo de Marabaixo realizado em Macapá-AP, pode ser considerado uma
tradição secular, que vem se mantendo vivo entre os macapaenses, por empenho de certas
famílias que se autoimpõem a tarefa de dar continuidade a tradição. Nesse processo a tradição
vem se recriando e se ressignificando de acordo com os momentos históricos, mesclando em
seus rituais elementos católicos e da cultura popular de raiz africana.

Mesmo com toda exterioridade católico-romana foi possível perceber que no Ciclo do
Marabaixo, há inúmeros princípios e elementos (ancestralidade, oralidade, cooperativismo,
circularidade, toque dos tambores, ludicidade) que o associam às matrizes religiosas africana,
o que o torna um legítimo representante da religiosidade afrodescendente no Amapá.

Todos esses componentes por si só já representaria o Marabaixo como uma das expressões
religiosas afrodescendentes no Amapá, todavia, é possível acrescentar ainda a favor dessa
idéia: o tratamento discriminatório que o Marabaixo recebeu e ainda recebe de certos setores
da sociedade e da igreja católica (e na atualidade das igrejas evangélicas); o caráter de
resistência da manifestação e; as origens provenientes da diáspora negra africana.

591
Referências

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Mundo. O Rufar da Cidadania. Macapá: Secretaria de Estado de Política para o
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étnica do negro amapaense. Fortaleza: Edições UFCE, 2009.

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Folkcom 8a, 2005. Disponível em
<http://www.academia.edu/644393/MARABAIXO_IDENTIDADE_SOCIAL_E_ETNICIDA
DE_NA_MUSICA_NEGRA_DO_AMAPA>. Acesso em 28 de nov. 2010.

592
593
Corpo e saúde: uma perspectiva comparada entre religiões afro-
brasileiras e neopentecostais
Érica Ferreira da Cunha Jorge1

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar em perspectiva comparada as noções de pessoa, corpo
e saúde para as religiões afro-brasileiras e religiões neopentecostais. Sabe-se que atualmente
essas duas grandes vertentes religiosas, que antes de serem blocos monolíticos, são bastante
diversas em seu interior, configuram-se praticamente em campos opostos, ainda que muitas de
suas práticas rituais se semelhem.

Há aproximadamente cem anos atrás dizer que as religiões afro-brasileiras e as religiões


neopentecostais se proliferariam tão ou mais que o catolicismo pareceria uma previsão falsa.
Mas já na década de 1950 segundo Pierucci (2004) a sociologia da religião praticada no Brasil
era uma sociologia do catolicismo em declínio. Ainda que exista sempre uma rejuvenecida
militância católica com novas propostas e discursos, as várias edições dos censos desde 1940
só reforçam que o catolicismo veem perdendo adeptos constantemente. Tal tendência do
declínio de religiões tradicionais, porém, parece se expandir para além das fronteiras
nacionais, abrangendo outros países, como o hinduísmo na Índia.

O declínio do catolicismo no Brasil abre espaço para uma janela de novas oportunidades neste
cenário de ofertas religiosas. As duas vertentes religiosas que são foco do presente artigo
acabam ganhando força, principalmente as neopentecostais, cujo discurso se apoia na negação
a todas as crenças afro-brasileiras. Trata-se de religiões em que o contra-discurso, que se faz a
partir dos próprios elementos afro-brasileiros, passa a ser o próprio motivo de sua existência.
Cabe ressaltar que o neopentecostalismo é resultado de um processo de desenvolvimento
histórico da teologia e doutrina do pentecostalismo, diferenciado-o deste último pela ênfase
no dom da cura e pelas estratégias de conversão para atingir maior número de fiéis
(MARIANO, 1999).

Uma das grandes interrogações sobre esse combate entre religiões afro-brasileiras e
neopentecostalismo, porém, põe em dúvida o motivo pelo qual as religiões neopentecostais
1
Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Professora-pesquisadora da Universidade Aberta do
Brasil (CAPES) e da Faculdade de Teologia Umbandista. Contato: ericafcj@gmail.com.

594
não tenham enfrentado o catolicismo2 diretamente e optado por outro embate. A explicação
mais plausível é de que “o ataque às religiões afro-brasileiras [...] é consequência do papel
que as mediações mágicas e a experiência do transe religioso ocupam na própria dinâmica do
sistema neopentecostal em contato com o repertório afro-brasileiro” (SILVA, 2007). Será
justamente os dois itens supracitados, a saber, as mediações mágicas e o transe, que norteiam
os conceitos de pessoa, corpo e saúde para as religiões afro-brasileiras, as quais serão
analisadas no item a seguir.

Religiões Afro-brasileiras: arsenal mágico religioso

Antes de iniciarmos nossa abordagem faz-se necessário pontuar que falar com religiões afro-
brasileiras é abarcar um vasto conjunto de crenças e práticas que se espalham pelo território
nacional e são cultuadas sob diferentes formas, as quais se adaptam ao contexto histórico-
cultural de cada região. Esse fenômeno foi conceitualizado por multirreferencialismo das
religiões afro-brasileiras (CARNEIRO E RIVAS, 2012). Não seremos capazes, pois, de
enfrentar uma pluralidade de maneiras de se entender e manifestar os conceitos de pessoa,
corpo e saúde neste universo, optando por selecionar apenas o candomblé (especificamente o
jeje-nagô) pelo amplo referencial bibliográfico que nos facilita estabelecer marcos teóricos
entre esta vertente e a neopentecostal.

É fundamental pontuarmos que as fronteiras estabelecidas historicamente entre as várias


religiões no Brasil resultaram na dicotomia das categorias magia e religião3 (Montero, 2006).
O cristianismo forjou-se o modelo de religião, por excelência, sendo que tantas outras, dentre
as quais destacamos a produção do saber popular afro-brasileiro, foram categorizadas ao
campo do mágico. No Brasil republicano encontramos registros do embate criado entre alguns
campos, como, por exemplo, o da medicina legal, o universo jurídico e policial versus a
multiplicidade de agentes civis e religiosos. Esse embate foi estudado também por Giumbelli
(1977) o qual atestou o enquadramento legal diferenciado para os agentes que praticavam
magia e os que praticavam religião. Montero afirma igualmente que este embate marcava a
produção de sujeitos passíveis, dóceis, domesticáveis, que fossem enquadrados às
normatividades e às moralidades cristãs. (MONTERO, 2006). Nesse sentido, vemos que os
2
Ainda que os dados do Censo apontem para o declínio do catolicismo desde 1940, em 2010 o número de
adeptos ainda é de XXX, o que equivale a dizer que o catolicismo é a religião predominante.
3
A dicotomia magia e religião há muito é discutida em nível antropológico. Para uma abordagem recente sobre a
mesma a partir dos estudos durkheimianos ver Pinezi e Jorge (2012).

595
sujeitos que praticavam macumbas, cabulas, feitiçarias, encantarias, culto de nação africano
foram vistos como perigosos pois iam contra a ordem religiosa estabelecida como padrão.

Para o presente trabalho não nos cabe o aprofundamento da discussão teórica sobre magia e
religião. Apenas recuperamo-la, pois sabe-se que as religiões afro-brasileiras se configuram
pelo imbricamento dessas categorias e o pensamento mágico-religioso existente estabelece
formas particulares de se pensar as noções de pessoa, corpo e saúde.

Inicialmente, apontaremos algumas definições para a religião Candomblé, para a seguir


discutir sua visão sobre tais conceitos. Segundo Prandi (2004) o candomblé é a religião
brasileira dos orixás e de outras divindades africanas que se constituiu na Bahia no século
XIX. Barros e Teixeira (2000, p. 103) caminham para uma denominação que elucida a
perspectiva de Prandi, entendendo a religião como uma reelaboração dos cultos de nação
existente em África: o candomblé pode ser definido como uma manifestação religiosa
resultante da reelaboração das várias visões de mundo e de ethos provenientes das múltiplas
etnias africanas que, a partir do século XVI, foram trazidas para o Brasil. Marinho (2010)
esclarece que a religião dos orixás, voduns e inkices têm origem em tempo imemorial e se
expandiu a partir da costa oeste do continente africano, sendo as práticas dos atuais países de
Gana, Benin, antigo Daomé, Nigéria, Congo, Angola, Camarões, e Sudão as principais
referências do que veio a ser conhecido como candomblé da Bahia. Já Vagner Gonçalves da
Silva, preocupado com os elementos centrais da tradição do candomblé o definiu como “uma
religião sacrificial e de transe”. Os dois elementos apontados por Silva só possuem razão de
ser pois que estão inseridos dentro de um processo fundamental para o candomblé: a
iniciação4.

Fazer o santo é sinônimo de iniciação no candomblé, processo de construção da pessoa em


relação com os espíritos (GOLDMAN, 1985). Assim, a representação social da pessoa nos
terreiros de candomblé gira em torno do processo iniciático. Cossard-Binon (1970) acrescenta
que a iniciação e vivência nos terreiros acabam por instaurar lentamente uma visão de mundo
e uma maneira de ser peculiares. Ou seja, ainda que os adeptos estejam inseridos em
sociedades urbanas possuidoras de uma lógica e ritmos de vida próprios, a dinâmica interna
dos terreiros de candomblé possibilitam que o indivíduo crie seus próprios laços de pertença,
representação e significação da realidade.

4
A iniciação, segundo Sansi (2009) é o processo pelo qual a mãe-de-santo ou pai-de-santo “põe a mão na
cabeça”, mostra os segredos do culto, e dá os elementos necessários para que a pessoa “assente” os santos.

596
O candomblé é uma religião estruturada a partir dos vários rituais que funcionam em uma
lógica de resgate da relação perdida ou cortada entre o orun e o aiyê. Todos os processos
iniciáticos são estabelecidos nestes rituais, cada qual com sua função na dependência da fase
em que o iniciante se encontra. Todos os rituais trabalham com a noção de axé e é esta, em
última instância, que ampara os conceitos de saúde e doença para os adeptos do candomblé.
Axé pode ser compreendido como princípio e poder de realização. Possui um papel
fundamental nas religiões afro-brasileiras, pois está atrelado à condição de vida e felicidade
terrena (RIVAS NETO, 2012).

Elbein dos Santos (2007) percebe a importância do conceito do axé. Para a autora, axé seria a
força vital que sustenta o mundo e direciona a cosmovisão das religiões de influência africana.
O axé e a ciência, no sentido de capacidade, em manipulá-lo são determinantes na existência
de um terreiro e sua linhagem de filhos de santo. Prandi apresenta um panorama do conceito
de axé bastante elucidativo:

Axé é força vital, energia, princípio de vida, força sagradas dos orixás. Axé é o nome que se
dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas
folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa-sorte e
sinônimo de amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os
deuses quando estes são assentados, fixados nos seus altares particulares para serem
cultuados. São as pedras (os otás) e os ferros dos orixás, sua representações materiais. Axé
é carisma; é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se
repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados (1991, p. 103).

Para que esta ciência do axé se desenvolva e perpetue, mas do que o manuseio mágico
religioso, é necessário transmiti-lo a quem de direito na ótica do sacerdote ou sacerdotisa que
está a frente do terreiro, pois eles são a própria tradição viva. Aí entra a oralidade. Aos
poucos, a tradição vai sendo transmitida ao adepto que passa a criar uma outra persona. No
candomblé, o indivíduo constrói sua pessoa aos poucos, a cada ritual, a cada feitura, a cada
elemento que vai sendo posto em seu ori, em seu bara, de acordo com suas particularidades e
com seus pais genitores (orixás).

A noção de corpo, portanto, está intimamente vinculada às tradições mítico-religiosas que, no


caso do candomblé é proveniente das histórias e conhecimentos trazidos na época da diáspora.
Há uma série de mitos existentes nos itan ifás que demonstram a importância do corpo e sua
relação com a saúde. Talvez isto fique mais claro se contextualizarmos isso no continente
africano em suas várias regiões, pois sabe-se que as condições econômicas eram insuficientes

597
para uma boa qualidade de vida. Muitos dos mitos enfatizam a importância da fartura
espiritual, como os de Ossaim, orixá das ervas medicinais e rituais (BARROS; NAPOLEÃO,
2009).

Religiões neopentecostais

O IBGE divulgou em 2010 o último censo, o qual apresenta vários elementos para
analisarmos a face da sociedade brasileira. Dentre eles, destacamos os dados sobre as
religiões, cujos resultados indicam que a profecia de Pierucci (2004) estava certa, o país está
se destradicionalizando, isto é, o Brasil está ficando menos católico. Como reforço desta
assertiva, fizemos uma breve busca nos títulos dos artigos e reportagens de acadêmicos sobre
religiões e o censo, publicados após 2010. Grande parte deles enfatiza os dados a varejo5,
ressaltando os números absolutos do decréscimo do catolicismo e do crescimento das igrejas
evangélicas. Vejamos alguns deles: Os Pentecostais Serão Maioria no Brasil?, “A demanda
por deuses”: religião, globalização e culturas locais, Devagar e sempre, com fé em Deus:
evangélicos cearenses nos censos demográficos, Rebanho não tão unânime, A avalanche
evangélica, A relevante queda do crescimento evangélico, Censo 2010 é uma boa
oportunidade para a Igreja Católica.

Outra busca foi em reportagens veiculadas por grandes meios de comunicação, alguns dos
títulos foram Censo: Igreja católica tem queda recorde no percentual de fiéis, Igreja
Universal perde adeptos, o Poder de Deus ganha, Pela primeira vez o número de católicos
cai, Universal perdeu 10% de fiéis em dez anos, A avalanche evangélica. Os nomes são
bastante emblemáticos e falam por si só.

Mas, o que significa o movimento de destradicionalização para o campo religioso brasileiro?


Em linhas gerais, podemos dizer que a cada dia o catolicismo perde seu número de fiéis, as
igrejas evangélicas crescem vertiginosamente e as religiões afro-brasileiras mantiveram seus
adeptos, sem grandes perdas ou ganhos, o que na verdade, representa bastante já que nos
últimos censos estas sempre apresentavam números em declínio.

Ressaltamos que o crescimento das igrejas evangélicas (com a devida compreensão de que
este termo engloba protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais) ocorre em uma

5
ALTMANN, Walter. Censo IBGE 2010 e religião. Horizonte, v.10. n.28, Belo Horizonte, 2012.

598
sociedade em transformação, vide a inserção do Brasil em plano internacional. Porém, ainda
que o país tenha modificado sua atuação, há muitas taxas elevadas de desemprego, falta de
segurança, problemas com a saúde pública, educação, moradia. Todos estes itens listados
anteriormente são prezados por todos os brasileiros e muitos destes não fazem uso, pela
vertiginosa desigualdade social. As religiões evangélicas e, especialmente, as neopentecostais
apresentam-se, então, como um bom caminho já que grande parte de sua estrutura reveste-se
de um aura de misticismo, apresentando em seus cultos, por exemplo, um apelo forte à evasão
de sentimentos.

Seria necessário um trabalho mais aprofundado que demonstrasse a relação direta entre
classes socioeconômicas e religiões neopentecostais. Para o presente trabalho interessa-nos a
reflexão sobre a forma de interpretação do corpo e da saúde, a qual só é possível de
compreender a partir de seus rituais.

Diferentemente dos protestantes históricos, cuja doutrina é mais racional e rotinizada, os


neopentecostais utilizam do carisma como elemento central e, principalmente, do discurso da
guerra espiritual contra o mal. As representações em torno do corpo como pecado ficam mais
evidentes nas denominações históricas como, por exemplo, entre os metodistas, luteranos e
batistas. O foco dos neopentecostais, entretanto, é a batalha maniqueísta entre bem e mal. É
em torno dessa antítese que toda a estrutura de culto e todos os discursos de pastores são
pensados.

O posicionamento das religiões neopentecostais face às várias denominações evangélicas


pode ser, assim, resumido:

Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua
insistência na repetição da experiência do Pentecostes que o protestantismo recusa. O
pentecostalismo posterior, cuja explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura
divina, o que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores movimentos, que têm
recebido o nome genérico de neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o
protestantismo. Qualquer observador atento e conhecedor do protestantismo sabe que
nesses movimentos a Bíblia foi relegada a espaço secundário, o ‘livre exame’ cedeu lugar
ao uso mágico da mesma e assim por diante. Surgiram práticas mágicas, objetos com
poderes especializados, correntes espirituais e mesmo alguns deuses estranhos ao
cristianismo como, por exemplo, o ‘deus da corda’, ou do ‘nó’, especializado em amarrar
ou neutralizar os poderes malignos (os demônios) (MENDONÇA, 2000, p. 96).

599
A explanação de Mendonça sintetiza alguns elementos fundamentais como o reduzido uso da
bília (livro sagrado) e o acentuado uso de recursos mágico-religiosos. Para os neopentecostais
a questão central não é a representação que se faz em torno do corpo, do homem e da mulher.
Das vestimentas, das posturas, do andar. O essencial para esse segmento religioso é a batalha
espiritual e, claro, as exatas colocações de quem pertence a qual lado. Há lados bem
marcados e definidos: o bem, que sintetizamos por aqueles que seguem à risca os preceitos, as
louvações, os rituais. E os do mal, classicamente associados aos demônios, e onde
encontramos o embate com as religiões afro-brasileiras.

Outra prática muito utilizada nos rituais é o uso da ação religiosa intitulada transe, a qual é
bastante conhecida no universo afro-brasileiro e, de certa forma, reatualizada nos rituais
neopentencostais a fim de exorcizar as mesmas entidades que se apresentam na umbanda,
candomblé.

A noção de saúde e de corpo ficam, portanto, claramente associadas ao elementos do corpo


doutrinário e do leit motiv desta teologia, a saber, a incorporação da batalha sagrada nos
corpos biológicos. Isto significa que os adeptos das religiões neopentecostais acabam vivendo
em torno de expurgar os maus espíritos, sejam estes vindos de outras confessionalidades, de
pensamentos e ações negativas. O transe acaba se apresentando como o momento
performático e talvez, junto com a glossolalia (sinal de batismo pelo Espírito Santo), o
principal dos rituais neopentencostais. O corpo é visto

[...] como receptáculo da alma, deve ser cuidado; mas é temporário e, por isso, deve-se dar
maior atenção à alma, que guarda um caráter de eternidade. A corporeidade, entre o grupo
presbiteriano, possui um valor relativizado somente pela presença da alma e, no caso dos
conversos, do Espírito Santo. Cuidar do corpo significa, para os presbiterianos, respeitá-lo
como templo do Espírito Santo. O corpo está relacionado ao futuro celestial, e não ao
presente aqui na Terra. Esse futuro, para os neopentecostais, é visto como distante e a sua
representação é incapaz de produzir completamente um alento para o sofrimento dos fiéis
no tempo presente. Enquanto suportar a dor e o sofrimento, para os presbiterianos, significa
saber aceitar a vontade de Deus, compreender os seus desígnios e fortalecer a alma, para o
grupo da Igreja da Graça, o estado de sofrimento e dor guarda relação direta com os ataques
do mundo dos espíritos malignos. Portanto, vencer esse estado significa ganhar a guerra
espiritual entre o Bem e o Mal (...)Ainda outra representação sobre o corpo pode ser
analisada. Entre os presbiterianos, o corpo, desvalorizado pelo seu caráter mortal em
contraposição à alma imortal, é também o meio pelo qual o pecado se manifesta. Por
definição, o corpo ou a carne consiste, para os protestantes históricos, em algo ruim e
sujeito ao pecado. Somente uma alma purificada mostra-se capaz de tornar o corpo bom,

600
produtor de atos que agradem a divindade. Não por acaso há regras tácitas, e mesmo
explícitas, de como o fiel deve lidar, por exemplo, com a sua sexualidade. Já para os
neopentecostais, por meio do corpo é que se experimentam os prazeres. Claro que há
padrões acerca deles, mas que parecem bem mais flexíveis do que os dos protestantes
históricos. Depois da purificação ritual feita pelo exorcismo, ‘O corpo então se torna um
lugar privilegiado, o ponto de encontro entre o homem e o transcendente, seja esse sagrado
‘bom’ ou ‘mau’’. Assim, o repúdio ao corpo não está presente entre os neopentecostais. No
entanto, o prazer que pode ser vivenciado pelo corpo sujeita-se a restrições claras, que
proíbem o homossexualismo, a prostituição, a utilização de drogas, inclusive o uso de
cigarro, e o excesso de bebidas alcoólicas. Aliás, para esse grupo, é pelo corpo que a alma
experimenta os prazeres. É aqui, na Terra, que o que incomoda o corpo deve ser ‘expulso’,
a fim de o fiel usufruir o que é prazeroso (PINEZI E ROMANELLI, 2003, p. 71-72).

O conceito de saúde ou a forma com que a mesma é vista pelos neopentecostais possui íntima
vinculação com o afastamento ou aproximação dos espíritos malévolos. Ter saúde, na vida e,
inclusive, no próprio organismo biológico depende, também, desta limpeza espiritual.
Guardando as devidas diferenças rituais, os dois setores estudados no artigo fazem uso desta
ação – transe – como norteadora de suas práticas: Geralmente, o pastor dirige-se a eles como
demônios de enfermidade, mas

[...] sempre faz alusão às figuras do repertório dos cultos afro-brasileiros, como Exu
Tranca-Rua, Pombagira, Maria Padilha e Exu Caveira.27 Dessa forma, o grupo
neopentecostal demarca a fronteira com as religiões afro-brasileiras, estabelecendo, no
plano simbólico, o seu inimigo no mercado religioso e colocando-se como capaz de liquidar
o mal. O pastor “conversa” com os demônios e manda, com veemência, eles saírem da vida
daquelas pessoas. Ao mesmo tempo, obreiros e obreiras as seguram. Quando tocados pelos
obreiros, os fiéis, em geral, começam a se retorcer, gritar e cair ao chão, demonstrando que
realmente estão possessos. Água abençoada é borrifada pelo pastor sobre aqueles que se
mostram possuídos (PINEZI E ROMANELLI, 2003, p. 70).

Há que se pontuar, porém, antes de qualquer má interpretação sob a fórmula de bloco


monolítico que cada ramificação neopentecostal possui sua maneira específica de lidar com
essas questões. Os rituais da Igreja da Graça, por exemplo, são carreados de exteriorizações
em torno do corpo. Já para os presbiterianos é a interioridade que norteia suas práticas no que
se refere à ideia de cura divina. Ressaltamos, também que, entre os protestantes históricos a
cura é vista de forma bastante diferenciada dos neopentecostais:

Entre os primeiros, não pode haver ninguém com dom especial de cura intermediando a
relação dos homens com Deus, com exceção de Jesus Cristo, mas todos os fiéis podem

601
pedir a cura a Deus. Porém, a idéia de que a vontade de Deus está acima de qualquer desejo
humano acaba por enfraquecer a esperança de cura por meio da intervenção divina. Assim,
entre o grupo presbiteriano, não há um ritual relacionado especificamente à cura e a liturgia
é meramente formal e, na prática individual da visitação aos enfermos, a oração nunca
significa um pedido de cura, mas expressa consolo e, às vezes, até introduz boa preparação
para a morte (MENDONÇA, 1992, p. 50).

As ramificações neopentecostais são muitas e cada uma delas apresenta suas especificidades.
Esperamos ter anunciado algumas delas a fim de que seja possível entender, ainda que em
uma primeira análise, as visões sobre o corpo e saúde e as maneiras pelas quais os rituais
concretizam estes pensamentos teológicos.

Considerações finais

Por impossibilidade metodológica, a nossa proposta foi discutir as formas pelas quais as
religiões afro-brasileiras, especificamente o candomblé, e as neopentecostais lidam com o
corpo e a saúde. Sabe-se que, a literatura antropológica está, cada vez mais, recebendo
contribuições sobre a forma com que cada teologia lida com o corpo e, consequentemente, as
resoluções disto em torno da saúde. No caso deste artigo a ideia foi apresentar rapidamente
como esses segmentos trabalham essas questões em suas teologias e como as mesmas são
sentidas e representadas por seus fiéis. Para outros estudos pretende-se alargar o olhar
discutindo, inclusive as várias estratégias de disputa no mercado religioso, muitas das quais
são reelaboradas a partir das inovações do ciberespaço.

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agosto de 2013.

603
604
Entre Dois Mundos: entre o pragmatismo da umbanda e o
salvacionismo espírita
Ana Maria Valias Andrade Silveira1

Introdução

Através de uma análise etnográfica, buscar-se-á apresentar o campo religioso afro-


descendente e suas manifestações em continuidades, mudanças, mobilidades e
ressignificações. Buscando demonstrar indutivamente o caráter múltiplo das Religiões de
Possessão, de modo mais geral, das Religiões afro-Descendentes de modo mais específico,
continuidades restritas a Umbanda e o Espiritismo, cuja abordagem privilegia
complementaridades existentes entre ambas, através de um estudo de caso em duas casas
religiosas, situadas na cidade de Dourados – MS, onde este fenômeno de relação dialógica se
apresenta de forma pragmática, composta de contradições entre praticas e discursos ortodoxos
de base Espírita.

Esta pesquisa esta sendo realizada desde o ano de 2012, por meio de uma analise
antropológica aplicada ao método etnográfico seguido de observação participante. Tendo em
vista que observações e experiências de campo já estão sendo desenvolvidas, pretende-se aqui
demonstrar as primeiras impressões surgidas a partir de dados colhidos no campo etnográfico,
propondo uma aliança entre a apresentação do campo empírico e reflexões teóricas de autores
que oferecem subsídios de análise epistemológica.

O objetivo desta discussão é refletir sobre continuidades, ressignificações e diálogos.


Trazendo luz a idéia de que nenhuma Religião se mantém em isolamento. Logo, a busca por
diálogos compõe o pragmatismo religioso afro-descendente. Assim, entre duas modalidades
religiosas distintas, há constantes aproximações gerando novos dinamismos, desencadeando
uma nova configuração no caráter religioso produzido no âmago das relações humanas e
sociais.

Esta exposição textual esta dividida em três partes. Em primeiro lugar pretende-se situar o
campo empírico analítico, apresentando os caminhos reflexivos que foram percorridos para a
formação desta analise que se pretende antropológica. Contextualizar a situação proposta por
1
Mestranda em Antropologia pela UFGD. Agência de Fomento: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Mario Teixeira
de Sá Júnior. Contato: ana_vallias@hotmail.com.

605
esta pesquisa em andamento. No segundo instante, alguns autores são trazidos para
fundamentar a discussão pertinente ao campo empírico, propondo um diálogo entre teoria e
prática. Em seguida a descrição etnográfica será apresentada de modo bastante objetivo, para
que o leitor possa se debruçar sobre a estrutura e o contexto o qual as casas religiosas se
apresentam. Esta demonstração pode trazer maiores esclarecimentos para concluir as
discussões propostas no primeiro e segundo momento do texto.

Análise situacional empírica

Em uma perspectiva empírica, dada a experiência e analise de campo, é possível perceber,


dentro do universo religioso afro-descendente a presença de mobilidades e continuidades.
Esta noção nos permite compreender que as pessoas não pertencem a uma religião exclusiva,
mas buscam outros espaços religiosos como complementaridades, dentro de uma flexibilidade
plástica e dinâmica, tendo como fim a solução de problemas do campo pragmático da vida.

Restringindo esta idéia para a análise que esta sendo desenvolvida nesta pesquisa, é possível
observar empiricamente nas vivências de campo que, muitos freqüentadores de Terreiros, vão
á Centros Espíritas em dias alternados. Em contrapartida, muitos adeptos de orientação
Espírita, freqüentam Terreiros de Umbanda dentro de uma perspectiva discursiva e pratica
extremamente lógica. Esta realidade esta sendo verificada a partir de uma conviviabilidade
constante com as pessoas que participam ativamente de duas modalidades religiosas
extremamente objetivas, são elas: o Espiritismo e a Umbanda.

Indo além, esta pesquisa propõe um estudo de caso que pode contribuir de modo pratico e
exemplar de que, no campo religioso afro-descendente há existência de um dinamismo
extremamente complexo, colaborando com o entendimento de que existem contradições entre
o que é dito e o que é efetivamente vivido dentro destes espaços que compõem matrizes
religiosas Africanas. Por isso, dá-se nesta pesquisa muita importância ao que se expressa no
campo do discurso, e ao que se vivi na pratica ritualística que compõe a configuração da
Religião, como subsídio para construção de uma etnologia de Religiões.

Estão situadas no município de Dourados – Mato Grosso do Sul (MS), em bairros periféricos,
duas casas religiosas que possuem fato importante para uma análise que se pretenda
Antropológica. A Casa (1) é denominada Movimento Espírita Francisco de Assim – (MEFA),

606
é identificada pelo grupo como Espiritualista, por não possuir vínculos com a Federação
Espírita Brasileira – FEB, e também por adotar algumas práticas elementares que vão de
encontro com os preceitos normativos institucionalizados pela política federativa. A Casa (2)
é denominada Reino de Ogum Beira Mar, sendo identificada pelo grupo como Terreiro de
Umbanda, com especialidade de ser classificada como Umbanda Branca.2

Assim como a casa (1) recebe influências e adota algumas práticas características da
Umbanda, mesmo legitimando a presença do Espiritismo, há um convívio entre Umbanda e
Espiritismo dentro da casa, mas cada prática ocupa lugares completamente diferentes. Já na
Casa (2), há práticas Espíritas muito presentes em alternância com a prática Umbandista
presente e decisiva nas atividades desenvolvidas na casa. O que ocorre é que há três anos, as
pessoas do MEFA passaram a freqüentar o Terreiro de Umbanda, e as pessoas do Terreiro de
Umbanda passaram a freqüentar o MEFA.

Desde então, isso continua ocorrendo, sendo impossível dizer o que é um e o que é outro, pois
as pessoas se movimentam em um trânsito continuo entre as duas casas. Em decorrência
disso, alguns sinais e elementos diacríticos pertencentes à Umbanda, em específico, migraram
de uma casa para outra promovendo inúmeras mudanças. Um exemplo disso é que os pontos
que eram entoados na casa (2) passaram a ser entoados na casa (1) ao passo que as pessoas
começam a transitar de uma casa para outra. Isto demonstra mobilidade, instabilidade,
mudança, complementaridade. Os conflitos que ocorrem é devido a estas mudanças que
envolvem pessoas que transitam e pessoas que não transitam.

Dentro desta exposição cabe considerar que as pessoas apresentam objetividades ao


apresentar sua orientação religiosa. Logo, é muito presente nas falas destes adeptos, tanto os
que compõem o trânsito, quanto os que não o compõem, uma identificação religiosa
extremamente legítima e que deve ser levada em consideração. O que ocorre é que as pessoas
mesmo se auto-intitulando como Espíritas, ainda assim, consegue percorrer caminhos da
prática Umbandista com bastante tranqüilidade, em contrapartida, aqueles que se identificam
com a Umbanda conseguem assimilar grande parte da lógica dos preceitos Espíritas. Por isso,

2
A identificação do panteão Umbandista pode ser apresentada sob diversas tipologias. A Umbanda pode ser
Espiritismo de Umbanda, Umbanda de Mesa, Umbanda Branca, Macumba, dentre outras. Estas variáveis de
Umbanda que ora se apresentam, são identificadas por seus adeptos e contrapostas com outros modelos de casas
religiosas. Assim, uma casa de umbanda branca busca se diferenciar de outra casa, onde os adeptos da primeira
reconhecem a outra como sendo, por exemplo, de macumba ou quimbanda. Para além do universo umbandista
ocorrem diálogos de outras matrizes religiosas como a Umbanda e o Espiritismo. Apesar das buscas por
separações ocorrem também aproximações, diálogos entre elas formando o continuum religioso. (CAMARGO,
1961)

607
a existência de complementaridade, onde a presença da ortodoxia Espírita não deve ser
pensada dissociada do pragmatismo da umbanda, tendo em vista a existência de relações
dialógicas constituindo novas configurações e reconfigurações em espaços religiosos
analisados.

O continuum religioso é o eixo central desta análise, pois é ele quem expressa a plasticidade e
a complexidade móvel do campo religioso afro-descendente e religiões de possessão de um
modo geral. Assim, este estudo de caso vai contribuir com uma vírgula como prova do quanto
se deve privilegiar e contemplar em pesquisas o entre lugar que é vivenciado como forma de
manutenção visando o crescimento e a sobrevivência dos grupos contidos nestes espaços de
religião.

O campo religioso afro-descendente (BOURDIEU, 2011b) está contido dentro de um


mercado de bens simbólicos e não-simbólicos, materiais e não-materiais, e dentro deste
mercado produtos são oferecidos. O maior produto das Religiões Afro-descendentes é a
magia, pois é ela quem se propõe a dar conta de solucionar a vida dentro de um campo
pragmático, das questões que são colocadas na vida social (emprego, família, amor, sorte,
prosperidade). Estes produtos é quem garante a sobrevivência das religiões. (BOURDIEU,
2011a)

Restringindo-se as duas casas religiosas, existe um oferecimento de produtos e bens. No


entanto, estes produtos são diferenciados, apesar de serem reconhecidos por todos, tanto os
que freqüentam o Terreiro, quanto àqueles que freqüentam a casa espiritualista. Tais produtos
são complementares, pois ao se diferenciarem, eles se completam. Isto conclui e reforça esta
abordagem como uma analise dicotômica onde diferença se completa e se complementa, por
isso, não existe nada contido e mantido em isolamento, pois no entre, um pêndulo é mantido,
desencadeando novas situações da vida social religiosa afro-descendente.

Delimitação do tema

608
Na primeira metade do século XX, Arthur Ramos apresenta variedades de cultos religiosos de
matriz africana tendo como ponto inicial um princípio de culto considerado puro, legitimando
a origem Africana instalada no Brasil. (RAMOS, 1934). Segundo essa organização as
religiões se apresentam organizadas a partir de uma pureza, percebida nas religiões de
matrizes Iorubanas (candomblés nagô e jeje) a um crescente sincretismo.

Arthur Ramos (1934), mesmo não se utilizando do termo continuum religioso, já explicitava
em seus escritos a presença de continuidades entre os cultos afro-brasileiros, que, a partir de
uma referencia de matriz africana caracterizada pelos povos Sudaneses (Jeje-Nagô),
enfatizava a alteração devido ao processo de assimilação de cultos que foram se perdendo da
referencia e encarnação Africana no Brasil (CAPONE, 2004).

O conceito de pureza é levado muito a sério até então por determinar a mistura, partindo da
idéia da existência de um continuum religioso do mais puro até o mais misturado ou mais
sincrético.

O que parece é a existência de uma complementaridade entre cada variedade religiosa


apresentada. Em seqüência Arthur Ramos vai apresentar características próprias de cada
variedade de religiões, considerando a mistura em processo de continuidade. Na primeira
metade do século XX, expõe uma seqüência continua da seguinte forma:

1º. Jeje-nagô

2º. Jeje-nago-muçulmi

3º. Jeje-nagô-banto

4º. Jeje-nagô-muçulmi-banto

5º. Jeje-nagô-muçulmi-banto-caboclo

6º. Jeje-nagô-muçulmi-banto-caboclo-espírita

7º. Jeje-Nagô-muçulmi-banto-caboclo-espírita-Católico (RAMOS, 1934, p. 138).

Deve-se considerar que este conceito apresentado pelo autor caminha para um pensamento em
que formas rituais praticadas por negros eram vistas com inferioridade no que se refere á
classe de raça. (RODRIGUES, 1935).

609
Outro autor de fundamental importância para os estudos sobre continuum religioso é Procópio
Camargo (1961). Sua abordagem Sociológica buscava o entendimento das continuidades
mediúnicas entre Umbanda e Kardecismo, nos espaços religiosos da Região de São Paulo –
SP. A presença contínua existente entre estas duas modalidades de culto ocorre, a partir de
uma referência mais africanizada de culto até a mais ortodoxa preconizada pelo Espiritismo.
Sua analise apresenta o continuum religioso apenas entre estas duas modalidades expostas a
cima.

O autor Ferreira Camargo preocupou-se em explicar a forma como o Espiritismo influencia a


Umbanda, mas o que pode ser empiricamente analisado é a assertiva de que a Umbanda
também influencia o Espiritismo, que também influencia os Candomblés da Bahia. Assim,
por meio de constantes ressignificações e incorporações de sinais e signos diversos, é que são
moldadas religiões dinâmicas e versáteis (CAMARGO, 1961; CAPONE, 2004).

Dentro de um pragmatismo vivenciado nas duas casas religiosas, a Umbanda é de extrema


importância, e influencia o Espiritismo de igual forma. Mas não devemos nos esquecer de que
a relação dialética não caminha apenas nesta perspectiva, pois se o Espiritismo influencia a
Umbanda, a Umbanda também influencia o Espiritismo. A coexistência destas
interinfluências desencadeia uma relação dialética e dialógica representada no estudo de caso
nestas duas casas que estão sendo analisadas.

O conceito de Continuum se apresenta como um diálogo em que há trocas contínuas seguidas


de uma complementação, mas com limites e diferenciações colocadas de forma explícita.
Contudo, observa-se empiricamente que de encontro à idéia de que há uma invasão de
preceitos Espíritas nas práticas Umbandistas, como sendo subsídios para a ascensão favorável
à internalização, inclusão e aceitação, o que ocorre é que existem trocas significativas
envolvidas neste processo onde ambas são beneficiadas e negociadas nas relações práticas e
discursivas.

Em um dado momento dos estudos afro-brasileiros, Estefânia Capone fez algumas


considerações sobre os estudos afro-brasileiros que privilegiavam Terreiros com resquícios de
África, e desprezavam análise sobre os banto. O contraste existente no campo religioso3 entre

3
A idéia de Campo Religioso é utilizada por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2011a) e está restrita ao campo das
religiosidades, que se dá de forma dialógica. O campo se faz à medida que há interligações e interconexões entre
ambos. Por meio da relação com outras religiões forma-se, ao passo que inclui e exclui práticas e abordagens
rituais. Este campo das religiões pode ser compreendido como um vasto mercado de bens e serviços que são
oferecidos e funcionam por trocas simbólicas de bens de consumo material, imaterial, simbólico e não simbólico.

610
cultos puros e impuros gera uma disputa que só se faz presente no momento em que se
encontram. Legitimar a pureza significa negar a impureza. O continuum só existe se for
negado. O que procede a mistura é a presença de purezas para misturar. Se não há mistura, a
continuidade dos cultos em Religiões de Possessão torna-se inexistente.

A existência de um continuum religioso é muito enfatizada por Capone (2004), considerando


formas mais específicas a formas mais integralizadas. A autora apresenta o continuum entre a
Umbanda e o Kardecismo. A Umbanda menos ocidentalizada até o Candomblé, o que enfatiza
as múltiplas Umbandas existentes que se posicionam dentro deste continuum enquanto parte
de muitas outras que se aproximam e se afastam continuamente (Umbanda Branca, Umbanda
Africana, Umbanda Popular) pela presença de pontos comuns e divergentes. Para Capone,
este continuum religioso das religiões de possessão se apresenta entre dois extremos, o
Candomblé Jeje-Nago/ Yorubá, que é a forma mais africanizada, até o outro extremo
Espiritismo que é a presença embranquecida dos cultos de possessão. Logo há continuidades e
rupturas que possibilitam a dinamização e a instabilidade desta continuidade, que possui
mobilidade e diálogo (CAPONE, 2004).

A idéia de continuum corresponde ao entendimento de que os cultos afro descendentes


processualmente adquirem novas abordagens pragmáticas em suas práticas ritualísticas
incessantemente como continuidades. Essas continuidades não surgem com o objetivo de
distinção, mas sim como construção contínua de uma para outra, logo a sustentabilidade desta
continuidade é dependente de um diálogo com outras modalidades de culto. Tais mobilidades
desenvolvem elementos e arsenais que permitem buscar legitimação à prática religiosa.

O continuum de Capone apresenta a oposição Africanização e Embranquecimento, com uma


interpretação linear que ainda aponta reflexões, as quais trazem elementos evolucionistas,
fornecendo pouca visibilidade a uma plasticidade muito mais flexível. De fato, Capone
oferece muitas possibilidades continuas, mas ainda assim não fornece espaço para completude
de ressignificação.

Indo a campo é possível compreender que o trânsito entre as casas religiosas não ocorre
estritamente entre MEFA e Terreiro Reino de Ogum, Beira Mar, mas está empiricamente
comprovado que muitos freqüentadores do MEFA (Movimento Espírita Francisco de Assis)
vêm de outros Centros Espíritas e/ou Terreiros de Umbanda, da mesma forma que, no

O objetivo aqui é se utilizar deste conceito para abarcar um conjunto mais amplo de diferentes cultos religiosos
que compõem o mesmo universo das Religiões Afro descendentes de modo mais específico.

611
Terreiro Reino de Ogum Beira Mar, existem freqüentadores de outras Casas Espíritas. Desta
forma, o conceito de Continuum Religioso apresentado por Stefânia Capone não fornece
subsídios epistemológicos para pensar tamanha complexidade de mobilização, por ainda
apresentar uma demonstração linear de continuum religioso, impossibilitando a aplicabilidade
empírica das situações atuais apresentadas pela dinâmica do campo religioso afro-
descendente.

A oferta teórica da pós-modernidade aponta respostas e indicativos que podem ser utilizados
para explicar fatos correspondentes à contemporaneidade. Alguns conceitos se propõem a dar
conta e visibilidade a novos paradigmas do campo pragmático. Assim, através dos estudos de
Glissant surge um conceito teórico chamado Rizoma como um sistema aberto, em que se
apresenta um entendimento de redes interligadas, superando, desse modo, o conceito do
continuum representado pelos autores do século XX como um quadro linear ainda muito
ligado ao entendimento evolucionista (NOGUEIRA, 2009).

Estas redes que se apresentam em um campo aberto, oferecem maiores possibilidades de


representar as novas configurações apresentadas no pragmatismo da vida vivida de fato.
Assim, não cabe aqui tecer uma crítica ao modelo de continuum religioso, mas sim
incrementar alguns pensamentos que possam dar conta de trazer luz ao entendimento destas
novas situações que são postas dentro de uma lógica sofisticada construída nas relações
sociais dentro das Religiões Afro-Brasileiras.

Apresentação das duas casas religiosas (descrição etnográfica)

Neste momento serão apresentadas as duas casas religiosas que serão contempladas nesta
pesquisa. O objetivo é fazer uma descrição etnográfica parcial, para fornecer maior
esclarecimento da estrutura ritualística e organizacional das atividades que são desenvolvidas
nas duas Casas, para compor o entendimento das discussões que foram feitas anteriormente.

A casa Reino de Ogum Beira Mar fica situada à Rua Cuiabá. O espaço destinado para casa
fica nos fundos da residência da Mãe de Santo, e é composta por um quarto de
aproximadamente 3x4 (demonstrando sua pequenez física), o qual comporta cerca de 15
pessoas. Em seu interior, possui três bancos de concreto para cinco pessoas em cada um, e
logo de frente está o altar, chamado pelos adeptos de conga. No alto do congá estão contidos

612
os orixás4, que sincreticamente são interpretados por imagens de santos católicos. No alto está
Oxalá que faz sincretismo com Jesus Cristo; nos dois extremos, logo abaixo, vêm Iemanjá e
Ogum Beira Mar; abaixo está outro ogum representado na cor vermelha e Oxossi com
imagem de São Sebastião. Logo depois, entre um extremo e outro está o Preto-Velho e os
Erês.

No peji (a base do altar) está uma imagem barroca em meio às misturas dos santos do
catolicismo com as imagens dos personagens da Umbanda. Isso é visto tanto na base do altar
como no chão do congá onde há um amalgama entre as imagens de diferentes matizes
religiosas. Outro sinal diacrítico são os desenhos riscados nas paredes do terreiro,
representando os pontos riscados de todos os personagens que ganham vida através da Mãe de
Santo. Do lado de fora, ao lado do terreiro, tem-se a Casa do Exu, reconhecido como a
tronqueira dos guardiões.

Os trabalhos têm inicio exatamente às 20 horas, todas as sextas-feiras. A casa contém


atualmente seis médiuns que trabalham com entidades características do panteão umbandista 5.
Têm-se o Preto-Velho Pai Joaquim, Caboclo Tupinambá, Caboclo Ogum Beira-Mar, Cigano,
Caboclo Índio e Cabocla do Mar. Cada médium trabalha de forma distinta e cada um é
responsável por seus utensílios materiais disponíveis para a entidade. Não são todas as
entidades que utilizam charutos e cigarros, e nenhum deles utiliza bebidas alcoólicas.

Os trabalhos começam com a defumação de todos os integrantes do trabalho. Em seguida, é


feita uma oração de abertura pelo dirigente espiritual, que é o marido da mãe de santo, na qual
são cantados os pontos6 de abertura. Depois, é realizada a oração Pai Nosso. Logo após, pede-
se licença para o início dos trabalhos. Assim, é chamado, em primeiro lugar, o Pai do
Terreiro, que é Ogum Beira Mar. Logo em seguida, vai se cantando os pontos para que os
médiuns possam dar vida aos seus personagens.

Depois que todos os médiuns já estão com seus personagens, é dado o espaço para que os
adeptos possam se dirigir ao seu guia de preferência, buscando um atendimento espiritual, que
pode ser um passe (uma energização), um conselho etc.

4
Entidades do panteão da Religião de origem Iorubana Culto aos Orixás (Ver: PRANDI, 2000).
5
A Umbanda é uma religião de possessão em que os seus adeptos incorporam entidades de um mundo espiritual.
Historicamente essas entidades são compostas por tipos sociais excluídos, como índios (caboclos), pretos-velho
(escravos), pomba-gira (prostitutas), etc. Com o passar das décadas do século XX e devido à plasticidade da
Umbanda, surgiram novos tipos de entidades, como baianos, malandros, marujos, boiadeiros dentre outros. No
entanto, todos possuem em comum o caráter marginal. (Ver SÁ JUNIOR, 2004).
6
Pontos são músicas entoadas pelos adeptos para encaminhar finalidades específicas dos rituais.

613
Os pontos são cantados pelo Dirigente dos trabalhos, o marido da mãe de santo. Cabe aqui
lembrar que essa casa não possui atabaque7 e os pontos são cantados por todas as pessoas que
estão dentro da casa. Quem detém o controle sobre o que vai ser cantado é o dirigente que
estabelece qual ponto será cantado naquele momento. Às vezes, alguma entidade pede para
cantar tal ponto, mas raramente isso acontece.

O dirigente orienta as pessoas quanto ao direcionamento e funcionamento da casa, e todas as


pessoas que chegam ali assim o fazem por alguma indicação. Os responsáveis pela casa não
permitem a entrada de estranhos, exceto aqueles que são trazidos por alguma indicação. Por
se tratar de uma residência dos próprios responsáveis, os trabalhos são restritos pelas
condições e circunstâncias apresentadas.

Como dito anteriormente, o ritual acontece às sextas-feiras, e na última sexta-feira do mês é


cedido um espaço para a apresentação do personagem exu (CF. PRANDI, 2000). No primeiro
momento, tem-se a manifestação dos personagens característicos da Umbanda, e logo após há
manifestação do exu. Desse modo, se os trabalhos têm duração de quatro horas, uma hora é
cedida para o povo da esquerda, ou seja, os exus.

Neste momento, tão raro e curto, é quando se manifestam importantes acontecimentos. Todos
os seis médiuns incorporam seus personagens. Mas, há uma padronização de algumas práticas
para manter o controle do ritual. Sendo assim, os exus não bebem, não fumam, exceto um
novo médium que chegou sem plena noção de como se conduziam as práticas da casa e
resolveu quebrar as regras. Contudo, com o passar do tempo, esse médium está se adaptando
aos moldes da casa. Entretanto, não há liberdade de manifestação dessas entidades, no caso a
utilização da cachaça é realizada para descarregar os adeptos, sem se utilizar desse material
como bebida.

Outra observação a fazer é a ausência das vestimentas ornamentais normalmente presenciadas


nesses espaços8. Todos os médiuns estão sempre de branco, seja com os caboclos e preto-
velhos, seja com os exus. Mas toda regra tem sua exceção. Portanto, ao mesmo tempo em que
existe uma contenda ritualística e estrutural na casa, existem algumas singularidades
observáveis com relação ao comportamento de cada médium, considerando sua própria

7
Instrumento de percussão utilizado em algumas casas religiosas de Umbanda.
8
Em muitas casas religiosas, os adeptos se utilizam de roupas que se caracterizaram na cultura nordestina,
principalmente a da Bahia em que esses trajes são apresentados como um dos cartões postais dessa sociedade.

614
maneira de se relacionar com o vivido individualista das práticas ritualísticas nesse campo da
religiosidade umbandista.

Outro ponto a ser destacado é a presença das crianças ou Erês. Esse personagem ganha vida
todo dia 27 de setembro. Nesse dia, todos os médiuns e os adeptos da casa combinam para
que cada um leve um prato e doces, de toda espécie, a fim de viabilizar uma comunhão
conjunta, propiciando a chegada desses personagens na Umbanda. Trata-se de um dia
dedicado à confraternização entre todos. Os trabalhos são iniciados normalmente e, logo após,
com a chegada das entidades, há uma completa interação, o que proporciona às pessoas
saírem satisfeitas e felizes. Todos os médiuns recebem suas crianças e ficam até o final. Com
exceção do Chefe do Terreiro, pai ogum beira mar, que permanece e não cede espaço para a
chegada de crianças em volta da mãe-de-santo. Isso acontece, pois, o responsável pelo terreiro
deve sempre estar presente.

A segunda casa estudada, denominada de Movimento Espírita Francisco de Assis, doravante


MEFA, está localizada no Jardim Cuiabazinho, próximo à Rua Eulália Pires. Essa casa é
reconhecida como um Centro Espiritualista por não possuir vínculo com a Federação Espírita
Brasileira9. É uma Casa composta por um Salão com vasto espaço onde acontecem as
palestras; três salas reservadas às atividades espirituais da casa. Do lado de fora há uma sala
da diretoria, responsável pela administração do Centro e outra sala, logo ao lado, a da
recepção, onde são recebidas as pessoas e encaminhadas para a entrevista. O centro dispõe de
um estacionamento amplo e duas salas localizadas do outro lado externo da casa onde
acontece a evangelização10 das crianças que recebem orientações à luz da religião.

As três salas onde acontecem as atividades espirituais são divididas e cada sala possui uma
função específica. A primeira é destinada ao tratamento de Cura e de problemas de Saúde.
Nessa sala, encontram-se duas macas, uma mesa com alguns utensílios ritualísticos, como
flor, descarrego11 (utilizado na Umbanda), jarro com água, e sacos de balas. Cerca de sete
médiuns, que ministram passes magnéticos, participam e também dois médiuns de
incorporação. A segunda sala corresponde à consulta espiritual, para onde são conduzidas as
pessoas para verificar o tipo de tratamento que será ministrado. A sala possui
aproximadamente vinte médiuns. Dentre esses médiuns, estão os de passe e os de
9
Para a burocracia entre os adeptos da Religião Espírita, conhecida como Kardecismo, uma casa somente pode
ser nomenclatura de Espírita se possuir a certificação da Federação Espírita Brasileira – FEB.
10
Evangelização é uma reunião na qual se aprende as bases doutrinárias do Espiritismo Kardecista.
11
Um composto de álcool com ervas que, ao ser passado no corpo dos freqüentadores, possui a finalidade de
retirar energias negativas.

615
incorporação. Eles se posicionam em círculo, e no centro da sala colocam-se seis cadeiras
enfileiradas para que os pacientes possam ser atendidos.

Essa sala dispõe ainda de dois médiuns conhecidos como dirigentes dos trabalhos espirituais.
Existe também uma espécie de Peji (altar). Contudo, os adeptos preferem chamá-lo de mesa.
Nela estão alguns santos do catolicismo, uma vasilha com água e algumas ervas,
“descarrego”, como ainda águas para distribuir para os freqüentadores, pacotes de balas, que
são distribuídos para os adeptos, e incenso, que é queimado do início ao final das atividades.

Na terceira sala, acontece a chamada corrente mento-eletromagnética. Trata-se de uma sala


com bastante espaço, com as cores verde, amarelo, azul e branco, pintadas na parede no
sentido da porta. Num extremo da sala, encontra-se uma foto do Médium Chico Xavier,
considerado o maior líder da Doutrina Espírita no Brasil, e logo no canto está uma mesa com
quatro cadeiras. Essa sala atende por semana cerca de 100 pessoas, onde entram vinte por vez.
No interior da sala, há vinte cadeiras organizadas em círculos, com a presença de dez médiuns
passistas e mais quatro médiuns que ficam na mesa favorecendo a atividade exercida no
momento. Há também um médium dirigente responsável pelas pessoas que entram para
participar, e um auxiliar para conduzir e garantir a ordem no ir e vir das pessoas.

O MEFA possui atividades de segunda a sábado. Na segunda-feira, acontece, das 19h às 21h,
o atendimento espiritual, momento em que as pessoas passam por uma entrevista para
posteriormente serem encaminhadas à sala de consultas para, assim, dar início ao tratamento.
Dependendo do tratamento, a pessoa pode ser encaminhada à sala de cura na mesma hora. Na
terça-feira, acontece um projeto para as mães. Muitas pessoas também levam roupas para
doação e ali as mães são amparadas e recebem ajuda quanto à confecção de agasalhos. Na
quarta-feira acontece o estudo da Doutrina Espírita. Essa aula acontece na sala de consultas.
São estudados livros de base Espírita. Muitas são as pessoas que freqüentam os estudos toda
semana.

Toda primeira quinta-feira do mês é realizado o trabalho de desobsessão. Nesse dia, todas as
pessoas que passaram pela consulta espiritual na segunda-feira, e estão em tratamento
espiritual, obrigatoriamente passam por esta atividade. Os personagens mais solicitados para
os trabalhos e dão mais ênfase a este trabalho são os Exus ou os chamados Guardiões.

Na sexta-feira, são exercidas atividades na sala de cura, as quais são realizadas duas vezes na
semana, na segunda e na sexta, e a corrente mento-eletromagnético.

616
Aos sábados, na parte da tarde, acontece uma atividade muito similar às da segunda-feira. As
pessoas que não podem comparecer na segunda-feira à noite têm a oportunidade de participar
no sábado à tarde. Às 15h30 há ainda outro grupo de estudo no qual o conteúdo programático
também é de cunho Espírita. Quando não é a primeira quinta-feira do mês, há um grupo de
trabalhadores da casa que se reúnem para desenvolver e se aproximar dos fenômenos da
psicografia.

Cabe aqui considerar que essa casa possui similaridades e afinidades com a ritualística da
Umbanda. Alguns sinais diacríticos devem ser considerados: primeiramente, na segunda-feira,
na primeira quinta-feira do mês e aos sábados a abertura das atividades se faz com uma
oração e logo após são cantados pontos da Umbanda para o início das atividades. No decorrer
dos trabalhos, esses pontos também são cantados. Nas segundas, há manifestação de Pretos-
Velhos, índios, caboclos, exus, pomba-gira, Zé Pilintra e baianos. O descarrego é utilizado
durante toda a atividade. Outro sinal, não menos importante, é que a cada três meses é
realizada uma atividade somente para os médiuns da casa e não é aberta ao público. Descrevo
essa atividade como muito próxima de um modelo similar a Casa Ogum Beira Mar.

Os personagens que vivem essa prática são índios, exus, pomba-gira, Zé-Pilíntra, crianças,
Pretos-Velhos. Todos os adeptos levam para o ritual: ervas, pipocas, balas, doces, sal grosso,
velas e descarrego. Há, inicialmente, um ritual de defumação. Nesse momento, os pontos são
cantados e riscados. Todos os médiuns conversam com os adeptos, assim como
rotineiramente acontece num terreiro de Umbanda.

Considerações finais

As duas casas que ora se apresenta como objeto de análise desta pesquisa são analisadas
dentro de uma lógica de continuum, pois estão constantemente se movendo entre Umbanda e
Espiritismo. Estas religiões se fazem presentes nas duas casas de forma interna, e
externamente são marcadas a partir deste trânsito existente.

É importante compreender qual a posição que estas pessoas estão dentro deste continuum,
para entender a lógica das mobilidades e continuidades que arvora em um contexto
extremamente complexo.

617
O posicionamento destes personagens da luz ao entendimento de como as praticas religiosas
são pensadas através de mobilidades, plasticidade e dinamismo. Indo além, esta análise, em
uma vírgula pode demonstrar a pluralidade da Umbanda apresentada a partir de
especificidades interpretativas dos grupos sociais do campo religioso.

Jaz o entendimento de que a Umbanda compõe caráter versátil, no entanto é necessário ouvir
o que as pessoas têm a dizer sobre suas Umbandas com especificidades ímpares a cada grupo
que a pratica. Quanto maiores interpretações se obter deste culto pragmático, maiores
instrumentos para sustentar discussões em um campo religioso aberto, sem inicio, sem fim.
Um campo contínuo.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.

________________. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

CAMARGO. Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica.


São Paulo: Livraria Pioneira, 1961.

CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de


Janeiro: Pallas; Contra Capa, 2004.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: EDUFJF,


2005.

NOGUEIRA, Léo Carrer. Umbanda em Goiânia: das origens ao movimento federativo


(1948-2003). Orientação de Prof.º Dr. Danilo Rabelo. Dissertação (Mestrado em História),
UFG, Goiânia, 2009.

PRANDI, Reginaldo. Encantaria Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. São Paulo: Ed. Nacional, 1934.

RODRIGUES, R. Nina. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1935.

SÁ JÚNIOR, Mario Teixeira de. 2004. A invenção da alva nação umbandista – a relação
entre a produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da
Umbanda (1840-1960). Orientação de Prof.º Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos. Dissertação
(Mestrado em História), UFMS, Dourados, 2004.

618
619
Entre linhas e falanges: A diversidade da umbanda na
contemporaneidade
Saulo Conde Fernandes1

Introdução

O presente artigo versa sobre a diversidade/multiplicidade da umbanda no atual cenário


religioso afro-brasileiro. Cada terreiro possui suas peculiaridades, e sob a nomenclatura
umbanda, encontramos modalidades demasiadamente diferenciadas de cultos, tanto em
mitologia quanto em ritualística. Primeiramente apresento o mito fundador da umbanda, que
corresponde na realidade a apenas uma parcela dos praticantes desta religião. Em seguida,
apresento algumas teorias utilizadas pelos pesquisadores nas pesquisas sobre religiões afro-
brasileiras em geral, e em especial a umbanda. Por fim apresento alguns exemplos de terreiros
da cidade Campo Grande-MS – na qual resido e venho pesquisando há alguns anos, para
fomentar a discussão sobre a diversidade da umbanda.

O nascimento da umbanda no alvorecer da República, ou o mito fundador como a


origem

Zélio Fernandino de Moraes nasceu em 1891, no município de São Gonçalo, Rio de


Janeiro. Aos 17 anos, quando se preparava para ingressar nas Forças Armadas, começou a
falar de uma forma estranha, em tom manso e sotaque diferente, semelhante a um senhor de
bastante idade. A família desconfiou que era algum tipo de distúrbio mental, e o
encaminhou a um tio psiquiatra. No entanto, não foi encontrado os sintomas de Zélio em
nenhuma literatura médica, até que seu tio sugeriu à família que o encaminhasse a um
padre, para que fosse feito um ritual de exorcismo. Procuraram, então, um padre da família,
que após fazer o tal ritual de exorcismo não conseguiu nenhum resultado. De repente, Zélio
foi acometido por uma estranha paralisia, a qual os médicos não conseguiram encontrar a
cura. Até que, num ato surpreendente, ele levantou do leito e afirmou: ‘amanhã estarei
curado’. Ao ser levado pela mãe a uma curandeira, Zélio ouviu que tinha o dom da
mediunidade, e que deveria trabalhar pela caridade. Seu pai, apesar de não freqüentar
nenhum centro espírita, era um leitor assíduo das obras de Allan Kardec e adepto do
espiritismo. Foi quando, no dia 15 de novembro de 1908, por sugestão de um amigo de seu

1
Licenciado em História pela UFMS. Mestrando em Antropologia Sócio-cultural pela UFGD. Bolsista CNPq.
Orientador: prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior. Contato: saulo_microphonia@yahoo.com.br.

620
pai, Zélio foi levado à Federação Espírita de Niterói. Lá chegando, foi convidado a sentar-
se na mesa. Logo em seguida, contrariando as normas do culto realizado, Zélio levantou-se
e disse que ali faltava uma flor. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a no
centro da mesa na qual se realizava o trabalho. Iniciou-se, então, uma estranha confusão no
local, ele e outros médiuns começaram a apresentar incorporações de caboclos e preto-
velhos. Ao ser advertido, a entidade incorporada no rapaz perguntou por qual motivo as
mensagens de pretos e índios eram repelidas.O médium vidente perguntou por que a
entidade falava como um índio, de cultura claramente atrasada, já que estava enxergando
vestes jesuítas e uma aura de luz. Ele responde: ‘ Se julgam atrasados espíritos de pretos e
índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho, para dar início a um culto em
que estes pretos e índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o
Plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a
igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem
saber meu nome que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá
caminhos fechados para mim’. Afirmou também que tinha sido um padre jesuíta em
Portugal, por isto o vidente enxergava as vestes jesuítas, mas na última encarnação este
tinha vivido com um caboclo brasileiro. No outro dia, na casa de Zélio, sob os olhares de
membros da Federação Espírita de Niterói, parentes, amigos, e uma multidão de curiosos, o
Caboclo das Sete Encruzilhadas ‘desceu’ e usou as seguintes palavras: ‘Aqui inicia-se um
novo culto em que os espíritos de pretos africanos, que haviam sido escravos e que ao
desencarnar não encontram campo de ação nos remanescentes das seitas negras, já
deturpadas e dirigidas quase que exclusivamente para os trabalhos de feitiçaria, e os índios
nativos da nossa terra, poderão trabalhar em benefício dos seus irmãos encarnados,
qualquer que seja a cor, raça, credo ou posição social. A prática da caridade no sentido do
amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de
Jesus e como mestre supremo Cristo’. A entidade também disse que os participantes
deveriam estar vestidos de branco e o atendimento a todos seria gratuito. Disse também que
estava nascendo uma nova religião e que se chamaria Umbanda. Neste mesmo dia, Zélio
incorporou um preto-velho chamado Pai Antônio, que em poucas palavras, mostrou
sabedoria e humildade. Foi também Pai Antônio que solicitou os primeiros elementos de
trabalho da religião: o tabaco e uma guia. No outro dia formou verdadeira romaria em
frente a casa da família Moraes. Cegos, paralíticos e médiuns que eram dados como loucos
foram curados. A partir destes fatos redescobriu-se a Corrente Astral de Umbanda, na
atualidade.2

Esse mito, bem analisado por Sá Junior (2012), é atribuído ao nascimento da umbanda, uma
religião tida como genuinamente brasileira.3 No entanto, esse mito não abarca a umbanda em

2
Busquei no anexo da dissertação de José Henrique Motta de Oliveira (2007) a base para a exposição do Mito
Fundador Umbandista. O historiador buscou a narrativa do mito num site de cunho doutrinário.
3
A tese de doutorado da antropóloga Maria Helena Concone, obtida em 1973 e posteriormente transformada em
livro (CONCONE, 1987), é bem significativa nesse sentido, como o próprio título demonstra: “Umbanda, uma

621
sua totalidade. Uma grande parcela de adeptos de terreiros de umbanda pelo Brasil
desconhece a existência da história de Zélio de Moraes e praticam cultos demasiadamente
diferentes daquele por ele praticado. Muitas são as controvérsias, entre pesquisadores
acadêmicos ou mesmo entre os intelectuais umbandistas, quando se tentam buscar uma
origem para a religião umbandista. Como já foi colocado em alguns trabalhos
(CAVALCANTI, 1986; ROHDE, 2009; entre outros), a umbanda não possui uma origem, ou,
ao menos, não possui apenas uma origem. O mito aqui apresentado marca a origem de uma
religião conhecida no campo religioso afro-brasileiro como umbanda linha branca (ou apenas
umbanda branca) ou umbanda esotérica. Mas esta não é, com certeza, a única modalidade de
umbanda...

Teorias acadêmicas sobre o caráter múltiplo da umbanda: o continuum religioso e o


rizoma umbandista

Ao se pensar em religiões afro-brasileiras, em especial a umbanda, a macumba e o


candomblé, é necessário que se considere no plural. Sob a denominação de “Tenda de
Umbanda”, podemos nos afrontar com cultos, que nada têm de espiritismo kardecista, mas
sim de macumba ou mesmo candomblé. Não há uma padronização nem na ritualística nem na
mitologia: há diversas formas de se praticar e vivenciar tais cultos; “[...] cada terreiro dispõe e
combina, à sua maneira, elementos de uma rica e variada tradição religiosa [...]” (MAGNANI,
1991, p. 43). Como bem ressaltou a antropóloga Patrícia Birman, “não há limites na
capacidade do umbandista de combinar, modificar, absorver práticas religiosas existentes
dentro e fora desse campo fluido denominado ‘afro-brasileiro’” (1983, p. 27). Para se pensar
esta religião tão dinâmica, conceitos foram sendo criados ou forjados.

A teoria do continuum mediúnico, cunhada por Cândido Procópio Camargo em seu trabalho
pioneiro (1961), foi um grande avanço na literatura acadêmica para se compreender o
complexo campo religioso afro-brasileiro, de São Paulo, no caso por ele estudado, mas que se
aplica de forma mais genérica para outras cidades brasileiras. “Pode-se afirmar que há
inúmeras modalidades combinatórias em que se expressa o ‘continuum’ – algumas mais

religião brasileira”. Mas os próprios umbandistas consideram sua própria religião como tipicamente brasileira,
como pode-se ver em um trecho presente no prólogo à apresentação das resoluções do I Congresso Nacional de
Umbanda de 1941: “Os adeptos deste culto consideram-no genuinamente brasileiro, de vez que ele representa
essa simbiose característica de nossa própria formação étnica: o sincretismo resultante dos cultos afro-aborígene-
cristão.” (Apud NEGRÃO, 1996, p. 147)

622
ligadas à Umbanda, outras mais próximas ao Kardecismo, formando um elo entre os
extremos” (1961, p. 15).

Renato Ortiz e Lísias Negrão continuaram neste raciocínio e entendem que os extremos de
que Camargo falava eram pólos culturais. Negrão entende que os terreiros de umbanda variam
em se aproximar do que ele chama de pólo negro-mágico, que compreende o candomblé e a
macumba, ou do pólo ocidentalizado, que ele resume no kardecismo, como se fossem dois
pólos antagônicos, e as características de cada casa de culto flutuam dentro deste campo de
influência (1996, p 28-29). Ortiz também faz uma divisão em dois pólos: o mais
ocidentalizado e o menos ocidentalizado. O pólo menos ocidentalizado estaria mais próximo
das práticas afro-brasileiras enquanto que o pólo mais ocidentalizado estaria mais afastado de
tais; porém, nos dois pólos, se verifica uma ruptura em relação ao candomblé (1999, p. 97).

O conceito foi melhor elaborado pela antropóloga italiana Stefania Capone. Ela apresenta
(2004, p. 99) um interessante quadro no qual aglutina as mais diversas modalidades de cultos
afro-brasileiros, em uma linha horizontal na seguinte ordem: kardecismo, umbanda branca,
umbanda africana, omolocô, umbandomblé, candomblé banto, candomblé nagô, candomblé
reafricanizado; a macumba e a quimbanda aparecem em uma categoria denominada
construção das identidades religiosas por contraste, enquanto que a Igreja Católica e as
Igrejas Pentecostais aparecem nas categorias relações de inclusão e relação de exclusão.

Algumas pesquisas recentes buscaram inspiração na teoria do rizoma4, desenvolvida por


Deleuze & Guatarri (1995), para explicar as religiões afro-brasileiras, pretendendo superar a
teoria do continuum. Para o historiador Leo Carrer Nogueira, que recentemente dissertou
sobre a formação da umbanda na cidade de Goiânia, a idéia de rizoma permite enxergar “[...]
estas religiões como sistemas abertos, múltiplos, ambíguos, que podem buscar elementos em
diversas influências religiosas para compor o quadro de suas práticas diárias” (2009, p. 43).
Nesse sentido, o campo religioso afro-brasileiro é “[...] quadro onde várias linhas se
4
“[...] diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com um outro ponto
qualquer, sem que seus traços tenham necessariamente algo em comum, ele coloca em jogo regimes muito
diferentes de signos e mesmo estados de não-signos. O rizoma não se deixa conduzir ao Uno nem ao múltiplo.
Ele não é um que se torna dois, nem mesmo chegará diretamente a três, quatro, cinco, etc. Não se trata do
múltiplo que resulta do Uno, ou ao qual se acrescenta o Um (n + 1). Não se trata de unidades, mas de dimensões,
ou melhor de direções moventes. Ele não tem começo nem fim, mas sempre meio, no qual repousa e ao qual
extravasa... Uma tal multiplicidade não varia de dimensão sem mudar de natureza em si mesma e se
metamorfosear. Em oposição a um estrutura que se define pelo conjunto de seus pontos e de posições, de
relações binárias entre esses pontos e de relações biunívocas entre essas posições, o rizoma não é feito senão de
linhas: linhas de segmentarização, de estratificação, como de dimensões, mas também de linhas de fuga ou de
desterritorialização como dimensão máxima após a qual, seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia
mudando de natureza.” (DELEUZE & GUATARRI Apud ANJOS, 2006, p. 21-22).

623
entrelaçam, podendo dar origem a inúmeras combinações diferentes, dependendo da matriz
religiosa que se utiliza, mas mantendo as características principais que a definem” (Idem, p.
42). Nogueira se utilizou da teoria do rizoma pra forjar a teoria do rizoma umbandista:

Trata-se de um rizoma umbandista, uma infinidade de influências, um arquipélago com


várias ilhas, onde cada terreiro, centro ou tenda de Umbanda pode ir buscar suas
influências. Trata-se de um sistema aberto – não fechado como o continuum o era – cujos
diversos elementos são utilizados, misturados, ressignificados e reelaborados para dar
forma ao culto religioso umbandista, e que todos juntos dão origem a uma religião
absolutamente complexa e diversificada (Idem, 43).

Consideramos significativa a contribuição de Nogueira, mas é necessário pontuar que a teoria


do continuum, ao invés de superada, ainda pode fornecer bons raciocínios quanto ao campo
religioso afro-brasileiro. Ainda sobre o rizoma, José Carlos dos Anjos, em sua interessante
etnografia sobre a cosmopolítica afro-brasileira, em pesquisa realizada na cidade de Porto
Alegre, diz:

Em primeiro lugar, a lógica rizomática da religiosidade afro-brasileira, ao invés de


dissolver as diferenças, conecta o diferente ao diferente deixando as diferenças subsistirem
como tais. Um caboclo permanece diferenciado de um orixá mesmo se cultuados no mesmo
terreiro e sob o mesmo nome próprio (como, por exemplo, ogum). Uma segunda
característica da lógica das diferenças na religiosidade africana no Brasil é que as diversas
nações (Jeje, Ketu, Angola...) não são essências identitárias pertencentes a indivíduos, mas
territórios simbólicos de intensidades diversas, passíveis de serem percorridos por
multiplicidades de raças e indivíduos (2006, p. 22).

Estando em campo, o antropólogo não precisa de muita sensibilidade para perceber o


(evidente) caráter múltiplo desta religião.

A diversidade da umbanda: um olhar etnográfico

Poderia se demonstrar a diversidade da umbanda a partir da literatura, acadêmica ou não,


sobre o tema. Prandi (2007) fala em mais de três mil títulos publicados na temática das
religiões afro-brasileiras. Na literatura doutrinária fica evidente a multiplicidade da umbanda:
cada sacerdote-escritor apresenta uma estrutura mitológico-ritualística diferenciada, mesmo
que há alguns aspectos presentes em todas as obras. Buscando descrições de terreiros

624
diferentes em trabalhos acadêmicos seria também uma opção, mas considero válido utilizar o
material etnográfico de que disponho.

Desde o ano de 2009 venho freqüentando terreiros de Umbanda na cidade de Campo Grande
– MS, na condição de consulente, e com o passar do tempo, pesquisador amigo da casa. No
total, visitei algo em torno de 14 terreiros, alguns apenas uma visita, outros com contato
pouco mais intenso, e outros ainda, com uma observação mais sistemática aliado a algumas
entrevistas.5 No presente trabalho, exponho – de forma tanto quanto resumida, devido à
dimensão deste texto – alguns exemplos diferenciados de tendas e terreiros que se auto-
intitulam como que “de umbanda”, mas que são muito diferenciados.

Inicio pela casa de culto que mais se aproxima daquela umbanda presente no mito fundador.
O Templo de Umbanda Pai Oxalá (a partir deste momento apenas Pai Oxalá) é o maior e mais
antigo terreiro da cidade de Campo Grande. Foi fundado no início da década de 1970 por
Elzira Conceição Rudias Jatobá, pioneira da umbanda na cidade, hoje uma graciosa senhora
centenária (em 2013 completa 100 anos), em compania de seus primeiros iniciados, entre eles
Orlando Mongelli, que tem atualmente 84 anos. Mãe Elzira já tinha outro terreiro antes da
fundação do Pai Oxalá; e depois de alguns anos de funcionamento, Mãe Elzira entregou a Pai
Mongelli a direção do Pai Oxalá e foi fundar outro. Mãe Elzira se iniciou no candomblé
angola e ajudou a fundar outro terreiro que será aqui também descrito. Mas por ora é válido
afirmar que Pai Mongelli afirma já ter dançado pra santo, mas que nunca se iniciou no
candomblé.

Nas entrevistas que realizei com Pai Mongelli, em momento algum ele me afirmou ser de
alguma linha de umbanda em específico (nem citou a expressão linha branca). Mas se
analisando os indícios (GINZBURG, 1990), e levando em consideração entrevistas e
conversas com alguns médiuns do terreiro, creio que o Pai Oxalá é um exemplo de umbanda
linha branca. Há proximidade com os estudos kardecistas. A caridade é o lema principal do
local. Durante as giras, pede-se silêncio.

Neste terreiro, não há ritual algum que a indumentária não seja a roupa toda branca. Os exus e
pombagiras não vestem nenhum tipo de adorno diferenciado e nem mesmo bebem! Os
trabalhos com a esquerda acontece uma vez a cada dois meses. Sacrifício de animal é,

5
Em trabalho anterior (FERNANDES, 2011) realizei uma etnografia comparativa de dois terreiros, um de
umbanda “linha branca” e outro que “tocava” candomblé ketu, mas que também fazia trabalhos semanais de
umbanda. Citarei estes exemplos no presente trabalho.

625
segundo um médium em entrevista, “uma prática que o pai da casa abomina”. O mito de Zélio
se reproduz, como pode-se ver na fala do mesmo médium:

Acredito que a Umbanda do Pai Oxalá seja aquela do Zélio sim. Mas a gente entende a
Umbanda como uma só, sem ter essa de linha branca, vermelha ou o que for, sabe? A
Umbanda é Umbanda, os outros que se dizem Umbanda e fazem coisa nada a ver, como
cobrar a consulência, pode ser tudo, menos Umbanda.

Outro terreiro fundado por Mãe Elzira, que posteriormente passou ao comando de sua filha,
biológica e de santo, é também exemplo pertinente. O local, que se chama Tenda de umbanda
Cacique Sete Flechas e Vovó Maria Conga (a partir deste momento utilizo o nome mais
utilizado pelos adeptos: terreiro da mãe Cleide), faz giras de umbanda semanalmente com os
caboclos, sendo que uma das giras do mês é dedicada aos exus e pombagiras. Ao correr do
ano faz-se também festas dedicadas aos preto-velhos e outras ao erês. Mas a particularidade
deste terreiro se encontra na importância dada ao candomblé. Mãe Elzira, durante sua jornada
como mãe-de-santo de umbanda, fez o santo no candomblé depois de muitos anos, na nação
angola. Sua filha Cleide também fez o santo, e o neto de mãe Cleide e bisneto de Mãe Elzira,
Pai Diego, hoje com 27 anos, nasceu dentro deste universo, e acabou se tornando um vigoroso
pai-de-santo de candomblé ainda muito jovem. Mãe Cleide afirma “gostar” mais da umbanda,
mas seu neto não, a história dele seria o candomblé.

Como bem observaram Prandi (1991), Silva (1995) e Capone (2004), há uma tendência de os
adeptos conhecerem primeiramente a umbanda, se familiarizarem neste universo religioso que
é o afro-brasileiro, para posteriormente se iniciarem no candomblé. Este terreiro confirma esta
premissa. Muitos dos que freqüentam esta casa de culto começam pelas giras semanais de
caboclos, depois conhecem a esquerda, e com o tempo começam a participar dos trabalhos
mais fechados da ritualística do candomblé.6 O curioso deste terreiro é que, mesmo se
chamando tenda de umbanda, este é um terreiro muito mais de candomblé; na porta de
entrada há um monumento de ferro, bem característico, com tridentes e lanças, para Ogum-
Xoroquê (orixá que seria o cruzamento de Ogum com Exu). Nas paredes encontram-se vários
quadros com pinturas dos orixás.

6
Nas festas públicas para os orixás, muitos da vizinhança comparecem, mas nos trabalhos fechados, somente os
iniciados e semi-iniciados (e às vezes seus cônjuges) tem permissão para estar presente. Pai Diego escolhe e
convida (ou convoca como disse um ogã que diz ter mais “paixão” pela umbanda) quem estará presente em tais
trabalhos.

626
O terreiro da mãe Cleide conta também com intensos trabalhos com exus e pombagiras.
Nestes trabalhos, cortinas fecham o acesso ao altar e bem a frente é posta uma mesa contendo
apenas um castiçal e as garrafas de bebidas – uísque e outras bebidas mais chiques, diga-se de
passagem – que o Exu Tranca Rua (entidade que incorpora em Pai Diego) bebe durante os
rituais. Seu Tranca Rua traja sobretudo e chapéu preto, enquanto as pombagiras, com seus
vestidos característicos, dão poderosas gargalhadas durante as consultas, enquanto bebem
champanhe e fumam cigarros finos e longos. Uma casa de culto, que apesar de também ser de
umbanda, totalmente diferenciada do primeiro exemplo (o templo Pai Oxalá).

Outro terreiro que se encaixa nos propósitos deste trabalho, e que é por certo um dos mais
intrigantes a que tive contato até então, é a Tenda Espírita de Umbanda Cacique Tupinambá e
Tio Antônio. Contraditoriamente, o local se utiliza da expressão Espírita em seu nome oficial,
mas em nada se aproxima da doutrina kardecista. Esta casa de culto funciona todos os dias da
semana, com exceção do domingo. De segunda à sexta, a mãe-de-santo do local, Mãe Dora,
faz benzimentos em seus clientes e filhos-de-santo. No terreiro da mãe Dora, nome que mais
observei entre os adeptos para se referir ao local, somente aos sábados são realizados
trabalhos nos quais comparecem a maioria dos filhos-de-santo; durante os dias da semana, vez
por outra algum médium recebe alguma entidade aleatoriamente, geralmente um exu. O pai-
de-santo e esposo de mãe Dora, seu Rubens, e o pai-pequeno7 e filho de mãe Dora, Dinei,
permanecem, durante os benzimentos de segunda a sexta, incorporados com seus guias: pai
Rubens com o cangaceiro alagoano Seu Curisco, e Dinei com o Zé Pelintra, ou com algum
de seus exus.

No cotidiano do terreiro, é extremamente difícil conversar com pai Rubens, haja vista que na
maioria do tempo quem ali está é Seu Curisco. Esta entidade é por demais carismática, e está
sempre sorridente proseando com qualquer pessoa que frequente o local. Seu Curisco, em
uma série de conversas informais, elucidou-me intensamente acerca da ritualística do terreiro,
mas se interessava mesmo em mostrar sua coleção de facas, em contar sua origem mítica 8 ou
mostrar os pontos cantados que sempre está a compor. A entidade passa a maior parte do
tempo fumando cigarros e bebendo batidinha de côco, mas faz questão de ressaltar, aos risos:

7
Cargo hierárquico logo abaixo do pai e mãe-de-santo. Na ausência destes, o pai-pequeno é quem assume a
direção dos trabalhos. Esta convenção de graduações é comum na maioria dos terreiros umbandistas.
8
Segundo suas próprias palavras, ele pertenceu ao bando de lampíão. Me mostrou uma foto do bando apontando
quem seria ele. Disse que hoje vem em Terra para evoluir e fazer o bem (mas que se for preciso também dá umas
cacetadas).

627
“meu cavalo num bebe nem fuma, só eu!” Seu Curisco comanda também alguns dos rituais
que descreverei a seguir.

Cada sábado no mês é feito um trabalho específico. No primeiro sábado o ritual se divide em
dois: a primeira parte é dedicada aos caboclos, onde pai Rubens recebe o Cacique Tupinambá
e se adorna com seu cocar enquanto mãe Dora trabalha na linha de Jurema. Nisto o terreiro
não se diferencia dos demais; mas a segunda parte, a dança dos orixás, se apresenta de uma
forma um tanto quanto peculiar. Forma-se uma roda, com todos os médiuns da casa, e o seu
Zé Pelintra, de Dinei, comanda o rituais ao puxar os cânticos para cada orixá. E os filhos-de-
santo vão entrando em conexão com a vibração dos orixás e as manifestações acontecem na
forma de danças, gestos e brados (gritos). Cantou-se para apenas alguns orixás, que são os
que a religião umbandista se apropriou mais genericamente: Ogum, Oxossi, Oxum, Iemanjá,
Nanã, Xangô, Iansã e Omulu. Não se canta pra Oxalá nem pra Exu, e minhas interpretações
para esta questão em especial decorre de uma condição que a casa já expressou logo nas
minhas primeiras visitas: este grupo adotou uma perspectiva de que a vida está pautada numa
relação entre magia e demanda, ou seja, que sempre há alguém em potencial fazendo-lhes
alguma espécie de magia-negra, ou trabalho pro mal, amarração, sempre realizado pelos
exus em troca de oferendas (cigarro, bebidas, animais).

Se digo que o grupo adotou é porque todas as pessoas, sem exceção, com quem pude
conversar, apresentam aspectos deste pensamento. E o principal motivo alegado pelos
mesmos que leva as pessoas a entrarem em demanda é a inveja. Ou seja, a inveja faz com que
alguém, um feiticeiro naquele sentido dado em Marginália sagrada (1991) ou alguém que
contrata algum feiticeiro, se utilize das práticas mágicas visando prejudicá-los, e eles, em
contrapartida, também se utilizam de práticas mágicas para anular a mandinga ou trabalho-
feito. Esse é o discurso mais genérico. O grande problema que decorre disso é que nem
sempre o demandeiro pertence a outro terreiro: muitas vezes as demandas acontecem ali
mesmo, entre os adeptos desta casa de culto, o que faz com que a situação de conflito seja
comum no cotidiano dos mesmos.

No terceiro sábado de cada mês, acontecem os trabalhos de Quimbanda, onde ficou


explicitamente a presença do mal9 nas falas que obtive dos exus. Com todas as entidades que

9
O mal, enquanto categoria êmica, é relacionada sempre à demanda e à magia-negra. Observei um terreiro,
durante uma festa de exus e pombagiras (festa da esquerda), no dia 23 de dezembro de 2011, na qual os pontos
cantados apresentavam frases como tem sete facas sobre a mesa, eu sou da magia-negra, ou valei-me sete
diabos. O intrigante é que quem me levou ao local disse se tratar de um terreiro de Candomblé. Esta casa de

628
conversei neste ritual, havia uma estrutura discursiva: “tome cuidado, já tem gente com inveja
do que você está querendo fazer” (no caso, uma pesquisa sobre esta casa). Além dos exus e
das pombagiras, há também os bruxos, classe de espíritos mais pesados, ou seja, com
vibrações mais densas, que tem como função limpar o ambiente, incorporados nos filhos-de-
santo, ao final do ritual. No segundo e quarto sábado do mês, o trabalho é dedicado aos
baianos, que mesmo se diferenciando em demasiado dos exus, no que toca ao estereótipo, no
fim acaba que os serviços tratados pelos baianos são os mesmos que os tratados pelos exus:
demandas, amarrações, abertura de caminhos para empregos ou amores, etc. Os trabalhos no
terreiro da mãe Dora, como pode-se perceber com esta breve descrição, em nada se assemelha
ao ideal da caridade da umbanda branca.

Considerações finais

Outros exemplos de umbandas kardecizadas10 ou de umbandas mais próximas da macumba e


do candomblé poderiam ser dados. Mesmo entre os terreiros considerados como umbanda
branca fica nítido a diversidade, haja vista que cada pai-de-santo/dirigente organiza seu
itinerário religioso a partir de sua própria experiência pessoal. Marcio Goldman, utilizando
brilhantemente os “mecanismos contra o Estado”, pressupostos de Pierre Clastres, para se
analisar as religiões afro-brasileiras, escreveu recentemente:

As origens históricas e o devir das religiões de matriz africana podem, talvez, explicar a
inexistência de algo como uma doutrina, bem como seu caráter institucionalmente
descentralizado, espaço de uma variabilidade e de uma criatividade que só podem
embelezar o culto, afastando-o dos códigos monótonos das grandes religiões. De toda
forma, o fato é que cada terreiro é autônomo e de que não há poder que sobrecodifique o
conjunto por eles formado – o que, evidentemente, limita o poder de cada chefe de terreiro
– nos faz sonhar, mais uma vez, com as hipóteses clastrianas. Claro que também existe uma
‘tendência federalizante’, como a batizou Michel Agier [...], mas, além do fato de que ela
parece operar sobretudo na esfera das relações com o Estado, as próprias federações tem o
costume de se subdividirem continuamente (2009, p. 5).

culto, da qual não possuo quase nenhuma informação, seria um interessante exemplo para este trabalho, mas isto
não foi possível justamente pelo fato de que meu contato com tal terreiro foi somente nesta ocasião.
10
Um das casas por mim pesquisadas mescla o ritual da umbanda com aspectos do kardecismo, como a
psicografia. Este terreiro pouco fala de Zélio de Moraes (mas fala-se de sua existência), no entanto, realizam
diversos estudos do espiritismo kardecista.

629
Mostrando a umbanda como uma religião híbrida e rizomática, diversa em sua constituição,
pretendo advogar a premissa de que a origem da umbanda não está no kardecismo, e sim na
macumba, uma forma de religiosidade tão antiga quanto o candomblé, que remonta ao séculos
XIX e também ao XVIII.11 Não diminuindo o valor dos trabalhos de toda uma leva de
pesquisadores – Bastide (1985), Brown (1985), Ortiz (1999), Negrão (1996), Oliveira (2007)
– que crêem que a umbanda nasceu do kardecismo, trago ao debate uma outra visão: a
umbanda branca, essa sim, nasceu do kardecismo, mas como vimos, esta é apenas uma das
modalidades; várias outras umbandas dialogam muito mais com o candomblé e a macumba, e
não deixam de ser umbanda. Para estes terreiros de umbanda africana, omolocô, umbanda-
quimbanda, umbanda-macumba, umbanda cruzada, umbanda traçada, etc, com certeza a
origem não se encontra no dia 15 de novembro de 1908.

Referências

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brasileira. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS; Fundação Cultural Palmares, 2006.

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84-101, 1986.

11
Luiz Mott descreve o ritual de Luzia Pinta, uma negra que foi presa pela Inquisição na primeira metade do
século XVIII, que seria de calundu-angola (Apud ROHDE, 2009). A descrição é muito próxima de um ritual de
umbanda-macumba da atualidade.

630
CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda, uma religião brasileira. São Paulo:
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631
632
Inclassificáveis: arcaísmos nos estudos das religiões afro-
brasileiras
Antonio José Vieira da Luz1

Introdução

A proposta deste trabalho é discutir o arcaísmo de um heterônomo de identidade,


convencionada, pelo menos desde a década de 40 do século passado, para o conjunto das
religiões até hoje classificadas de afro-brasileiras. Tal adjetivo apresentaria pelo menos duas
objeções importantes: quanto a amplitude do recorte e a imprecisão dos termos. Questiona-se
principalmente sua insuficiência e inespecificidade para representar as múltiplas influências
que concorram para a formação destas religiões.

A omissão, mais frequentemente lembrada, se refere ao termo indígena e, algumas vezes


também, a ausência do termo indo-européia, na composição daquela expressão. Asssim, se os
reuníssemos num único vocábulo composto, teríamos a seguinte expressão: afro-indígena-
indo-européia-brasileira. Porém, está suposta solução não só não resolve como amplifica os
problemas, se não, vejamos.

Tanto uma quanto outra, além da imprecisão quanto as verdadeiras origens das matrizes
formadoras destas religiões, carregam também uma forte herança colonial, de caráter
homogeneizante. Afro, por exemplo, faz referência a um continente e não as etnias dos povos
especificamente desembarcados no Brasil e que pertenciam a uma área bastante particular e
restrita daquele continente chamado África. Este, além de generalista é etnocêntrico, pois é
produto de uma heteronomia do pensamento eurocêntrico colonizador: adjetivo genérico para
todos os diferentes povos daquele continente. Os escravos trazidos para o Brasil vieram de
diversas etnias e grupos linguísticos, pertencentes aos ramos classificados genericamente de
bantos (das regiões do Gabão, Congo-Brazzaville, Congo-Kinshasa, Angola, Moçambique),
nagôs (subgrupo iorubá Ifo-nyin), irorubáse jêjes (das regiões de Gana, Togo, Benim e
Nigéria) e fulas (principalmente da Guiné), que ainda assim são também classificações
generalistas e arbitrárias. Termos criados pelo tráfico de escravos onde cada termo se
compunha por uma diversidade de tribos escravizadas naquelas diferentes regiões. Portanto,

1
Teólogo umbandista pela FTU e especialista em Ciências da Religião pela PUC/SP. Contato:
aratish@uol.com.br.

633
uma pretensão de rigor absoluto nos termos parece esbarrar numa impossibilidade e um meio
termo ficaria por conta da classificação usada pelo tráfico, substituindo o genérico afro.
Continuando o exercício, ficaríamos, então, com a seguinte locução: banto-iorubá-fula-
indígena-indo-européia-brasileira.

O problema da classificação, porém, não terminaria aí, pois maiores dificuldades se


apresentam com o termo indígena - também genérico e carregado de preconceito colonial, que
nem mesmo faz referência ao continente sul-americano, mas à Índia. Um erro classificatório
que se estabeleceu na língua corrente brasileira, bastante conveniente para a geopolítica
portuguesa e para as elites latifundiárias posteriores que aqui se estabeleceram, pois
transformavam povos nativos e portanto donos destas terras em estrangeiros. Estima-se que
no Brasil2 do século XVI haviam cerca de 2.000 povos, com falares e culturas diversas entre
si. O modo de dominação colonial reificou a ideia da existência de um silvícola genérico, que
precisava ser dominado, domesticado, escravizado, quando não morto, para o sucesso do
empreedimento colonial3. Não por acaso estas culturas e religiões foram sumariamente
apagados da nossa história e das influências culturais e religiosas na cultura nacional. Esta
invisibilidade da diversidade dos povos autóctones muitas vezes contornada pelo uso da
expressão tronco tupi-guarani, que também é homogeneizante, e parece cumprir a mesma
tarefa de termos africanos supra-citados. Se aceitássemos esta última locução, nosso termo se
ampliaria: banto-iorubá-fula-tupi-guarani-indo-européia-brasileira.

Porém, a mesma dinâmica generalista e homogeneizante ocorreria com o termo indo-europeu,


já que ele abrange vários continentes: o subcontinente indiano, a Europa, Ásia Menor e
Oriente Médio. Um possível desvio para o problema da complexidade deste termo, seria
apelar para o postulado da maior influência e assim faria-se recurso ao termo luso (cristãos e
cristãos-novos) e turco-árabe (islamismo estava presente entre os Haussás africanos, como
também entre os Jejes e Nagôs), mas novamente seria um recurso à simplificação, ainda assim
teríamos o termo: banto-iorubá-fula-tupi-guarani-luso-turco-árabe-brasileira.

Em síntese, este tipo de caminho parece seguir a proposta de Arthur Ramos, para a
classificação étnica dos grupos africanos, reduzindo-as a dois grupos: os sudaneses

2
Existem alguns registros que apontam para a palavra “Pindorama”, segundo Teodoro Sampaio, do tupi pindó-
rama ou pindó-retama, “a região ou o país das palmeiras”) que teria sido a forma como os povos ando-peruanos
e as populações indígenas pampianas davam ao território que passou a ser chamado de Brasil.
3
A figura do “bandeirante” ou do “capitão do mata”, predador destes povos e culturas, passou para a nossa
história como ícone destemido, desbravador e pioneiro na ocupação da território brasileiro. Muitas vezes
enaltecido como auxiliar no empreedimento civilizatório e religoso cristão de salvar almas.

634
(basicamente iorubas ou nagôs e jêjes) e os bantos (angolas, congos, cambindas, benguelas
etc.). Embora, um pouco mais ampliada e mais específica, no entanto, sempre aquém de uma
precisa representação deste universo religioso. Seguindo tal caminho terminológico, em busca
de rigor, poderiamos chegar a conclusão de que, diante de tantas dificuldades, estas religiões
seriam, ao fim e ao cabo, inclassificáveis. Se, entretanto, recusarmos este último adjetivo,
poderíamos ser tentados a adotar a posição conformista de manter a atual nomenclatura,
mesmo que arcaica, imprecisa e insuficiente. Vamos agora investigar como teria surgido
aquela locução.

A surgimento do termo afro-brasileiro e algumas implicações de ordem etnocêntrica

Os primeiros estudos acadêmicos sobre o campo religioso afro-brasileiro priorizaram o


recorte de raça. A obra inaugural da antropologia afro-brasileira, de 1900, chamava-se O
animismo fetichista dos negros baianos de Nina Rodrigues e os escritos de seu discípulo,
Arthur Ramos, seguiram esta mesma direção: Os horizontes místicos do negro da Bahia
(1932), O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise (1934). Ao que tudo indica,
Bastide é o primeiro pesquisador importante a fazer uso deste termo no meio acadêmico
brasileiro, com as obras: A poesia afro-brasileira (1943), Estudos afro-brasileiros (publicado
em 3 volumes: 1946, 1951 e 1953), Le Principe de coupure et le comportément afro-brésilien
(1955 ).

O deslocamento semântico - de negro para afro-brasileiro - se deu ao longo do tempo.


Provavelmente pela ampliação das pesquisas de campo pelo continente brasileiro, com sua
rica diversidade religiosa, que ultrapassavam o universo religioso negro baiano dos
Candomblés. Depois, o fim do tráfico africano implicou no fato de que toda a população
negra passa a ser negra brasileira, e além disto, os movimentos migratórios internos
(deslocamento das tradições) e a crescente inclusão de mestiços e brancos nestas, sejam como
adeptos, clientes ou simpatizantes. Ainda assim, o uso de termos como religiões africanas ou
religiões negras, ainda foram muito utilizados como afirmação de caráter étnico. Porém, é
necessário destacar que, no desenvolvimento dos estudos, alguns autores de referência
defenderam e incentivaram posições etnocêntricas, principalmente com discursos
apologéticos de defesa de alguns Candomblés baianos. Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger
Bastide, Edison Carneiro, Pierre Verger, entre outros, foram alguns dos nomes envolvidos
com pressupostos apriorísticos de pureza e autenticidade nagô. Por uma conjunção de

635
interesses êmicos e éticos em busca de prestígio e poder, tais estudos se contaminaram com
pseudo-categorias de superioridade e inferioridade associadas, respectivamente, a uma
suposta pureza africana e a uma suposta degeneração das religiões mestiças (interpretadas
como brasileiras).

Bastide, neste quesito, foi pródigo em adjetivos. Sua obra elegeu o rito nagô como modelo,
seguindo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, procurou defendê-lo como puro, assim o
candomblé passou a ser descrito como um sistema harmonioso de participações, muito
próximas das suas origens africanas, de valores tradicionais e comunitários pré-capitalistas.
Do lado oposto, seguindo ainda Arthur Ramos, classificou de cultos degenerados, misturados
ou sincretizados, notadamente a macumba carioca de origem banto e a umbanda, sua
sucessora. Para ele, estes cultos misturados resultavam da degradação da ordem social das
grandes cidades, e claro, o Rio de Janeiro e São Paulo eram exemplos deste fato. Para ele,

[...] o candomblé era e permanece em meio de um controle social, um instrumento de


solidariedade e de comunhão; a macumba resulta do parasitismo social, na exploração
desavergonhada da credulidade das classes baixas ou no afrouxamento das tendências
imorais, desde o estupro, até freqüentemente, o assassinato (BASTIDE, 1971, p.414).

Por outro lado, para fazer frente à perseguição policial e religiosa católica, Mãe Aninha do
Axé Opó Afonjá criou, em 1937, os doze Obás de Xangô, título honorífico concedido aos
amigos e protetores do terreiro. Assim, arregimentou simpatias e adesões, tanto de intelectuais
como de personalidades influentes da sociedade, articulados em defesa destes candomblés. A
conjugação destes fatos, somados à defesa de intelectuais diretamente ligados à fundação da
antropologia e sociologia brasileira, levaram uma concentração dos estudos acadêmicos dos
candomblés nagôs. Esta preferência foi chamado posteriormente de nagocentrismo4 dos
estudos afro-brasileiros. Suas repercussões seriam sérias o suficiente para Dantas alertar que,

Ao autenticar cartorialmente com o carimbo da ciência a ‘pureza’ e ‘autenticidade’ dos


candomblés nagôs, os intelectuais estão fazendo com os produtores de cultura negra uma
aliança que extrapola as fronteiras da academia (Vogt e Fry, 1982) e isto vai ter
repercussões na expansão do modelo de culto pelo território nacional interferindo inclusive

4
Este processo foi objeto de análise de Beatriz Dantas na obra Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da
África no Brasil de 1982. Trouxe à tona o tema dos limites éticos da relação entre pesquisador e comunidade
nativa, como também o debate sobre a neutralidade da produção científica ou os limites entre posições êmicas e
éticas, tão cara à metodologia das Ciências Humanas, principalmente, da Ciência das Religiões. Tais estudos se
concentraram principalmente no Ilé Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca-Engenho Velho), Ilé Iyá Omi Axé Iyámase
do Gantois (Terreiro do Gantois) e Ilé Axé Opó Afonjá (Opó Afonjá).

636
nas linhas seguidas pela repressão policial que, ao menos temporariamente, ajustará o eixo
de legal/ilegal ao eixo da Religião/Magia (DANTAS, 1982, p.192).

Tal assimetria de produção invizibilizaram ou marginalizaram outras manifestações como as


Encantarias, os Jarés, Xangôs, Xambás, Babaçuês, Pena e Maracá, Tambor da Mata,
Batuques, Catimbós, Pajelanças e etc.- sem falar da diversidade dos próprios candomblés: de
Caboclo, Ijexá, Jêje, Jêje-Mahin, Jêje-Ijexá, Angola, Congo e etc. Diversidade que só muito
recentemente vem sendo redescoberta.

Nas análises acadêmicas sobre este campo religioso, um desvio metodológico frequente, é
extrapolar conclusões de um caso particular para a totalidade das religiões ou para um dos
seus segmentos. Alguns estudos sobre a Umbanda mostram que este tipo de construção,
5
viciosa, sancionou um mito de fundação produzido por um pequeno grupo do Rio de
Janeiro, ligado a Zélio Fernandino de Moraes. O trabalho da brasilianista Diana Brown,
Umbanda - Politics of an urban moviment de 1974, publicado parcialmente no Brasil sob o
título de Uma história da Umbanda no Rio, fez essa função. Apesar de no capítulo intitulado
“A Fundação da Umbanda”, dizer:

Não posso estar totalmente certa de que Zélio de Moraes, foi o fundador da Umbanda, ou
mesmo que a Umbanda tenha tido um único fundador […] A historiografia da Umbanda é
extremamente imprecisa sobre este aspecto,e, fora deste contexto, a história de Zélio não é
amplamente conhecida nem tampouco ganhou uma aceitação geral[...] (BROWN, 1985,
p.10)

Portanto, o texto é explícito sobre a incerteza, no entanto, a repetição acadêmica e midiática,


transformou deu ares verdade ao mito. Este só seria seriamente investigado e questionado por
Emerson Guimbelli em 2003 e desconstruido por Maria Elise Rivas em 2009. No entanto,
apesar da desconstrução, o tal mito de fundação ganhou uma outra variante acadêmica, a de
anunciação (OLIVEIRA, 2008), ou seja, como ato de revelação. Oliveira lança o livro
conhecidentemente no ano em que Diana Brown deu uma entrevista, publicada pela Folha de
São Paulo em 30 de março de 20086, associando Zélio de Moraes à umbanda branca e a
tentativa de branquear a Umbanda, e também relativizando a importância do Caboclo das
Sete Encruzilhadas, disse ela na entrevista:

5
Segundo Rivas Neto, a palavra Umbanda é uma palavra de origem angola, não descende de quimbanda e não é
brasileira. Vide Rivas Neto. Disponível em <http://sacerdotemedico.blogspot.com.br/2013/08/umbanda-de-
todos-nos-umbanda-e-africana.html>. Acesso em 16 de ago. 2013.
6
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3003200805.htm>. Acesso em 17 de ago. 2013.

637
FOLHA - Qual o papel do Zélio de Moraes na construção da umbanda? BROWN -
Ele e seu grupo conseguiram promover a imagem dessa umbanda que foi chamada de
umbanda branca. Foi um esforço para embranquecer e modernizá-la. O papel dele é
simbólico, foi o porta-voz dessa ‘nova’ umbanda.

FOLHA - O fato de ele ter recebido em 1908 o Caboclo das Sete Encruzilhadas
significou uma ruptura com o kardecismo? BROWN - Eu não diria isso. Para ele [Zélio
de Moraes] foi uma ruptura, mas era mais uma expressão do ecletismo que já existia. Foi
esse caboclo quem falou para o Zélio que ele seria o fundador, mas antes já existiam
caboclos e a prática de religiões africanas. Era uma grande mistura.

No entanto, a reprodução recorrente do mito e da suposta importância de Zélio de Moraes


(que era branco e de classe média) chancelou o estigma de etnocêntrica para toda a Umbanda,
quando na verdade isto correspondia a ideologia de um de grupo minoritário carioca, que se
auto-intitulou de Umbanda Branca. Invizibilizou-se o pluralismo e a diversidade das
diferentes Umbandas – Traçadas ou Omolocô, Oriental, Iniciática, de Mesa, Umbandaime,
Embandas e Quimbandas etc. Tomou-se a parte pelo todo e criou-se assim uma espécie de
estereótipo de embranquecimento (uma modalidade de racismo) compulsoriamente estendida
ao conjunto desta religião.

Ao longo do tempo, a reprodução destes apriorismos alimentou o imaginário acadêmico e no


senso comum, a ideia reducionista de que as religiões afro-brasileiras eram compostas por
uma dicotomia entre religião e magia: de um lado o candomblé africano “puro” e, de outro, a
magia dos cultos degenerados pelas misturas e sincretismo.

A expressão afro-brasileira é fruto de uma concepção multiculturalista de enquistamento,


nasceu dividindo o que era afro do que era brasileiro, aprioristicamente defindo suas
fronteiras, chancelando algumas como autênticas e execrando outras como sincréticas ou
misturadas. Um dos desdobramentos desta cultura de dualismos pode ser compreendido nas
diferentes e reiteradas tentativas de codificação e de ortodoxia, produzidas por alguns grupos
de umbandistas e candomblecistas, em episódios de intolerância intra e inter-religiosa, em que
se articulam pureza, ortodoxia e hegemonia. Um episódio que marcou a história da Umbanda
foi a luta entre africanistas, representados por Tancredo da Silva Pinto (Tata Ti Inkice) e
zelistas (arianistas kardecistas) sobre a origem desta religião, o primeiro reivindicando a
origem e a metodologia africana da mesma e, os segundos afirmando as teses do Primeiro
Congresso de Umbanda, resumidas assim:

638
De modo geral, as teses apresentadas a este congresso revelam o mesmo objetivo: provar
que a Umbanda era uma religião oriental, de feição mágico iniciática que florira em época
remotíssima, mas sofrera uma síncope prolongada, de muitos séculos, ao atravessar as
regiões negras da África, durante a qual teve a pureza de seus princípios maculada pela
ignorância do selvagem […] (D´ALCANTARA,1949 Apud BROWN, 1985, p.89).

Um outro episódio, agora ligado ao Candomblé.

A posição diante do sincretismo parece ter sido uma das razões da divisão no terreiro de
onde provém o casal Santos. De fato, Mãe Stella, ialorixá do Axé Opô Afonjá de Salvador,
foi a primeira a se opor ao sincretismo, condenando o culto do caboclo, que era
extremamente difundido, mesmo em terreiors ‘tradicionais’, como culto não-africano. Sua
posição foi contestada por outros terreiros e pela INTECAB, que defende o culto ao
caboclo, pois ele representa o ‘dono da terra de nosso Brasil’ (Siwaju, 1991, p. 2). Segundo
Ordep Trindade Serra (1995, p. 63-64), que visivelmente toma partido de Mãe Stella, se
esta não está de acordo com a linha política do INTECAB, é porque seus ‘irmãos de fé’ (o
casal Santos) propõem uma organização dos cultos de origem africanas sob a autoridade
dos iorubás. O autor conclui afirmando que ‘a produção ideológica’ do casal Santos não
unanimidade entre os nagôs da Bahia, nem mesmo nos terreiros que eles consideram os
mais representativos da ‘tradição pura’ (63-64). Evidentemente, está em jogo aqui a
linderança sobre os cultos afro-brasileiros (CAPONE, 2004, p.320).

Para fechar este capítulo, não seria demais lembrar, as terríveis tragédias produzidas por
conflitos étnicos ao longo da história da humanidade. A distância entre étnico e etnocentrismo
parece-nos perigosamente pequena. Entendo que grupos etnocêntricos são exacerbações de
uma identidade étnica particular que radicalizam suas fronteiras, tendem a produzir ortodoxias
e a produzir enquistamentos culturais e religiosos. Inclinam-se ao extremismo, construindo
em seu repertório retórico um arsenal de rancor, amargura e intolerância, justificando-o como
necessário para alguma finalidade de pureza, de resgate de alguma tradição. Neste último
aspecto, Carneiro da Cunha é incisiva ao afirmar, “[...] grupos étnicos são formas de
organização que respondem às condições políticas e econômicas contemporâneas e não
vestígios de organizações passadas” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 230).

Cidadania religiosa e cultural: para além da tolerância

O povo brasileiro é mestiço, uma composição indissociável de etnias que não pode ser
reduzida ou representada por qualquer uma das singularidade que a compõem. Portanto, falar

639
no povo ou na cultura brasileira, implica necessariamente compreender estas raízes em que
foram produzidas diferentes hibridações e sínteses que emprestam os sinais mais específicos
de nossa identidade, não homegênea, mas diversa. Não somos monocromáticos ou bicolores,
somos policromáticos, na tez, nas culturas e nas religiões. Sim, a dimensão religiosa brasileira
espelha as nossas raízes étnicas, suas hibridações e sínteses.

Seguindo a tese da assimetria do sagrado proposta por Rivas Neto(2012) podemos


compreender a produção deste campo religioso diverso e não homogêno, por meio de
escolas espirituais. Segundo ele, estas diferentes escolas espirituais (com métodos, éticas e
epistemologias próprias) se gestaram por aproximações e distanciamentos diversos de suas
três matrizes formadoras básicas: africanas, ameríndias e indo-européias. Assim, por exemplo,
o Catimbó teve em sua formação uma maior influência de elementos da matriz indígena e
indo-européia (católica e bruxaria) e quase nada de influências africanas7. O Candomblé de
Caboclo, por outro lado, teve maior aproximação com as tradições africanas e ameríndias e
uma menor influência da matriz indo-européia. A Umbanda Branca, por sua vez, tem muita
influência indo-européia (Catolicismo e Kardecismo), pouco ameríndia e menos ainda de
elementos africanos.

Entedemos, por outro lado, que tais assimetrias espelham também os diferentes contextos
históricos em seus aspectos sociais, culturais, econômicos e geográficos (população, clima,
topografia, vegetação, disponibilidade de alimentos e condições de isolamento) das diferentes
regiões brasileiras em seus diferentes ciclos migratórios e imigratórios além dos econômicos:
extrativismo, cana-de-açúcar, pecuária, da mineração, do café, da borracha, da
industrialização e na urbanização brasileira. Sem esquecer da diversidade de destinos das
diferentes etnias africanas nos diferentes momentos do tráfico de escravos. Assim, a
diversidade religiosa do Norte e Nordeste brasileiros, onde foi marcante a presença de
elementos de tradições indígenas e africanas banto e mina-jeje, que produziram as diversas
Pajelanças, Catimbós, Tambor de Mina, Terecôs, ou das diversas Encantarias na região do
Maranhão, reunindo elementos miscigenados de diferentes tradições africanas, indígenas e do
catolicismo popular, por exemplo, não têm as mesmas características do encontro destas
mesmas três matrizes na região Sul ou Sudeste com maior presença de povos bantos e

7
Importante frisar que toda a tipologia é antes de tudo um modelo teórico, um recurso didático para a
compreensão da complexidade da realidade. Portanto, este modelo não nega a possibilidade de diferentes
hibridações, aproximações e mesmo convivência entre diferentes ritos em uma mesma casa espiritual.
Nossavivência neste campo religioso, de mais de vinte anos, mostraram-nos que, em muitos terreiros, seus
condutores têm dupla pertença: tocam para o Candomblé e para a Umbanda, por exemplo.

640
sudaneses embora os Batuques podem ter mistura de várias nações: oyó, ijexá, jeje, cabinda,
nagô, por exemplo . A Macumba, Kimbanda e Umbanda, com fortes influências banto, angola
e nagô, além do catolicismo popular. Claro que os fluxos migratórios entre as diversas regiões
deste país continental foram e são ainda, também, deslocamentos culturais e religiosos. A
título de exercício podemos imaginar que o Tambor de Mina, surgido no Maranhão, ao migrar
para São Paulo irá ganhar outras cores e novos sentidos com o passar do tempo e termine
provavelmente influenciando outras escolas espirituais, como também, sua escola de origem
no Maranhão.

Não podemos deixar de mencionar a influência dos diferentes cenários sócio-político-


religiosos locais e internacionais na construção e na destruição do patrimônio religioso
brasileiro, neste último aspecto tivemos: repressão policial, perseguição religiosa cristã,
política imigratória racista oficial e preconceito. Por outro lado, houve o aporte de outras
tradições e de outras culturas que de uma forma geral alargaram os horizontes de tolerância de
nossa sociedade, embora tenhamos vivido, com nos dias de hoje, debaixo de alguma forma de
hegemonia cultural, europeia ou norte-americana.

Retomando, o caráter assimétrico, sincrônico e diacrônico das miscigenações culturais


brasileiras por meio de diferentes sincretismos religiosos e a ausência de uma instância
normativa com a função de produzir ortodoxias, parecem subsidiar a proposição de Rivas
Neto, de que este campo religioso pode ser descrito como uma unidade aberta em constante
transformação, por releituras/interpretações de suas próprias raízes para os contextos
contemporâneos em que estas mesmas escolas espirituais estão inseridas. Segundo ainda este
autor, este campo pode ser melhor representado por uma figura de gestalt em movimento,
onde há uma interdependência dinâmica e relacional entre a singularidade da identidade das
partes (escolas) e a identidade da totalidade do campo. Assim, todas as escolas são igualmente
importantes e o campo pode ser entendido como uma unidade aberta de diversidades em
construção. Diferenças não são desigualdades, portanto, não precisa da tolerância para
justificar a sua existência, sua razão de existência é a própria diversidade.

Considerações finais

Em resumo, seria possível uma outra nomenclatura, que ultrapassasse os arcaísmos, as


dualidades, invisibilidades, um termo de horizontes abertos para uma identidade de

641
diversidades e pluralidades em construção? Essa era a minha pergunta inicial, dada as
insuficiências do termo afro-brasileiro, que tem uma carga e um caráter muito localizado no
tempo e espaço. É fato que este campo religioso em sua formação e desenvolvimento segue a
formação do nosso povo e de nossa cultura, que não é monocultura, portanto, não pode negar
as suas raízes ameríndias, africanas e indo-européias. Não podemos negar a língua
portuguesa, mas a nossa língua, o falar brasileiro, segundo Yeda Castro (2012), é um
português colonizado por africanos e ameríndeos, mas não é nenhum deles ao mesmo tempo,
é brasileiro. Tal qual a língua ritualistíca deste campo, que não é iorubá, quicongo,
umbundo,quimbundo, fon, gun, ewe-fon, etc. , mas uma líguagem mestiça. Por exemplo, em
África não existiu candomblé, que aliás vem de uma palavra banto - povos que cultuavam os
inquices e não os orixás (nagôs e iorubás). Julio Braga, doutor em antropologia e sacerdote
Mogbá Sàngó e diretor geral do Instituto Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) de Salvador,
com lucidez impar, esclarece esta questão:

Certo é que diferentes variantes do candomblé, quaisquer que sejam os distanciamentos das
matrizes de origem, estão estruturalmente comprometidas com complexos e complexos
valores religiosos africanos. Contudo, em nenhum caso, até mesmo para os chamados
candomblés tradicionais ou mais tradicionais, verifica-se uma reprodução de uma
determinada organização religiosa africana. O que parece ter acontecido, ao considerar a
grande diversificação do continuum religioso afro-brasileiro, foi um processo de
redefinição da herança religiosa fazendo surgir uma estrutura de base, já nacional, ou
nacionalizada, capaz de, preservando elementos de origem, redefiní-los em muitos casos, e
permitindo que outros valores não-africanos se incorporassem e, no encontro entre eles,
emanasse um sistema de crenças que motiva e anima as comunidades religiosas afro-
brasileiras. Assim é que os candomblés sintetizam diferentes valores culturais ao formar
uma complexa organização socioreligiosa, que não encontra paralelo em nenhuma das
sociedades africanas comprometidas com o tráfico de escravos para o Brasil. Muitos dos
sacerdotes que foram à África em busca de novas informações para enriquecer seus
conhecimentos litúrgicos, por curiosidade ou simples desejo de uma aproximação com as
origens dos cultos, voltaram com alguma decepção. Acontece que não encontram nenhuma
estrutura religiosa que se aproxime ou pudesse ser tomada como modelo para as suas
próprias casas de culto para as diferentes divindades de origem africana. (BRAGA, 2006, p.
123).

No Santo não há nada puro, mas alguns discursos étnicos de pureza. Então, como tudo isto se
formou aqui no Brasil e aqui pisa, vive e respira. Parece-nos melhor chamar de religiões
brasileiras ou do Brasil, porque todas elas merecem a cidadania brasileira, por que forjaram a
nossa cultura e o nosso espírito.

642
Referências

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil - Contribuição a uma sociologia das


interpenetrações de civilizações. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1971.

BRAGA, Julio. Candomblé: Tradição e Mudança. Coleção Etnobahia. Salvador: P555


edições, 2006

BROWN, Diana. Uma História da Umbanda no Rio. In: BROWN, Diana; NEGRÃO,
Lísias et al (orgs). Umbanda e política. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

CAPONE, Stefania. A busca da África no Candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de


Janeiro: Contra Capa Livraria; Pallas, 2009.

D´ALCANTARA, A. Umbanda em julgamento, 1949. In: BROWN, Diana; NEGRÃO, Lísias


et al (orgs). Umbanda e política. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

GIUMBELLI, Emerson. Caminhos da Alma. São Paulo: Selo Negro, 2003.

OLIVEIRA, José H. M. Das Macumbas à Umbanda: a construção de uma religião brasileira.


Limeira: Editora do Conhecimento, 2008.

RIVAS NETO, F. . Escolas das Religiões Afro-brasileiras: tradição oral e diversidade. São
Paulo: Arché Editora, 2012.

Internet
CASTRO, Yeda P. Das línguas Africanas ao Português Brasileiro. Disponível em
<https://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:7oXRztTXJvYJ:www.afroasia.ufba.br/pdf/af
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OyJnC3gOjD6hv1YGc8xaCijl2xMVvDv2NRhQgdVoI9iHvlOsI_oe2P4s1AYigfSD3mcwKC
uWF_CenBm7yyka0paJIhJw0hlWR69ndO55tVxrwe&sig=AHIEtbSpzhcecyQosu9PJptQp3E
GB-zAew>. Acesso em 12 de nov. de 2012.

RIVAS, Maria Elise. O mito de origem: Uma revisão do ethos umbandista no discurso
histórico. Disponível em <http://ftu.edu.br/producoes-
academicas/monografias/monografias.html> Acesso em 16 de ago. 2013.

643
644
O catimbó de ontem não é apenas a Jurema de hoje:
(in)visibilidade da tradição em um culto das Religiões Afro-
brasileiras
João Luiz Carneiro1

Introdução

O Catimbó vem sendo pesquisado desde meados do século XX como uma tradição afro-
brasileira marcadamente nordestina. Inicialmente, sua prática ritual influenciou a Jurema e,
com o passar do tempo, a segunda praticamente incorporou a primeira.

A presente pesquisa busca apresentar outras manifestação do catimbó em práticas religiosas


afastadas da região nordeste do país, e que não necessariamente estão ligados à Jurema;
levando em consideração os elementos rituais e sociais que o catimbó enseja nestes cultos
hodiernos sob a perspectiva da umbandização e do conceito teológico de escolas.

Sendo assim, na primeira parte deste artigo, abordarei as características principais do Catimbó
e seu estabelecimento no culto de Jurema. Tal associação é tão intensa que um e outro são
considerados como a mesma expressão religiosa.

No segundo momento a questão da umbanda esotérica emerge em termos de doutrina, método


e ética. As considerações finais apresentam possibilidades do catimbó permanecer vivo dentro
da tradição de umbanda esotérica.

Catimbó-Jurema ou umbanda nordestina?

Podemos definir a Jurema como um complexo semiótico, fundamentado no culto aos


mestres, caboclos e reis, cuja origem encontra-se nos povos indígenas nordestinos. O nome
Jurema advém de uma planta da família das mimosaceae, de cujas raízes ou cascas se
produz uma bebida, de igual nome, consumida durante os rituais. As imagens e os símbolos
presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito como ‘reino encantado’,
‘encantos’ ou ‘cidades da jurema’. Seguindo a tradição dos antigos mestres, os pés da
jurema, após serem ‘calçados’ (sacralizados), são considerados cidades, moradia dos

1
Doutorando em CRE pela PUC/SP, mestre em Filosofia pela UGF-RJ. Docente da FTU. Pesquisa de doutorado
financiada pela CAPES. Contato: joaocarneiro@ftu.edu.br.

645
mestres invisíveis, sua ciência, simbolizando ao mesmo tempo, morte e renascimento
(SALLES, 2012, p. 192-193).

A jurema, nos contextos hodiernos, precisa ser pensada e compreendida no ambiente


umbandista. Para chegar até esse ponto, Luiz Assunção apresenta uma relação de acadêmicos
que pesquisaram a jurema. Essa relação está profundamente ligada com o catimbó nordestino.

Um importante ponto de partida para compreensão dessa escola umbandista está em Roger
Bastide.

[...] da Amazônia às fronteiras de Pernambuco será domínio do índio. Foi ele quem marcou,
com profunda influência, a religião popular, pajelança no Pará e na Amazônia,
encantamento no Piauí, catimbó ou cachimbo nas demais regiões. O negro importado
integrou-se nesta religião [...] O primeiro esboço do catimbó aparece nas próprias origens
da colonização, onde toma o nome de santidade2. [...] Centralizava-se esse culto num ídolo
de pedra, chamado Maria, e dirigido por um ‘papa’ e uma ‘Mãe-de-Deus’; entrava-se para
esse culto por uma espécie de inciação, simples cópia do batismo católico, e todo o
cerimonial constituía um sincretismo bastante desenvolvido de elementos cristãos
(construção de uma igreja para adoração do ídolo, porte de rosários e de pequenas cruzes,
procissões de fiéis, os homens na frente e as mulheres com seus filhos atrás) e de elementos
indígenas (poligamias, cantos e danças, uso do tabaco, ‘a erva sagrada’, à moda dos
feiticeiros indígenas: tragava-se a fumaça até a produção do transe místico, que se chamava
precisamente o espírito da santidade) (BASTIDE, 1971, p. 243-244).

A primeira parte da transcrição oferta elementos para compreender a diversidade religiosa


afro-brasileira. O fato de predominar o indígena na região nordeste citada por Bastide dialoga
a favor da assimetria do sagrado desenvolvida por Rivas Neto (2012) e já discutida aqui.

No caso da santidade, fazendo alusão ao triângulo sugerido por Rivas Neto (cf. Rivas Neto,
2012) para explicar a formação das escolas afro-brasileiras, penderia para o lado indo-
europeu e indígena. Ainda sim o culto do espírito da santidade tem muita proximidade da
prática umbandista, tal como Maria Elise Rivas (2008) apresentou as relações com Juca Rosa
e João de Camargo. Naturalmente, que a mesma descrição está igualmente próxima da prática
da jurema.

2
Sobre a santidade, Bastide (1971, p. 243) evoca a fontede tal culto na Bahia. Contudo, reconhece que a
santidade acontecerá em vários locais do Brasil. No caso de São Paulo, como exemplo, cita Alcântara Machado
com o livro “Vida e Morte do Bandeirante”, quando na página 212 a santidade é conhecida pelo nome de
“caramoinhaga”.

646
Roger Bastide (1971, p. 244) vai colocar o culto indígena dos caboclos como o mediador da
extinta santidade para o catimbó. Na festa da jurema ou ajuá, influência clara dos ameríndios,
os elementos católicos começam a influenciar e ofertarão os contornos mais presentes nos
cultos umbandistas nordestinos atuais. Por exemplo, os cânticos sagrados de abertura: “Abre-
te, mesa. Abre-te, ajucá. Abri-vos, portais. E balcão reais. Abri-vos, portais, balcões e
pavilhões reais3” (BASTIDE, 1971, p. 247).

Na descrição desses catimbós-jurema, Bastide (1971, p. 248-249) reconhece que os cultos


funcionam basicamente para atender problemas de pessoas que não tem acesso à saúde e
outras necessidades sociais que requerem certa condição financeira. Essa camada mais pobre
só possui o processo sobrenatural para cura. O caráter descritivo de Bastide é tão eficiente
quanto pejorativo. Considera pobre a mitologia que sustenta a prática de jurema. Afirma
também que cada reino possui um certo número de estados. Por sua vez, cada estado tem
outras comunidades subordinadas formando uma complexa relação espiritual que repercutirá
de múltiplas formas na interação com o mundo natural mediado pelos mestres e adeptos da
jurema.

O elemento negro também está muito presente. Roger Bastide (1971, p. 250-253) cita as
figuras de Pai João, Pai Joaquim, Pai Ignácio4 como um dos principais mestres negros que
estão presentes no catimbó. Interessante na descrição do Pai Joaquim é que na linha desses
mestres negros a palavra asquimbama, termo de influência africana, está sempre presente.
Sobre esta palavra “penso que é uma corruptela de ‘t’chinbanba’ em ambundo, feiticeiro,
médico, pajé” (BASTIDE, 1971, p. 251). Se a relação de Bastide estiver correta, pelo menos é
bem lógica, essa palavra está na mesma raiz de mbanda com igual significado de feiticeiro
(CHATELAIN, 1894).

Luiz Assunção muda um pouco a lógica de Bastide ao analisar aquilo que o primeiro iria
tratar como umbanda do sertão nordestino. “Inicialmente, apontamos para a necessidade de
compreender o culto da ‘jurema’ em um espaço definido como de umbanda, uma religião com
princípios organizacionais buscando legitimidade social” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 208).

3
Luiz Assunção (2010, p. 87) encontrou na pesquisa de Gonçalves Fernandes um cântico sagrado de abertura
muito parecido: “Abre-te mesa, Abre-te ajucá, Abre-te cortina, Cortina Reá! Vem vê o mestre De Espirauá! De
Espirauá! De Espirauá!” (FERNANDES, 1938, p. 90-91)
4
Esses termos e suas características estão muito próximos ao arquétipo de “preto-velho” da umbanda popular.
Nas umbandas cariocas era muito comum a existência de pretos-velhos “quimbandeiros” que possuíam uma
postura e ação ritual parecida com a descrição ofertada por Bastide (1971, p. 251).

647
Sua abordagem dá mais voz (e atenção) ao insider.

Qual a ideia formada e a imagem construída no pensamento e na prática sobre a ‘jurema’


para os juremeiros umbandistas do sertão nordestino? Estamos nos referindo àqueles
praticantes da ‘jurema’ que também se identificam como umbandistas, espiritualistas,
católicos. Essa pluralidade de possibilidades de identificações aponta para a ideia que
permeia suas falas ao apresentar a umbanda como um universo que permite a existência de
diferentes práticas religiosas (ASSUNÇÃO 2010, p. 112).

Para reforçar essa percepção no campo de pesquisa, Luiz Assunção (2010, p. 113) evoca a
fala de Seu Antônio Cau (Sousa-PB), localizado no interior da Paraíba onde afirma
explicitamente sua pertença umbandista.

A jurema, no discurso do insider pesquisado por Assunção (2010, p. 113-122)5, vai ocupar no
espaço umbandista várias funções: fundamento religioso, lugar da natureza natural e
sobrenatural, entidades espirituais (mestres e caboclos), magia para o bem ou mal, linha de
umbanda.

Os rituais de jurema são divididos em atividades públicas e privadas. A influência kardecista


está presente no cotidiano dos terreiros umbandistas por meio da mesa astral ou mesa branca
kardecista (ASSUNÇÃO, 2010, p. 185-186). Contudo, essa mesa está umbandizada. Tendo
em vista que essas mesas são abertas para curar clientes aos moldes mediúnicos da umbanda.
Nos rituais de jurema, o elemento cristão também é fartamente encontrado, seja por meio de
orações católicas ou utilização de santos. Duas modalidades do culto podem ser destacadas. A
mesa de jurema e as giras propriamente ditas.

A mesa de jurema, mais tradicional, se desenrola como uma sessão de consulta, atendendo os
necessitados de forma mais restrita, normalmente envolvendo a salva 6 que normalmente visa
fazer ou desfazer uma macumba no sentido de trabalhos mágicos (ASSUNÇÃO, 2010, p.
190). No relato de Seu Joaquim Matias (Juazeiro do Norte-CE), atuavam grandes mestres:
“Mestre Arranca Toco, Carlos, Benvenuto, Antônio, Joaquina, Pereira, Paulo, Bernadina,
Tertuliano, Zé Pilintra”; e depois: “Era muita força. Tinha vela branca, copo com água, as
princesas, santos, Santa Bárbara, São Jorge. A mesa era bem preparada. (...) Os mestre

5
Além do Sr, Antônio Cau, Luiz Assunção utiliza o conhecimento religioso de: Seu José Júlio Laurindo
(Salgueiro – PE), Dona Cícera dos Santos (Juazeiro do Norte – CE), Zezé Homem de Oxóssi (Juazeiro do Norte
– CE), Mãe Quinha (Sousa – PB), Dona Francisca Alves (Picos – PI), Dona Inácia Gabriel Carrido (Sousa – PB),
Pai Levino (Patos – PB), Maria do Carmo Ferreira dos Santos (Patos – PB), Seu Alberto (Patos – PB).
6
Pagamento pelos serviços mágico-religiosos.

648
baixavam e ia um por um consultar aquelas pessoas necessitadas” (ASSUNÇÃO, 2010, p.
191).

Concluindo sua pesquisa, “[...] fizemos um caminho à procura do culto da jurema no sertão
nordestino, mas à medida que o procurávamos, íamos descobrindo a umbanda em suas formas
diversas e surpreendentes” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 267). Nas páginas seguintes arremata:

Não há uma ‘absorção’ dos cultos populares por parte da umbanda, como que eliminando a
religiosidade; pelo contrário, apesar de se apresentar com a cara da umbanda, por trás
encontram-se os elementos principais do culto da jurema, fazendo-o continuar de alguma
forma. É no contexto da umbanda, que as práticas religiosas populares, como o culto da
jurema, por serem marginalizadas, estereotipadas e ideologicamente perseguidas,
encontram respaldo e espaço para afirmação de suas práticas (ASSUNÇÃO, 2010, p. 269).

Com essas considerações, é possível observar a dificuldade de associar diretamente a Jurema,


enquanto escola umbandista, aos contextos históricos e sociológicos das umbandas da região
sudeste e sul. Claro que, por se tratar de umbanda em ambos os casos, analogias entre uma e
outra podem ser estabelecidas no âmbito dos pontos comuns. Ainda assim, desde que se
reconheçam a diversidade de expressão desses mesmos pontos. Nesse sentido, a leitura
teológica a partir do conceito escolas facilita a compreensão7.

A umbanda esotérica

O termo umbanda esotérica pode ser encontrado desde o século passado em registros escritos.
No livro, com cunho religioso, de Oliveira Magno (1962), por exemplo, recebeu o título
Umbanda esotérica e iniciática8, no que pese não entrar em questões internas da doutrina
umbandista, parecendo muito mais uma escolha estética do que preocupado com o conteúdo.
Outro exemplo de uso vem de Osório Cruz que 1954 publicou o texto O esoterismo de
umbanda.

Aspectos que evocam questões da umbanda esotérica foram discutidos em 1941 por
Diamantino Coelho durante o Primeiro Congresso Nacional de Umbanda (ANON, 1942). Na
ocasião, Coelho era delegado da Tenda Espírita Mirim, fundada na década de 20. Outros

7
Cf. Carneiro, 2012.
8
Provavelmente a primeira a edição foi publicada em 1950. Contudo, não foi possível localizar em nenhum
acadêmico de referência essa citação, bem como na biblioteca nacional. Na rede mundial de computadores a data
atrelada à primeira edição é esta, porém fora extraída de sítios eletrônicos com referências duvidosas.

649
autores no referido congresso fazem uma ou outra alusão às origens da Umbanda em
primevos tempos.

Contudo, certamente o nome que marca a passagem do esoterismo de umbanda como


característica comum a qualquer religião, ou seja, a parte mais interna de uma cosmovisão,
para uma escola umbandista propriamente dita com doutrina (epistemologia), linha de
transmissão (método) e estilo de vida (ética) é W. W. da Matta e Silva9.

De todas as obras, certamente a primeira Umbanda de Todos Nós, publicada originalmente em


1956, marca a posição da escola umbandista fundado por Matta e Silva de maneira mais
característica. Inclusive, de todos os livros, fora também o mais discutido e comumente
encontrado em visitas aos terreiros, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, realizadas ao
longo dessa pesquisa.

Matta e Silva (2004), na primeira parte da obra, apresenta uma definição de umbanda como
uma religião primeva. O termo se originaria de antigos alfabetos primitivos, notadamente o
alfabeto adâmico ou vatan.

No que diz respeito ao mito da umbanda ser uma tradição primeva, outros contemporâneos
também abordaram o assunto (ANON, 1942). Contudo, Matta e Silva faz uma pesquisa
detalhada em linguistas e esoteristas, por exemplo, Sant-Yves d’ Alveydre, e suas conclusões
apresentam ângulos novos sobre esse mito.

Ainda na primeira parte, o segundo capítulo apresentará uma abordagem sobre as sete linhas
de umbanda relacionando-as com os sete orixás principais dessa escola. A capacidade de
sistematizar essa abordagem das sete linhas fora reconhecido por alguns acadêmicos 10. Sua
teologia propõe sete linhas: “Vibração de Orixalá (ou Oxalá), Vibração de Yemanjá, Vibração
de Xangô, Vibração de Ogum, Vibração de Oxossi, Vibração de Yori11, Vibração de
Yorimá12” (MATTA E SILVA, 2004, p. 93).

Cada linha comporta sete legiões. Cada legião possuiria quarenta e nova “Orixás Chefes de
Falanges” e, esses últimos, trezentos e quarenta e três “Orixás Chefes de Subfalanges”. Por
sua vez coordenam os “Guias” e “Chefes de Agrupamentos”, estando no último nível os

9
Seu nome sacerdotal é Mestre Yapacany.
10
ORTIZ, 1991, p. 78.
11
Nas umbandas populares, Yori se relacionaria com o orixá Ibeji.
12
Nas umbandas populares, Yorimá se relacionaria com o orixá Obaluayê.

650
“Protetores” (MATTA E SILVA, 2004, p. 106-107). Essa hierarquia das entidades que atuam
na umbanda funciona como um complexo sistema totalmente interligado.

Matta e Silva, ao usar seu mediunismo, trabalhava com Pai Guiné, entidade reconhecidacomo
preto-velho. Também trabalha com o Caboclo Juremá. Além de outros guias espirituais.

Avançando nos conhecimentos religiosos apresentados no livro, Matta e Silva (2004, p. 155-
302) vai apresentar na segunda parte do livro métodos de aplicação desse conhecimento
exposto na primeira parte.

A começar pela forma e apresentação dos espíritos na umbanda com cada uma das sete linhas.
Também se preocupa com a mediunidade na Lei de Umbanda associando aos aspectos
inconscientes e semi-conscientes. Faz uso de autores do kardecismo, especificamente dois
muito conhecidos na religião: Chico Xavier e Edgar Armond. Também evoca os
conhecimentos do oriente, lançando mão de conceitos como prana e chakras.

Apresenta o ritual de umbanda esotérica com minúcias, apoiando-se em gráficos e até


desenhos de como se posicionam os médiuns durante a gira. Dispensa a utilização de
tambores, no que pese saber pelo atual condutor da umbanda esotérica, Pai Rivas, que em
casos muito específicos os instrumentos de percussão sacra eram utilizados.

Os banhos de ervas e as conhecidas defumações também são descritas com detalhes (MATTA
E SILVA, 2004, p. 207-230). Um ponto interessante é a sua discussão sobre a escrita sagrada,
conhecida nos terreiros de umbanda com o nome de Lei de Pemba, pontos de pemba ou
pontos riscados (MATTA E SILVA, 2004, p. 238).

O interessante da lei de pemba é a sua relação com a escrita primeva das antigas civilizações.
Isso demonstra uma maior interação das religiões afro-brasileiras não só com a escrita, mas
também com a escrita ao longo da história.

A questão da iniciação, fator tão importante para as várias escolas das religiões afro-
brasileiras, ganho um capítulo inteiro para a argumentação de Matta e Silva (2004, p. 253-
302). A função do sacerdote na transmissão do conhecimento e preparação do neófito
(iniciando) é destacada. A mediunidade também ocupa um lócus importante nessa
transformação que o adepto da escola de umbanda esotérica passará.

651
Tudo é calcado na magia, no mito, na experiência ritual. O que naturalmente mostra a
preocupação do autor em apresentar um argumento coerente sobre umbanda para o público
geral, sem desmerecer a vivência templária. Pelo contrário, a valoriza.

A questão mágico-religiosa ganha força na terceira parte da obra. Seja falando de espíritos da
natureza, seja sobre a força criativa da mente humana. Finalmente apresenta Os Sete Planos
Opostos da Lei de Umbanda (MATTA E SILVA, 2004, p. 317-336). Ao contrário da
umbanda branca que localizou o exu de forma marginal, quando não excluída dos seus ritos
no início do século XX, Matta e Silva vai alça-lo à condição de significativa importância.

Chama esse conjunto de planos opostos como Quimbanda13. Assim como existem os sete
planos onde atuam os orixás, a quimbanda “é composta de Sete Planos Opostos ou Negativos
da Lei, geradores do equilíbrio entre o que está em cima e o que está embaixo, ou, em sentido
esotérico, ‘uma paralela atuante’” (MATTA E SILVA, 2004, p. 318).

Daí a distinção da umbanda para quimbanda, segundo Matta e Silva. Se nas umbandas cristãs
coloca-se o bem para a primeira e o mal para a segunda, na umbanda esotérica as duas estão
em equilíbrio. Após discorrer sobre a epistemologia e método da umbanda esotérica, essas
considerações do autor permitem concluir que, no campo da ética, a categoria que pode ser
utilizada com maior proximidade do seu pensamento é a justiça destituída da noção
maniqueísta.

Esse estilo de vida (ética) da umbanda esotérica não pode ser confundido como a inexistência
de processos mais contundentes14 ou o contato constante com consulentes que sofrem
problemas de ordem mágica. Durante as várias obras de Matta e Silva, a questão é trazida e
tratada com veemência.

Se a obra fala muito do pensamento do autor, seus discípulos demonstram como essas ideias
se concretizaram e perduraram, ou não. Ainda existem alguns discípulos que foram iniciados
por Matta e Silva e que servem de fonte fidedigna da parte prática dessa escola.

13
A utilização do termo “quimbanda” para os rituais de exu não é diferente da maneira como a maioria das
umbandas denomina.
14
Sobre médiuns que não cumprem com seus compromissos espirituais e sociais no que diz respeito à sua
comunidade de santo, é comum a retaliação dos exus ou aquilo que o senso religioso convencionou de “força de
pemba”.

652
A escolha de pesquisa foi Francisco Rivas Neto. A mesma se dá por dois motivos. O primeiro
por ser seu sucessor, após a realização de um rito específico no final da década de 80 com
essa finalidade. Além disso, Matta e Silva deixou registrado em cartório tal transmissão.

Assim como seu mestre, Rivas Neto produziu uma extensa literatura que penetrou
profundamente o senso religioso umbandista15. Até o final de 2012 publicou as seguintes
obras, incluindo as já citadas: Umbanda a Proto-Síntese Cósmica, Umbanda – o elo perdido,
Lições Básicas de umbanda, O Arcano dos Sete Orixás, Exu – o grande arcano, Fundamentos
Herméticos de Umbanda, Cura e auto cura umbandista – terapia da alma, Sacerdote, Mago e
Médico – cura e auto cura umbandista, Escolas das Religiões Afro-brasileiras: Tradição
Oral e Diversidade.

Sobre o contato com a T.U.O. emItacurussá (RJ), Rivas Neto afirma categoricamente:“A
Tenda de Umbanda Oriental (T.U.O) era um humilde prédio de 50 metros quadrados. Sua
construção, simples e pobre, era limpra – e rica em Assistência Astral. Era a verdadeira Tenda
dos Orixás”(grifo do autor ) (MATTA E SILVA, 2004, p. 19)16.

Sobre o movimento e as características da comunidade que frequenta a T.U.O., Rivas Neto


afirma:

Não obstante suas obras serem lidas não só por adepto, mas também por simpatizantes e
mesmo estudiosos das ditas Ciências Ocultas, seu Santuário, em Itacurussá, era frequentado
pelos simples, pelos humildes, que sequer desconfiavam ser o velho Matta um escritor
conceituado no meio umbandista. Em seu Santuário, Pai Matta guardou o anonimato, vários
e vários anos, em contato com a natureza e com a pureza de sentimentos dos simples e
humildes. [...] Embora atendesse a milhares de casos, como em geral são atendidos em
tantos e tantos terreiros por este Brasil afora, havia em seu atendimento uma diferença
fundamental: as dores e mazelas que as humanas criaturas carregam eram retiradas, seus
dramas equacionados à luz da Razão e da Caridade, fazendo com que a Choupana do Velho
Guiné quase todos os dias estivesse lotada... Atendia também aos oriundos de Itacurussá –
na ocasião uma cidade sem recursos que, ao necessitarem de um médico, e não havendo
nenhum na cidade, recorriam ao Velho Matta. Ficou conhecido como curandeiro (...) (grifo
do autor) (MATTA E SILVA, 2004, p. 15-16).

15
Em uma rápida busca pela rede mundial de computadores, é fácil comprovar como os terreiros e religiosos
fazem largo uso dos fundamentos explicitados nas obras de Rivas Neto.
16
Rivas Neto fora convidado pela família de Matta e Silva para escrever uma introdução que seria veiculada, a
partir de então, em todas as edições das obras. Por esse motivo que as citações dele foram encontradas em livros
de Matta e Silva.

653
Rivas Neto (1981, p. 46) também faz uma importante constatação quando comenta sobre os
jogos oraculares na umbanda. Foi Matta e Silva, seu mestre, oprimeiro a introduzir os
conhecimentos do Orixá OrunmiláIfá, responsável pelo destino dos homens, como um
método oracular umbandista próprio.

Atualmente, Rivas Neto é o responsável por tal escola de umbanda, fato que ocorreu no
referido rito de transmissão. Os rituais de umbanda esotérica não são mais realizados em
Itacurussá (RJ), tendo em vista que a Tenda de Umbanda Oriental encerrou as suas atividades
com a morte de Matta e Silva, mas a raiz esotérica continuou viva na Ordem Iniciática do
Cruzeiro Divino (OICD) localizada em São Paulo (SP). O terreiro em questão foi fundado por
Pai Rivas em 1969 e até hoje realiza giras de atendimento público. A OICD, no âmbito
administrativo do terreiro, em 2003, tornou-se a instituição mantenedora da Faculdade de
Teologia Umbandista.

A OICD, sob orientação da entidade Pai Guiné, ficou por sete anos após o falecimento de
Matta e Silva realizando os ritos nos moldes em que Rivas Neto aprendera com seu mestre.
Depois disso, são iniciadas mudanças gradativas no culto. Toda tradição é dinâmica e, nas
palavras de Pai Rivas, “a constante da tradição é a contínua mudança, logo a umbanda é uma
unidade aberta em construção” 17.

Talvez as mudanças mais significativas tenham sido as novas práticas mediúnicas que
passaram a se processar na OICD. A partir de vinte e oito de agosto de dois mil, tomando
como base sua passagem por várias escolas das religiões afro-brasileiras, Rivas Neto passa a
realizar os seguintes ritos quinzenalmente nas dependências do seu terreiro:

TOQUE DOS ENCANTADOS (contatos com as Encantarias várias promovendo a união


com a Pajelança, Jurema, Terecô, Tambor de Minas e outros). TOQUE DE UMBANDA
TRAÇADA (influências evidentes ameríndias e africanas, promovendo a união com os
praticantes do culto Omolocô, do Candomblé de Caboclo e todos os demais que fazem
essas ligações). TOQUE DE UMBANDA MÍTICA OU MISTA (influências regionais, com
a presença de entidades que se manifestam como baianos, boiadeiros, marinheiros, entre
outros, fazendo o entrelaçamento étnico e dos sincretismos que surgiram dentro da
Umbanda). TOQUE DE KIMBANDA (Umbanda com fortes vínculos com a Kimbanda,
com a presença dos Exus que carregam toda a valência que sua função espiritual
representa). TOQUE DE UMBANDA INICIÁTICA (aspectos esotéricos da umbanda
preconizada por W. W. da Matta e Silva, continuada e ressignificada, por seu sucessor F.

17
Comunicação pessoal.

654
Rivas Neto). TOQUE DO TRÍPLICE CAMINHO (presença das entidades denominadas
Crianças, Caboclos e Preto Velho, representando a pureza, fortaleza e sabedoria,
respectivamente) (RIVAS NETO, 2012, p. 67-68).

Ao construir tal escola, Matta e Silva, não negou as demais umbandas. Pelo contrário, faz uso
do conhecimento de várias linguagens religiosas e acadêmicas para estruturar outra forma de
se pensar e fazer tal religião. Sua forma de culto é até os dias de hoje praticada. Rivas Neto,
por sua vez, parte dessa construção de Matta e Silva e volta de novo para o complexo
religioso afro-brasileiro. Nesse teórico retorno, exemplifica na prática a existência de pontos
comuns na grande teia que são essas religiões.

Considerações finais

Existe uma capacidade de mudança da tradição afro-brasileira entre escolas próximas18, mas
também com escolas bem diferentes. Um caso interessante que merece destaque é o processo
de umbandização e suas consequências entre a jurema e a umbanda esotérica.

Ambas as escolas já não estão mais fechadas ao reduto de onde nasceram. Muitos terreiros na
região sul e sudeste praticam a jurema e existem terreiros, por exemplo, na capital federal, que
adotam o ritual da umbanda esotérica. Mesmo assim, o contexto histórico, geográfico e social
de suas origens geraram duas práticas rituais bem específicas. Por onde passaria, então, a
umbandização entre essas duas escolas?

Um ponto de ancoragem importante está em suas respectivas teologias. A Jurema admite uma
divisão inicial ternária de reinos: Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Josafá e o Fundo
do Mar (BASTIDE, 1971, p. 249). Na umbanda esotérica a divisão é setenária também, só
que de linhas: Orixalá (ou Oxalá), Yemanjá, Xangô, Ogum, Oxóssi, Yori e Yorimá (MATTA
E SILVA, 2004, p. 93). Considerando o senso religioso, Rivas Neto19 que fora iniciado na
encantaria do Pai Ernesto de Xangô (Babalorixá Obá Omolokan AdêOjubá) e Pai Matta e
Silva (Mestre Yapacany) afirma sobre a correspondência que pode ser feita entre ambas as
cosmovisões: Oxalá – Urubá; Yemanjá – Fundo do Mar; Xangô – Tigre; Ogum – Canindé;
Oxóssi – Juremal; Yori – Vajucá e Yorimá – Josafá.

18
Por exemplo, como já discorrido sobre a escola de síntese e a escola de umbanda esotérica.
19
Comunicação pessoal.

655
Ainda sobre a relação de reinos, orixás e entidades, vale lembrar que o caboclo responsável
pela linha de oxalá é o Caboclo Urubatão da Guia, nome que na raiz da palavra possui a
mesma origem de Urubá. Matta e Silva trabalhava com o caboclo Juremá de oxóssi,
exatamente o nome do reino da encantaria de igual correspondência com o orixá da entidade.

No mesmo sentido, o Mestre juremeiro Cleone Guedes do Centro Espírita de Umbanda


Caboclo Aracati, localizado em Natal-RN, um dos principais terreiros de jurema da região,
comentou que o Caboclo Urubatão da Guia era muito presente nos primórdios do terreiro
ainda quando o mesmo era conduzido por seu pai carnal e espiritual na primeira metade do
século XX (ASSUNÇÃO e GUEDES, 2012).

Tanto a umbanda esotérica quanto a jurema em seus primeiros rituais não utilizavam os
tambores. Seus pontos cantados possuem uma entonação e letra muito próximas também. Na
questão da música sacra, a umbanda esotérica estava mais próxima da jurema nordestina do
que de outras escolas, por exemplo, a umbanda branca, nascedoura na mesma região.

A relação de Matta e Silva com a comunidade local também lembrava muito a maneira como
os catimbozeiros e juremeiros do nordeste lidavam com o público geral como já exposto.
Nesses atendimentos, Matta e Silva fazia largo uso do cachimbo, lembrando a marca, como
instrumento mágico de cura, atração e repulsão de espíritos.

Essas aproximações entre catimbó e umbanda esotérica não são aleatórias. Matta e Silva
nasceu na cidade de Garanhuns-PE e, até mesmo por questões regionais, ao buscar as
religiões afro-brasileiras em sua terra natal foi influenciado pelo catimbó da região. Ao
mesmo tempo, em visita pessoal ao terreiro de jurema da Cabocla Jupiara da Mestra Natercia
de Araújo em Natal-RN, é possível ver uma clara distinção entre a umbanda esotérica e
jurema que, paradoxalmente, apresenta igual afinidade de alguns elementos mágico-
religiosos.

Talvez seja pela assimilação de cultos, na invisibilidade de quem acorre o terreiro, que o
Catimbó ganha forças e permanece firme nas tradições afro-brasileiras. Dentro e fora da
região nordeste do Brasil.

656
Referências

ASSUNÇÃO, Luiz.O reino dos mestres: a tradição da jurema na umbanda nordestina. Rio de
Janeiro: Pallas, 2010.

__________; GUEDES, Cleone. Encontro de saberes: antropólogo e juremeiro. In: V


Congresso Brasileiro de Umbanda do Século XXI/ II Congresso Internacional das Religiões
Afro-americanas, São Paulo, 2012.

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. v.1 e 2. São Paulo: Pioneira, 1971.

CARNEIRO, João Luiz. Teologia das Religiões Afro-brasileiras e Cosmologia: possibilidades


de diálogo em F. Rivas Neto. In: ASSUNÇÃO, Luiz. Da minha folha: Múltiplos Olhares
sobre as Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012.

CHATELAIN, Heli. Folk-tales of Angola: memoirs of the American folk-lore Society. New
York : The American Folk-LoreSociety, 1894.

MAGNO, Oliveira. Umbanda Esotérica e Iniciática. Rio de Janeiro: Gráfica editora Aurora,
1962.

MATTA E SILVA, Woodrow Wilson. Umbanda de Todos Nós. São Paulo: Ícone, 2004.

RIVAS NETO, Francisco. Escolas das Religiões Afro-brasileiras: Tradição Oral e


Diversidade. São Paulo: Arché, 2012.

__________. Jogo de Ifá: A vida através de búzios e dendês. In: Revista Planeta: Candomblé
e Umbanda. São Paulo: Editora Três, 1981.

SALLES, Sandro Guimarães de. O Clã do Acais. In: ASSUNÇÃO, Luiz. Da minha folha:
Múltiplos Olhares sobre as Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012.

S.A. Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda. Rio de Janeiro: Federação


Espírita de Umbanda, 1942.

657
658
O conceito de Escolas como garantidor da diversidade sem
prejuízo do fundamento: esoterismo e exoterismos nas tradições
espirituais afro-brasileiras
Thomé Sabbag Neto1, Rafael Gapski Moreira2

Introdução: o conceito de escolas e seus pressupostos fundamentais (doutrina, ética e


método)

O conceito de escolas, proposto por Rivas Neto3, será o fundamento principal para a
abordagem crítica que se pretende fazer da diversidade religiosa, justamente porque, como se
demonstrará, oferece as notas essenciais mínimas do conceito de religião (escola em sentido
amplo) e de suas possíveis subdivisões autônomas (escola em sentido estrito), permitindo a
máxima diversificação de suas formas doutrinárias, éticas e método-vivenciais, mas ao
mesmo tempo exigindo a presença mínima de seus respectivos conteúdos: a verdade, o bem e
a eficaz realização e ritualização de ambos.

Válido tanto para as religiões em si mesmas quanto para todas as ramificações autônomas de
cada uma delas, o conceito estabelece os três pressupostos sem os quais não há religião em
sentido próprio: (a) doutrina, enquanto o conjunto de conhecimentos transmitidos através de
símbolos e conceitos, geralmente de índole metafísica, que perfazem uma determinada
cosmovisão, isto é, uma forma específica de o homem compreender a realidade; (b) ética,
enquanto o conjunto de valores aptos a orientar a vontade do homem para o cumprimento do
sentido de sua existência, promovendo um verdadeiro referenciamento existencial e um
efetivo aprimoramento das virtudes humanas; e (c) método, enquanto o conjunto de vivências
templárias, ritualísticas ou não, destinadas à realização espiritual do homem através da
verdade (doutrina) e do bem (ética) 4.

1
Graduado em Direito pela UFPR. Contato: tsabbagneto@yahoo.com.br.
2
Graduando em Engenharia Civil pela UFPR. Contato: rgapskim@gmail.com.
3
Nesse sentido: “nas Religiões afro-brasileiras ou afro-americanas, pela diversidade de seus adeptos, há também
uma diversidade de ritos e formas de transmissão do conhecimento. Essas várias formas do entendimento e
vivências das Religiões afro-brasileiras denominamos Escolas. As várias Escolas correspondem a alguns tipos de
visões, alguns deles voltados mais aos aspectos míticos e outros à ‘essência’ espiritual, abstrata. As várias formas
de interpretar e manifestar a doutrina são diferentes, mas a ‘essência’ de todas é a mesma, e, no caso da
Umbanda por exemplo, todas são legitimamente denominadas umbandistas” (RIVAS NETO, F., 2012, p. 25).
4
Em outros termos, toda religião/escola deve propor Métodos para a realização efetiva da Verdade e do Bem,
através de seus veículos idôneos: respectivamente, o Conhecimento e a Virtude. Nesse sentido: “Na constituição
natural do homem, o elemento Verdade é representado pelo Conhecimento e o elemento Presença, pela virtude;
o Conhecimento é a saúde da inteligência e a virtude, a saúde da vontade. O Conhecimento não é perfeito senão

659
Os três elementos constitutivos da religião/escola mantém evidente relação analógica com as
três dimensões fundamentais da personalidade humana (doutrina/mente, ética/volição e
método/ação) e nem poderia ser diferente, já que a religião, tanto quanto a filosofia, a ciência
e a arte, tem como finalidade a restauração da unidade espiritual do homem. A doutrina é o
domínio religioso em que predominam as atividades mentais (intelecção, razão, imaginação),
ao passo que a ética se destina à retificação da vontade e da afetividade (sentimento, emoção,
volição) e os métodos religiosos consistem invariavelmente em atividades que englobam a
corporeidade (ação, sensação, reação). É evidente, porém, que nos três domínios todas as
atividades da personalidade humana estão – e devem estar necessariamente – sempre
presentes.

Em termos mais simples, a religião, por sua própria natureza e finalidade, pretende realizar a
verdade e o bem ao nível do homem e isso já evidencia as três dimensões da religiosidade:
enquanto a verdade está associada à doutrina e o bem à ética, a realização de ambos
corresponde precisamente ao seu método.

Porém, assim como o homem é uma unidade anterior à tripartição de sua manifestação, os três
elementos constitutivos da religião têm como denominador comum – e ao mesmo tempo
como meta e razão de ser – a espiritualidade. Desse modo, assim como, no homem, deve
haver coerência integrativa entre a mente, a vontade e a ação, por todas estarem subordinadas
ao espírito, o mesmo se deve exigir da religião: doutrina, ética e método não podem ser
mutuamente contraditórias, devendo concorrer, coerente e solidariamente, para a realização
espiritual do homem.

O que o conceito de escolas exige, portanto, é conteúdo, em oposição conceitual a forma: a


mesma verdade doutrinal pode ser expressa em linguagens conceituais ou simbólicas
formalmente distintas, assim como o mesmo valor pode ser alcançado através de
comportamentos bastante diferentes na prática, da mesma forma como vivências e práticas as
mais diversas podem ser igualmente eficazes na realização dos fins a que se propõem as
religiões. Sendo assim, a forma exterior de que se reveste determinado conteúdo é
absolutamente irrelevante para a verificação da satisfação dos pressupostos do conceito de
escolas, desde que evidentemente aquele – conteúdo – esteja presente.

graças a um certo concurso da virtude, e inversamente; é evidente que a inteligência bem aplicada pode produzir
ou reforçar a virtude, porque nos explica a natureza e a necessidade desta. É igualmente evidente que a virtude,
de seu lado, pode favorecer o Conhecimento, porque determina alguns modos deste” (SCHUON, F., 2010, p.
31).

660
A diversidade como justo meio entre o dogmatismo sectário e o relativismo complacente
com o erro

Com base no que se expôs acima, percebe-se claramente que o conceito de escolas promove
um equilíbrio razoável entre exigência (de conteúdos) e permissão (de formas): se, de um
lado, estabelece como obrigatório que haja um mínimo de realização substancial de verdades
e valores espirituais, de outro, é amplamente liberal no que diz respeito aos vários modos de
exteriorização formal de tais verdades e valores.

Então, a diversidade religiosa, corretamente compreendida a partir do conceito de escolas, tem


estrutura ambivalente sendo rigoroso do ponto de vista do conteúdo, mas permissivo do ponto
de vista de seus modos de expressão. Desse modo, ela se opõe a dois extremos igualmente
nocivos: o do dogmatismo e o relativismo.

A diversidade naquilo que permite: permissão máxima das formas exotéricas

Justificativa da diversidade de religiões/escolas: o critério lógico-metafísico e o critério


metodológico-teleológico

Além de todas as razões jurídicas, políticas e sociais que justificam a existência de uma
pluralidade de formas religiosas, há razões de natureza intelectual que a exigem
necessariamente. A importância da abordagem dessas últimas reside no fato de que os
arranjos jurídico-político-sociais são altamente instáveis e cambiantes, por estarem sempre
sujeitos a investidas autoritárias e a supressões de direitos, ao passo que, ao contrário, os
imperativos lógicos da razão gozam de estabilidade máxima e, por isso, não podem ser
revogados jamais.

Tais razões são basicamente duas: (a) do ponto de vista lógico-metafísico, é absolutamente
impossível que haja apenas uma forma idônea de veicular a mesma verdade (doutrina), o
mesmo valor (ética) e a mesma eficácia vivencial (método), pois toda forma é, por definição,
necessariamente limitada e portanto relativa; e (b) do ponto de vista metodológico-
teleológico, é inverossímil – caso não seja inteiramente impossível – que todos os homens e
grupos humanos sejam igualmente afins a apenas uma forma religiosa, isto é, a um arranjo

661
único entre doutrina, ética e método vivencial; então, para que a finalidade da religião seja
alcançada para todos os homens e não apenas para alguns, é imprescindível que esta se adapte
otimamente às peculiaridades específicas da mentalidade, das disposições comportamentais e
até das afinidades estéticas de cada grupo humano considerado.

A) O critério lógico-metafísico. O conceito de forma5 pressupõe necessariamente um


elemento de privação e de limitação ou, no mínimo, de não-exclusividade. Sempre há mais de
um modo de se dizer uma mesma coisa, de realizar um mesmo valor e de se alcançar um
mesmo fim, pois toda forma não é mais que um simples meio ou um veículo.

Em outros temos, é logicamente necessário que haja diversidade formal (isto é, de meios de
expressão e de realização de ideias, valores e métodos), pois a própria definição de forma
exige que ela sempre possa ser substituída por outra equivalente, já que tal definição é
necessariamente destituída dos atributos de exclusividade ou absolutez. Por isso, é
absolutamente vedado a uma determinada forma linguístico-doutrinal reivindicar só para si a
verdade que ela veicula6, assim como, também, um determinado arranjo ético-formal não
pode avocar somente a si mesmo a dignidade dos valores materiais por ele traduzidos e
garantidos: primeiro, porque tais formas são meros instrumentos e, ademais, porque não são
os únicos instrumentos possíveis e idôneos para se alcançar o mesmo fim.

Sendo assim, nenhuma forma religiosa específica pode legitimamente pretender conter com
exclusividade determinado conteúdo religioso (doutrinal, ético ou vivencial, não importa).

Além disso, todo meio de expressão (forma) sempre implica alguma perda ou insuficiência
em relação à totalidade e absolutez daquilo que se expressa (conteúdo), pois toda expressão é,
no fundo, uma tradução; porém, diferentes expressões podem ter limitações diferentes, isto é,
em aspectos distintos, já que a mesma coisa pode ser contemplada a partir de várias
perspectivas (já que ela mesma é diversa e complexa), dando-se mais ou menos ênfase a esse
5
O termo forma não tem, aqui, o sentido aristotélico de logos (quando se opõe dialeticamente a matéria), isto é,
do conjunto de características essenciais que conferem identidade a determinada coisa e que a faz pertencer à sua
espécie, mas sim o de aparência exterior (que se opõe conceitualmente ao termo conteúdo). Há, por exemplo,
muitas formas diferentes de dizer que o livro está sobre a mesa: O livro está sobre a mesa, O livro está em cima
da mesa, Há um livro sobre a mesa, The book is on the table etc.
6
Nesse sentido: “A pretensão exotérica de detenção exclusiva de uma verdade única, ou da Verdade sem epíteto,
é assim um erro puro e simples; na realidade, toda verdade exprimida reveste-se necessariamente de uma forma,
a da sua expressão, e é metafisicamente impossível que uma forma tenha um valor único à exclusão de todas as
outras formas; pois uma forma, por definição, não pode ser única e exclusiva, ou seja, uma forma não pode ser a
única possibilidade de expressão daquilo que ela exprime; quem diz forma, diz especificidade ou distinção, e o
específico só é concebível como modalidade de uma espécie, portanto de uma ordem que engloba um conjunto
de modalidades análogas” (SCHUON, F., 2010, pp. 33-34).

662
ou àquele aspecto seu. Isso também justifica a diversidade religiosa, por demonstrar
cabalmente a vantagem de que existam múltiplos arranjos de tradução, cada qual enfatizando
aspectos distintos da realidade traduzida.

B) O critério metodológico-teleológico. Enquanto o critério anterior justificou a diversidade


religiosa pela inevitável diversidade dos mecanismos de tradução formal dos conteúdos
religiosos (doutrina, ética e método) e pela diversidade/complexidade desses próprios
conteúdos, o presente critério se fundará na diversidade/complexidade, também inevitável,
que há entre os homens e os grupos humanos7.

Homens e grupos humanos ostentam diferenças significativas na constituição e na


organização de suas personalidades, pois: (a) num primeiro plano, há diferenças de
predominância de determinado organismo da personalidade (mental, emocional ou físico)8; e
(b) num segundo plano, há diferenças de predominância, nos domínios de um mesmo
organismo, de determinadas atividades. Além de tais disposições internas do indivíduo, há
ainda outro fator, de natureza cultural e portanto exterior, que diz respeito ao seu
pertencimento a um determinado tempo e lugar históricos (civilização/cultura), que o fazem
especialmente afeitos a um determinado imaginário, linguagem, padrões estéticos etc.

Todas essas diferenças, que estão muito longe de poderem ser consideradas desprezíveis ou
insignificantes, acabam por estabelecer tipos ou perfis humanos, conforme as predominâncias
acima referidas. Cada perfil, evidentemente, terá maior afinidade com a religião/escola que
esteja melhor adaptada às suas peculiaridades, individuais e culturais.

Desse modo, a diversidade garante que as necessidades psicológico-culturais, que diferem de


pessoa a pessoa, sejam invariavelmente satisfeitas, razão pela qual a diversidade: (a) é uma
poderosa ferramenta de inclusão, pois sem ela determinadas pessoas talvez não se dedicassem
à espiritualidade por não encontrarem um caminho conforme suas peculiaridades pessoais e
culturais; e (b) é um meio valioso para a otimização da eficácia da vivência religiosa, pois
sem ela determinadas pessoas, ainda que participassem de determinada religião, não o fariam
senão de forma parcial, fragmentária e, portanto, superficial.

7
Ora, se há diversidade intrínseca a cada um dos conteúdos relevantes à religião, se há diversidade nos
mecanismos de tradução e expressão formal desses mesmos conteúdos e se, finalmente, há diversidade entre os
homens e grupos humanos aos quais a religião se destina, é evidente e inquestionável que nada, absolutamente
nada, pode justificar o simplismo audacioso do dogmatismo sectário e exclusivista.
8
Tais predominâncias é que estão na base da setorização do Yoga hindu em três escolas ou métodos principais: o
Jnana-Yoga (Yoga do Conhecimento ou da Contemplação), o Bhakti-Yoga (Yoga da Devoção) e o Karma-Yoga
(Yoga da Ação ou da Realização).

663
Os mitos da superioridade e da pureza

O dogmatismo sectário, por seu caráter exclusivista e excludente, é a causa de dois mitos
muito fortemente arraigados nos setores religiosos ortodoxos e fundamentalistas: (a) o mito da
superioridade de uma forma religiosa sobre as demais, consistente na ideia de que a forma
superior reúne eficácia e vantagens doutrinais, éticas e método-vivenciais supostamente
ausentes em todas as outras; e (b) o mito da pureza, consistente na ideia de que qualquer
síntese entre formas religiosas distintas, mesmo quando feita de forma criteriosa e razoável,
implica necessariamente uma suposta redução de sua aptidão e eficácia em promover a
espiritualidade.

A refutação de ambas é bastante singela e direta: (a) o mito da superioridade é improcedente


por desconsiderar a obviedade inquestionável de que o mesmo conteúdo religioso pode se
revestir de várias formas religiosas distintas, ou seja, por desconsiderar a necessidade lógica
de que existam várias formas, conforme demonstrado acima; por isso, tal mito tem como
fundamento meros preconceitos e aversões culturais, raciais, estéticos ou de qualquer outra
natureza, o que logo evidencia a sua falsidade gritante; e (b) o mito da pureza é ainda mais
escandalosamente falso, haja vista que: (i) em primeiro lugar, não existem, a rigor, formas
religiosas puras, pois todas as religiões nasceram a partir de sistemas religiosos anteriores,
sendo evidentes, para ficar em um único exemplo, as influências do Judaísmo na instituição e
no desenvolvimento do Cristianismo; e (ii) em segundo lugar, a síntese criteriosa e inteligente
de formas religiosas distintas não implica degeneração de qualquer delas, pois se todas elas
podem expressar as mesmas verdades e os mesmos valores espirituais e se podem realizar
eficazmente tais verdades e valores através de métodos vivenciais igualmente válidos, então é
porque não há incoerência real entre elas, mas apenas, no máximo, incompatibilidades
meramente aparentes.

Como se vê, o dogmatismo sectário decorre, ao mesmo tempo, de um erro intelectual


elementar – por desconsiderar a necessidade lógica, a equivalência potencial e a vantagem
cultural da diversidade – e de um erro moral injustificável – consistente em afetação narcísica
de superioridade e indisfarçável soberba.

664
A diversidade como prevenção e solução ao dogmatismo sectário

Pelo que se demonstrou, a diversidade é incompatível com o dogmatismo sectário,


fundamentalista e ortodoxo, ao mesmo tempo exclusivista e excludente, segundo o qual
apenas uma forma religiosa teria a condição de alcançar os fins perseguidos por todas as
religiões.

A diversidade naquilo que exige: exigência mínima de conteúdos (esoterismo)

A exigência de conteúdos religiosos (verdade, valor e realização de ambos ao nível do


homem) e de conformidade aos demais pilares da cultura humana

Se, por um lado, o conceito de “escolas” é maximamente permissivo no que diz respeito às
formas doutrinárias, éticas e método-vivenciais, por outro, ele exige: (a) a observância de
conteúdos mínimos, precisamente aqueles que se referem às notas essenciais que definem a
religiosidade: a verdade doutrinal, o bem ético e a eficácia metodológico-vivencial
(ritualística e não-ritualística); e (b) a conformidade harmônica de tais conteúdos aos demais
pilares da cultura humana (Filosofia, Ciência e Arte), haja vista que o conceito de “escolas”
propõe o método dos diálogos (intrarreligiosos, interreligiosos, mas também
interdisciplinares).

Ora, se a religiosidade tem como finalidade específica a realização, ao nível do homem, das
verdades metafísicas e dos valores espirituais, é evidente que (i) a inexistência de doutrina, de
ética e de métodos vivenciais de realização espiritual e (ii) a existência de doutrinas sem
verdade, de éticas sem valor e de ritos ineficazes, por inviabilizarem a condução do homem
àquela finalidade, não podem perfazer uma religião/escola de forma autêntica.

No que se refere ao primeiro quesito, não há discussão: sem doutrina, sem ética e/ou sem
método, não há religião de maneira alguma. Já no que diz respeito ao segundo quesito, é
preciso frisar que a exigência é mínima. O caráter mínimo de tal exigência se justifica pelo
seguinte: sob pena de desvirtuamento da finalidade e da própria natureza da religião enquanto
pilar da cultura, doutrinas religiosas não podem professar erros crassos, de ordem lógica ou
científica, éticas religiosas não podem defender o mal evidente, tácito ou declarado, e métodos
religiosos não podem se valer exclusivamente de ritos inócuos. A seguir exemplificaremos
possíveis erros em cada um dos três planos:

665
A) Doutrina. Uma determinada doutrina religiosa estará descumprindo a exigência atinente à
verdade caso seja autocontraditória ou contraditória com algum fato. Um exemplo de
autocontradição é a afirmação de existência de penas de sofrimento eterno e de existência de
um deus absolutamente bom, uma vez que um deus bom não pode, por definição, causar
qualquer mal, quanto mais eterno, a quem quer que seja.

Dois exemplos de contradição a fatos conhecidos são as afirmações de que o Planeta Terra
tem seis mil anos e de que o Big Bang é fruto do choque entre dois átomos, na medida em que
tais erros são manifestamente contrários ao conhecimento científico (aliás, de nível escolar).
Os erros dessa espécie costumam advir do tratamento doutrinário de questões não
propriamente religiosas ou filosóficas, mas científicas, ou da confusão entre verdades literais
(linguagem filosófico-científica) e verdades simbólicas (linguagem artístico-religiosa) 9.

B) Ética. Uma determinada ética religiosa descumprirá a exigência relativa ao bem sempre
que defender o mal, quer seja de maneira evidente e declarada (caso em que o erro será grave
e prejudicará seriamente a ética), quer seja de maneira sutil ou indireta (caso em que o erro
será brando e não afetará o restante da ética). Exemplos, em ordem respectiva: (i) a incitação
ao extermínio de infiéis e ao apenamento severo e desumano de fiéis que transgridem normas
de direito canônico; e (ii) as proibições – que são males em virtude de cercearem a liberdade
humana, que é um bem – de condutas inócuas do ponto de vista ético-moral (como nos casos
de interdições gastronômicas ou sexuais, por exemplo).

C) Método. Uma determinada metodologia vivencial religiosa descumprirá a exigência


relativa à eficácia da realização de verdade e bem sempre que: (a) preconizar ritos ou práticas
inócuas (erro brando), especialmente nos casos de determinadas superstições desmentidas
pela ciência quanto à sua real eficácia (ressalvado que, mesmo nesses casos, há eficácia
subjetiva, placebo, o que evidencia se tratar de um erro brando); ou (b) contrariar a verdade
ou o bem (erro de gravidade proporcional à verdade ou bem contrariado), como, por exemplo,
a prática inaceitável de sacrifícios humanos).

Nas tradições espirituais afro-brasileiras a síntese de verdade, valor e eficácia ritual é


denominada de fundamento, segundo o jargão dos Terreiros. Em tais religiões, há ampla
aceitação da diversidade das expressões doutrinais, éticas e método-vivenciais, havendo

9
Aliás, a própria existência de uma linguagem conceitual e de uma linguagem simbólica já evidencia, por si só,
a existência do que se poderia chamar de diversidade interna a cada um dos planos constitutivos da
religião/escola (no caso, plano doutrinário).

666
inclusive ampla e recíproca interpenetração, mas jamais se deixa de exigir que haja
fundamento em tudo que se ensina, diz e faz.

Eis, portanto, o que a diversidade, interpretada pelo conceito de escolas, exige: além da
existência de doutrina, ética e método, também a verdade, o bem e a realização gradual de
ambos para seus adeptos. Seria possível pensar tais exigências de forma negativa, hipótese em
que se exigiria a inexistência de erros crassos (especialmente no que concerne à filosofia e à
ciência), de males ético-morais evidentes e de ineficácia de métodos voltados à realização da
verdade e do bem.

As exigências parecem ser muitas e severas, mas não o são: doutrina, ética e método devem
estar presentes, mas realmente presentes e não só aparentemente. Se alguma delas for formada
exclusiva ou predominantemente de erros, então ela na realidade não existe, tratando-se de
mero simulacro. Por isso, a exigência é de um mínimo de verdade, de bem e da realização de
ambos.

Da não-contradição entre tais exigências e o pólo permissivo da diversidade

As exigências referidas acima são – ou podem ser – entendidas pelo senso comum sobre a
diversidade religiosa como arbitrárias, injustificáveis, elitistas e como incompatíveis e
contraditórias com a diversidade. Porém, tais impressões são de todo injustificáveis, como o
provam os seguintes fundamentos:

A) Os diversos entes de uma espécie podem ser diversos entre si, mas não a ponto de
exorbitarem os limites mínimos que definem a espécie (gênero comum). Em primeiro lugar,
do ponto de vista lógico-conceitual, toda espécie (e religiões/escolas são espécies) tem
necessariamente contornos mínimos definidos e intransponíveis, fora dos quais não se pode
reivindicar o direito de nela inserir-se determinado ente.

Uma espécie, portanto, não é um conjunto de seres idênticos, mas também não é um conjunto
de seres totalmente díspares e dessemelhantes; há, entre os integrantes de uma espécie, uma
afinidade ontológica determinada pela comunhão de determinadas características essenciais.
Por exemplo: a espécie humana congrega, em seus limites, um sem-número de indivíduos
que, apesar de todas as inevitáveis dessemelhanças e diferenças que ostentam em relação a
diversas características secundárias e acessórias, têm entre si as mesmas características

667
essenciais. Portanto, a exigência da satisfação de tais características essenciais mínimas não é
um rigor injustificável e autoritário, mas decorre da própria natureza das coisas: um homem
pode ser muito diferente de outro, mas não pode deixar de ser homem; inversamente, um
macaco pode se assemelhar a um homem sob vários pontos de vista – todos secundários –
mas não tem, por isso, o direito de se inserir na espécie humana.

B) As exigências de conteúdo não são contraditórias com a permissão de várias formas para
sua expressão, diante da diferença de natureza que há entre forma e conteúdo. O conteúdo
corresponde ao núcleo ontológico que determina que algo é de uma espécie por ser o que é
(no caso da diversidade religiosa, uma escola religiosa). Sem esse núcleo não há, como foi
dito, um ente daquela espécie. A forma corresponde a todo o contorno que manifesta esse
núcleo (tal como, respectivamente, segundo o simbolismo geométrico, a circunferência e o
centro).

A diferença de natureza entre conteúdo e forma pode ser comparada à diferença entre o DNA
(conteúdo) de uma célula (espécie), por exemplo, e a estrutura (forma) dessa célula. O fato de
o DNA de todas as células do corpo ser o mesmo não prejudica em nada a possibilidade e até
a necessidade de existirem muitos tipos de células diferentes (células nervosa, musculares,
cartilaginosas, epiteliais etc.). Isso porque o DNA é de natureza diferente da estrutura celular.

Desse modo, fica comprovado não haver contradição alguma entre, de um lado, permitir e até
incentivar formas especiais distintas de religiões/escolas (como ocorre, vantajosamente, no
processo de diferenciação celular) e, de outro, exigir os conteúdos mínimos de verdade
doutrinal, bem ético e eficácia método-ritualística, pois são justamente eles que definem
religião/escola em sentido próprio e estrito.

C) As exigências de verdade, de bem e de realização concreta de ambos, que parecem


contrárias à diversidade, são em verdade uma decorrência da própria diversidade em sentido
amplo, isto é, da diversidade ampliada, que reconhece a necessidade de conformidade e
coerência entre a Filosofia, a Ciência, a Arte e a Religião, em virtude do imperativo da
unidade da cultura e do homem.

Essa questão pode ser analisada sob dois pontos de vista: (a) primeiro, o da possibilidade de
que os mesmos conteúdos religiosos sejam também expressos e trabalhados pelos demais
setores da cultura (Filosofia, Ciência e Arte, além, obviamente, da Religião); e (b) segundo, a
necessidade de que os conteúdos expressos na religião/escola estejam em conformidade, isto

668
é, sejam coerentes, com os resultados genuínos das atividades filosóficas, científicas e
artísticas, diante do já mencionado imperativo da unidade da cultura e do homem.

O primeiro ponto de vista (o da possibilidade) evidencia algo sumamente óbvio: o de que os


mesmos temas (metafísicos, ontológicos, axiológicos etc.) podem ser abordados por
diferentes pilares da cultura, cada um com seu método particular e com suas finalidades
próprias, já que todos eles admitem mais de uma forma de abordagem. É assim que, por
exemplo, um mesmo princípio doutrinário religioso pode ser logicamente demonstrado por
um raciocínio filosófico ou que um mesmo princípio ético pode ser manifesto em um poema e
demonstrado em Filosofia Moral ou, ainda, que a eficácia de um método religioso (a consulta
nos Terreiros das Religiões Afro-brasileiras, por exemplo) pode ser comprovada por teorias
científico-psicológicas. É, portanto, uma decorrência da própria natureza do conteúdo que ele
seja abordado por qualquer dos setores da cultura, além de poder ser expresso de inumeráveis
formas em cada um desses setores, que melhor sustentam o edifício da espiritualidade quando
estão em acordo e diálogo construtivo.

Já o segundo ponto de vista (o da necessidade) leva à conclusão de que é imprescindível que a


religiosidade esteja em conformidade e seja coerente com os demais setores da cultura, sob
pena de se descaracterizar o conteúdo necessário à qualificação da religião como tal,
conforme visto acima. Em termos mais claros, a diversidade em sentido amplo exige, por
exemplo, que a doutrina religiosa não contrarie verdades inquestionáveis e conhecidas através
da ciência ou, pior ainda, postulados e imperativos lógicos (filosofia).

A fragmentação da cultura, através do isolamento insular entre seus vários setores e


subsetores, tem efeitos perniciosos ao homem, como demonstram a ciência sem eticidade
(filosofia/religião) ou a religião sem crítica intelectual (filosofia/ciência), dentre tantos outros
exemplos imagináveis aqui, todos evidentemente prejudiciais ao homem, em sua vocacação e
merecimento à verdade, à felicidade e à liberdade. Por isso, diante do fato de que a realidade é
uma só, íntegra e coerente em si mesma, e de que o homem é um só, íntegro também ele em
suas diversas partes constitutivas, não poderia ser diferente com a cultura: ela deve ter
coerência integrativa de modo a ser uma só.

Assim, aquilo que parecia contraditório à ideia de diversidade (exigência de conteúdos


mínimos) é na verdade uma simples decorrência tanto da possibilidade que todos os temas
têm de se submeter a múltiplos enfoques, quanto a necessidade de que todos os enfoques não

669
conduzam o homem a contradições insanáveis. É, portanto, a própria diversidade, bem
entendida, que nos leva ao imperativo da unidade, tanto da cultura (gnosis), quanto do homem
(psique).

A diversidade como prevenção e solução ao relativismo complacente com o erro

A diversidade, se e quando corretamente entendida à luz do conceito de “escolas”, embora


permita máxima dispersão e multiplicidade de formas religiosas, exige de modo rigoroso,
embora mínimo, a configuração dos conteúdos religiosos e a conformidade destes com os
demais pilares da cultura (Filosofia, Ciência e Arte).

Através da justa e equilibrada noção de diversidade, chega-se, então, à conclusão de que é o


relativismo infinitamente permissivo, inclusive do erro e do mal declarado, que é, ele sim,
arbitrário e inaceitável, e não as exigências mínimas que se podem e devem fazer em termos
de verdade e bem.

O relativismo entendido como permissão pura e absoluta anula quase todas, se não todas, as
vantagens da diversidade com fundamento. Ao abandonar a exigência de conteúdo e permitir
inclusive formas sem conteúdo ou contrárias a qualquer conteúdo, ele arranca das escolas
religiosas o seu núcleo ontológico, tornando-as vazias de verdade e bem. Sem isso se
corrompem a doutrina em dogmatismo rígido, a ética em moralismo proibitivo e o método em
ritualismo mecânico.

Desse modo, a diversidade não é compatível com o relativismo complacente com o erro,
combatendo-o e evitando-o de forma eficaz de modo a garantir a unidade da cultura e,
também, o cumprimento satisfatório das finalidades reservadas à religião.

Considerações finais: o esoterismo como garantidor da diversidade exotérica

Diante de tudo o que se expôs, pode-se concluir com facilidade que os círculos esotéricos que
há em todas as religiões, por estarem preocupados mais com os conteúdos de verdade e de
bem presentes nos exoterismos (formas religiosas) do que com os seus modos de expressão

670
formal, são naturalmente inclinados à ampla aceitação da diversidade exotérica, sem prejuízo
da unidade esotérica e transcendente que sempre demonstram existir entre todas as religiões.

É, portanto, rigorosamente impossível que o esoterismo seja intolerante, sectário ou ortodoxo,


na medida em que o seu objeto é o conteúdo essencial das religiões, e não as suas formas
aparentes. Por essa razão, esoterismo e diversidade têm ampla compatibilidade, na medida em
que aquele não se prende na aparência das formas doutrinais, éticas e método-vivenciais dos
exoterismos, mas, ao contrário, inclusive compara e confronta exoterismos diferentes,
demonstrando a universalidade e a unidade de fundo que há entre todas as tradições
espirituais da humanidade10.

Referências

MATTA E SILVA, Woodrow Wilson. Umbanda de todos nós. 14. ed. São Paulo: Ícone,
2011.

__________. Macumbas e Candomblés na Umbanda. São Paulo: Editora Freitas Bastos, [s/d].

RIVAS NETO, Francisco. Escolas das religiões afro-brasileiras: tradição oral e diversidade.
São Paulo: Arché Editora, 2012.

SCHUON, Frithjof. Forma e substância nas religiões. São Paulo: Editora Sapientia, 2010.

__________. A unidade transcendente das religiões. São Paulo: Editora IRGET, 2011.

10
No contexto das Religiões Afro-brasileiras, ganha destaque a Escola da Umbanda Esotérica, fundada por W.
W. da Matta e Silva (Mestre Yapacani), que evidenciou a procedência e a síntese possível que há entre os
fundamentos de todas as matrizes religiosas que estão na base da Umbanda: a ameríndia, a africana e a euro-
asiática, transitando com facilidade entre as Kabalas (Indoarianda, Hebraica etc.), Lei de Pemba, Oráculo de Ifá,
Mediunidade e muitos outros fundamentos ancestrais. Como todo bom esoterista, atento ao polo exigente da
diversidade, W. W. da Matta e Silva denunciou as insuficiências e os erros crassos que pode observar em vida, o
que fez com que muitos o considerassem elitista e ortodoxo. Porém, o seu universalismo é óbvio e
inquestionável, pois todo esoterismo é necessariamente universalista. Ele é, portanto, o precursor da diversidade
nas Religiões Afro-brasileiras, sendo simbolicamente significativo que sua primeira obra escrita tenha levado o
título “Umbanda de Todos Nós” e sua última, “Macumbas e Candomblés na Umbanda”.

671
672
Panorama histórico da formação do campo religioso e
estabelecimento das religiões afro-brasileiras na sociedade
Silvino Paixão da Silva1

Introdução

Ao contextualizar o panorama histórico e religioso do Brasil, analisaremos dois pontos


importantes na formação da sociedade brasileira. No primeiro momento há o processo de
formação do país. No segundo momento temos o catolicismo como religião oficial. Dentro
desses dois aspectos abordaremos o campo religioso brasileiro. Procuraremos entender, as
formas de manifestação da religiosidade desde o descobrimento do país até nossa sociedade
plural. De que forma os conceitos trazidos pelos colonizadores europeus, foram implantados
com determinismo e imposição aos índios e africanos, e de que forma os embates teológicos
surgidos culminaram num sincretismo religioso.

Ao falar em religião, obrigatoriamente falamos em cultura, usos, costumes, leis morais,


comportamentos, crenças, e o que mais as represente e regem o local onde estão contidas,
quer seja urbano quer seja no campo. O homem da sociedade urbana vive de forma mais
individualizada, distante do natural, habituado às coisas mais rápidas, expressas, prontas,
enquanto o homem do campo vive mais ligado à natureza e às relações interpessoais. A
manifestação desta religiosidade e sua prática sofrem mudanças pela forma como este homem
observa e se relaciona com o mundo que o cerca.

Um pouco de história

Na formação da sociedade brasileira, destacamos dois grupos étnicos importantes para a


história do Brasil, os Bantos e os Yorubás. Esses grupos que vieram da África pelo processo
escravagista, foram responsáveis diretos tanto na formação social, quanto na cultura e, por
outro lado na diversidade religiosa. Porém, quando aqui chegaram, o território era habitado
pelos indígenas e havia a presença do colonizador europeu.

1
Graduando pela FTU. Contato: silvino.silva1@gmail.com.

673
O negro que aqui se estabeleceu como escravo não perdeu sua religiosidade, porém como o
catolicismo era religião oficial2, o mesmo era obrigado a ser católico. Nesse momento começa
haver uma interpenetração de culturas e crenças. Segundo Holanda (1995, p. 40), a
experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora, em geral os
traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus
quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas europeias
transportadas ao Novo Mundo.

A vida na sociedade brasileira era basicamente rural. Com a abolição dos escravos houve um
maior desenvolvimento urbano, especificamente entre 1851 e 1855, em função da construção
de estradas de ferro, visto a supressão do tráfico negreiro. No crescente processo da
industrialização, e no chamado progresso, o homem brasileiro começa a surgir com uma
característica que Holanda (1995, p. 146) descreveu como o homem cordial. Este homem é
fruto de mestiçagem étnica. É um homem que sucumbe ao imperialismo monárquico, fruto de
uma cultura cooptada e que se submete às regras européias, de etiquetas, de vestimentas, usos
e costumes. Essas regras mandatórias de conduta e comportamento trazem para o Brasil a
cultura da doutrina católica romana, como religião oficial sendo que mais tarde admite-se o
kardecismo, originário da França que é quem socialmente ditava as normas do bom viver.

Para Darcy Ribeiro (2006, p.17), a sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como
variantes da versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental, diferenciadas por
coloridos dos índios americanos e dos negros africanos. Tanto o colonizador quanto o
colonizado perderam sua identidade tendo que criar uma nova, pela força da convivência.
Isto ocorreu nos planos: associativo, enquanto estrutura sócia política marcada pela
escravatura; no adaptativo: pelas tecnologias trazidas pelos colonos e no ideológico, trazido
pela língua imposta aos colonizados .

Os negros, por terem sido desgarrados de seus iguais – raramente ficavam na mesma tribo
juntos – aprenderem a falar o português pelo convívio com os capatazes e tiveram papel
importante na miscigenação, na cultura, pois ao recepcionarem os recem-chegados de outras
tribos, aprendiam a cultura destes, os transformavam e os unificavam e, posteriormente, ainda
sofreram influência de imigrantes principalmente italianos, japoneses e alemães, que
adquiriram terras e estabeleceram-se como colônias cabendo aos negros alforriados

2
Arthur Ramos, O negro brasileiro, p. 122.

674
marginalizaram-se nas sociedades estabelecendo-se nas chamadas favelas, mas ainda
trabalhando servindo a esta sociedade branca, como uma mão-de-obra barata.

Ribeiro (2006, p.19) enfatiza que por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos
rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje como sertanejos do Nordeste,
caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das
companhas sulinas, além dos ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Nossa
sociedade, a princípio, foi formada pelas três matrizes, indígenas, africanos e europeus,
contudo, na sociedade atual qual a identidade do povo brasileiro?

Para Ribeiro (2006, p. 119), o surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa
envolver e acolher a gente variada que aqui se juntou, passa também pela anulação das
identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela indiferenciação entre as
varias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos com
índios) ou curibocas (negros com índios).

Campo religioso

Nina Rodrigues, que pesquisava o negro baiano, acreditava que a degenerescência da raça
levava os negros e mestiços ao fetichismo e, somente num processo evolutivo eles se
tornariam monoteístas. Essas eram idéias de um grupo social que detinha o poder de expressar
opiniões e legitimá-las, preocupadas em definir a identidade nacional, enquanto Estado,
firmando-se como nação.

A persistência do fetichismo africano como expressão do sentimento religioso dos negros


bahianos e seus mestiços, é facto que as exterioridades do culto catholico aparentemente
adoptado por eles, não conseguiram disfarçar nem nas associações hybridas que com esse
culto largamente estabeleceu o fetichismo, nem ainda nas praticas genuínas da feitiçaria
africana, que ao lado do culto christão por ahi vegeta exuberante e valida (RODRIGUES,
1935, p. 15).

Para esclarecer a não conversão dos africanos ao catolicismo, Nina define o conceito da ilusão
da catequese, que é a equivalência das divindades que dá a ilusão da conversão católica, pois,
“[...] sem renunciar a seus deuses ou orixás, o negro bahiano tem pelos santos católicos
profunda devoção.” (FERRETTI,1995, p.182).

675
O processo de sincretismo entre religiões africanas e o catolicismo, não é, porém, uma rua de
mão-única. O cristianismo católico no Brasil também recebeu influência de elementos
advindos de religiões africanas. Claro que estas influências são mais sutis que na direção
inversa e ocorreram mais a nível pessoal que institucional (BERKENBROCK J, 2007 p.117).

Dentro dessa disputa de espaço e poder, o sincretismo surge como uma nova linguagem.
Orixás africanos passam a ter relação com Santos católicos. Por outro lado o culto ao Orixá
tem a influência do culto indígena, muitos terreiros do candomblé de Orixás das nações
iorubanas (queto, alaqueto, efã, egbá), senão sua maioria, também acabaram por incluir o
caboclo do rito banto no panteão3. Na Macumba carioca a entidade Caboclo representa o
Orixá, assim como a entidade Preto-Velho está ligada a Angola e Congo. Nessa análise, ao
mesmo tempo em que há essa disputa por espaço, há também uma relação de elementos que
coexistem com características similares.

Estabelecemos um parâmetro das primeiras décadas do século XX com a atualidade e


percebemos que o sincretismo ainda é predominante na cultura brasileira, mesmo tendo o
cristianismo como religião majoritária. Não há um purismo de valores religiosos e sim uma
disputa por espaço.

Dentro das religiões afro-brasileiras, há também essa busca pelo espaço, tendo em vista a
diversidade de ritos existentes por todo o país. Não há, portanto, uma supremacia ou o sentido
de purismo. Desde o início, as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas, estabelecendo
paralelismos entre divindades africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do
catolicismo, valorizando a frequência aos ritos e sacramentos da Igreja Católica. Assim
aconteceu com o candomblé da Bahia, o xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do
Maranhão, o batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações4.

A macumba carioca, que teve seu surgimento, de certa forma, pelo fator político e econômico
no processo da industrialização, abarcou povos de várias regiões do Brasil. Foi
importantíssima para o ressurgimento de um movimento na região Sudeste como Rio e São
Paulo. Ainda nesse aspecto da crescente industrialização e centralização do poder econômico
nessa região, a Umbanda começa a manifestar.

3
PRANDI, 2005, p. 122.
4
Disponível em <www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a15v1852.pdf>.

676
É difícil seguir historicamente os primeiros movimentos de Umbanda, e igualmente difícil
descrevê-los. Eis o momento de uma religião fazer-se, multiplicando numa infinidade de
subseitas, cada uma em seu ritual e mitologia próprios. Algumas mais próximas da macumba,
outras mais próximas do espiritismo5.

Importante citar que, ao surgir uma nova religião, não significa que as outras deixem de
existir. O que observamos é a condição de adaptação, seja no processo social, seja no
regional. Entretanto, os cultos dentro das religiões afro-brasileiras, continuam como princípio
a crença no Orixá ou Ancestral. A Umbanda acaba abarcando todos esses movimentos. Do
ponto de vista social, a macumba é a expressão daquilo em que se tornam as religiões
africanas no período da perda dos valores tradicionais. A Umbanda, ao contrário, reflete o
momento da reorganização em novas bases, de acordo com os novos sentimentos dos negros
proletarizados6.

Pode-se pensar que esse movimento que acabou abarcando todas as crenças que vimos até
agora, poderia ser o instrumento da legitimidade das religiões afro-brasileiras no campo
religioso e social. Contudo, em se tratando de religião, a cúpula da Igreja Católica ainda
detém sua predominância e subtende-se que ainda é a religião oficial, ainda tem um controle
na sociedade brasileira.

Segundo Berkenbrock (2007, p.27), a existência destas religiões africanas e sua presença na
sociedade brasileira, foram por muito tempo ignoradas pela Igreja e pela Teologia, e somente
no documento final da IV Assembleia Geral do Episcopado Latino-americano em Santo
Domingo (1992) elas são, pela primeira vez num documento eclesial de âmbito latino-
americano, classificadas como religiões. Quando do descobrimento do Brasil, tivemos um
grande embate no encontro de culturas – branco, negros, índios – e um embate teológico, já
que todos estes povos tinham suas formas específicas de se relacionarem com o sagrado.

A teologia que veio com os brancos europeus, de tradição escrita, traz um conhecimento
ordenado, racional, há controle do conhecimento. Este conhecimento foi utilizado como
forma de negação da identidade do índio e do negro, de início impingindo a eles, e
consequentemente à nova sociedade que surgia, datas comemorativas de um calendário
cristão, com modelos teológicos cristãos de forma tão intensa, a ponto de fazer com que os
dominados negassem sua origem passando a assumir este novo modelo imposto.
5
BASTIDE, As Religiões Africanas no Brasil, p. 440.
6
Idem, p. 407.

677
Considerações finais

A história do povo brasileiro é marcada por valores de várias culturas como vimos da matriz
indígena, africana e europeia. Não há uma identidade, uma crença, uma cultura, como
descreve Ribeiro (2006, p. 411), o Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude
populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural.

Dentro do processo religioso afro-brasileiro, a concepção de sociedade plural implica em


respeitar incondicionalmente as liberdades de expressão, de crenças, de etnias, culturas e
manifestação. É o entendimento de que temos mais semelhanças – na essência, do que
diferenças – na forma. Entender que quando pensamos na coletividade não precisamos de
instrumentos de controle e dominação. Há o campo de disputas, porém, são formas de buscar
a própria identidade do culto, da crença, seja no Orixá, seja no Ancestral.

Nas religiões afro-brasileiras não há nenhum livro sagrado; a tradição baseia-se na oralidade;
composta por um conjunto complexo de símbolos e signos. Sagrado é toda a existência. É
toda valência da força desse complexo sistema de oralidade.

A ritualização é sempre uma atualização desse sistema. É um processo de construção


simbólica. Quando ritualizamos, revivemos o mito primordial, o mito fundante. O Crente vive
o sentimento de pertença. Ritualiza-se para atualizar, para dar continuidade e assim repassar
às futuras gerações.

O rito implica num movimento de dentro para fora para novamente voltar para dentro. O rito é
uma ação. A ação ritual é irracional no sentido de não ser compreensível, pois lida com
valores subjetivos, só entendidos pelo crente, por quem o vivencia.

Tornar-se-ia inviável conviver em sociedade se não aceitarmos as diferentes formas de


manifestação de culturas. É um fato, mais do que aceitação. Existe, é latente. Dependemos
cada vez mais uns dos outros. Não há mais tempo de termos verdades absolutas utilizadas
como armas de dominação ou subjugação provocando cada vez mais a proliferação da
desigualdade social.

678
Referências

BASTIDE. Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Editora Pioneira, 1971.

BERKENBROCK, Volney J., A Experiência dos Orixás : um estudo sobre a experiência


religiosa no Candomblé. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

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2013.

679
680
Símbolos e sinais sagrados da Umbanda: o ponto riscado
Osvaldo Olavo Ortiz Solera1

Introdução

A Umbanda é uma religião brasileira, formada pelo congraçamento das três etnias matrizes do
povo brasileiro, o índio, o branco e o negro. Toda essa riqueza cultural contribuiu para a
formação de inúmeras escolas2 dentro das religiões afro-brasileiras, cada uma com sua
interpretação do Sagrado. A Umbanda é uma dessas escolas, e dentro da Umbanda há uma
diversidade ritualista importante.

A tradição oral de cada etnia foi responsável pela propagação e sincretismo dos sinais e
símbolos religiosos. E neste caso, na Umbanda foram denominados de Sinais de Pemba ou
Pontos Riscados.

Este artigo objetiva analisar de onde surgiram os símbolos utilizados nos pontos riscados e
seus significados práticos para a ritualística umbandista.

Para a compilação deste artigo, foram utilizados livros de acesso popular, encontrados em
qualquer livraria ou loja de artigos religiosos, que descrevem e representam os símbolos
riscados utilizados pelos terreiros da Umbanda Traçada. Nas pesquisas bibliográficas foram
também utilizados os autores W. W. da Mata e Silva e Francisco Rivas Neto representantes da
Umbanda Esotérica ou de Síntese, ambos escritores conceituados no meio umbandista.

Formação do povo brasileiro

Segundo Ribeiro (2010), o Brasil teve sua formação por meio dos índios que aqui habitavam,
pelos brancos colonizadores e pelos negros advindos da escravatura:

A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos
indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos, eles se alojavam, desalojavam e
realojavam, incessantemente. Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons

1
Mestrando em Ciência das Religiões pela PUC/SP, especialista em Ciência das Religiões pela PUC/SP, teólogo
umbandista, professor da FTU, bolsista do CAPES. Contato: olavosolera@uol.com.br.
2
Conceito defendido por Francisco Rivas Neto na obra Escolas das Religiões Afro-Brasileiras, 2012, p. 23.

681
guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo
de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como
o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes [...]eram, tão-só, uma miríade de
povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um
dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e
logo se desconheciam e se hostilizavam (p. 9).

Continuemos com as palavras de Ribeiro (2010), quando do aparecimento do colonizador:

[...] e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introdução no seu mundo de um
protagonista novo, o europeu. Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar
era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmente
como uma infecção mortal sobre a população preexistente, debilitando-a até a morte [...]
[...] no plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que
foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia,
construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas (p. 10-11).

Há estudiosos que acreditam que o surgimento do homem no Brasil aconteceu em tempos em


que a ciência ainda não reconhece, uma das grandes fomentadores destas discussões é a
equipe da Prof.ª Beltrão (1987, p. 276), responsável por desmistificar a imagem de selvagens
do povo ameríndio, mostrando que eles tinham profundos conhecimentos de astronomia, e
demonstrou que a datação dos instrumentos, pinturas, e ossos de animais encontrados nas
grutas de Tocas e Cosmos chega a 300.000 anos. Embora este estudo seja de fundamental
importância para a arqueologia mundial, profundo silêncio se fez nos meios acadêmicos
internacionais até hoje.

Priore (2004) fala do homem ameríndio, adaptado ao meio, capaz de garantir a sobrevivência
individual e coletiva, muito antes da chegada do homem europeu:

Mas, contrariamente ao que pensavam os recém-chegados, a história de tais tribos


começava bem antes da chegada das caravelas portuguesas às praias da ‘ilha de Vera Cruz’.
Especulações arqueológicas recentes, com base em restos de fogueiras pré-históricas,
sugerem que, há 50 mil ou 40 mil anos, grupos humanos adentraram a serra da Capivara, no
Piauí. Outras datações, mais aceitas, avançam esse limite para 10 mil ou 9 mil anos antes de
Cristo. Qualquer que seja o marco cronológico escolhido, vestígios materiais indicam a
existência de uma cultura indígena instalada em solo brasileiro antes da chegada de Cabral;
cultura que soube adequar-se aos recursos naturais disponíveis, desenvolvendo grande
variedade de artefatos capazes de garantir sua sobrevivência (p. 20).

682
O conflito básico entre os europeus e os ameríndios ocorreu devido ao fato de não possuírem
Lei, Rei e Fé (MAGALHÃES, 2004, p. 133-134). As diferenças entre as culturas foram de tal
modo insuportáveis que uma subjugou a outra, chegando quase ao total extermínio.

Pesquisadores como De Bry, Hans Staden e Pe. Simão relataram a profunda espiritualidade
dos Tupis. Padre Manuel da Nóbrega (1549), um dos renomados nomes da Companhia de
Jesus, foi o primeiro a relatar a riqueza da religiosidade indígena e, principalmente, de seus
pajés. E citava detalhadamente uma cerimônia na qual os feiticeiros traziam a Santidade. Na
ocasião:

[...] ele escolhia uma maloca, pegava um maracá, e falando em voz de menino, começava a
pregar. Para adquirir o espírito da santidade, todos deveriam se deixar defumar e assoprar.
O pajé bebia, fumava tabaco, baforava os aspirantes, e estes começavam a tremer e
transpirar, as mulheres rolavam por terra em convulsões (PRIORE, 2004, p. 52).

Com a etnia negra (africana) conheceu-se a escravidão na sua forma mais cruel, o
mercantilismo hediondo. As guerras tribais, a islamização, os interesses europeus e o silêncio
vergonhoso da Igreja foram os responsáveis por esta mácula na história do povo brasileiro.

A escravidão já era um processo antigo e bem conhecido em diversos povos e civilizações,


datando de pelo menos 10.000 anos (PRIORE, 2004, p. 36-40). Seja entre os povos brancos
ou entre os povos negros, a escravidão era um processo comum e até bem aceito. Joseph Ki-
Zerbo fala que a escravidão na África era bem tolerada:

O escravo tinha direitos cívicos, e mais ainda, direitos de propriedade, e até mesmo seus
próprios escravos. O pai chama o escravo pelo vocábulo nvana (filho), e a ambigüidade é
tal que para designar com precisão um verdadeiro filho se emprega a expressão filho do
ventre e pega nas partes genitais dele para confirmar. [...] o estádio patriarcal e comunitário
impedia que o escravo negro fosse um bem no sentido romano e catoniano do termo. (KI-
ZERBO, 1972, p. 265-266).

Além disso, tivemos na cultura grega, base do ocidente, desde Aristóteles em sua Política, a
sustentação de que os negros só poderiam ser úteis por meio da eterna escravidão (SANTOS,
2002, p. 275-289).

Revue Spirite, o artigo publicado no Journal d´Études Psychologiques em Paris, abril de


1862, p.97, posiciona o lugar dos negros frente à cultura ocidental, como sendo um modo
inferior de vida, mas não imutável, deixando claro a sua potencialidade ‘civilizatória’,
bastando o contato com as ‘luzes’ da civilização e da moral dos povos brancos (‘qui a

683
donné peuvres de la superioridade de as intelligence’) que tinham como missão retirar os
negros da ‘ignorância’ e ‘maus hábitos’ (FERRETI, 1995, p. 13-26).

E foi com Frobenius (2007, p. 13) que se pode compreender o requinte, a complexidade e a
grandeza da religiosidade iorubana, podendo ser comparada à religiosidade grega. Iorubás,
Jejes, Haussás, Minas, Cambindas, Angolas, Sudaneses e Bantos, todos chegaram ao Brasil
por meio da escravidão. E foi em terras brasileiras que essas etnias, envolvidas há tanto tempo
em guerras e disputas tribais, agora equiparadas pela escravidão que a todos tornava iguais,
encontraram o silêncio e a reflexão. Diante da necessidade de sobreviverem e preservarem sua
cultura, fé e tradição, foram sincretizando-se com a religiosidade indígena (pajelança) e
principalmente com a branca (cristã).

Todo o conhecimento destes povos foi mantido por meio da tradição oral (KI-ZERBO, 1972,
p. 19-20). E o que resistiu à aculturação foram as características religiosas, sincretizadas com
o catolicismo, e a pajelança.

A etnia branca chegou ao Brasil representada pelos Indo-europeus (Arianos) e pelos Judaico-
cristãos (Heleno-semítico). A bacia do mediterrâneo foi influenciada pela cultura e
religiosidade do Egito (p. e., a introdução da matemática, geometria, medicina, alquimia e
astrologia). Gregos, persas, árabes e judeus foram povos que trouxeram para a Europa o
conhecimento iniciático dos templos do Vale do Nilo. Heranças trazidas pelos islâmicos e
judeus como a Cabala e a Alquimia, causaram abalos profundos na formação do povo
brasileiro. Assim, com as contribuições destas três etnias, com o caldeamento de culturas e
crenças, surgiu o povo brasileiro.

Mitos e símbolos

O som, o conhecimento e o reconhecimento da natureza, instauram a manifestação da vida, a


criação do nome, os gestos que recuperam a origem, fruto da experiência do homem com a
natureza que o cerca. Eliade (2001, p.14-15) define esta experiência de hierofania como “algo
de sagrado que se nos revela” e afirma que “os mitos, enquanto uma expressão do sagrado,
narram uma história, que remete àquilo que os deuses, os seres divinos fizeram no começo
dos tempos”. Assim, “os mitos são narrativas que resgatam o início da existência de todas as
coisas, isto é, revelam como tudo passou a existir.” (ELIADE, 2001, p. 82-85).

684
Para Mielietinski (1987, p. 69), certas estruturas das imagens primordiais da fantasia coletiva
e categorias do pensamento simbólico, que organizam as representações originadas de fora,
são os elementos estruturais da psique inconsciente. Para Jung (2008, p. 17), os mitos
conduzem às fontes originárias, presentes no inconsciente coletivo. E os arquétipos
representam imagens, papéis a serem desempenhados, e também o processo de
individualização, o consciente individual.

Surge assim o símbolo como modo de significar o ente ou algo enquanto finito. O símbolo
está em lugar de algo. (SANTOS, 2007, p. 8). O termo símbolo tem sua origem no grego
(sýmbolon), e serve para designar um tipo de signo em que o significante (realidade concreta)
representa algo abstrato por força de convenção, semelhança ou contiguidade semântica. Os
símbolos têm a função de atar ou juntar elementos mantenedores e ressignificadores do mito.

O estudo comparativo dos Sinais de Pemba demonstrou a existência de símbolos comuns às


três etnias formadoras do povo brasileiro: o europeu, o indígena e o africano. Constatamos
que nos sinais riscados existiam elementos que pertenciam à essas etnias e que caracterizavam
a herança sociocultural das mesmas, dando formação à psique do povo brasileiro. Ao traçar
um sinal que denomina de Lei de Pemba, o adepto estabelece um Espaço Sagrado que ora vai
habitar, é neste momento que, ao fazer o círculo, inserindo nele os símbolos arquetípicos,
aproxima o céu da terra, fazendo com que não exista mais o sujeito e o objeto e acaba, assim,
imergindo no mundo Sagrado.

Eliade (1978, p. 13) propõe que “o sagrado não é um momento histórico da consciência
humana e sim um elemento estrutural desta mesma consciência”. Logo, ao ler atentamente
esses sinais, pudemos constatar que os mesmos possuem formas da construção cósmica
(Cosmogênese).

E sendo o homem o microcosmo dentro do macrocosmo, teria sido ele estruturalmente


construído da mesma maneira (Antropogênese), pois vivenciou os processos minerais,
vegetais e animais, bastando ver a sua constituição psicofísica para observar que está
impresso nela toda esta memória ancestral.

No pensamento junguiano, os símbolos constituíram a psique humana tanto coletiva como


individualmente. Jung define inconsciente coletivo como algo que é herdado, consistindo de
formas preexistentes, arquetípicos, que podem se tornar conscientes. Fala também do
inconsciente individual como sendo constituído essencialmente de conteúdos que já foram

685
conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou
reprimidos (JUNG, 2002, p. 53-54).

O povo brasileiro, que recebeu estas cargas de informação ancestral das três etnias da sua
constituição psicofísica, acabou funcionando como um elemento de convergência, facilitando
nele os processos de abstração espiritual e mística.

O símbolo surge na Arte, por meio das harmonias, cores e sons que os artistas, ao observarem
a natureza, sentem e expressam em suas criações. A Filosofia interpreta seus códigos e abstrai
da forma para chegar à essência. A Ciência simboliza todos estes processos,
compartimentando-os para interpretá-los e demonstrar as leis que regem os acontecimentos
cósmicos. Na religião, encontram-se os símbolos nos ritos e liturgias, por meio das palavras
que determinam, nos gestos que atraem, e nos sinais que fixam. Pode-se ainda observá-los nas
vestimentas, nos objetos, nas danças, nos cânticos e nos espaços destinados ao sagrado.

Jung, fala sobre o conceito de arquétipo: “constitui um correlato indispensável da ideia do


inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão
presentes em todo o tempo e em todo lugar” (JUNG, 2002, p. 53).

Segundo Eckschmidt (2013):

[...] entre outras funções, os símbolos são utilizados para representar as etapas do processo
de individuação como se fossem marcos de um caminho. Eles se baseiam em determinados
arquétipos que se apresentam no inconsciente e que chamam o indivíduo para uma
discussão consigo mesmo, através da produção de sonhos, fantasias e imagens mitológicas.
E como a psique é a primeira experiência direta que temos, ou percebemos da realidade, é
notório que ela funcione baseada em símbolos que transformam e redirecionam a energia
instintiva dos arquétipos do inconsciente.

Nas pesquisas mitológicas, Jung denomina a existência de determinadas formas da psique de


motivos ou temas, “na psicologia dos primitivos elas correspondem aos conceitos das
représentations colectives de LEVY-BRUHL” (JUNG, 2002, p. 53). Para as religiões
comparadas, estas formas da psique são definidas como categorias da imaginação por Hubert
e Mauss. (JUNG, 2002, p. 53). Já Adolf Bastian as designou como pensamentos elementares
ou primordiais (JUNG, 2002, p. 53). Jung (2002, p. 54) define o inconsciente coletivo como
“algo que não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Consiste de formas

686
preexistentes, arquétipos, que secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma
forma definida aos conteúdos da consciência”.

Alguns símbolos existem em todas as culturas e em todos os tempos. Exemplificamos alguns


deles3:

Símbolos Celestes: sustentam os ritos de ascensão, de escalada, de iniciação, de


realeza, etc., os mitos (a Árvore Cósmica, a Montanha Cósmica, a cadeia de flechas
que liga o Céu à Terra).

Simbolismo Aquático: As Águas existem antes da Terra. As águas representam a


soma universal das virtudes, precedem toda a forma e sustentam toda a criação. A
imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a emersão na água simboliza a
manifestação formal. Morte e Renascimento. O simples contato com a água comporta
uma regeneração, uma purificação. Ex: dilúvio, submersão periódica (Atlântida),
morte iniciática (batismo). Portanto, o dilúvio é comparável ao batismo, o velório ao
nascimento. Portanto a função da água é sempre o mesmo, independente da religião
onde ela surja: desintegrar, abolir as formas, lavar os pecados, purificar, e enfim,
regenerar.

Terra Mater: Ser depositado na terra, ao nascer ou ao morrer dá uma ideia de


interdependência entre a etnia e a Terra. Está presente tanto na Europa, ainda hoje,
como na África, China, Oriente Médio e América.

A mulher, a terra e a fecundidade: A mulher, como a terra, dá à luz e é fecunda. Foi a


mulher que descobriu a agricultura, e da terra tirou o sustento do clã. Até pouco tempo
atrás, era a mulher quem plantava e colhia. E ainda é assim entre índios, e africanos.
Ao homem cabia a caça e a proteção do clã. O Deus-Céu e a Terra-Mãe serviram de
exemplo para os casamentos humanos, que procuraram imitar essa hierogamia,
justificando a estrutura cósmica do ritual conjugal e do comportamento conjugal.
Segundo Mircéia Eliade “a orgia agrária é uma regressão à Noite Cósmica, ao pré-
formal, às Águas, a fim de assegurar a regeneração total da Vida e, por consequência,
a fertilidade da Terra e a opulência das colheitas” (ELIADE, 2001, p. 28).

3
Foram utilizados o livro de Jung - O homem e seus símbolos e o livro de Mircéia Eliade - O Sagrado e o
Profano.

687
Árvore Cósmica: A capacidade infinita do Cosmos em se regenerar é comparável à
Árvore gigante. Simboliza também a Vida, a Juventude, a Imortalidade, e a Sabedoria.
Este símbolo está presente na cultura germânica (Yggdrasil), na Ásia (Bhoudhi), no
Antigo Testamento (sarça ardente), na Mesopotâmia, na Índia (arbusto ashvatha) e no
Irã. Na cultura africana, a árvore representada pelo Iroko, significa o centro do mundo,
onde as divindades faziam o giro em torno dele; era ao pé de uma árvore que se
enterrava o cordão umbilical (a sua individualidade), passando aí a simbolizar a força
física e espiritual daquele indivíduo. No contexto geral, a árvore simboliza o Axis
Mundi, conexão entre a Terra e o Céu (mundo espiritual).

Montanha: é um símbolo do Universo. Se no meio do mar, simboliza as Ilhas dos


Bem-Aventurados (Paraíso dos taoístas). Geralmente são ricas em grutas. Estas são
retiros secretos, morada dos Imortais Taoístas e local das Iniciações. Remonta à ideia
de Monte e Lago primordiais.

Pedras: Significando Poder, Firmeza, a Permanência, a Irredutibilidade e o absoluto do


Ser. Consideradas morada de espíritos ou deuses. Eram utilizadas como lápides,
marcos ou objetos de veneração religiosa. Sempre foram importantes em todas as
culturas, desde o Judaísmo (p.ex., Jacó), Celtas (Bretanha e Stonehenge), nos jardins
do Zen-Budismo, e nos cultos africanos.

Lua: Ritmos lunares. Nascimento, morte e ressurreição. Consegue explicar ao homem


fatos que poderiam ser desconexos. Ex: nascimento, o porvir, a morte, a ressurreição,
as Águas, as plantas, a mulher, a fecundidade, a imortalidade, as trevas cósmicas, a
vida pré-natal, a existência além-túmulo seguida de um renascimento, a tecelagem (fio
da vida), o destino, a temporalidade, a morte. A ideia de ciclo, o dualismo, a
polaridade, oposição, conflito, reconciliação dos contrários. A lua reconcilia o homem
com a Morte.

Sol: Embora em constante movimento, ele é imutável. Autonomia, Soberania, e


Inteligência. Ex: Apolo, Júpiter, Osíris, Hórus, Adônis.

Eis alguns símbolos que aparecem nas culturas e crenças que deram formação ao povo
brasileiro:

688
Aves: O pássaro sempre esteve presente em todos os cultos religiosos primitivos e
ainda hoje permanece como símbolo do Espírito Santo para os cristãos, está presente
no sincretismo como a Congada e a Folia de Reis, nos estandartes e fitas usadas. Na
África, a pomba é o símbolo do Espírito, ligado aos cultos das Yamis; a galinha
d’angola simboliza a criação e a iniciação. Entre os Xamãs, o pássaro é símbolo do
Espírito.

Animais: Cavernas e rochas com desenhos de animais sempre tiveram uma conotação
religiosa, sendo investido de grande temor e respeito pela população local.
Certamente serviam de local para ritos mágicos de caça, e fertilidade. O totem animal
simboliza o próprio animal, sua força, sua agilidade e seu poder.

Cruz: está presente na história de muitos povos, entre eles egípcio, celta, persa,
romanos, etc. É a união de dois eixos opostos, vertical e horizontal, em 90º, separando
o mundo em quatro quadrantes, determinando os pontos cardinais (norte, sul, leste e
oeste). Os eixos também simbolizam o sol (vertical) e lua (horizontal)

Arco e Flecha: símbolo do Destino. O Arco representa firmeza, vontade e


determinação. A Flecha simboliza a libertação, o direcionamento para o Alto, a Luz
projetada, a Imortalidade. Os dois juntos representam o Plano Espiritual e o Físico, o
consciente e o inconsciente.

Cobra: Na Grécia era relacionada com a Sabedoria e o Conhecimento. Era


componente do Bastão de Esculápio. Símbolo do Poder, e também símbolo fálico. Na
Índia, era o símbolo do Kundalini e dos deuses Nagas. O Ouroboros é um símbolo da
Alquimia, do Hermetismo e do Ocultismo, e simboliza a Eternidade, o Eterno Retorno
e o Conhecimento Iniciático.

Círculo: É o símbolo da Psique. Platão descreveu a psique como uma esfera. Está
presente nos cultos da Lua, do Sol, nas mandalas, mitos e sonhos. Representa a
unidade, a perfeição humana. As mandalas estão presentes no Oriente e também no
Cristianismo (Rosáceas das catedrais). O círculo também aparece nas pinturas
rupestres, no período neolítico.

Quadrado: e também o retângulo é símbolo da matéria terrestre, do corpo, da


realidade.

689
Triângulos: Dois triângulos que se interpenetram, um apontando para cima, o outro
para baixo, simbolizam a união de Shiva e Shakti, as divindades masculina e feminina.
Simbolizam a união dos opostos, a união do mundo temporal (ego) e atemporal (não-
ego). É a união da alma com Deus.

Contribuição simbólica de cada etnia

Etnia Branca

Símbolos Judaicos: Estrelas, Candelabro (Menorá), Árvore (Axis-Mundi), Pão,


Pomba, Pedras, Hábito de cobrir a cabeça (Kipá), Vela, Oferendas/Sacrifícios,
Pergaminhos, etc.

Símbolos Cristãos: Cruz, Terço, Pão e Vinho, Pomba, Pedra, Hábito de cobrir a
cabeça: véus e indumentária sacerdotal, Báculo, Velas, Oferendas/Sacrifícios.

Sinais utilizados pelos ocultistas/cabalistas: Pantáculos , Sinete, Escudos , Círculos,


Punhais, Espadas (gládios), Cruz, Alfabetos secretos, Bastões, Coroa. Os quatro sinais
básicos do mago eram a coroa, a espada, o bastão e a cruz.

Etnia Ameríndia

Símbolos rupestres, Sol, Lua, Estrela, Arco e Flecha, Pedra, Penas e Plumagens,
Cocares, Árvore, Bebidas, Fumo e defumações, Comidas (mandioca), Sementes,
colares, Hábito de pintar o corpo.

Etnia Africana

Africanos Islamizados: patuás, mandingas e continham pedaços do Alcorão, da mesa


de orações do Santuário, figas, raízes. Esses patuás eram rezados com uma passagem
do Alcorão. Os povos islamizados são os malés, fulas, ashantis, fulanins e outros.

Africanos não Islamizados: trouxeram as coisas relativas aos Orixás. São eles: Odus
do Ifá, Ferramentas e indumentárias dos Orixás, Pomba (Elewye) e galinha d’angola,

Pedra, Sol, Lua, Raios, Pinturas no corpo, Enfeites.

690
Ponto riscado

A necessidade de demarcar túmulos, lugares, ou fatos ocorridos impulsionou o aparecimento


de sinais e símbolos mais primitivos. Os primeiros inscritos conhecidos, os hieróglifos e as
escritas cuneiformes, chegaram até nós gravados em tabuletas de pedra, barro ou madeira,
muito antes de existirem os papiros.

E os pontos riscados? O que são e como surgiram?

Os pontos riscados são sinais ideográficos feitos no chão, paredes, ou tábuas de madeira, com
um bastão de giz mineral (pemba) no intuito de atrair ou repulsar forças positivas ou
negativas. São riscados apenas por sacerdotes (iniciados) com finalidade magística ou para
identificar e qualificar a entidade espiritual incorporada presente no rito. Embora a pemba
tenha sido trazida pelos yorubás, muito se perdeu dos sinais sagrados devido à islamização,
visto que os altos sacerdotes de Ifá eram perseguidos e mortos, e alguns poucos sobreviventes
foram vendidos para o Brasil como escravos (PRIORE, 2004, p. 24).

Os pontos riscados são ordens escritas (grafia celeste), de um a vários setores com a
identidade de quem pode e está ordenado para isso. É pelo ponto riscado que as Entidades
se identificam por completo nos aparelhos de incorporação, principalmente nos semi-
inconscientes, pois seus subconscientes, nesses fundamentos, não influem, simplesmente
porque não conhecem seus valores (SILVA, 1969, p. 274).

Segundo Rivas Neto4 e Mata e Silva5 o ponto riscado de Umbanda é constituído por três
etapas básicas:

Flecha: Identifica a sua Banda (Criança, Caboclo ou Preto Velho) ou Agrupamento afim.

Chave: Informa com maior precisão a identidade/Vibração Original (Linha) para


determinados casos. São elas: Oxalá, Yemanjá, Ogum, Oxossi, Xangô, Ibejis, Obaluayê,etc.

Raiz: É o que controla e situa as afinidades entre os Espíritos que se apresentam como Pretos
Velhos, porque no Grau de Protetores, conservam como soma de seus carmas, os caracteres
raciais no corpo astral (Congo, Angola, Cambinda, etc.), bem como os espíritos que se
apresentam como caboclos que também, dentro de suas afinidades, identificam-se por um
4
RIVAS NETO, 1999, p. 137.
5
SILVA, 1969, p. 186.

691
sistema igual. O sinal da Raiz tem três características em seu traçado, em cada uma das sete
linhas que identificam ainda a Entidade, como Chefe de Falange, Subfalange ou simples
integrante.

Para uma identificação total, traçam-se outros sinais, conforme o objetivo e forma-se um
conjunto, surgindo então ponto em sua totalidade.

Segundo Mata e Silva:

A Escrita Sagrada baseava-se em uma série de sinais de remota origem, que os ancestrais
iorubas haviam trazido de sua migração original para a África, tirando-os de um Alfabeto
Ideográfico que fora o primeiro Alfabeto Cursivo empregado para fins sagrados pelo
Homem (SILVA, 1969, p. 373-374).

Os sinais sagrados usados nos mistérios de Ifá Orixá eram segredos dos sacerdotes Yorubás,
não sendo conhecidos pelo povo. E somente chegaram até nós porque foram utilizados na arte
sacra, e algumas destas obras sobreviveram ao tempo e chegaram até aos dias atuais. Esses
caracteres somente eram vistos pelo povo em cerimônias específicas, quando o sacerdote
traçava sinais e figuras com um giz mineral. Com a queda do Império Yorubá, muito se
perdeu. É bom lembrar que neste período, a Islamização atingia a África, dilapidando sua
cultura e suas raízes. Perseguidos, pouco a pouco os altos sacerdotes de Ifé foram dizimados.
Alguns sacerdotes subalternos foram capturados e vendidos para o tráfico negreiro, tão
lucrativo na época. Após as guerras e a perseguição islâmica, o que sobrou desta escrita
sagrada foi a lembrança de que era traçada com um bastão de giz mineral. Portanto, um
simples pedaço de giz mineral passou a simbolizar todo o poder da cultura yorubá,
perpetuando a certeza de comunicação com seus Ancestrais. Da Escrita Sagrada de Ifá restou
apenas a Pemba, simples reflexo da esperança de comunicação com os Ancestrais, não mais
refletindo a Magia de que era revestida, mas ainda assim, fonte da fé e esperança de um povo
simples.

A Umbanda veio resgatar os áureos tempos da pemba. Não há conhecimento da Umbanda


sem o uso da Pemba. Contudo, apesar de amplamente disseminada, seu conhecimento é
restrito a poucos iniciados.

Em estudo na Índia, Saint-Yves D’Alveydre descobriu o alfabeto Wattan inscrito no peitoral


de um guerreiro. Os Brahmanes dataram este alfabeto à chegada dos Arianos à Índia. Sua
correlação com o sânscrito, com a astronomia e os signos astrológicos corroborou com a

692
datação deste alfabeto, colocando-o há milhares de anos atrás, sob a Constelação de Áries.
Este alfabeto está diretamente relacionado com a Grafia Sagrada dos Orixás, segundo a
Escola de Umbanda Esotérica. Seus símbolos e grafia são bastante próximos à visualizada nos
sinais grafados atualmente nesta escola. Veremos mais adiante o ponto riscado do Caboclo
Itingussu, e notaremos importantes diferenças.

Segundo esta escola, a grafia celeste ou escrita dos orixás pode ser didaticamente classificada
nos seguintes sistemas (RIVAS NETO, 2002, p. 302):

1 – Mnemônico: É um sistema destinado a avivar a memória por meio de sinais. 2 –


Ideográfico: É a representação gráfica de uma ideia. Os sinais representam uma qualidade
ou função. Ex.: Estrela – significa noite. Sol – o dia, a luz, a claridade. 3 – Fonético:
Caracteres representativos dos sons. Aqui entram também os caracteres onomatopaicos e
que é a imitação do som de alguma coisa.

Como exemplo, temos: o onomatopaico de uma estrela cadente é Tzil, o onomatopaico de


trovão é Pan. Exemplificamos a seguir um ponto riscado de Umbanda Esotérica na Banda ou
vibratória de caboclos.

Figura 1 - Ponto Riscado do Caboclo Itingussu6

6
Acervo digital da FTU – Faculdade de Teologia Umbandista, autorizada.

693
Ainda cabe uma observação: todos os sinais ou signos, mnemônicos, ideográficos ou
fonéticos, podem ser figurativos ou pictóricos (pictografia). Podem representar a figura, a
imagem, a pintura de um ser, objeto ou fenômeno.

A pesquisa

Foram estudados 588 sinais riscados, que foram divididos em 249 pontos de caboclos e
caboclas, 93 pontos de pretos e pretas velhas, 246 pontos de Exu e Pomba Giras, e somente 1
ponto de Criança. O ponto encontrado para Criança não pode ser mensurável, por ser apenas
um, não havendo ponto de comparação. A maioria dos pontos de Caboclos e Caboclas
possuíam flechas. Havia uma maior incidência de símbolos e sinais da raça vermelha, tais
como sol, lua, penas, cocares, arcos e flechas, mar e raios. Nos pontos de Pretos e Pretas
Velhas, na sua maioria havia cruzes. Havia uma incidência maior dos símbolos da raça
branca, através de símbolos e sinais judaico-cristãos, como cruzes, estrelas, candelabros, velas
e terços. Nos pontos de Exu e Pomba Giras, na sua maioria havia tridentes. Há aqui uma
maior mistura de raças, sendo utilizados estrelas, cruzes, flechas, tridentes, crânios, ossos, e
sinais do Ocultismo Europeu.

Considerações finais

Ao chegar ao final deste artigo, pode-se compreender a longa viagem que o povo brasileiro
fez em busca de sua identidade espiritual, cultural, social e econômica. Ficou claro que os
processos sincréticos aos quais ele foi submetido configuraram em sua psique a atuação
maciça de três etnias - a vermelha, a negra e a branca. Este caldeamento étnico culminou, por
meio do amalgamento destas culturas, em um mestiço, o homo brasilienses. Sua capacidade
de suportar culturas diferentes fez do homo brasilienses um ser diferenciado.

Todo o povo brasileiro é naturalmente místico, em todos os rincões deste país sobejam as
crendices e a fé no sobrenatural. Estando inserido constantemente no mito, vive ele sempre
em um momento atemporal. Sua maneira de ver ou conceber teorias passa sempre por
processos intuitivos, valorizando o sujeito (essência), em detrimento do objeto (forma).

694
Jung (2002, p. 53) define a estrutura do inconsciente coletivo por algo que adquirimos por
meio da hereditariedade, e o inconsciente individual por meio de arquétipos que estão
esquecidos momentaneamente. A Umbanda, ao utilizar todos esses símbolos e sinais, evoca
esta herança, fazendo com que o indivíduo-adepto traga à tona os arquétipos esquecidos
constituidores da inconsciência individual.

O povo brasileiro, que recebeu estas cargas de informação ancestral das três etnias citadas,
funciona como um elemento de convergência, facilitando nele os processos de abstração
espiritual e mística que o remete assim, à Síntese.

Rivas Neto (2003, p. 459) cita que:

Na Umbanda, pela diversidade dos seus adeptos, há também uma diversidade de ritos e de
formas de transmissão do conhecimento. A essas várias formas de entendimento e vivência
da Umbanda denominamos escolas ou segmentos. As várias escolas correspondem a visões,
umas voltadas mais aos aspectos míticos e outras mais voltadas à essência espiritual,
abstrata. Embora não haja consenso quanto à ritualística, que são várias formas de
interpretar e manifestar a doutrina, a essência de todos é a mesma e todos são
legitimamente denominados umbandistas.

É por isso que podemos ver, na diversidade da Umbanda, uma amostragem fidedigna destas
atuações sincréticas. O adepto desta corrente Filo-Religiosa utiliza os símbolos e sinais como
ponte para o sobrenatural.

Ao traçar um sinal que denomina de Lei de Pemba, estabelece um Espaço Sagrado que ora vai
habitar, é neste momento que, ao fazer o círculo, inserindo nele os símbolos arquetípicos,
aproxima o céu da terra, fazendo com que não exista mais o sujeito e o objeto e, acaba assim,
imergindo no mundo Sagrado.

Vemos ainda que esses mesmos sinais podem ser analisados e situados dentro das inúmeras
escolas umbandistas, notando que em algumas escolas os sinais obedecem a um momento
histórico, demonstrando que estas ainda estão polarizadas em um aspecto sincrético de uma
determinada etnia.

695
Referências

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697
698
Tambor de Mina: uma abordagem a partir de seus elementos
visuais
Wgercilene Machado Martins1

Introdução

Este trabalho é desdobramento de uma pesquisa sobre os elementos visuais querelacionados à


estética (representação visual e satisfação)dentro do tambor de mina, que é a designação para
a religião de matriz africana que se manifesta no norte do país, especificamente nos Estados
do Maranhão e Pará. Em São Luís essa religião surge no século XIX e existe ainda dois
terreiros mais antigos que sobreviveram até os dias atuais; Casa das Minas fundada por povos
origem jeje(antigos povos da região do Daomé) e a casa de Nagô fundada por povos
Iorubás(povos nigerianos),sendo as mais antigas e prestigiadas essas casas exercem influencia
principalmente nos terreiros do perímetro urbano fundados a mais tempo, Ferretti (1985).

No tambor de mina são cultuadas entidades da estrutura mitológica nagô-iorubá e jeje-fon, o


que inclue orixás (entidades do panteão nagô, adivindas da região do rio Nínger eAbeokutá)e
voduns(entidadesjeje, do panteão fon da família deDavice, Savaluno,Dambiráe
Queviossôadivindas do reino Abomey, no Daomé, Benin ) e ainda são cultuados os inquices,
entidades consideradas espíritos de reis e rainhas, príncipes e outras personalidades ligadas à
nobreza e os caboclos, espíritos ligados a terra, esses não fazem parte do panteão. Oscabolos
podem ser de muitoslugares; Itália , Turquia, Codó, mas isso não corresponde
necessariamente ao mesmo espaço geográfico reconhecido por nós. Muitos caboclos
possuemtítulos de nobreza, à exemplo;Dom Luís, que é considerando o espírito de Luís XIII
rei de França.Segundo Ferretti;

Como ocorre geralmente com as religiões de origem africana, a mina é uma religião
extática e iniciática, que tem na incorporação uma forma sensível de comunicação com o
sobrenaturale, no contato direto entre o filho e pai ou mãe-de-santo, intensificando em
períodos de reclusão, a principal forma de transmissão de conhecimento (FERRETTI, 1985,
p.37).

Minha intenção é observar os elementos visuais que compõe o tambor de mina, reconhecendo
que tais elementos não são isolados de influências sonoras e performáticas. Dessa maneira,

1
Graduanda em Artes Visuais pela UFMA, bolsista do PIBID-UFMA. Contato: wgercilene@hotmail.com.

699
levarei em consideração o significado decores nos adornos usados pelos adeptos dessa
religião.Este trabalho se origina da minha intenção de aprofundar meus conhecimentossobre a
cultura afro-brasileira, dando destaque ao tambor de mina, que éa expressão religiosa de
origem africana mais difundida no Maranhão.

Marco teórico

Para pensar a respeito das significações dos elementos visuais do tambor de mina, levei em
consideração outros estudos que já foram e estão sendo feitos, na minha pesquisa estou
considerando trabalhos relacionados ao tambor de mina, tal como Ferretti(1995) que discute a
questão do sincretismo como um meio de adaptação do negro na sociedade católica
dominante, considerei também as observações deFerretti (1996) que propõe um levantamento
histório da Casa das Minas, fala sobre a estrutura de seu panteão (voduns), considera
elementos que compõem os rituais e a importância desses elementos para os adeptos,
menciona como é organizado o ciclo de festas. Ainda será importante para meu trabalho as
observações de Ferretti (1985) que faz uma descriçãosobre as origens do tambor de mina no
Maranhão, faz um relato sobre o comportamento de adeptos e entidades nos momentos dos
rituais. Além dos trabalhos de autores locais, considerei como referencial trabalhos
relacionados ao candomblé na Bahia, podendo assim fazer relações com a religião
local(tambor de mina) assim como estar percebendo suas distintinções, nesse sentido foi de
extrema relevância para o meu trabalho, o trabalho de Moura (2011), onde o autor faz uma
análise do panteão nagô, falando de seus tipos psicológicos, de suas representações, a
importancia dos critérios classificatórios e os fatores que contribuem para dar um significado
aos diversos objetos e características atribuídos aos orixás tais como cor , sabor, cheiro e
sensações.

Existemmuitas diferenças entre as divindades e essas diferenças se dão de acordo como a


religião é pensada pelos adeptos, essas diferenças também estão em seus rituais e podem ser
notadas nos rosários ( termo usado para definir os colares de contas usados durante os rituais),
vestimentas, alimentos, assentamentos(espécie de louça sagrada que representa a
materialização da relação do adepto com o orixá) ritmo e número simbólico de
qualidades.Segundo Moura “Os orixás, a bem dizer, são verdadeiras categorias lógicas, que
permitem classificar não somente tipos psicológicos mas diversos tipos de objeto e de seres

700
que pertecem a vários estratos do real: Substâncias, cores, ritmos,animais,plantas[...]” (2011,
p. 30).

É importante sublinhar,que tanto os traços psicológico de cada divindade, assim como os


elementos dos aspectosreais Moura (2011), ou seja,aos elementos visuais dareligião, estão
relacionados diretamente com a variação dos mitos, tanto jeje, quanto nagô.

Nessa pesquisa, irei considerar, sobretudo, os aspectos como as cores, os materiais utilizados
na confecção dos rosários,a vestimenta utilizada nos ritos,assim como os objetos atribuídos a
cada entidade que por sua vez, estão também relacionados diretamente a variação dos itãs
(histórias que dão fundamentação a estrutura mitológica utilizada no tambor de mina).

Nesse sentido ,cada filho de santo tem uma maneira específica de usarseus rosários (de lado,
para frente ou para trás), essa maneira depende do gênero de cada entidade, assim como do
nível hierárquico do elegun (individuo que incorpora entidades).Ainda segundoMoura; 2011
p. 34,“O colar do iniciado é um objeto carregado de significações, e revela toda identidade da
pessoa, seu Odu,seus Santos”.Então através do rosáriopode-se descobrir para quem é feita2a
cabeça do adepto, considerando, o material, a tonalidade, o número de contas e de firmas
(contas cilíndricas ou arredondas que formam os rosários).

Em relação às entidades,acredita-se que cada ser humano é protegido por uma Tríade
(divindades). Então usa-se um rosário, para cada uma dessas entidades. Assim como no
candomblé, no tambor de minanormalmente usa-se um colar em homenagem à entidade
patrona do terreiro. No caso do tambor de mina, onde além dos Orixás, manifestam-
se;voduns, caboclos e fidalgos, além dos rosáriosreferentes aos orixás também usam-
serosários referentes a estas outras entidades, as cores desses rosários são estabelecidas por
elementos relacionados ahistórias destas entidades assim como a suas regiões de origem.

Como mencionado, o uso do rosário varia segundo o sexo da entidade e nível hierárquico do
elegun. Podendo ser utilizados;caindo para o lado direito, para o lado esquerdo, para trás, e
ainda caindo para frente, preso peloamurê(pano de algodão preso à cintura em forma de
cinto)mas a forma de uso desses rosários pode variar de acordo com o desejo de cada
entidade. Onúmero de fios ou de firmastambém varia de acordo com o grau hierárquico do
elegun.Outro ponto relevante em relação ao rosário é que esse permite, ainda, graças á cor e à
tonalidade, identificar a naçãodo Orixá; se são nagô oujeje. Pois essas cores além das
2
Cabeça feita é a expressão usada pelos adebtos pra classificar as pessoas que já passaram por rituais iniciáticos.

701
qualidadescomo já mencionei, varia de nação para nação.(Nação é o termo usado para
distinguir voduns e orixásconstuma-se dizer que a entidade ou filho de santo é da naçãojejeou
nagô). Portanto através das observações dos rosários como destacamos, é permitido descobrir
a nação do orixá e suas características, se vive na áqua doce, salgada, se vive nas florestas, se
é ligado à terra, se é jovem, adulto, se é bélico ou não, entre outras de suas características.
Segundo Ferretti;

Na Mina cada filho-de santo tem, além do colar ritual que marca sua vinculação com as
entidades africanas, um para cada caboclo que vem na sua cabeça mais
frequentemente.Este, quando não trazido ao pescoço no início do toque, é dado a ele após a
incorporação ( além da toalha de renda usada pelas entidades espirituais). Os turcos
geralmente usam seu rosário (colar) atravessado. E preferem enrolar a toalha na mão,
coloca-la sobre os ombros ou substtuí-la por uma pana (lenço de seda muito usado por
caboclo), em vez de amarrá-la na cintura.As entidades mais importantes da casa ou do pai
ou mãe- de-santo usam também outros distintivos como: chicote, bengala, lenço no ombro
etc. Independente destes sinais cada caboclo tem sua ‘marca registrada’ ( doutrina própria,
modo de falar e dançar etc.), que facilita sua identificação quando chega na guma.(
FERRETTI, 1992, p.57)

As cores também se aplicam nas vestimentas, considerando que cada divindade possui uma
cor específica. Oxalá: Branco, Nanã usa lilás,podendo usar;azul escuro, rosa, e raramente
branco.Iemanjá: azul claro, verde claro e raramente branco. Oxum: Pode usar amarelo que se
mescla com azul claro, rosa e branco.Logunedé: pode usar amarelo e azul claro. Ossãim:
Branco e verde claro. Ewá: branco, azul claro e rosa. Oxumarê: amarelo, que pode ser
mesclado com preto ou verde. Obaluayê: vermelho, amarelo, ou branco e preto. Loco: branco
e vermelho. Ogum: azul escuro, vermelho, pode usar branco e raramente verde escuro.Oxóssi:
azul turquesa e verde mata.Xangô: Usa branco, usa vermelho e marrom. Obá: vermelho, rosa
e laranja. Exu: vermelho e preto. É importante enfatizarque assim como as cores dos rosários,
as cores das vestimentas tambémestão relacionadas com as qualidades de cada orixá, de
acordo com suas variações mitológicas. Porexemplo; se são ligados à riqueza (o amarelo de
Oxum) se são ligado ao fogo (o vermelho de Exu) se são Orixás Funfuns, ou seja, se fizeram
parte do processo da criação, utilizam normalmente só o branco.

No tambor de mina, cada iniciado possui normalmente vestimentas relacionadas as cores


atribuídas a cada divindade. E essas vestimentassão utilizadas de acordo com cada ritual, cada
festa. Normalmente nos rituais, acontece de entidades caboclas homenagearem orixás, ou

702
orixás se homenagearem entre si, e essa homenagem está diretamente ligada no acréscimo de
cores nas vestimentas e rosários, fazendo referência a entidade homenageada.

Outro elemento relevante na composição visual do tambor de mina é questão do sincretismo


religioso. Segundo Ferretti, “O tambor de mina tem muitos vínculos com o catolicismo, o
espiritismo kardecista, religiões ameríndias e com práticas religiosas de outras procedências”.
(FERRETTI,1995, p.13).

Metodologia

A pesquisa em questãoestá sendo realizada no terreiro Ilê Ashê Obá Izô, (casa do rei do fogo)
localizado no bairro da Liberdade, São Luís- Maranhão. A pesquisa está sendo feita
primeiramente através de pesquisas bibliográficas sobre as religiões afro- brasileiras,
principalmente com estudos relacionados ao tambor de mina como por exemplo: Sérgio
Ferretti(1995) e Mundicarmo Ferretti (1985), assim como outros autores como: Carlos
Eugênio de Moura (2011); entre outros. Além disso tenho realizado visitas de campo a fim de
observar os rituais realizados no terreiro, também de conversas informais com sacerdotes e
outros adeptos do tambor de mina. As informações são colhidas através de registros feitos
principalmente em câmaras fotográficas e anotações.

Resultados

Comojá mencionei, a pesquisa está sendo feita através de visitas ao terreiro, Ilê Ashê Obá Izô,
localizadono bairro da Liberdade em São Luís, onde já foram feitas algumas observações. É
importante ressaltar que a pesquisa está focalizada em um aspecto mais visual do tambor de
mina, especificamente na composição dos adornos de seus adeptos, considerando que cada
entidade que que se manifestapossui elementos específicos que as identificam.

Minha primeira visitano terreiro,foi no dia 23 de Abril,data que se homenageia o Orixá Ogun,
(orixá sincretizado com São Jorge) ao chegar ao terreiro fui recepcionada pela entidade
cabocla seu Cravinho, e percebi a presença de outras entidades, em sua maioria codoesesque
estavam sobre algumas filhas de santos apesar do comportamento discreto demonstrado.
Como já mencionado, cada entidade possuem um comportamento específico; pude observar

703
que os caboclos até mesmo por possuírem um tipo psicológico mais irreverente, normalmente
possuem um jeito mais despojado de utilização das chamadas panas, estas normalmente são
usadas por eles, ou na cintura, ou no ombro. Então observei a diferenciação na forma de
utilização das roupas, das cores utilizadas tanto nas roupas quanto nos rosários, e espessuras
das guias, dependendo da entidade e também da posição de hierarquia do iniciado. As
imagens abaixo (1,2 e 3)mostram exemplos de utilização de rosários.

Figura 1 - Da esquerda para a direita; Pai e filhos de santo do terreiro Ilê Ashê Obá Izô, São Luí- MA.3

Como também já mencionado, noterreiro acredita-se que cada pessoa é protegida por uma
tríade de orixás, então cada pessoa usa rosários direcionados aos seus orixás, Isso depende
também do grau de hierarquia do iniado, no terreiroque observei, os filhos que não possuem
uma alta posição de hierarquia só usam dois rosários de orixás protetores, o terceiro rosário é
em homenagem ao orixá de seu pai. As cores desses rosários também são determinada por
esses orixás. É importantefrisarque a quantidade e a cor dos rosários além de serem
determinados pelo direcionamento das entidades variam de acordo com o costume de um
terreiro para o outro. Cada filho de santo apesar de ter a cabeça feita para determinados
orixás (tríade de orixás; no caso do terreiro), a questão das cores são bem visíveis também nas
vestimentas; pois apesar de que cada divindade possua uma cor específica, cada filho de santo

3
Fonte: Wgercilene Martins

704
tem uma cor de roupa que representa cada entidade; no terreiroIlê Ashê Obá Izô, normalmente
usam-se sete cores: Branco, rosa, amarelo, azul bebê, azul roial, vermelho, verde mata, uma
saia estampada e uma saia de três cores (verde, vermelho e amarelo, específica para as
entidades turcas). Enfatizo que a utilização dessas cores nas vestimentas, assim como
dosrosários , depende muito do grau hierárquico de cada filho de santo.Por exemplo; cada
pessoa ainda não iniciada passa um ano utilizando somente a cor branca, também que
dependendo do grau de hierarquia as entidades podem utilizar outros acessórios ou objetos,
por exemplo, se forem de alto grau de hierárquico normalmente usam; rosários com
espessuras bem mais grossas com maior número de firmas, bengalas, lenços a mais. Assim
como da utilização de objetos no ritual, dependendo da entidade envolvida. Muitas das vezes
o orixá é que determina o comportamento dos seus adeptos cavalos. Portanto o grau de
hierarquia não só do iniciado, como também da divindade; se é orixá, vodun ou caboclo vai
influenciar diretamente no aspecto visual.As imagens abaixo ( 4 e 5) exemplificam a
utilização de vestimentas e acessórios por caboclos e orixás.

Figura 2 - Pai Wendel à esquerda com a entidade cabocla seu Cravinho e à direita com o Orixá Xangô. 4

Em visitas econversas com alguns filhos de santo pude perceber que eles guardam com toda
sacralização os acessórios utilizados palas entidades. Exemplo; espelhos- leques, coroas,

4
Fonte: Wgercilene Martins

705
pulseiras, braceletes. Pude perceber também o não uso dos rosários após relações sexuais, ou
período de menstruação, assim como outras pessoas não poderem tocar em nenhum desses
adereços, para não suja- los pudeperceber também que gestos e penteados muitas vezes estão
de acordo com os donos de suas cabeças.

Conclusão

A pesquisa se encontra em andamento, mas através da pesquisa tenho observado como a


experiência estética é importante para a auto afirmação dos adeptos do tambor de mina,ou
seja, como a religião nesse caso, torna-se importante elemento de valorização da auto-estima
dos adeptos, considerando que a maioria desses terreiros como é o caso do Ilê Ashê Obá Izô,
são localizados em bairros populares da cidade, e conseguintemente frequentado em sua
maioria, por pessoas de baixo poder aquisitivo e que trabalham na maioria das vezes em
profissões consideradas de baixo prestígio social, por possuírem um baixo grau de
escolaridade.Nesse contexto como já mencionei, os aspectos visuais estãorelacionados a
outros aspectos como o perfil psicológico das entidades que com ajuda dos itãs interferem
diretamanteno perfil psicológico dos adeptos, pois esses, por exemplo; ao utilizarem o
amarelo de Oxum, não utilizam apenas pela questão do visual, mas utilizam a cor de Oxum,
para ficarem parecidos com sua senhora ( orixá para quem o adepto foi iniciado), que por sua
vez é dona do ouro. Pude perceber que mesmo com esse perfil dos adeptos, o fato de serem
vinculados ao tambor de mina possibita que tenham um tipo de relação positiva com seus
corpos, através das idenficações visuais que elaboram para se assemelharem aos arquétipos
(características) de seus orixás protetores.

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voduns e ancestrais nas religiões afro- brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

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707
708
Tem arruda? Tem guiné e espada? Tem magia e poder!
Abordagem etnobotânica de três espécies vegetais na rito liturgia
das religiões afro brasileiras
Wandir Vieira Leal Santos1

Introdução

Os processos de cura pelas plantas usadas nos rituais de Umbanda se mostraram como um
campo de pesquisa de grande interesse por sua eficácia, e que também se justifica por manter-
se fortemente no imaginário popular durante décadas, resistindo fortemente aos embates
criados por outros seguimentos religiosos. Ao adentrarmos, mesmo que muito
superficialmente, no tema que nos coloca diante de uma antropologia da religião e uma
antropologia médica, os processos de cura a que nos referimos serão explicados à luz de uma
religião específica.

Nossa pesquisa, sob uma perspectiva Etnobotânica explicita os valores culturais de nosso
país, com suas singularidades, unindo saberes da religiosidade popular e os saberes
científicos, no que diz respeito à análise botânica das plantas: Ruta graveolens L.. Petiveria
alliaceae L. e Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain.arruda,guiné e espada, respectivamente.

O encontro entre a ciência e a religião ganha, ao nosso olhar, uma nova dimensão quando aqui
procuramos estabelecer os atributos da planta na Umbanda, uma religião brasileira que abarca
procedimentos míticos religiosos de três culturas (indígena, européia e africana) que se
uniram nos primórdios da colonização.

Ao buscarmos os centros de origem das referidas espécies vegetais investigamos sua


historicidade, trazemos para este artigo uma reflexão sobre os seus poderes mágicos, advindos
de suas anatomias florais. Estudo este que nos levou a observações empíricas que
enriqueceram nossa pesquisa, sob o ponto de vista da mística que envolve estas plantas em
espaços mesmo que adversos aos da Umbanda. A exemplo do vaso das sete ervas,
denominação recebida ao conjunto de ervas que incluem arruda, guiné e espada de São Jorge,
utilizados como defesa em ambientes públicos e residenciais.

1
Especialista em Ciências da Religião pela PUC/SP, especialista em Biologia pela FUSVE/RJ, complementação
em Botânica pela UFJF. Contato: wavileal@yahoo.com.br.

709
Com a anuência de sete líderes espirituais de localidades próximas e do município de São
Paulo, realizamos uma pesquisa onde tais lideranças nos responderam sobre a utilização das
três espécies vegetais em suas casas de trabalhos espirituais. Associamos os resultados
obtidos aos conceitos botânicos do diagrama floral, à numerologia e geometria sagrada, estas
tomando como referencia as obras dos autores W.W. da Mata e Silva e Francisco Rivas Neto,
ambos pertencentes a mesma escola ou linha de transmissão de conhecimentos.

Para uma abordagem Etnobotânica da simbologia deste vegetal na Umbanda, utilizamos o


procedimento dedutivo-indutivo, tendo como ponto de partida uma visão particularizada,
empírica que, ao longo da pesquisa, recebeu uma fundamentação teórica, resultante de um
resgate histórico das plantas.

A pesquisa bibliográfica nos respondeu as questões sobre os usos ritualísticos, nossas


observações empíricas das anatomias florais seguiram o método indutivo. Com o recurso
fornecido pela ciência Botânica, mais especificamente a análise da estrutura floral das
espécies, procuramos investigar o que elas poderiam nos fornecer de indícios que
justificassem as suas funções magísticas.

À luz desta ciência, podemos pousar o nosso olhar nos fenômenos que envolvem saberes
humanos que se relacionam com a vida vegetal, de duas formas estruturais de pesquisa. Uma
destas formas é a analise do nível de relacionamento de uma cultura com suas plantas,
procurando interpretar e esclarecer a respeito das diferentes formas de comportamento. Este
tipo de análise é denominado de Etnobotânica descritiva ou qualitativa. Já a Etnobotânica
quantitativa, nos possibilita comparações e avaliações do significado das plantas para os
grupos pesquisados. No presente artigo utilizamos os dois procedimentos.

As plantas sempre estiveram presentes na vida dos seres humanos, surgindo a partir de três
aspectos que se inter-relacionam: o simbólico, o natural (botânico) e o cultural.
(ALBUQUERQUE,2005, p.7a)

O conhecimento botânico alia mitos, divindades, espíritos, cantos, danças, ritos nos quais
verificamos uma perfeita relação dos três elementos mencionados anteriormente, onde o
natural e o sobrenatural fazem parte de uma única realidade. Exemplificam isso os ritos de
coleta de plantas para as aplicações medicinais ou mágicas; a designação e atribuição de
espíritos ou divindades às árvores; as práticas divinatórias, os cantos propiciatórios para,
entre outras coisas, liberar a energia curativa ou mágica do vegetal que se emprega para
determinado fim (ALBUQUERQUE,2005, p7b)

710
Um legado de grande importância foi deixado à humanidade: a forma de traduzir o
conhecimento intuitivo para que este seja compartilhado com os demais em seu grupo familiar
ou étnico. Os povos, em que a sabedoria era transmitida pela força da oralidade e que
preconizavam a precisão da comunicação unida à sacralidade do Verbo, traziam a ciência
vinculada a tais princípios essencialmente éticos. Temos nos povos africanos e ameríndios o
traço cultural alicerçado nos saberes adquiridos por fontes inspiradas na natureza que nela
buscaram as respostas para seus questionamentos.

A Etnobotânica permite-nos tomar contato com a diversidade de olhares sobre o reino vegetal
que o homem procura ter para usufruir valores estéticos e nutricionais, assim como os efeitos
médicomagísticos proporcionados pelas plantas.As espécies descritas neste estudo encontram-
se historicamente vinculadas a processos de grande relevância histórica.

Três plantas, três continentes

As plantas Ruta graveolens L.(arruda), Petiveria alliaceae L.(guiné).Sansevieria trifasciata


(espada de Ogum,espada de São Jorge) serão observadas também,sob um dos sistemas de
classificação mais empregados na atualidade,a taxonomia binominal, elaborado pelo cientista
sueco Carl Von Linné (1707-1778). Citaremos algumas das características botânicas destas
três plantas que ilustram as suas trajetórias pelo mundo, onde elas receberam denominações
diversas. O processo migratório das três espécies estudadas nos coloca diante de uma rica
historicidade.

A Petiveria alliaceae L. originária da América Tropical recebe dezenas de denominações


populares nos diversos estados brasileiros tais com: amansa –senhor (AM,BA), raiz de guiné
(BA,SP), erva de guiné (RJ,SP,BA),raiz de pipi, raiz de congo, tipi (BA) dentre
outros.Carrega nomenclatura específica em diferentes idiomas e sua historicidade associada
ao período da escravidão no Brasil,considerada o remédio para amansar os senhores de
engenho, tornou-se fonte de pesquisa de vários estudiosos principalmente nos séculos XVII e
XVIII. (CAMARGO, 1988, p. 36-38)

Da região mediterrânea, ao atravessar o oceano atlântico, a Ruta graveolens L. foi assimilada


aos costumes brasileiros. Retratada por Jean Baptiste Debret em sua gravuras, onde negras
mucamas vendem galhinhos da planta na capital da colônia. Na literatura inglesa ela é

711
descrita por Shakespeare, nas obras, Ricardo II e em Hamlet(JUNIOR,1981, p. 64), onde a
arruda aparece com forte apelo simbólico.

Planta de vasta denominação popular dentre elas: arruda-doméstica, arruda de jardim, arruda
de cheiro. O nome Ruta vem da palavra latina rus que significa fluxo sanguíneo e graveolens
significa cheiro forte.Suas propriedades terapêuticas com o decorrer do tempo têm conseguido
aprovação no meio científico e encontram-se descritas em inúmeras publicações. A planta é
uma representante da família das rutáceas, aromática e estimulante. É uma planta subarbustiva
ou herbácea, lenhosa, que apresenta caule ramificado, pequenas folhas verde-acinzentadas ou
verde-azuladas e alternadas. As flores também são pequenas e de coloração amarelo-
esverdeada.

Do continente africano recebemos a Sansevieria trifasceata Hort.ex. Prain, com as seguintes


denominações na língua iorubá: ojá kòrikò,ojà ikòokó,pàsàn kòrikò e agbomolòwóibi.
(VERGER,1995, p 716 ) Sua anatomia foliar está associada ao instrumento bélico que lhe
confere as denominação de espada . Na tradição iorubá, plantas de folhas pontiagudas são
classificadas como masculinas,de grande poder. Ogum é orixá guerreiro, detém o título de
asíwájú, segundo o mito é aquele vem na frente,abrindo os caminhos para os outros orixás
(BARRO, 2007, p30) S.trifasceata Hort.ex. Prain, denominada espada de Ogum e por
analogia ao santo cristão, espada de São Jorge. Ambos, santo e orixá são ícones que expressão
força, poder, coragem, e proteção, simbolizados neste vegetal,cuja folha fibrosa lhes garante
firmeza e resistência ás intempéries.

.O gênero Sansevieria encontra-se espalhado por diversos países, em Cuba ela é conhecida
como Cocuira, na República Dominicana ela é chamada de espada de Santa Tereza
(CORREA, 1987 p.389). Nesta descrição sucinta sobre três vegetais que se intercambiaram
no período colonial e encontram-se unidos nas religiões afrobrasileiras, vemos a sua força
mítica e magística ao incorporarem á vida cotidiana dos brasileiros.

Portas, soleiras, magias e imaginário

A espada de Ogum por sua beleza ornamental pode confundir-se com o seu propósito
magistico, embora na maioria das vezes ocupem locais públicos onde demarcam a passagem
de pessoas (BARROS, 1998, p.168). Em algumas regiões do país não raro encontrarmos as

712
três espécies vegetais unidas no já citado vasos das sete ervas, ocupando espaços onde
segundo informantes, estas atuariam como protetoras de influencias malfazejas .Temos neste
gesto simbólico a religiosidade expressa no poder mágico conferido às plantas, dentro e fora
dos terreiros de Umbanda e Candomblé. As religiões afrobrasileiras abarcam princípios rito
litúrgicos de três matrizes e com elas diferentes conceitos de magia e de quem e como as
executa.

Demos o nome de mágico ao agente dos ritos mágicos profissional ou não.Constatamos ,de
fato,que há ritos mágicos que podem ser cumpridos por não-especialistas. Entre estes estão
as receitas das benzedeiras na medicina mágica, e todas aquelas práticas do campo que
podem ser executadas no curso da vida agrícola;igualmente,os ritos de caça ou de pesca,de
modo geral, parecem estar ao alcance de qualquer pessoa (MAUSS, 1974, p.55).

Múltiplas concepções da magia e seus executores influenciaram o pensamento da sociedade


brasileira desde a sua formação.

O imaginário de três povos, recheado de informações, crenças e costumes resultante da


mescla cultural que durante séculos foi se alicerçando em terras brasileiras, não poderia deixar
de delegar a composição do pensamento religioso. Sempre presente na ritualística vivenciada
pelos seres humanos, os vegetais impressionam nossos sentidos e por meio deles buscamos
significados que nos levam a construções simbólicas em diversas dimensões do pensamento
humano.

O símbolo apresenta uma série de compreensões e dimensões trabalhadas, seja na


linguagem, seja pela filosofia ou psicologia; e, em cada área, uma certa diversidade de
definições. As leituras possíveis do símbolo passam da simples representação de alguma
coisa até a revelação dos segredos do inconsciente, conduzindo aos labirintos da ação,
abrindo espaço para o desconhecido e o infinito (NASSER,2003pp.25 e 26).

Formas justificam a função

A observação minuciosa dos aspectos anatômicos e fisiológicos, tais com: coloração, textura
foliar, aroma e outras possíveis características sensoriais captadas do vegetal, é prática
milenar de várias culturas. Tal procedimento baseia-se na similaridade que ocorre entre a
forma apresentada com a função desempenhada, pois a forma justificaria a função e, por
analogia, dá-se a nomenclatura sugerida. Alguns povos, a exemplo dos Yorubá, utilizam um

713
importante componente para o processo fitoterápico: as palavras de poder, os Ofós, que, ao
serem verbalizadas junto ao vegetal, agem produzindo o efeito mágicocurativo. Para eles há
uma relação entre o nome das plantas e suas virtudes. Exemplificaremos com a nomenclatura
utilizada para a guiné, cuja denominação yorubana é ojúùsàjú, que significa respeito ou
favoritismo por uma pessoa. O Ofó proferido é ìsàjú que corresponde à palavra
“favor”(VERGER, 1995, p.41). Os povos indígenas têm no líder espiritual, o pajé, em seu
instante medicomagístico, um procedimento ritual com a utilização da planta relacionada à
sua função curativa, associada aos cânticos, para que o processo fitoterápico transcorra
eficazmente. A uma mesma planta são atribuídas várias propriedades e quando preparadas
juntas ganham novas composições curativas. No século XVI, o médico europeu Teofrasto,
conhecido como Paracelso disse: “Tudo que a natureza cria, recebe a imagem da virtude que
ela pretende esconder ali” (ALMEIDA, 2003, p.180). Cada planta medicinal leva o sinal que
indica suas propriedades. E esta prática taxionômica foi denominada Teoria das Assinaturas,
que se baseia na fisionomia do vegetal, revelando a sua função e por correlação semântica o
nome vulgar e o latino, geralmente apresentam o mesmo significado. Ao investigarmos um
pouco mais a natureza anatômica das plantas: Ruta graveolens L.. Petiveria alliaceae L. e
Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain.,particularmente as suas flores,vimos a possibilidade de
algumas analogias associadas ao componente numérico de seus verticilos florais.Na
conceituação Botânica temos para as partes que constituintes deste órgão vegetal um
conjunto de símbolos graficamente representados em um desenho plano,sintetizado por uma
formula floral.(AGARES,1994, pp..43 e 44)Escolhemos para este artigo a planta Sansevieria
trifasceata Hort.ex Prain. para demonstrarmos a possível relação dos valores qualitativos e
quantitativos de seu diagrama floral,tendo como símbolos literais K(cálice)C
(corola)A(androceu)G(gineceu).Encontramos na representação das suas peças florais a
seguinte sequência numérica:K=3C=3A=6G=3,como podemos observar na ilustração abaixo.

714
2

Figura 1 - Diagrama Floral de Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain

Associar números a um determinado valor qualitativo antecede á escola Pitagórica , embora


esta tenha recebido maior notoriedade no ocidente.Cada número tinha um atributo peculiar.O
mais sagrado era o dez ou o tetractys, símbolo de saúde e harmonia(.BOYER,1974,P.39)
Numerologia sagrada é vista por vários povos,onde atributos divinos podem ser relacionados
ao caráter quantitativos ,encontram-se expressos em diversas liturgias. Existem vários
modelos de ritos nas religiões afro-brasileiras que refletem a diversidade de formas de
transmissão de conhecimentos. Este fenômeno social e religioso foi concebido por Francisco
Rivas Neto com a seguinte definição: Essas várias formas de entendimento e vivências das
Religiões afro-brasileiras denominamos Escolas..(NETO, 201, p25)

Relacionaremos o valor numérico da planta trímera, a concepção simbólica da numerologia


sagrada para a Escola de Síntese, Umbanda Esotérica. O número três é preponderante na
formula floral.Geometricamente é o triangulo,símbolo de três reinos, o princípio dos planos
manifestos. Ele é o símbolo do equilíbrio e da estabilidade; é a expressão do ternário
sagrado.O segundo número da formula é o seis o símbolo fortíssimo,ligado ás correntes
magísticas. Figura geométrica é o hexagrama que em justaposição com o triângulo forma o
Eneagrama, Os triângulos entrelaçados.É o número da movimentação mágica superior dos
Espíritos Ancestrais (NETO, 2002 pp.242 e 243 )

2
Realizado em pesquisa por Lorena Guevara e Carmem B. de Rojas-Instituto de Botânica Agricola,Universidade
Central da Venezuela.

715
A arruda e o guiné foram da mesma forma analisadas, ambas pentâmeras, diferenciando-se
apenas quanto em numero de estames, dez e quatro respectivamente, o que nos permitiu
leituras numerológicas peculiares.Após a aplicação da numerologia sagrada sob a ótica de
uma Escola de Umbanda ao diagrama floral das três plantas,partimos para elaboração de
uma pesquisa de campo.Lideres espirituais e seus representantes de quatro terreiros de
Umbanda e de três casas de Candomblé responderam em forma de questionário os usos e
representação simbólica da arruda,guiné e espada em seus trabalhos junto á Comunidade do
Santo.

Resultados da pesquisa

Para este artigo levamos em consideração apenas o local onde estas plantas são colocas em
seus Terreiros,as Entidades espirituais que ao se manifestarem as utilizem e a representação
simbólica das mesmas.Nos gráficos abaixo encontram-se os resultados obtidos.

Ruta graveolens L.(Arruda)

716
Para 57% dos entrevistados a Ruta graveolens L. ocupa lugar específico do Terreiro. São
usadas por entidades espirituais que se manifestam com Caboclo e Preto velhos.Simbolizam
para a maioria defesa contra negatividades.

Petiveria alliaceae L. ( guiné)

717
Para 43% o guiné simboliza limpeza de cargas negativas.Usadas em geral por entidades
denominadas Pretos velhos e Caboclos . Não ocupam lugar específico no Terreiro.

Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain

718
É considerada planta de proteção para 43%.Ganha lugar de destaque para 43% dos
entrevistados que a coloca nafrente do barracão,na frente da porteira,na Casa de Ogum e na
Casa de Exu.Mais usada pelos caboclos da linha de Ogum.

Figura 2 - Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain3

3
Foto:Wandir Vieira Leal Santos

719
Considerações finais

Povos do continente africano nos ensinam, com sua grandiosa sabedoria que toda planta tem
poder de curar e assim o dizem:”Ewè bobi ni xe gun”.

Homem e planta exercem uma relação histórica, antropológica, sobretudo metafísica e sob
esta óptica obtivemos pontos de conexão que nos possibilitou conhecer os princípios divinos
nelas simbolizados.A arruda com seus poderes de curas sejam doenças de ordem espiritual
ou orgânica,nas mãos de rezadores e de rezadeiras, de entidades que se manifestam na
Umbanda sempre demonstraram efeitos benéficos confirmados pelos informantes É erva
utilizada em vários rituais como catimbó e pajelanças. Nos banhos, está presente para afastar
olho gordo e má sorte, e faz parte dos banhos de cheiro usados para purificação e defesa.
Porém, em algumas casas de Candomblé é considerada como um interdito para seus filhos,‘’ é
um ewó de nação’’.(BARROS,1986,p.103).

A popularidadestas três plantas encontra-se registrada em sua historicidade é a memória viva


da mescla cultural que se instaurou neste lado do atlântico e que se manteve presente na
construção do campo religioso brasileiro.

Referências

ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino de. Introdução à Etnobotânica. 2ª.Ed. Rio de Janeiro:


Ed. Interciência, 2005.

AGAREZ, Fernando Vieira; RIZZINI, Cecília Maria; PEREIRA, Cézio. Botânica:


angiosperrmae, taxonomia, morfologia, reprodução: chave para determinação das famílias. 2ª
Ed. Rio de Janeiro: Ed. Âmbito Cultural Edições Ltda, 1994.

ALMEIDA, Maria Zélia de. Plantas Medicinais. 2ª ed. Salvador: Ed. EDUFBA, 2003.

BARROS, José Flávio Pessoa de & Eduardo Napoleão. Ewé Òrìsà: Uso Litúrgico e
Terapêutico dos Vegetais nas Casas de Candomblé Jêje-Nagô. Rio de Janeiro: Ed.Bertrand
Brasil, 19.

BOYER,Carl B. História da Matemática.São Paulo:Ed.Edgard Blücher,1974.

CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. Plantas Medicinais e Rituais Afro-Brasileiros


I. São Paulo: Ed. Almed,1988.

720
CORRÊA, M. Pio. Dicionário das Plantas Úteis do Brasil. v. VI. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, 1984.

DEBRET, Jean Baptista. Viagem histórica e pitoresca ao Brasil. São Paulo: Ed. Martins,
1949.

JÙNIOR, Sangirardi. Plantas Eróticas. Rio de Janeiro: Ed. Codecri, 1981.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. v. I. São Paulo: Ed.Edusp, 1974,

NASSER, Maria Celina de Q.Cabrera. O que dizem os símbolos? São Paulo: Ed.Paulus, 2003.

NETO, F.Rivas. Umbanda- A Proto-Síntese Cósmica. São Paulo: Ed. Pensamento, 2002.

__________. Escolas das Religiões Afro-Brasileiras. SP: Arché Editora, 2012.

VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé, o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Cia.das
Letras, 1996.

721
722
Transe, possessão e êxtase religioso nas religiões afro-brasileiras
Jociane Neves Negrão1

Introdução

[...] o transe é um fenômeno que acontece no mundo inteiro, e não está restrito somente a
um contexto cristão, mas em todas as religiões aparecem alguns aspectos do transe
espiritual. Às vezes esses aspectos são tidos como uma manifestação mais demoníaca, em
outros, são vistos como divino. Mas estão no mundo inteiro, em diferentes religiões e
culturas. Eu acho que esse, no fundo, é o ponto central de algumas experiências religiosas.
(Dra. Betina Schimidt in PECORA, 2011, p. 186)

Aqueles que buscam contato com o sagrado por meio dos estados alterados de consciência2
(EACs) ou estados superiores de consciência3 (ESCs), sempre causaram curiosidade, respeito
e temor. Chamados de médiuns por serem considerados os intermediários entre o plano
material e espiritual, usufruíram em todas as épocas da história humana de grande influência e
poder. Fonte direta para o Sagrado, ocupavam posição de destaque, ou até mesmo a posição
mais importante de seus povos. O Pajé em sua tribo, o Sacerdote no clã, o Curandeiro para o
povo4.

Por mais primitivo que fosse o povo, sempre existiu uma forma de contato com a divindade,
que emoldurava o comportamento do grupo, e que unificava e fortalecia o coletivo. A maioria
destes povos chamados primitivos, caracterizava-se pelo politeísmo, pelo transe e pela magia.
Com o advento do monoteísmo (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), o politeísmo perdeu
força, e com ele, o mediunismo/transe5 foi perseguido, combatido e reprimido como
manifestação maléfica, ignóbil e impura. A Inquisição foi apenas o ápice de um processo de
mudança de paradigma: do Pajé para o Padre, do Politeísmo para o Monoteísmo. O poder

1
Graduanda em Teologia Umbandista pela FTU. Contato: jn.negrao@uol.com.br.
2
Incluem uma variedade de fenômenos, tais como transe, êxtase, possessao, e mediunidade, também podem ser
incluídos os “estados de graça”, dissocição, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento,
etc. (DALGALARRONDO, 2008, p. 173)
3
RIVAS NETO, F. Escolas das Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Editora Arché, 2012, p. 48.
4
O médium sempre exerceu fundamental papel por canalizar as curas e as mensagens de entidades para a
comunidade, desempenhando o papel de terapeutas na Grécia, Roma, nos templos de Asclépio, no Egito,
Fenícia, Cartago, etc. Estes médiuns de cura logram muitas vezes mais êxitos com os seus dogmatismos e tabus
do que os psicoterapeutas oficiais, reticentes em suas afirmações e atitudes e, particularmente, sem os
proclamados poderes espirituais. (Câmara, 2005, p. 18)
5
Deuteronômio 18, 9-14.

723
religioso deslocou-se das muitas e inumeráveis mãos, para poucas e rígidas mãos, as da Igreja.
Por mil anos (Idade das Trevas) toda a religiosidade ocidental girou em torno dos mosteiros.

Com o Mercantilismo e as Grandes Navegações6, o Velho Mundo (representado basicamente


pela Europa cristã) começava a explorar o Novo Mundo. Inúmeros interesses nortearam as
decisões que viriam a determinar os séculos seguintes. Novamente, o monoteísmo judaico-
cristão se defrontou com as culturas ditas primitivas e politeístas, desta vez no Novo Mundo.
Conflitos já resolvidos na Europa, renasceram. Os valores religiosos do homem branco
europeu chocaram-se com a riqueza cultural e religiosa dos povos indígenas americanos. Mas
é fato que os EACs ou ESCs foram observados pelos colonizadores europeus que, a princípio,
resumiam-se nos padres jesuítas7.

Toda esta realidade da etnia indígena somou-se à realidade da etnia africana, que chegou
trazida pelo português colonizador como escrava ao Brasil. A riqueza de suas culturas e
religiosidades foram determinantes para a formação do povo brasileiro. Em suas
religiosidades, o transe e possessão eram fundamentais.

E, embora esteja bastante claro que os EACs8 ou ESCs existiram e se mantiveram na cultura
popular durante todos estes séculos, antes e depois da colonização portuguesa, foi apenas no

6
GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 32.
7
Priore (2004, p. 52) cita que Padre Nóbrega foi quem primeiro registrou o fenômeno da intensa atividade
religiosa dos profetas indígenas no litoral brasileiro. Foi o primeiro a usar a palavra santidade para designá-lo,
escrevendo da Bahia em 1549. Observou o jesuíta que, com intervalo de alguns anos, feiticeiros percorriam as
aldeias dizendo trazer santidade, sendo recebidos com grandes festas e danças. Ao anúncio da visita, os
moradores limpavam os caminhos e preparavam-se para a festa. Entre as mulheres, a aproximação do pajé
produzia efeito singular: a correr, “de duas em duas desandavam pelas casas, dizendo publicamente as faltas que
fizeram a seus maridos umas às outras, pedindo perdão delas”. Recebido com choro ritual e danças, o recém-
chegado escolhia para a celebração das cerimônias uma maloca especial, que Nóbrega chamou de casa escura, e
se instalava na parte mais conveniente, segurando um maracá. Falando com voz de menino, convencia os que o
rodeavam de que era a cabaça que falava e começava a pregar. Dizia que se aproximava o tempo em que os
mantimentos brotariam naturalmente da terra e as flechas iriam por si mesmas em perseguição da caça. As
velhas encarquilhadas voltariam a ser moças e belas. Os guerreiros alcançariam vitória fácil na guerra fazendo
muitos cativos. Que não tivessem receio dos brancos: todos eles estavam prestes a transformar-se em animais de
pena e pelo, para alimento da tribo. Para adquirir o espírito da santidade, a assistência tinha de se deixar defumar
e assoprar. O pajé punha-se a fumar tabaco (chamado também petum e erva-santa), atirando baforadas de fumo
ao rosto dos aspirantes. Devidamente assoprados e defumados, os homens começavam a suar e tremer, enquanto
as mulheres mais sensíveis rolavam por terra em convulsões. Estas práticas estiveram presentes na Colônia ao
longo de todo o século XVI e XVII em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
8
“Há um considerável consenso de que esses estados são amplamente generalizados nas sociedades humanas,
tanto ancestrais como contemporâneas. De modo geral, nos dias atuais não se interpretam esses fenômenos como
centralmente psicopatológicos; são estados culturalmente constituídos e sancionados com diferentes
repercussões (psicopatógicas ou não) sobre os indivíduos. As EACs incluem uma variedade de fenômenos, tais
como transe, êxtase, possessão e mediunidade, também podendo ser incluídos os fenômenos denominados
estados de graça, dissociação, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento, etc.
(DALGALARRONGO, 2008, p. 173). Para maiores informações: Bourguignon (1977) e Peters-Price-Williams (
1983, p. 5-39).

724
século XIX com o advento do Espiritismo, que o transe voltou a ser discutido na Europa e no
Brasil. Portanto, justificado pela elite europeia, o transe começou a ser tratado como algo
merecedor de estudo e pesquisa.

O objetivo deste artigo é compreender a importância do transe, possessão e êxtase religiosos


para as religiões afro-brasileiras, discutindo, de forma aberta, a construção do preconceito
neste tipo de experiência religiosa.

Para a compilação deste artigo serão utilizados revisão bibliográfica e artigos científicos. Ao
abordar a Umbanda, serão utilizados os autores renomados no meio umbandista, W. W. da
Mata e Silva e Francisco Rivas Neto.

Revisão dos estudos históricos sobre os EACs/ESCs

A medicina está envolvida em profundos laços de competição com a religião há milhares de


anos. Ambas procuram espaços para validar as suas práticas em áreas contíguas das
relações sociais. É muito difícil saber onde começa uma e termina a outra. (BOTELHO,
1991, p. 178)

O século XIX e início do século XX foram particularmente tumultuados no Brasil,


principalmente para as vertentes religiosas que tinham o transe como parte de seus rituais.

Nesse momento, a recém-nascida comunidade psiquiátrica brasileira começava a olhar com


curiosidade este fenômeno que tomava mais destaque com a chegada do Espiritismo.

Posturas mais rígidas e medicalizantes foram adotadas pelos médicos do eixo Rio de Janeiro-
São Paulo, tendo como grande incentivador Belford Roxo9 (1938, p. 59-72). Roxo também
exigia maior atuação do poder público na repressão às “práticas tão deletérias”, dizendo que o
combate às práticas mediúnicas seria uma medida de promoção da higiene mental.
(ALMEIDA, 2007, p. 3).

Os médicos do eixo Bahia-Pernambuco defendiam uma posição mais antropológica, apesar de


reconhecerem o caráter patológico e primitivo do fenômeno. Valorizavam os aspectos

9
Psiquiatra renomado e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ele criou a classe diagnóstica
intitulada Delírio Espírita Episódico. Esta nova doença foi apresentada na França em um Congresso de
Psiquiatria, mas parece não ter sido valorizada, pois não foi utilizada pela Associação Americana de Psiquiatria
na compilação do Primeiro Manual de Diagnóstico de Saúde Mental (DSM) em 1952.

725
socioculturais do fenômeno e a necessidade de entendimento do comportamento humano.
Defendiam um maior respeito às práticas consideradas religiosas, étnicas ou culturais. Nina
Rodrigues10 (1935, p. 109) considerava que o estado de santo estava relacionado ao
sonambulismo provocado por sugestão (música, ritmada, monótona, que impelia à dança, e
esta ao estado de possessão)11. Sobre o Candomblé, Rodrigues (1935, p. 109) atribuía ao
transe e possessão a um mecanismo mental patológico, mas considerava que esses fenômenos
poderiam ter valor psicológico positivo, por seus efeitos catárticos, e por se apresentarem de
forma ritualizada e altamente controlada pelo grupo religioso, em especial pelos pais-de-
terreiro. Além disso, pensava que tais manifestações religiosas satisfariam as necessidades
emocionais primitivas dos seus adeptos, e não deveriam ser reprimidas. Franco da Rocha12 já
falava das práticas mediúnicas desde 1896.

De uma forma geral, as práticas mediúnicas eram acusadas pelo meio médico de desencadear
a loucura, de induzir ao suicídio (CALDAS, 1929, p. 159-159), ao estupro (PEIXOTO, 1909,
p. 78-94), ao homicídio e à desagregação familiar (RIBEIRO e CAMPOS, 1931, p. 12;
OLIVEIRA, 1931, p. 27)13.

Um bom exemplo disto foi o médico Carlos Eduardo Fernandes (1939 a, d, g; 1939 b, c, e, f;
1939) que solicitou ao governo punição para os espíritas que praticassem medicina
ilegalmente e intervenção policial nos centros, para enquadrar os médiuns receitistas14.
Portanto, há também uma rejeição quanto às atividades de curas promovidas pelos espíritas,
sendo chamado de charlatanismo e curandeirismo desde 1830 (SCHWARCZ, 2001, p. 222).

10
Médico (Maranhão, 1896-1897) e pesquisador que dedicou-se como cientista convicto ao estudo dos
fenômenos de possessão nos cultos afro-brasileiros em terreiros de Candomblé de Salvador/BA.
11
Entre suas conclusões, o estado de possessão é resultado de alteração qualitativa de consciência causada por
sugestão e manifestada por estado sonambúlico, modificações nesse estado por meio de respostas verbais e
físicas dadas às injunções sugestivas feitas por uma figura de autoridade, assunção temporária de outras
identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande desgaste físico e amnésia ao sair do processo. Além
dessa forma clássica do estado de santo, notou que as manifestações poderiam ser frustras ou incompletas, mas
também se prolongarem em “delírio furioso e duradouro”, o que ele considerou “desvios, aberrações do
verdadeiro estado de santo”.
12
Fundador do Hospital do Juquery/SP, e da primeira sociedade de psicanálise da América do Sul, primeiro
professor da cadeira de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP).
13
Segundo Almeida (2008, p. 7), as teorias de dissociação mental histérica e dos automatismos psicológicos de
Pierre Janet (1859-1947) foram as mais adotadas pelos psiquiatras da época para explicar o mediunismo. Janet
considerava que na atividade mental normal haveria uma função de síntese que integrava as percepções
sensoriais vivenciadas e transformadas em ideias conscientes. Nos histéricos, ocorreria uma fraqueza psíquica
constitucional dessa função integradora, de maneira que eles eram mais sensíveis a se dissociarem por meio de
sugestão ou em situações traumáticas; a teoria dos automatismos psicológicos explicaria os comportamentos nas
crises dissociativas, quando “ideias fixas subconscientes” seriam reproduzidas (RODRIGUES, 1935, p. 78;
MOREL, 1997, p. 130).
14
O “médium receitista” era o indivíduo que inspirado por um espírito, diagnosticava doenças e prescrevia
tratamento, geralmente fitoterápicos.

726
Convém lembrar o caso de Juca Rosa (Rio de Janeiro, 1860)15 que foi preso e desapareceu.
Conhecido como feiticeiro, serviu como exemplo para que se criasse uma legislação (Código
Penal de 189016) específica contra os curandeiros e os feiticeiros. As práticas mediúnicas
passaram a ser consideradas crimes contra a saúde pública e muitas casas de culto foram
fechadas e médiuns presos ou internados em manicômios. Outro caso foi João de Camargo
(São Paulo, final século XIX) que foi preso inúmeras vezes, desprezado, considerado
alcóolatra e louco, tentativas de destruir sua reputação e respeitabilidade. Por fim, João de
Camargo registrou-se como espírita em 1921, sendo então deixado em paz. Tanto Juca Rosa,
quanto João de Camargo17 tinham características em seus cultos daquilo que viria a ser
chamada Umbanda18.

Artur Ramos publicou sua tese de doutoramento intitulada Primitivo e Loucura (1926) onde
defendia uma visão evolucionista e racista do transe. Já em A cultura negra no mundo
(RAMOS, 1937) enfatizou fatores culturais, deixando para trás a perspectiva racista.
“Manteve, como Nina Rodrigues, o referencial teórico em que aproximou possessão à histeria
vista na época segundo uma perspectiva psicodinâmica, influenciada por autores como Freud
e Jung” (ALMEIDA, 2007, p. 9).

Ulisses Pernambuco19 “defendia uma visão tolerante em relação aos cultos afro-brasileiros,
pois não via neles a origem de transtornos mentais, mas a manifestação cultural das camadas
pobres da população” (PERNAMBUCO in ALMEIDA, 2007, p. 10). Ulisses Pernambuco e
Artur Ramos defendiam um controle médico sobre as religiões com fundamentos no transe,
mas sem apoio policial, pois acreditavam que a educação era o único meio para afastar a
população deste comportamento primitivo. (ALMEIDA, 2007, p. 10)

René Ribeiro dizia que as dissociações produzidas pela experiência religiosa tinham, entre
outras, a finalidade de operar como um mecanismo de escape perante uma situação de forte
pressão externa. Portanto, concluiu ser a possessão um fenômeno normal, compreendido
15
Rivas Neto (2012, p. 49 e 83)
16
Artigo 156 – pune a prática de medicina por indivíduos desprovidos de título acadêmico. Artigo 157- condena
práticas de “magia e seus sortilégios” e o uso de “talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e
amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”.
Artigo 158- punia o exercício de curandeirismo.
17
Rivas Neto (2012, p. 49 e 83).
18
Brown (1985, p. 10): Segundo Brown, não se pode afirmar com certeza absoluta que Zélio tenha fundado a
Umbanda. A data da primeira manifestação do caboclo das Sete Encruzilhadas passou a ser aceita pela maioria
dos umbandistas, como marco inicial. Ver também: CHATELAIN, H. Folk Tales of Angola. London: The
American Folk Lore Society, 1894, p. 268. Chatelain já dava uma definição para o termo Umbanda.
19
psiquiatra de Recife incentivou Gilberto Freyre a organizar o 1º Congresso Afro-Brasileiro em 1934, em
Recife.

727
mediante a identificação de padrões culturais dos participantes e dos condicionamentos que as
normas grupais impunham (RIBEIRO, 1937; 1952; 1956; 1957).

Segundo Câmara (1995, p. 624), foi Jacques Mongruel que primeiro reconheceu a função
terapêutica do transe e possessão, no I Congresso Interamericano de Medicina, ocorrido em
1946, no Rio de Janeiro, a isto ele chamou Transe Psicoautônomo, ou seja, uma manifestação
psíquica espontânea de natureza autônoma.

Álvaro Rubim de Pinho (1975, p. 211-224) analisou a sobreposição entre a experiência


mística e transtorno mental. Para ele “a ideia e o sentimento religioso são de todos os
momentos da história[...] [...]em todos, terão existido psicoses e comportamentos desviantes.”
Segundo Almeida (2007, p. 11):

Pinho reconhece também que místicos não psicóticos, frutos quase exclusivos de fatores
socioculturais existiram individualmente ou agrupados, em todas as seitas e todas as eras.
Faz críticas à visão medicalizante e estreita da psiquiatria em relação a fenômenos como
possessão, demonopatia, transes mediúnicos, e os estados de santo. Segundo ele, a
psiquiatria sempre identificou esses estados como dissociação histérica. Diz que se os
histéricos utilizam mecanismos dissociativos, de alteração da consciência, nada impede,
entretanto, que pessoas psiquicamente sadias, quando acionadas por fatores culturais e
religiosos, desenvolvam estados alterados de consciência sem significação patológica. [...]
populações dos centros espíritas e candomblés incluem imensa maioria de pessoas normais,
simultaneamente com a minoria de anormais, estes em parte levados pela expectativa das
curas (PINHO, 1975, p. 211-224).20

Portanto, após toda essa revisão histórica, podemos concluir que, para a Psiquiatria do final
do século XIX ao início do século XX, o transe foi considerado patológico, merecedor de
intervenção medicamentosa, internação e repressão policial21.

Após inúmeros embates entre os religiosos e psiquiatras, o conceito psiquiátrico sobre transe e
possessão sofreu imenso progresso e hoje, no conceito médico atual (DSM IVR e CID 10), o
transe e possessão, se adequados à realidade e cultura local, não são considerados

20
No artigo Tratamentos religiosos das doenças mentais (1975), Pinho estudou 60 pacientes psiquiátricos. O
autor coletou 11 categorias diferentes de etiologia: 23% encosto, 15% feitiço, 12% esgotamento, 7%
mediunidade não resolvida. Quanto ao tratamento, 1/3 buscou ajuda com tratamento médico, 2/3 inicialmente
buscaram tratamentos populares, principalmente no candomblé de caboclo 47% e “centros espíritas kardecistas”
42%. (ALMEIDA, 2007, p. 11)
21
ALMEIDA, 2007; RAMOS, 1937; CALDAS, 1929; MOREL, 1997; RODRIGUES,1935; OLIVEIRA, 1931;
RIBEIRO,1937, 1952, 1956, 1957; RIBIERO e CAMPOS, 1931.

728
patológicos22, mas se desprovidos de significação cultural, deslocados da realidade daquele
povo, devem ser tratados como patologia psiquiátrica. (NEGRAO, 2008, p. 18)

Dra. Bettina E. Schmidt (in PECORA, 2011, p.185-192) deixa bem claro que possessão
espiritual não está relacionada à saúde mental. Portanto, a Ciência Médica e a Antropologia já
concordam que transe e possessão não estão relacionados à doença mental.

Etnias e suas contribuições

A etnia branca trouxe ao Brasil basicamente o monoteísmo, representado pela Bíblia e pelo
Torah, e também a herança da magia europeia, com toda a sua simbologia. A etnia africana,
representada por muitos povos diferentes, trouxe uma cultura islamizada pelo Alcorão, mas
alguns povos africanos trouxeram seus conceitos politeístas, sem livro sagrado, transmitidos
pela tradição oral, contados em seus mitos e ritos. A etnia indígena, assim como alguns povos
africanos, não possuíam livro sagrado, e também se mantinham por meio da tradição oral,
seus mitos e ritos.

As práticas religiosas africanas e indígenas causaram repúdio por suas diferenças marcantes
quando comparadas às culturas europeias. Por não possuírem um livro sagrado e não
utilizarem a escrita tradicional, as culturas africanas e indígenas foram denominadas
primitivas23. Nestas culturas de tradição oral24, o conhecimento é passado de geração em
geração, de mestre a discípulo, por meio de um processo iniciático.

22
“No Brasil, realizou-se um dos estudos provavelmente mais cuidadosos relativos à avaliação da saúde mental
de pessoas classificdas como médiuns espiritas. Alexander Moreira de Almeida (2004) entrevistou
cuidadosamente um grupo de 115 médiuns espíritas na cidade de São Paulo, aplicando a eles o Self-Report
Psychiatric Screening Questionnaire(SQR-20) e a Escala de Adequação Social (EAS). Identificou 12 sujeitos
(7,8%) com provável psicopatologia e comparou-os com 12 sujeitos normais. O autor verificou que o grupo de
115 médiuns apresentava baixa prevalência de transtornos mentais e boa adequação social. Os médiuns não
apresentavam, também, o transtorno de identidade dissociative. Assim, pode concluir que a mediunidade, pelo
menos no context espírita brasileiro, não se associa nem a transtornos mentais (incluindo os transtornos
dissociativos da personalidade), nem a dificuldades de adaptação social”. (DALGALARRONDO, 2008, p. 175)
23
“A memória oral dos povos africanos não valia tanto quanto aquela que permitiu aos gregos conceber a Ilíada
e a Odisséia”. (PRIORE, 2004, p. 1)
24
Segundo Rivas Neto (2012, p. 48) as religiões de tradição oral são politeístas, multirreferenciais,
polissistemáticas e, portanto, policêntricas. Politeístas porque não utilizam uma única divindade, mas um
panteão, cada um com sua importância, daí a multirreferencialidade. São polissistemáticas porque não há uma
única forma de realizar um rito, mesmo que ele seja destinado à mesma divindade. E policêntrico porque não há
um único modelo a ser seguido, exemplo disso são as religiões afro-brasileiras, com suas inúmeras escolas24
(Culto da Jurema, Candomblé de Caboclo, Toré, Xambá, Babassuê, Xangô, Tambor de Mina, Umbanda,
Candomblé, Catimbó, Batuque, Omolocô, Umbanda, etc.).

729
Nas religiões de tradição oral, o tempo é o tempo mítico, ou seja, o tempo vivenciado pelo
mito. Não há marco inicial, o mito é revivido em cada rito. E o rito reatualiza o mito. É
comum ouvir a expressão no início dos tempos como referência nas historietas desta tradição
como exemplificam os Itans do Ifá. A ideia de tempo era bastante diferente, própria de cada
povo25. Normalmente, o tempo era determinado pelas colheitas, pelas estações do ano ou pela
necessidade de comercialização dos produtos26. Portanto, se a ideia de tempo era algo pouco
importante na tradição oral, como se deu a passagem do atemporal para o temporal? Do
tempo circular para o sequencial/linear?

A cultura mercantilista, e depois a industrializada necessitavam de uma marcação temporal


específica, uma forma de determinar lucro e produtividade. Não havia mais o interesse apenas
pelo sustento do clã, da prole, do coletivo. O interesse agora era o enriquecimento individual,
a exploração dos processos produtivos, a hegemonia do poder. A riqueza determinava o
poder. A escrita, que era apenas um método, passou a ser o método, tornando-se referência de
progresso cultural, avanço social e poder.

Na tradição oral, o conhecimento está livre para ser interpretado, modificado e ritualizado
conforme a compreensão de cada época e de cada povo. Não há rigidez conceitual, permitindo
a mobilidade que inclui todas as formas de compreender o sagrado. Na tradição oral o
Homem é visto como sagrado.

No desejo de documentar, enrijeceram-se os conceitos anteriormente abertos e livres para


ressignificação. E então, para a manutenção e exercício do poder por meio da opressão sob os
demais, produziu-se o dogma. E é por este dogma que se perseguem e condenam até hoje
todos os valores das tradições orais. É necessário agora ter um único deus, o politeísmo não é
mais tolerável. É necessário um livro sagrado para se seguir rigidamente (normas e leis
morais). E se há um livro ditando as regras, não se pode mais questionar, é necessário apenas
obedecer. A liberdade é definitivamente trocada pela obediência. A interação com o Sagrado
agora é substituída pela submissão ao represente do Sagrado na Terra. É a Institucionalização
do Sagrado, afastando o religioso da Transcendência. A imanência já não atinge a
transcendência.

25
GOODY, 2012, p. 24-25.
26
“O tempo nas culturas orais era contado de acordo com fenômenos naturais: a progressão diária do sol, sua
posição na esfera especial, as fases da lua, o transcorrer das quatro estações.” (GOODY, 2012, p. 24)

730
Outra característica importante das culturas orais é a valorização do contato direto com a
divindade/natureza, e seus intermediários (médiuns, sacerdotes, pitonisas, pajés e afins). Se o
contato se dava assim, o transe, a possessão e o êxtase religioso tinham caráter primordial e
determinante na religiosidade e na experiência religiosa dos povos não cristãos.

Quando os jesuítas chegaram ao Brasil utilizaram técnicas de catequização para destruir as


imagens dos seres míticos dos indígenas, transformando-os em santos ou em demônios.
Associaram as técnicas de cura do Pajé à feitiçaria e à superstição 27. Aos poucos, os jesuítas
minaram as crenças indígenas em seus deuses, substituindo-os pelo deus e mitos cristãos.
Quando os negros chegaram ao Brasil, os povos que ainda não eram islamizados traziam seus
mitos, seus ritos, seus deuses. Foram obrigados a se converterem ao cristianismo, e para
manterem suas crenças, sincretizaram seus deuses com os santos católicos, escondendo-se sob
a égide das confrarias e irmandades católicas, ou sob as manifestações como a Congada e a
Folia de Reis. Suas danças, ritos e rezas eram reprimidos e castigados. (PRIORE, 2004, p. 33-
46) Em suas manifestações religiosas, o transe ainda se manteve presente, chegando até os
dias atuais como traço fundamental em sua religiosidade.

Apesar de todos os esforços empreendidos pela Igreja, com perseguição, violência, repressão,
e mortes, o transe seguiu firme na religiosidade brasileira, sincretizada e disfarçada,
sobrevivendo ao longo dos séculos e mostrando sua força enraizada no povo brasileiro. E
mesmo hoje, quando o movimento religioso neopentecostal se fundamenta na perseguição ao
transe, ele se mantém.

O Transe nas religiões afro-brasileiras

Segundo Gadamer (2000, p. 227) estudar, refletir e escrever sobre religião é trabalhar sobre o
mesmo material de que ela é feita, da experiência humana nos seus limites, assim como de
símbolos culturais, que constituem, alimentam, constrangem, enriquecem e viabilizam nossos
espíritos e nossa existência neste mundo. Todos, crédulos e incrédulos, de uma forma ou de
outra, somos tocados pelo espírito da religião e dele dificilmente escapamos.28

27
O termo superstitio tem origem no latim, e significava prática incorreta de um rito, antítese portanto, do termo
religio. A superstição não estava ligada à crença, mas à prática. Durante a Reforma, religio foi ligada à fé crista
comum e à confissão, e o termo superstitio foi alterado para magia, prática malefica e ignorante. (HOCK, 2010)
28
Mircea Eliade fala do Homo religious, para quem tudo é dotado de significado religioso, o Cosmos vive e fala.
Este homem busca a transcendência na imanência, experimentando o Sagrado. (ELIADE, 1996, p. 17).

731
Diante disso, pode-se concluir que a religiosidade é uma característica da espécie,
independente da religião, inerente, mas variável de indivíduo para indivíduo29.

Mas, como seria definido o transe por estudiosos das religiões afro-brasileiras?

Para o Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock30 (2011, p. 17):

A palavra experiência é utilizada para designar algo pessoal, individual, intransferível,


irrepetível, incontrolável, único. O indivíduo, o sujeito, tem experiências como momentos
únicos em sua vida. Estas podem ser relatadas, racionalizadas, interpretadas, mas não
podem ser transferidas de uma pessoa para outra. Experiência ocorre no âmbito do mais
íntimo do sentimento e por isso mesmo só pode ser sentida. O falar sobre, o relatar, o
racionalizar ou interpretar, de forma alguma irá repetir este momento ou transferí-lo para
quem ouve o relato.

Berkenbrock (2011, p. 24) ressalta a importância da experiência religiosa para as religiões


afro-brasileiras:

Se o textos sagrados têm para as diversas tradições cristãs um status ímpar de referência,
para as tradições das religiões afro-brasileiras, este status é ocupado pela experiência
religiosa. A experiência religiosa não é apenas uma possibilidade, como nas tradições
cristãs. Ela é um fator estruturante para a religião. Assim, por exemplo, tanto na Umbanda
quanto no Candomblé, a experiência do transe com a entidade espiritual estrutura o ritual, a
hierarquia da comunidade, a ética (ou moral) dos fiéis, a compreensão do lugar de cada fiel
no mundo religioso, o sistema simbólico da religião, etc. Todo o sistema religioso tem a
experiência religiosa como referência, como ponto de culminância e ponto de partida.

Berkenbrock (2011, p. 23) ressalta como a experiência religiosa foi desprezada após a
Teologia Escolástica, por ser um processo individual e subjetivo, valorizando-se a partir daí
uma Teologia baseada nos textos escritos e na racionalidade. Veja:

Humberto Eco fala da religiosidade laica como a crença em formas de religiosidade, e logo, sentido do sagrado,
do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma
divindade pessoal e providente (ECO in DALGALARRONDO, 2008, p. 17). Max Weber fala do ouvido
religioso que, assim como o ouvido musical, tem uma sensibilidade especial para perceber de forma
discriminada e intuir de forma aprofundada. (WILLAIME; HERVIEU-LERGER in DALGALARRONDO,
2008, p. 17) Segundo Dalgalarrondo, a experiência religiosa remontaria a dois aspectos, um racional, ligado ao
pensamento filosófico, que possibilitaria a formação ideológica e teológica, como comumente conhecemos nos
púlpitos tradicionais. E um irracional, que remontaria a um aspecto irredutível e intraduzível, de natureza
misteriosa e individual. Foi a este aspecto que Rudolf Otto (2007) classificou como terrível e fascinante, que
geraria e sustentaria a religião.
29
Estaria aqui o conceito de nível consciencial?
30
Coordenador de pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.

732
[...] a experiência religiosa individual recebeu – principalmente após a estruturação da
Teologia Escolástica – muito pouco espaço ou importância como elemento da reflexão
teológica. A experiência religiosa foi relegada ao campo da piedade ou devoção pessoal, ao
campo da vivência da espiritualidade e não da reflexão; por outro, a experiência religiosa
era entendida como algo tão subjetivo que não poderia contribuir para a objetividade (e
certa neutralidade cientifica) exigida por uma determinada ciência, como a teologia. Há
também um componente político nesta compreensão, pois a teologia cultivada pela
instituição não dava espaço ao sentimento subjetivo, entendo a compreensão teológica
como uma reflexão sobre a verdade instituída. Esta situação tem se modificado desde fins
do século XX, quando aos poucos, a experiência religiosa tem ganho paulatinamente
cidadania [...] Independente de quão valorado é hoje a experiência religiosa, uma coisa é
certa: ela não mais pode ser desprezada na reflexão teológica como um dos elementos para
se pensar a lógica religiosa.

De fato, segundo Gonçalves e Jorge (2012, p. 5-10) o transe é elemento fundamentante para a
cosmovisão das religiões afro-brasileiras. É uma prática ritual complexa, mas não é acessível
a todos, pois requer características individuais31.

Segundo as autoras32, “o transe pode ser facilitado pelos sacerdotes e magos, por seus
cânticos, encantamentos ou mesmo por bebidas rituais, como é o caso da bebida jurema,
33
álcool e tabaco.” De acordo com suas pesquisas, há coisas que são de cunho coletivo
(aprendizagem)34, como por exemplo, as danças. Esses atos não são reproduzidos
mecanicamente, mas são observados, apropriados e vivenciados. Segundo a sacerdotisa
entrevistada por essas pesquisadoras, o corpo é expressão da espiritualidade. A música, o
canto, a dança, o transe e a possessão são vistos como expressão da espiritualidade. O corpo é
conexão do homem com o mundo dos Orixás. É o corpo que promove o encontro entre essas
duas dimensões, a material (hominal) e a espiritual (Orixás).

A mesma sacerdotisa, ao ser questionada como sentia o corpo no momento do transe


diz:

Você tem durante o transe uma redução do seu estado de consciência pleno, então você não
tem o controle absoluto do seu corpo. É importante frisar que há diferença entre a
incorporação e o transe em si, são coisas distintas. Mas é impossível ensinar algum filho de

31
“nem todos os seres humanos são veículos de espíritos” (RIVAS NETO, 1994, p. 109)
32
Consultar também: FERRETI, 1985; CASCUDO, 1988; ASSUNÇÃO, 2010)
33
Mauss (2003, p. 422) diz “[...] Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em comunicação com
Deus.”
34
Mauss (2203, p. 404) afirma que o “indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato
executado diante dele ou com ele pelos outros.” O habitus é de natureza social.

733
santo a entrar em transe, a ter uma incorporação porque o transe possibilita o encontro de
dois planos de existência e a liberação do inconsciente individual e coletivo, o que torna
impossível você ter controle, cada pessoa tem uma expressão particular e cada Orixá ou
entidade vai se manifestar também segundo as particularidades das pessoas. Aprender a
dançar é uma coisa, aprender o transe é impossível. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 8)

Portanto, o transe depende de características que não são adquiridas nos terreiros, e não pode
ser ensinado. “O corpo no momento do transe é um veículo para manifestação do transcendente
e este irá guiar o indivíduo, a entidade espiritual é quem ensina e domina seu cavalo de santo
ou médium”. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 10). E mais, os parâmetros norteadores do
médium e de sua atuação mediúnica são os aspectos espirituais e a entidade espiritual atuante.
Não há aprendizado nisso.

O conceituado autor W. W. da Mata e Silva (1987, p. 58-70) enfatiza a importância da


mediunidade/transe na Umbanda:

[...] ser um médium de Umbanda, isto é, um veículo dos espíritos de caboclos, preto-velhos
e outros de dentro da faixa é uma condição excepcional, por ser, por sua vez, consequência
de uma escolha especial, feita no plano astral antes mesmo do espírito encarnar [...] [...]
função mediúnica exclusiva militar na Corrente de Umbanda e sobre aparelhos pré-
escolhidos, desde quando desencarnados [...]

Francisco Rivas Neto (2012, p. 116) afirma que:

As Religiões afro-brasileiras são de transe, seja ele de possessão, mediúnico ou anímico.


Não entraremos nos pormenores desse tema agora, mas afirmamos que todos eles se aliam a
fatores terapêuticos, pois permitem que o material do inconsciente transite traduzido e
decodificado para o consciente, possibilitando um estado superior de consciência
(consciência ampliada).

Considerações finais

Discutir o valor do transe para as religiões afro-brasileiras pressupõe encarar o desafio de


reconstruir o inconsciente das três etnias que formaram o povo brasileiro, compreender as
diferenças fundamentais entre tempo linear e circular, tradição escrita e tradição oral,
monoteísmo e politeísmo, religiosidade e experiência religiosa nas diferentes culturas.

734
Se analisarmos tão e exclusivamente as diferenças existentes entre as duas formas de se tratar
o transe pela ciência e pelas religiões afro-brasileiras, já podemos notar o quanto é difícil
chegar a um consenso. O transe é definido pela ciência como estado alterado de consciência
(EACs), algo que altera o estado consciente, vigil. As religiões afro-brasileiras definem o
transe como estado superior de consciência (ESCs), considerando que o transe eleva o nível
de consciência. Enquanto um o rebaixa, o outro o eleva.

Também foi fácil notar que o transe, quando ocorre em religiões afro-brasileiras ou culturas
ditas politeístas, é visto com algo primitivo e negativo. Contudo, se o transe ocorrer entre as
culturas monoteístas, ele será considerado divino, superior, místico.

Também foi fácil perceber como os médiuns foram tratados de diferentes formas ao longo da
história. A princípio, enquanto predominavam as culturas politeístas, desfrutaram de prestígio
e poder. Na medida em que as culturas politeístas foram sendo dominadas, e o monoteísmo
implantado, eles foram desprezados, desacreditados, difamados, e posteriormente
perseguidos, presos e até mesmo mortos. E ainda hoje sofrem perseguições de alguns
segmentos religiosos e preconceito social.

Nas religiões afro-brasileiras, o adepto é considerado importante fonte e meio para o contato
com o sagrado, confrontando com as religiões monoteístas que apresentam um vínculo de
dependência à vontade de Deus e seus representantes. O conhecimento, ao ser transmitido
oralmente, permite uma maior mobilidade e uma ressignificação contínuas.

Quando se analisa o transe, possessão e êxtase religioso nas Tradições Orais e Escritas,
observa-se o desmonte da Tradição Oral pela Tradição Escrita. Repudia-se o transe, porque
ele possibilita o contato direto com a divindade, dispensando intermediário. Esse contato
direto com o sagrado passa a ser demonizado pelo monoteísmo, que passou a ensinar que
somente se chega à divindade por meio do exercício das leis e das práticas religiosas e morais.

Convém também considerar que o transe só foi estudado com a chegada do Espiritismo no
Brasil, visto que foi trazido pela alta estirpe brasileira, culta e rica, representando a cultura
europeia, com entidades normalmente respeitáveis, educadas e nobres, que destoavam
sobremaneira dos modos simples das entidades dos cultos afro-brasileiros, representados por
sua vez, pelos caboclos, pretos velhos, crianças, boiadeiros, marinheiros, baianos, e o que
dizer de Exu?

735
Há evidências de que este repúdio ao transe das religiões afro-brasileiras, que expressa a
religiosidade popular, é mais uma forma de exclusão, que ultrapassando a barreira social,
atinge neste momento, também a religiosa.

Transe cheirando a perfume francês é mais aceitável que cheirando a arruda e guiné.

Referências

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transe e possessão. Rev. Psiq. Clin., n. 34, supl 1, p. 34-41, 2007.

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736
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740
741
GT7 – Escolas públicas e (in)tolerância
religiosa

Coordenador/a

Janayna de Alencar Lui Nilton Rodrigues Junior


Doutora em Antropologia Cultural pelo Doutor em Antropologia Cultural pelo
PPGSA/IFCS da UFRJ. PPGSA/IFCS da UFRJ. Professor da
Faculdade Cenecista da Ilha do
Governador.

Resumo

As relações entre escolas públicas e religiões podem ser entendidas a partir de dois modelos.
Primeiro, a laicidade é entendida como a prática da ausência de símbolos e rituais religiosos
na administração pública. Segundo, pela prática dos grupos religiosos se expressarem
livremente no espaço público. A escola pública tornou-se uma importante arena de disputa
entre os diferentes atores sociais, resultando em tensões que evidenciam diferentes visões de
mundo, na qual estão mobilizadas as agendas pedagógicas, dos Movimentos Sociais e dos
grupos religiosos. Nossa proposta é reunir trabalhos que tenham como objetivo analisar as
relações entre as religiões e escolas públicas buscando investigar se estas relações interferem
no processo de ensino-aprendizado e metodológico, na construção ou desconstrução da
tolerância e intolerância religiosa e na possibilidade ou impedimento de novos desenhos tanto
da estrutura pedagógica como das relações de tolerância/intolerância religiosa.

742
A (in)diferença e (in)tolerância em escolas públicas

Sueli Martins1

Introdução

Entre os professores das escolas públicas municipais da cidade de Juiz de Fora podemos
encontrar uma diversidade de pertencimentos e, consequentemente, uma variedade de
opiniões sobre a questão da inclusão da religião no espaço público. As percepções nesse
ambiente são heterogêneas, assim como as posturas adotadas. Observamos que as ações nem
sempre provêm de uma discussão interdisciplinar, ficando a cargo de cada profissional a
decisão de como lidar com conflitos que possam, eventualmente, surgir, pois estes sempre
aparecem na “sala ao lado”. O silêncio, muitas vezes, tido como aliado, significa, para a
maioria, que vivemos em uma sociedade tolerante com as crenças do outro. Mas as
controvérsias ali estão, à espreita, esperando o momento propício para explodir e se, e quando
isso acontece, como um copo que transborda, apenas com a gota d’água, o choque é
inevitável; alega-se que o “causador” é o intolerante, pois se recusa a participar de um pacto,
um acordo implícito que fornece aos gestores escolares um argumento quase sempre infalível:
“mas ninguém nunca reclamou...”. E assim, num consenso inconcebível e incompreensível, os
anos vão se passando, e as discussões vão sendo adiadas – ao negar as identidades do crer,
nega-se também a possibilidade de questionamentos: “sempre foi assim...”.

Em entrevistas com professores, foi possível vislumbrar que essa “comunhão” de ideias não é
tão forte assim, que a corda que mantém o malabarista está por um fio e o acordo não
assinado pode ser um acordo falso, feito sem o consentimento de uma parcela que está prestes
a se rebelar...

Neste artigo vamos nos ater a um episódio, ocorrido em uma das escolas pesquisadas no ano
de 2010, e que é muito revelador: como lidar com um conflito quando este ocorre e qual a
matriz que se defende ao tentar contornar o conflito. A partir desse episódio tentaremos
identificar o que os atores entendem por laicidade e se existe tolerância no ambiente escolar.

1
Mestranda em Ciência da Religião pela UFJF. Bolsista da CAPES. Orientador: Marcelo Ayres Camurça.
Contato: suelimartins2009@gmail.com.

743
A escola

A Escola Municipal, objeto deste artigo, situa-se na cidade de Juiz de Fora, estado de Minas
Gerais, tem mais de 100 anos de funcionamento, e foi, até 1986, considerada escola de zona
rural. A história do bairro, fundado por imigrantes alemães, traz consigo a marca da Igreja
Católica e da Igreja Luterana, denominações que conviveram “pacificamente”, mantendo suas
diferenças, dividindo espaços, inclusive o cemitério do bairro.

A escola, construída ao lado de uma Igreja Católica, por muito tempo manteve uma ligação
mais do que física, como podemos constatar em depoimento concedido por uma professora,
católica, que sempre morou nas proximidades da escola, tendo nela estudado quando criança:

Porque quando criança né, para mim era tudo uma coisa só. A escola e a Igreja era assim,
era a comunidade que eu conhecia. As pessoas que frequentavam a Igreja eram as pessoas,
os meninos da minha sala. A gente saía da escola para o ensaio de coroação. (...) Então a
gente sempre marcava os ensaios para depois da aula. Depois das cinco. (...) Porque eram
alunos da mesma turma... (Ivone 2)

Na saída das aulas os alunos se encaminhavam para a igreja e, muitas vezes, crianças de
outras denominações, sofriam discriminação, mas estavam “acostumados” a isso. Como só se
oferecia o ensino até a quarta série primária, quem desejasse continuar os estudos, procurava
as escolas do centro da cidade, ou em bairros próximos, e os que se diziam católicos tinham
mais chance de estudar, o que fez alguns luteranos se declararem católicos, por vezes. O
depoimento a seguir também é de uma professora que sempre morou nas proximidades da
escola, tendo também nela estudado quando criança, porém, luterana:

Enquanto estudante, na década de 70 e 80 a gente tinha aula de religião, especificamente o


catolicismo... E depois não havia a antiga quinta série, então a gente tinha que estudar no
centro da cidade, e eles faziam perguntas, e na época a gente observou que tinha mais
facilidade para conseguir vaga quem era católico, então a gente marcava que era católico,
que sempre foi católica, foi na Escola da Comunidade... (Kátia)

Atualmente, a escola funciona em dois horários, manhã e tarde, apenas com as séries do
ensino fundamental, com diretor e vice, e um coordenador pedagógico para cada turno. Em
2007, em reuniões pedagógicas realizadas na escola, rezava-se, antes de seu início, a oração
do Pai-Nosso. Esta foi retirada das reuniões, quando questionamentos sobre o fato da escola
ser laica começaram a ocorrer. No turno vespertino, no horário de entrada, que acolhe as
2
Todos os nomes dos entrevistados foram modificados a pedidos.

744
crianças do 2º ao 5º Ano, a oração do Pai Nosso, continua sendo feita todos os dias e, mesmo
questionada, a coordenação diz que a oração tem caráter universal.

As pessoas que trabalham lá costumam organizar a missa do domingo né? Eu vejo assim,
algumas meninas que trabalham ali sempre estão na Igreja de São Pedro. Então talvez seja
isso. Lá eu não sei se ainda reza o Pai Nosso. Rezava o Pai Nosso. Todo dia. E ninguém
questionava. (Ivone)

Evidencia-se, por toda a escola, o domínio simbólico e cultural das práticas e crenças
católicas, disseminadas em atos cívicos e pedagógicos. A escola mantém, em suas instalações,
símbolos religiosos cristãos católicos, como imagens e cartazes, folders e mensagens, em
locais visíveis e de acesso ao público. Visitas de padres que “moram ao lado” não são tão
esporádicas: às vezes são convidados a benzer a escola, rezar uma missa de formatura, ou
simplesmente ministrar uma palestra em algum evento. No depoimento de uma professora
sobre o dia da família, realizado em 2012, podemos observar com nitidez:

Após a leitura, o Padre fez um discurso, quase uma homilia, sobre a relação da família com
a igreja, escola, e comunidade, enfatizando sempre que a presença de Deus na família deve
ser constante, que este tem um projeto para cada pessoa. Que os pais não devem ter
vergonha de falar d’Ele com seus filhos e que os educadores tem sempre que ter uma
palavra d’Ele em mãos. Que tudo vem de Deus, disciplina, reflexão, família, amizades etc...
Fiquei pensando que se fosse para rezar uma missa teria ido à Igreja. (Júlia)

As festas, como na maioria das escolas, são realizadas de acordo com o calendário religioso
cristão/católico: Quaresma, Páscoa, Natal, eventos divulgados por cartazes afixados nos
murais, assim como as festas de cunho mais cultural, como festa junina e dia da família.
Interessante observar que, também no ano de 2012, a Quaresma teve um destaque maior, pois,
durante todo o período, cartazes e folders da Igreja Católica ficaram afixados em locais bem
visíveis, a ponto de um professor comentar que “a escola estava parecendo uma extensão da
Igreja” (Maurício). Na semana que antecede o Domingo de Páscoa, quando os católicos
praticam, de acordo com o ritual, jejum e abstinência, não foi servida carne aos alunos,
somente arroz e batata. Indagando a uma funcionária porque não havia carne, esta
confidenciou que sim, havia carne, a geladeira estava repleta.

Depois de analisar a íntima ligação da escola com a religião católica, podendo-se observar a
evidência de algumas práticas, legitimas em uma escola confessional, mas estranhas em um

745
ambiente público, descreveremos um episódio específico que servirá de base para uma
pequena discussão sobre a laicidade.

O episódio

Um dos eventos que acontecem na escola é o torneio esportivo, chamado interclasses; há


solenidades, na abertura e encerramento, com saudação à bandeira e o hino nacional é cantado
por todos os presentes na escola, alunos, professores e funcionários, tudo muito “natural”. Um
fato específico, no ano de 2010, chamou a atenção. No momento em que os alunos eram
encaminhados ao local, onde seria realizado o evento, obsevamos um aluno em pânico,
tentando sair da fila. A coordenadora o chamou e disse que, se não participasse do momento
cívico, não iria participar dos jogos, que se realizariam naquela semana. O aluno saiu da fila e
começou a chorar no refeitório, local para onde se encaminhou. Chamou-nos a atenção,
sabíamos que ele amava futebol, era um dos melhores, nunca perdia uma pelada, mesmo que
a bola fosse uma garrafa pet vazia, e estava muito animado para o torneio; sua atitude era, no
mínimo, “estranha”, mesmo assim optou por não participar. Ao ser indagada sobre o fato, a
coordenadora foi irredutível em sua decisão determinada em sua atitude. Tentando conciliar, e
essa é uma das funções em um ambiente escolar, fomos perguntar ao aluno o porquê de tal
atitude e ele nos relatou que era Testemunha de Jeová, disse também que em sua religião não
se podia adorar nada, a não ser Jeová. Compreendendo sua posição, tentamos negociar com a
coordenação, que mais uma vez se mostrou intransigente. Fizemos, então, uma proposta ao
aluno: que ele se mantivesse no local sem olhar para a bandeira e não cantasse o hino
nacional. Assim foi feito e, no momento da solenidade, permaneceu com os olhos fitados nos
nossos, e em todos os outros momentos cívicos até nossa saída da escola, no ano de 2012,
continuou com essa atitude. Sugerimos a ele que seus pais fossem à escola para conversar
sobre a questão, mas isso nunca ocorreu.

Algumas observações devem ser feitas quanto ao fato. Os Testemunhas de Jeová não
comemoram o Natal e a Páscoa, não fazem transfusão de sangue e não participam de guerras e
serviço militar, porém obedecem aos governantes3. Também não saúdam a bandeira ou
cantam o hino nacional, porque, para eles, essa atitude seria adoração e este ato pertence a
Deus, como visto em Mateus 4:10 “Respondeu-lhes Jesus: Para trás, Satanás, pois está
3
Informações disponíveis em http://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/perguntas-frequentes/. Acesso em 17
jul. 2013.

746
escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás”, também em Atos dos Apóstolos 5:29
“Pedro e os apóstolos replicaram: Importa obedecer antes a Deus do que aos homens”4A
atitude do aluno, no momento cívico, foi um ato religioso; obrigá-lo a participar seria uma
afronta aos ensinamentos que recebe em sua formação religiosa. O hino nacional contém a
seguinte estrofe: “Ó Pátria amada, idolatrada. Salve! Salve!”.

Diante do exposto, ficam as perguntas: até que ponto a escola respeita as diferentes crenças?
Até que ponto é laica? E o mais importante: a laicidade é realmente um ponto de pauta da
escola pública? Esse é o nosso próximo ponto de discussão.

Breves discussões

Para tentarmos compreender o episódio ocorrido na escola, fizemos uma breve retrospectiva
de como a escola se porta diante da questão religiosa e descrevemos um episódio que foge aos
parâmetros de avaliação de seus gestores. Com isso, torna-se interessante uma discussão sobre
a laicidade, a fim de que, aparados pela teoria, possamos analisar o ocorrido.

Para a discussão da laicidade, trazemos à pauta Portier (2011) que, analisando a França, nos
diz que lá há uma consciência de um entendimento mais “diferencialista da existência”
(PORTIER, 2011, p. 22); isso porque “hoje, admite-se que a identidade de cada um possa
estar ligada a uma memória, depender de um enraizamento prévio, que deve necessariamente
ser considerado” (PORTIER, 2011, p. 22) e o Estado é visto “a serviço das singularidades que
emergem da sociedade” (PORTIER, 2011, p. 22). Para isso, segundo o autor, foi necessário o
entendimento de três princípios: igualdade, positividade e razoabilidade. O primeiro “admite
cada vez menos que os cultos não possam ser tratados de modo igual pelas instituições
políticas” (PORTIER, 2011, p. 22); o segundo que a “igualdade não deve ser vivenciada na
indiferença do Estado” (PORTIER, 2011, p. 22), ou seja, não existe uma “neutralidade”; e o
terceiro indica que deve existir certas condições que respeitem uma superior, a dos direitos
humanos. Ressalta “que cada um possa manifestar sua pertença a coletivos particulares
(étnicos, regionais, religiosos) e atestar, ao mesmo tempo, sua pertença ao universal de uma
comunidade política” (PORTIER, 2011, p. 23).

4
Disponível em http://www.bibliacatolica.com.br/. Acesso em 17 jul. 2013.

747
Interessante anexar a esse entendimento Giumbelli (2004), que nos reporta ao debate da
liberdade religiosa no Brasil. Para o autor, a “religião se tornou incontornável na atualidade”
(GIUMBELLI, 2004, p. 48) e na escola a religião tende a entrar como signo e como fato:
“Sugere-se, ao mesmo tempo, que a religião esteja fora (como “signo”) e dentro (como “fato”
a ser estudado) da escola.” (GIUMBELLI, 2004, p. 52). O autor afirma que, no Brasil, não
houve definição de espaços; um Estado ‘moderno’ e uma sociedade ‘tradicional’ continuam a
conviver numa tênue linha entre a organização jurídica e a organização de espaços com
limites próprios e específicos (GIUMBELLI, 2004, p. 57).

Essa preocupação com o viver em conjunto e civilização pode ser encontrada na obra de
Asad, pois, segundo ele, esses temas agregam dimensões de “moral”, “ética”, “valores”,
“tolerância” e “cidadania” (GIUMBELLI, 2004, p. 58). Para Asad, todavia, um Estado laico
não garante a tolerância entre grupos religiosos, porque coloca em jogo diferentes estruturas
de ambição e medo (ASAD, 1999, p. 08).

Tomemos, neste momento, a teoria de Peter L. Berger e Thomas Luckmann (apud USARSKI,
2001, P. 91), qual seja a retórica da aniquilação.

Tal elemento retórico surge tipicamente numa situação de competição entre 'realidades
sociais' contraditórias, ou seja, quando diferentes 'concepções do mundo' se encontram e
pelo menos um dos partidos sente a necessidade de defender o próprio 'universo simbólico'
diante de dada alternativa.

O episódio referente ao o aluno Testemunha de Jeová revela a negação da diferença e,


consequentemente, do conflito, cujos atores envolvidos desrespeitam a crença do outro na
medida em que sequer lhe dão ouvidos, demonstrando a intolerância e o desrespeito com que
são tratados aqueles que não professam a mesma fé.

A negação de conflitos religiosos em ambientes públicos passa pela discussão do sincretismo


religioso, no qual o que se respeita não é necessariamente a religião do outro, mas a sua
religiosidade, e esta, sendo oriunda de qualquer religião cristã, é aceita (umas mais, outras
menos) no ambiente público escolar como uma forma de ética e moralidade familiar. No caso
em questão, quando o aluno se nega a cantar o hino ou reverenciar a bandeira nacional, para
os gerentes (diretores e coordenadores), ele está negando o civismo e a moralidade, valores
imbricados no catolicismo, que se desenvolveu na sociedade brasileira desde os seus

748
primórdios como nação, tanto é que padres cantores tem, hoje em dia, em seu repertório, o
próprio hino nacional5.

Para Giumbelli (2004, p. 48), no Brasil, pode-se averiguar a presença da religião católica
como fonte de moralidade, que foi “um apoio e um sustento para uma ordem cujos
fundamentos estavam em outro lugar”. Miranda (2011, p. 15) observa que o predomínio
cristão nos espaços públicos revela uma característica da sociedade brasileira, cujos grupos
dominantes se apropriam desses espaços. Atualmente se observa que católicos e evangélicos
são maioria absoluta dos professores das escolas da rede pública, e a concorrência entre eles,
desigual, faz com que se apropriem e façam uso desse espaço “da forma que lhes convém”.
No Brasil laico, inexistiu um “princípio universalista e de tratamento igual e uniforme que
abrangesse todos os sistemas religiosos”, fazendo com que determinadas religiões não fossem
reconhecidas, ou que pelo menos “um sistema religioso fosse mais legítimo que o outro”
(MIRANDA, 2009/2010, p. 130). Essa “legitimidade” faz parte de uma cultura democrática
que elimina a ideia de racismo e intolerância, devido à miscigenação e sincretismo, uma
mentalidade cordial da sociedade brasileira. Os símbolos religiosos, devidos à matriz católica,
são apresentados e ostentados no mundo público como prova da não existência de conflitos e
divergências entre os diversos grupos religiosos.

O ocorrido revela uma tentativa de aniquilação que, segundo Usarski (2001, p. 91) apela “à
consciência coletiva do maior conjunto social”, no caso, o catolicismo. A atitude demonstrada
pela coordenadora tem a “finalidade de manter a plausibilidade interna de seu grupo”,
desvalorizando “retoricamente a qualidade de uma ideologia adversa”. Por isso a crença do
aluno sequer foi levada em consideração, o possível conflito não foi discutido e a intolerância
se evidenciou dentro de um ambiente que se diz plural.

Importante observar que essa intolerância e indiferença com que os conflitos são vistos não
são pensadas a priori, ou seja, a presença da religião majoritária é tão naturalizada que quem
age com preconceito não tem ideia de estar assim fazendo e quem sofre não tem ideia de que
está sendo vítima; tudo permanece inalterado, é o que percebemos nos depoimentos de
diversos educadores como veremos a seguir.

5
Padre Marcelo canta em seu álbum “Um presente para Jesus” o Hino Nacional como visto em
http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/padre-marcelo-rossi/hino-nacional/2060912, acesso em 13, jul,
2013.

749
Alguns depoimentos

Uma fala constante entre a maioria dos professores da escola pública é a não existência de
conflitos. Para eles, o conflito até já existiu, houve sim, discriminação e intolerância, porém,
em suas aulas, conseguiram suavizá-los ou mesmo anular as controvérsias, mas, ao não serem
discutidos, a indiferença permanece, sem alterações efetivas na vida da comunidade.

Já tive aluno que a mãe é da umbanda e o menino sofria discriminação, mas não na época
que eu trabalhei com ele o ano retrasado, mais na época que ele entrou na escola, quando
ele era menor, sabe. Aí teve que fazer um trabalho né. (Abigail)

Eu peço para eles entrevistarem uma pessoa, que seja da mesma religião que ele, e que ele
fale para mim coisas que ele considere importante na religião dele. Mas as perguntas são
básicas. Eu sempre coloco quem que seria o líder máximo daquela religião, eu sei que ele
vai falar que é Jesus Cristo; tem determinadas coisas que eu meio que direciono, porque eu
quero que no final das contas eles me mostrem que todas as religiões pensam uma mesma
coisa. Ou seja, você tem que praticar a caridade, você tem que fazer o bem, você tem que
ser bom. (Ivanice)

Abigail não fala qual trabalho foi desenvolvido e como foi desenvolvido. Fala apenas que a
mãe do aluno esteve na escola e conversaram com ela. Soubemos pela mãe do aluno que ele
ainda sofre discriminação, mas aprendeu a lidar com ela.

Ivanice diz que todas as religiões pensam uma mesma coisa e, por conseguinte, aderem à
prática da caridade. Questionada quanto ao fato de existir religiões fora da matriz cristã, nos
disse apenas que esse tipo de ocorrência é rara na escola pública.

Outros professores, aqueles que observam a existência dos conflitos, uma minoria, passam
por um desconforto em relação à maioria. Estes não têm um embasamento teórico para a
discussão e alguns se dizem “perdidos” quanto ao que fazer, não têm o apoio da direção, e a
direção, por sua vez, também não tem condições de discutir o que se tornou “legalizado” pela
maioria.

É que os próprios professores, eles não têm consciência da laicidade do Estado, da escola
pública. Está tão introjetada a religião, e principalmente a religião majoritária, católica, que
eles não têm noção dos outros espaços, porque ele já introjetou aquilo e ele não percebe,
constitucionalmente, que essa escola é livre. (Fernanda)

750
A Secretaria de Educação, apesar dos diversos cursos oferecidos durante décadas aos
professores e gestores, nunca disponibilizou discussões acerca da intolerância religiosa na
escola pública, nem sequer, no caso de Juiz de Fora, adotou uma política para implementação
do ensino religioso. Uma antiga gestora de uma das escolas pesquisadas me confidenciou que
não sabia como se portar diante dos conflitos, tentava de todas as maneiras contorná-los, mas
que não tinha embasamento para tal, e que tais assuntos, sobre laicidade e religião no espaço
escolar, nunca foram colocados como ponto de pauta nas reuniões de diretores das quais
participou, e que a discussão, nessas reuniões, eram voltadas para o funcionamento
administrativo das escolas. Duas observações importantes: essas reuniões são, até hoje,
realizadas mensalmente, e a própria Secretaria de Educação mantém uma equipe que faz um
trabalho sobre diversidade, mas não discute religião.

O que acontece, a gente tem toda uma teoria, um estudo, formação, e aí quando a gente
chega na prática nada disso serve, e aí eu estou em crise, neste momento eu não sei o que
fazer, porque no cotidiano é tudo muito difícil. E aí eu já não sei mais o que é religioso, o
que é cultura, o que é tradição, e eu não sei o que fazer com isso tudo. Então quando eu te
procurei de novo foi nesse sentido assim de saber o que é que você tá vendo nas suas
pesquisas que pudesse me ajudar. Estou procurando com todo mundo, tô correndo atrás.
Marquei com o Alberto, quarta-feira vou conversar com ele, porque ele tem um olhar de
cultura. E converso com pessoal todo lá da Secretaria de Educação que trabalha com a
questão da diversidade, de novo, porque não sei o que fazer com isso tudo. (Eva)

Outros depoimentos poderiam aqui ser explorados, mas os que aqui estão são significativos
para demonstrar que professores e gestores estão sozinhos nessa árdua tarefa. Um trabalho a
ser realizado junto às escolas deve ser realizado, antes que o “caldeirão venha ferver e entorne
o caldo”. Episódios, antes esporádicos, começam a se tornar cada vez mais comuns no
ambiente escolar, principalmente com a entrada de novos atores, que passam a reivindicar
uma participação em condição de igualdade. Os dois últimos Censos do IBGE demonstram
que a diversidade invade a sociedade, e na escola algumas atitudes devem ser tomadas.
Segundo Camurça, que analisa dados do IBGE-2000, houve um crescimento de novas
dinâmicas religiosas. Existe, segundo ele, uma tendência crescente ao pluralismo e
diversidade religiosa no país, e o declínio do catolicismo estaria associado “à crise das
religiões de tradição majoritárias em qualquer parte do globo (...) face ao advento da liberdade

751
religiosa no espaço público moderno.” (CAMURÇA, 2006, p. 39). Sobre os dados do IBGE-
2010, Teixeira6 avalia, em entrevista:

Sem dúvida, um mapa marcado por uma diversidade religiosa que se anuncia. Com respeito
ao censo de 2010, algumas tendências se evidenciaram, como a diminuição dos católicos
romanos, que caíram de 73,6% para 64,6% e o crescimento dos evangélicos, sobretudo
pentecostais, que passaram de 15,4% para 22,2%. Numa população de 190,7 milhões de
pessoas, os católico-romanos somam 123,2 milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos
quais 25,3 milhões de origem pentecostal. Verificou-se ainda na última década um aumento
percentual dos sem religião, mas um pouco abaixo do esperado, de 7,4% para 8,0% (15,3
milhões).

Não existe mais uma hegemonia católica no país, e sim uma maioria católica. E isso também
é evidenciado in loco, bastando uma rápida observação no entorno escolar para encontrarmos
diversas manifestações e diversos templos religiosos: Igreja Católica, Luterana, Presbiteriana,
Batista, Metodista, IURD, Quadrangular, Testemunha de Jeová, Mórmons, Budistas e
diversas denominações evangélicas de menor porte, além de Centros de Umbanda,
Candomblé e Espíritas. Além das religiões, temos também a presença de agnósticos e ateus no
ambiente escolar. A indiferença com que se tratava a minoria começa a ser questionada, não
se pode, atualmente, não levar em consideração a reivindicação das diversas crenças ou não
crenças no ambiente escolar. A intolerância não é mais tolerada, a diferença faz coro e suas
reivindicações começam a perturbar o sono de quem esteve “deitado eternamente em berço
esplêndido”.

Considerações finais

A escolha do episódio relativo ao aluno Testemunha de Jeová é uma opção entre tantas outras
ocorridas no cotidiano escolar. Nesse ambiente, que é nosso projeto de pesquisa, podemos,
sem muito esforço, depararmo-nos com o silêncio sobre a questão religiosa e este leva-nos,
muitas vezes, pelos caminhos da indiferença e, como sabemos, esta última não é nada
tolerante: evitar uma discussão não resolverá os problemas oriundos da religião no espaço
público. Torna-se necessário e premente incluir a questão religiosa na pauta escolar, porque já
existe como signo e como fato, como nos diz Giumbelli (2004).

6
Sobre a entrevista ver http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512819-o-campo-religioso-brasileiro-na-ciranda-
dos-dados. Acesso em 07 maio 2013.

752
Outra via de compreensão seria, além da discussão sobre indiferença e intolerância no
ambiente escolar, a laicidade, seus significados e seu desenvolvimento no campo religioso
brasileiro. Esse entendimento poderá nos ajudar a revelar que os conflitos atuais existentes em
nosso país não são tão novos assim, são devidos à nossa formação histórica, à grande ligação
entre religião e Estado, de uma religião hegemônica, que vem, de acordo com o Censo atual,
deixando de ser hegemônica, mas mantendo uma maioria. Por fim, cada frequentador do
ambiente escolar carrega consigo sua cultura, sua formação, sua etnia e sua religião. A escola
congrega em seu interior uma pluralidade e deve ser um espaço privilegiado para discutir
valores e conceitos. Colocar em pauta tais discussões é o desafio que se impõe.

Referências

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University Press, 1999, pp. 01-17.

CAMURÇA, Marcelo Ayres. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In:
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http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000300005&script=sci_arttext. Acesso
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MIRANDA, Ana Paula. Entre o privado e o público: considerações sobre a (in)criminação da


intolerância religiosa no Rio de janeiro. Anuário Antropológico, p. 125-152, 2009-2/2010.

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http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1307634312_ARQUIVO_aintole
ranciareligiosaeoensinoconfessionalobrigatorioemescolaspublicasnoRiodeJaneiro.pdf. Acesso
em 05 abril 2012.

PORTIER, Philippe. “A regulação estatal da crença nos países da Europa Ocidental”. In:
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rejeição a alternativas religiosas. Revista de Estudos da Religião. Nº 1, 2001, p. 91-111.
Disponível em http://www.pucsp.br/rever/rv1_2001/p_usarsk.pdf. Acesso em 13 jul. 2013.

753
754
A escola e suas devoções
Nilton Rodrigues Junior1

As ações de combate à intolerância religiosa veem ganhando densidade social nos últimos
anos. Em 2008 no Rio de Janeiro, foi fundada a Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa – CCIR que promove desde este ano a Caminhada pela Liberdade Religiosa na orla
da praia de Copacabana. Esta Comissão, formada a principio pelos integrantes das religiões
afro-brasileiras, ao longo dos anos agregou integrantes de outras religiões, principalmente, da
Igreja Católica, do Judaísmo e de setores do Protestantismo.

O argumento principal defendido pela CCIR é o de que a intolerância religiosa é uma ação
social danosa à Democracia e que os principais promotores são os neopentecostais. Desta
maneira, o discurso da CCIR constrói a ideia de que existem dois grupos antagônicos: as
vítimas, quase sempre as religiões afro-brasileiras, e os algozes, sempre os neopentecostais
(RODRIGUES JUNIOR, 2012).

Em minha pesquisa de doutorado – liberdade religiosa ou uma questão de política de


identidade? – pude perceber que setores dos movimentos sociais atribuem à escola um duplo
papel em relação às intolerâncias religiosas. Se por um lado, afirmam a capacidade da escola
de eliminar as intolerâncias religiosas e de promover a liberdade religiosa; por outro, acusam
à escola de responsável pela construção e manutenção dos comportamentos intolerantes.

Estes setores reivindicam a implementação universal da Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003


que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" como uma
estratégia privilegiada para eliminar as desigualdades religiosas, partindo do argumento de
que a cultura afro-brasileira é alvo de discriminação e intolerância em consequência do
desconhecimento da mesma pela sociedade.

A intolerância religiosa é vista, por estes setores, como consequência do crescimento


numérico de setores evangélicos que passaram a ocupar espaços sociais importantes. Neste

1
Pós-doutor em Antropologia pela UFRJ. Professor adjunto da Faculdade Cenecista da Ilha do Governador.
Contato: niltonjunior@globo.com.

755
sentido, a escola passou a ser um espaço privilegiado tanto para a construção como para a
desconstrução dos comportamentos intolerantes.

Conforme o porta-voz da Comissão de Comate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro,


Ivanir dos Santos, a resistência para a implementação da Lei 10.639/2003 parte de setores do
protestantismo, em especial, dos neopentecostais: “quem mais se opõe a isso são os
neopentecostais, dizendo que vão ensinar macumba nas escolas” (Agência do Estado,
22/01/2010).

Neste sentido, as reivindicações são para que o Estado garanta a igualdade de manifestação
religiosa nas escolas, atuando no sentido de preservar, principalmente, as manifestações afro-
brasileiras.

Uma forte resistência tem partido de diversos setores dos movimentos sociais e da sociedade
civil contra a Lei 5301 de 19 de outubro de 2011 que criou “a categoria funcional de professor
de ensino religioso, para atuação exclusiva no âmbito da Secretaria Municipal de Educação”.
Este professor além da titulação de licenciatura necessita a indicação pela autoridade
religiosa. No concurso foram distribuídas 100 vagas da seguinte maneira: 45 para os
católicos; 35 para os protestantes/evangélicos; 10 para os espíritas; 10 para os afro-brasileiros.

Minha questão pode ser colocada nos seguintes termos: de quais formas as novas narrativas
concernentes ao combate à intolerância religiosa e a promoção da liberdade religiosa tem
consequências, se é que tem, na escola?

Meu artigo está apoiado em alguns conceitos teóricos e, por isso, acho importante,
inicialmente, defini-los.

A definição de Emerson Giumbelli sobre a laicidade do Estado satisfaz meus objetivos. Para o
autor a laicidade pode ser definida como a “desvinculação entre o aparato estatal e instituições
religiosas [...] de maneira mais extensa, num ideal de eliminação de toda referência a valores e
a conteúdos religiosos nas áreas reguladas por leis civis, e, por conseguinte, do próprio espaço
público” (2004b, p. 48).

O conceito de identidade vem sendo debatido por diversos autores e escolas das Ciências
Humanas. Uma definição razoável se encontra no livro Identidade de Zygmunt Bauman. Para
esse autor as identidades “flutuam no ar, algumas de nossas próprias escolhas, mas outras
infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constantemente

756
para defender as primeiras em relação às últimas” (2005, p. 19). A questão, como veremos, é
saber quando as identidades são de “nossa própria escolha” e quando elas nos são “infladas e
lançadas pelas pessoas em nossa volta”, sabendo que podemos substituir “pessoas” por
movimentos sociais, mídia, organizações não governamentais entre outras.

Ainda sobre identidade, Bauman afirma que “é uma ideia inescapavelmente ambígua [...] é
um conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo que
está havendo uma batalha” (2005, p. 82,83).

Para falar de religião gosto muito do conceito foucaultiano de formação discursiva. Para
Foucault a formação discursiva

determina uma regularidade própria de processos temporais [...] é constituído de um


número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de
existência [...] é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social,
econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa
(FOUCAULT, 1986, p. 82,135,136).

Ainda sobre religião acho válidos alguns postulados durkheimianos, ainda que não a
totalidade de sua argumentação. Para Durkheim não há religião falsa (1989, p. 31), todas as
religiões são comparáveis (1989, p. 33) e “na base de todos os sistemas de crença e de todos
os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais” (1989,
p. 33). Para o autor, os fenômenos religiosos “ordenam-se naturalmente em duas categorias
fundamentais: as crenças e os ritos [e] supõem uma classificação das coisas reais e ideais”
(1989, p. 62,68).

Por último reconheço que o conceito de imagem/símbolo é de difícil definição. No entanto,


como, fundamentalmente, estou tratando de símbolos/imagens religiosas presentes nas escolas
as definições de Victor Turner para os símbolos rituais me ajudarão a compreender o que vi
no campo. Sua definição de símbolo é a de

uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando ou lembrando
algo através da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou
pensamentos [...] a estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade
dinâmica (2005, p. 49,50).

757
No decorrer de minha pesquisa pude perceber que a relação entre as religiões e as escolas
públicas se dá de diferentes maneiras. Sendo, o ensino religioso a forma mais visível.
Entretanto, outros aspectos, por vezes sutis, estreitam os laços entre as religiões e as escolas,
comprometendo, algumas vezes, a estrutura da laicidade do Estado.

Uma proposta inicial para pensarmos estas relações pode ser traçada a partir de cinco
elementos:

Primeiro, o das escolas confessionais, nas quais não há impedimento nem para o ensino
religioso confessional, nem para a presença da religião nas orações diárias, leituras religiosas
e nem para professores explicitamente religiosos. Nesse caso a presença da religião na escola
não só não é impeditiva, como é estimulada.

Segundo, um relacionamento baseado na facultatividade do ensino religioso e na ausência de


símbolos/imagens religiosas nos prédios escolares, esse é o modelo baseado na atual
Constituição Brasileira2, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação3 e em outras legislações
infraconstitucionais. Nesse modelo a religião somente é ensinada a quem quer ou a quem os
responsáveis querem. A religião está presente somente no espaço do ensino religioso.

Terceiro, a religião dilui-se nas ideias de cidadania, de respeito ao próximo e a meio-


ambiente, de valorização da vida, da fraternidade universal entre outros. Nesse modelo a
religião está presente enquanto ideal moral e ético na formação de um ethos cidadão. Quase
sempre as relações estabelecidas nesse modelo são baseadas em uma cristianização da
sociedade.

Quarto, a religião não se mistura com a escola, estando, no entanto, presente no cotidiano
escolar. A religião mantém suas fronteiras identitárias no interior do espaço escolar. São os
grupos de oração de alunos e/ou professores, cultos por ocasião de datas comemorativas e a
presença, não proibida no Brasil4, de símbolos religiosos ostentados pelos indivíduos, como,

2
Artigo 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental.
3
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 20 de dezembro de 1996: Art. 33. O ensino religioso, de
matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso
e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso.
4
Em 10 de fevereiro de 2003 a Assembleia Francesa votou uma lei que proibiu o uso do véu muçulmano, dos

758
por exemplo, o véu muçulmano, o crucifixo pendurado no pescoço, as guias de Candomblé ou
Umbanda, as bíblias nas mochilas ou nas mãos entre outros.

Quinto, e último, a religião é afirmada no espaço escolar por meio da profissão de fé


individual. Diretores, professores, técnicos e alunos posicionam-se no ambiente escolar a
partir de suas crenças e pertencimentos religiosos. As relações, neste caso, são muitas das
vezes, conflitantes.

Nos últimos anos, assistimos às reivindicações de setores dos movimentos sociais no sentido
de exigir a ação do Estado para a erradicação da “intolerância religiosa” e para a promoção da
“liberdade religiosa”. Tais ações visam à eliminação da intolerância religiosa afirmando-a
como responsável pela desigualdade de manifestação religiosa no espaço público. Haveria,
portanto, grupos intolerantes que impedem com que outros grupos, as vítimas, possam exercer
livremente seu direito de crença e culto. Tal situação configura-se, por conseguinte, como um
ataque à Democracia.

As argumentações são construídas a partir de situações sociais concretas de conflito religioso.


Neste caso, os conflitos ocorridos no espaço escolar são vistos como embrionários desta
situação, pois às escolas, como acima afirmei, ora são espaços sociais de desconstrução das
intolerâncias, ora são espaços privilegiados de construção e perpetuação dos comportamentos
intolerantes.

Portanto, observar a variabilidade das relações entre as religiões e a escola a partir do modelo
proposto acima nos permitirá compreender as maneiras com que as religiões interferem ou
não no processo pedagógico e na gestão.

As relações entre a escola pública e as religiões como um fenômeno social importante têm
sido pouco estudadas. A literatura especializada tem se dedicado mais ao estudo do ensino
religioso: Junqueira, 2002; Werebe, 2004; Cunha, 2006; Giumbelli, 2004; Giumbelli e
Carneiro, 2006; Magri, 2009; Diniz, 2010; Miranda, 2011. Além disso, as maiores
contribuições para a compreensão do fenômeno da presença da religião nas escolas têm sido
dadas pela mídia.

Se em relação ao ensino religioso temos já um cabedal de pesquisas e estudos importantes, o


mesmo não se pode dizer sobre as relações entre religiões e escolas, e, principalmente, entre

solidéus judaicos e dos crucifixos cristãos nas escolas.

759
as religiões e a gestão, nem entre as religiões e as ações pedagógicas. Alguns estudiosos têm
apontado para esta questão, sem, contudo, enfrentá-la, e assim sendo, nosso esforço será no
sentido de realizar uma aproximação do tema, mapeando seus aspectos e analisando seus
possíveis desdobramentos.

Quem mais nos tem fornecido dados a respeito da relação entre a escola e a religião é a mídia,
que, entretanto, centra suas atenções nos casos de intolerância religiosa acontecidos no
ambiente escolar.

No entanto, como dissemos mais acima, a relação entre religiões e escola, quase sempre, é
tratada por meio do víeis do ensino religioso, carecendo, quase que completamente, de
estudos que se proponham a analisar outras formas de gerencia e de interferência das religiões
nas práticas pedagógicas e na gestão escolar.

O que parece que nos casos de relacionamento entre escolas públicas e religiões a maioria dos
atores sociais parece defender não a eliminação dos símbolos ou das doutrinações religiosos
do espaço escolar, mas uma tentativa de reordenamento e redefinição do lugar da religião na
escola.

Tomemos, comparativamente, o contexto francês. Se, na França há um desejo de


descontinuidade entre a escola e a religião, no Brasil, apesar de uma legislação que de direito
separa os dois campos, não é o que observamos no cotidiano escolar.

Na formação do Brasil republicano a Constituição de 1891 tornou o ensino nas escolas


públicas laico: “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (CF 1891 Art.
72 § 6).

Entretanto, nas Constituições que se seguiram o ensino religioso passou a ser alvo da
legislação constitucional: CF 1934 Art. 153; CF 1937 Art. 133; CF 1946 Art. 168, v; CF 1967
Art. 168, iv. Em geral em todas essas Constituições o ensino religioso apesar de facultativo,
passou a ser oferecido pelo Estado para as escolas públicas.

Voltando ao modelo francês, podemos tomá-lo como um exemplo de maior radicalização da


separação entre a escola e a religião. A lei francesa de 28/03/1882 decretou o fim do ensino
religioso nas escolas, deixando a cargo das famílias e das igrejas esse ensino; para isso, ainda
hoje, existe um dia da semana em que não há aula, para que as crianças tenham acesso a um
ensino familiar e/ou eclesial.

760
A Constituição francesa de 1958 manteve a crença numa República laica: “a França é uma
República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade diante da lei de
todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça e de religião. Ela respeita todas as
crenças” (Art. 1).

Recentemente, em 15/03/2004, foi aprovada a Lei 228 que proibiu o uso de símbolos
religiosos nas escolas públicas do nível fundamental e médio: véus muçulmanos; solidéus
judaicos e crucifixos cristãos. Tal legislação atingiu 8.000 liceus e 2.000 escolas primárias.
Mesmo nesse contexto de laicização, há espaço para algumas manifestações religiosas na
escola: “os sinais discretos podem ser mantidos, o que deixa a flexibilidade da norma nas
mãos das escolas e dos próprios alunos” (Folha online 17/05/2004).

Concluí-se daí que

a insistência na proteção das escolas vai de encontro ao fato de que a República reconhecia
indivíduos, e não grupos: um cidadão francês é leal à Nação e não tem uma identidades
étnica ou religiosa oficialmente reconhecida (BBC Brasil 17/12/2003).

No Brasil, tanto a legislação constitucional como a ordinária traz elementos antinômicos, pois
se há a crença numa Nação laica, há também concessões aos elementos religiosos, muitas
vezes com o propósito de garantir o pluralismo religioso, entendido como fundamental para a
eliminação das desigualdades no campo religioso.

No Brasil republico, apesar da desvinculação do Estado da Igreja Católica, o que vemos é


uma relação de proximidade entre a escola e a religião presente tanto nas salas de aula, como
no contexto mais geral da escola.

Exemplificando. Em uma das escolas que realizei pesquisa de campo além do crucifixo na
sala da diretoria, quase que uma regra, uma normalidade, nos estabelecimentos públicos,
havia um nicho com a imagem, de mais ou menos 80 centímetros, de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil, no corredor principal. Há, entretanto, várias outras situações
da presença da religião no espaço escolar foram verificados: imagens de santos e santas;
bíblias abertas; frases religiosas nos murais; oração em eventos entre outros.

Em Sorocaba, São Paulo, foram incluídos trechos da Bíblia no material didático de 2002,
além de ser lançada a Cartilha Deus na Escola pela Secretaria Municipal de Educação
(Revista Época n. 537, 01/09/2008).

761
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394 de 20/12/1996, no Art. 30 trata
sobre o ensino religioso nas escolas:

O caso do Rio de Janeiro, no entanto, é impar nessa discussão, pois foi um dos estados da
federação que adotou o ensino religioso confessional. Em outras palavras, o ensino religioso
oferecido nas escolas públicas estaduais segue “conteúdos [...] adequados a cada credo. Ou
seja, os alunos que se dispuserem a frequentar a disciplina serão separados de acordo com a
sua declaração de credo” (GIUMBELLI, 2008, p. 5).

Essa disciplina foi instituída pela Lei Estadual 3.459, de 14/09/2000, que “dispõe sobre ensino
religioso confessional nas escolas da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro”.
Gostaria de destacar o Art. 3: “fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é
atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-
lo integralmente”.

Neste sentido, pode-se dizer que na escola estão presentes, construindo e sendo construídos,
diferentes projetos civilizatórios que se materializam ora numa relação direta da religião com
a escola, ora de forma indireta.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

CUNHA, Luiz. Ensino religioso nas escolas públicas: a propósito de um seminário


internacional. Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 97, set.-dez. 2006.

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DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.

GIUMBELLI, Emerson. Ensino religioso em escolas públicas no Brasil: notas de pesquisa.


Debates do NER, v. 14, Porto Alegre, 2004.

__________. Religião, estado, modernidade: notas a propósito de fatos provisórios. Estudos


avançados. 18 (52), 2004b.

__________. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião e


Sociedade, Rio de Janeiro, n. 28, v. 2, 2008, p. 80-101.

762
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a situação no Rio de Janeiro. Revista Contemporânea de Educação, n. 2, Rio de Janeiro,
2006.

JUNQUEIRA, Sérgio. O processo de escolarização do ensino religioso no Brasil. Petrópolis:


Vozes, 2002.

MAGRI, Vanessa. O ensino religioso na escola pública estadual de Belo Horizonte – MG:
avanço ou retrocesso?. Revista Brasileira de História das Religiões. v. 1, n. 3, Maringá, 2009.

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obrigatório em escolas públicas no Rio de Janeiro. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de
Ciências Sociais, Salvador, 7 a 10 ago. 2011.

RODRIGUES JUNIOR, Nilton. Liberdade religiosa ou uma questão de política de


identidade? Tese de doutorado, PPGSA-UFRJ, 2012.

TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.

WEREBE, M. José. A laicidade do ensino público na França. Revista Brasileira de Educação,


n. 27, set-out-nov 2004.

763
764
Articulando religião, história e transformação social em escola
pública mineira
Sônia Aparecida Rodrigues1

Introdução

Esta comunicação visa discutir as contribuições trazidas pela inclusão do debate sobre o
religioso na Escola Municipal Wilson Pimenta, sediada na cidade de Mariana, estado de
Minas Gerais, bem como indicar as resistências e mesmo intolerâncias que tal inclusão
enfrentou. Esta escola insere-se num bairro considerado de alto risco social, em que os níveis
bem diminutos de renda são acrescidos pela atuação do tráfico de drogas, prostituição de
adolescentes e outras graves contradições sociais.

Nossa hipótese de trabalho é que a inclusão do debate sobre o sentido religioso da existência e
da vida social, de forma articulada à contextualização histórica do bairro, da cidade e dos
moradores, favoreceu uma maior valorização da subjetividade dos alunos e educadores – ou
seja, uma maior credibilidade em suas próprias escolhas existenciais -, contribuindo para uma
atuação mais alargada no plano social (incentivo à continuação dos estudos ou para uma
recusa à criminalidade). Todavia, tais critérios não deixam de ser ironizados e
desclassificados tanto por parte dos estudantes como por segmentos da intelectualidade, que
consideram moralista e tendenciosa tal motivação.

Desafios da Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira

A Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira, localizada na cidade de Mariana, estado de


Minas Gerais, foi inaugurada em fevereiro de 1994. Ela recebeu este nome em homenagem ao
senhor Wilson Pimenta, educador bastante conhecido na cidade, que cedeu o terreno para sua
construção. Funcionando nos três turnos, atende o segundo segmento do ensino fundamental
no períodos da manhã, o ensino infantil e o primeiro segmento no período da tarde, e o
segundo segmento e ensino médio (modalidade educação de jovens e adultos) à noite. Conta
atualmente com aproximadamente 400 alunos (OLIVEIRA, SOUZA, PRATES, 2013).

1
Graduada em História e Geografia. Professora da Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira, Mariana – MG.
Contato: virginiacastrobuarque@gmail.com.

765
Suas dependências são amplas, contando inclusive com um salão para reuniões e
congraçamentos, além de uma sala de apoio à aprendizagem, com variados recursos e
materiais pedagógicos, muitos dos quais elaborados pelos próprios alunos. Entretanto, no
decorrer do primeiro semestre de 2013,

[...] toda a escola apresentava-se bastante degradada, com muitas pichações nas paredes e
nos móveis, com mesas e cadeiras velhas, com portas e espelhos quebrados, com muito
mato nos arredores [...] Contudo, sem sombra de dúvida, o que mais chocou o grupo foi à
presença de duas famílias que residem na escola. Na verdade, são duas famílias de
desabrigados do bairro que a prefeitura de Mariana alojou em duas casas anexas à escola.
Segundo os relatos de alguns alunos e funcionários, os moradores das casas queixam-se
inúmeras vezes à direção da escola devido ao barulho produzido pelas crianças durante o
recreio e, mesmo devido ao barulho produzido pelas sirenes da escola. A então diretora da
escola confidenciou ao grupo que as famílias ligam o seus aparelhos de som em um volume
tão alto que chega a atrapalhar a aula de professores nas salas de aula que ficam próximas
às duas casas (REIS; MELO, 2013).

Ademais, existe um agravante que confere à Escola uma percepção pejorativa por parte dos
moradores de Mariana: ela situa-se no bairro Santo Antônio, mais conhecido como Prainha,
de grande pobreza e risco social. De acordo com o licenciando de História Rodrigo
Benevenuto,

O colégio Wilson Pimenta está localizado em uma zona periférica da cidade de Mariana, o
local é denominado pelos habitantes da cidade como bairro da Prainha. Bairro de singular
importância histórica para Mariana e para Minas Gerais, a Prainha apesar do valor histórico
sofre com graves estruturais. Isto conjugado com problemas sócio-econômicos faz com que
a Prainha seja considerada uma das regiões mais carentes de Mariana. Por ser um bairro
humilde, os estigmas sociais que sobre ele pesam são muitos, um deles é justamente o da
violência. Não é incomum ouvir dos habitantes de Mariana que a Prainha é um bairro
‘’violento’’, ‘’dominado pelo tráfico de drogas’’ e pelo ‘’banditismo’’ (2013).

Também segundo as estagiárias Carina, Gláucia e Miryah,

Quando mencionado, a qualquer pessoa que conheça um pouco da realidade da cidade de


Mariana nos dias de hoje, que estagiaríamos no bairro Santo Antonio, ou mais
popularmente conhecido como Prainha, os rostos se contorciam e expressavam logo em
seguida: “Você está louca? É muito perigoso!” ou “Tome muito cuidado”. Analisando o
histórico recente do bairro em alguns sites de jornais e notícias, entendemos, em parte, a
reação das pessoas. São notícias não muito animadoras: apreensão de drogas; tráfico;
violência e inúmeros homicídios. Ao passarmos pelo bairro vimos que, além disso, (ou o

766
que pode ter acarretado isso) é o descaso do poder público com a região. Parece que no
bairro não a coleta de lixo; que a água e a eletricidade não chegam a todos. Que é um lugar
esquecido. Largado a própria sorte. Ao passar pelo bairro não nos sentimos ameaçados mas
o peso do estigma carregado pelo bairro (de ser violento) pesou sobre nós; e o pior de tudo
isso, pesa na vida de seus habitantes de uma forma tão significativa que afeta a vida escolar
de suas crianças, adolescentes e adultos. Sem contar esse fator o bairro ainda sofre com
desastres ambientais. Por ser localizado entre a encosta de um morro e o Ribeirão do
Carmo, com as chuvas, as inúmeras famílias residentes sofrem perdas e destruição. Isso
agrava mais o descaso e o abandono do bairro (2013).

Dessa maneira, maioria dos alunos que estuda na Escola Wilson Pimenta é proveniente de
famílias de baixa renda, cujos pais não completaram o ensino básico. Vivendo numa
comunidade com tantas demandas sociais, os estudantes têm contato diário com a violência,
seja por parte de traficantes e/ou bandidos do bairro, seja pela omissão do poder público, ou
ainda pela intimidação sofrida por parte dos próprios familiares.

Mas além da exposição a essa violência explícita, causada pela miséria e pela atuação de
grupos criminosos na localidade, uma outra forma de violência, mais sutil, mas não menos
sofrida, atinge os alunos da Escola Wilson Pimenta: as experiência de evasão e de repetência
escolar. São diversos os motivos incitam os estudantes, sobretudo aqueles inscritos na
modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), a abandonar a escola, dentre os quais: a
necessidade de trabalhar para auxiliar em casa, as dificuldades de aprendizagem e sensação de
incapacidade, o sentir-se exposto à humilhação e determinados constrangimentos dentro do
ambiente escolar (CASTRO, FERRAZ e FERNANDES, 2013). Portanto, a experiência da
violência entremeia o cotidiano escolar, abarcando uma miríade de situações

[...] relacionadas ao (des)respeito, ao descaso e a negação do outro, que se traduzem na


agressão verbal, em ameaças, na humilhação, na zombaria, na desestabilização emocional
planejada e estrategicamente executada, e à ação que, para além da contestação ou
exercício de autoridade, impede ao outro o pleno exercício de direitos (LOPES;
GASPARIN, 2001, p. 297).

Logo, evidencia-se que a violência não abarca somente o campo físico, como também o
psíquico e o moral com uma intencionalidade de negação do outro. Todas essas características
costumam ser agravadas pelo desinteresse e apatia em relação à escola. A maioria dos jovens
mobiliza-se para estudar com o único intuito de obtenção de diploma, visando obter um
melhor salário e uma vida mais estável no futuro. Com a percepção de um ensino esvaziado
de sentido, há desestímulo e desistência (MATOS, NETO, MAIA, 2013).

767
Segundo as autoras Alba Zaluar e Mariana Cristina Legal, essa exposição diuturna à violência
social, imbricada à falta de motivação para estudar, geralmente desdobra-se no abandono da
formação escolar:

A existência de opções de tralhado informal no mercado ilegal das drogas, assim como
outros tipos de crimes contra a pessoa e o patrimônio, também contribuem para diminuir,
aos olhos dos alunos pobres, a importância da escolarização e das oportunidades de
profissionalização que oferece. [...] O tiroteio cada vez mais comum nos bairros populares e
nas favelas, o uso de armas de fogo dentro dos prédios escolares, e a presença de traficantes
nessas comunidades tem prejudicado o rendimento escolar dos jovens, levando-os muitas
vezes ao afastamento ou mesmo ao abandono dos bancos escolares (ZALUAR e LEGAL,
2001, p. 159).

Assim, embora no Brasil os índices de acesso à educação tenham melhorado nos últimos
trinta anos (97,6% das crianças e adolescentes encontram-se matriculados na escola), os
índices de permanência não acompanham essa primeira etapa de inclusão social: para cada
100 estudantes que ingressam no ensino fundamental, apenas 36 concluem o ensino médio
(RATIER, 2013).

E nesse contexto de fracasso escolar, o aluno geralmente acaba responsabilizado, o que


reforça a negatividade de sua autoimagem. Dessa maneira, geralmente tais estudantes,
principalmente de EJA, vivenciam seu insucesso como “[...] vergonha e incapacidade [...]
assumem para si a culpa e a consequência do seu “não saber” [...], sentindo como incapazes,
doentes e inferiores, em relação aos outros” (CALHAU, 2008, p. 81).

Mostra-se possível associar, por sua vez, a baixa autoestima dos alunos e a intensa
experiência de violência na escola. De acordo com os dados apresentados pela pedagoga
Lucimar Marriel,

[...] os alunos com baixa autoestima relacionam-se de forma pior com os colegas e
professores que os pares de elevada baixo-estima, além de se colocarem mis
frequentemente na posição de vítimas de violência na escola e terem mais de se sentir bem
no espaço escolar (2006, p. 35).

Ensino religioso e ensino de História

768
No primeiro semestre de 2013, os licenciandos do Curso de História da Universidade Federal
de Ouro Preto, sob a supervisão da professora Virgínia Buarque, desenvolveram vários
projetos de história local com as turmas do segundo segmento do ensino fundamental. Dentre
estas propostas, destacou-se o debate suscitado sobre o papel da religiosidade na constituição
dos sujeitos, em particular dos alunos da Escola Wilson Pimenta, em seu contexto de
convivência cotidiana com a violência social e autodescrédito.

A hipótese que defendi, como professora da disciplina História, contém um duplo aspecto.
Por um lado, ela afirma que o religioso é uma dimensão da vida social que possibilita o
sujeito compreender o real a partir não somente da experiência diretamente percebida e
mensurada (inclusive com todos os elementos de violência que os alunos tão bem conheciam),
mas lança a pessoa numa realidade mais alargada, na qual a utopia, o projeto de uma vida
diferente e possível mostra-se um elemento imprescindível. Dessa maneira, como indica o
historiador e teólogo jesuíta Michel de Certeau,

Sem retirar nada que seja àquilo que se diz cotidianamente, os relatos de milagres
respondem a isso ‘de lado’, de viés, por um discurso diferente no qual só se pode ‘crer’ – da
mesma forma que uma reação ética deve acreditar que a vida não se reduz àquilo que se vê
(CERTEAU, 1994, p. 77).

Por outro lado, eu postulo que a consideração do religioso, justamente por lançar o indivíduo
numa dinâmica da crença e não da prova, favorece – de forma bem diferente do que apregoam
os fundamentalismos – a escuta do outro, o diálogo com a alteridade, a descoberta do novo.
Afinal, a experiência religiosa não é algo que se possa suscitar por vontade própria, e muito
menos possuir ou controlar: ela é vivenciada num movimento de busca, entrega e relação. É
neste sentido que Michel de Certeau, ao invés de considerar o religioso como um repertório
de crenças, articuladas em sistemas sócio-históricos, o considerava como um ato de crer, ou
seja, “[...] investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la considerando-a
verdadeira – noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não seu conteúdo”
(CERTEAU, 1994, p. 278).

Foram esses os aspectos que ressaltei quando os estagiários propuseram uma sequência de
visitas guiadas com os alunos a espaços religiosos e culturais da cidade de Mariana.
Reconhecer a amplitude do mundo (alargado pela crença) e perceber-se capaz de entender e
até deslumbrar-se com essa dimensão foi a proposta trazida pelos licenciandos. Um dos

769
lugares mais visitados foi a Catedral Nossa Senhora da Assunção, no centro histórico de
Mariana. Segundo os licenciandos,

A visita à Catedral foi o momento mais especial e gratificante da visita. Pode ser observado
um grande interesse por parte dos alunos sobre o conhecimento histórico, foram inúmeras
as perguntas feitas pelas turmas, entre elas as que mais despertaram a atenção eram as
respectivas ao Órgão Arp Schnitger, construído na Alemanha na primeira década do século
XVIII, e presenteado por D. José I à recém-criada Diocese de Mariana. Outra questão que
foi frequente entre os alunos se referia ao Ouro nos altares e as pinturas do teto da Igreja.
Diante de singular espanto e curiosidade entre os alunos, observou-se que a grande maioria
nunca havia estado ali, assim a visita acabou gerando uma relação "sujeito e comunidade"
entre os alunos (OLIVEIRA, SOUZA, PRATES, 2013).

Um segundo grupo de estagiários destacou aspectos importantes no que tange à maneira de


apropriação por parte dos alunos da cultura histórica e religiosa da Catedral:

Os alunos [do 6º ano] entraram com os estagiários e com duas professoras da escola na
Catedral da Sé e ficaram encantados com a decoração de ouro e, principalmente com o
órgão Arp Schnitger. Alguns deles duvidaram da decoração de ouro, o que causou uma
discussão bastante fértil entre os estagiários, os professores e os alunos dentro da igreja [...]
(REIS, MELO, 2013).

Considerações finais

Considero que as visitas monitoradas a espaços religiosos da cidade de Mariana, em especial à


Catedral, com as turmas do segundo segmento do ensino fundamental da Escola Wilson
Pimenta contribuíram decisivamente para melhorar a autoestima dos alunos e a relação dos
mesmos com o processo ensino-aprendizagem em geral, e da disciplina História, em
particular. No que tange às relações do ensino religioso com a formação desses alunos,
entendo que as visitas possibilitaram uma leitura mais ecumênica do religioso, uma vez que
vários “[...] alunos do 5º ano nunca haviam entrado na Catedral da Sé por pertencerem a
famílias protestantes que não tem o costume de frequentar igrejas católicas, o que aumentou o
fascínio dos alunos” (REIS; MELO, 2013). Neste sentido, a disciplina história, na Escola
Wilson Pimenta, procedeu a uma abordagem dialógica da experiência religiosa, em afinidade
com as atuais propostas de ensino religioso:

770
Não pressupõe que o aluno se identifique com algum credo ou religião, mas se baseia nas
categorias antropológicas de transcendência e alteridade. Essa abordagem dialoga

reiteradamente com a Antropologia Cultural, a Psicologia da Religião, a Fenomenologia da


Religião e a Sociologia da Religião, para as quais tanto o sentimento religioso, quanto a sua
institucionalização, são expressão e sistematização das necessidades de grupos humanos,
concepções de sagrado e percepção de mundo, em determinadas épocas e contextos
históricos (DANTAS, 2004, p. 117).

Referências

BENEVUTO, Rodrigo. Fhabiene Carvalho de; FERRAZ, Letícia Almeida e FERNANDES


Valéria Dal Cim. Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana:
Universidade Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.

CALHAU, Maria do Socorro Martins. A concepção do aluno nos programas de EJA no


Brasil. Acolhendo a alfabetização nos Países de Língua Portuguesa. v. 2, n. 3, 2008.

CASTRO, Fhabiene Carvalho de; FERRAZ, Letícia Almeida e FERNANDES Valéria Dal
Cim. Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana:
Universidade Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

DANTAS, Douglas Cabral. O ensino religioso escolar: modelos teóricos e sua contribuição à
formação ética e cidadã. Horizonte, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 112-124, 1º sem. 2004.

LEAL, Maria Cristina. ZALUAR, Alba. Violência Extra e Intramuros. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. v. 16. n. 45, 2001.

LOPES, Claudivan Sanches; GASPARIN, João Luiz. Violência e Conflito na Escola: desafios
à prática docente. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 25, n. 2, p. 295-
304, 2003.

MARRIEL, Lucimar Câmara. Violência escolar e auto-estima de adolescentes. Cadernos de


Pesquisa, v. 36, n. 127, p. 35-50, jan./abr. 2006.

MATOS, Carina C. T. de; NETO, Gláucia; MAIA, Miryah. Possibilidades de Estágio


Supervisionado de História: uma relação com a Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira.
Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana: Universidade
Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.

771
OLIVEIRA, Fabiano Lopes de; SOUZA, Paula Miranda Oliveira Alves de; PRATES, Lucas.
Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana: Universidade
Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.

REIS, Maria Isabel; MELO, Pedro Henrique. Relatório final da disciplina Estágio
Supervisionado de História I. Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto, 1º semestre de
2013.

Internet

RATIER, R. Evasão Escolar – Como manter todos na escola. Disponível em:


<http:\\educarparacrescer.abril.com.br/gestão-escolar/evasão-escolar-561347.shtml >. Acesso
em: agosto 2013.

772
773
Em travessia de [des]lugares:
o corpo que dança o diferente incorpora-si e faz poesia
Pedro Vitor Guimarães Rodrigues Vieira1

Introdução

O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas mas elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade
maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão

ROSA, 2001, p.38

O poeta Guimarães Rosa é o poeta da travessia e do travessão. Como aquele que estabelece ou
inventa o espaço do diálogo com sua obra e com seus interlocutores. E dessa forma nos alerta
que as pessoas não permanecem iguais, mas que transitam, que mudam o tempo todo. Se
mudam é por não caberem num texto acabado, numa coreografia dançada, num corpo
pesquisado e ponto. Não existe o ponto. Na verdade, o que há são a vírgula e o travessão:
constante diálogo. Os poetas transitam pelos elementos do caos, enquanto nós enveredamos
pelas falas dos poetas, para tentar encontrar nossas próprias falas, nossas danças, nossos
enlaces. Os poetas transitam. Precisamos atravessar, sempre...

Se fragmentado, o corpo de Veredas se encontraria adormecido. Assim, ao contrário do que


poetiza o poeta, as pessoas estariam inclinadas a se terminarem e não a transitar. Por isso,
travessias, atravessamentos e incorporações. O fazer poético no trânsito entre o intolerável
para o espaço de tolerância, repito: constante diálogo... Travessia como caminho, como
percurso poético, translados de lugares e interfaces imbricados nas diversas experiências com
as artes, em cena. Atravessamentos, no sentido daquele que é atravessado – o próprio Ser – ao
se encontrar com os diferentes de Si e dos outros, enquanto tais diversas experiências
artísticas acontecem. E sobre as incorporações, elas nos remetem aqui às histórias, aos

1
Mestre em Ciências da Arte pela UFF, especialista em Educação e Trabalho pelo Programa de Institutos
Politécnicos da UFRJ, licenciado em Educação Artística pela Universidade Cândido Mendes/AVM e bacharel
em Dança pela UFRJ. Professor dos cursos de graduação em Dança da UFRJ (bacharelado em Dança, Teoria da
Dança e Licenciatura em Dança), Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Vinculado ao Projeto Artístico-Cultural Companhia Folclórica do Rio-UFRJ e do Projeto de Extensão PADE
(Pesquisa em Africanidades e Dança-Educação). Contato: pedraoufrj@yahoo.com.br.

774
diálogos, aos aspectos que tocam o corpo daquele que experimenta e, em alguma medida,
permanecem atrelados a ele. Permanecem como uma tatuagem, como uma experiência
incorporada, no sentido da percepção sensível e da apropriação experimental.

Essa narrativa-reflexiva se constitui em três lugares: 1) O Projeto Cia Arte in cena – núcleo de
artes, desenvolvido em duas Instutições de Ensino, como locos das pesquisas e das discussões
centrais; 2) O espaço cênico, como lugar poético e área de apresentação/mediação de
conflitos; 3) O [des]lugar como o lugar da própria travessia, dos atravessamentos e das
incorporações: lugar de percepção sensível do outro e de Si.

Nesse sentido, este trabalho vem apresentar algumas reflexões e considerações sobre o papel
da arte como mediadora de relações entre os indivíduos da experiência na partilha do sensível,
aproximando-os de diferentes situações, no espaço cênico. Lá, eles adentram, habitam e
atravessam. Adentram a cena, habitam os lugares de experiência com o diferente de Si e do
outro e, em seguida, atravessam: fenômeno dado em travessia de [des]lugares...

Travessias, atravessamentos e incorporações

Eu tinha antes querido ser os outros para conhecer o que não era. Entendi então que eu já tinha sido os
outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu

Clarice Lispector

Em travessia nos enfrentamos, em travessia nos aproximamos. Em travessia nos perdemos,


em travessia nos reencontramos, uns com os outros, dos outros... Em travessia nos deparamos
com os abismos que criamos para nos mantermos afastados daquilo que somos e
[des]conhecemos, [des]figuramos, [des]motivamos de nós e dos outros.

O des, aqui, não apenas como prefixo de negação, ou de dizer o contrário do que se supõe,
mas como impulso para uma ação outra: descontruir, desfazer [ou seria melhor refazer?] o
que se faz com equivocalidades. Uma espécie de metáfora. Figura da própria linguagem para
repensar sobre os textos por detrás das falas – histórias de si, sobre si e sobre os outros –,
sobre as entrelinhas não descritas, impregnadas de pré-conceituações e de distanciamento do
outro; de fragmentação, de separatismo e demais movimentos – do próprio pensamento, da
própria história – que apartam os homens uns dos outros e os refundam num sentido unilateral
da própria ação de Ser. Acontecer uno. Um acontecer para uma direção. O [des]lugar, assim,

775
é como uma ponte entre dois mundos, que precisa ser instaurada para que haja o diálogo, as
aproximações, a mediação entre aspectos conflitantes... a dança. A dança e, para além dela, a
cena como [des]lugar, como o lugar mediador, onde o diferente habita, onde o [des]conhecido
provoca, convida e permite-nos espaços de esquecimento. Esquecer-se de si, para se ver – a si
próprio – no outro. Eis, pois, Travessia de [des]lugares.

Travessia para atravessar, transversar, ultrapassar a fronteira do Si mesmo. O mesmo conceito


de Si entrevisto pelo conceito de Self, destacado na fala e no pensamento de grandes
pensadores como Maurice Merleau-Ponty, por ocasião de sua Fenomenologia da Percepção
(2006). Ao mencionar o olhar para o Si mesmo, o autor nos escreve que cada um de nós se vê
como que por “um olho interior que, de alguns metros de distância, nos observa da cabeça aos
joelhos”.

Ainda sobre o conceito de Si mesmo, também podemos partilhar da fala de Nietzsche em


Assim Falou Zaratustra (1999), como podemos verificar adiante.

Eu sou o corpo e a alma, assim fala a criança e por que se não há de falar como as crianças?
Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso,
um guia desconhecido. Chama-se Si mesmo. Habita o teu corpo; é o teu corpo. há mais
razões no teu corpo do que na tua melhor sabedoria (NIETZSCHE, 1999, p. 44).

O conceito de Si mesmo envolve uma consciência que está: é o próprio corpo. Essa
consciência que nos permite escutar e agir segundo as inteligências do próprio corpo. E é essa
consciência de si, despertada e percebida no espaço cênico, nos jogos e nos fazeres da dança,
do teatro e da música é que nos movemos, transladamos, atravessamos. Constituímos o
[des]lugar.

[Des]lugar. O lugar onde o diferente habita. Espaço no qual o plural, o diverso, o


inequivocado, o dilatado e desgastado de si e do outro se aproximam. O espaço da cena como
o lugar da mediação de conflitos, tendo a arte e a cultura popular como seus mediadores,
interlocutores. Dessa forma, somadas às vozes dos presentes, às dos ausentes – antepassados -
alguns negligenciados e preconceituados – falam. E, através delas, dançamos.

776
Lugar da narrativa número 1: O Projeto Cia Arte in Cena – núcleo de artes

Este trabalho é fruto das pesquisas e atividades artísticas realizadas ao longo de quatro anos,
em duas instituições públicas de ensino: o Colégio Municipal de Pescadores de Macaé e o
Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio. Apresenta algumas considerações teóricas e
poéticas imbricadas na iniciativa de implantação de núcleos de artes como atividade
extracurricular dentro dessas Instituições, visando incentivar experiências para formação
artística de alunos e professores, a partir dos conceitos de politecnia, interdisciplinaridade e
multisserialismo, perpassando as questões da arte e a própria arte como mediadora de
conflitos e aproximadora de diferenças culturais entre os indivíduos participantes.

Trata-se de um projeto arte-educativo, cujas atividades são norteadas, justamente, pela noção
do [des]lugar, como uma ação de se deslocar para os espaços onde o que há de diferente,
diverso, plural compõe a própria cena de trabalho.

Através deste projeto pudemos discutir e articular as diversas problemáticas enraizadas nos
processos culturais às experiências dos processos criativos, apropriando o espaço cênico, o
espaço das artes como lugar de mediação de conflitos, envoltos nas questões sociais, políticas
e, sobretudo, religiosas.

Por conseguinte, a partir das demandas do próprio Simpósio, que destacam questões de
tolerância e intolerância religiosa nas diversas práticas e atividades cotidianas da sociedade
contemporânea, este artigo vem propor algumas reflexões sobre como a Escola, enquanto
recorte situacional, e as artividades arte-educativas, enquanto metodologia de trabalho, podem
oferecer contribuiçães/caminhos para compreender os possíveis espaços dialógicos tolerantes!

Para Vygotsky (1998) a mediação é uma idéia central para compreensão singular do
desenvolvimento humano. Assim, concebe a mediação como o meio de acesso ao
conhecimento, entendido como tudo que o rodeia (objetos, organização do ambiente) e a
relação do sujeito com outros. O autor compreende que a linguagem é um sistema simbólico
dos grupos humanos, que fornece os conceitos, as formas de organização do real e, possibilita
a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Assim o sujeito é mobilizado por
diferentes necessidades de atingir novos saberes (construído entre o homem e o mundo), de se
comunicar, de participar como ente social, de atuar eticamente com diretrizes políticas que
estão presentes na sua vida.

777
Para os educadores, a experiência com projetos permite que haja discussão sobre novas
perspectivas para o fazer arte-educativo, repensando suas intervenções e práticas pedagógicas
a partir dos diálogos com os alunos. E para os alunos, as trocas de experiências e a construção
do conhecimento ligada às suas práticas escolares ou cotidianas, fazem-nos enxergar na arte
um caminho possível para intervir socialmente, modificando os espaços em que atuam.

Lugar da narrativa número 2: O espaço cênico e a apresentação/mediação dos conflitos

Certo dia um aluno me questionou sobre um tal professor Mario Sérgio Cortella. Fiquei
bastante interessado na pergunta, pois tratava-se de uma das maiores referências nos assuntos
ligados a processos educativos e de ensino e aprendizagem nos dias de hoje, discutindo
conceitos como o de Inteligências Múltiplas, por exemplo. Porém, mais intrigado eu fiquei,
quando meu aluno fez menção à fala de Cortella, parafraseando que “os seres humanos não
nascem prontos, mas sim, nascem sem forma nenhuma e vão se formando com o tempo.” E
que por isso seríamos todos os dias uma versão mais nova de nós mesmos.

Assim, a partir de sua fala, entrevi o início desta segunda narrativa, que vai tratar das questões
pertinentes ao espaço cênico como espaço de diálogo e de formação: espaço poético-político-
artístico-pedagógico em constante transformação. Para isso, convidamos para a cena a fala de
alguns teóricos das artes cênicas, dentre eles Artaud, Huizinga e Peter Brook.

O primeiro é um poeta da encenação. Para Artaud,

A encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser consideradas
senão como os signos visíveis de uma linguagem invisível ou secreta. Não haverá um só
gesto de teatro que não carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos
encontros dos sonhos. (ARTAUD, 2005, p. 38)

E nesse campo da encenação é importante que se destaque as propriedades do Jogo, como um


artifício do próprio fazer teatral. O jogo, com suas características simbólicas, estruturais e
sociopolíticas permite que “os diferentes” se encontrem, se defrontem, se aproximem o tempo
todo, comungando de um espaço poético que os mantém conectados pelas diferenças. Por
conseguinte, o jogo é um meio pelo qual se cria espaços de tolerância, em diversos aspectos.

778
Se por um lado Artaud é o poeta da encenação, Huizinga é o poeta do Jogo. Segundo o autor,
o conceito de jogo é forjado no seio da sociedade, na observância dos aspectos que a
configuram como o próprio lugar onde os diferentes habitam.

O jogo se caracteriza por ser uma atividade livre, conscientemente tomada como não-séria e
exterior a vida habitual, mas, ao mesmo tempo, capaz de absorver o jogador de maneira
intensa e total. O jogo é mais antigo que a cultura. Os animais já jogavam e jogam; é mais
que uma função biológica ou fisiológica. O jogo é um atributo da vida. (HUIZINGA, 1995,
p. 16)

Para Huizinga, o jogo é, em si, um meio social. É um espaço que deflagra as divergências e as
afinidades vistas na sociedade a qual pertencemos. Vemos deflagrados, por exemplo, nossos
medos, nossos anseios, nossas diferentes percepções de mundo, nossos preconceitos e nossas
ideias sobre os objetos e os indivíduos que nos cercam.

Assim, através do jogo e ponderando os adventos da encenação, a apresentação/mediação dos


conflitos fica quase completa, lhe faltando apenas o espaço onde os imbates e as
transformações irão acontecer.

E é nesse entremeio que o poeta do espaço da cena vai emergir. Em O teatro e seu espaço e A
porta aberta, Peter Brook vai nos apresentar algumas questões sobre o espaço da cena e sobre
o fazer tearal. Mais do que isso, o autor nos coloca diante de questões emblemáticas, como o
que é próprio teatro. Nesse sentido, encontramos questões sobre o vazio, que são apropriadas
de forma a inaugurar e fundamentar o pensamento de Brook sobre tema. E dessa forma, ele
afirma: “Eu posso pegar qualquer espaço vazio e denominá-lo palco. Alguém atravessa este
espaço vazio enquanto outra pessoa o observa, e isto é suficiente para que esteja configurado
o ato teatral”. (BROOK, 1970, p.1). É a partir dessa epígrafe, considerada uma das falas mais
proeminentes desse autor, que vamos conseiderar o espaço da sala de aula como cênico;
professor e aluno como atores, agentes2 do fazer teatral. E procurando compreender o que é
esse teatro, o autor vai se deparar com a questão do vazio, no sentido da ação de esvaziar, de
criar espaços de possibilidades criativas.

Para Brook, “o vazio no teatro permite que a imaginação preencha as lacunas.


Paradoxalmente, quanto menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é um
músculo que gosta de se exercitar em jogos”. (BROOK, 2010, p.23) A dinâmica da encenação

2
Leia-se a palavra agentes como referência àqueles indivíduos responsáveis pelas ações, pelo próprio fazer
teatral.

779
deve considerar ao menos dois atores, além de um terceiro indivíduo a quem caberá a
observação.

Esse é um processo que envolve respiração, imaginação e por vir, que deverá [des]considerar
o quê se sente, o quê se pensa sobre este ou aquele indivíduo, situação, ideia ou pré-conceitos.
Deverá considerar, no entanto, a experiência com o estado instaurado do vazio para entrever,
a partir daí, o lugar do possível, do diálogo, da criação a partir das tolerâncias.

Nesse lugar de esvaziamento e através dessa ideia sobre o vazio de Si e da cena, encontramos
a primeira brecha para trabalhar com as intolerâncias uns dos outros. É nesse lugar onde o
outro dos outros se insere, onde as diferenças ou os diferentes se encontram, se chocam e se
esvaziam para atravessar. Se esvaziam para adentrar o processo criativo e não há escapatória!
Para chegar à construção dos personagens, para chegar a compreender os movimentos da
dança, para sentir os artifícios do próprio drama – no sentido da ação teatral – faz-se
imprescindível esvaziar-se de Si e mirar-se nas transformações do outro.

Percebi que nunca teriam conseguido tal intensidade se estivessem concentrados em algo
como “O que estou sentindo” ou se tivessem preenchido o vazio com ideias. É algo difícil
de aceitar para a mentalidade ocidental, que durante tantos séculos consagrou as “ideias” e
a mente como divindades supremas. A única resposta está na experiência direta, e no teatro
é possível experimentar a realidade absoluta da presença do vazio, em contraste com uma
confusão estéril de uma cabeça entulhada de pensamentos. (BROOK, 2010, p.19)

O espaço vazio é como uma caixa de surpresas. Suas paredes laterais pendem sobre o tempo,
como reticências sobre o final de uma página toda em branco. São como uma grande
inspiração que vem de um passado remoto, construído à luz de experiências que tornaram-se
memórias, e que, paulatinamente, desaparecem; são como uma escolha roubada do próprio
corpo imerso no instante da transformação, para que o por vir seja a própria válvula do tempo.

As paredes reticentes dessa caixa brincam com a nossa imaginação. Ao abrirem-se ao


desconhecido, estas paredes recaem sobre os sonhos projetados no espaço preenchido da caixa
e criam o estado latente do vazio. Um estado no qual a criação poderá insurgir, como se
através das paredes recaídas sobre os sonhos, outras poéticas fossem instauradas no vazio
desta caixa. Segundo Brook, “quem quer se abrir, tem que destruir as paredes”(Idem, p. 20)

O vazio de Si recria as paredes da imaginação, à luz de uma memória que arquiteta seu
desaparecimento: desaparece algo pré-concebido para inaugurar algo impensado, antes,

780
talvez, intolerado. Essa arquitetura do desaparecer persiste para que o estado de esvaziamento
permita ao aluno-artista criar um próximo movimento, para que possa dançar o diferente. Para
que possa fazer novas poesias. A memória não se apaga. Não se trata de um autoflagelo
poético. A memória é presença no corpo em estado de vazio para a criação. Portanto, é uma
ação da própria memória, uma atitude de desmemorar-Si (atitude de não considerar a
memória que está em si, pelo conceito nietzschiano do Si mesmo).

Assim, há um instante vazio, um estado instaurado que não mostra o antes e nem projeta
algum depois. Apenas um instante vazio que ecoa, que vibra na possibilidade do por vir. Ele
convida o corpo a desgarrar-se, desprender-se de qualquer preconcepção de seus atos, de suas
formas, para que se permita lançar-se ao imaginário e à transformação, num gesto indubitável
de conhecer suas naturezas mais ocultas e de revelá-las na intenção de ser [sempre] mais do
que é.

A verdadeira forma não é como a construção de um edifício, em que cada ação é um


avanço lógico em relação a anterior. Pelo contrário, o verdadeiro processo de construção
envolve simultaneamente uma espécie de demolição, que implica a aceitação do medo.
Toda demolição cria um espaço perigoso, no qual há menos suportes e menos apoios
(BROOK, 2010, p.20).

E diante desse edifício inacabado, ou melhor, de inacabamentos de nós mesmos, reencontro-


me com a fala do meu aluno-artista, que antes de mim já refletia sobre esses processos de
criação que aproximam as diferenças e seus diferentes. A cena, os indivíduos, os processos
são esse constante inacabamento, esse constante estado potencial – como vontade de potência
– para esvaziar-se. Esvaziar-se para se perceber como edifício que precisa ser demolido. Em
cena, encenando, jogando, se esvaziando de Si, para os outros e junto deles, aos poucos,
podemos construir pontes que o antes e o depois. Entre o intolerável e o tolerante, para
perceber-se como vírgula e travessão: em constante diálogo – travessia...

Lugar da narrativa número 3: A poética do [des]lugar nos processos criativos mediados


em atividades arte-educativas

No andar do tempo, vão ficando as lembranças; os guardados vão se acomodando em


nossas gavetas interiores. Como temos cicatrizes! A vida foi causando essas feridas que nos
acompanham até o fim. Nós somos como as tartarugas, carregamos a casa. Essa casa são as
lembranças (CAMARGO, 1998, p.34).

781
Esta presentificação de memórias, disposta no “casco de tartaruga dos homens”, é um registro
configurado com os pedaços entranhados de experiências, cujas mesmas permitem-se à
revificação. Ou, como numa imagem de colcha de retalhos, carregada de fiapos de
lembranças, as que ficam da experiência do vivido. Esta é a imagem que fica deste passado
latente, destas nossas certezas adiquiridas, desses caminhos percorridos. São cicatrizes das
travessias arraigadas no corpo e no consciente do indivíduo. O “casco de tartaruga dos
homens” são suas lembranças, não seus corpos, por assim dizer.

E quanto a esses homens com seus cascos de tartarugas – no caso, meus alunos – eles
carregam consigo todas as memórias de suas experiências vividas. E tais memórias são
forjadas nos processos culturais. Somos seres que produzem cultura e somos produzidos por
ela. Somos indivíduos coletivos [coletivizados]. Preservamos nossas singularidades no espaço
social. E dessa forma, carregamos em nossos cascos de tartaruga os pensamentos, as
ambiguidades, os conflitos, os medos e os equívocos todos.

As intolerâncias aparecem e gritam quando não colocamos aquilo que carregamos dentro dos
nossos cascos, nossas memórias, nossos aprendizados para fora. Temos de apresentar as
nossas visões de mundo para que seja na partilha do diferente que haja a sensibilidade e a
poesia dos diálogos. As ações dialógicas são, por outro lado, esse compartilhamento de
memórias em cascos de tartaruga. Mais do que memórias, um compartilhamento de visões de
mundo, de preceitos, de liturgias, de opiniões, de culturas, de sociabilidades.

Acreditamos que, as próprias ações envolvidas na pesquisa do corpo em movimento, levem-


no para outras margens, como pontos de fuga dessas linearidades. Essas margens para onde a
experiência com o corpo, com a arte nos leva são os outros. Os outros de si e os outros dos
outros. E é nesse lugar, na verdade, nesse [des]lugar – pois é um lugar em trânsito, em
deslocamento – que podemos trabalhar com a noção de apresentação/mediação dos conflitos.

A cena, como espaço poético e como lugar de processos criativos, deflagra os encontros com
o que há de diferente em Si mesmo e nos outros. E nas margens de tais encontros, destacamos
as potências das situações graves, para enxergá-las como grávidas. De graves à grávidas, as
situações se deslocam de um lugar de impossibilidade [de diálogo, de mediação] para um
lugar de potência, de possibilidade de criação, através da partilha das percepções e
experimentações do sensível. O corpo criativo, envolvido com a partilha do sensível, nos
convida a habitar esse lugar ambivalente, entre a gravidade e a gravidez de qualquer situação.

782
Entre o que se tolera e o que se desconhece. Entre o já sabido do outro e o que se sabe por
equivocalidade. Encenação. Fazer teatral. Experiência do drama, da ação, da essência do
fazer, com poesia.

Nesse ponto, podemos perceber mais uma aproximação com o pensamento de Bergson, o qual
vai defender o corpo como um lugar de passagem (2001, p.92), esse corpo em trânsito que
não tem paragem, que não cessa de transformar-se.

Naquilo que subescreve Calfa, compreendemos que a própria corporeidade pode ser um ponto
de fuga, sendo um refúgio, um escapatório desse corpo que transcende a linearidade de suas
narrativas em busca de deixar ecos de memória no espaço e no tempo da criação. Segundo a
autora a corporeidade nos remete a esse corpo que se faz, se descobre, se vela e se desvela na
passagem. Travessia. E esse corpo assim o faz na tentativa de se encontrar nesses “mundos
desconhecidos e misteriosos que nos pertencem”.

Quando pensada como travessia, a corporeidade traz como questão a reflexão sobre a
realidade a partir da imagem da teia, vista em seu processo transitório, que emerge do corpo
na necessidade permanente da manifestação do real, ao se dar e retrair nessa labiríntica teia,
passagem, resultado de novas transformações. É nesta correnteza da linguagem que vige a
corporeidade, como abrigo do pensamento poético; que ao mostrar-se na dança vai criando
em seu movimento a trama nas tessituras da realidade, no entrelaçamento do corpo – vida,
poiesis, linguagem (CALFA, 2009, p. 92).

É nesse enlace dos diferentes pontos da teia que a dança se tece, que a vida se tece, que a cena
e os conflitos se tecem. Tecem e se retorcem. Misturam-se pra se confundir e fruir, no corpo,
em Si e no do outro. Dessa forma, podemos nos deparar com a revelação do lugar por onde o
corpo, a memória e as artes – a dança, a música e o teatro – transitam juntos. Eles estão
unidos nesse encontro entre as diferentes passagens do corpo, que na verdade são as
transformações pelas quais ele passa, para germinar sempre algo novo.

No jogo de cena, na apresentação/mediação dos conflitos, as teias, as tramas e suas tessituras


são infindados indícios, pistas para que o corpo encontre os abrigos de que precisa para
lembrar das coisas da vida. Encontramo-nos em nossos conflitos e nas ideias arraigadas em
nossa experiência, para transgredir as intolerâncias. Esses elementos atravessam o corpo e
convergem para o seu centro, em torno do qual cria os movimentos. “A corporeidade é o
caminho para a linguagem na dança” (CALFA, p.102) e com isso pode nos levar ao

783
pensamento sobre o quê é ou como é a dança acontecendo no seu corpo-próprio, que é
diferente em cada um3.

Ao deixar nascer a cada instante novas percepções damos seguimento às tramas e tessituras
poéticas que menciona Calfa e ao corpo como lugar de passagens de que fala Bergson, para
que o corpo poético não cesse de agir no espaço e tempo de suas percepções. A cada instante
podemos provocar em cena, percepções diferentes sobre o que há de diferente de nós mesmos.
Os alunos se enxergam como resultantes de seus processos “institucionalizados”, constituídos
pela família, pela igreja, pela escola e pelas relações interpessoais, com os amigos, familiares,
e colegas de classe. Nesses instantes de aproximação com o que há de diferente entre si, eles
se descobrem na smais variadas facetas, a exemplo das religiosas: protestantes, católicos,
umbandistas, kardecistas e budistas. Todos enredados na experiência do fazer teatral, da
criação da dança e das outras dinâmicas da cena.

Em sua essência o corpo imerso nessa constante travessia vai lembrar algumas imagens que
revelam no seu fazer o caminho de suas narrativas. De acordo com as proposições de Calfa
compreendemos que “a linguagem e a vida se tecem no mesmo fio”, trazendo a linguagem
como uma aventura, uma experiência que permite a apropriação do tempo e do espaço tendo o
corpo como o tecelão.

A experiência tem o valor de uma vida, onde o corpo tem seus sentidos vozificados enquanto
a dança se revela através de tensões dele próprio: uma experiência humana através da
corporeidade. O corpo acumula informações através das percepções viventes, assim interpreta
suas próprias sensações. “Se ainda se pode falar, na percepção do corpo próprio, de uma
interpretação, seria preciso dizer que ele se interpreta a si mesmo”. (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 208)

O que significa que faz suas leituras e interpretações do mundo de acordo com suas pequenas
e próprias percepções, a partir de como se organiza e se percebe como parte desse mundo.

A corporeidade nos leva à raiz, à essência do que é, como é esse corpo que dança, que se
enreda nos conflitos. Ele não é sua fisicalidade, não é fixidez, não é lugar de paragem, mas de

3
Aqui uma menção especial a dança, pois o projeto Cia Arte in Cena tinha como uma de suas atividades mais
fortes, no que tange esse aspecto da mediação de conflitos a partir da experiência cênica, a dança. Sobretudo as
danças de matrizes africanas e indígenas, que eram constantemente defrontadas como lugar proibido, maculado,
do qual não se podia aproximar. Um exemplo disso foram os estudos corporais a partir da mitologia dos orixás –
deidades africanas – cujos arquétipos simbolizam elementos da natureza.

784
travessia. Seus atravessamentos permitem os diálogos com o diferente, e, novamente, faz
poesia. A corporeidade é raiz na medida em que nos faz olhar para a linguagem no corpo,
quando identificamos que, em sua essência, ele, o corpo, não é – no sentido de Ser – mas está
sendo. O corpo é um constante “sendo” , deixando surgir no lugar poético, na essência da
ação, na poiesis, o descobrimento de Si mesmo. A essência de uma ação que chama o corpo a
ser ele mesmo próprio.

A corporeidade nos revela como seres em um limiar, um corpo próprio como presença, que
articula-se em teias, em tramas conflitantes, paradoxais, dialógicas e sempre ambivalente,
tornando situações graves em grávidas de possibilidades de mediação. Tramas que o
permitem emaranhar-se na terra, e nela agir com sentido, pois é na terra onde somos
chamados por tudo que esse corpo é e como é, para o enraizamento de Si mesmo. Essas teias,
essas tramas criam aquilo que Calfa nomeia de “tessitura poética”, uma espécie de dimensão,
de materialidade possível para dizer sobre essa fusão do corpo no poético, que o prediz como
lugar de linguagem. “A tessitura poética é o lugar onde somos chamados pela linguagem à
vigência da corporeidade, ao aprender e ensinar do corpo: chão, terra, árvore, germinação; é o
corpo em um tecer permanente, ação e transformação que se dá na tensão de terra e mundo.”
(CALFA, 2009, p. 92)

O mundo é a terra, aquilo que podemos perceber, que se dá na experiência humana, que se
exige na criação como vontade. É quando nos damos conta de que percebemos o mundo
quando as coisas ganham sentido. e elas ganham sentido quando a terra nos convoca ao
enraizamento de nós mesmos.

A exemplo disso, quando optamos por pesquisar as danças de matrizes africanas, os alunos
envolvidos no projeto Cia Arte in Cena prontamente se furtaram a dialogar. Não houve
qualquer indício de que a relação entre a “cultura diferente” e a “cultura deles próprios” fosse
acontecer. As pré-concepções dos alunos a cerca do próprio tema eram todas forjadas nos
espaços religiosos, sempre – ou quase sempre – em detrimento, em diminuição da
africanidade em si.

Esse conflito foi mediado pelas relações com a dança, incentivando os alunos a pesquisarem
os princípios básicos que estavam enredados naquelas danças circulares, cujos elementos
centrais falavam das forças da natureza, em última análise.

785
Compreendemos então que nesse corpo do movimento, nesse corpo que é em si travessia,
existe o espaço possível para discutir sobre as questões do mundo, percebendo a importância
da linguagem nas artes, especialmente nas artes cênicas. “A linguagem faz despertar na
corporeidade o diálogo, buscando no corpo o que está além da aparência” (CALFA, ano, p.
94), para que se torne, em si, presença, pois ao ser atravessado por questões, esse corpo se
torna, para a corporeidade enquanto linguagem, o lugar onde toda a sua essência habita,
produz os fenômenos que o garantem nesse estado de constante mudança. E ao se tornar
presente e dizendo através da corporeidade, então, o fundamentamos como travessia, como
processo, guiado por sua poiesis, pela essência de suas ações.

Considerações finais

A teia de relações construída a partir de experiências dos próprios indivíduos, somada ao


estudo das referências da cultura nacional, são aspectos valorizados pelo trabalho dos núcleos
de arte que encaminharam a perspectiva do diálogo para suas atividades.

Não se trata de estudar mais do mesmo sobre a cultura popular, a dança, o teatro ou outros
aspectos socioculturais compreendidos como marginais ou negligenciados, nem tampouco de
traçar perspectivas autobiográficas sobre alunos e educadores para conceber suas criações. O
que o estudo e desenvolvimento das artes fazem, nesse sentido, é trazer as memórias, as
vivências e as experiências dos indivíduos para sublimá-las através da cena, através da
apresentação/mediação de conflitos nos processos criativos.

A partir de pressupostos etnocenológicos, experimentais e poéticos, a identificação do


trabalho – em sua dimensão mais dialética – vai inaugurar pontes dialógicas entre o saber e o
fazer; vai repensar as lógicas e as poéticas engendradas nos processos de criação, de modo a
compartilhar sobre novas possibilidades de criar cenologias contemporâneas e diálogos
tolerantes a partir do encontro e dos atravessamentos culturais.

Logo, a identidade cultural é alvo de constantes provocações nos trabalhos da Cia. Arte in
Cena, numa tentativa de desvelar a relação de seus integrantes com aquilo que conhecem
sobre Si mesmos e sobre o ambiente em que vivem. Trata-se da tentativa de trazer as questões
socioculturais desse Ser social e histórico, que se pesquisa e se [re]cria na cena.

786
Sobre esse aspecto, a partir dos estudos de Deluiz (1995) podemos verificar que “(...) o
processo de formação só pode ser entendido como um processo historicamente determinado,
cujas mudanças estão intimamente relacionadas com as transformações do modo de
organização da produção (DELUIZ, p.174). Ou seja, se colocarmos os conflitos, as
desigualdades, as divergências de pensamento, as diversidades culturais como parte do
processo criativo, como parte dos processos que intermediam a cena, podemos vislumbrar as
transformações dos agentes, dos educadores, dos alunos, de todos os engajados no processo
de construção e ressignificação simbólica e social do que há de diferente existente entre si
mesmos.

Em uma de suas últimas criações, a Cia. Arte in Cena pesquisou e produziu o espetáculo
musical Agreste – alvo de boas repercussões críticas e que continua em circuito de
apresentações. Este trabalho foi criado a partir do projeto Novos musicais brasileiros, que
dentre outras questões trouxe a pesquisa sobre as influencias socioculturais dos movimentos
musicais no Brasil, da década de 60 aos dias atuais; também trouxe os paradigmas entre o
saber local e o saber global; a tradição clássica em contraposição às danças populares. Agreste
foi concebido com intenção de mediar certas zonas de conflito, através da aproximação das
pesquisas e das experiências de cada integrante do projeto com as questões religiosas, sociais,
históricas e culturais desveladas.

Referências

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005.

BERGSON, Henri. Memória e Vida. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2011.

BROOK, Peter, A porta aberta. 6ªed., Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010.

__________. O teatro e seu espaço. Rio de Janeiro: ed. Vozes, 1970.

CALFA, Maria Ignês de Souza. Tessituras Poéticas do Corpo. In: Arte: Corpo, Mundo e
Terra. Org. Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: ed. 7 Letras, 2009.

CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados, São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998.

DELUIZ, N. Formação do Trabalhador: produtividade & cidadania. Rio de Janeiro: Shape


Ed. 1995.

787
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: ed.
Perspectiva, 1995.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 3ªed., Campinas: Ed. Martins


Fontes, 2006.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: ed. Martin Claret, 1999.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.

VYGOTSKI, LS. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

788
789
Ensino Religioso: assertivas e incertezas nas escolas públicas
Jacirema Maria Thimoteo dos Santos1

Introdução

O ser humano precisa ser compreendido como um ser integral enquanto possuidor de corpo,
mente e espírito. Alguns cientistas já estão trabalhando e comprovando de que no cérebro
existe uma parte que proporciona a dimensão religiosa, ou seja, o ser humano já nasce com a
sensação da presença de um ser divino. Dessa forma, a sociedade e a educação precisam
desenvolver uma consciência coletiva acerca da dimensão religiosa como constituinte do
indivíduo. E na escola encontramos uma disciplina que proporciona a reflexão dessa
dimensão, o Ensino Religioso. A mesma precisa ser percebida como um dos espaços na
escola que, também, proporciona aprendizagem e não o espaço de “evangelização” como
ocorre em muitas escolas estaduais do Rio de Janeiro.

Dessa forma, este trabalho tem como objetivo apresentar a disciplina de Ensino Religioso
como relevante para a escola e, consequentemente, para a sociedade ao pontuá-la como um
instrumento para perceber e trabalhar o aluno no sentido antropológico, como uma pessoa
possuidora de uma dimensão religiosa e não de uma religião.

Para o cumprimento do nosso objetivo precisamos apontar algumas considerações sobre a


diferença entre religião e dimensão religiosa, o conceito de homem para a Antropologia e
como o professor de Ensino Religioso pode, enquanto professor transformador das imensas
limitações que o cerca e o oprime, compreender tais questões, fazendo de suas aulas um
ambiente saudável com o reconhecimento do outro enquanto possuidor de uma identidade.

Religião e Dimensão religiosa

O termo religião vem do latim religio e sua etimologia indica a noção de atar, estar junto, em
contato com algo (re-ligare) e diz respeito ao conjunto de dogmas e crenças de uma
determinada religião, cujo objetivo principal é unir e reunir os seus seguidores num

1
Doutoranda em Teologia pela PUC/RJ. Orientador: Professor Doutor Joel Portella Amado. Contato:
jacirema@igeo.ufrj.br.

790
determinado espaço físico que pode ser denominado por igreja, templo, centro para cultuarem
e aprenderem sobre a mesma. Como afirmou Durkheim (1996, p.4) “(...), todas as religiões
são instrutivas, sem exceção, pois todas exprimem o homem a sua maneira, e podem assim
ajudar a compreender melhor esse aspecto de nossa natureza”.

No decorrer da história, a mesma vem sendo estudada pelas ciências humanas e sociais,
autores como Tylor, Muller, Strauss, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, Weber e Durkheim
deram as suas contribuições. E vários tipos de religião foram registradas como as monoteístas
que crêem na existência de um único deus (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo), as
politeístas que crêem na existência de muitos deuses (Hinduísmo e antigas religiões do Egito
e de Roma) e as panteístas que crêem que deus está em todo o Universo, devido a tal fato
tendem a divinizar a natureza (Budismo, Jainismo, Taoísmo e Confucionismo).

É fato que a religião é uma criação do homem (alguém já falou que o homem é um fazedor de
religião), em algumas situações é por meio dela que este homem se apresenta ao mundo, por
isso podemos afirmar que a religião é um fator de integração social. É ela que dá sentido a
sua vida e respostas para alguns temas como morte, sofrimento, doença, cura, porém este
mesmo homem precisa entender que nenhuma religião tem o status de ser a melhor, a
verdadeira. Todas devem ser ouvidas e respeitadas, a experiência da diversidade religiosa é a
experiência da democracia, reconhecer o papel salutar da mesma é condição sine qua non para
a esta experiência da democracia. Sendo assim, defendemos a tese de que ela pode legitimar
ou criticar a ordem social instaurada.

E dimensão religiosa, o que seria? Uma condição inata do homem que o impele para algo ou
alguém, é atemporal, individual e não tem nenhuma relação com interesses materiais e
corporativos. Ela pode ser percebida no decorrer do tempo, em todas as culturas, quando o
homem busca o relacionamento com o Transcendente, podendo levá-lo ou não a prática de
uma determinada religião.

Neste momento, fazemos uso de uma citação da nossa dissertação de Mestrado que corrobora
para o entendimento desta dimensão:

A atitude dinâmica de abertura do homem ao sentido fundamental da sua existência, seja


qual for o modo como é percebido este sentido. Não se trata apenas de uma atitude entre
muitas: quando presente, a religiosidade está à raiz de todas as dimensões da pessoa;
melhor, está à raiz da vida humana na sua totalidade (GRUEN, 1995, p. 75).

791
Um outro autor, Meslin, afirma que “(...) o religioso pertence, portanto, ao mais íntimo do
humano. (...) constitui, como a libido, um dos fundamentos essenciais da natureza humana”
(1992, p. 37).

Sendo compreendida dessa forma, podemos pensá-la como um elemento presente no humano,
não como um elemento exclusivo das religiões, mas como um nível da Antropologia.

Tal dimensão já vem sendo estudada pela Ciência, mas precisamente pela Neuroteologia que
tem como objetivo estudar a base neural da espiritualidade. Desde o século XIX, em 1892
textos que versavam sobre a ligação entre experiência religiosa e epilepsia foram publicados.
Da mesma forma nas décadas de 50, 60, 70, 80, 90 e no século presente foram registradas
pesquisas nesta área.

Em 2006 e 2009, as revistas Superinteressante e Galileu publicaram uma reportagem com o


médico americano Andrew Newberg, autor do livro Why God Won’t Go Away (“Por que
Deus não vai embora”) sobre a questão de que o nosso cérebro é aferido para a experiência
espiritual, visto que sua arquitetura neurológica permite este fato. Esta experiência está ligada
ao lobo frontal, à região do lobo parietal, ao sistema límbico e ao hipotálamo, todos
responsáveis por sensações emotivas.

No Brasil é publicado, em 2005, o livro “A Religião do Cérebro: as novas descobertas da


neurociência a respeito da fé humana” do médico e professor titular da Faculdade de
Medicina da USP, Raul Marino Jr. Neste livro, o autor discute, também, a existência da
espiritualidade no cérebro humano, conduzindo o leitor a uma viagem pelo mesmo e
comprovando determinadas partes do cérebro estão propícias para ter um relacionamento com
o ser divino (seja qual for).

Atualmente, alguns autores, como Boff, preferem chamar tal dimensão como espiritual. Em
seu livro “Espiritualidade: um caminho de transformação” cita a definição de espiritualidade
dada certa vez por Dalai-Lama: “(...) espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma
mudança interior” (2006, p.13). Todavia, independente da nomenclatura utilizada, o que
acreditamos e defendemos é que todos os homens têm esta dimensão e que a mesma, além da
dimensão cognitiva, afetiva e social, pode e precisa ser trabalhada na escola através da
disciplina de Ensino Religioso.

792
Conceito de homem na Antropologia

Sabemos que existem divisões na Antropologia: Antropologia Biológica, Social, Cultural,


Psicológica, Linguística, Filosófica e outras. Todavia, estaremos abordando o conceito de
homem da Antropologia Científica, ciência nascida no final do século XVIII.

O objeto de estudo da Antropologia é o homem, ou seja, o estudo desse homem em relação ao


outro. Ela busca conhecer a diferença e a alteridade para nos mostrar que não existe sociedade
superior, a minha sociedade é mais uma dentro de inúmeras outras: “A descoberta da
alteridade é a de uma relação que nos permite deixar de identificar nossa pequena província
de humanidade com a humanidade, e, correlativamente deixar de rejeitar o presumido
‘selvagem’ fora de nós mesmos” (LAPLANTINE, 2007a, p. 23).

A Antropologia percebe esse homem na sua dimensão biológica, psicológica, cultural e


porque não ousar e afirmar que ela, também, o percebe na sua dimensão religiosa já que “só
pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em
consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (LAPLANTINE, 2007b,
p. 16). E busca uma explicação totalizadora do mesmo, conceituando-o como um ser social
em constante construção.

Neste momento, destacamos a importância do conhecimento da identidade para o homem


como relação social, se percebendo enquanto indivíduo diferente, singular, mas semelhante ao
ser partícipe da sociedade, pois ao interagir com o outro sofre uma ingerência de processos
sociais mais amplos, nesta hora a sua identidade se altera e se transforma na relação. De
acordo com Hall “a identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos
quando os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais
unificados e predizíveis” (1999, p. 12).

A Antropologia afirma que diferença e semelhança fazem parte da construção de identidades


saudáveis: “O diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência da
alteridade: a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura para dizer que
nem tudo é o que eu sou nem todos são como eu sou” (BRANDÃO, 1986, p. 7).

A partir destas questões podemos afirmar que o professor de Ensino Religioso pode trabalhar
em suas aulas esta visão de homem singular numa pluralidade, possuidor de uma dimensão

793
religiosa que pode se desdobrar em uma religião, mas sabedor de que a sua religião não é a
Religião, é apenas mais uma em um universo de milhares.

O Professor e o Ensino Religioso no Estado do Rio de Janeiro

O Ensino Religioso é um componente curricular com amparo legal na Carta Magna do Brasil,
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Art. 210 parágrafo 1º), na Lei nº
9394/1996 (Art. 33 que recebeu nova redação na Lei nº 9475/1997) e a Resolução nº 7/2010
que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos. Ele está
inserido na escola como uma disciplina a ser oferecida na mesma, porém com algumas
particularidades que acaba culminando em seu descrétito: durante séculos foi utilizada como o
ensino da religião oficial do Brasil; é a única disciplina citada na Constituição Brasileira; é
facultativa aos alunos e no caso do Estado do Rio de Janeiro é confessional, ou seja, a turma é
dividada pelos diferentes credos.

Devido a tais fatos que a escola tem uma concepção errônea da disciplina, concordamos com
Cunha quando afirma que “antes de ser uma questão propriamente religiosa ou mesmo
pedagógica, a presença da religião na escola pública é uma questão política, com antigas e
profundas raízes históricas” (2006, p.1250). Porém, tais fatos não podem impedir que essa
escola que tem como prática pedagógica inferir na sociedade uma transformação, libertando-a
da opressão imposta pela hegemonia dominante, não insira no seu Projeto Político
Pedagógico o Ensino Religioso enquanto disciplina que colabora, também, na visão holística
do ser humano, ou seja, que o percebe como ser integral, compreendendo que a dimensão
religiosa, além das dimensões cognitivas, afetivas e sociais, está intrínseca no mesmo.

O que percebemos é que a escola privilegia apenas o conhecimento cognitivo, prepará-lo para
a “competição” chamada vida, esquecendo que nessa “competição” ele, com certeza, terá
contato com o outro, crises existenciais aparecerão e será que os professores que lecionam as
disciplinas de Matemática, História, Português, Física, Química e outras trabalharão em seus
currículos tais questões?

Acreditamos que a disciplina, a priori, possui o objetivo de trabalhar o sentido da vida,


algumas questões que inquietam o ser humano (quem sou eu? de onde eu vim? para onde eu

794
vou?) e as relações humanas, mostrando que a diversidade religiosa do nosso país não pode
ser ensinada em sala de aula e sim respeitada.

E foi, justamente, por acreditar que em nossa dissertação de Mestrado defendemos a


relevância do Ensino Religioso na escola e no último capítulo apresentamos três propostas de
Ensino Religioso (FONAPER, Educação da Religiosidade e Confessional), esta última é a que
está em prática no Estado do Rio de Janeiro desde a promulgação da Lei Estadual nº
3459/2000. Seu objetivo principal é trabalhar as religiões de cada grupo, pois sua proposta é
ter um professor de cada credo nas escolas para poder ministrar as aulas com os alunos de seu
credo, confirmando, assim, o fortalecimento da sua religião e o afastamento das demais.
Infelizmente, isto é uma prática verdadeira, muitos professores oferecem um ensino
catequético sem nenhuma reflexão. Durante 6 anos vivenciamos, como professora de Ensino
Religioso, esta situação sem concordar e procurando fazer a diferença nas nossas aulas.
Propomos na nossa dissertação a relação do Ensino Religioso com a Educação para a
Solidariedade, educação esta que leva o aluno a perceber que o outro existe e não pode ser
descartado, diminuído por conta de uma crença diferente da sua. Nossa intenção era e é
trabalhar com uma proposta que transponha o referido impasse confessional, que ofereça uma
formação de valores éticos e morais para fazer a diferença nesta sociedade.

O professor de Ensino Religioso precisa compreender que a sua disciplina é de suma


relevância para a superação de tantas mazelas que existem na nossa sociedade, que valorize o
pluralismo e a diversidade religiosa presentes na sociedade brasileira, no dizer de Bacha:

A importância do Ensino Religioso pode ser destacada sob três principais ângulos: pelo
ângulo da formação (desenvolvimento de uma harmonia do ser humano consigo mesmo,
com os outros, com a natureza, com o mundo e com o transcendente), pelo ângulo da
prevenção e correção dos desvios da atitude religiosa (evitando fanatismos
fundamentalistas e exclusivismos sectários), pelo ângulo do diálogo (desenvolvimento em
grau máximo o respeito à alteridade) (2000, p. 13-14).

E que a mesma tem a possibilidade de estabelecer diálogo para a construção de uma sociedade
que escape da ideologia dominante do atual sistema em que vivemos, que inclua mais ao
invés de excluir.

Sendo assim, o Ensino Religioso precisa ser separado da religião, correspondendo assim a
liberdade religiosa do nosso país, citada no artigo 5º parágrafo VI, para poder proporcionar
uma educação para a autenticidade do próprio ser humano, pensar esse humano na sua

795
totalidade (proposta da Antropologia) e no relacionamento consigo mesmo e com o outro.
Uma educação para a maturidade pessoal e social, para a convivência na comunidade humana,
com abertura para o diferente. Uma educação para a tolerância:

A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário; por isso é
necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância
centrados nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância,
que expressam as causas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de
educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e
da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos,
linguísticos e as nações (UNESCO, 1995).

Considerações finais

Através do exposto pudemos constatar que o ser humano é, por natureza, um homo religiosus.
Dessa forma, inicio as nossas considerações finais com uma pergunta: A disciplina de Ensino
Religioso pode ser percebida na escola/sociedade como um instrumento potencializador para
trabalhar todas as dimensões do ser humano e, em especial, a dimensão religiosa de uma
forma ética, não se opondo a diversidade religiosa do povo brasileiro?

Com certeza! O Ensino Religioso enquanto disciplina da Educação Básica está pautado nos
ideais da cidadania que procura equalizar as desigualdades existentes na nossa sociedade e
utilizando-se do projeto antropológico de perceber o homem e a sociedade como seres
singulares e plurais, o professor poderá em suas aulas acolher a diversidade religiosa.

Nesse sentido, este trabalho tange a possibilidade de se construir um espaço a mais de


reflexão do Ensino Religioso, apresentando o mesmo com um papel a cumprir no
desenvolvimento integral do aluno, contribuindo na formação de uma consciência crítica
capaz de levá-lo a ter novas perspectivas de análise dos fatores sociais, culturais, políticos e
religiosos, ou seja, fazer uma releitura sem erigir um ou outro fator.

796
Referências

BACHA F. Teófilo. Ensino Religioso na Escola Pública de São Paulo. Curitiba: IESDE,
2000.

BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante,


2006.

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cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Austrália. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

GRUEN, Wolfgang. O Ensino Religioso na escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

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Guaracira Lopes Louro. 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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Paulo: Brasiliense, 1988.

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fé humana. São Paulo: Editora Gente, 2005.

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religiosa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

Artigo em revista

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São Paulo, p. 20-21, 2006.

__________. Ter fé é coisa da sua cabeça. Galileu (Editora Globo), nº 213, Rio de Janeiro, p.
15-17, 2009.

Tese e dissertação

SANTOS, Jacirema Maria Thimoteo dos. Ensino Religioso e a Educação para a


Solidariedade. Orientação de Jung Mo Sung. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Religião), UMESP, São Bernardo do Campo, 2007.

797
Artigo na Internet

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internacional. In: Educação e sociedade, Campinas, V. 27, n. 97, set./dez. 2006. Disponível
em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 10 de jun. 2013.

UNESCO. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Paris, nov. 1995. Disponível em


http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf. Acesso em 23 de jun. 2013.

Lei

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional. Diário


Oficial de 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei nº 9394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Congresso Nacional.


Diário Oficial de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Lei nº 9475. Congresso Nacional. Diário Oficial de 22 de julho de 1997.

BRASIL. Resolução nº 7 da Câmara de Educação Básicado Conselho Nacional de


Educação. Congresso Nacional. Diário Oficial de 09 de dezembro de 2010.

RIO DE JANEIRO. Lei nº 3459. Câmara dos Deputados Estaduais. Diário Oficial de 14
de setembro de 2000.

798
799
Ensino religioso: ciência e religião na atuação de professores

Kellys Regina Rodio Saucedo1, Vilmar Malacarne2

Introdução

A proposta para o Ensino Religioso para as séries iniciais do Ensino Fundamental, como está
estruturada atualmente, tem suas raízes na alteração do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, LDB nº 9394/96, por meio da Lei nº 9475/97. Desde então o Ensino
Religioso passou a configurar como disciplina dos horários normais das escolas públicas,
sendo assegurado o ensino laico, livre de proselitismos, pautado no respeito a diversidade
cultural religiosa dos povos3 (GARUTTI, 2006; DERISSO, 2009; JUNQUEIRA, 2012).

Em resposta aos princípios e fins para organização da educação nacional, instituídos pela
atual LDB, um conjunto de regulamentações foram desencadeadas, em específico o Conselho
Nacional de Educação (CNE), por meio da Resolução n.º 2/98-CEB, organizou as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, integrando o Ensino Religioso entre as
dez áreas de conhecimento que compõem o Currículo Escolar do Ensino Fundamental.

Por consequência desta nova legislação, algumas inquietações afloraram principalmente em


decorrência da obrigatoriedade de oferta. Passou-se a questionar, entre outras coisas, qual a
função do Ensino Religioso na escola e qual sua relação nos processos de formação de
professores e alunos.

Em relação ao ambiente escolar, especificamente no Estado do Paraná, foram estabelecidas as


normas para o exercício da docência do Ensino Religioso nos anos iniciais, preferencialmente,
para o graduado em Pedagogia (Deliberação nº 01/06 do Conselho Estadual de Educação).
Por conseguinte, uma problemática centraliza as reflexões deste artigo sobre a formação
inicial dos professores de Pedagogia, a saber: como estes estão sendo preparados para “...

1
Aluna do 4ª ano de Pedagogia e do PPG em Educação/UNIOESTE. Bolsista CAPES/DS. Integrante do GP
FoPeCiM. Contato: gildone@hotmail.it
2
Doutor em Educação. Docente do PPG em Educação/Mestrado/CECA da UNIOESTE. Pesquisador do GP
FoPeCiM. Contato: vilmar.malacarne@unioeste.br.
3
A Lei nº 9475/97 também removeu a expressão “sem ônus para os cofres públicos” que desobrigou o Estado da
responsabilidade pela contratação de professores. Essa ação pressupõe o tratamento pedagógico da disciplina,
invalidando as práticas confessionais.

800
abordar temas polêmicos e de difícil aceitação por parte de muitos, tratando de questões de
natureza e objetivos ainda não suficientemente demarcados”? (GARUTTI, 2006, p. 136).

Para compreensão de alguns dos elementos apontados acima este texto se volta para a
investigação da história do Ensino Religioso no Brasil e de sua normatização com o intuito de
adquirir instrumentos capazes de contextualizar e interpretar as transformações no cenário
nacional, considerando a multireligiosidade e a oficialização de uma prática pedagógica laica
e representativa de todos os grupos sociais, religiosos ou não. Num segundo momento serão
pontuadas algumas pistas de como a formação científica dos cursos de licenciatura podem
limitar as possibilidades de entendimento de conhecimentos diferentes da realidade
acadêmica, mas presente nos corredores escolares, como é o caso das crenças religiosas de
alunos e, porque não dizer, de muitos dos professores.

Ensino Religioso: legislação e formação

No Brasil o Ensino Religioso tem suas origens na colonização portuguesa. O método


pedagógico dos Jesuítas evidenciava a educação baseada em regras religiosas. Toda a
orientação e os objetivos do Ratio, assim como a criação das escolas, visavam à ação de
ensinar (educar) para a salvação das almas. Tais princípios religiosos do Catolicismo
formataram a educação do Brasil Colônia e se desdobraram nos séculos seguintes. Com a
expulsão da Companhia de Jesus as atividades educacionais limitaram-se a poucas escolas e
as aulas régias4.Paralelo a tudo isso os debates para criação de um Sistema Nacional de
Ensino adequado ao Império do Brasil acontecia na Assembleia Constituinte.

A Constituição Brasileira de 1824 resguardou o posto de religião oficial ao catolicismo e as


demais práticas religiosas eram permitidas no interior das casas. Em 1891, o espaço público
para a manifestação religiosa passou a ser permissível, também, nos cemitérios5. A mesma
legislação que permitia a manifestação religiosa nos espaços públicos não contemplou sua
regularização na educação pública escolar, gerando enormes lacunas nas várias regiões do

4
As aulas régias integram a Reforma Educacional realizada pelo Marquês de Pombal, primeiro ministro de
Portugal de 1750-1777. As aulas régias apresentavam conteúdos de Latim, Grego, Filosofia e Retórica.
(XAVIER, 1980, p. 22).
5
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 26 de fevereiro de 1891. Parágrafo 5º, Art. 72: “Os
cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre todos os cultos
religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e
as leis”.

801
país. Isso significou que o período da Primeira República (1889-1930) desfrutou de muitas
reformas, mas de mínima democratização do ensino.

O universo político, econômico e educacional girava em torno da Igreja e esta traçava as


diretrizes educacionais, sob o reforço de estar cumprindo sua “função histórica” e, a
justificativa de ser “o cimento da nacionalidade e da ordem”. (HILSDORF, 2003, p. 82).

Com a Constituição de 1934 a aliança entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica foi
reafirmada, garantindo na legislação espaço privilegiado, que pode ser conferido na Lei de
Diretrizes e Bases para Educação Nacional – LDB nº. 4024/61. Esta LDB sustentava as aulas
de religião na doutrina católica apostólica romana, sendo a matrícula facultativa, pois havia a
ideia de que com este posicionamento os alunos que decidissem não frequentar essas aulas
teriam a oportunidade de desenvolver outras atividades paralelas.

A Lei nº 5692/71 instaurou algumas mudanças significativas no currículo do Ensino


Religioso, foram acrescentados aos dogmas cristãos a conduta ética e os valores humanos.
Muito embora a intenção de criar um espaço ecumênico, que permiti-se estudar outras
confissões de ordem cristã, ficou muito distante de uma abordagem que considerasse a
diversidade religiosa brasileira.

No processo Constituinte de 1988 o Ensino Religioso tem mantido seu caráter facultativo,
mas passa a ter os pressupostos de ensino norteado não mais por uma ou outra religião e, por
isso foi adotado o ensino confessional e interconfessional. Contudo, somente em 1997 a
garantia do respeito a diversidade religiosa ocorreu, afastando da escola o caráter confessional
da disciplina, com a Lei nº 9475/97, e uma nova redação registrou-se no artigo 33 da LDB nº
9394/96, sendo resignificada a concepção de ensino e disciplina:

O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do


cidadão, constitui disciplina dos horários normais das escolas pública de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas
quaisquer formas de proselitismo.

A diversidade religiosa desta maneira é, ou pelo menos deveria ser, ensinada livre de
condicionantes e passa a ter assegurada na letra da lei a proibição de propagandas em defesa
de ideias ou crenças religiosas pessoais no ambiente escolar. Com isso, inaugura-se um novo
período para o Ensino Religioso e seus reflexos são sentidos até o momento atual.

802
Outra alteração esta relacionada a contratação dos professores da disciplina. No Estado do
Paraná o Ensino Religioso era ministrado, até meados da década de 1990, nas escolas públicas
por agentes de várias áreas ligados a instituições religiosas que deveriam requerer o horário
para oferta de ensino confessional.

A partir da já mencionada Deliberação nº 01/06 do Conselho Estadual de Educação, duas


orientações regem a contratação de professores para o Ensino Religioso, sendo: (i) nos anos
iniciais para o graduado em Pedagogia e, (ii) nos anos finais para os professores com
formação em Ciências Humanas. Em relação aos estabelecimentos de Ensino Fundamental, as
diretrizes curriculares em todo país são reformuladas e repensadas, considerando a pluralidade
cultural e religiosa das diferentes tradições, sejam elas: nativas, africanas, ocidentais,
orientais, ateístas ou agnósticas.

Essas preocupações passam a ser um ponto positivo para a criação de um espaço de diálogo,
sendo preciso, agora, efetivá-lo a partir de um ensino que cultive o respeito às diversas
manifestações religiosas, mas para isso algumas mudanças precisam acontecer na formação
dos professores.

Se perguntássemos aos professores sobre a importância de diretrizes voltadas para educação


que priorizem pelo respeito à diversidade cultural, muito embora seja mais significativo
refletir sobre como esta diversidade tem sido pensada pelos professores, a resposta imperativa
seria sem dúvidas para sua aplicação. Considerando o ambiente escolar como um espaço
diverso caracterizado pela coexistência de culturas, quer seja do aluno, do professor e do
conhecimento científico sistematizado, esse universo implica na necessidade da atuação de
um professor capaz de lidar com tamanha diversidade. Neste universo, questionamos-nos:
existem professores qualificados para socializar os conhecimentos da diversidade cultural
religiosa nas escolas públicas, pensando a expressividade de teorias científicas e culturais que
coexistem? O que existe de concreto na base curricular nos cursos de formação inicial?

Aqui, apresentamos alguns questionamentos que merecem um olhar criterioso sob a pena de
permanecerem arraigados a princípios que pouco contribuem para a superação de elementos
segregadores ou demasiadamente desvinculados do diálogo com a cultura e sua história. E,
nesse caso, as consequências seguem por via de mão dupla, como ressalta Fonseca (2006, p.
12) “a educação científica é prejudicada, não pela entrada da discussão religiosa, mas pela

803
ausência de um processo dialógico que possa contribuir para a reflexão e reconstrução
contínua de conhecimentos [...]”.

Qual a função do Ensino Religioso?

Um olhar detalhado sobre a história da humanidade demonstra que na rotina social, religião e
vida se confundiam. A lei e as regras morais eram regidas pela vontade dos deuses e na arte
ou nos rituais fúnebres, por exemplo, revelava-se parte da linguagem do homem com o
sagrado. Quase todos os grupos humanos que se tem registro elaboraram teorias para
responder seus anseios e expectativas quanto ao binômio: vida e morte. Nos estudos
vinculados as ciências sociais, da pré-história até a vida contemporânea o homem expressou
momentos significativos da dimensão religiosa.

Na contemporaneidade mesmo com o avanço da ciência e da tecnologia o fenômeno religioso


sobrevive e cresce em diversas facetas, desafiando as previsões do seu fim. Quando se reflete
sobre essa questão, entendemos que ciência e religião são fenômenos presentes na cultura e na
história das sociedades humanas. Por outro lado, a existência, a intensidade e a frequência
deflagrada na fala das pessoas é que motiva a investigação científica de temáticas associadas
ao sagrado e ao universo cultural. Sem o olhar cauteloso, rigoroso, criterioso e analítico do
pesquisador as relações entre ciência e religião permaneceram no espaço das práticas
cotidianas dos indivíduos em sociedade, sem avançar, principalmente na modernidade, na
sistematização desses saberes e no quanto isso infere na dimensão formativa do homem e em
suas relações individuais, civis e sociais.

A escola constitui uma parte da sociedade e as relações entre os indivíduos explicitam seus
desejos, sonhos, crenças, sentimentos e a forma com que usam essas valorações para
responder as situações a que estão expostas na materialidade e no mundo. Conforme Teves
(1992, p. 6) há séculos o ideário racional procura eliminar “... as crenças, as fantasias, os
fantasmas que possam povoar e iludir a razão humana”, entretanto essa ação na concepção da
autora implica a falsa visão de que a realidade se esgota em uma única vertente de
conhecimento, desta forma:

O que se perde com esse tipo de raciocínio é a visão da riqueza da função reflexiva da
inteligência humana: constituir-se por uma gama de modalidades de conhecimento:
sensível, intelectual, imaginário, judicativo, intuitivo. [...] conhecer uma realidade é,

804
portanto, reconhecê-la como historicamente determinada, constituída por sujeitos que a
representam, a simbolizam (TEVES, 1992, p. 7).

Conhecer uma realidade é compreender a construção histórica em torno dos sujeitos e,


portanto além do ideário racional a realidade apresenta as reflexões e ações humanas frente
aos seus desejos, expectativas e crenças. Auxilia quando no espaço escolar na reflexão sobre
sua ação pedagógica em sala de aula, podendo interferir positiva ou negativamente sobre
determinado conteúdo ou conduzir de maneira inadequada as disciplinas da grade curricular.

Quando a escola prioriza um conhecimento em detrimento de outro, incorre no mesmo deslize


que o mito da certeza racional cartesiana instaurou. É função da escola promover o
conhecimento e o diálogo das relações que o homem estabelece com sua própria
existencialidade, os valores que abarcam e norteiam suas ações em sociedade e como isso
interfere no seu cotidiano em sociedade.

Quando o professor, agente mediador do diálogo, desconhece a história, as causas, as


motivações e, especificamente a relação que o homem mantém ou não com o sagrado as
consequências, em geral, condicionam a polarização de diferentes posições religiosas. Faria
Filho (2007, p. 201) explica que no Brasil as culturas escolares não podem ser entendidas se
deixarmos de lado, por exemplo, “(...) a forma muito particular como os sujeitos escolares se
apropriaram das tradições religiosas e científicas” isso tanto para a produção de nosso
pensamento pedagógico, quanto na organização das práticas escolares ou mesmo na produção
de sentidos no interior das experiências de escolarização. A religião não deve ser um
obstáculo à educação científica. Por outro lado, ensinar religião (também) no espaço escolar é
permitir que os alunos possam ir além da mera cientificidade moderna, assim como que tais
conhecimentos possam encontrar sentido existencial inclusive via religiosidade.

Ciência e Religião: a formação de professores

Os debates entre Ciência e Religião agravaram-se com maior intensidade a partir do


Renascimento e persistem na contemporaneidade. Entretanto o rompimento entre essas duas
formas do pensamento humano não levaram a eliminação de uma ou outra, pois andam
linearmente em praticamente todos os ambientes.

805
Ciência e Religião são construções sociais, a primeira evoca o dado empírico, a
experimentação, a rigidez e a segunda o transcendente, o invisível, o sentimento, a
existencialidade dos sujeitos. Nos últimos vinte anos em várias áreas de formação acadêmica
a preocupação com questões que envolvem ciência e religião tem exigido esforços para
encontrar respostas ou variáveis que satisfaçam professores e alunos, em consonância com a
diversidade cultural e religiosa dos povos.

Na Califórnia, em 1981, o Center for Theology and the Natural Sciences com a missão de
“apoiar a interação mútua e criativa entre teologia contemporânea e as ciências naturais”
investiu no Programa de Cursos de Ciência e Religião em que o compromisso é “[...] instaurar
o diálogo sobre questões de interesse mútuo entre teólogos, filósofos, historiadores,
acadêmicos de estudos religiosos, éticos e de humanidades com cientistas” (BENNETT, 2003,
p. 29).

A educação transdiciplinar favorece a ampliação do campo de descobertas. Conforme Bennett


(2003, p. 30) “[...] o diálogo entre ciência e religião é necessariamente multi e interdisciplinar.
Envolve [...] tradições religiosas múltiplas e, às vezes, é inter-religioso”. Da natureza às
relações sociais na história existem expressivas suposições que implicam a invocação da
ciência e da religião. A título de exemplo, existem pesquisas que defendem a significação
positiva da religião para a expansão da ciência, podemos citar, por exemplo, as de David
Lindberg e Ronald Numbers (1986). Roy Clouser (1991) procura determinar questões entre
ciência e religião que interajam construtivamente, “[...] com cada uma oferecendo algo de
valor intelectual à outra” (RUSSELL; McNELLY, 2003, p. 61).

No Brasil os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Ciências Naturais (1997)


indicam a importância da inclusão de elementos da história para compreensão de aspectos da
cultura que tenham influência sobre a vida e a pesquisa de cientistas, indicando ser “[...]
possível verificar que a formulação, o sucesso ou o fracasso das diferentes teorias científicas
estão associadas a seu momento histórico” (p. 24). Essa orientação para o estudo do contexto
histórico sugere a participação de alunos e professores em atividades de investigação
científica inseridas em uma abordagem contextual do Ensino de Ciências em aspectos
históricos, filosóficos e culturais. No entanto, um expressivo número de professores e
pesquisadores ainda distinguem o ensino de ciências do ensino religioso de forma puramente
excludente. Essa visão reducionista, em geral, representa a concepção de que o cientista se
constitui alheio ao movimento da história, conforme Bennett (2003):

806
[...] a relação entre ciência e religião tem influência na vida, nas preocupações e no bem-
estar de todas as pessoas e instituições ao redor do mundo. Os que, porém, tentam isolar a
ciência, protegendo-a contra as corrupções percebidas da religião, e os que tentam rejeitar a
ciência, como imposição do secularismo à religião, vivem uma vida ingênua. (p. 31).

Para Malacarne (2011) um processo formativo fragmentado, que não considere a produção de
conhecimentos em seu conjunto ou ignore “[...] o papel da religiosidade na formação do
indivíduo e na constituição da sociedade” (p. 238) resulta em dificuldades por parte do
professor em abordar temas tanto em aspectos científicos quanto religiosos. Numa espécie de
corrente e, não necessariamente (porque essas questões podem simplesmente serem deixadas
de lado), mas sim “[...] a dificuldade do professor se transforma em dificuldade para o
aprendizado do aluno e, por consequência, em falta de clareza para o trato das questões que
envolvem estes segmentos no conjunto da vida e na própria produção de conhecimentos”
(MALACARNE, 2011, p. 238).

Por outro lado, um professor que defende as conquistas científicas acima de outras formas de
conhecimento, também interfere sobre a crença dos seus alunos. Nenhuma das condições
mencionadas são prudentes, pois se chocam e, fazem do ensino uma relação conflituosa entre
ciência e religião. Cabe ao professor empreender um diálogo baseado no respeito à
diversidade religiosa do aluno, consciente de que para isso não precisa excluí-los das
explicações científicas sobre determinado assunto.

Os objetivos para o estabelecimento de uma distinção e ao mesmo tempo do diálogo entre


ciência e religião dependem estruturalmente de como acontece a formação inicial dos
professores que exercerão a docência das disciplinas e, mais especificamente do Ensino
Religioso.

Considerações finais

As religiões, também, expressam o cotidiano cultural de um país, logo a riqueza e os conflitos


decorrentes desse diversidade são elementos essencias para construção de saberes e leituras
acerca dos múltiplos conhecimentos produzidos por essa prática.

A existência de uma relação estreita entre o profissional que ensina e a disciplina ensinada,
sem que isso gere conflitos de interesse entre o professor e a pessoa deste professor – e que

807
poderá ter alguma predileção por uma determinada crença – resulta na exploração de
conceitos claros, métodos revisados periodicamente e os saberes são compartilhados para
contribuir e ampliar a formação do indivíduo. Conforme Greschat (2005),

[...] a religião e a ciência podem ter aspectos convergentes e não apenas divergentes.
Embora a ciência trate de realidades empíricas, físicas e visivelmente comprováveis através
de seus métodos, não se pode descartar a importância da religião, não apenas na formação
da cosmovisão de um povo e de uma sociedade, mas também no fato de que a religião tem
contribuído e há de contribuir para a ciência, não apenas pela forma e pela metodologia de
refletir, mas no tipo de diálogo que pode existir e ser implementado entre ambas as espécies
de ciência (p. 161).

O autor sugere o estímulo da “prática científica” e sua relação com a religião para identificar
problemas e encontrar resultados que contribuam para o diálogo entre os dois saberes que
compõem o ser humano. Segundo Guimarães e Oliveira (2011, p.77) a necessidade de relevar
os saberes construídos pela ciência e tecnologia “... como meios para o desenvolvimento
econômico, político e social de uma população é inegável, porém, é preciso ter um olhar
crítico para não divulgar a ideia de que tanto uma quanto a outra trazem apenas benefícios
para humanidade”.

A superação dos limites que envolvem o discurso de superioridade benéfica daquelas formas
de conhecimento é atribuída a escola e pode ser desenvolvida na disciplina de Ensino
Religioso. Por isso, a necessária qualificação de profissionais que contribuam para
compreensão das diferentes concepções, incluídas as questões de ciência, tecnologia e
identidades religiosas dos seus alunos. Quando a formação inicial não contempla tais
exigências a conseqüência é a polarização dos saberes, podendo o professor se expressar com
demasiada visão reacionária ou sendo liberal demais (GARUTTI, 2006).

A superação de uma visão fragmentada torna possível o encontro coletivo entre as diferentes
concepções de mundo e vida em sociedade. Talvez essas afirmações não se constituam
novidades, mas sim necessidades imediatas para o avanço na formação inicial dos professores
e na afirmação da disciplina no currículo com a devida importância que esta tem para
consciência e o conhecimento dos valores humanos em cada tradição religiosa, expressão da
cultura plural do nosso país e da nossa história.

808
Referências

BENNETT, Gaymon. Introdução. In: PETERS, Ted; BENNETT, Gaymon (orgs.).


Construindo Pontes entre a ciência e a religião. Tradução Luis Carlos Borges. São Paulo:
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811
812
Identidades religiosas na escola pública: uma análise etnográfica
do cotidiano escolar
Bóris Maia6, Patrícia Marys7

1. Introdução

O debate sobre a presença da religião e suas modalidades de aparecimento no espaço público


tem ocupado um lugar de destaque nas ciências sociais brasileiras. Havendo, em grande
medida, um consenso nessa literatura no que diz respeito à superação da dimensão prescritiva
que informava o paradigma weberiano da secularização, muitos desses estudos têm se
dedicado a compreender as diferentes conexões que a religião estabelece com as demais
dimensões da vida social na contemporaneidade8, em particular na sociedade brasileira.

A regulação da religião por parte do Estado, assim como os efeitos que tal regulação
desencadeia na própria organização e estruturação do campo religioso – e mesmo nas práticas
e crenças que ganham ou não o status de “religião”, como mostram Maggie (1992) e
Giumbelli (1997) –, evidencia como as instituições estatais tem desempenhado, no Brasil, um
papel ativo na conformação de uma gramática pública que define quando e quais
pertencimentos religiosos são legitimamente acionados por diferentes atores sociais no espaço
público.

No Rio de Janeiro, o debate sobre a laicidade do Estado ganhou uma nova impulsão a partir
da criação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), em 2008, que vem
construindo uma agenda de enfrentamento à intolerância e de reconhecimento de direitos à
liberdade religiosa a partir de demandas ao poder público, em especial, à Polícia e ao Poder
Judiciário (MIRANDA, 2010; 2012).

Dentre as muitas instituições estatais que suscitam controvérsias quanto ao lugar que a
religião pode ou não ocupar, ganha destaque a escola pública. Com a ascensão das ideias
iluministas na Europa do século XVIII, a instituição escolar torna-se progressivamente o lugar

6
Mestrando do PPG em Antropologia pela UFF. Bolsista CNPq. Pesquisador do Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC), e do Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP). Contato: borismaias@gmail.com.
7
Graduanda em Ciências Sociais pela UFF. Bolsista PIBITI/UFF. Pesquisadora do Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC), e do Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP). Contato: patriciamaarys@gmail.com.
8
Para uma concisa apresentação e defesa dessa abordagem, ver Birman (2003).

813
dedicado a socializar as crianças com os valores cívicos e laicos, ganhando uma vital
importância para a implementação da cidadania como instituto garantidor dos direitos
fundamentais do projeto político moderno de sociedade (RESENDE, 2008).

Neste trabalho pretendemos mostrar como a pluralidade de pertencimentos religiosos dos


atores é acionada em diferentes contextos no ambiente escolar, em contraposição à ideia
normativa da escola como espaço laico que orienta a percepção hegemônica a partir da qual
tal instituição é concebida no plano da esfera pública9. A partir de etnografias realizadas em
duas escolas situadas no Estado do Rio de Janeiro, nossa problemática inicial consistia em
compreender as formas como os atores ajustavam, desajustavam e se apropriavam das
representações sobre "religiosidade", "laicidade", "África" e "negro", buscando conceder uma
atenção aos modos pelos quais os múltiplos pertencimentos (religiosos, raciais, étnicos, etc.)
são, ou não, ressignificados a partir de novos dispositivos pedagógicos que vinham sendo
introduzidos no ambiente escolar, notadamente a disciplina de ensino religioso e o ensino de
história e cultura afro-brasileira10.

Deve-se ressaltar que as escolas de que trataremos neste trabalho possuem perfis bastante
diferenciados. Em primeiro lugar porque estão situadas em cidades que apresentam contextos
sociais e econômicos distintos. Uma das escolas se localiza em uma área rural e a outra em
uma área urbana. Além disso, o público das escolas é diferente no que concerne à idade dos
alunos, pois contemplam níveis de ensino diferentes da Educação Básica. Portanto, o público
de uma das escolas é constituído sobretudo por crianças, enquanto o de outra é formado
majoritariamente por adolescentes11.

Considerando todas essas diferenças, ainda assim é possível identificar dinâmicas semelhantes
na maneira pela qual as instituições lidam com os pertencimentos religiosos que são
acionados pelos diversos atores que compõem o ambiente escolar, como buscaremos mostrar
na descrição etnográfica de duas escolas públicas onde realizamos nosso trabalho de campo.

9
A esfera pública é entendida como o universo discursivo no qual ideias e normas são difundidas e submetidas
ao debate público, já o conceito de espaço público equivale ao campo de relações, fora do espaço doméstico,
onde ocorrem as interações sociais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002).
10
Esse era o escopo geral dos dois projetos sobre escola que participamos, desenvolvidos no NUFEP, a saber:
Identidades e Intolerâncias no espaço escolar: repensando as formas de administração de conflitos, aprovado
no Edital FAPERJ n. 21/2010 – Programa de Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas, coordenado pela
professora Ana Paula Mendes de Miranda; e A administração institucional de conflitos no espaço escolar:
alteridade e (in)diferença no espaço público fluminense, aprovado no Edital FAPERJ n. 16/2011 – Programa de
Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas, coordenado pelo professor Fábio Reis Mota.
11
No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), são considerados crianças todos
aqueles entre 0 e 12 anos de idade incompletos; e adolescentes todos aqueles entre 12 e 18 anos de idade.

814
2. Etnografia nas escolas

2.1 Escola 1: CECS

A primeira escola de que trataremos neste artigo é o Colégio Estadual CS (CECS)12, que está
localizado em um bairro próximo à região central de um dos municípios pertencentes à
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nosso contato com tal escola deu-se em função do
trabalho de campo realizado por Maia (2011), cujo objetivo então era perceber como os
conflitos de natureza étnico-racial-religiosa seriam administrados nas escolas públicas do Rio
de Janeiro, tomando as aulas de ensino religioso como lócus privilegiado de análise.

O CECS é uma das escolas públicas mais tradicionais e concorridas da cidade, sendo a
primeira opção de muitas famílias, entre as escolas públicas, para matricularem seus filhos. A
escola possui cerca de 2900 alunos, 156 professores e 37 funcionários, funcionando nos
turnos da manhã, da tarde e da noite. O turno da manhã é exclusivo para o ensino médio e o
turno da tarde para o ensino fundamental. O turno da noite também tem aulas do ensino médio
regular, mas é voltado sobretudo para o EJA (Educação de Jovens e Adultos) e para cursos
profissionalizantes.

O público principal da escola – os alunos – é, na maior parte, oriundo de três “comunidades”13


próximas da escola. De acordo com a diretora, isso é uma dificuldade que a escola enfrenta,
pois essas “comunidades são rivais”. Fora da escola, ela dizia, “quem é de um lugar, não pode
brincar com quem é de outro. Por exemplo, as meninas não podem namorar quem é de outra
comunidade”. No entanto, segundo a diretora, a escola conseguia lidar bem com essa situação,
evitando que esses problemas “entrem” na escola. Há também alunos que moram em lugares
mais distantes, mas optam por estudar na escola em função da alta qualidade que atribuem a
ela. Em conversas com alunos sobre a escola, eles sempre enfatizavam que o CECS era uma
escola melhor do que as demais escolas públicas que conheciam.

O Colégio Estadual CS contou, durante a pesquisa, com três professoras de ensino religioso:
Lourdes, Angélica e Paula. As três são católicas – informação que nos foi dada pelas mesmas
e pela diretora - e “dão aula” para diversas turmas, desde o ensino fundamental até o ensino

12
Tanto o nome da escola como o de todos os personagens que aparecem durante a etnografia dessa escola são
fictícios.
13
Categoria usada para se referir às áreas de habitação localizadas em favelas e morros do Estado.

815
médio. Cada turma tinha um tempo de cinquenta minutos de aula de ensino religioso por
semana.

No início do ano, a “recepção de boas-vindas” aos alunos foi inteiramente planejada pelas
professoras de ensino religioso. Tratou-se de um evento onde foram convidados um padre e
um pastor para darem as boas-vindas aos alunos. Os alunos foram colocados no pátio situado
a frente da sala dos professores. A diretora-adjunta foi a primeira a falar, ressaltando a
importância dos alunos para a escola e a importância dos “valores corretos” para uma “boa
escola”; depois falou Lourdes, que tratou de apresentar o pastor e o padre, que falaram em
seguida; o padre fez uma reza, pedindo que os alunos o acompanhassem; o pastor fez uma
oração, em tom mais descontraído, tentando ganhar, pela simpatia, a atenção dos alunos, que
pouco davam importância para os convidados; Angélica falou depois, mostrando a
importância da harmonia para o fim da intolerância que vinha se tornando mais freqüente, e
chamou uma aluna para fazer uma oração no microfone; por fim, Paula agradeceu a presença
de todos e desejou um “ótimo ano letivo para todos”. Para terminar, Lourdes pediu que todos
dessem as mãos e foi rezado um “Pai Nosso” coletivamente.

Por ocasião do aniversário da escola foi organizada uma missa para comemorá-lo. Mais uma
vez, foram as professoras de ensino religioso que se incumbiram da tarefa de organização do
evento. Foram até a igreja mais próxima conversar com o padre, providenciaram as músicas
para cantar na missa e elaboraram um convite para os demais professores que foi enviado pelo
e-mail, também divulgando na sala dos professores no horário do recreio. A missa teve a
presença das diretoras (geral e adjunta), de alguns professores, funcionários, alunos e seus
pais. Em determinado momento da missa, realizada em uma igreja próxima da escola, a
diretora foi chamada no altar pelo padre, onde agradeceu a oportunidade de estar realizando a
homenagem ao colégio e pediu que todos cantassem um “parabéns pra você”, dedicado ao
CECS. Depois do “parabéns”, uma ex-aluna do colégio ainda foi chamada para fazer a
“coroação de Maria” no altar.

Esses eventos realizados pelas professoras de ensino religioso já demonstram uma


predominância da religião cristã, sobretudo católica, que se reproduz também nos conteúdos
veiculados durante as aulas. Segundo a lei 3459/00, os conteúdos são de “atribuição específica
das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-lo integralmente”.

816
Logo que chegamos à escola, fomos conversar com as professoras de ensino religioso, a quem
pediríamos autorização para acompanhar as suas aulas. Uma delas, após ouvir brevemente a
explicação, perguntou sobre a nossa religião, recomendando que fôssemos procurar algum
grupo de jovens católicos “próximo de casa”.

Em relação aos conteúdos apresentados durante as aulas de ensino religioso, podemos dizer
que o mesmo foi veiculado a partir do ponto de vista católico, com as professoras se
utilizando de valores que expressam um vocabulário e uma gramática católica, ou seja,
situações que permitem ou não o uso de determinadas atitudes de acordo com uma moralidade
católica, e de materiais pedagógicos que são trabalhados durante as aulas, enfatizando a
compaixão, o amor ao próximo, os dons de Deus, entre outros. Assim, durante as aulas
acompanhadas, as professoras ao falarem de temas como drogas, aborto, família, passam
filmes, por exemplo, que tratam de tais temas de uma maneira claramente comprometida com
a moralidade cristã. O aborto é sempre condenável, a família é a fonte da moral e dos bons
costumes, e as drogas levam inevitavelmente a tragédias pessoais14.

Também observou-se uma preocupação nessas aulas com a superação da dicotomia entre
católicos e evangélicos por parte das professoras, buscada através da tentativa de difundir a
identidade de cristão, ao invés da de católico ou evangélico.

Um dos textos usados em sala pelas professoras, por exemplo, é claramente direcionado para
essas duas tradições religiosas cristãs: católicos e protestantes. Logo de início, chama a
atenção para a influência do catolicismo na história do Brasil, onde a presença de Maria se faz
presente em diversas esferas da vida social, seja na literatura ou nas canções populares, seja
na burocracia ou na geografia. A relação entre católicos e evangélicos ganha destaque a partir
do terceiro parágrafo, inicialmente com a explicitação de suas diferenças teológicas. É ainda
nesse parágrafo que se apresenta o objetivo central do texto: uma busca pelas semelhanças
entre as duas tradições para que a relação entre os seus respectivos fiéis possa ser mais
pacífica. A Bíblia, que é utilizada por ambas as tradições, serviria como ponto de partida para
esse início de “conversa”, assim como a figura e os ensinamentos de Maria.

Essa preocupação em buscar convergências entre católicos e evangélicos é fruto do


reconhecimento de que suas relações atuais são conflituosas, ainda que essa constatação não

14
O aborto, as drogas e a família são temas que estão constantemente envolvidos em controvérsias públicas no
Brasil, onde as posições defendidas pela Igreja Católica têm obtido vitórias majoritárias nos âmbitos político e
jurídico. Para uma discussão sobre tais controvérsias ver Duarte et al. (2009).

817
esteja explicitada ao longo do texto. As professoras, católicas, sentem que o recente
crescimento de neopentecostais nas escolas, sobretudo alunos (e indiretamente os pais) é uma
situação que demanda um novo tipo de conteúdo a ser transmitido durante as aulas.
Conteúdos que busquem contemplar os interesses católicos, sem ignorar os alunos
evangélicos. Assim, as professoras elegem elementos comuns entre as duas tradições
religiosas – no caso do texto analisado, a Bíblia, Deus e Maria – e os tratam como meios de
produzir uma identidade entre ambas, o que levaria a uma relação pacífica. A ideia do cristão,
nesse sentido, surge como uma identidade encompassadora, que engloba católicos e
evangélicos, fazendo com que ambos se sintam contemplados com os ensinamentos
difundidos durante as aulas.

As demais religiões, no entanto, não vinculadas à matriz cristã, têm uma reduzida atenção
durante essas aulas. Em geral, aliás, os alunos que pertencem a religiões de matriz afro-
brasileira não costumam se identificar como tal. Uma das alunas, quando perguntada se
conhecia algum aluno adepto de tais religiões, disse que sabia de uma menina, Karla, mas que
poderia ter outros “escondidos”:

Marcele – Se tem, fica escondido. Porque minha mãe também é assim. Ela sabe que as
pessoas vão criticá-la e vão ficar com certo preconceito. Minha mãe é espírita kardecista,
mas mesmo assim ela não demonstra muito. Porque ela é malandra. Eu já não sou muito de
me esconder. Assim, eu falo na cara e foda-se se quem...se está ligando ou não. Aí eu
simplesmente frequento sem ligar. Agora, eu realmente, graças a Deus...tem gente que anda
junto e sofre preconceito. Eu realmente nunca sofri preconceito.

Além de Karla, citada por Marcele, conhecemos também outra menina no CECS que dizia ser
adepta da Umbanda. Nas primeiras vezes em que conversamos, ela logo mencionou o fato de
sofrer bullying por conta de seu pertencimento religioso. Os alunos da escola a chamavam por
alguns apelidos, como “preta velha da macumba”, “brigadeirão” e “macaca”, o que a deixava
visivelmente incomodada. A aluna se queixou na Direção da escola e com alguns professores,
que não interviram na situação. A menina disse que agora costuma ignorar as agressões
verbais que sofre, pois sabe que ninguém na escola “faz nada” em relação a isso.

A percepção do preconceito não é apenas por parte daqueles que são adeptos de religiões afro-
brasileiras. Os alunos que se identificam como sem religião e ateus também dizem sofrer
preconceito por parte de seus colegas e também dos professores.

818
Thayla – Dentro da escola já rolou de eu perder ponto já. Cinco pontos. Ano passado teve
uma aula de religião. Aí a professora me tirou dois pontos e meio, porque eu falei que o
nome Lúcifer era bonito, por causa do significado. Aquele que veio da luz. É, tipo, não é
uma coisa feia. E também perdi dois e meio porque eu não acredito em Deus. Ela [a
professora] foi perguntando para cada um da turma qual era a religião. Aí ela chegou pra
mim e perguntou qual a minha religião. Eu disse: “ah, eu sou ateia”.

Luana – Tipo, aula de religião, se você não tem religião, ferrou...

Os conflitos identitários costumam ocorrer também em aulas em que os professores buscam


tratar da diversidade cultural. De modo geral, os professores de outras disciplinas, como
História e Literatura, dizem sofrer bastante resistência por parte dos alunos, sobretudo os
evangélicos, quando tocam em temas relacionados à história e cultura afro-brasileira,
exigência feita às escolas com a aprovação da lei 10639/03.

2.2 Escola 2: Pastor Alcebíades

A segunda instituição escolar que será objeto de análise, Escola Municipal Pastor Alcebíades
Ferreira de Mendonça, está localizada numa comunidade quilombola no município de
Araruama/Distrito São Vicente, na Região dos Lagos15 do Rio de Janeiro. Esta comunidade –
intitulada Sobara, e que se localiza em uma zona rural – é certificada pela Fundação Palmares,
órgão federal responsável pela identificação das denominadas comunidades quilombolas.
Nosso primeiro contato com tal escola teve início em março de 2012, por ocasião do trabalho
de campo realizado por Marys (2012).

Com o nome do colégio em mãos, fomos até o distrito de São Vicente tentar obter mais
informações. Seguimos as informações dadas por um taxista, além de pedirmos informações
às pessoas locais que encontrávamos pelo caminho. Quando perguntávamos pela “escola
Pastor Alcebíades” conseguíamos as informações mais facilmente; por outro lado, quando
indagávamos sobre o “quilombo”, as pessoas diziam não saber informar, ou mesmo
desconhecer sua existência.

Em São Vicente esbarramos com o mesmo taxista, que perguntou sobre nossa ida para
Sobara. Ao contarmos o que havia ocorrido, ele nos disse que conhecia uma funcionária do
colégio, levando-nos em seguida até ela. Esta pessoa era a diretora da referida escola, que
15
Apesar de ser popularmente conhecida como Região do Lagos, o nome oficial para designar tal região
é Região das Baixadas Litorâneas.

819
nos disse que provavelmente os moradores não falaram a respeito do quilombo por algumas
razões, como o medo de sofrer retaliações, já que a maior parte da terra é ocupada pela
fábrica de álcool localizada na região – Agrisa –, na qual uma parte da comunidade trabalha
tanto nos canaviais como na fábrica, por isso tem receio em ter problemas com essa
empresa.

A partir de documentos do colégio que tivemos acesso, conseguimos informações sobre sua
história. Esta teve início na casa do Sr. Gabriel, um dos moradores da comunidade, com
poucos alunos. No entanto, o número de alunos aumentou, e assim já não havia mais
capacidade para comportar um número maior de estudantes. Por conta disso, a escola passou a
funcionar na Igreja Assembleia de Deus. Posteriormente, outro morador de Sobara cedeu para
a prefeitura o terreno onde foi construído o espaço atual do colégio. Tal unidade ganhou o
nome Escola Municipal Pastor Alcebíades Ferreira de Mendonça, por ser o nome do pastor
presidente da Igreja onde a instituição funcionou durante um período.

A escola atualmente contempla diferentes níveis de ensino, da Educação Infantil ao 5º ano do


Ensino Fundamental. Na primeira jornada do dia realizam-se as disciplinas pertencentes ao
chamado “núcleo comum”, que ocorre até 13h, e na segunda jornada, até às 15h, são as aulas
“diversificadas” de arte, recreação, sala de leitura, informática e reforço escolar. Para
participar das aulas de capoeira e batuque reciclado16 é necessária a autorização dos pais,
sendo enviado a eles um “papel” mediante o qual consentem ou não que seus filhos
participem de tais atividades. Também é necessário que os alunos tenham um “bom
comportamento”. De acordo com a pesquisa, identificamos que cerca de 80% dos estudantes
são vinculados às religiões neopentecostais, cujos sistemas cosmológicos evitam práticas
relacionadas ao que definem como "macumba" (como a capoeira).

Para iniciar o dia no colégio as crianças formam filas separadas por suas respectivas turmas e
depois por sexo. A diretora fala “firme crianças”, elas abaixam os braços e após isso é tocado
o hino nacional, o hino de Araruama e por último o hino de Sobara (este hino foi feito pelos
alunos junto com o professor de música do colégio e é o único hino que os alunos participam
cantando). Após o canto dos hinos, a diretora começa dando “bom dia” para os alunos, os
recados do dia quando necessários e faz uma oração agradecendo. Num dos dias, por
exemplo, a ex-diretora disse: “Essa escola não faz nada sem Jesus” e seguiu falando sobre
sensibilidade, amor, simplicidade e que “podem conquistar os melhores trabalhos, dinheiro,

16
Trata-se de uma oficina de instrumento de percussão, cujos instrumentos são feitos de material reciclado.

820
mas deve sempre prevalecer a simplicidade, pois Jesus deve ser sempre alegrado com nossas
boas ações, alegrar as pessoas é alegrar Jesus”.

A partir do ano de 2013, a proposta da nova diretora, segunda ela, consistia em levar os
alunos para lugares na comunidade onde ainda há resquícios de estrutura física que remetem
aos quilombos e que iria buscar o “resgate” da cultura negra de modo a mostrar os pontos
positivos da África. Ressaltou ainda que os alunos precisavam valorizar sua cultura, dizendo
que lá “é quilombo mesmo, só tem escurinho”.

Privilegiamos no trabalho de campo a observação sistemática de uma única turma, de modo a


nos tornar familiar às pessoas e nos familiarizar com as rotinas e dinâmicas no interior desse
espaço de interação, o que considerávamos mais adequado para que os estudantes chegassem
a nós com menos timidez. Aos poucos eles vinham falar conosco. Foi assim que um deles se
aproximou e nos questionou se éramos “crente”. Respondendo negativamente, fizemos a ele a
mesma pergunta que nos tinha feito, a qual imediatamente nos respondeu: “Graças a Deus,
sou crente!”.

Ao conversarmos sobre a matéria de ensino religioso, a professora do 1º ano disse que não
teve nenhum preparo para dar essa aula e que não fala sobre religiões em sala, mas busca falar
sobre valores, como amor a Deus, respeito, caridade e que isso é trabalhado no dia a dia e nas
outras matérias também. Do mesmo modo, não obteve acesso a uma preparação para tratar da
temática do ensino da África, sendo que no início teve muito receio de trabalhar esse
conteúdo, pois, segundo ela, o material da secretaria é muito “aprofundado”, o que o tornava
de difícil entendimento para aquelas crianças, e assim ela tinha que buscar conteúdo em outras
fontes para aproximar da realidade das mesmas.

Já a professora do 4º ano diz que não gosta de se ocupar do ensino religioso, pois os alunos
não gostam da aula, reclamam quando tem que copiar ou fazer atividades e que há
dificuldades em passar o conteúdo de uma forma mais dinâmica, pois a sala onde pode-se
passar um filme está sempre ocupada. Por essa razão, ela costuma apenas fazer uma breve
leitura da Bíblia.

As professoras dizem que estes “valores” são trabalhados no dia a dia e também nas outras
disciplinas, mas que não se fala sobre religiões em sala, embora a nossa observação mostre
que a dimensão religiosa esteja presente diariamente, seja no discurso de abertura do dia

821
letivo, nas conversas ou nas aulas como foi exposto. Dizem ainda que a finalidade é difundir
determinados “bons valores”, fazendo daqueles alunos “boas pessoas”.

Neste colégio há algumas comemorações, como o Projeto Valores, que ocorreu no final do
ano de 2012, onde houve apresentações de poesias, danças e textos escritos pelos alunos. A
apresentação mais marcante para a ex-diretora neste projeto foi a do Pré17, em que cada aluno
carregava uma placa onde estava escrita a palavra “respeito” junto com um funcionário
representando uma ocupação diferente, com o intuito de passar a mensagem de que todas as
ocupações deveriam ser respeitadas. Por último, enquanto tocava uma música evangélica,
entrou um aluno que, usando uma espécie de túnica e uma coroa representando Jesus, abraçou
os funcionários, o que os comoveu. Após o término das apresentações a ex-diretora pediu que
todos fossem para a quadra e fizessem uma roda dando as mãos. Nesse momento a ex-diretora
disse que estava muito orgulhosa do trabalho de sua equipe e que o menino vestido de Jesus
havia emocionado muito a ela, pois esse menino estava ali representando um "Jesus negro e
quilombola". Questionou a existência do Jesus branco e que tal símbolo era feito pelos
homens brancos. E por isso as crianças deviam ter orgulho da sua cor, das suas raízes e
deviam lutar pelos seus direitos. Após isso agradeceu a Deus e a todos por aquele momento.

No final dessa mesma comemoração tocou um forró e os alunos ficaram dançando. Teve um
momento que a ex-diretora também dançou com um dos meninos. E depois disso falou que
esse gesto era uma forma de integrá-los e desinibi-los, pois ela era da “Assembleia” e festejar
não era contra a religiosidade ou a fé. Essa era uma forma das crianças dançarem, se
divertirem e os pais não questionarem.

No inicio do ano de 2013 também realizamos um grupo focal no colégio com o intuito de
reunir mais dados para a pesquisa. A turma escolhida foi a do 1º ano devido a um contato
mais estreito com a professora que sempre se mostrou a vontade com nossa presença desde o
início – diferente de algumas professoras de outras séries que se mostravam um pouco
incomodadas.

Uma das dinâmicas do grupo focal18 consistia na brincadeira “a galinha pintadinha”, em que
os alunos ficavam sentados no chão em círculos, e quando era cantada a música os alunos
fechavam os olhos, enquanto um colega passava atrás com uma peteca. Quando a música

17
Refere-se ao 1º ano do Ensino Fundamental, com estudantes de idade média de 6 anos.
18
Em função da pouca idade dos alunos, o grupo focal foi realizado por meio de brincadeiras divididas em seis
momentos, onde buscamos dialogar com os alunos ao invés de fazermos apenas perguntas e respostas.

822
acabava, o aluno deixava a peteca atrás de algum colega. Este iria escolher um objeto que
estava na caixa ou uma das figuras que estavam espalhadas pelo chão no centro da roda. Em
seguida falaria o que era o objeto/foto, o que representava para ele, e o que o lembrava. A
dinâmica funcionou com o aluno escolhido falando, mas também com a interação dos outros
alunos. Muitas vezes eles formulavam juntos uma concepção do objeto/foto escolhido.

Uma das figuras que foram escolhidas foi uma imagem de casais dançando. A aluna que
escolheu a foto disse que eram pessoas dançando forró e lembraram-se do forró que acontece
na comunidade. Perguntamos quem ia e muitos alunos levantaram a mão dizendo que iam e
ficavam dançando. Uma das alunas levantou para mostrar como era e dançou com dois
colegas da sala. Havia um aluno que se divertia implicando com os demais e chegou a
apontar para um deles o acusando de ser um “crente falso”, já que este ia ao forró e na Igreja.
Neste momento alguns alunos falaram que preferiam dançar funk a forró. O mesmo aluno que
chama a colega de "crente falsa" passa a aula toda cantando músicas que não são da igreja e
quando o perguntamos o porquê dele chamar a colega de crente falsa ele fingia não ouvir, ria
e continuava cantando.

As músicas de funk, por sua vez, têm sido cantadas e dançadas com frequência por alguns
alunos em sala de aula. No entanto, a professora sempre intervém em tal situação com uma
“bronca” dizendo: “pára de cantar essas músicas, vou contar para sua avó!”. E, algumas
vezes, até os próprios colegas de sala reprovam as músicas cantadas dizendo frases do tipo
“isso é musica do bicho ruim”, ou chamando o colega de “crente falso”, que no caso é aquele
que vai à igreja, mas canta funk.

3. Considerações finais

Uma das questões que nos interessava saber, durante a realização da pesquisa, era que tipo de
apropriação era feita pelos atores da escola, em especial os professores, com a ideia de
laicidade, tendo em vista que ela é constantemente mobilizada para se condenar ou defender
diversas práticas que envolvem a dimensão religiosa dentro do ambiente escolar.

Assim, durante este trabalho, propomos também discutir como se dá a relação entre o que os
professores entendem como a difusão de “bons valores” e seus credos religiosos,

823
considerando a relação entre as questões raciais e religiosas no cotidiano do espaço escolar.
Ainda, damos especial atenção à percepção dos próprios alunos sobre tais iniciativas.

Nesse sentido, é interessante notar que os professores justifiquem seus discursos quanto à
formação de “boas pessoas” através de valores morais vinculados ao cristianismo, e, ao
mesmo tempo, dizem que não falam de religião, menos ainda que se utilizam de proselitismo.
Tudo se passa como se os valores de que falam fossem considerados como estando para além
de qualquer religião particular.

A forte presença da religião no ambiente escolar pode ser constatada nas duas escolas aqui
tratadas. Em ambas, a própria constituição da escola é atravessada por elementos religiosos
em diferentes circunstâncias. No que concerne ao espaço físico, o CECS abriga dentro de si
uma capela, que fica disponível para os alunos, professores e funcionários da escola que
queiram utilizá-la para fins espirituais. A escola Pastor Alcebíades, por sua vez, funcionou por
um tempo dentro de uma Igreja, sendo nomeada, depois de ganhar um terreno próprio para
sua nova sede, pelo nome do Pastor da Igreja onde a escola funcionava.

Também nos parece claro que o pertencimento religioso dos atores é um elemento importante
na dinâmica das escolas estudadas. Os próprios pesquisadores foram inquiridos em seus
respectivos loci etnográficos quanto à religião que pertenciam, seja por alunos, seja por
professores ou diretores. Isso mostra como o pertencimento religioso é um critério de
avaliação, classificação e, portanto, de hierarquização das pessoas naquele universo. Assim, a
definição dos atores em função de seus pertencimentos religiosos serve, em diferentes
contextos, no interior do espaço escolar, como importantes marcadores sociais de diferença.

Essa diversidade provoca alguns conflitos na dinâmica escolar, quando esses pertencimentos
religiosos entram em choque com crenças que contrariam a cosmologia desses grupos, ou
com práticas associadas à macumba, termo que exprime um sentido negativo para tais grupos
Assim, certos gêneros musicais, como o funk e o forró, aparecem inicialmente como
elementos perturbadores da ordem simbólica que orienta o mundo dos evangélicos. O mesmo
pode ser dito sobre o aborto e as drogas, no caso das professoras do CECS, pois são práticas
que contrariam a moralidade católica.

O incômodo que é provocado pelo fato dos alunos dançarem forró dá origem a categorias de
acusação que são acionadas pelos estudantes em relação aos seus próprios colegas, como
ficou evidenciado durante a realização do grupo focal, onde a categoria de “crente falso”

824
surgiu por conta de um dos alunos dançar forró e ir à igreja. Na tentativa de superar essa
tensão, a diretora dançou forró com um dos alunos sob a justificativa de que o forró não
contrariava seu pertencimento religioso, já que a mesma era pastora. Ou seja, o fato de deter
uma autoridade espiritual e dançar forró conferiu a essa prática uma nova conotação
simbólica, ressignificando-a positivamente junto à comunidade escolar.

A tentativa de produzir uma comunhão entre católicos e evangélicos através da ênfase na


identidade de cristão, como foi encontrado no CECS, é também outro exemplo de um conflito
– no caso um conflito mais conjuntural, pois diz respeito ao crescimento dos evangélicos no
país, e sua consequente ameaça à hegemonia católica – que ao se tornar alvo de um ajuste
classificatório, faz com que a escola intervenha diretamente no processo de construção de
identidades religiosas, mantendo, ao mesmo tempo, as hierarquias básicas que organizam o
sistema no que diz respeito à legitimidade de manifestação das diferentes religiões no espaço
público.

O ensino religioso – disciplina escolar encontrada nas duas escolas – parece atuar no sentido
de reforçar as crenças dentro das quais os alunos são socializados no ambiente familiar.
Embora fique evidente que a rotina escolar comporte a dimensão religiosa em diversos
momentos, as aulas de ensino religioso são o lugar onde os valores são explicitamente
difundidos e enfatizados, ao contrário de outros momentos da escola, onde eles estão
presentes de forma implícita, sem que sejam objeto de elaboração por parte dos professores.

Por fim, mesmo considerando as diferenças existentes entre as instituições escolares que
foram objeto de análise, cabe ressaltar como a dimensão religiosa atua de maneira evidente na
dinâmica pela qual a escola lida com o processo de construção de identidades e subjetividades
dos alunos que tem lugar em seu interior. A fala da diretora de uma das escolas talvez indique
o grau de importância que o pertencimento religioso tem para a dinâmica escolar: “Essa
escola não faz nada sem Jesus”.

Referências

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Paulo: Attar/PRONEX, 2003.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito Legal e Insulto Moral: dilemas da


cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

825
DUARTE, Luiz Fernando Dias; et al. Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação
de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

MAIA, Bóris. “Matéria de caderno”: uma etnografia das aulas de ensino religioso.
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RESENDE, José Manuel. A sociedade contra a escola? A socialização política escolar num
contexto de incerteza. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.

826
827
Interfaces entre educação escolar e saberes religiosos na
Amazônia
Maria Betânia Barbosa Albuquerque1

Introdução

Este texto analisa os saberes que perpassam a vida religiosa do município de Colares e as
formas como tais saberes são vivenciados em uma escola formal de ensino.

Colares é uma ilha localizada no litoral da baía do Marajó, no Pará, com uma área de 609.776
km² e uma população de 11.433 habitantes. Região constituida, historicamente, por uma
diversidade de grupos étnicos, com destaque para os índios tupinambá, primeiros habitantes.

Metodologicamente, o artigo resulta de uma pesquisa de campo apoiada em depoimentos de


oito moradores do munícipio, indicados pela população como portadores de múltiplos
saberes. Para compreender a relação entre os saberes religiosos e os saberes escolares foram
entrevistadas duas professoras que trabalham com a disciplina Ensino Religioso na Escola de
Ensino Fundamental e Médio Dr. José Malcher, além da análise do seu Projeto Político-
Pedagógico.2

Teoricamente, o artigo apoia-se na obra: Os deuses do Povo: um estudo sobre a religião


popular de Carlos R. Brandão (2007); os estudos de Heraldo Maués (1995; 2005) que
abordam a complexidade das formas religiosas na Amazônia; além dos estudos de Villacorta
(2000, 2011) acerca das práticas xamânicas em Colares.

O mundo místico de Colares

Segundo, Brandão (2007, p. 20) “qualquer pesquisador da formas populares de cultura e dos
modos subalternos de vida sabe que ali quase não há esferas de uma e de outra que não
estejam envolvidas e significadas pelos valores do sagrado”. Em Colares, praticamente todas
as esferas da vida são perpassadas por valores sagrados, a começar pelo imaginário que

1
Doutora em Educação pela PUC/SP com Pós-Doutoramento pela Universidade de Coimbra. Professora do PPG
em Educação da UEPA. Contato: mbetaniaalbuquerque@uol.com.br.
2
É fictício no texto o nome de todos os entrevistados.

828
circula a respeito da ilha referida como lugar mágico, sagrado, diferente e com muita energia.
Os motivos que explicam esse imaginário estão relacionados a diversos fatores, entre eles
despontam as belezas naturais do lugar. Segundo seu Carlos,

Colares é um dos poucos lugares que você tá tomando banho de praia e vendo o igarapé,
tomando banho de igarapé e vendo a praia. Apesar de se saber que todo rio, todo igarapé a
tendência é descarregar para o mar, mas só aqui agente tem esse monitoramento, agente tá
no igarapé monitorando quem tá na praia (entrevista).

As belezas de Colares perpassam as falas do presente, mas também do passado. No século


XVIII, o padre jesuíta João Daniel que viveu na Amazônia, assim descreve a ilha:

Pouco acima deste lugar, está a Vila da Cabi, hoje chamada a Vila de Colares, situada
pouco acima do furo, que divide o seu terreno do terreno de Tabapará. Está situada sobre
uma ribanceira eminente a uma muito larga baía, que já dissemos; e com todas as regalias
de boa vista, bem lavada dos ventos, e bastante populosa, por cuja razão também na geral
promoção foi exaltada, e batizada com o nobre título de Vila de Colares (DANIEL, 2004, p.
114).

Em função das maravilhas que encontrou na ilha, João Daniel (2004, p. 114), conjectura que
“se for povoando de portugueses, pode brevemente chegar a ser uma grande cidade”.. Colares,
então, foi objeto de interesse dos portugueses que viam nesta localidade o lugar ideal para a
localização da nova província. Nos anos de 1970, em provável sintonia com o movimento
contracultural existente no mundo, o imaginário em torno da ilha foi motivo de atração de
diversas pessoas. Reportando-se a esse cenário, Villacorta recorre à voz de uma de suas
narradoras:

Nós íamos para Colares nos finais de semana, nos feriados, passávamos férias. Muitas
pessoas faziam isso, a gente tava em busca de algo. Havia uma necessidade… Nós
buscávamos um lugrar sagrado, o contato com a natureza. Mais que isso, a gente buscava
harmonia com a natureza porque a natureza não está separada de nós, mulheres e homens,
do ser humano. Essa era nossa filosofia de vida (apud VILLACORTA, 2011, p. 39).

Nos anos de 1990, Villacorta registra o modo de vida das diversas pessoas que frequentavam
a ilha: “Durante o trabalho de campo, pude observar, além dos ‘roqueiros’ e ‘alternativos’,
grupos de ufologistas, esotéricos, adeptos do Santo Daime, assim como pessoas que queriam
simplemesmente conhecer este ‘portal da Amazônia’” (VILLACORTA, 2000, p. 2-3). A
presença desses “alternativos” em Colares também parece relacionada à figura de uma

829
importante xamã, conhecida como Tia Rose que, nos anos de 1973, passou a habitar a ilha. De
acordo com a autora:

Os “alternativos” compõe grande parte do cenário e da trajetória de Rose como xamã, e


mais particularmente no contexto do xamanismo urbano. Frequentadores assíduos do sítio
‘Estrela do Oriente’ [em Colares], muitos se auto-classificavam ‘alternativos’, por serem
adeptos de uma ‘cultura alternativa’ (VILLACORTA, 2011, p. 21).

Entretanto, um motivo forte que contribuiu para o imaginário místico sobre Colares foi um
acontecimento inusitado, ocorrido nos idos de 1970, quando a mídia local passou a emitir
notícias acerca do aparecimento de ovnis ou disco-voadores no céu da ilha. Nos anos de 1977
e 1978 a Força Aérea Brasileira (FAB) realizou uma operação para verificar a ocorrência
desses estranhos fenômenos. Observe-se, a propósito, descrição de uma moradora local cujo
marido presenciou pessoalmente a experiência:

Aqui nos anos setenta passou um disco voador que deram o apelido de ‘chupa-chupa’. Esse
chupa-chupa alarmou aqui e muita gente entrou em pânico não só em Colares como no
município todo. As pessoas que foram atingidas pelo chupa-chupa - uns já até faleceram -
muita gente não acreditava, não sabiam o que era, ficaram desesperados (Entrevista, D.
Ester).

De modo geral, D. Ester assim descreve a experiência vivida por seu Paulo:

Ele disse que aquilo veio de cima, veio aquele foco certo no pescoço dele. Aí pronto, ele
ficou paralisado, não pôde mais se mexer. Aquilo foi no pescoço dele. Quando a mamãe
gritou...ele saiu, largou ele e foi embora! E o pessoal que estava lá na outra rua, sentado no
canto, disseram que viram uma luz verde sair de cima de casa quando nós gritamos. Aí
então eles dizem que foi o ‘chupa-chupa’.

Diante do ocorrido, existem relatos de que, nesse período, o posto médico de Colares realizou
atendimentos a diversas pessoas vítimas de queimaduras cujos responsáveis, segundo a
população, eram estranhas luzes vindas do céu identificadas por diversos nomes: ovnis, ufos,
extra-terrestres. O fenômeno ficou popularmente conhecido como “chupa-chupa” (GIESE,
1991) impactando a vida na ilha sob diversos ângulos: turístico, econômico e cultural, além da
perspectiva místico-religiosa que margeia o fato.

830
Expressões da vida religiosa local

Segundo informa seu João, na ilha de Colares “nós temos Santo Daime, Quadrangular,
Assembleia de Deus, Adventista do Sétimo Dia, Testemunha de Jeová e Espiritismo”. Seu
João afirma, porém, que “a maior religião é a católica, a segunda a Assembléia de Deus.”

Para D. Tereza, havia apenas duas religiões em Colares, a católica e a protestante. Mas,
“depois foi surgindo outras religiões” de modo que, atualmente, “em cada rua tem uma
igrejinha evangélica”. No que se refere à pajelança, embora os estudos de Villacorta (2000;
2011) apontem a presença dessa prática em Colares, isto não aparece de imediato na fala dos
narradores. Todos dizem-se católicos, até mesmo aquele que se autodenomina como
“macumbeiro nas horas vagas” (seu José). Também encontramos quatro, dos oito narradores,
como participantes ativos da igreja católica. São membros da diretoria da igreja, guarda da
Santa ou pertencente à pastoral do dízimo. A relação de pertencimento estabelecida com a
igreja local é fator de reconhecimento, sociabilidade e capital social.

As Festas de Santo

As festas de Santo configuram-se como a principal manifestação religiosa de Colares,


atraindo muita gente das diversas localidades do entorno da ilha. Maués (2005, p. 2) ressalta
que o catolicismo popular “na região do Salgado como um todo, e de várias outras áreas da
Amazônia [..] centra-se na crença e no culto dos santos”. Em Colares isto não é diferente,
posto que estas festas, conhecidas como “círio”, demarcam os principais eventos religiosos do
calendário local, como narra seu João:

Existe vários círios. Em todas as localidades por aí eles fazem o círio, fazem procissão.
Aqui no Ariri, nós começa o ano em janeiro com uma festa tradicional de São Sebastião. Aí
vem mês de maio, mês de Maria, sempre se faz as novenas de Santa Maria. Quando chega
em junho, eles festejam aqui São Pedro que é do pescador, onde fazem o mastro do São
Pedro e uma procissão. Aí vem novembro em que se festeja Nossa Senhora das graças, eles
fazem um ciriozinho, uma romaria e um arraial (entrevista).

Diversos santos preenchem o calendário das festas colarenses espalhadas entre as várias
localidades que conformam a ilha. Dentre eles, cabe destacar a de Nossa Senhora do Rosário,
a santa padroeira da munípio de Colares, uma das mais festejadas. Mas todas estas festas
mencionadas são, segundo seu Antônio, “festas da igreja”. Segundo ele, “tirando de ser da

831
igreja, nós temos em dezembro uma família que sempre festeja, manda rezar ladaínha pra São
Benedito”. Mas isso aí, ressalta o narrador, “é fora da igreja, é uma festa de família, tradição”.
A compreensão dessa prática como sendo “de fora da Igreja” pode estar relacionada ao fato de
ser considerada como uma “coisa dos pretos”, já que São Benedito é um santo negro. Segundo
Maués (2005, p. 3), São Benedito é considerado um santo “muito milagroso – e também
muito perigoso, com quem não se pode brincar”. A devoção a ele deve-se aos seus poderes
relacionados à obtenção de “curas das doenças, encontrar objetos perdidos e outras graças”.

Um aspecto que importa ressaltar sobre os santos é sua natureza ambígua. Em sua pesquisa
sobre o catolicismo popular, Brandão (2007, p. 373), constata essa ambiguidade a partir de
“casos que atestam a misericórdia de São Benedito em atender a todos os seus devotos, mas
também as suas manias humanas, como a de ser sempre convidado para festas de outros
santos, como na Dança de São Gonçalo, ou a de não admitir outra posição de seu andor na
procissão, a não ser a última”. No caso de Colares, os santos parecem tão enredados no
cotidiano que, como os humanos, também se envolvem em querelas diversas, até mesmo em
brigas:

Aqui tem a igrejinha do São Pedro, mas eles tiveram uma briga aí entre São Pedro e São
Raimundo por causa de uma canoa. A canoa é do São Pedro e o São Raimundo queria dar
uma saída nela aí pra fora, aí trançaram a porrada. Eu sei que se bateram tudo, ficaram tudo
sem pescoço (Seu Antônio).

Como partícipes da vida cotidiana, os santos também são invocados para apaziguar os
fenômenos da natureza, como tempestades e trovões. Neste caso, não adianta lembrar de
Deus, pois só mesmo Nossa Senhora do Ó pode ajudar.

Santos, orações e sortilégios

Os santos também são invocados em situações que põem por terra a clássica dicotomia entre
sagrado e profano, como é o caso da prática dos sortilégios. Os sortilégios como artimanhas
da feitiçaria, constituem-se em práticas bastante antigas, estando registrados em clássicos da
história do Brasil como O Diabo na Terra de Santa Cruz (2005) de Laura de Melo e Souza.
Segundo a historiadora, “no Grão-Pará se falava de sortilégios indefinidos”. Ao estudar as
denúncias de “orações”, sobretudo, para fins amorosos, Souza (2005, p. 235) afirma que, no
Grão-Pará, quatro indivíduos foram acusados de lançar mão desse recurso, sendo a de São

832
Marcos a oração mais invocada. Tais orações constituiam-se como prática “universalmente
conhecida”. Tratava-se de “um ramo da magia ritual em que era irresistível o poder de
determinadas palavras divinas e, sobretudo, do nome de Deus” (SOUZA, 2005, p. 230).

Em Colares, entretanto, ressalta-se o apelo aos santos. Dentre o panteão dos que são
invocados, Santa Catarina destaca-se na voz de seu Antônio posto que “foi dessa santa que eu
arrumei uma mulher”, além do tradicional santo casamenteiro: Santo Antônio. A fim de ver
“se dá certo o negócio” com uma certa mulher, seu Antônio não mediu esforços na conquista:

Porque eu tinha uma mulher, e eu não gostava dela, eu gostava de uma outra, mas essa
mulher vivia me perseguindo. Me perseguiu até que eu disse: vou ve se dá certo o negócio.
Aí eu passei na casa de um cidadão, se é pecado isso eu ainda tenho, eu roubei um Santo
Antônio pequenino, eu roubei do santuário. Eu coloquei no bolso, aquilo dava uma sorte. E
essa mulher me perseguiu e eu não tinha pra onde correr. Aí, seis horas da tarde eu fui,
cavei um buraco no tronco do esteio e enterrei o Santo Antônio de cabeça pra baixo. ‘Oh
meu glorioso Santo Antônio de Paula, amigo do nosso Sr. Jesus Cristo faça que com a
oração que eu vou rezar agora essa mulher vir aqui’.

A oração mais poderosa, contudo era dirigida a Santa Catarina “por que com a oração de
Santa Catarina o cara vem chorando no punho da rede dela, aí eu rezei”:

Minha beata Santa Catarina, sois beata como o sol, formosa como a lua, linda como as
estrelas, entrastes na casa do santo padroeiro encontraste cinquenta mil homens, vistes
todos, vós abrandastes. Assim peço a Sra. que abrande o coração de fulana para mim.
Fulana, quando tu me veres, tu te interessarás por mim, chorarás assim como a virgem
santíssima chorou por seu bendito filho. Fulana debaixo do meu pé esquerdo eu te remato,
seja com dor, seja com quatro, que te passa no coração. Se tiver comendo, não comerás, se
tiver conversando não conversarás, se estiver dormindo não dormirás, enquanto comigo não
vier falar. Conta-me o que sabe, dar-me o que tiveres e me amarás entre todas as mulheres
do mundo. Eu para ti serei uma rosa fresca e bela. Rezei dez Ave Maria ofereci pra Santa,
cinco horas da manhã a mulher bateu lá em casa. O resultado é que eu tenho uma filha com
ela e mora em Mosqueiro. Essa mulher que eu num gostava, então eu fiz essa experiência
por eu aprendi de um livro meu camarada, o livro de São Cipriano (Seu Antônio).

A pajelança e a sociedade colarense

Encontramos também em Colares a prática da pajelança. Maués (1990) define-a como um


conjunto de práticas presente em toda Amazônia, em que se mesclam, em graus variáveis,

833
elementos da religiosidade indígena, afro-brasileira e católica, assumindo características
particulares dependendo do contexto histórico e social onde está inserida.

O pajé refere-se à pessoa que tem o dom de curar todo tipo de doenças, sejam elas naturais ou
não. Considera-se como doenças naturais aquelas “mandadas por Deus” ou ainda as relativas
“ao domínio do que é normal”. Tais doenças “nada tem a ver com a maldade dos homens ou
de Satanás” (MAUÉS, 1990, p. 42). Entretanto, quando a doença “resiste ao tratamento
considerado normal” vem à tona a suspeita de se tratar de uma doença não natural. Desse
modo, as doenças não naturais são aquelas que “fogem ao domínio de Deus, sendo muitas
vezes chamadas de malineza (isto é que resulta do mal ou está associado ao Demônio) embora
esse termo não se aplique a todos os casos” (MAUÉS, 1990, p. 42). Maués explica que, em
geral, os sintomas das doenças não naturais tendem a ser os mesmos de certas doenças
naturais. Entretanto, “o que antes se havia diagnosticado dentro desta segunda categoria passa
agora a receber um outro nome (como feitiço, quebranto, mau-olhado, etc) (MAUÉS, 1990,
p. 42). Nestas situações torna imprescíndível o recurso ao pajé.

A denominação pajé, segundo Maués (2005, p. 10) é carregada de um sentido pejorativo


motivo pelo qual não é assumido pelos pajés que preferem o termo “curadores”. Maués
acrescenta que os praticantes da pajelança, incluindo os próprios pajés, em geral,“identificam-
se como católicos”. Seu José, pajé de Colares, entretanto, não se auto-identifica nem como
pajé, nem como curador, mas como “lavrador e macumbeiro”. Corroborando com os estudos
de Maués (2005) e conforme o hibridismo cultural que marca a religiosidade Amazônica seu
José diz-se católico: Ele vai a missa, toma hóstia, é batizado e crismado.

Diversas pessoas procuram os seus serviços: pedido de proteção, pedido para lar desfeito
porque “às vezes a mulher não quer mais nada com o marido ou o marido não quer mais nada
com a mulher, é para unir de novo” (seu José). Há também os pedidos para o mal, mas, estes,
“há cinco anos” que não são mais praticados por ele. Outros motivos são elencados pelos
narradores para se recorrer ao pajé, entre eles os problemas de saúde, em especial aqueles em
que a medicina oficial encontra limites em sua resolução. Neste caso, a cura das doenças se dá
com o auxílio dos encantados. Os encantados ou caruanas correspondem a seres mágicos que
vivem no fundo dos rios, florestas, sendo, portando, detentores de poder e sabedoria
(VILLACORTA, 2011, p. 50).

834
Em localidades mais afastadas de Colares seu Antônio explica que: “As vezes a situação não
permite ir pra médico. O médico as vezes desengana. Aí diz: olha, vai com fulano [o pajé],
pois Médico só em Colares”. D. Joana também confirma que em Colares “tem uns pajés,
rezadeiras, senhoras que fazem remédio, puxam barriga, puxam dismintidura, [curam]
quebranto”. Segunda ela, os pajés são mais procurados por motivos de saúde, sobretudo
quando o remédio da farmácia não faz efeito: “geralmente tem uma enxaqueca, toma um
remédio e não passa, então vai lá com ele pra benzer e a gente se sente aliviada com aquela
reza que ele faz, benze a cabeça da gente e é bom”.

Há também uma outra situação em que apenas o pajé parece resolver. Seu Antônio, católico
convicto, membro da Guarda de Nossa Senhora da Conceição, explica: “eu procurei por ele
quando o negócio tava pegando aqui no barracão. Aí ele preparou uns banhos e melhorou o
astral”. Seu Antônio acredita em Deus, mas quando “o negócio pega” não foi à água benta da
igreja que recorreu, mas aos banhos do pajé. Contudo, ele tem lá suas desconfianças e não
acredita em qualquer pajé: “pajé, eu acredito naquele que sabe. Naquele que só conta mentira,
só sabe beber cachaça, não”. As desconfianças acerca da prática da pajelança são históricas.
Desde o período colonial essas práticas tem sido combatidas na Amazônia interpretadas, em
geral, pela ótica do preconceito e da demonização (MAUÉS, 2005, p. 13):

Entretanto, se frequentar o pajé é visto com reticência ou preconceito o mesmo não se aplica
ao rezador ou o puxador. “Ah, benzedor, puxador, essas coisas, eu já fui. Dor nas juntas...
Tem um senhor ali que é bom pra isso”. A interdição se restringe, portanto, apenas à
pajelança:“Pajé não! eu não sei a sabedoria popular dele, a ciência dele. Pra quem é católico
não é bom freqüentar essas coisas” (Dona Joana).

D. Joana é bastante ativa na Igreja local como membro do “apostolado de oração” e Guarda
de Nossa Senhora do Rosário. Mas, em seu apostolado convicto reconhece que os remédios
ministrados pelo pajé, envoltos em fé, tem uma ação certeira e seus prognósticos, de vida ou
de morte, são inquestionáveis.

Através do remédio dele eu ficava curada, sabe? Tinha aquela fé no remédio que ia tomar.
Sabia muitos remédios, muito remédio caseiro, e ainda dizia: olha, pode levar, façam esse
remédio que ela não vai morrer, e não morria mesmo! Agora, quando ele dizia: ah! não tem
mais jeito! Podia esperar que a pessoa não ia ter jeito mesmo!

835
Também D. Ester, que faz parte da igreja e pertence à “pastoral do dízimo”, nos conta que
tem um compadre que é evangélico e “pegou um sofrimento e procurou macumba”. Cansado
de lutar conta a doença “que ja era incurável ele foi e procurou macumba”. De fato, em estudo
sobre mulheres pajés em Soure, Marajó-Pará, foi observado a existência de uma diferença
entre curandeiro(a) e pajé, em que o(a) primeiro(a), utilizando-se da intuição, não incorpora
ou não é possuído(a) por forças mágicas para curar, apenas receita banhos, garrafadas, chás,
defumações e utiliza-se, sobretudo, de orações e rezas. O(a) pajé, por sua vez, pode tanto
curar por meio de rezas, ervas e banhos, quanto por meio de rituais mais sofisticados que
envolvem o transe e a incorporação de entidades. Dessa forma, considera-se o pajé mais
poderoso do que o(a) benzedeiro(a) ou curandeiro(a) e acredita-se que ele seja detentor de
maior poder de cura para diversas doenças (naturais e não-naturais) (ALBUQUERQUE &
FARO, 2012). Em Colares, entretanto, encontramos D. Marilda que reúne os atributos de
rezadeira e, ao mesmo tempo, de pajé, a despeito de se identificar apenas como “parteira”.
Dentre suas competências está o afastamento de espírito: “Pra negócio de espírito eu mesmo
rezo, eu afasto os espírito, aliás era o meu trabalho mesmo, afastar espírito dos outros”.

Natureza e religiosidade

Em Colares, a natureza é vista como permeada de lugares sagrados, ou melhor, lugares


“encantados”. D. Ester nos conta que sua mãe lhe falava sobre a existência de “um igarapé
que era cheio de uma planta por cima da água”. Diziam que “o igarapé era encantando” e

quando a pessoa subia numa árvore para olhar para ele, tinha um dor de cabeça que não
resistia! Porque era encantado aquele lugar! Antigamente eles diziam, ah ficou mundiado!
Mundiado de tal coisa assim que viu. Por exemplo, dá um mau olhado na pessoa, fica
perturbado ou fora do sentido.

D. Joana afirma, também, a existência em Colares de locais assombrados, como é o caso, por
exemplo, da praia do Machadinho, provavelmente, devido aos episódios envolvendo o
avistamento de ovnis na praia. Todavia, diante dos mistérios que recobrem a natureza, apenas
ela mesma pode servir de proteção. Na Amazônia, afirma Fares (2003, p. 94), “é comum usar-
se como amuleto de proteção e sorte objetos do mundo da cultura e do mundo da natureza:
dentes de animais ou de alho, determinados tipos de plantas, partes do sexo da bota, água de
jibóia, muiraquitãs, rezas, benzeduras”.

836
Em Colares, diversos elementos extraídos da natureza são empregados como forma de
proteção e sorte, elementos esses que expressam o hibridismo religioso local. Desse modo, a
fim de obter proteção seu Antônio afirma: “Eu uso alho, o alho macho. Porque na cabeça do
alho sempre tem um alho magrinho, aquele é o alho macho. Eu uso no bolso. Além disso, seu
Paulo afirma que “para trazer sorte pra mim é o rabo da cobra. Eu como crua. Eu tenho uma
imagem de Nossa Senhora de Fátima e tenho da Santa Catarina”.

Da natureza, D. Joana lança mão da arruda para sua proteção, além da sua “comunicação com
Deus”. Segundo ela, essas arrudas são boas, são da natureza e você sabe que recebem energia
de Deus”. D. Ester, por sua vez, utiliza “só água benta e vela”. Em relação às plantas, utiliza
“os tajás que eu coloco aí, pois dizem que protege. Planto aí pela frente: Comigo ninguém
pode, Espada de São Jorge… Agora eu não sei se é verdade ou não, eu só sei que eu planto”.

Para curar a panema D. Ester afirma utilizar-se dos banhos. A panema é definida no clássico
estudo de Galvão (1955) como uma crença intimamente relacionada à vida cotidiana do
caboclo na Amazônia

com o significado de “má sorte”, “desgraça”, “infelicidade”. Incapacidade, talvez a melhor


interpretação. Não se trata propriamente de infelicidade ocasional, má sorte, azar, mas de
uma incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas, evitadas e para as quais
existem processos apropriados (GALVÃO, 1955, p. 81).

Dentre os “processos apropriados” está a prática dos banhos. Os saberes que envolvem esta
prática são multiplos e bastante antigos. No Folclore do Brasil (1976) de Câmara Cascudo,
está registrado uma diversidade de motivos, dentre os quais destaca-se o “banho para lavar a
porta de dentro para fora”, feito de diversos ingredientes entre os quais o “cabi”, cipó típico
da Amazônia e que constituiu, no passado colonial um dos nomes pelos quais Colares foi
conhecida (DANIEL, 2004 ). Se são muitos os ingredientes próprios para os banhos, também
são muitos os seus motivos: cura de doenças físicas e espirituais; para defesa “quando querem
jogar as coisas pra gente”; para trazer a pessoa amada de volta; para atrair dinheiro. Para cada
uma dessas questões existe uma receita própria de banho. A produção dos banhos está
intimamente ligada ao espaço dos quintais, onde se constatam verdadeiras farmácias
populares.

837
Famosa na ilha de Colares pelo seu vasto conhecimento acerca dos remédios do quintal, D.
Marilda é bastante procurada. Em um passeio por seu quintal, ela nos ensina a receita do
banho capaz de trazer a pessoa amada de volta:

Para fazer uma coisa dessa só com negócio de atraente: “abre caminho”, “disciplina”,
“chega-te a mim”. Esses banhos a gente ferve as folhas e a água de “chama”, incenso de
“uirapuru”. Tem aquele “incenso da bota” a gente só põem uma gota porque aquilo catinga.
Também uso o perfume pra ajudar, todo aqueles perfume que a gente usa, um pouquinho
só.

Num exemplo típico de hibridismo cultural D. Marilda diz-se “católica graças a Deus”, além
de pertencer ao grupo do Apostolado do Sagrado Coração de Jesus em cujas práticas tem
participação ativa, como é o caso, por exemplo, das novenas. Entretanto, seus “guias de
proteção” são seu José Tupinambá, o Rei Sebastião, os dois últimos pertencentes ao repertório
da Umbanda e do Tambor de Mina.

Os saberes religiosos e a educação escolar

Ao considerar a multiplicidade de saberes religiosos que perpassam a vida religiosa em


Colares, passo a refletir sobre como a escola Dr. José Malcher dialoga com esses saberes.
Para tanto, consultei inicialmente o Projeto Político Pedagógico (PPP) da Escola para quem a
escola deve buscar ações que visem “o aprimoramento da cidadania, da democracia, assim
como da fraternidade; recusando condutas preconceituosas, no sentido de enfocar uma
educação de inclusão social, em estreita relação com a necessidade local e da sociedade
global” (PPP, 2012, p. 9-10).

Com base nos pressupostos de uma educação multicultural o PPP advoga que “o currículo
deve ser uma construção relacionada com o contexto social, histórico e cultural do
conhecimento que se quer e se deve ensinar e aprender” (PPP, 2012, p. 17). No sentido de
verificar como esta multiculturalidade se manifesta no Ensino Religioso escolar, foi
entrevistada duas professoras desta disciplina. Como evidenciado, Colares tem uma vida
religiosa plural, com destaque para o catolicismo, as religiões evangélicas e a prática da
pajelança cabocla. Nesse sentido, perguntamos a uma das professoras de Ensino Religioso
como suas aulas traduzem essa diversidade:

838
O que eu gosto muito nas minhas aulas é a questão do Círio, chama mais atenção deles.
Agora existe um problema, eu não posso ressaltar tanto uma religiosidade, embora seja
grande aqui porque tem muito protestante. Ai o aluno vai dizer que você ta ressaltando
porque você é de tal religião. Eu sou católica, eu falo coisas da igreja Católica, mas não
chamando atenção. Eu falo das outras igrejas também para que eles tenham mais
conhecimento e saibam diferenciar (Profª. Marize).

Observamos que mesmo dizendo falar “das outras igrejas”, o que a professora gosta de falar
em suas aulas é sobre a “questão do Círio”, a principal festa católica local. Sobre a existência
de outras práticas religiosas a exemplo da pajelança, ela afirma:

Existe. Existe a questão dos terreiros, não sei se é a mesma coisa. Os terreiros que contém
essas práticas. Mas não conheço, nunca fui. Também não me interessa conhecer. Eu não
acredito, também não acho importante colocar [em sala de aula] (Profª. Marize).

A pajelança cabocla na ilha constitui-se como provável herança dos antigos tupinambá, seus
primeiros habitantes, conhecidos como exímios construtores de canoas, como portadores de
múltiplos conhecimentos sobre plantas e remédios da mata, além das práticas de pajelança
características de sua religiosidade. Contudo, a memória desses e de outros grupos, como os
quilombolas locais, não é ressaltada no programa de ensino da professora e nem em sua
prática docente:

Eu sei, deveria ser colocado {nos programas], mas na minha opinião eu coloco assim,
superficial. Por exemplo, tem um livro que eu uso, ele trata de todos os assuntos, dos
africanos, do católico, fala de umbanda, fala de tudo isso, mas eu coloco nas aulas
conceitos. Não que eu vá querer conhecer, entendeu? Eu tenho livros que tratam desse
assunto só que eu não dou muita importância. Não sei te explicar. Porque sou católica
também, então, não posso colocar porque não tenho muito conhecimento. Não vou tratar
com eles uma coisa que eu desconheço (Profª. Marize).

Fica claro em seu depoimento que o fato de ser católica e desconhecer práticas como a
pajelança limitam a inserção desses saberes pela professora em sala de aula que prioriza em
suas aulas a religião que mais conhece e professa: o catolicismo e sua principal manifestação:
o Círio. Ao referir-se ao calendário escolar e as principais festas da escola, a professora
lamenta que o ano de 2012 tenha se iniciado com a festa das Mães e tenha ficado de fora a
festa da Páscoa

Iniciou pela festa das mães porque geralmente na época da páscoa as aulas ainda não
iniciaram. Tem esse problema, elas iniciam bem em meados de abril, esse ano aconteceu

839
isso. Isso não é normal. Ano passado começou em março mesmo, aí teve toda a
programação da Páscoa, fizemos [a festa] das mães, agora festa junina, encerramento e toda
a escola se envolve (Profª. Marize).

Perguntamos à professora de Artes, que também é professora de Ensino Religioso, sobre a


presença do tema da pajelança nos seus programas de ensino. Para ela, a existência de uma
diversidade religiosa e de pessoas com religiões diferentes, mesmo em sala de aula, é um fator
de “conflito”. A fim de evitá-los ela prefere, então, não se “aprofundar muito” ou, em suas
palavras, procura “falar só pelo alto”, isto é, superficialmente:

Bom, eu não coloquei [no programa]. Eu acho polêmico discutir religião. Quando eu falo,
eu procuro falar só pelo alto, as religiões africanas, hinduísmo, islamismo… aí eu procuro
olhar os conceitos da religião, de cada uma delas. Não procuro me aprofundar muito, que a
gente sabe que tem a diversidade de questões. Então, para não haver conflito, até mesmo
dentro de sala de aula que a gente sabe que a diversidade é grande de religiões, então eu
trabalho assim (Profª. Angelina).

O imaginário sobre a ilha de Colares, como já apontado, é bastante rico. Exemplo


significativo foi o aparecimento de discos voadores e seres extraterrestres no céu da ilha nos
anos de 1970. Tal fato deu início, até os dias de hoje, a uma determinada visão sobre a ilha
como lugar místico, portal da Amazônia. Em suas aulas de Ensino Religioso, a professora
Marize é radical: “Nunca tratei sobre esse tipo de assunto com eles. Os alunos não falam
sobre isso, não é relevante”.

Considerações finais

A análise dos saberes religiosos na ilha de Colares a partir das narrativas de moradores locais
evidenciou um cotidiano plural e híbrido. Nele se destacam as práticas religiosas católicas,
evangélicas e da pajelança. Tais práticas, contudo, meclam-se entre si pois quando a cura não
vem do médico ou quando a “coisa está pegando” é ao pajé e às benzedeiras que a população
recorre. Entra então em ação a força das plantas, dos banhos e toda sorte de sortilégios que,
por sua vez, envolvem o poder dos Santos, configurando uma religiosidade híbrida e
multifacetada.

A diversidade da vida religiosa em Colares, contudo, não encontra abrigo no currículo


escolar. Os conteúdos selecionado resultam naquilo que as professoras conhecem e vivenciam

840
em seu cotidiano: o catolicismo. Desse modo, a diversidade religiosa citada no PPP com base
nos textos legais que apregoam uma educação multicultural não se efetiva na escola, no
âmbito do ensino religioso.

Da mesma forma, todo o imaginário sobre a ilha de Colares como lugar sagrado e mágico
permeado por seres encantados e extra-terrestres não constituem objeto de reflexão no Ensino
Religioso escolar. Tem-se, portanto, uma realidade sócio-cultural marcada pela diversidade
religiosa e pelo hibridismo cultural e uma escola fechada a essa mesma realidade,
contradizendo-se, portanto, em seus pressupostos filosóficos e educacionais.

O Estado do Pará, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância, é o Estado
brasileiro que tem os mais baixos índices de educação entre jovens.3 O PPP da escola Dr. José
Malcher ressalta, por sua vez, o desinteresse dos alunos pelo ensino, a frequencia irregular nas
aulas, a defasagem na aprendizagem, fatores que culminam em evasão da escola. O PPP,
contudo, não indagada sobre os motivos pelos quais os alunos não tem interesse na escola e
no ensino. Nesse sentido, o esforço atual da pesquisa é transformar-se em prática de extensão
de modo a suscitar entre os professores a reflexão crítica sobre a importância da educação
escolar como espaço de construção de subjetividades; de formação de identidades
sintonizadas tanto com os saberes globais quanto com a história, a memória e os saberes
locais, em particular, com a diversidade da vida religiosa local.

Referências

ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa; FARO, Mayra Cristina Silva. Saberes de Cura:
Um estudo sobre pajelança cabocla e mulheres pajés na Amazônia. Revista Brasileira de
História das Religiões, ANPUH, ano V, nº 13, Maringá, p. 57-72, maio 2012. Disponível em
<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf12/03.pdf>. Acesso em 15 jun. 2013.

BRANDÃO, Carlos Rodigues. Os deuses do Povo: um estudo sobre a religião popular.


Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia (EDUFU), 2007.

DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. v. 1. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2004.

FARES, Josebel Akel. Cartografia poética. In: OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno. Cartografias
Ribeirinhas: Saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos
amazônidas. Belém: EDUEPA, 2003, p. 83-96.
3
Cai Educação entre jovens. Jornal Amazônia, Belém, 1º de dezembro de 2011, p.5

841
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.

GIESE, Daniel Rebisso. Vampiros Extraterrestres na Amazônia. Belém: Falangola Editora,


1991.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. A Ilha Encantada: medicina e xamanismo numa comunidade


de pescadores. Belém: UFPA, 1990.

__________. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Estudos


Avançados, v.19, n 53, São Paulo, p. 259-274,2005. (Dossiê Amazônia Brasileira I).

SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

VILLACORTA, Gisela Macambira. Mulheres do Pássaro da Noite: pajelança e feitiçaria na


região do Salgado (nordeste do Pará). Orientação de Raymundo Heraldo Maués. Dissertação
(Mestrado em Antropologia), Belém: UFPA, 2000.

__________. Xamanismo e Neo-xamanismo: Pajelança Cabocla no contexto da nova


consciência religiosa. Orientação de Raymundo Heraldo Maués. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais), Belém: UFPA, 2011.

842
843
O Sagrado como objeto de estudo no ensino religioso: a
experiência do Paraná
José Antonio Lages1

Introdução

O conhecimento da religião constitui-se historicamente no inter-relacionamento entre os


aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos da sociedade. Por isso, uma hipótese
interessante para o Ensino Religioso como objeto de estudo será o estudo das diversas
organizações religiosas e suas expressões na sua relação com outros campos do
conhecimento.

Como afirma Domênico Costella (2004), a religião é uma realidade humana e institucional,
aberta ao universo da cultura. Para ele, a experiência religiosa faz parte do acontecimento
humano, com os fatos e os sinais que a expressam. Ela pertence ao universo da cultura e,
assim, possui uma relevância cultural, tem grande importância para o conhecimento.

A diversidade religiosa do Brasil é mais um elemento que pode justificar a existência do


Ensino Religioso na escola pública, na medida em que ela é fruto das raízes culturais do nosso
povo. Daí que o compromisso político-pedagógico desta disciplina seria necessariamente a
superação de todas as formas de preconceito religioso e o respeito á diversidade cultural e
religiosa. Outra concepção baseada em um caráter doutrinário só estimularia concepções de
mundo excludentes e desrespeito às diferenças culturais e religiosas.

A partir da realidade que temos hoje, a alternativa cidadã de toda a controvérsia sobre o
Ensino Religioso na escola pública não é simplesmente eliminá-lo do currículo, mas saber
exatamente de que Ensino Religioso se trata, já que ele tem uma previsão constitucional e já
faz parte da história e da tradição escolar no Brasil. Mas, no mundo em que vivemos, só terá
sentido sua inclusão no projeto político-pedagógico da escola pública e no seu currículo se for
adequado ao ideal republicano do Estado Laico e com respeito á pluralidade e diversidade
cultural e religiosa da sociedade brasileira.

1
Mestre em História pela UNESP e doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Membro do GP Memória
religiosa e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias, coordenado pelo Prof. Dr. Lauri
Emilio Wirth. Contato: professorlages@gmail.com.

844
Então, uma nova abordagem se faz necessária, superando toda e qualquer forma de apologia
ou imposição de preceitos e doutrinas, pois, na medida em que uma doutrinação religiosa ou
moral impõe um modo adequado de agir e pensar, de forma heterônoma e excludente, ela
impede o exercício da autonomia de escolha, de contestação e do contraditório e até mesmo
de criação de novos valores.

Nesse sentido, toda e qualquer religião pode ser objeto de estudo no currículo escolar. O
projeto de Ensino Religioso adotado no estado do Paraná parte de uma premissa comum a
todas as religiões, ou seja, a concepção do Sagrado, do transcendente/imanente como parte do
universo cultural humano fazendo parte do modelo de organização de diferentes sociedades.
Entendemos que a disciplina de Ensino Religioso pode propiciar a compreensão, a
comparação e a análise das diferentes manifestações deste Sagrado, com vistas à interpretação
dos seus múltiplos significados e desdobramentos, inclusive suas relações com os sistemas de
poder que prevalecem nas diversas sociedades.

1. O Sagrado como essência da experiência religiosa

Não há como falar do Ensino Religioso na escola pública sem falar no papel da(s)
religião(ões) no mundo contemporâneo. Não há como falar de Ensino Religioso na escola
pública sem falar que papel a(s) religião(ões) poderá(ão) exercer na construção de uma
sociedade mais solidária, inclusiva e aberta ao outro. Trata-se de uma realidade presente e
palpável, em franco crescimento na América Latina, África e Ásia ou em importantes
deslocamentos, como na Europa e América do Norte. Não é possível desconhecê-la.

A Secretaria de Estado da Educação do Paraná sustentou um longo processo de discussão com


todos os agentes educacionais envolvidos que resultou, em fevereiro de 2006, na primeira
versão das Diretrizes Curriculares de Ensino Religioso para a Educação Básica. Este
documento, que não é conclusivo, se baseia na proposta de implementação de um Ensino
Religioso laico e de forte caráter escolar. Procurou-se desta forma, definir e delimitar um
saber que pudesse articular o estudo do fenômeno religioso com características de um
discurso pedagógico, além de ampliar a abordagem teórico-metodológica no que se refere à
diversidade religiosa. Assim, definiu-se o Sagrado como objeto de estudo.

845
Para podermos analisar o fenômeno religioso, concordamos que seja prioritário tocar na
essência da experiência religiosa, ou seja, o Sagrado. Neste sentido, o estabelecimento do
Sagrado enquanto categoria de análise passaria a ser uma premissa de base, uma categoria de
avaliação e classificação que nos permitiria reconhecer a objetividade do fenômeno religioso.
Assim, o Sagrado é um conjunto de formas do sujeito, do homo religiosus, e não do objeto. O
fenômeno religioso deve como adverte Eliade:

[...] ser apreendido dentro da sua própria realidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa.
Querer delimitar este fenômeno pela antropologia, pela psicologia, pela sociologia e pela
ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente
aquilo que nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter Sagrado. (ELIADE,
1992, p. 17).

O espaço, o tempo e o sentido do Sagrado não se constituem, no nosso entendimento, como


um a priori. Pelo contrário, no contexto da educação laica e republicana, as interpretações e
as experiências do Sagrado devem ser compreendidas racionalmente como resultado de
representações construídas historicamente no âmbito das diversas culturas e tradições
religiosas e filosóficas.

Não se trata, portanto, de viver a experiência religiosa ou a experiência do Sagrado, tampouco


de aceitar tradições, ethos, conceitos, sem maiores considerações; trata-se antes, de estudá-las
para compreendê-las, de problematizá-las para compreender e aceitar aquele que pensa
diferente2. Se o Sagrado fosse colocado como um a priori, sem problematização alguma, nós
estaríamos promovendo um Ensino Religioso já, de antemão, comprometido com uma
determinada crença, portanto, doutrinário, unilateral e confessional.

[...] aquilo que para as igrejas é objeto de fé, para a escola é objeto de estudo. Isto supõe a
distinção entre fé/crença e religião, entre o ato subjetivo de crer e o fato objetivo que o
expressa. Essa condição implica a superação da identificação entre religião e igreja,
salientando sua função social e o seu potencial de humanização das culturas. (COSTELLA,
2004, p. 105-106).

A diversidade religiosa da sociedade brasileira na contemporaneidade reflete diversas


concepções de Religião que, por conseguinte, interferem diretamente nos modelos de Ensino
Religioso que hoje encontramos no país. Só para se ter uma rápida idéia, as religiões de
2
Vê-se, pois, que entre os objetivos que podem justificar a existência da disciplina Ensino Religioso na grade
curricular da Escola Pública já se encontra claramente definido um objetivo de formação e de caráter ético, ou
seja, a aceitação do outro como diferente, no qual os sujeitos possam se espelhar (alteridade) como base do
respeito à diversidade e pluralidade cultural e religiosa que os cercam.

846
matriz judaico-cristã se encaixam perfeitamente na concepção do religare a partir da
necessidade de um retorno do ser humano ao seu criador/libertador, após a queda/pecado
(desobediência ou ruptura da aliança). Já nas religiões de matriz africana e indígena, a
imanência da divindade rompe totalmente com a ideia de uma divindade deslocada do ser
humano e da natureza. Já as religiões orientais, como o budismo, se deslocam da própria
concepção da divindade e do Sagrado, se constituindo uma vertente mais próxima de uma
“filosofia de vida”, se assim podemos dizer.

Os modelos de Ensino Religioso adotados pelos diversos sistemas de ensino ainda refletem
também uma duplicidade etimológica. Alguns buscam um aprendizado baseado na
confessionalidade ou interconfessionalidade, como permite a própria LDBEN (Lei 9394/96),
e aí não se têm como fugir das confessionalidades cristãs (religare), restringindo-se o âmbito
de uma verdadeira diversidade religiosa. Outros se baseiam num aprendizado focado em
valores, princípios e deveres ético-sociais (religens) que, por sua vez, muito provavelmente
também não deixam de estar imunes a alguma referência confessional.

Uma abordagem sociológica necessária, mas sem reducionismos

Tomando uma abordagem sociológica da cultura, sem nos render a uma visão reducionista,
como já foi denunciado por Eliade (1992), para retornarmos depois novamente ao Sagrado,
podemos iniciar por Pierre Bourdieu (2009). Seguindo Durkheim que vê a religião como um
conjunto de práticas e representações revestidas de caráter sagrado, Bourdieu a compreende
como uma verdadeira linguagem, ou seja, um sistema simbólico de comunicação e de
pensamento, ordenando logicamente o mundo natural e social em cada sociedade dentro de
uma determinada ordem cósmica. Bourdieu (2009) enfatiza aqui a produção de sentido da
religião, na mesma linha de Weber.

A religião é, pois, para ele, uma totalidade estruturada, pois seus elementos internos se
relacionam entre si e formam uma totalidade coerente e capaz de construir a experiência
humana vivida baseada em alicerces revestidos de caráter sagrado (não se pode colocar em
discussão categorias de Sagrado e profano), assegurando o consenso lógico e moral de todas
as sociedades.

847
Segundo ele, os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação,
só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. A Religião, como estrutura
estruturante, exerce um poder sobre as pessoas porque comporta símbolos estruturados e,
segundo Bourdieu, “os símbolos são instrumentos por excelência da integração social”
(BOURDIEU apud OLIVEIRA, 2010, p. 180). Portanto, a religião, enquanto conjunto de
símbolos estruturados tem poder de integração social, ou seja, tem a função de integrar,
incluir o indivíduo num determinado grupo social ou na sociedade de uma maneira geral.

Na mesma linha de Bourdieu, Clifford Geertz (1989), na sua obra A Interpretação das
Culturas, afirma que o fenômeno religioso revela a síntese do ethos de uma comunidade,
através dos símbolos sagrados. Toda visão de mundo é plasmada pela religião na sua origem e
no seu desenvolvimento. Sabemos que a religião ajusta as atitudes humanas em uma ordem
cósmica e projeta esta mesma ordem na sua experiência.

Geertz inova ao sugerir uma definição de religião que seja reorientadora e estimuladora de
uma nova abordagem sobre o tema:

[...] (a religião é) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes
e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que
as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1989, p. 104-
105).

Assim, para Geertz (1989) a religião aparece como um sistema simbólico que será
responsável por um determinado tipo de comportamento social, admitindo o quadro de
referência que ela representa e a ordem existencial que ela configura. Exatamente, então, por
auxiliar na construção da identidade humana, a pluralidade das organizações religiosas
constitui um campo de interesse dos estudiosos das religiões e do Sagrado, elemento este
universal que perpassa as diversas e distintas tradições religiosas, em contraposição ao
profano, nas palavras de Eliade:

O Sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações


existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. [...] os modos de ser Sagrado e
profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e,
consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso
de conhecer as dimensões possíveis da existência humana. (ELIADE, 1992, p. 20).

848
[...] a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”,
possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo”, o
viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e, portanto, a
relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o ponto
fixo já não goza de um estatuto ontológico único, aparece e desaparece segundo as
necessidades diárias. (ELIADE, 1992, p. 27).

Mas sabemos que não é atributo exclusivo do Sagrado a busca de um ponto fixo para a
ordenação da fundação do mundo real. O próprio Eliade (1992) o admite. Este ponto fixo pode
ser reivindicado também numa dimensão profana – a política. Esta outra dimensão tem de
ficar bastante clara nos estudos de religião, e também nos currículos escolares, incluindo
assim as vertentes agnósticas e arreligiosas.

2. Não desconhecer a religião como sistema de poder sobre as mulheres e os homens:


uma visão sinóptica

Nesta perspectiva profana, vários pensadores exigiram a humanização e a racionalização deste


espaço sagrado pelo próprio ser humano. Aqui podemos citar Espinosa, Kant, Marx,
Feuerbach e tantos outros. Não se trata nesse caso da homogeneização ou da relativização
profana, nos termos referidos por Eliade (1992) ao homo religiosus, mas, de sua
racionalização e mesmo de sua politização, posição que não é necessariamente excludente da
religiosidade, como vários outros autores já apontaram, mas que, de qualquer forma deve
fazer parte dos estudos de religião.

O tratamento da religião como objeto de estudo e não de fé, quase sempre foi matéria
controversa e contribuiu para a desconstrução do paradigma da religião enquanto sistema de
poder. Espinosa, Feuerbach e Marx, por exemplo, por caminhos diferentes, realizaram a
desmistificação do caráter alienante da religião e da sua vinculação a esquemas de dominação
contrários à emancipação humana. Este foi e ainda permanece um longo debate. Mas aqui é
bom alertar que a crítica marxiana da religião escapa ao simplismo de tantas interpretações
marxistas correntes; é fácil descobrir que não tem sido Marx, mas a interpretação engelsiana
(mais metafísica e mais dogmática) a que tem mais influído neste campo na posterior crítica à
religião.

Mas, na contramão desta interpretação marxista ortodoxa, encontramos mesmo dentro do


campo marxista, diversos outros autores que têm visto na religião um duplo papel histórico.

849
Citemos Rosa de Luxemburgo e principalmente Antonio Gramsci. Este vê a religião como
ideologia das classes subalternas situada historicamente, ou seja, ora assumindo até um papel
revolucionário de transformação social, ora se restringindo a um papel conservador das
estruturas sociais. Outros, a partir da Teologia da Libertação, como Franz Hinkelammert,
Henrique Dussel e Michael Lowy seguiram esta perspectiva, dando uma enorme contribuição
a este debate. O conhecimento e o estudo da(s) religião(ões) não podem prescindir de todo
este feixe de leituras e possibilidades do fenômeno religioso na história humana.

Max Weber (1981), por outro lado, analisou as influências das concepções religiosas no
comportamento e na formação das sociedades. Este autor busca demonstrar a relação de
mútua influência existente entre o sistema de crença e o sistema econômico, com
desdobramentos no âmbito da estratificação social. Weber trabalha com a possibilidade de
que a conduta religiosa influencia na transformação econômica das diversas sociedades, pois a
atitude dos seres humanos nas diversas formas de organização social pode ser entendida por
meio das concepções que a mulher e o homem possuem da sua própria existência.

Já Michel Foucault (1979) fornece um interessante aparato teórico perfeitamente cabível para
o estudo das religiões. Desde sua noção de discurso e de uma implementação das relações de
saber/poder pelos regimes de verdade, ao qual as religiões geralmente não escapam, até nas
reflexões sobre as possibilidades de resistências quando estas se enquadram como contra-
discursos à corrente hegemônica. Além disso, pensando na constituição dos sujeitos, é
possível que a temática religiosa possa estar presente tanto no processo de sujeição, como o
próprio Foucault (1988) nos demonstra em A vontade de saber, como também no processo de
subjetivação. Apesar da preocupação central de Foucault não ser a religião, é possível
executar uma reflexão inspirada neste autor para se compreender aspectos do fenômeno
religioso e suas práticas, seja nas relações de saber/poder ou nas questões de constituição dos
sujeitos religiosos.

3. Nos conteúdos inferidos do sagrado, a possibilidade de uma abordagem sobre o poder


religioso

A Secretaria de Estado da Educação do Paraná, nas suas Diretrizes Curriculares de Ensino


Religioso para a Educação Básica, definiu para esta disciplina três conteúdos estruturantes, a

850
saber: Paisagem Religiosa, Universo Simbólico Religioso e Texto Sagrado. Segundo Gil &
Alves (2005: 51-83) esses conteúdos estruturantes referem-se, respectivamente:

a) à materialidade fenomênica do Sagrado, a qual é apreendida através dos sentidos. É a


exterioridade do Sagrado e sua concretude, os espaços sagrados: a paisagem religiosa. Uma
paisagem religiosa define-se pela combinação de elementos culturais e naturais que levam a
experiências com o Sagrado e a uma série de representações sobre o transcendente e o
imanente, presentes nas diversas tradições culturais e religiosas.

b) à apreensão conceitual através da razão, pela qual se concebe o Sagrado pelos seus
predicados e reconhece-se a sua lógica simbólica. É entendido como sistema simbólico e
projeção cultural: o universo simbólico religioso. Um universo simbólico pode ser visto como
o conjunto de linguagem que expressa sentidos, comunica e exerce papel relevante para o
imaginário e para a constituição das diferentes religiões.

c) à tradição e à natureza do Sagrado enquanto fenômeno. Neste sentido é reconhecido através


das Escrituras Sagradas, das Tradições Orais Sagradas e dos Mitos: o texto sagrado. Os textos
sagrados expressam ideias e são a forma de dar viabilidade à disseminação e à preservação
dos ensinamentos de diferentes tradições religiosas, o que ocorre de diversas maneiras. O que
caracteriza um texto como sagrado é o reconhecimento pelo grupo de que ele transmite uma
mensagem originada do ente sagrado ou, ainda, que favorece uma aproximação entre os
seguidores e o Sagrado.

Para os conteúdos estruturantes, referidos acima, vê-se uma gama enorme de possibilidades
de se tratar o poder religioso, nas suas formas simbólicas e mesmo em outras formas, numa
dimensão de transversalidade entre eles a partir do Sagrado. Para isso, acreditamos que tanto
Bourdieu quanto Foucault sejam referenciais teóricos privilegiados, mas também outros na
linha de interpretação marxista não-ortodoxa, a exemplo de Gramsci, ou outros ainda bastante
inovadores, na linha dos estudos subalternos ou pós-coloniais, como Jorg Rieger, ou ainda na
área do diálogo inter-religioso, como sugere Danilo R. Streck.

Não é possível desconhecer o poder que a religião continua tendo na sociedade no início do
século XXI, apesar das previsões desde a morte de Deus colocada por Nietzsche e do
desencantamento do mundo de Max Weber há um século. Especialmente no contexto da
América Latina, verifica-se que a realidade religiosa passa muito longe daquelas previsões e

851
até um reencantamento seria bastante discutível, como disseram outros.3 O fato é que a
religião nunca deixou o seu lugar, por mais que tenham avançado os processos de
secularização e laicização da sociedade latino-americana.

Este poder religioso não só se manifesta no nível individual das pessoas, no seu
comportamento, nas suas escolhas, na inserção dos sujeitos na realidade concreta, mas
também no nível coletivo perpassando as mais diversas esferas da sociedade. Como dizia
Foucault (1979), poder invisível, indizível, molecular, disciplinar, poder como prática social,
como relações de poder construídas historicamente para tornar as mulheres e os homens úteis
e dóceis. A religião se faz presente como nunca.

Mas como levar estes referenciais teóricos para dentro da sala de aula? Em primeiro lugar, se
os professores de Ensino Religioso já tiverem consciência deles e souberem fazer uma leitura
da realidade religiosa que os cerca na perspectiva destes autores já seria um grande avanço.
Em segundo lugar, a leitura pedagógica destes referenciais seria possível, dependendo do grau
de maturidade dos alunos e da abertura da comunidade escolar a essas novas leituras do
religioso (gestores, corpo docente, mães e pais). No sistema estadual de ensino do Paraná,
onde o Ensino Religioso só é oferecido aos alunos de 6º e 7º anos do Ensino Fundamental,
torna-se bem mais difícil trabalhar os conteúdos previstos com estas novas propostas de
referenciais.

Como já foi dito, o conhecimento na escola é organizado de modo a favorecer a sua


abordagem por meio de diferentes disciplinas, conforme a prioridade de cada uma. Assim,
não podemos desconhecer que o estudo dos lugares sagrados tem muito a ver com a
Geografia4, os textos sagrados orais ou escritos com a Literatura e os símbolos e festas
religiosas com as Artes, por exemplo. A temporalidade sagrada não é impermeável à
temporalidade profana e aqui a História tem muito a contribuir também, na perspectiva do
próprio Mircea Eliade (1992).

3
Antônio Flávio Pierucci é um deles. Ele faz severas críticas a certos sociólogos da religião que vêm celebrando
a fatualidade empírica da revanche do sagrado e da volta de Deus aplaudindo o fim do processo de secularização.
Como se dados empíricos pudessem provar que o desencantamento do mundo não se deu. Ele critica os que
continuam a falar do declínio persistente da religião nos dias de hoje sem levar em conta a contradição entre a
secularização da sociedade e a continuidade das crenças.
4
Já é oferecida em algumas instituições de ensino superior a disciplina Geografia da Religião dentro do
Departamento de Geografia, como na Universidade Federal do Paraná, ministrada pelo Prof. Dr. Sylvio Fausto
Gil Filho, a quem agradecemos por importantes informações e esclarecimentos que utilizamos neste trabalho.

852
De qualquer forma, a abordagem daqueles conteúdos seria enormemente enriquecida com a
utilização, pelos professores de Ensino Religioso e de outras disciplinas, de instrumentais
teóricos vindos de Gramsci, Foucault, Bourdieu, Jorg Rieger e Danilo Streck. Vejamos no
caso de Bourdieu.

4. Sistemas religiosos como sistemas de poder: o instrumental de Bourdieu

O campo religioso é um modelo teórico sugerido por Pierre Bourdieu (2009) muito
interessante para analisarmos as relações de poder a partir do Sagrado. Este modelo se
desdobra a partir da noção de trabalho religioso que ele entende como a produção e
objetivação de práticas e discursos revestidos do Sagrado que atendam à demanda de sentido
por parte dos demais grupos de leigos no campo religioso. Assim, o campo religioso é o
“conjunto de relações internas entre os agentes religiosos ou especialistas religiosos no
atendimento às demandas dos leigos por bens religiosos.” (BOURDIEU, 2009, p. 54).

Mas essas relações são também relações de força á medida que os especialistas religiosos
(sacerdotes, profetas, magos ou feiticeiros) travam entre si uma luta pelo monopólio da
produção desses bens religiosos e, ao mesmo tempo, tentam monopolizar essa produção em
relação aos consumidores (leigos) desses bens (relações de transação), destituídos e
impedidos de qualquer produção própria (BOURDIEU, 2009). Os cismas e heresias religiosas
da cristandade medieval, bem como a própria Reforma Protestante no século XVI, podem ser
estudadas, nesta perspectiva, a partir da disputa teológica, entre os especialistas religiosos
cristãos daquela época, de um bem religioso por excelência, qual seja, a salvação da alma.

Numa sociedade de classes com produção de excedentes e com a divisão social do trabalho,
os agentes religiosos são sustentados pelos consumidores (teoria do trabalho religioso). Tanto
a distância cada vez maior entre produtores e consumidores, quanto a elaboração pelos
primeiros de doutrinas e crenças que desqualificam seus concorrentes no campo religioso e
anatematizam (como transgressão) qualquer coisa fora da ordem cósmica admitida, dão
maior autonomia ao campo religioso (BOURDIEU, 2009).

A teoria do trabalho religioso possibilita ainda a compreensão de como se sustentam


atualmente os líderes das mais diversas comunidades religiosas. A noção do dízimo das
igrejas cristãs pode ser aqui colocada em correspondência com os textos sagrados que o

853
estabelecem. A elaboração de crenças que desqualificam qualquer doutrina diferente da
oficial como transgressão nos leva à compreensão das noções de dogma, pecado, heresia,
salvação, condenação, castigo divino, etc.

Assim,

a eficácia simbólica deste esquema está justamente na capacidade dos agentes religiosos
inculcarem aquelas doutrinas e crenças na consciência dos crentes de modo a se
reproduzirem como comportamentos naturais, como habitus. Mas esta não é apenas uma
eficácia simbólica, mas também uma eficácia política, na medida em que este campo
religioso é responsável em perenizar relações de classe, hierarquias e dominação política.
(BOURDIEU, 2009, p. 98).

Assim, o habitus religioso explica, até certo ponto, a conformidade, por exemplo, dos servos
da Europa feudal à sociedade das três ordens (verdadeiro dogma religioso). É possível
atualizar este habitus medieval para os nossos dias na análise dos comportamentos dos leigos
nas suas comunidades. Recorrendo agora a Michel de Certeau (1998), é possível estudar as
estratégias das instituições religiosas para manter este habitus e as táticas dos leigos
(astúcias) para o burlarem sem romper com a pertença.

Bourdieu (2009) nos traz ainda a noção de transfiguração, a partir da consagração das
relações sociais numa dada ordem cósmica. O monopólio do trabalho religioso pelos
especialistas no campo religioso os capacita a justificar, por exemplo, a posição de uma classe
dominante e seu bem-estar material e, ao mesmo tempo, explicar a opressão de uma classe
dominada e sua compensação futura. A consagração das relações sociais não explica apenas a
sociedade cristã medieval, mas ainda hoje pode explicar também a sociedade de castas do
Bramanismo.

Acredito que este conjunto conceitual de Bourdieu (2009) é válido na sociologia da religião
como tentativa de superação do dilema entre uma visão idealista e outra materialista sobre a
religião, bem como uma saída interessante para uma nova visão da autonomia da religião a
partir da noção de campo religioso. Ele elabora uma síntese interessante de Weber e
Durkheim e os ultrapassa de certa forma com as noções de trabalho e campo religiosos.

Mas, por outro lado, percebemos que Bourdieu continua muito dependente de uma sociologia
cujos conceitos ainda estão muito ligados a um cristianismo esgotado da Europa, se podemos
dizer assim, e desconhece o dinâmico cristianismo latino-americano. Ele dá uma contribuição

854
ímpar à compreensão da religião no seu viés sociológico, mas ainda muito ligada à matriz
religiosa judaico-cristã (ao utilizar, por exemplo, categorias como sacerdotes, profetas,
carisma, etc.). Por conta disso, vemos que sua contribuição para o estudo dos fenômenos
religiosos contemporâneos é limitada5, até por que passa ao largo das novas religiosidades da
América Latina, África e Ásia e dos novos transcursos religiosos como os descritos por
Hervieu-Léger (2008) principalmente para a Europa.

Mas o interessante é que, em vários âmbitos políticos e acadêmicos reconhecidamente


distantes da questão religiosa, seja pela sua postura filosoficamente ateia, seja pela sua clara
origem ideológica marxista, começa-se a esboçar outra visão sobre o Ensino Religioso no
âmbito público. Ninguém nada menos que Régis Debray, onze anos atrás, nos trazia uma
posição bastante surpreendente, vinda de quem vinha. Interessante relatório seu de 2002
propôs o Ensino do religioso (l’enseignement du religieux) em vez do Ensino Religioso na
escola pública, buscando uma aproximação descritiva, factual e nocional das religiões em sua
pluralidade, sem privilégios e exclusividades. O desafio apontado por Debray se refere à
incultura religiosa dos estudantes das escolas públicas francesas, decorrente principalmente
da ruptura das identidades religiosas herdadas, o que dificulta, sem dúvida, a sua formação
geral de toda uma geração.

Considerações finais

As considerações sobre a religião e o Sagrado enunciadas acima exemplificam interpretações


possíveis do fenômeno religioso. Não é o caso de se optar por uma defesa ou recusa da
religião, mas sim demonstrar que existem diversas formas de apreender ou não o Sagrado e
todas elas devem ser consideradas nas aulas de Ensino Religioso. A definição do Sagrado
como objeto de estudo do Ensino Religioso pode ter como objetivo a compreensão, o
conhecimento e o respeito das expressões religiosas advindas de culturas diferentes, inclusive
das que não se organizam em instituições, e suas elaborações sobre o fenômeno religioso.

Muitos dos acontecimentos que marcam a vida em sociedade são atribuídos às manifestações
do Sagrado. Tais manifestações intervêm no andamento natural das coisas e são aceitas na

5
Mesmo para o estudo das religiões da(s) divindade(s) imanente(s) ao homem e à natureza, o instrumental
teórico de Bourdieu apresenta sérios problemas de aplicação. Para as religiões de matriz africana e indígena, os
conceitos de Clifford Geertz e Pierre Clastres são mais pertinentes.

855
medida em que trazem explicações que superam a realidade material ou que servem para
responder a assuntos não explicados ou aceitos com facilidade, como por exemplo, a morte. O
entendimento do Sagrado ajuda a compreender as explicações sociais que ignoram as leis da
natureza e atribuem a um transcendente ou imanente a intervenção no andamento natural das
coisas. Sagrado é, pois, o olhar que se tem sobre algo ou a forma como se vê determinado
fenômeno. Aquilo que para alguns é natural, normal, para outros é encantamento, sublime,
extraordinário e merecedor de um tratamento diferenciado, portanto, separado.

Acreditamos que, a partir disso, além do que prevêem as Diretrizes Curriculares de Ensino
Religioso para a Educação Básica no Paraná, as manifestações políticas do Sagrado na
sociedade também deverão necessariamente ser abordadas. Não se pode fugir da realidade da
religião enquanto sistema de poder sobre as mulheres e os homens, sobre as cidadãs e os
cidadãos.

De qualquer forma, é imprescindível que nas aulas de um Ensino do Religioso, como queria
Debray (2002), os desdobramentos do Sagrado sejam tratados de modo a serem percebidos
pelos educandos não apenas como simples conteúdos que fazem parte de um programa de
ensino, mas, sobretudo, relações de poder dentro de um campo religioso, na concepção de
Bourdieu. Somente assim ficaria garantido um papel fundamental desta disciplina para o
reconhecimento da diversidade e da aceitação do outro, frente ao crescimento dos mais
diversos fundamentalismos, religiosos ou não.

Podemos concluir, reafirmando que o estudo da religião nos ambientes escolares é


fundamental, não só porque a religião pode ser o mais despercebido instrumento de
sustentação (teórica e prática) das mais diversas formas de poder e dominação, tanto ontem,
quanto em nossos dias em relação a outras formas contemporâneas relacionadas a questões de
raça, gênero, opções sexuais, religiosas, etc., aliás, exatamente como propôs Jorg Rieger.

Assim, faz-se necessário definir os conteúdos da disciplina de Ensino Religioso, de modo que
variados aspectos das mais diversas tradições religiosas possam ser estudados como saberes
escolares e o aluno possa compreender a maneira pela qual se dá a manifestação religiosa com
todas as suas implicações para a sociedade, inclusive nas suas relações de poder.

856
Referências

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CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998.

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DINIZ, Debora et al. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: UNESCO, LetrasLivres
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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade (vol. I). A vontade de saber. Rio de Janeiro:
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em sociologia da religião. Conferência pronunciada no VII Congresso da Sociedade Brasileira
de Sociologia, “A contemporaneidade brasileira: dilemas e desafios para a imaginação
sociológica”. Brasília, UNB, 9 de agosto de 1997. In Novos Estudos CEBRAP, nº 49 1997, pp.
99-117.

857
RIEGER, Joerg. Libertando o discurso sobre Deus. Estudos de Religião (UMESP), Ano XXII,
jan/jul 2008, n. 34, pp. 84-104.

STRECK, Danilo Romeu. Uma Educação Ecumênica. Oito proposições sobre um tema
controvertido. Estudos de Religião (UMESP), Ano XII, julho/1998, n. 14, pp. 35-48.

WAGNER, Raul (Org.) O ensino religioso no Brasil. Curitiba: Champagnat, 2004.

WEBER, Max A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira; Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, s/d.

858
859
Uma história de combate ao racismo no Marajó

Maria do Carmo Pereira Maciel6, Rodrigo Oliveira dos Santos7

Introdução

Após 10 anos da promulgação da Lei nº 10.639/2003, que modificava a Lei nº 9.394/1996, a


Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), sendo a última alterada pela Lei nº
11.645/2008, acrescendo, a obrigatoriedade no currículo das escolas a temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”, a “História e Cultura Indígena”, nos seguintes termos:

Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a
seguinte redação:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e


privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da


história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses
dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2 o Os conteúdos referentes à
história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.

A obrigatoriedade das temáticas, como constatamos, estende-se aos sistemas de ensino


público e privado, envolve diversos aspectos que caracterizam essas culturas e formação da
população brasileira, tais como: o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, assim como das suas culturas, sem desprezar o valor
dessa religiosidade, ressaltando, principalmente, na abordagem das temáticas, suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, no contexto do processo histórico-social.

6
Professora responsável da EMEIF Tito Leão de Paula e professora na EMEF Prof. Oscarina Santos em
Salvaterra e Bahá’í, ilha de Marajó. Contato: carminhaprofessoa@yahoo.com.
7
Mestrando em Educação (PPGED/UFPA) na LP Educação: Currículo, Epistemologia e História. Bolsista da
CAPES. Líder do GP Educação e Religião na Amazônia (GPERA). Bolsista da CAPES. Membro do GP
Filosofia, Ética e Educação (GPFEE/UFPA) e Hermenêutica, Antropologia e Educação (GPHAE/UFPA).
Professor na rede estadual e municipal (Belém) de ensino. Contato: naumamos@yahoo.com.br.

860
Nesses termos, não temos como negar o compromisso assumido pelo Estado brasileiro, no
sentido de assegurar conhecimentos inerentes e fundamentais da sua própria população,
outrora, para não dizer quase sempre deixados em segundo plano, mesmo que isso tenha sido
objeto de leis, demonstra o desvalor diante do reconhecimento da participação de outros
povos, no processo de formação e construção deste país com o caráter da obrigatoriedade.

Sabemos que várias questões estão envolvidas nesse processo e que não temos como aqui
encerrá-las, apenas questionamos que esse “despertar” demorou em acontecer no bojo do
Estado laico.

Nesse sentido, partimos dos pressupostos legais para abordar a temática na escola pública
laica, contando com o protagonismo dos alunos, que de posse desses conhecimentos não
hesitaram em proclamar a laicidade do Estado, mesmo quando este se mostra indiferente e, às
vezes, agressor, não permitindo o valor e reconhecimento de outros povos que hoje compõem
esta população.

Isso demonstra que o Estado nada mais é do que pessoas que sempre foram mergulhadas nas
águas da negação, em detrimento de outras águas que aqui já jorravam e que se entrecruzaram
com a chegada dos africanos e outros povos, mesmo que seja impossível não se misturar, uma
vez que a composição química é a mesma. Trata-se de seres humanos com outros seres
humanos que negam outros com sua história e cultura, mesmo que isso não caiba mais em
nosso tempo, achamos que damos conta de esclarecer isso em casa, com o pretexto de tratar-
se de questões de foro íntimo, acabamos por negar aspectos fundamentais de todo e qualquer
povo com sua cultura, que tem nas suas crenças mais do que uma referência, pois, para
algumas, elas são indissociáveis da vida pública, logo, porque não assegurá-las pelo
conhecimento dessa diversidade.

Dessa maneira, percorremos vários tempos e espaços dessa história, iniciada em 2008, numa
cidade da ilha de Marajó, marcada por várias nações indígenas e populações remanescentes
dos antigos quilombos, outrora, negadas no contexto escolar, mas que passaram, em diversos
eventos pedagógicos, a serem conhecidos, marcando para sempre uma história de combate ao
racismo no Marajó.

861
A laicidade do Estado e o estudo da religião na escola

A laicidade do Estado na Educação Brasileira – Educação Básica (Educação Infantil, Ensino


Fundamental e Ensino Médio) e Superior –, é quase sempre confundida pela negação do
conhecimento da religiosidade brasileira, uma vez que, no Estado laico, Este não se mostra
vinculado a uma ou outra crença, mas deve assegurar o direito dos seus cidadãos, como
preconiza o artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Nesse ponto, para que esse direito não seja violado, é preciso esclarecer os fundamentos que
orientam cada povo participante na formação e construção da sociedade e da cultura
brasileira, sabendo que, um dos aspectos centrais dessa produção humana que vem orientando
em todos os tempos o fazer e ser humanos, com padrões de civilidade, valores e cosmovisões,
quase sempre toma como referência a religião, uma amálgama de conhecimentos
indispensáveis para a compreensão de bilhões de seres humanos por todo mundo.

Esses esforços na Educação Básica vêm sendo empreendido pelo Ensino Religioso, que centra
sua abordagem no conhecimento da diversidade cultural religiosa do Brasil, sem proselitismo,
para desenvolver o estudo da religião a partir da fenomenologia religiosa.

Segundo Oliveira et al. (2007, p. 102) “O objeto do Ensino Religioso é o fenômeno religioso,
assumindo a conceituação de religião dada pelo latim religio, na forma de sua derivação:
relegere, que em português significa “reler””, ou seja, na escola,

O Ensino Religioso, particularmente, tem a leitura e a decodificação do fenômeno religioso


como base de sustentação de sua estrutura cognitiva e educativa e visa contemplar tanto a
pluralidade que envolve o contexto de sua temática quanto à complexidade das duas áreas
por ele incorporadas, a saber: a Educação e a Religião (OLIVEIRA et al., 2007, p. 101).

Trata-se da abordagem científica da religião na escola a partir da empiria religiosa, ou seja,


das experiências e manifestações com auxílio das diversas ciências que se ocupam do estudo
religião (história, psicologia, filosofia, sociologia, antropologia, dentre outras), privilegiando a
fenomenologia religiosa que estuda os fatos religiosos em sua intencionalidade (seu eidos), ou
seja, em sua essência, como melhor explicita Croatto (2010, p. 25):

[...]: a fenomenologia parte necessariamente dos fenômenos religiosos (fatos, testemunhos,


documentos), contudo, explora especificadamente seu sentido, sua significação para o ser
humano específico que expressou ou expressa esses mesmos fenômenos religiosos.

862
Essa forma de compreender os fenômenos religiosos, já que são múltiplos e variados, permite
perceber que os atos religiosos possuem uma estrutura, não só sentido, mas nas ações, como
destaca o autor.

Essas formas de entender o sentido dos fenômenos e o que eles significam, segundo Croatto,
são melhores compreendidas quando situados no contexto histórico, pois o estudioso pode
localizar esses fenômenos em seu contexto vivencial.

Outro aspecto relevante da fenomenologia consiste em

Ressaltar a vivência do outro implica numa redução do próprio juízo de valor do estudioso;
é o que Husserl chama de “redução eidética” (=suspensão do juízo próprio em favor da
intenção do ser humano religioso) ou uma epoché. É uma atitude fundamental quando se
quer partir dos fatos religiosos em sua função existencial e não da interpretação de quem o
estuda.

É evidente, contudo, que é impossível não interpretar; mas é preciso ter consciência de que
o primordial é a experiência de quem se expressa religiosamente e não a leitura do
estudioso.

Os fenômenos religiosos são históricos, vividos em um âmbito cultural, linguístico,


institucional e social delimitado (CROATTO, 2010, p. 26-27).

Sobre esses aspectos, Croatto, a partir dos estudos de Husserl reforça o caráter central da
fenomenologia, em favor da intenção do homem religioso “homo religiosus”, que só pode ser
compreendida se o fenomenólogo entrar em sintonia com a intenção originária, capturando o
núcleo dessa experiência não para ele, mas para o homo religiosus.

Essa suspenção de juízo permite, dessa forma, a superação do julgamento de valor e de


verdade no estudo da religião a partir do momento que cada pessoa pode conhecer qual o
sentido da experiência religiosa ou não, assim como o que ela representa e significa não
partindo da concepção de quem estuda, mas do fenômeno estudado.

Essa reflexão é de suma importância e não contempla na totalidade a realidade das


abordagens do estudo da religião na escola, apenas localizamos na produção bibliográfica
existente sobre esse aspecto desse componente curricular, que na sua maioria aponta para a
fenomenologia, além do estudo comparado das religiões, também conhecido como história
das religiões, da hermenêutica, já que na prática, todos eles não deixam de ser uma
fenomenologia-hermenêutica da religião.

863
Esses aportes são provenientes das Ciências da Religião, área acadêmica que vem se
consolidando no país desde a década de 70 do século passado. Nesse sentido,

As Ciências da Religião podem oferecer base teórica e metodológica para a abordagem da


dimensão religiosa em seus diversos aspectos e manifestações, articulando-a de forma
integrada com a discussão sobre a educação. A educação geral, fundada em conhecimentos
científicos e em valores, assume o preceito religioso como um elemento comum às demais
áreas que fazem parte do currículo e como um dado histórico-cultural fundamental para as
finalidades éticas inerentes à ação educacional. Portanto, nesse modelo não se afirma o
ensino da religião como uma atividade cientificamente neutra, mas com clara
intencionalidade educativa, postula-se a importância do conhecimento da religião para a
vida ética e social do educandos [...]. Nesse sentido, trata-se de uma visão transreligiosa
que pode sintonizar-se com a visão epistemológica atual, sendo que busca superar a
fragmentação do conhecimento posta pelas diversas ciências com suas especializações e
alcançar horizontes de visão mais amplos sobre o ser humano (PASSOS, 2007, p. 65-66).

Dessa forma, é preciso ampliar a discussão em torno dos aspectos teórico-metodológicos e


legais dessa área que vem sendo tomada para a formação de professores de Ensino Religioso,
algo que não temos como continuar aqui, mas percebemos o quanto as Ciências da Religião
tem muito a contribuir para leitura e decodificação do fenômeno religioso na sociedade
brasileira e na escola em atendimento aos pressupostos do Estado laico com a formação
humana do cidadão para o convívio sociocultural pacífico, fraterno e solidário.

A escola no sentido inverso: propondo o respeito o diálogo e a tolerância

Fotografias 1 e 2. Desfile do dia 7 de setembro: diversidade cultural religiosa (2008).8

A escola Oscarina Santos há alguns anos apresenta temas importantes nos desfiles de 7 de
setembro. O tema sugerido para 2008 foi a diversidade cultural religiosa, mas não foi
aprovado pela maioria, ficando restrito às turmas do 7º ano, que representaram o Ensino

8
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos (álbum pessoal).

864
Religioso, demonstrando o máximo empenho em conscientizar a comunidade para o respeito,
diálogo e tolerância religiosa no município de Salvaterra, favorecendo o conhecimento das
tradições religiosas e possibilitando o contato e o sentimento de respeito ao novo e
desconhecido. Nesses termos, foi enviada uma carta convite para uma reunião com as
lideranças religiosas, comparecendo o sacerdote católico, um pastor, dois babalorixás e uma
ialorixá. Ao virmos, parecíamos sonhar, pois sabíamos que a tolerância religiosa deveria
iniciar por eles, para assim chegar à comunidade. Na despedida da reunião houve apertos de
mãos e abraços.

A reunião focou a educação integral cidadã dos alunos e a possibilidade de conhecimento do


fenômeno religioso. Os líderes religiosos mostraram preocupação e interesse em contribuir
para que a sociedade de Salvaterra se tornasse mais consciente de suas crenças e
responsabilidades. Passamos então a organizar as ações de independência a serem
apresentadas na marcha do dia 7 de setembro. Seria criada uma personagem chamada sagrado,
que expressaria a compreensão do transcendente/imanente em todos os segmentos religiosos.

Seria um aluno negro, quebrando assim um estereótipo. Trajado por uma túnica de várias
cores, representativas das diversas religiões, teria uma grande simplicidade e seriedade, capaz
de transmitir fé, força e segurança, valores comuns a todas as tradições religiosas.

Durante a marcha, os segmentos religiosos personificados por alunos vestidos a caráter foram
ligados por faixas coloridas à personagem sagrado, representando os vários modos de se
relacionar com o transcendente e de conhecer e explicar a verdade. Dessa forma, o respeito, o
diálogo e a tolerância religiosa aconteceram, de fato, no decorrer da marcha.

Protagonismo estudantil na diversidade cultural religiosa da ilha de Marajó

Fotografias 3 e 4 – Desfile do dia 7 de setembro: diálogo, respeito e tolerância pelos líderes religiosos (2008).9

9
Idem.

865
O fato de não ter sido aceita a diversidade cultural religiosa como tema geral da escola foi
motivo de renovação de nossas forças. Sabíamos que para muitas pessoas a iniciativa de
apresentar o sagrado e a diversidade não ficaria clara, pois eles ainda não admitiam a
harmonia entre os segmentos religiosos da cidade. Mas isso não nos impediu de reservar o
tema para os alunos que representariam a disciplina Ensino Religioso.

Os alunos demonstraram segurança e responsabilidade, ao entrarem na avenida, pois


personificam o que é inerente ao ser humano: a religiosidade, o sentido do sagrado
transcendente/imanente na sociedade brasileira.

Durante o desfile, atraímos a atenção dos moradores. Os alunos representaram o catolicismo,


o protestantismo de fronteira, o pentecostalismo, a umbanda, o candomblé, a pajelança
cabocla. Foram acompanhados de algumas lideranças, como o pastor da Igreja Adventista, a
líder da Fé Bahá’í, pais de santo e uma mãe de santo com vários adeptos, muito bem
caracterizados. Integraram-se ainda o grupo adventista Desbravadores, acompanhado do
pastor, e crianças pertencentes à Igreja do Cordeiro, todas caracterizadas.

Em frente ao palco, ante as autoridades municipais, foi lido objetivo de nossa iniciativa. E o
ápice da apresentação foi o momento em que ao som da música Por amor de ti oh Brasil10, os
alunos soltaram as ligaduras que os uniam à personagem sagrado a abraçaram os líderes
religiosos, entregando-lhes uma fita onde se liam os valores comuns às religiões: amor,
solidariedade, fraternidade, fé, verdade, humildade, bondade.

O momento foi muito significativo e emocionante para os alunos que testemunharam uma
educação pautada no respeito à diversidade cultural religiosa. Após o ritual da troca de fitas,
os líderes religiosos deram-se as mãos e ergueram s braços, de frente para as autoridades
municipais e a comunidade que assistia em um ato público e solene de respeito, diálogo e
convivência religiosa. O gesto causou lágrimas aplausos da maioria.

10
CD do mesmo nome, Ministério Diante do Trono.

866
Da resistência e consciência

Fotografias 5 e 6 – Semana da consciência negra: escola Oscarina Santos e comunidade quilombola de Mangueira (2008).11

A escravidão do negro na criação de gado da ilha de Marajó começou no século 18 e com ela,
os quilombos. Hoje, o município de Salvaterra tem o maior número de comunidades
quilombolas de toda ilha: Bacabal, Mangueira, Pau Furado, Santa Luzia, São Benedito,
Rosário, Barro Alto, Providência, Salvá, Siricari, Deus Ajude, Caldeirão, Vila União ou
Campina, Paixão e Boa Vista, já conquistaram o reconhecimento, ainda que continuem a
enfrentar lutas contra a discriminação racial e pela posse da terra e o direito de ter sua história
e cultura reconhecida nas escolas.

Segundo os alunos do 8º ano, o índio e o negro na escola eram alvos de menosprezo e


estereótipos como “escravo” e “selvagem”, respectivamente. Ao ver que as turmas sofriam
com preconceitos, foi proposto o projeto Semana da Consciência Negra, desenvolvida em
cinco temas: história da escravidão, quilombos, culinária, religião e arte (música e dança).
Com o apoio da alguns professores, pais de alunos e uma mãe-de-santo, Mãe Bia, a turma
começou as atividades de pesquisa com visitas aos quilombos e a um terreiro. Esse contato
trouxe melhora visível nos relacionamentos e na superação de preconceitos.

Mãe Bia orientou os alunos na preparação de indumentárias sagradas, oferendas de comidas


típicas, pinturas, danças e tudo o que convergia para o objetivo de compreender a importância
do negro no seu contexto, em sintonia com a luta do herói histórico Zumbi dos Palmares. Os
alunos demonstravam muito entusiasmo, na preparação de tudo, ficando na escola o dia
inteiro e até a noite.

No dia da abertura da Semana da consciência negra, os adolescentes ressaltaram a beleza e a


estética da negritude no modo de pentear, na pintura e nos adornos, o que causou impacto na

11
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).

867
escola. Houve solenidade de abertura, na câmara municipal da cidade, com exposição
fotográfica dos quilombos e apresentação de capoeira e outras danças afro-brasileiras pelos
alunos da escola quilombola de Bacabal. O ponto culminante do dia foi a “Roda dos Orixás”,
formada por alunos caracterizados pelas vestes sagradas.

As apresentações continuaram durante a semana, na própria escola e no dia 20 de novembro


foi feita uma visita ao quilombo de Mangueiras, o mais antigo do município. Durante o
percurso, os alunos foram reconstituindo na memória, a história da formação dos quilombos e
ao chegarem, organizaram as exposições, danças e falas para a comunidade. A “Roda dos
Orixás” foi, então, acompanhada de oferendas de Acarajé e Omolocum, servidos após a dança
de Iansã e de Oxum, respectivamente. Os alunos do quilombo dançaram o Carimbó e a
Umbanda destacou o culto à Erundina, numa integração entre escolas, comunidade e
lideranças quilombolas e religiosas, para a desconstrução dos estereótipos e preconceitos.

As turmas do 8º ano ainda se apresentaram na escola D. Pedro I e nas escolas das


comunidades de Jubim, Barro Alto e Bacabal, onde se destacou a riqueza cultural e religiosa
de índios e negros através de danças. Caboclos, Orixás e Encantados representaram a
formação e reconstrução da religiosidade de Salvaterra e da Amazônia.

A abolição da educação

Fotografia 07 e 08 – Greve dos estudantes. Alunos da rede municipal de Salvaterra (2009).12

Após as atividades, os alunos estavam mudados, mas também perplexos pelas críticas e
pressões que sofreram e pela falta de envolvimento e apoio de pessoas significativas na cidade
e na educação, inclusive professores. Sentiram na pele e que o negro enfrenta ainda hoje. O
contato real com conteúdos reafirmou o que aprenderam durante o projeto. Embora sobrasse a

12
Idem.

868
alegria de terem encarado tudo isso juntos, viram que de todos os temas estudados e religião
afro-indígena continua sendo a mais perseguida.

Os alunos tornaram-se mais audaciosos em reivindicar respeito e apoio à cultura e à religião


do negro dentro e fora da escola e com a continuação das atividades, em 2009, as
perseguições passaram a ser uma constante, ao ponto de ser negada a solenidade de
reconhecimento dos alunos pela publicação da primeira experiência no periódico nacional do
Ensino Religioso, levando o professor Rodrigo a decidir pela saída da escola, já que, nem
mesmo os alunos eram poupados das retaliações.

Em poucos dias, os alunos organizam-se e decidem pela greve, onde mais de 300 alunos
protestaram pelas ruas da cidade, caminhando juntos ao fórum, a câmara municipal e a
secretaria de educação municipal, mesmo sem alguma solução política, eles passaram a
reescrever a história educacional em seu município.

Percebemos com isso que o mito da democracia racial ainda impede a abolição da educação.
Salvaterra é apenas um exemplo de que o racismo continua ferindo a autoestima de milhões
de alunos brasileiros, como relata uma aluna ao descrever o que mais foi significativo para
ela:

Aprender sobre o modo de viver a religião, porque nós, que moramos no centro, não temos
ideia da vida dele (Zumbi) e depois desse trabalho nós tivemos oportunidades de ver e
aprender. Até então eu não sabia quem era Zumbi dos Palmares.

A cultura, o modo de conviver, sem diferenças. Mas o mais difícil foi passar pelo
preconceito dos outros e ver antes desse trabalho nos éramos assim, preconceituosos. Para
termos consciência disso foi preciso perceber que nem tudo é um mar de rosas.

Os quilombolas sofrem com a invasão das cercas. Algumas pessoas dão apoio, mas outras
nos desestimulam. Na hora da fama, dizem que o trabalho foi maravilhoso, mas quando é
para jogar a primeira pedra, são os primeiros. Fico revoltada porque sabem que nós não
somos mais aqueles alunos calados (SANTOS, 2010, p. 63).

Nesse sentido, a escola e a educação brasileira não podem ficar indiferentes à leitura do
fenômeno religioso na sociedade, pois “A escola apresenta a diversidade, nasce na
diversidade e continuará na diversidade. Durante muito tempo, porém, a educação na ótica
europeia omitiu a religião, os valores, a ética e a moral das diversas culturas do povo
brasileiro” (MACIEL; SANTOS, 2009, p. 33).

869
Dessa forma, as referidas experiências, ressaltam a importância e a necessidade da abordagem
da diversidade cultural religiosa brasileira, reconhecendo e valorizando as diversas matrizes
que a formam, assegurando, nesses termos, a formação integral do cidadão.

A história continua

Após os fatos ocorridos, com a demissão dos referidos professores, o professor Rodrigo se
fixou em Belém, enquanto a professa Maria do Carmo ampliou a oferta das aulas particulares
em Salvaterra desenvolvendo, dessa forma, a sua docência que tanto estima.

O conhecimento da história e cultural do negro e do índio no contexto marajoara,


acompanhada pela saga de alunos, professores, comunidade, dentre outros, sendo alvo de
divulgação na mídia televisiva e nos jornais13 de circulação local, culminou com a audiência
pública promovida pelo Ministério Público Estadual do Pará (MPE/PA), tendo em vista a
discriminação sofrida por esses, provocando a opinião pública no país e em parte do mundo,
pois essa celeuma percorreu vários lugares.

No ano seguinte (2009), o referido professor foi admitido na rede estadual de ensino junto a
Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), sem hesitar na continuidade do
projeto, em parceria com o professor de História na Escola Estadual de Ensino Médio
(EEEM) Professor Ademar Nunes de Vasconcelos.

13
Intolerância religiosa preocupa. In: O liberal. Disponível em:
http://www.orm.com.br/projetos/oliberal/interna/default.asp?codigo=433984&modulo=247, acesso em
30/07/2013. Liberdade de credo é debatida durante audiência promovida pelo MP. In: Amazônia Jornal.
Disponível: http://www.orm.com.br/amazoniajornal/interna/default.asp?modulo=222&codigo=434040, acesso
em 30/07/2013. Audiência pública debate intolerância religiosa. In: Diário do Pará. Disponível em:
http://www.diariodopara.com.br/noticiafullv2.php?idnot=60586, acesso em 30/07/2013.

870
1ª Semana de combate ao racismo: dia nacional de denúncia contra o racismo 14

Fotografias 9 e 10 – Travessia para o quilombo de Mangueira e apresentação de Carimbó (2010).15

Assim foi nomeada a continuação do projeto iniciado na rede municipal de Salvaterra no


contexto do Dia 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, em consequência das
injúrias sofridas pelos professores, alunos, pais, comunidade, dentre outros que procuraram
desenvolver alguns aspectos da Consciência Negra na escola, em atendimento aos
dispositivos legais previstos nas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.

A I Semana de Combate ao Racismo, planejada a partir do Projeto com o mesmo nome,


apresentado pelo professor Rodrigo previa a continuidade das ações iniciadas no contexto
educacional de Salvaterra, agora na rede estadual de ensino, explorando o Dia 13 de Maio,
Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo.

O objetivo principal do projeto consistia no desenvolvimento de várias atividades


pedagógico-didáticas no contexto das referidas leis, a fim de combater o racismo no contexto
sociocultural dos alunos, partindo, nesse ponto, da própria escola, instrumento fundamental na
formação e construção de mentalidades.

Dessa forma, foram desenvolvidos vários estudos introdutórios sobre a questão étnico-racial
junto aos alunos, destacando a trajetória e a contribuição dos povos escravizados nos diversos
setores da sociedade brasileira, assim como as sutilezas da exclusão, decorrentes do processo
político-econômico e sociocultural, esclarecendo alguns conceitos/categorias como
preconceito e discriminação racial, intolerância, racismo, estereótipo, dentre outros, tomando
a recente experiência sofrida por alunos e professores na rede municipal de Salvaterra.

14
Para mais informações sobre a 1ª semana de combate ao racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/vasconcelos-coloca-o-racismo-em-debate/, http://dariopedrosa.com/racismo-foi-tema-
de-evento-no-vasconcelos/, acesso em 30/07/2013.
15
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).

871
Nesse sentido, a programação contou com apoio da Coordenação de Promoção de Igualdade
Racial (COPIR), da SEDUC/PA, além da Livraria Paulinas, trazendo a mais nova edição da
Revista de Ensino Religioso Diálogo com a experiência do projeto da semana da consciência
negra.

As atividades chegaram até a escola da comunidade quilombola de Mangueira, encerrando


com centenas de alunos, professores de várias escolas pelas principais ruas de Salvaterra.

2ª Semana de combate ao racismo: a escola como espaço multicultural16

Fotografias 11 e 12 – Caminhada pelo Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo (2011).17

Após o primeiro ano de atividades na rede estadual, no segundo foi proposto o seguinte tema
A escola como espaço multicultural, tendo em vista que este espaço resguarda essa
diversidade como algo que lhe é inerente.

Para isso, as atividades desenvolvidas buscavam evidenciar a temática, incluindo a elaboração


de painéis, faixas, apresentações artísticas, dentre outros distribuídas nas palestras temáticas.

A expectativa e a adesão pelos alunos era algo muito estimulador, pois eles mesmos
chegavam a propor diversas contribuições para a 2ª semana, sentindo-se participantes dessa
luta, proclamando na escola a multiculturalidade.

A multiplicidade de culturas e povos, responsáveis por diversas contribuições, seja no âmbito


político, econômico e sociocultural era um discurso presente, sem querer sobrepor um ao
outro, mas mostrando como essas relações quase sempre não foram harmônicas e tiveram na

16
Para mais informações sobre a 2ª semana de combate ao racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/combate-ao-racismo-mobiliza-estudantes-do-vasconcelos/,
http://dariopedrosa.com/vasconcelianos-no-13-de-maio/, acesso em 05/08/2013.
17
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).

872
exclusão de outros povos, com destaque para índios e africanos, o legado da marginalização e
preconceito ainda existente contra seus descendentes.

Nesses termos, de posse do conhecimento desse processo na escola vai-se construindo novas
mentalidades que reconhecem o multiculturalismo como um dos dados que a identificam na
sociedade brasileira, construída e formada por mãos de diversas etnias.

3ª Semana integrada de combate ao racismo: por uma educação das relações étnico-
raciais18

Fotografias 13 e 14 – Caminhada pelo Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. Soure


(2012).19

Em 2012, o projeto estendeu-se para o município vizinho de Soure, dividido apenas pelo rio
Paracauari e visava ampliar vários aspectos de uma educação das relações étnico-raciais, por
isso recebeu o tema Por uma educação das relações étnico-raciais.

Os esforços foram duplicados, pois o professor Vinícius teve que coordená-lo sozinho, haja
vista a saída do professor Rodrigo da escola, em função do seu distrato.

Nesse sentido, as mobilizações iniciaram em março, com a produção de cartazes, faixas,


fotografias, mensagens e apresentações artísticas pelos próprios alunos, sob a coordenação do
professor Vinícius.

Na programação constavam palestras sobre o combate ao racismo na escola, corporeidade do


negro, aspectos da cultura quilombola, o mito das raças, questões de vulnerabilidade, o
concurso de redação, o famoso concurso da beleza afro-brasileira e a grande caminhada.
18
Para mais informações sobre a III Semana Integrada de Combate ao Racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/vasconcelos-e-gasparino-tudo-pronto-para-o-combate-ao-racismo/,
http://dariopedrosa.com/semana-de-combate-ao-racismo-abre-debates/, acesso em 05/08/2013.
19
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).

873
4ª Semana integrada de combate ao racismo: a luta pelos direitos humanos20

Fotografias 15 e 16 – Caminhada pelo dia nacional de denúncia contra o racismo. Soure e


Salvaterra (2013).21

Este ano, o projeto centrou sua discursão nos direitos humanos, com o seguinte tema A luta
pelos direitos humanos, pressupondo a ênfase maior nos direitos humanos.

As atividades se mantiveram e sempre marcada por outras, onde a identificação com os laços
ancestrais eram retomados, assim como o reconhecimento da estética, do comportamento e de
outros traços no fazer e ser afro-marajoara.

Durante o evento, ainda se fez presente vários integrantes da Associação Afro


Desenvolvimento Casa Preta22, mais conhecida por Coletivo Casa Preta, abordando a história
da música negra.

As referidas atividades foram apresentadas durante três dias, com muita ousadia,
envolvimento e alegria por todos os envolvidos que sem se intimidarem em mostrar vários
aspectos da contribuição dos povos africanos na cultura brasileira, em cooperação com o fazer
e ser marajoara, integrando elementos da cultura local, como destaca as fotos abaixo.

Embora sempre se façam presentes às dificuldades, o projeto iniciado num período


conturbado e marcado por injúrias e perseguições, não tínhamos certeza da dimensão e da
grandiosidade do seu alcance, que a cada ano, como observamos, com a participação em
massa de novos setores, da comunidade e de grupos escolares que veem na caminhada um

20
Para mais informações sobre a III Semana Integrada de Combate ao Racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/2013/05/07/, http://dariopedrosa.com/10646/, acesso em 05/08/2013.
21
Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=111900109014406&set=a.111898672347883.1073741829.1000058
32523070&type=1&theater, acesso em 05/08/2013.
22
Para saber mais sobre a Associação. Disponível em: http://www.coletivocasapreta.com.br/, acesso em
05/05/2013.

874
espaço de luta e de igualdades em prol do civismo e da cidadania da população local,
independente de quaisquer diferenças, como previsto na legislação nacional e internacional.

Isso é uma prova de que a história é movida por aqueles que a ela se filiam e acreditam é
possível construir fatos positivos, a exemplo de uma história de combate ao racismo no
Marajó, a fim de que haja na sociedade brasileira o respeito mútuo e a convivência fraterna e
solidária, pautada nas liberdades individuais e coletivas de forma igualitária.

Considerações finais

Faltam-nos palavras diante dos avanços e das ações que estiveram como centro o
protagonismo dos alunos, principais mentores da construção e formação da educação para as
relações étnico-raciais, onde as diferenças passaram a ser (re)conhecidas e respeitadas, num
diálogo permanente para o exercício da tolerância.

O fato é, que sem eles não teríamos ido tão longe e permitido a continuação do projeto hoje,
sob a coordenação do professor Vinícius, que não mede esforços e disposição para gerir o
mesmo em dois municípios, com tamanha qualidade e dedicação.

Durante esses anos vimos, ouvimos e conhecemos muitos casos resolvidos, nas quais residiam
dificuldades emocionais e afetivas por conta dessa negação, sendo logo dissipadas na vida de
muitos alunos, não somente, sendo incontáveis as contribuições daqueles que sentiram e ainda
sentem o peso dessa responsabilidade que em tese seria oportunizar nas escolas experiências
dessa magnitude, um direito dos alunos e responsabilidade do Estado laico.

A convivência pacífica e respeitosa precisa ser estimula em todo tempo, principalmente no


cotidiano escolar, a partir do contato real das dificuldades implantadas na mentalidade da
sociedade brasileira, que teve nos seus quatro primeiros séculos uma postura de negação,
exclusão e até mesmo de eliminação das diferentes diferenças de várias ordens, assumindo
ainda uma postura não tão diferente com a diversidade cultural religiosa na escola, pelo
simples entrave da dicotomia na sua abordagem.

O lugar do estudo da religião na escola circunscreve-se no estudo do fenômeno religioso e da


fenomenologia religiosa para uma hermenêutica dessas questões na sociedade.

875
O Ensino Religioso pode muito bem contribuir nesse aspecto, desde que seja referenciado no
modelo das Ciências da Religião.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.

__________.. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais


e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2005.

__________. Lei nº 9394. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionado em 20


de dezembro de 1996. Publicada no Diário Oficial da União, em 23 de dezembro de 1996.

__________. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997. Brasília, 1997.

__________. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Brasília, 2003.

__________. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, 2008.

__________. Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília:


SECAD, 2006.

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à


fenomenologia da religião. Trad. Carlos M. V. Gutiérrez. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2010.

MACIEL, Maria do Carmo Pereira; SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. A caminho da


multiculturalidade: ensino religioso na ilha do Marajó. In: Diálogo. Revista de Ensino
Religioso. Ano XIV – n. 54 – maio/julho, São Paulo: 2009, p. 32-37.

__________. Ações de independência a diversidade cultural religiosa em Salvaterra, ilha de


Marajó. In: II Congresso Internacional em Ciências da Religião: novas tendências em
sociologia da religião, anais eletrônicos, UCG, Goiânia, 29 a 31 de outubro de 2008, ISBN:
9778-85-7103-545-4.

OLIVEIRA, Lilian Blanck de et al. Ensino religioso no ensino fundamental. São Paulo:
Cortez, 2007. (Coleção docência em formação. Série ensino fundamental)

PASSOS, João Décio. Ensino religioso: construção de uma proposta. São Paulo: Paulinas,
2007.

SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. Da resistência a consciência. In: Diálogo. Revista de Ensino
Religioso. Ano XV – n. 58 – maio/julho, São Paulo, 2010, p. 60-63.

876
877
GT8 – Estados Unidos: religião e sociedade

Coordenador

Daniel Rocha
Doutorando em História pela UFMG. Bolsista CAPES.

Resumo

O objetivo deste GT é reunir pesquisadores que trabalham, a partir de diferenciadas


abordagens e metodologias, as relações entre religião e sociedade na história dos Estados
Unidos da América. Entre os temas que interessam diretamente à discussão podemos citar:
polêmicas relativas às relações entre Igreja e Estado; relações entre cristianismo e identidade
nacional; transformações na teologia e na prática do protestantismo norte-americano;
diversidade e conflitos religiosos; polêmicas nas relações entre ciência e religião; religião e
política; entre outros.

878
A Jeremiad fundamentalista: política, identidade nacional e
escatologia no fundamentalismo norte-americano (1970-1980)
Daniel Rocha1

Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te
ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e
os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te
abençoará na terra à qual passas para possuí-la.
Porém, se o teu coração se desviar, e não quiseres dar ouvidos, e fores seduzido, e te inclinares a
outros deuses, e os servires, então, hoje, te declaro que, certamente, perecerás; não permanecerás
longo tempo na terra à qual vais, passando o Jordão, para a possuíres.
Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a
maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando o SENHOR, teu
Deus, dando ouvidos à sua voz e apegando-te a ele; pois disto depende a tua vida e a tua longevidade
(...)
Deuteronômio 30:15-20

Introdução

Em 1630, dez anos após a chegada dos peregrinos do Mayflower ao Novo Mundo, um outro
grupo de puritanos ingleses rumava para a América crendo que sua viagem poderia ser
comparada à saída dos hebreus do Egito rumo à terra prometida. Essa leva de peregrinos tinha
à sua frente John Winthrop, que seria, posteriormente, o primeiro governador da colônia de
Massachussetts Bay. A bordo do navio Arbella, Winthrop escreveu um texto chamado A
Model of Christian Charity no qual expôs sua perspectiva do que seria o sentido e a missão
histórica desses viajantes em sua nova terra. Dizia Winthrop (1999, p. 42):

Devemos ter em mente que seremos como uma cidade sobre uma colina. Os olhos de todos
estão voltados para nós. De maneira que, se lidarmos com falsidade com nosso Deus, nessa
tarefa que empreendemos (...) abriremos a boca dos inimigos para falar mal dos caminhos
de Deus (...). Cobriremos de vergonha os caminhos de muitos dos valorosos servidores de
Deus, fazendo com que suas orações se transformem em maldições contra nós, até sermos
expulsos da boa terra para a qual nos dirigimos 2.

Esperança, promessa, desobediência e queda. Se, por um lado, os Pais Peregrinos, os


pioneiros puritanos na América, “santificaram sua sociedade através das figuras e dos

1
Doutorando em História pela UFMG. Bolsista da CAPES. Orientadora: Profª Drª Kátia Gerab Baggio. Contato:
danielrochabh@yahoo.com.br.
2
For we must consider that we shall be as a city upon a hill. The eyes of all people are upon us. So that if we
shall deal falsely with our God in this work we have undertaken (…) we shall open the mouths of enemies to
speak evil of the ways of God(…). We shall shame the faces of many of God's worthy servants, and cause their
prayers to be turned into curses upon us till we be consumed out of the good land whither we are going.

879
exemplos da Bíblia” (BERCOVITCH, 1988, p. 145), eles também reiteravam a possibilidade
do castigo iminente caso os valores cristãos, concebidos por eles como fundamentos dessa
nova sociedade a ser estabelecida em uma nova terra, fossem ignorados e/ou desrespeitados.
Nos púlpitos da Nova Inglaterra era recorrente um tipo de retórica conhecido como Jeremiad,
caracterizado pela condenação da degradação moral e da apostasia do povo, anunciando o
castigo iminente e, por outro lado, convocando as pessoas para um retorno aos valores sobre
os quais o sonho de uma nação cristã dos pioneiros puritanos havia sido erigido. Nas
incertezas e desafios do Novo Mundo, o sonho da construção de uma sociedade exemplar e
santificada, em termos escatológicos, um reino de mil anos de felicidade, sempre era
assombrado pelo juízo divino e pelos terríveis males que virão sobre a terra conforme os
relatos apocalípticos.

A presente comunicação tem o objetivo de fazer uma breve análise do que acreditamos ser
uma apropriação da Jeremiad que marcou os trabalhos de vários autores fundamentalistas que
fizeram sucesso durante o “boom da literatura escatológica” de tendência dispensacionalista
que ocorreu nos EUA nas décadas de 1970 e 1980, movimento que teve como seu principal
representante Hal Lindsey. Inicialmente, trataremos da permanência, ao longo da história
norte-americana, da crença de que os Estados Unidos seriam um povo eleito por Deus, uma
nação excepcional, fundada em determinados valores e virtudes, que possui uma missão a
desempenhar no mundo e um compromisso com seus valores “fundacionais”. Em seguida,
abordaremos como tal discurso foi apropriado pelo conservadorismo protestante norte-
americano no início da década de 1970 numa espécie de condenação e alerta quanto ao
castigo iminente que a “depravação” dos anos 1960 anunciava. Nesse contexto, faremos uma
breve avaliação do sucesso das perspectivas dispensacionalistas e das reflexões sobre os EUA
presentes no best-seller de Hal Lindsey lançado em 1970: The Late Great Planet Earth. Por
fim, e em comparação com sua obra de 1970, analisaremos a “politização” e
“americanização” do pensamento de Hal Lindsey em seu segundo maior sucesso editorial:
The 1980s: Countdown to Armageddon. Também buscaremos refletir como essa “virada
conservadora” na política norte-americana da passagem dos anos 1970 para os anos 1980
abriu espaço para um discurso menos pessimista e mais aberto à possibilidade do retorno dos
EUA aos seus valores fundacionais.

880
A ideia da cidade no alto da colina, o sentido de missão, o exemplo dos Pais Fundadores, que
buscavam construir uma nação alicerçada sobre os valores bíblicos que seria um exemplo e
um farol moral e, também, político (reino da liberdade e da democracia) são elementos
constantemente acionados na história norte-americana. Segundo Pocock (2004) os Estados
Unidos possuem uma cultura política marcada pelo momento “fundacional”. Nesse tipo de
cultura, que busca seus valores e sua identidade no momento fundante, há uma alternância
entre um “período litúrgico”, em que os princípios são observados e cultuados e, em
momentos de apostasia nacional, períodos marcados por um tipo de retórica, herdada dos
puritanos, conhecida como Jeremiad, “que tem como referência as admoestações do profeta
Jeremias aos hebreus, alertando para o desregramento moral em que viviam e a iminência da
vingança divina” (AZEVEDO, 2007, p. 28-29).

Sacvan Bercovitch, em diversas obras3, busca analisar a influência dos pioneiros puritanos da
Nova Inglaterra no fornecimento da “base bíblica para aquilo que viemos a chamar de mito da
América” (BERCOVITCH, 1988, p. 142). E entre os elementos desse inventário de heranças
puritanas, Bercovitch examina mais minuciosamente em sua obra a formação e
desenvolvimento do que ele chama de Jeremiad americana. Como dito, a tradição da pregação
jeremiad, especialmente nos púlpitos ingleses do século XVII, mantinha sua estrutura de
alerta quanto ao pecado do povo e anúncio da castigo divino caso o povo não se arrependesse
de seu pecado. Entretanto, talvez influenciada pela experiência e oportunidade de criar uma
nova sociedade em um Novo Mundo - e todos os sonhos milenaristas que isso despertou nos
Pilgrim Fathers - a Jeremiad americana apresentava uma ênfase diferenciada: se, por um
lado, alertava para as conseqüências terríveis que sofreriam aqueles que se desviassem dos
desígnios divinos, por outro conclamava o povo a relembrar sua missão e papel históricos.
Com Deus ao seu lado, eles eram um povo diferenciado que tinha as chaves do futuro nas
mãos. Segundo Cecília Azevedo (2007, p. 28-29): “reconfigurado, o Jeremiad teria adquirido,
ao lado do sentido de lição moral, um caráter de celebração. De destinados à queda, os norte-
americanos poderiam se autoproclamar peculiares, escolhidos não só para ganhar a vida
eterna, mas para uma missão na terra”. Para Bercovitch (1978, p. xi), essa Jeremiad

3
Entre outras podemos citar: BERCOVITCH, Sacvan. The puritan origins of the American self. New Haven;
London: Yale University Press, 1975; BERCOVITCH, Sacvan. The American jeremiad. Madison: The
University of Wisconsin press, 1978; BERCOVITCH, Sacvan. A retórica como autoridade: puritanismo, a Bíblia
e o mito da América. In: SACHS, Viola [et al.]. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p. 141-158.

881
transformada é uma das bases da persistência do “sonho americano”, ou do “mito da
América”, sobrevivendo a mais de 200 anos de crises e transformações daquela sociedade.

Se, num primeiro momento, Winthrop, dentro dos padrões de sua pertença puritana, falava da
criação de uma comunidade comprometida com os valores expressos nas Sagradas Escrituras
e com uma conduta moral irrepreensível, que seria um exemplo para o mundo de virtuosidade
e fé, a cidade sobre uma colina ganhou outros contornos ao longo do tempo, muitos deles com
um viés notadamente político e secular. O significado e o sentido da missão dos norte-
americanos no mundo, com suas diferentes “jeremiads”, tornou-se objeto de diferentes
apropriações por diferentes grupos ao longo da história norte-americana. Os exemplos são
vários e, devido às limitações deste texto, não vem ao caso uma análise mais extensa de casos.
Martin Luther King Jr., para citar apenas um exemplo, falava de seu sonho que estava
“profundamente enraizado no sonho americano” e de que “esta nação se levantará e viverá o
verdadeiro significado de sua crença”, mas, também chegou a proclamar que “o juízo de Deus
está sobre a América agora” (MOLTMANN, 2004, p. 179). Se a nação eleita se afastar de
seus fundamentos, eis que o juízo divino está às portas.

Dessa forma, ao longo da história norte-americana, a Jeremiad perdeu o aspecto meramente


religioso, de um sermão proferido do púlpito puritano, e tornou-se uma forma de retórica,
dependendo do grupo que se aproprie dela, com forte viés político e/ou nacionalista.
Retomando o pensamento sobre o momento fundacional norte-americano, Pocock (2004, p.
41) afirma que em sociedades fundadas sobre certos princípios, como é o caso da norte-
americana, os seus cidadãos possuem uma “obrigação” moral e política de “julgar” quando
tais princípios estão sendo observados ou não. Se, para alguns grupos, os princípios a serem
preservados e observados teriam a ver com o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade
– valores que, não necessariamente, precisariam de uma legitimação bíblica para sua
aceitação -, para outros não é possível pensar os valores fundacionais sem relacioná-los
diretamente às Sagradas Escrituras e aos padrões morais por ela prescritos. É o caso do
fundamentalismo4.

4
Para não alongar uma discussão que já realizamos em texto anterior - ROCHA, Daniel. Combatendo pela alma
da nação: alguns apontamentos sobre a subcultura política fundamentalista nos Estados Unidos. História Agora,
v. 13, p. 108-123, 2013 –, quando falamos em fundamentalismo pensamos em um movimento teológico/religioso
surgido na virada do século XIX para o XX, fruto de um processo histórico ocorrido dentro do protestantismo
norte-americano em reação ao liberalismo teológico e, também, ao processo de secularização e que se
desenvolveu ao longo do século XX, assumindo novas formas de atuação na esfera pública, em especial sobre
questões políticas e legais.

882
II

A história dos Estados Unidos é marcada por períodos de intenso fervor religioso e por outros
em que a religião ficou relegada a um segundo plano, confinada ao ambiente eclesiástico
eclesiástica e à esfera privada da vida daqueles que mantêm sua fé pessoal. Outro pesquisador
da Nova Inglaterra puritana, Emory Elliot, sugere uma interessante ideia quanto aos “ciclos de
fé” na história norte-americana. Explicando sua proposta, colocada originalmente em sua tese
de doutoramento de 1975, Elliot (1988, p. 114) diz:

Eu sugeria atrevidamente que o quadro que traçara das quatro primeiras gerações de
puritanos poderia ser encarado como um paradigma bíblico, repetido nos Estados Unidos
sucessivamente na Guerra da Independência, na Guerra Civil e na Segunda Guerra
Mundial: uma condição social na qual uma geração patriarcal de fundadores ou heróis
militares estabelece um establishment político reforçado pela religião que, depois, é
liberalizado – considerado pelos fundadores como enfraquecido ou corroído – pela segunda
geração e abandonado – visto como traído – pela terceira geração. Segue-se então,
freqüentemente, uma revivificação religiosa na quarta geração, como ocorrera com o
Primeiro Grande Despertar na década de 30 (1730) e o Segundo Grande Despertar nos
outros anos 30 (1830). Eu sugeria que nós talvez estivéssemos presenciando, a partir de
1970, uma outra revivificação, que se seguia à confusão e à angústia da década anterior.

O início da década de 1970 cheirava à crise. E uma crise sem precedentes, especialmente nos
discursos de várias lideranças politicamente conservadoras e religiosamente fundamentalistas.
Internamente, segundo Bellah (1986), a década de 1960 abalou as estruturas do modo de vida
americano e instituições tradicionais como o governo, os negócios, a família e as igrejas não
saíram ilesas. Era uma América assombrada pelos fracassos militares (especialmente no
Vietnã), pelos conflitos raciais, pelo avanço do comunismo e a real ameaça de um ataque
nuclear, pela contestação dos valores familiares, sociais, econômicos e mesmo sexuais por
parte dos movimentos de contracultura, etc. Em termos de religião, “os anos 60 presenciaram
uma queda contínua na frequência às igrejas e uma crença cada vez menor na importância da
religião, medidas por pesquisas de opinião de âmbito nacional” (BELLAH, 1986, p. 25). A
religiosidade que floresceu, especialmente entre os jovens, se distanciava muito do
protestantismo tradicional, considerado parte de um sistema materialista e opressor destinado
à extinção – ou mesmo culpado pela possibilidade de extinção iminente de toda a raça
humana -, e buscava sua inspiração na religiosidade oriental e numa espécie de relação
primitiva entre homem e natureza. Externamente, o contexto da Guerra Fria e episódio como

883
a Crise dos Mísseis em Cuba de 1962 colocavam toda a nação em um estado de permanente
apreensão e, em alguns casos, de pânico.

O momento era de crise e a crise é o grande “motor” do fundamentalismo. Na Jeremiad do


conservadorismo religioso norte-americano o momento era de juízo de Deus sobre a antes
Nação Eleita. Surgiram movimentos de organização e intervenção política de alguns grupos
fundamentalistas (sobre isso falaremos mais adiante), mas o discurso geral era de pessimismo
e de iminência do fim. Nesse contexto o dispensacionalismo pré-milenarista5 de Hal Lindsey
encontrou uma multidão de pessoas aflitas por explicações que dessem conta desse momento
de grande incerteza e, a partir de suas interpretações das profecias bíblicas relativas ao fim
dos tempos, chamou a atenção de milhões e milhões de americanos, confirmando a análise de
Bercovitch (1988, p. 142) quando este afirma a “persistência de uma retórica assentada na
Bíblia e na forma pela qual os americanos retornam recorrentemente a essa retórica,
especialmente em épocas de crise, como uma fonte de coesão e continuidade”.

Antes de prosseguir, façamos uma pequena parada para entender o que seria o
dispensacionalismo, do qual Lindsey era o mais importante representante na época. O
dispensacionalismo é um método de interpretar a Bíblia atribuído a John Nelson Darby (1800-
1882), um pastor anglicano que deixou a Igreja da Irlanda, tornando-se um dos líderes do
movimento “a-denominacional” conhecido como Irmãos de Plymouth. Segundo os
dispensacionalistas, a Bíblia anuncia uma perspectiva de história dividida em sete eras ou
“dispensações” e, em cada uma delas, Deus apresentaria um diferente plano de salvação e, em
todas elas, o homem falharia, havendo nova crise e nova intervenção divina na história
humana. Na perspectiva de Darby e seus seguidores, “a Bíblia é o testemunho divino de uma
história sucessiva da salvação. Consequentemente, a última revelação de Deus é a revelação
do fim da história no Apocalipse de João. A Bíblia é essencialmente predição e a história
universal, essencialmente cumprimento dos prenúncios divinos” (MOLTMANN, 2003, p.
177). As dispensações seriam as seguintes: 1) a “Inocência”, que terminaria com a Queda e a
expulsão de Adão e Eva do Paraíso; 2) a “Consciência”, que findaria com o Dilúvio; 3) “O

5
No pré-milenarismo o reinado de mil anos de justiça e felicidade de Jesus Cristo na Terra, anunciado no livro
do Apocalipse, só ocorreria após o retorno visível de Cristo para reinar com os seus. Portanto, o reino de Deus
seria implantado na Terra somente após uma intervenção sobrenatural divina, que daria um fim à história dos
homens e seus governos. A ele se oporia a perspectiva pós-milenarista, na qual o reino milenar precederia o
retorno de Jesus, cuja vinda marcaria o final do milênio e o início da eternidade na Jerusalém eterna e sem
mácula. É uma perspectiva mais próxima daquela que Eusébio de Cesareia e alguns cristãos do período
constantiniano tinham quanto ao reino milenar. Seria uma expectativa de que “a vinda do Reino se daria após a
implantação da civilização cristã; por isso, a cristianização da sociedade seria uma preparação para a vinda do
Reino de Deus” (MENDONÇA, 1984, p. 55).

884
Governo Humano” que seria encerrado em Babel; 4) a Promessa” que acabaria na escravidão
no Egito; 5) a “Lei”, que terminaria com a crucificação de Cristo; 6) a “Graça” ou “Período da
Igreja”, que terminaria no que os dispensacionalistas chamam de “A Grande Tribulação”, a
Batalha do Armageddom e a Segunda volta de Cristo; por fim 7) o “Milênio” onde Cristo
reinaria pessoalmente na Terra junto aos seus santos. Após os mil anos Satanás iniciará uma
última rebelião que será aniquilada pela intervenção divina. Com a derrota de Satanás entrar-
se-á na eternidade da Jerusalém Celeste.

A interpretação dispensacionalista das profecias bíblicas tornou-se popular nos EUA após a
Guerra Civil em contraposição ao otimismo pós-milenarista que marcava a maioria das igrejas
protestantes tradicionais norte-americanas. Em contraposição à crença nas virtudes humanas e
no progresso contínuo, o dispensacionalismo advogava o total controle de Deus sobre a
história e a iminência do fim dos tempos. O dispensacionalismo difundiu-se rapidamente
através de encontros e conferências bíblicas, sendo abraçado por várias lideranças,
especialmente conservadoras, do protestantismo americano como Reuben A. Torrey e James
Hall Brookes, figuras importantes no movimento que depois veio a ser conhecido como
fundamentalismo. Mas, talvez o mais importante discípulo do sistema de Darby tenha sido
Cyrus Ingerson Scofield que organizou a conhecida Bíblia de Estudos Scofield, lançada
originalmente em 1909 – no mesmo período em que começaram a circular os famosos The
Fundamentals -, que se tornou um enorme sucesso de vendas e o grande texto de referência
dos dispensacionalistas.

Seu pessimismo em relação às possibilidades humanas quanto ao aperfeiçoamento da


sociedade e sua interpretação literalista do texto bíblico tornaram o pré-milenarismo
dispensacionalista a grande opção escatológica das principais lideranças fundamentalistas
protestantes norte-americanas ao longo do século XX. Mas, como dissemos anteriormente, a
figura que colocaria as crenças (e especulações) dispensacionalistas na ordem do dia dos
religiosos e, também, dos “não-tão-religiosos-assim” nos Estados Unidos foi Hal Lindsey e
seu livro de sucesso assombroso: The Late Great Planet Earth (traduzido no Brasil como A
Agonia do Grande Planeta Terra)6 escrito em parceria com C. C. Carlson. Publicado
originalmente em 1970, se tornou um grande best-seller, tendo vendido, até 1990, mais de 28
milhões de exemplares (ARMSTRONG, 2009, p. 369). Segundo Woljcik (1997, p. 37), The

6
Na confecção deste trabalho utilizamos a versão em inglês – LINDSEY, Hal; CARLSON, C.C. The late great
planet earth. Grand Rapids: Zondervan, 1970 – e a primeira edição da tradução para o português – LINDSEY,
Hal; CARLSON, C.C. A agonia do grande planeta Terra. São Paulo: Mundo Cristão, 1973.

885
Late Great Planet Earth foi o livro de não ficção mais vendido nos Estados Unidos na década
de 1970. Suas obras posteriores também tiverem enorme sucesso, com vendas na casa dos
milhões de cópias. Lindsey é um dos poucos autores a ter, simultaneamente, três livros na
lista dos mais vendidos elaborada pelo New York Times. The Late Great Planet Earth
também recebeu uma “versão documentário” (1979) para os cinemas, que contava, além dos
comentários de Lindsey, com a narração do renomado ator/diretor Orson Welles. As ideias de
Lindsey, especialmente a de que haverá um arrebatamento7 dos crentes antes do retorno de
Cristo, também influenciaram o filme cristão A Thief In The Night de 1972, que alcançou
grande sucesso no público religioso norte-americano e teve outras três sequências.

A capacidade e, em vários momentos, a criatividade de Lindsey em conseguir relacionar e


“encontrar” nas profecias bíblicas os acontecimentos da segunda metade do século XX podem
ser consideradas o grande motivo do seu sucesso junto ao público norte-americano. No livro
lemos: “A coisa que espanta aos que têm estudado as Escrituras proféticas é que aguardamos
o cumprimento destas profecias em nossa época. Alguns dos acontecimentos futuros, preditos
há centenas de anos, soam como se estivéssemos lendo os jornais de hoje” (LINDSEY;
CARLSON, 1973, p. 19). Entre os “sinais dos tempos” elencados por Lindsey como
confirmações de que o fim estaria realmente próximo, destacam-se, no contexto internacional:
o retorno dos judeus a Israel, que havia se tornado novamente uma nação em 1948; a
retomada da cidade de Jerusalém pelos judeus em 1967; o surgimento da Rússia como uma
superpotência (segundo Lindsey uma inimiga de Israel); o ressurgimento do Império Romano
na forma de uma confederação de dez nações, provavelmente através da Comunidade
Econômica Européia; o aumento de guerras, revoluções e desastres naturais, etc. Desses o
principal sinal enfatizado por Lindsey é o ressurgimento de Israel como nação8.

E, dentro da linha de raciocínio que nos interessa diretamente aqui, além de olhar para os
sinais vindos do exterior, Lindsey aponta também para sintomas do fim que podiam ser
observados nos EUA da virada da década de 1960 para 1970: aumento do uso de drogas
aliado a novas formas de religiosidade não cristãs – inclusive o satanismo explícito - que

7
Crença bastante popular entre os adeptos do pré-milenarismo dispesacionalista que afirma que os crentes serão
literalmente arrebatados da Terra (desaparecerão repentinamente) para junto de Deus nos céus antes do período
do governo do Anticristo (chamado de A Grande Tribulação). Estes arrebatados retornarão à Terra com Cristo
para reinar com Ele durante mil anos.
8
Em um certo momento ele até ousa colocar uma data limite para o advento da Segunda Vinda de Cristo: “Que
geração? Obviamente, pelo contexto, a geração que veria os sinais – o principal deles o renascimento de Israel.
Uma geração, na Bíblia, é algo como quarenta anos. Se esta dedução é correta, então dentro de quarenta anos
mais ou menos, a partir de 1948, todas estas coisas poderão acontecer. Muitas pessoas eruditas, que têm estudado
as profecias da Bíblia toda a sua vida, creem assim” (LINDSEY; CARLSON, 1973, p. 50).

886
emergiram no rastro dos movimentos de contracultura; o afastamento de muitas igrejas cristãs
das verdades fundamentais do cristianismo; o movimento ecumênico; o declínio do poderio
bélico e econômico dos EUA; a decadência dos family values, etc. E, em 1970, a perspectiva
de Lindsey quanto ao futuro de seu país era bastante sombria. Compartilhando da perspectiva
de vários fundamentalistas e pré-milenaristas da época, Lindsey via a cultura norte-americana
do final da década de 1960 como irremediavelmente corrupta (WOLJCIK, 1997, p. 45). A
denúncia da fraqueza norte-americana em deter o avanço comunista e a futura passagem do
“bastão” da liderança do ocidente para o reino do Anticristo na Europa (que terá por base o
Comunidade Econômica Européia) são preditos várias vezes no livro. Os últimos dias seriam
sombrios para a nação que um dia foi sonhada como um prenúncio da implantação do reino
de Deus na Terra:

Os Estados Unidos deixarão de liderar o mundo ocidental; em matéria de finanças, a


Europa ocidental estará em evidência, tomando a dianteira. O caos político interno, causado
pelas rebeliões de estudantes e subversão dos comunistas, começará a carcomer a economia
de nosso país. A falta de princípios morais em líderes e cidadãos enfraquecerá a lei e a
ordem, ao ponto de resultar num estado de anarquia. O poderio militar dos Estados Unidos,
embora presentemente o maior do mundo, já se encontra neutralizado, porque ninguém tem
a coragem de fazê-lo se impor decisivamente. Ao colapso econômico seguir-se-á o das
forças armadas. O único meio de frear este declínio da América seria um despertamento
espiritual em larga escala (LINDSEY; CARLSON, 1973, p. 171).

Apesar da possibilidade de “salvação” no caso de um “despertamento espiritual”, o foco da


fala de Lindsey é muito maior na condenação iminente e mesmo no castigo divino pela
apostasia americana. Comparando o “Império Americano” ao Império Romano, Lindsey diz
que Roma “se desintegrou e isto partiu de dentro de si mesma; infelizmente, existe na
América, hoje, o mesmo declínio moral que levou à derrocada de Roma” (LINDSEY;
CARLSON, 1973, p. 87). O discurso e a própria preferência escatológica de Lindsey9 são o
reflexo de sua época: crise interna e externa, ameaça de destruição nuclear, esfriamento da fé
cristã no país, etc. Nesse contexto, o “Jeremias” Lindsey denuncia os pecados da nação,
anuncia a condenação iminente e o cativeiro babilônico (ou seria soviético?) que se avizinha.

9
Lindsey é bem explícito na condenação de qualquer perspectiva escatológica de cunho otimista – que anuncie a
possibilidade de um reino de felicidade e justiça que preceda a parousia - ou que postergue a iminência do fim:
“Nenhuma pessoa entendida, que tenha respeito próprio e que veja as condições do mundo, bem como o declínio
acelerado da influência cristã atualmente, nenhuma delas é mais ‘pós-milenista’. Somos ‘premilenistas’”
(LINDSEY; CARLSON, 1973, p. 163).

887
III

Dez anos após o lançamento de The Late Great Planet Earth, Hal Lindsey lança The 1980s:
Countdown to Armageddon, publicado no Brasil em 1981 com o título Os anos 80: contagem
regressiva para o Juízo Final. Embora não tenha tido a mesma repercussão do primeiro livro,
sua obra de 1980 permaneceu por mais de 20 semanas na lista do New York Times de livros
mais vendidos (BOYER, 1992, p. 5). Entre o lançamento dos dois livros ocorreu uma grande
mudança nas relações entre religião e política nos EUA. E os reflexos e influência de tais
mudanças podem ser sentidos no texto de Lindsey.

Como visto anteriormente, as principais lideranças fundamentalistas norte-americanas viram


os anos 1960 como o “fundo do poço” moral do país: os fracassos militares, a juventude
“perdida”, a desordem interna e o avanço de ideias socialistas em solo americano seriam
reflexo disso. O efeito da dissociação entre moralidade e política atingira a própria Casa
Branca com o caso Watergate. Começou a ganhar espaço o discurso que atribuía à
degeneração moral e ao abandono dos princípios cristãos os fracassos internos e externos dos
EUA. A mão de Deus estaria pesando sobre a América.

Vários atos do Executivo, do Congresso e do Judiciário tornaram-se alvo de pesadas críticas


das lideranças religiosas. E, a partir dos primeiros anos da década de 1970, algumas dessas
lideranças abandonaram o discurso derrotista e de certa conformidade com a “degradação”
moral nacional e começaram a se mobilizar no sentido de “resgatar” a influência das virtudes
cristãs na sociedade e de combater a iniquidade que proliferava na esfera pública. Talvez o
estopim de tal mobilização tenham sido as decisões da Suprema Corte sobre o fim das orações
nas escolas públicas e, especialmente, o caso Roe vs. Wade de 1973 em que foi reconhecido o
direito ao aborto nos EUA. Jerry Falwell, conhecido pastor conservador batista, que possuía
um programa de TV de enorme audiência, toma a frente do movimento que recebe o nome de
Maioria Moral. Esse movimento se tornou uma grande força política nos EUA e tinha como
principais bandeiras: a defesa dos “valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em
qualquer caso, o combate à expansão dos direitos dos homossexuais e, também, a restrição à
pornografia); a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas; o
combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa ferrenha do capitalismo e
do “modo de vida” americano; a defesa de uma postura Pró-Israel por parte do governo norte-
americano (talvez uma influência direta das ideias de Lindsey); entre outras.

888
Com essa organização como grupo de pressão e com o enorme espaço na mídia que várias
lideranças do movimento possuía, especialmente Falwell e Pat Robertson, essa nova Direita
Cristã ganhou cada vez mais espaço na arena política norte-americana, tanto na oposição a
políticos que não abraçavam suas bandeiras quanto no apoio àqueles que simpatizavam com
sua luta. Sua força foi fundamental na eleição e durante o governo Reagan, tornado-se um
elemento importantíssimo para a virada conservadora na política norte-americana. O discurso
perdeu o tom predominantemente pessimista, e a possibilidade de uma reconciliação com seu
Deus, com seus valores fundacionais e com seu papel redentor da humanidade começaram a
fazer parte da retórica político-religiosa de algumas lideranças fundamentalistas.

Em The 1980s: Countdown to Armageddon, Hal Lindsey repete várias de suas previsões e
busca mostrar a realização de algumas profecias. Nesse sentido não há grandes mudanças em
relação ao seu livro de 1970. O que surge como novidade é o grande espaço dado à discussão
de questões concernentes ao futuro dos EUA e, também, à defesa de várias bandeiras da
Direita Cristã. A crítica à fraqueza do governo norte-americano no combate ao avanço do
comunismo no mundo aparece em várias partes do livro. Lembremo-nos de que o livro foi
lançado no final do governo Jimmy Carter, nessa altura dos acontecimentos já muito criticado,
especialmente pelos grupos mais conservadores que viriam a abraçar a candidatura de Ronald
Reagan na eleição seguinte. Nesse quadro, Lindsey diz que, para um futuro próximo, “existem
várias possibilidades para os Estados Unidos, por exemplo: tomada pelos comunistas;
destruição através de um ataque nuclear soviético inesperado (...); passar a depender da
confederação das 10 nações; um destino bem mais agradável do que qualquer um dos acima”
(LINDSEY, 1981, p. 112). O Lindsey de 1980 é muito mais programático e busca indicar de
maneira mais efetiva as medidas a serem tomadas e os caminhos a serem seguidos para que os
EUA desempenhem um papel relevante nos últimos dias. E o caminho não se restringe apenas
a orar por um reavivamento espiritual.

“Embora nenhum método seja perfeito, o sistema democrático, capitalista, de livre empresa,
produziu maior liberdade, prosperidade e independência financeira para um maior número de
pessoas do que qualquer outro sistema na História” (LINDSEY, 1981, p. 121). O modo de
vida americano e o próprio capitalismo devem ser defendidos contra os inimigos internos e
externos. Lindsey não adverte apenas contra o perigo da expansão soviética – que deve ser
freada por uma política externa mais agressiva e através do incremento do poderio bélico

889
norte-americano10. Uma série de políticas internas equivocadas, que iam na contramão dos
“santos” valores capitalistas e da livre empresa: as principais críticas de Lindsey direcionam-
se ao que ele chama de políticas assistencialistas herdadas do New Deal – que estavam
fazendo os americanos desvalorizarem sua tradição de trabalho duro e empreendedorismo – e
o inchamento da máquina estatal. Essas políticas – expansão do aparato estatal e aumento da
dependência de recursos do Estado para a sobrevivência dos indivíduos – “cheiravam” a
socialismo e estavam muito distantes dos reais valores americanos. Os governantes “devem
estar dispostos a cortar as ostentações do governo, a impedir a exploração do sistema de bem-
estar social, a manter nossos compromissos com os nossos aliados e a lutar contra a expansão
comunista” (LINDSEY, 1981, p. 137)11.

Depois de suas declarações de amor aos valores do governo e da economia norte-americanos,


Lindsey retoma a necessidade de um verdadeiro comprometimento espiritual para impedir os
sofrimentos do porvir. Lindsey (1981, p. 137-138) fala de quatro razões pelas quais Deus
estaria preservando os EUA como um “país livre”: 1) a grande quantidade de “verdadeiros
crentes no Senhor Jesus” e o despertamento espiritual que os EUA estariam vivendo nos
últimos anos; 2) o fato de os EUA enviar e manter missionários por todo o mundo; 3) o apoio
dado pelos EUA aos judeus e ao Estado de Israel (apropriando-se da promessa feita a Abraão:
“abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem”12); 4) as orações do
povo de Deus rogando sua misericórdia e sua bênção sobre o país.

No Hal Lindsey da década de 1980 já encontramos ecos de uma Jeremiad que, sem deixar de
alertar quanto aos perigos da apostasia espiritual e da falta de compromisso com seus valores
fundacionais, apresenta a inviolabilidade da missão e do caráter excepcional do povo
americano. Um povo que tinha, desde os Pais Peregrinos, “como missão construir uma
sociedade moralmente virtuosa e que serviria de exemplo para outros povos. Tinham,

10
Em certo momento Lindsey afirma: “Num mundo decaído, a paz, a segurança e a liberdade só podem ser
mantidas por um poder suficientemente forte para desestimular os que se inclinam à conquista. Quanto mais
poderosas as forças armadas de um país, tanto menores as possibilidades de que jamais venham a lutar. Essa é a
razão pela qual a Bíblia apóia a manutenção de uma poderosa força militar. E a Bíblia está dizendo aos Estados
Unidos que se fortaleçam de novo. Um exército fraco irá encorajar a União Soviética a começar uma guerra
total” (LINDSEY, 1981, p. 129).
11
Em vários momentos Lindsey parece espelhar o discurso de engajamento político-eleitoral da Maioria Moral
em passagens como: “Precisamos fazer uma limpeza em Washington e eleger um Congresso e um Presidente
que acreditem no sistema capitalista. Nosso Congresso foi dominado e controlado desde 1955 por homens e
mulheres que não crêem realmente no capitalismo” (LINDSEY, 1981, p. 125); e: “Precisamos colocar no
governo indivíduos atuantes que não só irão refletir a moral bíblica em suas funções, mas também moldarão a
política interna e externa de modo a proteger nosso país e nossa maneira de viver” (LINDSEY, 1981, p. 137).
12
Ver em Genesis 12:3.

890
portanto, um destino a cumprir” (JUNQUEIRA, 2003, p. 169). E, mesmo nos momentos
finais da história humana, tal papel de luzeiro para o mundo deveria ser assumido.

Considerações finais

Nesta breve reflexão procuramos apresentar um pequeno exemplo da insistência, na história


norte-americana, da interpenetração de elementos políticos e religiosos. A análise da retórica
Jeremiad e o sucesso das interpretações das profecias bíblicas feitas por Hal Lindsey nos
mostra uma cultura que vive em uma eterna tensão entre sonhos milenaristas e pesadelos
apocalípticos. Nesse sentido, é interessante observar a necessidade de levar em conta o
contexto e o grupo que enunciam seu julgamento sobre a realidade e profetizam sobre o
futuro, seja esse promissor ou sombrio. Se o pré-milenarismo dispensacionalista,
característico dos fundamentalistas do final da década de 1960, se apresenta pessimista, é
porque o poder, ou a hegemonia cultural, está distante dele e, baseado em seu antagonismo
visceral, em poder das forças malignas. O questionamento de tal poder “diabólico” é feito
baseando-se em uma forma antagônica de política e de governo. Uma forma que expressaria
os valores divinos, um modelo de reino milenar legitimamente cristão. No caso norte-
americano, a busca do “paraíso perdido”: o Novo Israel de Deus, a América Cristã, a cidade
luminosa no Alto da Colina idealizada por John Winthrop. Sendo a possibilidade do resgate
de tal reino algo muito distante e impalpável, tende-se ao pessimismo e à ansiedade para que
esse reino seja implantado através de uma interferência divina, dando fim à história e aos
governos iníquos. Por outro lado, quando há uma virada nesse quadro, como no início da
década de 1980, e grupos que se consideravam marginalizados começam a acreditar na
possibilidade de influir de maneira decisiva nos rumos da nação, o pessimismo pode ceder
espaço para um discurso que alimente expectativas intra-históricas de resgate do sonho dos
Pais Peregrinos.

Referências

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891
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892
WOLJCIK, Daniel. The end of the world as we know it: faith, fatalism and Apocalypse in
America. New York: New York University Press, 1997.

893
894
A religiosidade e o direito norte-americano à luz das contribuições
de Ronald Dworkin
Carlos Augusto Lima Campos1

Introdução

O universo jurídico norte-americano vem atravessando transformações no modo como vem


lidando com questões que, outrora, eram relegadas, convenientemente, ao âmbito da vida
privada, o que reduzia o cenário religioso pátrio à penumbra de igrejas, lares e congregações.
Tais transformações vêm adquirindo um caráter sintomático na medida em que passam a
constituir um marco no Estado e, por conseguinte, no espaço público – como é possível
verificar em alguns países europeus, notadamente na França. Neste panorama, de expressivas
ressignificações, é válido questionar: o Direito norte-americano vem acompanhando os
fenômenos efervescentes no âmago social ou se constitui um mero expectador? A presente
investigação se propõe a estabelecer limites, convergências e conflitos no diálogo travado
entre a religião e as cortes estadunidenses, de modo a delinear de maneira clarividente a
influência de Ronald Dworkin na sedimentação jurisprudencial de temáticas relacionadas à
interface Direito e Religiosidade, notadamente no que tange aos atuais debates acerca da
prática do aborto.

Uma hermenêutica em constante movimento

A circunspecção popular, de maneira ágrafa, perpetuou a máxima de que, se alguém quer ser
imortal, esse alguém deve ter filhos, plantar uma árvore e/ou escrever um livro. E é
exatamente no âmbito da imortalidade que Ronald Dworkin se nos apresenta como um dos
maiores nomes da Filosofia e do Direito contemporâneos, já que o reverberar de suas ideias
há muito transcende os limites do ambiente jurídico universitário anglo-saxônico,
perpassando pela Filosofia da Linguagem, e desaguando no relevante âmbito da
Hermenêutica Filosófica.

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro
Universitário de Ribeirão Preto (UNISEB), bacharel em Direito pela UFPA. Contato:
prof.carloscampos@gmail.com.

895
Dworkin foi um intelectual que participou ativa e regularmente do debate público, por meio
de sua produção científica e, também, de polêmicas, já que expunha os seus pontos de vista
para plateias menos afeitas aos desafios técnicos das argumentações filosóficas, digamos,
mais sofisticadas, o que viabilizava – de certo modo – a difícil tarefa de fomentar um diálogo
público acerca de temáticas de alta complexidade teórico-ideológicas.

Alguns de seus importantes trabalhos se dirigem a temas morais e políticos centrais na


agenda política e moral contemporâneas, como aborto, eutanásia, democracia e liberdade
religiosa, reforma do sistema de saúde, financiamento público de campanha e política
externa e interna americana, etc. (CADEMARTORI; DUARTE, 2009, p. 203).

Não reluto ao afirmar que, juntamente com o vigor e a originalidade do pensamento de


Dworkin, uma das razões do grande impacto de suas ideias se deve ao fato de que seus temas
e estilo filosófico o aproximam dos assuntos centrais do hodierno debate jurídico, o que se
evidencia no esforço de tornar sua argumentação inteligível a um leitor menos habituado ao
conteúdo jurídico e filosófico.

Tal virtude, entretanto, não é capaz de tornar simples o complexo, ainda que sejam grandes as
tentativas de combater a erudição retórica, frequentemente verificada junto a excertos
jurídicos e filosóficos. O curioso, como bem salienta Kläus Gunther, é que:

Esses fatos fazem com que o pensamento de Dworkin seja frequentemente criticado por ser
excessivamente hermético e complicado. O aparente paradoxo reside no desafio – em que
Dworkin foi bem sucedido – de escrever, de maneira direta, econômica e analítica, sobre
temas altamente complexos que muitas das vezes deixam os leitores insatisfeitos. O
resultado é um autor que, mesmo escrevendo ‘da maneira mais fácil possível’, parecerá a
seus leitores um autor difícil. Esse resultado é ainda mais frequente entre os leitores que
buscam nas ideias de outros, antes, as confirmações de suas próprias convicções, em vez de
desafios. Outro resultado possível, e frequentemente identificável nas leituras nacionais, é a
interpretação inadequadamente simplificadora de um sistema de ideias complexo. Em boa
medida, tal fato decorre de que muitos de seus leitores, muito ao estilo bacharelístico,
resumem seu estudo de um autor à leitura rápida de um ou dois artigos, de forma
descontextualizada e sem visão de conjunto. Acima de tudo, este tipo de leitura retira o
autor de suas premissas e pressupostos metodológicos, prejudicando uma leitura correta de
seu pensamento (GUNTHER, 2004, p. 204).

Algumas das leituras apressadas da produção de Ronald Dworkin, não raro, creditam uma
suposta originalidade de seu pensamento à incorporação da discussão dos princípios ou à
dimensão moral do Direito em seus trabalhos. Certamente, se este fosse o seu “baricentro

896
científico”, sua fama seria indevida, visto que, muito antes dele, outros autores já chamavam a
atenção com uma abordagem semelhante.2 A mera apresentação de uma leitura moral do
Direito e da constituição instituiria ensejo suficiente para inseri-lo em uma difusa e
consolidada tradição do pensamento jusnaturalista – algoritmo, contudo, problemático para
defini-lo. Se há pioneirismo no tratamento principiológico vislumbrado na obra de Dworkin,
está relacionado, antes, ao papel que a moral desempenha em sua teoria do direito e da
política, bem como ao seu método de abordagem.

Pessoalmente, reputo que a melhor leitura da obra de Dworkin nos obriga a reconhecer a
imensa importância dos pressupostos metodológicos e epistemológicos que subjazem a sua
crítica à acepção de objetividade jurídica acolhida pelas teorias jurídicas rivais, notadamente
o pragmatismo e o positivismo jurídico. Num certo sentido, a correta compreensão do
significado e originalidade de sua obra pressupõe entender o valor atribuído por Dworkin ao
seu enfoque e método interpretativista.3 Novamente, aqui, poder-se-ia objetar que a ideia de
que o sentido do Direito deve ser interpretado não representa ineditismo. Afinal, poucas
teorias negam que o Direito é um fenômeno normativo que demanda interpretação. A
emblemática, contudo, reside no significado que se deve atribuir à ideia de interpretação no
pensamento de Dworkin.

Stephen Guest, em tempo hábil, compreende bem essa questão, razão pela qual dedica quase
metade de sua obra, Ronald Dworkin, à apresentação da teoria do significado e da
interpretação desenvolvida por Dworkin, no interregno de seus trabalhos, desde meados da
década de 1960:

Para Dworkin, a interpretação do direito significa ver o direito como um corpo coerente,
integrado e articulado a uma intencionalidade (que não se confunde com a intenção dos
legisladores). Para ele, a descrição da dimensão da normatividade do direito pressupõe e
requer a incorporação de uma dimensão interpretativa. Num certo sentido, é possível
afirmar que Dworkin aprofunda (e modifica) uma vertente interpretativa cuja senda fora
aberta por H. L. A. Hart. Ao radicalizá-la, contudo, transforma-a numa das mais afiadas
armas contra o próprio positivismo de Hart (GUEST, 2010, p. 13).

2
Cfr., dentre outros, nos Estados Unidos: Eskridge Jr., William N.; Frickey, Philip P. (Ed.). Hart & Sacks’ The
legal Process: Basic Problems in the Making and Application of Law. West Publishing Company, 2001; e
Wechsler, Herbert. Principles, politics, and fundamental law. University Microfilm, 1977. Na tradição europeia,
também, dentre outros: Esser, Josef. Principio y norma em La elaboración jurisprudencial Del derecho privado.
Tradução de Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961.
3
Acerca da temática, ver: Stavropoulos, Nicos. “Interpretivist Theories of Law”, in Stanford Encyclopaedia of
Philosophy.

897
Ronald Dworkin entre o Direito e a Moralidade

Mergulhar no universo jusfilosófico de Ronald Dworkin exige, preambularmente, a


compreensão de que o argumento jurídico é, também, uma espécie de moralidade política, o
que, ao seu tempo, converge – como bem inferiu Stephen Guest, no livro Ronald Dworkin –
para a existência de “uma ligação entre o significado de um argumento coerente de
justificação nas mãos de um juiz e uma teoria geral e ideal sobre os princípios morais
fundacionais” (GUEST, 2010, p. 294).

Ao seu turno, urge traçar uma relação entre os aludidos princípios morais fundamentais e uma
teoria geral da distribuição, o que nos conduz à inexorável conclusão de que tal “exigência” se
verifica em qualquer sistema jurídico, e notadamente no estadunidense, onde Dworkin insiste
que deve ser extraído um sentido interpretativo capaz de possibilitar eficácia à argumentação
jurídica, para que esta alcance pleno sentido justificativo, sendo possível identificar traços,
ainda que embrionários, das perspectivas de justiça. E por traços embrionários, refiro-me à
aderência suficiente a princípios de justiça em uma dada comunidade, viabilizando a essência
e o arbítrio, o que possibilitaria o paulatino aperfeiçoamento das diretrizes insculpidas.

Para ambas as temáticas (Direito e Moralidade), Ronald Dworkin traçou teorias coesas, e que
encontram no cidadão, no Estado e no Direito um retrato holístico raro na cultura política,
jurídica e acadêmica anglo-americana, sobremodo marcada pelo relativismo, pelo ceticismo e
pela desconstrução. O ideal de integridade condiz com as requisições racionais da moral, cuja
coerência se traduz no fato de que “todas as decisões que afetem outros seres humanos devem
ser compatíveis com esse motivo (moral). Do contrário, na visão de Dworkin, elas são
decisões injustificáveis” (CADEMARTORI; DUARTE, 2007, p. 213).

Trata-se de uma argumentação razoável. Eu diria mais: convincente, já que é suficientemente


abstrata para atrair apoio, bem como concreta ao ponto de fornecer um método
argumentativo em situações jurídicas reais (e que, portanto, sujeita-se aos requisitos mais
imediatistas da integridade), de maneira que, em adequada proporção, Dworkin é bem
sucedido ao relacionar os princípios morais fundamentais à argumentação jurídica, isto é, a
Moral ao Direito. Entrementes, não se pode afirmar, com precisão, que no aspecto princípios
morais fundamentais & teoria geral da distribuição o autor tenha obtido semelhante sucesso,
já que:

898
um atrativo de sua teoria da igualdade distributiva é o peso central que ele dá à ideia de
custos impostos a outras pessoas, igualmente humanas, pelo exercício da liberdade
individual, e seu evidente impacto prático por meio de mecanismos de mercado. Contudo, o
sucesso no desenvolvimento dos aspectos mais técnicos de definir o padrão de mercado
pode revelar-se fugidio. Se for esse o caso, o fracasso sugeriria que as fortes intenções, que
muitos de nós têm, de que a igualdade de bem-estar é impossível e de que o mercado tem
uma base ética são, na verdade, falsas (EAGLETON, 2005, p. 204).

Interpretação e aplicação da Constituição Norte-Americana segundo Ronald Dworkin: o


problema dos princípios e seu conteúdo indeterminado

Segundo constatação do próprio Dworkin,

a Constituição (norte-americana) está estruturada, fundamentalmente, em princípios e não


em regras precisas e textualmente exaustivas4, embora esta também possua muitas regras.
Ocorre que, ao tratar-se de princípios, a precisão dos termos da lei que informam seu
conteúdo deve ceder espaço às concepções valorativas que informam as razões dos
princípios para cada caso em que tais standards do campo da moral sejam considerados
adequados, em um jogo de equilíbrio entre decisões judiciais precedentes e moral
institucional vigente (DWORKIN, 2006, p. 106).

Em se tratando do filósofo norte-americano em comento, o trecho acima ventila que qualquer


interpretação da Constituição estadunidense deve ser procedida e examinada com fulcro em
duas dimensões, concomitantemente correlatas e amplas: a primeira delas é a da adequação,
segundo a qual determinada interpretação constitucional deve ser refutada se as práticas
jurídicas concretas forem totalmente incompatíveis com os princípios jurídicos que referida
interpretação recomenda. Isso equivaleria a afirmar que o ponto de apoio da interpretação tida
como correta deve estar alicerçado na prática jurídica real.

A segunda dimensão, nos dizeres de Cademartori e Duarte,

corresponde à da justiça, nos seguintes termos: quando duas concepções diferentes sobre a
melhor interpretação de certo dispositivo constitucional passarem no teste de adequação,
(...), deve-se dar preferência àqueles cujos princípios parecem refletir melhor os direitos e
deveres morais das pessoas (ou seja, as convicções de direito e justiça compartilhadas pela
comunidade política), pois a Constituição é uma afirmação de ideais morais abstratos, os
quais cada geração deve interpretar por si mesma, independentemente da vontade originária

4
Como é o caso da Constituição da República Federativa Brasileira, de 1988 (CRFB/88), no atinente aos direitos
individuais, coletivos, difusos, políticos, culturais e econômicos, exemplificativamente.

899
e descontextualizada de cada legislador constituinte. Em outros termos, pode-se dizer que
cada cláusula constitucional revela-se abstrata ao seu modo, posto que cada uma delas
desenvolve um uso de conceitos alheios à linguagem jurídica, bem como aos demais ramos
das ciências sociais, tais como economia, ou qualquer outro. O uso efetivo é o moral e
político, correntes no meio social. Por essa razão, expressões tais como liberdade,
autodeterminação, crueldade ou igualdade, consideradas em abstrato, tornam-se por
demais amplas. Quando estas expressões se consideram no seu sentido literal, segundo
Dworkin, elas assumem o sentido de que o governo trate a todos os que se encontram sob o
seu domínio, com igual consideração e respeito, o que equivale a não infringir as suas
liberdades mais básicas. Esta linguagem principiológica está estruturada de forma
abrangente em duas das principais fontes de reivindicação dos direitos fundamentais da
cultura ocidental, quais sejam: igual consideração e liberdades básicas, ou, nos termos do
juiz Cardozo no caso Palko vs Connecticut, de 1937, à ideia mesma de liberdade com
ordem. Em linhas gerais, pode-se dizer que a teoria da interpretação de Dworkin não se
desenvolve exclusivamente nos planos da sintaxe e semântica dos termos da lei e isto se
revela crucial nos casos que envolvem os chamados conceitos indeterminados, os quais
predominam nos direitos fundamentais, tais como liberdade, dignidade ou igualdade, por
exemplo. O sentido de tais expressões não se resolve, na visão do autor, através de
operações lógicas no seu interior e sim sob um modelo pragmático, o qual se remete
diretamente ao uso social e contextual de cada expressão. Em resumo, o problema a ser
tratado pela interpretação da lei não diz respeito tanto a conceitos da linguagem e sim às
concepções sociais sobre eles. É por essa razão que nenhuma técnica interpretativa sobre o
uso correto do idioma é capaz de explicar a suposta diferenciação entre direitos
constitucionais explícitos, ou taxativamente enumerados, e os chamados direitos implícitos.
Isto porque os direitos fundamentais se baseiam em princípios amplos e abstratos de moral
política cuja correta interpretação e aplicação dependem de percepções morais e não de
usos linguísticos.Também por essa razão é que a distinção entre direitos específicos,
explicitamente enumerados, e os que não o são torna-se, então, irrelevante. Apesar da
aparente simplicidade desta explicação, Dworkin reconhece que, em muitos casos
constitucionais, torna-se difícil decidir se alguma interpretação proposta pode atender o
critério da adequação, correspondente à primeira dimensão interpretativa, proposta por ele,
ou seja, em termos de adequação da correspondência do caso em questão, com a prática e a
história jurídica visando a aprovação no teste desta dimensão (CADEMARTORI;
DUARTE, 2009, p. 170) .

A despeito do acima insculpido, estão presentes, no ordenamento jurídico norte-americano,


elementos capazes de fundamentar, de modo analítico, decisões judiciais à luz do pensamento
flamulado por Ronald Dworkin.

Ronald Dworkin e os argumentos constitucionais acerca do aborto

900
Dworkin muito se empenhou no sentido de extrair um posicionamento mais clarividente no
atinente à prática do aborto – e sempre com fulcro na Constituição norte-americana –, uma
vez que desde o caso Roe v. Wade5 (1973), os Estados Unidos da América (E. U. A.)
reconhecem tal prática enquanto manifestação do direito à privacidade, podendo ser realizada
nos dois primeiros trimestres da gestação. Entretanto, tal direito foi abordado de modo muito
distinto, e não foram poucos os casos em que o livre convencimento, em um determinado
caso, era sobremodo destoante do verificado em outro, ainda que se tratasse de situações
semelhantes. Um exemplo muito claro fica por conta do escólio do juiz Blackmun, que
julgava se tratar de um direito rígido, e que, portanto, seriam necessárias razões muito
extremas para flexibilizá-lo. Ao seu turno, o juiz Rehnquist interpretou por um viés distinto,
acreditando se tratar de um direito absolutamente flexível, podendo sofrer intervenções de
terceiros, inclusive do Estado, bastando que as motivações alegadas fossem consideradas
“razoáveis”.

Dworkin acredita que a interpretação mais “flexível” não condiz com as atuais estruturas da
sociedade estadunidense, uma vez que o direito à contracepção, sedimentado no caso
Griswold v. Connecticut6 não dá margem para distinções principiológicas entre o direito de
não gestar (bear) e o direito de não procriar (beget). Outrossim, Dworkin questiona se
realmente haveria uma justificativa plausível para cercear a prática do aborto, em relação ao
que considera uma liberdade individual. Considera como positiva, a resposta, em se tratando
da tutela à vida.

Dworkin faz, talvez, o questionamento mais difícil de se encontrar uma resposta: um feto deve
ser considerado uma pessoa? Em caso negativo, não há que se falar em crime. Tampouco em
polêmica. O que encerraria quaisquer discussões acerca da temática (inclusive o presente
artigo). Se, ao contrário, a resposta for positiva, o ato de abortar, ainda que nos primeiros
meses de gestação, seria análogo ao cometimento de um homicídio, o que atribuiria à prática a
inexorável categoria de crime.

5
Onde a Suprema Corte estadunidense se posicionou no sentido de que o aborto era um direito das mulheres, e
que se tratava de uma consequência lógica do direito à privacidade, protegido pela Emenda Constitucional
Norte-Americana nº 14. Tal postura acabou por declarar inconstitucional a lei estadual do Texas, conferindo às
mulheres total autonomia para interromper a gravidez durante o 1º trimestre de gestação. Ademais, também
foram admitidos alguns critérios que possibilitavam a interrupção da gestação nos 2º e 3º trimestres, o que
reverberou em boa parte das leis estaduais que disciplinavam a prática do aborto nos Estados Unidos.
6
O caso envolveu a prisão da então Diretora Executiva da Liga de Planejamento Familiar do Estado de
Connecticut, Estelle Griswold, sendo que o mais peculiar é que a decisão não se ateve às questões relacionadas
ao direito de evitar (ou não) filhos, e sim à garantia constitucional de que os cidadãos têm direito à intimidade, e
que a polícia (ou quem quer que represente o Estado) não pode invadir o quarto de alguém, sob a égide do
“protecionismo estatal”.

901
Pessoa é parte da constituição porque a décima emenda estabelece que nenhum dos estados
negará a qualquer pessoa igual proteção legal. Mas se o feto fosse uma pessoa
constitucional, então os estados teriam o dever de protegê-lo, de forma que qualquer pessoa
que diga que os estados têm o direito de escolher proibir o aborto já aceitou que os fetos
não são pessoas constitucionais. Este é um argumento poderoso, mas, é claro, a constituição
está sempre aberta a interpretações que podem mostrar o erro desta interpretação. Dworkin
também considera se estados podem, isoladamente, fazer do feto uma pessoa
constitucional, talvez sob o fundamento de que permitir abortos encorajaria uma cultura da
matança. Mas ele duvida que a proteção do feto esteja no âmbito dos arranjos
constitucionais nacionais (que os estados não podem desrespeitar) e, de toda forma, não há
evidência de relação entre culturas de matanças, que se poderia dizer que os EUA já tem, e
leis liberais sobre o aborto. Em países europeus, onde há leis mais liberais sobre o aborto,
não há uma cultura de matança. De qualquer forma, a questão persiste. Do fato de o feto
não ser uma pessoa, seguir-se-ia que a mulher teria um direito, a ser defendido, de controlar
seu próprio papel na procriação? E teriam os estados uma razão motivadora independente
para proibir o aborto? Os adversários de Roe v. Wade argumentam que a constituição não
menciona o direito e, em qualquer caso, não foi esta a intenção dos criadores da
constituição. (...) Dworkin opõe a esta visão da constituição a visão da constituição de
princípio e diz que a concepção estreita e detalhada da Constituição Norte-Americana não é
sequer uma opção para a América contemporânea, e pretender adotá-la não daria qualquer
verificação verdadeira dos poderes dos juízes de impor suas próprias convicções sobre o
direito, mas apenas a perigosa ilusão de uma tal verificação (GUEST, 2010, p. 186).

Ainda que a concepção de interesse apresentasse a mesma carga axiológica que os direitos
constitucionais do cidadão estadunidense, é nítida a centralidade do fator responsabilidade no
pensamento de Dworkin, e tal emblemática não se atém ao debate acerca da inclusão (ou não)
do feto enquanto pessoa constitucional. Nos termos de Oliveira (2007, p. 261), “as escolhas
que as pessoas fazem sobre trabalho, lazer e investimento têm impacto sobre os recursos da
comunidade como um todo”. Dessa forma, seria apropriado mitigar pelas perspectivas de
responsabilidade, bem como as circunstâncias nas quais o aborto poderia ser possibilitado ou
consentido. Este, aliás, é o prisma sustentado Stephen Guest, segundo o qual:

com uma concepção mais rica de constituição em mente, Dworkin considera duas tradições
adversárias: a da liberdade pessoal e da responsabilidade governamental por ‘guardar
espaço público moral em que vivem todos os cidadãos’. Ele diz que essa segunda ideia é
ambígua entre as ideias antagônicas de pretender fazer os cidadãos responsáveis, ou
pretender fazer com que se conformem àquilo que a maioria quer. São ideias antagônicas
porque a responsabilidade exige que as pessoas ajam de acordo com suas convicções, ao
passo que a conformidade pode significar fazer pessoas agirem contrariamente as suas

902
convicções. Se não há razão para proibir o aborto que derive da ideia de que o feto é uma
pessoa (e o estado, portanto, tem apenas o interesse independente na manutenção da
santidade do feto), então a razão para proibir o aborto só pode ser que a mãe está agindo
irresponsavelmente. Esta questão depende da questão altamente controvertida de saber o
que vale como sacralidade da vida e, portanto, as convicções da maioria não deveriam, ao
visar a cidadãos moralmente responsáveis, subjugar a convicção da mãe. Em outras
palavras, o estado não pode permitir, ao mesmo tempo, responsabilidade e conformidade.
Evidentemente, os estados devem objetivar fazer com que os cidadãos tratem questões
sobre vida e morte de maneira responsável, mas (...) os tribunais não podem simplesmente
autorizar um estado a disfarçar uma regra de fato coercitiva como se fosse uma regra
meramente estimuladora de responsabilidade. Em Casey (que confirmou Roe v. Wade), a
Suprema Corte sustentou que os estados podiam encorajar responsabilidade na decisão de
uma mulher quanto ao aborto, desde que as exigências não colocassem um ônus indevido
sobre ela. A corte adotou o entendimento de que exigir que a mulher informe o seu marido
sobre o aborto proposto colocaria tal ônus excessivo sobre ela, mas que seria permitido
exigir um período de 24 horas para deliberação, como uma espécie de período de
esfriamento de ânimos (GUEST, 2010, p. 187).

Essas espécies de restrições necessitam ser examinadas cuidadosamente, já que a fronteira


entre encorajar a responsabilidade e a coação é sobremodo tênue e, uma vez ultrapassada, as
consequências seriam especialmente onerosas, visto que recairiam sobre apenas uma pessoa,
“por oposição a ‘mulheres como um todo’, e, portanto, é acentuadamente diferente de
imprimir coerção sobre as pessoas para que não danifiquem outras coisas a que se liga a
sacralidade, como a arte, ou edifícios históricos” (GUEST, 2010, p. 188).

Stephen Guest, aliás, acredita que qualquer decisão relacionada à prática do aborto está
intimamente vinculada à constituição moral de quem o faz. E que tal ponto de vista
constituiria uma autonomia procriadora, enquanto direito de personalidade. Dworkin, ao seu
turno, acredita que o caso Casey esteja aberto a contestações, já que um período de 24 horas
poderia ser sensato para deliberar acerca da compra de uma arma de fogo (por exemplo), mas
não para o ato de abortar, já que existiriam métodos mais eficazes de se incitar a
responsabilidade.

Dworkin tenta uma outra argumentação, segundo a qual existe o que convencionou denominar
lar textual para a ideia de proteção ao direito de uma mulher à autonomia procriadora, na
Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana7 (que protege a liberdade religiosa). O

7
Em livre tradução, extraída da obra Life’s dominion: an argument about abortion, euthanasia & individual
freedom, de Ronald Dworkin (1993, p. 13): “O congresso não deve fazer leis a respeito de se estabelecer uma

903
autor afirma que se trata de uma defesa viável do instituto em comento, uma vez que sustenta
que a crença em um Deus não pode ser exigida para que alguém obtenha a proteção da
mencionada Primeira Emenda, já que no famigerado caso Seeger v. United States, um homem
que se opôs à guerra com fulcro em princípios éticos gerais – e que era ateu – teve
reconhecido o direito de dispensa em relação ao serviço militar, sob o amparo de uma
legislação que restringia as hipóteses de dispensa a motivos religiosos. Assim, restou claro
que, para Dworkin, a Primeira Emenda exige tão somente que o Estado não interfira no
arbítrio dos cidadãos. Em livre tradução:

Não consigo pensar em qualquer compreensão plausível do conteúdo que uma crença deve
ter para que seja considerada religiosa, ao ponto de excluir convicções acerca de como a
vida humana tem importância intrínseca objetiva, exceto a noção abandonada de que uma
crença religiosa deve pressupor Deus (DWORKIN, 1993, p. 163).

Obviamente, o autor leva em consideração possíveis (e mesmo prováveis) objeções.


Entretanto, refuta todas as que apresentam caráter subjetivo, já que considera que “convicções
sobre o valor intrínseco da vida humana são religiosas” (DWORKIN, 2008, p. 354), de
maneira que uma pessoa não poderia se furtar – exemplificativamente – ao dever de pagar um
tributo, sob a égide de, ao fazê-lo, estar desrespeitando um algoritmo de sua fé.

Considerações finais

Dworkin, que faleceu em fevereiro do corrente ano, dedicou grande parcela de seus esforços
intelectuais no desenvolvimento de sua teoria substantiva de justiça, deixando como legado
uma sofisticada concepção descritiva de pressupostos políticos. Em diversos manuscritos
reunidos em sua obra, Virtude Soberana, Dworkin apresenta a sua teoria política do
liberalismo igualitário, onde demonstra como as instituições norte-americanas podem ser
mais bem avaliadas do ponto de vista da igualdade de recursos, e não do bem-estar. Adiante,
enfatizou como a liberdade e a igualdade são conceitos metafisicamente incomensuráveis, de
maneira a sustentar que ambos os conceitos permitem, recomendam e autorizam uma
hermenêutica reconciliadora e integradora dos institutos jurídico-sociais.

religião, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito
das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações por
ofensas”.

904
Dworkin não mediu esforços no sentido de reconstruir uma filosofia política integradora,
ressaltando que este não era o único “passo” que deveria ser dado rumo à sua sedimentação,
bem como da Moral, do Direito e da Ética. Aliás, deixou-nos a grande missão de perpetuar (e
aprimorar) tal empreitada, em franca ressignificação da metáfora da filosofia de porco-
espinho, imortalizada por Arquíloco8 (2011, p. 28), segundo o qual “a raposa conhece muitas
coisas, mas o porco-espinho conhece uma só e muito importante”. Dworkin, como bem
sugeriu Isaiah Berlin (2010, p.72), “é o porco-espinho que enfrenta as objeções da raposa (...)
em Virtude Soberana e também em Justiça para porcos-espinhos”.

Finalizo afirmando que as estratégias e mecanismos para “fotografar” esse pensamento na


forma de artigo não foram simples. O porco-espinho se move, muda de lugar, aparentemente
muda de assuntos, transita por distintos temas, mas continua sendo um porco-espinho...

Referências

ARQUÍLOCO. Arquíloco. Fragmentos Poéticos. Biblioteca de Autores Clássicos. Brasília, 27


out, 2011, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, p. 28.

BERLIN, Isaiah. Ideias políticas na era romântica. Seu surgimento e influência no


pensamento moderno.

CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; DUARTE, Francisco Carlos. Hermenêutica e


argumentação neoconstitucional. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2009.

__________; __________. Governança sustentável. Nos paradigmas sistêmico e


neoconstitucional. 1ª edição. Curitiba: Juruá, 2007.

DWORKIN, Ronald. Life’s dominion: an argument about abortion, euthanasia & individual
freedom. 1ª edição. Nova Iorque: Knopf, 1993.

__________. Virtude soberana. Tradução de Luís Carlos Borges. 1ª edição. São Paulo: Wmf
Martins Fontes, 2008.

__________. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte Americana –


Col. Justiça e Direito. Tradução de Luís Carlos Borges. 1ª edição. São Paulo: Wmf Martins
Fontes, 2006.

8
Poeta lírico e soldado grego que viveu na primeira metade do século VII a.C.

905
EAGLETON, Terry. Depois da teoria. Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-
modernismo. Tradução de Silvana Vieira. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.

GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Tradução de Luís Carlos Borges. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010.

GUNTHER, Kläus. Teoria da argumentação no direito e na moral. Justificação e aplicação.


Tradução de Juarez Tavares. 1ª edição. Rio de Janeiro: Landy, 2004.

OLIVEIRA, Mário Nogueira de. O segundo liberalismo de Dworkin e a ética liberal. 1ª


edição. Florianópolis: EDUFSC, 2007.

906
907
Fundamentalismo X Neo-Ateísmo: eixos da guerra de culturas nos
Estados Unidos
Roney de Seixas Andrade1, Ivan Dias da Silva2

Introdução

Em seu livro Culture War: the struggle to define America, publicado em 1991, o norte-
americano James Hunter, sociólogo da cultura, desenvolveu o argumento segundo o qual “os
EUA estão em meio a uma guerra de cultura que tem e continuará tendo reverberações não
apenas em relação às políticas públicas, mas sobre a vida ordinária dos americanos, estejam
onde estiverem” (HUNTER, 1991, p. 34). Hunter nos faz saber que ele mesmo define guerra
ou “conflito cultural muito simplesmente como hostilidade social e política enraizada em
diferentes sistemas de entendimento moral. A finalidade às quais tendem estas hostilidades é a
dominação de um ethos cultural e moral sobre todos os outros” (HUNTER, 1991, p. 42).

De acordo com a opinião desse sociólogo, esta guerra ou conflito de cultura em curso traz
consigo um novo realinhamento dos antigos conflitos culturais próprios da história norte-
americana e que envolveram protestantes, católicos, judeus e mórmons ao longo do século
XIX e início do séc. XX. Segundo Hunter, esses antigos conflitos, que tinham um caráter
teológico ou eclesiástico, foram em grande medida removidos da experiência americana
contemporânea, devido justamente à expansão da tolerância cultural, do pluralismo religioso e
das orientações seculares. Entretanto, vale destacar que os princípios e ideais que fundavam as
opções dos diferentes atores desses conflitos, possuíam um caráter de ultimatum. Por isso
mesmo, não eram considerados simples disposição do espírito que poderia ser modificada ou
revogada. Eram considerados verdades reveladas e irrevogáveis, exigências últimas que
constituíam fonte de identidade, propósito e comunhão para as pessoas que viviam em
consonância com eles (HUNTER, 1991, p. 42).

A novidade agora, neste novo realinhamento de conflitos, é que as divisões não refletem mais
desacordos teológicos ou eclesiásticos, ou seja, questões de doutrina, de observância dos
rituais e organização religiosa. Segundo Hunter, os desacordos tradicionais entre as referidas

1
Doutorando e mestre em Ciência da Religião no PPG em Ciência da Religião da UFJF. Bolsista da CAPES.
Orientador: Wilmar do Valle Barbosa. Contato: roneyseixas@yahoo.com.br.
2
Doutorando e mestre em Ciência da Religião no PPG em Ciência da Religião da UFJF. Bolsista da CAPES.
Orientador: Wilmar do Valle Barbosa. Contato: privandias@hotmail.com.

908
denominações religiosas foram basicamente resolvidos, no início do século XX, através de
acordos forjados com base nos simbolismos e no imaginário do teísmo bíblico. Todavia, esses
acordos tornaram-se inócuos, paulatinamente.

Neste novo contexto ao qual estamos nos referindo, os conflitos e divisões, bem como suas
expressões culturais e políticas, não decorrem mais das diferenças de caráter teológico e
eclesiástico, como já dissemos. São agora resultantes de diferentes visões de mundo e
concepções acerca do fundamento da autoridade moral.3 De acordo com Hunter, tais divisões
e conflitos não se dão mais, basicamente, em torno de questões específicas de doutrinas ou de
estilos de práticas e organizações religiosas, mas “em torno de nossa mais fundamental e
estimada compreensão acerca do como ordenar nossas próprias vidas e nosso vida conjunta
nesta sociedade. Nossas ideias mais fundamentais acerca de quem somos como americanos
estão agora em desacordo” (HUNTER, 1991, p. 42).

No contexto deste novo realinhamento, o cerne da discordância encontra-se na diferença


radical acerca da compreensão e tratamento de itens socioculturais da agenda pública tais
como aborto, educação das e proteção às crianças, financiamento público para artes, saúde
pública, ações afirmativas, homossexualismo, valores na educação pública, multiculturalismo,
seguridade social, dentre outros. Não há como negar que tais itens, que se referem ao domínio
do próprio corpo, à procriação, ao diferente, às opções sexuais, à liberdade de escolha, à
universalização de direitos, dentre outras questões, implicam em valores que devem orientar
nossos juízos e escolhas morais. Morais porque esses juízos e escolhas implicam em
determinar e aceitar estes ou aqueles valores a partir das quais estabeleceremos justificativa
ou razões que, por sua vez, regularão nossa conduta.

São justamente as diferentes e opostas visões de mundo, bem como as diferentes e também
opostas razões que fundam os juízos, as escolhas e as verdades morais que se encontram na
base da clivagem entre os diferentes segmentos que atuam nesta contemporânea guerra de
cultura. Segundo Hunter, esta clivagem é tão profunda que atravessa as antigas linhas de
conflito, fazendo com que a distinção que durante tanto tempo dividiu os americanos – entre
protestantes, católicos e judeus – seja hoje em dia praticamente irrelevante. As clivagens que
atualmente demarcam os territórios (simbólicos) nesta guerra de cultura são definidas e
analisadas por este sociólogo da cultura a partir de dois movimentos polares que ele qualifica

3
Com o termo “autoridade moral”, Hunter designa “as bases pelas quais as pessoas determinam se algo é bom
ou mau, certo ou errado, aceitável ou não aceitável, e assim por diante” (HUNTER, 1991, p. 42).

909
como impulse toward orthodoxy (impulso em direção à ortodoxia) e impulse toward
progressivism (impulso em direção à progressividade). De acordo com Hunter, o sistema de
crenças ou a visão de mundo em direção à ortodoxia define-se “pelo compromisso por parte
de seus adeptos com uma autoridade externa, definível e transcendente, uma autoridade que é
suficiente para todos os tempos”. Por outro lado, no âmbito de uma postura progressista,

A autoridade moral tende a ser definida pelo o espírito da era moderna, um espírito do
racionalismo e do subjetivismo. Deste ponto de vista, a verdade tende a ser vista como um
processo, como uma realidade que está sempre se desdobrando. O que toda visão de mundo
progressista tem em comum é a tendência a resimbolizar as crenças históricas de acordo
com os pressupostos predominantes da vida contemporânea (HUNTER, 1991, p. 44).

Todavia, essas qualificações não nos devem levar ao erro de interpretar a guerra de cultura em
curso apenas como uma expressão de diferentes opiniões ou atitudes, sobre esta ou aquela
questão. Como destaca Hunter, esta guerra articula-se a partir de “concepções
fundamentalmente diferentes de autoridade moral, sobre diferentes ideias e crenças sobre a
verdade, o bem, as obrigações com o outro, a natureza da comunidade, e assim por diante”.
Além disso, ela se configura, em última instância, como “uma luta acerca da identidade
nacional – sobre o significado da América, o que fomos no passado, o que somos agora e,
talvez o mais importante, o que nós, como uma nação, aspiramos nos tornar no novo
milênio”, conclui o sociólogo (HUNTER, 1991, pp. 49-50).

Com base nos conceitos propostos por James D. Hunter passamos a analisar dois movimentos
antagônicos que tipificam perfeitamente a guerra de cultura em curso no âmbito da esfera
pública norte-americana. De um lado, analisaremos a vertente fundamentalista através do
estudo de caso Jerry Falwell e a Maioria Moral. Do outro, o atual movimento dos novos
ateístas. Em nosso entendimento, ambos os movimentos se configuram como atores deste
novo realinhamento do conflito ou guerra de cultura que podem ser respectivamente incluído
no rol dos grupos e instituições políticas e culturais que se pautam por “impulsos em direção à
ortodoxia” e por “impulsos em direção à progressividade”.4 Nesta perspectiva, podemos
afirmar que presença do neo-ateísmo neste cenário constitui uma contrapartida ao discurso

4
Muito embora os atores neo-ateístas sejam incluídos aqui numa posição contrária à ortodoxia devido a suas
posturas secularistas e, como a maioria dos secularistas, sua tendência seja mesmo “progressista”, Hunter
observa que nos EUA existem secularistas que eventualmente se deixam orientar por uma perspectiva ortodoxa
ou conservadora. Isto ocorre, por exemplo, quando há um compromisso com a lei natural ou quando há uma
“concepção elevada da natureza que serve como um equivalente funcional da autoridade moral externa e
transcendente, reverenciada por sua contraparte religiosamente ortodoxa” (HUNTER, 1991, p. 45-46).

910
moral fundado numa perspectiva bíblico-religiosa e às suas emulações políticas, tal como
expresso pela Maioria Moral.

Jerry Falwell e a Maioria Moral: um estudo de caso

O caso para o qual se volta nossa olhar é o chamado movimento da Nova Direita Religiosa
fundamentalista norte-americana, em curso no cenário político dos EUA, e que, entre os anos
de 1979 e 1989, foi conduzido pela organização de lobby político denominada Moral Majority
(“Maioria Moral”), com a destacada liderança de Jerry Falwell, seu co-fundador. Em sua
tentativa de impor uma agenda teológico-política à sociedade civil e à esfera pública norte-
americana, a referida organização interdenominacional utilizava-se de argumentos morais e
ações políticas baseados em pressupostos teológicos.

Jerry Lamon Falwell (1933-2007) foi um pastor fundamentalista evangélico (e tele-


evangelista), que durante a maior parte de seu ministério pastoral foi um batista independente,
que veio, posteriormente, a filiar-se aos batistas do sul dos EUA. Ele foi o pastor fundador e
presidente da Thomas Road Baptist Church, uma mega-igreja situada em Lynchburg, no
Estado de Virgínia, com cerca de 20 mil membros, que dirigiu por 40 anos, até a sua morte
em 2007. Em 1971 organizou a Liberty University e em 1979 foi o co-fundador da Maioria
Moral juntamente com o ativista político conservador Paul Weyrich. Figura controversa,
Falwell é louvado por seus apoiadores como alguém que teria deixado um importante legado
através de suas mensagens afinadas com um sólido conservadorismo social. No entanto,
afirmações contra aborto, homossexualismo, islamismo e ateísmo, dentre outras, levaram seus
opositores a acusarem-no de possuir um discurso de ódio e ser, como declarou o jornalista
Max Blumenthal, um “agente da intolerância”.5 Um dia após a morte de Falwell, em
entrevista à CNN, o neo-ateísta Christopher Hitchens fez a seguinte declaração: “A vida vazia
deste horrível charlatãozinho [Falwell] prova apenas uma coisa: que você pode fazer as
maiores ofensas à moralidade e à verdade neste país se for chamado de reverendo”.6

5
The Nation. Disponível em: < http://www.thenation.com/article/agent-intolerance > . Acesso em: 29 de outubro
de 2011.
6
Christopher Hitchens with Anderson Cooper on Death of Falwell (2007). Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=umVp2L82nPY> Acesso em 01 de agosto de 2013. Mathew BALAN.
Disponível em: <"CNN's Memoriam to Falwell: The Hateful Rhetoric of Christopher Hitchens"
http://newsbusters.org/node/12792>. Acesso em 29 de outubro de 2011.

911
As origens da Maioria Moral podem ser reconduzidas a 1976, quando Falwell iniciou uma
série de conferências por todos os EUA sob a rubrica de “Eu Amo a América”. Seu objetivo
nesta ocasião foi tentar despertar a consciência da população norte-americana para questões
que ele considerava importantes a partir de seu próprio ponto de vista fundamentalista
(LIEBMAN & WUTHNOW, 1983, p. 58). Estas conferências foram, na realidade, uma
consequência da decisão de Falwell de posicionar-se contra o princípio tradicional batista da
separação entre igreja e estado. De acordo com Allitt, Falwell teria mudado sua opinião em
relação a este princípio ao constatar o que considerou ser a decadência da moralidade em sua
própria nação (ALLITT, 2003, p. 152). Por meio de suas conferências, Falwell conseguiu
alcançar apoio nacional para criar uma organização formal, ao mesmo tempo em que ganhava
prestígio como alguém dotado de forte perfil de liderança. Por já ter experiência na
administração bem-sucedida de entidades para-eclesiásticas, em poucos anos ele encontrou-se
numa situação favorável para organizar a Maioria Moral (MARTIN, 1996, pp. 201-202).

Outro fator que contribuiu para o surgimento formal desta entidade foi o conflito que teve
lugar em 1978 pelo controle do Christian Voice, o grupo considerado o primeiro agente
organizador da Nova Direita Religiosa norte-americana. Durante uma conferência jornalística,
Robert Grant, fundador desta entidade, afirmou que a Nova Direita Religiosa era “uma farsa
... controlada por três católicos e um judeu.” Por razões próprias, Paul Weyrich, Terry Dolan,
Richard Viguerie (os católicos) e Howard Phillips (o judeu) deixaram o Christian Voice. Em
seguida, e durante um encontro em 1979, na cidade de Lynchburg, Weyrich, Phillips
juntamente com Ed Mcateer e Robert Billings, encorajaram Falwell a fundar a Moral
Majority (expressão cunhada por Weyrich). Martin descreve a conversação entre estes atores
religiosos com as palavras mesmas de Paul Weyrich, tal como segue:

Eu disse [a Falwell], ‘Lá fora há o que alguém pode chamar de uma maioria moral –
pessoas que concordariam com princípios baseados no Decálogo [os Dez Mandamentos],
por exemplo – mas eles estão separados por diferenças geográficas e denominacionais o
que os levou a votar de forma desunida. A chave para qualquer tipo de impacto político é
unir essas pessoas de alguma maneira, para que elas possam ver que estão lutando pela
mesma coisa e precisam estar juntas’. Falwell me interrompeu e disse, ‘Volte ao que você
mencionou antes.’ Eu o entendi mal e comecei a dizer algo, e ele interpelou-me, ‘Não, não!
Você estava dizendo que há algo lá fora ... Como você o chamou? Eu tentei lembrar o que
havia dito, e finalmente afirmei, ‘Ah, eu disse que há uma maioria moral. ’ E ele declarou:
‘É isso!’ (...) ‘Esse é o nome da organização’. E foi desta forma que a Maioria Moral
recebeu o seu nome (MARTIN, 1996, p. 200).

912
A Nova Direita Religiosa objetivava reagir à ameaça do pluralismo de crenças e de estilos de
vida vistos, então, como ameaçadores e como vetores da descristianização de uma América
organicamente judaico-cristã. No final da década de 1970 e nos dez anos que se seguiram,
diferentes segmentos estavam cada vez mais publicamente preocupados com o fato da nação
norte-americana ter se afastado muito rapidamente de suas raízes e valores culturais e
religiosos tradicionais em torno dos quais gravitavam a família, o lar e a igreja. Segundo
Donaldson estes segmentos “concebiam que sua nação estava sendo destruída por crimes,
conflitos raciais, pornografia, ateísmo e uma queda geral em imoralidade” (DONALDSON, p.
289).

É nesse contexto que emerge a Maioria Moral, guiada por um ideal teológico-político e uma
orientação eminentemente ativista. Martin e Appleby afirmam que

A primeira onda desse novo ativismo teológico-político visou a ‘recuperação’ dos tribunais,
escolas e Congresso, então em posse dos ‘humanistas secularizados’ (e, presumidamente,
desejava vencê-los ou ao menos diminuir seu papel na vida pública), e foi extremamente
ativa durante a presidência de Reagan seguindo uma estratégia pautada pelo uso de pressão
a nível nacional (MARTY & APPLEBY, 2004, p. 452).

Os ativistas político-religiosos fundamentalistas da Maioria Moral, representantes desses


significativos segmentos sociais religiosamente orientados, eram do parecer que a sociedade
norte-americana encontrava-se sob a ação de grandes males que estariam supostamente
ameaçando seu país. De acordo com Jerry Falwell, estariam incluídos nessa lista de males
temas como o aborto, divórcio e o humanismo secular, dentre outros.

Apesar de ter uma orientação religiosa e cultural característica do Sul dos EUA, a Maioria
Moral desenvolveu sua atividade política como uma organização nacionalmente estruturada,
através de divisões estaduais. Estas divisões desenvolveram-se rapidamente e, um ano após o
estabelecimento da entidade, o movimento já contava com representações em dezoito estados.
Na década de 1980, Jerry Falwell tornou-se o porta-voz mais conhecido da organização, que
tinha católicos e judeus em seu staff (apesar da discordância de alguns cristãos integrantes do
grupo). A sede da Maioria Moral era em Lynchburg, na Virgínia, a mesma cidade onde
Falwell foi o pastor-presidente da Thomas Road Baptist Church, a maior igreja batista
independente dos EUA. O auge da influência da Maioria Moral se deu durante meados da
referida década, quando afirmava possuir mais de quatro milhões de membros e cerca de dois
milhões de doadores (WILCOX & ROBINSON, 1992, p. 96).

913
Para mobilizar os cristãos (e outros religiosos) que compartilhavam dos pontos de vista da
Maioria Moral, Falwell estimulou-os a se familiarizarem com a forma e com os processos de
trabalho do governo, desde suas esferas mais simples e locais até à presidência da República.
Por sua vez, os integrantes desse grupo foram incentivados a participar de encontros distritais,
municipais e estaduais de partidos políticos, e a considerar a possibilidade de tornarem-se eles
mesmos delegados em convenções partidárias. Falwell reconhecia que participar da arena
política de modo tão explícito constituía um desafio direto ao pietismo evangélico, que
tradicionalmente orientava-se não apenas por práticas devocionais disciplinadas e rigorosos
padrões de moralidade pessoal, mas também por uma postura geral de “separação do mundo”
teologicamente justificada. Uma grande conquista da Maioria Moral foi o fato de que, em um
curto espaço de meses, toda essa orientação religiosa anterior foi desfeita e os
fundamentalistas começaram a se envolver ativa e intensamente na política dos EUA
(MARTIN, 1996, p. 201-202).

O historiador norte-americano George Marsden faz uma observação relevante sobre o


envolvimento direto de religiosos no cenário político-partidário dos EUA, ao afirmar que

Muitos observadores parecem supor que a entrada de fundamentalistas e evangélicos na


política seria uma saída do American Way. De fato, no entanto, para o bem ou para o mal, a
combinação de religião e política sempre foi uma parte da herança política norte-americana.
Talvez, portanto, as recentes investidas políticas fundamentalistas e evangélicas possam ser
melhor entendidas como um reavivamento de uma das maiores tradições políticas da nação.
Na era colonial da América se supunha que religião e política andavam juntas. Nações
ocidentais haviam organizado igrejas, e a religião era frequentemente uma parte integrante
da identidade nacional de uma pessoa (MARSDEN, 1991, p. 85).

Sendo assim, não deve ser motivo de surpresa esse envolvimento promovido pela Maioria
Moral. Contudo, o estudo do referido caso revela, igualmente, um ineditismo no âmbito da
vida democrática norte-americana, a saber: um novo tipo de clivagem que assinala profundas
modificações no espaço público e na própria democracia enquanto expressão política do
Estado-Nação. Segundo Laura Olson,

Por diversas gerações, observadores e analistas da política norte-americana supunham que


as mais significativas divisões entre os eleitores norte-americanos teriam surgido
principalmente de diferenças raciais, de classe e de ideologia. Em décadas recentes, no
entanto, a religião tem emergido como uma linha divisória partidária igualmente
importante. As visões competitivas de ordem moral, regras e autoridade que fluem de
ensinamentos de tradições religiosas diferentes deram origem a profundas – e agora

914
permanentes – clivagens políticas. Mais significante, os indivíduos que participam
frequentemente de uma religião organizada apresentam notoriamente mais pontos de vista
conservadores do que os cidadãos mais secularizados. A emergência dessas diferenças
políticas estimulou o pensamento acerca do papel que o governo deve desempenhar no
apoio a pontos de vista morais competitivos, especialmente quando eles estão fortemente
ligados a perspectivas religiosas particulares (OLSON, 2007, p. 148).7

Essa nova realidade surge à medida que a democracia deixa de ser um atrator metafísico, uma
reserva supra-ordenada de sentido ético-político para a construção da cidadania, e a religião
transforma-se paulatinamente em um substitutivo dessa mesma reserva (GAUCHET, 1998).
No entanto, nesse renovado contexto, a religião não se reconstitui apenas como mais um
substitutivo. Ela está em processo de se recompor também pela via político-partidária. Dessa
feita, a religião confronta-se com o problema da democracia através dos instrumentos da
própria democracia, que são os partidos políticos, e, dentro deles, os atores principais
posicionam-se com um objetivo claro: levar os ensinamentos bíblicos para dentro do
Congresso e da Casa Branca, ou seja, fazer com que orientações religiosas ultrapassem o
ambiente intra ou interconfessional e passem a fundamentar as normas eletivas e prescritivas
da sociedade civil e a sociedade política como um todo.

Tendo em vista esse cenário, somos do parecer que essa clivagem traduz um profundo
conflito entre diferentes sistemas de entendimento moral e religioso, agora levado a cabo no
âmbito mesmo do espaço público e das instituições político-partidárias e culturais norte-
americanas. Para Hunter, a Maioria Moral é um claro exemplo do conflito cultural nos EUA,
que é resultado de uma “hostilidade política e social enraizada em diferentes sistemas de
entendimento moral em que cada ponto-de-vista deseja dominar os demais” (HUNTER, 1991,
p. 42).

É relevante, portanto, considerar o estudo do caso representado pela Maioria Moral,


representante emblemática da Nova Direita Religiosa dos EUA, à luz da magnitude do que
está em jogo no espaço público norte-americano atual, ou seja, o conflito definitivamente
estabelecido entre diferentes sistemas de entendimento moral que travam uma luta, através de
fortes organizações de caráter nacional, pela definição ético-política e pela ordenação das
instituições sócio-políticas norte-americanas. Djupe e Olson, comentando a obra Culture
Wars, de James D. Hunter, declaram que, uma razão pela qual o conflito é significante, é que
“o debate não é simplesmente a respeito de questões triviais ou passageiras, mas o ponto

7
O itálico é nosso.

915
fundamental é sobre como iremos ordenar nossa convivência; é, em essência, uma ‘luta para
definir o sentido da América’” (DJUPE & OLSON, 2003, p. 130).

Mas isto não é tudo. Mais uma vez Djupe e Olson afirmam que,

outra razão pela qual o conflito é significante é por se desenvolver entre ativistas políticos e
elites culturais e, portanto, tal conflito domina o diálogo e debate públicos. (...) A maior
parte da população ‘ocupa um amplo ponto intermediário entre os impulsos extremos e,
então, não é participante ativa na guerra cultural. O conflito é significante para a cultura
norte-americana não por sua amplitude, mas, antes, por causa de seu destaque – é um
conflito entre elites culturais e ativistas políticos defendendo compreensões do sentido de
nossa existência, e são elas que dominam o debate público. Com a fundação do conflito tão
profunda, com tanto em jogo, e com as elites culturais ocupando posições amplamente
diferentes, o conflito domina o discurso público, um discurso ‘mais polarizado que o
próprio público’ (DJUPE & OLSON, 2003, p. 130).8

No final do segundo mandato do presidente Ronald Reagan, as organizações da Nova Direita


Religiosa pareciam se encontrar em fase de declínio. A ideia era que os doadores não mais
entendiam que a nação estivesse na mesma situação de perigo moral em que supostamente se
encontrava no início da década, quando Reagan assumiu a presidência. Então, a base
financeira da Maioria Moral erodiu. Logo, as dificuldades financeiras foram o fator de maior
influência na decisão de dissolver a organização em 1989 (WILCOX & ROBINSON, 1992, p.
96). Jerry Falwell apresentou uma versão mais otimista da dissolução, declarando: “Nosso
alvo foi alcançado ... a Direita Religiosa está solidamente estabelecida em seu lugar e ... os
conservadores religiosos na América estão agora estabelecidos para permanecerem firmes”
(ALLITT, 2003, p. 198).

Os fatos que se sucederam desde o encerramento das atividades da Maioria Moral


comprovam, de certa forma, tais palavras de Falwell. É uma realidade que a Nova Direita
Religiosa estava (e continua a estar) operosa e convencida de que “o verdadeiro cristianismo
deve governar cada aspecto da vida pública e privada, e que o todo – governo, ciência,
história, cultura, relacionamentos, etc. – deve ser estruturado em conformidade com os
ditames da Bíblia” (GOLDBERG, 2006, p. 5).

8
O itálico é nosso.

916
O Contra-discurso Neo-ateísta

Muito embora os principais livros dos autores denominados de neo-ateístas tenham sido
publicados após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e, mesmo considerando
esse evento como um marco geral para o desenvolvimento e notoriedade do discurso neo-
ateísta, sobretudo nos EUA, entendemos, que o movimento neo-ateísta tem raízes mais
profundas. Somos do parecer que ele emerge como resposta a um momento político e cultural
mais geral, ou seja, ao assim chamado retorno do religioso no espaço público de sociedades
seculares ocidentais. Mais pontualmente, como uma resposta ao ressurgimento político-
cultural do fundamentalismo cristão e sua reinserção no espaço público nos EUA a partir de
1970 anos, quando se assiste à emergência de importantes movimentos e organizações
políticas cristãs tais como a Coalizão Cristã e a Maioria Moral. Tais movimentos
representaram os primeiros passos dados a nível nacional, em direção a atual presença cultural
e político-partidária da nova direita cristã nos EUA, após o processo Scopes, ocorrido em
1925.9

Como indicam Arthur Bradley e Andrew Tate, o neo-ateísmo pode ser visto como uma
resposta político-cultural ao ressurgimento do fundamentalismo protestante norte-americano,
neste cenário de novo realinhamento de velhos antagonismos. Esses autores consideram ser o
fundamentalismo cristão o principal antagonista do neo-ateísmo. Assim sendo, na avaliação
deles,

De um lado, o fundamentalismo cristão professa sua fé na inerrância da Bíblia, na doutrina


luterana da sola scriptura, na verdade literal da Gênesis e no primado da moralidade
pessoal. Do outro lado, o neo-ateísmo oferece igualmente apenas uma leitura a-histórica e
descontextualizada da Bíblia e do Alcorão, insistindo na falsidade literal da Gênesis e na
imoralidade patente de um sistema de valores que se baseie numa “verdade” religiosa
revelada (BRADLEY & TATE, 2010, pp. 4-5).

Como temos observado, o neo-ateísmo assume abertamente uma postura de oposição ao


fundamentalismo em geral e ao fundamentalismo cristão norte-americano, em particular. Sam

9
O processo Scopes, ou caso Scopes, foi um julgamento ocorrido em julho de 1925 no Estado norte-americano
do Tennessee – onde o ensino da teoria evolucionista da origem do homem fora proibido pelo Butler Act
aprovado em 21/03/1925 – no qual um professor de biologia chamado John Scopes teve que se defender, em
juízo, da acusação por parte de fundamentalistas de que ensinara a seus alunos a teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin. Sobre o processo Scopes, cf. EUVÉ, François. Darwin et le christianisme, vrais et faux
débats. Paris: Buchet Chastel, 2009, p. 95. Ver também: JOHNSON, Phillip E. Darwin no banco dos réus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 16ss. Sobre o Butler Act, disponível em: <http://creationwiki.org/Butler_Act>.
Acesso em: 12 de novembro de 2012.

917
Harris, por exemplo, afirma no prefácio de sua obra Letter to a Christian Nation que “o
propósito primário do livro é armar os secularistas de nossa sociedade, os quais acreditam que
a religião deve ser mantida fora da política pública, contra os seus oponentes na direita cristã”
(HARRIS, 2006, p. viii). Enquanto Dawkins, ao afirmar que todas as religiões são igualmente
“erradas”, “estúpidas” e “perigosas”, deixa claro que seu principal alvo é quase sempre o
fundamentalismo. Assim sendo, em The God Delusion, ele afirma, por exemplo, que
enquanto cientista ele é “hostil à religião fundamentalista porque ele debocha ativamente do
empreendimento científico. [...] Ela subverte a ciência e mina o intelecto” (DAWKINS, 2006,
p. 321). Mas as diferenças não se limitam a tais questões. Os neo-ateístas criticam e recusam a
legitimidade de toda e qualquer proposta de política pública fundamentada em postulados
contidos em livros sagrados que, como sabemos, são a fonte da verdadeira autoridade moral
para muitos segmentos religiosamente orientados. Consequentemente, só admitem a
legitimidade de políticas consoantes com suas próprias bases de entendimento moral.
Portanto, com base numa visão de mundo que seria objetiva e universal, isto é, com base
também em uma verdadeira autoridade moral, o movimento neo-ateísta propõe cursos de
ação que, no entendimento de seus articuladores, seriam os únicos capazes de recompor as
instituições sociopolíticas em uma perspectiva secularista renovada.10

Além disso, em seus textos, os autores neo-ateístas afirmam reiteradamente que religião
estaria novamente exercendo uma enorme influência na esfera pública, sobretudo no âmbito
da sociedade norte-americana. Segundo o argumento dos neo-ateístas, estaria em curso uma
retomada, um retorno da influência da religião na definição das políticas públicas relacionada
a diferentes agendas, tais como educação, pesquisa científica, entretenimento, família, dentre
outras, que colocaria em risco os ideais democráticos desta sociedade. Sam Harris, por
exemplo, é incisivo em sua crítica à influência da religião na política. Segundo esse autor, “o
grau em que as ideias religiosas ainda determinam as políticas governamentais –
especialmente nos Estados Unidos – representam um grave perigo a todos”. Assim sendo,
continua este neo-ateista, “estas intromissões da escatologia no âmbito das políticas modernas
sugerem que os perigos que a fé religiosa oferece dificilmente podem ser exagerados”. A
conclusão de Harris, portanto, é que a política externa norte-americana como um todo vem

10
Dentre as ações adotas pelo movimento neo-ateísta em relação à influência sociopolítica do cristianismo nos
EUA, encontra-se, por exemplo, a oposição massiva à inclusão da Teoria do Design Inteligente no currículo
escolar das escolas daquele país. Ver: FORREST, Barbara. Understanding the Intelligent Design Creationism
Movement Washington D.C.:Centre for Inquiry, 2007. Ver também: SHANKS, Niall. God, the Devil and
Darwin A Critique of Intelligent Design Theory. Oxford University Press, 2004.

918
sendo fortemente influenciada pela agenda política da christian right (HARRIS, 2004, p. 153-
154).

Considerações finais

Essas críticas neo-ateístas sobre a influência da religião no âmbito das sociedades seculares,
leva-nos a considerar uma questão importante, em nosso entendimento: a aparente
contradição entre dois discursos conflitantes. De um lado, o discurso do fundamentalismo
protestante norte-americano, no qual é reforçada sistematicamente a constatação da perda da
influência do cristianismo no âmbito da esfera pública daquele país. Por outro lado, o discurso
neo-ateísta – que se configura como um contra-discurso ao fundamentalismo – no qual é
expresso o sentimento da perda da relevância dos ideais secularistas diante do suposto retorno
da influência religiosa no espaço público das sociedades seculares. Diante dessas diferentes
percepções sobre o lugar e o papel da religião no espaço público podemos nos perguntar:
estamos vivendo um momento pós-cristão, momento de perda de eficácia organizadora da
religião sobre a vida da sociedade, como parecem sugerir os fundamentalistas, ou estamos em
um momento pós-secular, momento de potencialização desta mesma eficácia, como sugerem
os atores ligados ao movimento neo-ateísta? Mas, quem sabe, estamos vivenciando a
coexistência desses dois momentos?

Segundo o filósofo francês Marcel Gauchet, o mundo contemporâneo assiste a duas dinâmicas
simultâneas e co-constitutivas: um processo em andamento de “saída da religião,
compreendida como saída da capacidade do religioso em estruturar a política e a sociedade”
como um todo, e a um processo de “permanência do religioso na ordem da convicção última
dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo espectro de variações, segundo as
experiências históricas e nacionais muito amplas” (FERRY & GAUCHET, p. 2008, p. 41).

Entretanto, na avaliação deste pensador esta permanência da fé com suas revivescências


periódicas, não sugere de modo algum, um retorno da religião enquanto a instituição
estruturante da totalidade social, da vida das sociedades. Mesmo diante de fenômenos mais
pontuais, como o caso dos fundamentalismos islâmicos a partir a década de 1970, com o Irã,
ou no caso do fundamentalismo nos Estados Unidos, tais retornos não indicam uma
recomposição da organização das sociedades com base na eficácia estruturante das religiões.
Não o indicam mesmo ali onde “as igrejas tornaram-se depositárias da identidade nacional

919
devido a motivos históricos”, como na Irlanda, Polônia ou Grécia (GAUCHET, 2004, pp. 11-
13). Por outro lado, a saída da religião “não significa desaparição de qualquer experiência do
tipo religioso”. Muito ao contrário, “significa desprendimento da organização da realidade
coletiva segundo o ponto de vista do outro, porém desprendimento que faz aparecer a
experiência subjetiva do outro como um resto antropológico talvez irredutível” (GAUCHET,
1985, p. 233).

A levar em consideração as análises de Marcel Gauchet, podemos perceber que os EUA estão
presenciando a coexistência de dois momentos que operam simultaneamente. De um lado, um
momento pós-cristão, que pode ser visto como uma etapa de saída da religião, ou seja,
momento de grande inflexão da capacidade organizadora do cristianismo sobre a totalidade da
vida social norte-americana. Por outro, uma permanência e até mesmo uma intensificação das
crenças religiosas, as quais muito embora possuam um papel social importante como acontece
neste país, não constituem mais a única reserva de sentido e de fundamentos para os
indivíduos e para o estar–junto coletivo. Desde o momento em que a religião deixa
efetivamente de constituir a fonte das fontes organizadoras das instituições sociopolíticas e
culturais e de operar como matriz da lei e como fundamento exclusivo da autoridade moral,
passamos a vivenciar um definitivo deslocamento do ponto de aplicação da religião em nossas
sociedades, não obstante o atual retorno do religioso, como afirmam uns, ou o
reencantamento do mundo, como desejam outros. Assim sendo, ela se torna apenas mais uma
reserva de sentido dentre outras a fundamentar as convicções últimas dos indivíduos.

Finalmente, é importante ressaltar que processo de clivagem no âmbito das elites político-
culturais e religiosas norte-americanas que estamos a presenciar decorre justamente deste
deslocamento do ponto de aplicação histórico da religião. Como vimos, este processo tem
gerado um novo tipo de conflito no espaço público dos EUA, o qual, por sua vez, tem dado às
controvérsias entre neo-ateístas e fundamentalistas cristãos a dimensão de uma guerra de
cultura.

920
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922
923
O legado fundamentalista do Seminário Teológico de
Westminster: reformistas x reconstrucionistas
Andréa Silveira de Souza1

Introdução

Muito mais influentes que os intelectuais do contexto universitário, são os “trabalhadores do


conhecimento” de orientação mais prática: especialistas em políticas públicas inseridos em grupos de
reflexão, lobbistas de interesses especiais, defensores de interesses públicos, escritores e ideólogos
independentes, jornalistas e editores, comunidades organizadas e ativistas de movimentos —
lideranças nacionais e regionais de camadas populares e organizações políticas. Entre os profissionais
do conhecimento incluem-se os clérigos, teólogos e administradores religiosos de todas as religiões e
denominações. [...] Seguramente eles são da elite do conhecimento, contudo, são elites que negociam
de uma forma mais comum, e também uma de forma mais acessível, ideias e símbolos.
Individualmente, ou mesmo em pequenos grupos, o resultado do seu trabalho seria insignificante.
Coletivamente, no entanto, seus esforços constituem o coração da formação e manutenção da cultura
pública. Em situações da vida real, a dificuldade é que as elites deste tipo raramente formam uma voz
unificada na articulação dos ideais da cultura pública. [...] A questão acadêmica, por vezes debatida
pelos estudiosos, é se este desacordo é sempre suficientemente importante a ponto de ser prejudicial
para a sociedade em geral. Na maioria das vezes, a resposta é não. Geralmente, alguma discordância
não cria grandes confusões na ordem pública, mas é simplesmente parte da concessão mútua da vida
social em uma democracia. No momento, porém, este conflito pode ser muito perturbador

HUNTER, 1990, p. 60

Atualmente, o cenário público norte-americano é marcado por um conflito cultural que,


segundo Hunter (1990) é a expressão da clivagem entre sistemas morais diferentes e tidos
como inconciliáveis. Constitui uma luta, uma verdadeira “guerra de trincheiras” entre
sistemas de entendimento moral antagônicos que disputam no espaço público a hegemonia de
valores morais e de suas emulações políticas, cujos adeptos consideram verdadeiras e
legítimas para toda a sociedade. Este conflito é de amplo espectro e envolve disputas de
agendas que contemplam temas que vão desde a definição do que significa ser religioso, até a
dotação de verbas públicas para as escolas, passando por questões morais, opções de política
externa, perspectivas de ordenamento jurídico e financiamento das artes.

No contexto deste conflito, que é novo, pelo menos na história norte-americana, interessam-
nos grupos religiosos evangélicos fundamentalistas que se antagonizam no espaço público-
político. Eles representam não apenas denominações religiosas que defendem internamente
seus princípios teológicos e eclesiásticos, mas, sobretudo, correntes que disputam

1
Doutoranda em Ciência da Religião pela UFJF. Mestre em Filosofia pela UFG e graduada em Filosofia pela
UFU. Bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Wilmar do Valle Barbosa. Contato:
andrea_silveira@yahoo.com.

924
publicamente tendências ideológico-políticas, a partir de visões de mundo fundadas numa
ética e numa moral religiosa e bíblica.

Entre estes grupos atuantes na arena política norte-americana, interessam-nos duas correntes
evangélicas fundamentalistas, a reformista e a reconstrucionista que, embora originadas no
contexto do Seminário Teológico de Westminster, e fundamentadas teológica e
filosoficamente no pensamento do teólogo reformado Cornelius Van Til, assumem posições
antagônicas na esfera pública. A análise do discurso dessas correntes fundamentalistas é
objeto de estudo de uma das pesquisas que vem sendo desenvolvidas no grupo de pesquisas
em fundamentalismo evangélico norte-americano no Programa de Pós-graduação em Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.

O objetivo de nossa pesquisa é a análise dos elementos teológicos e políticos que dão vida e
que marcam o antagonismo entre as correntes fundamentalistas reformista e reconstrucionista.
Neste sentido, buscamos verificar como estas duas perspectivas, que se alimentam da mesma
fonte teológico-filosófica, o pensamento vantiliano, com vieses em seu antecessor Abraham
Kuyper, interpretam este pensamento de maneira tão distinta e concebem duas formas opostas
de abordagem e inserção religiosa, sociopolítica e cultural. O intuito de nossa pesquisa é
verificar, por meio da análise do discurso, como essas duas correntes fundamentalistas
interpretam, porque assim interpretam, e também como e porque estabelecem suas ações
sociais e políticas de maneiras opostas, tendo como base uma mesma perspectiva teológica.
Destacamos que a pesquisa encontra-se em andamento, portanto, apresentamos aqui
apontamentos que não se pretendem conclusivos, são resultados parciais e, sobretudo,
hipóteses de uma pesquisa em curso.

1. O Seminário Teológico de Westminster

O fundamentalismo, enquanto corrente teológica, tem sua origem nos Estados Unidos, no
final do século XIX e início do século XX, o que o caracteriza como um fenômeno
originalmente cristão, protestante e norte-americano2. Segundo Marsden (1991, p. 1),

2
“Embora o termo ´fundamentalista` tenha sido inventado nos Estados Unidos em 1920 aplicado aos militantes
evangélicos, nos últimos anos tem sido aplicado por analogia a qualquer religião militante tradicionalista, assim
como o fundamentalismo islâmico” (MARSDEN, 1991, p.1).

925
[...] um fundamentalista americano é um evangélico militante em oposição à teologia
liberal nas igrejas ou às mudanças nos valores culturais ou morais, tal como aqueles
associados com o “humanismo secular”. Seja nas definições longas ou curtas,
fundamentalistas são um subtipo de evangélicos e a militância é crucial para sua
perspectiva. Fundamentalistas não são apenas religiosos conservadores, eles são
conversadores dispostos a assumir uma bancada e lutar. [grifos meus]

A noção de oposição é essencial para a compreensão do que vem a ser o movimento


fundamentalista3. É em oposição a algo que se impõe, e ameaça uma determinada estrutura
religiosa e cultural, que emerge o fundamentalismo. Segundo Marty (1992, p. 333), “Contra-
atacar como princípio constitutivo é o que determina o tipo de métodos, princípios e
substância teológicos fundamentalistas, da mesma forma que determina o tipo de formação e
estratégia política do grupo fundamentalista”. O alvo do contra-ataque, fundamentalista
evangélico norte-americano, é o modernismo, que traz consigo a secularização, exaltando o
comportamento laico a partir de valores centrados unicamente no indivíduo, no liberalismo
econômico e no prazer mundano e efêmero. Trata-se de uma luta contra a perda dos valores
morais protestantes.

Nos Estados Unidos o movimento fundamentalista evangélico tem se caracterizado


basicamente pela utilização da religião como reserva de sentido fundada no primado e na
inerrância da Bíblia, pelo recurso às concepções pré ou pós milenaristas, pela oposição
sistemática ao modernismo, à teoria darwinista da evolução, pela afirmação do criacionismo
e, por fim, pela defesa de uma concepção teológico-politica das instituições sociopolíticas.4

O fundamentalismo não é um movimento singular, pelo contrário, é composto por diferentes


grupos denominacionais que tem em comum um inimigo a combater e algumas agendas
morais pelas quais lutar. Por serem plurais, as correntes fundamentalistas podem ter
orientações filosófico-teológicas, formas de inserção e ação distintas na esfera pública.
Porém, duas destas correntes chamaram-nos a atenção, primeiro pela forma distinta e
antagônica de atuação no espaço público, e segundo, porque elas, embora em polos opostos,

3
“O caráter teológico fundamental dos modernos fundamentalismos religiosos — sem esquecer que também há
outros — é o oposicionismo. Em todo e qualquer contexto, o fundamentalismo começa a tomar forma quando os
membros de movimentos já conservadores ou tradicionais se sentem ameaçados” (MARTY, 1992, p. 333).
4
“Protestantes americanos tem geralmente mantido uma das três visões do final dos tempos — pós-milenarista,
pré-milenarista ou amilenarista. Pós-milenaristas geralmente acreditam que Deus está trabalhando através da
história, preparando a terra para o Milênio, que é o reinado de 1000 anos de Cristo na terra. Pré-milenarismo […]
é a crença que a terra se tornará cada vez pior até o retorno de Cristo. Só então, com o Seu Retorno sobrenatural,
será a aurora do milênio. Amilenarismo é a crença que as passagens apocalípticas da escritura discutindo um
reinado milenar de Cristo na terra não são para ser tomadas literalmente. Amilenaristas, portanto, não são dados
à especulação tampouco se interessam pelo fim dos tempos” (HANKINS, 2009, p. 84).

926
resultam do legado de um dos importantes expoentes no cenário religioso norte-americano, o
Seminário Teológico de Westminster, bem como do pensamento de um mesmo teólogo. Mas
no que reside a importância de Westminster?

O seminário foi fundado em 1929, na Filadélfia, por alguns teólogos dissidentes do Seminário
Teológico de Princeton. Westminster foi criado com a incumbência de ser o berço, por
excelência, da ortodoxia protestante de denominação presbiteriana nos Estados Unidos, bem
como de salvaguardar o impulso à ortodoxia no campo do conflito cultural e garantir uma
perspectiva fundamentalista para o ensino e para a própria igreja presbiteriana. Neste sentido,
Westminster formou várias gerações de intelectuais e ministros religiosos que, seja pela
pregação, pela docência e produção intelectual ou pela militância pública em favor do
conservadorismo religioso, tiveram grande influência na cultura política e religiosa norte-
americana.

Do âmbito deste seminário emergiram os fundamentos teológico-filosóficos das correntes


reconstrucionista e reformista, ambas procedentes do pensamento de um dos fundadores da
instituição, que é também dos grandes nomes da teologia evangélica norte-americana, o
holandês radicado nos Estados Unidos, Cornelius Van Til. Enquanto evangélico
fundamentalista, Van Til foi anti-humanista, anti-modernista e anti-evolucionista, rejeitou a
ideia da ciência como único fundamento de verdade, afirmou e defendeu a inerrância e
autoridade da Bíblia e de Deus, bem como a impossibilidade de se contestar, com base em
princípios científicos, a origem divina da vida do ser humano e do universo. Dedicou-se à
docência no seminário até a sua aposentadoria em 1974.

Van Til teve seu pensamento significativamente influenciado pelo neo-calvinista holandês
Abraham Kuyper. A concepção teomórfica de homem elaborada por este teólogo, baseada na
oposição entre regenerado e não-regenerado como condição de conhecimento de Deus e da
verdade, na aceitação da noção de graça comum e na centralidade do pressuposto em oposição
ao fato, foram definitivas para a apologética vantiliana e para a construção da identidade
teológica do seminário. Abordaremos agora alguns aspectos relevantes da teologia de Van Til,
uma vez que são essenciais para compreendermos de que maneira eles podem ser norteadores
dos princípios e práticas adotados pelas correntes fundamentalistas em estudo.

927
2. O pensamento de Cornelius Van Til: as bases teológico-filosóficas dos reformistas e
reconstrucionistas

O método que orienta, e a partir do qual se desenvolve toda a teologia de Van Til, é a
apologética pressuposicionalista. Para Van Til, a existência de Deus é um pressuposto, de
maneira que não compete ao homem buscar provas empíricas desta existência, pois essa busca
equivale a ir contra a própria condição humana de conhecimento. No seu entendimento, para
comprovar a existência de Deus, seja pelos fatos, seja pela ciência, os indivíduos colocam em
primeiro plano a razão, relacionando por meio do raciocínio a existência de Deus e as
demonstrações materiais. Van Til refuta esta tese, ponderando que ao colocar a razão e a
autonomia humana como fim último para provar a existência de Deus e a verdade do texto
sagrado, a criatura coloca-se em condição superior ao próprio criador. A autonomia coloca o
ser humano em condições de estabelecer a verdade ou falsidade do que quer que seja. Isto
significa que, para Van Til, tentar provar (ou não) a existência de Deus, e a verdade da
Escritura pela por argumentos e princípios da razão humana, nada mais é que colocar a
criatura como o fundamento último e universal, daquilo que, na verdade, tem por princípio
inquestionável e irrefutável, Deus.

Por conseguinte, na perspectiva pressuposicionalista de Van Til, a infalibilidade do texto


sagrado é deduzida do pressuposto mesmo da existência de Deus. É neste teísmo que se apoia
a interpretação da Bíblia como a palavra de Deus. Van Til é categórico ao afirmar que “A
Escritura, como produto acabado da revelação sobrenatural e salvífica de Deus ao homem,
tem sua própria prova em si mesma” (VAN TIL, 2008, p. 254). Esta posição implica
diretamente na desqualificação de qualquer argumento científico que questione ou recuse a
verdade bíblica, dada a própria impossibilidade ontológica da criatura de questionar o criador
Absoluto5.

Para Van Til, a compreensão que o homem tem de si e do mundo está condicionada à
interpretação que ele tem de Deus6. Somente pela fé aquele que crê tem a possibilidade de
conhecer o Absoluto e de compreender a verdade da Escritura e do mundo, pois tem a
divindade como fundamento para a sua interpretação. Neste sentido, os incrédulos têm a sua

5
“Esta visão de Van Til da Escritura corresponde a, é derivada de, e está implícita em sua concepção teísta
particular de Deus, e é evidente também em sua teoria da inspiração autográfica e infalível” (STELT, 1978, p.
248).
6
“O que torna o método de raciocínio por pressuposição possível é precisamente essa estrutura analógica da
realidade, do sistema de conhecimento do homem dever ser ‘uma réplica analógica do sistema de conhecimento
que pertence a Deus’. A consistência do crente deve, portanto, refletir ou corresponder à consistência (interna) de
Deus” (STELT, 1978, p. 237).

928
compreensão de mundo distorcida, pois colocam como fim último desta compreensão a
própria subjetividade, baseada na autonomia e na liberdade da criatura em relação ao criador,
realizando assim, uma interpretação da Escritura a partir do conjunto de valores mundanos e
não dos valores cristãos. Para Van Til, todo e qualquer conhecimento que tenha como
fundamento e princípio o indivíduo e não a divindade, não é um conhecimento verdadeiro.

Van Til acredita que o livre-arbítrio, enquanto possibilidade de escolha entre crer e não crer,
não constitui um fundamento, posto que a descrença compromete, além da salvação do
indivíduo, as suas condições de conhecimento. Desta feita, o conhecimento de Deus, como
pressuposto da crença na sua palavra contida na Bíblia, e do agir segundo as regras do livro,
constitui a verdadeira condição de possibilidade do conhecimento7. Deste modo, é a partir de
um teísmo pressuposicionalista que a teologia vantiliana atrela a infalibilidade da Escritura e
as condições humanas de conhecimento à pressuposição da existência de Deus, colocando
este último como fundamento da verdade universal8 e, por conseguinte, desqualificando e
combatendo a perspectiva cientificista moderna.

A implicação imediata destes princípios é que toda e qualquer forma de conhecimento seja
possível somente pela graça de Deus, que tendo criado o homem à sua imagem e semelhança,
dotou-o da capacidade de conhecer, entretanto, dentro dos limites da sua condição humana de
criatura. Van Til é taxativo ao dizer que, enquanto criatura, o ser humano não possui
autonomia para questionar a existência do criador, a sua palavra ou a sua criação, buscando
respostas fora da palavra de Deus por meio da ciência, e que esta nada mais é do que uma
mera criação humana cujos fundamentos são valores mundanos, falsos e desprovidos de
verdade. Para ele, a própria condição humana não admite que a criatura coloque a si mesma
como fundamento último. Segundo Stelt (1978, p. 255), “Van Til afirma que a sua visão da
realidade e da Escritura é cristocentrada [...]”, isto quer dizer que toda condição que o homem
possui para obter conhecimento verdadeiro passa, necessariamente, pela sua condição de
criatura e de crença no cristianismo evangélico.

Fundamental para a compreensão do pensamento de Van Til é a apologética do teólogo


reformado holandês Abraham Kuyper e a antítese elaborada por Kuyper acerca do efeito do
7
“Assim, a Bíblia, como a revelação infalivelmente inspirada por Deus ao homem pecador, está diante de nós
como a luz por meio da qual todos os fatos do universo criado devem ser interpretados” (VAN TIL, 2008, p.
139).
8
“Os processos de raciocínio não-cristãos repousam sobre as pressuposições de que o homem é o final ou o
último ponto de referência na predicação humana. Os processos de raciocínio cristãos repousam sobre a
pressuposição que Deus, falando por meio de Cristo por seu Espírito na infalível Palavra, é o final ou último
ponto de referência na predicação humana” (VAN TIL Apud HARRIS, 1998, p. 251).

929
pecado para o conhecimento da verdade9. Segundo Kuyper, a presença do pecado compromete
a condição de conhecimento da verdade, mas não somente no que concerne à teologia ou à
escritura, mas a todo e qualquer tipo de conhecimento, inclusive o científico. O pecador, isto
é, aquele que age contra os princípios e valores cristãos e as normas da escritura, possui uma
visão de mundo corrompida. Ele acredita na existência de dois sistemas de vida, antagônicos
entre si e que determinam toda a visão de mundo do indivíduo. Para Kuyper, um sistema de
vida é um princípio abrangente e que permeia todas as esferas da vida.

Kuyper acredita que o sistema de vida secularizado, aquele representado pelo modernismo
humanista, é permeado pelo pecado. O efeito do pecado no homem é tal e qual a um
“escurecimento da nossa consciência” (HARRIS, 1998, p. 210), fazendo com que em virtude
de sua concepção de vida e de mundo, o pecador possua apenas condições limitadas de
conhecimento. Conclui-se então que, para Kuyper, o pecador não possui as qualidades
ontológicas para um conhecimento verdadeiro, seja de Deus, da natureza ou dos próprios
seres humanos.

Diante desta antítese, que coloca duas visões de mundo opostas em consequência da
influência do pecado, a epistemologia de Kuyper apoia-se em uma noção dicotomizada do
homem, da vida, da consciência humana e da ciência. Mas estas duas visões de mundo não
são apenas visões, mas dois sistemas de vida “que estão em combate mortal” (KUYPER,
2004, p. 19), isto porque, cada visão de mundo corresponde a um sistema de vida que, por sua
vez, caracteriza certo tipo de ser humano. Por conseguinte, de dois sistemas de vida equivale a
dois tipos de ser humano “constitutivamente diferentes um do outro” (KUYPER Apud
HARRIS, 1998, p. 211).

Na teologia kuyperiana, a regeneração tanto dicotomiza a humanidade quanto restaura a


totalidade da consciência do indivíduo, permitindo assim um conhecimento verdadeiro.
Deixando a condição de pecador e vivendo os ensinamentos cristãos segundo a palavra da
Escritura em todas as esferas da vida, o regenerado restitui a sua visão de mundo e passa a ter
as condições necessárias para um conhecimento verdadeiro.

Além de todos estes elementos do pensamento de Kuyper, os dois sistemas de vida


antagônicos, dois tipos de ser humano e a regeneração, também permeiam e sustentam pontos
9
Segundo Harriet Harris (1998, p. 252), “Van Til combina pensamento kuyperiano com idealismo britânico
transcendental, que ele estudou no Colégio Calvinista e na Universidade de Princeton. A escola britânica enfatiza
que a parte só pode ser entendida à luz do todo. Tudo encontra seu ponto de referência em Deus, o Ideal
Absoluto que para Van Til deve ser trino”.

930
importantes da teologia de Van Til, a noção kuyperiana de graça comum. A partir desta
noção, ele assevera que o Criador concede a todos os homens a graça da regeneração. Assim
sendo, os ímpios, tal como os regenerados, também são redimidos do pecado pela graça
divina, tornando-se a partir de então capacitados para o conhecimento e ação orientada pela
verdade da fé cristã.

Pelo exposto, é clara e evidente a influência do pensamento kuyperiano tanto na teologia de


Van Til, quanto na estruturação da identidade teológico-filosófica do Seminário de
Westminster, declaradamente calvinista, reformada e conservadora. Da nova geração de
intelectuais fundamentalistas que este seminário formou e inspirou, dois tiveram grande
projeção na cultura pública norte-americana, são eles Francis Schaeffer e Gary North. Embora
atuem socio-politicamente por meio de práticas opostas, ambos tem como base teológica
comum o pensamento de Cornelius Van Til. Cada um destes teólogos está alinhado a uma
daquelas duas abordagens teológico-políticas, a reformista e a reconstrucionista,
respectivamente. Estas correntes surgem entre os anos de 1950 e 1960 como correntes de
interpretações antagônicas do pensamento de Van Til, com o propósito de defender no espaço
público agendas morais a partir de uma moral religiosa, evangélica e fundamentalista.
Passemos agora a um breve panorama de cada uma destas perspectivas fundamentalistas, a
fim de observarmos como cada uma delas atua na esfera público-política norte-americana.

3. Reformistas x Reconstrucionistas: a guerra cultural pela hegemonia na esfera


público-política norte-americana

Vejamos então os elementos que caracterizam as duas tendências fundamentalistas em estudo


em nossa pesquisa, o que as distingue e de que maneira elas contribuem para delinear o
conflito cultural e sociopolítico entre diferentes sistemas de entendimento moral, em curso no
espaço público-político norte-americano.

Segundo Harris (1998, p. 262), “atualmente os evangélicos estão tentando dar uma
perspectiva cristã a áreas da vida que, no início deste século, tinham deixado à própria sorte.
Eles efetuaram um ‘deslocamento natural’ em seu pensamento”. Utilizando-se das próprias
palavras de Dean e Porter (1984:10 Apud HARRIS, 1998, p. 262), Harris complementa sua
argumentação afirmando ser

931
[...] ligeiramente simplista (mas ainda válido) ver no período a partir da Segunda Guerra
Mundial ao final dos anos 60, uma ênfase particular no cristianismo e ciência; de meados
dos anos 60 a meados dos 70, uma ênfase no cristianismo e nas artes; [sic] e de meados dos
anos 70 até o presente, uma ênfase no cristianismo e questões sociais e políticas.

Esse “deslocamento natural” em direção às questões políticas e sociais traz consigo


estratégias de ação social que visam à garantia de agendas políticas com forte componente
cristão, tais como, por exemplo, luta contra o aborto, casamento entre homossexuais,
pesquisas com células-tronco e questões de política externa. Dentro deste contexto, que por
vezes anima de forma calorosa o espaço público-político norte-americano, a estratégia de ação
política dos reformistas, enquanto movimento teológico e social, é a de atuar no contexto das
práticas culturais com vista a recompô-las segundo uma visão cristã e assim, cristianizar
grupos de diferentes atores (culturais, políticos, intelectuais, etc) não-cristãos. Esta
perspectiva pressupõe a estruturação de núcleos lobbistas de cunho confessional, que visam
garantir a presença e continuidade dos valores cristãos no âmbito institucional do Estado, por
meio de agendas políticas de cunho cristão e angariação de votos para candidatos evangélicos.
Com a finalidade de garantir essas agendas político-culturais os reformistas também
estabelecem alianças inter-denominacionais e inter-religiosas que se pautem por interesses
mútuos, a fim de fortalecer a penetração de seus valores em diferentes espaços sociais,
assumindo assim, uma postura mais pluralista em oposição à formação de enclaves
separatistas e a uma visão pré-milenarista.

Nos Estados Unidos, um dos mais proeminentes expoentes da corrente reformista foi Francis
Schaeffer10, que teve seu trabalho influenciado pelo pensamento de Kuyper11 e Van Til12.
Schaeffer teve uma presença marcante no âmbito cultural, tendo atuado no sentido de
promover certa “contra-cultura” de cunho evangélico por meio de proposições visando a
renovação da cultura humanista. No seu entendimento esta cultura encontrava-se em
decadência nas artes, nas ciências, na vida acadêmica e na política. Dentro desta perspectiva,

10
“A despeito de endossar uma epistemologia que era mais neutra que pressuposicional, Schaeffer estava
preocupado em combater o espírito da era com as pressuposições cristãs. Seus esforços foram principalmente
pré-evangelísticos: ele advertiu que a nossa cultura estava em crise, e que em nosso afastamento de Deus e da
verdade perdemos a habilidade de entender nosso dilema. Esta mensagem estava de acordo com a teologia pré-
milenarista de Schaeffer” (HARRIS, 1998, p. 260).
11
“Um dos mais bem sucedidos evangélicos a inspirar uma preocupação com a cultura foi Francis Schaeffer
(1912 – 1984). Seu trabalho foi indiretamente afetado pelo pensamento kuyperiano”. (HARRIS, 1998, p. 260)
12
“Sua influência tem sido popular e evangelística ao invés de erudita. Ele estudou no Seminário Teológico de
Westminster sob a tutela de Van Til, mas ele nunca se refere a seu professor. Ele deixou Westminster para o
Seminário Teológico da Fé em 1937. Schaeffer parece ter adotado muito a terminologia de Van Til. [...] Edith
Schaeffer descreveu a influência de Van Til em seu marido como a abertura de uma outra porta, ‘não muito em
detalhes, mas em varreduras mais amplas de seu pensamento’” (HARRIS, 1998, p. 255).

932
Schaeffer foi um crítico tanto das transformações culturais da modernidade quanto do
movimento hippie — do qual foi contemporâneo — que, por sua vez, também foi um
movimento contra cultural de oposição ao moderno (e capitalista) american way of life.
Atentos a todas as esferas da vida, assim como preconizou a apologética de Van Til, os
fundamentalistas de cunho reformista tem procurado modificar a sociedade através da
transformação da “visão de mundo” mesma dos indivíduos, provendo-lhes uma visão de
mundo cristã pela aceitação e conversão à palavra de Deus por meio do evangelismo. Alguns
teóricos tem qualificado tendências como a representada por esses reformistas como neo-
fundamentalistas.

Por outra via temos a corrente dita reconstrucionista que, em oposição aos reformistas, tem
um acentuado caráter separatista, cismático, que está implícito na doutrina dos “dois sistemas
de vida” que Van Til herda de Kuyper e reinterpreta. Segundo Harris (1998, p. 267), “os
reconstrucionistas constituem um grupo altamente polêmico, política e economicamente de
direita, leais a Kuyper [e] Van Til (...). Eles são cismáticos e neste sentido podem ser
considerados como fundamentalistas de militância separatista”.

A partir dos anos de 1990, eles tem se filiado à Nova Direita Cristã a fim de exercer uma
influência política de cunho religioso em âmbito local. Uma das importantes estratégias de
ação teológico-política dos reconstrucionistas está na educação. Dado seu caráter separatista e
conservador, eles procuram colocar seus filhos em escolas confessionais ou dar-lhes uma
educação formal em casa, através do sistema chamado home schooling, uma prática comum
entre os adeptos desta corrente fundamentalista. Para eles, esta é uma estratégia de longo
prazo visando a transformação social na base da sociedade pela educação dos cristãos 13,
acreditam que esta seja a forma mais eficaz de garantir que a moral cristã permeie todas as
instituições da vida secular. Segundo Barr (Apud HARRIS, 1998, p. 268), “[...]
reconstrucionistas são otimistas sobre sua habilidade em transformar o futuro” o que também
evidencia o caráter pós-milenarista dos adeptos desta corrente.

Atualmente, observa-se uma transformação no conflito cultural norte-americano no qual estas


duas correntes se inserem e que se caracteriza por uma clivagem que vem se aprofundando
nos últimos 20 anos. Esta clivagem esta operando uma verdadeira cisão entre as elites norte-
americanas, que se aproxima da descrição vantiliana de dois sistemas de vida, dois sistemas
13
“Sua visão é mais de longo prazo que dos neo-fundamentalistas. Eles visam influenciar o estado de baixo para
cima educando os cristãos em nível de base, ao invés de cima para baixo por lobbies ou votando em candidatos
cristãos” (HARRIS, 1998, p. 269).

933
morais e dois sistemas ético-político antagônicos. Segundo Hunter (1990, p. 31), “as
consequências das divisões políticas hoje não são de caráter teológico e eclesiástico, mas
resultam de diferentes visões de mundo”.

Diferentemente da clivagem que caracterizou o fundamentalismo dos anos 1920 e 1930 14,
sobretudo dos anos 20, a clivagem atual revela uma orientação político-partidária dos grupos
fundamentalistas evangélicos norte-americanos. Segundo Olson (2007, p.148),

Por diversas gerações, observadores e analistas da política norte-americana supunham que


as mais significativas divisões entre os eleitores norte-americanos teriam surgido
principalmente de diferenças raciais, de classe e de ideologia. Em décadas recentes, no
entanto, a religião tem emergido como uma linha divisória partidária igualmente
importante. As visões competitivas de ordem moral, regras e autoridade que fluem de
ensinamentos de tradições religiosas diferentes deram origem a profundas — e agora
permanentes — clivagens políticas. Mais significante, os indivíduos que participam
frequentemente de uma religião organizada apresentam notoriamente mais pontos de vista
conservadores do que os cidadãos mais secularizados. A emergência destas diferenças
políticas estimulou o pensamento acerca do papel que o governo deve desempenhar no
apoio a pontos de vista morais competitivos, especialmente quando eles estão fortemente
ligados a perspectivas religiosas particulares.

Essa recomposição do religioso, em termos político-partidários é visível, por exemplo, no


governo do ex-presidente George W. Bush, o qual teve em seus discursos e na sua ação
política, tanto interna quanto externamente, um forte componente religioso. Segundo Cardoso,
Almeida Neto e Leite (2004, p. 83),

Bush, ainda sob o efeito de sua conversão, de fato começou sua carreira política
assessorando a campanha do pai, em 1988, como responsável pelos contatos com as
lideranças religiosas do então emergente movimento evangélico que entrara na vida política
havia alguns anos. A maioria desses líderes hoje se encontra no centro do poder
republicano, sendo os principais apoiadores da administração Bush. Um deles, Karl Rove,
foi nomeado seu assessor político e incumbido de aumentar ainda mais o número de “fiéis
em Cristo” no Poder Judiciário para dar suporte às iniciativas do governo que se baseiam
em premissas religiosas, como a da proibição definitiva do aborto em todo o país.

A guerra cultural instala-se no espaço público norte-americano, tanto em virtude do


enfrentamento entre os grupos evangélicos fundamentalistas e as instituições laicas, como

14
“Certamente um dos acontecimentos mais notáveis na religião americana desde 1930 tem sido o ressurgimento
do evangelicalismo como uma força na cultura americana” (MARSDEN, 1991, p. 63).

934
também do confronto dos próprios grupos evangélicos fundamentalistas entre si, dada a
dicotomia entre os dois “sistemas de vida” que se antagonizam, cada um sendo defendido por
uma das tendências fundamentalistas contemporâneas acima descritas.

Hunter (1990, p. 42) afirma que,

Porque esta é uma guerra cultural, a essência da divergência política de hoje sobre a gama
de questões debatidas — seja aborto, creches, financiamento para as artes, ação afirmativa e
quotas, direitos gays, valores na educação pública, ou multiculturalismo — podem ser
traçados em última análise e finalmente ao problema da autoridade moral. Por autoridade
moral quero dizer as bases pelas quais as pessoas determinam se alguma coisa é boa ou
ruim, certa ou errada, aceitável ou não aceitável, e assim por diante.

Em vista disso, a pesquisa que desenvolvemos consiste numa análise do discurso de Francis
Schaeffer e Gary North, expoentes mais representativos das tendências reformista e
reconstrucionista, respectivamente, a fim de identificarmos a ideologia que subjaz a estes
textos. Interessa-nos saber em que medida as apropriações antagônicas que ambos fazem do
discurso de Van Til estão implícitas na teologia vantiliana e, até que ponto são oriundas da
inserção social, política e teológica de cada um dos deles.

Somos da hipótese, a ser devidamente comprovada no decorrer da pesquisa, que a cisão entre
regenerado e não-regenerado (crente / incrédulo), que se expressa em dois sistemas de
entendimento moral e ético-político e a teoria da graça comum para todos os homens —
contida na teologia de Kuyper — (re)elaborada por Cornelius Van Til, é o que permite a
existência de interpretações distintas do seu pensamento. Acreditamos que cada uma das
tendências fundamentalistas evangélicas em pauta adota para si uma destas perspectivas como
eixo central de sua interpretação do estar-junto coletivo, da ação sociopolítica e cultural.
Adotando-se a primeira, tem-se uma concepção mais separatista ou cismática, que se orienta
por uma prática que visa a reconstrução social e do indivíduo, tal como concebida pela
corrente reconstrucionista. Adotando-se a segunda, abre-se possibilidade para alianças com
denominações religiosas cristãs não-evangélicas e uma ação política mais de curto prazo na
luta para garantia das agendas morais, o que caracteriza a corrente reformista. No momento, a
pesquisa caminha a fim de que a hipótese seja cuidadosamente verificada.

935
Considerações finais

Como fizemos questão de ressaltar, esta pesquisa está em desenvolvimento. Portanto, não
temos ainda resultados concluídos, apenas um panorama vasto e complexo em processo de
análise, que busca identificar, em ambas as teorias, reformista e reconstrucionista, como e
porque uma e outra interpretam tão diferentemente a herança teológica do Seminário de
Westminster, constituindo-se como duas perspectivas antagônicas de abordagem
fundamentalista. Compreender porque ambas se fundam em uma mesma base, porém, adotam
caminhos de defesa cultural, social e política dos valores evangélicos fundamentalistas
eminentemente distintas é um dos pontos centrais da pesquisa. Pela análise do discurso das
principais obras de Cornelius Van Til, Francis Schaeffer e Gary North, buscamos verificar
qual o discurso que permeia estes textos e que direciona estratégias de ação social e política,
bem como compreender os elementos que animam este complexo cenário sociopolítico, laico
por excelência, mas profundamente imbricado pela cultura religiosa, que é o espaço público
norte-americano.

Referências

CARDOSO, Alexandre A.; ALMEIDA NETO, Manoel de.; LEITE, Cláudio Antônio
Cardoso. O governo George W. Bush e fundamentalismo protestante. In: PEREIRA, Mabel
Salgado; SANTOS, Lyndon de A. (Org.). Religião e violência em tempos de globalização.
São Paulo: Paulinas, 2004. p. 77 - 98.

HANKINS, Barry. American Evangelicals: a contemporary history of a mainstream religious


movement. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 2009.

HARRIS, Harriet A. Fundamentalism and evangelicals. New York: Oxford University Press,
1998.

HUNTER, James Davison. Culture wars: the struggle to define America. New York: Basic
Books, 1991.

KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.

MARSDEN, George M. Understanding fundamentalism and evangelicalism. Michigan:


Eerdmans Publishing Co., 1991.

936
MARTY, Martin E. O que é fundamentalismo?: perspectivas teológicas. In: Concilium:
Revista Internacional de Teologia. Petrópolis, v. 28, fas 241, p. 333 - 346, 1992.
Fundamentalismo um desafio ecumênico.

OLSON, Laura R. Religion, moralism, and the Cultural Wars. In: STONECASH, Jeffrey M.
New Directions in American Political Parties. New York: Sharp, Inc., 2007

STELT, John C. Vander. Philosophy and scripture: a study in Old Princeton and Westminster
Theology. New Jersey: Mack Publishing Company, 1978.

VAN TIL, Cornelius. Christian apologetics. 2. ed. Phillipsburg: P& R Publishing, 2003.

__________. The defense of the faith. 4. ed. Phillipsburg: P & R Publishing, 2008.

937
938
“Religião e Progresso”: a presença da religião em Brazil and The
Brazilians – portrayed in historical and descriptive sketches de
Daniel P. Kidder e James C. Fletcher, 1857
Débora Villela de Oliveira1

Introdução

Minha comunicação consiste numa reflexão sobre a presença secundária da religião no livro
Brazil and The Brazilians – portrayed in historical and descriptive sketches, dos pastores
Daniel Parish Kidder, metodista, e James Cooley Fletcher, presbiteriano (KIDDER &
FLETCHER, 1857)2.

O livro foi publicado na Filadélfia, Estados Unidos em 1857, às vésperas da Guerra Civil
norte-americana. Entender sobre a presença secundárias da religião no livro foi um
desdobramento de minha pesquisa de mestrado, cujo principal objetivo era apresentar as
imagens a respeito do Brasil que os autores traziam na publicação (OLIVEIRA, 2013).

Mas para melhor compreender o objetivo da minha fala, é importante explicitar o que chamei
de “presença secundária” da religião no livro, explicada a partir do conteúdo do livro e alguns
dados da trajetória de seus autores.

Como já dissemos, tanto Kidder como Fletcher eram pastores protestantes e nalguma medida
haviam se envolvido com incursões missionárias3. Todavia, tais envolvimentos pouco
dividiram espaço com as condições sociais, econômicas, culturais e políticas brasileiras
descritas pelos autores no livro4.

1
Mestra pela FFLCH/USP. A pesquisa de mestrado que amparou o artigo a seguir recebeu financiamento da
FAPESP. Contato: deboravilleladeoliveira@yahoo.com.br.
2
A título de facilitar a escrita, passarei a chamar o livro apenas por Brazil and The Brazilians.
3
Daniel Parish Kidder foi um importante pastor norte americanos, conhecido tanto por seu trabalho de
disseminação das publicações metodistas quanto por suas viagens à Europa e América do Sul. Esse pastor esteve
no Brasil entre 1839 e 1842, auxiliando o também metodista Justus Spaulding numa das primeiras divulgações
do protestantismo no Brasil de acordo com LEONARD (1952) e STROBRIDGE(1894). Já James Cooley
Fletcher era filho do banqueiro abolicionista de Indiana Calvin Fletcher. Conhecedor de língua francesa e
bastante viajado, o pastor aportou pela primeira vez no Rio de Janeiro no ano de 1851 junto com esposa e filhos,
permanecendo no país ininterruptamente até 1853. Após essa estadia longa, ele ainda fez pelo menos mais seis
viagem ao Brasil até 1866, portando consigo amplas responsabilidades políticas, conforme apresentou VIEIRA
(1980) e JAMES (1952).
4
A título de exemplo, dentre os 27 capítulos que compõem Brazil and The Brazilians, sete trataram
especificamente da história e da política brasileira, um tratou sobre a instrução pública, treze sobre as viagens

939
Ainda, por serem protestantes, seria presumível a existência de fortes críticas à Igreja Católica
no texto. Todavia, é interessante notar que outros autores, como o inglês radicado nos Estados
Unidos Thomas Ewbank, embora menos envolvido com a religião, foi mais incisivo em suas
críticas a essa instituição em seu livro, Sketches of Travel and Residence in Brazil, publicado
nos Estados Unidos um ano antes, em 1856 (EWBANK, 1856; PAULINO, 2011). De fato,
Kidder e Fletcher nas poucas partes onde mencionaram os aspectos religiosos, apresentaram a
condição brasileira como preocupante, porém, sem incorrem em escárnio quanto ao que
consideravam seus primitivismos, ou que gerou uma apresentação mais sóbria e abrandada
daquela realizada por Ewbank5.

Retomando esses particulares apresentados no conteúdo do livro, é visível que esse espaço
menor destinado à religião parece não combinar com a origem missionária dos autores, que
inclusive utilizaram essa credencial para atestar a fidedignidade daquilo que transmitiam a
seus leitores6.

Autores, Contatos e... Religião?

Um dos mecanismos utilizados para entender melhor esse diferencial foi observar com
cuidado a trajetória estabelecida pelos autores, sobretudo no Brasil, para assim pensar nas
motivações pelas quais as críticas mais pesadas acerca da religião foram suprimidas.

A princípio, um dado importante acerca da construção de Brazil and The Brazilians diria
respeito à autoria do livro. Existiram evidências que apontaram que a autoria principal do
livro é de James Cooley Fletcher, ao invés do livro ter sido escrito à “quatro mãos”
(MINDLIM, 1991, p. 50). Isso faz com que centremos nossas atenções nas relações
estabelecidas principalmente por esse autor no Brasil.

realizadas no território, pelo menos três sobre as condições econômicas do território e apenas um tratou com
mais abrangência a condição religiosa no Brasil.
5
Na verdade, a proposta de Kidder e Fletcher ao escreverem Brazil and The Brazilians não era detratar o país
comprovando seu atraso e primitivismo. Os autores consideravam essa imagem errônea, justamente por ela
inviabilizar trocas e novos contatos entre Brasil e Estados Unidos. Nesse propósito, era registrado no final do
livro o objetivo de se “fornecer um retrato justo e geral sobre o Brasil” (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 584).
6
Nas resenhas que diversos periódicos norte-americanos publicaram, que serviram para divulgar o livro a
público norte-americano, muitas vezes o fato dos autores serem pastores serviu para corroborar a fidedignidade
de seu conteúdo, bem como a pesquisa realizada pelos autores em documentação oficial e o contato com as
diferentes classes sociais brasileiras (Harper´s New Monthly Magazine, “Brazil and The Brazilians”. New
York,v. 15, n. 866, out. 1857, pp.690-691.)

940
Nesse país, desde sua chegada, em 1851, Fletcher estabeleceu contatos importantes, sobretudo
com políticos liberais, participou de reuniões com membros de sociedades científicas
formadas durante o Império no Brasil, caso da Sociedade de Auxiliadora da Indústria
Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual inclusive se tornaria
membro honorário, em 1862 (Revista do IHGB, n. 25, 1862, p. 292-293; VIEIRA, 1980, p.
80). Essa relativa amplitude de contatos com a elite política brasileira é significativa, Mas o
contato mais destacado do autor era com o próprio Imperador do Brasil, D. Pedro II, iniciado
em 1853, e mantido até 1879 (idem, p. 112-150; JAMES, 1952, p. 158)7.

Além desses contatos, cujos objetivos aparentes eram aumentar as trocas científicas e
intelectuais entre Brasil e Estados Unidos, sobretudo após 1860, é possível observar Fletcher
como um articulador das relações econômicas e comerciais entre Brasil e Estados Unidos,
auxiliando os ministros plenipotenciários brasileiros nos Estados Unidos, a obterem acordos
entre os dois países8.

Em vista dessas conexões, estabelecidas antes, durante, e depois da publicação de Brazil and
The Brazilians, é impossível não vincularmos as preferências do autor em sua escrita a
pretensões políticas e diplomáticas do mesmo. Embora esse tipo de pretensão fosse
questionada dentro dos cânones protestantes da época, e mesmo Fletcher fosse criticado por
isso, por meio dessa ação é possível justificar a abordagem apresentada em Brazil and The
Brazilians (VIEIRA, 1980, p. 149-151). Ao responder a essas críticas, Fletcher expõe sua
opinião sobre a relação entre religião e política:

Sei que alguns podem dizer que não é do papel de um clérigo missionário estar
envolvendo-se com negócios. Mas creio que tenho uma visão mais alta do que o mero
interesse mercantil do meu país, pois sou dos tais que crêem que a religião e o comércio são
servos que, unidos com a bênção de Deus, servem para a promoção dos interesses mais
nobres e mais altos da humanidade (JOURNAL OF COMMERCE OF NEW YORK,
09.06.1852, Apud VIEIRA, 1980, p. 65).

7
Além do contato com o Imperador cabe-nos aqui destacar o contato que James Cooley Fletcher teve com o
deputado alagoano Aureliano Tavares Bastos, que se tornou um grande incentivador das negociações entre Brasil
e Estados Unidos, assim como o político Manoel Pacheco da Silva, incentivador da instrução pública no império
e, também, o plenipotenciários do Brasil nos Estados Unidos, durante a década de 1860, Joaquim Maria
D´Azambuja, como elucida VIEIRA (1980, p. 90-112).
8
Exemplos dessa interação de James Cooley Fletcher com os ministros plenipotenciários brasileiros foram
noticiado no New York Times, em 1863 (The New York Times, “Steam communication with Brazil; Interesting
address by Rev. J. C. Flecher, before the Boston Board of Trade”, 14.08.1863), assim como o periódico The
Anglo Brazilian Times também publicou sobre a sagacidade do autor nas negociações entre os dois países (The
Anglo Brazilian Times, Rio de Janeiro, 09.mai.1865, p.1.).

941
De acordo com seu modo de pensar, Fletcher se enxergava como alguém que deveria cuidar
sim de assuntos políticos, justamente pelo fato de sua condição missionária não depender
exclusivamente desses assuntos. Nesse ponto, o autor se considerava mais “puro” que outros
no desejo de bem fazer a política. Mesmo assim, no trecho é possível verificar que há um
questionamento dentro do cânone sobre qual seria a verdadeira conduta de um religioso em
terras distantes. Fletcher se apresenta aqui com um dos casos que David Kling expôs,
criticado pelo fato de muitos acharem que o serviço missionário era apenas um cabide de
emprego que servia de trampolim à diplomacia na época (KLING, 2004, p. 18).

As considerações apresentadas até aqui, expõem as tensões entre missionação e diplomacia


durante o século XIX: ambos os papeis tentaram ser exercidos por Fletcher, mas eram, em
grande medida, difíceis de determinar onde um terminava e o outro se iniciava, ainda mais na
trajetória de um pastor que procurava estar constantemente acompanhado por políticos e
trabalhando por cooperações políticas.

Ainda, a fala de Fletcher nos aproxima de um ponto a ser discutido, relacionado aos objetivos
pelos quais a missionação e a diplomacia se complementavam para o autor.

Religião e Progresso no Brasil

O que pode ser observado no texto de Brazil and The Brazilians sobre o tema da religião é
que o mesmo estava ali para atender a uma finalidade menos vinculada à salvação de almas e
mais aproximada do progresso.

Os autores construíram ao longo da narrativa uma série de hierarquias que não eram não
apenas de cunho racial, mas continham aspectos culturais, dentre os quais a religião também
está inserida9. Um ponto a ser lembrado é que no livro, não foram apenas o catolicismo e o
protestantismo que apareceram. O islamismo aparece quando da apresentação dos costumes

9
Esse tipo de formulação, hierarquizante, está relacionado ao que HORSMAN (1981) e FRIEDRICKSON(1987)
apontaram acerca do pensamento intelectual norte-americano da metade do século XIX. Esse era profundamente
cingido pela questão racial, que procurava estabelecer hierarquias procurando justificar a superioridade da
condição dos brancos norte-americanos em relação aos negros do país, consolidando assim, um discurso de não-
mistura racial no país do Pré Guerra Civil. PAULINO (2011), MACHADO (2006) e OLIVEIRA (2013) trazem a
dimensão do quanto esse pensamento racial ecoava, inclusive no pensamento de viajantes do período, que,
mesmo considerando-se politicamente contrários à escravidão, ou ainda que se opusessem ao tratamento social
diferenciado a brancos e negros, ainda reproduziam hierarquias que contribuíam à continuidade da segregação
racial.

942
pagãos dos negros, mas, não só nesse momento, também quando Fletcher viaja à Colônia
Dona Francisca e se depara com um professor muçulmano:

Eu convidei o clérigo e o professor para tomarem chá comigo, durante a refeição, o último
nos deixou por alguns momentos e então retornou; mas enquanto ele estava ausente, o
clérigo me disse: ‘Como você foi se dar bem com o professor? Ele é um vira-casaca!’
Depois eu entendi a reserva dele (...) O professor era nascido na Bulgária – e era
muçulmano: ele foi à Alemanha e depois disso veio ao Brasil com alguns viajantes belgas
cujo objetivo era a exploração científica. Embora eu tivesse recebido o mais bondoso
tratamento do professor, devo dizer que entre as pessoas da vila ele tinha a reputação de ser
um católico apenas na teoria, na prática era um turco que residira no coração do Império
Otomano (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 336)

É visível que o tratamento oferecido ao professor era ostracista dentro da colônia por mais que
o mesmo demonstrasse erudição e simpatia. O repúdio a ele, devido às suas práticas religiosas
vinha tanto da parte dos católicos quanto dos protestantes locais. Ambos os grupos evitavam a
convivência com o mesmo, tratando-o como repulsivo, degenerado e infiel.

O catolicismo era identificado por Fletcher como uma religião desvirtuada, perdida em meio a
um clero desmoralizado, rituais considerados blasfêmicos, aquilo que Fletcher considerou
como um casamento entre cristianismo e paganismo:

Dentre os vários particulares [sobre a religião], no qual podemos traçar certo casamento
entre o cristianismo e o paganismo, nenhum deles é tão curioso quanto o sistema de ex-voto
(...). Os piedosos pagãos (...) penduram em seus templos os trabalhos manuais de seus
artesãos e artistas (...). Na Igreja da Glória podem ser vistas quantidades de modelos de cera
de braços, pés, olhos (...). No segundo volume de Mountfaucon (...) existe uma longa
explanação sobre exvotos ‘alguns oferecidos a Netuno, pelo bom sucesso de viagens
marítimas, a Serapis pela saúde, a Juno Lucina pelas crianças e por um bom parto
(KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 95-97).

Pela visão transmitida acerca do catolicismo no texto, é perceptível que os autores


corroboravam a idéia bastante difundida sobre o catolicismo entre os cânones protestantes
norte-americanos do século XIX, que consideravam a religião católica como impura, em
contraposição à “Luz Verdadeira”, como era considerado o protestantismo (MENDONÇA,
1995, p. 55-72; MENDONÇA & VELÁSQUEZ FILHO, 2002[1990], p. 99).

Mesmo assim, para os autores, embora na atualidade deles o catolicismo se apresentasse a


seus olhos como desvirtuado, isso não significava que nos primeiros momentos da

943
colonização portuguesa ele não estivesse imbuído de reais e firmes propósitos cristãos. Pelo
contrário o trabalho dos missionários jesuítas em território brasileiro era enaltecido no livro,
como imbuído de mais propósitos salvíficos que, inclusive, as primeiras incursões
protestantes teriam, quando Fletcher se remete às disputas entre huguenotes franceses e
católicos portugueses:

Southey afirma com justiça que nunca houve uma guerra de tão pequena extensão e tão
poucos força empregada de ambos os lados que gerasse consequências tão importantes. A
corte francesa estava muito ocupada em queimar e massacrar huguenotes para pensar no
Brasil e Coligny, após seus generosos planos para com o Brasil terem sido arruinados pela
traição de Villegagnon, não mais se interessou pela colônia: os dias de emigração
protestante para esse país,e aqueles que deveriam ter colonizado o Rio de Janeiro
enfrentaram armas contra um sanguinário e implacável inimigo na defesa daquilo desejável
a todo homem. Portugal estava quase desatento ao Brasil,portanto, poucos como os
habitantes da França Antártica, fosse Mem de Sá menos leal ao seu dever, ou Nóbrega
menos hábil e menos infatigável a seus opositores, esses últimos teriam permanecido em
seus lugares e talvez o país todo teria sido francês (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 57).

É interessante perceber que quando os autores tratam sobre as guerras de religião que
aconteceram no Rio de Janeiro durante o século XVI e XVII, parece que a derrota protestante
veio em razão dos seus próprios erros, e, em certa medida, na falta de fé desses protestantes,
derrotados pela intolerância e pela cobiça, assim como o espírito jesuíta do Padre Manuel da
Nóbrega mostrava-se “hábil e infatigável”, com características de um bom missionário em
terras distantes. Sendo assim, por exclusão, é transparecido que, naquele momento, aqueles
cujos espíritos estavam em concordância aos propósitos divinos eram os jesuítas.

Ao contrastarem a condição colonial com a condição vivida pelo Império, no que tocava à
religião, os autores conseguem construir uma condição de decadência do catolicismo,
geradora de preocupações, dado que, para os autores, a idéia de povo ateu, sem religião
aparecia como um risco ao desenvolvimento da nação. Essa, de fato, era uma concepção
iluminista de fé que entendia que os elementos mais prejudiciais à fé não eram a ciência ou a
evolução, mas sim, a crendice e superstição, que desvirtuava e conduzia a charlatanismos
(CASSIRER, 1970, p. 115-125).

Com essas várias preocupações, Fletcher evocava a vinda do protestantismo ao Brasil da


seguinte forma:

944
Se admitirmos que essa Igreja corrupta uma vez teve a única luz e conhecimento, não há
necessidade de permanecermos modificando na escuridão, ou usar o brilho da lamparina,
quando temos o brilho claro do sol do meio-dia. Deixe que a Luz venha sobre o Brasil!
(KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 144).

Observe-se que nessa evocação há a tentativa de “endireitamento” do país, num sentido de


conduzi-lo a uma reforma de hábitos e de conduta, atrelada ao progresso. Nesse sentido é
possível concluir que muito do que está em jogo na fala do autor não seria em si a salvação
individual tal como comumente difundida pelo presbiteranismo: a fé adquire aqui um papel
social no plano temporal, ao invés de instar meramente no plano salvífico; sua incorporação
se atrelaria à consolidação do progresso no Brasil. A religião e o progresso acabam
indissociáveis ao autor, mas, ainda, o progresso é a finalidade maior da implantação do
protestantismo no Brasil e não, o oposto.

Isso pode ser corroborado ao longo do texto, pelo fato de não existir nele um projeto de
viabilidade de introdução do protestantismo no Brasil: esse projeto encontra-se bastante
diluído no texto de Brazil and The Brazilians, no qual são muito melhor apresentados seus
fracassos, bem como suas dispersões pontuais, que alguma política que, de fato, viesse a ser
implantada no Brasil.

Religião e Cultura Imperial

Como apresentamos, na narrativa de Brazil and The Brazilians a religião tomava papel
secundário em relação ao progresso, objetivo pelo qual ela deveria ser entronizada no
Império. Ao mesmo tempo, a partir dela eram desdobradas hierarquias culturais entre os
povos do mundo: o paganismo completo e islamismo pertenciam aos negro e mouros, o
catolicismo se relacionava aos latinos, e o protestantismo, mais puro e evoluído dessas três,
era característico dos povos anglo-saxões.

Mas devemos dar atenção ao fato de Fletcher sugerir a entrada do protestantismo no Brasil:
isso também significava que os brasileiros já tinham um passo à frente na “escala evolutiva”
em relação aos demais latinos do mundo, afinal, a religião dos latinos já não mais dava conta
de contemplá-los. Isso também pode ser corroborado, na visão de Fletcher pelo nível de
desenvolvimento político, intelectual e econômico que ele testemunhava existir no Império:

945
Não existe futuro para o Brasil para aquele que observa apenas os vazios e os faustosos
ritos da Igreja Católica Romana no Brasil. Mas quando consideramos os sentimentos
liberais e de tolerância que prevalecem [no Brasil] — quando refletimos sobre a sua
liberdade de imprensa, a difusão do ensino e o funcionamento da sua admirável
Constituição — não podemos acreditar que as futuras gerações de brasileiros irão
retroceder. Faculdades intelectuais sem moralidade, como sabemos, é uma mola de
tremendo impacto, precisando de equilíbrio; mas temos fé que Deus, que abençoou o Brasil
tão grandemente em outros aspectos, não o deixará sem o seu maior bem (KIDDER &
FLETCHER, 1857, p. 143-144).

Dadas a essas condições de desenvolvimento alcançadas, a inadequação entre o brasileiro e


sua religião era explicitada. O protestantismo dava conta, portanto, de ser um componente
moral necessário ao progresso, pois como Fletcher diria: “O grande defeito deles não é
almejar uma educação polida, mas uma moralidade sonora, uma religião pura. Sem isso, um
homem pode ser amável, refinado e cerimonioso; mas essa carência faz dele irresponsável,
falso e egoísta” (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 185).

Para além da necessidade de um componente moral e intelectual ao progresso material, é


interessante notar qual parecia ser, aos autores a condição norte-americana em relação ao
progresso. Com matriz cultural, anglo-saxã, a nação parecia desfrutar do topo da pirâmide:
tinham uma “religião pura” pela qual eram instruídos ao menos rudimentarmente na leitura,
para que pudessem ler e interpretar individualmente a Bíblia.

Pelo exemplo de Fletcher também é possível notar que a missionação protestante, mesmo que
criticada em seus moldes pelo caráter majoritariamente político que carregava, também
procurava, dentro da perspectiva de uma cultura imperial, estabelecer suas influências noutras
partes do mundo10. Mesmo sem tomar posturas exacerbadamente anti-católicas, como no caso
de Brazil and The Brazilians, ela tomava uma postura de superioridade em relação aos outros
povos, especialmente em relação às outras nações americanas, que segundo esse pensar ainda
encontravam-se em desenvolvimento.

O fato de se propor a incorporação do protestantismo à sociedade brasileira pressupõe um


olhar paternalista, da parte de Fletcher para com o Brasil, pois por mais aparentes que fossem
as “boas intenções” do autor, ele havia julgado isso necessário, como se apenas ele, um
10
Uso aqui o termo Cultura Imperial indicando as formas veladas de poder assimétrico construídas ao longo do
século XIX pelos Estados Unidos. Mesmo que esse país ainda não tivesse superioridade militar e tecnológica em
relação à Europa no período, já era possível de se enxergar a construção de uma ideologia de superioridade entre
seus membros, de modo que, para eles, a incumbência de se civilizar e de se levar a civilização aos “outros”,
“menos desenvolvidos” já se fazia presente, como mostraram JOSEPH, LEGRAND & SALVATORE (1998).

946
estrangeiro, um anglo-saxão, pudesse certificar-se sobre as reais necessidades brasileiras rumo
ao progresso.

Além disso, há de se perceber que o protestantismo a ser incorporado pelo brasileiro deveria
vir de uma matriz norte-americana, e sem dúvida nenhuma, ligava-se às possíveis influências,
tanto culturais quanto políticas, que o país do norte poderia obter junto aos países latino-
americanos.

Conclusão

A partir da trajetória de James Cooley Fletcher, o principal autor de Brazil and The
Brazilians, e da forma como a religião aparecia no livro, foi possível observar que, para ele, o
tema ganhara uma finalidade bastante específica, vinculada a questões políticas e de exercício
de influência dos Estados Unidos em outras regiões da América.

A ideia de superioridade da religião protestante em relação às outras religiões, católica e


islâmica, desdobrava-se de um pensamento hierarquizador bastante presente nos Estados
Unidos do século XIX, que, por sua vez, auxiliava a acalentar a Cultura Imperial que se
desenvolvia no país na época. Desse modo, a religião se descolava apenas de um plano para a
salvação de fiéis para alinhar-se a projetos políticos de aumento da influência norte-americana
no mundo.

O trabalho é pontual, mas contribui no sentido de apresentar possibilidades de estudo da


religião, para mostrá-la como um interessante anteparo de uma das vertentes da Cultura
Imperial norte-americana que se construía na segunda metade do século XIX.

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The New York Times, “Steam communication with Brazil; Interesting address by Rev. J. C.
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949
950
Religião, política e a ‘guerra cultural’ pelos jovens e entre os
jovens nos EUA
Ariel Finguerut1 e Marco Aurélio Dias de Souza2

Introdução

O artigo discute a relação dos três grandes pastores do pós-Guerra Fria (Billy Graham, Jerry
Falwell e Pat Robertson) com os jovens, mostrando que no caso de Billy Graham “salvar os
jovens” foi seu foco inicial e nos casos de Jerry Falwell e de Pat Robertson o envolvimento
com os jovens se revelou a partir dos desdobramentos de suas respectivas iniciativas de
mobilização política mais amplas, que culminaram na fundação de suas universidades,
respectivamente a Liberty University (1971) e a Regent University (1978).

A relação entre os anseios religiosos de grupos mais conservadores e fundamentalistas sempre


passou pelo tema da educação. Pois a ideia básica desses grupos sempre foi a de projetar na
nação, tanto em sua política doméstica como externa, seus valores e visões morais. Este
processo é político mas só seria possível “educando” e “salvando almas”. A “urgência” das
mobilizações varia conforme as visões milenaristas ou posmilinaristas, que determinam se a
“salvação da nação” deveria acontecer no menor intervalo de tempo possível ou aos poucos e
de forma estratégica.

Outro ponto importante que levam religiosos a se preocuparem e lutarem também no campo
da educação é a ameaça que sentem diante do avanço do humanismo e do secularismo,
principalmente, a partir das primeiras décadas do século XX. A ideia de uma ciência moderna
(que se afirmou como “científica” e portanto goza de uma legitimidade social e política) soa
como uma afronta e ameaça aos grupos religiosos cuja fé projeta na Bíblia toda veracidade de
todas as coisas. Para John Gresham Machen3, importante teólogo da virada do século XIX
para o XX, a modernidade avançava trazendo um “novo gospel” e conjuntamente com o
triunfo do discurso científico do secularismo se afirmava.

1
Doutorando em Ciência Política pela UNICAMP. Bolsista Fapesp. Contato: arielfing@gmail.com.
2
Doutorando em Sociologia pela UNESP. Bolsista Capes. Contato: dias_dias_@hotmail.com .
3
Machen (1881 – 1937) em 1929 rompeu com o tradicional Seminário de Princeton e fundando na Filadélfia seu
próprio seminário o Westminster Theological Seminary sendo um marco para o movimento fundamentalista que
se opunha a teologia liberal que prosperava com a modernidade.

951
Hunter (1983) concluiu que, como resposta à modernidade, aos grupos religiosos restava
acomodar-se ou resistir à ela. Por isso, desenvolveu-se um crescente sentimento
“antimoderno” que percebia que a modernidade era marcada por um individualismo
desacertado, com altos índices de violência, corrupção, crimes hediondos e relativismos
morais inaceitáveis. Como resultado desse sentimento ocorreu o surgimento das primeiras
escolas e institutos bíblicos pautadas na reclusão e isolamento do mundo exterior, protegendo
os estudantes dessa visão de mundo que vinha se tornando dominante.

Em consequência a essa resistência ocorreu, já nas últimas décadas do século XX, uma
mudança na postura dessas correntes religiosas fundamentalistas e conservadoras que, após
um período de retração do mundo secular, moderno e humanista, reagiram ao avanço dos
governos “liberais e progressistas” como por exemplo os de JFK (1961 -1963), Lyndon
Johnson (1963-1969) mas sobretudo Jimmy Carter (1977 -1981) através de uma postura mais
ativa na política. Assim, a postura mais ativista destes governantes levaram os grupos
religiosos a buscarem mais visibilidade e a vitória em uma autodeclarada “Guerra Cultural 4”.
Um momento central deste contexto ocorreu quando o governo Carter buscou alterar as regras
de cobrança de impostos das escolas particulares, afetando diretamente escolas religiosas que
não mais poderiam reclamar status de isenção. A iniciativa de Carter foi respondida por uma
grande mobilização de religiosos e desembocando em momento crucial para o
desenvolvimento do movimento conhecido como “homeschooling5” como também para os
nascentes projetos da Liberty University e da Regent University que conheceremos melhor a
partir de agora.

4
A ideia da existência de uma Guerra Cultural se popularizou nos EUA após a publicação do livro de Hunter
(1991), ao qual, o sociólogo apontava que a sociedade estadunidense estaria radicalmente dividida, devido a
influência de dois conjuntos opostos de valores culturais (que seriam frutos de uma autoridade moral Ortodoxa e
uma progressista), o que faria com que a sociedade se radicalizasse em batalhas pela defesa desses valores
5
Homeschoolling é um movimento que reivindica o direito dos pais de educarem seus filhos sem a
obrigatoriedade de matriculá-los numa escola (seja pública ou privada). Não necessariamente homeschoolling
está associado a movimentos religiosos ou fundamentalistas. Houve momentos como no final dos anos 80 que
pais preocupados com a “opressão” que seus filhos sofreriam na escola buscavam uma alternativa mais
“libertária”. No final dos anos 90 grupos de extrema direita com forte preocupação racial também flertavam com
esta bandeira política. Mas segundo dados que apontam que até 2% da população em idade escolar nos EUA de
hoje estaria em homoeschooling (cf. NORQUIST, 2006) a imensa maioria deste universo se insere um casos de
preocupação e foco religioso.

952
Youth for Christ, Liberty University e a Regent University

A trajetória de Billy Graham começou diretamente relacionada com a preocupação com o


futuro dos jovens, entendido como também o futuro dos Estados Unidos. No contexto dos
anos de 1930 ainda marcados pela depressão econômica e portanto pelas grandes dificuldades
em conseguir emprego e para que os jovens organizarem suas vidas buscassem constituir suas
próprias famílias. Nos termos de Graham (Apud Martin, 2005, p. 67) os jovens estavam sem
“comida, com a Guerra em curso e sem Deus”.

Partindo deste diagnóstico, Billy Graham passou a frequentar e a incentivar “encontros de


sábado à noite6” que pregavam “patriotismo” com entretenimento e um forte discurso
religioso ao estilo “evangélico - revivalista7”. Estes encontros eram promovidos pela Youth for
Christ (YFC) que reunia ministros e que a sua maneira imitava a prática dos pastores e
reverendos itinerantes, característicos do 3º despertar e muito comuns a partir do final dos
anos 30 e nos anos de 19408·. Em 1944 os encontros promovidos pela YFC já estavam em
mais de 200 cidades e as “lideranças” a qual Billy era o nome de destaque e no começo uma
espécie de “referencia única” viu seus pastores se multiplicarem para 600 em 1945.

O sucesso da YFC com os jovens mesclava um elemento tradicional e até certo ponto bem
conservador, que era a mensagem religiosa mas entregue num formato novo e moderno,
agradável e acolhedor aos jovens da época. Os jovens poderiam não gostar de frequentar
igrejas, templos ou escolas religiosas, certamente não gostavam de acordar cedo num
domingo para participar do culto dominical e tão pouco tinham interesse ou paciência para
atender “códigos de vestimenta” ou gostavam de prestar atenção no que diziam e como
diziam os pastores tradicionais. Billy Graham, por sua vez, era extremamente carismático e a
YFC (organização pensada para levar a evangelização aos jovens) souberam de forma
pioneira resolver estes problemas. Pois, eles iam onde os jovens estavam, e os encontravam
tal como eles estavam (sem preocupação com a roupa ou com horário). Como bem sintetiza
Martin (2005), Graham9 e a YFC tinham a estratégia mais ampla de serem modernos sem ser

6
No original: “Saturday-night rallies”.
7
Ideia que se insere no contexto do terceiro despertar
8
Talvez a grande inspiração tenha sido E. Howard Cadle (1884 – 1942), de Indianápolis, fundador da Cadle
Tabernacle, pioneiro no uso do radio para evangelização. Cadle no auge de suas atividades como pastor tinha
seu próprio avião e costumava fazer viagens para atender encontros e pregar. Esta pratica ele manteve até o final
da vida.
9
Segundo Aikman (2007, p.67-68) Graham tinha uma maneira peculiar de pregar que se pautava na exaustiva
preparação dos sermões, na repetição de citações e na utilização de temas do cotidianos nacionais e
internacionais que eram inseridos na maneira energética de pregar. Em nossa leitura, essa maneira de pregar
atingia diretamente os anseios dos jovens que recebiam a mensagem bíblica distante das pregações tradicionais.

953
modernistas, entendendo que a ideia de modernidade era visto como uma força que afastaria
os jovens de Deus, da bíblia e do cristianismo.

Reforçando esta estratégia de aproximação com a cultura jovem dos anos 40 propondo uma
mensagem evangélica, a YFC e as cruzadas de Billy Graham – que passou a ganhar status
mais independente na medida em que seu sucesso aumentava – buscam retratar seus pastores
e lideranças com “roupas modernas”, “carros esportivos“ além de aproxima incentivar que
celebridades e pessoas socialmente reconhecidas (como heróis de guerra, empresários de
sucesso, atletas populares, artistas etc.) a darem seus testemunhos e participarem ativamente
dos encontros com os jovens.

A mensagem passada aos jovens tinha algumas grandes preocupações. Um foco patriótico,
valorizando as forças armadas, os heróis de guerra a supremacia militar dos EUA, um
segundo foco diretamente relacionado ao teor patriótico que era o discurso anticomunista.
Graham e os pastores da YFC apresentam o comunismo como uma ideologia materialista que
rejeitava e combatia toda e qualquer espiritualidade. O embate da Guerra Fria era apresentado
em termos do cristianismo frente ao comunismo no qual a vitória do segundo representaria o
fim da família a vitoria do ateísmo, em síntese, deste embate só poderia surgir um vitorioso, o
derrotado estaria condenado a morte. A ideia de fim do “sonho americano” e do “modo de
vida americano” reverberava com força e ganhava popularidade nos EUA do final dos anos
40 e inicio dos anos 50. Foi neste contexto que as cruzadas do senador de Wisconsin Joseph
McCarthy cresceram e ganharam dimensão nacional.

954
Se Billy Graham alertava que da Guerra Fria só poderia surgir um vencedor e que o
cristianismo estava sob risco e que portanto era importante que os jovens apoiassem as forças
americanas se engajando na luta contra o comunismo, McCarthy, que era católico, acreditava
que era preciso uma guerra interna contra o comunismo infiltrado nos EUA, defendia que
“simpatizantes” deveriam ser coibidos e que a busca por “inimigos” não poderia ter fronteiras
(isso quer dizer que o senador buscava “vermelhos” nos departamentos governamentais, na
indústria cinematográfica, entre empresários, em fim, em todo e qualquer lugar). Billy
Graham se referia a McCarthy como um “cão de guarda” que geralmente tem “poucos
amigos” mas que é fundamental para proporcionar um “sono tranquilo” . Na medida em que
as cruzadas do senador de Wisconsin foram se isolando politicamente e se cercando de teorias
conspiratórias chegando a comportamentos paranóicos, muito em decorrência do crescimento
do grupo John Birch Society em 1958, que alimentava e propagava teorias conspiratórias em
torno da infiltração ou cooperação secreta entre o governo dos EUA e os soviéticos10.

A partir dos anos sessenta, Billy Graham afastou-se tanto do discurso mais militante e
agressivo anticomunista como dos fundamentalistas, devido a fama já conquistada se mostrou
muito maior que a YFC. Graham percebeu que seu discurso evangelizador e fortemente
marcado por princípios morais e pela valorização da bíblia e da fé cristã também reverberava
no meio político e suas palavras e presença poderiam ter grande influência política. Em parte,
Billy Graham passou a chamar atenção da classe política por ter conseguido entre as décadas
de 40 e 50 se estabelecer como “o líder inquestionável” do movimento evangélico/cristão nos
EUA. Neste processo Graham expandiu seu foco de interesse para além dos jovens e
sobretudo se separar dos fundamentalistas11.

10
A influência anticomunista entre pentecostais, neopentecostais e evangélicos em geral seguiu por outros
caminhos. O reverendo Billy James Hargis fundador da Church of the Christian Crusade seguiu por mais tempo
o apoio as cruzadas de McCarthy, no auge as cruzadas de Hargis tinham eram transmitidas por até 500 estações
de radio e 250 de televisão. Outro religioso muito importante quando discutimos o anticomunismo nos EUA é
Carl McIntire (1906 – 2002), fundador da Presbyterian Church of America, uma ruptura/separatismo com a
Igreja Presbiteriana no contexto da onda fundamentalista das primeiras décadas do século XX. McIntire também
liderou o American Council of Christian Churches que se manteve fortemente embasado num postura
anticomunista. Para uma discussão mais ampla sobre este tema conf. American Christianities: A History of
Dominance and Diversity. De Catherine A. Brekus e W. Clark Gilpin, ed. UNC Press, 2011.
11
Segundo Aikman (2007), a relação de Graham com os fundamentalistas vinha desde os tempos de sua
formação universitária na Universidade (fundamentalista) Bob Jones, contudo, ao propor uma nova maneira de
pregar e a aceitação de figuras liberais e de outras denominações no palco durante suas cruzadas, o pastor passou
a sofrer ataques de Bob Jones e outros pastores ligados a instituição que defendiam o isolamento do movimento.
Esse conflito em torno da melhor maneira de pregar fez com que Graham rompesse com o movimento
fundamentalista em 1957, sendo visto por eles, até os dias atuais, como um papista e liberal.

955
Em síntese, nos termos de Martin (2005), Billy Graham representava e propagava um “novo
evangelismo” que se opunha as correntes fundamentalistas e que atingia diferentes
denominações, sem discriminar entre seitas protestantes tradicionais, pentecostais ou
neopentecostais ou mesmo renascidos cristãos que prosperaram nos anos de 1960. Nos termos
de Martin (2005, p. 40): “para o novo evangelismo era mais importante proclamar, anunciar o
evangelho do que defende-lo12”. A luta de apelo político a partir de Billy Graham pode ser
entendida como favorável a reformas socias, o que produzia grande apelo entre liberais e
progressistas, mas também investia na ideia de uma hegemonia cultural cristã e via a
revitalização da fé de uma escala mais local até as dimensões mais globais. Neste ponto o
apelo atingia muito mais republicanos conservadores do que democratas liberais.

Billy Graham de certa forma se sentia neutro13 entre democratas e republicanos o que facilitou
a boa interlocução com candidatos e presidentes de ambos os lados14. Apesar do perfil pouco
religioso, Dwight D. Eisenhower (presidente entre 1953 e 1961) foi o primeiro ocupante da
Casa Branca e mostra-se próximo de um movimento religioso. Ele foi o primeiro a participar
como presidente do National Prayer Breakfast15. E também segundo biógrafos de Billy
Graham16, cartas e visitas trocadas entre ambos é que foram o mais decisivo na decisão de
Eisenhower então um general, herói de guerra, decidir entrar na política. Após Eisenhower a
relação de Billy Graham com o presidente ocupando a Casa Branca se manteve estável e
constante com poucas oscilações até o governo de Bill Clinton (1993 - 2001)17.

12
No original: To the new evangelicals, it was more important to proclaim the gospel than to defend it”.
13
Essa neutralidade de Graham é, sem dúvida, o foco de maior contradição na vida de Graham, visto que, apesar
de publicamente colocar como neutro, o pastor participou da mobilização para que evangélicos não votassem em
Kennedy por ele ser católico, coletou informações sobre o Vietnã para Nixon, influenciou Ford para que Nixon
recebesse um perdão público após sua renuncia devido ao escândalo Watergate e tentou influenciar nos
bastidores os evangélicos para não votar em Carter.
14
Vale apontar que ele era um democrata registrado, mas que teve mais proximidade com os presidentes
republicanos.
15
Iniciativa criada por Abraham Vereide (1889 – 1969), um empresário de Seattle, que em 1942 criou o
International Christian Leadership que de Chicago organizada o National Prayer Breakfast, que eram encontros
anuais em D.C nos quais participavam não só lideranças religiosas e empresarias mas sobretudo políticos.
16
Cf. por exemplo The Preacher and the Presidents: Billy Graham in the White House de Nancy Gibbs e
Michael Duffy (ed. Center Street, 2008).
17
Após isso devido a sua idade e problemas de saúde Graham se isolou contudo ainda manteve contato com
George W. Bush e mesmo com Barack Obama que visitou o pastor em sua residência.

956
Liberty University x Regent University

As trajetórias de Jerry Falwell (1933 - 2007) e Pat Robertson (1930-) são marcadas por
algumas semelhanças e por muitas diferenças. Muitas vezes numa abordagem mais
jornalística os dois são retratados ou com “fundamentalistas” ou como “evangélicos” ou
também como religiosos que buscaram êxito na política, mas há grandes e importantes
diferenças tanto em suas propostas teológicas como pastores, quanto pelas suas estratégias
políticas, combinando nas diferenças entre as Universidades que cada um fundou em seus
respectivos” quartéis generais”, Falwell em torno na Thomas Road Baptist Church (TRBC)
em Lynchburg e Pat Robertson em torno da Christian Broadcast Network (CBN) em Virginia
Beach ambas cidades do estado da Virginia.

Falwell seguiu uma linha que autores como Diamond (1989) classificam como
“neofundamentalista” ou “fundamentalismo reformado”, nos termos de Martin (2011). Para
Tilly (2008) Falwell seguiria a trilha aberta por Howard Cadle (1884 – 2007), que em 1921
tinha seu próprio templo com capacidade para dez mil pessoas, fez sucesso pela rádio com seu
programa The Nation’s Family Prayer Period que chegou a ter audiência semanal de 30
milhões de ouvintes. Falwell por sua vez fundou sua TRBC foi fundada em 1956, crescendo
rapidamente chegou e desde do principio preocupada em também ter seus programas de radio
e TV, Falwell nos anos setenta atingia milhares de famílias com seu Old-Time Gospel Hour.

Com relação às Universidades, a Liberty University, iniciativa de Falwell, nasceu inicialmente


como Lynchburg Christian Academy em 1967, se transformando em Liberty University em
1971. Vale destacar que esta universidade se define como Batista, e que teve dois momentos
críticos em sua trajetória até o presente: um primeiro momento que ocorreu entre 1971 até
1989, quando a universidade esteve muito próxima de encerrar suas atividades devido à
dividas e um segundo momento, após a morte de Jerry Falwell em 2007, ao qual, mais uma
vez, se especulou sobre o fim da instituição.

Segundo Kepel (1991) também devemos estar atentos a um segundo recorte temporal para
compreendermos a trajetória da universidade, pois, ela seguiria um perfil entre 1971 e 1985
focando-se na formação de pastores e na expansão nacional da TRBC e outro (de 1985 até o
presente) que, nos termos de Falwell, se concentraria na formação de “campeões para Jesus18”.
Nesse contexto, ser um “campeão para Jesus” significa ter passado por uma universidade que

18
No original “champions for Christ”.

957
pode oferecer uma formação de excelência com especialização capaz de garantir ao formando
uma empregabilidade num mundo “secular”, contudo, assegurando também valores morais e
cristãos. Em outras palavras, a proposta da Liberty está em espalhar seus valores e sua visão
de mundo inserindo seus alunos e formandos no “campo de batalha”, como entendem a
sociedade liberal, secular dos EUA contemporâneo.

Outro ponto central do projeto desta universidade é formar famílias a partir dos valores
defendidos pela instituição. Para isso, existem normas consideradas rígidas para os padrões
culturais atuais, ao qual, os alunos da Liberty são incentivados a canalizar toda sexualidade
para a vida pós-casamento19, via de regra, eles moram no campus, em dormitórios que
separam homens e mulheres e com horários definidos para entrada e saída, além de, eventuais
vistorias e monitoramentos de controle. A vida no campus, como descreve Roose (2008), é
regida pelas normas chamadas de “Liberty Way20” que não só estipula o que é proibido (como
consumo de álcool, ter relações sexuais, assistir filmes que não as considerados apropriados
ou até mesmo xingar ou usar palavras baixas), como também, estipula punições que podem
ser multas, pagamentos em orações, ou, até mesmo, a expulsão da universidade. Os alunos
também devem atender aos serviços religiosos três vezes por semana e todos ingressantes,
independententemente da carreira a seguir, são obrigados a cursar algumas disciplinas que
basicamente ensinam os valores da universidade e asseguram a base religiosa21.

A Liberty como constatamos em visita guiada em abril de 2013 é uma universidade moderna
que oferece muito conforto e bem estar a seus alunos. Como Kepel (1991) também descreve
em sua visita realizada a mais de vinte anos, é forte a sensação de estarmos experimentando
uma “utopia cristã22”. Atualmente, são mais de doze mil alunos (sendo 52% composto por

19
Neste sentido, Kevin Roose (2008) – que escreveu um livro contando sua experiência como aluno da Liberty
por um semestre ainda durante sua formação em Letras pela Brown Universty, uma instituição considerada
totalmente Liberal – nos conta que em média 80% dos alunos da Liberty fizeram ou vivem com “anéis de
promessa” que indicam o compromisso em se manterem “puros” até o casamento. Roose também descreve o
clima da Universidade como fortemente marcado por encontros que tendem a ser os primeiros passos para um
casamento.
20
Uma cópia do texto comentada está disponível em <http://www.dailykos.com/story/2012/05/11/1090946/-
Liberty-University-s-The-Liberty-Way-exposed>
21
Segundo Roose (2008) o perfil destas disciplinas é a base da mensagem institucional que pode ser sintetizado
em três pontos, negar a teoria da evolução e as consequências de uma ciência com base no evolucionismo,
reforçar a necessidade de um discurso “pró-vida” que condena veementemente o aborto e por fim a necessidade
de restaurar e afirmar a bíblia como detentora de “ verdades absolutas” negando assim uma linha teológica
liberal que fala em interpretações , relativismos e adaptações a cada momento histórico.
22
Neste ponto Kevin Roose (2008) também reforça esta ideia e descreve que o “Liberty Way” entre os alunos é
entendido como “a way to liberty” ou seja, uma vez dentro das normas e mantendo o código em vigor os alunos
se sentem livres e felizes como “campeões para cristo” e vivendo intensamente suas experiências acadêmicas e
religiosas. A ideia de utopia nasce da constatação de que a vida no campus da Liberty seria o “melhor dos
mundos” para os cristãos. É totalmente seguro, a vida religiosa é intensa (com grupos de orações e de estudos

958
mulheres e 48% por homens) numa área superior a 2600 hectares. Entre eles, 75% dos alunos
moram no campus e 74% recebem algum tipo de auxílio ou bolsa para suas despesas23.

Como o ponto central da proposta da Liberty University é formar “campeões para Cristo” que
saibam “pensar e responder há um mundo liberal e secular” e com sorte inserido numa família
formada a partir dos encontros24 que começaram na Liberty existe um sentido de constante de
valorização da família. Como aponta Roose (2008), os alunos aprendem que homens e
mulheres não são “iguais” mas complementares e que o casamento e as relações sexuais entre
pessoas do mesmo sexo são erradas justamente por não aceitarem a complementação criada
por Deus entre homens e mulheres. Neste sentido, Roose (2008) nos mostra que a instituição
oferece aconselhamento e sessões com um terapeuta evangélico para aqueles que, por algum
motivo ou de alguma forma, sintam atração por pessoas do mesmo sexo ou que estejam
“tentados” a “pecar” ou a romper seus votos de pureza.

Outro ponto importante para a universidade é a busca pela salvação, tanto pessoal, como de
outras pessoas. Neste tema, Roose (2008) relata ser comum alunos rezarem e pedirem a Deus
uns pelos outros e em grandes cerimonias que reúnem todos o alunos é também comum
alguns “confessarem seus pecados” e buscarem a salvação em momentos de êxtase religioso.
Estes alunos recebem atenção especial e ganham um momento de “fama” entre colegas após
seu momento de “salvação”.

Em síntese, a mensagem da Liberty University revela muito da mensagem originalmente


proposta e propagada por seu mentor e idealizador Jerry Falwell. A começar pela necessidade
de integrar e valorizar a família nas discussões sobre sociedade civil e em torno dos rumos
dos EUA como nação. A também uma forte relação entre a mensagem conservadora (anti-
evolucionismo, anti-gay, anti-aborto) e a valorização de um modo de vida moralista (o
“liberty way”) que se pautam nos “cinco problemas” que levaram Falwell a mobilizar e
sustentar por quase uma década a Moral Majority: o aborto (que vinha em primeiro lugar), o

bíblicos) líderes religiosos, pastores e conselheiros estão facilmente disponíveis para orientação e ajuda
espiritual, há palestras e testemunhos de cunho religioso com frequência semanal além da proximidade com a
TRBC e do fato de que se está cercado por pessoas que compartilham a fé crista de forma viva e intensa e que
buscam a “salvação“ de si mesmo e dos outros.
23
Dados fornecidos pelo site < http://colleges.findthebest.com/> Acessado em 23/07/2013.
24
Nos EUA “os encontros” (dating) são parte decisiva da cultura jovem, tanto entre liberais como evangélicos
ou conservadores. No caso da Liberty, Roose (2008) descreve os encontros como alegres, com conversas
sinceras e com fortes papeis de gênero. Ao homem cabe conduzir o encontro, desde buscar mulher e depois
deixa-la na porta de seu dormitório até conduzir a conversa, conduzir a reza antes da refeição e cabe também ao
homem arcar com todas as despesas do encontro. Em contrapartida, Roose descreve que é nítida a sensibilidades
das mulheres buscando “ possíveis candidatos a marido” e a frequência de “ encontros” determinaria entre
muitas mulheres do Campus a expectava por possível casamento pós graduação.

959
movimento gay (e sua busca por direitos e ameaça a” família”), a pornografia, o humanismo e
a destruição da família (tanto pelo avanço dos gays mas também pelo aumento no número de
divórcios, fácil acesso a pornografia etc.).

Junto a essa mensagem, notamos na Liberty uma forte influência das visões de Falwell que
colocam a Bíblia como texto sagrado, infalível que pode e deve ser interpretado o mais
literalmente possível. Historicamente, Jerry Falwell cercado dessas certezas bíblicas em
diferentes momentos pregou a desobediência civil contra leis que supostamente estariam
contra as leis divinas. Neste sentido, a Liberty University tem como proposta combater a
influência do secularismo na sociedade americana buscando em estratégia de longo prazo re-
evangelizar os EUA (não de baixo para cima como muitos pastores em revivais tentaram
fazer, mas do alto para baixo), inserindo seus “campeões para cristo” nos mais variados
postos sociais e fortalecendo e multiplicando os lações entre famílias evangélicas
majoritariamente de classe média e, cada vez mais, residentes em grandes cidades ou em
estados fora do sul25.

Diante da grandiosidade e das pretensões elevadas de Jerry Falwell para sua Liberty
University, a relação entre Pat Robertson e sua Regent Univerity são bem mais modestas e
revelam uma tendência maior a acomodação do que a expansão de seus projetos e ideias.

Pat Roberston vem de uma família política tradicional da Virginia, ao qual, seu pai foi
deputado e senador por mais de trinta anos em Washington D.C. Sua educação foi secular e
elitista, em Yale. Religiosamente, Robertson destacou-se ao criar em 1961 a Christian
Broadcast Network (CBN), em 1977 e uma universidade para formar quadros para CBN que
em 1978 virou a Regent University. Segundo nosso guia em visitada a instituição que fizemos
em abril de 2013, o nome Regent remete a ideia de regência, os estudantes e formandos dali
fariam a regência até a volta de Jesus e um novo reinado sob a Terra. Apesar dessa forte
conotação religiosa que nos foi apresentada formalmente, a universidade não afirma-se como
pertencente a uma denominação26 (como a Liberty que se afirmar como batista).

O campus é menor, são pouco mais de 28 hectares com pouco mais de dois mil alunos, sendo
37% composto por homens e 62,5% por mulheres, dados fornecidos por <

25
Região tradicionalmente mais religiosa e mais conservadora do país.
26
O que vem do fato do próprio Robertson ter dificuldade de se definir, sendo um pastor batista do sul ordenado,
mas que durante sua vida fez pregações mais próximas a movimentos carismáticos e pentecostais, defendendo
curas milagrosas e a habilidade de falar línguas.

960
http://colleges.findthebest.com/27 >. Deste universo de alunos, apenas 16% optam por viver no
Campus e segundo nosso guia, a Regent também tem seu código de conduta mas notamos ser
bem mais flexível sem por exemplo ter controle quanto a horário de entrada ou saída dos
dormitórios. Outro ponto a destacar é que, por se tratar de um universo estudantil, é reduzido
para os matriculados alguns benefícios difíceis de serem encontrados em outras universidades
como seguro de saúde, patrulhamento policial permanente no campus e instalações luxuosas
como podemos contatar em nossa visita ao teatro da universidade uma réplica luxuosa do
Ford's Theatre além de terem a disposição uma central de professores para auxílio acadêmico
(revisão de textos, auxilio em pesquisa etc) e tal como nos mostra o site
<http://colleges.findthebest.com/28>, 69% das aulas na Regent são com menos de 20 alunos.

Tal como acontece na Liberty, a Regent carrega temas que refletem as principais
preocupações de seus respectivos mentores e – ao mesmo tempo – “líderes espirituais”.
Robertson ao contrário de Falwell dialoga com um movimento evangélico que tende ao
pentecostalismo e com forte milenarismo. Falwell tinha referencias moderadas ao
milenarismo e vinha de uma forte tradição batista e fundamentalista.

Outra marca forte de Robertson é a herança e a importância da CBN, que se manifesta de duas
formas na universidade, a primeira pela valorização dos cursos de jornalismo e de
comunicação em geral, mas, sobretudo, com a valorização do curso de direito, na medida em
que, para o fundador da Regent Universty, desde o final dos anos 80 demostra grande
preocupação com as discussões em torno dos direitos constitucionais, especialmente com foco
na primeira emenda, que responde ao direito de expressão. Dono de inúmeras declarações
polêmicas, muitas consideradas ofensivas, Robertson desde 1990 é o patrono do escritório de
direito American Center for Law & Justice, cuja principal preocupação tem sido em torno de
casos que envolvem a primeira emenda. Da mesma forma, o curso de direito da Regent é
apresentado como “entre os melhores do país”. Segundo informações disponíveis do site do
curso da instituição o curso de direito conta com professores em tempo integral oriundos das
melhores universidades e consegue mesclar profundidade na discussão jurídica sem perder de
vista a comunidade e os interesses dos cristãos.

27
Acessado em 30/07/2013.
28
Acessado em 30/07/2013.

961
Conclusão

Ambas universidades apresentam um forte apelo cristão e proporcionam a experiência que


seus alunos se “isolem” do mundo secular, liberal ou humanista dos EUA contemporâneo.
Esta experiência cria a sensação de uma “utopia cristã”, um mundo sem a influência e
sobretudo sem o choque com a cultura humanista entendida como uma doutrina de” amor a
humanidade” na qual o ser humano e não Deus é a medida de todas as coisas. Diante do
universo da ciência, da sociedade e de todas coisas se entende e vê a primazia humana. Nos
termos de Verissimo (2013) “(...) ser humanista é não reconhecer nenhum determinismo
metafisico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias”. Com
disciplinas e enfoque “cristãos” tanto a Regent, mas, sobretudo, a Liberty e seu ambiente de
dormitórios, grandes convocações, a proximidade da TRBC criam a sensação de uma vida de
comunidade cristã na qual em clima de revival os alunos são constantemente motivados a
“ganhar o mundo” para Cristo. Contudo é claro que o mundo real é muito mais duro e cruel
como Roose (2008) nos conta a partir da experiência dos alunos que tentaram em viagem de
campo converter e convencer jovens em férias de primavera na praia a se converterem e
confessar seus pecados visando a salvação de sua alma.

Ao comparar Jerry Falwell com Pat Robertson Kepel (1991) argumenta que a luta de Falwell
sempre esteve em torno da cultura, com o foco de transforma-la. Robertson, por sua vez, seria
muito mais messiânico e até certo ponto egocêntrico. Esta dicotomia também se manifesta
quando comparamos a Regent com a Liberty. A Regent é extremamente centrada em torno de
Pat Robertson, a ponto dele residir no campus e em visita guiada podermos encontrar seus
retratos espalhados pelo campus. A influência pessoal de Jerry Falwell sob a Liberty sempre
foi também muito alta, a por exemplo um museu dedicado a vida e trajetória de Falwell e seus
retratados também são encontrados pelos campus, porém, é nítido que o projeto da Liberty são
maiores do que a promoção de Falwell. Já o projeto da Regent demostra e sinaliza para um
certo acolhimento e tentativa de deixar um último legado conjuntamente com a CBN o grande
projeto de Robertson, ao qual ele pretende que siga existindo após sua morte.

Independentemente dos desdobramentos da Liberty e da Regency é importante enfatizarmos


que ambas representam um novo modelo para universidades cristãs. Se nossa referência de
comparação fosse as universidades cristãs dos anos de 1950 ou 60 como a Bob Jones
University e a Oral Roberts University um ponto é central, ao contrário destas, seria o fato
delas serem focadas na busca pela excelência pela pureza teológica, pela extrema rigidez no

962
comportamento (como no caso da Bob Jones) ou centradas nas habilidades especificas de um
pastor (como no caso da Oral Roberts), tanto a Regent como a Liberty buscam um impacto
muito maior, buscam formar e transformar a sociedade como um todo, formando para isso sua
própria elite.

Referências

AIKMAN, David. Billy Graham. His life and influence. Nashville: Thomas Nelson, 2007.

DIAMOND, Sara. Spiritual Warfare: the politics of the Christian Right. Boston: Ed. South
End Press, 1989.

HUNTER, James Davison. American Evangelicalism. Conservative religion and the quandary
of modernity. New Jersey: Rugters University, 1983.

__________. Culture Wars. The struggle to define America. New York: BasicBooks, 1991.

KEPEL, Gilles. A revanche de Deus. São Paulo: Ed. Siciliano, 1991.

MARTIN, William. With God on our side: the rise of the religious right in America. New
York: Broadway Books, 2005.

NORQUIST, G. G. Leave us alone. New York: William Morrow, 2008.

ROOSE, Kevin. The unlikely disciple: a sinner's semester at America's holiest university.
New York: Grand Central, 2008.

VERISSIMO, Luis Fernando. Sobre o humanismo. Jornal Estado de São Paulo, São Paulo,
21 set., 2013.

963
964
Teologia da Libertação na terra do dólar

Jorge Claudio Ribeiro1

Introdução

A Teologia da Libertação (TdL), tendência que une religião e luta por justiça social, surgiu na
América Latina, a partir da década de 1960, no âmbito do catolicismo, mas atualmente
apresenta forte impulso nos Estados Unidos, nos campos protestante e católico e das lutas
sociais.

A importância do estudo da Teologia da Libertação (TdL) nos EUA se deve a vários motivos.
Primeiro, e surpreendentemente pouco conhecida, há nesse país intensa elaboração teológica
e inovadoras práticas religiosas que seguem a linha da libertação. É importante resgatar essas
experiências, pois mostram uma face mais madura e solidária da religião nessa sociedade. A
vertente mainstream é mais conhecida, devido a seu estilo midiático e emocional, e a um viés
fundamentalista, também presentes nas manifestações mais ruidosas do pentecostalismo
brasileiro – cujo crescimento tem sido fulminante no Brasil a partir da década de 1970, sendo
um fator decisivo na atual revolução do cenário religioso em nosso país.

Segundo, o conhecimento das vertentes teológicas da libertação praticadas na sociedade


estadunidense expõe confluências com as sociedades latino-americanas. Ademais, nos EUA a
TdL se enraíza principalmente em solo protestante, que é mais descentralizado do que o
campo católico atual, o que permite antever tendências alternativas e futuras.

Terceiro motivo, é que se celebra atualmente o 50º aniversário do Concílio Vaticano II (1962-
65). Nesse evento de extraordinária magnitude, a Igreja Católica se dispôs a rever sua
estrutura e procedimentos, pretendeu dialogar com a Modernidade e com as questões
contemporâneas (aggiornamento) e reatar laços com outras religiões (ecumenismo). Um dos
efeitos do Concílio foi abrir espaço para a ascensão da Teologia da Libertação na América
Latina, assumida oficialmente na II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em
Medellín no ano de 1968. No entanto, essa perspectiva progressista foi seguidamente

1
Doutor em Ciências Sociais/Antropologia pela PUC/SP. Professor titular e livre-docente em Ciência da
Religião pela mesma universidade. Professor-pesquisador visitante na Columbia University em Nova York pela
Capes/Fulbright e Bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 pelo CNPq. Contato: jorgeclaudio@pucsp.br.

965
desconstruída pela alta hierarquia e por grupos católicos conservadores em evidência antes do
papa Francisco. Por isso, a retomada do Concílio tem uma intenção política dentro do âmbito
religioso.

Teologias, no plural

Profundamente enraizada na história e cultura estadunidenses, a TdL se desdobra em diversas


vertentes principais: negra, feminista (ou “womanist”, na versão negra), hispânica, asiática,
haitiana, nativo-americana e “queer”. Também há ensaios de Teologia da Libertação judaica,
palestina e islâmica. Teoricamente progressista e comprometida com o ativismo relacionado a
causas específicas e gerais (como os direitos civis), a TdL estadunidense apresenta pontos de
confluência com a vertente latino-americana, sempre mencionada como referência, quanto ao
ponto de partida, metodologia, ética, ação pastoral e dimensão política.

A TdL estadunidense tem filiação atribuída ao pensamento e ação de figuras notáveis, tais
como Charles A. Briggs, os irmãos Reinhold e Richard Niebuhr, Dietrich Bonhoeffer, Paul
Tillich, Martin Luther King, Malcolm X, James H. Cone, Richard Horsley e Alice Walker
(2009). Esses intelectuais, artistas e ativistas tiveram ou têm estreitos laços com comunidades
religiosas e/ou instituições acadêmicas dos EUA, com destaque para o Union Theological
Seminary (UTS), afiliado à Columbia University de Nova York.

A Teologia da Libertação nos EUA se contrapõe à prática religiosa mainstream que ocupa
posição central na cultura estadunidense e mantém numerosas interrelações com a política e
economia dessa sociedade. Grosso modo, a vertente religiosa hegemônica se restringe à
subjetividade e à moral individual, apoia-se na emoção e na leitura fundamentalista do texto
bíblico, desconsidera questões de gênero, raça e ecologia, e assume posições conservadoras
do ponto de vista político e social.

Nascida no século XVIII, importante manifestação da TdL, foi gestada nas Black Churches
que se opunham à escravidão e à segregação dos africano-americanos. Por volta de 1870,
consolidou-se uma experiência precursora, quando protestantes progressistas criaram o
movimento denominado Evangelho Social, que defendia a reforma social-religiosa em
resposta aos problemas sociais criados a partir da Guerra Civil, pela rápida industrialização,
urbanização e imigração crescente. Esse movimento defendia a aplicação de princípios morais

966
na melhoria da sociedade industrial e a implantação de reformas como a abolição do trabalho
infantil, a redução da jornada de trabalho e a regulação das fábricas. Os militantes do
Evangelho Social priorizavam a salvação social e se baseavam nas nascentes ciências sociais
e na teologia liberal. Esse movimento atingiu o ápice no início do século XX.

A luta contra as leis segregacionistas, reunidas sob o rótulo de “Jim Crow”, culminou nas
décadas de 1950-60 com o movimento pelos Direitos Civis, liderado pela NAACP (National
Association for the Advancement of Colored People) e por figuras como o pastor Martin
Luther King, tendo-se consolidado teoricamente através da Teologia da Libertação Negra, ou
Black Theology. Mais recentemente, a eleição de Barack Obama, em 4/11/2008, mobilizou
aspirações e conquistas de igualdade social. A oposição inquiriu sobre as raízes religiosas do
presidente e “denunciou” seu mentor, o incendiário pastor Jeremiah Wright, da Trinity
Church em Chicago, que se inspira nessa teologia.

Nesse contexto, merece destaque o pensamento de James Hal Cone que, em 1970, começou a
lecionar no Union Theological Seminary (UTS). Cone foi um dos principais formuladores da
Teologia da Libertação Negra, através de seus livros Black Theology and Black Power (1969)
e A Black Theology of Liberation (1970). O pensamento de Cone vem inspirando gerações de
teólogos(as) e ativistas, como a teóloga Jacquelyn Grant e o filósofo e ensaísta Cornel West.
Apoiando-se na reflexão do filósofo e teólogo Paul Tillich (1886-1965), também professor do
UTS, Cone enfatiza a ideia de que a teologia está enraizada em determinadas razões históricas
e sociais; assim ele critica a teologia abstrata de tradição europeia. As bases da TdL de Cone
são o contexto de opressão sobre os negros e identificação de Jesus com os pobres e
oprimidos. A Teologia da Libertação Negra denuncia os Estados Unidos como uma nação
branca e racista, e acusa as igrejas brancas de serem o Anticristo.

A denúncia do Império Americano também é o foco de Richard Horsley (2004), professor na


Massachusetts University. Biblista reconhecido, ele parte do contexto histórico e social na
época de Jesus para traçar um paralelo com os EUA, país que se vê como a “Nova Roma”.
Tal identificação foi expressa por Thomas Jefferson e se insinua no estilo clássico dos prédios
públicos de Washington, DC. Essa mentalidade aflorou no período pós-9/11, quando a
administração Bush e setores conservadores pediram as bênçãos de Jesus para algum tipo de
retaliação. A ideia de que os EUA são um Império ungido por Deus já fora elaborada pelas
igrejas tradicionais que aprovaram a anexação de territórios estrangeiros: “Elas consideravam
que, o governo dos EUA é missionário e, assim como elas, tem a missão de civilizar o resto

967
do mundo”. Horsley reconhece a influência, em sua trajetória intelectual, da Teologia da
Libertação brasileira e latino-americana.

Ativismo, bandeiras

A TdL tem inspirado muitas ações concretas na sociedade estadunidense. Nos anos 1970, o
teólogo chileno Sérgio Torres organizou uma conferência ecumênica “Theology in the
Americas”, que ficou referencial. Ocorrida em Detroit, ela reuniu as tendências emergentes
envolvidas com a solidariedade à luta contra as ditaduras na América Latina, à gigantesca
população de encarcerados e às mulheres. Nos anos 1980 aos poucos ela foi se confinando à
Academia e se afastando dos movimentos sociais. Era algo feito a modo de TdL, mas sem a
ligação social.
Há pessoas, grupos e publicações que mantêm viva essa tendência. Por exemplo, o jornal
“Sojourners”, editado em Washington pelo evangélico Jim Wallace, líder de comunidade vive
entre os pobres e adota um enfoque pacifista. Também os anabatistas do Radical Discipleship,
liderados por Ched Myers, com maioria branca, voltados para a promoção dos imigrantes sem
documentos e identificados com temas como reconciliação e estudos bíblicos.
Atualmente a perspectiva da libertação está disseminada nas bandeiras liberais presentes na
cultura e mentalidade estadunidenses. Por exemplo, nos direitos dos gays, na recepção às falas
e ideias de Cornell West, na luta contra o imperialismo e militarismo, contra o
encarceramento e pela desativação da prisão de Guantánamo, nas pautas ecológicas lideradas
por Bill McKibben, contra a avareza corporativa.

Referência obrigatória, a Orbis Books (pertencente aos irmãos Maryknoll) desde os anos 1970
até o início da década de 1990 publicou todos os teólogos da libertação – Gustavo Gutierrez,
James H. Cone, Jon Sobrino, Leonardo Boff, Pablo Richard, Elza Tamez, José Míguez
Bonino, Pedro Casaldáliga, Carlos Mesters, Joseph Comblin, Ignacio Ellacuría. Atualmente,
no entanto, o mercado para essa temática vem apresentando queda acentuada.

No campo católico, hoje a não violência é uma tendência central, embora apresente
movimento pendular. Até a guerra do Vietnã, os pacifistas eram uma minoria; a partir daí,
ganhou força e desembocou na forte reação anti-nuclear. Ao final da Guerra Fria, o pacifismo
se dissipou; quando ocorreram as Guerras do Golfo, houve intensos protestos; após os
atentados de 11/9, não houve grande reação às invasões do Iraque e Afeganistão, graças à
manipulação do medo pelo governo Bush.

968
Nesse mesmo campo ocorreu um episódio paradigmático, pouco conhecido: o “St. Patrick’s
Day Four”. Ele ocorreu em 17 de março de 2003, no dia de São Patrício, padroeiro da Irlanda
e de seus descendentes nos EUA. Na ocasião, quatro pacifistas católicos de origem irlandesa
jogaram o próprio sangue nas paredes, cartazes e na bandeira dos Estados Unidos de um
centro de recrutamento militar, na cidade de Ithaca. Eles pertenciam a movimentos como o
Catholic Worker (criado por Dorothy Day), o Christian Peacemaker Teams e o Magnificat
Catholic Worker. Os quatro protestavam contra a ameaça de invasão do Iraque (que
começaria dali a três dias). Em seguida, ajoelharam-se e aguardaram ser presos.

Nos julgamentos que se seguiram, os quatro argumentaram que a invasão do Iraque era ilegal
perante o direito internacional, por não ser aprovada pela ONU, e que os Princípios de
Nurenberg os autorizam a agir em caso de crimes contra a humanidade. Diziam-se inspirados
pela Boston Tea Party, por Rosa Parks e Martin Luther King. Segundo análises, o grande
sacrilégio foi jogar sangue na bandeira americana. Esse episódio reúne dimensões que o
tornam um capítulo típico da Teologia da Libertação ao estilo estadunidense.

Referências latino-americanas

A expressão “Teologia da Libertação” se notabilizou em 1968, em referência ao título do


então recém-publicado livro de Gustavo Gutiérrez, um frade dominicano peruano. A TdL se
desenvolveu inicialmente na América Latina e seu ponto de partida é a situação de pobreza e
exclusão no continente, consideradas produto de estruturas econômicas e sociais injustas. As
origens remotas da TdL situam-se no século XVI, com a ação e escritos do frei Bartolomeu de
las Casas em defesa das populações indígenas e contra o explorador espanhol.

A TdL parte da interpretação da realidade e do compromisso com a libertação, e não da


aplicação “de cima para baixo” de princípios emanados do texto bíblico ou da doutrina oficial.
Por sua parte, a TdL acusa a teologia ocidental moderna de ser eurocêntrica e desconectada da
realidade dos países da periferia. Essa interpretação se apoia nas ciências sociais e na análise
marxista sobre as contradições do capitalismo.

Uma das mais importantes influências da TdL latino-americana ocorreu em 1952, com a
chegada ao Brasil do missionário norte-americano Richard Shaull, presbiteriano. Ele trouxe a

969
experiência do Evangelho Social e teve estreita relação com os pastores presbiterianos
brasileiros, o mineiro Rubem Alves e o curitibano Jaime Nelson Wright.

Rubem Alves é considerado precursor da TdL, por sua tese de doutorado “Towards a theology
of liberation: an exploration of the encounter between the languages of humanistic
messianism and messianic humanism”, defendida em 1968 no Princeton Theological
Seminary e publicada com o título A theology of human hope. Nessa obra, Alves critica a
teologia baseada na metafísica e propõe a formação de novas comunidades de cristãos
animados pela paixão da libertação humana.

Jaime Wright formou-se pela Universidade de Arkansas e pós-graduou-se na Pensilvânia. Em


São Paulo, foi parceiro de dom Paulo Evaristo Arns e do rabino Henri Sobel na defesa pelos
direitos humanos no Brasil e na vertente religiosa da grande frente de resistência à ditadura
militar. Wright reuniu farta documentação sobre a tortura e assassinatos praticados pelo
Estado, daí resultando o livro Brasil: Nunca Mais (1985). Em 1978, articulou polêmico
encontro, de dom Paulo com o presidente Jimmy Carter, quando foi entregue uma lista de
desaparecidos políticos na ditadura.

A TdL se concretizou sobretudo nas Comunidades Eclesiais de Base, que haviam surgido por
volta dos anos 1960. As CEBs eram grupos de aproximadamente 20 a 80 pessoas oriundas das
classes populares que cultivam laços comunitários. Uma comunidade de base se caracteriza
por: proximidade geográfica, o que possibilita a reivindicação por melhorias; reflexão sobre a
vida cotidiana à luz da Bíblia; ampla participação nas discussões. Aos poucos, as CEBs se
abriram para a transformação da sociedade através de movimentos sociais e do movimento
operário.

A ação das CEBs se inspirava no método Paulo Freire de alfabetização de adultos e pretendia
levar à conscientização e à ação. Movidas pelo tema “Igreja povo de Deus”, proposto na
constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, as CEBs tornaram-se participantes
ativas. As conferências do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em Medellín
(1968) e em Puebla (1979) consolidaram as propostas da libertação e da opção preferencial
pelos pobres.

A partir dos anos 70, a experiência das comunidades se expandiu pelo continente latino-
americano, extrapolando os limites do catolicismo e atuando em parceria com as igrejas
metodista, luterana e presbiteriana. Atualmente, graças à repressão dos dois papas anteriores,

970
a TdL e as CEBs foram obrigadas a adotar um low profile, mas com o papa Francisco,
provavelmente o panorama apresentará alterações significativas.

Considerações finais

Ultimamente, a TdL estadunidense começou a mudar seu estilo e temática, voltando-se para a
crítica das estruturas econômicas e sociais, do Império e das injustiças. Um dos sinais disso é
a presença de religiosos da libertação no movimento Occupy Wall Street. Dentre os grupos
mais prolíficos está a Teologia Latina/o e a Womanist. A TdL ainda mantém o estilo
acadêmico, embora seja mais radical em suas colocações teóricas. Também realiza estudos
bíblicos com enfoque na libertação.

Há grande expectativa entre teólogos e intelectuais quanto à próxima canonização de dom


Oscar Romero na esteira da elevação do papa João XXIII, bem como a retomada do espírito
do Vaticano II. É apontado um afastamento ante o estilo dos dois papas anteriores, em sua
ênfase à autoridade e culto à personalidade, no alijamento dos leigos, na proteção ao
establishment clerical e na alienação às mulheres.

A TdL no campo católico estadunidense tem como pautas específicas a reação às atitudes dos
bispos, abuso sexual e falta de transparência. Observa-se grande otimismo com o papa
Francisco, a começar pela mudança de tom, de solidariedade, gestos simbólicos (área
principal do catolicismo) em direção à opção pelos pobres, atenuando a auto-referência e ao
encontro dos companheiros do mundo. Espera-se maior colegialidade nas decisões, que seja
suspensa a intervenção sobre a Leadership Conference of Women Religious e que sejam
promovidas mudanças paulatinas com a nomeação de bispos mais progressistas. Essas seriam
medidas de a Igreja Católica enfrentar a atual crise de vocações, as largas saídas de fiéis tanto
para o pentecostalismo como para o secularismo urbano.

Referências

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador: Petrópolis: Vozes, 2004

971
COMBLIN, José. Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007

CONE, James H. The Cross and the Lynching Tree. New York: Orbis Books, 2011

__________. Black Theology and Black Power. New York: Orbis Books, 1969

__________. A Black Theology of Liberation. New York: Orbis Books, 1970

GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. São Paulo: Loyola, 2000

HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. São Paulo: Paulus, 2004

SOBRINO Jon. Fora dos pobres não há salvação. São Paulo: Paulinas, 2008

WALKER, Alice. A cor púrpura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

972
973
GT9 – Fundamentalismos religiosos

Coordenadores

Cléber A. S. Baleeiro Emerson Roberto da Costa


Doutorando em Ciências da Religião pela Doutorando em Ciências da Religião pela
UMESP. Professor no curso de Teologia UMESP. Bolsista CAPES.
(EaD) da UMESP

Resumo

A proposta do GT “Fundamentalismos Religiosos” é reunir pesquisadores/as das mais


diversas áreas interessados/as no tema, especialmente em sua relação com a diversidade
religiosa que caracteriza o momento em que vivemos. Os fundamentalismos religiosos
surgem como uma reação interna à modernidade, caracterizando-se, sobretudo, como
portadores de uma verdade a partir da qual interpretam e resignificam seus textos e
tradições e por eles se legitimam. A partir desse pressuposto esse GT pretende discutir
temas como: a caracterização dos diversos grupos fundamentalistas, a história dos
grupos fundamentalistas, as possíveis relações entre fundamentalismo e violência,
modernidade, estado laico, política e intolerância

974
Fundamentalismo ou fundamentalismos? Uma análise da
problemática conceitual e sociocultural que transcendeu o seu
sentido e razão local
José Honório das Flores Filho1

Introdução

Antes de qualquer outro tempo anterior que se tenha registro, a modernidade, ainda mais a
atual, é extremamente dinâmica e cheia de adaptações, ressignificações, elasticidade,
flexibilidade, liquidez, hibridismos, sincretismos, transitividade, reflexividade etc. Onde os
conceitos pulam do seu sentido original e se adaptam, transformam-se, interagem-se,
fragmentam-se em várias outras concepções e noções de acordo com seu ambiente
sociocultural. Assim pode ocorrer com os termos conceituais, como por exemplo,
“fundamentalismo”.

Como identificar de forma adequada atitudes desarraigadas de um indivíduo e, ou, de um


grupo seja religioso, ideológico ou político? Seria um extremista? Integrista tradicionalista?
Um sequaz radical? Um sectário? Ao longo da história, atitudes separatistas, extremistas e
radicalistas se expressam através de paixões religiosas e políticas. Porém, é só na
modernidade que surge o conceito de fundamentalismo. Mas é possível, ou adequado se
utilizar do termo para identificar ou nomear fatos ocorridos antes da modernidade?

Fundamentalismo e a origem de um conceito: um tempo, um local, um grupo, uma


reação

A primeira forma conceitual de fundamentalismo surgiu nos Estados Unidos da América na


segunda metade do Século XIX por professores protestantes de teologia da Universidade de
Princeton. Tais professores publicaram uma espécie de coleção de 12 livros intitulada de
“fundamentals. A testimony to the truth”(1909-1915). A proposta de tais escritos era a de um
cristianismo rigoroso, dogmático e orientado para ir de encontro a crescente onda de

1
Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB, doutorando em Ciências da Religião pela UMESP, bolsista do
CNPq, pesquisador do REPAL (GP Religião e Periferia na América Latina). Contato:
honoriomagister.floresfilho@yahoo.com.br.

975
modernidade que a sociedade norte-americana passava naquele momento. Não apenas a
modernização tecnológica, mas também contra a modernização dos espíritos da sociedade, do
liberalismo e liberdade de opiniões. O tratado sustentava a tese de que só a bíblia é que
poderia dar ao individuo a seguridade e a verdade da fé cristã. De algo que era a inspiração do
próprio Deus (BOFF, 2002).

O fundamentalismo surgiu em um contexto de perturbações de ordem política, econômica e


científica. Um momento em que a discussão da origem do homem de forma racional estava
em alta devido à teoria darwinista. Em que o iluminismo pregava a elevação da razão humana,
no pensamento racional e através deste construir um mundo com facilidades tecnológicas e
com isso melhor e mais confortável. Também a acontecimentos relevantes como o surgimento
de grandes centros urbanos; a diversidade cultural, ideológica e religiosa trazida pelos
imigrantes; etc. (PIERUCCI, 2006).

O grupo fundamentalista de origem que produziram os escritos do The fundamentals no início


do século XX nos Estados Unidos, não aceitavam as interpretações modernistas e liberais da
bíblia, que fugia ao seu sentido literal como se encontra na letra. Leonardo Boff (2002, p. 14-
15) descreve um pouco das convicções dos fundamentalistas em relação à letra da bíblia:

Para o fundamentalista a criação se realizou mesmo em sete dias. O ser humano foi feito
literalmente de barro. Eva é tirada da costela física de Adão. O preceito “crescei e
multiplicai-vos, e subjugai a terra, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu,
sobre tudo o que vive e se move sobre a terra” (Gêneses I, 29-29) deve ser tomado
estritamente ao pé da letra, pouco importando se essa dominação antropocêntrica venha por
em risco a biosfera. Mais ainda: só Jesus é o caminho, a verdade e a vida, o único e
suficiente salvador. Fora dele há somente perdição.

Ao ler esta passagem de Boff podemos vislumbrar nitidamente, talvez, por conhecimento
através de nossa própria experiência, ao encontrar com um individuo crente protestante que
grita em uma praça pública “Arrependa-se e aceite Jesus. Salve-se da condenação eterna. Só
Jesus salva. Só ele é o caminho, a verdade e a vida e ninguém chega ao pai se não for só
através dele” etc. E nisso o fundamentalista não tolera outra forma de religiosidade que não
seja o cristianismo protestante. E seus fundamentos são convicções profundas na crença de
uma verdade expressa somente através da letra da bíblia. Esta é vista como o verdadeiro livro
sagrado de todas as eras. Assim como Jesus é visto como o único mestre, messias, salvador do
mundo entre todos de todas as eras e tempos da história da humanidade.

976
Não existe Sidarta Gautama, nem Krishina, Maomé ou quaisquer outros anteriores ou
posteriores que possa se comparar a ele, Jesus. Destarte, os fundamentalistas originais criaram
não apenas uma convicção de reação efetiva aos pensamentos modernizantes das ciências e
tecnologias. Mais também uma convicção profunda de orgulho próprio ao usar o termo “sou
fundamentalista”.

Neste interim, com o passar do tempo o significado que foi criado de forma literal no seu
fundamentalismo pulou de um significado preso no tempo histórico e local, para um termo
genérico aplicado a outros campos da sociedade de pessoas e grupos que adotassem
semelhantemente aos fundamentalistas originais, convicções intolerantes e militantes
contrárias e diferentes as suas. Como por exemplo, o campo político. Para Faustino Teixeira
(2002) “Na raiz do fundamentalismo há o sentimento de insegurança, desorientação ou
anomia resultantes de uma dinâmica modernizadora”. Mas o termo se popularizou a tal ponto
que fundamentalista pode ser qualquer individuo religioso ou não, que aja com intolerância e
até com agressividade aos seus contrários ou opositores. E nisso o termo se tornou pejorativo,
desqualificante e ofensivo a quem for dirigido.

Nessa popularização do termo o mass media possui uma importante atuação e propagação do
uso do termo “fundamentalista ou fundamentalismo”. Inúmeras vezes pode-se escutar do
ancora do telejornal, ou até mesmo estampado numa página de algum site de noticias,
Manchetes, por exemplo, do tipo “Nigéria condena grupos fundamentalistas Boko Haram e
Ansaru - O governo da Nigéria condenou os grupos fundamentalistas islâmicos Boko Haram
e Ansaru, ambos atuantes no norte do país, e ditou severas penas de prisão para seus membros
e simpatizantes2”. Neste caso o termo fundamentalismo foi utilizado para nomear grupos de
islâmicos, ou seja, de outra religião.

Contrário ao uso indiscriminado do termo fundamentalismo Antônio Flávio Pierucci escreveu


que “Fundamentalismo se forma numa disputa sobre textos e é, em sua expressão mais pura, o
reconhecimento de que o texto sagrado, tendo sido revelado literalmente por Deus, é a palavra
final, o ‘tira-prosa’ numa controvérsia” (2006, p.7). E argumenta delimitando
fundamentalismo ao religioso. Ou seja, só quem pode ser fundamentalista são indivíduos
religiosos. E não são todos os religiosos. Segundo Pierucci só o religioso que tenha em sua
religião um livro sagrado. Porque os princípios de sua religião estarão bem fundamentados
2
Fonte: Nigéria condena grupos fundamentalistas. Notícias Terra. Disponível em:
http://noticias.terra.com.br/mundo/africa/nigeria-condena-grupos-fundamentalistas-boko-haram-e-
ansaru,7859a693ba11f310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html Acesso em 12 ago. 2013.

977
nos escritos do tal livro para poder haver uma discussão sempre com base no sentido literal
das escrituras. Destarte, religiões afro-brasileiras, como por exemplo, a Umbanda, não poderia
gerar entre seus adeptos um fundamentalista, porque não teriam um fundamento textual
sagrado para o qual se remeter em seus argumentos. Pierucci delimita ainda mais o sentido de
fundamentalismo ao dizer que só as religiões monoteístas podem suscitar fundamentalistas.
Porque não haveria sentido, segundo ele, ser fundamentalista em religiões que possuam vários
deuses e com isso várias verdades.

Então temos a partir destas premissas argumentadas por Pierucci a noção de que só pode
haver fundamentalismo no âmbito religioso, que a religião tenha um livro sagrado e que esta
seja monoteísta. Nessa interação do conceito de fundamentalista os argumentos de Pierucci
vão de encontro a dizeres populares que utilizam o termo geralmente taxativo e ofensivo em
outros campos. Pierucci (2006, p.7) argumenta que:

Dizer então que fulano é um petista fundamentalista, ou que sicrana é uma feminista
fundamentalista, pode ser uma ofensa pessoal, válida no calor de uma discussão, mas ela
esvazia o conceito daquilo que ele realmente pode nos dizer de específico e próprio.
Podemos usar fundamentalismo como sinônimo de fanatismo ou radicalismo, assim como
uma série de outros termos com que descrevemos determinadas atitudes políticas. Acho,
porém, que isso não ajuda na hora de uma discussão mais refinada, sobretudo quando não
queremos perder de vista que aquilo que está realmente em jogo e que realmente pesa é o
apego religioso a um texto tido como sagrado e definitivo. Noutras palavras, não ajuda
muito ficar “laicizando” o conceito de fundamentalismo.

Nessa definição e vertente defendida por Pierucci, ficam de fora até grupos sociais
comumente, algumas vezes, tidos como fundamentalistas, como por exemplo, grupos
políticos, feministas, GLBTTs etc. Dentro dessa mesma lógica de pensamento e argumento se
encontra Verônica Melander (2000) apesar de seus argumentos encontrarem um ponto de
consonância com o de Pierucci no sentido em que se deve limitar o uso do termo ao campo
religioso, que no caso de Melander seu foco é o protestantismo americano que usa como
modelo de definição para o fenômeno apresentado em outras culturas e países em especial na
América Latina.

Melander divide fundamentalismo em duas categorias “fundamentalismo tipo1”, que diz


respeito ao fundamentalismo tradicional norte americano e “fundamentalismo tipo 2”, que
engloba grupos que resistem à modernidade. Melander, além de dividir o fundamentalismo
religioso nestas categorias cria uma tipologia ou nomeia tal fundamentalismo em

978
evangelicalismo político. Nome este devido a sua observação dos protestantes na Guatemala
em que se baseou sua pesquisa. Segundo a autora a decisão de usar evangelicalismo político
ao invés de fundamentalismo seria para diferenciar-se do que ela chama de “confusão” da
acepção do termo tanto do lado acadêmico quanto do lado popular.

Um importante estudo sobre o tema na escola de Chicago é o projeto de estudos do


fundamentalismo dirigido por Martin E. Marty e R. Scott Appleby. Esses estudos, além de
debater sobre o “fundamentalismo religioso moderno” tendo-o como uma reação ou
resistência a modernidade permitem uma maior abordagem do tema e com isso uma maior
abertura de seus entendimentos para além de seu sentido historiográfico e genealógico
estendendo-o para outras religiões o uso do termo fundamentalismo. Segundo Melander
(2000, p. 92) “O projeto também inclui o que é denominado fundamentalist-like movements
(movimentos semelhantes ao “fundamentalismo”) e deixa a definição do “fundamentalismo”
bastante aberta para os autores dos diferentes artigos”.

Zygmund Bauman usa o termo fundamentalismo como uma nova forma de religião que nasce
das contradições internas da vida pós-moderna. Esse entendimento se aplica, genericamente
falando, a todos os movimentos religiosos como frutos de uma pós-modernidade. E ousa ao
afirmar que:

O fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo


conduzida pelo mercado [...] Longe de ser uma explosão de irracionalidade pré-moderna, o
fundamentalismo religioso, muito parecido com os autoproclamados reavivamentos étnicos,
é uma oferta de racionalidade alternativa, feita sob medida para os genuínos problemas que
assediam os membros da sociedade pós-moderna. Como todas as racionalidades, ele
seleciona e divide; e o que seleciona difere da seleção efetuada pelas forças
desregulamentadas do mercado - o que não o torna menos racional (ou mais irracional) do
que a lógica da ação orientada pelo mercado (BAUMAN, 1998, p.228-229).

Bauman na ideia de modernidade, ou melhor, pós-modernidade como ele se refere a esse


período da história, centra seus pensamentos em relação ao fundamentalismo com o
consumismo e as misérias “pós-modernas”, ele enxerga o fundamentalismo como que um
legítimo filho da pós-modernidade nascedouro tanto de riquezas segregacionais quanto de
misérias a larga escala e a longo prazo. Segundo Bauman (2002, p. 227):

Os pobres de hoje são, antes e acima de tudo, consumidores falhos, incapazes de tirar
vantagem dos tesouros tantalizantemente exibidos a seu alcance, frustrados antes do ato,
inabilitados mesmo antes de experimentar; enquanto eles são irrealizados produtores, ou

979
pessoas fraudadas na divisão da mais-valia, mas a um segundo de distância. É essa
característica que os torna, potencialmente, uma clientela de que os movimentos
fundamentalistas [...] podem tirar suas reservas.

Nessa justificativa de Bauman para o advento do fundamentalismo ele justifica não apenas o
seu uso alargado, flexível a outras religiões na modernidade como também, o legitima
afirmando sua “normalidade autêntica” numa sociedade cheia de males. Legitimidades e
opiniões a parte, os usos do termo fundamentalismo segue ainda com suas problemáticas de
significações, ressignificações, delimitações e restrições acadêmicas. Mas se observarmos
bem as próprias restrições ou tentativas de normatizar, o uso do termo deixa brechas por onde
pode passar os “vermes” das ressignificações.

Pierucci (2006, p.6) deixa uma brecha na sua argumentação ao fazer-se uma crítica ao dizer
que:

Houve um momento em que eu mesmo no afã de radicalizar a noção de fundamentalismo


comecei a achar impossível que os católicos pudessem ser fundamentalistas, uma vez que o
católico é menos ligado na bíblia e mais ligado nos ensinamentos do papa, por exemplo.
Aos poucos, porém, estou me convencendo de que é muito forte num certo tipo de católico
a tendência a se apegar de forma fundamentalista com as palavras do sumo pontífice. [...]
Quero dizer com isso que, para mim, o ponto central está nisto: para ser um bom
fundamentalista, é preciso estar apegado à palavra escrita “tal e qual”. (grifo nosso)

Nessas premissas da definição do fundamentalismo pieruccianas, o ponto central de tal


definição seria “estar apegado à palavra escrita ‘tal e qual”. Mas se assim for, os políticos
possuem palavras escritas. São projetos de leis a serem defendidas para aprovação, a
Constituição Federal entre outras. E já se tem notícias de que os umbandistas ou
candomblecistas utilizarem livros de antropólogos renomados e também de livros escritos
pelos mais intelectuais dentre os próprios filhos de santo, com o intuito de se servirem de sua
força argumentativa para suas doutrinas. Nisso, pensemos que definições delimitativas do
termo fundamentalista ou de qualquer outro são plausíveis objetivando um bom entendimento
para o, ou, do qual estejamos falando ou reportando. Mas para entrosamentos acadêmicos e
normativos isso é importante, sem dúvida. A partir disso, entendemos que consequentemente
há outras concepções e entrosamentos do termo fundamentalismo que não o acadêmico, como
na dimensão popular e midiática, por exemplo.

980
O popular e o midiático nos usos e supostos abusos do termo “fundamentalismo

O uso popular do termo fundamentalismo ganha nesta dimensão ou camada de entendimento,


uma elasticidade e flexibilidade do termo, que não são tolerados, como já vimos na dimensão
acadêmica, pelo menos não na extensão de alcance ou adaptações que o uso popular permite.
Na maior parte destes usos, tal termo é utilizado de forma pejorativa, para desqualificar um
grupo ou alguém. Nestes usos populares do termo, ser fundamentalista significa ser radical
indo até ao extremismo e mesmo ao uso da violência. Neste entendimento, as fronteiras de
tais expressões conceituais estão borradas, indistintas. E uma pode muito bem, em certo
sentido, ser utilizada como exemplo similar da outra, ou seja, como sinônimas. Mas, no
popular é perfeitamente possível, porque no popular não há regras, não há normativas. E os
populares não costumam consultar um dicionário para aterem-se ao significado literal
conceitual da coisa. No que diz respeito aos dicionários, alguns também não são consensuais
ao termo fundamentalismo.

Os lexicógrafos, alguns deles definem o termo fundamentalismo com certa parcimônia e se


limitam o seu uso apenas a esfera religiosa. Outros alargam mais o conceito além do campo
religioso. No dicionário Houaiss3 encontramos uma explicação de fundamentalismo restrito,
inicialmente, ao campo religioso “movimento religioso e conservador, nascido entre os
protestantes dos E.U.A. no início do século XX [...]”. Com esse início, que também toca no
seu sentido histórico, que deu origem ao termo acaba por terminar alargando mais o conceito
“qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a
obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos; integrismo”.

A infopédia4, dicionário on-line, também se restringe a explicação do termo fundamentalismo


à esfera religiosa inicialmente. Mas termina, também alargando o termo. Nele encontramos:
“manutenção e defesa dos princípios religiosos tradicionais e ortodoxos, como a infalibilidade
dos textos sagrados, e sua aceitação como verdades fundamentais imprescindíveis para a
formação da consciência; atitude mental caracterizada pela defesa intransigente de princípios
de carácter conservador; integrismo”.

3
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (versão 1.0.5) Instituto Antônio Houaiss. Editora: Objetiva,
Agosto de 2002.
4
Fundamentalismo. Infopédia. Disponível em: http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/fundamentalismo
Acesso em 12 ago. 2013.

981
No Dicionário Michaelis5 deparamos com a definição de fundamentalismo: “Crença na
interpretação literal da bíblia. Crença na forma estritamente ortodoxa de uma religião, não
admitindo ideias reformistas etc.; adesão a quaisquer doutrinas estritamente ortodoxas”. No
dicionário Aurélio6 encontramos: “Observância rigorosa à ortodoxia de doutrinas religiosas
antigas, esp. do islamismo; observância rigorosa às crenças religiosas tradicionais, esp. em
grupos protestantes dos Estados Unidos [...]”. No Dicionário Sacconi achamos o seguinte:
“Movimentos organizados de evangélicos militantes, originários dos Estados Unidos, em
1920, que se opunham ao liberalismo e ao secularismo; fidelidade à teologia desse
movimento; comportamento ou ponto de vista caracterizado por rígida fidelidade aos
princípios básicos ou fundamentais de determinado movimento religioso, político, etc.”.

O dicionário Michaelis se restringe a uma definição estritamente conceitual no campo


religioso deixando de fora o sentido histórico do termo. O Aurélio tem uma explicação
também conceitual, mas toca na sua historicidade, ao relatar o movimento que deu origem ao
termo fundamentalismo nos Estados Unidos. Contudo, coloca em seguida o fundamentalismo
islâmico em destaque e explica seu significado. Nesta mesma linha segue o dicionário
Sacconi, destacando também o fundamentalismo islâmico com uma “boa explicação” textual.

Essa tendência em relacionar o fundamentalismo ao islã destacando-o dentre todos os outros


tipos de fundamentalismos encontrado até em dicionários, talvez seja o efeito daquilo que já
falamos a respeito do destaque exagerado da mídia sobre grupos islâmicos radicais
fundamentalistas, muito em moda a partir dos anos 1980. Talvez, mais precisamente em 1979
com a revolução iraniana no advento da subida ao poder do Aiatolá Khomeini que depôs o xá
Mohammad Reza Pahlavi implantando, na ocasião, um governo islâmico no Irã. Sobre os
determinantes midiáticos que moldam as notícias e o que é, e, o que não é notícia e realidade
noticiada para o grande público leitor e telespectador que escreve em sua tese José Arbex Jr.
(2000, p. 16-67):

[...] paralelo a todo esse desenvolvimento tecnológico, ocorreu uma grande concentração de
poder nas mãos de alguns conglomerados de mídia, que determinam ao leitor o que é ou
não notícia, e se for, como esta será transmitida ao leitor ou telespectador [...]. A mídia cria
diariamente a sua própria narrativa sobre o mundo e a apresenta aos telespectadores - ou
aos leitores de jornais – como se essa narrativa fosse a própria história do mundo. Os fatos,
transformados em notícia, são descritos como eventos autônomos, completos em si

5
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2000.
6
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª.
edição. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1999.

982
mesmos. Os telespectadores, passivamente embalados pelo “estado hipnótico” diante da
tela de TV, acreditam que aquilo que veem é o mundo em estado “natural”, é “o” próprio
mundo.

Neste mesmo sentido que aponta Arbex, os telespectadores e indivíduos possuindo apenas
uma visão unilateral, que foi propagada de certa forma pelos que detém a hegemonia e o
poder midiático, dada situação, tais indivíduos podem aceita-la como realidade incontestável,
desconhecendo as causas históricas e a problemática envolvida numa situação como um todo.
Concebendo no dado momento uma visão corrompida pela parcialidade midiática exacerbada.
Um exemplo adequado disso está no conflito árabe – israelense. Segundo Carlos Dornelles
(2002, p. 240):

Cabe aqui lembrar o tipo de linguagem ideológica utilizado pela imprensa para descrever os
conflitos. Todo ataque de Israel é considerado “retaliação” ou “resposta” ou “reação”. Para
os palestinos, a definição oficial é “atentado”, como se não houvesse o menor motivo para
uma retaliação contra a ocupação ou contra os ataques israelenses.

As ações violentas de árabes são repassadas geralmente na mídia de forma parcial sem
mostrar as problemáticas que o conflito encerra. No livro reportagem “Memórias de Suez” de
José Honório Flores Filho, que relata o cotidiano de ex-integrantes da UNEF – I na faixa de
gaza para intermediar a paz no conflito árabe-israelense, encontramos:

Influências americanas cunham designações negativas e pejorativas hegemônicas e


ideológicas contra seus adversários influenciando e popularizando suas visões. “Terrorista”
e “eixo do mal” são bons exemplos de tais designações. Essa influência hegemônica mitiga
opiniões e incorpora no “chip da consciência ocidental” essas concepções unilaterais. Faz
com que um ex-combatente de Suez, ao se referir aos fedayins, use tais termos
naturalmente, tendo uma visão unilateral dos conflitos e da situação vivida na região do
Oriente Médio. Diz Hugo Lobo se referindo aos fedayins: “Estes eram terroristas [...] eram
bandidos armados” (FLORES FILHO, 2013, p.31-32)

7
Silvia M. Montenegro (2002) no seu artigo “Discurso e contra discursos: olhar da mídia
sobre o islã no Brasil” relata que: “Evidentemente, Islã e fundamentalismo mostram-se
intimamente associados, a ponto de parecer impossível falar de um sem fazer referência ao
outro. As palavras "islâmico", "Islã" e "muçulmano" funcionam como adjetivos para o
fundamentalismo”. Em publicação de 19 de setembro de 20018, logo após os choques dos

7
MONTENEGRO, Silvia M. Discurso e contra discursos: olhar da mídia sobre o islã no Brasil. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132002000100003&script=sci_arttext Acesso em 13 ago. 2013.
8
Veja on-line. Especial. Disponível em: http://veja.abril.com.br/190901/p_048a.html Acesso em 17 set. 2013.

983
aviões contra as torres gêmeas, símbolo do orgulho capitalista dos Estados Unidos, a revista
Veja, mostrou o quanto uma mídia, seja ela impressa, radiofônica ou televisiva pode ser
personificada de forma explícita nos preconceitos unilaterais, opiniões forçada e formatizada
nos preceitos elitista aos moldes dos Estados Unidos:

A oposição à globalização já existia como fenômeno ambientalista, de minorias, das ONGs


e dos sindicatos. Agora deve também levar em conta essa nova complicação: o islã como
fonte de preocupação para a paz mundial. A globalização incomoda a turma de turbante
pela modernidade que traz no bojo. O fundamentalismo islâmico é, em toda medida, a
manifestação de uma elite que exerce sobre seus povos uma tirania milenar, baseada na
religião e nos costumes imutáveis. Se é contra a civilização ocidental, é porque não pode
conviver com seus princípios básicos, notadamente a liberdade política e individual. O
universo dos fundamentalistas é aquele em que se queimam livros, se proíbem filmes e
música. As mulheres são cobertas de véu e devem submissão ao poder masculino.

Claro que posteriormente esse artigo da revista rendeu muitas críticas de desaprovação e até
em tons de denúncia contra a posição explícita da revista em querer forçar a opinião pública.
Muitos trabalhos acadêmicos também foram escritos. Citando apenas alguns como exemplos,
temos ‘Onze de setembro de 2001 e a representação do islã na revista veja’ de Carolina Vera
Cruz Mazzaro (TCC - UniCEUB -Universidade de Brasília); ‘Orientalismo revisado- a
cobertura da Veja ao islamismo e ao mundo árabe no pós- 11 de setembro’ de Felipe Vagner
Silva de Farias (Dissertação de mestrado - Universidade Federal Fluminense); ‘o mundo
islâmico no discurso da Veja: diversidade e uniformidade9’de Wellington dos Santos
Figueiredo (artigo da revista Intellector); ‘Veja e a cobertura do “11 de setembro”: a
legitimação da guerra imperialista10’ de Carla Luciana Silva (artigo da revista Projeto
História- PUC-SP); ‘O que incomoda na revista Veja’ (artigo do observatório de imprensa);
além de várias outras citações incluídas em vários trabalhos acadêmicos, como este que agora
apresento ao leitor.

Modernidade ou alta modernidade: um campo de convergências/divergências


conceituais, culturais, religiosas e fundamentalistas

9
Disponível em: http://www.revistaintellector.cenegri.org.br/ed2008-08/wellingtonfigueiredo.pdf Acesso em 13
ago. 2013.
10
Disponível em: file:///H:/Artigos%202013/Fundamentalismo/Observatorio%20da%20Imprensa%20-
%20Materias%20-%2019%209%202001.htm Acesso em 13 ago. 2013.

984
A reorganização de tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade da
modernidade supõem propriedades universalizantes que explicam a natureza fulgurante e
expansionista da vida social moderna em seus encontros com práticas tradicionalmente
estabelecidas (GUIDDENS, 2002, p. 27)

Antony Guiddens escreve sobre mecanismos de desencaixe como sendo aquilo que separa a
intenção das particularidades do lugar. Ou, os deslocamentos das relações da sociedade dos
contextos locais e sua combinação através de distancias indeterminadas do espaço/tempo.
Nessa perspectiva aquilo que antes era um fenômeno local como o fundamentalismo, por
exemplo, se desloca do seu sentido literal contextual histórico se distancia, e é reconfigurado
em outros campos de entendimento e até mudado seu significado sempre em tendências
expansionistas, globalizantes.

Guiddens (2002, p.27) se referindo as tendências globalizantes, convergentes e divergentes


nas relações entre local, distancia e global da modernidade diz que “a globalização tem que
ser entendida como um fenômeno dialético, em que eventos em um polo de uma relação
muitas vezes produzem resultados divergentes ou mesmo contrários em outro”. E que com
isso nessas convergências de campos sociais migrações conceituais podem ocorrer sem que
com isso perca a sua originalidade, mas de certa forma evolui para significados distintos. No
campo religioso temos muitos exemplos desses ocorridos.

O cristianismo e suas vertentes católica e protestante, o islamismo e as principais divisões


sunitas e xiitas, o judaísmo e suas correntes ortodoxas, reformistas e conservadoras e até o
budismo, diga-se de passagem, que são as grandes religiões do mundo tem-se surgido ainda
com mais intensidade no seio destas tradições religiosas tensões, ativismos, extremismos.
Atitudes radicais violentas nascem como reações adversas no seio de uma modernidade
plural, tecnológica e ao mesmo tempo reacionária, formadoras de “tribalismos modernos”,
segregacionistas e intolerantes.

A imagem que me vem à mente quando falam em monge budista é a de um asceta sentado no
chão com as pernas cruzadas, ao estilo lótus (com as palmas dos pés para cima), meditando de
olhos fechados e totalmente, ou pelo menos aparentando, paz e serenidade. Mas de repente,
estampada na tela do computador surge à notícia de que grupos budistas se juntam para
agredir, destruir, atear fogo e até matar pessoas. Estas foram às manchetes que estamparam as
agências e redes de noticias no mundo: “Fundamentalistas Budistas Desatan Genocidio de

985
Musulmanes en Birmania ”; “Grupos radicais budistas atacam muçulmanos no Sri Lanka ”;
“Birmânia declara lei marcial para controlar violência entre budistas e muçulmanos ”. Monges
budistas que geralmente são pacifistas e altamente reservados se tornam reacionários e
violentos. Esse seria um Fundamentalismo do tipo 1 ou 2 segundo Melander (2000)? Ou os
dois ao mesmo tempo? Seria um entrechoque de realidades no palco de uma modernidade
sedenta por inovações, mas ao mesmo tempo carente e nostálgica pela volta ao idílico mundo
divino, nunca concretizado, mas sempre buscado? Uma compensação de compensadores
artificiais, pela impossibilidade de realizar ou se alcançar uma recompensa (STARK;
BAINBRIGDE, 2008)?

A modernidade neste viés de forças que convergem, mas ao mesmo tempo divergem-se numa
complexidade de envolvimento entre a razão e o sujeito, a racionalização e a subjetivação do
divino que Alain Touraine (2009, p.46-47) escreve:

Muitos pensaram que a ruptura do mundo sagrado e mágico devia deixar o lugar livre a um
mundo moderno governado pela razão e pelo interesse, que seria acima de tudo um único
mundo sem sombras e sem mistérios, o mundo da ciência e da ação instrumental. Este
modernismo [...] pareceu triunfar por muito tempo e é somente na segunda metade do
século XIX, com Nietzsche e Freud, que ele será criticado e entrará em decomposição. [...]
a modernidade não substituiu um universo dividido entre o humano e o divino por um
mundo racionalizado; de maneira diretamente inversa, ela quebrou o mundo encantado da
magia dos sacramentos substituindo-o por duas forças cujos relacionamentos tempestuosos
desenham a história dramática da modernidade: a razão e o sujeito, a racionalização e a
subjetivação.

Nesta obliquidade de convergências e divergências proporcionado pelo cotidiano moderno,


Touraine diz que foi quebrada apenas a magia dos sacramentos, mas que continua os valores
dicotômicos dessas duas forças a da razão e a do sujeito, e as tensões proporcionadas dessas
relações.

Idealizado e violentamente imposto o fundamentalismo faz ressurgir uma idade média no


cerne da ultramodernidade onde o campo religioso se choca causando abalos sísmicos em
vários graus de importâncias de danos sociais. Um estranhamento entre o antigo e o novo,
entre os fundamentos registrados em livros ou na própria memória coletiva da etnia ou
civilização que pode perdurar através das heranças culturais.

986
Conclusão

O fundamentalismo surgiu de um fenômeno local histórico e pulou do seu sentido literal,


ideológico e delimitado ao ambiente protestante dos Estados Unidos no fim do século XIX ao
começo do século XX, cristaliza-se em uma ideia que corresponde (mas não é, muito menos
substitui), ao sectarismo, integrismo, extremismo, radicalismo e toda uma gama de violências
e resistências numa tentativa de manter os ideais fundantes de qualquer religião.

Contudo, existem dimensões de entendimentos conceituais e explicativas a observar o


fenômeno do fundamentalismo. Primeira à dimensão histórica primitiva do termo nascido no
protestantismo dos Estados Unidos que podemos identificar como ideológica de ideias
fundantes. A segunda dimensão seria a midiática taxativa por natureza. Nesse entendimento o
fundamentalismo é pejorativo, desqualificante e muitas vezes foi estreitamente relacionado a
uma religião, que por muito difundida no fim de 1979 com a revolução iraniana e início da era
dos Aiatolás com o governo islâmico de Khomeini. E depois, especialmente no advento de 11
de setembro de 2001, em que as torres gêmeas são destruídas por aviões guiados por suicidas
islâmicos. Essas ocorrências históricas foram tratados pela imprensa como atitudes
fundamentalistas. E com isso o islã passou, e até o momento esse estigma ainda se encontra
presente no imaginário popular. E a terceira dimensão seria esta mesma, a popular. Tal
dimensão seria gerada diretamente pela mídia e jogada no imaginário popular. Mas que por
sua vez, cria novas significações para o termo fundamentalismo e até se confundem com
outros conceitos como extremismo, por exemplo.

E por ultimo a dimensão acadêmica que se sustenta na origem do termo fundamentalismo ao


seu contexto histórico original admitindo flexões e apropriações utilizadas para designar
outros movimentos religiosos com características idênticas aos fundamentalistas protestantes
dos Estados Unidos na segunda metade do século XIX e início do XX. Destarte, o conceito de
fundamentalismo é bastante complexo e seu uso até na academia não se tem um consenso,
encontrando divergências de algumas correntes e escolas de pensamento.

987
Referências

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988
989
Fundamentalismo protestante e pentecostalismo: distanciamento e
proximidade
Osiel Lourenço de Carvalho1

Introdução

O fundamentalismo protestante foi um movimento que ganhou forma, principalmente entre as


igrejas presbiterianas e batistas do sul dos Estados Unidos, a partir do século XIX. Os
principais antecedentes históricos do fundamentalismo foram a teologia ortodoxa de Turretin,
a qual fora difundida no Seminário de Princeton; as doutrinas pré-milenaristas; e as
discussões doutrinárias com os teólogos liberais. O fundamentalismo defendia a inspiração e
inerrância das Escrituras, de modo que ela deveria ser interpretada de maneira literal. Além
disso, os fundamentalistas se consideravam os guardiões dos valores e dos bons costumes da
sociedade e, como tal deveriam fazer oposição aos avanços na modernidade que colocassem
em risco esses valores.

No inicio do século XX surgiu o pentecostalismo nos Estados Unidos e, ao contrário dos


fundamentalistas enfatizaram mais a experiência extática do que a dogmática. Proponho a
seguir, uma reflexão a respeito desse período, ao passo que destacarei as diferenças e as
semelhanças entre fundamentalistas e pentecostais nos Estados Unidos no início do século
XX.

Precursores do Fundamentalismo

Depois da primeira geração de reformadores surgiu uma teologia caracterizada pela chamada
ortodoxia, na qual a inspiração verbal das Escrituras bem como sua infabilidade e inerrância
eram centrais. Um dos representantes dessa teologia protestante ortodoxa foi o teólogo ítalo-
suíço Francis Turretin (1623-1687), o qual escreveu uma obra em três volumes chamada
Instituitiones thelogiae elenchiticae. Nela, Turretin faz um tratado sistemático das doutrinas
cristãs e, pois acreditava na inspiração verbal de toda Escritura, pois segundo ele as palavras
da Bíblia foram transcritas diretamente pela direção do Espírito Santo. Portanto, as Escrituras

1
Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Bolsista CAPES e membro do GP Teologia no Plural.
Contato: osiel_carvalho@yahoo.com.br.

990
seriam uma produção predominantemente divina e não humana, pois seus escritores foram
diretamente usados por Deus para escreverem cada palavra do texto bíblico; com efeito, para
entendermos o fundamentalismo, precisamos conhecer Turretin e sua obra.

Para Turretin mesmo até os pontos vocálicos do texto hebraico do Antigo Testamento eram
divinamente inspirados e, consequentemente infalíveis. No entanto, nessa época de Turretin
já se sabia que os pontos vocálicos do Antigo Testamento foram acrescentados posteriormente
pelos massoretas no século VI d. C. Turretin argumentou e disse que o texto massorético era
inerrante e não precisava ser corrigido por manuscritos hebraicos mais antigos. Portanto, de
acordo com Turretin o texto bíblico que ele tinha em mãos era plenamente inspirado por
Deus.

Os estudos de Turretin lançaram as bases para a formação teológica no Seminário de


Princeton, no qual a maioria dos ministros presbiterianos dos Estados Unidos estudou no
século XIX; esse seminário se tornaria posteriormente um dos principais centros do
fundamentalismo americano. A teologia sistemática de Turretin era leitura obrigatória para
alunos e professores, pois era considerada a teologia correta e a única verdadeira da doutrina
protestante. Como um manual essa teologia sistemática era estudada durante todo o curso
teológico em Princeton. Segundo Olson (2001, p. 572):

Uma dinastia de erudição teológica conhecida como “escola de Princeton” cresceu a partir
dos ensinos de Turretin. Ela era exemplificada por Archibald Alexander, pela equipe de
teólogos presbiterianos conservadores formada por pai e filho, Charles Hodge e Archibald
Alexander Hodge, e por seu sucessor Benjamim Breckinridge Warfield. Durante o reinado
teológico em Princeton de 1812 a 1921, a dinastia Alexander-Hodge-Warfield de teologia
de Princeton traduziu o escolasticismo e a ortodoxia protestante do tipo Turretin para o
contexto norte-americano do século XIX e criou os alicerces teológicos e doutrinários que
deram origem ao fundamentalismo no século seguinte.

O mais destacado dos teólogos em Princeton foi Charles Hodge; nascido em 1797, numa
família presbiteriana conservadora, foi também aluno em Princeton onde seu principal objeto
de estudo era a teologia sistemática de Turretin. Recém formado, foi estudar em outras
universidades europeias e assistiu palestras de Shleiermacher e Hegel. Todavia, já nessa época
não se simpatizava com a teologia liberal, pois segundo ele essa forma de fazer teologia
descaracterizava o cristianismo. Hodge procurou um fundamento filosófico para sua teologia
e teve acesso ao realismo de Thomas Reid (1710-1796).

991
Com base na filosofia de Thomas Reid, Hodge afirmava que a ciência racional era uma das
bases da teologia protestante. Na sua obra Teologia Sistemática ele organizou os dados da
revelação divina, pois segundo ele as Escrituras eram inerrantes e infalíveis, sendo assim, não
havia incoerências na Bíblia; tudo estaria de acordo com a racionalidade. Hodge também
defendia que a inspiração das Escrituras não se deu apenas no campo das ideias, mas as
palavras do texto bíblico também foram inspiradas pelo Espirito Santo. Com efeito, as
Escrituras conteriam a verdade. Esses conceitos de Hodge fizeram dele o precursor do
fundamentalismo do século XX. Ele considerava a teologia liberal de Schleiermacher apenas
uma intuição mística pelo fato de ser subjetiva e não valorizar o conteúdo doutrinário do
cristianismo.

Benjamin Breckinridge Warfield foi o sucessor de Hodge no Seminário de Princeton, de


quem foi aluno. Assim como seu professor, Warfield também enfatizou a inspiração e
infabilidade das Escrituras. Durante o período em que foi professor em Princeton, Warfield
fez oposição à chamada alta critica2. Em uma série de artigos escritos ele sustentava sua
posição de que o texto bíblico, em sua integralidade não continha erros e era plenamente
inspirado por Deus. Sendo assim, os teólogos de Princeton criaram os alicerces do
fundamentalismo, pois identificavam o cristianismo com a doutrina correta; enfatizaram a
revelação como uma verdade objetiva e transmitida através das Escrituras e rejeitaram os
pressupostos da teologia liberal e da alta crítica.

Havia também entre os protestantes norte-americanos a concepção de que o mundo estaria a


caminho do fim, de modo que haveria um confronto final entre Deus e o diabo, ao passo que a
sociedade corrompida chegaria ao fim. Essa crença ficou conhecida nos Estados Unidos, no
final do século XIX, como pré-milenarismo que é marcado pela expectativa de uma
“intervenção sobrenatural divina, uma crença na irrupção do sobrenatural na história”
(MENDONÇA, 1984, p. 63,64).

2
É o estudo e a investigação das escrituras bíblicas que procura discernir e discriminar julgamentos sobre essas
escrituras. Ela pergunta quando e onde um particular se originou. Como, por quais razões, por quem, para quem,
e em que circunstâncias ele foi produzido; que influências se expressam em sua produção; que fontes foram
usadas em sua composição e a mensagem que o texto deveria passar. Ela também se interessa pela natureza do
texto, incluindo o significado das palavras e a forma como são usadas, sua preservação, história e integridade. A
crítica bíblica se vale de uma ampla gama de disciplinas acadêmicas, incluindo a arqueologia, antropologia,
linguística, etc.

992
Acreditava-se que Jesus voltaria ao mundo antes de inaugurar o milênio3; esse evento ficou
conhecido como o Arrebatamento da igreja. Em contrapartida, os teólogos liberais eram
alinhados com a concepção pós-milenarista do Iluminismo, de que o mundo iria melhorar
mediante a atuação dos homens para o estabelecimento do Reino de Deus. Esse Reino, para os
liberais esta dentro da história e não no além-mundo, como pensavam os pré-milenaristas.
Temos aqui, duas visões opostas da história, pois para os fundamentalistas o mundo iria piorar
cada vez mais, ao contrário dos liberais que acreditavam na melhoria social mediante o
esforço humano.

O responsável por difundir o pré-milenarismo nos Estados Unidos foi o inglês Nelson Darby
(1800-1882), que teve suas doutrinas rejeitadas em seu próprio país. Entre 1859 e 1877 Darby
realizou uma série de viagens aos Estados Unidos a fim de pregar os ensinos pré-milenaristas.
Para ele o mundo caminhava para a ruína e, em breve Deus derrotaria o diabo e colocaria um
fim na história, tendo e vista que a maldade humana, desastres naturais seriam um sinal do
fim do mundo. Mas antes do fim, Jesus voltaria ao mundo para levar os cristãos convertidos
para os céus, tendo em vista que o sofrimento no mundo seria apenas para os ímpios. O
destino dos cristãos era o Reino e a vida eterna com Deus, ao contrário dos demais homens e
mulheres cujo destino final era o sofrimento e a condenação eterna. Segundo Armstrong
(2009, p. 195):

Os pré-milenaristas imaginavam o arrebatamento em detalhes concretos e prosaicos. Estão


convencidos de que aviões, carros e trens se espatifarão de repente e pilotos, motoristas e
maquinistas renascerão e serão carregados pelos ares. Bolsas de valores e governos cairão.
Os que ficarem compreenderão que estão condenados e que os verdadeiros crentes sempre
estiveram certos. Esses infelizes não só terão de suportar a Tribulação, como saberão que
estão destinados à danação eterna. O pré-milenarismo é uma fantasia de revanche, com os
eleitos assistindo os sofrimentos dos que zombaram de suas crenças, ignoraram,
ridicularizaram e marginalizaram sua fé e agora, tarde demais, reconhecem o próprio erro.

Darby lia e interpretava o livro de apocalipse de maneira literal e não simbólica. Para ele, o
capítulo vinte de Apocalipse, que fala a respeito do milênio, deve ser entendido como um

3
No cristianismo, deve-se chamar de milenarismo a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus
eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio
foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos mortos - e de uma
segunda- a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o
tempo da história e a descida da “Jerusalém Celeste”. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro
verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este triunfarão das forças do mal e
estabelecerão o reino de paz e felicidade. O segundo, mas breve, verá uma nova liberação das forças demoníacas,
que serão vencidas num último combate ( DELUMEAU, 1997, p. 19 ).

993
evento literal. Após estudar a Bíblia, ele concluiu que Deus dividira a história da salvação em
sete dispensações: inocência, consciência, governo humano, abraâmica, lei, graça e milênica.

Além da teologia conservadora de Princeton e as doutrinas pré-milenaristas, a teologia liberal


também contribuiu para o surgimento do fundamentalismo no final do século XIX. Para os
teólogos liberais era preciso harmonizar o cristianismo com a modernidade, caso contrário à
fé cristã se tornaria uma religião irrelevante e sem sentido aos tempos modernos. Com efeito,
a teologia precisaria passar por uma reconstrução a fim de eliminar determinas crenças.

A grande maioria desses teólogos acreditava que o pensamento moderno era necessário à
interpretação das Escrituras; de maneira geral eles também desprezavam o sobrenatural e,
reinterpretaram dogmas clássicos do cristianismo como a divindade de Jesus e a Trindade.
Embora os teólogos liberais não concordassem em tudo, todos eram unanimes na ideia de que
era preciso construir uma nova teologia cristã compatível com a modernidade, a filosofia, a
ciência e a erudição bíblica. Os principais ensinos dos liberais eram:

A aceitação das teorias das ciências da natureza como a teoria da evolução de Charles
Darwin.
O uso da alta e baixa crítica na interpretação da Bíblia.
O reconhecimento da influência de povos vizinhos de Israel na constituição da religião
judaica.
A ênfase em Deus como amor, em lugar de sua figura de juiz da humanidade.
A presença, em cada pessoa, de uma centelha divina, proporcionando uma visão
otimista quanto à sua identidade e futuro.
A teoria da revelação progressiva, com a influência dos fatores naturais, econômicos e
políticos.
Jesus mais que um salvador da humanidade, é exemplo de plenitude das
potencialidades humanas.
A Bíblia é um testemunho da experiência religiosa de Israel e da igreja em seus
primeiros anos.
As doutrinas e dogmas das igrejas devem ser substituídos pela experiência religiosa de
cada indivíduo.

Essas doutrinas dos teólogos liberais gerou espanto entre as igrejas conservadoras em todos os
Estados Unidos, o que gerou uma onda de reações por parte dos fundamentalistas. Para esses

994
protestantes conservadores a teologia liberal estaria pondo em risco não apenas a
sobrevivência do cristianismo, mas também a da própria civilização humana.

A reação fundamentalista

Como resposta, os presbiterianos de Princeton, publicaram em 1910 uma lista com os dogmas
centrais da religião cristã:

A infalibilidade das Escrituras – é a base do projeto fundamentalista. Como texto


sagrado, a Bíblia é inspirada, inerrante e infalível. Tendo em vista que até mesmo as palavras
tem inspiração divina, as Escrituras devem se interpretadas de maneira literal. Com essa
defesa da Bíblia, os fundamentalistas fizeram uma reação à modernidade que contrariava os
preceitos bíblicos. Além disso, era mais uma vez os fundamentalistas dando uma resposta aos
teólogos liberais e os adeptos da alta crítica. Alguns outros fundamentalistas não chegavam a
dizer que todas as palavras da Bíblia eram inerrantes, mas sim suas doutrinas.

A divindade de Cristo – Se os liberais faziam questão de destacar a humanidade de


Jesus, como alguém que deixou um exemplo a ser seguido, os fundamentalistas reafirmaram o
dogma de que Jesus é Deus e, como tal deveria ser cultuado.

O nascimento virginal de Cristo – Tal como narra os Evangelhos Jesus foi gerado pela
virgem Maria, de modo que esse relato não é mítico como afirmavam os teólogos liberais.

A remissão dos pecados da humanidade pela crucificação de Jesus – A morte de Jesus


foi necessária, pois através desse sacrifício Deus expiou os pecados da humanidade. Para
teólogos liberais a morte de Jesus foi apenas o resultado de um homem que desafiou o sistema
de sua época em favor de seu ideal moral.

A ressurreição de Jesus como um fato histórico – Jesus teria de fato ressuscitado,


como dizem os evangelhos, de modo que isso não era uma reconstrução histórica das
comunidades cristãs primitivas posteriores.

995
Textos do fundamentalismo

Um dos pilares do movimento fundamentalista foi a leitura pré-milenarista e dispensacionista


da Bíblia. Isso ganhou ainda mais força depois da publicação, em 1909, de A Bíblia de
Referência Scofield; ela foi reeditada em 1917 e revisada em 1967, ao passo que no Brasil ela
é popularmente conhecida como Bíblia de Scofield. Essa Bíblia trazia o texto bíblico e
também uma série de anotações que expressavam uma visão de mundo apocalíptica. Essas
notas ganharam quase a mesma autoridade do texto bíblico pelos fundamentalistas.

O autor dessas notas foi o pastor Cyrus I. Scofield, nascido em 19 de agosto de 1843, em
Michigan, mas foi criado no Tennessee. Scofield foi muito amigo do evangelista Moody, de
modo que realizaram uma série de conferências evangelísticas juntos. Além disso, a pedido do
próprio Moody, Scofield se tornou pastor da Igreja Congregacional Moody em 1895. Scofield
começou o projeto da edição da Bíblia em 1907, de modo que o texto final foi publicado pela
Oxford University Press em 1909.

A Bíblia de Scofield enfatiza aquelas doutrinas que os fundamentalistas consideravam básicas


da fé cristã: infabilidade das Escrituras; a divindade, morte e ressurreição de Jesus; e o Juízo
final. Além disso, ela tem informações introdutórias a cada livro da Bíblia e, dados históricos
e arqueológicos. As anotações foram feitas a partir dos seguintes pressupostos: existe uma
unidade intrínseca nas Escrituras; a Bíblia revela a história da redenção da humanidade de
maneira gradual e progressiva; e a inspiração é o elemento que confere harmonia às
Escrituras. Sendo assim, Scofield colocou em suas anotações a doutrina das sete dispensações
de Darby: inocência, consciência, governo humano, abraâmica, lei, graça e milênio.

Outro texto que foi um dos pilares do movimento fundamentalista foi The Fundamentals os
quais “exploraram uma fonte de apreensão protestante conservadora e ajudaram a galvanizar a
resposta conservadora à teologia liberal e ao evangelho social, que estavam conquistando
popularidade e influência” (OLSON, 2001, p. 576). Dois magnatas do ramo petrolífero
Lyman e Milton Stewart, criaram em 1908 o Bible College de Los Angeles, a fim de fazer um
contraponto à alta critica. Entre 1910 e 1915 eles financiaram a publicação de The
Fundamentals, uma série de doze panfletos, os quais apresentavam as doutrinas fundamentais
da fé cristã; foram impressos três milhões de exemplares de cada panfleto, os quais foram
distribuídos gratuitamente para pastores, professores e estudantes de teologia.

996
Apesar de ter despertado pouco interesse na época, esses panfletos foram considerados
posteriormente um dos marcos do fundamentalismo nos Estados Unidos. Diversos temas são
abordados em The Fundamentals: A autoria mosaica do Pentateuco; O valor doutrinário dos
primeiros capítulos do Gênesis; As Sagradas Escrituras e as negações modernas; O recente
testemunho da Arqueologia em favor das Escrituras; A concepção bíblica de pecado; A
personalidade e divindade do Espírito Santo; A decadência do Darwinismo; a Filosofia
moderna; A igreja e o socialismo; A Teoria da Evolução no púlpito.

Portanto, com a publicação desses textos, os fundamentalistas estavam reafirmando as


doutrinas que consideravam os pilares do cristianismo e também foi uma resposta ao avanço
da teologia liberal e dos avanços da ciência moderna. Com efeito, a Bíblia de Referência
Scofield e The Fundamentals foram os textos primordiais no movimento fundamentalista
americano.

Quando eclodiu a Guerra Mundial, as igrejas conservadoras associaram o evento às profecias


pré-milenaritas; a morte de milhões de pessoas no conflito era um prelúdio do tempo do fim.
Tudo o que estava ocorrendo já estaria prescrito no livro do Apocalipse. Entre 1914 e 1918
foram realizadas três conferências relacionadas com profecia e Bíblia, de modo que se
procurava provar, através das anotações de Scofield e da Bíblia, que o fim de fato se
aproximava. Em 1917 o governo Britânico promulgou a Declaração Balfour, em que apoiava
a criação do Estado de Israel na Palestina; tal fato também foi interpretado pelos
fundamentalistas como predito nas Escrituras, pois de acordo com as anotações de Scofield
nos tempos do fim os judeus retornariam para Israel.

As anotações de Scofield relacionavam a Rússia com a profecia Bíblica do “poder que vem do
Norte”, de modo que quando houve a Revolução Bolchevique em 1917, onde se estabeleceu o
comunismo como doutrina estatal, os fundamentalistas também associaram com os
comentários de Scofield; e “a criação da Liga das Nações obviamente representava o
cumprimento da profecia de Apocalipse 16.14: era o Império Romano revivido que em breve
seria governado pelo Anticristo” (ARMSTRONG, 2009, p. 238).

Essa aversão a organismos internacionais como a Liga das Nações se devia ao fato de os
fundamentalistas acreditarem que no fim dos tempos haveria guerra e não paz, portanto a Liga
era no fundo a morada do Anticristo. Na visão pré-milenarista o Anticristo teria um projeto de
paz mundial. Essa atitude dos fundamentalistas de aversão às propostas de paz chocou os

997
liberais, que tinham uma visão completamente oposta. Para os teólogos liberais a destruição
mediante a guerra era totalmente contrária ao projeto do Reino de Deus. Para eles a atitude
dos fundamentalistas era anticristianismo.

Fundamentalismo e Pentecostalismo

O fundamentalismo dizia que a fé cristã era racional, de modo que não contrariava a lógica.
No inicio do século XX ocorreu o surgimento do pentecostalismo nos Estados Unidos; os
pentecostais não estavam preocupados com dogmas, doutrinas racionais, pois para eles é o
Espirito Santo quem revela as verdades da vida religiosa. Sendo assim, os fundamentalistas e
pentecostais possuíam muitas divergências.

O Pentecostalismo americano tem suas origens no movimento de santificação no século XIX,


nos Estados Unidos. Essa manifestação de santidade se solidifica e ganha legitimidade como
movimento religioso, em 1901, em Topekas com Charles Fox Pahram (1873-1929), que
formulou a teologia do pentecostalismo clássico, e também ficou conhecido como o fundador
do Movimento Pentecostal.

Pahram uniu as doutrinas que no futuro serviriam de estrutura teológica explicável dentro do
movimento, tais como: estilo evangélico de conversão, santificação, cura divina, pré-
milenismo e o retorno escatológico do poder do Espírito Santo. Também ensinava aos seus
alunos, no que se diz respeito à santidade, a cura divina, etc., sempre usando o Livro dos Atos
dos Apóstolos (2.38): “E Pedro lhes respondeu: Convertei-vos: receba cada um de vós o
batismo no nome de Jesus Cristo para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito
Santo”, assim, convidava-os para passar por experiências e reflexão sobre essa questão. As
preces foram ouvidas e seus colegas relataram que Agnes Ozman começou a falar na língua
chinesa. Não muito tempo depois o próprio Parham começou também a falar em línguas
desconhecidas.

Dentre muitos seguidores das práticas carismáticas de Pahram, se destacou o seu aluno
William J. Seymour, pastor negro expulso da Igreja dos Nazarenos que, em 1906, na cidade
de Los Angeles, levou a nova mensagem a um número crescente de convertidos pentecostais.
Em um desses encontros, no dia 06 de abril de 1906, um menino de oito anos, entre outras
pessoas, começou a orar em línguas fazendo com que Seymour reafirmasse a sua crença. Esse

998
espaço ficou famoso e reconhecido como base de formação e divulgação mundial do moderno
movimento pentecostal, seu endereço era: Azuza Street, 312.

Essa experiência de salvação vinha do sentimento imediato de santificação por meio de


práticas de base extremamente emocional, incluindo as leituras bíblicas que eram feitas de
forma marcante, na tentativa de tocar emocionalmente os seguidores. Pessoas de todo mundo,
curiosas com esse movimento, vinham conhecer de perto os acontecimentos no templo de
Seymour; e de lá saíam missionários para o restante do mundo.

Seymour, com base nas doutrinas ensinadas por John Wesley e no movimento de santificação
ou holiness, seguia a sua experiência baseada nos dons do Espírito Santo. Falava em línguas
estranhas, acreditava no Batismo no Espírito Santo, na atualidade dos dons espirituais, tais
como cura, profecias, operação de milagres e também que o batismo pentecostal revestia o
crente como o poder do alto, capacitando-o para exercer seu ministério no mundo.
Rapidamente, grupos semelhantes foram formados em muitos lugares dos EUA, mas com o
rápido crescimento do movimento, o nível de organização também cresceu, até que o grupo
passou a se denominar Missão da Fé Apostólica da Rua Azusa. Esse pentecostalismo também
foi um movimento de inclusão, pois muitos de seus membros viam de grupos
tradicionalmente marginalizados como negros, mulheres e imigrantes latinos.

Desde seu inicio a ênfase do pentecostalismo não estava na dogmática, mas no êxtase, na
experiência, de modo que a compreensão da verdade divina viria não da leitura meticulosa do
texto bíblico, mas sim de um testemunho interno do Espírito Santo. Com efeito, para os
pentecostais a razão é insuficiente para conhecer a Deus. Tal visão era diametralmente oposta
à dos fundamentalistas, os quais diziam ser a fé cristã plenamente racional e explicável. Se os
conservadores desenvolveram uma fé cerebral baseado em dogmas, os pentecostais
mergulhavam numa religiosidade mística e sensorial.

Como já observamos outras vezes os fundamentalistas promoviam uma leitura literal do texto
bíblico, por acreditarem que as palavras também eram inspiradas; não que os pentecostais
menosprezassem a Bíblia, pelo contrário as experiências do Batismo com o Espírito Santo
eram fundamentadas, segundo eles, nos textos bíblicos. Entretanto para eles a compreensão do
texto das Escrituras não aconteceria mediante o uso das ciências exegéticas e históricas, mas
mediante um testemunho interno do Espírito Santo. Ortodoxia, tradição protestante,

999
dogmática não eram os elementos norteadores da espiritualidade pentecostal, mas sim o
êxtase e transcendência.

A grande adesão ao movimento pentecostal pode ter sido o desencanto com a racionalidade
científica da modernidade e, era um espaço onde se nutria um sentimento de pertencimento.
Ao contrário da sociedade secularista, que os excluía e os marginalizava. O falar em línguas
poderia ser interpretado também como um contraponto à linguagem racional e complexa de
explicação do mundo. Além disso, era uma forma de expressar que a linguagem humana seria
incapaz de traduzir o inefável; a experiência com Deus não caberia dentro dos conceitos
racionais. Portanto, para os pentecostais de Azusa a divindade não pode estar aprisionada nos
dogmas, nos sistemas humanos.

Por causa dessa ênfase dos pentecostais na experiência, foram logo no início, odiados pelos
protestantes fundamentalistas. Warfield dizia que os milagres já não existiam mais e, que eles
contrariavam as leis da natureza; ou seja, não podiam ser racionalmente explicados. Para os
fundamentalistas, os pentecostais estariam negando a razão, a qual estava a serviço da
comprovação da fé cristã. Sendo assim, os pentecostais foram acusados de fanáticos e
supersticiosos e, alguns fundamentalistas chegaram a dizer que o movimento pentecostal era o
último vômito de Satã; a reação do fundamentalismo ao pentecostalismo foi violenta. Todavia
os pentecostais abraçaram a doutrina pré-milenarista e anos mais tarde também os discursos
conservadores do fundamentalismo. No que diz respeito ao arrebatamento da igreja, o teólogo
pentecostal Horton ( 1995, p. 632) diz que:

Então, os crentes que ainda estiverem vivos serão transformados e arrebatados nos ares
juntamente com aqueles, num só corpo. A única exigência tanto para os mortos e,
obviamente para os crentes que estiverem vivos, é que estejam em Cristo, ou seja: num
relacionamento de fé e de fidelidade n’Ele. Paulo deixa claro que todos os mortos em Cristo
e todos os crentes que permanecerem são levados juntos num só corpo no arrebatamento.

Ao que tudo indica uma das razões pelas quais o pentecostalismo adotou as ideias do pré-
milenarismo, foi fato de a Bíblia de Scofield ter sido amplamente lida no movimento
pentecostal. Assim como Scofield, os pentecostais também acreditam em um reino milenial:

Apocalipse 20.1-3 e vv. 7-10 tratam da condenação de Satanás. Ficará preso no abismo
durante mil anos. Apocalipse 20.4 trata de dois grupos de pessoas: O primeiro assentava-se
em tronos para julgar. A mensagem a todas as igrejas indica que são os crentes
provenientes da Era da Igreja que permanecem fieis, sendo vencedores. Entre eles,
conforme a promessa de Jesus, estão os doze apóstolos governando as doze tribos de Israel.
Isso porque Israel, restaurado, purificado, com a plenitude do Espírito Santo de Deus,
ocupará sem dúvida a totalidade da terra prometida a Abraão ( HORTON, 1995, 638)

1000
Considerações finais

O fundamentalismo foi ao mesmo tempo uma reação e uma apropriação da modernidade.


Esse movimento rejeitava o avanço da ciência, mas ao mesmo tempo usava o conhecimento
científico para demostrar que a veracidade das doutrinas do cristianismo. Em razão disso, os
fundamentalistas fizeram duras criticas aos pentecostais, que enfatizaram a experiência e o
testemunho interno do Espirito Santo. Apesar disso, o pentecostalismo adotou do movimento
fundamentalista os discursos pré-milenarista e conservador. A presente pesquisa não é
conclusiva, de modo que novas observações poderão ser incluídas na mesma.

Referências

ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e


no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.

DIAS, Zwinglio. Os vários rostos do fundamentalismo. São Leopoldo: CEBI, 2009.

GEERING, Lloyd. Fundamentalismo: desafio ao mundo secular. São Paulo: Fonte Editorial,
2009.

HORTON, Stanley. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1995.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O Celeste Porvir: a inserção do protestantismo no Brasil.


São Paulo: Paulinas, 1984.

OLSON, Roger. Historia da Teologia Cristã. São Paulo: Editora Vida, 2001.

ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São
Paulo: Paulus, 1996.

PIERUCCI, Antônio Flavio. Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa. XV


Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 1991.

ROCHA, Daniel. Venha a nós o vosso reino: relações entre escatologia e política na história
do pentecostalismo brasileiro. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.

VASCONCELLOS, Pedro Lima. Fundamentalismos: matrizes, presenças e inquietações. São


Paulo: Paulinas, 2008.

1001
1002
Fundamentalismo religioso nas testemunhas de Jeová: observação
participante em uma congregação
João Daniel de Lima Simeão1

Introdução

Com intuito de ter conhecimento de fato do que é ser testemunha de Jeová em dias hodiernos
e qual o sentido de vida encontrado em meio ao seu fundamentalismo, estrutura e
organização, proponho o desdobramento e esforço para desfazer a visão etnocêntrica criada
culturalmente na sociedade, procurando entender os códigos da linguagem das congregações.
E de certa forma colaborar para que a intolerância religiosa seja amenizada.

Neste apresento resultado de uma ida ao campo com finalidade de coletar dados etnográficos
numa pesquisa antropológica, desenvolvido em uma congregação das Testemunhas de Jeová,
no salão do reino, da cidade de Ceará-Mirim, região metropolitana de Natal, Rio Grande do
Norte. Articulada por meio da observação participante no ano de dois mil e treze num período
de dois meses, assim como em um congresso anual, além de conversas com membros e ex-
membros de congregações das testemunhas de Jeová.

Testemunhas de Jeová: A reprodução na sociedade, uma seita ou religião?

As testemunhas de Jeová são consideradas por muitos não como uma religião, mas como uma
seita. E isso gera conflito, pois há uma inferiorizarão e demonização quanto às seitas. Mas se
pode estabelecer como diferença entre religião e seita, ao dizer que a religião é uma crença na
existência de uma força sobrenatural, assim como a seita, mas tem manifestações por meio de
doutrina e ritual próprios. Quanto ao conceito de seita é um grupo religioso, de forte
convicção que surge em oposição às ideias e às práticas religiosas dominantes, mas com
fundamentos filosóficos, teológicos entre outros. Desta forma o conceito de seita é muitas
vezes associado ao de heresia. Assim, devido as testemunhas de Jeová não terem a prática
constante de rituais e terem surgido em oposição as fortes religiões cristãs que se desenvolveu
na história são considerados como seita.

1
Bacharelando em Ciências Sociais pela UFRN. Contato: danielsimeao@outlook.com.

1003
O conhecimento que se é reproduzido no senso comum sobre as testemunhas de Jeová, é
muito ignorante e simplista. Ao questionar pessoas inclusive algumas que nunca tinha tido
contato, sobre o que é “um testemunha de Jeová”, vi e ouvi coisas de forma significativa e
expressiva sem sentido nenhum com o que de fato sejam. Por exemplo: “são crentes, que não
fazem barulho”; “pessoas que expressam os testemunhos de Deus aos outros ao pé da letra”;
“pessoas radicais devido uma má interpretação bíblica”; “São ricos, pois estão sempre muito
bem vestidos”; “uma organização social e politica que vivem testemunhando sei lá o que”,
“Pessoas chatas que bate em minha porta, mas bato na cara deles pois acham que conhecem a
palavra do Senhor de verdade”; “atendimento porta-a-porta”; “pessoas que não fazem nada
em dia de sábado”; ouvi até mesmo dizerem que seriam “seitas que adoram o diabo”. Como
também muito ouvi “respeito todas as religiões”, demonstrando assim total falta de interesse
em conhecer esta sociedade e suas instituições/religiões nela existentes. Podemos concluir que
o que se sabe sobre as testemunhas de Jeová é predominantemente uma visão preconceituosa,
etnocêntrica e que insistimos a ver o outro sem o olhar do outro2. Fazendo-se necessário o
processo de relativização “quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não
nos nossos: estamos relativizando”(GUIMARÃES ROCHA, 1988, p.9). Mas o motivo de
satisfação e orgulho desta congregação é o trabalho de visitas casa a casa e isto é notório que
a sociedade reconhece e percebe.

Fundamentalismo nas congregações das Testemunhas de Jeová

Em 1870, com menos de vinte anos de idade Charles Taze Russeull, conhecido como um
“jovem zeloso”, mesmo com formação religiosa presbiteriana e congregacional, passa a
questionar práticas e ensinamentos tradicionais da cristandade. Passando assim a fundar um
grupo para um estudo fiel das “sagradas escrituras”, nos Estados Unidos surgindo desta forma
os “Estudantes da bíblia”. Assim sente-se como que obrigados a difundir em todos os países
as “boas novas do reino”, como consequência os sermões de Russell passa a ser publicados
em milhares de jornais em todo o mundo. Para Russell e seus associados e irmãos3 em 1914
plena guerra mundial, seria um ano de fundamental importância, pois seria o exato memento
2
Tomando como base a teoria antropologia de Da Matta (1981), que se trata de “transformar o exótico em
familiar e familiar o exótico”, visto que para isso se faz preciso por primeiro o esforço para cancelar, conceitos
pré concebidos e em segundo lugar ter um conhecimento real e fiel de tal grupo/individuo social, visto que trata-
se de uma manifestação cultural, que por sua vez é um complexo de códigos compartilhado por membros de uma
comunidade.
3
Expressão usada entre os membros das congregações, desde inicio. Visto que todos são filhos de Deus, mas não
necessariamente salvo, por ele.

1004
do triunfo de Cristo, no céu, sendo referencia para a contagem regressiva da volta de Jesus ao
à terra. Em Julho de 1879 começa a publicar “A torre de Vigia de Sião e Arauto da presença
de Cristo” que hoje é conhecida como a revista “A Sentinela”, que se trata de um material de
estudo trazendo artigos e orientações para leitura da bíblia. Alguns anos depois desenvolve o
projeto que é uma sociedade jurídica que cuida dos interesses das Testemunhas de Jeová
intitulado: “Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados”. Em 1916 Charles Russeull
falece, mas o trabalho desenvolvido por ele continua em crescimento e aprimorando-se e em
1917 o advogado Joseph Rutherford, é eleito o segundo presidente da Sociedade Torre de
Vigia (EUA).

Não sendo diferente de outras “religiões” da cristandade e de modo especial de teor


fundamentalista, as normas e comportamentos são impostos instigando o medo e temor em
seus membros, colocando-os numa condição de dependência e inferioridade perante sua
divindade e regras do grupo, em caso de desobediência há possibilidade de uma
desassociação4. Faz parte das concepções fundamentalistas afirmar que a salvação da alma
pode ser alcançada por meio da fé individual, como também ao seguir fielmente as práticas
religiosas, mas em oposição a isso para eles não há verdades além da propagada pelas
Testemunhas e que o homem quando encontra-se em sua condição natural e tende ao erro e ao
pecado, restringem assim a salvação que será feita por Jeová Deus no “juízo final” apenas aos
membros das congregações.

O fundamental, o alicerce,5 nas congregações das testemunhas de Jeová é crer na divindade e


infabilidade da bíblia – ressalto aqui que quando em meus contatos, diretos e íntimos em suas
reuniões percebi sem esforço que adotam a bíblia como a única fonte de verdade , por meio de
um discurso oral de um jovem de dezesseis anos: “Olha nós acreditamos em tudo o que tá na
bíblia e acatamos o conselho dela e aplicamos na vida”- e que são os verdadeiros adoradores
de Jeová Deus, os únicos que trazem as marcas e características dos primeiros cristãos citados
nos textos bíblicos, tanto porque levando em consideração que todas as outras religiões cristãs
estão manchadas com ideias e práticas pagãs em suas rubricas e estruturas, como também
porque não fazem uma das principais “ordem” de Deus: a visita nas casas, como expressa um
ancião em uma entrevista: “a missão casa a casa nos faz diferente de outros cristãos, ou pelo

4
Nas congregações das Testemunhas de Jeová, o processo de desassociação é quando há expulsão de tal
membro que é provocado quando algo legitimado como errado é praticado, quando há descumprimento de
alguma regra, que é formulado pelo Corpo Governante, publica na “A Sentinela”, sustentados em suas
interpretações bíblicas.
5
Associado a significação de fundamentalismo apresentada no Dicionário Aurélio

1005
menos os que se dizem ser cristãos...”. Além de se honrarem por usar o “verdadeiro” nome de
Deus –Jeová- inclusive em sua bíblia – A tradução do novo mundo6-

Assim como tantos outros segmentos religiosos, a porta de entrada neste grupo é o batismo
que é feito com o mergulho na água. Este ato do uso da água é repleto de significados, não
desprezados pelas testemunhas de Jeová,

as águas simbolizam, soma universal das virtualidades; reservatório de todas as


possibilidades de existência. Por outro lado a imersão na água equivale a uma dissolução de
formas. É por isso que o simbolismo das águas implica tanto na morte como na ressureição.
No plano cosmológico e antropológico, a imersão remete a uma nova criação, de uma nova
vida ou de um homem novo (ELIADE, 1991, p. 78).

Mas não só o batismo, como também está cumprindo fielmente o que a bíblia diz, por
exemplo, caso seja impossível haver casamento em pessoas que já moram juntas, não será um
Testemunha de Jeová, poderá sim participar das reuniões, como “ouvinte”, que por sinal é
aberto para o público, inclusive para aqueles que estão em condições que nunca poderá a ser
batizado. Mas quem não for “digno” não será batizado, como expressa um irmão: “para ser
testemunhar Jeová, não pode ser qualquer um”.

Quando em uma das entrevistas com um ancião, sobre homoafetividade, e outras questões
consideradas polemicas, como encaram esse mundo pecaminoso, antes de perguntar fui
surpreendido com uma frase: “O testemunha de Jeová, não pode praticar o pecado, nem se
quer pensar nele. Pensar em cometer pecado é um pré-pecado, é o inicio do pecado”, não
podemos pecar!”

Em muitas congregações há um numero considerado pequeno de jovens e crianças. Mas ao


investigar o motivo percebemos que não há muitos atrativos, acima de tudo são todos
considerados como adultos, embora muitos compromissos, como por exemplo, A jovem só
pode ter relacionamentos afetivos com homens da congregação, e após a maioridade, mas
sempre há menos homens que mulheres e isso gera um caos e competições visíveis, mas é
percebível que esta regra não é muito obedecida neste grupo específico. E ainda há muitas
regras no matrimonio o divórcio é permitido com a morte do cônjuge ou se for provado a
prática do adultério. A família deve ter momentos para estudar juntos a bíblia, as chamadas
adorações em família, que sempre termina com um lanche. Além do atendimento porta a

6
“A Tradução do novo mundo” é a tradução usada pelas Testemunhas de Jeová, que a qualificam como a melhor
tradução, mas respeitam e aceitam as outras

1006
porta, que é uma característica forte. Todo Jeová tem obrigação e de fazer as visitas e
revisitas, no dia e horário que melhor lhe convier, devem ser semanal. A visita é quando as
testemunhas têm o primeiro contato com pessoas que não são do grupo e falam de bíblia,
entre tantas outras crenças desta religião, em cada conversa deixam uma pergunta ou
perguntam dúvidas que são respondidas nas revisitas que é quando voltam. Tudo é muito
organizado sistematicamente. Não vão a qualquer casa, rua ou bairro, mas sim segundo uma
organização rigorosa e sistematizada.

Organização das congregações das Testemunhas de Jeová

Todos os membros da congregação tem a mesma significância para o grupo, como falou um
ancião:

aqui você não encontra pessoas com cargos, funções, não há hierarquia, não há destaque para
ninguém, quando um irmão for para outro estado, por exemplo, será muito bem acolhido na casa do
outro irmão mesmo que não o conheça, pois amamos todos mutuamente, se fores católico e for para
outro lugar em missão, e falares: sou católico, estou pregando, certamente não lhe dará dormida, nem
comida.

No decorrer da conversa e dos encontros, podemos perceber que se tratam mesmo em


igualdade e sabem muito mais do que o nome, mas todo o contexto de vida. Mas para uma,
organização da congregação há designações de irmãos considerados qualificados, para tais
funções e serviços, contudo não de forma clerical nem assalariada, que é fortemente
criticada7, há os pioneiros são que não tem em todas as congregações, são os que estão em
tempo integral e disponíveis para ir para qualquer parte do mundo; assim como também os
servos ministeriais que são os que auxiliam na organização do salão, se subdividindo em
indicadores, que são os que estão para auxiliar com os microfones e para dá informações,
inclusive para acolher os irmãos e visitantes nas portas; os anciãos (que não necessariamente
são idosos, como sugere a expressão), mas são escolhidos e/ou indicados de acordo com sua
facilidade para pregar e em pastorear o grupo. Todas as funções são atribuídas pelo Corpo
governante. O Corpo governante, “os ungidos”, que se reúnem toda semana no Brooklyn,
Nova Iorque, para considerar a necessidade da fraternidade a nível mundial, além de designar

7
Critica sustentada em citações bíblicas (assim como em outras circunstancias), mas nesta situação trata-se do
conselho de Cristo, na bíblia: “De graças recebeis, de graça dais”.

1007
membros para posições de responsabilidades, por sinal todo irmão tem a obrigação de orar
pelo corpo governante.

Para ressaltar ainda mais essa nivelação dos membros destaco que nos cânticos, entoados no
inicio, meio e fim das reuniões, são cópias fieis da bíblia – citações- e são sempre entoados
por todos ao mesmo tempo, formando um grande coral, sem solos ou capelas, não se tem
instrumentos a tocar, são conduzidos por um som de um órgão, sempre com mesma melodia
e/ou ritmos. Fiquei a procurar de onde saia o som e percebi que não era produzido naquele
lugar, mas era uma gravação. Tudo para evitar qualquer destaque para algum dos irmãos.

Sempre vão muito bem vestidos para as reuniões, é bem visível isso! Mas isso porque
considera como uma demonstração de respeito profundo para com Jeová que vão adora-lo de
verdade8 no salão com o estudo de sua palavra e para com os irmãos. Chamou minha atenção
quando mim disseram “nos vestimos bem, pois respeitamos também nossos irmãos, este é um
momento muito importante para nós, nos encontramos com Jeová e com nossos irmãos” e
assim percebi que eles têm um apresso enorme um pelos outros. E esse respeito é visível,
acolhedor e marcante.

A matemática, a lógica e a precisão é muito presente e valorizada, pois todo o tempo estão
calculando dias para saber a volta de Jesus à terra, quantos já estão no céu e quanto suporta lá
- baseados no apocalipse – acreditam que o ano de 1914 marca a contagem regressiva dos fins
dos tempos e tantas outras coisas, estão sempre registrando a analisando os dados
matematicamente. Visto que, isso é uma forma de não desperdiçar os conselhos presente na
bíblia, desta forma se faz preciso o entendimento e conhecimento exato da cronologia
presente nas escrituras. Assim como por entender que nada na bíblia deve ser desperdiçado.

Reunião: a adoração verdadeira

Quanto a arquitetura do salão do reino, não se há exigências, nem símbolos arquitetônicos -


costumeiros nas religiões cristãs - mas o lugar deve favorece para o andamento dos estudos e
reuniões, neste caso, portanto nesta congregação, tem três sessões de cadeiras acochadas e
corredores largos para ajudar na locomoção dos microfones que passam de mão e mão com
ajuda de indicadores, um salão principal e um outro menor para reuniões simultâneas, nada
8
Na melhor fome possível, que seria lendo os conselhos de Cristo sem ritos e/ou prescrições, mas em uma data
especifica do ano, revivem a última ceia de Cristo com seus apóstolos antes de sua profética morte.

1008
nas paredes somente uma frase de exaltação a Jeová na parede interna de frente. Na frente um
lugar mais elevado com uma estante e nas extremidades duas bancadas em cada ponta, uma
para expor os livros, e a outra para as brochuras, e revistas, com a conclusão de cada reunião,
como também uma mesa com quatro cadeiras usadas nos encontros de preparação para as
visitas de campo. Além de um jardim na lateral do lado de fora do salão, largas janelas e
ventiladores, além do ambiente ter retenção do som. A tendência é que siga este padrão.

Para que o rito funcione é preciso que seja conduzido oficialmente por alguém reconhecido,
legitimado e aceito. Assim vivenciei na quinta-feira9 um momento que é diferente do que
acontece no Domingo. Neste encontro semanal é comentado e debatido formas, estratégias,
meios e treinamentos para o ato das visitas e revisitas, tendo para isso embasamento na bíblia,
além de revistas de orientação e outros livros essenciais para o grupo, para formação. O
momento começa com um canto, Depois uma oração direcionada a Jeová, oração essa em que
todos fecham seus olhos e inclinam a cabeça, feita por um dos membros, e registro aqui que
muito mim chamou atenção, nas orações os filhos pequenos abraçam-se com suas mães que
estão ao lado, inclusive É bem visível essa subdivisão na família, a criança está sempre muito
associada a mãe e quase nunca ao pai, que é chefe e superior, ate porque a mulher é
inferiorizada, com justificativas nos textos bíblicos, inclusive uma mulher nunca pode ir falar
na frente do salão. Após este momento inicial há o “estudo bíblico da congregação” que um
membro vai para frente e faz perguntas que são respondidas pelos irmãos sentados, quem sabe
levanta a mão a medida que o orador permite, dura exatos trinta minutos. Em seguida a
“escola do ministério teocrático”, com duração de rígidos trinta minutos, começa com trecho
bíblico, que os membros da congregação leram em casa e os estudantes matriculados nas
escolas que se têm no salão tem o direito de falar. Por fim “Reunião de serviço”, também com
exatos trinta minutos, neste momento é feito demonstrações e encenações de como fazer as
visitas e revisitas, assim como está sempre pronto para falar da bíblia nas horas do dia, nesta
quinta foi encenada uma situação de como falar de Jeová na sala de espera de um medico,
outra uma tia falando para uma sobrinha que tinha chegado de viagem quem iria morar no
céu, sempre de duas a três encenações, seguindo sempre um tema central. Conclui-se com
mais um canto e oração final. Nas reuniões temos uma sensação de estarmos em um leilão,
apesar de ser de forma silenciosa e ordenada, mas quando alguém sabe responder algo ou quer
comentar levanta a mão.

9
Podendo ser em qualquer dia da semana, mas deve ter de duas a três reuniões por semana.

1009
Outro momento que presenciei foi no Domingo, às 17hs a reunião começara com uma oração
feita por um ancião, e em seguida um canto de exaltação a Jeová. Em seguida todos se
assentam, e ressalto aqui que a atenção, o silêncio e o respeito imperam, Começa o discurso
publico que geralmente é feito por qualquer membro, mas sempre é um ancião da
congregação que dura pontualmente trinta minutos, neste momento um homem é convidado
para ler os textos, enquanto o ancião explica. Em seguida é cantado mais um “canto de Jeová”
e ao sentarem-se começam o estudo da revista “A Sentinela”, que traz estudos semanais. “a
mesma matéria da revista é estudada todas as congregações espalhadas no mundo” diz um
jovem que entrevistado. Como resultado uma só intepretação é aceita, visto que nas religiões
cristãs o espaço para interpretações gera fortes cismas, no catolicismo, por exemplo, os
movimentos carismáticos, são motivos de que causam tensões e desencontros com os
conservadores.

Nestes encontros fui muito bem acolhido pelos membros que estavam na porta do salão que
logo mim direcionou um lugar e um jovem que estaria para me auxiliar e ajudar. Pude ver que
a organização e a pontualidade são de fato características marcantes destes. Assim esta
reunião não é de fato um rito. Inclusive é positivo ressaltar que eles têm prazer em dizer que
não tem ritos, cultos, mas uma reunião! Em todas as partes do mundo a sequencia do que
ocorre tanto no encontro semanal, como no Domingo é o mesmo.

Questionei como se dava as contribuições financeiras, o jovem que estava para auxiliar-me
falou:

nos nossos encontros não há coletas, ou pedidos de dinheiro, mas temos nas bancadas
laterais, cofres para as pessoas colocarem seus donativos, pois os livros e materiais não são
vendidos, mas se dá colaborações de acordo com o coração e quanto queira dá, além de
nossos compromissos com a sustentação do nosso salão. Pedir dinheiro é o que mais afasta
as pessoas das religiões. Aqui não há pressão nem cobranças, mas compromisso e coração,
Russell mesmo que nos pediu isso...

Considerações finais

Desta forma, podemos perceber que a congregação das testemunhas de Jeová em seu numero
estimado de 60.000 congregações espalhadas por todo o mundo é um exemplo de
interiorização de valores, de uma moral, de “regras” e de convenções formuladas por

1010
autoridades e acolhidas com respeito e de forma inquestionável, isto deve ser observado e
levado em consideração a cima de tudo justificado, percebendo a importância dos símbolos,
códigos e significados demonstrados pelas linguagens sócias, deste grupo. Ver o sentido
encontrado em pertencer a esta congregação, e detectar a riqueza e nobreza das relações de
uns com os outros e de todos com o sagrado professado no Salão do Reino das Testemunhas
de Jeová. Esta congregação tem muito mais “regras”, do que as argumentadas aqui, mas já é
suficiente para perceber o quanto é complexa e envolvente. Esta prática religiosa é acima de
tudo, uma forma de um dos principais objetivos do homem: encontra paz e deus, por meio de
uma comunhão e com auxilio de fenômenos. Visto que na religião, assim como na arte e na
sexualidade é uma oportunidade do interior tomar corpo e face.

Referências

DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel. Rio de Janeiro, 1981.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

GUIMARÃES ROCHA, Everaldo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1988.

O homem em busca de Deus. São Paulo: Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados,
2006.

Quem está fazendo a vontade de Jeová hoje? São Paulo: Associação Torre de Vigia de Bíblias
e Tratados, 2012.

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Intolerância religiosa no espaço público: estudos de casos
Isabella Menezes1

Introdução

O livre exercício dos cultos religiosos e a liberdade religiosa são direitos garantidos pela
Constituição Federal de 19882, sendo considerado crime pelo artigo 208 do Código Penal 3,
atentar contra uma religião e/ou impedi-la de exercer sua liberdade. Embora esses direitos
sejam assegurados, o cenário religioso brasileiro nas últimas décadas aponta para um
horizonte diferente: a intolerância religiosa. Ao passo que a diversidade religiosa foi se
alargando no Brasil; cresceram também os números de ações violentas de alguns grupos
religiosos, a fim de combater outras religiões, o exemplo mais expressivo são os cristãos
neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras. Casos desse tipo vêm sido noticiados nos
meios de comunicação, muitos deles ocorridos em espaços públicos. Esse artigo tem como
objetivo analisar tais eventos à luz de uma literatura sócio-antropológica, procurando
identificar o discurso dos agressores e o embasamento teórico a que esses recorrem para
legitimarem suas ações.

A questão central para a análise que se segue, se concentra na questão da intolerância


religiosa, que nas últimas duas décadas do século XX tem-se acentuado na sociedade
brasileira. Com o grande crescimento do número de adeptos das religiões neopentecostais, o
campo religioso no Brasil sofreu grandes transformações. Uma das principais mudanças foi o
espaço e influência que estes religiosos conquistaram em algumas poucas décadas. Em
consequência, o preconceito manifestado contra as religiões de matriz africana surge com
grande força e a justificativa nativa para tal fato é embasada numa teologia da “Guerra
Espiritual”.

Discriminação ou intolerância Religiosa?


1
Graduanda em Ciências Sociais pela PUC/Rio, Bolsista PIBIC/CNPQ no Projeto “Mapeamento de casas de
religiões de matriz africana no Rio de Janeiro: Visibilidade e Intolerância Religiosa”, coordenado pela Profa.
Dra. Sonia Maria Giacomini. Contato: isabellamenezes14@hotmail.com.
2
Artigo 5º da Constituição Federal de 1988: VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias.
3
Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia
ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Pena - detenção, de 1
(um) mês a 1 (um) ano, ou multa; Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um
terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

1013
Antes de aprofundar a discussão sobre a questão da intolerância religiosa no Brasil
contemporâneo é importante fazer uma retrospectiva na história para entender genericamente
os conceitos de tolerância e intolerância. O sociiólogo Ricardo Mariano4 retoma a questão de
tolerância tratada primeiramente por Norberto Bobbio5 em A Era dos Direitos, mostrando que
esta noção surge na Europa em meio as guerras civis religiosas (século XVI). Surgem neste
cenário, leis que tratavam da tolerância e intolerância, leis essas que posteriormente
resultaram na democracia moderna. Mariano assinala, citando Ítalo Mereu 6, que
diferentemente dos direitos admitidos pela democracia e Estado de direito, a intolerância parte
do pressuposto da verdade e certeza absoluta, admitindo assim o dever de aplicá-la a todos,
mesmo que seja pelo uso da força (MARIANO, 2007, p.120).

O sociólogo sublinha ainda a importância de discutir os conceitos de discriminação, liberdade


religiosa, tolerância e intolerância. As noções de tolerância e intolerância admitem caráter
dualista, ou seja, podem cada um deles, ter sentido negativos e positivos, simultaneamente.
Estas noções podem ser interpretadas de maneiras diferentes, de acordo com contextos
históricos e sociais distintos. Como afirma esse mesmo autor, os casos de intolerância são
mais complicados de serem interpretados, em especial em países democráticos como o Brasil,
onde os direitos de liberdade de culto geram a diversidade religiosa.

Há no próprio termo “tolerância religiosa” contradições, partindo do pressuposto da liberdade


religiosa, esta mesma liberdade pode ser usada pelos evangélicos, a fim de expressarem sua
aversão às crenças de origem africana (MARIANO, 2007, p. 123). E afirma, que intolerância
e discriminação religiosa são constantemente confundidas. A intolerância pressupõe a não
aceitação de determinada manifestação, neste caso em específico, religiosa. O que ocorre com
mais frequência, assinala o autor, é a discriminação religiosa, ou seja, pela justiça é admitido
o direito de manifestação religiosa, embora haja tratamento desigual perante as diferentes
religiões.

A questão da discriminação religiosa, que constantemente é confundida com intolerância


religiosa vem se mostrado bastante pontual na realidade da sociedade brasileira, em especial
contra as religiões de matriz africana. Essa perseguição aos cultos e adeptos afro-brasileiros
não é uma realidade atual, mas histórica, como mostra Ricardo Mariano em seu texto
Pentecostais em Ação: a demonização dos cultos afro-brasileiro. Segundo o autor, no século
4
Doutor em Sociologia pela USP e professor do PPG em Ciências Sociais da PUCRS.
5
Foi um filósofo, historiador do pensamento político e senador vitalício italiano.
6
Advogado e acadêmico italiano.

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XIX a escravidão e o racismo foram motivo central para a perseguição religiosa as religiões
de origem africana. Mesmo depois do fim da escravidão, a aproximação do candomblé e da
umbanda ao “baixo-espiritismo” permaneceu até os anos de 1940. Posterior a esse momento,
a justificativa usada contra essas religiões, era de prática ilegal de curandeirismo, medicina e
magia negra (MARIANO, 2007, p.126 e 127). O cristianismo católico e protestante tratou de
demonizar e marginalizar todas as práticas e cultos das religiões africanas.

Depois de uma longa e histórica perseguição religiosa, as religiões afrodiaspórica ainda são
alvo para atos de discriminação, no entanto, os agressores agora são grupos dos
neopentecostais que nas últimas décadas do século XIX tomaram proporções espantosas. A
justificativa agora para tal perseguição se embasa na demonização dos cultos afro-brasileiros.
A doutrina proposta pelos cristãos neopentecostais se apoia na perspectiva dualista, ou seja,
no mundo tudo está dividido em dois campos opostos: bem e mal, anjos e demônios, Deus e
diabo. (MARIANO, 2007, p. 129). Para esses religiosos, as religiões de origem africana são
expressões máximas do mal na terra, e para que o bem vença, os “homens de bem” devem
combater o mal, evangelizando e convertendo os indivíduos que estão sob o “poder do mal”.

Partindo desse pensamento, apoiando-se numa teologia racionalizada, que esses religiosos
agem, e acreditam que todo ataque, por mais violento que seja contra as religiões que,
segundo eles, proliferam o mal na Terra, tem sua finalidade e é benevolente à raça humana.
Frente a esta teologia está Edir Macedo e R.R. Soares, líderes da Igreja Internacional da Graça
de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus, respectivamente. Macedo, fundador da IURD
não só usa como meio de evangelização o combate às religiões afro-brasileiras, como
demonstra bastante determinado a combater com as próprias mãos que candomblecistas,
umbandistas e espíritas, sejam convertidos e afastados de suas raízes religiosas. Como ele
mesmo assegura: “Se o povo brasileiro tivesse os olhos bem abertos contra a feitiçaria, a
bruxaria e a magia, oficializadas pela umbanda, quimbanda, candomblé, kardecismo e outros
nomes, que vivem destruindo as vidas e os lares, certamente seríamos um país bem mais
desenvolvido”. (MACEDO, 2002, p.38).

Foi através de uma justificativa – supostamente a de salvar os homens de todo o mal causado
pelo Diabo -, que a denominada “Batalha Espiritual” se estabeleceu no Brasil nos últimos
anos. Os relatos de intolerância religiosa mais expressivos do material disponível na mídia e
analisados para este artigo, foram empreendidos justamente por religiosos neopentecostais
como atores de discriminação. Como Vagner Gonçalves relata no prefácio do livro

1015
Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, a
expansão evangélica no cenário brasileiro fez eclodir não só o número de religiosos e de
igrejas neopentecostais, como também o acréscimo dos atos de intolerância religiosa
praticados contra as religiões africanas.

Casos noticiados na mídia: estudos de casos

Para esse trabalho foram selecionados algumas notícias sobre discriminação e intolerância
religiosa no Brasil nos últimos anos. As notícias foram organizadas por temas e serão
expostas nesse artigo de acordo com suas respectivas categorias.

1) Violência contra a casa religiosa

A primeira categoria traz três casos onde foram relatadas invasões às casas religiosas. O
primeiro caso foi divulgado pelo G1, segundo a chamada do jornal: Evangélicos invadem
centro espírita no Catete7 (bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro). Segundo o responsável pelo
centro afirma: “Tinha uma fila com mais de 60 pessoas e aí eles começaram a provocar na
fila. Aí empurraram a porta, abriram a porta e entraram já xingando e quebrando todos os
santos.” Embora este caso tenha ocorrido dentro do próprio centro espírita, ou seja, um espaço
privado, a abordagem feita pelos religiosos neopentecostais atenta não somente contra o
Código Penal, como vai contra os direitos garantidos na Constituição de 1988, ainda em vigor
no país.

Outro caso com esse mesmo padrão de violência, ocorreu no estado de Santa Catarina 8, a
invasão no entanto, foi feita por policiais militares, que invadiram o centro umbandista em
meio a um ritual. Dois membros da religião encaminharam uma carta feita por eles mesmos,
ao governador de Santa Catarina.

Naquela noite, por volta das 8 da noite, a Tenda de Umbanda Caboclo Pajelança,
situada, Jaraguá do Sul, foi invadida por doze homens do 14º Batalhão da Polícia
Militar, fortemente armados com pistolas, armas de choque, sprays de gás de
pimenta e escopetas, sob o comando do sargento Adriano, que deu voz de prisão a

7
Evangélicos invadem centro espírita no Catete . G1. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL587234-5606,00.html > Acesso em 29/jul/2013.
8
Blog Umbanda para o Mundo. Disponível em: < http://grou.ps/umbandaparaomundo/blogs/item/437824>
Acesso em 28/jul/2013.

1016
diretora de culto Cristiane Tomaz de Oliveira. A sessão em homenagem aos pretos
velhos foi interrompida sob a ameaça dos policiais, determinando as dezenas de
pessoas presentes que se calassem e não se movimentassem, sob o risco de terem que
usar armas de choque e gás, além de todos serem levados presos. Um ogan, menor
de idade, foi conduzido algemado pra o distrito policial.

Na mesma carta, a diretora do culto afirmou que já haviam sendo feitos, abaixo-assinados dos
vizinhos, para que o centro umbandista saísse da vizinhança. Os adeptos e representantes
desse centro religioso, mostraram-se atentos e informados sobre seus direitos, na mesma carta
escrita ao governador, eles mesmo afirmam que reconhecem seus direitos constitucionais,
segundo o qual garante a “inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias”. O governador respondeu a carta, afirmando reconhecer a
violência contida nessa ação e que providências haviam já sido feitas, para solucionar o caso.
Em Nova Iguaçu também foi registrado esse mesmo tipo de violência, contra a casa religiosa.
Como traz a notícia:

Ao abrir a porta, a surpresa: imagens quebradas e um altar revirado. O Centro Espírita de


Umbanda Caminhos de Oxum foi invadido e depredado na madrugada de anteontem.Foram
danificadas oito imagens, que estavam numa prateleira de madeira, além de artigos como
copos e pratos utilizados nos rituais religiosos. O caso foi registrado na 52ª DP (Nova
Iguaçu). O delegado Henrique Pessoa, representante da Polícia Civil na Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa, investiga se o ato de vandalismo foi provocado por fiéis
da Igreja Universal do Reino de Deus, que tem uma sede na mesma rua do centro de
umbanda.9

O diagnóstico feito tanto por alguns estudiosos na área é que há no Brasil um cenário de
guerra espiritual, ou melhor, uma teologia da batalha espiritual. Para a teologia
neopentecostal, as divindades afro-brasileiras representam o demônio, e como afirma Vagner
Gonçalves da Silva, há não somente este reconhecimento, como esses religiosos acreditam na
natureza demoníaca dessas entidades, e são esses espíritos malignos que devem ser
combatidos, para salvar os homens de todo o mal. Nos casos noticiados a cima, os religiosos
evangélicos que atacaram tanto à casa religiosa do bairro Catete, no Rio de Janeiro, como a
casa religiosa de Nova Iguaçu, a depredação foi principalmente nas imagens religiosas. O
combate aos rituais também é uma forma de impedir que essas religiões mantenham suas
9
Caso de Polícia. O Globo. Disponível em: <http://extra2.globo.com/geral/casodepolicia/video/2009/15659/>.
Acesso em 15/ jul//2013.

1017
crenças em ação, o que segundo o ponto de vista neopentecostal é uma forma de
desestabilizar os adeptos e impedir que os rituais ocorram.

2) Violência contra adeptos

A segunda categoria feita para esse artigo, se pauta nos casos feitos contra os religiosos. O
primeiro caso dessa categoria, tem como chamada: Sargento evangélico é condenado por
intolerância religiosa.10 O caso teria acontecido quando o sargento apontou uma arma para a
cabeça de um soldado praticante do candomblé para testar se ele tinha mesmo o corpo
fechado. A ocorrência de casos como esse, atentando diretamente contra religiosos das
religiões afro-brasileiras é bastante recorrente. O site do ISER11 (Instituto de Estudos da
Religião) noticiou que houve crescimento de casos de discriminação e intolerância religiosa.
Como indicado no trecho retirado de uma matéria:

Entre as denúncias que chegaram à Relatoria de diversas regiões do país encontram-se casos de
violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; demissão ou afastamento de
profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou que abordaram conteúdos dessas
religiões em classe; proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar;
desigualdade no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das
vinculadas à matriz africana; omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de
professores e diretores, etc. Essas situações, muitas vezes, levam estudantes à repetência, evasão ou
solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e
contribuem para o baixo desempenho escolar.

O site UOL também noticiou aumento dos casos de discriminação e intolerância religiosa:
Denúncias de intolerância religiosa crescem mais de 600% em 2012”.12 Segundo
informação, “A quantidade de denúncias de intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República cresceu mais de sete vezes
em 2012, quando comparada com a estatística de 2011.”

10
Sargento evangélico é condenado por intolerância religiosa. Gospel Prime. Disponível em:
<http://noticias.gospelprime.com.br/sargento-evangelico-e-condenado-por-intolerancia-religiosa/ >. Acesso em:
23/jul/2013.
11
Intolerância religiosa em escolas. ISER. Disponível em: <http://www.iser.org.br/site/imprensa/intolerancia-
religiosa-em-escolas-rj>. Acesso em: 20/ jul/2013.
12
Denúncias de intolerância religiosa crescem mais de 600% em 2012. Notícias Uol. Disponível em: <
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-crescem-
mais-de-600-em-2012.htm> Acesso em 25/jul/2013.

1018
Dos casos analisados, dois deles faziam referência à agressões e discriminações feitas contra
alunos. O primeiro caso foi noticiado pelo jornal O Globo13, segundo a notícia, um estudante
de 15 anos, seguidor do candomblé, vinha sofrendo agressões e intolerância religiosa por
parte da professora de história, que como indicado pelo aluno, dedicava 20 minutos iniciais de
sua aula, para a realização de orações.

O pai alega que a causa do bullying sofrido por seu filho é a pregação religiosa feita por
uma professora de história da escola estadual Antônio Caputo, em São Bernardo do Campo,
na grande São Paulo. Segundo ele, ela dedica os 20 minutos iniciais de suas aulas lendo a
Bíblia e rezando, enquanto os alunos são obrigados a ficar de cabeça baixa. — É essa
pregação em sala de aula que está causando a intolerância e o bullying contra meu filho.
Vivemos num estado laico e não pode haver ensino religioso numa escola estadual — diz
Sebastião, que é sacerdote da mesma religião professada por seu filho.

As agressões também eram feitas por outros alunos, que chegaram, como indicado
na notícia “As agressões se agravaram neste ano. A mais grave delas aconteceu mês
passado, quando um aluno jogou nas costas de M. uma bola de papel cheia de
secreção pulmonar.” Medidas foram tomadas pela promotoria e secretaria de
educação, a fim de resguardar a integridade do aluno.

Outro caso envolvendo alunos adeptos de religiões de matrizes africana foi


registrado, nesse caso noticiado pelo jornal Extra, um aluno de 13 anos, morador do
Rio de Janeiro também foi alvo de intolerância religiosa, ato que partiu também da
professora. “Em junho do ano passado, o adolescente foi expulso da sala de aula aos
gritos de "filho do capeta" pela professora. Desde então, está em tratamento
psicológico.”14 A matéria traz ainda alguns pontos colocados pela Secretaria de
Educação importantes para o entendimento da religião no Brasil, que como nesses
casos, parece não ser claro. “A secretária municipal de Educação, Cláudia Costin,
afirmou que, durante suas visitas às Coordenadorias Regionais de Educação tem
deixado claro o princípio de uma escola pública laica, em que não há pregação e
intolerância religiosa.”

13
Estudante diz sofrer agressões por intolerância religiosa. O Globo. Disponível em: <
http://oglobo.globo.com/pais/estudante-diz-sofrer-agressoes-por-intolerancia-religiosa-
4449745#ixzz20KYKb4P1> Acesso em 20/jul/ 2013.
14
Escola onde estudante sofreu discriminação pede desculpas ao aluno. O Globo. Disponível em:
<http://extra.globo.com/noticias/rio/escola-onde-estudante-sofreu-discriminacao-religiosa-pede-desculpas-ao-
aluno-186872.html > Acesso em 15/ jun/ 2103.

1019
As agressões, sejam elas físicas ou verbais contra os adeptos das religiões afro-
brasileiras, também foi caso de denúncia, como informado pelo G1: TJ-RJ condena
pastor e discípulo por intolerância religiosa. As agressões nesse caso eram mais
gerais, envolvendo também outras religiões, como o judaísmo, e eram feitas através
da internet,

De acordo com o TJ-RJ, Tupirani da Hora Lores, o pastor, e Afonso Henrique Alves Lobato, o
discípulo, pregavam através de blogs o fim da Igreja Assembleia de Deus e praticaram
intolerância religiosa contra judeus e outras religiões, caracterizando-as como "seguidoras do
diabo" e "adoradoras do demônio". Eles também associavam a figura de pais de santo a
homossexuais, de forma pejorativa, ainda segundo a ação.15

Como visto, religiosos neopentecostais se mobilizam em torno da Teologia da batalha espiritual e


vêm se mostrando ativos e dispostos a combaterem as religiões que eles encaram como
demoníacas. É possível perceber que juntamente ao crescimento desse seguimento religioso, está
também o crescimento dos casos de intolerância religiosa.

Os dados do Censo de 2010 (IBGE)16 confirmam a nova formatação no campo religioso brasileiro.
Os números indicaram a redução da população católica – situação já antes vista há 20 anos.
Os cristãos católicos ainda representam a maioria da população, mesmo que apresente uma
queda contínua desde o primeiro censo de 1970. No último censo (2010), os católicos
contabilizaram 64,6%, apresentando queda em todas as regiões do país, com maior força na
região Norte do país, região esta que apresentou maior crescimento de cristão evangélicos,
contabilizando aumento de 8,7.

Enquanto a Igreja Católica apresenta decréscimo nos números de fiéis, o número de


evangélicos cresceu 6,8% em relação ao último censo, apresentando crescimento contínuo nas
últimas três décadas, que passou de 6,6 para 22,2% da população brasileira, configurando
assim a religião que mais cresceu no Brasil nos últimos anos. As religiões africanas
apresentaram estabilidade no número de adeptos no Brasil desde o último Censo de 2010.
Apesar dos crescentes ataques contra essas religiões africana, os números mostram resistência
por parte desses religiosos.

15
TJ RJ condena pastor e discípulo por intolerância religiosa. O Globo. Disponível em:
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/07/tj-rj-condena-pastor-e-discipulo-por-intolerancia-
religiosa.html>. Acesso em: 02/ago/ 2013.
16
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/default.php>. Acessado em 08/ago/2013.

1020
Para melhor entender o crescimento desse segimento religioso, foi feita a leitura do texto
Intolerância Religiosa Iurdiana e Reações Afro no Rio Grande do Sul, do antropólogo Ari
Pedro Oro (2006)17, que se dedica a mostrar o impressionante crescimento da Igreja Universal
do Reino de Deus no Brasil (como também em outros países, totalizando oitenta países no
mundo todo, presentes em todos os continentes) na última década; identificando também o
aumento dos casos contra as religiões africanas no Brasil. O antropólogo atribui a presença
sólida e o crescimento fugaz da IURD ao poder midiático que este seguimento pentecostal
tem diante da sociedade.

Os meios de comunicação são vias de mão dupla, já que são através deles que os religiosos
neopentecostais evangelizam seus religiosos e procuram novos adeptos. Eles são utilizados
pelas Igrejas neopentecostais e seus representantes como forma de evangelização, contando
com todo um sistema de comunicação de massa não somente presente na televisão, mas em
programas de rádio, produtoras musicais, sites e editoras de livros.

A IURD é hoje detentora de 2 redes de televisão: a Record – com 63 emissoras, sendo 21 delas
próprias, e a Mulher, presente em 85% das capitais brasileiras e em cerca de 300 municípios. A IURD
também detém 62 emissoras de rádio no país, é proprietária do jornal Folha Universal, cuja tiragem
semanal supera a cifra de 1,5 milhão de exemplares. Além disso, é proprietária de uma gráfica
(Editora Gráfica Universal), de uma editora (Universal Produções, pela qual Edir Macedo publicou 34
livros). No exterior, ela possui os jornais Tribuna Universal em Portugal; Universal News e Pare de
Sufrir (destinada aos hispânicos) nos Estados Unidos. Faith in Action e City News na Inglaterra; Stop
Suffering na África do Sul; Pare de Sufrir no Chile e na Bolívia; Tribune Universelle na França.
(ORO, 2006, p.128, n. 43).

Religião e espaço público

A questão da religião no espaço público é muito importante para o entender o novo cenário
religioso do Brasil, pois existem muitos casos, alguns já vistos anteriormente, de
discriminação movida por motivos religiosos que ocorrem em espaços públicos. Contando
com o texto do antropólogo Emerson Giumbelli18, que percorre a história das religiões no
Brasil ao longo dos tempos, é possível seguir o caminho feito pelas religiões no Brasil ao
longo de sua história. A proposta colocada pelo autor em seu texto A presença do Religioso
17
Doutor em antropologia pela Universidade de Paris III - Sorbone, atualmente é professor da UFRGS. Contato:
18
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor do
Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1021
no espaço público: Modalidades no Brasil é de compreender a presença das religiões no
espaço público brasileiro, para tanto, disserta sobre a questão de saber qual é a definição de
religião admitida no espaço público, esse reconhecimento, como mostra Giumbelli, depende
de dispositivos jurídicos, que de alguma maneira, envolvem meios de legitimação social.

Para pensar diversidade religiosa no Brasil é preciso partir da Proclamação da República,


momento que ocorre o rompimento entre Estado e Igreja Católica, nesse momento, o Estado
brasileiro deixa de ser católico e passa a ser laico (e é até os dias de hoje). O autor fala de
“secularismo religioso”, termos próprios da modernidade, é com a laicização e com o
secularismo que a Igreja Católica deixa o centro das relações. Mas a questão que começa a ser
discutida nesse momento, era saber o que definiria uma religião. Como Giumbelli indica, todo
o debate que deu origem ao Código Civil de 1917, tratava mais sobre a liberdade que a
religião gozaria e não sobre quais religiões teriam liberdade, o referencial de religião no Brasil
nesse período era a Igreja Católica. Pois era o caso que não causava dúvidas sobre sua
legitimação enquanto religião. Neste momento que surge a discussão do conceito “religião”
aplicável aos cultos mediúnicos.

É nesse processo que o espiritismo enquanto religião, entra em questionamento. A questão se


debruçava no código penal, onde a prática do espiritismo era vista por muitos como
“curandeirismo”. A maior questão posta a essa oposição foi justamente as questões
relacionadas à saúde pública. Utilizando do Código Penal que “criminalizavam a prática do
“espiritismo” e a da “magia e seus sortilégios (art. 157)”. O que de fato oficializou o
espiritismo como religião foi a questão do seu caráter filantrópico, sublinha o autor. Mas até
que se chegasse a essa determinação, muitas foram as aversões a sua legitimação religiosa.
Nessa lógica, os indivíduos que não tinham título acadêmico não poderiam exercer atividades
da medicina e o exercício do “curandeirismo”.

A resposta dos espíritas foi de encaixar as práticas de curandeirismo à noção de “religião”,


mas para que isso fosse regularizado a categoria “caridade” foi decisiva. Segundo os
espíritas, as curas conquistadas pela mediunidade, era uma forma de caridade e não se
cobrava por essas curas. A presença do espiritismo enquanto assumindo o argumento da
caridade, legitimou que essas associações religiosas desenvolvessem tratamentos “espirituais”
conseguiram um espaço se não de total liberdade religiosa, mas de tolerância. Com esse novo
cenário, o espiritismo ficou cada vez menos vulneráveis a repressão.

1022
Já as religiões mediúnicas de origem africana, encontraram nos dias de hoje muitos problemas
para serem reconhecidos como religião, ainda muitos terreiros de umbanda e candomblé não
possuem registro em cartório. Como bem indicado por Giumbelli citando um comentarista e
militante de São Paulo “na cidade de São Paulo ainda hoje nenhum templo de candomblé tem
assegurada a imunidade tributária, os ministros não conseguem obter inscrição no sistema de
seguridade social e os cartórios se recusam a reconhecer a validade dos casamentos
celebrados no candomblé” (SILVA JR. 2007, p. 315). Essa configuração só confirma as
muitas dificuldades que os cultos de matriz africana encontram para se afirmarem como
religião e serem aceitos no espaço público.

Por fim, trata da inserção dos evangélicos no campo religioso brasileiro e diz que é difícil
sobrestimar o seu impacto nas últimas décadas. Aponta que o crescimento numérico seja o
aspecto que menos exprima esse impacto. O caráter político assumido pelos evangélicos sim,
pois assumem frente de políticas públicas em parceria com agências governamentais e usam a
religião como propriedade eleitoral. Outra característica muito peculiar aos grupos religiosos
evangélicos é a prosperidade. Essa prática é embasada numa teologia que tem como base o
pedido de dinheiro durante os cultos. Mas um dos atributos muito particular ao mundo
evangélico é a questão da liberdade religiosa. Quando são advertidos por estelionato espiritual
(referente à teologia da prosperidade), contestam afirmando que tal atitude é fruto da
liberdade dos fiéis. Da mesma maneira que quando são recriminados pela sua intolerância,
advertem que estão apenas exprimindo sua opinião e que isso está dentro da liberdade
religiosa que os cabe.

Outro estudioso que contribui para discussão dessa temática é José Geraldo19, em seu artigo A
intolerância religiosa e religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro, o autor trata sobre
os vários relatos de discriminação e até mesmo agressões motivados pela intolerância
religiosa, muitos deles em espaços públicos, tais como local de trabalho, escola, rua e órgãos
públicos, o que afirma a questão colocada pelo antropólogo Emerson Giumbelli. Essa
afirmação só reforça a premissa de que embora o nosso país garanta o direito ao culto e as
expressões religiosas, o que vivemos na realidade é um verdadeiro campo de batalhas,
expressão colocada pelos evangélicos, que têm como teologia a exterminação das religiões
chamadas por eles de demoníacas, como já visto aqui anteriormente.

19
Doutor em Ciências Humanas pela PUC-Rio, professor adjunto no PPG de Letras e Ciências Humanas
na UNIGRAN-RIO, UFF e UCAM.

1023
José Geraldo da Rocha traz para o texto a pesquisa que foi realizada na Baixada Fluminense a
fim de elucidar aspectos do estudo, apresentando um banco de dados importantíssimo e que
de alguma maneira, conversa com a análise desse artigo. A discussão e os resultados
colocados em seu estudo, comprovam empiricamente, o que a literatura vem apontando,
referente ao mundo religioso brasileiro. A escolha pelo local da pesquisa, como afirma o
autor, foi embasada nos altos índices de casos de intolerância religiosa sofridos pelas religiões
de origem africana. É um local de alta concentração de casas religiosas, e é também, como
ressalta ao longo do texto, mostrando estudos já feitos sobre a região,

um cenário de baixo desenvolvimento econômico e precárias condições de saúde. O intenso processo


de ocupação e crescimento demográfico, experimentado durante o século XX, foi acompanhado de
uma melhora parcial nas condições de saúde, habitação e infraestrutura básica, mas vários problemas
ligados à situação de pobreza e necessidades básicas não atendidas ainda persistem. (Aline de Moura,
2007; Cit. ROCHA).

Considerações finais

Por meio da análise dos noticiários foi possível verificar que entre os agressores, os religiosos
neopentecostais se mostraram mais expressivos. E o padrão que se mostrou ao longo da
análise confirma a hipótese levantada pela literatura utilizada ao longo do relatório, que
aponta esses religiosos como maior combatente das religiões afro-brasileiras.

Outro dado importante a ser considerado com essa análise é a ocorrência expressiva de casos
de intolerância religiosa em locais públicos, seja por intermédio da Internet, meio utilizado
por alguns religiosos, a fim de depreciar a imagem de outras religiões; como nos casos
ocorridos nas escolas e em locais de trabalho, como é o caso do sargento que coagiu um de
seus soldados.

Os locais privados não são isentos dessas agressões, o exemplo são as casas religiosas, que
são alvos também da violência religiosa. As agressões também atentam não só os adetos e os
locais de culto, mas também são feitas contra o mundo simbólico dessa religiosidades. As
imagens de entidades religiosas são alvos de depredações e de agressões físicas. Os atentados
feitos contra essas religiões também são feitas através de impedimentos de rituais.

Com esses dados é possível, portanto, traçar um perfil desses religiosos, assim como de seus
alvos e os locais onde mais ocorrem casos de discriminação religiosa. Os noticiários foram

1024
analisados a partir de uma tipologia que surgiu do próprio processo de análise. É importante
ressaltar a relevância que as leituras feitas ao longo do processo de feitura deste artigo
tiveram, devido à elas, a familiarização com o tema foi indiscutível e o diálogo entre teoria e
realidade foram os aspectos possibilitadores para o estabelecimento de hipóteses e conclusões.
Entendendo melhor a dinâmica da teologia neopentecostal e os argumentos utilizados por
esses grupos religiosos, foi possível traçar uma linha de pensamento que abrangesse a
realidade dos neopentecostais.

Outra questão a ser pontuada aqui é que há um reconhecimento por parte dos grupos
agredidos, de seus direitos, embora esses casos não representem a maioria, alguns deles
recorrem à justiça para solucionarem os casos. O que a análise proposta nesse artigo mostra é
justamente o crescimento dos casos de intolerância religiosa, não somente nos meios de
comunicação, mas no novo cenário religioso. Mas também aponta para um maior
reconhecimento das religiões que mais sofrem com a discriminação religiosa, de seus direitos
e a reivindicação do mesmo.

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1026
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1027
1028
Nova tolerância intolerante: mudanças de relações de gênero nas
Assembléias de Deus
Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa1

Introdução

Estamos em época de mudanças sociais bem como crises, como um dos principais segmentos
da sociedade, a religião também passa por mudanças (BERGER, 1971, p.21), pode-se afirmar
que estamos em época de efervescência religiosa (CAMPOS, 2002, p.97). Sobretudo no
Brasil, as profundas mudanças econômicas e sociais, bem como a inserção do país de modo
crescente no cenário econômico mundial afetou vários segmentos da sociedade brasileira e
sua religiosidade também foi afetada (MUNIZ DE SOUZA & MARTINO, 2004, p.15).

Tradicionalmente a relação de gênero nas igrejas em especial nas Assembleias de Deus se


caracteriza por uma leitura fundamentalista bíblica descrita em I Timóteo 2:11-12 “A mulher
aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use
de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio” e em 1º Coríntios 14:34-35 "As
mulheres estejam caladas nas igrejas, porque lhes não é permitido falar". E, se querem
aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos, porque é indecente que
as mulheres falem na igreja", bem como outras passagens semelhantes, porem tais posições
tem sidos mudadas que apresentaremos nesse trabalho.

Usualmente classifica-se o pentecostalismo Brasileiro em três grandes fases (ou ondas). O


pentecostalismo no Brasil tem sido classificado utilizando as ideias de Paul Freston (1994), e
se tem usado a periodização das três ondas. A primeira onda pentecostal registra a fundação e
o surgimento da Congregação Cristã do Brasil e das Assembleias de Deus, nos moldes do
pentecostalismo norte-americano e sueco de onde provinham os fundadores. A chamada
segunda onda pentecostal teve origem na década de 1950, dava ênfase na glossolalia, na cura
divina e nos milagres. São numerosas as denominações surgidas nessa época: Igreja do
Evangelho Quadrangular,antes conhecida como Cruzada Nacional de Evangelização (1953);

1
Antropólogo, jurista, mestre em filosofia, doutorando em Ciências da Religião pela UMESP, Bolsita do IEPG,
professor da UNESP- FAAC – Bauru. Orientador Lauri Emílio Wirth. Contato: adv.otavio@ymail.com.

1029
Igreja Pentecostal "O Brasil para Cristo" (1956); Igreja Pentecostal "Deus é Amor" (1961);
Metodista Wesleyana (1967) e muitas outras.

Na Década de 70, uma terceira onda pentecostal, que é a mais estudada, porque usa grande
espaço na mídia e suas ideias diferenciadas, com uma série de modificações da teologia
pentecostal, deu início a formas de pentecostalismo conhecido com o nome de
"pentecostalismo brasileiro" ou neopentecostalismo. A Igreja Universal do Reino de Deus
(1977), a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), a Igreja Cristo Vive (1986), são
expressões afirmadas do pentecostalismo brasileiro (MARIANO, 2005).

Cada uma focaliza seu discurso social e teológico em bases principais que podem até se
misturar com as outras. Todas podem pregar, por exemplo, a cura, ou a prosperidade, mas
cada uma enfoca algo que são diretrizes básicas da maioria das pregações em seus templos. A
primeira onda (pentecostalismo) enfoca o batismo com o Espírito Santo e a glossolalia e a
salvação da Alma (LEONARD, 1963 p. 47). A da segunda onda de (Deuteropentecostalismo)
enfoca a cura divina e estimula cultos com excessiva demonstração de Glossolalia
(MOREIRA, 1996 p.13). A da terceira (neopentecostalismo) exalta o exorcismo e mensagem
da prosperidade (FERRARI, 2007 p.22).

Números e características das igrejas Pentecostais

Varias igrejas surgiram no cenário Brasileiro nos últimos anos. Basta dar um pequeno passeio
em qualquer bairro, sobretudo os periféricos, para ver um sem numero de denominações
religiosas das mais variadas2.

Os números demonstrados pelo Censo de 2010, divulgado recentemente pelo Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que o número de evangélicos cresceu
61,45% no Brasil nos últimos dez anos. Apenas entre as Assembleias de Deus o crescimento
foi estrondoso, mais de 48%. Se utilizando de Dados do Censo 2010 (que calcula 15.000.000
- quinze milhões de membros até 2009) e do órgão oficial de Noticias das Assembleias de
Deus (doravante AD), o CPADNews, que professa o numero (feito por pesquisa própria

2
Existem muitas listas, sobretudo WEB. Segue sugestões de consulta:
http://www.compulsivo.com.br/2010/02/todas-as-igrejas-do-brasil.html -
http://www.pulpitocristao.com/2010/05/confira-os-nomes-de-igrejas-mais-estranhos-e-engracados/ -
http://oskaras.com/97-nomes-estranhos-de-igrejas/ - http://www.gospel10.com/igrejas/denominacao--batista--1 -
http://www.gospel10.com/igrejas/denominacao--igreja-pentecostal--18 - http://www.mackenzie.br/10175.html

1030
através de registros das igrejas) anunciado da Convenção Geral das Assembleias de Deus o
Brasil (CGADB) de 2012 de ≈25.000.000, chegamos a uma média de 20.000.000 (vinte
milhões) de membros, (CPADNews, 2012) o mesmo site observa que se a taxa de
crescimento continuar constante, em 2020 o numero de evangélicos da AD ultrapassará os
50.000.000.

As neopentecostais têm suas praticas pautadas pela teologia da prosperidade (CAMPOS, L.S.,
1996 p.521), que significa uma troca simbólica de promessas supostamente divinas de que os
fieis tem, em troca de sacrifícios financeiros, o direito-dever de se tornarem ricos e
prósperos3.

Em que pese à popularidade alcançada, ou a grande colocação na mídia, não é nem de longe o
maior representante do pentecostalismo no Brasil, perto das Assembleias de Deus (AD).
Segundos dados do IBGE, as maiores representações somadas do neopentecostalismo não se
aproximam das ADs que na menor das contagens chega a quinze milhões de membros.
Segundo o IBGE a IURD tem 1.873.000 (um milhão oitocentos e setenta três mil membros).
A IIGD não aparece nas pesquisas do IBGE, mas segundo uma entrevista dada a revista
Enfoque Gospel, com seu fundador o missionário R.R. Soares, que auto atribui-se a cerca de
900.000 (novecentos mil) membros, não há porque duvidar, sendo que em apenas uma
pregação no estado do RJ na Enseada de Botafogo, no chamado “Dia da Decisão”, em
comemoração às quatro décadas de jornada ministerial de seu líder, cerca de 200 mil pessoas
compareceram (REVISTA ENFOQUE GOSPEL, 2012). A IMPD tem 315.000 (trezentos e
quinze mil membros) (IBGE, 2010), outras somadas chegam a 400.000 tais como o Ministério
Mudança de Vida, Renascer em Cristo, da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra , e
do Ministério Internacional da Restauração. Todas essas juntas não chegam a um terço das
Assembleias de Deus (ADs).

Mudanças diversas presentes e vindouras. Diferenças de costume

As ADs e igrejas derivadas a que denominar-se-á igrejas pentecostais ortodoxas, não estão
isentas de mudanças diversas, que estão ocorrendo bem agora, sobretudo nos últimos 5 anos
(de 2007 em diante). Vários eventos proporcionaram tais mudanças. A explosão Gospel
3
uma análise aprofundada de seu discurso revela em sub tom, de que as pessoas que forem fieis em dízimos e
ofertas tem não só o direito, mas o dever de serem prósperas (entenda-se ricas) e que em caso contrario deve
existir algum pecado ou demônio atrapalhando a prosperidade dessa pessoa.

1031
ocorrida na década de 1990 (CUNHA, 2007 p.9). A influência sempre histórica das igrejas
norte-americanas, cujo discurso e teologia foram mudados após os acontecimentos de
setembro de 2001. Outro em 2004 quando ocorre à saída da AD Madureira da CGADB.
Também a ordenação de mulheres a partir de 2005. Outro com a crescente influência de
Algumas ADs na mídia. Digno de nota é a mudança de discurso e sua grande influencia
teológica dos eventos promovidos pelos Gideões Missionários da Ultima Hora. Também vale
lembrar a crescente influencia teológica da CPAD e da CGADB, ou seja, há novas
instituições influenciando as Igrejas pentecostais ortodoxas.

As ADs tradicionalmente são conhecidas por impor uma adequação moral aos seus membros
no que se refere as vestimentas, impõe um jugo pesado inadequado ao clima brasileiro,
tachando o que é ou não uma roupa decente. No seu livro o pastor Ricardo Gondim (2005,
prefacio)4 denuncia o pesado jugo a qual estão dispostos tais pessoas. Essa é uma visão
fundamentalista, mas que tem mudado, porem há muito ainda que mudar.

Para a maioria das ADs não se pode cortar cabelo para as mulheres, homens não podem ter
cabelo comprido, de preferência o corte deve ser padronizado como o do pastor ou raspado,
mulheres só podem usar saia comprida, no mínimo abaixo do joelho, homens podem andar de
calça social e camisa, preferencialmente comprida, mas os obreiros no culto só podem portar
terno e gravata, não importa o calor (ROLIM CARTAXO, 1987 p. 18).

As assembleias de Deus depois de meados da década de 1940, tem se dividido em ministérios,


que seguem mais ou menos a mesma matriz, aceitam os costumes umas das outras, convidam
pregadores umas das outras para pregarem, mas estão divididas em ministérios a quais não
tem, na pratica, diferenças nos costumes, porem são feitos para beneficiar uma visão5
(poucos) ou uma família de lideres cuja liderança é passada de pai para filho (ALENCAR,
2005 p.102).

São inúmeros os ministérios, os mais numerosos são: Ministério Belém, Ministério Ipiranga,
Assembleia de Deus Missionária, Assembleia de Deus Ministério Missão, filiadas a CGADB. Há
inúmeras outras não filiadas tais como, AD Kairos, AD Restauração, AD Fama, etc... vale a
pena registrar a Assembleia de Deus Madureira, que só perde para números de fiéis para a AD

4
Pastor da Assembleia de Deus por 15 anos, o pastor Ricardo Gondim com 50 anos de idade e vivência dentro
dessa igreja, observou muita coisas nela e depois abriu sua própria igreja (Igreja Evangélica Betesda) por não
acreditar em certas regras e costumes impostos pelas ADs.
5
Por exemplo a AD missionária tem a visão de implantar missões em vários locais do Brasil e do mundo o vice
presidente ao contrario da maioria dos ministérios não é filho nem genro nem parente do presidente.

1032
Belém, e tem sua própria convenção: A CONAMAD - Convenção Nacional das Assembleias
de Deus no Brasil do Ministério de Madureira. Porém, todas podem ser caracterizadas por
certos códigos de comportamento que as caracteriza além da roupa: repetem em tom
monocórdio versículos bíblicos, ao menos em tese não falam gírias e palavrões, evitam ouvir
musicas mundanas e frequentar eventos mundanos. Não pode, varias coisas, ver tevê, praticar
esporte e cultuar ritmos musicais brasileiros, as crianças não podiam brincar de futebol,
bicicleta ou nadar , nem praticar esportes ou ir a praia. A justificativa é ao mesmo tempo
Simples e definitiva: são coisas do mundo ou do diabo6. Essa é uma visão fundamentalista
bíblica que impunha certa interpretação de lideranças mas que mudou nos últimos anos.

Porem há mudanças, no segundo maior ministério7 das ADs. A Assembleias de Deus


ministério Madureira tem mudado radicalmente seu costume. A veiculação anunciado por
jornais gospel de todo o pais confirma a facilmente verificável8 a mudança as quais passam.
Agora ficou muito mais visível e isso acaba ou acabara interferindo em outras assembleias de
Deus, sob o risco de perder fieis:

No templo do Brás, porém, às 19h30 do domingo 15, um grupo de cerca de vinte fiéis fazia
coreografias, ao lado do púlpito, ao som de uma batida funkeada. Seus componentes –
mulheres maquiadas e com cabelos curtos tingidos, calça jeans justa e joias combinando
com o salto alto; homens usando camiseta e exibindo corte de cabelo black power – outrora
sofreriam sanções, como uma expulsão, por conta de tais “ousadias”. Mas ali eram
ovacionados por uma plateia formada por gente vestida de forma parecida, bem informal.
Palmas, também proibidas nas celebrações tradicionais, eram requisitadas pelo pastor
Samuel de Castro Ferreira, líder do templo e um dos responsáveis por essa mudança de
mentalidade (...)Sua Assembleia do “pode” tem agradado aos fiéis. “Meu pai não permitia
que eu pintasse as unhas, raspasse os pelos ou cortasse o cabelo”, conta a dona de casa
Jussara da Silva, 49 anos. “Furei as orelhas só depois dos 40 anos. Faz pouco tempo,
também, que faço luzes”, afirma Raquel Monteiro Pedro, 47 anos, gerente administrativa.
Devidamente maquiadas, as duas desfilavam seus cabelos curtos e tingidos adornados por
joias pelo salão do Brás, cuja arquitetura, mais parecida com a de um anfiteatro, também se
distingue das igrejas mais conservadoras. (CARDOSO, 2011)

6
Para alguns fiéis é a mesma coisa pois interpretam ao pé da letra a passagem bíblica descrita em 1Jo 5.19
"Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno."
7
Ver mais detalhes na reportagem - Um pastor moderno entre os radicais jornal mídia gospel de 20 de novembro
de 2011, disponível em http://www.midiagospel.com.br/variedades/noticias/assembleia-de-deus-sem-usos-e-
costumes acessado em 12/dez/2012.
8
Basta ir a qualquer culto.

1033
Tais mudanças se encontram em franca aceitação pelos fieis e afetam outras Assembleias de
Deus e igrejas, que cada vez mais rompem com tradições, a AD do Bom Retiro com mais de
7.000 membros que pode ser citada como exemplo (SANTOS CORREA, 2008 .p.56), mas a
maioria das ADs ainda mantém seus costumes.

Especialmente frente à juventude das igrejas já há uma franca mudança de comportamento,


tais como uso de camisetas (na maioria sempre se referindo a algo bíblico), uso de calça jeans
e corte de cabelo (as mulheres ainda mantêm comprido, mas não mais até a cintura). Parte
disso se deve também ao crescimento de grifes evangélicas que produzem roupas de cunho
cristão, mas com corte moderno, atendendo a uma fatia do mercado antes inexplorada e agora
em franca expansão (CUNHA, 2007 p.47). Ainda na maioria das igrejas pentecostais
tradicionais ou ortodoxas é obrigatório tanto fora como dentro da igreja o uso de roupas
“decentes”, só que o que é decente tem sido mudado9, a 40ª CGADB (Convenção Geral das
Assembleias de Deus no Brasil), realizada em abril de 2012 em Cuiabá retificou o que é ou
não decente (GCABD, 2012).

Mudanças em relação ao gênero

Quanto a ordenação de mulheres, após anos de papel de submissão e de incapacidade de


ordenação, isso agora mudou. Já é aceito desde que no dia 23 de abril de 2005, quando foi
sagrada pastora, a cantora gospel Cassiane, fato que entrou para a história da Assembleia de
Deus. Foi consagrada a primeira pastora da denominação centenária, e indo contra a maioria
do posicionamento da instituição10: o pastoreado feminino. Vale registrar que já existem como
ordenadas pastoras, a Elizete Malafaia, esposa de Silas Malafaia é um conhecido exemplo,
dentre outras ordenações cada vez mais crescentes. Porem não é unânime em todos os
ministérios, o que questiona a força das CGADB que reconheceu tais ordenações, mas ainda
não se posicionou nem contra nem a favor da ordenação feminina (GOSPEL PRIME – 2011),
porem certas mudanças em questão de gênero são claramente perceptíveis.

9
Se baseiam na Bíblia em 1 epistola a Timóteo 2.9.
10
Apesar de haver ordenação ainda há muita resistência, a resistência está centrada nas igrejas que ainda não tem
pastoras ou não convidaram pastoras para pregar, após isso ocorrer a resistência pouco a pouco se dissolve
(GOSPEL PRIME – 2011).

1034
Embora nunca ordenadas, às mulheres e solteiros já tiveram nos anos 30 e 40 um papel
importante nas ADs, porem o que ocorreu de 1940 até 1990 foi um conservadorismo
extremado (ALENCAR, 2010 p. 76) que implicou em uma fase de machismo em franco
declínio da década de 2000 para os dias de hoje.

Ultimamente tem se observado uma força maior da CGADB (Convenção Geral das
Assembleias de Deus do Brasil) no que se refere às questões teológicas e diminuindo sua
força em questões de doutrina11. Isso se deve ao fato de multiplicar as denominações
associadas sendo impossível unificar por enquanto a doutrina de cada igreja. Creio que se
deve também a certo medo de sair da convenção como aconteceu com a AD Madureira. Em
seu site oficial, ela é definida como “uma igreja evangélica pentecostal que prima pela
ortodoxia doutrinária.”

Ainda há certo machismo, sempre tradicional nas ADs (MARIZ, 1994 p.12), esse machismo é
inclusive aceito pela maioria das mulheres, que se põe em papel de submissão visto que há o
entendimento geral, entre os homens e a maioria das mulheres de que a Bíblia diz assim
(MACHADO, 1996 p.199). Esse machismo se manifesta de varias maneiras, desde a
aceitação geral de que não poderia haver mulheres pastoras, como a ideia de que mulher não
trabalha, e que quem sustenta a casa é o homem (IDEM). Porem essa visão têm mudado, há
tempos vários pastores, em que pese o machismo na pratica de suas vidas pessoais diárias,
dizem em seus discursos e pregações que é grande o papel das mulheres no movimento
pentecostal, esse entendimento é compactuado em anos de observação12 e também na Bíblia
de Estudo Pentecostal (1995) nos comentários de provérbios 31.10-31, como no Dicionário de
movimento Pentecostal (ARAUJO, 2007, verbete mulheres). Não há já algum tempo a
separação de homens e mulheres nas igrejas da ADs, ainda continuam praticá-la a
Congregação Cristã do Brasil e a IPDA.

Sempre reconhecem a importância da mulher, mas as relegam ao serviço social e de oração da


igreja, porem algo pouco relatado é o preconceito que as mulheres tem delas mesmas, é
observado que mulheres que trabalham fora, “não estão na visão”, e que o “certo seria não
trabalhar”. Porem com a emancipação recente da mulher e a crescente conquista dos seus
direitos esse preconceito tem diminuído, ainda mais porque houve a percepção de que família
em que a mulher trabalhava aumentava a arrecadação do dizimo. Os cultos ultimamente têm
11
Logo será objeto de artigo próprio.
12
O autor é presbítero da assembleia de Deus missionária de Bauru há mais de 7 anos, é evangélico há mais de
10 anos, foi consagrado a pastor em janeiro de 2013 é também pregador itinerante visitando varias ADs no país.

1035
dado grande importância para as mulheres e são homenageadas e chamadas para vários outros
trabalhos na igreja13. Pode ser ou não por interesse, mas a mulher tem sido mais valorizada.

Quanto à moral sobre o casamento ainda é soberano o fato de se manter a família, quase que a
qualquer custo14, sabe-se que o pentecostalismo tem uma visão machista (MARIZ, 1994
p.192), e o divorcio não era aceito pelas ADs porem o preconceito com mulheres separadas
antes de serem convertidas já inexiste, e está diminuído o preconceito com mulheres
separadas antes da sua conversão15, porem estas são estimuladas a perdoar e continuar com
seus maridos, o divorcio antes impensável hoje é possível apenas na possibilidade de
adultério, e mesmo assim a pessoa deve ser “tratada espiritualmente” antes de se relacionar de
novo com alguém16. O que antigamente era impossível. Ainda é um assunto tabu e desafio
para a igreja (STRECK, 2007 p.32), porem o poder da mulher dentro da igreja tem aumentado
e proporcionalmente a isso o apoio e diminuição de preconceito ao divorcio também
(FONSECA; MARIN; NASCIMENTO DE FARIAS, 2010 p.28).

Os pentecostais tradicionais demonizavam a televisão até ocorrer dois fatores: a influencia e o


sucesso dos televangelistas nos anos 1970. Há de se considerar o crescente acesso econômico
para a televisão, ficava fácil demonizar algo que não tinha acesso, desde 1990 ficou permitido
à televisão para ver desde que se evitasse programas de nudez ou indecentes, estimulando
apenas aos programas religiosos e telejornais. Hoje, face e esses fenômenos, é permitida a
televisão, tanto que ocorre a boca miúda o seguinte exemplo de testemunho: o Assembleiano
antigamente dando testemunhos17 no púlpito – “irmãos, Jesus me salvou e já vendi a
televisão”; já o Assembleiano hoje dando testemunhos – “irmãos, Jesus me abençoou e já
comprei três televisores”. Já rádio, especialmente programas evangélicos foi permitido, mas
só após ampla discussão na década de 1940 (ALENCAR, 2010 p. 72).

Evidentemente o maior acesso a mídia, a televisão introduziu novas idéias antes impensáveis
as irmãs, tal como acesso a moda, ideários de beleza, que embora manipuláveis por uma
13
Por exemplo, a esposa do autor consagrada a diaconisa, como é publicitária e designer é constantemente
procurada para fazer a arte dos cartazes, de outdoors e outros, ou seja é a designer oficial da AD missionária de
Bauru e de outras igrejas co-irmãs.
14
Mesmo em caso de traição e agressão familiar há o estimulo para que o membro vitima perdoe o outro e haja
reconciliação de casal, o ministério de casal tem sido um dos mais poderosos das igrejas.
15
Ha pouco preconceito com homem separado ou divorciado, tanto é que ha vários pastores consagrados que são
separados, porém todos passam por “tratamento espiritual” nesse caso, que pode ser alguns anos ou meses sem
pregar, estando no Banco sendo orientado por um pastor e tendo um grupo de intercessores orando por ele(a).
16
As convenções omitem muita coisa, a CGADB apenas diz que é para manter a família, mas se omite em caso
de divorcio.
17
Testemunhos são oportunidades para que pessoas que não são pregadores falem das suas experiências
religiosas.

1036
industria cultural de interesses escusos deu novas escolhas as pertencentes as assembléias de
Deus em sua auto-imagem (MIRA, 2003 p. 40), alem do mais o acesso ao computador e a
internet, trouxe tremenda possibilidade de comunicação informacional ao mundo pentecostal
(CAMPOS JR, 2012 p. 14) , no que se refere a opressão tradicionalmente machista da Ad’s
trouxe uma liberdade de trocas de idéias e conversas para as crentes femininas antes
impossível e restrita ao seu circulo de amizade.

Trouxe diversas idéias antes totalmente alienadas alem do padrão de beleza, trouxe também a
ideia de introdução no mercado de trabalho e ideários de independência financeira trazidas
pelo capitalismo.

Teologia da prosperidade X teologia da salvação

A prosperidade para Assembleia de Deus é uma visão bem diferente das neopentecostais.
Essas seguem a teologia ou evangelho da prosperidade que teve suas origens nos EUA, por
volta dos anos 30 e 40 (MARIANO, 1999, p. 151). No Brasil, segundo Mariano (idem, p.
157), a Teologia da Prosperidade iniciou a sua trajetória nos anos 70, penetrando em muitas
igrejas e ministérios, em especial: Internacional da Graça, Universal, Renascer em Cristo,
Sara Nossa Terra, nova Vida, Bíblica da Paz, Verbo da Vida, Cristo Salva, Cristo Vive,
Nacional do Senhor Jesus Cristo. Cada uma delas deu de diferentes maneiras e de diferentes
modos as doutrinas desse evangelho da prosperidade que se baseava em escritos de Hagin tais
como: "Não ore mais por dinheiro [...] Exija tudo o que precisar." (HAGIN, p. 17 apud
ROMEIRO, 1998, p. 43, grifos nossos). A Teologia da Prosperidade encontrou terreno fértil
no Brasil a partir os anos 70, encontrando espaço nos grupos evangélicos pentecostais. Após
certo tempo os pentecostais verdadeiros começaram a rejeitá-lo (PIERATT, 1993 p.81) o que
ocasionou, para quem acreditava uma ampla difusão de novas igrejas e divisões que
acreditavam nesse tipo de evangelho. Surgiram daí as chamadas igrejas neopentecostais.

A prosperidade para os Assembleianos não significam ter vários carros, belas casas, ter um
alto salário, ou uma vida com fartura de bens materiais como é pregada pelas igrejas
neopentecostais, e sim paz harmonia e segurança, em varias pregações é constante a definição
“prosperidade é viver bem com aquilo que Deus permite que você viva”. Ou seja, é um ato
continuo de gratidão a Deus pelo que você tem não uma luta para conquistar coisas que o fiel
ainda não tem.

1037
Isso gera um verdadeiro conflito para o fiel, porque ele ouve num dia desses grandes
pregadores, seja ao vivo ou na radio, a teologia da prosperidade, mas na sua igreja, também
assembleiana, o pastor alerta para o cuidado das falsidades da teologia da prosperidade. Na
bíblia de estudo pentecostal (CPAD – 1995), no estudo “Riqueza e Pobreza” observa-se a
seguinte afirmação: “o crente não deve se preocupar com acúmulos materiais nem amontoar
bens...para o cristão as verdadeiras riquezas são o amor e fé...”. O que ocorre é que certos
germes da teologia da prosperidade tem entrado entre os pentecostais tradicionais fazendo
com que muitos creiam nisso, o que pode explicar o crescimento tanto da ADs, que estão
aceitando tais mensagens mas não com ponto central da sua teologia que ainda é a salvação
das almas.

Simplesmente as igrejas pentecostais ortodoxas estão sofrendo influencia de outras


pentecostais, tais como as neopentecostais e deutero- pentecostais. Assim há diversas e
inúmeras mudanças no que chamamos de pentecostais ortodoxos inclusive nas relações de
gênero.

Aos poucos a teologia da prosperidade tem chegado aos pentecostais ortodoxos, se por um
lado aliena e escraviza os seus fieis, por outro possibilita uma coisa no que se refere ao
gênero, induz a mulher a procurar e se inserir no mercado do trabalho. Antes a mulher que era
relegada as tarefas do lar era o modelo a ser seguido, porem agora o modelo é a da mulher
formada, empresaria e principalmente dizimista na Igreja.

Considerações finais

Como pode se notar as igrejas pentecostais a que se classificam aqui de pentecostais


ortodoxas, especialmente as Assembleias de Deus, passam por profundas mudanças em
seus direcionamentos morais e teológicos. O mundo está passando por grandes mudanças
em todas as áreas. Mudanças há sempre na história, mas a intensidade do momento é única.

A mídia também muda o modo de com a igreja se relaciona com o seu fiel e vice versa.
Correa (2000, p.87) afirma: "A relação que é criada através da mídia social, oferece
exatamente a associação que se busca no espaço público", assim o fiel antes negado no
espaço publico pela discrepância econômica, o encontra na igreja, na mídia social em vários
espaços, este começa a aparecer e a gostar disso, o sentimento de humildade cristão vai

1038
sumindo, e criando novas relações sociais dentro do grupo religioso que muda cada vez
mais as Igrejas.

Note-se que é a mensagem da teologia da prosperidade e da estrutura organizacional da


Igreja, a conversão do mercado religioso, os fiéis e como a religião influencia cada vez
mais mudanças em uma causalidade circular. É o surgimento de uma comunidade religiosa,
que é de consumo de bens, e de um sentido de pertença, onde há uma reunião simbólica de
interesses a partir de um encurtamento da distancia através da mídia em influenciar suas
teologias e práticas tradicionais mesmo entre os pentecostais ortodoxos. Aliado a isso, há
um medo da perda de fieis por parte da liderança da Igreja, esses então permitem certas
mudanças que devem ser cuidadosamente a estudadas, a fim de direcionar o estudo do
campo religioso brasileiro atual.

É necessário um novo estudo religioso e a constante observação participante para manter


atualizado o estudos dessas religiões que preocupam pela sua cada vez mais crescente
influencia na política e economia.

Não vamos dizer que já há uma total independência da mulher, alias independência é um
conceito contraio na tradição pentecostal seja para homem seja para mulher. Porem já alguns
passos tem sido dados e isso é motivo para se observar um avanço nas relações de gênero
nessa pertença religiosa. Claro que ainda existem as Ad’s que mantém o seu tradicionalismo
machista (ex as AD’s ministério Ipiranga que ainda mantem homens e mulheres em lados
opostos da igreja) mas isto devem mudar com a constante influencia apontadas nesse
trabalho.

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1042
1043
O uso do corão como justificativa para ações de violência urbana
Magno Paganelli 1

Introdução

Os atentados de 11 de setembro deram ocasião à farta produção a respeito do Islã. A mídia o


apresentou como religião violenta. Desde então, tocar no tema foi questão “proibida” e fazer
associações dessa natureza não foi atitude elegante e respeitosa. Passados doze anos, a
questão merece ser mais bem estudada.

O Ocidente ouve com frequência o tom do discurso das grandes religiões pautado pela
convergência de temas que promovam a paz, a convivência pacífica e harmoniosa, o diálogo,
o entendimento entre os povos e a justiça social para todos. No sentido da promoção do
entendimento na “trinca” monoteísta, a Universidade de Harvard desenvolve projeto de
cooperação e diálogo para esses três ramos, chamado Abraham Path (Caminho de Abraão),
reunindo seus líderes para atividades conjuntas.

Embora a preocupação com piedade, espiritualidade e demandas por justiça social esteja
presente na tradição islâmica, elementos ditos negativos da modernidade penetraram esta
tradição religiosa e interferiram (ou reorientaram) no seu discurso. Há autores dando conta
que a modernidade provocou reação de repúdio dentro do Islã. A chamada modernidade, aqui
nomeada contemporaneidade, parece não ter “atualizado” o discurso religioso no Islã no que
toca a promoção da paz e do entendimento em grupos político-religiosos como a Irmandade
Muçulmana, o Hesbollah e o Hamas. Vemos isto nas obras de seus teóricos e em discursos de
seus líderes.

Os resultados da manutenção e recorrência desse discurso primitivo que remonta à fundação


do Islã os vemos hoje em diferentes pontos do planeta. Na virada para o século 21, a “missão”
islâmica e islamita (usando nomenclatura de Demant, 2004), tem exportado para o Ocidente
modelo religioso que já havia sido rejeitado na Europa desde a Revolução Francesa. A
laicização do Estado e o racionalismo presentes na sociedade europeia foram o modelo
reproduzido para as Américas e enviado para alguns países e regiões no Oriente Médio e
1
Mestrando em Ciências da Religião pelo Mackenzie com bolsa CAPES, bacharel em Teologia (Unida de
Vitória/ES) com especialização em Novo Testamento, licenciatura em Pedagogia. Membro do GE do
Pentecostalismo (Mackenzie/CnPQ) e GT Oriente Médio e Mundo Muçulmano (USP). Está sendo orientado
pelo prof. Dr. Ricardo Bitun. Contato: paganelli.magno@gmail.com.

1044
Ásia. O Islã rejeitou a tendência ocidental e reagiu a ela, buscando um modelo de fé,
sociedade e política que se arroga o direito de ditar o modo de governar (DEMANT, 2004, pp.
210,211), interferir na economia e se fazer presente na sociedade.

Como o Islã nasceu em cultura distante e estranha aos costumes Ocidentais, a proposta da
presente pesquisa é útil à medida que constatará como pensam os islâmicos e os islamitas a
partir das suas convicções religiosas e culturais, quais são essas convicções e de onde vêm.
Feito isso, procurará demonstrar a orientação ideológica para uma postura política, econômica
e social orientada pelos interesses religiosos – ou se verificará o contrário: uma proposta de
política totalitária que se serve do discurso religioso com inclinação para o totalitarismo ou
teocracia.

A pesquisa

A região da faixa de Gaza, de população muçulmana que ocupa a Palestina, está sob o
controle do Hamas (sigla de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de
Resistência). É neste Movimento que a pesquisa se concentrará, haja vista ser um grupo com
forte expressão na região e no cenário internacional, em função do êxito alcançado nas
recentes eleições.
O Hamas é uma das expressões mais exatas e vigorosas da ideologia islamita, que
compreende os setores político, religioso, social e até mesmo econômico e familiar. Assim, a
pesquisa analisará o conteúdo de obras que tratem a ideologia da violência que levou à criação
do Hamas a procura de vínculos dessa ideologia com o Corão. Dentro da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, a temática está enquadrada em uma das linhas contempladas pelo
Programa de pós-graduação, relacionada à área de concentração “Ciências Sociais, Religião e
Sociedade”, que estuda “Religião e Violência”. Suprirá, ainda, uma lacuna na pesquisa atual,
à medida que olhar para o Islã e para a ocorrência de um pensamento e postura pública que
destoam de toda uma tradição já estabelecida de que “o Islã é uma religião da paz”.
Como o Hamas surgiu na década de 1980, será necessário identificar as necessidades que
trouxeram para a contemporaneidade o trabalho realizado pelos intérpretes do Corão e
teóricos da teologia islâmica sobre o pensamento original de Muhammad. Quem são e o que
ensinam os teóricos islâmicos sobre o papel e a missão da comunidade e do indivíduo? Que
expectativas têm sido nutridas nessa nova tradição?

1045
Pesquisa preliminar realizada na literatura publicada pela própria comunidade islâmica não
fundamentalista demonstra haver uma orquestração de forças disponíveis (o petróleo que
financia, a mídia que convoca, o contingente humano que avança) com o fim de estabelecer
em nível global o totalitarismo da ummah – a comunidade islâmica regida pela sharia, a lei
islâmica. A motivação para este avanço se orienta por uma perspectiva messianista.
Se, de fato, o Islã é uma religião da paz e se isso está claro para seus adeptos, como justificar
os recorrentes atos de violência tão marcadamente expressa nas manifestações do Hamas e de
grupos similares? A pergunta central que se coloca é “o Corão fornece base ideológica que
estimula a violência e o terrorismo do Hamas?”.
Tem sido dito que islâmicos e ocidentais não compartilham o mesmo sistema de valores e a
mídia ocidental, não entendendo a dinâmica desse grupo, reproduz os fatos pela sua ótica,
distorcendo-os em relação ao que realmente ocorre.
Trabalharei com a hipótese de que há uma interpretação do Corão e da tradição, os haddiths,
que fornecem a base ideológica para a violência e os atos terroristas promovidos pelo Hamas,
e não a situação de fronteira, a “fricção étnica”.
O Corão e os haddiths formaram no pensamento dos islamitas uma caricatura do chamado
“infiel”, seja ele judeu, cristão ou outro grupo étnico ou religioso que apoie esses dois ramos.
Nessa caricatura, quem não crê e não professa a fé do Profeta e do seu deus são inferiores,
traidores e precisam ser eliminados.
Para Andréa Bueno Buoro (1999, p. 40), a violência é hoje questão de direitos e privilégios. O
que poderia ser direito de uns pode rapidamente ser convertido em privilégio, assim, todos se
tornam suspeitos em algum momento, uns pela violência silenciosa e dissimulada, outros pelo
terrorismo explícito e chocante.

É na fronteira entre grupos que reside o núcleo ou estopim do problema. O Hamas só encontra
razão para organizar-se em função deste conflito de fronteira. Daí que a pesquisa certamente
será enriquecida pela participação e comunicação neste 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º
Simpósio Internacional da ABHR – Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas.

O desenvolvimento da pesquisa

1046
Embora já venha estudando o Islã há três anos em caráter independente, a pesquisa acadêmica
está em fase inicial. A pesquisa fará revisão na literatura de obras publicadas por especialistas.
A revisão bibliográfica tem contemplado as obras que tratam do tema da violência, dentro do
seguinte quadro.
Inicialmente busca a definição adequada de violência fazendo breve reconstrução da história
da violência a partir de Andréa Bueno Buoro, Violência urbana: dilemas e desafios.
(BUORO, 1999)
Andrea Buoro e as demais autoras da obra, especialistas da USP em violência, apresentam
panorama do tema introduzindo a perspectiva histórica em culturas como da Europa. À
medida que o Estado assume seu papel na regulação da sociedade, menos o indivíduo pode
vingar os danos sofridos e mais o Estado ou a polícia assumem a responsabilidade de fazê-lo.
Após o Renascimento, surgiram leis que estabeleceram meios de defender direitos
particulares. Essa pacificação contribuiu com a formação de consciência sobre limites,
fazendo com que a violência se tornasse estranha no relacionamento humano.

Também tem sido consultada Violência urbana, de Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme Assis
de Almeida (2003), ambos especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A obra
norteará a definição de violência sobre a qual a pesquisa se apoiará. Da obra interessa-nos o
Capítulo 1, O que é a violência?, onde os autores pontuam a definição do que é a violência no
modo básico e dão definição ampla de violência cobrindo outros níveis que não os mais
visíveis pelo observador comum. Em seguida, relatam a importância de considerar o contexto
social onde ela ocorre, apontando valores culturais considerados violentos a uma cultura, mas
não necessariamente a outras.

Da exposição que o autor apresenta e das distinções que faz dos usos distintos entre força e
violência, encontramos uma orientação que apoia nossa pesquisa no que diz respeito à
definição do estamos querendo dizer quando falamos em violência. Seguindo o próprio
raciocínio, Pinheiro traz para o seu texto a definição de violência dada pela Organização
Mundial da Saúde, OMS.

O uso intencional da força física ou do poder, real ou potencial, contra si próprio, contra
outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento
ou privação. E. G. Krug, Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde. Brasília:
OMS/Opas/UNDP/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2002. (PINHEIRO e
ALMEIDA, 2003, p. 16)

1047
A definição da OMS abrange inúmeros casos como negligência, abusos físicos, sexuais,
psicológicos, suicídio, auto abuso etc., formas de violência que acarretam opressão a pessoas,
famílias, comunidades, sistemas de saúde. Além de atos de violência ativos e reativos. É a
partir dessa definição que farei minhas referências na pesquisa.

Outra obra utilizada é O mundo muçulmano, de Peter Demant (2004). O autor é historiador
holandês, professor do Departamento de História na USP e especialista em questões do
Oriente Médio, esteve ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e
palestinos.

Depois de demonstrar o desenvolvimento das correntes dentro do islã em diferentes culturas e


sob vários governos, Demant situa o momento quando ocorreu a influência da modernidade e
da globalização na estrutura social muçulmana. Como desdobramento desse encontro de
ideologias, o autor trata das ondas fundamentalistas, dividindo-as em três: de 1967-1981, a
dos anos 1980 e a onda islamita de 1991-2001. A utilização da obra de Peter Demant será útil,
ainda, pelo fato de ser robusta em informações históricas que servirão de parâmetro para esta
pesquisa.

Como referencial teórico, a pesquisa se apoiará na obra de René Girard, A violência e o


sagrado (GIRARD, 1990), núcleo da teoria mimética desenvolvida pelo autor. Segundo o
próprio autor, a teoria mimética ou teoria imitativa é uma explicação da violência do
comportamento humano e da violência na cultura humana.

O desejo humano é fundamentalmente mimético ou imitativo. Ninguém deseja por iniciativa


própria – como na Renascença – mas desejamos especificamente o mesmo objeto desejado
por aquele a quem elegemos como nosso modelo. Desejamos por imitação. O nosso desejo é
derivado do desejo do outro, que adotamos como nosso modelo.

Seguindo a metodologia de Girard, que trabalha com a literatura ao elaborar sua teoria, a
metodologia proposta para a nossa pesquisa contempla a reconstrução da história, que deverá
ser esboçada a trajetória do Islã desde a sua fundação até o surgimento do Hamas, a fim de
prover contextualização necessária a melhor compreensão do tema.

Posterior a essa reconstrução da história, o período eleito se concentrará no tempo de


existência do Movimento, fundado no ano de 1987. Seguiremos o Método proposto por
Laurence Bardin (BARDIN, 1979, pp. 93-95), da análise de conteúdo em 3 partes:

1048
a. Pré-análise

b. Exploração do material

c. O tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.

Finalmente, deverão ser esboçados e analisados o tipo de ordem social e ideológica em que
tais ideias e temas conceituais possam lançar luz a nossa compreensão do objeto estudado e
como a hipótese se comportará diante da pesquisa.

Violência e ideologia

Cerca de 40 homens foram capturados e levados para uma delegacia por um grupo de
policiais. Ismail Helou, 22, estava trabalhando como frentista. Outro, Rajou Hayek, 33, levava
seu pai, um cadeirante, a uma clínica médica; foi algemado e obrigado por oito homens a
entrar num jipe da polícia e levado para a delegacia. A acusação? Eram palestinos com
aparência de ocidentais: corte de cabelo ou calça com cintura baixa. Foram espancados,
tiveram os cabelos raspados e sofreram humilhação.2

Quando notícias assim são lidas nos cantos do planeta, parte das pessoas fica com a respiração
suspensa, pois a alguns a informação passa a mensagem de violência contra seres humanos. E
quando a notícia reporta a morte de uma única pessoa – quando não dezenas, vítima da
explosão de um homem-bomba?

A notícia citada dá conta de ação sistemática ocorrida em Gaza pelo Hamas. Mas não é
situação nova nem exclusiva do grupo. Dines (VVAA, 1997, p. 63), há quase vinte anos,
falava de situação análoga:

Os fundamentalistas islâmicos do Norte da África e do Oriente Médio pretendem preservar-


se da decadência do Ocidente, preservando seus usos e costumes. Mas adotam a brutal e
sanguinária prática política daqueles que pretendem a eliminação em massa e a solução
final.

2
Gaza police shaving heads of young men in crackdown on western fashion, The Guardian. Disponível em
<http://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/29/gaza-police-shaving-heads-men-western>. Acesso em 09 jul
2013.

1049
Talvez devêssemos perguntar se atos como esses são considerados violentos aos olhos dos
habitantes locais.

Ideologias não religiosas também matam. James Kennedy (2003, pp. 299-300) aponta que
Estados ateus totalitários –orientados por ideologia política antirreligiosa, somados aos
massacres de Stálin, Mao Tsé e Hitler, além das Grandes Guerras, mataram mais de 130
milhões de seres humanos somente no século 20. E se adicionarmos à religião, um ingrediente
como uma ideologia política? Teremos um efeito altamente explosivo?

É preciso discutir a relação da religião como influência no comportamento humano, ou seja, a


ideologia que é e os efeitos que traz. Precisamos estabelecer uma relação minimamente
aceitável, um acordo ou base comum sobre o que é a violência dentro das diferentes culturas,
ou o que tem sido considerado violência em nossos dias.

A violência

Marilena Chauí diz que a brecada mais brusca do motorista de ônibus também é manifestação
de violência, “um ato de violência” (VVAA, 1997, p. 130), mas um ato não visto pela
sociedade, brasileira no caso, por conta do que chama “sistema dos preconceitos” (VVAA,
1997, p. 117). Esse sistema é a condensação do senso comum em torno do qual dado
pensamento ou sensação são admitidos como verdade para uma comunidade. Como é um pré-
conceito, a formulação é concebida anteriormente a todo e qualquer ato do grupo e usado por
este como emblema das pseudo virtudes pelas quais espera ser visto. Segundo a autora, o
preconceito serve para o exercício da dominação, pois dá ao dominado a ilusão de que tudo
está explicado e justificado; não há o que temer: o preconceito “se tornou a forma de
segurança num mundo, enfim, tornado transparente.” (VVAA, 1997, p. 119)

Chauí apresenta um sistema para driblar a convivência do fato com o relato, das ocorrências
com as consciências. O sistema consiste de três mecanismos diretos e três procedimentos
indiretos. Interessam-nos aqui os três mecanismos.

O primeiro é o mecanismo da exclusão. Usando como exemplo o próprio caso brasileiro, no


mecanismo da exclusão afirma-se que o povo da terra é não-violento e, portanto, qualquer
violência situada nos termos da nação é praticada por não-brasileiros, mesmo que o infrator
seja nascido e registrado no país.

1050
Esse recurso é usado por Maria Clara Luccheti Bingemer (2002, p. 225) ao dizer que “grupos
que atualmente aparecem se auto intitulando ‘islâmicos’, não podem ser considerados
aleatoriamente como tais. É necessário sim um juízo crítico e aguçado para saber detectar
quem são realmente estes grupos e quais são seus interesses”.

O segundo mecanismo apontado por Chauí é o mecanismo da distinção entre o essencial e o


acidental. Se naturalmente ou em sua essência o povo brasileiro é não-violento, então todo
registro de violência nessa sociedade não pode fazer parte da essência do povo, pois isso é
antinatural. (BINGEMER, 2002, p. 121)

Por último, o mecanismo das máscaras, de certo modo parecido com o primeiro. Aqui ocorre
a separação entre o nós e o eles, sendo que cada um de nós pode, acidentalmente, estar entre o
eles. Mas para que fique claro esse mascaramento, é preciso dar uma identidade própria a uns
e outros, para que a violência, quando vier, seja vista como ocorrida ou provocada por um
não-brasileiro, o outro.

O clássico de Georges Eugène Sorel, Reflexões sobre a violência, traz no prefácio de Jacques
Julliard indicação de que o tema do livro “encontramo-lo no ponto de intersecção de três
conceitos”, dos quais o segundo nos interessa. Ele “diz respeito, sobretudo à sociologia, é a
violência, mais precisamente o papel da violência nas relações entre classes e no
desenvolvimento histórico”. (SOREL, 1992, p. 7) Sorel introduz sua distinção célebre,
propondo chamar de força os atos da autoridade, e de violência os atos de revolta. A primeira
é obra do Estado; a segunda, do proletariado. (Ibidem, p. 11)

Para Sorel, o Estado deve usar a força como meio de garantir a ordem social pela qual a
minoria governará. A força do Estado é legítima, e a execução da “justiça” das mãos pelo
povo para os braços fortes do Estado, a violência passa a ser vista como quebra da ordem
social; a destruição dessa ordem que o Estado garantirá. Todo ato visando a acomodação de
interesses dentro da sociedade, e que não é desencadeado pelo Estado, não é uso da força, mas
da violência. (1992, p. 11) Ainda para Sorel, o conceito que se tem de justiça é remodelado
pelo tempo e pela cultura. Ele alinha o seu pensamento ao de Pascal e diz que a justiça existe
“conforme Deus no-la quis revelar”. Como os deuses diferem entre os povos, a justiça sofre
suas variações em função da fé. (SOREL, 1992, p. 37)

Sorel introduz uma questão que considera “gravíssima”, e é relevante a esta pesquisa,
chamando a atenção para diferenças culturais na definição da violência. Atos de violência

1051
funcionam bem no contexto da greve geral e geram a “ideologia socialista, rica e sublime”,
não observada como lei universal. Assim, em outros países as coisas não funcionam da
mesma maneira. Por quê? A sua resposta é que “as tradições nacionais desempenham aqui um
grande papel.” (1992, p. 240)

Por “tradições nacionais” certamente Sorel entende o ambiente todo de uma sociedade ou
civilização. Democratas e socialistas tinham claramente delineada a noção de Justiça, a
despeito da fissura. Então ele se contradiz? Não, a diferença está na moral, tema caríssimo a
Sorel. A legitimidade da ação envolvendo a violência está ligada à noção de moral, e é aqui
que a “concepção de futuro ... mais fundamental do socialismo oficial de hoje” se distingue:
ele está pouco ligando para a moral. (SOREL, 1992, p. 244)

Sorel diz que “o papel da religião é prover a ‘moral’ que mantem o proletário, no capitalismo,
submisso. Os intelectuais admitem a religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a
religião e dê condições iguais a todos por meio do Estado.” (SOREL, 1992, p. 265) Resposta
óbvia. E ideal para o Islã, que se inclina ao socialismo porque ele se opõe ao capitalismo
democrático e porque o povo é posto em pé de igualdade, em submissão ao que dita o Profeta.
A analogia entre as hordas de trabalhadores grevistas e as milícias das guerras da Liberdade
chega a ser feita por Sorel, que diz essas “curiosas analogias que existem entre as qualidades
mais notáveis dos soldados” e “exigidas de um trabalhador livre numa sociedade altamente
progressista” levam-nos a “um resultado satisfatório”. (SOREL, 1992, p. 218)

Apoiado na literatura francesa produzida na época da Revolução, ele descobre que os


soldados não se viam como uma peça integrante de uma engrenagem. Ao contrário, ele
verificou que “cada soldado sentia-se como uma personagem tendo de fazer algo muito
importante na batalha” frente aos “homens livres dos exércitos republicanos aos autômatos
dos exércitos da realeza” (SOREL, 1992, p. 218), o que o Islã de hoje chama colonizadores.

Semelhante à construção da saga muçulmana na dominação inicial na península arábica e


posteriormente nas conquistas iniciais sob comando dos califas “bem guiados”, a literatura
produzida exerceu papel fundamental quando elaborou o mito e consolidou a mensagem e a
imagem a permanecer e entrar para a história. Sorel chega a dizer que o registro que a
literatura produzida posteriormente imediatamente após a Revolução “não é totalmente
mentirosa quando relata um número tão grande de frases grandiloquentes que teriam sido
lançadas por combatentes. (SOREL, 1992, p. 269) Mas essas frases foram buriladas nas

1052
escrivaninhas de “homens de letras, habituados a manejar a declamação clássica”. Não podia
haver retrato mais fiel do Islã quando narra suas glórias dos tempos ideais da comunidade do
Profeta em Yatrib.

Assim, para justificar a violência na revolução por meio das lutas geradas pela defesa dos
valores entre classes, sociedades ou civilizações, Sorel apropria-se da tese de Harnack, que
havia defendido que os mártires do Cristianismo não teriam sido muitos como a história quer
fazer crer. Os mártires não foram de fato muitos, embora a “revolução” causada pelo
Cristianismo tivesse sido sólida o suficiente para estabelecer-se. (SOREL, 1992, pp. 206-210)

A sua conclusão neste ponto é, mais uma vez, óbvia. O socialismo é bastante razoável e
“perfeitamente revolucionário”, pois mesmo com uns poucos e breves conflitos, esses são
ampliados, como o foram os relatos de martírio no Cristianismo, mas que guardadas as
devidas proporções (catastróficas), a “civilização não corre o risco de sucumbir sob as
consequências de um novo desenvolvimento da brutalidade”. (SOREL, 1992, p. 210)

Portanto, a morte, nestas condições, fica justificada para o autor.

Preconceito e Ideologia

O próximo passo será verificar no que se constitui uma ideologia, uma vez que partirei da
hipótese de que determinada interpretação do Corão tem sido feita de modo a consolidar uma
ideologia que promove violência. Como a violência perpetrada pelo Hamas sistematicamente
tem os judeus (e cristãos?) como alvo, não seria o caso de tal ideologia ser formulada sobre
bases preconceituosas?

Se assim for, José Leon Crochík, poderá lançar alguma luz no entendimento do que vem a ser
o preconceito por meio de sua obra Preconceito, indivíduo e cultura.(2006) A formação de
um indivíduo se dá na sua relação com a cultura e Crochík reconhece dois modos de o
indivíduo relacionar-se com ela. Um, é quando o indivíduo não reage à cultura, tornando sua
experiência acrítica. O outro modo é diferenciando-se da cultura, não reconhecendo a
contribuição que ela deu para a sua formação. “Como a experiência e a reflexão são as bases
da constituição do indivíduo, sua ausência caracteriza-se o preconceito. Mas a base do
preconceito não é essa ausência “e, sim, o que as impede: a ruptura com o mundo que o
preconceituoso percebe como demasiado ameaçador.” (CROCHÍK, 2006, p. 15)

1053
Crochík aponta para “complicações” no conceito de preconceito, como a que “se refere a que
o indivíduo preconceituoso tende a desenvolver preconceitos em relação a diversos objetos –
ao judeu, ao negro, ao homossexual etc.” (2006, p. 13). É o caso encontrado à partir da leitura
simples do Corão. A convivência entre o Profeta do Islã e os grupos de judeus na Península
arábica era conflituosa, em Meca e em Medina. Muhammad imprimiu em seu texto as suas
diferenças com os grupos de judeus, como também as diferenças com os “renegadores do
sábado” ou “macacos”, os cristãos. É a partir de tal situação que muçulmanos de hoje
manifestem algum preconceito contra os mesmos grupos.

Crochík considera a religião, como a filosofia e a própria ciência, ideologias que geram
estereótipos, como o preconceito cultural religioso. Sendo uma ideologia com o ingrediente
do estereótipo, os preconceitos culturais podem ser admitidos como “a justificativa para a
dominação.” (2006, p. 39) Assim ele já antecipa uma definição de ideologia como “a tentativa
de se justificar qualquer forma de dominação.” (Ibidem) Configurado este quadro – o
preconceito que cria o estereótipo, o estereótipo que impregna a cultura, a cultura que é
elaborada em ideologia e a ideologia que rege o indivíduo, têm-se a expressão de uma
sociedade totalitária. (CROCHÍK, 2006, p. 39)

Se a cultura e o indivíduo reagem de forma primitiva às ameaças reais ou imaginárias,


não é inusitado dizer que mais do que engendrar o preconceito no indivíduo, a cultura
cria os seus próprios, e os indivíduos os introjetam. [...] a necessidade da produção do
preconceito pela cultura se localiza no passado que precisa ser re-elaborado, posto que a
ameaça inicial à qual tenta responder já pode ser enfrentada sem que a sobrevivência se
coloque em risco. (CROCHÍK, 2006, p. 43)

Essa “volta ao passado” é que precisa estar em mente quando pensamos o Islã hoje. Dadas as
circunstâncias originais nas quais foi criado, o anseio por viver os tempos de ouro como em
Meca ou Medina estabelece um olhar constante para o passado quando tribos árabes se
digladiaram com comunidades judaicas e cristãs que estavam estabelecidas naqueles dois
centros urbanos e esses conflitos são inevitavelmente transportados para nossos dias num
revival espiritual, cultural e político. Tanto o indivíduo quando a cultura carregam os mesmos
preconceitos do passado (CROCHÍK, 2006, p. 39, p. 49) e se a cultura vivida há 1.400 anos
deve ser mantida e revivida, igualmente será violência:

Embora tenhamos visto uma boa definição de ideologia antecipada por Leon Crochík, é
preciso averiguar o termo com mais densidade. O texto de Roberto Cardoso de Oliveira é um

1054
clássico do assunto. Oliveira dá uma interessante contribuição ao registrar a “Teoria da
fricção interétnica” (1976, p. 15) que enquadra a “situação de contato entre grupos étnicos
irreversivelmente vinculados uns aos outros, a despeito das contradições”. (1976, p. 27, nota
14). Essas contradições são manifestas nas tensões e conflitos gerados no contato entre etnias,
e nos valem a atenção neste momento porque o Hamas foi criado dentro deste contexto
específico e é fruto de tensões da uma fricção interétnica existente na Palestina.

A preservação da identidade é possível pela exaltação da ideologia. É a ideologia que


promove a manutenção da identidade em nível individual e também coletivo. “As ideologias
são representações coletivas” (OLIVEIRA, 1976, 1976, p. 21) de modo que “identidade e
ideologia são dois aspectos de um mesmo processo” (OLIVEIRA, 1976, p. 35) que visa o
amadurecimento e o fortalecimento individual. À medida que se constrói e se reforça a
identidade, espera-se que as diferenças sejam mais demarcadas: surge o outro, que Oliveira
chamará de “identidade contrastiva”. (OLIVEIRA, 1976, p. 37) No caso do Islã isso tem um
nome: Casa do Islã – o nós – e Casa da Guerra – os outros. 3

Feitas essas distinções, Oliveira dá ao leitor a sua definição de ideologia, incluindo o conceito
de outros pensadores que moldaram o seu próprio entendimento sobre o tema. O primeiro é
Erick Erickson. Mais condensada, mas não menos refinada, é a definição do segundo
pensador, Nicos Poulantzas.4 Para Poulantzas:

... a ideologia consiste, realmente, em um nível objetivo específico, em um conjunto com


coerência relativa de representações, valores, crenças; do mesmo modo que os “homens”,
os agentes em uma formação, participam também em atividades religiosas morais, estéticas,
filosóficas. (OLIVEIRA, 1976, p. 39)

A definição concorda com a de Erickson, em haver um sistema, um emaranhado fluído que


constrói um discurso interno para explicar e justificar o mecanismo de funcionamento interno
na sociedade, e a partir desse discurso todas as incoerências poderão ser explicadas e lhe
parecerão previstas pelo discurso.

Oliveira admite a dependência de Poulantzas que concebe “ideologia como forma em que se
assumem representações.” (OLIVEIRA, 1976, p. 39, itálicos no original) A ideologia é
formulada no discurso que constrói uma realidade, explica o mundo por meio de um sistema
3
Do árabe, Dar-al-islam significa casa do Islã ou terra do Islã e indica o território onde predomina a presença
islâmica. Contrariamente há a Dar-al-harb, casa da guerra, que é o território onde predominam de infiéis.
4
Oliveira trabalha a partir da obra de Nicos POULANTZAS, denominada Clases sociales y poder politico en el
Estado Capitalista (1969, pp. 263,264).

1055
social que aglutina sistemas menores que integram a sociedade, como política, economia,
religião, relações entre grupos/tribos, estética, costumes, tradições e as próprias inovações que
ela pretende implantar. O discurso ideológico, então, serve “para eliminar contradições no
sistema social.” (OLIVEIRA, 1976, p. 39) Por isso é preciso olhar para as formulações de
Muhammad como ideologia, uma vez que na exposição do seu discurso, os grupos politeístas,
e principalmente os monoteístas judeus e cristãos, poderiam – como de fato o fizeram –
contradizer as propostas da nova religião.

“Nesse sentido”, prossegue Oliveira, “a ideologia pode ser consciente ou inconsciente.”


(OLIVEIRA, 1976, p. 39) Muhammad e os companheiros que o ajudaram a estabelecer e,
posteriormente, a consolidar o Islã, não eram conscientes de estarem formando uma
ideologia? O Profeta construiu um discurso que explicava a situação da Arábia a partir do
discurso existente nas comunidades judaica e cristã, e na formulação que deu ao seu texto, o
Corão, eliminou as “contradições” que judeus e cristãos que havia, segundo ele, corrompido
as suas Escrituras, para alcançar seus objetivos, ou seguindo rigorosamente Oliveira, “para
certos fins” (OLIVEIRA, 1976, p. 39).

Considerações finais

Feitas essas disposições, a pesquisa seguirá reconstruindo a história do surgimento e expansão


do Islã. Serão utilizadas obras de arabistas e historiadores com reconhecida identificação com
o Islã, especialistas da Academia como também obras produzidas pela própria comunidade
muçulmana.

Esta “reconstrução” levará em conta a situação político social da península arábica do tempo
do Profeta, seguirá o roteiro de grupos e pensadores que influenciaram o Islã nos rumos que a
religião tomou no relacionamento com outros grupos religiosos, sociais e étnicos. Serão
contemplados os séculos iniciais, o período escolástico com a devida atenção aos movimentos
recentes, até o início da segunda metade do século 20, quando há maior efervescência dos
grupos de resistência no Oriente Médio, em especial no Egito e, consequentemente, na
Palestina.

Finalmente, a concentração da pesquisa será sobre o Hamas, desde a sua fundação, os


pensadores que lançaram as bases do pensamento do Movimento, procurando a existência de

1056
uma relação direta com uma interpretação tendenciosa do Corão, voltada para uma ideologia
que se serve da violência e destoa do Islã tradicional que, segundo autores contemporâneos
têm destacado, deram ampla contribuição para as artes, as ciências e para a humanidade.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.

BINGEMER, Maria Clara Luccheti. Violência e religião, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora
Puc/Loyola, 2002.

BUORO, Andréa Bueno [et. al.]. Violência urbana: dilemas e desafios, 3a edição. São Paulo:
Atual, 1999.

CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

DEMANT, Peter. O mundo islâmico. São Paulo: Contexto, 2004.

GIRARD, René. A violência e o sagrado, 2ª edição. São Paulo: Unesp [Paz e Terra], 1990.

__________; ANTONELLO, Pierpaolo; CASTRO ROCHA, João Cezar de. Evolução e


conversão, 1ª edição. São Paulo: É Realizações Editora, 2010.

KENNEDY, James C. E se Jesus não tivesse nascido? São Paulo: Vida, 2003.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira,
1976.

PINHEIRO, Paulo Sérgio & ALMEIDA, Guilherme Assis de. Violência urbana, Folha
Explica. São Paulo: Publifolha, 2003.

POULANTZAS, Nicos. Clases sociales y poder politico en el Estado Capitalista. México:


Siglo Veintiuno Editores S.A., 1969.

SOREL, Georges. Reflexões sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

VV.AA. O preconceito. São Paulo: Imesp [Imprensa Oficial do Estado], 1997.

1057
1058
Solus christus: exclusivismo cristão e tolerância religiosa
Alceu Lourenço de Souza Junior1

Introdução

Está na natureza das religiões oferecer respostas a questões transcendentes como a natureza
do mundo e da vida, decorrendo disso sua condição de formadoras da visão de mundo de
indivíduos e sociedades. Talvez daí, sua tendência para abranger a totalidade da vida do
indivíduo e da sociedade – e de perceberem umas às outras como concorrentes.

Entretanto, no mundo contemporâneo tem sido urgente que as religiões (re)elaborem suas
relações inter-religiosas visando a preservação tanto de suas identidades e existência, quanto
do próprio tecido e paz social. O Cristianismo, religião de um terço da humanidade, não tem
ficado imune a esta pressão. O problema que se apresenta, então, é como articular a tolerância
religiosa sem abrir mão dos fundamentos cristãos nem comprometer sua identidade histórica
própria.

Este trabalho investiga a intolerância religiosa na Igreja Cristã, materializada em inúmeros e


conhecidos episódios da História Eclesiástica. Analisa o exclusivismo do Cristianismo no seu
discurso fundante conforme sustentado pelo seu ramo fundamentalista – o ensino claramente
exclusivista de Jesus de Nazaré e seus apóstolos – e sua relação com a intolerância religiosa, e
propõe uma base para a tolerância religiosa a partir do próprio exclusivismo do Cristo
sustentado ainda hoje pelas alas fundamentalistas do Cristianismo.

Cristianismo, poder, intolerância e secularismo

Nos primeiros séculos do Cristianismo, os cristãos eram objeto da intolerância religiosa, com
as perseguições promovidas pelo Estado romano. Entretanto, com a união entre a Igreja e o
Estado a partir do Imperador Constantino, no início do 4º século, a igreja cristã passou a
sujeito da intolerância contra indivíduos e grupos considerados heréticos. Inicialmente,
impunha-se o banimento, a prisão e o confisco de bens dos hereges; posteriormente, a punição

1
Bacharel em Teologia pela EST da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluno do stricto sensu do PPG em
Ciências da Religião do Centro de Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da mesma instituição. Bolsista do
Instituto Presbiteriano Mackenzie. Contato: alceujmc@hotmail.com.

1059
incluiu a execução pública. As primeiras pessoas a serem executadas por heresia na história
do cristianismo foram o bispo espanhol Prisciliano e seis simpatizantes, decapitados por
ordem do imperador Teodósio I no ano 385. Poucas décadas mais tarde, Agostinho, que
inicialmente defendeu a conversão dos cismáticos por meio de evangelização, apoiou o uso da
coerção estatal contra o movimento donatista, no norte da África. Durante a Idade Média,
intensificaram-se as perseguições da igreja com o apoio estatal contra indivíduos e grupos
considerados heterodoxos. A partir do século XII, foi criado um tribunal eclesiástico especial
para julgar heresias – a inquisição – que tinha autoridade para receber e averiguar denúncias,
para obter confissões, inclusive pela tortura, e determinar a necessidade de punição pública, a
cargo das autoridades civis. Entre as vítimas estavam praticantes de alguma forma de religião
pagã ou sincretismo (acusadas de bruxaria) e judeus (acusados de falsa conversão) (MATOS,
2012).

Na Europa durante os anos de polêmica entre católicos e protestantes, a tolerância religiosa


por muitas vezes foi mera “ferramenta de estratégia política prática” (FERNANDEZ-
ARMESTO; WILSON, 1997, p. 320) – usada como argumento pela facção alijada do poder
político num dado momento, mas descartada quando de posse desse poder. Encontramos
inúmeras ilustrações disso na História Eclesiástica, sendo um dos episódios mais brutais o
massacre do Dia de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, na França. O casamento da
princesa Margarete de Valois, filha de Catarina de Médicis, com o príncipe protestante
Henrique de Navarra fez com que toda a elite dos huguenotes (protestantes franceses) se
ajuntasse em Paris para a celebração, na expectativa de um protestante na linha sucessória do
trono francês. Mas a elite católica, com o apoio da rainha Catarina, tramaram o assassinato da
liderança huguenote na calada da noite. Entretanto, seu ataque serviu de estopim a uma
multidão descontrolada de extremistas que multiplicaram sua ferocidade nos dias que se
seguiram por grande parte da França, até as províncias. Uma estimativa contemporânea
calculou o saldo de mortos em cerca de trinta mil (ARMESTO-WILSON, 1997, p. 317). Os
conflitos continuaram intermitentemente por mais dezesseis anos, até que o príncipe
protestante subisse ao trono, abrindo mão de seu protestantismo e convertendo-se ao
catolicismo em favor da paz civil. Seu Édito de Nantes, de 1598, resultado de anos de
negociação com as lideranças religiosas adversárias, concedia direitos religiosos à minoria
huguenote, deixando-os praticar sua religião particularmente, em lugares previamente
designados. A tolerância só foi alcançada por meio da separação geográfica (CLOUSE-
PIERARD-YAMAUCHI, 2003, p. 257).

1060
Na Grã-Bretanha, após o rompimento de Rei Henrique VIII com o papado por ver recusado
seu pedido para divorciar-se de Catarina de Aragão (porque esta não lhe dera herdeiro homem
após dezoito anos de casamento), uma igreja nacional surgira em 1534. Independente de
Roma, a Igreja Anglicana era conduzida pelos bispos, sob o comando supremo do rei. Durante
o reinado de Maria Tudor, “a Sanguinária” (1553-1558), houve uma tentativa de restaurar o
catolicismo romano, com a execução de centenas de protestantes. Sob Elizabete I (1558-1603)
o anglicanismo foi oficialmente restabelecido; porém, sofria pela tensão interna entre
diferentes grupos: anglicanos, católicos, congregacionais e presbiterianos. A partir de 1661,
no reinado de Charles II, alguns ministros que desejavam uma igreja nos moldes da Reforma
Protestante, denominados de “puritanos”, passaram a sofrer perseguição, sendo impedidos de
pregar, expulsos de suas paróquias e até exilados. Mais de dois mil clérigos perderam seus
cargos e cinco mil pessoas foram presas (CLOUSE; PIERARD; YAMAUCHI, 2003, p. 271).

Nos Países Baixos, o calvinismo da Igreja Reformada Holandesa foi desafiado por um
professor de Teologia, Jacó Armínio, que iniciou uma controvérsia ao ensinar e defender que
o decreto divino de salvação e o sacrifício de Jesus na cruz visam todos os seres humanos, que
cada um pode resistir ou aceitar a graça salvadora e, portanto, pode perder a graça uma vez
desfrutada. Mesmo após sua morte, seus seguidores continuaram defendendo suas ideias, e foi
convocado em 1618 o Sínodo de Dort para debate-las; o sínodo as rejeitou por meio de cinco
cânones que reafirmavam a doutrina calvinista ortodoxa (conhecidos até hoje como “Cinco
pontos do calvinismo”, ou pelo acróstico em inglês TULIP). Os treze ministros arminianos
foram proibidos de pastorear e ensinar, e quando se recusaram a assinar sua carta de
demissão, foram exilados. Clouse, Pierard e Yamauchi (2003, p. 274) demonstram que a
punição dos arminianos tinha uma dimensão de interesse político, conforme o Príncipe
Maurício de Nassau pode se livrar de adversários políticos que apoiavam os arminianos;
quando Maurício morreu, os arminianos puderam restabelecer suas igrejas nas províncias
holandesas.

Nos Estados Unidos, após uma tentativa de estabelecer uma “comunidade santa” em
Massachusets, houve uma crescente tolerância religiosa e separação entre estado e igreja.
Walzer (1999, p. 88) avalia que a liberdade religiosa norte-americana se deve a um processo
de “protestantização”, no qual cada religião adquiriu todo o direito de manter crenças e fiéis,
desde que sua associação fosse livre e a coexistência com as outras religiões fosse pacífica.

1061
A História demonstra cabalmente que, conforme uma religião consegue cooptar para si o
poder político, ele será usado para reprimir ou oprimir as religiões rivais. Como constata com
tristeza Chelikani (1999, p. 51), a verdade é que, “frequentemente, as religiões praticam duas
interpretações opostas da tolerância – uma em que são majoritárias e uma outra em que são
minoritárias”. Daí, que “a finalidade da separação entre Igreja e Estado nos regimes modernos
é negar poder político a todas as autoridades religiosas, partindo da suposição realista de que
todas são pelo menos potencialmente intolerantes. Quando esta negação é eficaz, elas podem
aprender a tolerância; melhor dizendo, aprendem a viver como se possuíssem essa virtude.”
(WALZER, 1999, p. 105).

Assim, a sociedade moderna obriga instituições religiosas concorrentes a se entenderem bem


ou mal, já “que não podem esperar que o poder do Estado obrigue as pessoas à frequência ao
culto, também não podem esperar que o Estado elimine as rivais” (BERGER; LUCKMANN,
2005, p. 61).

Cristianismo, tolerância e inclusivismo

O século 17 viu o surgimento de um dos mais importantes movimentos intelectuais da


História: o Iluminismo. Começando na França, os ideais iluministas se espalharam pela
Alemanha, Áustria, Rússia, Grã-Bretanha, Itália, Espanha e, tardiamente, nos Estados Unidos.
Seus escritores propalavam a completa transformação da sociedade pelo primado da Razão, e
por isso, voltaram-se especialmente contra alguns aspectos da religião institucionalizada. Sua
influência racionalista alcançou muitos pensadores cristãos, moldando novas perspectivas
religiosas. O Deísmo, por exemplo, entendia que a igreja cristã de sua época representava uma
corrupção do cristianismo puro. Os deístas rejeitavam a Bíblia como fruto da superstição
primitiva e enfatizavam a revelação natural de Deus nas leis da natureza e da consciência
humana; defendiam uma religião minimalista, composta da convicção na existência do
Criador e na fraternidade de todos os homens, despida de rituais, clero, milagres ou dogmas.
Diante das descobertas de civilizações inteiras que desconheciam completamente Jesus Cristo
(na China e Índia, por exemplo), eles concluíram que o cristianismo era apenas uma dentre
inúmeras religiões igualmente válidas – ainda que, possivelmente, a mais evoluída.
Naturalmente, o Deísmo pregava uma irrestrita tolerância religiosa, liberdade cara aos líderes

1062
fundadores dos Estados Unidos, identificados, na maioria, como deístas (CLOUSE;
PIERARD; YAMAUCHI, 2003, p. 360-362).

Outro nome-chave desta época é Friedrich Schlaiermacher, que no início do século XIX
começou a questionar o exclusivismo do cristianismo. Para o teólogo luterano, a religião é um
profundo sentimento de dependência de Deus, e todas as religiões são manifestações desta
consciência religiosa universal, da qual o cristianismo seria apenas a forma mais desenvolvida
e livre de superstições (CAMPOS, 1997, p. 37). Rejeitando os aspectos sobrenaturais da fé
cristã, como a encarnação divina em Cristo, os milagres e a revelação escrita, Schlaiermacher
foi o mais influente teólogo do século 19, considerado o fundador da moderna teologia
protestante (CONSTANZA, 2005, p. 89).

No final do século XIX, houve um movimento crescente entre os pensadores protestantes,


denominado “liberalismo teológico”, que pretendia conciliar a fé cristã com as modernas
descobertas científicas, especialmente o darwinismo. Este movimento causou grande
polêmica, pois defendia uma completa reinterpretação da Bíblia e dos dogmas cristãos
históricos de modo a rejeitar os aspectos sobrenaturais da doutrina cristã. No auge da
controvérsia modernista nos Estados Unidos, J. Gresham Machen, teólogo presbiteriano,
expõe as discrepâncias entre o ensino do cristianismo histórico e os conceitos racionalistas e
naturalistas defendidos pelos teólogos comprometidos com o liberalismo. Machen (2001, p.
109) demonstra que o resultado de submeter a fé cristã aos critérios do cientificismo da época
foi um ataque aos próprios fundamentos do cristianismo; visto que são duas religiões
diferentes, e não apenas tradições diferentes do cristianismo (como se dá entre diferentes
denominações cristãs), a implicação lógica conduzida por Machem é de que os liberais
deveriam apartar-se das igrejas confessionais (MACHEN, 2001, p. 159).

A reação conservadora originou o movimento denominado “fundamentalismo” com a


publicação de uma série de estudos reafirmando2 doutrinas históricas do cristianismo em
contraposição às novas interpretações modernistas. O fundamentalismo protestante norte-
americano se mostrou crescentemente intolerante. Por exemplo, Augustus N. Lopes, após
delinear histórica e teologicamente o movimento, alista entre seus pontos negativos
exatamente a intolerância que os fundamentalistas em geral mantêm em relação às demais
tradições cristãs – inclusive aquelas conservadoras – até mesmo quando divergem em
questões menores, que não afetam os pontos fundamentais da fé. Ele descreve uma

2
The fundamentals foi recentemente publicado no Brasil:

1063
“mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e
critério da ortodoxia” (LOPES, 2010, p. 39).

No extremo oposto do espectro da tolerância religiosa, estava o liberalismo teológico.


Segundo sumariza Vasconcelos (2008, p. 24), os liberais mantinham uma ênfase quase
exclusiva no Deus que é um Pai amoroso, em completo detrimento de aspectos de julgamento
de pecados. Tinham uma visão positiva da humanidade, na qual todos, inclusive pagãos, são
filhos de Deus. Viam Jesus Cristo como o homem perfeito, um modelo a ser imitado e um
mestre a ser seguido, mas não o Homem-Deus que morreu para salvar seus eleitos. Para
manter tais perspectivas inovadoras, os teólogos liberais adotaram uma visão da Bíblia como
um livro histórico comum, que testificava da religiosidade israelita e cristã primitiva – sem,
contudo, autoridade normativa para o cristianismo moderno. Destes aspectos, já se pode
deduzir a natureza essencialmente tolerante e ecumênica do liberalismo teológico: Se ser
cristão era imitar Cristo, amar ao próximo e fazer o bem, segue-se que não há diferença
essencial entre o Cristianismo e as demais religiões, já que quase todas ensinam que devemos
amar o próximo e fazer o bem.

De fato, tanto o “evangelho social” quanto o ecumenismo floresceram no século XX a partir


de líderes comprometidos com o liberalismo teológico, em maior ou menor grau. Ao diminuir
a importância do dogma bíblico-teológico, o protestantismo liberal procurou enfatizar o
ensino ético e o exemplo de Jesus, elevado a aspecto decisivo e peculiar da identidade cristã.
Obviamente, como lembra Pe. Nogueira (1997, p. 50), a preocupação com os pobres e com a
justiça, a acolhida do próximo e do estrangeiro não são exclusividade dos cristãos. O
movimento ecumênico moderno tem conseguido agregar diversas tradições religiosas cristãs,
e se apresentado como abertura ao diálogo inter-religioso mundial; mas tem se mostrado
infrutífero em conquistar o apoio e adesão das alas fundamentalistas do protestantismo que o
gerou. E o motivo não é outro, senão a própria decisão em prol da práxis em detrimento do
dogma. Para um fundamentalista, não faz sentido algum proclamar o estilo de vida
exemplificado em Jesus sem referência à identidade e missão únicas do Cristo.

O pluralismo religioso que provém da linhagem teológica do deísmo e do liberalismo se


manifesta no cristianismo da seguinte forma: “Nós devemos afirmar que Jesus Cristo é
Salvador, mas não podemos afirmar que ele é a única forma de o homem alcançar salvação.
Ele é uma dentre as muitas outras formas de o Deus infinito revelar-se” (CAMPOS, 1997, p.

1064
40). Campos conclui que no pluralismo religioso não há uma religião verdadeira – e podemos
questionar se há alguma religião falsa.

Cristianismo, contemporaneidade e tolerância

A tolerância religiosa foi sendo instituída aos poucos e hesitantemente na Europa pós-
Reforma, não pela misericórdia dos religiosos, mas pela conveniência dos governantes, por
razões de estado. Inadvertidamente, serviu de pano de fundo para o secularismo que
predominaria nas sociedades contemporâneas. Os historiadores Fernandez-Armesto e Wilson
(1997, p. 322, 326-327) chegam à conclusão que a tolerância promovida oficialmente
incentivou as pessoas a confundir secularismo político (a afirmação de que todas as
convicções religiosas são de igual valor perante a lei) com secularismo filosófico (a negação
de que elas tenham qualquer valor). Adiante, afirmam: “A tolerância secular abandona a
verdade objetiva e adota o relativismo; nega o absolutismo moral e afirma a liberdade de
escolha; depõe Deus para coroar o indivíduo” (FERNADEZ-ARMESTO; WILSON, 1997, p.
392). Berger e Luckmann (2005, p. 47-49), por outro lado, questionam a bem estabelecida
“teoria da secularização” como explicação suficiente para a perda de credibilidade da
interpretação religiosa na consciência das pessoas. Estes sociólogos afirmam que, com raras e
notáveis exceções, o indivíduo moderno comum ainda carece de “instituições medianeiras” de
sentido, e destacam que a religião continua entre as principais.

Segundo Peter Berger (1985, p. 60-62) é essencial para a manutenção do tecido social aquilo
que ele denomina “estruturas de plausibilidade” – estruturas de pensamento aceitas de
maneira abrangente e inquestionada por determinada cultura. Entretanto, em sociedades de
grande diversidade cultural (como a nossa) os indivíduos mantêm poucas instâncias em
comum. Em decorrência, estas tendem a ser sustentadas com maior tenacidade, como se
fossem percebidas como inegociáveis e essenciais para a manutenção daquela sociedade.
Donald Carson (2012, p. 2) sugere que o conceito de tolerância adquiriu tal status na
sociedade ocidental pós-moderna: numa sociedade tão fragmentada e multicultural, a
tolerância é vista como elemento imprescindível à sobrevivência social e individual.

Entretanto, em razão do próprio pluralismo dominante em nossa sociedade, as pessoas


deparam com uma pluralidade de esquemas de sentidos e, mesmo que adotem um deles como
verdadeiro, tendem a vê-lo como resultado de escolha pessoal, não como absoluto. Portanto:

1065
está aberta a possibilidade de que outros discordem da escolha uns dos outros, como está
aberta a possiblidade de que cada um venha a escolher diferentemente no futuro (BERGER;
LUCKMANN, 2005, p. 60-61). Portanto, a sociedade pluralista requer do Estado laicidade e
secularismo, e igualmente requer das religiões tolerância, mesmo que seja forçada e
antipática.

Rao Chelikani (1999, p. 59-60) traz uma contribuição interessante para o fomento da
tolerância como atitude individual; ele propõe três atitudes de tolerância: 1) Dúvida: o
questionamento de suas próprias crenças ou, pelo menos, do modo como elas foram
assimiladas pessoalmente; e também o diálogo com o outro para garantir minha compreensão
acerca da sua posição e para encoraja-lo a se questionar também. 2) Segurança: convicto de
que há um engano na posição do outro, busco convencê-lo de seu erro ou, ao menos, de que
minha posição deve igualmente ser tolerada por ele. 3) Indiferença: permaneço discordando
do outro, sem que isso implique juízo de valor a ele enquanto pessoa nem animosidade. Mas
quanto ao papel das religiões na busca da tolerância, Chelikani erra ao combater
especialmente o proselitismo: “Em um mundo superpovoado é desnecessário empreender uma
corrida para a conversão religiosa. A liberdade de converter-se e a liberdade de converter os
outros são duas coisas diferentes” (CHELIKANI, 1999, p. 72). Mesmo adeptos de religiões
não exclusivistas podem justificar seu proselitismo, pois, como vimos, na sociedade pluralista
a religião é uma escolha pessoal, significando uma decisão pelo que se considera a melhor
opção. Portanto, a “liberdade de converter” está ligada à “liberdade de converter-se” como
partes da liberdade religiosa. Chelikani parece ignorar algo da própria natureza das religiões,
como formadoras e organizadoras de sentido, pois o fiel não busca meramente trazer
crescimento à sua agremiação religiosa, mas trazer o infiel para a verdade – que ele já
conhece e deseja compartilhar. Assim, por mais que o pluralismo implique tolerância, não
resulta necessariamente eliminação das diferenças:

O homem globalizado é, em geral, pluralista. Ele tenta harmonizar propostas divergentes,


considerando-as igualmente válidas. A ferramenta básica dessa linha é o “inclusivismo”. A
religiosidade geral dos nossos dias deixou para trás os ideais dos sincretistas, que pensavam
em unir todas as religiões do mundo em uma só irmandade de fé. Afinal, diziam e ainda
dizem os sincretistas remanescentes: “Todos os caminhos levam a Deus; caminhemos,
então, irmanados, juntos”. O pluralista fala um pouco diferente: “Todos os caminhos levam
a Deus; caminhemos, mas separados”; cada um com a “sua verdade” (ARANTES, 2005, p.
69).

1066
Cristianismo, evangelho e exclusivismo

Podemos inicialmente concordar com a tese de que o monoteísmo tende à intolerância de


outras religiões, necessariamente vistas como falsidades religiosas, já que há um único Deus
verdadeiro. E mesmo quando prevalecem sobre outras formas religiosas, as religiões
monoteístas passam a disputar externamente e internamente. Como lembra Silva (2010, p.
153), embora o Deus de ambos seja o mesmo, o cristianismo rapidamente se tornou
adversário do judaísmo; e depois sofreu inúmeras cisões com respeito às várias formas de
conceber Deus e aos interesses políticos e religiosos em jogo em cada época, acirrando
disputas internas e multiplicando externas.

Além do aspecto geral de intolerância inerente aos monoteísmos, a fé cristã é exclusivista


também em relação ao meio pelo qual alguém se achega à divindade. Não foi o próprio Jesus
quem se definiu como único caminho até Deus? Que afirmou que a vida eterna de alguém
depende de seu conhecimento e reconhecimento dele mesmo como o enviado de Deus? Que
se autoproclamou o único capaz de revelar o Pai, a quem desejasse fazê-lo?3 Seus seguidores
imediatos o apresentaram como o caminho definitivo, exclusivo e suficiente para Deus, na
qualidade de único mediador salvífico entre o Pai e os homens.4 Mais que isso, afirmaram que
a salvação dos homens dependia de conhecerem a mensagem que proclamavam. 5 Estavam
dispostos a se sujeitar a todo tipo de perseguição religiosa para levar o evangelho. Poderiam
seus seguidores posteriores rejeitar estas afirmações categóricas sem perder o direito de serem
chamados seus discípulos? Pode-se contestar a afirmação de Machen de que o liberalismo
representava outra religião, que não o cristianismo, mas não há como negar que mudanças em
aspectos básicos da fé cristã, como o ensino sobre Deus, Jesus Cristo, a humanidade e a
salvação comprometem seriamente a continuidade entre a igreja cristã e Jesus de Nazaré.

A História Eclesiástica nos ensina sobre a tendência da Igreja à intolerância, quando aliada ao
poder do Estado ou simplesmente em maioria numérica; mas também nos ensina sobre o
perigo da perda de identidade religiosa, quando abre mão de suas doutrinas para poder
estreitar laços com outras tradições religiosas. Em ambos os casos, a Igreja se torna menos
que cristã.

3
Cf. João 14.6; 17.3; Mateus 11.27.
4
Cf. 1Timóteo 2.5 e Atos 4.12.
5
Cf. Romanos 10.13-14

1067
Cristianismo, salvação e tolerância

É sabido que o termo “fundamentalismo” deixou seu contexto histórico da controvérsia


modernista norte-americana do início do século XX para se globalizar. Hoje, tem sido
utilizado no sentido mais abrangente para designar quaisquer religiosidades conservadoras e
intolerantes. As caraterísticas mais destacadas do fundamentalismo nesta acepção são: a) “a
defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da modernidade” e b) a
militância política para viabilizar as pretensões do grupo no âmbito da sociedade
(VASCONCELOS, 2008, p. 38-39).

Conforme o escopo deste trabalho, manteremos o uso de “fundamentalismo” próximo de seu


significado histórico inicial, de apego às doutrinas históricas do cristianismo como
fundamentos inegociáveis da fé cristã verdadeira. Afinal, conforme vimos, as formas de
intolerância (interna e externa) manifestadas no fundamentalismo, enquanto movimento, na
verdade apenas revivem uma tendência observável no Cristianismo por toda a História
Eclesiástica. Esta constatação nos leva a perguntar: será que a adaptação do cristianismo à
sociedade plural somente poderá ocorrer por meio de abrir mão de suas doutrinas históricas?
O fundamentalismo (no sentido histórico inicial: ortodoxia) deve ceder vez à Teologia
Liberal, como única perspectiva cristã apta aos novos tempos de tolerância obrigatória? Dizer
“Só Jesus salva” significa necessariamente ser intolerante e incapaz de convívio com o Estado
secularizado e a sociedade pluralizada?

Para chegarmos a outra possibilidade de resolução do dilema entre fundamentalismo e


intolerância, retomemos a máxima tão cara ao fundamentalismo – “Só Jesus salva”. Desta
vez, porém fazendo uma distinção entre duas maneiras de compreender esta afirmação
fundamental à ortodoxia cristã, ambas aceitas e reconhecidas dentro da estrutura de crença e
pensamento fundamentalista e ortodoxa. Vamos considera-la, por assim dizer, no sentido
vertical e no sentido horizontal.

Em primeiro lugar, na direção horizontal, que já abordamos, “Só Jesus salva” é uma
declaração axiológica dirigida ao outro, e significa que somente têm salvação aqueles que
creram em Cristo como seu único mediador para com Deus. Neste sentido horizontal, tem
função querigmática (como proclamação ao descrente), portando em si mesma a separação da
humanidade em duas famílias distintas: cristãos e não cristãos – e impondo sobre os últimos a
negação e a expectativa de mudança. É neste aspecto que “Só Jesus salva” tem sido fonte e

1068
justificativa para atitudes intolerantes por parte dos cristãos em relação a indivíduos, religiões
e culturas não cristãs.

Entretanto, “Só Jesus salva” guarda outro sentido, que alcunhamos vertical, pois dirigido a
Deus, com papel doxológico (como louvor a Deus). Aqui, “Só Jesus salva” manifesta o
reconhecimento do cristão de que ele, por si mesmo, nunca poderia produzir um novo cristão;
a ortodoxia cristã insiste que a retórica mais refinada, o argumento mais lógico, as explicações
mais claras jamais conseguiriam uma conversão. Por um motivo simples: “Só Jesus salva!” É
a própria Bíblia, única autoridade para a fé fundamentalista, que deixa claro que a obra de
revelar Deus, abrir o coração do incrédulo e convencer do pecado é prerrogativa
exclusivamente divina.6 O evangélico J.I. Packer, falando acerca da evangelização, expõe a
incapacidade humana para converter incrédulos:

Mais uma vez, em última análise, existe um só agente da evangelização: é o Senhor Jesus
Cristo. É Cristo mesmo que, por meio do seu Espírito Santo, capacita os seus servos a
explicar a verdade do evangelho e aplicá-la de forma poderosa e eficaz; da mesma forma,
como é o próprio Cristo que, por meio do seu Espírito Santo, abre o entendimento e os
corações dos seres humanos, para que recebam o evangelho, atraindo-os assim
salvadoramente para si mesmo (PACKER, 2002, p. 78).

Portanto, não precisamos ir mais longe do que a própria ortodoxia cristã fundamentalista para
encontrar a base para a tolerância que a sociedade pluralista contemporânea requer das
instituições religiosas que convivem em seu seio. O desenvolvimento histórico ocidental já se
encarregou de minar a arrogância das religiões de fazerem uso do poder estatal e político para
suprimir suas concorrentes. Entretanto, isso não seria necessário se a convicção cristã
ortodoxa de que a conversão é um milagre de Deus equivalente a um novo nascimento 7
tivesse moldado as interações inter-religiosas da Igreja Cristã. A própria Bíblia teria minado a
arrogância do Cristianismo de forçar por seus próprios meios o Reino de Cristo nos corações,
hábitos e culturas daqueles que não conhecem ou reconhecem o Rei.

Considerações finais

A História da Igreja Cristã nos mostra como a sedução do poder substituiu a proclamação da
fé. Quando possuidora da maioria numérica ou de laços com o poder, o Cristianismo se
6
Cf. Atos 16.14; João 16.8; Lucas 10.22.
7
Cf. Efésios 2.4-5; João 3.5; 2Coríntios 5.17.

1069
afastou profundamente da simplicidade do ministério de Jesus de Nazaré e seus apóstolos,
todos perseguidos por sua fé. Entretanto, os novos tempos no mundo ocidental parecem não
mais oportunizar tais rompantes de intolerância religiosa, quer pelo Cristianismo, quer por
outras religiões.

Por outro lado, ainda que o pluralismo moderno requeira que as religiões contribuam
decisivamente com a formação de sentido dos indivíduos na sociedade, também exige delas a
convivência pacífica e tolerante, que garanta a manutenção das escolhas religiosas pessoais e
livres destes indivíduos. Isso não significa que o Cristianismo tenha de sobreviver à custa de
abrir mão de sua identidade, já que neste caso não lhe restaria sequer sua função social de
apresentar um esquema de sentido coeso. Na verdade, o melhor caminho para uma tolerância
cristã pautada pela boa vontade está no coração da teologia cristã histórica: a salvação é dom
do Deus soberano. Alienados do movimento ecumênico em virtude de seu apego à ortodoxia,
os fundamentalistas devem buscar na ortodoxia a base para uma tolerância religiosa coerente
com sua identidade religiosa e promotora de um exclusivismo cristão tolerante.

O mesmo trajeto poderá ser percorrido por outras doutrinas sustentadas pela ortodoxia
fundamentalista, mas que geralmente não tem produzido maior tolerância na Igreja Cristã.
Outros trabalhos poderão explorar e expor aspectos doutrinários como, por exemplo, a ética
pacifista de Jesus ou a imagem de Deus no homem, verificando como apoiam ou alimentam
uma atitude mais tolerante naquela que ainda é a maior religião do mundo.

Referências

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vida e o testemunho cristãos. Fides Reformata. São Paulo, v. 10, n. 2, Jul-Ago de 2005. p. 61-
75.

BERGER, Peter L.. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985.

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. 2ª.
edição. Petrópolis: Vozes, 2005.

CAMPOS, Heber Carlos. O pluralismo do pós-modernismo. Fides Reformata. São Paulo, v.


2, n. 1, Jan-Jul de 1997.

1070
CARSON, Donald A. The gagging of God: christianity confronts pluralism. Grand Rapids:
Zondervan, 1996.

CARSON, Donald A. The intolerance of tolerance. Grand Rapids: Eerdmans, 2012.

CHELIKANI, Rao V. B. J. Reflexões sobre a tolerância. Rio de Janeiro: Edições UNESCO,


1999.

CLOUSE, R. G.; PIERARD, R. V.; YAMAUCHI, E. M. Dois reinos. São Paulo: Cultura
Cristã, 2003.

CONSTANZA, José Roberto da Silva. As raízes históricas do liberalismo teológico. Fides


Reformata. São Paulo, v. 10, n. 1, Jan-Jul de 2005, p. 79-99.

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o Cristianismo e o mundo


1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997.

LOPES, Augustus Nicodemus. Fundamentalismo, ontem e hoje. In: LOPES, Edson Pereira
(Org.). Questões teológicas de ontem e hoje. São Paulo: Reflexão, 2010.

MACHEN, J. Gresham. Cristianismo e liberalismo. São Paulo: Os Puritanos, 2001.

MATOS, Alderi Souza de. O cristianismo europeu: uma história de luzes e sombras.
Ultimato, Viçosa, n. 337, Jul - Ago de 2012. Disponível em
<http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/337>. Acesso em 05 ago. 2013.

__________. Para que sejam um: breve panorama do movimento ecumênico. Ultimato,
Viçosa, n. 300, Maio - Jun de 2006. Disponível em
<http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/300>. Acesso em 05 ago. 2013.

NOGUEIRA, Luiz Eustáquio dos Santos. O cristão desafiado pelas religiões. Horizonte, Belo
Horizonte, v. 1, n. 2, Jan-Jun de 1997, p. 44-56.

PACKER, James I. A evangelização e a soberania de Deus. São Paulo: Editora Cultura


Cristã, 2002.

SILVA, Antônio Ozaí da. Monoteísmo e intolerância religiosa e política. Espaço Acadêmico.
n. 113, out. de 2010, p. 153-162.

VASCONCELOS, Pedro Lima. Fundamentalismos: matrizes, presenças e inquietações. São


Paulo: Paulinas, 2008.

WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

1071
1072
GT10 – Gênero e religião

Coordenadoras

Naira Pinheiro dos Santos Nilza Menezes


Doutora em Ciências da Religiãopela Doutora em Ciências da Religião pela
UMESP. Professora da Escola Paulista de UMESP.
Direito.
Sandra Duarte de Souza
Doutora em Ciências da Religião pela
UMESP. Professora da mesma instituição.

Resumo

O GT objetiva discutir pesquisas que envolvam a articulação entre gênero e religião,


buscando analisar as implicações de gênero dos sistemas simbólico-religiosos que informam
as/os fiéis e as instituições sociais de maneira geral. A religião, mesmo em um contexto
secularizado, ainda se mostra como um importante sistema de sentido na conformação das
subjetividades masculinas e femininas. Seu poder normatizador e regulador tem sido
frequentemente discutido no âmbito dos estudos feministas. Por outro lado, as ortodoxias
religiosas se deparam com a heterodoxia da vida cotidiana dos sujeitos religiosos, o que
relativiza significativamente o poder regulador das instituições e dos sistemas de sentido
religiosos. O GT acolherá propostas de comunicações que discutam aspectos teórico-
metodológicos dos estudos de gênero e religião, bem como propostas que analisem os
câmbios ou continuidades do discurso religioso acerca dos papéis sociais de sexo num
contexto de redefinição das identidades de gênero.

1073
A Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular:
gênero e religiosidade através dos discursos de religiosas
(1946-1988)
Clarissa Milagres Caneschi1

Introdução
Em 17 de maio de 1946, durante o episcopado de D. Helvécio Gomes de Oliveira, foi
oficialmente constituída a Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular,
associação religiosa feminina fundada por Monsenhor Rafael Arcanjo Coelho, na cidade
de Alvinópolis, estado de Minas Gerais. A espiritualidade de Monsenhor Rafael
inspirava-se na devoção do Sagrado Coração de Jesus e, nesse sentido, ele

[...] viveu a pedagogia do respeito à pessoa, pela bondade e zelo apostólico, na


simplicidade de sua doação ao próximo. [...] Sentindo as necessidades da Igreja e do
povo, Monsenhor Rafael reuniu um pequeno grupo de moças da Paróquia Nossa
Senhora do Rosário de Alvinópolis, Minas Gerais, que se comprometesse mais
profundamente com o evangelho e com o povo. [...] Uma vez lançada a semente, a
Beneficência Popular começou sua missão evangelizadora, expandindo-se para o
interior e periferias das grandes cidades do país. (Sociedade de Vida Apostólica
“Beneficência popular”. s.d., sem numeração de página.)

A proposta da nova Associação apresentava-se inovadora diante das concepções de vida


religiosa então vigentes: Monsenhor Rafael dispensou as religiosas do uso do hábito,
buscando um contato mais efetivo entre essas mulheres e o cotidiano das pessoas e
grupos sociais – isto, quase vinte anos antes da reforma litúrgica e institucional do
Concílio Vaticano II. Já em 1950, as consagradas da Beneficência Popular, a pedido de
D. Helvécio, transferiram-se para a cidade de Acesita, de perfil mais industrializado do
que o município de Alvinópolis. Paralelamente, as irmãs (que ainda buscavam obter seu
reconhecimento canônico) passaram a dispor de maior autonomia na gestão de sua
instituição, pois Monsenhor Rafael, até então muito presente, viu-se convocado a fazer
diversas viagens a pedido da Igreja, passando a comunicar-se com a instituição que
fundara através de cartas, regularmente enviadas até 1966, quando veio a falecer.

1
Mestranda em História pela UFOP. Orientada pela Profa. Dra. Virgínia Buarque. \Contato:
clarissamilagres@yahoo.com.br

1074
Uma nova e significativa mudança ocorreu em 1975, quando D. Oscar de Oliveira, que
havia assumido a Arquidiocese em 1960, solicitou à Associação, em 1975, que se
instalasse em Mariana, sede do Arcebispado. Entretanto, somente em 28 de novembro
de 1988, já na gestão arquidiocesana de D. Luciano Mendes de Almeida, que as Irmãs
da Beneficência Popular finalmente conseguiram a aprovação do Vaticano para a
fundação de sua Congregação. Tendo recebido o Nihil Obstat em Carta da Sagrada
Congregação Pro Religiosis et Institutis Secularibus, de 18 de julho de 1988, a antiga
Associação foi então erigida, por decreto de D. Luciano, em Sociedade de Vida
Apostólica Beneficência Popular, regida pelo Direito Diocesano:

[...] usando das atribuições que nos concedeu a mesma Sagrada Congregação, muito
ex corde aprovamos e confirmamos pelo presente as Constituições da Sociedade de
Vida Apostólica Beneficência Popular. Que a fidelidade ao carisma do virtuoso
Monsenhor Rafael Arcanjo Coelho, seu fundador, possa levar os membros da
sociedade a proclamar a boa nova do amor e da bondade de Deus Salvador, por meio
da devoção ao Sagrado Coração. (Decreto de criação da Sociedade de Vida
Apostólica Beneficência Popular, de 28 de novembro de 1988).

Esta comunicação objetiva contextualizar o processo de criação e institucionalização da


Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular na história da vida religiosa
feminina no Brasil. Verifica-se que essa trajetória de mulheres consagradas tem sido
abordada por três grupos distintos de estudiosos e pesquisadores. O primeiro deles
refere-se à historiografia eclesiástica, aqui identificada como uma produção que,
desenvolvida por clérigos, está estreitamente vinculada à ortodoxia doutrinária e
ideológica vigente na Instituição Católica (LIMA, 2001; RUPERT, 1993). O segundo
grupo de obras pesquisado é oriundo dos esforços promovidos pela Comissão de
Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), sobretudo nos anos 1970 e
1980, objetivando interpretar a realidade socio-religiosa sob uma perspectiva dos grupos
empobrecidos, em diálogo com os postulados da Teologia da Libertação (BEOZZO,
1983; NUNES, 1997; REZENDE). O terceiro grupo abrange publicações, de viés
acadêmico, geralmente decorrentes de pesquisas de Pós-Graduação (ALGRANTI, 1999;
QUINTANEIRO, 1996).

1075
Irmãs de vida ativa

Ainda em meados do Oitocentos, intensificando-se no início do período republicano, a


hierarquia eclesiástica católica empreendeu um destacado esforço para assegurar a
posição privilegiada que a Igreja, até então vinculada à Coroa, desfrutara no país. Nesse
sentido, foram tomadas várias medidas reformadoras do clero e da instituição católica,
inspiradas no Concílio de Trento, desdobradas, principalmente a partir da segunda
década do século XX, no projeto de Neocristandade, visando um duplo objetivo: por um
lado, fortalecer a autoridade e a influência eclesiástica; por outro, combater o chamado
“catolicismo popular”. Para tanto, a participação feminina, majoritária em inúmeras
associações religiosas (como as Pias Filhas de Maria), mostrou-se fundamental, embora
as mulheres continuassem alijadas do poder sagrado de conferência dos sacramentos e
da prática da palavra, mantendo seu secular estatuto subordinado (AZZI, 1984;
BEOZZO 1983; RUPERT 1993) .

Deve-se destacar, contudo, que essas mulheres não incorporaram passivamente as


funções que lhe eram destinadas pela hierarquia eclesiástica. Assim, o surgimento de
congregações religiosas femininas, também denominadas de vida apostólica ou de vida
ativa, no século XIX, foi resultante de um complexo jogo de relações sócio-religiosas,
tendo algumas delas atuado no cenário europeu em âmbito público, mediante práticas
caritativas, antes mesmo de sua aprovação canônica. A legitimação de tais
congregações, portanto, foi uma conquista da posição feminina na Igreja, ocorrendo de
forma paulatina: de início, as irmãs ainda estavam limitadas pela clausura doméstica,
habitando somente as casas conventuais (delas não saindo a não ser em caso de absoluta
necessidade) e desempenhando suas atividades em prédios anexos às suas residências.
Aos poucos, as religiosas foram encarregando-se de inúmeras práticas sociais, e com
isso apropriando-se de alguma parcela de poder, ainda que seu discurso continuasse a
veicular uma visão tradicional do papel destinado à mulher na Igreja e na sociedade.
Assim, à frente de suas congregações, eram as religiosas quem administravam os
recursos financeiros e elaboravam planejamentos institucionais, ficando também
responsáveis por sua execução; no exercício de seus cargos e tarefas cotidianas, elas
emergem como agentes dinâmicas e, muitas vezes, inovadoras (AZZI, 1984).

Chamadas para atuarem como agentes da Restauração Católica no Brasil, a maioria das
congregações femininas aqui chegadas nas primeiras décadas do século XX era de

1076
origem europeia. Sua vinda deveu-se tanto ao incentivo dos bispos locais como ao
incremento de certa hostilidade à Igreja em seus países de origem, que era associada,
pelos novos regimes políticos, às antigas monarquias restauradoras; isso ocorreu
principalmente na França, quando, em 1903, essas congregações foram suspensas e
expulsas. Assim, muitas delas encontraram na vinda para o Brasil uma saída para o
impasse, embasadas no espírito religioso de “missão em terra estrangeira”
(QUINTANEIRO, 1996).

No Brasil, também foram fundadas diversas congregações religiosas femininas, em


geral diocesanas (isto é, subordinadas ao bispo de cada diocese e não ao superior de
uma Ordem ou Congregação masculina), mas perpassadas pelo mesmo viés
europeizante, seja por terem como fundadores padres ou freiras estrangeiros, seja por
adorarem regras e costumes dos conventos europeus. Foi neste contexto que se deu o
surgimento da Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular, já na década de
1940.

A partir da década de 1960, a Igreja Católica passou por profundas alterações em sua
estrutura organizacional e em sua interpretação doutrinária. O Concílio Vaticano II
(162-1965) redirecionou significativamente os propósitos da vida consagrada,
masculina e feminina, associando-os a um ideário de inserção no mundo. As
congregações religiosas femininas tiveram de promover, por determinação episcopal,
uma revisão de seus estatutos e símbolos. Desta maneira, antigos hábitos foram
substituídos por roupas comuns, prédios conventuais foram trocados por pequenas
residências (sem quase nenhum aparato exterior que as distinguisse de moradias leigas),
rigorosas atitudes do cotidiano religioso, como o silêncio ou as práticas penitenciais,
foram flexibilizadas, substituídas ou até abolidas, em nome de outras condutas, mais
condizentes com a realidade histórico-social.

Na América Latina, a Igreja Católica ganhou facetas específicas com as Conferências


Episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979) que, pautadas numa releitura encetada
pela Teologia da Libertação, definiram como proposta a “opção preferencial pelos
pobres”. Nesse sentido, muitas congregações femininas, a exemplo da Beneficência
Popular, passaram a desenvolver práticas de conscientização e mobilização social com
os setores mais marginalizados da população, vindo mesmo a assumir programas de
inserção em comunidades eclesiais de base (CEBs). Essa reformulação da vida religiosa

1077
feminina foi amplamente realizada no Brasil, contando com o apoio da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Confederação dos Religiosos do Brasil
(CRB).

Dessa maneira, abandonando um recurso a um perfil homogeneizado, as religiosas


depararam-se com o desafio de serem protagonistas explícitas de sua própria história, de
estabelecerem com a hierarquia eclesiástica, com as comunidades de fiéis e com a
sociedade civil uma relação dialógica que lhes possibilite articular a tradição cultural-
religiosa que portam com as exigências e contradições de um mundo cada vez mais
globalizado ( NUNES, 1997).

Considerações finais

A despeito da tentativa promovida pelos historiadores para “dar voz aos mortos”
(CERTEAU, 1982, p. 106), um dos silêncios que ainda encobre a prática historiográfica
no Brasil refere-se às singularidades da vida religiosa feminina. Entende-se a carência
historiográfica acerca dessa temática como um desdobramento da representação
emudecida imposta às mulheres por inúmeras determinações eclesiásticas, que lhes
interditam a produção simbólica veiculada à pregação da palavra e à conferência dos
sacramentos.

Desejando contribuir para diluição desse silenciamento historiográfico, busca-se,


através da pesquisa de mestrado que estamos desenvolvendo, conhecer melhor as
práticas sociais e religiosas desenvolvidas por essas mulheres na diocese de Mariana,
bem como suas implicações no campo do político e do imaginário. Ao mesmo tempo, a
análise das relações mantidas entre essas mulheres e o poder eclesiástico-institucional
da Igreja Católica visa também suscitar “questionamentos sobre a colaboração da
mulher com o poder, sobre a possibilidade de serem co-autoras e mantenedoras da
opressão de que elas próprias são vítimas, e sobre a escassa consciência que muitas
delas têm quanto aos efeitos de serem participantes das relações de poder” (VVAA,
1997, p. 398).

As congregações femininas atuantes da diocese de Mariana na primeira metade do


século XX, ou seja, no decorrer dos episcopados D. Helvécio Gomes de Oliveira (1922-

1078
1960) e D. Oscar de Oliveira (1960-1988) mostraram-se valiosas prestadores de serviço
ao Estado e à sociedade: enquanto o clero lutava pelo restabelecimento do ensino
religioso nas escolas públicas, as freiras foram encarregadas de educar, nos internatos
por elas fundados, os filhos da antiga aristocracia e das novas camadas enriquecidas,
propiciando às elites conservadoras um aparato específico ao seu ideal civilizatório,
articular de uma perspectiva moderna (por ser europeia) e tradicional-nacional (por ser
católica). Também eram elas quem assistiam aos segmentos sociais marginalizados pelo
capitalismo liberal, através da manutenção de asilos, hospitais, orfanatos etc.,
contribuindo para um tênue apaziguamento dos conflitos urbanos. Essas duas práticas,
por sua vez, não eram excludentes: muitas congregações femininas dedicadas ao ensino
da elite direcionavam parcela de sua renda para atividades sociais.

Nesse sentido, sugere-se que apesar de todas essas práticas serem promovidas em
aliança com a elite social, a vida religiosa feminina nas congregações apostólicas
contribuiu significativamente para a conquista de certa autonomia por parte de um
grande número de mulheres de diferentes extratos sociais que, dotadas de menor
escolaridade, puderam não somente ingressar no mercado de trabalho, como sobretudo
reelaborar as representações que produziam de si mesmas, ampliando em decorrência as
possibilidades de novos posicionamentos sociais.

Cogita-se ainda que o episcopado de D. Luciano Mendes de Almeida (1988-2006)


propiciou às congregações religiosas femininas da Arquidiocese de Mariana melhores
condições político-eclesiais para autonomizarem suas atividades e promoverem suas
lideranças internas, numa valorização do discurso e das decisões empreendidas pelas
religiosas.

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1079
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HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica


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QUINTANEIRO, Tânia. O sexo segregado: recolhidas e religiosas. Retratos de mulher:


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1988.

VVAA. Poder/Domínio. In: Dicionário de Teologia Feminista. Petrópolis: Vozes, 1997.

1080
1081
Do Axé à Aleluia: um rosto feminino do pentecostalismo
Lizandra Santana da Silva1

Introdução

A pluralidade do campo religioso brasileiro é um dos fatores que têm provocado uma maior
circulação de fiéis por diferentes grupos religiosos. A fluidez dos adeptos entre as distintas
religiões permite afirmar que os símbolos e as práticas religiosas estão sendo intensamente
apropriadas e ressignificadas, o que favorece a permanência de laços identitários e simbólicos,
ou seja, “o fiel” não precisa necessariamente romper bruscamente com suas antigas tradições
religiosas. Pretendemos nesta comunicação analisar as motivações pelas quais mulheres
adeptas do Candomblé se converteram às denominações protestantes na cidade de Cachoeira-
Ba, entre 1980 e 2007.

Realizaremos esta análise a partir dos relatos orais das mulheres e dos homens que se
converteram, do Jornal Folha Universal, dos livros doutrinários O Perfil da Mulher de Deus,
O Perfil do Homem de Deus, O Perfil da Família de Deus, e a revista Plenitude. Com base
nessas fontes tentaremos compreender o predomínio feminino nas conversões, bem como as
relações estabelecidas na nova filiação religiosa. Por motivos éticos neste trabalho optamos
por atribuir pseudônimos aos entrevistados.

Não há muitos trabalhos historiográficos na Bahia que tenham se debruçado sobre a


perspectiva da interface gênero e religião. Neste campo de estudos podemos destacar a tese de
Elizete da Silva, na qual dedica um capítulo para tratar das concepções sobre a mulher que
anglicanos e batistas possuíam na Bahia no final do século XIX e início do XX. A pesquisa de
Bianca Daéb’s sobre os papéis das mulheres Batistas no espaço religioso, em Salvador entre
1930 e 1960 para pensarmos as relações de gênero nas instituições religiosas. A pesquisadora
concluiu que o posicionamento da Igreja Batista foi marcado pelo machismo que imperava na
sociedade em geral. Na dissertação de Adriana Santos (2009), no capítulo intitulado: O Reino
de Deus entre a cabeça e a coroa: perfis femininos e masculinos na IURD, destacou como as
relações de gênero na IURD, foram marcadas pela desigualdade, especialmente, na questão do
ministério pastoral, atribuição exclusivamente masculina, no entanto algumas mulheres
membros desta instituição chegaram a exercer cargo na esfera política. Conforme Santos: “O
maior posto de prestígio ocupado pela maioria das mulheres iurdianas é o de obreira, uma
1
Mestranda em História pela UEFS. Bolsista FAPESB. Membro do Centro de Pesquisas da Religião- UEFS.
Orientadora: Elizete da Silva. Endereço eletrônico: sansi_escritora18@yahoo.com.br

1082
espécie de ajudante do culto, que auxilia o pastor e seus assistentes na realização da
cerimônia.” (SANTOS, 2009, p.119). No campo das Ciências Sociais temos o trabalho da
professora Sueli Souza que investigou o processo de cura entre mulheres pentecostais
destacando que as pessoas do gênero feminino se socializaram nesses grupos religiosos e
redefiniram suas identidades.

O conforto que vem de Jesus e da comunidade

Eduarda, uma das entrevistadas, membro da Igreja Batista Missionária ao refletir por que a
maioria das pessoas que se converteu foi mulheres afirmou:
Eu tenho pra mim assim, por que as mulheres são, são mais sofridas então dentro desse
sofrimento procura assim um refúgio, um consolo, um conforto né? É Jesus, Jesus nos
conforta mesmo, eu tiro por mim, por que foi onde eu encontrei um consolo foi com Jesus,
a minha alegria, minha paz, encontrei lá com Jesus e eu creio que muitas devem ser por isso
(...) 2

Ao identificar como motivação para a conversão de mulheres o sofrimento, o testemunho da


senhora convertida sugere que o lugar social atribuído à mulher: filha, esposa e mãe, são
papéis que responsabilizam as mulheres pela administração da casa, tanto no que diz respeito
ao trabalho doméstico quanto aos cuidados com o marido e com os filhos. Nesse sentido, a
mulher ao ter como função a sustentação do seu lar, ela é o alicerce da casa, assim a
responsabilidade pelo sucesso ou fracasso dos familiares é consequência do bom ou mau
desempenho da figura feminina, por isso, tanto sofrimento. Por ser responsável pela vida dos
outros seu fardo se torna muito pesado. No entanto, “de forma diversa, percebe-se que as
pentecostais das camadas populares têm identificado nos valores religiosos que também
propugnam o individualismo, os elementos que dão sentido à reestruturação das suas
condutas, das relações familiares e das expectativas em relação à vida.” (MACHADO, 2005,
390)

Mônica, adepta do Candomblé desde a infância, neta de ialorixá3, converteu se às doutrinas da


Igreja Batista Missionária, ao ser perguntada sobre as razões do protagonismo feminino nas
conversões afirmou:
A mulher é quem sofre mais, a maioria das mulheres é que mais sofre, home [sic] é muito
sem vergonha assim, tudo pra ele tá bom, se tiver ruim bebe uma cachaça pronto, mas

2
Entrevista com a senhora Eduarda concedida à autora em 22 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
3
É o nome, em iorubá, dado a sacerdotisa do Candomblé.

1083
mulher não mulher é mais oposição, ela sofre mais, ele é toda dedicada, ela é toda meiga, é
toda carinhosa, tudo dói, a mulher tem que ser bem tratada, bem amada infelizmente elas
não é pelas bênçãos que Deus dar e aí ela procura sempre o melhor. 4

Apesar de afirmar que para a mulher tudo dói, ou seja, para Mônica a mulher é mais
sentimental, mas ao mesmo tempo essa mulher é “segura de si”, ou seja, é uma pessoa que
tem coragem para enfrentar suas atribuições, mas aliviar suas aflições busca consolo na
religião. Conforme o discurso de Mônica uma mulher frágil é aquela que não busca solucionar
seus problemas e abandona os familiares, pois não suporta as adversidades. O discurso da
depoente reforçou a visão de que as mulheres são frágeis e que não devem ter uma vida
pública como os homens que podem descarregar suas angústias com os amigos em volta de
uma mesa de bar. Socialmente não é aceitável que uma mulher, mãe de família, sente com as
amigas para se embriagar, a mulher deve ficar no lar cuidando da casa e dos filhos. Assim,
Mônica reproduziu na sua fala os papéis socialmente construídos para o homem e a mulher.
“Muitas né? Não tá nem aí joga a peteca pro ar e dar o zignal delas, vai, não tá dando certo vai
se prostitui ou se não vende desfaz do que tem como você vê aí, mente fraca, usada pelo
inimigo.”5

Podemos identificar a partir do depoimento de Mônica que quando os problemas conjugais se


tornam frequentes muitas mulheres não aceitam se submeter a certas situações, as quais se
apresentam como insuportáveis para as mulheres, estas segundo Mônica, jogam a peteca pro
ar, ou seja, desistem dos seus relacionamentos. Isso para a entrevistada, que certamente já se
apropriou do discurso do grupo religioso ao qual se converteu. As mulheres que desistem dos
entes familiares passam a se prostituir, ou seja, se relacionam fora do casamento, o que para a
entrevistada não foi interpretado como uma escolha dessas mulheres, mas como ação
demoníaca, por isso, elas fraquejaram, afinal foram usadas pelo “inimigo”, o Diabo. A mulher
mesmo em si, segura, ela busca mesmo o Senhor, ela quer o que? Se tá com dificuldade na
família, tem um Deus que ele restaura, abençoa, ela vai ao encontro de Deus pela família, pelo
próprio marido que é miserável, que é prostituto, alcoólatra, tudo de ruim, mas ela procura
Deus tanto pra ela quanto pra ele (...) 6

De acordo com Mônica uma mulher determinada, uma mulher “segura” não desistiria do seu
casamento, mas buscaria a presença de Deus para aprender a lidar com as situações adversas

4
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
5
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
6
Idem

1084
da vida cotidiana. Para suportar os problemas conjugais e não busca a separação. Conforme o
texto bíblico “Toda a mulher sábia edifica sua casa, mas a tola derruba-a com as suas mãos”.7
Para a entrevistada por mais difícil que sejam as circunstâncias a mulher deve se manter firme
em prol da família, o marido pode ser o mais “miserável”, a mulher não pode desistir. De
acordo com o trecho acima citado da entrevista, afirmamos que a entrevistada assumiu sem
contestar os papéis culturalmente construídos para as mulheres, independente de suas filiações
religiosas. A mulher na sociedade ocidental tem como obrigação ser uma boa esposa e boa
mãe. Os cuidados com a casa, o marido e os filhos são atribuições naturalizadas como
femininas, conforme o discurso machista e patriarcal, portanto não tem por que a mulher
“jogar a peteca pro ar”. Machado, no texto Representações e Relações de Gênero nos grupos
pentecostais, afirma que:
As histórias de conversão masculinas revelam situações de desemprego, dificuldades
financeiras e problemas pessoais na área da saúde nas justificativas para a adesão religiosa
ao pentecostalismo já as mulheres quase sempre associam suas escolhas religiosas com as
desavenças familiares e as necessidades – materiais e espirituais – do grupo doméstico. Em
outras palavras, enquanto os homens procuram a comunidade religiosa em situações que
põem em ameaça a identidade masculina preponderante na sociedade, as mulheres se
colocam como guardiães das almas de todos que integram a família, buscando os grupos
confessionais sempre que um dos seus familiares se mostre em dificuldades. Nesse sentido,
as qualidades alocadas ao gênero masculino no sistema hegemônico de representações
parecem distanciar os homens das prescrições religiosas de uma forma geral e, em especial,
do ethos pentecostal, enquanto os atributos femininos favorecem as experiências das
mulheres com o sagrado e os vínculos comas comunidades religiosas (MACHADO, 2005,
p.389.).

No livro O Perfil da Mulher De Deus, o Bispo Edir Macedo (2001) afirma que: “O sucesso de
um homem, não importando a profissão que ele exerça, depende muito da mulher que faz
parte da sua vida. Ela é, na verdade, co-responsável tanto pelo seu sucesso quanto pela sua
desgraça”.8As mulheres cabe o papel de cuidar do marido, o sucesso dele depende da mulher.
No que se refere aos perfis feminino e masculino Edir Macedo (2001) afirma que: “A ele foi
dada a capacidade de sujeitar a Terra e dominar todos os tipos de animais. À mulher, porém,
foi dada a grandeza de poder gerar um filho no seu ventre” (idem, p.12).

(...) por que ela procurando Jesus, ela ficando uma mulher santa na presença do Senhor,
santa que eu digo assim é uma pessoa já dotada de Cristo, das como é que diz, da presença

7
Bíblia. Livro de Provérbios 14:1.
8
MACEDO, Edir. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro: Universal, 2001, p. 10.

1085
do Senhor, dotada das bênçãos de Deus, transformada por Jesus Cristo, pela palavra dele
então através dela também santificará o marido que a bíblia diz assim a mulher santa
edifica o marido, o marido santo edifica a mulher, ou seja, um dos dois que for pra Jesus
vai surgir uma transformação tão grande que o outro vai começar a ver essa diferença e vai
começar se ele quer também vai buscar aonde tá jorrando essa fonte (...) 9

Ser uma mulher santa pressupôs deixar de frequentar os pagodes, de vestir roupas curtas
exibindo seus corpos, ou seja, deixar de ser mundana. Silva e Almeida no texto: Mulheres
Protestantes: Uma Trajetória nem sempre submissa, afirmaram que a simbologia de Maria
estabelece duas funções sagradas para o sexo feminino: a maternidade e a pureza. Para as
autoras: “Esse ideal feminino implicava recato e pudor, a busca constante de uma perfeição
moral, a aceitação de sacrifícios, a ação educadora de filhos e filhas” (SILVA e ALMEIDA,
2011, p.368). Uma das entrevistadas relatou sua experiência com o marido: “(...) como meu
esposo era assim quando eu fui ser cristã, ele ficou no mundo aí da prostituição eu nem thum,
Jesus transformou tanto a minha vida, minha mente que eu só queria Jesus, só queria falar do
amor dele, ficar lá com os irmãos, ficar em casa ouvindo a palavra (...)” 10

Podemos afirmar que a conversão da entrevistada foi motivada pela busca de um casamento
em Cristo, no qual não mais existiria infidelidade, pois para as denominações protestantes o
adultério é condenado para ambos os sexos. Nos Terreiros de Candomblé não há uma rigidez
no que se refere a padrões de comportamento sexual. Nesse sentido, ignorar o adultério do
marido não seria, além de uma estratégia, uma fuga? Podemos conjecturar que para a
entrevistada estar com seus irmãos na fé e escutar a “palavra”, ou seja, buscar os
ensinamentos bíblicos era uma forma de aliviar as suas aflições conjugais. Sandra Duarte de
Souza, no que se refere às motivações femininas para uma nova adesão religiosa, identificou
em sua pesquisa sobre o trânsito religioso que:
Em terceiro lugar essa mulher aponta os problemas conjugais como motivo de preocupação
(39,5%). Em sua maioria esses problemas estão relacionados a infidelidade por parte do
marido, vindo em alguns casos a redundar na separação. É somente eu quarto lugar que as
preocupações com sua saúde pessoal vão aparecer, seguidas de problemas econômicos em
geral (SOUZA, 2006, p.26).

A senhora Mônica ao relatar o comportamento do marido após sua conversão, rememorou:


“(...) ele começou a aprontar, aprontar, quando ele viu que ele tava aprontando demais, eu não
tava nem aí, ele começou a ver a diferença, o pastor mesmo falava, deixa a roupinha dele na

9
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
10
Idem

1086
cama, chamei ele pra ir pra igreja, vai pra igreja hoje? Não.” 11 A esposa deixou de brigar com
o marido, deixou de importuná-lo. Ela passou a utilizar-se de outras estratégias para conseguir
harmonizar seu casamento. A entrevistada buscava, conforme orientação do pastor, converter
seu cônjuge, numa atitude passiva, mas ao mesmo tempo vigilante.

Pronto, todo dia que eu ia pra igreja, vai pra igreja hoje? Não. A roupinha já ta lá. Quando
foi um certo dia botei a roupa lá nem perguntei se ia pra igreja mas daqui um pouco tá ele:
hoje vou pra igreja, eu olhei assim, falei amém, tanto que esperava, também não levou um
ano né? Depois que eu me converti pra ele se converter também, por que ele viu bem a
diferença, que se ele viu que eu era uma menina assim bem dedicada, quieta, aquietada não
gostava de sai nem nada, depois passei assim por ódio que ele me fazia, passei a vesti roupa
curta, passei a beber a ir pra “sere”, a ir pros pagode com minhas primas, com minhas tias,
ele aí começou o homem não gosta né?Aí já começou ficar, depois ele viu a diferença
quando eu fui pro Evangelho, ele é a mulher que eu quero é assim, ele também foi pra
igreja, mais por que ele queria também isso e aí aceitou Jesus, mas aonde dói é quem mais
procura quem ta sentido sua dor é quem mais procura o remédio então a mulher é onde ela,
é quem mais é ferida, maltratada (...)12

Ao analisar o trecho supracitado, podemos afirmar que o peso dos papéis femininos numa
sociedade com duplo padrão de relações conjugais estabelece que o homem pode tudo e a
mulher nada, isto é, deve ser submissa, obediente e reservada.

Manoel, candomblecista desde a infância, neto de babalorixá13 e sobrinho de ialorixá14,


converteu-se às doutrinas da Igreja Batista Missionária em 2007. Ao ser perguntado sobre o
fato de haver uma maioria feminina entre os convertidos, afirmou:

É se nós olharmos pra população existe mais mulheres do que homens e a mulher é mais
sofrida, muitas se entregam ao evangelho pelo fato de sofrer no relacionamento muitas
procura um relacionamento no Evangelho pelo fato de sofrer muito, de homens trair, então
elas procuram um relacionamento no senhor pra que haja fidelidade do marido e outras vai
pelo amor também e outras pelo chamado mesmo de Deus. 15

A prescrição de um único padrão de comportamento sexual para homens e mulheres, presente


nos grupos protestantes, possibilita para as mulheres um casamento menos sofrido. A
prescrição de uma conduta sexual monogâmica e dentro do relacionamento matrimonial
11
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
12
Idem
13
É o nome, em iorubá, dado ao sacerdote do sexo masculino, no Candomblé.
14
É o nome, em iorubá, dado ao sacerdote do sexo feminino, no Candomblé.
15
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.

1087
oferece esperança para as mulheres, mas não podemos afirmar que as mulheres convertidas
terão certeza da fidelidade de seus companheiros, pois as orientações religiosas quanto à
sexualidade podem ser transgredidas. Conforme Machado: “A doutrina pentecostal enfatiza os
valores associados à subjetividade feminina, mas tal fato não deve ser interpretado como um
simples reforço a submissão das mulheres, uma vez que esses princípios, bem como os
constrangimentos à sexualidade, são extensivos aos homens da comunidade” (MACHADO,
2005, p.389).

Em relação ao menor número de conversões masculinas, Manoel, afirmou: “Os homens desde
o princípio foram machistas e ainda são machistas, muitos tem vergonha de seguir o
evangelho, mas Deus quando tem um chamado na vida de um homem não tem machismo
16
certo, por que ele vira criança, lá ele chora lá ele se aquebranta (...)” . Para o entrevistado
mesmo o homem sendo machista, diante de Deus ele admite suas angústias e aflições e
demonstra seus sentimentos. A vergonha de ser crente pode surgir devido aos possíveis
julgamentos que a sociedade venha a fazer.

Na manhã de quarta-feira do dia 24 de abril de 2013 enquanto cortava quiabo e catava


camarão e amendoim para fazer um caruru, a senhora Vanessa, ex-adepta do Candomblé
quando relatou a sua conversão pela primeira vez às doutrinas da AD entre 2003 e 2004,
quando questionada sobre a predominância feminina nas conversões, afirmou:
A mulher é mais sensível, ela é mais ouvinte, a mulher ela pensa logo nos filhos, aquilo que
ela não quer ela não vai querer dar pro filho se for ruim, se for bom vai querer abraçar logo
todo mundo. E o homem não, o homem às vezes ele é até sensitivo, mas ele vai pensar: - E
o que é que o amigo vai dizer, o que é que o outro homem vai dizer – Ah eu ser crente,
botar uma bíblia debaixo do braço. E a mulher não tá preocupada muito com isso não. O
homem é mais agreste, mais duro, mais machista e pro homem o preconceito é maior
quando ele passa a ser cristão. A crítica, a gozação é muito maior. 17

Na concepção de Vanessa se converter ao Protestantismo, para o sexo masculino, é sinônimo


de fragilidade. Para o homem significa admitir que não é capaz de resolver seus problemas e
por isso busca consolo com Deus. A questão do preconceito levantada por Vanessa é de
fundamental importância para compreendermos a dificuldade masculina em converter-se ao
Protestantismo. Podemos conjecturar que para os três sujeitos, do sexo masculino,
entrevistados nesta pesquisa a conversão a um grupo religioso cristão pode ter sido mais
difícil do que para as mulheres. O fato de terem frequentado Terreiros de Candomblé não
significa que eram vistos socialmente como fracos, pois a religião de matriz africana foi uma

16
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
17
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.

1088
herança familiar além de nesse espaço terem exercido cargo de liderança, os três convertidos
exerceram o cargo de ogã.18

Na noite do dia 22 de abril de 2013, ao som da música de um culto protestante que ocorria no
bairro Ladeira da Cadeia, onde o senhor Manoel reside, em relação as suas atribuições no
Terreiro de Candomblé ele rememorou:

(...) a mim foi incumbido o cargo de ogã, eu era axogum da casa, onde eu sacrificava os
animais e oferecia aos orixás, tinha também por função alabê, de tocar os atabaques para os
orixás dançar (...) Eu praticamente no Candomblé eu era a mão direita da mãe de santo que
quando estava lá a pouco tempo tinha pessoas para ajudar a casa, a maioria começou a
viajar e eu fiquei praticamente sozinho só eu de ogã praticamente, então eu fazia quase
todas as funções praticamente na casa, eu dava banho nos Exus, eu acendia velas pros Exus,
eu como eu já disse eu cortava pros animais na hora das obrigações, da matança. Tudo isso
era eu que fazia e tinha alguém também que me ajudava, eu levava despacho pra cemitério,
pras encruzilhadas, pras matas, pras pistas. Tudo tinha por incumbência de eu fazer isso
aí.19

Vanessa ao refletir sobre as especificidades das conversões masculina e feminina reconheceu


a predominância feminina nos grupos religiosos, como consequência do androcentrismo da
sociedade em geral:
Por ser homem. O homem pode tudo, mas quando passa e fala que é crente, se é de curtir,
pegar as gatinhas. É diferente, mas é diferente, você vê que na igreja tem mais mulher do
que homem. A mulher vai mais, ela tem mais problemas, é família, é marido, aí sempre se
apega mais e bem na verdade a maioria das religiões é mais mulher. Qualquer uma outra,
não é só o Candomblé, não é só o crente, todas que você vai é mais mulher. 20

Identificamos a partir do discurso de Vanessa que ela tem ciência das diferenças dos papéis
sociais delegados ao homem e a mulher, afinal “o homem pode tudo”, ou seja, na nossa
sociedade os homens têm a permissão de se divertir e se relacionar com várias mulheres. Para
a entrevistada o espaço religioso protestante, não permite que o homem crente tenha esse tipo
de comportamento. Nesse sentido, da mesma forma como os rígidos padrões éticos e de moral
sexual são motivos para atrair as mulheres, esses motivos servem para afastar os homens do

18
Segundo Parés (2007), os ogãs, função exercida exclusivamente pelo sexo masculino, tem o papel de ser a
segunda pessoa depois do líder religioso, ialorixá ou babalorixá. Eles não dançam nem “recebem” o orixá na
cabeça, mas fazem o ritual de iniciação. Geralmente são responsáveis pelo toque dos atabaques e pelo sacrifício
dos animais.
19
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
20
Entrevista com a senhora Vanessa concedida à autora em 24 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.

1089
espaço religioso protestante. Além das regras morais que devem ser seguidas, a entrevistada
aponta para o fato das mulheres terem mais “problemas” do que os homens. Mais uma vez
observamos a responsabilidade que a sociedade, bem como os grupos religiosos, atribuem à
mulher. Os problemas femininos são imbricados com as questões familiares, cabe à mulher
manter a harmonia do lar.

Sandra Duarte de Souza (2006) ao estudar o trânsito religioso em Alto Paraíso-GO, além de
ter identificado que houve um trânsito maior de mulheres, percebeu distinções entre os
interesses que motivaram o trânsito de mulheres e homens. Assim, constatou:

Uma média de 45% dos homens apontou problemas econômicos e de doença pessoal como
os motivos principais de sua andança religiosa. Em outras palavras são motivos de fundo
individual que geram as demandas simbólicas desses homens entrevistados. Somente
depois disso é que vêm os outros motivos como doença ou morte dos filhos (22,7%) e
doença ou morte da esposa (14%). Os problemas conjugais somam ínfimos 2%. Esses
dados não aprecem assim tão alarmantes, mas se compararmos com as respostas das
mulheres, veremos uma grande divergência de interesses em sua busca religiosa. Nada
menos que 59% delas relataram mudança religiosa em busca de cura dos filhos e consolo,
no caso de morte desses. Essa cura inclui desde doenças físicas até problemas de
envolvimento com drogas.Um outro recordista da preocupação das mulheres nesse quadro é
aquele que se refere à doença ou morte do cônjuge (44,5%). Mas uma vez a preocupação
dessas mulheres é com o outro, desta vez como marido (SOUZA, 2006, p.26).

Conforme dona Eduarda, mãe biológica de Manoel, um dos motivos que a fez sair do
Candomblé foi:
Devido à situação também que meu filho tava passando, aí tudo isso me fez desgostar do
Candomblé e procurar Jesus (...). (...) quando nós estamos lá queremos ajuda, um socorro
daqueles orixás e no momento não teve nada disso, meu filho era o zelador, ele cortava, ele
e aconteceu muitas coisas, muito problema na vida dele, querendo tirar a vida dele, a vida
da mulher dele. No momento em que ele estava em aflição não achou consolo nenhum,
então eu penso assim se ele cuidava daqueles orixás, se ele alimentava, se ele fazia tudo
livrar ele, desse perigo, desse ato que tava acontecendo, foi em vários lugares o próprio
demônio queria destruir a vida dele, queria beber o sangue dele. Então essas coisas nós
vamos juntando e perdendo aquele amor que tem, aquele gosto e procura outra solução,
bate em outra porta.21

21
Entrevista com a senhora Eduarda concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.

1090
A senhora Eduarda buscou adesão a outro grupo religioso com a finalidade de eliminar suas
aflições, causadas, principalmente, pelos problemas que seu filho estava passando. É
importante informarmos que ela se converteu logo após a conversão do filho. Ao afirmar que
foi juntando as coisas, dona Eduarda demonstrou que foi perdendo a identificação com o
Candomblé por um conjunto de questões. Conforme Sueli Souza:

Ao que parece os motivos para as conversões são os mais diversos e não raro os mais
triviais. Longe de ser uma coisa pontual, que ocorre num dado instante de decisão, a
conversão na maioria dos casos, parece ser muito mais um processo de convencimento e
/ou experiências religiosas marcadas por incidentes ou eventos que sinalizam o “chamado”
para a conversão. Esse processo pode variar em termos temporais de uma experiência de
dias até mesmo ao longo da vida. É algo muito mais processual que se delineia a partir de
um convencimento gradativo ou como resultado cumulativo de eventos e incidentes que são
destacados como sinais do chamado à conversão. (SOUZA, 2007, p.145).

Ao perguntar a dona Carla, como era a sua vida quando estava no Candomblé ela afirmou que
vivia sérios problemas conjugais:
Terrível. Apanhava todo dia. Ia dançar candomblé de noite quando eu chegava em casa o
marido me cobria a porrada, todo ano quebrava as minhas coisa tudo, eu não tinha paz , ele
tinha três mulheres, eu que era a casada parecia que eu era a arranjada, eu não tinha paz, eu
não tinha sossego, eu não tinha vida. Eu não tinha vida, minha vida era um vazio. 22

Os problemas conjugais foram destacados com veemência pela senhora Carla, que vivia
oprimida pelo marido devido à violência doméstica, bem como com a infidelidade. A partir da
análise do relato acima outras questões se impuseram23, por exemplo, como passou a ser o
relacionamento conjugal da senhora Carla após a conversão? Será que o marido deixou de
agredi-la? Será que o marido passou a ser fiel? Será que o marido se converteu? Quais as
estratégias utilizadas para convertê-lo?
Silva (1998) ao conjecturar sobre os motivos de uma maior adesão feminina, a Igreja Batista,
em Salvador, no final século XIX e início do XX aponta como uma das possibilidades o fato
de ser: “(...) uma religião que defendia um único padrão de moral para homens e mulheres ser
extremamente atrativa para mulheres que viviam sob o jugo masculino e as tensões por terem
que suportar as aventuras extraconjugais dos seus companheiros, ou o assédio de varões que
não tinham limites éticos na abordagem amorosa”(SILVA, p.1998, p.300).

22
Entrevista coma senhora Carla concedida à autora em 15 de fevereiro de 2009, em Cachoeira-Ba.
23
Esta entrevista foi realizada durante o primeiro ano da iniciação científica que fiz durante a Graduação e não
tinha como objetivo compreender o protagonismo das mulheres nas conversões, por isso essas questões não
foram contempladas.

1091
Para a senhora Laura, sua conversão, além de outros motivos, ocorreu em um momento que
“(...) também estava assim me sentindo muito deprimida né? Tinha tido alguns problemas
com o meu marido”.24 A conversão para algumas mulheres, também contribui para manter as
boas relações familiares.

Além dos problemas conjugais a senhora Laura relatou a mudança de comportamento pós-
conversão no interior do seu grupo familiar:

Olhe minha vida antes de me converter era terrível, por que meu relacionamento com o
meu pai - é uma das coisas que eu sempre falo com as pessoas que são próximas a mim- é...
uma das coisas que Deus fez na minha vida depois que eu me converti foi ter a amizade de
meu pai, por que levei trinta anos meu pai achando que eu era excomungada, que eu não
prestava, eu brigava muito com o meu pai, eu não respeitava meu pai, então hoje em dia,
né? Depois que eu me converti eu tenho um amigo, meu pai vem a minha casa, meu pai
conversa comigo, eu levei trinta anos sem vê um sorriso de meu pai, hoje sento com meu
pai, meu pai conta as coisas pra mim e eu dou risada, eu tenho um amigo e antigamente eu
tinha meu pai como meu inimigo, mas hoje em dia uma das coisas que eu mais prezo assim
que Deus fez comigo.25

A harmonia com o pai foi a consequência da conversão que mais alegrou dona Laura. A
mesma quantidade de tempo que ficou no Candomblé, coincidência ou não, igualou-se a
desunião entre Laura e seu pai.

Ao rememorar sua experiência de conversão, dona Maria destacou as transformações que


ocorreram na vida dela da seguinte forma: “Ói, (sic) meu marido não conseguia se aposentar,
meu marido é aposentado. Se aposentou na presença do Pai, meu marido já se converteu, só
falta arriá (sic) de fumar por que até a bebida ele já arriou, só falta arriá (sic) de fumar para
honra e glória do Senhor Jesus”. 26
Dona Maria destacou que através da vida dela após a conversão, a vida do marido também foi
transformada, pois ele se converteu, parou de consumir bebida alcoólica e conseguiu obter
uma renda financeira.

No fim de tarde de uma segunda-feira, sentadas a beira do rio Paraguaçu enquanto


contemplávamos o pôr do sol e sentíamos a brisa das árvores, dona Margarete narrou sua
trajetória religiosa afirmando que: (...) eu comecei assim: indo pra igreja visitar por que eu me
24
Entrevista com a senhora Laura concedida à autora em 26 de janeiro de 2009, em Cachoeira-Ba.
25
Idem
26
Entrevista com a senhora Maria concedida à autora em 15 de fevereiro de 2009, em São Félix.

1092
27
sentia uma pessoa ... , por que eu perdi meu marido (...) A sociabilidade que a comunidade
religiosa ofereceu à senhora Margarete lhe ajudou a superar os sentimentos de perda e tristeza,
após o falecimento do seu cônjuge. Conforme Cândido da Costa e Silva a religião dá sentido
um roteiro da vida e da morte.

Considerações Finais

O trânsito religioso é uma realidade no campo religioso baiano e cachoeirano, em particular,


geralmente entre fiéis do Candomblé, da Irmandade da Boa Morte para as denominações
protestantes, especialmente as neopentecostais. Que trabalharam com a Teologia da
Prosperidade, que atrai majoritariamente a população de baixa renda e em sua maioria
mulheres, chefes de família, que não contam com maridos provedores. Além da prosperidade
familiar, essas mulheres recém-convertidas buscam um espaço religioso para curar suas
doenças e estabelecer relações de sociabilidade e soluções para seus problemas conjugais.

As representações e as práticas dos grupos neopentecostais reproduzem as desigualdades entre


os gêneros existentes na sociedade circundante, legitimando a assimetria nas relações entre os
gêneros com textos bíblicos e as doutrinas seguidas pelos protestantes. Apesar das cobranças
incidirem com mais rigor para as mulheres, elas encontram nesses grupos religiosos espaços
de sociabilidade, prestígio e acolhimento diante das suas dificuldades sociais, econômicas e
existenciais, num contexto histórico de profundas crises econômicas e de desemprego
sistêmico. A religiosidade protestante dá sentido á vida dessas mulheres empobrecidas e
sofredoras.

Referências

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Orientação de Elizete da Silva. Dissertação (Mestrado em História) UFBA, Salvador, 2006.

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Paulo em Perspectiva, vol. 15, no. 3. CEBRAP, São Paulo, p. 17-35, 2001.

MACEDO, Edir. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro: Universal, 2001.


27
Entrevista com a senhora Margarete concedida à autora em 03 de dezembro de 2012, em Cachoeira-Ba.

1093
MACHADO, Maria das Dores Campos. Representações e relações de gênero nos grupos
pentecostais. Estudos Feministas, vol.13, no.2, Florianópolis, p. 387-396, Maio/Ago. 2005,.

SANTOS, Adriana Martins dos. A Igreja Universal e as instituições políticas soteropolitanas


1980-2002. Orientação de Elizete da Silva. Dissertação (Mestrado em História) UFBA,
Salvador, 2009.

SILVA, Elizete da &ALMEIDA, Bianca Daeb’s Seixas. Mulheres Protestantes: Uma


Trajetória nem sempre submissa. In: SILVA, Elizete da. SANTOS, Lyndon de Araújo.
ALMEIDA, Vasni. (orgs). Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos evangélicos protestantes
no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011.

SILVA, Elizete da. Cidadãos de Outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. Orientação de
Augustin Wernet. Tese (Doutorado em História). USP, São Paulo, 1998.

SOUZA, Sandra Duarte. Trânsito religioso e reinvenções femininas do sagrado na


modernidade. Revista Horizonte, v.5, n. 9. Belo Horizonte, p.21-29, dez. 2006.

SOUZA, Sueli Ribeiro Mota. Cura e Terapia: Experiência Religiosa de Mulheres


Pentecostais. Salvador: EDUNEB, 2012.

SOUZA, Sueli Ribeiro Mota. Em Diálogo com Deus: A Construção de “Self” entre mulheres
pentecostais. Tese de doutorado. Salvador, UFBA, 2007.

1094
1095
Festejo de Nossa Senhora Mãe dos Homens – identidades,
sincretismo, religião e poder na Comunidade Remanescente
Quilombola de Juçatuba
Flávia Leite Gomes28

1. Introdução

A comunidade de Juçatuba, remanescente de quilombo a 10 de maio de 2007 pela Fundação


Cultural Palmares junto ao Ministério da Cultura,29 localiza-se a dezenove quilômetros da
cidade de São José de Ribamar – MA, e faz divisa com o Porto de Santana ao Norte,
Comunidade do Iguair ao sul, Bahia de São José ao leste e Comunidade do Bom Jardim a
oeste30; descrições espaciais interessantes no que tange discutir as relações identitárias,
discursivas e o sincretismo religioso atuantes na localidade.

Por se tratar de um local de existência secular, apresenta em seu contexto sócio, político e
cultural, festas religiosas de matriz africana e europeia sincretizadas como: São Sebastião,
Nossa Senhora do Bom Parto, Sant’Anna, Festa do Divino Espírito Santo31, Nossa Senhora
Mãe dos Homens e Festejo do Menino Jesus32, o sincretismo presente ao longo do ano é
externado nos rituais festivos, vez por outra, resignificando não só a fé de mulheres negras e
afro-descendentes, como permitindo acionamentos diversos de identidades, segundo os
discursos utilizados como vias de poder, segundo observam (REIS; SANTOS, 2010, p. 4):

No Brasil colonial as características tradicionais da sociedade africana acabarão por


influenciar e permitir o trânsito da mulher negra nos espaços público/privado na realidade
da diáspora, que teve como duas características a criatividade e o sincretismo para

28
Graduada em Letras pela UFMA, especialista em Literatura Brasileira e Língua portuguesa pela Faculdade
Santa Fé, pesquisadora associada à ABHR, membro do GE de Gênero e Identidade, na UFMA, sob coordenação
da Professora Doutora Sandra Maria do Nascimento. Contato: orquidiazul_fla@hotmail.com.
29
Segundo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e artigo 216, I a V, §§ 1º e 5º da
Constituição Federal de 1988.
30
Dado fornecido segundo entrevistas orais com a presidente da Associação Comunitária Nossa Senhora Mãe
dos Homens, senhora Ivanilde Cascaes Monroe e tesoureira da mesma instituição, senhora Marinalva Garcês
Monroe. Ver localização em anexo.
31
Sempre festejada anualmente, esteve ausente do calendário festivo de Juçatuba durante intervalo de 2009 a
2011, por ocasião do falecimento da senhora Maria da Glória Monroe, “dona da festa” segundo entrevista à
senhora Maria de Fátima Monroe, filha, que desde o ano de 2012 retomou a festa junto às atividades do terreiro
de umbanda e à santa cultuada ao Divino, Sant’Anna.
32
Os festejos apresentados acima correspondem ao artigo Festejos religiosos na comunidade remanescente
quilombola de Juçatuba: fé, devoção e memória apresentado no XIII Simpósio Nacional da ABHR: Religião,
carisma e poder: As formas da vida religiosa no Brasil, na Universidade Federal do Maranhão em 2012.

1096
resistência e reorganização. Seja como ama de leite, ama seca ou cozinheira, ela ocupará o
espaço privado, não se abstendo, no entanto, de transitar pelo público como vendedora de
quitutes, escrava de ganho, etc

O que chama a atenção é que dentre as diversas atribuições desempenhadas, o cuidado com
o outro sempre esteve presente, seja na alimentação para as quituteiras, seja no cuidado de
crianças, no caso das amas, ou no cuidado espiritual e de saúde das mães de santo e
benzedeiras, ou seja, mantém-se ainda a troca material e simbólica.

O cuidado como atribuição feminina estará presente e não objetará a liberdade feminina.
[...] É da preservação - a duras penas - da sua cultura, que a mulher negra permitirá a si e à
sua religião o reconhecimento e o espaço público.

Em análise paralela a respeito da identidade da mulher negra e afro-descendente quer no


período colonial, quer atualmente, conforme o envolvimento do gênero referido nos festejos
mencionados é possível verificar a permanência da troca “material e simbólica” destacada por
ambas as autoras acima, além das questões discursivas implicitamente utilizadas na ação
destes agentes femininos em ocasiões específicas. O Festejo de Nossa Senhora Mãe dos
Homens e outros pertencentes à comunidade visibilizam a relação identidade-discurso à
medida que prosseguem secularmente, a despeito disso as autoras acrescentam:

Transitando pelo mundo mítico e real com a mesma propriedade com que faziam entre o
público e o privado, as mães negras, conseguiram congregar e aliar aspectos africanos,
europeus e indígenas na construção de uma identidade que tinha por marca o feminino na
sociedade brasileira.

Quem não conheceu ou ouviu falar de uma rezadeira, uma referência feminina comunitária,
negra e sábia que houvesse acolhido as dores e alegrias de uma comunidade, fazendo com
que a cultura afro-descendente permanecesse e fosse respeitada. (REIS; SANTOS, 2010, p.
4):

Deste modo, com vistas em melhor esclarecer as investigações sobre gênero, identidade, os
usos discursivos e poder inserido nos mesmos antes, durante e depois do festejo, além do
sincretismo manifestado em cada evento religioso proponho relatar a principal fea 33, Nossa
Senhora Mãe dos Homens, desde os preparos à execução, junto às análises de Judith Butler,
Joselia Ferreira, Rita de Cássia Santos, Clifford Geertz, Rodrigo Caldeira, Néstor Canclini,
33
Refiro-me a festa ao invés de festejo, devido aos critérios elencados por Regina Prado (2007, p.115 – 121) que
argumenta ser a festa um evento contínuo com organização prévia de um ano, às junções entre o sagrado e o
profano, às presenças de batucada ou de baile, às divisões categóricas em “festa de rico” e “festa de pobre”.

1097
Sérgio Ferretti, Émile Durheim e outros autores para melhor compreender os fenômenos
religiosos na presente comunidade remanescente de quilombo, descrevendo a priori o
calendário festivo no local, com fins de verificar a inserção da festa da padroeira e
importância à população e visitantes.

2. Do calendário festivo da comunidade à Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens

Todas as relações sociais implicam em construções identitárias sob os poderes discursivos


imbricados entre os agentes sociais, isso no que diz respeito ao estudo da cultura, conforme
Geertz (1978, p. 36) acrescenta quando diz que “os significantes não são sintomas ou
conjuntos de sintomas, mas atos simbólicos ou conjuntos de atos simbólicos e o objetivo não
é a terapia, mas a análise do discurso social”.

Assim, é relevante elencar as festas em datas, pois uma vez dispostas, melhor podem-se
analisar os discursos sociais e os atos simbólicos, citados anteriormente, presentes na
principal festa Nossa Senhora Mãe dos Homens, em virtude do sincretismo presente em todos
os eventos inclusive no foco de nossa pesquisa. Desse modo, seguem abaixo as festas
pertencentes à comunidade remanescente de quilombo de Juçatuba, com breve descrição
quanto à origem, datas comemorativas e organização.

2.1 Festa de São Sebastião


Comemorada a 19 de janeiro e praticada na comunidade a mais de 85 anos, no Terreiro de
Umbanda São Sebastião. Teve como fundador pai Pedro Maciel Costa, cujo terreiro era no
quintal da própria casa, até falecimento deste, vindo a ser assumido pela filha Sebastiana
Garcês Costa, parteira-negra e benzedeira, tendo atualmente como responsável a filha Rosa do
Socorro Costa Garcês Maciel.

2.2 Festa de Nossa Senhora do Bom Parto/Nossa Senhora das Candeias


Comemorada a 02 de fevereiro, tendo início nove dias antes, cuja abertura dá-se com o
erguimento de um mastro ornamentado com frutas e bebidas, seguida de ladainhas em latim e
cânticos à Santa Maria nas casas de todos os devotos, além de escritas e recolhimento de

1098
cartas (solicitações de bons votos à família: saúde, paz, harmonia, felicidades, etc.) e jóias
(valor em espécie para o custeio do evento religioso) até a culminância da festa.

2.3 Festa de Sant’Anna


Comemorada a 20 de julho, tem início sete dias antes da culminância (dia 26 de julho), a
partir do erguimento do mastro ornamentado com frutas e bebidas e ladainhas em latim,
direcionadas pelas rezadeiras, senhora Rosilda Agustinha Monroe e Maria da Paz Monroe.

Juntamente ao festejo de Sant’Anna foi inserida a Festa do Divino Espírito Santo, que estivera
ausente do calendário de festas da comunidade desde o ano de 2009 a 2011, por ordem da
intervenção espiritual dos guias que requeriam o retorno das atividades do terreiro, que havia
sob a direção da mãe de santo, Maria da Glória Monroe, falecida em 2009, e resistência de
continuidade de sua herdeira, senhora Maria de Fátima Monroe.

2.4 Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens


Comemorada a partir da primeira lua cheia do mês de outubro teve início, segundo registros
orais, através do culto de um senhor de escravos português à santa, quando este foi obrigado a
retornar a Portugal para tratamento médico de um de seus filhos. Assim, os escravos passaram
a ter devoção à santa, cujos elementos peculiares à festividade são: ausência de erguimento e
derrubamento de mastro ornamentado, apresentação de danças de caráter africano (carimbó e
tambor de mina), restando somente as ladainhas e o leilão de jóias (roupas, sapatos, objetos de
valor) para o custeio da festa religiosa.

2.5 Festa do Menino Jesus

Comemorada a 16 de dezembro, tem provável origem por volta de 1940, tendo por chefe o
senhor Luís Gouveia, passando a assumir a direção, após falecimento deste, a senhora Maria
da Conceição Lima Durans, filha da casa, moradora do bairro São Raimundo, mas com
parentesco na comunidade de Juçatuba.

1099
O presente festejo difere dos demais por ter caráter espírita (européia), mesclado a elementos
da religião católica (imagens e encenação do império; presente na Festa do Divino Espírito
Santo) e africana (dança do carimbó às vésperas do encerramento da festa).

3. Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens – identidades, sincretismo, religião e poder

As festas, com destaque às de caráter popular, há muito tem sido elementos de discussões
dentro e fora dos espaços acadêmicos por tratarem de momentos de efervescência
visibilizados nas ações de seus agentes sociais (Durkheim apud FERRETTI 2009, p. 185),
quando observamos as várias identidades acionadas ou mesmo entrecruzadas antes, durante e
após os eventos, valendo ressalva à segunda.

E nessa efervescência coletiva, segundo pensa Ferretti (2009, p. 185) ao citar Durkheim, é
perceptível através do constitutivo festa, a confluência de ações como cânticos, danças,
músicas, comidas, bebidas e outros que culminarão na coesão social, importante e
contributiva à permanência destes eventos ano após ano.

A santa padroeira da comunidade é “Senhora Mãe dos Homens”, contudo na proposição do


trabalho, pretendo descrever a festa e apontar às questões problematizadoras de identidade,
gênero, poder discursivo e sincretismo.

Assim é pertinente ressaltar a importância da participação das mulheres negras da


comunidade em toda a festa, desde a organização prévia às execuções das atividades,
culminância e reorganização para o ano seguinte. Neste respeito Butler (2012, p.205), ao
discutir as construções deste gênero esclarece: “Meu argumento é que não há necessidade de
existir um “agente por trás do ato”, mas o “agente” é diversamente construído no e através do
ato”.

As festas em Juçatuba reforçam significativamente o pensamento da teórica, haja vista as


mulheres exercerem liderança em circunstâncias variadas como escolas, nos lares, nas
questões referentes a territorialidade e, sobretudo, na religião. Nas ações constroem-se,
acionam-se, selecionam-se identidades dos agentes femininos.

A festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens, padroeira da comunidade remanescente de


quilombo de Juçatuba, é iniciada correspondente à data da primeira lua cheia do mês de

1100
outubro e estende-se por dez dias34, tem por característica comum às demais festas as
transformações e continuidades no que tange aos rituais e simbologias, segundo assinala
Canclini (1982, p. 131) quando analisa as relações entre as crenças tradicionais e as festas
rurais e urbanas:

Qual é o destino das crenças tradicionais que deram origem às festas? A secularização e a
mercantilização das cerimônias é inversamente proporcional ao grau com que uma
sociedade se encontre integrada equilibradamente e tenha resolvido a problemática da
satisfação das suas necessidades básicas. [...]

A tendência predominante do capitalismo é a de reduzir ou anular a diferença entre festas


participativas rurais e espetáculos mercantis urbanos, como uma outra consequência da
subordinação do campo à cidade, da vida local ao mercado nacional e transnacional. [...]

Vivemos num “sistema produtivo supra-urbano”, que substitui a oposição entre campo e
cidade por um reordenamento econômico, político e cultural homogeneizado.

Canclini, ao analisar as crenças tradicionais e relações destas às festas, tinha por parâmetro os
rituais tribais indígenas, contudo, se pensarmos na Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens
e demais festas da referida comunidade, Juçatuba é-nos perceptível estas continuidades e
transformações correspondentes aos eixos rural e urbano, em virtude do que fora esboçado na
última linha acima.

Deste modo, segue a descrição da festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens no ano de 2012.

Teve início no dia 05 e término no dia 14 de outubro, cuja abertura deu-se na capela de
mesmo nome da padroeira sob badalos de sino e fogos de artifício para conclamação à
população para celebração feita pelos seminaristas, Elinaldo Cavalcante Assunção e Diego
Manuel de Sousa ambos servos do Seminário do Sagrado Coração de Jesus – Bairro: São
Cristóvão. A capela encontra-se ornamentada e nas laterais do oratório da santa padroeira são
acrescidas a bandeira do Divino Espírito Santo à esquerda e das Santas Missões, à direita.

34
Segundo entrevista a senhora Joana, secularmente a festa era comemorada segundo a primeira lua cheia, haja
vista na época não haver luz elétrica na localidade. Entretanto, passou a ser comemorada na segunda semana do
mês de outubro, devido às finanças, posto o funcionalismo público ser a maior fonte de renda da população local.
6.1 A senhora Joana é um pseudônimo referente a uma das principais rezadeiras das festas na comunidade
remanescente de Juçatuba.

1101
Durante a celebração de caráter católico seguem-se os ritos35: inicial com o canto de entrada
(somente por instrumentos de percussão como pandeiros e tambores que ao longo dos outros
dias conduzirão as ladainhas em latim ao acompanhamento dos sons similares às Charangas
ou taró, cortejo e valsa), pedido de perdão e o canto de Glória, o rito da palavra com a leitura
do Livro de Jó, Salmo Responsorial por Marinalva Garcês Monroe, homilia, rito da comunhão
com o canto para ofertório e entrega das hóstias consagradas e o rito final com os avisos
referentes à festa, Oração a Nossa Senhora Mãe dos Homens e canto final ao som dos toques
de caixas.

Fato curioso quanto à organização antes, durante e após a festa, no que remete às questões de
simbologia religiosa, é a presença contínua do senhor César Monroe Garcês, único homem
partícipe dos eventos festivos referentes à padroeira, ausente das outras partes que remetem à
ideia de festa dos pecadores. Quando a comunidade cita a outra parte da festa atribuindo-lhe a
ideia a pouco citada, lembra-nos a análise por Durkheim em profano e sagrado, conforme
observado no fragmento:

[...] as festas populares levam aos excessos, fazem perder de vista o limite que separa o
lícito do ilícito; também há cerimônias religiosas que determinam como que uma
necessidade de violar as regras, ordinariamente as mais respeitadas. Não, é claro, que não
haja motivos para diferenciar essas duas formas de atividade pública. O simples regozijo, o
corrobori profano não visa nada de sério, ao passo que, em seu conjunto, uma cerimônia
ritual sempre tem um objetivo grave. Mas é preciso observar que talvez não haja regozijo
no qual a vida séria não tenha algum eco. No fundo, a diferença está, antes, na proporção
desigual segundo a qual esses dois elementos se combinam. (1996, p. 418)

As partes se complementam acentuando a importância da festa à comunidade e a alegria em


relembrar e homenagear ano após ano a santa. Deste modo, a festa popular permite os
excessos onde estão juntos o lícito e o ilícito sem fácil separação, posto estarem sempre
presentes nas ladainhas rezadas ao som de valsas, das charangas, etc.

Assim, sequencialmente à festa, durante a celebração tem-se explicação sobre o Terço das
Santas Missões, quanto ao sentido representativo das cores (azul: Oceano, verde: África,
vermelho: América, amarelo: Ásia e branco: Europa) ao passo que relembram o início do

35
Ao descrevermos os ritos da festa durante a missa de abertura, pretendemos analisar as adequações
significativas destes ao longo da festa segundo o Concílio Vaticano II, que a partir da década de 60 do século
XIX “objetivava integrar a igreja às transformações do mundo, reafirmando seu papel na contemporaneidade,
apontando novos rumos, demonstrando não ser uma instituição milenar e tradicional sem contato com a
realidade circundante e sem ressonância no mundo” (CALDEIRA, Rodrigo Coppe, 2012, p. 1).

1102
festejo enfatizando aspectos históricos da narrativa oral quanto à festa e a coincidência com o
dia de São Benedito.

Em seguida são feitas solicitações de preces à comunidade de Juçatuba e o festejo da


padroeira, por meio da senhora Maria da Paz Monroe, acompanhada por rezas em latim,
finalizando esta parte com homenagens feitas à santa. O sino é badalado durante certo tempo
ao passo em que ouvem-se os fogos de artifício, dando encerramento ao primeiro dia.

Ao longo dos segundo, terceiro, quarto, sexto, sétimo e nono dias ocorrem as novenas em
latim anunciadas sempre à comunidade pelo badalar do sino e fogos de artifício, nesse sentido
vale ressalvar que a influência e diversidade da programação religiosa organizada pela
comunidade, de maioria feminina, promove o aumento do número de homens presentes às
novenas, para além das funções de limpeza e organização de finanças do leilão que estes
participam junto às mulheres.

À frente das rezas sempre está a senhora Rosilda que puxa o coro da comunidade, sendo a
quarta ladainha, rezada sempre de joelhos36, como Ato Penitencial Nossa Senhora Mãe dos
Homens, a quinta em conclamação à santa e na sexto é cantado um hino. Na sétima parte são
feitas as orações do Pai Nosso, Ave Maria e Santa Maria por três vezes e de joelhos, sendo a
Salve Rainha rezada somente uma vez.

O encerramento é feito de forma similar à abertura, mas seguido de valsa e conclamações à


santa37, à comunidade, às missões populares e às crianças.

No quinto dia o sino é badalado e os fogos de artifício são lançados para anunciar à
comunidade a celebração de missa pelo padre Abraão. Seguem-se os ritos da celebração
sempre ao som dos toques de caixas pelas senhoras, Rosilda, Maria da Paz Monroe, Noacir
Monroe Garcês, Sônia Maria Correa Garcês.

No oitavo dia, diferente dos outros, é feito um louvor da Renovação Carismática Católica e o
festejo é encerrado no décimo dia com a celebração de missa, pelo padre Nicolau, procissão
ao fim da tarde e leilão38.

36
Segundo relato da senhora Joana “deve ser de joelhos porque é um momento de fé, onde compartilhamos
nosso sofrimento com o de Maria”.
37
A conclamação à santa sempre feita ao término das novenas, missas, celebrações e louvor é: “Viva à Nossa
Senhora Mãe dos Homens !” “Viva!”.

1103
À tarde, quando sai da capela a imagem da santa e de Jesus Cristo em procissão junto à
comunidade, é notório o número de pessoas que pagam promessas andando descalças, o
aumento de fiéis durante o percurso e o acender de velas ao término da tarde.

Ainda referente à santa, ao longo da procissão, estão dispostas à frente a bandeira com a
imagem da santa, outra de Jesus Cristo, do Divino Espírito Santo e das Santas Missões, atrás
seguem crianças vestidas de anjos nas cores: rosa, branco e azul, sempre meninas de faixa
etária entre seis e oito anos de idade, todas de mãos dadas. São feitas cinco paradas para a
reza do terço das Missões Populares e o cortejo segue ao som de instrumentos musicais para
execução de hinos à Nossa Senhora Mãe dos Homens, valsas e louvação à Maria, mãe de
Jesus.

A chegada da santa, ao fim da tarde, à capela é anunciada por fogos de artifício e palmas da
comunidade, da mesma forma que é iniciada a procissão, sendo que a santa é disposta de
costas para a capela e de frente à entrada da comunidade39 durante longo tempo enquanto os
anjos permanecem sentados à sua frente. Nesse instante a senhora Rosilda inicia a reza das
ladainhas em latim agora ao som das valsas tocadas pelos músicos. Ao badalo do sino e fogos
de artifício as imagens da santa e de Jesus entram na capela, ao passo que os músicos dirigem
- se ao coreto, para início do leilão.

As pessoas dispõem-se ao redor do coreto, próximo à capela, para acompanhar os lances


feitos a cada objeto leiloado e/ou mesmo comprá-los. Os valores adquiridos em leilão são
anotados em caderno para reorganização da festa do ano seguinte. Tudo é regado a muita
diversão, bebida, música e alegria.

Na segunda-feira ocorre o lavra-pratos40 para as pessoas de fora cujas diversões ainda em


forma de dança, bebida, música, etc marcam o encerramento da festa e espera do ano
seguinte.

38
Ainda segundo a entrevista da senhora Joana “O leilão é um meio de divertir a comunidade, manter a tradição
e recolher fundos para o ano seguinte da festa”.
39
A chegada da santa e a disposição dos anjos dá-se assim segundo a senhora Joana: “...primeiro devido ao
calor, pois antes tudo era dentro da capela, mas como era pequeno e as pessoas ficavam com calor, resolvemos
que fosse feita lá fora. Além do mais como meio também da santa proteger a comunidade e todos verem sua
chegada após visitar toda a comunidade”
40
Em São José de Ribamar, município balneário pertencente ao Estado do Maranhão, ocorre durante o período
carnavalesco o mesmo lava-pratos, festa que corresponde ao fim de semana seguinte ao carnaval, após a quarta-
feira de cinzas, que segundo narrativas orais, devia-se ao fato de que era o único dia onde os garçons dos
restaurantes da cidade tinham para desfrutar da festa.

1104
Considerações finais

A comunidade remanescente de quilombo de Juçatuba, conforme analisadas festas apresentam


sincretismo religioso e significativa visibilidade feminina negra no que tange aos discursos e
acionamentos identitários ao longo do ano durante as manifestações religiosas, para além das
questões de discussão territorial, do lar, das ações sociais no local, culminantes na
titularização de quilombo.

Deste modo, com destaque à descrição da principal festa Nossa Senhora Mãe dos Homens,
observamos as relações indissociáveis e complementares do sagrado e profano, no decorrer
da festa antes, durante e depois, as relações discursivas dos agentes sociais femininos e as
continuidades e transformações na festa tradicional de Juçatuba citada quanto às charangas,
aos louvores, missas, ladainhas em latim, procissão e festa dançante.

Com vistas nestas análises predispomo-nos a refletir e prosseguir em estudo quanto à


importância das comunidades tradicionais e seus elementos peculiares em constante
transformação e continuidade como meio de ratificar os agentes sociais e respectivo campo, a
sociedade.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Novos rumos para velhos dogmas. Revista de História. São
Paulo, p. 1-3, 2012.

CANCLINI, Néstor Gárcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense,


1982.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na


Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

FERRETTI, Sergio Figueiredo. RAMALHO, José Ricardo. Amazônia: desenvolvimento,


meio ambiente e diversidade sociocultural. São Luís: EDUFMA, 2009.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1978.

PRADO DE PAULA. Regina Santos. Todo ano tem: as festas na estrutura social camponesa.
São Luís: EDUFMA, 2007.

1105
REIS, Joselia Ferreira dos. FREITAS, Rita de Cássia Santos. De matriz africana: o papel das
mulheres negras na construção da identidade feminina. Anais do Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010.

Outras referências

Joana (pseudônimo). Principal rezadeira das festas na Comunidade Remanescente de


Quilombo de Juçatuba. Entrevista concedida em 07/10/2012.

1106
1107
Participação de lideranças femininas na construção de políticas
públicas para afrorreligiosos em Belém, Pará
Daniela Cordovil1

Introdução

Após a promulgação da Constituição de 1988 e a garantia da liberdade de culto, as lutas por


direitos de afrorreligiosos entraram em um novo patamar. Estão amparadas por leis e decretos
como o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/2010) e a Política Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais (decreto 6040/2006) e são executadas por órgãos governamentais
específicos. Ocupando espaços estratégicos junto a estes órgãos, as lideranças das religiões de
matriz africanas buscam a inserção em políticas públicas com base no reconhecimento da
ancestralidade de suas tradições. Esta comunicação visa debater o papel que as mulheres,
sacerdotisas de religiões africanas, assumem na luta política dos afrorrreligiosos e em seu
diálogo com o Estado. A pesquisa se baseia em dados coletados a partir de entrevistas e
observação participante junto aos militantes afrorreligiosos de Belém, Pará. Foi constatado
que existe um número expressivo de lideranças femininas envolvidas na construção de
políticas públicas para afrorreligiosos, no entanto, a maioria dessas mulheres tende a assumir
um papel secundário na ocupação dos espaços de militância. Muitas delas ainda necessitam
do apoio de um afrorreligioso do sexo masculino, seja ele sacerdote ou ogã da casa, para
ocupar o espaço público, enquanto outras, apesar do seu envolvimento com a causa, tem seus
esforços menos reconhecidos do que o dos seus congêneres do sexo masculino.

Desde o trabalho pioneiro de Ruth Landes (2002), muito foi escrito sobre a presença e
participação das mulheres em religiões de matriz africana. Desde então, inúmeras pesquisas
tem destacado o valor supostamente positivo atribuído ao gênero feminino nestas religiões.
Para os autores que se dedicaram ao estudo do tema (LANDES, 2002; BIRMAN, 1995;
SEGATO, 2005) no terreiro a valorização do gênero feminino aparece como igualitária ou
complementar no plano do simbólico a do gênero masculino, ao contrário do cristianismo,
onde existe uma desqualificação sistemática do feminino.

1
Doutora em Antropologia Social pela UnB. Professora do PPG em Ciências da Religião da UEPA.
Contato:daniela.cordovil@gmail.com.

1108
O objetivo desta comunicação é apresentar uma perspectiva alternativa ao pensamento
predominante sobre as relações de gênero nas religiões de matriz africana, pois enquanto
muito se destaca da participação de mulheres nestas religiões, irei estar preocupada aqui em
apresentar um quadro onde a participação de mulheres, especialmente no que diz respeito ao
desenvolvimento de políticas públicas e ocupação de espaços de poder é minimizada.

No campo político afrorreligioso em Belém, há grande presença numérica de lideranças


femininas, porém essas lideranças assumem papéis periféricos ou subordinados com relação
às lideranças masculinas. Podemos encontrar algumas delas atuando como “faz tudo” de
organizações de afrorreligiosos, sem que consigam efetivamente ocupar um papel de
liderança, como a presidência da organização. Ou, quando ocupam o cargo máximo na
hierarquia de tais associações, as mulheres muitas vezes seguem as diretrizes de sacerdotes do
sexo masculino.

Apesar de tais constatações empíricas, o terreiro ainda é visto como espaço de supremacia
feminina, sendo que na imagem pública das religiões de matriz africana este papel é
destacado, um exemplo são os documentos referentes a politicas públicas para terreiro, onde é
possível ver fotografias de mães de santo com suas vestimentas tradicionais, sendo que nestas
imagens são retratadas majoritariamente as mulheres (BRASIL, 2013). É também nos eventos
públicos, como palestras, seminários e mesas de debates que essas mulheres são chamadas a
participar, como ícone emblemático das comunidades de terreiro.

No entanto, os terreiros em Belém podem ser espaços femininos onde atuam muitas
lideranças femininas, porém são representados publicamente por falas masculinas. Um dos
indícios dessa supremacia é a ausência de projetos para mulheres em casas de liderança
feminina, apesar do público das políticas ser majoritariamente feminino. Em Belém, como
apresentarei mais adiante, o único terreiro de religião africana a executar projetos voltados pra
mulheres é comandado por um pai de santo.

Pretendo a seguir apresentar quatro exemplos de subordinação da mulher nos terreiros de


religiões africanas em Belém. Os exemplos serão apresentados sem citar o nome do terreiro
ou associação de afrorreligiosos em questão e as lideranças serão tratadas por nomes
ficitícios, para preservar a identidade e privacidade dos sujeitos da pesquisa.

1109
Terreiros: espaços femininos, falas masculinas

O primeiro caso que pretendo analisar é de um tradicional terreiro de Candomblé Ketu em


Belém, implantado na década de 1980 por um pai de santo baiano. No interior deste terreiro
funciona também uma associação civil, voltada para o desenvolvimento de projetos sociais.
Dentro da hierarquia litúrgica da casa, apenas homens, negros e baianos assumem os cargos
de maior destaque, no entanto; mais recentemente, a presidência da associação civil e a sua
cúpula diretora é ocupada por mulheres. A associação já aprovou projetos em editais
promovidos pela Secretaria de Políticas para Mulheres, da Presidência da República e estes
projetos incluem oficinas e cursos de perfumaria, tranças afro, culinária, direitos humanos e
lei Maria da Penha cujo público alvo é a própria comunidade do terreiro e as mulheres do
entorno. No entanto, toda a liderança da casa, desde o sacerdote àqueles que ocupam cargos
de maior prestígio, é composta por homens. A associação civil é na prática subordinada à
hierarquia litúrgica do terreiro, portanto a última palavra sobre os projetos e as políticas
desenvolvidas é dada pelos homens.

Além da supremacia masculina no comando real do terreiro e da associação, outro fato que
chama atenção é a natureza das atividades desenvolvidas para capacitação das mulheres. As
oficinas e atividades sempre tem como foco o desenvolvimento de habilidades
tradicionalmente femininas como a culinária, a beleza, o artesanato. Este fato é uma constante
nas oficinas desenvolvidas esporadicamente por outros terreiros de Belém, todas versam sobre
saberes classificados pela sociedade brasileira como tradicionalmente femininos, e situados no
universo doméstico, como artesanato, corte e costura, culinária e beleza (SAFIOTTI, 2004).

Apesar de alguns dos terreiros pesquisados mencionarem que desenvolvem ou desenvolveram


oficinas e atividades desta natureza, não existem projetos específicos, nas outros terreiros,
voltados para a garantia dos direitos das mulheres. No discurso das mães de santo é possível
notar a referência à importância das mulheres para a religião africana. Percebe-se que a
maioria das mães de santo ocupadas com a promoção de políticas públicas tem consciência da
importância do recorte de gênero na conquista destas políticas, por isso o destaque na sua fala
para a temática, no entanto, não há um engajamento sistemático, por parte das mães de santo
no debate feminista e em suas consequências.

Um outro caso em que uma fala masculina se sobressai em terreiro de liderança feminina é de
um conhecido terreiro de Candomblé Angola em Belém, cuja sacerdotisa ocupa papel de

1110
destaque nos debates públicos locais. Mametu Lindalva faz parte do comitê inter-religioso
ocupa diversos conselhos e representações nacionais e regionais. Nesta casa de culto, apesar
de a principal liderança ser feminina, todas as atividades públicas que envolvem
pronunciamentos e engajamento político são chefiadas por um dos ogãs da casa, que é
professor universitário. Este ogã atua como um portavoz da mãe de santo para assuntos
políticos e burocráticos.

Outro exemplo de obliteração do lugar de fala das mulheres é na condução de uma das
principais associações civis de afrorreligiosos em Belém. Nesta associação, a presidência e
principais cargos administrativos são ocupados por homens, pais de santo de destaque na cena
pública local, que efetivamente tomam todas as decisões sobre a condução política da
associação. No entanto, existe uma mãe de santo muito ativa na associação, esta mãe de santo
funciona como uma espécie de relações públicas da casa, atuando junto a políticos e
instituições. Também é uma espécie de “faz tudo” da associação quando se trata de promover
manifestações e atos públicos, mobilizar a mídia e políticos. Apesar do seu papel chave nas
atividades práticas, como organização de eventos, palestras e etc., essa mãe de santo não
ocupa nenhum cargo importante na burocracia da associação. Atualmente tem se envolvido no
fortalecimento de sua própria associação civil, percebendo a necessidade de que seus esforços
políticos atinjam resultados mais concretos.

Para finalizar, cito como exemplo da ausência de vozes femininas efetivamente ativas no
debate político dos afrorreligiosos de Belém o processo de participação na campanha eleitoral
para escolha de prefeito e vereadores, ocorrida em 2012. Com relação à política eleitoral, a
maioria dos afrorreligiosos de Belém considera importante a participação e ocupação deste
espaço. Para alguns isso se daria através do apoio a candidatos e partidos, para outros através
da eleição de um candidato afrorreligioso que pudesse representar os interesses deste grupo,
especialmente nos embates públicos contra os neopentecostais. Em 2012, as opiniões se
dividiram quanto a este tema e enquanto alguns afrorreligiosos apoiaram candidatos não-
afrorrelgiosos, de diferentes legendas partidárias, outros foram favoráveis ao lançamento de
um candidato afrorregioso. O candidato oficial dos afrorreligiosos foi um pai de santo, que
obteve apenas 400 votos, nenhuma mãe de santo foi cogitada para concorrer.

1111
Mulheres no terreiro: reprodução ou emancipação?

Podemos perceber, a partir destes exemplos e da observação do campo político afrorreligioso


na cidade de Belém, que o movimento social dos afrorreligiosos pode ser caracterizado como
um movimento de liderança predominantemente masculina, apesar de existir uma
manipulação, por parte das lideranças masculinas, do poder simbólico da figura da mãe de
santo, que de certa forma já ficou impregnado no imaginário nacional a partir de figuras
emblemáticas como Mae Menininha do Gantois, Mãe Stela de Oxóssi, Mãe Beata e tantas
outras.

Essas ilustres matriarcas tem seu poder simbólico e real derivado de uma ordem social de
ancestralidade africana onde às mulheres eram reconhecidas como as únicas que
legitimamente poderiam entrar no estado de transe, estabelecendo a comunicação entre
homens e deuses (BASTIDE, 2001). Era reservado aos homens, nesta ordem social, o cuidado
com os aspectos públicos da casa de culto, a busca de proteção e amparo financeiro,
características do cargo de ogã (LANDES, 2002). Tradicionais protetores dos terreiros, os
ogãs contribuíam financeiramente para a manutenção da casa de culto, em uma sociedade em
que as mulheres possuíam pouca inserção no mercado de trabalho, além de fazer a mediação
entre o terreiro e o espaço público, num tempo em que a religião sofria forte perseguição
policial. Grandes pesquisadores e intelectuais como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson
Carneiro e Jorge Amado, filiaram-se como ogãs às tradicionais casas de culto baianas.

Na hierarquia do culto esses homens ocupavam um lugar pré-estabelecido e não faziam frente
às mulheres, reconhecidas como tradicionais e sábias lideranças. As grandes sacerdotisas
eram geralmente mulheres de idade avançada, após a menopausa, onde se considera que
simbolicamente a mulher já afastou os aspectos perigosos e ambíguos da feminilidade, como
a fertilidade e a sexualidade (DEL PRIORE, 2009). Essas grandes mães, assexuadas eram
reconhecidas como símbolo da ancestralidade e sabedoria dos terreiros baianos (LANDES,
2002) e também na Casa das Minas, tradicional casa de culto de São Luís (FERRETTI, 2009).

É essa imagem da mãe de santo que ainda se pode perceber nos materiais de divulgação
recentemente produzidos pela Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, da
Presidência da República. Onde é possível ver fotografias em sépia de mulheres, geralmente
em pequenos grupos, vestidas com tradicionais roupas litúrgicas, como na imagem abaixo.

1112
Ter
2
ritório Tradicional Bate Folha Manso Bandunquequé. Acervo SEPPIR, 2009

Se, por um lado, a figura da mãe de santo como símbolo de ancestralidade, sabedoria e poder
sempre foi louvada como um ícone das religiões de matriz africana, desde as observações de
Ruth Landes na década de 1930, uma figura andrógena já se destacava no cenário das
religiões africanas na Bahia, o homem homossexual de características femininas que entra em
transe com as divindades.

Considerados uma aberração pelas mães de santo tradicionais, esses homens já se destacavam
no período, tentando estabelecer-se com pais de santo, a despeito da proibição estabelecida
pela ortodoxia. A constatação etnográfica de Ruth Landes custou caro aos resultados da sua
pesquisa, que foram duramente criticados pela intelectualidade da época, escandalizados com
a revelação, naquele tempo considerada comprometedora, de que os terreiros seriam um
espaço de “invertidos”. Com a maioria da intelectualidade baiana naquele período lutava para
elevar o status das religiões africanas, as descobertas de Ruth Landes soaram desconfortáveis
aos ouvidos da época (CORRÊA, 2003).

Pesquisas posteriores passaram a dar cada vez mais destaque a realidade irrefutável, que
exceto em tradicionais casas de culto em São Luís e Salvador, a maioria dos terreiros de
religiosidade africana permite também a existência de médiuns de incorporação, que entram
em transe, entre indivíduos do sexo masculino.

A possibilidade do transe é condição sine qua nom, nas religiões africanas para atingir o cargo
máximo da hierarquia, o de pai ou mãe de santo. Se se admite que os homens também podem

2
Fonte: Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana. SEPPIR, Governo Federal, 2013.

1113
entrar em transe, então, tanto homens quando mulheres poderem ascender à liderança da casa
de culto, desta forma, cai por terra a ideia de que a religião de matriz africana seria um
matriarcado, um espaço de poder feminino, defendida por Ruth Landes.

No entanto, para esta autora, a tese do matriarcado não se contradiz pela presença de homens
na liderança de culto, pelo contrário, a condição de homossexuais “passivos” destes homens,
seria mais um indício de que o local simbólico do transe, que é o local de maior poder nas
religiões de matriz africana, seria um espaço feminino. Portanto, homens para ocuparem este
espaço teriam que exibir características do gênero feminino.

Revisitando algumas das teses de Landes, a partir de uma observação de campo realizada no
Rio de Janeiro na década de 1990, Patrícia Birman constata a forte presença de homossexuais
masculinos entre aqueles que entram em transe no terreiro de candomblé e umbanda. Esses
indivíduos tem um lugar garantido na hierarquia do culto, são chamados de adés, jovens
rapazes afeminados que valorizam o aspecto lúdico e visual da religião, a incorporação com o
orixá, a dramaticidade do transe.

A pesquisa de Birman chama a atenção para a importância que vem ocupar na religião de
matriz africana o homossexual masculino. O que tanto Landes quanto Birman não chamaram
atenção é que por mais que ocupe um papel simbolicamente feminino estes homossexuais
passivos ou afeminados não deixam de ser homens, para a sociedade envolvente. É neste
aspecto que gostaria de chamar atenção para buscar a compreensão do papel das mulheres nas
lutas políticas de afrorreligiosos em Belém.

Em Belém, existem destacadas lideranças afrorreligiosas tanto do sexo feminino quando do


sexo masculino. Entre os homens, muitos são homossexuais, porém esta homossexualidade é
exercida de maneira velada, não é uma homossexualidade afetada como nos adés estudados
por Patrícia Birman, nem como nos pais de santo encontrados na Bahia por Ruth Landes,
chamados por era de “notórios homossexuais passivos”. Os pais de santo de Belém estão
muito longe deste estereótipo, todos eles, invariavelmente, possuem estereótipo de gênero
viril, assumindo um lugar simbólico masculino, alguns são hetero ou bissexuais e a
homossexualidade, mesmo se exercida por eles, é relegada ao plano da vida privada, das
fofocas, nunca é uma condição tornada pública.

O que podemos observar em Belém é que à medida que tanto homens quanto mulheres podem
legitimamente entrar em transe, percorrer um caminho iniciático na religião africana e

1114
tornarem-se lideres de terreiro, perde-se a condição de primazia do feminino como espaço
simbólico da liderança, como foi destacado por pesquisadores para o candomblé baiano e a
Casa das Minas de São Luís. E se, tanto homens quando mulheres podem ocupar o pólo
máximo de poder, que é o espaço do transe, era de se esperar que em uma sociedade machista
e misógina como a brasileira as mulheres ficassem novamente em desvantagem em se
tratando da ocupação de espaços de poder. Assim, prevalecem aqui estereótipos de gênero
predominantes na sociedade envolvente, subvertendo o tradicional poder feminino nas
religiões africanas.

Outro elemento que contribui também para o pouco empoderamento das mulheres nas lutas
políticas dos afrorreligiosos em Belém é a própria caraterísticas destas lutas. Elas se dão no
espaço público, espaço que a sociedade patriarcal elegeu como masculino. Assim, mesmo na
divisão de gênero dos terreiros tradicionais era o homem, o ogã, o responsável por representar
publicamente os interesses do terreiro. Em Belém, quando homens e mulheres afrorreligiosos
lutam pela inserção em um debate público sobre o futuro destas religiões, homens tendem a
usurpar a cena por geralmente serem vistos como mais hábeis para falar, construir redes de
relações, transitar por espaços de poder. Mesmo quando existem mulheres capazes de
apresentar essas habilidades, elas sofrem dura oposição das lideranças do sexo masculino.
Essa oposição pode ser explícita ou velada, mas tem se mostrado presente. No entanto,
quando é do interesse dos sacerdotes do sexo masculino, eles mesmos instrumentalizam as
mães de santo, apresentando-as como imagem pública, ou vitrine dessas lutas, pois
reconhecem a força simbólica contida na imagem das sacerdotisas de religião africana para a
sociedade brasileira.

Considerações finais

Apesar da existência de um imaginário que apresenta as religiões africanas como espaço de


ancestralidade feminina ou de igualdade entre os gêneros, na prática, entre os afrorreligiosos
de Belém, as vozes preponderantes ainda são, na sua maioria, masculinas. Tal predominância
pode ser explicada pela longa herança misógina e patriarcal da sociedade brasileira, onde
mesmo as religiões de matriz africanas tendo se construído tradicionalmente como um espaço
de poder feminino, este poder tem dificuldades de ser reconhecido além da esfera privada de
cada casa de culto.

1115
Referências

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BIRMAN, Patrícia. Fazer Estilo Criando Gêneros. Possessão e diferenças de gênero em


terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edições UERJ/Relume
Dumará, 1995.

BRASIL. Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades


Tradicionais de Matriz Africana. SEPPIR, Governo Federal, 2013.

CORRÊA, Mariza. O mistério dos Orixás e das bonecas: raça e gênero na Antropologia
Brasileira. In: Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, pp. 163-184,

2003.

DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no


Brasil Colônia. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

FERRETTI, Sérgio. Querebentã de Zomadonu. Etnografia da Casa das Minas do Maranhão.


3ª edição. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 2002.

SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Fundação Perseu


Abramo, 2004.

SEGATO, Rita. Santos e Daimones. O Politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. 2ª


edição. Brasília: Ed. UNB, 2005.

1116
1117
Novas configurações das famílias contemporâneas: rupturas e/ou
continuidades nos discursos e práticas de metodistas e luteranos
acerca do divórcio e novos casamentos
Noeme de Matos Wirth1

Introdução

O presente artigo faz parte do tema da pesquisa da dissertação de mestrado que tem por
objetivo discorrer sobre as novas configurações da família contemporânea no contexto do
divórcio e novos casamentos. Pretende-se analisar como essas novas configurações familiares
estão impactando o discurso religioso no Protestantismo Histórico, mas especificamente no
luteranismo e metodismo. Através da pesquisa documental das Igrejas Metodista e Luterana
pretende-se avaliar se o discurso religioso tem acompanhado as mudanças ocorridas nas
dinâmicas familiares e através da pesquisa de campo, com aplicação de questionários, se
avaliará como os sujeitos religiosos experimentam o discurso institucional no convívio das
comunidades eclesiais. Procuraremos identificar se os sujeitos religiosos conhecem o discurso
institucional de suas respectivas Igrejas. Verificaremos se os discursos institucionais e
práticas eclesiais são coerentes ou dissonantes.

1 - Novas configurações das famílias contemporâneas

A família foi se transformando conforme as exigências sociais e religiosas de cada época. Na


contemporaneidade, com a entrada da mulher no mercado de trabalho mudou-se a dinâmica
familiar. O homem passou a não ser o único provedor da família. A mulher passou não só a
contribuir para o orçamento doméstico, mas passou a assumir uma nova posição na dinâmica
da família. Na contemporaneidade observa-se o crescimento de lares que têm como principal
responsável uma pessoa do sexo feminino.

A chefia feminina vem sendo vivenciada em diferentes segmentos sociais. As mulheres,


embora sofram inúmeras restrições, também atuam como sujeitas de suas vidas resistindo e
protagonizando novos modelos familiares.

1
Mestranda em Ciências da Religião pela UMESP. Bolsista da CAPES. Filiada ao GP de Estudos de Gênero e
Religião Mandrágora/NETMAL. Orientadora: Profª. Drª. Sandra Duarte de Souza. Contato:
NoemeKlaus@luteranos.com.br.

1118
Na contemporaneidade

as pessoas passaram a se descartar com muito mais facilidade não apenas dos bens, mas
também de valores, estilos de vida, relações estáveis e ligação com as coisas, construções,
lugares, pessoas e modos herdados de fazer e ser (VAITSMAN, 1994, p. 48).

A conquista do divórcio gerou novos conceitos de família, e, obviamente, novas


configurações. As novas relações passaram a conviver, ou não com os filhos do primeiro
relacionamento, com os filhos dos cônjuges do segundo casamento, surgindo desse novo
relacionamento novos filhos que passaram a conviver juntos nessa nova família
(re)constituída. A mulher não só passou a se emancipar financeiramente, como também
passou a controlar o número de filhos que queria ter. Elas não só estão ativas no mercado de
trabalho mais estão conciliando a carreira profissional com casamento e maternidade. A
maternidade como fruto da escolha pessoal, passou a ser uma enorme conquista da mulher,
podendo deixá-la para mais tarde com a ajuda das novas tecnologias da medicina, depois de
consolidar a carreira profissional ou, simplesmente optando por não terem filhos.

Essa atitude das mulheres tem gerado uma revolução nos costumes e tem sido vivida com mais
tranquilidade que no passado. Com as relações mais flexíveis e plurais as mulheres sofrem
menos discriminação e críticas. No passado muitas mulheres seriam acusadas de egoístas e de
individualistas por não quererem exercer a maternidade. Apesar das culturas do casamento e da
maternidade continuarem sendo o modelo idealizado pela sociedade e pela religião percebe-se
uma grande mudança na faixa das mulheres que estudaram mais e se profissionalizaram.

A maioria das brasileiras atinge o ápice profissional um pouco depois dos 40,
quando sente que o momento de ser mãe já se foi. Quanto mais educadas e bem
sucedidas, mais elas têm se revestido de coragem para se desviar daquilo que todo
mundo sempre viu como seu destino inescapável. (JIMENEZ, 2013, p. 119).

A negação da maternidade tem gerado uma revolução nos costumes. Na contemporaneidade as


mulheres são menos discriminadas por essa atitude, o que não significa que ainda não o sejam.
A negação da maternidade ainda é algo que não cabe no imaginário de nossa sociedade, que
cultiva a cultura da maternidade e do casamento.

A mulher tem sido protagonista das mudanças na contemporaneidade. Hoje elas lideram o
ranking no pedido de separações na maioria dos estados brasileiros de acordo com os dados
do IBGE. O crescimento do divórcio por iniciativa das mulheres tem crescido por conta da

1119
postura diferente em relação ao casamento. Com a independência financeira e a realização
profissional, as mulheres não mais precisam se sujeitar a um relacionamento insatisfatório. A
própria desmistificação do casamento eterno, só dissolvido pela morte, tem levado muitas
mulheres não somente a romperem seus relacionamentos como também a refazerem suas
uniões através de uma nova organização familiar.

Com o crescimento do número de divórcios no país não dá para pensar que as pessoas que
participam de alguma religião estejam imunes ao divórcio. Com a modernidade as pessoas
passaram a ter mais coragem de assumir suas escolhas e optar por relacionamentos que lhes
tragam mais prazer e realização. Como a infelicidade na vida matrimonial e familiar não
escolhe pessoas por causa de sua classe social, etnia e por sua opção religiosa, também nas
comunidades religiosas observam-se, cada vez mais, diversas configurações familiares.

A religião, como instituição formadora de sentido ao longo da história e na


contemporaneidade, continua exercendo influência na família, adestrando e domesticando
principalmente os corpos femininos. O papel da mulher, enfatizado pela religião, é de
submissão e de inferioridade em relação ao homem. Faz parte da característica da mulher
cristã ser boa esposa, ser boa mãe e ser boa dona de casa. Ainda segundo a religião, a
mulher tem a tarefa de "edificar a sua casa".

Segundo Souza, "as representações religiosas de gênero, na medida em que produzem e


reproduzem lugares diferenciados de poder de acordo com o sexo biológico, sacralizam a
desigualdade de gênero" (SOUZA, 2009, p. 59).

Essa dominação é inculcada através de gestos e de palavras. A religião reforça o poder


masculino e nada melhor para justificar a dominação que a palavra autorizada (Bíblia -
Palavra de Deus) e interpretada por seus líderes, na maioria homens.

2 - O discurso religioso acerca do divórcio e novos casamentos

O discurso religioso, na maioria das religiões, legitima o poder do homem sobre a mulher,
assim como enfatiza o papel de submissão da mesma. "Aos homens coube o mandato divino
de exercer autoridade sobre as mulheres e crianças. Deus comanda os homens da mesma
maneira que o poder masculino comanda as mulheres e as crianças" (SILVA, 2006, p. 19).

A maioria das igrejas cristãs adota uma postura conservadora a respeito do divórcio e vê o

1120
casamento como uma aliança indissolúvel, só dissolvida pela morte. O divórcio é visto como
uma exceção e consequência de uma ruptura, resultado do pecado, que trouxe a destruição do
casamento. Mesmo entre as igrejas que possuem uma visão mais liberal, os posicionamentos
dos líderes religiosos são divergentes em relação ao divórcio. No entanto, apesar do modelo
de família instituído pela religião ser o modelo nuclear, cresce o número de famílias
reconstituídas através de uma segunda união, no contexto religioso. Diante dessas
circunstâncias, a religião não pode ignorar essa realidade latente nas igrejas. Entre o ideal
pregado e a realidade vivida há uma enorme discrepância. A igreja prega a indissolubilidade
do casamento, no entanto o número do divórcio e de novas configurações familiares
desconstruíram a concepção da antiga família patriarcal. O casamento deixou de ser perpétuo
e o sexo somente para procriar. A consanguinidade deixou de ser condição necessária e
obrigatória e cedeu espaço ao afeto em questão de laços e obrigações familiares. Deixou-se de
falar em família, mas em famílias, dada à existência de diversos tipos de relações familiares.
Com esse novo modelo de família baseado no afeto, na aliança e no amor, os pares não
precisam ser formados por pessoas da mesma faixa etária, da mesma classe social, ou de
sexos opostos para poderem constituir família.

A realidade social trouxe uma nova ideia de família com as diversas configurações. A
concepção de família a que estávamos habituados não existe mais como modelo único. Tudo
isso desmoronou a supremacia da concepção da antiga família patriarcal, onde o elemento de
constituição da mesma não é só laços de parentesco de natureza biológica ou civil, mas
principalmente de afetividade. Sarti (2006) afirma que na contemporaneidade

A tradição vem sendo abandonada como em nenhuma outra época da História. Assim, o
amor, o casamento, a família, a sexualidade e o trabalho, antes vividos a partir de papéis
preestabelecidos, passam a ser concebidos como parte de um projeto em que a
individualidade conta decisivamente e adquire cada vez mais importância social (SARTI,
2006, p. 43).

A partir do momento que existe espaço para o desenvolvimento da individualidade abre-se


espaço para o conflito. Os papéis antes preestabelecidos passaram a ser negociados. Segundo
Vaitsmam (1994) à medida que "homens e mulheres passam a se ver como iguais, criam-se
condições sociais particularmente favoráveis para que este conflito se manifeste, levando a
um maior número de separações." (VAITSMAN, 1994, p. 35). No processo de reorganização
familiar é possível enxergar tantos os pontos de fragilidades, como as riquezas das respostas
encontradas pelos grupos familiares.

1121
Um dos pontos frágeis do divórcio tem sido o cuidado com os filhos. Muitos pais, ao se
divorciarem da esposa, parece que também se divorciam dos filhos. A guarda dos filhos, na
maioria das vezes, fica com a mãe. Muitos pais nem mesmo contribuem com a pensão dos
filhos, mesmo que esse compromisso seja uma obrigação garantida pela lei. Enquanto isso
muitas mães assumem todo o sustento da família. Por outro lado existem pais extremamente
atenciosos que dividem o cuidado dos filhos, seja na guarda compartilhada, na educação e,
por conseguinte, conseguem resolver a separação de forma madura sem prejudicar tanto os
filhos.

A riqueza das novas organizações familiares é que ela resgata vínculos e elos perdidos,
aproximando mais as famílias no cuidado com as crianças, estabelecendo uma rede solidária
entre avós, parentes, amigos e vizinhos, para driblar a pobreza. Nesse sentido, observa-se que
os novos arranjos familiares estabeleceram conexões resgatando a solidariedade que existia
nas famílias anteriormente. As dificuldades experimentadas afloram a criatividade, as
demandas de sobrevivência resgatam elos perdidos e abrem espaços para os vínculos de
parentescos.

O discurso religioso nem sempre tem acompanhado as mudanças experimentadas pela


instituição família na contemporaneidade. As famílias estão se desfazendo e refazendo
também no contexto religioso. A tradição vem sendo abandonada, mas ainda percebe-se que
o modelo idealizado de família pela religião é o modelo de base nuclear, onde os papéis de
gênero estão bem definidos, colocando a figura da mulher como subalterna em relação ao
homem.

A Igreja Católica, ao longo dos anos, assumiu um discurso conservador não aceitando o
divórcio. Já algumas Igrejas Protestantes, como a Metodista e a Luterana, entre outras,
assumiram um posicionamento mais liberal celebrando em suas igrejas o casamento de
divorciados. De acordo com Machado "os protestantes, ao contrário, destacam-se por uma
posição de respeito às leis civis, procurando se adaptar às mudanças sociais, como a dissolução
do contrato matrimonial e o planejamento familiar" (MACHADO, 1996, p. 104).

2.1 - O discurso religioso na Igreja Metodista

A Igreja Metodista, através dos seus documentos oficiais, expressou a sua posição em 1979,
publicando uma Pastoral da Família na qual a Igreja, enquanto instituição, expressava a sua
postura diante da aprovação da lei do divórcio. A posição da Igreja representou um grande

1122
avanço para a época que se pensava que através do divórcio a família estava fadada a
desaparecer. Destacaremos alguns trechos desta pastoral que reflete a posição da Igreja
Metodista.

Cremos que a família não está num processo de dissolução, mas sim, de transformação.
Compreender e aceitar este fato à luz da Palavra de Deus, de sua revelação natural e
histórica e à luz da realidade humana pessoal e social, é tarefa da Igreja... Cumpre-nos
reconhecer que, a superação da crise atual da família implica também agir de forma criativa
e dinâmica em tudo aquilo que tem afetado a vivência familiar (COLÉGIO EPISCOPAL,
1979, p. 9).

Diante da aprovação da lei do divórcio, a Igreja Metodista não se omitiu, mostrando uma
posição madura diante da crise vivenciada pela família. Tal postura representou um grande
avanço para a época. Reconhecer que, diante da crise da família, precisava agir de forma
criativa e dinâmica, representava, não só para aquela época como ainda hoje, um grande
avanço no contexto religioso. Havia várias pessoas que viviam separadas e tinha dificuldades
de refazerem suas vidas. A legalização do divórcio possibilitou um novo recomeço para
muitas pessoas. E a Igreja Metodista se fez presente na vida destas.

A Igreja Metodista não poderia deixar de emitir o seu pensamento e definir o seu
posicionamento. Temos nos pronunciando, no decorrer dos anos, contra solução
inadequadas, relativas aos casais que enfrentam crises conjugais ou que já vivem separados.
Em seu Credo Social, a Igreja tem-se pronunciado contra solução inadequada do desquite.
Reconhece que tanto o desquite, como o divórcio ou as uniões ilícitas, produzem sérios
males para a vida familiar, atingindo principalmente os filhos. Mas, diante de todas as
soluções preconizadas para resolver a situação do casal separado, a Igreja se manifesta
favoravelmente à implantação do divórcio, como o corretivo mais adequado, dentre todos
os usados (COLÉGIO EPISCOPAL, 1979, p. 27).

A Igreja Metodista não é a favor do divórcio. Ela é a favor da unidade da família e da


indissolubilidade do matrimônio. Contudo, diante das anomalias familiares, dentre todos os
recursos inadequados, considera o divórcio, como o que, dentre todos os outros recursos,
produz menos males ao casal e aos filhos, dando-lhes melhores condições jurídicas
(COLÉGIO EPISCOPAL, 1979, p. 27).

Percebe-se que a Igreja mantém uma postura pastoral e, como tal, deixa claro que não é a
favor do divórcio e sim a favor da indissolubilidade do casamento. O divórcio dentre todos os
recursos é aceito pela Igreja como mal menor para assegurar o bem estar da família, depois de
terem sido esgotados todos os esforços de manter o casamento. O divórcio é visto pela Igreja

1123
Metodista como algo "trágico", como consequência do pecado. A Pastoral da Família e o
Ritual de Celebração da Igreja, assim como os Cânones que regem as leis da Igreja afirmam
que as pessoas divorciadas que querem refazer suas vidas numa segunda união só poderão se
casar novamente após serem exortadas pastoralmente "e manifestar sinais de arrependimento
e disposição de nova vida em harmonia com a vontade de Deus" (PASTORAL DA
FAMÍLIA, 1979, p. 31). Mesmo aceitando como um mal necessário, a Igreja Metodista lida
melhor com a situação do divórcio, procurando agregar as famílias através de atividades que
fortalecem os vínculos familiares.

O divórcio é visto como pecado e como tal precisa ser confessado e tratado através do
arrependimento e de predisposições de mudanças. A ação pastoral precisa levar a pessoa
divorciada a ter consciência da nova chance dada para estabelecer uma nova união. A Igreja,
tanto a nível Geral, Regional, Distrital e Local, tem priorizado metas e ministérios específicos
com temas sobre a família, dando apoio e suporte através de atividades como: palestras,
grupos de casais, grupo de mulheres, ministérios de capacitações para pessoas que trabalham
na área da família. Todas essas atividades visam fortalecer os vínculos familiares na Igreja
Local onde os membros participam e, consequentemente, evitar o divórcio.

A pastoral da família foi publicada há 34 anos atrás e o novo Plano Nacional Missionário (2012 -
2016) menciona que essa pastoral deverá se adequar às novas demandas da contemporaneidade.

2.2 - O discurso religioso na Igreja Luterana

A Igreja Luterana (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB) também


publicou uma Pastoral, em 1997, expressando a sua posição em relação à Lei do Divórcio.
Nessa pastoral a mesma reafirma as mudanças baseadas na Constituição de 1988 com relação
à igualdade de direitos de homens e mulheres. A pastoral aponta que a sociedade brasileira
está passando por um contexto de mudanças e rupturas. "Cresce a quantidade de famílias só
com mãe e crianças, sem pai. Surgem cada vez mais filhos e filhas com quatro pais, ou seja,
mães e pais divorciados e recasados" (IECLB, 1997, p. 10).

A pastoral aponta as rupturas das famílias, bem como perdas e ganhos dessas novas
organizações familiares. Nesse processo a Igreja precisa de novas propostas que visam
integrar essas novas configurações familiares. A partir das mudanças na área jurídica, a

1124
pastoral aponta que as mesmas trouxeram novas questões para a prática da Igreja.

A vida em família é um processo de constantes rupturas, perdas e ganhos, apegos e


desapegos, construção e reconstrução da trajetória de uma existência compartilhada. Nesse
processo, a fé religiosa é um fator de reordenação do caos. Constata-se, contudo, que a
proliferação de propostas religiosas causa confusão, gera conflitos e patologias (IECLB,
1997, p. 11).

O posicionamento oficial da Igreja Luterana saiu em 1997, 18 anos após o posicionamento da


Igreja Metodista. A pastoral também representa um grande avanço em relação a outras Igrejas
Protestantes. A mesma veio auxiliar as paróquias e comunidades da IECLB a lidarem com as
diversas situações familiares.

Estas modificações na área jurídica trouxeram novas questões para a prática da Igreja. A
realização da Bênção Matrimonial estava naturalmente vinculada à sansão do Estado. Só se
concedia a Bênção Matrimonial ao casal que casava no civil. Em muitos lugares também só
se batizava a criança de um lar legitimamente constituído. A nova realidade admite uniões
fora do modelo tradicional. Existe a possibilidade legal de uniões por concubinato. Fala-se,
inclusive, na legalização de uniões de parceiros do mesmo sexo, tendo em vista ser uma
realidade a existência da indiferenciação entre os sexos (IECLB, 1997, p. 10).

A Pastoral da Igreja Luterana, por ter saído em 1997 depois das mudanças da Constituição de
1988 quanto ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, se mostra mais
aberta aos diversos modelos de família já existentes na Igreja e na sociedade. Fala-se até
mesmo de uniões de parceiros do mesmo sexo, mostrando que a Igreja não está alheia aos
acontecimentos da sociedade. A pastoral enfatiza também que o divórcio é visto como pecado
que precisa de penitência. Ao mesmo tempo em que a pastoral é progressista e liberal, ela
também é conservadora, representando uma continuidade dos valores religiosos. O ritual de
celebração de casamento da Igreja Luterana afirma que "o santo matrimônio será dissolvido
só pela morte. Assim diz Jesus Christo: o que Deus ajuntou, não o separe o homem (Mat.
19,6)" (IECLB, 1952, p. 51). O mesmíssimo conteúdo encontramos no Celebrações do Povo
de Deus, publicado em 1991, 39 anos depois (IECLB, 1991, p. 62).

Nos votos que os noivos fazem um ao outro é interessante como, na parte da mulher, é
acrescentado "ser a ele sujeita no Senhor, não abandoná-lo em horas de alegria e de dor e
manter a união matrimonial santa e indissolúvel, até que a morte vos separe?" (MANUAL DO
CULTO EVANGÉLICO, 1952, p. 52), o que não encontramos nos votos feitos pelo homem.
No ritual de celebração matrimonial de 1991 (CELEBRAÇÕES DO POVO DE DEUS, p. 62),

1125
essa frase dos votos da mulher é retirada, mas o compromisso do casamento continua sendo
"até que a morte nos separe".

No ritual da Igreja Metodista de 1990 essa frase ficou da seguinte forma: "Quero guardar-me
somente para ti enquanto junto vivermos". (RITUAL, 1990, p. 54). Já em 2001 o novo ritual
apresentou a seguinte mudança: "Na esperança de viver ao seu lado por toda a minha vida."
(RITUAL, 2001, p. 54).

Nota-se que as mudanças são pequenas, mas mesmo assim as Igrejas Metodista e Luterana
são consideradas mais abertas às pessoas que passam pelo divórcio e que procuram novos
casamentos.

3 - Como os sujeitos religiosos experimentam o discurso religioso no âmbito eclesial

Desenvolvemos uma pesquisa de campo nas duas instituições, Metodista e Luterana, na


cidade de Ferraz de Vasconcelos. Foram aplicados 22 questionários aos sujeitos religiosos que
passaram pelo divórcio e um novo casamento, ou apenas pelo divórcio, com o objetivo de
verificar até que ponto o discurso institucional é coerente ou dissonante na prática dos sujeitos
religiosos. O que a instituição está afirmando através de suas publicações é o mesmo que os
membros experimentam no cotidiano da vida em comunidade?

A Igreja Metodista pesquisada está na cidade de Ferraz de Vasconcelos há 16 anos, num bairro
de periferia. A comunidade é constituída, em sua maioria, por mulheres negras que fazem parte
da liderança da Igreja. Das mulheres que participam dessa comunidade, 23% passaram pelo
divórcio e optaram em não casar-se novamente. A Igreja possui uma visão conservadora no que
se refere a este tema.

A Igreja Luterana está presente na cidade desde 1954, um ano após o município ser
emancipado. Surgiu com os migrantes de descendência alemã, vindos de Joinvile/SC, e foi a
segunda Igreja da cidade. A comunidade conta com um índice de 30% dos seus casais que
passaram pelo divórcio e também pelo segundo casamento. É um índice bastante elevado.

Constatou-se, através da pesquisa, que todos os sujeitos entrevistados das duas instituições
religiosas não têm sequer o conhecimento dos documentos da sua Igreja que falam a respeito do
divórcio e de novos casamentos, nem mesmo as lideranças leigas. A Igreja Metodista possui a

1126
Pastoral da Família, que é o principal documento que explicita a temática do divórcio, e
passaram-se 34 anos e os membros da Igreja Local entrevistados desconhecem a existência da
mesma. Na Igreja Luterana a Pastoral da Família saiu em 1997, há 16 anos atrás. Constatou-se,
através da pesquisa, que 100% dos sujeitos entrevistados dessa instituição também
desconhecem a existência desse documento. Isso nos faz concluir que esses documentos não são
estudados nem divulgados na vida das Igrejas Locais, pois nem mesmo a liderança conhece a
postura oficial de sua Igreja a respeito do assunto. Isso nos faz questionar: até que ponto é do
interesse da instituição não estudar esses documentos? Será que não divulgar esses documentos
serve aos interesses da Igreja enquanto instituição para manter um determinado modelo de
família? Ou serve aos interesses das comunidades eclesiais onde as prioridades são outras?
Porque os sujeitos religiosos que passam pelo divórcio não têm conhecimento desses
documentos?

Mas apesar das pessoas entrevistadas desconhecerem os documento de sua Igreja, 76,2% delas
responderam que sua Igreja aceita bem o casal de divorciado, enquanto que apenas 14,3 %
disseram que sua igreja aceita mais ou menos o casal de divorciados. Constata-se que, apesar de
desconhecerem os documentos, a prática das igrejas locais não é discriminatória, nem excludente.

Com relação à guarda dos filhos após a separação, constatou que 100% das pessoas
entrevistadas que tinham filhos no primeiro relacionamento responderam que a guarda dos
mesmos ficou com a mãe. Porém, quando perguntadas com quem deveriam ficar os filhos
após o divórcio, 66,7% dos homens responderam que a guarda deveria ser compartilhada e
66,7% das mulheres disseram que deveria ficar com a mãe. A resposta dos homens confere
com o índice de crescimento da guarda compartilhada segundo o último censo do IBGE.

Com as relações mais flexíveis e plurais, as novas configurações familiares têm se modificado
e os pais (homens) têm participado mais intensamente na educação dos filhos e se fazem mais
presentes que anteriormente. Isso representa um ganho para as mulheres que não precisam ter
a responsabilidade exclusiva no cuidado com os filhos, tendo mais tempo para si mesmas.
Essa mudança de mentalidade faz parte dos novos tempos, mas é uma mudança gradativa e
nem sempre muito fácil.

Quanto ao motivo da separação das mulheres, a traição é apontada em 37,5% das vezes, a
violência doméstica em 25% e as brigas domésticas em igualmente 25% das vezes. Enquanto
isso, os homens responderam que as brigas, ciúmes, que o amor acabou, e que se casaram

1127
muito cedo foram igualmente, em 23,1% das vezes, o motivo. Se no caso das mulheres a
traição é a grande responsável, no caso dos homens ela só aparece em 7,7% das vezes.
Conclui-se, a partir da pesquisa de campo, que os homens traem mais que as mulheres.

4 - O discurso institucional e as práticas eclesiais são coerentes ou dissonantes?

Nem sempre o discurso institucional tem sido coerente com as práticas eclesiais. Isso pode ser
constatado pela falta de conhecimento dos documentos institucionais pelos sujeitos religiosos
entrevistados.

A maioria das pessoas entrevistadas respondeu que não recebeu nenhum tipo de apoio pastoral
quando passou pelo divórcio, nem tão pouco da liderança e dos membros de suas respectivas
igrejas. Enquanto isso, numa pesquisa dirigida aos/às pastores/as da União Paroquial de São
Paulo (união das diversas Paróquias da IECLB na grande São Paulo) sobre os temas do divórcio
e novos casamentos, 80 % dos/as pastores/as disseram que o acompanhamento pastoral às
famílias que passaram pelo divórcio é bom e 10% disseram que é ótimo. Apenas 10% disseram
que era regular. Isso diverge com as respostas das pessoas entrevistadas, quando a maioria
respondeu que não recebeu nenhum tipo de apoio pastoral durante o período de divórcio.

Mas apesar de não se sentirem cuidados e acompanhados por seus pastores, nem tão pouco
pela liderança e pelas irmãs e irmãos de sua Igreja, a maioria das pessoas entrevistadas
reconhece que tanto a Igreja Metodista quanto a Igreja Luterana aceita bem o casal de
divorciados e que a postura da Igreja a esse respeito é liberal.

Mesmo não tendo conhecimento dos documentos oficiais da Igreja e apesar de não serem
acolhidos e acompanhados por seus/suas pastores/as, os sujeitos entrevistados constatam que
na prática das comunidades não se sentem discriminados e que a Igreja aceita bem em seu
meio os casais que passaram pelo divórcio e novos casamentos, demonstrando, desta forma,
coerência com os documentos oficiais da Igreja.

Diante disso, como tem se dado o discurso institucional religioso? Ele tem acompanhado as
transformações ocorridas na sociedade? Será que a prática eclesial onde essas novas
configurações estão inseridas modifica o discurso religioso? Percebe-se que a religião,
enquanto instituição, tem assumido, por vezes, um discurso progressista outras vezes
conservador, não acompanhando as mudanças ocorridas nas dinâmicas familiares. A religião

1128
enfatiza um determinado modelo de família baseado no modelo nuclear patriarcal e todas as
atividades desenvolvidas na Igreja visam fortalecer os vínculos da família e evitar o
rompimento. O divórcio é visto como um mal necessário e consequência do pecado. A Igreja
Metodista em sua pastoral enfatiza que a pessoa divorciada que quer refazer a sua vida numa
segunda união precisa ser exortada ao arrependimento e se propor a uma nova vida de acordo
com a vontade de Deus. Tanto que, apesar da pastoral da família ter saído há 35 anos atrás, ela
não foi atualizada, nem tão pouco o ritual de celebração do matrimônio inclui a pessoa
divorciada. Por outro lado se o documento é tão antigo, por que a comunidade não o conhece?
Será que manter o documento no esquecimento serve aos interesses institucionais ou
eclesiais?

Por outro lado muitas vezes as práticas das comunidades divergem com a posição
institucional, acolhendo em seu meio diversas configurações familiares. É o que refere os
sujeitos entrevistados na igreja luterana. Mesmo não conhecendo os documentos de sua
Igreja, todos afirmam que a postura da mesma é liberal e se sentem extremamente acolhidos.
Alguns inclusive vieram para a Igreja por causa do casamento. Pois na Igreja de origem não
quiseram celebrar o casamento por serem pessoas divorciadas. Um dos entrevistados que veio
de uma outra Igreja Evangélica disse que ao passar pelo divórcio recebeu em sua casa uma
carta de exclusão da sua antiga Igreja. No início do seu segundo casamento não conseguia
nem mesmo batizar os seus filhos por causa da condição de divorciado e o mesmo se sente
extremamente acolhido na Igreja Luterana. Só no ano de 2012 foram celebrados na referida
Igreja dois casamentos de pessoas divorciadas. Apesar do ritual não estar atualizado, os
pastores/as o têm adequado à celebração religiosa.

Na maioria dos casos houve rupturas com o modelo de família enfatizado pela religião, mas
apesar das rupturas percebe-se também continuidades do modelo tradicional. Muitos
casamentos são mantidos por causa de certas conveniências e dificuldades de romper com um
símbolo inculcado pela religião como algo sagrado assumido no altar da Igreja. A religião,
como sistema de sentido, atua como legitimadora dos símbolos sagrados e funciona, "para
sintetizar o ethos de um povo" (GERTZ, 1989, p. 66). As palavras proferidas nas celebrações
de casamento são investidas de um poder simbólico que transcende o próprio momento.
Romper com o modelo de família idealizado e enfatizado pela religião durante séculos, nem
sempre tem sido fácil. Não existem respostas prontas e nem únicas para cada situação. As
crises provocam instabilidades que precisam ser trabalhadas pela Igreja.

1129
Considerações finais

Percebe-se que houve mudanças significativas nas novas composições familiares, mas ainda
há continuidades de valores assimilados ao longo da vida que são difíceis de serem quebrados.
Toda mudança gera incertezas e inquietações. As mudanças geram crises e permitem o novo.
Os paradigmas nos influenciam na maneira como vemos o mundo. O difícil hoje pode ser o
padrão amanhã. Somos desafiados a criar e recriar o presente. Arranjos familiares diferentes
sempre existiram, talvez em menor quantidade ou de forma muito mais velada, não explícita
e, com certeza, assaz marginalizada. Percebe-se que quanto maior a frequência desses
arranjos, maior a aceitação dessas novas configurações. As novas regras começam nos limites
e, acima de tudo, com o rompimento de velhos paradigmas, assumindo novos. Há sempre
lugar para o novo, para acrescentar o que não estava antes. Diante das novas configurações da
família contemporânea, a religião tem por tarefa específica ir ao encontro das pessoas, jamais
podendo adotar princípios de intolerância.

Numa sociedade mutável, a religião transforma-se e tem como função relacionar o novo
com o passado e incorporar este último às novidades. A mudança social ameaça a
coerência. Para continuar existindo, uma sociedade depende tanto da transformação quanto
da continuidade. Eis o paradoxo de toda sociedade viva (RIVERA, 2010, p. 45).

Na contemporaneidade, com as diversas configurações familiares, percebe-se que muitas


famílias enfrentam, no contexto religioso, muitas dificuldades ao passar pelo divórcio. Alguns
são expulsos de suas Igrejas ao se divorciarem, têm dificuldades para batizar seus filhos,
enfrentam resistências e preconceitos por parte de familiares e até mesmo das irmãs e dos
irmãos da Igreja. Muitos não recebem apoio pastoral, nem tão pouco da liderança. Algumas
mulheres sofrem assédio sexual por pessoas de sua própria Igreja ao passarem pelo divórcio,
sendo vistas como mulheres fáceis, pela simples condição de divorciadas; outras se afastam
por conta da vergonha e pela maneira como são olhadas pelos membros de sua Igreja. Muitas,
ao se divorciarem, sentem-se culpadas por não terem mantido seu casamento. Diante de tal
situação de que forma as Novas Configurações familiares no contexto do divórcio e novos
casamentos continua impactando o discurso institucional das Instituições Metodista e
Luterana e na prática das comunidades eclesiais.

Diante das novas indagações familiares, a religião precisa encontrar novas respostas para as
tantas inquietações surgidas no interior das multiformes composições familiares. Há diversas

1130
configurações familiares que querem ser acolhidas pelo e no discurso religioso. Este não pode
ser exclusivista, mas precisa ser inclusivo. Ao incluir as multiformes composições familiares,
novas e criativas respostas precisam ser encontradas.

Referências

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Metodista, 1979.

COLÉGIO EPISCOPAL, Igreja Metodista. Plano Nacional Missionário 2012-2016. São


Paulo: Sede Nacional, 2011.

COLÉGIO EPISCOPAL, Igreja Metodista. Ritual da Igreja Metodista. São Paulo: Cedro,
2005.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

IBGE. Registro Civil 2011: Taxa de divórcios cresce 45,6% em um ano. 2011. Disponível em:
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2294.
Acesso em 28 dez. 2012.

IECLB. Celebrações do Povo de Deus. São Leopoldo: Sinodal, 1991.

__________. Manual do Culto Evangélico. São Leopoldo: Sínodo Riograndense, 1952.

__________. Posicionamento da IECLB sobre a Pastoral de Família. Valorizando a Família.


São Leopoldo: Sinodal, 1997.

IGREJA METODISTA. Ritual da Igreja Metodista. São Paulo: Imprensa Metodista, 1990.

IPEA. Aumenta número de mulheres chefes de família. 2010. Disponível em:


http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=6055.
Acesso em 05 fev. 2013.

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fazem parte de uma revolução de costumes que está mudando a cara do Brasil e do mundo.
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1132
1133
Representações de gênero permeadas por violência simbólico-
religiosa no discurso midiático paraibano
Silvia Silveira1, Fernanda Lemos2

Introdução

O presente trabalho busca analisar as representações sociais interpeladas por violências de


gênero reproduzidas no discurso mediatizado por capital cultural simbólico-religioso
cristão/católico na Paraíba.

Reportagens e notícias veiculadas pelo Sistema Correio de TV na Paraíba, no programa


Correio Verdade (PCV), foram coletadas e gravadas no período de um mês, entre setembro e
outubro do ano de 2012. Estas constituem o discurso midiático objeto para a análise de
discurso que segue.

Utilizaremos aqui a concepção de campo religioso, não abordaremos religiosidade ou


espiritualidade individual como experiência extracotidiana, mas um viés da realidade
sociocultural onde se desenrola a problemática apontada. Tal análise sugere como se adapta
neste contexto a incorporação da violência de gênero como habitus3 próprio, intermediado
pelo simbolismo religioso acessível a diversos públicos através da TV.

Metodologia de análise e identificação da problemática

Em trabalho anterior, verificou-se que “o discurso religioso se torna mantenedor e legitimador


das diferenças nas relações sociais de sexo, construídas no decorrer do processo histórico.”

1
Graduanda em Ciências das Religiões na UFPB. A temática desta proposta é integrante de pesquisa intitulada
“Gênero, cultura e religiosidade no contexto paraibano”, realizada através do Programa de Bolsas de Iniciação
Científica – PIBIC 2012-2013. Estudante no Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e de Gênero,
da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Contato: sas.ufpb@gmail.com
2
Doutora em Ciências da Religião pela UMESP e membro do GE de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL.
Professora do Departamento e do PPG em Ciências das Religiões da UFPB. Contato: somel_ad@yahoo.com.br.
3
O conceito de habitus remete à cultura tradicional herdada, pressuposto um monopólio na sua transmissão, que
“tem seu princípio na instituição escolar investida da função de transmitir conscientemente e em certa medida
inconscientemente ou, de modo mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas
inconscientes (ou profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor, seu habitus, ou seja,
em suma, de transformar a herança coletiva em inconsciente individual e comum.” (BOURDIEU, 2011, p. 346).
Embora o autor refira-se aí de modo geral às instituições que tiveram influências escolásticas, aqui o conceito é
aplicado à instituição midiática, por sua influência na constituição do saber de senso comum.

1134
(LEMOS, 2001, p. 114). Observou-se aí o poder simbólico no discurso, capaz de transformar
o pensamento e atuar como instituidor da misoginia e androcentrismo, utilizando-se de
símbolos religiosos para dar validade a uma linguagem que se pauta e produz violência de
gênero.

As estatísticas apontadas em caderno complementar, publicadas no Mapa da Violência 2012


sobre homicídio de mulheres (WIESELFISZ, 2011, p. 7), demonstram que a Paraíba ocupa o
quarto lugar na classificação por unidade federativa: enquanto a média nacional é 4,4 em 100
mil mulheres para o ano de 2010, a Paraíba registra 6,0.

Nosso estudo contempla como este fenômeno se expressa através do discurso midiático da TV
regional e sua influência religiosa, isto porque assim “podemos melhor compreender o
jornalismo como prática que negocia cotidianamente com os demais atores sociais, inclusive
na tentativa de fazer prevalecer pontos de vista” (CARVALHO, 2010, p. 352 apud
SILVEIRINHA, 2005). Aqui nos interessa analisar as veiculações carregadas por
representações sociais4, especificamente aquelas de gênero, porque refletem o cotidiano do
senso comum, que é também uma:

forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que


contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Igualmente
designada como saber de senso comum ou ainda saber ingênuo, natural, esta forma de
conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico. Entretanto, é tida
como um objeto de estudo tão legítimo quanto este, devido a sua importância na vida social
e à elucidação possibilitadora dos processos cognitivos e das interações sociais (JODELET,
2001, p.22).

Para estudar o meio de comunicação em sua produção e reprodução de discursos, nos valemos
da análise crítica do discurso (ADC). Julgamos adequado tal uso por esta se apresentar como
modelo teórico-metodológico que “procura estabelecer um quadro analítico capaz de mapear
a conexão entre relações de poder e recursos linguísticos selecionados por pessoas ou grupos
sociais.” (RAMALHO; RESENDE, 2004, p. 185-186).

4
Utilizamos o conceito da teoria das representações sociais, estas como formas de conhecimento geradas pelas
mais diversas visões de desenvolvimento cultural, pela realidade objetiva própria de indivíduos que pertencem a
grupos ou estratos sociais em suas “conversações cotidianas menos reprimidas” (MOSCOVICI, 2011, p. 181),
pertinentes à história de adaptabilidade nesta realidade. São reproduzidas, acumuladas e transmitidas de geração
em geração, em geral antecipando-se à possibilidade da apreensão subjetiva por processo cognitivo, como o
fazem as instituições. O discurso produzido então atua como reprodutor das representações sociais porque reflete
e comunica sobre uma realidade objetivada. No caso do discurso midiático, os temas abordados são
seletivamente organizados e comunicados, segundo o que é relevante para o público a quem se dirige, em sua
realidade, implicando na ancoragem de valores.

1135
Escolhemos o PCV em nossa análise, por sua característica de popularidade entre os
paraibanos da capital. Apresenta facilitada acessibilidade e visibilidade por diversas camadas
e categorias sociais, em razão de seu horário de transmissão ser capaz de atingir uma
amplitude considerável de público. Vai ao ar de segunda a sábado, ao meio dia, podendo ser
visto por crianças, adolescentes, adultos, idosos, estudantes, profissionais em horário de
almoço, donas-de-casa.

Ademais, nossa escolha por este programa decorre de sua filiação a um grupo midiático
religioso cristão. Sua transmissão é realizada pela Rede Correio TV – João Pessoa, gerida
pelo Sistema Correio, “um dos maiores grupos de Comunicação do Nordeste com 26 veículos
de comunicação: dois jornais impressos, duas emissoras de TV’s sendo uma TV afiliada à
Rede Record” (SISTEMA CORREIO, 2013). A Record, rede aberta de televisão, é de
propriedade de Edir Macedo, bispo na Igreja Universal do Reino de Deus, adquirida em 1989
e transformada em “rede nacional em expansão, cujas programação e administração foram
reestruturadas com os recursos da igreja” (MARIANO, 2005, p.67).

Discurso midiático em análise

O que se segue é a transcrição de um quadro do PCV que foi ao ar no dia 24-09-2012 (vinte e
quatro de setembro de dois mil e doze)5. Os atores do discurso são: o apresentador (A1), o
repórter (A2) e a mulher (A3), apresentada primeiramente como uma jovem de 20 anos
baleada na cabeça.

(A1) diz: “Brincadeira... negócio de brincar com revolver não dá certo. O cara tem que
brincar de dar chêro na esposa dele. Mas não, ele foi brincar com a esposa de atirar, de
pegar o revolver, enrolar o cano, aquela roleta russa. Deixou uma bala no tambor, roda e
pá! – se não tiver a bala, sorte, se tiver, lascou. Ô, brincava de dar um beijo na mulher,
meu. Mas... graças a Deus ela sobreviveu! Ela recebeu alta graças a Deus! [...] Meu amigo,
tem certos tipos de brincadeira que não é pra brincar. Ela recebeu alta, graças a Deus. E ela
conversou com o repórter aqui do Correio Verdade [...] com exclusividade. coloca aqui na
tela pra todo mundo ver: ela sobreviveu, já saiu do hospital, graças a Deus. Vai!”

(A2) diz: “[nome da jovem] é aquela jovem que foi baleada na cabeça por um tiro acidental
disparado pelo próprio esposo. Segundo informações, ela recebeu um tiro na cabeça e foi

5
Família pede liberdade do homem preso por atirar acidentalmente na mulher. Correio Verdade: João Pessoa, 24
setembro, 2012. Programa de TV.

1136
socorrida pelo próprio marido para o hospital de emergência e trauma. E ela vai contar o
que aconteceu com ela e fazer um pedido e dizer como tudo aconteceu e porque? Porque
ela está querendo a liberdade do marido.” [imagens do marido são mostradas enquanto (A2)
pronuncia seu discurso. São alternadas imagens do marido e de (A2), sentado no sofá e
narrando o acontecido]

[...]

(A3) diz: “Eu tô aqui porque deus me deu um livramento, provou que ele existe.”

(A2) diz: “Você disse a mim que queria fazer um pedido, fazer um pedido, um apelo às
autoridades, à sociedade paraibana, a todo mundo na Paraíba que está te ouvindo.”

(A3) diz: “Eu queria que a justiça soltasse ele, porque eu não tô aguentando mais [...] (a
fala torna-se incompreensível por causa do choro). Dizem que vão soltar ele e não soltam,
todo dia. Ele não teve culpa”. (FAMÍLIA pede liberdade..., 2012)

Outras pessoas são mostradas. Uma segunda mulher (A4) é entrevistada pelo repórter,
apresentada como a dona da casa onde mora o casal. São mostradas outras cinco pessoas,
cujos relacionamentos com o casal não são explicitados, todas emitindo pareceres favoráveis
ao marido. No total, a imagem captura seis sujeitos: três jovens e três mulheres.

(A4) diz: “Todo mundo da família perdoou ele. Sabe que não foi porque quis, né. A gente
tamo ajudando a ele sair de lá. O pai dela, eu, os tio, as tia, todo mundo tá a favor dele”.

(A2) diz: “Todo mundo aqui tá querendo a soltura do rapaz”.

(A4) diz: “A gente quer que ele se solte, porque ele não teve culpa, e a família tá toda a
favor dele, a favor a ele”. (FAMÍLIA pede liberdade..., 2012)

Volta-se ao apresentador (A1). Este pede que na tela seja mostrado o marido, enquanto estava
algemado, chorando copiosamente. Então comenta:

(A1) diz: Graças a Deus que ela sobreviveu. Graças a Deus. E ela chora dizendo que perdoa
o marido. Eu não vou comentar: preste atenção! Vou deixar aqui pra você assistir, tirar as
conclusões: ela assume, ela diz que ela pegou o revolver, diz que perdoa... que ele não tem
nada a ver [...] poderia estar morta, poderia estar enterrada já, não é verdade? Coloca ela aí,
dizendo que perdoa, quer o marido de volta, e que AMA ele, ela morre de amor, ela quer
ele, quer porque quer, bota aí... (e colocam a parte do choro, incompreensível)”.
(FAMÍLIA pede liberdade..., 2012).

1137
Embora (A1) diz que não vai comentar, ele comenta com veemência, e não brevemente, antes
de chamar novamente a imagem piedosa da esposa chorando copiosamente, já anteriormente
mostrada, congelada e em seguida novamente reproduzida. Após o seu discurso que coloca a
mulher como responsável e vítima de seu próprio ato, frisa que ela não responsabiliza o
marido de forma alguma: o importante é que ela já o perdoou, é que ela morre de amor. A
imagem que (A1) resgata, mais uma vez, após suas palavras, é a da mulher chorando como
uma criança, tal sonoridade impossibilitando a compreensão de suas palavras. Vamos nos
aprofundar mais detalhadamente nestes elementos, através da ADC. Cabe-nos primeiro
apresentar o aparelho conceitual em que se embasa a problematização das relações sociais que
constituem o campo complexo de nossa pesquisa: o campo religioso.

Campo religioso e gênero em dependência mútua: violência simbólica reproduzida pelas


representações sociais dos sexos, transmitida pela TV na produção de sentidos

Sociologicamente, a força sobrenatural da religião não está em eventos metafísicos, mas na


capacidade que ela exerce em sociedade, de acordo com a sua potencial coercividade de
fundamentar uma segunda natureza, capacitando o sujeito na dinâmica conflituosa e finita da
representação de papéis em sua realidade social objetivada. É relevante observar então o
processo de socialização no seu trajeto histórico-cultural, na dinâmica de sua dialética social,
atravessada por apoteoses e teodiceias. (BERGER, 1985, pp. 24-27).

Toda literatura, modos e comportamentos estruturados por sistemas simbólicos, inclusive as


religiões, são fabricações do fazer humano que reforçam sua utilização e manifestação, suas
significações nos mais variados âmbitos, aspectos e campos do saber, sendo, portanto,
“infraestruturas específicas da história humana” (idem, p. 186).

Entendemos o campo religioso como o lugar complexo onde um determinado capital cultural
estruturado por sua gênese social se converte em manifestações no cotidiano das relações
sociais, em verdades últimas e reais para aqueles imersos nas relações de poder, inclusive
aquelas baseadas na divisão de sexo, portanto, em relações de gênero, demonstrando que
“gênero e religião são interdependentes” (LEMOS, 2007, p. 51).

Assim, os símbolos do discurso são considerados dinamicamente estruturantes da realidade


sociocultural na medida em que propõe significâncias mantenedoras dos padrões de
comportamento, de acordo com a influência do seu poder simbólico de constituição,

1138
manutenção e instituição das relações de poder. Explica-se que “o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2001, p. 8). Os
sistemas simbólicos são instrumentos que “só podem exercer um poder estruturante porque
são estruturados” (idem, p. 9), e assim, cumprem um papel violento em:

sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que


contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)
dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e
contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos
dominados”(idem, p. 11).

Impostas também são as relações sociais de sexo que, entendidas como relações de gênero,
corroboram com uma naturalização das distinções e hierarquias que se baseiam em diferenças
“naturais” percebidas entre os sexos. A força simbólica proveniente do imaginário religioso é
influente neste processo de imposições na constituição do poder entre os campos de forças
sociais:

Como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas, o
gênero implica quatro elementos inter-relacionados: em primeiro lugar, os símbolos
culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (e com frequência
contraditórias) – Eva e Maria como símbolos da mulher, por exemplo, na tradição cristã
ocidental – mas também mitos de luz e escuridão, purificação e poluição, inocência e
corrupção (SCOTT, 1990, p. 86).

Considera-se aqui a força simbólica do discurso em questão como “fragmentação


preestabelecida da realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a compreendem, que
faz algumas delas visíveis e outras invisíveis” (MOSCOVICI, 2011, p. 31). O discurso
midiático, por conter tais fragmentos, torna suas representações sociais estímulos orientadores
na relação entre indivíduo e o mundo social, porque a televisão já foi definida “como
constituída e constituidora da cultura e do social” (ROCHA; SANT’ANA, 2010, p. 361). Age,
então, como veículo produtor de sentidos, e além, como instituição sociocultural:

Os sentidos veiculados por ela dizem respeito à coletividade, penetram o âmbito público e
privado e interpelam as instituições sociais. Dessa forma, a televisão em si mesma é uma
instituição, pois suas ações estão disseminadas nos diversos campos da realidade, seus
produtos são responsáveis por produção de sentidos e ela influi e é influenciada pelo
ordenamento do contexto social. (idem, pp. 361-362).

1139
Podemos daqui em diante partir para a identificação da condescendência em função do
habitus local transmitido, definido e significado como cultural-religioso: pela TV,
incorporam-se os sentidos de uma violência simbólica que se reproduz na matriz da cultura
paraibana e na sua leniência para com a violência física, na medida em que se torna:

produto das interações e dos fenômenos de comunicação, numa dada sociedade e no


interior de um grupo de pertença, [que] reflete, portanto, o contexto ideológico, econômico,
social, dessa sociedade e desse grupo, que perpassem seus conhecimentos e significados,
práticas e comunicações, problemas, estratégias e aspirações. (CATÃO; COUTINHO,
2003, p. 185).

O discurso midiático nas relações de poder como legitimador do habitus: apresentador-


protagonista carismático como comunicador do senso comum das representações sociais
de gênero

Já vimos que o campo religioso constitui um universo simbólico, logo, um veículo de poder
capaz de construir e manter a realidade social. O poder estruturado e estruturante do símbolo
age como instrumento de dominação, integra socialmente por meio da comunicação e do
conhecimento, e ainda mantém a reprodução da ordem social. “A religião representa o ponto
nevrálgico para onde convergem as relações de poder estabelecidas no nível simbólico e
imaginário, por aglutinar a essencialidade da existência humana” (ALMEIDA, 1994, p. 59).

No imaginário religioso só há duas formas de representação, ou masculino ou feminino,


revelando-se assim como elemento fundamental nas sociedades para a construção e
manutenção das representações: “a crença no mundo sobrenatural, o controle da sexualidade,
os arquétipos religiosos ditando normas de pureza e mansidão sempre normatizaram o
comportamento social, com maior ênfase no sexo feminino” (ALMEIDA, 1994, p. 59).

Neste nosso estudo de caso, percebemos o apresentador (A1) faz seu público apontar para o
Estado e seus aparatos (polícia, prisão) como aqueles com o poder de fazer esta mulher parar
de chorar. A teórica feminista De Barbieri (1993) destaca que os mais nobres sentimentos de
afeto, ternura e amor podem revestir uma subordinação invisível que persiste no
desenvolvimento da dominação dos homens sobre as mulheres. O poder da autoridade não se
manifesta apenas pelo Estado ou aos aparatos burocráticos. Nas palavras da autora:

1140
la subordinación que afecta a todas o casi todas las mujeres es uma cuestión de poder, pero
éste no se ubica exclusivamente en el Estado y en los aparatos burocráticos. Sería un poder
múltiple, localizado en muy diferentes espacios sociales, que puede incluso no vestirse con
los ropajes de la autoridad, sino con los más nobles sentimientos de afecto. ternura y amor.
(DE BARBIERI, 1993, p. 2).

O apresentador (A1) frequentemente busca sua legitimação em deus, se utilizando de


expressões como sangue de Jesus tem poder, deus me deu um dom. Ele se pretende um herói
que pode se utilizar da violência, em defesa de seu povo: "eu tô aqui pra defender o povo da
Paraíba - se não trabalhar certo... o cacete vai comer!"6, caracterizando o carisma de sua
autoridade pessoal, em favor da manutenção de um modus operandi a ser seguido pelos
indivíduos paraibanos. Este carisma é carregado de afetividade, além do autoritarismo,
estabelecendo seu domínio do discurso. No aspecto religioso isso pode se dar através da ideia
de salvação por um representante do sagrado, de um líder carismático, segundo a tipologia
weberiana de dominação:

então baseia-se o poder de mando em autoridade pessoal. Esta pode encontrar seu
fundamento na tradição sagrada, isto é, no habitual, no que tem sido assim desde sempre,
tradição que prescreve obediência diante de determinadas pessoas, ou, ao contrário, pode
basear-se na entrega ao extraordinário; na crença no carisma, isto é, na revelação atual ou
na graça concedida a determinada pessoa - em redentores, profetas e heroísmo de qualquer
espécie. (WEBER, 1991, p. 198).

No nosso estudo de caso emblemático, através do apresentador carismático, o discurso


midiático funciona como instrumento de apelação a toda a sociedade paraibana para se
compadecer da dor da mulher, como possível forma de pressionar por uma solidariedade das
autoridades, através da mobilização emocional do público. Sua inclinação religiosa é clara:
evoca deus, enfatiza a força religiosa como responsável pela sobrevivência da mulher – fala
por seis vezes graças a Deus – e, em momento algum coloca qualquer responsabilidade do
ato sobre o marido, que é apresentado como aquele que apenas fazia uma brincadeira. Reforça
em seu discurso que a mulher assume que foi ela quem pegou a arma, inclusive.

A fala carismática do apresentador, enquanto expositor e comentarista dos conflitos sociais


revela e endossa as representações sociais de gênero que se alicerçam no discurso religioso

6
Criança de 2 anos presencia a mãe sendo assassinada no bairro do cristo. Correio Verdade: João Pessoa, 09
outubro, 2012. Programa de TV.

1141
para legitimar as relações de sexo estabelecidas aí categoricamente pela dominação da família
patriarcal. A falta do homem na casa, sentida pela mulher, familiares e senhorio – afetivo-
sócio-econômica – é o que constrói a notícia, enquanto a violência ocorrida é tida como
brincadeira, acaso, irrelevante mesmo. O que salvou a mulher foi o livramento divino,
segundo suas próprias palavras.

O fundo musical nos momentos conclusivos da reportagem, expressa o habitus carismático


subjacente ao patriarcado matrimonial, demonstra o interesse principal dos atores, sujeitos ou
interlocutores do discurso analisado, bem como da tradição cultural paraibana que os formou:
“abençoa, senhor, as famílias, amém. Abençoa, senhor, a minha também.”7

De forma pragmática, a fim de resolver a situação-problema imediata, o apresentador induz a


sociedade paraibana que o assiste a refletir muito mais sobre a potencial culpabilidade da
mulher no episódio. A ameaça à família da mulher e do homem é colocada em evidência, é
priorizada a continuidade da família, que deve ser assegurada, acima da lei inclusive. Dá-se
maior relevância à falta afetiva que a mulher sente pelo marido preso: o apresentador, a
mulher e os entrevistados, todos amenizam os fatos, e dentro do possível, mascaram a
violência ocorrida.

Considerações finais

Em nossa análise a partir da sociedade paraibana, observamos que a mídia utiliza em seu
discurso de uma linguagem religiosa que legitima as regularidades de sua dinâmica social,
utilizando-se do poder simbólico do carisma e da afetividade, conferindo-lhes significado na
manutenção, na plausibilidade da violência nas representações sociais de sexo, pelo consenso
dos agentes sociais envolvidos. Não somente a mídia, como também, a mulher e os demais
envolvidos no discurso analisado.

O processo histórico de como se deu a reprodução social do capital cultural no contexto


paraibano não é contemplado neste estudo, que não explicita como se formaram as
representações sociais de gênero nesta cultura. Neste estudo contemplamos apenas o que
contemporaneamente é transmitido pela cultura midiática em questão.

7
Esta canção tem origem no acervo católico, o que demonstra sua forte influência na cultura paraibana, em
detalhe na nossa pesquisa completa (PIBIC 2012/2013-UFPB).

1142
Entre imagens e opiniões de atores que reproduzem estas que podem ser históricas relações de
poder entre os sexos, os discursos configuram-se como portadores e propagadores da
normalização por plausibilidade da violência simbólica na cultura paraibana. A mídia como
sistema cultural, atua assim, para a ancoragem e plausibilidade de um habitus carismático
patriarcal que se vale da teodiceia para figurar nesta realidade social, que consagra este tipo
de família e naturaliza a violência de gênero, tornando-a invisível e mais passível de
reproduzir-se sem obstáculos.

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1144
1145
Representações de gênero no Espiritismo: como se dá a
distribuição de papéis ali?
Roger Bradbury 1

Introdução

No ponto de intersecção da psicologia social e da psicologia do desenvolvimento individual


encontra-se o processo de reprodução da sociedade no indivíduo - em especial no que tange às
representações de gênero, objeto desta análise.
A opinião sobre nós daqueles que interagem conosco é fundamental na construção de nossa
personalidade desde muito cedo – quiçá desde a vida intrauterina. E desde antes da concepção
já se encontram nos cônjuges2 e/ou genitores, nos avós e na comunidade de amigos e parentes
a expectativa (verdadeira torcida organizada) do nascimento de uma menina ou de um
menino. Tal expectativa aumenta quando o ultrassom revela o sexo da criança. Forma-se todo
um enxoval e também a decoração do quarto (ou um cantinho quando possível) do bebê
pendendo ou para a representação de gênero do seja o ideal para uma menina, a cor rosa e os
motivos delicados de flor, coração e etc., ou para aquela representação de menino, com cor
azul e motivos mais agressivos como animais selvagens (embora ainda filhotes), ou o time de
futebol do papai.
Fazendo uma leitura a partir da psicanálise freudiana, percebe-se que não se é possível fugir
muito desta predestinação em relação à identidade de gênero que se herda da cultura local,
pois na resolução do conflito edipiano3, somos impelidos a rivalizarmos com aquele genitor -
pai ou mãe (biológicos ou adotivos) do mesmo sexo (gênero), buscando pela imitação sexual
deste sua superação pela conquista daquele genitor do sexo (gênero) oposto.
Mas, lembra Scott (1995, p. 82) como a teoria psicanalítica não dá conta de explicar as
exceções4 à regra, por exemplo, a formação identitária de crianças que “vivem fora de lares
nucleares ou dentro de lares onde o marido e a mulher dividem as tarefas parentais”, faz-se
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP, bolsista da CAPES e integrante do GP Mandrágora /
NETMAL. Contato: seararoger@gmail.com.
2
Aqui se inclui as uniões homoafetivas que realizam o sonho de ter filhos quer por adoção ou por inseminação
artificial.
3
Para Chodorow (apud SCOTT, 1995, p. 81) “tanto a divisão do trabalho na família quanto as tarefas atribuídas
a cada um dos pais têm um papel crucial [...] se os pais fossem mais envolvidos nos deveres parentais e mais
presentes nas situações domésticas os resultados do drama edipiano seriam provavelmente diferentes.”
4
Outro problema à universalidade da teoria é que “a relação feminina com o falo é obrigatoriamente diferente da
relação masculina” (SCOTT, 1995, p. 82).

1146
necessário “dar certa atenção aos sistemas de significados, isto é, às maneiras como as
sociedades representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência”.
Então, trazendo agora mais para a psicologia comportamentalista, conclui-se o quanto é eficaz
a modelação de comportamentos sexuais segundo as representações de gênero: a todo o
momento, meninos e meninas recebem reforços positivos distintos, na forma de prêmios e
incentivos, caso demonstrem atitudes adequadas dentro do padrão esperado (ou seja, das
representações de gênero de determinada cultura) para aquele (seu) sexo; ou recebem reforços
negativos, na forma de sansões e punições, quando demonstrem um comportamento fora
daquele padrão esperado.
Assim, nossa personalidade forma-se como num espelho, onde procuramos igualar nossa
imagem real àquela imagem virtual e social, na qual nos interagimos regulando nossa imagem
com aquela representação de gênero dada por determinada sociedade e tida como adequada
para cada sexo.
Tal formatação se dá durante a formação (educação) da personalidade no período da infância
e juventude acompanhar-nos-á pela vida adulta, nas escolhas profissionais, na vida conjugal,...
E, em nossa ocupação religiosa também.
Mesmo naquelas ocupações religiosas onde são permitidos ambos os sexos ocuparem, as
representações de gênero interagem (de forma endógena, uma escolha ou motivação pessoal e
também exógena, quando há uma expectativa do grupo religioso) classificando
diferentemente os homens das mulheres (FINE, 2012).
Assim ocorre também no Espiritismo5, que sempre manteve um discurso de igualdade dos
sexos, embora, na prática acabe reproduzindo, na distribuição de cargos e ocupações, antigos
padrões sexistas e, pior, androcêntricos, que limitam a atuação das mulheres a funções que
nada mais são do que uma extensão dos afazeres domésticos na instituição religiosa; e
também limitam o exercício da sensibilidade dos homens, os quais também saem perdendo no
computo geral das habilidades e competências aprendidas e desenvolvidas.
A presente pesquisa de inspiração etnográfica é resultado da leitura bibliográfica e análise de
textos e contextos espíritas relacionados especialmente a uma das hipóteses de minha
dissertação de mestrado – a qual está só começando - sobre a distribuição sexual desigual de

5
Trataremos neste artigo do Espiritismo surgido na França, em meados do século XIX, encabeçado por Allan
Kardec, e mais especificamente, aquele transplantado para o Brasil, o qual toma uma conotação mais religiosa do
que a versão original francesa (STOLL, 2002).

1147
papéis e ocupações no Espiritismo, ou seja, a hipótese das “representações de gênero” como
causa da divisão sexual do trabalho, ali.

1. Uma análise de gênero de textos e imagens

E em geral, as religiões referendam e reforçam sexismos da sociedade, e pergunta-se se o


Espiritismo também não faz o mesmo, à sua maneira, mais dissimulada do que o veto
explicito ao sacerdócio feminino, por exemplo, das demais religiões?
Para responder, utilizaremos a categoria de gênero para
compreender como são usadas, no cotidiano, as imagens do masculino e do feminino.
Ainda mais, serve para entender e explicar de que maneira as pessoas articulam essas
representações, de acordo com seu interesse, com a situação e com a relação em que se
encontram. (NANJARÍ, 2009, p.144).

Para Kardec6 (1858) as relações de gênero devem ser harmônicas e de complementaridade;


“Homens, sede úteis, [...] as mulheres serão vossas iguais; formareis então um todo; sereis a
cabeça e as mulheres serão o coração”.
Este discurso de Kardec enquadra-se bem no “tratamento da ideologia vitoriana da mulher no
lar” e pergunta-se se o Espiritismo não se iguala a “grupos religiosos fundamentalistas de hoje
que querem necessariamente ligar as suas práticas à restauração do papel ‘tradicional’ das
mulheres, supostamente mais autêntico” (SCOTT, 1995, p. 87).
Kardec, teoricamente, acaba fundindo e diluindo as diferenças e atributos sexuais biológicos –
os quais são potencializados por condicionantes sociais como a educação e a cultura - como
naturais (e divinos), como se lê na afirmação seguinte:

A Natureza7 fez o sexo feminino mais frágil do que o outro, porque os deveres que lhe
incumbem não exigem igual força muscular e seriam mesmo incompatíveis com a rudeza
masculina. Nele a delicadeza das formas e a fineza das sensações são admiravelmente
apropriadas aos cuidados da maternidade. Aos homens e às mulheres são, pois, dados
deveres especiais, igualmente importantes na ordem das coisas; são dois elementos que se
completam um pelo outro (KARDEC, 1866).

Com este discurso, Kardec faz com que o Espiritismo se iguale às demais religiões que têm,
6
Allan Kardec foi o pseudônimo usado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (Lyon, 3 de
outubro de 1804 — Paris, 31 de março de 1869), nas obras básicas do Espiritismo para separá-las de sua
produção didático-pedagógica.
7
Este discurso pretensamente naturalista, por vezes tornou-se explicitamente teológico, como em: “Deus
apropriou a organização de cada ser às funções que lhe cumpre desempenhar. Tendo dado à mulher menor força
física, deu-lhe ao mesmo tempo maior sensibilidade, em relação com a delicadeza das funções maternais e com a
fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381).

1148
explícita ou implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e histórica,
uma específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e
femininos. O fundamento dessa visão encontra-se em uma ordem não humana, não
histórica, e, portanto, imutável e indiscutível, por tomar a forma de dogmas. Expressões das
sociedades nas quais nasceram, as religiões espelham sua ordem de valores, que
reproduzem em seu discurso, sob o manto da revelação divina (ROSADO NUNES, 2005,
p. 363).

Ao contrário desse posicionamento de Kardec, a autora supracitada (2005, p. 363) sustenta


que não se nasce, mas torna-se homem ou mulher, tendo como “premissa fundamental de que
'feminino' e 'masculino' são menos fatos biológicos do que construções sociais e culturais”.
Mas o discurso de Kardec (1995 [1857], p. 380) guarda certa complexidade e ambiguidade
como quando afirma que a origem da inferioridade moral feminina ser resultado “das
instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco
adiantados, a força faz o direito.”
Para Letícia Gondim e Thiago Weber (2011) a razão desta ambiguidade deve-se ao fato que
“toda a obra de codificação [kardeciana] tinha na conciliação uma característica muito forte
de construção da argumentação”, a qual “conciliava-se a igualdade imanente entre os sexos
com a desigualdade no exercício de papéis naturalizados no espaço público e privado”.
É compreensível que Kardec tente buscar a conciliação e o bom senso para orientar os
neófitos espíritas sobre os papéis sexuais (no casamento, na política, no mercado de trabalho e
na religião), pois homens e mulheres viviam valores contraditórios, como na Inglaterra, em
que reinava uma mulher, mas não dava direito ao voto às mulheres (Kardec, 1867).
Para o codificador espírita (Kardec, 1866) a desigualdade é mais um fenômeno social do que
natural ou divino8, e, portanto circunstancial, que tendia a desaparecer com o tempo e com a
evolução da sociedade: “Deus [não] criou almas machos e almas fêmeas, [...], criou-as iguais
e semelhantes, as desigualdades fundadas pela ignorância e pela força bruta, desaparecerão
com o progresso e o reino da justiça.” Mas se pergunta por que esta divisão sexual, vigente na
sociedade, se reproduziu na práxis religiosa espírita?

Se os dados do censo 2010 (IBGE9) indicaram 58,9% dos espíritas serem mulheres, por que a
tão tímida participação nas lideranças das casas espíritas (e também das federações espíritas),

8
Afastando-se da doutrina calvinista da predestinação.
9
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores sociais. Disponível em: http://
http://censo2010.ibge.gov.br/resultados. Acesso em: 25 jun. 2013.

1149
em todos os departamentos, com exceção daqueles setores onde elas são maioria absoluta,
como o grupo de senhoras?
Mas quais são os atributos/requisitos para ascender às ocupações na hierarquia espírita, que
venham a revelar tal assimetria sexual no Espiritismo? Não era de se esperar um numero
mais representativo de trabalhadoras espíritas? Não era de se esperar uma estatística mais
mediana, seguindo a probabilidade genética de 50% de homens e de mulheres em todos os
cargos e ocupações relacionadas ao Espiritismo? Ou a probabilidade de quase 60% de
mulheres, a qual é a proporção censitária?
Rosado-Nunes (2005, p. 363), sobre a maior participação das mulheres nas religiões, comenta
que:
Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de que as mulheres
investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui que elas seriam ‘mais
religiosas’ do que eles. [...] Na verdade, as religiões são um campo de investimento
masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é
‘sagrado’ nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa
dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as
religiões conhecidas.

E como o Espiritismo se auto define como doutrina tríplice: filosófica, científica e religiosa,
façamos breve análise em separado de cada uma de suas faces.
A Filosofia, em si, sempre foi predominantemente um espaço masculino. O mesmo se daria
com a filosofia espírita?
Segundo afirma Almeida (apud BRADBURY, 2010, p. 14) o Espiritismo surge no auge do
positivismo científico, ou seja, “na segunda metade do século XIX [quando] um influxo novo,
de acordo com os princípios da ciência positiva, da filosofia secularizada, do materialismo
político e racional, invadiu esse domínio [do sagrado], antes exclusivo da religião.”
Neste momento histórico, o contingente de intelectuais e pesquisadores era quase
exclusivamente masculino. Kardec (1866) comenta sobre isto: “Não faz ainda muito tempo a
questão foi agitada para saber se o grau de bacharel podia ser conferido a uma mulher.”
Naquela época poucas eram as mulheres pesquisadoras livres dos afazeres domésticos e
liberadas para a pesquisa... Mas hoje com a democratização do ensino, muito deste quadro
mudou, mas por que a escolarização da mulher não permitiu uma maior ascensão aos cargos
de liderança nas casas espíritas? Mesmo porque não há critérios explícitos escolaridade para a
ocupação dos cargos.

1150
E quanto ao objeto da ciência espírita, os (as) médiuns, de ontem e de hoje, como se
comportam as estatísticas em relação ao gênero? Afirma Lúcia Loureiro (2008, p. 17.): “no
transcorrer da história dos fenômenos psíquicos, de médiuns notáveis, em que as
representantes do sexo feminino superam, em grande número, os do sexo masculino”.
Mas, se para o Espiritismo, todos somos médiuns, pois define a mediunidade como faculdade
humana. Sem se considerar o grau de sensibilidade desta faculdade, não era, igualmente, de se
esperar uma melhor proporcionalidade entre os sexos?
As casas espíritas não seriam uma extensão de seus próprios domicílios domésticos? Não
seria o mediunato uma projeção seus afazeres domésticos? A mediunidade de cura não seria
comparável aos cuidados de uma mãe para com seus filhinhos? A psicofonia e psicografia não
seriam semelhantes à prática de nossas avós ao admoestarmo-nos contando histórias de cunho
moral?
Segundo Rosado-Nunes (2005, p.363) as mulheres estão “ausentes dos espaços definidores
das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas”, e isto de
certa forma é ainda verdade em relação ao Espiritismo. Continua Rosado-Nunes (2005, p.
363) afirmando, que o “investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da
prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória”.
De fato as mulheres espíritas, como boas ou futuras mães se concentram mais na reprodução
da memória espírita, entre crianças e jovens – pois a transmissão de conteúdos espírita a
adultos é predominantemente espaço masculino10.
E quando atuam como trabalhadoras, como diz Rosado-Nunes (2005, p.363) é mais na prática
mediúnica, como médiuns do que na elaboração e reelaboração da doutrina espírita. Mas na
hora de dar bronca, de ralhar com espíritos obsessores, cabe ao médium doutrinador,
geralmente um homem, pela sua postura austera e enérgica, feito o papel tradicional de pai
(patriarca).
Por outra, a própria literatura espírita, tão rica em títulos e tiragens, de forma mais sutil, está
fortemente marcada por sexismos, desde a literatura infantil, com textos e imagens
estereotipadas de menino e menina e de ocupações diferenciados por sexo (vide figuras de 1 a
4) que hoje não mais condizem com a realidade social dos centros urbanos, onde o
Espiritismo tem maior adesão.

10
Tal como ocorre na educação escolar, os níveis mais básicos e menos qualificados são tradicionalmente
femininos, enquanto os níveis superiores são hegemonicamente masculinos.

1151
Figuras 1 e 2 – Kardec, sua esposa, Alice e Zito.11

Figuras 3 e 4 – Ilustrações da divisão sexual do trabalho.12

Tanto quanto nos livros didáticos, como observa Moreno (apud PIRES, 2002), a literatura
espírita infantil apresenta:

a maioria das imagens de personagens representam homens realizando diversas ações [...]
consideradas frequentemente como masculinas, enquanto naquelas poucas em que
aparecem meninas e mulheres, estas estão costurando, lavando ou cozinhando, para que
tudo permaneça em ordem.

Nas ilustrações 1 e 2, Kardec é o intelectual e Gabi, sua esposa, é a dona de casa. Já nas
ilustrações 3 e 4, o trabalhador de serviços pesados é uma figura masculina, enquanto que o
trabalho doméstico é representado por uma mulher que cuida da prole.
Embora tais ilustrações sejam brasileiras e anacrônicas a Kardec, mesmo assim são fiéis ao
pensamento kardeciano.
Essas imagens dos livros representam práticas sociais muitas vezes exigidas como
comportamentos adequados e esperados em meninos e meninas. Ora, as crianças tendem a
representar em suas brincadeiras as identidades de gênero consideradas como “normais” em

11
Jacinto, Roque. Gotas do tempo. Rio, RJ: Federação Espírita Brasileira, 1995, 5ª Ed (Ilustrações de Juan Carlos
Portella).
12
Xavier, F. Cândido (espírito Meimei). Pai Nosso. Rio, RJ: Federação Espírita Brasileira, 1998, 17ª Ed (Arte de
Joel Linck).

1152
nossa sociedade [...] Enquanto o homem é símbolo de fortaleza, firmeza, proteção, a mulher
representa a sensibilidade, delicadeza, ternura e preocupação (PIRES, 2002).

Moraes (2008) referindo-se ao sexismo nas obras básicas da codificação ressalta “que, tanto o
pedagogo Kardec quanto o Espírito Mentor comunicante sempre falam do homem, e não se
referem ao ser humano e, muito menos, à mulher...”. Curiosamente, anos depois, registrará
Kardec (1867) que o Sr. Stuart Mill “pede que se retire a palavra homem e que se insira a de
pessoa”.
Seriam tais estereótipos sexistas mais um dos condicionantes que somariam na complexa
fenomenologia das relações de gênero nas casas espíritas? Talvez não o mais decisivo, mas
certamente veicula uma mensagem subliminar sexista que tem alguma importância na
formação da personalidade, mesmo de forma inconsciente.

2. Uma descrição etnográfica da ocupação feminina na divisão do trabalho espírita

O Espiritismo, algo dessemelhante das demais religiões, não apresenta nem sacerdócio –
como afirma Weber (2000, p.295): “Não há, sacerdócio sem culto, mas sim culto sem
sacerdócio especial”, parece este último ser o caso do Espiritismo. Assim descreve Incontri
(2012, p. 168) sobre a institucionalização do movimento espírita no Brasil:

se comparada à de outras religiões, que se constituem em Igrejas – é mais democrática, pela


ausência de sacerdócio e hierarquias e pela eleição de seus membros, que ocupam cargos
administrativos e constitui-se mais um apelo de unificação, que obrigatoriedade doutrinária.

Como não há um sacerdócio institucionalizado, não há pagamento e nem hierarquia


sacerdotal, senão a hierarquia administrativa exigida por lei – Código Civil, Lei Nº 10.406, de
10 de janeiro de 2002, “Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá: [...]
V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos” o que pressupõe
uma constituição mínima dos cargos de diretoria.
Nesta realidade organizacional, as mulheres espíritas se distribuem nas funções ou cargos nas
casas espíritas segundo procuraremos demonstrar através de um modelo teórico de pirâmide
social (figura 5):

1153
Figura 5 – Pirâmide da distribuição das mulheres na hierarquia espírita 13.

De início, é bom lembrar que há mobilidade das pessoas entre as diferentes estratificações
sociais da casa espírita, ou seja, há a possiblidade e certa facilidade de ascensão a cargos e
funções mais superiores na administração e divulgação doutrinária espírita.
Estrato 1. Aqui estão a grande maioria das mulheres que frequentam os estudos sequenciados
de doutrina espírita (evangelho, mediunidade, e outros), ou esporadicamente assistem
palestras temáticas; aqui, também estão aquelas mulheres que se declaram espíritas, mas não
necessariamente, frequentam reuniões de cunho doutrinário ou mediúnico, em nenhuma casa
específica, são denominadas pelo movimento espírita de simpatizantes, estas tomam passes,
leem a bibliografia espírita (em especial os romances mediúnicos) e creem nos postulados
espíritas (da sobrevivência do espírito após a morte física, na reencarnação e comunicação dos
espíritos);
Estrato 2. Nesta estratificação estão as primeiras funções de trabalho voluntário nas casas
espíritas, são trabalhadoras da limpeza, recepção (acolhimento) e entrevista de visitantes e
frequentadores, médiuns passistas, evangelizadoras de infância e juventude; e que
participaram (ou não) de cursos intensivos de trabalhadores (curso de passe, p.ex.);
Estrato 3. Aqui estão aquelas que por mérito ou por reconhecimento, por indicação,
aclamação e/ou por vontade própria ascenderam dos estratos 1 e 2, devido apresentarem
experiência inata ou adquirida, ter concluído os cursos doutrinários gerais (evangelho e
doutrina espírita) e específicos (mediunidade, passe, doutrinação, evangelização infantil, entre
outros) caso a função exija. Pode-se situar aqui aquelas mulheres que dirigem as reuniões
mediúnicas; chefiam os departamentos de infância e juventude, tendo ao seu comando certo
números de evangelizadores (as); dirigem estudos e trabalhos regulares da casa espírita,
geralmente distintos de acordo com os dias da semana; ministram cursos e palestras;

13
Ilustração do próprio autor.

1154
coordenam atividades de assistência social e assistência espiritual, também com certo número
de cooperadores (as);
Estrato 4. E por fim, nesta última estratificação, estão aquelas mulheres que respondem legal e
administrativamente pelos centros espíritas, ocupam os cargos estatutariamente determinados
como presidência, secretaria e tesouraria, além do conselho fiscal; e ainda as diretorias de
setor ou departamento. Estas ocupações de cargo em geral são eletivas, quer seja por
escrutínio ou por aclamação, e duram por volta de dois anos, podendo haver recondução por
igual período, e depois, há alternância de nomes, isto quando há pessoas dispostas a
ascenderem a tais funções.
A imagem da pirâmide é bem adequada à estrutura social e funcional das casas espíritas,
onde: a grande maioria das mulheres – como já o dissemos - está na primeira categoria, a qual
podemos dizer é a mais “passiva”, ou seja, são mulheres que buscam no Espiritismo (na
literatura ou nos centros espíritas) receber conhecimentos; passes; remédios (alopáticos,
homeopáticos ou fitoterápicos, quando dispõem de médicos para prescreverem receitas
médicas); alimentos (cestas básicas e/ou sopa); enxovais de bebê; assistência espiritual e;
outros...
Devido a esta passividade, quer por comodismo (conformação), quer por vontade própria, ou
quer por descrença na sua própria capacidade, poucas destas mulheres da categoria 1
ascendem aos níveis de trabalhadores da casa espírita.
A despeito disto, há uma prática constante de captação e capacitação de novos (as)
trabalhadores (as), mas parece valer a expressão evangélica (Mateus 22:14) “Porque muitos
são chamados, mas poucos escolhidos.”
Ao contrário deste primeiro nível de estrato social, as pessoas que compõe os três seguintes
são progressivamente mais ativos na produção e distribuição de bens simbólicos e materiais
oferecidos pelas casas espíritas.
Nos estratos de 2 a 4 é que se encontram aquelas pessoas que tem maior renda e maior
escolaridade, como destaca o último censo do IBGE:

Os resultados do Censo 2010 indicam importante diferença dos espíritas para os demais
grupos religiosos no que se refere ao nível de instrução. Este grupo religioso possui a maior
proporção de pessoas com nível superior completo (31,5%) e as menores percentagens de
indivíduos sem instrução (1,8%) e com ensino fundamental incompleto (15,0%) 14.

14
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2170>.
Acesso em: 2 ago. 2013.

1155
Pode-se com isto se inferir que – mas é necessário que se investigue melhor – os
conhecimentos inatos e também aqueles revelados (mediunidade) daquelas mulheres que
estão no primeiro nível não superam o conhecimento escolarizado na execução de tarefas
ligadas a cargos na administração espírita.
Igualmente à situação anterior, aquelas mulheres de baixa renda se percebem impossibilitadas
de doar, e quando doam é na forma de trabalhos voluntários de limpeza e cozinha.
Nos estratos 2 e 3 é que encontramos as funções mais próximas ou paralelas com o sacerdócio
eclesiástico das demais denominações religiosas: estas mulheres espíritas, à semelhança das
benzedeiras do catolicismo popular, ou a unção dos enfermos das correntes evangélicas,
impõem suas mãos sobre os enfermos na prática do passe; dirigem sentidas preces
espontâneas como fazem suas correspondentes durante as rezas e orações; ministram cursos e
palestras à semelhança da pregação de sermões evangélicos e católicos; fazem uso da
glossolalia quando da comunicação de espíritos de pessoas estrangeiras tal como nas
manifestações de dons de línguas, comuns no pentecostalismo; e também fazem revelações
pela mediunidade de vidência ou clarividência de forma semelhante às profecias de profetas e
profetizas de todos os tempos e lugares.
Entretanto, por não haver sacerdócio e nem ritual, ao contrário de muitas práticas religiosas,
no Espiritismo, nem mulheres e nem homens ministram sacramentos como batismo,
casamento, extrema-unção e ceia cristã entre outros sacramentos existentes em outras
religiões.
A ideia é a de racionalização do culto, fruto da ação sistematizadora e metódica de Kardec, a
qual é semelhante ao processo de “desencantamento” descrito por Weber (apud PIERUCCI,
2003, p. 51-52):

Ora, esse processo de desencantamento, que vem se dando na cultura ocidental


ininterruptamente através de milênios e, em termos mais gerais, esse ‘progresso', do qual
faz parte a ciência como um elo e força motriz, tem eles um sentido que vá além do
puramente prático e técnico?

No quarto e último estrato social de nossa pirâmide da sociedade espírita, estão aquelas
pessoas com maior “tempo de casa”, por vezes são membros fundadores (as) da instituição,
que ocupam as funções mais administrativas, e como tal mais próximas da administração
empresarial, com o diferencial de que neste estrato, legalmente por ser uma organização sem
fins lucrativos, não há remuneração enquanto que eventualmente nos níveis 1 e 2 podem

1156
eventualmente ser remuneradas algumas funções por ser regidas por contratos de trabalho
regulares, como limpeza, vendas na livraria e lanchonete.

Considerações finais

O Espiritismo, enquanto microssistema social, manteve, via de regra - pois há excessos? -


um discurso de neutralidade perante os sexos, ou seja, ao veicular um discurso de pretensa
igualdade sexual, fez, até agora, reforçar e reproduzir a desigualdade de gênero do
macrossistema da sociedade ocidental em que vivemos, e que como sabemos está é herdeira
de uma cultura misógina que tende a restringir a atividade da mulher ao reduzido espaço do
privado, do lar.
Passados 150 anos dos escritos de Kardec, a sociedade mudara muito e com ela a família,
célula máter da sociedade, a qual também já não é mais aquela família nuclear de outrora, por
vezes expandida para alguns (mas) agregados (as), mas fortemente demarcada pelas figuras de
pai (ou padrasto, irmão mais velho ou um tio...) ou de mãe ou sua substituta (madrasta).
Nas novas configurações familiares - e não adianta muito, numa perspectiva saudosista,
denominar tais famílias de desestruturadas, é uma realidade que está posta, quer queiramos,
quer não, é utópico pensar em voltarmos às mesmas condições históricas do passado que
reproduziam o modelo de famílias nucleares tradicionais - forjadas pelo vento da
modernidade que permite uma flexibilização na legislação do casamento e constituição
familiares: com uniões e adoções de crianças por homossexuais, famílias chefiadas por
mulheres, por vezes apenas a avó.
Assim o ideal espírita é que não haja necessariamente uma polaridade extrema na divisão
sexual dos papéis no interior da família entre pai e filhos por um lado e mãe e filhas do outro -
aqui estão subentendidos (os) os agregados (as) – mas que o pai se necessariamente precisar
cuidar da prole na ausência da mãe, para trabalho, estudo ou outra motivação, não há restrição
nisto. O mesmo vale para a mãe se necessitar substituir o marido em suas funções de provedor
ou quaisquer outras que a sociedade ou a cultura desta lhe reservar.
Pode-se dizer que não há, principalmente nos dias atuais, uma nítida divisão de papéis sexuais
nas famílias espíritas, e se há é mais porque seguem a cultura de fundo, não que isto tenha
sido determinado pelo Espiritismo. Mas, como falamos anteriormente, a pretensa neutralidade
faz reproduzir as desigualdades sexuais não só dentro da família, como no interior dos centros
espíritas.

1157
Ora, já presenciei, por várias vezes, em uma casa espírita, um dirigente de trabalhos
mediúnicos recomendar que as mães deixassem seus filhos em casa... Neste caso é uma
questão sine qua non: ou a mulher leva seus filhos consigo ou ela não poderá frequentar e
fazer uso a um direito de culto, pois por vezes o marido não é espírita, e é contra que sua
esposa frequente a casa espírita. Aqui a solução está não no casal ou na divisão mais
igualitária de deveres e direitos entre os sexos, mas na comunidade religiosa que deve prever
condições para assistir a prole das mães durante os serviços religiosos de que esta deseje
receber.
Ora é sabido que uma educação diferenciada sexualmente fará muita diferença na
aprendizagem e formação do indivíduo, e adultos com formação diferenciada para homens e
mulheres é o que produz a discrepância de funções na sociedade que diferencia papeis sexuais
distintos, e que também se reflete no interior das casas espíritas, como entende a presente
pesquisa.
A educação e formação das novas gerações (de meninos e meninas) como querem, por ideal,
os espíritas fiquem ao encargo das mães, é importante que estas mesmas mães sejam bem
formadas, até melhor do que aos homens, pois deverão vencer a natureza que no ideário
espírita seria vencer os vícios e erros das encarnações anteriores, tendências inatas, e isto
exige uma formação bem fundamentada nas ciências da educação (sociologia, psicologia,
pedagogia entre outras) e não aquilo que historicamente vem ocorrendo, a educação da
mulher é por vezes relegada a segundo plano e menor importância, como se para ser boas
mães não fosse preciso muita informação de como fazê-lo com sucesso.
Este foi o resultado de uma pesquisa bibliográfica preliminar, por isso muitos
questionamentos ficaram em aberto, e pretendemos respondê-los, se possível, na dissertação
de mestrado.

Referências

BRADBURY, Roger. Queda do paraíso ou exílio de Capella. Um ensaio exegético na


perspectiva espírita. Orientação de Etienne Higuet. Monografia (lato senso em Ciências da
Religião), Universidade Metodista de São Paulo, Belém, 2010.

BRASIL. Código Civil. Lei N° 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

1158
FINE, Cordelia. Homens não são de marte, mulheres não são de vênus: como nossa mente, a
sociedade e o neurossexismo criam a diferença entre os sexos. Tradução de Claudia Gerpe
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1159
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1160
1161
GT11 – Hereges, judeus e infiéis e a
intolerância religiosa no decorrer da Idade
Média

Coordenadores

Adailson José Rui Marcus Cruz


Doutor em História pela UNESP. Profesor na Doutor em História Social pela UFRJ.
UFAL. Professor na UFMG.

Resumo

Este GT tem por objetivo reunir e discutir trabalhos relativos à questão religiosa existente no
mundo medieval, especialmente na Península Ibérica. Nos interessam pesquisas nas quais
sejam tratadas questões relativas à diversidade e à (in)tolerância religiosa presentes no decorrer da
Idade Média. Dentre as questões que podem ser objeto de estudo e discussão destacamos: a
implantação do cristianismo; as resistências e permanências pagãs no âmbito da religião cristã; a
convivência e os enfrentamentos entre as diferentes formas de viver o cristianismo; as relações
entre poder e religião no processo de construção dos reinos; as relações entre a Igreja de Roma e as
igrejas locais; as relações de (in)tolerância entre cristãos, judeus e muçulmanos; as formas
institucionais ou não de combate às heresias, as diferentes fontes e o estudo de temáticas
relacionadas com as religiões medievais.

1162
A carta de Conrad Grebel (1498-1526) para Thomas Müntzer
(1490-1525)
João Oliveira Ramos Neto1

Introdução

Durante o século XVI, aconteceram diversas movimentações religiosas na Europa que


receberam o nome de Reformas. O conceito de Reforma Protestante foi cunhado em 1694
pelo historiador alemão Veit Ludwig von Seckendorff para explicar que no século XVI teve
início um cristianismo não romano que modificou substancialmente a teologia até então
predominante. Este novo cristianismo recebeu o nome de protestantismo porque seus adeptos
protestaram contra a decisão da Dieta de Espira em 1529. É preciso lembrar que o próprio
Lutero, e os demais reformadores, não utilizaram tal conceito, porque não tinham consciência
que tais ações dividiria de fato a Cristandade posterior. Assim, partir do pressuposto de que os
agentes históricos do século XVI tinham consciência de estarem promovendo uma reforma
religiosa, como o conceito ficou conhecido depois do século XVII, é incorrer em
anacronismo. Não partiremos de tal pressuposto, mas usaremos o conceito nesta comunicação
somente para fins didáticos.

A partir da obra de Seckendorff, o conceito de Reforma também ficou associado ao nome do


monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546). A historiografia alemã dos séculos XVIII e
XIX então definia a Reforma Protestante como uma época iniciada com a publicação das 95
teses em 1517 em Wittenberg e caracterizada pela obra divinamente motivada de Lutero
visando purificar a Igreja, e a Cristandade, de erros doutrinais. O terminus ad quo da Reforma
Protestante seria então a Paz de Augsburgo em 1555. Depois, em 1839, o historiador alemão
Leolpold Von Ranke popularizou o conceito de Contra-Reforma para definir a reação da
Igreja Católica.

As pesquisas mais recentes, porém, reconhecem que no século XVI houve uma pluralidade de
reformas diferentes que interagiram entre si. Para efeito didático, podemos defini-la
doutrinariamente em 5 grandes blocos: A luterana (centrada em Lutero e Melanchton2), a

1
Graduado em História e em Teologia, mestre em História Comparada pela UFRJ e doutorando em História pela
UFG. Bolsista da CAPES. Orientadora: Professora Doutora Dulce Oliveira Amarante dos Santos. Contato:
joaooliveiraramosneto@gmail.com.
2
Philippe Melanchton foi o autor da Confissão de Augsburgo, 1530.

1163
reformada (protagonizada por líderes como Calvino, Zwínglio e Knox), a anglicana
(expressa em nomes como Henrique VIII, Thomas Cranmer e Elizabeth I), a católica
(principalmente com Ignácio de Loyola e o Concílio de Trento) e a denominada reforma
radical. Esta última foi assim designada pelo historiador norte-americano George Houston
Williams para aqueles que lideraram movimentos inidependentes do apoio de uma
universidade ou de uma instituição nobre, como os conselhos das cidades. Ela, por sua vez, se
subdivide em três: Os espiritualistas (protagonizada por Thomas Müntzer3), os racionalistas
(protagonizada por Karlstadt) e os anabatistas (iniciados por Grebel e Manz).

Os anabatistas tiveram início em 1525 quando Conrad Grebel e Félix Manz romperam com as
modificações lideradas por Ulrico Zwínglio (1484-1531) na cidade de Zurique. Após
estudarem a Bíblia, eles e George Blaurock (1491-1529) ficaram convencidos de que uma
criança não poderia ser batizada, por ainda não ter consciência do que estavam vivenciando, e
então se rebatizaram. Por causa disso, receberam o nome de anabatistas, e passaram a
rebatizar os adultos que aderiam ao movimento. Esse relato está registrado na fonte
documental Die älteste Chronik der Hutterischen Brüder. Eles mesmos não se viam como
anabatistas, mas como aqueles que estavam organizando uma verdadeira igreja purificada, e
por isso se chamavam somente de irmãos. Logo, o movimento anabatista entrou em conflito
com o movimento luterano, e é exatamente este conflito o objeto da nossa pesquisa de
doutoramento.

Uma questão que surge, porém, é sobre a seleção da documentação para estudar os
anabatistas. Mesmo as pesquisas históricas mais recentes reconhecerem que não é possível
compreender os eventos religiosos do século XVI sem levar em conta seus aspectos políticos,
sociais e econômicos, as reformas são predominantemente estudadas por meio dos tratados
teológicos produzidos no período. Documentos importantes, como as cartas que os
reformadores trocaram entre eles, muitas vezes são negligenciadas. Nesta comunicação,
portanto, queremos analisar introdutoriamente a carta que Conrad Grebel escreveu para
Thomas Müntzer em 1524. Outros documentos importantes serão analisados em ocasiões
oportunas posteriores, culminando na escrita da tese como resultado da pesquisa em curso.

A crítica externa
3
A principal obra para o estudo da vida, obra e pensamento de Müntzer disponível em português é Ernst Bloch,
Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1973).

1164
Conrad Grebel nasceu em 1498 como o segundo de seis filhos de Junker Jacob Grebel e
Dorotheia Fries. A família Grebel era muito importante e influente na cidade de Zurique e
participava do conselho da cidade, ajudando a decidir os rumos políticos, econômicos e
militares. Jacob Grebel era um rico comerciante de ferro e também representava a cidade de
Zurique nas reuniões da Confederação Suíça.

Nos primeiros anos, Grebel teve uma ótima formação latina em Zurique. Em 1514 começou
sua carreira universitária em Basel, dando início à sua formação humanista, mas em 1515 se
transferiu para a universidade de Viena, que era um grande centro de estudos do período. Lá
ele conheceu o professor Jerônimo Vadian, com quem desenvolveu grande amizade, trocando
56 cartas com ele. Em 1519, Vadian casou-se com Martha, irmã de Grebel. Em 1518, quando
Vadian deixou a universidade de Viena para ser médico na cidade de Saint Gall, Grebel se
mudou para Paris. Em junho de 1519, uma grave praga assolou Paris, e Grebel retornou a
Zurique, sua cidade natal.

Ao retornar para Zurique, Grebel ingressou no grupo de estudo bíblico liderado por Ulrico
Zwínglio, sacerdote que implementava reformas religiosas naquela cidade. Segundo a
Enciclopédia Menonita, a partir de 1522 as cartas de Grebel começaram a mudar de tom. Ele
demonstrava estar muito interessado na causa da reforma que estava sendo liderada por
Zwínglio. Nesse período também, Grebel desenvolveu uma grande amizade com o jovem
Félix Manz.

A relação de Grebel com Zwínglio começou a mudar a partir do final de 1523, quando
começaram a divergir sobre assuntos teológicos. O rompimento definitivo ocorreu em outubro
de 1524, quando Zwínglio apresentou uma proposta radical de mudança na liturgia da missa e
em outras atividades, como a rejeição do batismo de crianças pela exclusividade do batismo
de adultos. Ao perceber que o conselho da cidade não estava de acordo, Zwínglio recuou na
sua radicalidade. Grebel discordou de tal decisão, entendendo que era necessário avançar.
Com a ruptura, um grupo de jovens começou a se reunir separadamente de Zwínglio, sob a
liderança de Grebel.

Desapontado com a falta de apoio de Zwínglio e do conselho da sua cidade, Grebel, em nome
do grupo de aproximadamente 15 pessoas que estava liderando, decidiu escrever para
reformadores alemães. Ele havia recebido notícias de que, à semelhança do seu rompimento

1165
com Zwínglio, Thomas Müntzer também havia rompido com Lutero e, após ler alguns dos
escritos deste, escreveu uma carta para ele em setembro de 1524.

Grebel escreveu outras dezenas de cartas, das quais 69 estão preservadas, além de também
estarem disponíveis 3 cartas que ele recebeu. O manuscrito original da carta para Müntzer está
preservado na Die Kantonsbibliothek Vadiana, em Saint Gallen. Ela foi escrita originalmente
em alemão e pode ser consultada na grandiosa coleção organizada por Muralt e Schmid,
Quellen zur Geschichte der Täufer in der Schweiz. Ela foi traduzida para o inglês pela
primeira vez em 1905 por Walter Rayschenbusch. Atualmente, há várias traduções
disponíveis em inglês. Michael G. Baylor a incluiu na sua coletânea The Radical Reformation,
publicado pela Cambridge Press em 1991. Já a tradução e coleção organizada por J. C.
Wenger em 1970 trás, anexo, facsímiles dos originais. E a atual coleção de edições críticas,
Classics of the Radical Reformation, a disponibiliza no volume 4. E em espanhol, a carta está
disponível na coleção Textos escogidos de la reforma radical, organizada por John Howard
Yoder. Para este trabalho, citaremos o texto original, conforme disponível na coleção de
Muralt e Schmid.

A crítica interna

A carta inicia com uma saudação: “Frid, gnad und barmhertzikeit von Gott unßerem vatter
und Jesu Christo unserem herren sy mit unß allen, Amen”. Podemos traduzir como “Que a
paz, a graça e a misericórdia de Deus, nosso pai, e de Jesus Cristo, nosso senhor, esteja com
todos nós, amém”. Apresentar uma saudação com o nome de Deus como pai ao lado do nome
de Jesus Cristo como senhor demonstra que Grebel e seus seguidores acreditavam na
Trindade. Para o contexto, isso significava que não faziam parte do grupo dos racionalistas,
que negavam que Deus e Jesus podiam ser a mesma pessoa, inclusive com Jesus sendo
chamado de senhor.

Após a saudação, Grebel elogia Müntzer por sua atuação, principalmente por saber que
Müntzer estava preocupado em demonstrar suas convicções cristãs através de suas atitudes.
Em seguida, Grebel elogia Müntzer por celebrar a missa em alemão, e não em latim, mas o
critica por introduzir a música na cerimônia, atitude totalmente reprovada por Grebel: “Mag
nit gůt sin, wann wir findet in dem nüwen Testament kein ler von singen, kein bispil”.

1166
Segue, então, uma explicação teológica do seu ponto de vista a respeito da celebração da ceia.
Para Grebel, o pão e o vinho não eram transformados em corpo e sangue de Jesus nem pela
transubstanciação católica, nem pela consubstanciação luterana, permanecendo a mesma
essência de pão e vinho como símbolo: “die wil daß brott nüt anderß ist dann brot”. Trata
também dos dízimos e da questão da espada, defendendo sua posição pacifista: “Man soll
ouch daß evangelium und sine annemer nit schirmen mit dem schwert oder sy sich selbs, alß
wir durch unseren brůder vernommen hand dich also meinen und halten”.

Por fim, Grebel discorre sobre sua posição a respeito do batismo ser exclusivo para adultos
conscientes: “Deß touffs halb gfalt unß din schriben wol, begerend ouch witer bericht werden
von dir. Wir werden bericht, daß man on die regel Christi deß bindens und entbindens ouch
ein erwachsner nit gtoufft solte werden”. E despede-se, assinando com outros nomes abaixo
da data de 5 de outubro de 1524.

Grebel era um membro da nobreza e recebeu apoio de Joaquim Vadian, seu cunhado, médico
e prefeito da cidade de Saint Gall. Na carta que estamos analisando, demonstra conhecimento
de teologia e preocupação com doutrinas que julga erradas, fazendo um verdadeiro tratado
sobre a transubstanciação. Isso, por si só, já é suficiente para causar uma revisão na
historiografia que predominantemente apresenta os anabatistas como camponeses desprovidos
de intelectualidade e despreocupados com debates teológicos, querendo apenas melhorias para
suas condições de vida4.

E em se tratando de equívocos da historiografia, é muio comum em livros, artigos acadêmicos


e livros didáticos, associar a figura de Thomas Müntzer ao movimento anabatista5. Isso ocorre
por pelo menos dois motivos: Ambos eram líderes de movimentos radicais contrários ao
luteranismo e aos reformadores magisteriais e, em segundo lugar, talvez ao verem que Grebel
escreveu para Müntzer, sem analisar o conteúdo desta, pensam que estão em concordância, o
que não é verdade.

Pela carta, nota-se que Grebel e Müntzer não estavam juntos. Grebel só tomou conhecimento
das ideias de Müntzer porque um escrito seu chegou até Zurique. Então, Grebel
imediatamente escreveu para tentar dissuadir Müntzer de pontos em discordância entre eles.
Um ponto fundamental é que os anabatistas acreditavam que toda sua doutrina deveria ser

4
Essa é, por exemplo, a posição de Norman Cohn, em Na Senda do Milênio (1970).
5
Obras clássicas sobre a Reforma, como Weber, Febvre, Delumeau e Chaunu fazem essa associação. Já entre os
livros didáticos, temos como exemplo a obra de Schmidt.

1167
exclusivamente extraída da Bíblia, ao passo que Müntzer acreditava em revelações espirituais,
daí seu grupo ser chamado de espiritualistas. Se analisarmos documentos posteriores, veremos
que os seguidores de Grebel e os seguidores de Müntzer não tinham ideias em comum. E por
fim, Müntzer faleceu em 1525, justamente no ano que Grebel iniciou formalmente o
movimento anabatista, quando se rebatizou, e então rebatizou os demais.

Um ponto importante de discordância entre Grebel e Müntzer era sobre o uso ou não da
violência. Quando Grebel escreveu esta carta para Müntzer, em 5 de outubro de 1524, só
conhecia o texto Von dem getichten Glauben, escrito por Müntzer em Allstedt no ano anterior,
e o Prager Manifest, escrito em 1521. Nessas obras, Müntzer explicita sua concordância no
uso de armas, principalmente pelos camponeses, que em 1525 eclodiram a revolta na Suábia.
Como citamos anteriormente, porém, Grebel já havia manifesto nesta sua carta sua defesa
pelo pacifismo. O tema também é desenvolvido pelos anabatistas em documentos posteriores,
principalmente na Die Schleitheimer Artikel, principal fonte para o estudo do movimento.

Considerações finais

Esta comunicação não tem o objetivo de esgotar o assunto, mas apresentar introdutoriamente
o tema ainda a ser explorado. É evidente que por terem tantas ideias discordantes, e ações em
épocas diferentes, equivoca-se a historiografia que une Thomas Müntzer e Conrad Grebel
num mesmo movimento de reforma religiosa no Sacro-Império Romano-Germânico. Da
mesma forma, equivoca-se a historiografia que reduz o movimento a camponeses desprovidos
de recursos, que supostamente desprezavam debates teológicos por questões práticas. A carta
de Grebel para Müntzer é um documento importante, dentre outros de igual importância, que
uma vez questionado pelo historiador, concede valiosas informações históricas sobre o
pensamento e a ação dos anabatistas no século XVI.

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1168
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1943.

1169
1170
A doutrina do pecado, fé, obras e o paradoxo do antissemitismo
em Lutero
Filipe de Oliveira Guimarães1

Introdução

O estudo da hamartiologia tem um lugar de destaque na teologia cristã em toda a história (é a


partir dela que se estabelece a práxis da fé cristã ou a ética) servindo de subsídio instrumental
relevante para a pesquisa no campo das Ciências da religião quando se busca conhecer a
cosmovisão do cristianismo, ao mesmo tempo fornecendo direções para o entendimento do
comportamento social fruto de sua influência.

Esta matéria(hamartiologia) tem sido um dos principais focos de interesse dos teólogos e
debates nos centros acadêmicos na história. A presente investigação tem como proposta
levantar dados que nos ajude a conhecer o pensamento de Lutero no que tange ao seu
posicionamento em relação ao pecado, a fé e as obras.

No estudo também abordamos a temática da graça, tema que está diretamente relacionados a
hamartiologia luterana. O instrumental para a investigação foram, principalmente, alguns
documentos importantes para luteranismo como as 95 teses de Lutero, o Catecismo Menor de
Lutero e a Confissão de Fé de Augsburgo.

Lutero foi uma das principais mentes do movimento que ficou conhecido como Reforma
Protestante. Seu pensamento continua influenciando o meio teológico até os dias de hoje. A
principal doutrina enfatizada por ele foi a da justificação pela fé que, em um primeiro
momento, parece ser uma negação da importância das obras. Porém, uma breve leitura de
alguns de seus escritos dão a entender que a doutrina das obras ocupava um lugar relevante
em seu pensamento. Mas a grande questão é: como poderia um homem falar de fé, obras e
graça e se tornar uma dos mentores do nazismo?

Apesar da importância de Lutero para a teologia no fim da idade média, a ironia, ou paradoxo,
é que este escritor que defende a prática de boas ações para com os inimigos, como se lê no

1
Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB. Pesquisador
FAPESP. Participa do GP Arqueologia do Antigo Oriente. Contato: filipeoligui@gmail.com.

1171
Catecismo Menor, é autor de textos anti-semitas que nos fazem pensar que, para ele,
posicionar judeus como inimigos seria atribuir um título honroso demais para este povo.

O objetivo geral deste trabalho é compreender o pensamento de Lutero em relação a temática


do pecado, fé e obras. Os objetivos específicos são: analisar alguns posicionamentos de fé de
Lutero frente ao seu incentivo à práticas anti-semitas e entender os desdobramentos de suas
reflexões, contra os judeus, na história moderna.

A identidade de Lutero

ara melhor situar o pensamento deste polêmico e controverso personagem é interessante


conhecer um pouco de sua vida. Sua biografia é bastante acessível podendo ser adquirida
facilmente e estudada, em detalhes, através de documentários, filmes e diversos livros escritos
sobre ele.

Alemão nascido em novembro de 1484 na cidade de Eisleben, se tornou padre católico de


ordem agostiniana e professor de Bíblia. Estudou latim na escola de Magdeburg e na
Universidade de Erfurt, obteve o grau de bacharel em artes e no ano de 1505 obteve o grau de
mestre em artes.

O desejo de seu pai era que se tornasse advogado. Chegou a iniciar seus estudos, porém,
interrompeu para ingressar em um mosteiro agostiniano. Segundo biógrafos, ele foi para o
mosteiro após uma experiência durante uma tempestade quando caminhava para Erfurt.
Durante a tempestade foi quase atingido por um raio que o fez cair por terra e gritar: Ajuda-
me santa Ana eu serei um monge! Em 1507 foi consagrado padre. (NICHOLS, 1992)

Enquanto desfrutava de ascensão na igreja Católico Romana, paralelamente experimenta


crises existenciais. Sua vida monástica e intelectual não forneciam resposta concretas aos seus
anseios interiores, bem como às suas aflitivas indagações. Seus estudos paulinos deixaram-no
mais agitado e inseguro, particularmente diante da afirmação o justo viverá pela fé, presente
no livro de Romanos. Inicia-se então a percepção de que a Lei e o cumprimento das normas
monásticas serviam, tão somente, para condenar e humilhar o homem, e que nesta direção não
se podia esperar qualquer ajuda no tocante à salvação da alma e a paz que ele buscava.

1172
Com base no seu dilema pessoal podemos entender a importância do estudo da Hamartiologia
para Lutero. Pecado, Lei, Condenação, foram temas que dialogaram constantemente com o
seu ser gerando crises pessoais profundas. Lutero buscou pontuar sua crise através da ênfase,
de que a Bíblia ensina a salvação pela fé. Este tema tornou-se o ponto central de suas
homilias.

Diante de suas novas descobertas, e visualizando o cenário em que estava inserido,


principalmente a venda de indulgências, Lutero preparou 95 teses e afixou na porta da Igreja
de Wittenberg. Suas teses acadêmicas questionavam as práticas do catolicismo, o que iniciou
um processo de ruptura(que não era sua intenção) com a instituição Católica Romana
conhecida como o movimento da Reforma Protestante.2

Pecado, fé e obras em Lutero

Nessa seção examinaremos algumas fontes importantes que nos dão demonstrações no que
tange ao pensamento de Lutero sobre o pecado e a postura que os fiéis deviam ter em relação
ao mesmo, tema tangencial ao lugar das obras. Em um primeiro momento examinaremos
alguns artigos das Noventa e Cinco Teses, em seguida passaremos ao Catecismo Menor e
finalizaremos com algumas citações da Confissão de Fé de Augsburgo.

Logo no primeiro artigo das noventa e cinco teses podemos perceber o lugar que a temática
do pecado ocupava na teologia de Lutero. Ele escreveu: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus
Cristo: Arrependei-vos...., certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja
contínuo arrependimento. Ele fala de arrependimento o que pressupõe pecado, erro, culpa. E
ainda diz que este estado de arrependimento para os crentes era contínuo enquanto suas vidas
durassem.

Em seguida, no artigo 2, ele busca deixar claro o seu rompimento com o modelo do
sacramento penitencial praticado em sua época: E esta expressão não pode e não deve ser
interpretada como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação,
a cargo do ofício dos sacerdotes. Deixando claro, no artigo 3, que confissão sem mudança

2
A intenção de Lutero não era romper com a Igreja Católico Romana mas reformá-la, porém sem espaço para
isso e diante de ameaças foge, amparado por príncipes que viram em Lutero a oportunidade de romper com a
Igreja Católica, e da início a seu movimento.

1173
não servem para nada: Todavia não quer que apenas se entenda o arrependimento interno; o
arrependimento interno nem mesmo é arrependimento quando não produz toda sorte de
modificações da carne.

Estes três artigos iniciais(particularmente o primeiro e o terceiro) esboçam de uma forma


consistente o pensamento sobre pecado e obras. Aparentemente soam contraditórios pois é
dito que o homem tinha que viver em contínuo estado de arrependimento (o que
pressupõe erros para confessar) e por outro lado tinha que demonstra mudanças (o que remete
a uma vida correta). O que soa aparentemente contraditório é resolvido quando se entende que
Martinho Lutero estava pensado o homem em um processo de aperfeiçoamento. Ou seja, dia
após dia este ser deveria tomar consciência de seus erros, pedir perdão ao Criador e adquirir
uma postura mais correta em relação a ética bíblica.

No artigo três também percebe-se que para Lutero o verdadeiro arrependimento tem um viés
social que pode ser captado pelos sentidos da sociedade através das mudanças operadas pelos
sujeitos. E nesse sentido, para o reformador, se não houvessem mudanças reais era porque não
se tinha ocorrido um verdadeiro arrependimento no íntimo do indivíduo.

É pensando em mudanças, e uma construção de uma futura sociedade mais ética, que ele
escreveu, em 1529, um documento conhecido como Catecismo Menor, cuja finalidade era
educar as crianças alemãs na direção de incentivar a prática de boas obras. Este documento
surge logo no início da reforma em resposta a ignorância teológica do povo alemão.

No catecismo ele associa os Dez Mandamentos a atitudes que o povo deveria ter em seu dia a
dia. Algumas atitudes que ele descreve são: confiar em Deus e amá-lo, não jurar, não praticar
magia, não mentir, orar, louvar, respeitar a Bíblia, estudá-la, ouvir pregações, não desprezar
os pais, não agredir o próximo, ajudar o próximo para que tenha o suficiente para sobreviver,
ter uma vida sexual responsável, não tomar o dinheiro ou os bens do próximo, não produzir
mercadorias falsificadas, não caluniar o próximo, não ser falso, não possuir a casa do
próximo, etc.

Com estes mandamentos ele tinha a intenção de estabelecer um comportamento social que
fosse coerente como a ética bíblica, mas que, também, serviria de mapa que conduziria os
cidadãos naquilo que se constituíam boas obras. Ele chega a ameaçar a população dizendo que
aqueles que não praticassem estas obras seriam castigados por Deus.

1174
Comentando a oração do Pai Nosso, no trecho que diz: E perdoa-nos as nossas dívidas como
também perdoamos aos nosso devedores, Lutero afirma que se deve perdoar de coração e de
boa vontade e fazer o bem aos que pecam contra nós. Ou seja, fazer o bem deveria ser uma
prática (obras) direcionada até mesmo aos inimigos.

Na quinta parte intitulada o Ministério da Absolvição e a Confissão, Lutero procura introduzir


na lista de obras, a prática de absolvição dos pecados do próximo. Com isso ele quer dizer que
qualquer pessoa poderia procurar outro cristão para confessar seus erros a fim de ser perdoado
por Deus após confissão. Um claro ataque ao ofício dos padres, estabelecido na era pós-
constantiniana, reintroduzindo, desta feita, a doutrina do perdão mútuo, posteriormente
intitulada de sacerdócio universal.

A confissão de Augsburgo, apesar de não ter sido escrita por Lutero - seu mentor intelectual
foi Philipp Melanchthon grande amigo de Lureto e principal aliado que redigiu o documento
em 1530 - reflete o pensamento de Lutero, posto que tinha a aprovação do mesmo. No artigo
12 da Confissão esta escrito:

Do arrependimento se ensina que os que pecaram depois do batismo, recebem perdão dos
pecados a qualquer tempo em que cheguem ao arrependimento, não lhes devendo a igreja
negar a absolvição. Agora, arrependimento verdadeiro, autêntico, propriamente outra coisa
não é que sentir contrição e pesar ou terror por causa do pecado e todavia crer ao mesmo
tempo no evangelho e na absolvição, isto é, crer que o pecado foi perdoado e que por Cristo
foi obtida a graça, fé essa que volta a consolar e serenar o coração. Deve seguir-se a
melhora de vida e o abandono do pecado; pois esses devem ser os frutos do
arrependimento, como diz João Mt 3: Produzi, pois, fruto digno do arrependimento.

Lê-se no final que o verdadeiro arrependimento produz fruto, ou seja, obras que sinalizam
esta transformação interna. A doutrina da justificação pela fé de Lutero, levou os católicos a
acusarem os luteranos como possuidores de uma fé morta, sem obras. Ao que Melanchthon
argumentou repudiando aquilo que ele considerava obras vãs. O texto se encontra no artigo 20
da Confissão:

Os nossos são acusados falsamente de proibirem boas obras. Pois os seus escritos sobre os
Dez Mandamentos bem como outros escritos provam que deram bom e útil ensino e
admoestação a respeito de estados e obras de cristãos verdadeiros, de que pouco se ensinou
antes de nosso tempo. Insistia-se, ao contrário, em todos os sermões principalmente em
obras pueris e desnecessárias, tais como rosários, culto de santos, vida monástica, romarias,
jejuns e dias santos prescritos, confrarias, etc.

1175
Ainda no mesmo artigo, posicionando o lugar das obras, Melanchthon diz:

Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas, não para que nelas se confie
a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor. Sempre é a fé somente que
apreende a graça e o perdão dos pecados. E visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o
coração também se torna apto para praticar boas obras. Porque antes, enquanto está sem o
Espírito Santo, é demasiadamente fraco. Além disso, está no poder do diabo, que impele a
pobre natureza humana a muitos pecados, como vemos nos filósofos que se lançaram à
empresa de viver vida honesta e irrepreensível e contudo não conseguiram realizá-lo, porém
caíram em muitos pecados graves e manifestos. É o que acontece ao homem quando está
sem a fé verdadeira e sem o Espírito Santo e se governa apenas pela própria força humana.

Considerações finais

Apesar da contribuição de Lutero para o cristianismo, resgatando princípios bíblicos


valorosos, discorrendo sobre a importância do arrependimento, graça e boas obras, a ironia,
ou paradoxo, é que este escritor que defende a prática de boas ações para com os inimigos,
como se lê no Catecismo Menor, escreve textos anti-semitas chegando a dizer que as casas
judaicas deveriam ser destruídas, suas sinagogas queimadas, o dinheiro dos judeus confiscado
e sua liberdade cerceada.

A Alemanha deve ficar livre de judeus, aos quais após serem expulsos, devem ser
despojados de todo dinheiro e jóias, prata e ouro, e que fossem incendiadas suas sinagogas
e escolas, suas casas derrubadas e destruídas (…), postos sob um telheiro ou estábulo como
os ciganos (…), na miséria e no cativeiro assim que estes vermes venenosos se
lamentassem de nós e se queixassem incessantemente a Deus. (LUTHER, s.d., 34-36)

Ele também chamava os judeus de “povo do diabo”, de "uma prostituta incorrigível e uma
devassa maléfica", que os judeus estavam "cheios das fezes do demónio,... nas quais se
rebolam como porcos" e além de dizer que quem ajudasse o povo judeu seria condenado a
perdição. Também parece aconselhar a morte dos judeus quando diz: "É nossa a culpa em não
matar eles.” (Lutero apud MICHAEL, 1985, 343-344)

Por causa de afirmações desta natureza, presente em seus escritos, podemos dizer que sua
doutrina das obras, não era tão ortodoxa como parecia. Talvez a frase “peca forte” que Lutero
usa quando escreve para Melanchthon, esteja embasada em uma mentalidade do reformador
que alguns casos como, por exemplo, perseguir os judeus, o pecado pode ser justificado

1176
com base na justificação pela fé, posto que a graça tem a capacidade de encobrir toda e
qualquer falha. Neste sentido podemos pensar que Lutero incentivava o erro em determinados
contextos justificando o pecado com base na doutrina da graça. Na verdade, podemos afirmar
que a doutrina da graça, ou a aplicação que ele fazia da mesma, se constituía uma forte aliada
para que ele pudesse justificar, perante a comunidade alemã, sua intolerância para com os
judeus. Não é por acaso que ele se tornou uma figura respeitada por Adolf Hitler, ou um de
seus mentores.

Referências

KNIGHT. A. História do Cristianismo. CPAD: Rio de Janeiro. 1983.

LUTHER, Martin: Concerning the Jews and their lies. Reimpresso em Talmage, Disputation
and Dialogue, pág.: 34-36, s.d.

MICHAEL, Robert. "Luther, Luther Scholars, and the Jews," Encounter 46 (Autumn 1985)
No. 4:343-344.

NICHOLS. R. H. História da Igreja Cristã. CEP,1992.

Internet

95 Teses de Lutero. Disponível em: http://pribi.com.br/wp-


content/uploads/2004/02/ff808081-11569097-0111-5c2651ef-41c0.pdf

Catecismo menor de Lutero. Disponível em:


http://www.editorasinodal.com.br/produtos/e2120f35bc7471561a801804c2c3963a.pdf

Confissão de Augsburgo. Disponível em:


http://www.monergismo.com/textos/credos/confissao_augsburgo.htm

1177
1178
A Investigação das religiões e a formação políticocultural do
principado Rus´ de Kiev. Diversidade religiosa e trocas culturais
Fabrício de Paula Gomes Moreira1

Introdução

Este trabalho objetiva analisar a chamada “Investigação das religiões”, evento narrado pela
Crônica dos tempos passados2, compilação do início do século XII d.C., elaborada no
Monastério das cavernas de Kiev, na atual Ucrânia. No final do século X d.C., o príncipe
Vladimir foi abordado por representantes de várias religiões praticadas por seus vizinhos, que
o instaram a adotar uma delas. Pretende-se demonstrar aqui a fecundidade do ambiente de
trocas culturais no qual esse evento se passou, além de discutir brevemente alguns aspectos
sobre o que seria religião nesse momento, balizando nossa análise a partir dos estudos de
Aron I. Gurevich reunidos em sua obra As categorias da cultura medieval (1972). Também
pensaremos alguns aspectos relevantes quanto à ideia de conversão religiosa, bem como as
implicações que a conversão traz para a visão de mundo do convertido e sua consequente
transformação dos quadros sociais na qual o indivíduo convertido se insere, principalmente
em se tratando de grandes líderes e/ou monarcas no período medieval.

Os Rus´: a complexidade das origens

Para discutir os aspectos culturais que envolviam os contatos culturais dentro e fora da
Planície Russa é necessário estabelecer uma tipologia das condições ambientais nos diferentes
territórios em questão e das estratégias de sobrevivência elaboradas pelos seus habitantes no
período (SHAW, 2006, p.23).

Primeiramente temos uma estreita faixa litorânea, na Península da Criméia e nas


costas setentrionais do Mar Negro, caracterizadas por um clima mediterrânico, onde

1
Mestrando em História pela UFOP. Bolsista institucional do PPG em História da UFOP. Contato:
fabrício.moreirahis@gmail.com.
2
Doravante referida apenas como Crônica. A edição que nos baseamos é impressão de 1968 da tradução para a
língua inglesa feita por Samuel H. Cross, que veio a público pela primeira vez em 1953.

1179
populações germânicas sob influência cultural de Bizâncio perpetuavam modos de
vida importados da Grécia e de Roma.

O segundo ambiente climático é a estepe, que se estendia desde a Manchúria no


extremo Leste da Ásia até a Hungria e ia de Norte a Sul desde Kiev até a faixa
litorânea do Mar Negro.3 Os povos que ali viviam tinham um modo de vida nômade e
praticavam o pastoreio, mas eram, sobretudo, hábeis guerreiros que viviam da
agressão às grandes civilizações estabelecidas ao Sul, desde a China, a Índia, a Pérsia
e Bizâncio. Populações de origem Turca e Iraniana ocupavam esse território desde
antes do aparecimento dos Citas, no século VIII a.C

Em terceiro lugar, acima da estepe se encontra a zona mista de florestas e estepes,


onde os dois tipos climáticos se misturam. As populações que ali viviam, de origem
eslava principalmente, praticavam a agricultura e suplementavam os rendimentos de
suas plantações com os produtos obtidos na floresta.

Em quarto lugar, as zonas de floresta das porções Central e Norte da planície Russa,
onde se praticava a agricultura, a caça e a pecuária. Essa zona era esparsamente
habitada principalmente por populações Fino-Ugrianas4 e Bálticas.

Por último, no extremo Norte, a Tundra e a Taiga, onde Lapões/Saami 5 e os Samoyed


Nentsy6 praticavam a caça e a pesca para sobreviverem.

Tal como discutido por Thomas Noonan, essas divisões não são e não podem ser interpretadas
como um modelo rígido. Intersecções e influências mútuas no modo de vida dessas
populações devem ser levadas em conta, visto que estas comunidades não se

3
No trecho em que a estepe passa pela Planície Russa.
4
Ou Ingrianos e Karelianos. Povos que habitam a região norte da atual Rússia e dependiam no período medieval
de produtos da floresta. Hoje dependem da indústria como foma de sobrevivência (TAAGEPERA, 2004, pp.503-
504).
5
Povo de origem próxima à dos fineses. Distribuem-se pelo extremo norte da Europa, habitando principalmente
territórios do Noroeste da atual Rússia, Finlândia, Suécia e Noruega. Praticam em adição as práticas já citadas, a
criação de animais acostumados a climas de frio extremo, tal como renas e caribus (TAAGEPERA, 2004,
p.1347).
6
Nentsy, palavra que significa entorpecido, paralizado, abobado e era usada pelas populações eslavas para
diferenciar os capazes de falar (a língua eslava) Slovo, dos incapazes. Foi especialmente atribuída a essa
população pela dificuldade de estabelecer contato e pelas práticas de sobrevivência adotadas por eles, que se
diferenciavam muito das práticas sedentárias dos eslavos e eram consideradas excessivamente primitivas pelos
últimos (PIPES, 1995, p.2).

1180
encontravam isoladas umas das outras e não havia barreiras naturais que impedissem esse
encontro, mas apenas fronteiras abertas que, ao contrário, acabavam criando condições para o
mesmo (SHAW, 2006, p.41). Dessa forma, nômades e sedentários mencionados (nesse caso
principalmente os eslavos) habitavam a zona mista de florestas e estepes, ao mesmo tempo em
que caçadores coletores conviviam com os agricultores na zona de florestas; agricultores
praticavam caça e coleta e mesmo nômades e caçadores praticavam alguma agricultura.

No âmbito das expressões culturais, fenômeno semelhante é notável. Nosso foco nesse estudo
é o período de governo do príncipe Vladimir (980-1015 d.C.), com atenção especial para o
período anterior à sua adoção do cristianismo (em 988 d.C.). Porém, cabe destacar que as
relações entre os Rus´ e os povos que se situavam nessas diferentes regiões ou zonas
climáticas ao longo da Planície Russa acabaram por constituir um modo diferenciado de
interação com povos exteriores, bem como entre si. A própria noção do que seja Rus´ veio a
mudar profundamente ao longo do tempo. Segundo Dmitri Obolensky:

“O termo ‘Russos’ é derivado do nome de um povo que, nos séculos IX e X, foi chamado
Rus´ pelos Eslavos, Rhos pelos Gregos e Rūs pelos Árabes. O nome Rus´ ainda dispunha
àquela época, de três significados diferentes apesar de ocasionalmente sobrepostos.
Designava os Vikings Suecos, ou Varângios, que usaram o Volga e, posteriormente, o
Dnieper para suas expedições comerciais rumo ao Sul e que ganharam o controle de grande
parte da rota entre o Mar Báltico e o Mar Negro a partir de meados do século IX d.C.;
ocasionalmente se referia tanto aos Varângios e a seus súditos Eslavos do Leste que, será
retomado, então ocupavam a porção oeste e algumas porções centrais do que hoje é
nomeado Rússia Européia; e gradualmente adquiriu uma conotação geográfica, designando
o território em questão (habitado por tribos Fino-Ugrianas, assim como Eslavos do Leste),
sobre o qual os Vikings detinham a soberania” (OBOLENSKY, 1988, p.180-181).7

No entanto, como ilustração dessas constantes intersecções, citamos a presença de cristãos no


principado Rus´ de Kiev desde pelo menos 940 d.C. Também destacamos os tratados
comerciais estabelecidos pelos príncipes Oleg e Igor em 911 d.C. e 944 d.C. respectivamente

7
“The term ‘Russians’ is derived from the name of a people who, in the ninth and tenth centuries, were called
Rus´ by the Slavs, Rhos by the Greeks and Rūs by the Arabs. The name Rus´ still had at that time three different,
though occasionally overlapping, meanings. It designated the Swedish Vikings, or Varangians, who used the
Volga and later the Dnieper for their trading expeditions to the south, and who gained control towards the middle
of the ninth century over the greater part of the Baltic-Black Sea river route: it occasionally referred both to the
Varangians and to their East Slavonic subjects who, it will be recalled, then occupied the western and some of
the central areas of what is termed today European Russia; and it gradually acquired a geographical connotation,
designating the territory in question (inhabited by Finnic tribes as well as by the Eastern Slavs), over which the
Vikings held sway (Tradução nossa).

1181
como exemplos de que o contato entre culturas diferentes. Os Rus´ já conheciam o
cristianismo, tanto em sua expressão ocidental quanto em sua expressão bizantina desde muito
antes do evento que discutimos nesse estudo (BEREND, 2007, p.11). Quando da assinatura
do tratado de 944 d.C., no momento de propor o juramento de fidelidade ao que ficou
estabelecido, além do juramento a Perum – deus do trovão do panteão eslavo – feito pela
maioria dos seguidores de Igor, alguns seguidores do príncipe juraram cumprir as disposições
de seu tratado com o Império Bizantino na Igreja de Santo Elias em Kiev, além da premissa
no tratado de que caso alguém o violasse, que fosse amaldiçoado por Deus e por Perum
(CROSS, 1968, p.77) sem contar a própria Olga, batizada em Bizâncio (MARTIN, 1995, p.6).
Dessa forma, a preferência pelo Cristianismo de rito Bizantino exposta na passagem da
“Investigação das Religiões” acima descrita é um momento importante de escolha e decisão
diante de quase um século de expansão do cristianismo naquela região, que se mostrava
culturalmente receptiva, ainda que seletivamente em relação às religiões exteriores.

A “Investigação das religiões” e a percepção dos Rus´ de outras culturas

Quanto à situação política do principado Rus´, o que se pode dizer é que após um período
turbulento, quando teve de disputar o poder com seu irmão Iaropolk, Vladimir conseguiu unir
todo o território que compreendia o principado sob sua autoridade. Os combates com seu
irmão e com outros potentados, que tomaram lugar após a morte de seu pai, Sviatoslav em
972, duraram até 978-80, quando Vladimir finalmente tomou o poder.

Durante seu principado, Sviatoslav teve relações problemáticas com seus diversos povos.
Entre as campanhas de Sviatoslav, suas relações com o Império Bizantino merecem destaque.
Bizâncio costumava se valer de alianças com povos em momentos diversos de seus
empreendimentos militares. Várias alianças dessas foram estabelecidas com os Rus´, em
momentos diferentes das relações entre esses dois povos. Além dos tratados de 911 e 944,
Sviatoslav estabeleceu nova aliança com os Bizantinos em 971, após a sua segunda campanha
nos Balcãs. Nesse acordo, os Rus´ se comprometiam a auxiliar os bizantinos em caso de
ameaças e ataques de outros povos, em troca de condições privilegiadas de comércio em
Constantinopla, além de auxílio mútuo em operações militares no Mar Negro. Esse acordo
seria fundamental para o ambiente de trocas entre Bizâncio e os Rus´ posteriormente.

1182
Sviatoslav morreu deixando três filhos, Iaropolk, Oleg e Vladimir. Segundo a Crônica, este
último era filho de Malusha, uma criada de Olga. Quando Sviatoslav foi empreender a
segunda campanha pela conquista da Bulgária (em 972), deixou a cargo de seus filhos as
principais regiões do principado. Iaropolk ficou em Kiev, Oleg em Dereva e Vladimir em
Novgorod, após a recusa dos dois primeiros irmãos a esta cidade.

As guerras que se sucederam logo após Sviatoslav ser atacado e morto pelos Pechenegues, na
primavera de 972, culminaram em uma batalha, onde Iaropolk atacou e matou Oleg, quando
este batia em retirada em 976 (CROSS, 1968, p.90). Vladimir fugiu quando soube que
Iaropolk havia vencido Oleg, temendo a perseguição de seu irmão. Dessa forma, Iaropolk se
tornou governante único do principado Rus´.

Contudo, em 978, Vladimir retornou à cidade de Novgorod. Com um exército de aliados


Varângios, conseguiu mais aliados fino-ugrianos, eslavos e bálticos e iniciou a guerra contra
seu irmão. Enquanto esteve em Novgorod, tentou estabelecer um matrimônio com Rogneda,
filha de outro chefe Varângio, que veio de além mar e estabeleceu seus domínios em Polotsk:
Rogvolod. Nesse momento, sua condição de filho bastardo prejudicou sua posição nas
relações internacionais. Rogneda negou o pedido, alegando que não queria relações com
Vladimir. “Eu não vou, ela respondeu, retirar as botas de um filho de escrava, ao invés disso
eu quero Iaropolk” (CROSS, 1968, p.91).8 Diante dessa negativa, Vladimir atacou a região da
cidade de Polotsk, que constituía o domínio de Rogvolod, o matou e avançou rumo a Kiev,
logo após se casar à força com Rogneda.

Segundo a Crônica, Chegando a Kiev, Vladimir subornou Blut, general de Iaropolk, para
convencê-lo que lhe ajudasse a tomar Kiev. Dessa forma ele finalmente conseguiu assassinar
seu irmão e assumir o controle da cidade (CROSS, 1968, p.93). Após a conquista de Kiev,
aconteceram conflitos entre Vladimir e os soldados Varângios que o ajudaram a conquistar a
cidade. Eles demandavam um maior botim de guerra pela sua participação na campanha
contra Iaropolk. Diante dessa pressão, Vladimir se viu forçado a dispensar a maioria desses -
enquanto uns poucos foram agraciados com a administração de algumas cidades. Essa
dispensa foi um pedido dos próprios mercenários Varângios e Vladimir aceitou por não querer
aumentar a carga tributária sobre a população da região de Kiev (CROSS, 1968, p.93).9

8
“I will not, she replied, draw off the boots of a slave’s son, but I want Yaropolk instead” (Tradução nossa).
9
A região tomada após uma campanha militar normalmente era saqueada ou tributada e os tesouros obtidos
dessa forma eram distribuídos aos soldados. Esse tesouro era conhecido como o botim de guerra.

1183
Contudo, Vladimir tinha problemas por não ter laços com elites locais ou populações do
médio Dnieper (região de Kiev). Sua base política se situava em Novgorod, onde também se
deu o início de sua empreitada rumo ao controle exclusivo da Planície Russa. Da mesma
forma, sua origem, embora principesca, era alvo de desconfiança. Vladimir era, como já foi
dito, filho bastardo de Sviatoslav com uma criada de Olga, Malusha. Além disso, os soldados
Varângios dispensados se dirigiram para Bizâncio, deixando-o sem um séquito fiel e capaz de
impor e executar suas ordens sobre a população. Por essas razões, era necessário que o
príncipe não forçasse a situação das populações submetidas a ele.

Para compensar a falta de recursos, ele empreendeu expedições contra populações da região
que não lhe pagavam tributos, ou que deixaram de pagar, tais como os Viatichi, Liachs e
Radimichianos. Segundo Jonathan Shepard, o principal objetivo dessas expedições era
reimpor e assegurar a coleta dos mesmos, bem como estimular o trânsito de mercadorias,
alimentando o mercado de Kiev e obter meios de recompensar seus seguidores (2004, p.64).

Segundo a Crônica, a elaboração de um culto religioso oficial foi uma das primeiras
iniciativas de Vladimir quando ele tomou a cidade de Kiev. Jonatham Shepard acredita que
essa atitude era útil por dois motivos: Inicialmente serviria para, ao homenagear os deuses da
forma correta, assegurar as vitórias nas expedições militares empreendidas. Por outro lado,
serviria também para incentivar uma maior união dos povos submetidos ao príncipe e
consequentemente construir sua legitimidade, adotando tanto deuses como Perun (deus do
trovão), com um culto mais amplo e difundido, quanto deuses locais (2004, p.64). Contudo,
era a primeira vez que, no território dos Rus´, um príncipe tentava estabelecer um panteão de
deuses, o que demonstra para o historiador a crise de legitimidade na qual se encontrava
Vladimir, além de ressaltar a curiosa ligação entre religião e a legitimidade de regimes de
poder através dela.

Por que, então, o príncipe passou a examinar as religiões de seus adversários poucos anos
após estabelecer um culto oficial na Rus´? As razões para isso tendem a unir essa necessidade
de afirmação do principado de Vladimir, além da conjuntura política do mar Negro, de forma
mais ampla, com a própria irradiação cultural dessas religiões no território dos Rus´. A
Crônica narra que, após estabelecer o panteão na cidade de Kiev, Vladimir empreendeu
diversas expedições contra povos vizinhos. No entanto, quando tentou atacar os Búlgaros do
Volga, esperando dominar seus mercados, Vladimir foi alertado por seu tio Dobrÿnya de que
conquistar aquele povo não seria tarefa simples, dada a sua sofisticação (CROSS, 1968, p.96).

1184
10
Vladimir abandonou a campanha contra os Búlgaros e retornou a Kiev, onde se deu a
chamada “Investigação das Religiões”, forma como o episódio é conhecido pela
historiografia. O primeiro missionário a visitá-lo foi um Búlgaro do Volga adepto do
Islamismo.

Uma lacuna textual pode trazer preciosas implicações aqui. Não há nenhuma informação
precisa, além do conselho do tio de Vladimir sobre o desfecho da campanha que o mesmo
empreendeu contra os Búlgaros do Volga. A Crônica obviamente relatou uma vitória de
Vladimir, no entanto, imediatamente após essa entrada na Crônica temos a visita do
misionário Búlgaro.11 Shepard sugere que essa discrepância no relato possa ser derivada de
revezes na campanha e que a falha em conquistá-los e submetê-los a tributo fosse uma das
razões para que Vladimir escutasse missionários de outras religiões, visto que seus próprios
deuses teriam “falhado”. Um povo vizinho ao seu (os Búlgaros do Volga) que conseguia
inspirar tamanha insegurança quanto ao seu poder e a demonstração de que suas forças –
naturais ou sobrenaturais – eram limitadas, pode ter sido um bom motivo para a indignação do
príncipe diante de seus próprios deuses. A partir disso, um melhor fiador divino para suas
causas seria compreensível (SHEPARD, 2004, p.65).

Segundo a Crônica, o visitante islâmico advertiu Vladimir: “Apesar de você ser um príncipe
sábio e prudente, você não tem religião. Adote nossa fé e reverencie Maomé” (CROSS, 1968,
p.96).12 Vladimir então perguntou os fundamentos da natureza da religião deles ao que o
muçulmano falou sobre as proibições corânicas e as recompensas de quem segue essa fé.
Passagem curiosa se dá quando Vladimir negou essa fé. Ele não aceitava a proibição islâmica
ao consumo de bebidas alcoólicas: “A bebida, disse ele, é a alegria dos Rus´. Não podemos
existir sem esse prazer” (CROSS, 1968, p.97).13

Depois dessa visita, enviados cristãos de origem germânica o procuraram, como enviados do
Papa e o disseram: “Assim diz o papa, Seu país é como nosso país, mas tua fé não é como a
nossa. Porque nossa fé é a luz. Nós adoramos a Deus, que fez o céu e a terra, as estrelas, a lua

10
De acordo com o texto da Crônica o alerta do tio de Vladimir se baseia principalmente no fato de os
prisioneiros Búlgaros usarem botas. Ele recomenda que Vladimir procure inimigos que usem calçados mais
simples, ou seja, menos sofisticados.
11
Tal como já discutido, a penetração de outras culturas e religiões na Rus´ era uma realidade muito anterior à
essa entrada na Crônica (980).
12
“Though you are a wise and prudent prince, you have no religion. Adopt our faith, and revere Mahomet.”
(Tradução nossa).
13
“‘Drinking,’ said he, ‘is the joy of the Russes. We cannot exist without that pleasure’” (Tradução nossa).

1185
e todas as criaturas, enquanto seus deuses são apenas madeira” (CROSS, 1968, p.97).14 Então
Vladimir perguntou como eram seus ensinamentos, ao que os germânicos responderam
enfatizando a prática constante do jejum, que Vladimir negou, dispensando-os.

Em seguida, enviados Kázaros Judeus foram ao encontro de Vladimir, o instigando a adotar


sua religião. Vladimir perguntou sobre seus princípios e, ao ouvir a resposta deles, os indagou
sobre de qual terra vinha essa religião. Eles responderam: “Deus estava furioso com nossos
ancestrais, e nos espalhou entre os gentios por culpa de nossos pecados. E então nossa terra
foi dada aos cristãos” (CROSS, 1968, p.97).15 Vladimir então negou veementemente a fé dos
judeus dizendo: “Como vocês esperam ensinar aos outros enquanto vocês mesmos foram
jogados e espalhados a esmo pela mão de Deus? Se Deus os amasse e amasse a sua fé vocês
não seriam dispersos em terras estrangeiras. Vocês esperam que aceitemos essa fé?” (CROSS,
1968, p.97).16

A Crônica diz que por último, Vladimir recebeu um missionário bizantino que foi enviado
para convence-lo a adotar sua fé. Ele se esforçou por difamar as outras religiões e então
explicou para Vladimir os fundamentos do cristianismo. A Crônica se detém longamente no
debate entre Vladimir e o missionário bizantino (chamado de sábio na Crônica), quando este
explicou para o príncipe os fundamentos da crença Cristã, do Antigo Testamento, do
nascimento, morte e ressurreição de Jesus e do estabelecimento do apostolado cristão no dia
de Pentecostes (CROSS, 1968, p.98-110).17

É importante relembrar que a escrita da Crônica se deu a partir do século XI d.C., portanto,
após o cisma entre Católicos e Ortodoxos, ocorrido em 1054. d.C. No entanto, a Crônica
narra essa investigação como se essa separação já tivesse ocorrido. Muito embora a polêmica
entre as sedes cristãs de Constantinopla e de Roma já existisse há muito tempo, desde pelo
menos o estabelecimento da primazia da sé romana no século IV d.C. e alguns cismas
menores já tivessem ocorrido entre as duas, motivados principalmente por diferenças
doutrinárias e o apoio dos imperadores bizantinos a algumas correntes do cristianismo, as

14
“Thus says the Pope: Your country is like our country, but your faith is not as ours. For our faith is the light.
We worship God, who has made heaven and earth, the stars, the moon , and every creature, while your gods are
only wood” (Tradução nossa).
15
God was angry at our forefathers, and scattered us among the gentiles on account o four sins. Our land was
then given to the Christians (Tradução nossa).
16
“How can you hope to teach others while you yourselves are cast out and scattered abroad by the hand of
God? If God loved you and your faith, you would not be thus dispersed in foreign lands. Do you expect us to
accept that fate also?” (Tradução nossa).
17
A descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, dotando os dos dons da pregação e da cura, iniciando a difusão
do cristianismo (Cf. Bíblia, Atos dos Apóstolos 1, 1-11).

1186
relações entre as duas vertentes eram rapidamente reestabelecidas. Também é fundamental
salientar que essa investigação e a consequente discussão com os sábios dessas religiões não
tem corroboração em nenhuma das outras fontes Rus´ dos séculos XI e XII d.C.: somente a
Crônica preserva essa tradição (CROSS, 1968, p.245).

Essa demora na narrativa do debate entre o sábio bizantino e Vladimir demonstra claramente
a perspectiva do momento da escrita da Crônica, onde, pelo menos um século depois da
adoção do cristianismo pelo próprio Vladimir, a consolidação do mesmo já era uma realidade,
pelo menos nos grandes centros da Planície. Da mesma forma, ressalta seu caráter
educacional e catequético. No momento desse debate, em uma exposição com uma linguagem
simples, porém demorada, o sábio explica para Vladimir os fundamentos da fé cristã, além da
história da humanidade do ponto de vista dessa religião. Uma ferramenta de propagação dos
fundamentos dessa fé para ser lida posteriormente.

A “Investigação das Religiões” continuou e após Vladimir debater com os representantes das
religiões, principalmente com o sábio Bizantino, ele decidiu junto aos seus seguidores e
conselheiros, enviar representantes em seu nome para examinar as práticas das religiões que
lhes interessaram. Dessa forma, enviou dez homens para investigar a fé dos Búlgaros (do
Volga), dos Germanos (que praticavam o cristianismo de rito Latino) e dos Gregos (que
praticavam o cristianismo Grego Ortodoxo). Eles retornaram com duras críticas aos Búlgaros,
de como a adoração a seu deus era feita sem alegria, só com o que eles chamaram de tristeza e
pavor, questionaram a falta de glória nas cerimônias dos Germanos e cobriram de elogios as
práticas dos Gregos. Após isso os guerreiros do séquito de Vladimir e os anciãos da cidade de
Kiev o lembraram da aceitação do cristianismo de rito Grego por sua avó, Olga,
anteriormente: “E então os vassalos o circularam e disseram, ‘Se a fé Grega fosse ruim, ela
não seria adotada por sua avó Olga, que era mais sábia do que todos os outros homens’”
(CROSS, 1968, p. 111).18

Essa investigação forneceu, segundo a Crônica, os subsídios que Vladimir precisava para
tomar sua decisão. No entanto uma conjuntura política muito específica tornou a adoção do
cristianismo pelo príncipe um fenômeno ainda mais fascinante. Na próxima seção veremos
brevemente dois pontos de vista diferentes sobre como se deu o batismo de Vladimir.

18
“Then, the boyars spoke and said, ‘If the Greek faith were evil, it would not have been adopted by your
grandmother Olga who was wiser than all other men’” (Tradução nossa).

1187
O batismo de Vladimir: debate historiográfico

Foi a partir das circunstâncias acima esboçadas que se desenrolou o batismo de Vladimir na
religião cristã, em 988 d.C. Contudo, os eventos que culminaram nele merecem atenção
especial, visto que são alvo de intensa polêmica entre historiadores e são cruciais para
determinar o significado da mudança promovida por Vladimir, em termos políticos, religiosos
e econômicos. Inicialmente veremos a posição tradicional da historiografia sobre o evento e
posteriormente veremos a proposta de revisão encabeçada pelo historiador polonês Andrzej
Poppe nos anos 1970.

De acordo com a visão mais aceita pelos historiadores (no decorrer do século XX), os eventos
se deram da seguinte maneira: após sofrer duras derrotas diante dos Búlgaros em 986, Basílio
II foi surpreendido por uma revolta seguida de guerra civil na Anatólia. O revoltoso Bardas
Phocas se declarou imperador e foi reconhecido por toda a Ásia Menor. Desesperado e
necessitando de suporte militar, Basílio enviou uma delegação ao príncipe Rus´ Vladimir em
busca de assistência. O príncipe Rus´ aceitou enviar ajuda para Basílio, contanto que este lhe
desse sua irmã Ana, uma princesa nascida na família imperial bizantina, em casamento.19
Basílio aceitou o acordo, contanto que Vladimir se tornasse cristão e convertesse seu povo.
Vladimir também concordou com os termos do imperador bizantino e enviou-lhe as tropas
necessárias. Nas batalhas de Crisópolis e Abydus20, ambas na primeira metade do ano de 989,
as forças Rus´ inverteram as escalas em favor de Basílio, desempenhando um papel vital na
obtenção da vitória sobre os rebeldes. Contudo, após a superação das guerras civis, Basílio
demorou a cumprir sua parte no acordo, suscitando a ira do príncipe Rus´, que atacou suas
possessões na Criméia e tomou a cidade de Cherson em julho de 989, ameaçando fazer o
mesmo com Constantinopla. As razões apontadas para a captura dessa cidade são associadas
principalmente com interesses de estado, ou então pela própria ganância e luxúria que
caracterizavam o príncipe Vladimir na Crônica, antes de ser batizado (POPPE, 1976, p.200).
Basílio II cedeu à pressão de Vladimir e enviou sua irmã, contra a vontade tanto dela quanto
dele, para se casar com o príncipe Rus´. Havia uma tradição bizantina, quebrada nesse
contexto, de não casar princesas da família imperial com estrangeiros, ainda mais pagãos. Ela

19
A procura, por potentados “bárbaros” por alianças de casamento com membros da corte bizantina foi
excepcionalmente numerosa nesse período, de tal forma que o imperador Constantino VII Porfirogênito, no
tratado De administrando imperio, aconselhou seu filho a evitar tal prática a todo custo (SHEPARD, 2003, pp.1-
2).
20
Cidades da Ásia Menor. A primeira ficava na parte externa do estreito do Bósforo, bem próxima a
Constantinopla. A segunda ficava no estreito do Hellesponto, do outro lado do Mar de Mármara. O objetivo de
tomar essas duas cidades era o de forçar um bloqueio naval à Constantinopla.

1188
foi levada até a cidade de Cherson, onde Vladimir se batiza e os dois se casaram. O príncipe
Rus´ devolveu a cidade bizantina ao imperador e partiu, levando Ana, até Kiev, onde
Vladimir ordenou à população da cidade que se batizasse. O batizado da população ocorreu
ainda em 989, nas margens do rio Dnieper.

A descrição acima é a mais aceita acerca dos fatos que culminaram no batismo do Príncipe
Rus´ e na cristianização (pelo menos oficial) do principado Rus´ de Kiev. Os principais
expoentes desse ponto de vista são Francis Dvornik, em sua obra The Slavs: Their Early
History and Civilization (1956), Georges Ostrogorsky em sua principal obra Geschichte des
byzantinischen Staates (1963), Dmitri Obolensky, também em seu trabalho principal, The
Byzantine Commonwealth (1972), além de um artigo dedicado diretamente a essa questão,
'Cherson and the conversion of Rus': an anti-revisionist view', publicado na Byzantine and
Modern Greek Studies 13 (1989), além de trabalhos mais recentes como o de Paul
Stephenson, Byzantium’s Balkan Frontier (2004).

Contudo, esse desenrolar de acontecimentos é contestado na discussão historiográfica até


hoje. Alvo de várias interpretações divergentes, a Cristianização dos Rus´ foi abordada pelo
historiador polonês Andrzej Poppe, em seu artigo “The Political Background to the Baptism
of Rus': Byzantine-Russian Relations between 986-89” publicado em 1976 na Dumbarton
Oaks Papers, famosa revista estadunidense de estudos Bizantinos, trazendo novas
contribuições para a cronologia e ordenação dos acontecimentos. Algumas conclusões de seu
trabalho serão apontadas aqui, ainda que brevemente.

Segundo esse autor, em setembro de 987 Bardas Phocas se declarou imperador e marchou
rumo a Constantinopla, sendo reconhecido por toda a Ásia Menor. Desesperado diante da
perda de metade de seus domínios, Basílio II pediu ajuda a Vladimir, em uma embaixada que
chegou a Kiev no inverno de 987/988. Como as conversações com Vladimir já estavam
adiantadas, uma vez que o príncipe já investigara as religiões dos estados vizinhos, tal como
demonstrado na Crônica, a embaixada enviada por Basílio II tinha poderes para discutir
assuntos tanto religiosos quanto políticos. Estabeleceu-se naquela ocasião que o príncipe
enviasse ajuda militar para o imperador bizantino, enquanto este lhe daria sua irmã em
casamento, contanto que Vladimir, bem como os Rus´, se convertessem ao cristianismo.

Entre a primavera e o verão de 988, as tropas Rus´ chegaram a Constantinopla e após um


período de adaptação participaram das batalhas de Crisópolis e Abydus, em janeiro e abril de

1189
989, quando o imperador bizantino venceu o revoltoso Bardas Phocas. As tropas Rus´
permaneceram em serviço junto a Basílio e Vladimir foi batizado em Kiev. Após isso
Vladimir atacou a cidade de Cherson, que tinha se declarado a favor de Phocas, graças à
aceitação deste na Ásia Menor, principal região fornecedora de alimentos para a cidade.
Vladimir tomou a cidade em 27 de julho de 989 e a destruiu como punição por seu
alinhamento com o rebelde Bardas Phocas, se casou com Ana Porfirogênita e levou ícones,
relíquias e objetos litúrgicos da cidade de Cherson para Kiev, com o objetivo de criar uma
igreja cristã ortodoxa na Rus´.

Tomando essa sequência de eventos como a mais verossímil a partir das informações –
escassas – das fontes, estão o próprio Andrzej Poppe (1976) no artigo já referido, mas
recorrente em toda sua obra, principalmente nas coletâneas de artigos The rise of Christian
Russia (1982) e Christian Russia in the Making (2007), Janet Martin em sua obra Medieval
Russia: 980-1584 (1995), além de John Fennel em sua obra A History of the Russian Church
to 1448 publicada postumamente (1995). Alguns historiadores, no entanto, se esquivam de
tomar um posicionamento a respeito, dentre os quais destacamos principalmente Jonathan
Shepard e Simon Franklin em The emergence of Rus 750-1200 (1996), e em inúmeros
trabalhos individuais dos mesmos.

Essas diferentes propostas de como se desenrolou o evento do batismo de Vladimir, bem


como a questão da iniciativa de cristianizar a Rus´, se foi tomada pelo Imperador Bizantino ou
pelo Príncipe Rus´, ainda despertam polêmicas. Vários estudiosos acreditam que o batismo da
Rus´ foi uma iniciativa Bizantina, enquanto outros salientaram a importância da iniciativa de
Vladimir sobre essa questão. No entanto, estudos recentes tendem a aproximar esses dois
pontos de vista. O próprio Poppe toma a questão por um viés mais matizado. Ele observa que,
a partir das considerações levantadas à exaustão pela historiografia sobre o plano de fundo
político do batismo de Vladimir, apenas uma conclusão é possível: Vladimir se aproveitou de
necessidades urgentes de expediente político-militar21 dos imperadores bizantinos para obter
privilégios que, se pleiteados de outra forma e/ou em outra situação provavelmente não
seriam concedidos - i.e. a condição de parceiro político de Bizâncio e o casamento com a
princesa Ana Porfirogênita, irmã dos Imperadores Bizantinos (1976, p.243), fato que aponta
21
Nas palavras do autor: “A aceitação do Cristianismo não foi imposta e nem instigada pelo governante
Bizantino. A data e as condições do batismo do governante Rus´ e seu séquito foi o resultado de uma situação
política concreta. Todavia a entrada do estado de Kiev na Cristandade foi precedida por mais de cem anos de
penetração do Cristianismo na area do médio Dnieper e por sua crescente influência na corte de Kiev,
especialmente depois do batismo da avó de Vladimir, Olga-Helena, a então soberana de Kiev (POPPE, 1976,
p.243) (Tradução nossa).

1190
claramente para uma necessidade de apoio e legitimação da parte do príncipe Rus´. A própria
conversão teria sido vista por Bizâncio como apenas uma manobra para manter as aparências
do casamento da princesa com o príncipe Rus´, um bárbaro aos olhos da civilização
Bizantina.22 Dessa forma, essa iniciativa teria como motor primordial a situação política
internacional, visto que, se a ideia da conversão tivesse partido exclusivamente de Bizâncio,
tal como a iniciativa do Patriarca Fócio em 867, que batizou um grupo de Varângios e
acreditou ter batizado todo o povo dali, bem como o batismo de Olga, haveria inevitavelmente
um novo retorno ao paganismo (POPPE, 1976, p.243).

Tal como Simon Franklin e Jonathan Shepard ressaltaram, “qualquer que seja a hipótese que
se prefira, o fato central é que Vladimir se aproveitou de um período de turbulência em
Bizâncio para propor uma barganha sobre os imperadores e instituir um novo culto em termos
de, mais ou menos, sua escolha” (FRANKLIN; SHEPARD, 1996, p.162). A resolução desse
problema de datação não interfere na percepção da habilidade política de Vladimir para
conseguir se sobrepor nas relações internacionais do período casando-se com uma princesa
bizantina – fator de imenso prestígio que seria negado se a situação dos imperadores não fosse
tão desesperadora – adotar uma religião monoteísta que constituía em torno de si uma das
comunidades políticas mais fortes do período medieval, capitaneada pelo Império Bizantino,
que durante a segunda metade do século X e a primeira metade do século XI d.C., além de sua
próspera condição econômica, também era visto como uma potência militar. Tal aliança
visava consolidar sua posição de príncipe entre os Rus´. No entanto, a polêmica entre essas
duas reconstituições de eventos continua a ressurgir em praticamente todos os trabalhos
elaborados com nossa temática.

John Fennel, outro reconhecido estudioso da História da Rússia, aborda esse problema à luz
de duas questões principais. A primeira é se a iniciativa da cristianização veio dos gregos e se
o interesse de Basílio II era mesmo o de inserir a Rússia na chamada Commonwealth de
estados cristãos orientais. A segunda é se a demanda dos Bizantinos pelo batismo de Vladimir
seria apenas uma condição – admitidamente – essencial de seu casamento com uma princesa
nascida na púrpura, tal como o acordo se encaminhava. Segundo o autor, a resposta para a
segunda questão é inevitavelmente sim, com a iniciativa partindo de Vladimir ou mesmo de
Basílio, quando Vladimir, ao ser abordado com o pedido inicial (o envio de tropas para

22
Conferir também a digressão sobre a percepção histórica de Léo, o Diácono, feita por Andrzej Poppe em seu
trabalho “How the Conversion of Rus’ Was Understood in the Eleventh Century, publicado na revista Harvard
Ukrainian Studies 11 em 1987 e republicada no livro Christian Russia in the Making de 2007.

1191
auxiliar a suprimir a revolta de Bardas Phocas), decidiu os termos do acordo – o casamento
com a princesa – que implicava necessariamente em seu batismo. Contudo, batismo apenas
para si mesmo. Muito embora Bizâncio sempre atuasse em suas relações diplomáticas visando
obter a conversão dos povos ao seu redor, a conjuntura em que se encontravam os
imperadores tornavam as coisas mais difíceis no sentido de obter um acordo para o batismo da
população do principado. Assim, a cristianização de seus súditos não estaria, inicialmente, na
alçada de um acordo desse porte e, portanto, para esse autor, a iniciativa de batizar a
população da Rus´ seria principalmente de Vladimir (FENNEL, 1995, pp.38-39).

Conclui-se, então, que o acordo político entre Basílio II e Vladimir teve significados
diferentes para cada uma das partes. Para o primeiro o acordo foi uma ajuda militar
necessária, em um momento de crise, que se desdobrou em uma realização para a propaganda
imperial, defensora do ideal de expansão da fé cristã, uma grande vitória, política e religiosa.
Por outro lado, para o segundo, uma aliança importantíssima teve lugar. Graças a ela o
príncipe Rus´ dotou seu poder de nova legitimidade, agora baseada na aliança matrimonial
com uma princesa bizantina e em uma concepção de autoridade baseada na teologia política
cristã, que o imbuiu de uma aura de santidade.

Considerações finais

Finalizando nosso estudo, lançamos um olhar diferenciado sobre esses eventos: além de sua
perspectiva política, notamos as possibilidades geradas pela adoção de uma nova religião na
perspectiva da própria experiência religiosa. A conversão gera, sem dúvida, um
redimensionamento amplo da percepção de realidade do recém-convertido, graças à dimensão
ético-moral da religião. Sair de um paganismo e situar-se no cristianismo trouxe, além da já
discutida legitimação política ao regime de poder, uma nova postura para o príncipe, uma
nova ordenação e percepção da própria experiência do vivido. Adotar uma nova religião
impõe a adoção de toda uma nova conduta de vida como condição prévia para tudo o mais.
Vladimir precisava se afastar de, ou reconsiderar,, todas as condutas que se impunham como
necessárias ou prazerosas em sua vida enquanto pagão – Vladimir foi descrito pela Crônica
como dotado de um apetite insaciável pela bebida e por mulheres (CROSS, 1968, p.94). Essa
transformação trouxe consigo toda uma revisão da estrutura de poder encabeçada pelo
príncipe.

1192
Notamos ainda que, em nossa tentativa de pensar a conversão na Idade Média, tenhamos
sempre que lidar com uma perspectiva mais imediatista da vivência do divino, tal como
discutido por Sérgio da Mata, que cita De Vries ao afirmar que “o que permite, em muitos
casos, a passagem ao cristianismo não é o sermão cristão. Antes, a questão decisiva é a de
qual deus, cristão ou pagão, é o mais forte” (MATA, 2010, p.102). Pensamos essa afirmação
de De Vries à luz da discussão mais ampla de Gurevich, que propôs, em sua obra As
categorias da cultura medieval (1972), pensar a Idade Média à luz da suprema generalização
empreendida pelos membros de diversas sociedades medievais. O pensamento teológico era o
meio principal de organização e entendimento do mundo. Não se trata apenas do pensamento
teológico dos grandes centros de estudos do período e sim de uma forma mais ampla de
interpretar e organizar o mundo em que se vivia. Nesse sentido, as visitas dos representantes
das religiões e a pesquisa empreendida por Vladimir e seus enviados pode ser percebida como
um esforço para situar o principado (e as vidas dos seus membros) na discussão mais ampla
que ocorria sobre o mundo e sobre o além. Pensar a legitimidade de seu poder, a base de
sustentação do modo de vida dos Rus´, a política, a guerra, o comércio, tudo fazia parte desse
mesmo processo de pensamento durante o fenômeno da adoção religiosa. “A visão de mundo
medieva se caracterizava pela sua integralidade – daí a sua não diferenciação específica, a
inseparabilidade das suas diferentes esferas” (GUREVICH, 1990, pp.24-25).

Referências

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Europe and Rus´, c. 900-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

CROSS, Samuel. H; SHERBOWITZ-WETZOR, Oleg P. The Russian Primary Chronicle. Cambridge:


Mediaeval Academy Of America, 1968.

DVORNIK, Francis. The Slavs: Their early History and Civilization. Boston: American Academy of
Arts and Sciences, 1958.

FENNEL, John. A History of the Russian Church to 1448. London: Longman, 1995.

FRANKLIN, S.; SHEPARD, J. The Emergency of Rus´: 750-1200. New York: Longman Publishing,
1996.

GUREVICH, Aron I. As categorias da cultura medieval. Lisboa: Editorial Caminho, 1990.

MARTIN, Janet. Medieval Russia: 980-1584. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

1193
MATA, Sérgio da. História & religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

MILLAR, James R. (Ed.). Encyclopedia of Russian History. Nova York: Thompson & Gale, 2004.

NOONAN, Thomas S. "European Russia c.500-c.1050. In: REUTER, Thimoty (Ed.). The new
Cambridge medieval history. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

OBOLENSKY, Dmitri. The Byzantine Commonwealth: Eastern Europe 500-1453.

London: Phoenix Press, 1988.

OSTROGORSKY, Georg. Historia del Estado Bizantino. 2ª edição. Madrid: Akal Editor, 1963.

PIPES, Richard. Russia under the old regime. London: Penguin Books, 1995.

POPPE, Andrzej. Christian Russia in the making. London: Variorum Reprints, 2007.

_____________. “The Political Background to the Baptism of Rus': Byzantine-Russian Relations


between 986-89”. In: Dumbarton Oaks Papers, Vol 30 (1976), pp. 195-244. Washington: Dumbarton
Oaks, Trustees for Harvard University. Disponível em http://www.jstor.org/stable1291395 Acesso em
15 maio 2013.

SHAW, Denis J. B. Russia’s Geographical environment. In: The Cambridge History Of Russia. Vol. 1.
From early Rus´ to 1689. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

SHEPARD, Jonatham. The origins or Rus´. In: The Cambridge History of Russia. Vol 1: From Early
Rus´ to 1689. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.]

_____________ Marriages towards the millennium. In: MAGDALINO, Paul (ed.). Byzantium in the
year 1000. Londres: Brill, 2003.

1194
Adversus Iudaeos – a criação do antissemitismo no pensamento
cristão

Saul Kirschbaum23

Introdução

O fenômeno do antissemitismo tem sido caracterizado, de acordo com a época e o local dos
eventos, segundo diferentes planos ou vertentes. Assim, por exemplo, massacres ocorridos no
século XIV em diversas cidades espanholas (Barcelona, Cervera, Tarrega, Lerida) e alemãs
(Stuttgart, Estrasburgo, Colônia) são atribuídos ao medo popular de que os judeus estivessem
envenenando nascentes e, depois, disseminando a peste negra (DELUMEAU, 2009, pp. 205-
6); a rebelião dos cossacos ucranianos no século XVII, liderados por Bohdan Khmelnitsky,
que massacraram entre 100 e 300 mil judeus e destruíram 300 comunidades judaicas, tem sido
vista como resultado de um antissemitismo econômico. Afinal, a Ucrânia estava sob domínio
polonês, e a nobreza polonesa impunha pesados impostos que eram cobrados por
arrecadadores judeus.

Da mesma forma, o Holocausto praticado pelo regime nazista durante a Segunda Guerra
Mundial, que resultou na morte de seis milhões de judeus (além de ciganos, deficientes
mentais e outros grupos populacionais considerados indesejáveis), é entendido como
manifestação de um antissemitismo racial, uma vez que a concepção nazista da superioridade
ariana exigia considerar outras “raças” como inferiores; assim, os eslavos estavam destinados
a serem escravizados, e os judeus, que faziam parte do dia-a-dia germânico, eram vistos como
o grande empecilho à inevitável ascensão alemã, ao cumprimento de sua missão histórica, e,
por isso, deviam ser exterminados.

Nesta comunicação, trato de outra vertente, o antissemitismo religioso, que, na busca de seus
objetivos próprios, forneceu suporte ideológico para as demais manifestações, exacerbou,
legitimou e generalizou os sentimentos hostis das comunidades locais em relação aos judeus;
este “racismo religioso” desenvolveu-se através de um discurso teológico, um corpo de
escritos conhecido como Adversus Iudaeos.

23
Doutor em Letras pela USP. Pesquisador independente. Contato: saul.kirschbaum@gmail.com.

1195
A criação do antissemitismo no pensamento cristão

A literatura cristã anti-judaica começa a ser produzida já no Novo Testamento, quando tinha
dois objetivos: por um lado, diferenciar a visão de mundo cristã da judaica, favorecendo a
constituição do cristianismo como religião à parte e não como apenas mais uma seita judaica,
e, dessa forma, competir com o judaísmo na atividade de proselitismo dirigida aos pagãos, nas
condições impostas pela dominação romana; por outro, explorar conflitos internos do
judaísmo, num esforço para atrair adeptos dentre os judeus.
Exemplo do primeiro objetivo pode ser encontrado na segunda epístola de São Paulo aos
Coríntios:
3-13: E não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel
não atentassem na terminação do que se desvanecia. 14: Mas os sentidos deles se
embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu
permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido. 15: Mas até hoje, quando é
lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. 16: Quando, porém, algum deles se
converte ao Senhor, o véu lhe é retirado.

ou na epístola de São Paulo aos Colossenses:

2-16: Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova,
ou sábados, 17: porque tudo isso tem sido sombra das cousas que haviam de vir; porém o
corpo é de Cristo.

Exemplo do segundo objetivo, a conversão de judeus, pode ser encontrada na epístola de São
Paulo aos Romanos:

11-11: Pergunto, pois: porventura, tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum! Mas,
pela sua transgressão, veio a salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes. 12: Ora, se a
transgressão deles redundou em riqueza para o mundo, e o seu abatimento, em riqueza para
os gentios, quanto mais a sua plenitude! 13: Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto,
pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, 14: para ver se, de algum
modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles. 15: Porque, se o fato
de terem sido eles rejeitados trouxe reconciliação ao mundo, que será o seu
restabelecimento, senão vida dentre os mortos?

No ano de 312, porém, o cristianismo é adotado pelo imperador Constantino; Ben-Sasson


registra que no quarto século, em meio a uma atmosfera de amargas polêmicas entre as
diversas seitas cristãs, a Igreja expressou agudas condenações dos judeus, seu caráter e seu
modo de vida, que, certamente, coloriram a imaginação das massas pagãs que se converteram

1196
quando o cristianismo se ligou aos governantes imperiais; os polemistas cristãos declaravam e
ensinavam que os judeus eram uma nação cujos próprios profetas tinham testemunhado sua
corrupção, ainda que somente os judeus possuíssem a Lei de Deus, a Torá (BEM-SASSON,
1997, pp. 406-7); mesmo consolidado em face do judaísmo, no entanto, deve-se enfatizar que
o cristianismo não pregava a eliminação dos judeus; pelo contrário, como observa Maria
Guadalupe Pedrero-Sánchez, no limiar da Idade Média Santo Agostinho defende a
conservação dos judeus: era necessário que eles sobrevivessem, a fim de que, como custódios
das Sagradas Escrituras, dessem testemunho da verdade cristã, embora devessem estar
dispersos por todo o mundo e politicamente subjugados, de acordo com a interpretação dada a
Gênesis 25:23, “o mais velho servirá ao mais jovem” (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, p. 10).

A literatura adversus iudaeos experimenta grande expansão, em todas as regiões que se


afirmam como cristãs, pela pena de seus principais líderes, os Padres da Igreja, configurando
um antissemitismo teológico eclesiástico. Renata Sancovsky agrupa esses escritos e relaciona
os principais autores: 1) Linha Homilética/Moralizante – João Crisóstomo, Agostinho de
Hipona, Quodvultdeus de Cartago, Cesário de Arles, Ambrósio de Milão, Severo de Menorca
e Isidoro de Sevilha; 2) Linha Disputatio/Altercatio – Eusébio de Cesareia, Quodvultdeus,
Cesário de Arles, Evagrius; 3) Linha Histórico-Narrativa – Eusébio de Cesareia.
(SANCOVSKY, 2012, p. 15) Seu alvo será não apenas os judeus, mas também os conversos e
os cristãos judaizantes.

Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández mostram que os argumentos empregados
nesses novos escritos adversus Iudaeos têm em comum a apresentação do “problema judaico”
como uma questão de negociação impossível, já que engloba acusações de natureza ou
princípio insolúveis: a acusação de uma obstinação congênita do povo judeu juntamente com
sua impiedade e ignorância, condição que lhe impossibilitaria a adoção sincera da verdade
cristã; sua condição semissatânica que se demonstraria pelo fato de terem sido repudiados
pela divindade ao longo de sua história e que os colocaria como inimigos eternos do
cristianismo; e, finalmente, o mais irreconciliável ou incendiário nível de acusações, o que
deriva da culpa coletiva do povo judeu de deicídio.( CASTRO CARIDAD; PEÑA
FERNÁNDEZ, 2012, p. 14)

Como mostram os mesmos autores, os textos polemistas cristãos contra os judeus se


organizaram, geralmente, em torno a quatro pontos:

1197
a) a caducidade da lei mosaica, que se põe de manifesto pela inferioridade da lei e do culto
judaicos, razão pela qual se criticam práticas judaicas como a circuncisão, o sábado, o
calendário lunar, a dependência cósmica da liturgia judaica, as festas, o jejum, as regras de
alimentação, os sacrifícios e o Templo;

b) a rejeição dos judeus e a eleição dos gentios, que se convertem no verdadeiro Israel, o que
se expressa mediante a análise da transferência da Aliança;

c) o messianismo de Jesus, que explica o tema da interpretação do Antigo Testamento a partir


de uma exegese cristológica espiritual e messiânica, e que se manifesta mediante a exposição
de temas como a angelologia, a leitura alegórica, a pré-existência do Filho, e as mitsvot
(“mandamentos”) como castigo de Israel; e por último

d) as consequências negativas que sofre o povo judeu, devido à culpa dos judeus na paixão de
Jesus, a repressão romana, sinal de reprovação divina, a hostilidade contra os cristãos, a
falsificação das Escrituras (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, pp. 21-2).
Com a desintegração do Império, surgem, de seus escombros, os estados europeus. E o
antissemitismo religioso muda de objetivo. Trata-se, agora, de consolidar estes estados por
meio da adoção por todo o povo de uma só religião. Afinal, antes dos nacionalismos forjados
pelo século XIX, os povos não se sentiam realmente ligados senão em um sentimento de
vinculação religiosa (DELUMEAU, 2009, p. 459). Neste esforço, a literatura adversus
iudaeos terá valor instrumental significativo.

Como assinala Luis Suárez Fernández, a Igreja espanhola, desde o Concílio de Elvira, no
começo do século IV, começara a preocupar-se com os efeitos que a convivência com os
judeus podia exercer sobre os cristãos, mas os monarcas visigodos, adeptos da seita cristã
conhecida como arianismo, num primeiro momento não alteraram a postura de tolerância que
permitia aos judeus um crescimento normal; porém, a partir do ano 589, quando se convertem
ao catolicismo, decisão na qual influía muito o desejo de utilizar a Igreja como instrumento de
seu poder, iniciam a perseguição aos judeus, pois estes eram o único obstáculo que se opunha
à unidade total buscada pelos monarcas (Suárez Fernández, 1988, p. 18); pode-se dizer que há
uma passagem do teológico ao político. Os projetos unificadores por parte das autoridades
cristãs, civis e eclesiásticas, terão uma justificação mais simples se se apresentarem frente a
um “outro” facilmente identificável, como é o caso do judeu (CASTRO CARIDAD; PEÑA
FERNÁNDEZ, 2012, p. 14).

1198
É ainda Suárez Fernández quem esclarece que a partir do III Concílio de Toledo, ocorrido
naquele ano de 589, no qual Recaredo se converteu ao catolicismo, assiste-se a um processo
de endurecimento: primeiro foi decretada a libertação dos escravos possuídos por judeus que
se fizessem cristãos ou que fossem circuncidados; depois, foram proibidos de ter servidores
livres; mais tarde, decretaram que os filhos dos judeus fossem educados por professores
cristãos. Foi proibida a Páscoa, o rito da circuncisão e até o casamento que não fosse cristão.
Finalmente, o rei Recesvinto ordenou o batismo compulsório de todos os judeus, numa
sinistra antecipação do que viria a ocorrer, de fato, oito séculos mais tarde24. Em 695, o rei
Egica acusou os judeus de conspiração contra a coroa (Suárez Fernandez, 1988, pp. 35-6).25 À
medida que as relações com os cristãos se deterioravam, os judeus da Espanha, em uma
última tentativa de provar sua inocência, tentaram mostrar que seus antepassados tinham
deixado a Palestina muito antes da época de Cristo, e, por isso, não podiam ter participado da
crucifixão. Desnecessário dizer que argumentos dessa espécie – por mais racionais que
fossem – não ajudaram em nada (EBAN, 1968, p. 125).

Neste processo, foi de fundamental importância a atuação de Isidoro, arcebispo de Sevilha,


que viveu de 556 ou 560 até 636, teve participação vital na erradicação da “heresia” ária,
tomou a seu cargo emparentar o mais estreitamente possível entre si os iberos invadidos e os
visigodos invasores (POLIAKOV, 1974, p. 3), e patrocinou a conversão de Recaredo ao
catolicismo. Isidoro escreveu dois textos para demonstrar a verdade de Cristo e a
superioridade do cristianismo sobre o judaísmo, De fide catholica contra Iudaeos e
Questiones adversus Iudaeos et ceteros infideles seu quos libet haereticos iudaizantes,
escritos esses que foram respondidos por polemistas judeus espanhóis, através de outros
escritos, contrapondo argumentos a argumentos (CALIMANI, 1996, pp. 114-6).26

A primeira dessas obras, escrita em torno de 614-615, vem de ser publicada em tradução
espanhola pela editora da Universidade de Sevilha, em 2012. Isidoro, ao recolher a mais
relevante tradição polêmica antiga, converteu-se em uma das principais fontes a que os

24
É certo que muitos judeus só simularam conversão: inaugurando o que, mais tarde, viria a ser conhecido como
“marranismo”, continuaram, na intimidade, a praticar o judaísmo. Por outro lado, como voltaria a acontecer nos
séculos XV e XVI, muitos judeus espanhóis se converteram sinceramente ao cristianismo, e alguns até se
tornaram membros influentes da Igreja, ativos na repressão a seus irmãos.
25
Note-se que essa situação de opressão se estendeu até 711, quando os muçulmanos invadiram e conquistaram
a Península Ibérica. Para Suárez Fernández, o judaísmo hispânico só se salvou da completa destruição graças à
descomunal desordem de que padecia a monarquia visigoda. (op. cit. p. 18)
26
Calimani destaca, na mesma passagem, que os cristãos continuavam a ser atraídos por certas práticas ou
crenças judaicas, sem, no entanto, aceitarem o judaísmo inteiramente. Para o arcebispo Isidoro, “eles caem nos
erros dos judeus, e assim mancam dos dois pés: não são mais verdadeiros cristãos, nem são inteiramente judeus,
mas são piores do que maus cristãos e maus judeus”.

1199
apologistas anti-judaicos tiveram que recorrer, até bem avançada a Idade Média, ainda quando
as circunstâncias históricas já fossem diferentes. Em sua qualidade de “ponte” entre duas
tradições, a antiga e a medieval, os escritos de Isidoro não só tiveram uma influência evidente
na política do seu tempo, nas medidas tomadas contra os judeus pelos monarcas católicos
visigodos, mas também, dada a altura intelectual de suas ideias, mantiveram um marcado
protagonismo em épocas posteriores (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, p.
17). Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández assinalam que a obra de Isidoro só
começou a ser deixada de lado no momento em que os polemistas cristãos começaram a tomar
em consideração o Talmud e a literatura rabínica, textos completamente desconhecidos pelo
arcebispo (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, p. 18).

Destaca-se, de sua leitura, a adoção de uma série de afirmações “pré-fabricadas”, enraizada na


dinâmica de formação de uma cultura identitária, a da Grande Igreja, que se enfrenta contra
um judaísmo simbólico, criado por Ela, e não contra um judaísmo real. Nas palavras de
Renata Sancovsky, “[p]ode-se afirmar que as polêmicas Adversus Iudaeos gravitavam por
uma espécie de ‘Judaísmo imaginário’ construído pelos autores, e com o qual os mesmos
‘debatiam’ para, em última instância, condená-lo em sua totalidade” (SANCOVSKY, 2012, p.
14).

Note-se que os apelativos empregados pela literatura anti-judaica estão inspirados nas
diatribes lançadas pelos profetas do Antigo Testamento contra os judeus, reforçando a tese de
que a condenação do judaísmo e a verdade do cristianismo são afirmadas por seus próprios
profetas. Por exemplo, em 1.5.5 Isidoro diz que “no livro de Daniel se mostra certeiramente o
tempo da vinda de Cristo, se contam os anos, se explicam os sinais evidentes e se expressa de
modo certeiro a posterior ruína dos judeus após a vinda e a morte de Cristo” (ISIDORO,
2012, p. 62)27 e em 2.9.1, “Isaias anunciou que os judeus, devido ao pecado que cometeram
contra Cristo, foram abatidos e dispersados” (ISIDORO, 2012, p. 133).

Note-se, também, o uso que Isidoro faz da leitura do Antigo Testamento como prefigurador
da vinda de Jesus, acolhendo o elemento comum a toda a literatura adversus Iudaeos, a saber,
a explicação cristológica daquela fonte. Por exemplo, em 1.34.2 diz que “só o Rei dos
séculos, Cristo, levou a glória de seu poder e de sua nobreza sobre seus ombros, o que havia
sido antecipado de maneira figurada por Isaac, o qual, quando foi conduzido por seu pai como

27
Todas as citações ao texto de Isidoro de Sevilha são traduções minhas da edição em espanhol, e podem, por
isso, introduzir divergências em relação ao texto original, escrito em latim.

1200
vítima, ele mesmo levou sua madeira, prefigurando a gloriosa paixão de Cristo, que carregou
a madeira de sua paixão (ISIDORO, 2012, p. 92).

Certamente, não era intenção de Isidoro a aniquilação dos judeus ou do judaísmo; em nenhum
momento, ao longo da obra, Isidoro sugere que os judeus sejam forçados ao batismo, pois
acredita que a remissão dos pecados só tem lugar mediante a conversão autêntica, que é a que
lhes permitirá crer em Cristo e compreendê-lo; mas o discurso teológico elaborado pelos
líderes da Igreja desde o século IV chegou às massas, e lá produziu efeitos concretos nos
séculos que se seguiram, na forma de pregações e de encenações por ocasião das principais
datas cristãs. Paul Johnson destaca oito “Sermões Contra os Judeus” proferidos pelo teólogo
grego João Crisóstomo em Antióquia, no início do século V, que utilizaram ao máximo
passagens-chave dos Evangelhos de Mateus e João, apresentando os judeus como assassinos
de Cristo (Johnson, 1988, p. 165).28 Em relação ao teatro sacro, Jean Delumeau destaca os
dramas de Cristo (transcritos pictoricamente por Hieronymus Bosch), os Autos da destruição
de Jerusalém, que destacam a vingança do Senhor punindo o povo deicida, os Autos do
Anticristo, que mostram os judeus esperando o falso Messias, e os Autos do Juízo Final, que
colocam todos os judeus no inferno (DELUMEAU, 2009, p. 424).

Como observa Paul Johnson, a tragédia da argumentação cristã é que ela levava diretamente a
uma nova espécie de antissemitismo. Que os judeus pudessem conhecer a verdade do
cristianismo e mesmo assim a rejeitassem parecia um comportamento tão extraordinário que
dificilmente podia ser considerado humano. Daí a noção de que os judeus eram muito
diferentes das pessoas comuns, uma ideia reforçada por suas leis relativas a alimentação,
abate, circuncisão. Circulavam histórias de que os judeus tinham rabos escondidos, sofriam de
fluxo sanguíneo, tinham um cheiro peculiar – que desaparecia instantaneamente quando se
batizavam. Tudo isso estimulava relatos de que os judeus serviam ao diabo – o que explica
tudo – e comungavam com ele em cerimônias secretas, viciosas (JOHNSON, 1988, p. 207).

Como registra Jean Delumeau, em um primeiro momento a Igreja considerava que o batismo
apagava, no convertido, todas as taras do povo deicida; mais tarde, na prática, essa virtude do
batismo foi colocada em dúvida, e considerou-se que o judeu conservava, mesmo tornando-se
cristão, a herança dos pecados de Israel; na Espanha, esse sentimento deu origem aos
chamados estatutos de limpeza do sangue; neste momento, o antijudaísmo tornava-se racial,

28
Riccardo Calimani menciona trecho de um desses sermões: “Israel, depois do deicídio, pôs-se a comerciar
com o demônio” (op. cit., p. 69).

1201
sem deixar de ser teológico (DELUMEAU, 2009, p. 452), e estava aberto o caminho para o
surgimento, no final do século XIX, de um antissemitismo puramente racial.

Considerações finais

Esta atitude geral da Igreja Católica, de condenação dos judeus baseada, principalmente, na
acusação de deicídio, perdurou até meio século atrás. Somente em outubro de 1965, ao final
do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI assinou a Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e
as religiões não-cristãs, reconhecendo a existência de “laços comuns da humanidade”.
Nesta declaração, sem abrir mão da leitura tipológica da bíblia judaica (“… a salvação da
Igreja foi misticamente prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão”) e da
transferência da Aliança (“… a Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os
judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si mesmo”, e, mais adiante, “embora a
Igreja seja o novo Povo de Deus”), o Papa reconhece que os judeus, embora não tenham
recebido o Evangelho, e até mesmo tendo se oposto à sua difusão, não foram rejeitados ou
amaldiçoados, e “continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito amados de Deus”.

O ponto mais importante da Nostra Aetate, na direção da reconciliação, é a retirada da


acusação de culpa coletiva de deicídio lançada sobre os judeus. Por um lado, estabelece que
“[a]inda que as autoridades dos judeus e seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à
morte, não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem
aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se perpetrou”; portanto, não cabe a acusação
de culpa coletiva. Por outro, “Cristo sofreu, voluntariamente e com imenso amor, a Sua
paixão e morte”; logo, não há porque falar em deicídio. Em suma, “a Igreja [...] deplora todos
os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso
sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus”.

Finalmente, num claro repúdio a condutas de outras épocas, como a “Santa” Inquisição, os
bispos declaram que “[a] Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e
qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou
religião”.

Sem dúvida, a Declaração Nostra Aetate representa um grande avanço, que deve ser saudado
como positivo e construtivo, contribuindo para a fraternidade universal.

1202
Referências

BEN-SASSON, Haim Hillel. The Middle Ages. In: BEN-SASSON, Haim Hillel (ed.). A
History of the Jewish People. 1a. edição. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 385-
723.
Bíblia Sagrada. (trad. de João Ferreira de Almeida). 2ª. edição. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1996.

CALIMANI, Riccardo. L’errance Juive I. La dispersion, l’exil, la survie. 1ª. edição. Paris:
Diderot editeur, arts et sciences, 1996.

CASTRO Caridad, Eva, PEÑA Fernández, Francisco. Introducción. In: ISIDORO, Sevilla.
Sobre la fe católica contra los judíos. 1ª. edição. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2012, p. 13-
45

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente1300-1800: uma cidade sitiada. 1ª. edição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

EBAN, Abba. My people. The story of the Jews. 1a. edição. New York: Behrman House,
1968.

ISIDORO de Sevilla. Sobre la fe católica contra los judíos. 1ª. edição. Sevilla: Universidad
de Sevilla, 2012.

JOHNSON, Paul. A History of the Jews. 1a. edição. New York: Harper Perennial, 1988.

Papa Paulo VI . Declaração Nostra Aetate, A Igreja e as Religiões não-cristãs. Disponível em


<http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html>. Acesso em 02 jul 2013.

PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. Os judeus na Espanha. 1ª. edição. São Paulo:


Editora Giordano, 1994.

POLIAKOV, Léon. O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. 1ª.
edição. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

SANCOVSKY, Renata Rozental. Interações Judaico-Cristãs e Cultura Literária Polêmica no


Mediterrâneo Tardo-Antigo. WebMosaica Revista do Instituto Cultural Judaico Marc
Chagall v.4 n.1 (jan-jun). Porto Alegre, p. 10-19, 2012.

SUÁREZ Fernandez, Luis. Judíos españoles en la Edad Media. 2ª. edição. Madrid: Ediciones
Rialp, 1988.

1203
1204
Conflitos entre monarquia e clero no processo de aceitação do rito
romano na Igreja Compostelana
Jordano Viçose1

Introdução

Com o propósito de participarmos das discussões relacionadas à proposta do Grupo de


trabalho Hereges, judeus e infiéis: diversidade e a (in)tolerância religiosa no decorrer da
Idade Média, apresentamos, nesta comunicação, uma discussão referente às transformações
espirituais do século XII, de maneira específica trataremos da transição do rito toledano ao
romano nos reinos de Leão e Castela durante o reinado de Alfonso VI (1065-1109). Para
tanto, nesse primeiro momento, iremos pormenorizar o que entendemos por transformações
espirituais no século XII.

Trata-se, grosso modo, de um movimento eclesiástico que ficou conhecido na historiografia


como reforma gregoriana, iniciado, sobretudo, na segunda metade do século XI, e que
possuía, como postulados centrais, o esforço do papado em combater o concubinato, a
investidura laica e a simonia. Alguns estudiosos do tema, como o historiador Daniel Valle
Ribeiro, admitem que tal denominação não é a mais precisa, pois, segundo o autor, a reforma
foi um projeto empreendido por alguns papas, portanto, seria mais correto falarmos em
reforma pontifícia (1995, p. 53).

Essas transformações espirituais alteraram não só a postura do papado diante de determinadas


práticas passíveis de condenação, como também o modelo de vida cristã valorizado nesse
período. Anterior ao século XII, a vida angélica era a melhor forma de expressão da fé;
posterior ao século XII, a vida apostólica ressurge como o ideal de vida que deve ser
almejado por todos os cristãos. As mudanças sócio-econômicas pelas quais passava o
ocidente, iniciadas no século XII, nos dão pistas para compreendermos as transformações
ocorridas no campo espiritual. Por outros termos, o renascimento do comércio e das cidades
explica, em partes, a revalorização de uma vida cristã ativa e no mundo em detrimento de uma
vida cristã contemplativa e enclausurada.
A vida angélica caracterizava-se, como o próprio nome sugere, por uma vida angelical, isto é,
de contemplação. Este princípio de vida era o advogado e vivido pelos monges que,
1
Graduando em História pela UNIFAL-MG. Integrante do GP Península Ibérica: da antiguidade tardia à
reconquista. Orientado pelo Prof. Drº Adailson José Rui. Contato: jordanovicose@gmail.com.

1205
desligados do mundo nos seus monastérios, colocavam-se como os mais próximos de Deus e
do ideal de perfeição cristã. A oração individual e coletiva, neste caso com os demais monges,
era a fonte de equilíbrio e harmonia deles próprios e do mundo. Afinal, a mentalidade da
época atribuía à oração uma função social. Dito de outra forma: o mundo somente mantinha-
se com alguma ordem graças a esses homens que oravam mais e melhor.

De forma oposta, a vida apostólica era uma vida ativa no mundo. Não que a oração perdera o
seu valor, pelo contrário, além de orar, o monge, assim como os demais homens da Igreja,
deveria atuar no mundo, evangelizá-lo. Esse novo ideal de vida cristã era visualizado como
um retorno às primeiras comunidades cristãs em que a prática da pregação e anúncio do
evangelho era uma constante e um princípio precioso, principalmente, para os apóstolos.
Além disso, a fraternidade de uma vida comunitária, na qual tudo era pertencente a todos,
bem como a observância da pobreza que havia ordenado Cristo, voltaram a exercer notável
influência entre a população cristã.2

Outro elemento definidor desse processo que estamos qualificando de transformações


espirituais no século XII foi a tentativa empreendida pelo papado de unificação do rito
romano a toda cristandade. Essa padronização do rito católico recebera, em território ibérico,
resistência por parte do rei Alfonso VI, bem como, por parte de alguns importantes bispos. No
entanto, antes de verificarmos as tensões envolvendo a transição do rito toledano, ou
moçárabe, ao romano na Igreja Compostelana, julgamos necessário alguns apontamentos
sobre a conjuntura em que estava inserido o cristianismo no século XI.

Considerações sobre o cristianismo no século XI

Podemos identificar o século XI como um período de crise religiosa no cristianismo ocidental,


devido a uma insatisfação generalizada por parte dos leigos. Tal insatisfação encontra as suas
causas no período carolíngio e intensifica-se nos séculos posteriores, ganhando proporções
significativas, sobretudo, na segunda metade do século XI. As críticas direcionadas à Igreja
repousam na sua condição de monopolizadora do sagrado, isto é, os fiéis requeriam acesso
objetivo ao elemento divino que a Igreja passara a negar-lhes, devido às alterações litúrgicas
que se estavam processando no culto cristão.

2
Cf BOLTON, Brenda. A crise religiosa do século XII. In: BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média.
Tradução: Maria de Luz Veloso. Lisboa: Edições 70.

1206
A inacessibilidade ao sagrado devia-se desde a adoção ao canto gregoriano, ou romano que
era estranho as liturgias locais à utilização do latim, língua não compreendida por grande
parte dos fiéis. André Vauchez, na obra A espiritualidade da Idade Média Ocidental – Séc.
VIII-XIII, apresenta a organização interna das igrejas durante os cultos. Segundo ele:

A organização interna do espaço das igrejas só podia favorecer a passividade dos fiéis: com
efeito, eles permanecem de pé na nave, separados do santuário pelo cancelo, e do altar
pelos coros dos clérigos que salmodiam na schola cantorum. O celebrante está de costas
para eles, e dirige-se a Deus em seu nome. A partir do século VIII, o sacerdote, que até
então oferecia o sacrifício eucarístico dizendo: ‘qui tibi offerunt hoc sacrificium laudis’,
passa a sentir a necessidade de acrescentar a fórmula: ‘vel pro quibus tibi offerimus’. Isto
traduz claramente o fosso que se abriu entre o clero e os fiéis. ‘Presentes fisicamente num
espetáculo por vezes brilhante, na maioria das vezes monótono, de cujo sentido pouco se
apercebem, sem hábito de rezarem em privado, raramente são convidados a rezarem em
comum, os leigos entendiam-se na missa por dela não participarem’ (VAUCHEZ, 1995,
p.21).

Na sequência, Vauchez salienta que “o fato de o latim ter se mantido como língua da liturgia
contribuiu igualmente para que esta se tornasse estranha aos fiéis” (1995, p. 21). Por outros
termos, o processo de desenvolvimento das práticas rituais, que se deu durante o período
carolíngio, contribuiu para afastar os simples fiéis da participação ativa nas celebrações. Isso
contribuíra para que nos séculos posteriores houvesse uma intensificação do culto aos santos e
as relíquias em detrimento do culto prestado aos anjos.

O culto aos santos remonta ao cristianismo primitivo, no entanto, o seu florescimento ocorre
no século IX, quando a impossibilidade de participar do Santo Sacrifício leva os fiéis a
buscarem receptáculos do sagrado em objetos concretos, como as relíquias.3 Dito de outra
maneira: em virtude do afastamento provocado pelas transformações ocorridas na liturgia em
tempos carolíngios, gerou-se a necessidade de buscar outros elementos palpáveis que
fornecessem aos leigos a sua ligação com o sagrado. Atentando-nos para o poder atribuído aos
santos e as relíquias nesse período, Vauchez enfatiza:

Procura-se-lhes com paixão as relíquias, isto é, partes dos seus corpos ou até mesmo
objetos que com eles tenham estado em contato durante a vida ou após a morte. Tocá-las,

3
As relíquias seguem uma ordem de importância, sendo partes do corpo de um santo, as de primeira grandeza.
As relíquias pertencentes a uma segunda ordem de valor são os objetos pessoais do santo. Numa terceira ordem
de importância das relíquias, seguem os objetos que tiveram contato com o corpo do santo, ou do relicário no
qual se acredita estar seu corpo, ou parte dele.

1207
ou simplesmente aproximar-se do túmulo ou do relicário que as contém constitui, para os
fiéis, ocasião privilegiada de entrarem em contato com outro mundo, e sobretudo de
captarem em seu proveito o dinamismo benéfico que delas emana, com a finalidade de
obterem a vitória ou a cura (1995, p. 31).

Os santos e as relíquias tornam-se, dessa forma, mediadores do poder divino. Possuir uma
relíquia era a garantia de comunicação direta com Deus, podendo rogar a Ele tudo aquilo que
fosse preciso. Essa intensificação do culto aos santos e às relíquias que estamos sublinhando,
entenda-se, a necessidade dos leigos de cultuarem algo concreto. Tal necessidade tornar-se-ia
mais nítida com o renascimento das cidades e do comércio, sendo estas, a saber: o culto
direcionado a algo visível, junto ao renascimento comercial e urbano, as principais causas que
contribuíram para as transformações espirituais ocorridas, sobretudo no século XII, no
cristianismo ocidental.4

Com o renascimento das cidades e do comércio, alterou-se, evidentemente, a forma de se


viver. Caracterizado por ser um mundo afastado, portanto, propício ao desenvolvimento do
monacato, algumas partes do ocidente, de forma particular regiões da península itálica e do
reino franco, passam a conviver, de forma ainda incipiente, com o ambiente urbano, não
tardando em provocar alterações no campo espiritual.
A mudança ocorrida na configuração da sociedade provocara a sua complexidade, o ambiente
urbano trouxera germes do que qualificamos como individualismo, o que se verificou no
campo espiritual como uma necessidade dos leigos de buscarem os ensinamentos da palavra
de Deus e de não se contentarem em serem meros coadjuvantes na religião. Essa perspectiva
de movimento urbano também se fez presente nos territórios ibéricos, de maneira especial nos
reinos cristãos cortados pelo Caminho de Santiago, rota de peregrinação que contribuiu para
que, muito cedo, surgisse, no norte peninsular, o desenvolvimento de certa burguesia e,
concomitantemente, de centros urbanos.5 Doravante, discorreremos sobre a configuração do
cristianismo em território Ibérico, dando ênfase ao processo de transição do rito toledano ao
romano na Igreja de Santiago de Compostela.

4
Para um aprofundamento sobre a temática renascimento urbano no período medieval ver: LE GOFF (1992).
5
Ver LOPEZ ALSINA (1988).

1208
Resistência e aceitação: a troca do rito toledano pelo romano

No que tange as práticas, os rituais religiosos, o cristianismo ibérico, como apresenta Julia
Montenegro, foi influenciado, grandemente, pela tradição goda, pois havia sido o bispo Ulfila
o responsável pela evangelização dos godos que criara a escritura toledana. (2011, p. 78). Em
carta enviada aos reis Alfonso VI e Sancho Garcés IV de Navarra no ano 1074, Gregório VII:

(...) reconhecia a obra evangelizadora de São Paulo em terras hispânicas e também a de


seus sucessores os Sete Varões Apostólicos, porém recordava que vários fatores haviam
determinado o derrubamento da mesma, entre elas o priscilianismo, o arianismo e
sobretudo, a invasão islâmica (2008, p. 311).

Gregório buscava enfatizar as causas que haviam levado à corrupção da religião cristã na
península. A ortodoxia ensinada pelos apóstolos havia sido contaminada por outros valores
que deterioravam as verdadeiras práticas litúrgicas. Com essa tese, Gregório “não descartava
uma intervenção pessoal na Península com a qual implicitamente se retomava o tema de sua
‘reconquista pontifícia’” caso não houvesse a adesão ao rito romano. (AYALA MARTÍNEZ,
2008, p. 317). O tema reconquista pontifícia, ao qual Gregório se refere, foi tratado por ele
em uma carta enviada dois anos antes a Alfonso VI, alertando-o “que o regnum Hyspanie
desde a antiguidade era propriedade da Igreja de Roma” e, portanto, deveria vigorar os
direitos de São Pedro sobre a península e ele na condição de rex deveria aderir aos seus
pedidos. (AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 314).

A transição do rito toledano ao romano, todavia, processara-se com dificuldades e resistências


nos territórios pertencentes a Alfonso VI, como foi o caso da Igreja de Santiago de
Compostela. O rei de Leão e Castela temia a ingerência papal na jurisdição dos seus reinos
por meio da reforma gregoriana, isto é, como advoga Carlos de Ayala Martínez, na obra
Sacerdocio y Reino en la España Altomedieval Alfonso VI, não era contra a reforma, e junto
dela a mudança de rito, desde que isto não implicasse em “pretensões soberano-territoriais”
pelo papado (2008, p. 312). Pois, para o monarca hispânico, o reconhecimento papal da sua
autoridade “poderia servir de maneira positiva para os seus interesses políticos dentro e fora
de seus estritos domínios” (AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 312).

Apesar da pouca resistência feita por Alfonso VI aos propósitos de unidade litúrgico-
disciplinar empreendidos pelo papado à Península, alguns bispos hispânicos mantiveram-se,

1209
excessivamente, contra a alteração do rito, a título de exemplo podemos citar o bispo de
Compostela Diego Peláez, que junto a outros bispos “viam na própria tradição hispânica um
valor irrenunciável de modo algum incompatível com a necessária renovação eclesiástica”
(AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 312). Apesar de acordarem com a renovação eclesiástica no
que tangia a disciplina, de modo algum concordavam com a alteração litúrgica.

Na Historia Compostelana (doravante HC), obra elaborada na primeira metade do século XII
na cidade de Santiago, o período anterior à aceitação do rito romano é denominado como
tempos de predomínio da ignorância e da rudeza. Evidentemente que se tratando de uma obra
escrita a mando do bispo Diego Gelmírez, partidário dos princípios unificadores do papado,
não poderia ser outra a opinião expressa pela HC. O primeiro trecho presente na obra que trata
sobre a transição do rito toledano ao romano encontra-se junto da eleição de Diego Peláez
como bispo de Santiago. Segundo a HC:

Logo foi elevado a mesma cátedra Diego Peláez pelo rei dom Sancho. Nesse tempo o rito
toledano foi esquecido e foi aceito o rito romano. O mencionado Diego floresceu nessa vida
presente durante muito tempo em nobreza e generosidade. Porém, viveu até tal ponto
entregado as preocupações do mundo que não adaptou, como era o seu dever, sua vida
interior a norma do hábito eclesiástico. Por isso, preso pelo rei dom Alfonso, segundo o
havia merecido, permaneceu encarcerado durante quinze anos 6 (HC, 1994, p. 77, tradução
nossa).

A HC não descreve, explicitamente, o motivo pelo qual Diego Peláez foi preso, apenas
salienta que havia merecido tal infortúnio. No entanto, acreditamos que tais preocupações
mundanas, as quais se entregara o bispo compostelano e que o levaram à prisão, referem-se à
resistência que manteve a implantação do rito romano na Igreja compostelana. Dito de outra
forma: Alfonso VI, nesse momento, vislumbrava a aceitação aos pedidos de unidade do
papado como algo “extraordinariamente positivo para consolidar o (seu) projeto político
régio, que era o fortalecimento do (seu) poder e do reconhecimento de (sua) hegemonia
peninsular” (AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 309). O que não é de se estranhar, afinal lutava
contra seu irmão, o rei Sancho, para obter a primazia em Hispânia.

6
Luego fue elevado a la misma cátedra Diego Peláez por el rey don Sancho. En este tiempo el rito toledano fue
olvidado y fue aceptado el rito romano. El mencionado Diego floreció en esta vida presente durante mucho
tiempo en nobleza y generosidad. Pero vivió hasta tal punto entregado a las preocupaciones del mundo que no
adaptó, como era su deber, su vida interior a la norma del hábito eclesiástico. Por lo que, apresado por el rey don
Alfonso, según lo había merecido, permaneció encadenado durante quince años.

1210
Não obstante, a crítica feita pelos autores da obra ao bispo Diego Peláez repousa na sua
preocupação exarcebada com as questões mundanas em detrimento das espirituais, podendo
ser lida, tal crítica, como uma ligação do então clero compostelano aos princípios
reformadores. Pois, apesar de advogar uma vida no mundo, o papado defendia uma vida no
mundo atrelada às questões espirituais.

Alfonso VI, segundo a HC, manteve Peláez preso durante quinze anos, tempo suficiente para
que o rito romano fosse imposto na Igreja de Santiago. Diego Gelmírez, bispo que o sucedeu,
depois de dois curtos bispados, tornou-se ardente defensor da soberania da Igreja de Roma,
colocando a Igreja de Santiago como submissa aos desígnios da Santa Mãe Igreja.

Considerações finais

Com estes dizeres, não queremos afirmar que as leis emanadas de Roma eram atendidas e
levadas a cabo por todas as regiões da cristandade. Todavia, não podemos deixar de
reconhecer que, em termos oficiais, tais normativas estavam sendo elaboradas, no entanto, até
que ponto elas realmente eram atendidas ou não é outra problemática. Por outras palavras: não
podemos ignorar a tentativa do papado de unificar a liturgia, nesse caso estudado, por meio da
troca dos ritos locais em benefício do rito romano.
Evidentemente que tal processo deu-se de forma lenta e gradual, de acordo com os interesses
locais em aceitar ou não a liturgia romana, bem como as ordenações impostas pelo papado
eram contornadas, ou não, segundo convinha aos interesses dos reis e dos prelados daquelas
regiões.

Referências

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poder político en el Occidente peninsular, siglos VII – XII. Madrid: Sílex, 2008.

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Edições 70.

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Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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Igreja e Estado na Idade Média: relações de poder. Belo Horizonte, MG: Ed. Lê, 1995.
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental. Séc. VIII-XIII. Lisboa:
Estampa, 1995.

1212
1213
Duas baleias na rede de pesca: a terceira via hussita de Petr Chelčický
7
Thiago Borges de Aguiar

Introdução

Entre os séculos XIV e XV, a Cristandade europeia viveu um período turbulento, quer seja
sob o ponto de vista do outono de Huizinga quer seja da primavera de Wolff. No campo
religioso, o principal evento que marcou o período foi o cativeiro de Avignon, quando a sede
papal afastou-se de Roma e se estabeleceu em terras francesas, seguido pelo Cisma Papal, no
qual dois (e posteriormente três) papas afirmavam-se como o único e verdadeiro chefe da
Igreja Universal. Entre os anos de 1414 e 1418, os clérigos reunidos no Concílio de
Constança encontraram na posição conciliarista, a que sustenta a supremacia do poder do
concílio em relação ao do papa, a única alternativa possível para entender a crise de
autoridade e oferecer uma solução para ela (AGUIAR, 2012b).

Embora central na reunião eclesiástica, a definição da cabeça da Igreja não era o único
problema a ser resolvido. O Sacro Império estava maculado pelas heresias que começavam a
ganhar força nas terras tchecas, alimentadas pelo realismo de John Wyclif. Aqueles líderes
religiosos sentiam-se responsáveis por dar à Cristandade em turbulência respostas definitivas.
Diante da magnitude do problema papal não se poderia perder muito tempo para resolver uma
posição pouco ortodoxa de uma terra cuja maior importância estava na prata que seu solo
oferecia em abundância (cf. PORTAL, 1968, p. 91).

A solução encontrada para o problema das heresias foi um rápido julgamento do tido como
líder do movimento, Jan Hus, que foi condenado como heresiarca pelo concílio e morto na
fogueira em 6 de julho de 1415. Do ponto de vista dos conciliares, o problema estava
resolvido. Eles poderiam, então, dedicar-se a finalizar a transição, que se efetivou, da
existência de três papas para a eleição de um único e novo cabeça da Igreja. Este era o ponto
de vista do Concílio. (v. AGUIAR, 2012a, passim e GUIMARÃES, 2011, p. 164-7)

As duas primeiras vias

7
Doutor em Educação (História da Educação) pela USP. Professor do PPG em Educação da Universidade
Metodista de Piracicaba. Pós-doutorado realizado em 2012 com apoio da FAPESP, com parte dos resultados
apresentada nesta comunicação. Líder do GE História da Educação e Religião (GEHER-FEUSP) e pesquisador
do GP Educação e Protestantismo (GPEP-UNIMEP). Contato: tbaguiar@unimep.br.

1214
Entre os tchecos, havia aqueles burgueses, camponeses, nobres, aristocratas, professores e/ou
clérigos que concordavam com esta posição. Mas havia um crescente grupo igualmente
diversificado que também via na Igreja grandes manchas. Para esses sujeitos, a causa dessas
manchas não estava na sua suposta heterodoxia. Estava na opulência do clero e no apego de
seus membros a tradições que não possuíam base nas Escrituras. Eles defendiam uma vida
mais próxima à do Cristianismo Primitivo, o que incluiria, entre outras coisas, o desapego dos
bens terrenos, a submissão ao Cristo (e não ao papa) e a dupla comunhão oferecida também
aos leigos. A Capela de Belém, espaço construído em Praga para a pregação em língua
vernácula, chefiada entre os anos de 1402 e 1411 pelo clérigo e professor da Universidade de
Praga Jan Hus, tornou-se o centro irradiador dessas ideias, que se espalharam com maior
intensidade após sua injusta condenação e morte.

Observa-se, a partir da circulação destas ideias, a formação de dois grupos ou de dois modos
de se relacionar com o Cristianismo, ambos colocados em um lugar de heresia pela decisão do
Concílio de Constança. O primeiro está ligado à Capela de Belém e às igrejas que passaram a
oferecer a dupla comunhão (pão e vinho) nas terras tchecas e contaram com apoio intelectual
de professores da Universidade de Praga após a saída dos alemães em 1409. Estes eram os
Utraquistas, nome derivado do latim sub utraque specie ‘sob duas espécies’. Eles constituíam
uma igreja nacional organizada um século antes da Anglicana, por exemplo. Ao longo da
história posterior dessa igreja, tentaram por diversas vezes reconciliar-se com Roma e
dependeram de bispos católicos de fora da Boêmia para realizar a ordenação de seu clero em
muitas ocasiões (ATWOOD, 2010, p. 8).

Os Utraquistas foram politicamente influentes ao longo dos anos seguintes, tendo, inclusive
estabelecido um acordo com a Cúria em 1433, no Concílio de Basileia, garantindo sua
existência institucionalmente reconhecida nas terras históricas tchecas. Eles foram
perseguidos apenas no século XVII, com o início da Guerra dos Trinta Anos e a recatolização
jesuítica da Boêmia. Dois nomes se destacaram na liderança desse grupo após a morte de Hus:
Jakoubek de Stříbro (morto em 1429) e Jan Rokycana (morto em 1473).

O segundo grupo, de caráter “milenarista” e militar, propunha estabelecer a Nova Jerusalém


na Terra, tendo fundado a cidade de Tábor (em referência ao monte da Transfiguração do
Cristo) na Boêmia, sendo conhecidos, portanto, como Taboritas. Eles utilizavam o cálice
estampado em seus estandartes de luta. Consistiam parte significativa dos exércitos das

1215
conhecidas Guerras Hussitas, enfrentando e vencendo o exército cruzado enviado pelo papa
eleito no Concílio de Constança, Martinho V.

Seus principais líderes foram Jan Žižka (morto em 1424) e Prokop Holý (morto em 1434),
que lideraram uma luta armada com o símbolo do cálice nas mãos, cantando hinos de vitória
nas marchas para as batalhas. Um dos mais famosos desses hinos chama-se Ktož jsu boží
bojovníci [quem são os guerreiros de Deus]. O texto com a original do hino, escrito em tcheco
do século XV, encontra-se no cancioneiro de Jístebnice, mas ele é conhecido ainda hoje, na
voz de um cantor tcheco de rock (LANDA, 2004). Alguns versos da letra deste hino podem
ser, em tradução livre, lidos assim:

O Cristo vale todos os seus sacrifícios. (...) Se você der a sua vida por Ele, você receberá a
vida eterna. (...) O Senhor vos ordena a não temer os ferimentos do corpo. (...) Não tenha
medo de seus inimigos, nem olhe para seu número. Mantenha o Senhor em seu coração, e
lute por Ele.

Os Taboritas só perderam sua “guerra santa” em 1434, com a aliança militar entre os
Utraquistas e os Católicos oriunda do Concílio de Basileia, na Batalha de Lipany. A cidade de
Tábor resistiu até o ano de 1452, quando então se submeteu ao poder do rei da Boêmia e à
autoridade do então arcebispo de Praga, o utraquista Rokycana. (ATWOOD, 2010, p. 9)

A terceira via

Entre a institucionalização dos Utraquistas e a “guerra santa” dos Taboritas surge uma terceira
via de pensamento e ação religiosa. Um jovem de nome Řehoř [Gregório] funda, entre 1457 e
1458, um grupo isolado do mundo, que queria viver uma vida simples e pacífica. Esse jovem
talvez tenha sido sobrinho de Rokycana, mas foi deste arcebispo utraquista que pregava na
igreja de São Tyn, na praça da cidade velha [Staroměstské náměstí] em Praga, que Řehoř
recebeu aconselhamento espiritual. O arcebispo indicou-lhe a leitura da obra de certo Petr
Chelčický, que escrevera há poucos anos diversos textos com “rigor moral e rejeição da
violência”. Esse aconselhamento acontecia pouco mais de duas décadas após a derrota
taborita e esta pode ter sido uma ação de Rokycana para direcionar um grupo de jovens
estudantes e comerciantes que frequentavam sua igreja para longe das ideias militaristas da
segunda via hussita.

1216
O grupo começou a se reunir para orações, discussões, leituras das escrituras e exortação
mútua na região da vila de Kunvald, a leste de Praga, hoje próximo às cidades de Hradec
Kralové e Pardubice. Inicialmente, eles continuavam a frequentar a igreja Utraquista, mas a
leitura dos textos de Chelčický levou-os a optar progressivamente por um total isolamento do
mundo e da igreja institucionalizada, vivendo uma vida ascética, disciplinada e de oração,
angariando membros também entre outros grupos como antigos Taboritas, Valdenses, ou
Adamitas. (ATWOOD, op. cit., p. 154-157)

O grupo fundado por Řehoř ficou conhecido como Jednotá Bratrská [Unitas Fratrum, em
latim], ou União dos Irmãos. Em língua portuguesa, por vezes eles também são referidos em
alguns textos como Irmãos Morávios. A longa história desse grupo, passando por figuras
menos conhecidas como Lukáš de Praga e outras muito famosas como o fundador da didática
moderna Jan Amos Komenský [Comenius] não cabe nesta comunicação. Destaca-se apenas,
neste momento, que foi da União dos Irmãos que saiu a tradução completa da bíblia para a
língua tcheca, no final do século XVI, um dos textos mais importantes utilizados no século
XIX para a reconstrução da língua tcheca escrita.

Petr Chelčický

Até os dias de hoje, há dúvidas sobre quem foi Petr Chelčický. Sabe-se que ele foi uma pessoa
de pouca instrução. Provavelmente não entrou na Universidade, visto seu parco conhecimento
de latim. Ele se autodenominava um “camponês” e possuía disponibilidade de tempo para o
estudo e para a vida religiosa. Uma hipótese é que tenha sido um pequeno proprietário rural.
Ele pode ter nascido em 1390, mas também há uma teoria que o associa a outro Petr chamado
Záhorčí, que nasceu entre 1379 e 1380 (MOLNÁR, 1947; v. também ATWOOD, 2010;
SPINKA, 1943).

Também não se sabe ao certo em que momento ele morreu, com as datas variando entre 1458
e 1460. Seu tempo de vida foi contemporâneo, portanto, ao de Jan Hus em alguns momentos.
Ele teria entre 25 e 35 anos quando do Concílio de Constança. Há condições concretas para
que ele tenha se encontrado com Jan Hus, e indícios que em 1412 – já durante o exílio deste
pregador – que tenham conversado pessoalmente sobre a Eucaristia (MOLNÁR, 1947).

1217
Chelčický foi um personagem pouco lembrado pela história. Seus escritos foram republicados
apenas no século XIX (ATWOOD, op. cit., p. 133) e foram retomados por Leo Tolstoi, em
sua obra O Reino de Deus está em você, que trata sobre o pacifismo e a não resistência. Após
resumir o conteúdo de um dos livros do autor tcheco com base em fontes secundárias (visto
que não teve acesso ao texto original), Tolstoi (1994, p. 23) escreve:

Esse livro é uma das raras obras que escaparam aos autos-de-fé, entre as que fustigaram o
cristianismo oficial, e é isto que o torna tão interessante. Mas, além de seu interesse, esse
livro, de qualquer ponto de vista que o examinemos, é um dos mais notáveis produtos do
pensamento, tanto pela profundidade das opiniões, como pela extraordinária energia e pela
beleza da linguagem popular na qual é escrito. E, no entanto, esse livro permanece como
manuscrito há mais de quatro séculos e continua a ser ignorado por todos, exceto pelos
especialistas.

O elogio de Tolstoi serve como parâmetro para entendermos o impacto que a obra causou no
autor russo que, talvez, só o conhecia em função da proximidade linguística e cultural de
ambos. Mas, mesmo com a menção de Tolstoi, Chelčický continuou pouco conhecido, apesar
de ter escrito diversos tratados. Há cerca de uma dezena de publicações com textos originais
do autor, embora se saiba da existência de quase seis dezenas de textos. Na década de 1420,
de acordo com, Chelčický começa a escrever intensamente em função das questões que tinha
contrário aos Utraquistas e aos Taboritas. Molnár (op cit., pp. 22-23) sinteticamente apresenta
a ruptura com ambos os grupos. Em 1424, ele escreve uma Replika proti Mikuláši Biskupci
Táborskémi [Réplica contra o bispo taborita “Nicolau”], na qual lamenta a posição defendida
pelos Taboritas em relação à eucaristia, opondo-se à concepção da presença física do Cristo
na eucaristia. Em 1425, ele escreve uma Replika proti Rokycanovi [Réplica contra Rokycana],
dirigida ao arcebispo utraquista que, segundo Chelčický estava numa posição de poder
hierárquico contrário ao que defendiam os hussitas. O pensador tcheco opunha-se à hierarquia
eclesiástica, à defesa da guerra como um mal necessário e à ideia da presença física do Cristo
na eucaristia.

Atwood data a Replika proti Rokycanovi com o ano de 1440 e traz uma citação desse
documento, estabelecendo-o como um marco divisório em relação a Jan Hus e aos utraquistas.
De certa forma, essas palavras de Chelčický são um indício de que ele pensava estabelecer
uma posição alternativa às outras defendidas até então entre os tchecos:

Eles escreveram coisas em seus trabalhos que são negadas pelas leis divinas, especialmente
quando o Mestre Hus escreveu sobre assassinato, juramentos e imagens. Portanto, eu não

1218
posso coadunar com o que eles transmitiram de natureza tão ofensiva para o escândalo de
muitos (ATWOOD, op. cit., pp. 134-135, em tradução livre do inglês).

Se olharmos para os escritos de Hus e de Chelčický hoje, veremos muitas semelhanças, talvez
mais do que diferenças. Mas são os detalhes que fazem as pessoas se diferenciarem e aquilo
que era ponto central para Chelčický foi suficiente para sua ruptura.

Mesmo que a datação de Atwood esteja mais correta que a de Molnár, é um fato que os
escritos de Chelčický apontam para sua separação tanto dos Utraquistas quanto dos Taboritas.
Molnár aponta ainda que nos textos da década de 1420, o pensador tcheco começa a utilizar a
palavra “nós”, indicando a formação de um grupo de pessoas que pensavam como ele. Mas
como ele pensava?

O que a rede pescou

Escrito entre os anos 1440 e 1443 (BOUBÍN In: CHELČICKÝ, 2011, P. 345), o Siet Viery
Práve [A rede da fé verdadeira, que aparece em edições tchecas modernas simplesmente
como Síť Víry – a rede da fé] contém muitas das ideias defendidas por Chelčický, embora
estas tenham sido gestadas em outros escritos anteriores. De certo modo, Molnár e Atwood
apresentam as mesmas ideias a respeito do pensamento do pensador tcheco que analisam:
pacifismo, da não presença física de Cristo na eucaristia, dessacralização do estado com
consequente ruptura com a autoridade estabelecida, vida em comunidade, oposição à
hierarquia feudal (clero, nobreza e camponeses) e sua fidelidade.

A Rede da Fé Verdadeira é um texto organizado em duas partes, com 95 e 51 capítulos para a


primeira e segunda parte respectivamente. Molnár afirma que a segunda parte contém
exemplos ilustrativos da primeira, na qual os principais conceitos do autor foram
apresentados. Neste momento, trabalhamos apenas com a primeira parte a partir da tradução
de Molnár e com remissões ao texto tcheco em alguns trechos. O autor constrói uma metáfora
interpretativa da passagem bíblica de Lucas 5:4-7, na qual Jesus fala a Simão (que será
chamado de Pedro) para jogar sua rede e pescar. Este é o trecho na tradução da Bíblia de
Jerusalém:

Quando acabou de falar, disse a Simão: “Faze-te ao largo; lançai vossas redes para a
pesca”. Simão respondeu: “Mestre, trabalhamos a noite inteira sem nada apanhar; mas,

1219
porque mandas, lançarei as redes”. Fizeram isso e apanharam tamanha quantidade de peixes
que suas redes se rompiam. Fizeram então sinais aos sócios do outro barco para virem em
seu auxílio. Eles vieram e encheram os dois barcos, a ponto de quase afundarem.

Este episódio é o ponto de partida do livro. Chelčický interpreta o “sentido espiritual” do


episódio. Inspirado no versículo 10, no qual Jesus diz a Simão “serás pescador de homens”, o
pensador tcheco afirma que as escrituras são como a rede que pesca os crentes do oceano do
mundo. No entanto, como numa rede de pesca normal, ela também pesca o que não deveria.
Nas palavras dele:

Consequentemente, as Sagradas Escrituras são tecidas e preparadas como uma rede física,
um nó amarrado no outro, até que toda a grande rede esteja feita. Similarmente, há
amarradas umas às outras diferentes verdades das Sagradas Escrituras, de modo que elas
possam abranger uma multidão de crentes (e cada crente em particular com todos os seus
dons físicos e espirituais para que, cercado pela rede, ele possa ser retirado do oceano deste
mundo). E esta rede é capaz de arrancar cada um do mar de profundos e pesados pecados.

Agora nós podemos compreender que esta rede começou a quebrar, não muito por causa da
multidão de coisas pescadas – como a rede de Pedro – mas, tal qual num mar físico, por
causa de um grande número de outras coisas repugnantes apanhadas na rede, então também
uma série de almas perdidas, hereges e pecadores entram na rede da fé (às vezes
aparentemente vindo da fé, porém – em momentos de tentação – revertendo para
abominações e heresias) (apud MOLNÁR, op. cit., p. 52, em tradução livre do inglês).

Essa alegoria da rede será a sustentação de todo o argumento de Chelčický. Ele afirmará que,
no mundo de hoje, “as redes são uma miscelânea de cordas apodrecidas misturada com
raciocínios de diferentes pessoas” (ibidem, p. 53). Opõe as diferentes interpretações humanas
às escrituras, visto que nelas estão a fé verdadeira que move o verdadeiro crente. Bastam-lhe
apenas as palavras do Cristo, assim como elas bastaram para que Simão pescasse os peixes.
Isso leva a uma atitude contrária à organização secular e à autoridade, ou seja, contrário às
leis terrenas:

Portanto, nós desta geração, sentados como se estivéssemos sob a sombra dessas leis
[terrenas], discutimos fracamente a lei de Deus ou Sua regra, porque a escuridão dessas leis
obscureceu nossos olhos. E então, tateando nosso caminho no escuro, nós adivinhamos e
imaginamos: será que a doutrina do Cristo é suficiente por si só, sem a adição de leis
humanas, pode restaurar aqui na terra a plenitude da religião cristã? Nós fazemos esta
pergunta no medo e tremendo respondemos afirmativamente porque esta lei do Cristo era
adequada para instituir uma humanidade cristã com todos os seus discípulos e sem a
mistura de instituições humanas (apud MOLNÁR, op. cit., p. 67).

1220
Ainda na imagem da rede, Chelčický traz a figura de duas baleias que entraram nela: o
imperador e o papa. Ambos “entraram na rede” junto com um grupo de “peixes adversos” e
ficaram por lá adormecidos:

Ninguém no tempo da pesca sabia que a rede da fé também incluiu um grande número de
peixes adversos porque eles ficaram em silêncio na rede por um longo período depois de
Pedro e de outros apóstolos. No entanto, após certo período de tempo, quando os homens
estavam dormindo e embalados na segurança, seus inimigos vieram à noite e plantaram joio
no trigo. Então, quando as plantas cresceram e deram grãos, o joio apareceu também
(ibidem, p. 72).

O que causou a entrada dessas baleias e desses peixes na rede, para Chelčický, foi a Doação
de Constantino. Como a prova da falsidade deste documentos só foi feita por Lucrécio no
século XVI, na época do pensador tcheco, pensava-se que a doação era verdadeira. Tanto
Chelčický, mais do que propunha Jan Hus (1976, p. 129), lega à Doação de Constantino não
apenas a origem do poder papal, mas da corrupção do clero que se expandia, em sua visão,
para toda a sociedade. O papa faz de tudo para garantir que a rede de Pedro não pesque os
fiéis verdadeiros:

Esta baleia rasgou a rede da fé de modo que esta ficasse inútil para pescar peixes. E se
alguém laboriosamente a consertasse com medo e tentasse “pescar” pessoas na salvação,
ele confiscava seu pescoço, pois (o papa) odeia a fé que é a rede de Pedro. É por isso que
ele invadiu a rede, ele não a rasgou despropositadamente, pois ela o incomodava e o
perturbava grandemente. Pois, querendo ter um caminho largo, ele rompeu a rede de fé,
para que ela não o impedisse e nem tirasse sua liberdade de movimento. E ele não pode
tolerar ninguém que pesque com toda a rede, pois, ao fazê-lo, o (pescador) iria revelá-lo nu
e destruir sua obra, porquanto uma rede completa significaria vergonha na cara e morte de
seu orgulho e luxo. Desejando continuar em seu governo exaltado e para lhe serem dados
domínios e honras superiores ao do Imperador, ele é obrigado a criar espaço para si e a
destruir a rede. Ele só pode suportar os seus farrapos. Onde suas lacunas iriam revelar sua
nudez vergonhosa ele as conserta com remendos... (apud MOLNÁR, op. cit., p. 82).

Mas, ao contrário de Hus, que direciona todo seu “ataque” contra o papa e a hierarquia
eclesiástica8, Chelčický também “ataca” o imperador, visto que este trouxe o modo pagão de
organização social, com suas leis, para o mundo cristão:

8
O tratado De Ecclesia inteiramente dedicado à discussão sobre a estrutura da Igreja e a obediência ao papa, aos
cardeais e aos prelados. Não há discussões a respeito do poder imperial. Nem mesmo em suas cartas, Hus
questiona a autoridade do imperador. V. Jan Huss, The Church, 1976.

1221
A segunda baleia que invadiu e rasgou enormemente a rede de fé é o Imperador com seu
governo pagão e serviços com direitos e leis de pagãos. Ele é a raiz do paganismo no o
Cristianismo se transformou. É ele quem abriu a ferida a partir da qual verte o sangue que é
derramado entre todos os cristãos - até mesmo aqui - e todo o sangue que deve sempre ser
derramado. Quando ele entrou na rede da fé com esses males, ele despojou a inocência e a
pureza das pessoas que estavam na rede, de acordo com o estabelecimento apostólico
(ibidem, p. 83).

Chelčický propunha uma vida que se aproximasse à Igreja Primitiva, imagem tão comum à
época quanto tão diferentemente compreendida. Muitas de suas análises de como o cristão
deve viver em relação ao poder secular partem do princípio que os primeiros cristãos
conseguiam viver no meio dos gentios, mas isso mudou com Constantino:

Como mencionado no início, as igrejas de Deus que converteram à fé de Cristo os gentios e


judeus foram espalhados por todos os países e regiões, falando todas as línguas das nações
por mais de trezentos anos. Eles estavam cumprindo apenas pela vontade de Deus e
honravam apenas às leis da graça do Evangelho de Cristo, sem qualquer adição de leis
sejam elas papais ou imperiais, não tendo entre si quaisquer reis com direitos soberanos.
Eles foram criados entre os pagãos e os seus senhores, sujeitos a eles apenas corporalmente,
pagando seus impostos e realizando outros serviços físicos até os dias de Constantino
(ibidem, p. 83).

Sua proposta é simples: é possível viver apenas de acordo com a lei de Deus, que é a lei do
amor, que impele cada um a ajudar o próximo e a não precisar de juízes externos para resolver
suas contendas, visto que

aqueles que vivem pelas leis do amor têm uma rica e forte vida espiritual. Em tempos de
iniquidade, tentações e tribulações eles podem se manter firmes, sofrendo injustiça e não
pagando mal com mal. Eles não tem necessidade de juízes e cortes de apelação para ajudá-
los a atravessar os dias difíceis de tensão (ibidem, p. 83).

Considerações finais

A terceira via de Petr Chelčický em momentos de turbulência consistia em seu


posicionamento diante das respostas que seus pares ofereciam ao posicionamento do Concílio
de Constança. Elas não resolviam porque o mundo já estava contaminado pela tradição, pelas
leis, pelos códigos que a presença do Imperador e do Papa – as duas baleias que rasgaram a
rede de Pedro – faziam surgir. Hus e os Utraquistas não se desapegaram das estruturas da

1222
Igreja. Os Taboritas não se desapegaram das lutas e das imposições de sua posição pela
guerra. Os verdadeiros cristãos não precisam de leis. Esta era a visão de Chelčický. Visão de
tamanho impacto que um dos membros da União dos Irmãos, mais de 150 anos depois,
quando o mundo volta a estar turbulento às vésperas da Guerra dos Trinta Anos, deixa
escritas estas palavras:

A essência de toda a lei resume-se em amar a Deus sobre tudo o que pode ser nomeado e,
sinceramente, desejar o bem ao próximo como para si mesmo. Percebi a essência das leis
de Deus resumida nestes dois mandamentos altamente louváveis, e eu mesmo vi e provei
que eles são mais valiosos do que todas as inumeráveis leis, regras e decretos do mundo. Na
verdade, são mil vezes mais perfeitas.

Pois àquele que ama a Deus com sinceridade e sem restrições, não é necessário que se lhe
prescreva quando, onde, como e quantas vezes deve servi-lo, adorá-lo e honrá-lo. (...) Da
mesma forma, aquele que ama seu próximo como a si mesmo não precisa de ordens mais
detalhadas de quando, como e em que circunstâncias ele deve servi-lo e em que situação
não deve prejudicá-lo e como pagar as dívidas que tenha. O amor lhe dirá e lhe mostrará
como se comportar com o próximo (COMENIUS, 2010, p. 149-150).

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TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está em vós. Tradução Ceuna Portocarrero. 2ª edição. São
Paulo: Editora Rosa dos Tempos, 1994.

WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? São Paulo:
Ediçoes 70, 1988.

1224
1225
Eusébio de Cesareia e a nova história, eclesiástica
Daniel Sleder1

Introdução

12 de outubro de 312 d.C., Ponte Mílvia, proximidades de Roma. Acabara de ser travada a
batalha que, para muitos, decidiu o futuro de Roma e do Ocidente tal como o conhecemos.
Constantino, após ter ordenado a seus soldados que utilizassem em seus escudos um estranho
símbolo, vence a batalha contra Maxêncio, entra na Capital do Império e, para surpresa de
muitos, não participa dos sacrifícios. Pouco depois afirma que o símbolo lhe tinha sido
revelado em sonho, na noite antes da batalha: “sob este símbolo vencerás”. Este era a junção
das iniciais do nome de Cristo. O cristianismo passa então de religião perseguida (quando
muito, apenas tolerada) a religião do Imperador, amparada por ele, que até interfere em
questões internas dela. Tudo isso nunca tinha sido visto antes, tampouco poderia ter sido
previsto, por mais que o autor que abordaremos, Eusébio de Cesareia, se esforçasse para
afirmar o contrário. Mas não nos adiantemos. É preciso antes entender o contexto de tais
ações, e outras que as antecederam, desembocando nelas. Assim como o caminho que o
cristianismo percorreu até aí, para podermos entender porque Eusébio quer mostrar a
inevitabilidade de sua vitória, ao intentar construir uma memória e identidade cristã que se
afirma contra o paganismo, usando para isso elementos historiográficos novos e antigos.

Anarquia Militar

O século IV d.C. é tributário do terrível período conhecido como “Anarquia Militar”. E não
há como entender aquele sem passar, pelo menos brevemente, por este. O período vai do
assassinato de Severo Alexandre, em 235, até a conquista do poder por Diocleciano, em 284.
Cheio de golpes e contragolpes, usurpações e proclamações, viu cerca de 20 imperadores,
afora seus corregentes e usurpadores. Algumas vezes três ou quatro ao mesmo tempo, lutando
com seus rivais por apoio e legitimidade. Sendo proclamados pelo Senado, ou, o que não
tinha sido visto antes, pelo exército. Sejam eles acanhados aristocratas romanos ou brilhantes
e ferozes generais ilíricos, apenas dois morreram de morte natural, tendo os outros perecido
1
Graduando em História pela UFMT, bolsista PIBIC CAPES, membro do VIVARIUM. Orientado pelo prof. Dr.
Marcus Cruz. Contato: danielsleder@hotmail.com.

1226
por assassinato ou em batalha. Alguns reinaram por alguns meses, outros apenas por alguns
dias. Muitos intentaram reformas para aumentar a estabilidade do Império e a permanência no
poder.

Nos é difícil conhecer o período, visto que as guerras e saques muito destruíram. Também o
romano contemporâneo sente-se desanimado a escrever relatos à posteridade, está antes
preocupado em sobreviver. Quase todas as fronteiras sofreram ataques, mas duas frentes em
especial foram constantemente castigadas: a germânico-danubiana e a sassânida oriental.Os
imperadores, para fazer frente a tais inimigos e precaverem-se em caso de guerras civis,
reestruturaram e aumentaram periodicamente o efetivo militar (chegando este a dobrar com
Diocleciano). Ora, este fato, além das soluções intentadas para que o exercício do poder
imperial fosse legitimado, acelerou profundas mudanças no Estado e sociedade romanas.

Houve muitas perdas humanas, além da marcha forçosa de muitos camponeses e a perda de
animais e colheitas por saques, incêndios e requisições de funcionários do governo. Tudo isso
resultou na perda de capacidade quantitativa e qualitativa da capacidade produtiva da terra, os
agri deserti se tornaram algo familiar. A essa população já debilitada abateram-se ondas
sucessivas de peste, de procedência oriental, recorrente por vinte anos depois de 251.

Restauração tetrárquica

Diocleciano, por suas origens, era um típico “imperador dos soldados”. Homem pragmático,
buscou soluções práticas à medida que os problemas apareciam, como, por exemplo, a
associação de Maximiano ao trono, em 285, para fazer frente aos levantes bagáudicos da
Gália (violentos levantes de descontentamento camponês) e às pressões germânicas na
fronteira renana. Buscou, juntamente com os pares que foi associando a si, a unidade
territorial do Império e a estabilidade política, conjugando para isso medidas novas: o próprio
sistema tetrárquico, que conjugava a realidade de um império vasto e descentralizado com a
necessidade de um governo forte e unido; e outras aprendidas na anarquia militar: manter o
exército em primeiro plano do poder político e de governo, conceder importância aos técnicos
da burocracia na esfera da administração civil.

Continuou a distinção entre as carreiras militares e civis, mas é na esfera da administração


territorial que as suas reformas foram mais profundas e inovadoras, completadas por

1227
Constantino, seriam as bases do Estado tardo-romano. As províncias foram praticamente
duplicadas, os governadores perderam suas atribuições militares e ganharam amplos poderes
civis, formava-se um pessoal específico de governo. Criou as dioceses, que agrupavam um
determinado número de províncias. Seus prefeitos regionais se comunicavam diretamente
com o imperador.

No âmbito militar, procurou fortalecer as fronteiras ameaçadas. Uma série de fortalezas,


ligadas por boas estradas, foi criada. Também uma defesa em profundidade, através de um
exército de campanha com pesada cavalaria e à disposição de cada tetrarca. Os efetivos foram
aumentados, talvez duplicados.

Para custear essa burocracia criada e esse exército aumentado, foi criado um novo sistema de
impostos, que se baseava em uma produtividade média da terra e no número de pessoas que
nela trabalhavam. Surgiu daí uma nova série de grupos sociais hierarquizados de acordo com
a capacidade de relacionar-se com o Estado, de subtrair-se às obrigações ou obter privilégios
dele. De fato, Peter Brown nos faz notar essa mudança, quando diz que nos anos iniciais do
Império

uma província extremamente bem controlada como o Egipto, dispunha apenas de um


funcionário imperial para cada dez mil habitantes”, posteriormente “no Egipto do século
IV, um em cada três habitantes das aldeias maiores estava envolvido, de alguma maneira,
na administração dos impostos e na manutenção da lei e da ordem (BROWN, 1999, p. 31).

Para um romano, em começos do século IV, a estabilidade do Império não podia se assegurar
se não se conseguisse o favor divino, a pax deorum. Desde seu advento, os tetrarcas se
esforçaram por fazer públicas demonstrações de piedade na religião tradicional do Estado. O
estabelecimento do sistema tetrárquico supôs a constituição oficial de uma teologia imperial,
que situava num primeiro plano Júpiter e Hércules, consideradas como protetoras pessoais de
Diocleciano e Maximiniano. Havia também certa redução do número de divindades, junto às
já citadas se dava uma certa importância a Marte. Mas uma ação de governo encaminhada a
velar pela pontual observância da religião tradicional e dos costumes tinha que incluir um
intento de fazer voltar às ditas tradições aqueles que as haviam abandonado por outras
estranhas. Assim, 297 começa uma violenta repressão ao maniqueísmo. Em 303 começa a
grande perseguição ao Cristianismo (GARCIA MORENO, 2001, p. 351 e 352).

1228
O cristianismo surgiu no primeiro século como seita do judaísmo. Através de suas
apropriações e lutas com ele, para se aproximar de sua memória, mas se diferenciar dele,
muito podemos entender da religião cristã. A primeira perseguição se deu após o martírio de
Estevão, que levou à dispersão dos fiéis que espalhavam as boas novas onde chegavam,
humildes e desconhecidos missionários: comerciantes, funcionários, militares, escravos. Dos
primeiros esforços missionários conhecemos melhor os de Pedro, João e Paulo, sendo os deste
melhor documentados, relatados nos Atos e Epístolas. Tais apóstolos, assim como os demais e
seus auxiliares, fundaram e fortaleceram igrejas por onde passaram. Foram grandes
propulsores da expansão cristã. A segunda perseguição se deu em meados do segundo século,
quando os cristãos não se juntaram ao levante dos judeus contra o Império romano.

Assim a Igreja foi se difundindo durante os séculos II e III pelo mundo romano que, dava
condições para o seu crescimento: certa unidade de costumes e linguagem, que facilitavam a
comunicação e o entendimento, além da ausência de fronteiras. Mas lhe era hostil em vários
momentos, chegando muitas vezes a brutais perseguições. A religião romana tradicional tinha
função cívica e política, era símbolo da unidade do Império e da fidelidade ao imperador. Em
tempos de crise, quando se quer reafirmar e fortalecer as duas coisas, surgiram as
perseguições vindas “de cima”, das autoridades estatais, e as perseguições vindas “de baixo”,
movidas por populações locais (BROX, 1986, p.63), devido à estranheza vista nos cristãos:
suas reuniões eram secretas, ao contrário das públicas romanas, eram exclusivistas, ao
contrário do sincretismo romano. Assim, em tempos de dificuldades, a culpa dos
acontecimentos era imputada àqueles estranhos que não adoram devidamente os deuses. Mas
também tinham características que chamavam a atenção aos romanos: a caridade, a unidade
da comunidade, sua própria mensagem de salvação e de um Deus que se preocupa com todos
os aspectos da vida do fiel, dando novo sentido à sua vida. O Cristianismo, assim como o
Império, mudou ao longo desses três séculos. Adquiriu hierarquia.

Ruína do sistema tetrárquico e monarquia constantiniana

A principal fraqueza da Tetrarquia era o seu sistema sucessório. Havia de se controlar a


ambição dos césares. Também havia a necessidade de uma voz forte, como a de Diocleciano.
A segunda tetrarquia, com sentido mais igualitário entre seus membros, dividiu o governo em

1229
esferas regionais, e os conflitos não tardaram a aparecer, pouco depois havia seis augustos e
nenhum césar.

Os acontecimentos dos anos posteriores trabalhariam pela concentração do poder nas mãos de
Licínio e Constantino, e finalmente apenas nesse último, que se destacou por decisões que o
revelaram como grande estadista, dominador da diplomacia e propaganda. Tomou a iniciativa
no ataque a Maxêncio, vencendo-o sucessivamente até a Batalha da ponte Mílvia. Seguindo
uma orientação dada por sonho, ordena ao exército que marche com um símbolo cristão nos
escudos. Essa vitória, assim como outras posteriores, foi vista por Constantino e por muitos
de seus contemporâneos como favor especial do Deus cristão (GARCIA MORENO, 2001, p.
366 e 367).

Ao entrar em Roma, agiu com prudência. Revogou os editos de Maxêncio, sem prejudicar
aqueles que tinham colaborado com ele de forma normal, formando assim uma aliança com a
aristocracia senatorial romana, o que seria uma das constantes de sua política. Suas medidas
“pró-cristãs” não levantaram contra ele oposição, pois soube realizar uma distinção entre sua
religião pessoal e a do Estado, respeitando o fundamental das manifestações públicas pagãs.
Nos lugares de encontro comuns (moedas, panegíricos, inscrições e estátuas) utilizava uma
linguagem ambígua que reforçava os elementos ideológicos comuns: crença numa divindade
suprema e universal, protetora indiscutível do imperador. Este mesmo tom ambíguo se
percebe no chamado “edito de Milão”: entendida a liberdade religiosa do edito de Galério,
com restituição de bens aos cristãos, mas, prudentemente, ressarcimento dos atuais donos
(GARCIA MORENO, 2001, p. 368 e 369).

Pouco depois, Licínio derrota Maximino Daya. Restava a confrontação entre os dois
imperadores. Apesar dos maiores exércitos de Licínio, Constantino foi sucessivamente
vitorioso. Este era mais bem visto pela cristandade oriental, devido ao seu aberto apoio ao
cristianismo. O medo da traição tornou Licínio perseguidor, e Constantino foi visto como
libertador da oprimida igreja oriental.

As reformas implementadas por Constantino se mostram com o propósito de completar as


iniciadas por Diocleciano e eliminar suas incoerências. Considerou a Igreja como membro
fundamental para conseguir o apoio divino ao império e à sua pessoa. Concentrou o poder em
suas mãos e criou uma elite de governo ligada à sua pessoa e dinastia (GARCIA MORENO,
2001, p. 374).

1230
A construção do absolutismo imperial, trabalhosamente realizada ao longo dos séculos
anteriores, encontrava a culminação ao apoiar-se ideologicamente sobre uma concepção
religiosa claramente monoteísta. O princípio dinástico hereditário era claro, eliminando
qualquer possibilidade de ressuscitar o ideal eletivo (GARCIA MORENO, 2001, p. 374 e
375).

A grande mudança na administração territorial foi a mudança dos prefeitos centrais aos
regionais, com um âmbito de territorial e de funções civis bem específicas. Consolidou
definitivamente a organização diocesana, não introduziu grandes mudanças na administração
territorial.

Criou títulos e dignidades que refletiam a relação direta de fidelidade pessoal dos funcionários
com o imperador, ao mesmo tempo em que os englobava numa hierarquia rígida, regulada por
normas de protocolo cada vez mais estritas (GARCIA MORENO, 2001, p. 377).

Constantino foi especialmente favorável à aristocracia senatorial e romana ocidental, vários


postos de governo lhes foram dados, se diz que pelo desejo de conseguir uma aceitação mais
fácil de sua política religiosa. Mas em definitivo, não parece que o problema religioso fosse
obstáculo principal para uma colaboração entre o poder imperial e a aristocracia senatorial,
desejável e com benefícios para ambas as partes (GARCIA MORENO, 2001, p. 377).

Levou às últimas consequências as reformas militares empreendidas com anterioridade pode


Galieno e Diocleciano. A Constantino se deveu a criação definitiva de um grande exército de
campanha e manobra, que passou a uma situação preeminente e de máxima importância, em
comparação com o estacionado nas fronteiras (GARCIA MORENO, 2001, p. 378).

Adotou políticas favoráveis à sua nova religião: fim à perseguição, devolução dos bens
confiscados, e começou a privilegiar os clérigos cristãos com as obrigações fiscais (GARCIA
MORENO, 2001, p. 381). Disponibilizou recursos para a construção de igrejas, mas vale
lembrar que essa era uma prática comum entre os imperadores: a de disponibilizar recursos
para a construção de templos e a manutenção de seu culto. Afinal, como já foi dito, assegurar
o favor divino era essencial. A diferença é que Constantino adotou o cristianismo, de maneira
um tanto voluntarista, se pode dizer, sem conhecer a fundo sua teologia ou seus conflitos
internos.

1231
Sua visão da função do culto era bem romana: fator de unificação dos súditos, e modo de
garantir o favor divino. Logo, assim que há um cisma, intervém. Convoca e preside o
Concílio de Nicéia, pressiona por uma solução conciliadora. Isso era algo novo para a Igreja.
Pouco depois chega a perseguir os cismáticos.

Há que se lembrar que o cristianismo, ao contrário do que afirmava a elite pagã, nesses
tempos não era apenas a religião de pobres e desfavorecidos. Vinha ganhando simpatia. Ainda
mais com a adesão do imperador e elevação da dignidade dos bispos. A nova aristocracia de
serviço era muito diferente da antiga aristocracia senatorial romana, que era firmemente
entrincheirada, orgulhosa de sua educação clássica e resistente à inovação religiosa. Era
heterogênea, e dependia dos favores imperiais para sua ascensão social, oque a tornava
propensa a acatar os desejos do imperador e imitar seu comportamento (MOMIGLIANO,
1989, p. 50 e 51).

Eusébio de Cesareia

Conhecido como o “pai da história eclesiástica”, nasceu entre 260 e 265, provavelmente
Cesareia, na Palestina. Estudou com Doroteu, sacerdote de Antioquia, e depois com Pânfilo,
ardoroso seguidor de Orígenes. Tornou-se sacerdote e foi sagrado bispo em 311. Era
partidário do arianismo e contra os que defendiam a consubstancialidade do Verbo com o Pai.
Tendo o imperador Constantino, que dirigia o concílio de Nicéia, se declarado contra Ário,
Eusébio se resigna então a assinar o símbolo de fé contendo o “consubstancial ao Pai”, para
não desagradar o imperador. Escreve o Vita Constantini a pedido deste, obra que é mais um
panegírico do que uma biografia (FRANGIOTTI, 2000, p. 7-9).

Viveu num período de transformações. Viu o cristianismo passar de religião perseguida a


religião do imperador, e patrocinada por ele. Viu os bispos ganharem privilégios de
senadores, como a faixa purpúrea e o direito de viajar usando o serviço postal do Império. Viu
igrejas serem reconstruídas pelo mesmo poder que as destruíra: o Estado, e viu tais mudanças
com grande entusiasmo.

“Era verdadeiramente erudito. Infatigável, leu tudo quanto havia na literatura profana
quanto na sagrada (...). Devotíssimo do imperador, desenvolve a ideia de império cristão.
Torna-se bispo apoiado pelo Estado. (...) suas pesquisas trouxeram luzes sobre a Igreja dos

1232
primeiros séculos, sem as quais bem pouco saberíamos daqueles primeiros tempos do
cristianismo” (FRANGIOTTI, 2000, p. 9).

Não foi grande teólogo ou exegeta. Sua obra capital é a História Eclesiástica, que compreende
dez livros e foi escrita entre os anos 312 e 317. Se propõe nela a escrever uma história da
nação cristã e suas principais batalhas: perseguições e heresias, além do fundamento de sua
autoridade: a sucessão apostólica e a ortodoxia. Se fundamentava na autoridade, e não no livre
juízo de que se orgulhavam os autores pagãos. Seu novo tipo de exposição histórica dava
importância a um passado remoto, ao amplo uso de documentos e à posição central que
ocupavam as controvérsias doutrinais (MOMIGLIANO, 2001, p. 105 a 107).

Sua obra é rica naquilo que podemos chamar de questões não resolvidas, em tensões. O cânon
bíblico ainda não estava fechado, e ele opina sobre os livros que acha ortodoxos (HE, III, 3).
Percebe-se o esforço para fundamentar a autoridade do bispo, principalmente na sucessão
apostólica. Também a busca para aproximar-se da memória dos judeus, até apropriar-se de
sua história, mas afastar-se cuidadosamente deles.

Esforça-se por fundamentar suas opiniões na tradição, no testemunho dos antigos, pois é disso
que os sucessores dos apóstolos são guardiões. A igreja católica é aquela que teria sempre a
mesma identidade, e as heresias eram as que apresentavam inovações (HE, IV, 7).

A historiografia clássica pagã não agradava aos cristãos, que estavam mais interessados nas
vidas dos santos. E Eusébio sabia que estava escrevendo um novo tipo de história. Para ele, os
cristãos eram uma nação, logo, sua história era uma história nacional, e diferente da comum.
Era a história da luta contra o diabo, que a queria manchar com heresias e destruir com
perseguições (MOMIGLIANO, 1963, p. 106).

Uma história antiga, cheia de personagens ilustres, cultos e piedosos, das ações divinas em
favor destes. Uma história edificante, cheia de relatos de santos mártires, e das ações divinas
contra aqueles que se levantam contra a verdade. A vitória daqueles que se colocam a favor
dela é inevitável, pois não se pode resistir à ação de Deus, oque se percebe no fim daqueles
que tentaram (HE, VIII, 16). “O intento apologético da obra é evidente. A vitória do
cristianismo sobre as potências adversas é a prova tangível de sua origem divina e de sua
legitimidade” (FRANGIOTTI, 2000, p. 25).

1233
Considerações finais

Eusébio, naquela que é considerada a sua maior obra, a História Eclesiástica, inova em vários
sentidos. Ora, viveu num período de transformações, logo após um longo e doloroso período
de crise. Era o reparatio saeculi, onde se buscava voltar às tradições, mas, ao mesmo tempo
(mesmo às vezes sem perceber) inovar. Recebe com enorme empolgação a virada na situação
dos cristãos. Muitas questões ainda não estavam resolvidas, e apresenta respostas a elas.
Lembrando que este artigo é resultado de uma pesquisa em andamento, ainda inconclusa.

Referências

BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

BROX, Norbert. Historia de la Iglesia Primitiva. Barcelona: Editoria Herder, 1986.

EUSEBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000.

GARCIA MORENO, Luis. La construcción de Europa. Siglos V-VIII. Madrid: Editorial


Sintese, 2001.

MOMIGLIANO, Arnaldo e outros. EL conflito entre el paganismo y el cristianismo em el


siglo IV. Madri: Alianza Editorial, 1989.

1234
1235
O Conceito de Jihad clássico à luz do Corão e dos hadith
Michele Rosado de Lima Castro1

Introdução

Maomé, profeta do Islã, morreu no ano 632. Nesse momento, aquele recente corpo de crenças
revelado por Allah que há pouco mais de dez anos havia se constituído como religião, já havia
obtido muitas conquistas. Desde a hégira, migração dos crentes de Meca para Medina, em
622, os seguidores das revelações de Maomé já chamavam a si mesmos de muslims
(submissos) e chamavam a sua comunidade de ummah. Em vida, Maomé iniciou a unificação
da Península Arábica sob os mandamentos da religião do Deus único e em seu último sermão
direcionado àquela comunidade reforçou a necessidade de que todos se mantivessem unidos e
seguissem as palavras divinas por ele transmitidas: “Lembrai-vos que um dia vós estareis
diante de Allah e respondereis por seus atos. Então vos atenteis, não vos distancieis do
caminho da retidão quando eu houver partido”. Mas como saberiam os crentes qual seria o
“caminho da retidão”? Como manter o Estado criado pelo profeta de Deus no caminho
correto, já que os ensinamentos proferidos pelo profeta através das revelações poderiam se
perder ao longo do tempo? Para evitar tal perda, os primeiros califas, sucessores do profeta,
precisaram criar um norvo corpo de normas que tivesse como base os ensinamentos
proferidos por Maomé. A primeira atitude tomada nesse sentido foi compilar as recitações de
Maomé de forma sistemática e oficial, o que somente ocorreu durante o califado de Uthmam
(644-656) dando origem ao Corão tal como conhecemos hoje.

Como sabemos, as mensagens descritas no Corão tratam da forma como os crentes deveriam
agir: “quando entrardes nas casas, saudai-vos mutuamente em nome de Deus e que vossas
saudações sejam bonitas e amáveis” (24:60); como deveriam tratar as mulheres: “E dize às
crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não exibam de seus adornos além do que
aparece necessariamente. E que abaixem seu véu sobre o seio e não exibam seus adornos
senão a seus maridos ou pais ou sogros.”(24:30); entre tantas outras normas sociais. Além do
Corão, outra compilação se tornou importante para os crentes, a compilação dos atos e falas
de Maomé: os hadıth. Também estes dizem muito sobre a forma como o crente deveria se
comportar; já que se parte do pressuposto que o profeta, como escolhido de Deus para

1
Graduanda em História pela UFOP, vinculada ao Núcleo de Estudos de História da Religião sob orientação do
Prof. Dr. Celso Taveira. Contato: michelerosado1@hotmail.com.

1236
transmitir Suas mensagens, não agiria de forma pecaminosa, e, por extensão, seus atos
poderiam ser emulados pelos crentes quando houvesse dúvida na leitura do livro sagrado. O
Corão e os hadıth são a fonte do direito islâmico (fiqh) e foram tomados como fundamentos
para aquele novo Estado que pretendia se fortalecer e se expandir sem se desviar do caminho
da retidão. Portanto, para compreender o conceito de Jihad faz-se necessário um atento estudo
destes escritos.

O conceito de Jihad é comumente traduzido como “guerra santa” muçulmana. Esta tradução
não é razoável, já que se trata de um conceito muito mais complexo e remete a outros tantos
esforços que não somente o de guerra armada, como a tradução sugere. Ademais, é comum
que o termo apareça associado à justificativa do terrorismo e, por conseguinte, associado a
atos de violência conta outros povos. Assim, além de ser uma tradução que resulta de uma
análise bastante superficial, ainda é uma explicação que carrega grande peso político e diz
muito mais sobre os desentendimentos entre Ocidente e Oriente, ao longo do tempo, do que
propriamente soluciona a dúvida do que vem a ser o Jihad. Dessa forma, o objetivo desse
trabalho é fazer uma análise tanto do Corão quanto de uma compilação dos hadith a fim de
tentar compreender e caracterizar o conceito de Jihad.

Para a análise do Corão utilizamos a tradução do árabe para o português de Mansur Challita,
comparando, sempre que necessário, com a tradução feita do árabe para o inglês de Hâce
Ahmet Dindin. Para a análise dos hadith será utilizada uma das compilações mais respeitadas
pelos sunitas2, a de Husayn Muslim al-Hajjaj, terminada no final do século IX e traduzita para
o inglês por Nasiruddin al-Khattab. Após breve descrição destes dois escritos, trataremos, em
linhas gerais, sobre a jurisprudência islâmica, passando, finalmente, para a análise dos
documentos com os quais trabalhamos.

O Corão e os hadith como fontes da jurisprudência islâmica

A palavra qur’an, em árabe, significa recitação (HALEEM, 2001, p. 2) e, por si só, nos diz
muito sobre a história do livro sagrado do Islã, que, para ser melhor compreendida, deve ser
buscada ainda nos primeiros momentos das profecias de Maomé. Considera-se o ano de 610

2
O fato de utilizarmos uma compilação sunita não significa excluir a importância de outros partidos dentro da
religião. Esta escolha foi feita considerando o fato de que não seria possível, aqui, fazermos uma análise das
crenças e das diferenças de crenças entre eles e, também, o fato de a grande maioria da população muçulmana
tem predileção sunita.

1237
como o ano da realização da primeira profecia, mas somente no ano de 613 elas vieram a
público por meio das pregações das mensagens de Allah ao povo de Meca (WATT, 1956, p.
27). A primeira revelação foi recebida enquanto estava sozinho em uma caverna, mas, após o
início das pregações, os crentes puderam testemunhar o exato momento de contato com além,
presenciando muitas das profeciais enviadas por Deus. A princípio essas mensagens não
foram registradas de maneira sistemática: como a comunidade árabe pre-islâmica era uma
comunidade de tradiçõs orais, somente algumas partes das pregações eram anotadas por
aqueles que a ouviam, a maioria delas eram registradas somente na memória. Após a morte de
Maomé, os crentes se viram sem a orientação dada pelo profeta e percebem a necessidade de
fazer uma compilação oficial das revelações para que elas não fossem se perdendo à medida
que aqueles que tiveram contato direto com o profeta também morressem. Este esforço é
iniciado tanto por Abu Bakr (632 - 634) quanto por Omar (634 - 644), os dois primeiros
sucessores de Maomé, mas somente no Califado de Uthman (644-656) é que surgiu o texto
oficial que compõe o Corão tal como o conhecemos hoje.

O Corão é composto por 114 capítulos chamados suras e cada sura é formada por versículos,
ou ayat, num total de 6.235. Como já dito anteriormente, o Corão trata de diversos temas, o
que é demonstrado por Muhammad Abdel Haleen em seu livro Understanding the qur’an, em
que diz que temas relativos à crença ocupam a maior parte do livro, seguido por temas
relativos à moral. Logo após estão os rituais e, finalmente, as disposições jurídicas
(HALEEM, 2001, p. 15). Os crentes acreditam que o Corão seja a palavra de Deus transcrita
para um livro, sendo assim o autor é propriamente Deus e é Dele o lugar de fala em todo o
livro. Na apresentação da tradução do Corão para o português, Mansur Challita diz que o livro
é, normalmente, escrito em primeira pessoa, tanto do singular quanto do plural, e pode se
dirigir tanto a Maomé – usando a segunda pessoa do singular – quanto aos crentes no geral –
usando a segunda pessoa do plural. Quando utiliza a terceira pessoa está se referindo aos não
muçulmanos (2011, p. 21).

Após a morte de Maomé teve início um grande esforço dos estudiosos do Corão para
interpretá-lo, mas algumas regras sociais não estavam ali descritas ou estavam de forma a
causar dúvidas. Partindo da hipótese de que o profeta era um homem guiado diretamente por
Deus e, dessa forma, não erraria, e que nenhum crente viria a mentir sobre algo que a
comunidade, e principalmente ele próprio, tomava como sagrado, a ummah se voltou para a
história do profeta para solucionar essas possíveis lacunas ou ambiguidades. Além disso,
considera-se que esta seja uma forma totalmente legitimizada pelo Corão de se esclarecer as

1238
dúvidas que possivelmente surgiriam já que o próprio Corão é bastante enfático sobre a
importância de se seguir as mensagens proferidas por Meomé e tomá-lo como exemplo, o que
fica claro na seguinte passagem: “O mensageiro de Deus é um belo exemplo para os que
confiam em Deus e no último dia e recordam Deus com frequência” (33:21). Os atos e falas
de Maomé foram complilados por crentes que estiveram na companhia do profeta quando as
bases da religião ainda estavam sendo formadas. Essas compilações foram chamadas de
hadith. As mais famosas e reconhecidas compilações são as de Muhhamad Ibn Ismail al-
Bukhari (870) e a de Abu- l-Husayn Muslim ibn al-Hajjaj (875) (GLASSÉ, 1989, p. 141), elas
compõem uma coleção de seis livros considerada pelos sunitas como os de maior autoridade.
Entre estas, utilizaremos neste trabalho a segunda citada, a obra de Husayn Muslim al-Hajjaj,
na edição de Nasiruddin al-Khattab publicada em 2007.

Estas duas obras, o Corão e os hadith, passaram, a partir do momento de sua compilação, a
constituir o corpo de normas da comunidade muçulmana. Mas ainda era necessário um outro
esforço, o de interpretação. Para tal, aplicou-se um saber do Islã clássico chamado fiqh. Este
termo é normalmente traduzido como jurisprudência islâmica e se refere à ciência que lida
com a observância dos rituais e dos cinco pilares da religião (GLASSÉ, 1989, p. 126). Deste
esforço de interpretação surgiu a sharia, termo que se refere à lei islâmica, o material legal
que deve ser seguido pelo muçulmano e consultado em caso de julgamentos. É importante
destacar a existência de diversas escolas jurídicas islâmicas, entre sunitas, xiitas e caridjitas.
Assim, estas divisões possuem formas diferentes de interpretação do Corão e, por
consequência, diferentes shariah. Assim como as outras religiões do livro, o Islã não
diferencia religião da vida cotidiana e, por isso, a lei muçulmana não trata somente de rituais
religiosos ou questões teológicas, são competência do fiqh questões como a alimentação, o
matrimônio, a herança, o comércio e também a guerra (PARADELA, 2001, p. 3). É por esse
motivo que voltaremos nossa atenção aos escritos do Corão e da tradição, já que é ali que se
encontra a base fundamental das leis que são seguidas pelos muçulmanos, lei tal que também
trata da legitimação e da necessidade do Jihad.

O Jihad no Corão e na tradição muçulmana

1239
No Corão há diversas suras que tratam ora de paz ora da necessidade de guerra. Pode-se
encontrar versos passíveis de serem interpretados como sucitadores da guerra sem restrições,
como por exemplo: “ E combatei até que não haja mais idolatria e que a relegião pertença
excluzivamente a Deus. Se desistirem, Deus observa o que fazem.” (8:39). Outras falam
especificamente da legitimação da guerra contra o inimigo que primeiro atacar os crentes: “E
combatei, pela causa de Deus, os que vos combatem. Mas não sejais o primeiro a agredir.
Deus não ama os agressores” (2:190). Já em outras passagens é clara a necessidade de manter
a paz, mesmo com os infiéis: “Se eles se inclinarem para a paz, inclina-te para ela também e
confia em Deus. Ele ouve tudo e sabe tudo” (8:61); ou se manter afastados deles: “Proclama,
pois, o que te for mandado, e afasta-te dos idólatras. Bastamos Nós para te proteger contra os
zombateiros” (15:94-95).

Assim, tanto entre os estudiosos muçulmanos quanto entre os não muçulmanos, é possível
encontrar interpretações que divergem bastante entre si sobre o que é Jihad e quando ele pode
ser colocado em prática. Para Richard Bonney, o ponto central que traz tantos
desentendimentos é a questão da ab-rogação (naskh), onde algumas passagens do Corão
foram invalidadas por outras posteriores. Essa questão é um importante ponto de debate entre
estudiosos da lei Islâmica, motivo pelo qual várias escolas interpretam os textos sagrados de
formas diferentes (BONNEY, 2004, p. 22). Um verso do Corão trata especificamente sobre
este assunto: “Os versículos que ab-rogamos ou desprezamos nesse Livro, Nós os
substituímos por outros, iguais ou melhores. Não sabeis que Deus tem poder sobre tudo?”
(2:106). Este é um verso que possibilita a interpretação citada por Bonney em seu livro Jihad:
from Qur’an to Bin Laden, de que a “ab-rogação é um fenômeno inteiramente interno:
nenhum hadith, em outras palavras, pode ab-rogar algum verso do Corão” (BONNEY, 2004,
p. 24). Contudo, como se pode perceber na passagem citada acima, o fenômeno de ab-rogação
de uma passagem por outra do próprio Corão revelada posteriormente é geralmente aceita.
Dessa forma, faz-se necessário consultar a ordem de revelação das suras – lembrando que no
Corão elas não são organizadas cronologicamente. As últimas duas suras, em ordem de
revelação, foram, respectivamente, a 9ª (O arrependimento) e 5ª (A mesa servida). A 9ª é
especialmente importante para nossa análise porque ela contém a chamada ayah da espada,
verso tal que acredita-se ter ab-rogado mais de cem outras ayahs do Corão (BONNEY, 2004,
p. 22) e é bastante utilizada por grupos radicalistas para legitimar guerras. Trataremos desta
importante passagem mais a frente.

1240
Segundo Richard Bonney, há no Corão 35 ocorrências da palavra Jihad ou equivalentes
(BONNEY, 2004, p. 22). Dada a impossibilidade de analisar tal fonte em língua original, não
pretendemos, neste trabalho, localizar e estudar cada uma delas, mas, sim, procurar, nas
traduções para o inglês e para o português, as passagens que podem nos dizer algo sobre a
necessidade de guerra e quando ela pode ser considerada uma guerra em nome de Deus.
Alguns versos são enfáticos quanto ao fato da guerra em nome de Deus somente ser
justificada quando for em defesa da religião. Além da passagem citada acima, pode-se dar
como exemplo os seguintes versos: “Se, portanto, não se conservarem [os infiéis] afastados de
vós e não vos oferecerem a paz e não retiverem as mãos, capturai-os e matai-os onde quer que
os encontreis, porque sobre eles vos concedemos poder absoluto” (4:91) e “Quanto a vós,
descrentes, se era uma vitória que procuráveis sois bem servidos! Se desistirdes de combater,
será melhor para vós. Mas se voltardes, voltaremos! Vosso exército, por mais numeroso que
seja, de nada valerá. Deus está com os crentes” (8:19). Entretanto, outras passagens não são
tão claras quanto essa necessidade, mas é possível percebê-la se colocarmos a passagem em
questão dentro de seu contexto, é o que acontece, por exemplo, com “A guerra foi-vos
prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos prejudicando! Deus sabe
e vós não sabeis” (2:216). Se tomada separadamente é perfeitamente perceptível que a guerra
é incentivada sem restrições, mas se a olhamos dentro de um contexto maior, temos o
seguinte:

A guerra foi-vos prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos
prejudicando! Deus sabe e vós não sabeis Interrogarte-ão acerca do mês sagrado: haverá
combates nele ou não? Responde: “Guerrear nesse mês é uma enorme transgressão e um
afastamento da senda de Deus e um desrespeito a Ele e à Mesquita Sagrada . Mas expulsar
dos lugares santos seus habitantes é um erro maior ainda, pois o erro é pior que a
matança.” Ora, não pararão de vos combater até que vos levem, se puderem, a renegar
vossa religião. E quem de vós renegar sua religião e morrer na descrença terá perdido esse
mundo e o outro. (2:216-217)3

Esta é a primeira sura inteiramente revelada após a migração de Maomé para Medina, 622. As
ayahs 1 a 175, especificamente, foram reveladas nos dois primeiros anos desse período
(ASSAD, 1980, p. 15). Pensando no contexto histórico dessa revelação, é possível perceber
que quando se diz que os inimigos não pararão de combater até que os muçulmanos reneguem
sua religião, o Corão pode estar se referindo à conjuntura que motivou a evasão dos crentes de
Meca, onde não podiam colocar sua religião em prática pela oposição dos coraixitas. Assim,
3
Grifo nosso.

1241
colocando os versos em seu respectivo contexto, tanto o do livro quanto o histórico,
percebemos que há também um sentido de defesa na guerra proposta.

O mesmo ocorre com a ayah da espada citada acima, vejamos sua transcrição: “Mas quando
os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os encontrais e
capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e recitarem a
oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso” (9:5). Mais
uma vez, ao analisar o verso isoladamente, percebe-se um sentido de comando de guerra sem
restrições, mas vejamos a passagem juntamente com outras ayahs que complementam sua
ideia:

Mas quando os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os
encontrais e capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e
recitarem a oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso.
Se um idólatra procurar sua proteção, protege-o até que ouça apalavra de Deus. Então leva-
o a seu lugar de segurança . Pois esses idólatras são ignorantes.Como teriam os idólatras
uma aliança com Deus e Seu mensageiro, salvo aqueles com quem pactuastes junto à
Mesquita Sagrada? Enquanto forem leais para convosco, sede leais para com eles. Deus
ama os homens de bem. Como teriam um pacto com Deus e Seu mensageiro quando vos
derrotam e não respeitam nem sua palavra nem vossa honra? Procuram agradar-vos com
palavras enquanto seus orações se conservam fechados. A maioria deles é depravada.
Venderam a vil preço as revelações de Deus e desviam outros de Seu caminho. Condenável
é o que fazem! Não respeitam no crente nem parentesco nem aliança. São todos agressores.
Se, contudo, se arrependerem e observarem a oração e pagarem o tributo , então serão
vossos irmão na religião. Esclarecemos as revelaçoes para os que compreendem. Mas se
violarem seus juramentos e insultarem vossa religião , combatei então os cabeças da
descrença – eles não tem respeito por sua palavra- afim de levá-los a desistir. Deixareis de
combater um povo que violou seus juramentos e tentou expulsar o Mensageiro e tomou a
iniciativa de vos agredir? Será que os temeis? Deus é mais digno de ser temido. (9: 5-13) 4

Mais uma vez, vemos aqui, quando o contexto é colocado em destaque e não somente o verso,
outra alusão à guerra no sentido de defesa da comunidade religiosa. Assim, se voltamos à
teoria da ab-rogação, percebemos que mesmo que este veso tenha ab-rogado tantas outras
ayahs, ainda permanece o sentido de que a guerra só pode ser considerada uma guerra em
nome de Deus quando for no sentido de defesa. Mohhamad Assad enfatiza em diversos
momentos, em seu livro The message of the qur’an, que cada verso do Corão deve ser lido e
interpretado considerando o contexto do livro como um todo. Ele sugere também que esta

4
Grifo nosso.

1242
passagem seja lida juntamente com os dois versículos anteriores e com outros de outras suras,
como por exemplo a ayah 2:190 já citada. Além disso, ele explica que este versículo se refere
mais especificamente a uma guerra já em progresso contra povos que se tornaram culpados
pela violação de um tratado de não agressão com os crentes (ASSAD, 1980, p. 380).

Na compilação dos hadith de Husayn Muslim al-Hajjaj, há, no quinto volume, um livro
intitulado O livro do Jihad e das expedições, em que ele relata, entre outras coisas, momentos
da vida do profeta onde ele explicou como os chefes de guerra deveriam se comportar frente
aos inimigos (Muslim, 32, 2, 4522-4) ou quem poderia, ou não, ser morto durante a guerra
(Muslim, 32, 8, 4547-8). Até o momento não encontramos, nessa compilação, nenhuma
menção direta às formas de legitimação da guerra santa, no entanto, consta a descrição de
como o profeta se comportou em diversas batalhas e expedições. Dessa forma, faremos uma
análise desses momentos da vida do profeta para compreender se estas guerras empreendidas
eram realmente guerras de defesa da fé e da comunidade muçulmana como interpretamos no
Corão.

Para compreender as batalhas citadas no livro, devemos voltar ao contexto da migração dos
muslim de Meca para Medina em 622. No período de início das revelações de Maomé, em
Meca, a Península Arábica era uma encruzilhada de rotas comerciais e Meca era sua principal
cidade, onde era profundo o abismo entre pobres e ricos. As revelações de Maomé vêm se
contrapor a tudo isso, trazendo mensagens de generosidade e de auxilio material aos pobres.
Os coraixitas, tribo dominante em Meca, rejeitaram terminantemente estas mensagens, já que
este era um ponto de grande contraste entre as pregações do profeta e a realidade da vida dos
árabes e, por isso, a partir daí Maomé começa a sofrer grande oposição dos coraixitas. Maomé
teve proteção do clã Banu Hashim, do qual era mebro, até a morte de seu tio, Abu Talib, líder
dos hachemitas, em 619. Seu sucessor na liderança do clã foi Abu Lahab, adversário
declarado de Maomé. Até esse mesmo ano, ele já havia conquistado um grupo de seguidores,
que, se ainda não constituiam uma religião organizada, já se autodenominavam mumin (fiel)
ou muslim (submisso) (MANTRAN, 1877, p. 63). Com a perda de apoio de seu clã, a
pregação e a nova vida dos crentes – guiada pelas revelações do profeta – se tornavam cada
vez mais impraticáveis em Meca e, por isso, em 622, Maomé, juntamente com seus
seguidores, se retirou de Meca e buscou refúgio na cidade de Medina, mais ao norte. Os
muçulmanos migraram de Meca para Medina em setembro de 622, evento que marca o início
do calendário árabe, sendo chamado de hidjra (emigração), ou Hégira.

1243
A partir desse momento, os coraixitas se tornam inimigos diretos de Maomé e dos
muçulmanos, não só por permanecerem politeístas, mas, principalmente, por haverem
impossibilitado a prática de sua religião. A oposição dos coraixitas foi tomada como uma
ofença à comunidade. Assim, desde a Hégira era comum que os muçulmanos praticassem
ataques contra caravanas de comércio dos Coraixitas. Em 624, um destes ataques, que ocorreu
na cidade de Badr, próximo a Medina, obteve grande sucesso, culminando na morte de cerca
de 50 homens de Meca, entre eles diversos líderes militares, e outros tantos foram tomados
como prisioneiros (WATT, 1956, p. 12). Esta batalha é conhecida como Batalha de Badr e,
cronologicamente falando, é a primeira batalha citada no Livro do Jihad e expedições de
Muslim (Muslim, 32, 30, 4621). Apesar do sucesso nesta batalha, não houve nenhuma
mudança imediata na situação política dos muçulmanos: eles sabiam que essa batalha não
significava que eles haviam recuperado o direto de retornar a Meca ou que Medina passaria a
superar o poder de Meca na região. No entanto, a batalha deixou claro aos coraixitas que
Maomé os desafiava para um confronto de forças (WATT, 1956, p. 14).

No ano seguinte Abu Sufyan, um dos líderes militares dos coraixitas que sobreviveram ao
ataque em Badr, reuniu cerca de 3000 homens para atacar Medina como forma de se vingar
dos muçulmanos e recuperar seu prestígio em Meca. A tropa de Sufyan acampou ao norte de
Medina em frente ao Monte de Uhud, onde os muçulmanos foram encontrá-los para evitar
uma batalha dentro da cidade. Segundo as descrições de W. M. Watt, em seu livro Maomé em
Medina, os muçulmanos estavam prestes a conquistar a segunda vitória contra os coraixitas,
quando os arqueiros sairam da posição inicialmente estipulada por Maomé para saquear o
acampamento dos coraixitas, possibilitando, assim, um ataque surpresa da cavalaria de
Mecca. Os muçulmanos tiveram que se refugiar nas encostas do Monte Uhud e os coraixitas
retornaram vitoriosos para Meca (WATT, 1956, p. 21-24).

Uma terceira batalha que é citada nos hadith de Muslim e que também se deu em função
daquele primeiro momento de oposição dos coraixitas de Meca foi a batalha das trincheiras,
também conhecida como batalha dos confederados (Muslim, 32, 36, 4640), que ocorreu no
ano de 627. Os coraixitas e outras tribos, entre elas os judeus da tribo de Nadir, formando os
confederados, reuniram cerca de 10.000 homens para lutar contra os muçulmanos. Contra esse
grande contingente, os muçulmanos contavam com somente cerca de 3.000 homens, que era
quase toda a população de Medina, excetuando-se os judeus da tribo Qurayzah que não
participaram da luta. Tendo um número muito inferior de homens, Maomé utilizou uma tática
até então desconhecida na Península Arábica. Em qualquer lugar onde Medina poderia ser

1244
atacada em solo Maomé contruiu trincheiras, impossibilitando a entrada dos confederados na
cidade. Depois de cerca de quinze dias de tentativas mal sucedidas de adentrar e saquear a
cidade, os confederados retornaram a Meca porque seu estoque de comida para os cavalos e
para a própria tropa já havia acabado. Apesar das perdas terem sido mínimas, os coraixitas
retornaram a Meca com a moral gravemente afetada, o que trouxe implicações para o
comércio, já que, com o fortalecimento de Maomé e da comunidade muçulmana, a
possibilidade de haver novos ataques como o de Badr era grande (WATT, 1956, p. 35-39).

As duas tribos de judeus envolvidas na guerra das trincheiras – a tribo Nadir, que se aliou aos
coraixitas, e a tribo Qurayzah, que não participou da guerra, mas iniciou um processo de
negociações com os inimigos dos muçulmanos – passaram a ser alvo da fúria de Maomé
depois desse episódio. Segundo Watt, Maomé tinha, com a tribo Qurayzah, um tratado de não
agressão e de não auxílio dos inimigos contra os muçulmanos (WATT, 1956, p. 38), mas,
durante a batalha das trincheiras, os judeus confederados foram até os Qurayzah procurar por
aliança. Apesar das negociações não terem terminado em um acordo de auxílio por parte dos
Qurayzah, Maomé tomou como quebra do tratado o fato de haverem entrado em negociações
com o inimigo e, imediatamente após a retirada das tropas dos coraixitas, marchou contra os
Qurayzah e exterminou de 700 a 800 homens da tribo (ARMSTRONG, 2001, p. 21). Com os
Nadir, Maomé veio a se encontrar no ano de 629 na batalha de Khaybar (Muslim, 32, 43,
4665-9), quando os judeus foram obrigados a se render e pagar um tributo sobre tudo que ali
fosse produzido (WATT, 1956, p. 240).

Em 628 os muçulmanos empreenderam uma primeira tentativa de peregrinação a Meca, mas,


ao se aproximarem da cidade foram surprendidos pelos coraixitas que não permitiram sua
entrada. No Oásis de Hudaybiyyah, coraixitas e muçulmanos assinaram um tratado, chamado
tratado de Hudaybiyyah que dizia que naquele ano os muçulmanos retornariam a Medina sem
terminar a peregrinação, mas, no ano seguinte, eles teriam a permissão de ficar ali por três
dias, contando que não entrassem com armas. Além disso, ficou acordado que não haveria
ataques de nenhuma das partes por dez anos e qualquer outra tribo poderia fazer aliança tanto
com Maomé quanto com os coraixitas sem maiores problemas. Em 630 houve um ataque, por
parte dos coraixitas, a uma tribo aliada a Maomé, o que aos olhos dos muçulmanos, foi uma
quebra do tratado de Hudaybiyyah. Assim, Maomé marchou até Meca com um exército de
cerca 10000 homens (ARMSTRONG, 2001, p. 61), conseguindo entrar e tomar a cidade sem
derramamento de sangue. Ao chegarem, receberam a notícia de que as tribos beduínas de
Hawazin e Thaqif, antigos inimigos dos coraixitas, planejavam um ataque a Meca com um

1245
exercíto de cerca de 20000 homens. Ao serem informados do ataque, os líderes de Meca que
ainda não haviam se convertido ao Islã preferiram se aliar a Maomé contra as tribos beduínas
do que cair nas mãos de seus inimigos tradicionais. Dessa forma, coraixitas e muçulmanos
uniram forças e, em janeiro de 630, sairam para um ataque a essas tribos em Hunayn, dando
origem ao nome Batalha de Hunayn (WATT, 1956, p. 73). A batalha terminou com o
extermínio dos homens e o apresamento das mulheres e crianças – o Corão é claro quanto a
não matá-las em guerra – além dos animais.

Considerações finais

Há uma grande discussão entre os estudiosos sobre quando a guerra em nome de Deus pode
ser considerada legítima. Mohammad Assad (1900 - 1992), cujos principais trabalhos que
tratam sobre o tema são The road to mecca, publicado em 1954, onde ele dedica um capítulo
inteiro sobre o Jihad, e The message of the qur'an, publicado em 1980, onde ele faz uma
cuidadosa análise de cada verso do Corão; acredita que a guerra em nome de Deus somente
pode ser aplicada em um contexto de defesa da comunidade muçulmana. Richard Bonney
também cita outros, como, por exemplo, Shaykh Muammad al-Ghazali (1917 - 1996) que
ainda acrescenta que “mesmo uma guerra defensiva somente é legitimada quando ocorre pelas
causas de Deus e não por glória pessoal em busca de vantagens especiais” (BONNEY, 2004,
p. 30). Por outro lado, Bonney também cita Faruq Sherif, que acredita que “o mundo
muçulmano está sempre em posição de potencial hostilidade contra o mundo não
muçulmano” pelo fato da guerra contra os infiéis ser um dos pilares básicos da religião
(BONNEY, 2004, p. 31).

A partir de nossa análise do Corão, entendemos que Jihad, a guerra em nome de Deus, só
pode ser justificada quando colocada em prática tendo em vista a defesa da comunidade
religiosa. Quando voltamos nossa análise para os hadith de Muslim nos deparamos com a
descrição de várias batalhas travadas pelo próprio Maomé, que são tomadas pela comunidade
muçulmana como exemplo. Analisando o contexto histórico dessas batalhas percebemos que
o sentido de defesa da religião e da comunidade é reforçado. As mais importantes expedições
citadas são aquelas empreendidas contra os coraixitas de Meca, que, no primeiro momento
das revelações se opuseram veementemente às mensagens que aquela comunidade pregava,
culminando na fuga dos crentes da cidade. Outras batalhas, como as de Hunayn e a de

1246
Khaybar também foram empreendidas quando houve algum primeiro ataque, ou perigo de
ataque, dos inimigos.

Referências

ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

ASAD, Muhammad. The Message of The Qur'an. Sharjah: Dar Al Andalus, 1980.

BONNEY, Richard. Jihad: from the qur’an to Bin Laden. Nova York: Palgrave Macmillan,
2004.

CHALLITA, Mansur (trad.). O Alcorão. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.

GLASSÉ, Cyril. The Concise Encyclopedia of Islam. New York, Harper Collins, 1989.

HALEEM, Muhammad Abdel. Understanding the qur’an: themes and styles. Londres:
I.B.Tauris, 2001.

MANTRAN, Robert. A Expansão Muçulmana (séculos VII-XI), São Paulo, Pioneira, 1977.

PARADELA, Nieves. Belicismo y espiritualidad: una caracterización del Yihad islámico. In:
Militarium Ordinum Anacleta, Oporto, nº 5, 2001.

WATT, W. M. Muhammad at Medina. Londres: Oxford University Press, 1956.

1247
1248
O paradigma de Iudas-Iudei: Judas Iscariotes como uma
representação do judeu no Juízo Final e a Missa de São Gregório
(MASP 428P)
Doglas Morais Lubarino1

Introdução

Ainda pouco conhecida e estudada, a obra O Juízo Final e a Missa de São Gregório do acervo
do MASP é o objeto de pesquisa de nossa dissertação de mestrado, que visa analisá-la em
relação às ideias referentes à Doutrina Eucarística no final da Idade Média.

Estudaremos no presente texto a representação do inferno nesta obra nos atentado, sobretudo,
à figura de Judas enforcado e sua relação com a imagem do judeu na Baixa Idade Média. A
representação de Judas como figura emblemática do povo hebreu é um topos comum nas
imagens medievais. Nessas imagens a figura do apóstolo traidor tem traços marcantes, como o
nariz aquilino e uma bolsa de dinheiro no pescoço. Esses elementos não representam somente
a ojeriza cristã à traição que resultou no sacrifício de Cristo. Eles podem ser compreendidos
como uma visão negativa do povo judaico como culpado e herdeiro desse deicídio.
Examinaremos essa questão analisando a historiografia sobre esta temática e comparando o
nosso painel com outras pinturas murais, sobretudo retabulares do período gótico.

Datação, autoria e proveniência

A obra O Juízo Final e a Missa de São Gregório do Acervo do Museu de Arte de São Paulo –
MASP (nº de registro 428 P), datado do final do século XV, é uma das raras obras tardo-
medievais presentes no Brasil. Trata-se de uma pintura retabular confeccionada a óleo sobre
madeira, com dimensões de 200 x 130 cm. A autoria dessa obra é atribuída no Catálogo do
MASP a um pintor anônimo catalão denominado como Mestre da Família Artés (MARQUES,
1998, p. 16).

Em relação à proveniência, conforme referências do mesmo catálogo, a pintura em questão


teria sido feita em Valência para ser o painel central de um retábulo em uma abadia da
1
Mestrando em História Social pela USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Correia Leandro Pereira.
Bolsista da FAPESP. Membro do Laboratório de Teoria e História da Imagem e da Música Medievais –
LATHIMM-USP. Contato: dmlubarino@yahoo.com.br.

1249
Borgonha, na França (idem p. 16). Não há notícias sobre a temática e nem o paradeiro das
outras partes do retábulo, mas segundo o mesmo catálogo, este painel central teria passado da
Borgonha para uma coleção particular na Bretanha e de lá, por meio de doação feita por
Daniel Wildenstein, em 1966, para o acervo do MASP (idem, p.16).

Descrição iconográfica

No que se refere à iconografia, o painel, apesar de apresentar cenas que se relacionam, como
veremos, encontra-se dividido em áreas bem distintas, que descreveremos em separado,
embora saibamos que sua compreensão só pode ser feita em conjunto.

Na parte superior do painel vemos o Céu cercado por uma muralha. A figura central do
Empíreo é o Cristo tronando, vestido com o perizônio e um manto vermelho, e com as cinco
chagas à mostra. Do lado direito de Cristo observamos figuras beatícias femininas e do lado
esquerdo, masculinas. À frente da muralha há sete anjos, dois dos quais sustentam uma cruz e
outros dois tocam trombetas. Mais dois levam as almas para o Paraíso, enquanto o último está
em atitude contemplativa.

A lateral esquerda do painel é dividida em três registros: o purgatório, o limbo e um flúmen


com almas. O purgatório é representando por um grupo de almas que padecem em meio a um
rio de fogo, sendo uma delas erguida por um anjo. Logo abaixo do purgatório está o limbo,
com quatro crianças sentadas. E abaixo do limbo há almas em meio à água.

Na parte central inferior da pintura há uma cena que se passa no interior de uma igreja,
evocada por colunas e arcos: o episódio conhecido como a Missa de São Gregório. E para
além desse espaço fechado há um campo a céu aberto, onde os ressuscitados saem de seus
túmulos.

Na lateral inferior direita desta imagem, numa espécie de formação rochosa, está representado
o inferno com dois poços. Num primeiro, de diâmetro menor, os danados são açoitados por
dois demônios e no outro, logo acima deste, há condenados em meio às chamas. Um deles é
fustigado por um diabo que verte em sua boca metal fundido. Na parte superior desta
representação há um grupo de almas que está envolvido a uma espécie de nuvem escura.

1250
Logo abaixo dessa nuvem vemos a figura que mais nos interessa neste trabalho: Judas
enforcado. Ele está representado com uma túnica vermelha, com uma bolsa presa no pescoço
e com uma auréola negra. A figuração do rosto deste apóstolo tem um traço notável que é a
hipertrofia nasal que o distingue dos outros personagens da pintura.

Proposta de Análise da iconografia de Judas

Esta forma de figurar Judas vai além de uma representação do apóstolo traidor que é
condenado à prolongação de seu suicídio por toda a eternidade. Carlos Espí Forcen,
historiador da Arte e professor da Universidade de Múrcia na Espanha, autor de vários
trabalhos sobre as representações dos judeus, indica que a origem dessa forma de representar
os judeus é um fenômeno da Baixa Idade Média. Esse fato está diretamente ligado à
urbanização e à associação dos judeus como credores usurários: “Respecto a la fisiognomía
del judío, el rasgo facial satirizado por antonomasia fue indudablemente la nariz,
frecuentemente relacionada con el pecado de la usura, atribuido a los judíos por su labor de
prestamistas” (ESPÍ FORCEN, 2009, p.2). O novo papel dos judeus como credores em um
período de transição política e econômica do final da Idade Média explica, conforme o autor,
o desenvolvimento de um traço que deforma a fisionomia do judeu.

Este mesmo traço facial foi analisado em uma imagem de Judas Iscariotes por Jérôme Baschet
no afresco A morte ignominiosa de Judas de Giovanni Canavesio, localizado na parede
esquerda da capela de Notre-Dame des Fontaines e situado em La Brigue, na França. Trata-se
de uma pintura do século XV e, portanto, do mesmo período do nosso painel. Essa imagem
apresenta Judas enforcado e vestido com uma túnica amarela. Esse apóstolo está representado
com o ventre aberto e com as vísceras expostas tendo sua alma arrancada por um demônio.
Ao analisar essa figura, Baschet afirma que “o traidor Judas oferece a ocasião de um ataque
contra os judeus: ele é representado com um longo nariz aquilino que lhes é atribuído e
mesmo a sua alma reproduz seus traços nefastos” (BASCHET, 2008, p. 437). Percebemos
pela argumentação do autor uma associação da figura de Judas ao povo hebreu pelo
característico traço facial presente tanto em seu rosto como em sua alma que é conduzida para
a danação eterna.

Embasados na argumentação destes autores propomos uma análise para a nossa imagem onde
a figura de Judas enforcado representa, além do apóstolo traidor, o povo judeu condenado por

1251
sua avareza. Como já vimos, esse pecado é bastante notável e reiterado na representação do
inferno do painel em questão. Não só o Iscariotes tem a bolsa que simboliza a busca pelos
bens materiais. Ao lado da figura de Judas há um personagem tonsurado que está sendo
lançado ao inferno pelo evidente pecado da avareza simbolizado pela bolsa. Além disso, a
imagem do inferno apresenta um demônio que verte metal fundido na boca de um condenado.
Essa tortura é na iconografia tardo medieval uma forma de representar o castigo pela avareza.
Assim, percebemos na nossa imagem, uma possível relação entre Judas e as conotações
judaizantes presentes não só na figura do apóstolo traidor, mas nas demais figuras do inferno
nesta imagem que se remetem à avareza.

O paradigma de Iudas-Iudei

Como vimos, diante desses elementos, podemos propor uma relação entre a iconografia de
Judas como representação emblemática do povo hebreu. Essa associação pode ser ainda mais
entendida pela argumentação de Paulino Rodríguez Barral:

Estamos pues ante una amalgama de recursos iconográficos orientados a la creación de un


estereotipo que, trascendiéndola personalidad del apóstol traidor, encarna un paradigma de
lo judío. Algo a lo que la plástica gótica catalano-aragonesa va a echar mano en lo sucesivo
de modo sistemático y que no obedece sino a la traslación a lo visual de un argumento
recurrente en la literatura aversos iudaeos: el de la ecuación Iudas-Iudei que, ya desde San
Jerónimo o San Juan Crisóstomo, tendió a hacer de Judas figura emblemática del pueblo
hebreo (RODRÍGUEZ BARRAL, 2009, p. 119).

Como ainda discorre o autor, essa associação da figura dos Judeus com a de Judas é frequente
na Idade Média (idem, p. 119):

Así Rabanus Maurus al rechazar la cualidad de los judíos como descendientes de Abraham
(la habrían perdido por su incredulidad, de modo que los cristianos serían, por su fe en
Cristo, los actuales detentadores de tal condición) les niega el derecho a derivar su nombre
del de la tribu de Judá, para ponerlo en relación con el de Judas. Igualmente Guillermo de
Bourges en su Librum bellorum Domini sostiene que si hasta Cristo el nombre de los judíos
derivaba del patriarca Judá, a partir de la Pasión debe hacerse derivar de Judas: vocati sunt
a Iuda traditore (idem, p. 119).

Alisando a argumentação dos autores medievais sintetizada por Rodríguez Barral, podemos
compreender que os judeus perdem a sua herança patriarcal e passam a ser uma espécie de

1252
descendentes de Judas. Esta questão parece-nos ser justificada por dois pontos. Em um
primeiro ponto, os hebreus negam a graça de pertencerem ao povo de Deus não crendo em
Seu Messias, Aquele que veio cumprir a Aliança Divina em meio de Seu povo escolhido. Em
um segundo ponto, eles são qualificados como herdeiros da traição do avaro Judas. Judas é o
apostolo que trai Cristo por dinheiro (Mt 26, 14-16). É a avareza do Iscariotes que o leva a
cometer esse crime. Assim, os judeus são considerados como incrédulos e avaros, e, além
disso, deicidas. Essa relação com Judas corrobora na ideia dos judeus como portadores de
uma natureza cristocida, como descentes deste apóstolo. E, essa questão, revela-se como algo
muito importante na análise da obra em questão, uma vez que Judas e o pecado da avareza
recebem uma posição de destaque na representação do inferno que analisamos.

Iudas-Iudei na pintura retabular

A representação de Judas de maneira destacada no inferno é algo presente não somente na


obra que acabamos de citar, mas em outras pinturas retabulares do mesmo período. Em geral,
Judas é representado da mesma forma com o que descrevemos na nossa pintura e com as
mesmas conotações judaizantes. Dois painéis retabulares do mesmo autor da obra que
analisamos apresentam a mesma imagem de Judas no inferno. Um primeiro é o painel central
do Retábulo do Julgamento Final do acervo do Museu de Belles Arts de València (Inv. Nº
281). Neste painel, a figura principal é o Cristo tronado e envolvido por uma mandorla de
anjos e santos. Logo abaixo, os anjos trombeteiros chamam as almas que saem de seus
túmulos para o seu destino final. Focando-nos na representação do inferno que está do lado
direito do painel e, portanto, à esquerda do Cristo, vemos em meio a uma formação rochosa
uma sombria representação de Judas enforcado e envolvido a um grupo de almas. Seu rosto é
quase imperceptível, mas é possível verificar a presença de uma auréola negra em torno de
sua cabeça (o que faz um notável contraste com as auréolas douradas dos anjos e dos santos) e
que sua túnica seja em um tom vermelho.

O segundo é nomeado como Retábulo de almas com a Missa de São Gregório e é também do
acervo do Museu de Belles Arts de València (Inv. Nº 129/96). Ele apresenta em seu ático
(parte superior de uma estrutura retabular) a Coroação da Virgem pelas três Pessoas da
Santíssima Trindade. Logo abaixo, vemos o Cristo tronado e ladeado por santos e almas
salvas que estão dentro de uma espécie de muralha. Há um grupo de almas que está sendo

1253
conduzido aos Céus por anjos. Na parte inferior esquerda dessa imagem há uma representação
da Missa de São Gregório e na parte inferior direita (à esquerda do Cristo) vemos a
representação do inferno com a figura destacada de Judas enforcado.

Entretanto, essa última imagem apresenta Judas vestido com túnica amarela. Rodríguez Barral
ao analisar essa questão, em alguns retábulos do final da Idade Média, argumenta que:

El amarillo de sus ropas es generalizado. Tal circunstancia responde a una tradición que,
desde el siglo XIII, ha tendido a hacer de él un color en franco proceso de devaluación. Es
el color de los felones y mendaces. También el de los judíos y el de la sinagoga. En
consecuencia no debe sorprender que por lo general aparezca en los retablos que nos
ocupan vestido de tal guisa (RODRÍGUEZ BARRAL, 2003, p. 443).

Essa mesma argumentação pode ser mais bem compreendida na afirmação de Michel
Pastoureau:

Le jaune n'est plus guère la couleur du soleil, des richesses et de l'amour divin. Il est surtout
devenu la couleur de la bile, du mensonge, de la trahison et de l'hérésie. C'est aussi la
couleur des laquais, des prostituées, des juifs et des criminels. C'est enfin la couleur de la
jouissance. Le jaune c'est le mauvais or (....) Le jaune évoque la transgression de la norme
(PASTOUREAU, 1983, p. 69).

Percebemos aqui que a cor amarela da túnica de Judas tem uma forte conotação negativa.
Como vimos acima, a representação do enforcado na capela de Notre-Dame des Fontaines
tem a vestimenta da mesma cor. Em outra imagem de Judas que analisaremos nesse texto
Novamente veremos as conotações negativas desta cor no que se refere aos hebreus.

Função eucarística do retábulo e suas relações com a figura de Judas-Judeu

Propomos também que a presença da representação dos judeus no suporte retabular está
ligada à funcionalidade eucarística do retábulo. Apesar das imagens que acabamos de analisar
não apresentem diretamente uma profanação da Eucaristia, a retabílistica do Gótico tardio tem
um número significativo de representações de judeus profanando a hóstia consagrada. Essa
questão está ligada à concepção de realismo eucarístico que é ainda mais reafirmada com a
proclamação do dogma da transubstanciação em 1215 no IV Concílio de Latrão. Como
argumenta Espí Forcen (2009, p.7): “Si tras la consagración la hostia se convertía, al menos

1254
en sustancia, en el verdadero cuerpo y sangre de Cristo, los judíos podrían utilizarla para
infligir una vez más al Mesías los escarnios que había sufrido hasta su muerte”.

Para melhor entendermos esta questão, analisaremos um par de painéis proveniente da capela
de Corpus Christi de Vallbona de les Monges e que atualmente são conservadas no Museu
Nacional d’art de Catalunya (MNAC). Trata-se de um retábulo e um frontal produzidos para
o mesmo altar e que estão datados entre os anos de 1335-1345. O retábulo (nº de inv. 009920-
000) está dividido em sete ruas (divisão retabular no sentido vertical) e dois andares (divisão
retabular no sentido horizontal). Contudo, a rua central é formada por um único andar (como
evidente forma de destaque) e traz figurada uma representação da Santíssima Trindade unida
a uma espécie de ostensório que é centralizado por uma hóstia e que é sustentado por quatro
anjos. Essa representação amplia a concepção de realismo eucarístico, pois, a nosso ver, essa
imagem parece relacionar a espécie sacramental como uma presença física do próprio Deus
Trino.

Percebemos, igualmente, essa relação entre a concepção de realismo eucarístico nas demais
cenas deste retábulo. Ele traz cenas de alguns milagres eucarísticos o que reforça essa
questão. Há também uma representação da procissão de Corpus Christi no andar superior da
rua da extrema esquerda. Há também uma representação da Santa Ceia que está à esquerda do
painel central no andar inferior e é a única cena figurada ao mesmo tempo em duas ruas. Esse
destaque parece prestigiar a cena da Santa Ceia já que ela trata da instituição da Eucaristia
pelo próprio Cristo. Um outro elemento relevante (apesar de muito comum nas imagens de
Cristo portando a Eucaristia) é a hóstia ornamentada. Esse elemento está descontextualizado
da Ceia do ciclo da Paixão, porém parece-nos totalmente relacionado ao gesto litúrgico da
elevação da hóstia que acaba de ser consagrada para a adoração dos fiéis. Observando, logo
acima da representação da Santa Ceia, vemos no mesmo retábulo, um milagre que ocorre no
momento da elevação da hóstia, que nos parece ser uma primitiva imagem da Missa de São
Gregório. Assim, essa imagem, além de relacionar o Cristo à figura sacerdotal, corrobora a
concepção da repetição literal da Ceia de Cristo na celebração da Missa.

Além dessas representações, há nesse retábulo, cenas de profanações da hóstia por judeus. O
andar inferior das duas ruas da extrema direita representa cenas de profanação da hóstia.
Nestas duas imagens os judeus podem ser identificados pela barba e também pelo
característico traje que portam. Em uma primeira cena a hóstia é profanada com uma faca e na
segunda com uma lança. Em ambas as imagens a hóstia no qual os judeus desferem

1255
profanação sangram. Este elemento simbólico reafirma que a hóstia é o corpo real do Cristo
atribuindo à Eucaristia um forte realismo. Além de evidenciar um milagre eucarístico, o
sangue que verte das hóstias profanadas pode ser interpretado com conotações antissemitistas.
A natureza cristocida dos judeus é novamente elucidada nestas representações. Atacam
novamente ao Cristo através da profanação de seu verdadeiro corpo – a Eucaristia. A imagem
que apresenta o judeu profanado a hóstia com a lança é ainda mais singular para analisar essa
questão. Ela parece fazer referência à passagem do Evangelho de São João que alude ao
soldado que golpeia o Cristo morto com a lança (Jo 19, 34). Ainda que simbolicamente, essa
cena apresenta a concepção de realismo eucarístico e a profanação da matéria sagrada pelos
judeus que por sua natureza cristocida, e também por serem descendentes de Judas, repetem o
mesmo crime na hóstia de ferir o verdadeiro corpo do Salvador.

Essa mesma ideia antissemita unida ao realismo eucarístico pode ser visualizada no frontal (nº
de inv. 009919-000) deste par de painéis. Ainda que seja um frontal ele está divido no mesmo
esquema do retábulo anterior. Essa relação material é bastante importante para os estudos das
estruturas retabulares, uma vez que se acredita que o retábulo tenha sido, inicialmente, uma
elevação dos frontais (SERRA DESFILIS, 2010, p.15). A parte central desse painel representa
a imagem da Virgem com o Cristo, e pode ser também interpretada, além da evidente devoção
mariana, pela questão eucarística. As justificativas teológicas em torno do sacramento
eucarístico buscam reforçar a ideia de que a hóstia consagrada contém substancialmente o
mesmo corpo do Cristo que nasceu da Virgem. Da mesma forma, pode ser interpretada a cena
da anunciação que está localizada na parte direita inferior em relação à imagem da Virgem
com o menino. Maria é primeira serva que recebe o Cristo. Mais que isso, ela é escolhida por
sua virtude e seu reto comportamento. Além disso, as passagens evangélicas, especialmente as
lucanas, apontam que a bem-aventurança da Virgem está ligada à sua crença na vinda do
Salvador: “Bem aventurada aquela que acreditou, pois será cumprido o que o Senhor lhe
prometeu” (Lc 1, 45). Dessa forma, Maria é um modelo de perfeição cristã por acreditar. E
por crer ela recebe a graça inigualável de receber conceber o próprio Cristo. O cristão é assim
chamado a imitá-la. A graça milagrosa de receber o próprio corpo de Cristo requer como
consequência um reto comportamento cristão e, sobretudo crer como a Virgem. Essa questão
reforça também a imagem negativa em relação aos judeus, uma vez que eles são incrédulos do
ponto de vista dos cristãos. Eles negam a encarnação do Cristo e continuam negando a vinda
do Messias ao não acolherem o Cristo na Eucaristia.

1256
A mesma relação com o realismo eucarístico pode ser entendida na cena da Epifania que está
localizada à esquerda do painel central no andar inferior. Vemos os três personagens com seus
presentes sendo que um deles aponta para a imagem do painel central, como que convidando
o espectador a adorar o Cristo. Esta cena, também, parece revestir-se de um sentido
simbólico, pois o espectador é chamado a adorar aquele que está acima, o Cristo. E esse
Cristo simbolizado pela imagem está no altar, presente corporal e verdadeiramente no pão
eucarístico. Podemos compreender essa questão pensando na materialidade desse painel. Por
se tratar de um frontal, ele estava incrustado à frente da mesa do altar, e por isso, a nossa
hipótese é plausível. Podemos, ao mesmo tempo, propor uma análise no fato dos presentes do
Reis Magos. O verdadeiro cristão é convidado a presentear com sua credulidade o Cristo que
se faz presente em carne naquele altar. Ao contrário dos incrédulos judeus, como veremos,
que se propõem a vendê-lo, e assim, imitar o nefasto crime do avarento Judas.

Nas cenas localizadas na parte inferior direita do espectador podemos relacionar a profanação
da hóstia à avareza. Na da extrema direita vemos um judeu que porta uma bolsa de dinheiro.
Essa imagem parece ser precedida pela cena localizada do seu lado esquerdo. Nela vemos um
homem com uma hóstia na mão esquerda e com a mão direita sobre uma mesa com dados.

Sobre essas cenas há um estudo de Marisa Melero Moneo, da Universidade de Autônoma de


Barcelona. Conforme a autora, ainda que provavelmente, é possível compreender a primeira
cena como um homem que pretende vender a hóstia a um credor judeu para saldar uma dívida
de jogo (MELERO MONEO, 2002, p. 35). Na imagem seguinte vemos um homem que
parece deter a outro (provavelmente judeu) que tem consigo a bolsa de dinheiro que
mencionados (idem, p.35). Ainda que não estejamos totalmente certos, uma vez que a imagem
está incompleta sendo impossível ver o fim dessa trama, parece-nos presumível uma relação
entre a avareza e a profanação da matéria sagrada através de uma provável compra que se
assemelha muito à traição de Judas.

Analisando ainda outra pintura retabular também do acervo do MNAC podemos ver a mesma
relação. Trata-se do Retábulo da Virgem (nº de inv. 015916-CJT), datado entre os anos de
1367-1381, que é divido em uma rua central onde vemos a imagem da Virgem com o Menino
ladeados por Santa Catarina de Alexandria e Santa Maria Madalena Mirófona e tendo aos
seus pés o provável comitente do retábulo. Acima, vemos o ático com a figura da
Crucificação. As quatro entre-ruas estão dividas em três andares e apresentam cenas da vida
de Maria e de Cristo. No que se refere à iconografia, como já discutimos acima, além da

1257
devoção mariana, esse retábulo apresenta a forte relação entre a Virgem e o sacramento
eucarístico. Mas, é a predela deste retábulo a parte que mais nos interessa nesta análise. Ela
está divida em cinco casas. Ela apresenta nas casas laterais cenas de milagres e de
profanações à Eucaristia. As casas laterais situadas à direita do espectador narram a cena de
uma profanação eucarística por parte de um Judeu, o que insere esta obra na temática que
tratamos. Um ponto bastante significante na nossa análise é cena central da predela deste
retábulo que representa uma Santa Ceia. O Cristo porta nessa imagem um cálice com uma
hóstia. Novamente vemos uma cena que nos parece propositalmente descontextualizada com
a última Ceia, mas relacionada a um gesto litúrgico.

A figura de Judas nessa imagem merece no nosso trabalho uma especial análise. Em primeiro
lugar ele porta um manto amarelo. Essa cor, conforme a argumentação que já apresentamos
tem uma clara relação com a imagem negativa dos judeus e insere Judas como um
representante do povo hebraico. Igualmente, o característico nariz que deforma a sua
fisionomia é mais um indício das menções negativas que parte da iconografia gótica infere
aos judeus. Analisando ainda a expressão deste comensal, propomos que ela é endemonizada,
pela presença de um diabo ao lado de Judas que tem semelhante fisionomia facial. Essa
representação, além de evidenciar a relação entre Judas e o demônio, pode também relacionar
o próprio povo judaico como semelhante e influenciável pelo diabo. Do mesmo modo, esse
demônio parece orientar Judas a colocar a mão no prato que está no centro dessa imagem.
Cremos que essa cena está relacionada à passagem bíblica de São Mateus “vai me trair aquele
que come no mesmo prato que eu” (Mt 26, 23). Até mesmo o próprio animal que está nesta
bandeja parece apresentar uma ojeriza a Judas, e assim, aos judeus que se atrevem a
compartilhar da ceia de Cristo com o fim de traí-lo.

Parece-nos bastante provável, analisando esse conjunto imagético, uma relação entre os
judeus e a figura de Judas elucidada pela motivação da traição do Iscariotes: a avareza. Judas
trai o Cristo e o entrega aos judeus em troca de dinheiro. Ainda que essa afirmação possa ser
discutida do ponto de vista teológico, ela parece estar presente, ao menos no imaginário
medieval. Judas é a pessoa que trai o Cristo por sua avareza. Mas, além desses elementos, o
suporte retabular nos apresenta outra questão:

Los retablos que representan la profanación de la hostia condenan abiertamente al


prestamista judío. El hecho de que se le presente utilizando estratégicamente su, ya de por
sí mal vista, gestión comercial con el fin de provocar abusos sobre el cuerpo de Cristo, no
contribuía precisamente a su integración en la sociedad. (…). Estas pinturas sobre la

1258
profanación de la hostia unían inexorablemente una vez más a los judíos con los pecados de
la usura y de la avaricia (ESPÍ FORCEN, 2009, p. 7).

Pela argumentação do autor e mediante nossas análises podemos concluir que a imagem do
judeu está pejorativamente associada à questão da avareza. Com efeito, parte da iconografia
gótica no suporte retabular produz uma imagem significantemente negativa do povo hebreu
por considerá-lo avaro. E, no suporte retabular, além da associação a imagem de Judas essas
representação também pode ser notada pela profanação da Hóstia, o que amplia a visão
negativa do povo judaico.

Considerações finais

Ainda que o nosso painel não apresente diretamente cenas de profanação à hóstia, essa
questão também nos parece bem pertinente mediante as nossas análises da retabilística
medieval gótica. Judas, como representantes dos judeus carrega consigo um amálgama de
valores simbólicos, o que pode nos atentar a mais uma motivação dessa representação na obra
do MASP: a questão eucarística.

Essa questão pode ser mais bem compreendida ao debruçar-nos na iconografia do inferno da
nossa obra. Percebemos pelos elementos presentes nessa imagem uma crítica clara à busca de
bens materiais e o fim último das almas que cometem esse pecado. Essa censura não está
somente ligada aos judeus. Afinal, a pintura em evidência apresenta um forte destaque ao
grupo clerical pela presença de um papa, um cardeal e tonsurados nas chamas infernais, além
de leigos. Contudo, a representação de Judas enforcado, que pelo paradigma de Iudas-Iudei
tem uma evidente relação com o povo judaico, parece fazer-nos atentar a uma questão: a
equiparação dos cristãos pecadores (com destaque aos avarentos) ao Judas-judeu que é
incrédulo, traidor, avarento, profanador e, sobretudo um inimigo comum da cristandade. Essa
mesma questão associada ao suporte da imagem em evidência pode nos atentar a concepções
eucarísticas. O pecador é aquele que, assim como o incrédulo judeu, profana o Corpo de
Cristo, não somente no sentido da Hóstia consagrada, mas ao Corpo Místico da Igreja.

Assim, pois, considerando a Eucaristia como um elemento de coesão da Cristandade e a


figura de Judas como representante emblemático do povo judeu, podemos, ainda que
parcialmente, entender o papel dessa representação neste painel. Trata-se de um esforço
eclesiástico de se opor às atitudes contrárias à Ortodoxia da Igreja associando os pecadores à

1259
imagem de Judas que traz amalgamada a figura do judeu, fortemente marcada por visões
negativas. A busca de uma padronização de comportamentos por parte do clero insere o grupo
de pessoas do qual a Igreja incorre pecado em uma retórica visual que, além de condená-los à
danação eterna, compara-os aos personagens a que a cristandade imputa ódio e intolerância.

Referências

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. São Paulo: Globo, 2006.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas: São Paulo, 1992.

ESPÍ FORCEN, Carlos. Érase un hombre a una nariz pegado: la fisonomía del judío en la
Baja Edad Media. Congreso Internacional de Imagen y Apariencia (2008). Congresos
Científicos de la Universidad de Murcia. Múrcia: EDITUM, p. 1-15, 2009.

MARQUES, Luiz. Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo:
Prêmio, 1998.

MELERO MONEO, Marisa. Eucaristía y polémica antisemita en el retablo y frontal de


Vallbona de les Monges. LOCVS AMŒNVS, v. 6, nº1, Barcelona, p. 21-40, 2002.

PASTOUREAU, Michel. Formes et couleurs du désordre: le jaune avec le vert. Médiévales,


v. 1, n°4, 1983. p. 62-73, 1983.

RODRÍGUEZ BARRAL, Paulino. La imagen de la justicia divina. La retribución del


comportamiento humano en el más allá en el arte medieval de la Corona de Aragón.
Orientação de Joaquín Yarza Luaces. Tese (Doutorado em Arte). Universidad Autónoma de
Barcelona, Barcelona, 2003.

__________, La imagen del judío en la España Medieval. El conflicto entre cristianismo y


judaísmo en las artes visuales góticas. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2009.

SERRA DESFILIS, Amadeo. La madera del retablo y sus maestros. Talla y soporte en los
retablos medievales valencianos. Archivo de Arte Valenciano, v. XCI, nº 1, Valência, p. 13-
37, 2010.

1260
1261
O Venerável Beda e o combate ao paganismo na Grã-Bretanha do
século VIII
Itajara Rodrigues Joaquim1

Introdução

Devido às diversas possibilidades geradas a partir do referido tema, o trabalho desenvolvido


encontra-se ainda em estágio inicial. Com o abandono dos Romanos do território das Ilhas
Britânicas e a chegada da migração Anglo-Saxônica nos séculos V e VI os costumes e as leis
romanas enfraqueceram. O povo Anglo-Saxões tinha seus costumes, lendas, religiões e cultos
pagãos. Mas um clero cristão que já havia sido constituído e tinha a necessidade de combater
o paganismo e obter a conversão desse povo ao cristianismo. Venerável Beda, monge de
origem saxônica nascido em 672, devotou sua vida ao cristianismo, em um de seus escritos
mais importantes o livro Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, onde ele trata desde a
chegada dos romanos no século V até as condições do clero no século VIII. A forma com que
Beda descrevia os fatos ocorridos, ele não queria apenas contar as histórias eclesiásticas de
sua nação, ele escreveu com o intuito de ajudar os outros clérigos a combater o paganismo e
obter a conversão do povo.

Na parte sul das Ilhas Britânicas houve uma forte romanização econômica e cultural, o latim
era normalmente utilizado em documentos romanos civis. A grande maioria da população
falava o idioma Britânico, mas uma pequena elite Romano-Britânica falava o latim, que logo
depois da retirada do Império Romano deixou de ser utilizado. Já nas partes norte e ocidental
a romanização teve mais o caráter militar.

O Império Romano retira seus exércitos por volta do ano de 410, e encerra sua administração
provincial. Não podemos afirmar se os Romanos teriam alguma pretensão de retornar, se
tinham não o fizeram deixando para traz apenas os rastros de sua ocupação:

(...) villas were abandoned, urbanism had virtually ended, the countryside was partly
abandoned around the old military focus of Hadrian’s Wall, (…) and all large-scale artisan
production ceased. In no other part of the empire was this economics simplification so
abrupt and total, and it must reflect a sharp social crisis as well. (WICKHAM, 2010, p151).
1
Graduando pela UFMT. Bolsista de Iniciação Científica Voluntária. Membro do GP Vivarium. Orientador:
Prof. Dr. Marcus Cruz. Contato: itajara1@hotmail.com.

1262
De acordo com alguns escritos do período, no ano de 500 as Ilhas Britânicas estavam
divididas entre pequenos governantes, também chamados de reinos. “A patchwork of tiny
polities had replaced the Roman state. In eastern Britain there was by now a similar set of
micro-kingdoms ruled by immigrant Anglo-Saxons” (WICKHAM, 2010, p151). Eles
chegaram às Ilhas Britânicas, a maioria vindos da Saxônia, norte da Alemanha, e falavam uma
varação de idiomas Saxônicos, tinham grandes habilidades em trabalhos manuais, construíam
barcos de grande qualidade e utilizavam os metais e as pedras preciosas para suas armas e
joias. Esses imigrantes também traziam com eles toda sua cultura, forma de governo e
religião. Eles formavam uma sociedade,

(...)uncontrolled by any occupying military power, and knowing nothing of any universal
system of law, taxation or schooling, the security of the individual did not lie within any
conception of a state, but within the much smaller unity of the kin. Any moment away from
fragmentation towards large political entities had its roots in the war band held together by
a successful leader (…) (BLAIR, 1995, p. 31).

Os Anglo-Saxões tinham uma ideia muito diferente de lealdade em relação aos Romanos. Na
ocupação romana a religião cristã foi utilizada como forma de demonstrar lealdade ao Império
Romano, mas para os Anglo-Saxões lealdade era um conceito pessoal sem uso de nenhum
conceito abstrato.

Nos reinos que ficavam na parte em que havia sofrido menos com a romanização, como
Dyfed e Gwynedd, conseguiram com mais facilidade se ligar à forma de vida dos Anglo-
Saxões, e ficando maiores e mais forte, pois tinham uma estrutura social parecida. Não
dependiam do estado Romano e mantinham forte ligação familiar e pessoal, forte senso de
lealdade, uma força militar ligada a uma autoridade local. “Começavam a transformar em
reinos as sociedades que não tinham conhecido até então qualquer sistema estatal” (BROWN,
1999, p, 215). Enquanto as sociedades Romano- Britânicas que mantinham uma cultura cristã,
regras e aspectos culturais Romanos, estavam cada vez mais se distanciando do seu passado e
ficando paralela a cultura Anglo-Saxônica.

Os reis e guerreiros procuravam dar legitimidade ao seu poder e superioridade em suas


origens distantes. “Instalados em fortes romanos ao longo do mar do Norte, os reis da Ânglia
Oriental afirmavam descender, simultaneamente, do deus da guerra Odin e de César”
(BROWN, 1996, p, 215). Em algumas regiões o Cristianismo Romano havia se transformado

1263
em um Cristianismo Céltico, onde eles apenas agregavam o deus Cristão a seus vários outros
deuses.

Em certas regiões do Ocidente da Britânia é possível que os saxões tenham recebido o


Cristianismo dos príncipes romano-britânicos, ou até do seu próprio campesinato, também
ele romano-britânico, para quem o Cristianismo continuara a ser uma religião popular
(BROWN, 1999, p, 215).

Essa mistura de religiões acontecia onde a cultura Romano- Britânica, pois, Peter Blair fala
que,

(...) the survival of Romano-British influences upon Anglo-Saxon England, here at least is
one sphere in which the break was absolut. In those parts of Britain which had been settled
by the English before 597 Christianity was totally obliterated and was replaced by
Germanic paganism. Christianity survived only in those parts of the country which lay
beyond the range of Anglo-Saxon settlement (BLAIR, 1995, p, 42).

A Missão Romana

Os governantes Saxões recebiam visitas de bispos e monges que vinham do outro lado do
oceano, que tentavam uma aproximação do povo de cultura pagã, mas que geralmente não
obtinham êxito, pois não eram vistos com bons olhos por esses lideres.

No ano de 597, Gregório I enviou para a Bretanha uma missão para tentar restaurar a ordem
cristã.

(...) os bispos metropolitanos voltariam aos antigos centros romanos de governo em


Londres e York, cada um assistido por doze colegas para as cidades menos importantes. Ao
chegar a Kent, Agostinho e o seu grupo de quarenta monges encontraram uma Britânia
muito diferente. Encontraram um rei saxônico decidido a utilizar todos os recursos –
incluindo uma nova religião – para manter o seu próprio estilo de senhorio local (BROWN,
1999, p, 224).

Por mais que os romanos já tivessem o conhecimento de guerras e da fome, em uma de suas
cartas para Agostinho, Gregório I os encoraja em seguir a missão, “they were not let
themselves be deterred by the difficulties of the journey or by the tongue of evil-speaking
men" (BLAIR, 1995, p, 49).

1264
O rei em questão era o Etelberto, foi casado com uma princesa franca cristã, Berta, durante
quinze anos, e uma das condições impostas para que houvesse o casamento seria de que a
noiva após a cerimônia pudesse continuar a exercer as práticas cristãs. No momento os
francos não estavam interessados na conversão de Etelberto ao cristianismo, pois não queriam
outro rei cristão. Mas com a chegada dos missionários romanos ele viu a conversão ao
cristianismo com uma nova perspectiva, para ele

(...) receber o batismo de Roma era completamente diferente. Etelberto podia contactar com
esse centro imaginado do mundo cristão latino, tranquilizadoramente distante, e podia até
passar por cima de Roma e procurar o reconhecimento pelo próprio Imperador romano
(BROWN, 1999, p, 224).

Gregório I, na tentativa de conversão do rei, mantinha contato com Etelberto e muitas de suas
cartas eram acompanhadas de presentes, honrarias ao rei e até a compara-lo com Constantino.
Em uma de suas cartas Gregório chegou a dizer,

(…) edify the manners of your subjects by the great purity of your life, with words of
exhortation, fear, fair, speech, correction and shewing example of well-doing: that you may
find Him to be your rewarder in haven, whose knowledge and name you make to be
enlarged upon the earth. For He will Himself also make your name the more famous unto
posterity, whose honour you seek and maintain among the nations (BEDE, 1994, p, 171).

Mesmo com todas as honrarias feitas ao rei, ainda existia uma insegurança em relação aos
visitantes, principalmente em ambientes públicos. Etelberto agia de forma cautelosa para que
o ânimo dos súditos, ainda fieis à religião pagã, não se exaltassem. Nem com o batismo do rei
a situação melhorou, eram tratados como “pessoas valiosas, mas potencialmente perigosas,
que seria melhor manter sob vigilância perto da corte régia” (BROWN, 1999, p, 225). Por
mais que Agostinho tivesse a permissão de fazer suas pregações e pequenas intervenções, foi
aconselhado por Gregório a ser cauteloso em suas ações e não tomar nenhuma medida
drástica, como por exemplo, Gregório mandou que os templos pagãos não fossem destruídos,
e que os sacrifícios ao invés de serem feitos como oferenda ao demônio, agora seriam
utilizados de uma maneira diferente.

The temples were by no means to be destroyed, but only the images which they housed. If
the temples were well built they were to be consecrated to the service of God so that the
people might continue to worship in familiar places. They should not be deprived of their
customary sacrifices of oxen, (…) now converted to Christian use, and celebrate with

1265
religious feasting, their animals no longer sacrificed to devils, but killed for their own food
with thanksgiving to God.(BLAIR, 1995, p, 63).

Além dessas medidas cautelosas para que o povo pagão fosse se acostumando aos poucos
com os costumes e regras cristãs, Etelberto publicou as Leis de Edelberto, fazendo com que se
aproxima-se da figura de Clovis, mas suas leis “não foram escritas em latim, mas em anglo-
saxão. Trata-se de uma clara indicação de firmeza de objetivos e capacidade de adaptação”
(BROWN, 1999, p, 226).

Posteriormente algumas autoridades demoraram a se converter ao cristianismo, mas quando


se convertiam realizavam grandes cerimônias. “Realizaram – se baptismos em massa e
predicas – em certa ocasião durante 36 dias a fio (...)” (BROWN, 1999, p, 227).

Mas o relacionamento entre o povo pagão e os grupos religiosos cristãos, não continuou em
um crescente avanço. Conforme os reis que protegiam missionários morriam ou saiam do
poder, os religiosos também acabavam por cair junto com eles.

Nos reinos saxônicos o Cristianismo fora apenas tolerado e, durante mais de uma geração,
os seus representantes foram cuidadosamente vigiados por reis e por nobres que sabiam
exactamente o que queriam de uma religião estrangeira. (BROWN, 1999, p 228).

Todos esses e muitos outros fatos sobre a cristianização da nação inglesa, foram narrados por
Beda em uma de suas publicações mais importantes o Historia Ecclesiastica Gentis
Anglorum.

O Venerável Beda

Beda, conhecido também como Venerável Beda, monge de origem saxônica nasceu
aproximadamente no ano de 672, não se sabe ao certo seu local de nascimento, é provável que
tenha sido aos arredores de Wearmouth e Jarrow. Aos sete anos de idade foi entregue por seus
pais ao abade Benedict, para ser criado no mosteiro de Wearmouth e posteriormente foi
encaminhado para o mosteiro de Jarrow com o abade Ceolfrid. Não se tem nenhuma
informação a respeito de quem foram seus pais,

(…) but we may infer that they were Christians and, in view of their association with such a
man as Benedict Biscop, probably from the rank of the well-born. At this time it was a
common practice for parents who were anxious for their children to be educated, to entrust

1266
them to the care of a monastery at an early age, but such a step did not necessarily imply
lifelong devotion to monasticism, still less any desire to be rid of an unwanted child
(BLAIR, 1995, p, 5).

Passou toda sua vida no mosteiro, se dedicou aos estudos e às orações. Foi um grande
estudioso de sua época, conhecia latim, grego, filosofia, matemática, teologia, música e
hebraico. Ele dividia seu tempo entre seus maiores interesses, “I wholly applied myself to the
study of Scriptures (…) I always took the delight in learning, teaching and writing” (BEDE,
1994, p, xiv). No ano de 691 ele é ordenado como diácono e em 702 como padre. “Bede died
in 735, a few years into his sixties” (GOFFART, 2005, p, 241). Ele viveu durante um período
considerado calmo de sua sociedade,

Had he been born half a century earlier Bede might well have found himself involved
directly in some of the many wars arising from the attempts of ambitious rulers to extend
their boundaries or to win supremacy over neighbours, and had he died a little more than
half a century later he would have witnessed the first Viking attack on his own monastery
(BLAIR, 1995, p, 5).

Ele também era muito bem relacionado, a primeira pessoa a ler o manuscrito de sua obra
Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, para fazer correções e apontamentos, foi o próprio
rei da Northumbria Aldfrith, homem com grande conhecimento.

Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum

Em seu livro Beda narra a história eclesiástica da nação inglesa, desde a chegada dos
Romanos até seu tempo. Para conseguir escrever eventos do qual ele não havia participado,
utilizou acervo de livros disponível na biblioteca de seu mosteiro, boa parte trazida de Roma
pelo abade Ceolfridg, e livros emprestados de outros monastérios. Também fazia uso de
correspondências do período, mas “it will be never possible to trace the growth of his
historical knoledge in detail or to determine exactly what material were availeble to him ar
particular times” (BLAIR, 1995, p, 71).

Beda afirmava a veracidade de todos os fatos cuidadosamente descritos com seu poder de
dramaticidade em seu livro, “I would not that my children should read a lie” (BEDE, 1994, p,
xv). Outro fator muito importante para ele era a cronologia dos acontecimentos, tanto que sua
obra é dividida em cinco livros, o primeiro se inicia com a chegada dos Romanos e um

1267
pequeno apanhado histórico da igreja britânica indo até a chegada de Agostinho e encerra
com a morte de Gregório I. O segundo livro inicia com um tributo a Gregório I, narra a
tentativa de união entre as igrejas Britânicas e Irlandesas, e termina com a morte do rei Edwin
da Nortumbria. O terceiro livro tem início com a história de Oswald e Oswy e termina com a
consagração de Wighard como arcebispo de Canterbury. O quarto livro relata a consagração
de Teodoro e os passos que ele tomou para organizar a igreja e termina com a morte de
Cuthbert. O quinto e último livro inicia com a missão Frisia e termina com uma visão geral
das condições da igreja no ano de 731. “Bede chooses important events which Mark disstinct
stages in the progress of the English Church, the main theme round which the different
digressions are grouped. His style is clear and natural, and a spirit of even-minded fairness
animates the whole work” (BEDE, 1994, p, xxi).

Considerações finais

Beda era influenciado por sua profunda e devotada fé cristã. Ele escreveu os fatos não apenas
para preservar a história eclesiástica de seu povo, mas com o intuito de ajudar os outros
clérigos a combater o paganismo, que estava ameaçando o cristianismo novamente em 731, e
obter a conversão do povo, tanto que o texto foi originalmente escrito em latim, idioma
utilizado pelo clero e não no idioma comum. Ele gostaria que suas narrativas fossem
utilizadas em pregações, mostrando tudo que o cristianismo havia passado para combater o
paganismo, e que agora os Britânicos estavam instruídos na fé cristã, eles não poderiam
continuar a persistir em seus erros antigos.

Referências

BEDE. Historical Works. Vol I,Vol II. Ecclesiastical History of the English Nation. London:
Harvard University Press, 1994.
BLAIR, Peter Hunter. The World of Bede. New York: Cambridge University Press, 1995.
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. 1ª edição. Lisboa: Editorial
Presença, 1999.
GOFFART, Walter. The Narrators of Barbarian History. (A.D 550-800).Indiana: University
of Notre Dame Press, 2005.
WICKHAM, Chris. The Inheritance of Rome. A History of Europe from 400 to 1000.London:
Penguin Books, 2010.

1268
1269
Sobre a controvérsia entre Martim Lutero e os judeus na reforma
do século XVI
Marcos Jair Ebeling1

Introdução

Pesquisar acerca da (in)tolerância religiosa é primordial em tempos de pluralidade religiosa.


Há que se ter claro, todavia, que o desafio da convivência e relacionamento de diferentes
práticas religiosas não é contemporâneo. O texto a seguir se propõe a analisar um destes
momentos da história, especificamente os posicionamentos de Martim Lutero acerca do povo
judeu no contexto da reforma protestante do século XVI.

Martim Lutero escreveu dois textos principais acerca dos judeus: um primeiro de grande
simpatia; um segundo de grande antipatia. A pesquisa se propõe apresentar ambos os textos e
perguntar pelas motivações na mudança do pensamento em Martim Lutero.

Como forma de reflexão final o texto apresenta considerações da peça teatral de Lessing
“Nathan der Weise” (1779) e os posicionamentos da Igreja Luterana no Brasil e na Alemanha
acerca do relacionamento entre cristãos e judeus.

A controvérsia entre Lutero e os judeus: características do contexto histórico

Os escritos de Lutero acerca do povo judeu tem um contexto histórico definido que,
brevemente, queremos analisar. Martim Lutero está profundamente envolvido com os
acontecimentos e debates teológicos do movimento da reforma. Os embates teológicos com os
papistas são de grande monta e, entre outros argumentos, consideram que a pregação e
interpretação do Evangelho é feita de forma equivocada pelos papistas. A simpatia inicial de
Martim Lutero para com o povo judeu está inserida neste contexto: como os judeus podem
acreditar em tão falha pregação, como esta feita pelos papistas? Os papistas estão afastados da
verdade bíblica e por isso, com razão, os judeus não são atraídos ao evangelho. Ou seja, a

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP, bacharel em Teologia pela EST/São Leopoldo, especialista
em Ética, Cidadania e Subjetividade pela EST/São Leopoldo. Bolsista CAPES/PROSUP. Contato:
marcos.ebeling@luteranos.com.br.

1270
primeira constatação não é um elogio ao povo judeu propriamente, mas uma crítica aos
papistas e seu jeito de conduzir a igreja cristã (ALTMANN, 1994, p. 261-263, apud Weimarer
Ausgabe, 11, 314-316).

Há que se considerar também que a controvérsia de Lutero com os judeus não é única na
história do povo judeu. Em sua caminhada histórica há uma sucessão de acontecimentos que
fizeram com que este povo vivesse situações de opressão, perseguição, preconceito e morte.
Altmann (1994, p. 259) afirma que “Uma boa parte desse sofrimento foi infligida por cristãos
e em nome de valores cristãos, quando não em nome de Deus e do próprio Cristo.” A
acusação principal é a de “terem feito verter o sangue de Cristo” (LIENHARD, 1998, p. 226).

Por um longo período o povo judeu, especialmente na diáspora, contou com a proteção dos
imperadores que os consideravam seus súditos e por declarações papais. Esta proteção
imperial sofre mudanças e se fragiliza a partir do século XII, quando os judeus são expulsos
da Inglaterra (1290), da França (1294) e da Espanha (1492 e 1496). Nesta época também o
império Romano-Germânico sofre uma divisão territorial, fragilizando-se esta proteção
porque diminui o alcance imperial. O povo judeu é expulso, em 1499, de Würzburg,
Mecklenburg, Magdeburg, Nüremberg, Esslingen e Ulm. “Na época de Lutero, Worms,
Frankfurt e Praga eram as únicas grandes cidades do Império onde ainda eram tolerados”
(LIENHARD, 1998, 226).

Por outro lado, a religião judaica também experimentou um despertar. Por um lado a própria
situação de perseguição contribui para isto. Por outro, a idade média vive um tempo de
retorno às fontes: o judaísmo e o humanismo contribuem muito neste sentido. No meio
judaico surgem movimentos escatológicos que vão ganhando espaço e a vinda do Messias é
marcada para o ano de 1503. Os judeus se preparam para esta vinda com jejum (LIENHARD,
1998, 227).

Além da perseguição e do retorno às fontes, Lienhard (1998, p. 232) considera que também o
luteranismo emergente do início do século XVI foi fator de fortalecimento e esperança da
religião judaica. O movimento da reforma havia renovado o embasamento bíblico,
relativizado o poder da igreja, da inquisição, do direito canônico e rejeitado o culto à virgem e
aos santos. Juntos criaram um ambiente de expectativa que, na opinião do povo judeu,
“anunciavam que o Messias iria aparecer e que Israel retornaria a seu antigo esplendor”
(LIENHARD, 1998, 232). Os escritos de Lutero, favoráveis ao povo judeu, endossavam este

1271
sentimento. As condições eram tão favoráveis e a expectativa messiânica tão acentuada que
“Em certas partes da Alemanha e da Polônia, ocorreu um certo proselitismo judeu, buscando-
se converter os cristãos às concepções judaicas ou, pelo menos, fazê-los valorizar as crenças
judaicas” (LIENHARD, 1998, p. 232).

Se por um lado o movimento da reforma encorajou o movimento judaico, mesmo


inconscientemente, por outro Lutero sofreu com mais uma crítica para além dos temas que já
estavam em debate: foi acusado de conivência com o povo judeu e de encorajá-lo em sua
infidelidade a Deus (LIENHARD, 1998, p. 233).

As manifestações de Lutero acerca dos judeus: o primeiro texto2

“Que Jesus Cristo nasceu judeu” (1523) é o principal texto de Martim Lutero nesta primeira
fase do seu pensamento. A ideia central do texto é: a crítica aos papistas pela forma como a fé
cristã foi ensinada aos judeus; a esperança de que o correto ensino do Evangelho e a vivência
do amor cristão pelos cristãos atrairá o povo judeu à fé cristã: “Tenho a esperança de que, se
lidarmos amigavelmente com os judeus, ensinando-os de maneira límpida a partir da Escritura
Sagrada, muitos se tornarão verdadeiros cristãos, retornando à fé de seus pais, profetas e
patriarcas (LIENHARD, 1998, p. 231, apud Weimarer Ausgabe 11, 314, 28-315, 24).

Esta ideia central é desenvolvida pelos argumentos (cf. ALTMANN, 1994, p. 261-263, apud
Weimarer Ausgabe, 11, 314-316):

a) Lutero se dirige aos judeus apontando para o fato de Cristo ser judeu, nascido de uma
virgem. No tocante à carne e sangue os judeus estão mais próximos de Cristo do que as
demais pessoas;

b) A missão de Cristo foi a de atrair os judeus à fé cristã. Esta é também a missão de Lutero.
Ele acusa o papa, os bispos, os sofistas e os monges de praticar um cristianismo que, além de
não convidar, afasta os judeus. Mesmo os que aderiram à fé cristã permanecem judeus sob o
manto cristão. É hora de ensinar-lhes corretamente o Evangelho. Reside aqui a esperança de
que pelo Evangelho redescoberto, o povo judeu venha (pelo menos alguns) a acolher a Cristo;

2
Lutero manifestou-se várias vezes acerca dos judeus nesta primeira fase. Para delimitação deste texto vamos
nos ater ao texto “Que Jesus Cristo nasceu Judeu”, de 1523.

1272
c) Lutero anima as pessoas a lidar amavelmente com o povo judeu, assim como os apóstolos
lidaram gentilmente com os gentios. Foi o evangelho do amor e a postura gentil dos apóstolos
que atraíram os gentios à fé. Que assim seja da parte dos cristãos para com os judeus;

d) praticar com os judeus a lei do amor cristão: acolhe-los amigavelmente, deixar que
desenvolvam e assumam uma profissão, deixar que trabalhem e convivam entre os cristãos. É
nessa convivência que os judeus podem ver a “doutrina e vida cristãs”.

Esta simpatia, porém, não traz em si nenhuma concessão teológica. Lutero manifesta ciência
da suposta acusação de presunção contra os judeus (cf Romanos 2 e 3) que, pelo fato de serem
descendentes dos patriarcas, estariam livres do juízo de Deus. Lutero admite que o engano
deles consiste em “fazer-se um Deus que faz acepção de pessoas. [...] Preferindo-se aos
demais, em virtude de sua sabedoria e santidade [...] eles têm, da mesma forma, a presunção
de pensar que Deus os elegerá” (LIENHARD, 1998, p. 228, apud Weimarer Ausgabe, 56,
199, 12).

As manifestações de Lutero acerca dos judeus: o segundo texto3

A partir do ano de 1530 as manifestações de Lutero acerca dos judeus ficam mais ásperas.
Expressam incompreensão e revolta. O principal texto é “Acerca dos judeus e de suas
mentiras”, de 1543, objeto de nossa pesquisa. No texto Lutero expressa:

a) desânimo acerca de uma possível conversão dos judeus4 e se indigna com o fato de cristãos
estarem se encantando com o judaísmo. Oferece resistência teológica ao jeito do judeu: “Eles
pretendem ser povo de Deus através de seu fazer, obras e ser exterior, não por pura graça e
misericórdia, como, afinal, todos os profetas e os verdadeiros filhos de Israel tiveram que
fazer” (ALTMANN, 1994, p. 263, apud Weimarer Ausgabe, 53, 417).

b) Lutero faz uma defesa da fé cristã ao analisar teologicamente as – pretensas – difamações


do povo judeu contra os cristãos, Jesus e Maria. Escreve Leinhard (1998, p. 235):

3
Nos anos de 1542/1543 Lutero escreve três tratados contra os judeus: “Acerca dos judeus e de suas mentiras”
(objeto de nossa pesquisa), “Acerca de Shem Hamphoras e da linhagem de Cristo” e “Acerca das últimas
palavras de Davi” (cf LIENHARD, 1998, p. 235).
4
“Pois quem escuta a palavra de Deus por 1500 anos e sempre diz: eu não quero conhecê-la, a este o
desconhecimento voluntarioso se torna uma péssima desculpa,”. LUTHER, M. 1543, p. 96. (tradução livre).

1273
No plano teológico, Lutero julgou necessário defender a pessoa de Jesus Cristo, em
particular face a certas tradições judaicas, as Toledoth Jeschu, que qualificavam Jesus de
mágico e se voltavam com escárnio para as considerações cristãs relativas à concepção e ao
nascimento de Jesus. Combateu também uma explicação dos milagres de Jesus, segundo a
qual ele teria utilizado, de maneira mágica, o nome gravado na pedra sobre a qual
repousava a arca da aliança. Lutero tentou mostrar que a caminhada de Jesus tinha sido
profetizada pelo Antigo Testamento, em especial que a sua morte substitutiva podia se
apoiar em Isaías 53. Junto com os pais da Igreja, tais como Atanásio e Agostinho, procurou
fundamentar o dogma trinitário num conjunto de passagens bíblicas, em particular
veterotestamentárias. E Lutero sublinhou a origem davídica de Jesus, a qual os judeus
colocavam frequentemente em questão.

c) Lutero defende a unidade religiosa do movimento da reforma;

d) Lutero vai ao ataque. Se pergunta sobre o que os cristãos devem fazer “com esse povo
amaldiçoado dos judeus? [...] Não podemos apagar o inextinguível fogo da ira divina [...] nem
converter os judeus” (ALTMANN, 1994, p. 263, apud Weimarer Ausgabe, 53, 522). E para
evitar que o fogo da ira divina se volte contra os cristãos sugere ações práticas aos príncipes. 5
E fecha o assunto dizendo: que “ninguém seja misericordioso ou bondoso nesse particular,
pois estão em jogo a honra de Deus e a salvação de todos nós”, pois “devemos permanecer
puros da blasfêmia dos judeus, não participando dela, devemos estar separados, devendo eles
ser banidos de nosso território. Que cogitem, então, de [chegar à] sua pátria” (ALTMANN,
1994, p. 264-265, apud Weimarer Ausgabe, 53, 523-526, 538).

Considerações que auxiliam a dirimir animosidades na compreensão do segundo texto

As considerações a seguir querem contribuir na compreensão do texto em seu contexto.


Podem diminuir tensões, mas jamais tirar a gravidade das palavras de Lutero:

a) Altmann (1994, p. 266) considera que a reflexão de Lutero tem caráter teológico,
estabelecendo diferença ao que hoje é chamado antissemitismo. Defender uma ideia teológica
não é a mesma coisa que ser contra um povo. Reconhece, todavia, que “do ponto de vista dos

5
As recomendações práticas contra os judeus são sete: incendiar as sinagogas; danificar as casas; tirar-lhes os
livros de oração; proibir aos rabinos o ensino; proibir o acesso às estradas, pois não produzem nada na terra;
pegar de volta tudo que roubaram por ganância; providenciar ferramentas de trabalho para os jovens fortes a fim
de vencer-lhes a preguiça. LUTHER, 1543, p. 93-95 (tradução livre).

1274
sofredores – no caso as vítimas judaicas, ao longo da história – não faz diferença decisiva se a
perseguição que sofrem é causada por motivos raciais ou religiosos”;

b) Liendhard (1998, p. 236-237) assegura que Lutero tinha uma linguagem dura e agressiva
com todos que eram considerados heréticos e que sua fala não teve reflexos imediatos. As
autoridades políticas tinham critério próprio de discernimento e os judeus continuaram a ter
seu papel político e social no império romano-germânico. Porém, é necessário reconhecer que
o debate teve dois desdobramentos: 1) à época passou do mundo acadêmico ao popular e ali
alimentou animosidades que já existiam; 2) Altmann (1994, p. 265) afirma que a “ideologia
nacional-socialista na Alemanha de pós-1933, (...) evocou Martim Lutero como precursor e
advogado de suas próprias ideologias e política anti-semitas, (...)”, embora reconheça não ser
boa hermenêutica atribuir comportamentos de hoje, com suas próprias motivações, a
personagem do passado;

c) Altmann (1994, p. 264-268, apud Weimarer Ausgabe, 53, 538) assegura que Lutero não
advogou o extermínio físico dos judeus6. No contexto da reestruturação territorial da igreja
cristã na Alemanha entre católicos e protestantes, Lutero defende que os judeus não convivam
com os cristãos e que tenham seu território: “(...) devemos estar separados, devendo eles ser
banidos de nosso território. Que cogitem, então, de [chegar à] sua pátria” (p. 264-265).

Razões para uma mudança de posicionamento por parte de Martim Lutero acerca dos
judeus

É justo fazer a pergunta pela motivação para uma mudança no posicionamento em Martim
Lutero acerca dos judeus. A resposta, todavia, não é precisa. Em verdade os teólogos
conseguem somente aventar hipóteses. Buscamos algumas dessas hipóteses:

a) a hipótese da frustração com a não conversão dos judeus: o Lutero jovem nutria uma
esperança de que a redescoberta do Evangelho e a sua correta pregação fosse incentivar e
promover a conversão dos judeus ao cristianismo. Mas a adesão e conversão de judeus ao
cristianismo não se concretizou (LIENHARD, 1998, p. 233). A não conversão, somada às

6
Esta é uma das grandes diferenças entre as sugestões de Lutero e o nacional socialismo de Hitler no pós-1933.
A outra diferença está que Hitler considerava a raça ariana superior, algo que também não encontramos em
Lutero (ALTMANN, 1994, p. 268).

1275
supostas difamações do Cristo e da fé cristã, provocam nele a necessidade de defender a fé
cristã sob pena de atrair a ira de Deus sobre si (ALTMANN, 1994, p. 264).

Rejeitamos, por completo, a reação de Lutero que inclui uma postura agressiva contra o povo
judeu. Ainda mais porque ele próprio, na iminência da guerra contra os turcos, admitiu ser
legítima a guerra somente como defesa em caso de ataque territorial, jamais o protagonismo
de guerra7;

b) o argumento econômico: na idade média gesta-se uma nova ordem econômica. Esta
mudança está baseada na passagem de uma economia natural (pagamento feito com trabalho
ou produtos) para uma economia financeira (pagamento feito em dinheiro). Isto dentro do
feudalismo como já para além dele. Brendler (1983, p. 11-13 e 112-113) afirma ser sinal claro
do que hoje chamamos de capitalismo moderno8. Ele descreve este processo a partir da
estrutura das minas de minério, cobre e prata. Na medida em que aumenta a demanda,
também aumentam as dificuldades em consegui-los. Surgem, neste contexto, as sociedades
que financiam os mineiros (a mão de obra) e recebem, como pagamento, o minério “in
natura”. Cria-se uma dinâmica: as sociedades antecipam recursos financeiros e tecnológicos
para o mineiro; este explora o minério e o vende “in natura” às sociedades. O resultado é:
alguns mineiros tornam-se donos de mina (caso do pai de Lutero) e muitos outros passam a
ser devedores das casas comerciais financiadoras. A casa comercial não assume risco de
produção nem tem perdas. Surgem aqui as grandes casas comercias, cujo símbolo maior até
hoje é a família dos Fugger.

Lutero foi um feroz combatente desta dinâmica econômica, especialmente por causa da
prática da usura.9 Os judeus são considerados praticantes da usura.10

c) a hipótese da judaização do cristianismo como ameaça à fé: Lutero reconhece que o


judaísmo atrai cristãos a si. Decide, então, se manifestar para ser “encontrado entre aqueles
que opuseram resistência a tal empreendimento (...).” (ALTMANN, 1994, p. 263, apud
Weimarer Ausgabe, 53, 417). Lienhard (1998, p. 234) vê a judaização do cristianismo na
valorização da exegese rabínica por teólogos protestantes, no reconhecimento do povo judeu

7
LUTERO, M. Da guerra contra os turcos (1529). In: Obras Selecionadas, vol 6, p. 405-445.
8
O capitalismo moderno é uma construção de muitos anos e motivado por diversos fatores. Defendemos, com
Brendler, a tese de que aqui temos sinais evidentes da gestação deste novo modelo econômico.
9
Cf. LUTERO, M. Obras Selecionadas. Vol 5, p. 365 a 493.
10
Lutero acusa os príncipes de não punir o judeu que rouba para satisfazer sua ganância, ao contrário, este seria
mais valorizado pelos príncipes do que o próprio Deus. SASSE, p. 6.

1276
como povo eleito por teólogos protestantes; no movimento anti-trinitarista (em 1530); na
Silésia (1528) anabatistas substituem a observância do domingo pelo sábado; na Boêmia e na
Morávia alguns praticam a circuncisão.

Lutero se sente na obrigação de defender a fé. Afirma no texto Das Boas Obras: é boa obra
deste mandamento (o segundo) ser resistência a todas as falsas doutrinas, sedutoras e
heréticas, mesmo que se apresentem em nome de Deus.11

Trata-se da defesa da fé que professo em detrimento da fé que o outro crê e professa. Eliade 12
o chama de “Centro do Mundo”: um lugar sagrado e qualitativamente diferente para
determinado povo porque nele houve uma hierofania que organizou o caos. Quando o lugar
sagrado sofre um ataque, ele precisa ser defendido da ação do “inimigo” para que não volte a
ser caos. Eliade conclui que este sentimento de “Centro do Mundo” é universal e Finguerman
2005, p. 112) afirma que “Cada religião, a seu modo, acredita se situar no Centro do Mundo,
num ‘espaço’ sagrado que pode ser concreto (uma cidade, uma montanha, uma região) ou não
(uma aliança). Isto é, as religiões crêem em sua própria ‘eleição’.13

No judaísmo14 este “Centro do Mundo” se revela na unidade de todas as tribos em torno do


primeiro mandamento como referência comum e maior: enquanto ele for obedecido será o elo
de ligação de todos os judeus como povo eleito desde a origem. Para o cristianismo 15 (e
também Lutero) este “Centro do Mundo” é Cristo: Cristo é o centro da história e esta é
compreendida pelo viés salvador. Febvre (2012, p. 136-137) igualmente defende a tese de que
Lutero descobre uma teologia (um “Centro do Mundo”) e a coloca em prática com a
convicção de que é inspirada por Deus. Porém, dentro do cristianismo já não é possível
afirmar que as diferentes correntes teológicas têm um centro comum 16. Logo, é possível
concluir que o “Centro do Mundo” do judaísmo, do cristianismo e da reforma não é o mesmo.
Finguerman (2005, p. 105-115) observa que o sagrado distancia um grupo do outro.
Considerado este distanciamento conclui não ser possível um acordo entre as religiões, pois
não há como abrir mão do que é considerado sagrado. A postura, então, em relação ao outro é

11
LUTERO, M. Obras Selecionadas, vol 2, p. 124-125.
12
Veja ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – a essência das religiões, 2001.
13
Esta ideia também é trabalhada pelo historiador Arnold Toynbee (1956) que afirma ser o ser humano
naturalmente centrado e achar que o mundo gira ao seu redor. Também em Victor Turner que afirma o ser
humano reconhecer a santidade somente no centro da peregrinação, sendo o caminho todo ele profano.
FINGUERMAN, 2005, p. 111, apud Turner, 1972, p. 214.
14
Veja BRENDLER, 1983, p. 58-59.
15
Veja BRENDLER, 1983, p. 60-61.
16
Como exemplo citamos: o catolicismo reconhece o papado como sucessor de Pedro (Mateus 16.18-19) como
símbolo da verdadeira igreja enquanto que a reforma aponta para os 4 somente: escritura, Cristo, fé e graça.

1277
ou de conversão ou de ignorá-lo e negá-lo. Parece ser este o script de Lutero e dos judeus,
particularmente no tocante à judaização do cristianismo.

A esperança – pelo menos no discurso cristão – aponta para o futuro, para o dia no qual as
resistências dos judeus cessem e todos sejam salvos (para os judeus, ao contrário, o futuro
aguarda o reencontro de todos sob a fé primeira). Lutero também expressa esse desejo
quando, mesmo cético, afirma orar para que os judeus se convertam. Mais recentemente Karl
Barth também se posicionou acerca do tema dizendo que a

descrença dos judeus [...] não poderia alterar o fato de que foi por meio
deste povo que Deus revelou a salvação dos homens. Poderiam resistir, mas
não alterar o decreto divino de redenção através de Jesus, que fora
crucificado também por eles. Por isso, a ‘Igreja aguarda pela conversão dos
judeus’, conclui.17

ALTMANN (1994, p. 268s) não fala em conversão de judeus ou cristãos, mas expressa o
desejo de que possam se encontrar em torno das redescobertas bíblicas.

d) a concepção de história em Lutero: lugar da ação de Deus e do diabo. Para Lutero a história
é o espaço da disputa entre Deus e o diabo. Entende que a resistência dos judeus, em última
análise, é ação do diabo. Este conceito é desenvolvido por Agostinho e Lutero o acolhe. A sua
visão de história é linear: inicia com a criação e termina com o julgamento final. Nesta
história o ser humano está, com ela precisa lidar, administrá-la e sofrer as situações que se
colocam. Calar é deixar o diabo agir livremente. Mesmo que Deus não seja dependente da
ajuda do cristão, este deve tomar parte de Deus e ser ferramenta em suas mãos. Firmeza,
perseverança e disposição do cristão ao martírio são sinais de testemunho claro do nome de
Cristo. O contrário também é verdade: os ataques sofridos são ataques do diabo e estes
precisam ser suportados (LOHSE, 1983, p. 199-201).

Esta visão de história reforça o que é uma característica da ética pessoal de Lutero: não
silenciar. Diz Lutero: “Pois o que até agora por desconhecimento toleramos (eu próprio não o
sabia) nos será perdoado por Deus.”18 E complementa: se não podemos convertê-los, é

17
FINGUERMAN, 2005, p. 142, apud BARTH, Karl. The Judgment and the Mercy of God. In: TALMAGE,
Frank E. (Ed). Disputation & Dialogue: Readings in the Jewish-Christian Encounter. New York : Ktav
Publishing House Inc, 1975, p. 40-48.
18
LUTHER, M. 1543, p. 95 (tradução livre).

1278
suficiente que denunciemos suas mentiras e descortinemos a verdade. 19 Esta denúncia tem
uma dupla finalidade: afastar a ira de Deus e acordar os judeus (...) (por uma) ação firme.20
Ou seja: no caminho da história, em direção a um final, a ação do diabo precisa ser combatida
com sinais claros do testemunho e fidelidade a Deus.

Febvre (2012, p. 136-137), por sua vez, retoma a ideia de que Lutero tem uma verdade
definida e que é aplicada de forma universal. Quando esta é atacada reage com fúria. Esta tese
de Febvre pode ser acolhida, pois Lutero define como pontos centrais da reforma os quatro
“solas”: fide, Christus, gratia e escriptura. Na relação com o judaísmo particularmente o
“somente Cristo” é relativizado, colocando em xeque o caminho salvífico cristão. Conforme a
concepção de história (salvífica, inclusive) de Lutero isto é trágico, pois a ação de Deus está
ameaçada, relativizada. As pessoas de fé precisam reagir. Ou seja, repete-se a concepção de
“centro de mundo” em Eliade.

A religião que vive o amor

Valemo-nos da peça teatral “Nathan der Weise”21 para conquistar impulsos à reflexão e
vivência da tolerância religiosa necessária no século XXI. “Nathan o sábio” é o título e
personagem principal de uma peça teatral de Gotthold Ephraim Lessing, de 1779, e narra da
forma como as circunstâncias da vida aproximam e interligam a vida de um judeu, um cristão
e um islamita. Pano de fundo da peça é a disputa entre a teologia protestante alemã e o
iluminismo alemão, culminando no que é conhecido como “Fragmentenstreit”.22 No terceiro
ato da peça temos a parábola dos três anéis, à qual nos referimos em particular, por trazer a
pergunta acerca da verdadeira religião. Conta a parábola: um pai tem um anel cuja pedra é
muito valiosa. Este anel é dotado de uma particularidade: ele torna a pessoa boa e agradável
diante de Deus e dos homens, desde que ela o carregue nesta confiança. Passado de geração
em geração ao filho herdeiro, eis que um pai ama igualmente seus três filhos e não quer
privilegiar nenhum deles. Decide então fazer duas cópias “perfeitas” do anel. Somente o pai

19
SASSE, M. p. 8. (tradução livre).
20
LUTHER, M. 1543, p. 93-95. No mesmo texto, à página 49, Lutero atribui a mentira, dureza de coração e
falsa fé dos judeus à ação do diabo. Roga para que Cristo, por misericórdia, os converta e mantenha os cristãos
em Sua fé, não permitindo que se afastem da eternidade.
21
A fonte principal da trama está em: <http://de.wikipedia.org/wiki/Nathan_der_Weise>, acesso em 17.11.2012.
22
Acerca desta disputa confira VIDEIRA, Mario. In: Trans/Form/Ação. 2011, v.34, p. 57-74. Disponível em
<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1155/1031>. Acesso em: 17 nov.
2012.

1279
reconhece o anel verdadeiro (aqui está a essência da pergunta feita a Nathan: qual é a religião
[anel] verdadeira?). O pai entrega um anel a cada um dos filhos dizendo tratar-se do anel
verdadeiro. Ao concluir a entrega o pai morre. Os filhos, inconformados, vão a juízo a fim de
descobrir qual dos três anéis é o verdadeiro. O juiz, porém, não tem condições de o
determinar. Em vez de sentenciar, o juiz aconselha os três irmãos. Os lembra que o anel tem a
particularidade de tornar agradável e bom o portador junto às outras pessoas. O portador do
anel verdadeiro manifestará este dom. Se esse efeito do anel não se tornar visível em nenhum
dos três, então significa que o anel verdadeiro foi perdido (o juiz não explicita quando isso
aconteceu. Em tese o anel do pai também já pode ter sido falso). E conclui junto aos irmãos:
que cada um acredite ser o seu anel o verdadeiro. Cada portador do anel deve se esforçar para
atrair o efeito da bondade do anel para si mesmo (amar “para fora”, o próximo, não somente a
si mesmo, interiormente).

A parábola aponta para indicativos consistentes sobre a verdadeira religião: Deus ama
igualmente os seus filhos e filhas; a verdadeira religião é a que expressa o amor ao próximo e
o torna uma prática, uma vivência; assim como não é possível definir qual é o anel
verdadeiro, também não é possível definir, em essência, a religião verdadeira; o fato de
existirem três anéis não é um problema para o pai. Os irmãos, por sua vez, não podem se auto
definir portadores do anel verdadeiro sob pena de não serem expressão do amor; o anel (a
religião) por si só, nada faz – é necessária a participação ativa de quem o carrega. Se houver
ofensa mútua, nenhum dos irmãos será o portador do verdadeiro anel. A autenticidade da
religião (do anel) é reconhecida na medida em que doa amor; viver no sentido de atrair para si
a benesse do anel é considerar a condenação de práticas religiosas como intolerância e
proselitismo entre as religiões. Em suma, Lessing crê que a verdadeira religião não se mostra
no dogma, mas na ação amorosa da religião. E esta prerrogativa é universal.

O luteranismo e o antissemitismo hoje

Na esteira de parábolas como essa e principalmente de acontecimentos históricos onde a fala


de Martim Lutero foi usada para justificar atitudes – caso de Hitler na segunda guerra mundial
– as igrejas luteranas se manifestam.

Elas se reconhecem herdeiras do movimento da reforma do século XVI. Isto inclui lidar com
as limitações e reveses do movimento. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil

1280
tornou público em 1992 documento no qual afirma „Deus não é racista“23. Nele condena toda
forma de racismo, discriminação e violência e afirma ser o antisemitismo um dos mais
hediondos, lembrando-se do holocausto da Alemanha nazista. Conclama ao respeito à
diversidade de credos criada por Deus e convida a resistir ao início de toda e qualquer forma
de discriminação. Também a Igreja Evangélica na Baviera (Alemanha) se posicionou em
documento de 1999 intitulado „Christen und Juden: Erklärung der Evangelisch-Lutherischen
Kirche in Bayern“ (Cristãos e Judeus: declaração da Igreja Evangélica Luterana na Baviera).24
Este documento é mais específico em relação à questão do judaísmo e elenca três
perspectivas:

a) os consensos na Igreja Evangélica Luterana acerca do judaísmo: nele recohece que as


raízes do judaísmo e cristianismo são comuns a partir do Antigo Testamento; reconhece sua
parcela de culpa no holocausto; como herdeira do legado de Lutero, reconhece ser necessário
levar a sério os impactos dos escritos dele acerca do judaísmo e ser necessário se afastar de
toda e qualquer forma de manifestação antissemita; que com o advento do cristianismo não se
extingue a eleição de Israel como povo de Deus; por cristãos e judeus seguirem caminhos
distintos nos assuntos de fé, cabe aos cristãos mostrar respeito, abertura e diálogo;

b) perspectivas teológicas: reconhece que o povo judeu continua sendo „povo de Deus“,
apesar daqueles que não acolheram Cristo (Romanos 11.29) – isto se deve à fidelidade de
Deus, não a escolhas humanas; o judeu Jesus como o Cristo da Igreja (2 Coríntios 1.20 afirma
que a mensagem de Cristo é uma continuação da mensagem do Antigo Testamento); e o
significado do Antigo Testamento na Igreja (a concepção de que o Novo Testamento não se
opõe ao Antigo Testamento, pelo contrário, o concebe como testemunha da lei e da
promessa).

c) aponta temas que precisam ainda estar na pauta de debates. Entre eles a postura da Igreja
Evangélica Luterana na Baviera durante a segunda guerra mundial.

23
Documento disponível em <http://www.luteranos.com.br/conteudo.php?idConteudo=12586>. Acesso em: 06
ago 2013.
24
Documento disponível em <http://www.freiburger-rundbrief.de/de/?item=704>. Acesso em: 06 ago 2013.

1281
Considerações finais

Lutero expressa, no primeiro texto, um respeito e amor tolerante para com o povo judeu. Uma
fé que se doa e que desafia o cristão à construção de uma cultura da paz e tolerância. No
segundo texto é refém da verdade redescoberta. Ao ser absolutizado, o Evangelho
redescoberto em Lutero perde a dimensão amorosa, libertadora e salvadora para se tornar
intolerante. Esta postura não é assumida pelas igrejas cristãs herdeiras do movimento e legado
da reforma, pois assume a perspectiva da ira humana em detrimento da redescoberta
evangélica do amor e da graça de Deus.

O século XXI ainda sente as dores de duas guerras mundiais, de períodos sangrentos de
ditaduras militares por toda a América Latina, de regimes políticos absolutistas e sangrentos
em várias regiões do mundo, de um sistema capitalista devorador de vidas, de homofobia, etc.
Mas também respira o renascimento de vozes como as do movimento de mulheres, das
religiões afro, de expressão da liberdade de grupos minoritários, etc. Sinais de vida ainda não
consolidados. Neste contexto a voz da fé cristã precisa ser a voz da vida, do respeito ao
próximo, do amor ao próximo, da abertura e do diálogo respeitoso com o diferente.

Referências

ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação. Releitura de Lutero em perspectiva latino-


americana. São Leopoldo, São Paulo : Sinodal, Ática. 1994.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª. edição rev. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1993.

BRENDLER, Gerhard. Martin Luther: Theologie und Revolution. Berlin: VEB Deutscher
Verlag der Wissenschaft, 1983.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Tradução: Rogério


Fernandes. São Paulo: Martins Fontes. 2001.

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo:
Três Estrelas, 2012.

FINGUERMAN, Ariel. A Eleição de Israel. A polêmica entre judeus e cristãos sobre a


doutrina do “povo eleito”. 2ª edição. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.

1282
LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida e mensagem. Tradução Walter Altmann e
Roberto H. Pich. São Leopoldo: EST, Sinodal, 1998.

LOHSE, Bernhard. Martin Luther. Eine Einführung in sein Leben und sein Werk. 2a. edição.
München: Beck, 1983.

LUTERO, Martinho. Da guerra contra os turcos (1529). In: Obras Selecionadas, vol 6. São
Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1996, p. 405-445.

_________. Economia. In: Obras Selecionadas. Vol 5. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/
Concórdia, 1995, p. 365 a 493.

_________. Das Boas Obras. In: Obras Selecionadas. Vol 2. São Leopoldo/Porto Alegre:
Sinodal/Concórdia, 1989, p. 97 a 170.

Internet

BRAKEMEIER, Gottfried. Deus não é racista. Declaração da Igreja Evangélica de Confissão


Luterana no Brasil. 9 de dezembro de 1992. Disponível em
http://www.luteranos.com.br/conteudo.php?idConteudo=12586 Acesso em: 06 ago. 2013.

Cristãos e judeus. Declaração da Igreja Evangélica Luterana em Bayern. In: Freiburger


Rundbrief. Zeitschrift für christlich-jüdische Begegnung. Ano 6/1999, n° 704, p. 191.
Disponível em: http://www.freiburger-rundbrief.de/de/?item=704. Acesso em: 06 ago. 2013.

LUTHER, Martin. Von den Juden und ihren Lügen. Erstausgabe, Wittenberg 1543, S. 95, 96
e 99. Disponível em http://www.theologe.de/martin_luther_juden.htm#Auszuege. Acesso em:
07 out. 2012.

SASSE, Martin. Martin Luther über die Juden: Weg mit ihnen! a.a.O., s. 8. Disponível em
http://www.theologe.de/martin_luther_juden.htm#Auszuege. Acesso em: 07 out. 2012.

Wikipedia. Disponível em: http://de.wikipedia.org/wiki/Nathan_der_Weise. Acesso em: 17


nov. 2012.

VIDEIRA, Mario. Filosofia e Literatura no Iluminismo alemão: a questão da tolerância


religiosa no Nathan der Weise, de Lessing. Trans/Form/Ação, (Marília); v.34, p.57-74, 2011,
Edição Especial 2. Disponível em
<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1155/1031>.
Acesso em: 17 nov. 2012.

1283
1284
GT12 – História cultural das religiões

Coordenador/a
Eliane Moura da Silva
Carlos André Silva de Moura Livre docente MS-5 em História pela
Doutorando em História pela UNICAMP. UNICAMP.

Comentador
Paulo Julião da Silva
Doutorando em História pela UNICAMP. Bolsista FAPESP.

Resumo

Depois da virada cultural da década de 1970, novos objetos e abordagens foram criadas por
historiadores de todo o mundo. Sob o impacto dessas reflexões, a análise cultural da história
das religiões também tem sido reformulada. Os estudos em história cultural comportam novas
perspectivas sobre o papel que as religiões desempenham na construção de identidades e nas
diferentes relações sociais de gênero, etnicidade e classes que estabelecem parâmetros com
forte influência nas práticas cotidianas, espaços, atitudes e representações. O GT pretende
receber comunicações sobre os seguintes temas: 1. Questões teóricas e metodológicas sobre
história das religiões; 2. História de instituições e confissões religiosas; 3. Gênero e religião;
4. Missionarismos, colonialismos e cristianização; 5. Diálogos religiosos na América Luso-
espanhola; 6. História das teologias e da construção de crenças, devoções e discursos
religiosos nas sociedades modernas, pluralistas, cristãs, não-cristãs e multiculturais.

1285
A África lusófona no período de descolonização: missões e
alteridades na Revista O Campo é o Mundo
Harley Abrantes Moreira1

Introdução

Esse trabalho tenta realizar algumas reflexões preliminares de pesquisa acerca das missões
protestantes brasileiras na África Lusófona. Nessa investigação, importa discutir a percepção
dessas igrejas e suas agências missionárias sobre as regiões africanas de colonização
portuguesa, seus contextos socioculturais e suas religiões tradicionais. Para isso, será
analisada a possibilidade de trabalho com a revista O Campo é o Mundo, durante o período de
descolonização, com ênfase em duas colônias: Moçambique e Angola.

Missões e religiões na África

Segundo o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP)2, campanhas


missionárias na África se fazem notar desde o século XV. Em um primeiro momento, tratava-
se de Ordens e Congregações Religiosas católicas que, lentamente, através de suas ações, vão
marcando presença de um modo mais estável. As implicações sociais, culturais e políticas em
variadas regiões do continente são algumas vezes apontadas como desdobramentos da
presença de missionários. Autores como Paul Lovejoy evidenciam a relevância do estudo das
missões no período colonial na medida em que associam o tema à questão da escravidão e do
abolicionismo.

Como acontecia em muitas regiões da África, as missões cristãs eram os agentes mais
ativos na luta contra a escravidão nativa [...] apesar da abordagem conservadora dos
missionários – católicos e protestantes da mesma forma – os postos das missões
conquistavam a reputação de centros de refugiados para escravos, e, o número de escravos
fugitivos procurando asilo aumentou na década de 1870 (LOVEJOY, 2002, p. 336).

1
Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual de Pernambuco, unidade Petrolina. Possui
mestrado em História pela UFRN, graduação em História pela UFC e bacharelado em Teologia pelo Seminário
Teológico Batista do Norte do Brasil. Contato: harleyabrantes@hotmail.com.
2
Informações disponíveis em: http://www.africanos.eu/ceaup/index.php?p=g&n=346

1286
Todavia, é no século XX que a expansão do cristianismo, em detrimento da redução das
religiosidades tradicionais se faz sentir com maior ênfase no continente, afirma-se que, antes
desse período, apenas 10% da África era cristã e que, atualmente, cerca da metade o é. 3 Essa
grande transformação no campo religioso africano torna urgente o estudo dos eventos
missionários e suas articulações com a vida social, política e cultural de recortes temporais
mais específicos e, nesse sentido, as décadas centrais foram especiais para o continente uma
vez que suas metrópoles colonizadoras vivenciavam, até o fim da 2ª guerra Mundial, políticas
expansionistas que se expressavam através de maior vigor colonial e, posteriormente, da
abertura que se antecipava aos movimentos de independência, no intuito de causar um
momento neocolonial dentro das repúblicas independentes.

Segundo Paulo Gilberto Visentini, a subordinação africana às potências europeias era


estrutural, atingindo as esferas econômicas, sociais e culturais (VISENTINI, 2008, p.125),
sendo característico daquele momento, as rivalidades étnicas, a oposição entre “assimilados” e
“não assimilados” pelas culturas metropolitanas, guerras por independência, guerras civis,
economia controlada de fora, além da ausência de médicos, engenheiros, administradores e
professores. No caso da África portuguesa, esse quadro seria agravado pelo prolongamento da
luta armada com destaques para Moçambique, em razão de importantes vitórias dos
movimentos negros que se proclamavam marxistas leninistas, e Angola, em função de sua
importância econômica superior às outras colônias lusitanas.

É dentro desse contexto que a relevância dos fenômenos religiosos se faz notar. Especialistas
em História da África afirmam que o africano é um ser profundamente crente e religioso e que
a religião impregna toda a vida social e comunitária no continente, consistindo não apenas um
conjunto de crenças, mas um modo de vida, o fundamento de suas culturas, identidades e
valores morais (TSHIBANGU, 2010).

Kwame Nkrumah, em seus esforços para construir uma ideologia pan-africanista que
unificasse as identidades em prol de uma agenda social transformadora, via nas religiões uma
força e um recurso indispensável para atingir tal finalidade e, muito embora compreendesse
que a sociedade africana ancorava-se na religião tradicional, entendia que era impossível
ignorar a experiência histórico-religiosa do Islã e do cristianismo já inseridos nas sociedades
africanas, de modo que o pluralismo religioso, durante o período colonial, torna-se uma das
grandes características do continente (K. NKRUMAH, 1964 Apud TSHIBANGU, 2010).

3
Ibdem, Ibdi.

1287
A revista O Campo É O Mundo: colonialismos e alteridades

A Revista O CAMPO É O MUNDO consistia em publicação trimestral da Junta de Missões


estrangeiras da Convenção Batista Brasileira durante as décadas de sessenta e setenta do
século XX. Nesse material, é possível discutir a visão dos batistas brasileiros, grupo
protestante que chega ao Brasil a partir do protestantismo de missão do Sul dos Estados
Unidos na segunda metade do século XIX4, a respeito de diversas regiões do mundo e, em
especial, do continente africano que, naquele momento, representava um dos principais focos
de atuação missionária dessa denominação.

Durante o período de descolonização da África lusófona, a presença de missionários


brasileiros se intensificava em colônias como Moçambique e Angola, segundo a relação de
missionários da junta de missões estrangeiras, relatada pela referida revista periódica, em
1974, já eram oito missionários/as batistas, brasileiros, na região:

MOÇAMBIQUE: Pastor José Nite Pinheiro E Cilcéia Cunha Pinheiro; Valnice Milhomens
Coelho; Albertina Ramos da Silva; Lourenço Marques; Maria Ivonete da Costa. ANGOLA:
Pastor Levy Barbosa da Silva e Elizabeth Barbosa da Silva; Elnice de Brito (REDAÇÃO,
1974, p. 27).

Outros missionários batistas, enviados por agências missionárias internacionais de países


como Estados Unidos, Canadá ou Austrália já se faziam presentes nestes países décadas antes
da chegada dos brasileiros que, de certa forma, foram beneficiados por seus trabalhos. Em
outra matéria sobre artigo escrito por um desses missionários, a redação da Revista afirma:

O Pastor A. Antônio Bornes, obreiro da Baptist Missionary Society, desde 1959, foi
missionário em Angola por alguns anos [...] Seu artigo divide-se em duas partes: a primeira
refere-se às atividades missionárias por ele realizadas e oque presenciou até 1961; a
segunda parte é um breve relato no que respeita a situação da evangelização. As
informações que seguem precisam ser lidas com oração, de joelhos, para que Deus tome
uma providência e abra as portas dos céus em favor daquelas almas sofredoras. [...] Desde
1948, aprofundou-se a penetração portuguesa pelo interior do continente angolano com
forte presença católica. Questões políticas que as vezes envolvem nossos missionários sem
que eles queiram[...] As igrejas batistas cresceram animadoramente nos últimos vinte anos
(REDAÇÃO, 1966, p. 4 e 5).

4
A esse respeito, ver SILVA, Elizete. Os Batistas no Brasil. In: Fiel é a Palavra. P. 286-287.

1288
Segundo as informações relatadas, Angola já era campo de uma variedade de juntas
missionárias evangélicas que cooperavam com a Aliança evangélica de Angola, com sede na
capital Luanda, para “poder atender às necessidades do país” (Ibdem, Ibdi) e, uma vez que
nossa problematização central diz respeito à discussão das alteridades ou de como se
comportar em relação a outrem (TODOROV, 1996), é importante notar, em trechos como
este, a construção histórica e discursiva do outro e de sua diferença, quase sempre marcada
pelo sinal do sofrimento, da carência e, consequentemente, da vitimização e inferioridade.

Em termos objetivos, essa discussão implica em perguntar sobre como os missionários


enxergavam os africanos, suas culturas e religiões e se havia, em algum nível, o
reconhecimento da autonomia africana para aceitação ou rejeição do projeto de evangelização
que deve ser discutido não apenas em termos colonizadores, uma vez que também importa na
pesquisa a compreensão das ideias religiosas que impulsionavam as ações destes missionários
como sujeitos históricos compreendidos a partir da noção de religiões como construtoras de
mundos (BERGER, 1985).

É neste sentido que, apesar de valorizarmos, desconfiamos das explicações simplistas e


unilaterais, as quais tendem a perceber a ação das agências missionárias como pontas de lança
do imperialismo europeu e estadunidense. Portanto, apoiando essa direção, pode-se destacar
abordagens renovadoras de autores como Lamin Sanneh, Para este, o viés eurocêntrico
(presente dentro da própria historiografia panafricana) e responsável por atribuir o
protagonismo do crescimento cristão na África à atividade missionária, é insuficiente e falso.
Em sua argumentação, as pessoas ouviram algo que “precisavam”. Nesse sentido, os maiores
responsáveis pela propagação da mensagem cristã teriam sido os próprios africanos que
teriam multiplicado o número de cristãos na África através das linhas de familiares e se, até o
momento de escrita do livro, a África era o continente mais cristão do mundo, isso não
poderia ser explicado em razão dos estatisticamente poucos missionários cristãos ali atuantes
(SANNEH, 1983).

No Brasil, esses estudos tem despertado a atenção de historiadoras como Eliane Moura da
Silva que, a esse respeito, afirma:

Recentemente os paradigmas que associam missionarismo cristão ao colonialismo, ao


imperialismo e à subordinação, estão sendo repensados por estudiosos como os
historiadores africanos Lamin Sanneh e Ogbu Kalu. Para eles, nunca se levou em
consideração como os africanos aceitaram ou rejeitaram os missionários e seus

1289
ensinamentos. Por exemplo, o fato de que chefes locais requisitaram a presença de escolas
missionárias e clínicas médicas como um esforço contra seus inimigos e competidores
políticos. Para estes autores, a ênfase nos paradigmas colonialistas acabou por silenciar os
agentes locais e ignorar como a mensagem cristã foi traduzida de acordo com determinadas
necessidades sociais e espirituais de cada grupo e cultura (SILVA, 2011, p.7).

Os apontamentos da historiadora reverberam em passagens da Revista nas quais missionárias,


como Valnice Milhomens, atuante em Moçambique, relatavam que “A atenção que o povo
dava era maravilhosa. Jamais vi em qualquer outro lugar da Inglaterra, Portugal ou Brasil algo
assim. Era como se todos tivessem uma torturante sede [...] Eis a atenção quase que
hipnótica.” (Milhomens, 1973. P.6). Em outro testemunho da reação positiva dos
moçambicanos às atividades missionárias dos batistas na região, Milhomens é ainda mais
enfática, mencionando a experiência de um culto, no qual um ancião com 27 anos de
conversão, fruto do trabalho escandinavo, “rogou-nos dizendo: Não nos abandonem, é de
vocês que recebemos a luz de Cristo, existem milhões de africanos escravizados pelo pecado”
(MILHOMENS, 1973, p.8).

Passagens como essa, justificam nossa preocupação em inserir determinadas discussões


culturais dentro de um debate marcado por estudos historiográficos que enfrentam o tema das
missões cristãs nas culturas africanas a partir do impacto político e social de católicos e
protestantes na África, segundo Tshibangu,

Os historiadores interessaram-se pelas crises provocadas no espaço público pelo fato


religioso, eles estudaram: o papel das diferentes tradições religiosas durante os combates
pela libertação ocorridos no Quênia, no Zimbábue, no Marrocos, na Argélia, no Senegal, no
Zaire, e na Zâmbia; o fator religioso no curso das lutas travadas por diversos grupos em
prol da partilha do poder político e econômico, da dominação e controle da educação, bem
como sobre a política externa e as relações exteriores, os conflitos entre os grupos
religiosos à caça de autonomia no interior de um estado, temerosos em outorgarem-se o
monopólio do poder, ou entre as minorias religiosas resistentes a um grupo dominante que
buscava impor a sua própria fé intuindo dela fazer a própria religião nacional e o único
fundamento dos valores e do acesso aos recursos políticos e econômicos do Estado
(TSHIBANGU, 2010, p.607).

As afirmações de Tshibangu confirmam a ênfase dada por historiadores nas intervenções


políticas e sociais dos missionários na África, reforçando nossa preocupação em apontar
determinadas discussões culturais, em especial, o problema das alteridades que pode nos levar
a uma melhor compreensão do crescimento evangélico na África lusófona em detrimento da

1290
dramática diminuição das religiões tradicionais, discutindo de que forma os missionários
construíam a diferença que se estabelecia estre estes e o outro.

A esse respeito, a redação da revista apresentava sua visão acerca dos africanos locais, ainda
em 1966, no momento em que ainda tentava entender o continente a partir das experiências de
missionários enviados por agências internacionais:

Talvez seja difícil imaginar o ambiente psicológico da mente de uma pessoa criada no puro
feitichismo que exerce uma influência tão profunda em sua mente e chega a viver
assombrada pelo paganismo, muitos apesar de crentes. Por isso a igreja se torna muito
exigente para o ingresso de novos membros. O meio ambiente também serve de base para
justificar a disciplina da igreja. As orgias noturnas com o batuque que faz vibrar a solitária
noite, os tambores, a potentíssima bebida alcoólica e toda espécie de feitiçaria e
imoralidade que se misturam. Essas coisas, como não podiam deixar de acontecer, são
proibidas aos crentes (REDAÇÃO.1966, p.6).

A ênfase nos elementos ritualísticos que a redação da revista denomina de “orgias”,


“batuques”, “feitiçaria” e “imoralidade” são pistas importantes para prosseguir interrogando o
sentido desses termos nas comunidades batistas brasileiras e a opção por suas utilizações ao se
referirem a elementos da cultura religiosa tradicional africana.

Apesar de não ser objetivo desse texto discutir com profundidade a história das religiões
africanas, vale ressaltar que qualquer generalização nesse sentido é perigosa. Mario Cutis
Giordani, a esse respeito, alerta para o notável pluralismo religioso e para alguns traços
comuns às religiões tradicionais como o contato íntimo com a natureza, em razão do qual
homens (vivos ou mortos) se transformariam em animais ou plantas; a plena integração entre
o natural e o sobrenatural e o pragmatismo dos cerimoniais religiosos que visavam
comunicação com os deuses e antepassados ou o alcance da fertilidade (Giordani, 1985, p.
232).

Em outras palavras, o estudo das religiões tradicionais africanas pode revelar pontos
importantes para uma interpretação da cultura local, compreendida pelos textos da revista em
função de sinais de inferiorização e pecaminosidade. A existência de institutos educacionais
voltados para a formação missionária e os próprios conteúdos da revista ora analisada, nos
levam a afirmar que a opção por termos como “feitiçaria” para se referir à religião do outro
não indica ignorância das culturas africanas, e sim, uma “postura de alteridade” que precisa
ser investigada. Sobre isso, Tzevetan Todorov afirma que

1291
É preciso distinguir entre pelo menos três eixos, nos quais pode ser situada a problemática
da alteridade. Primeiramente um julgamento de valor, (um plano axiológico): o outro é bom
ou mau, gosto dele ou não gosto dele, ou, como se dizia na época, me é igual ou me é
inferior (pois, evidentemente, na maior parte do tempo, sou bom e tenho auto-estima…).
Há, em segundo lugar, a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao outro
(um plano praxiológico): adoto os valores do outro, identifico-me a ele; ou então, assimilo
o outro, impondo-lhe minha própria imagem; entre a submissão ao outro e a submissão do
outro, há ainda um terceiro termo, que é a neutralidade ou indiferença. Em terceiro lugar,
conheço ou ignoro a identidade do outro (seria o plano epistêmico); aqui não há,
evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de
conhecimento superiores e inferiores (TODOROV, 2003, p. 269).

Ora, os primeiros contatos com a imprensa confessional batista brasileira especializada em


missões estrangeiras, nos leva a tentar explorar justamente essa “gradação infinita entre os
estados de conhecimento superiores e inferiores” a que se refere Todorov, pois, se por um
lado, parece óbvio o interesse de “assimilar o outro impondo-lhe a ele minha própria
imagem”, há, também, diversas limitações para esta atitude que vão desde a influência
cultural que os africanos exerciam na vida dos próprios missionários e suas famílias até às
escolhas realizadas por estes angolanos e moçambicanos que, por uma diversidade de razões a
serem estudadas, preferiam, muitas vezes, se converter à religião trazida por estes batistas
brasileiros.

Considerações finais

Dentro de um quadro de intensas transformações políticas e sociais, o texto ora proposto


visou discutir as alteridades culturais no campo religioso a partir de apontamentos resultantes
de preliminares investigações realizadas a partir da revista O Campo é o Mundo da Junta de
Missões Estrangeiras, organização pertencente à Convenção Batista Brasileira que, durante o
período de descolonização da África lusófona, apresentava especial interesse na região.

O prosseguimento dessa pesquisa pretende pautar-se em uma discussão central: a verificação


da ideia de que as mediações das distintas culturas representam, por um lado, elementos da
colonização e, por outro, fenômenos para além das colonizações culturais. Por isso,
consideramos relevante continuar questionando sobre em que medida a presença de
missionários brasileiros atuou como um elemento colonizador em solo africano e até que

1292
ponto, ao levar a civilização e a religião cristãs para o luso-africano, esses missionários
também não trouxeram o outro para dentro de si.

Referências

ALMEIDA, Vasni; SANTOS, Lyndon Araújo; SILVA,Elizete da. Fiel é a Palavra: Leituras
Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil. Feira de Santana, UEFS Editora, 2011.

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da Religião. São
Paulo, Paulos, 1985.

LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

MILHOMENS, Valnice. Gritos e gemidos. O Campo é o Mundo, Rio de Janeiro, Julho a


Setembro de 1971, p. 7 e 8.

REDAÇÃO. E a África?O Campo é o Mundo, Abril a Junho de 1966, p. 4 e 5.

REDAÇÃO. Relação dos missionários. O Campo é o Mundo, Abril a Junho de 1974, p. 28.

SANNEH, Lamin. West African Christianity: The Religious Impact. New York, Maryknoll:
Orbis Books, 1983.

SILVA, Eliane Moura. Missionárias Protestantes Americanas (1870 – 1920): GÊNERO,


CULTURA, HISTÓRIA. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 9,
Jan. 2011.

TSHIBANGU, T.; AJAYI, A. A. & SANNEH, L. Religião e evolução social. In: MAZRUI,
A. A. & WONDJI, C. (Ed.). A África desde 1935. 2ª. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: s/ed. 1996.

VISENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Independência, Marginalização e Reafirmação da


África (1957-2007). In MACEDO, José Rivair(org.) Desvendando a História da África. Porto
Alegre, UFRGS. 2008.

Notícia na internet

Colóquio Internacional - Da evangelização da África à África evangelizadora: Mediações


missionárias em África e a partir de África - 17 e 18 de Outubro de 2013 – FLUP. CEAUP –
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Disponível em
<http://www.africanos.eu/ceaup/index.php?p=g&n=346>. Acesso em 25 de Jun. de 2013.

1293
1294
A emperie Católica como parte de uma filosofia ultramontana: as
missões capuchinhas no nordeste mineiro (1873-1889)
Tatiana Gonçalves de Oliveira1

Introdução

As missões católicas na Europa entre os séculos XVII e XIX foram importantes para a difusão
de princípios do Concílio de Trento (1545 e 1563). Louis Chântellier (1994), ao estudá-las,
percebeu como seus representantes utilizavam conhecimento e método para se inserir nas
comunidades e levar a cabo o processo de evangelização. À exemplo das ações jesuítas, os
missionários Capuchinhos Frei Serafim de Gorízia e Ângelo de Sassoferrato fundaram no
nordeste mineiro, em1873, o Aldeamento de Itambacuri e lá deram continuidade aos métodos
de evangelização de índios e nacionais.

Autores da CEHILA2 como Eduardo Hoornaert (1979) apostavam nos aldeamentos como o
rincão da preservação de uma consciência católica conservada ao veneno do padroado3.
Nosso objetivo é pensar nesses missionários como agentes de uma Igreja reformista, que
buscavam na prática, formar as bases dos fundamentos Católicos tão apregoados pelos
ultramontanos em níveis intelectuais.

A fundação do aldeamento Imaculada Conceição do Itambacuri também respondia à algumas


demandas do governo de Dom Pedro II com relação a colonização dos sertões.4 O processo

1
Licenciada em História pela UFV, graduanda no bacharelado pela mesma instituição, sob a orientação da
professora Draª Karla Denise Martins. Contato: tatiana.oliveira@ufv.br.
2
Comissão de Estudos da Igreja na América Latina, fundada em 1973 na cidade de Quito, Equador, sob a
liderança do religioso argentino Enrique Dussel. Segundo Karla Denise Martins, esses pesquisadores da
CEHILA estavam preocupados em libertar a consciência popular, obscurecida pela relação entre estado e Igreja,
resultando num Catolicismo deformado. Para mais informações consultar: MARTINS, Karla Denise. O Sol e a
Lua em tempo de eclipse: a reforma católica e as questões políticas na província do Grão-Pará (1863-1878),
Campinas, SP, 2001. Dissertação (Mestrado em História). IFCH, Unicamp.
3
O Padroado real português pode ser definido em geral como uma combinação de direitos, privilégios e deveres
concedidos pelo papado à Coroa de Portugal na qualidade de patrocinadora das missões católicas e dos
estabelecimentos eclesiásticos missioneiros na África, Ásia e Brasil. Para mais informações ver: BOXER,
Charles R. A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770. Trad. Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
4
Os sertões, segundo Núbia Braga, devem ser compreendidos através da perspectiva, como representações dos
espaços por uma determinada cultura e suas relações sociais. Segundo a autora a demarcação de terras, de
fronteiras é fruto de conflitos políticos, sociais e econômicos. Muitas vezes os sertões são associados a lugares
desabitados, terras de ninguém, ou por regiões habitadas por índios, selvagens. Ver mais em: RIBEIRO, Núbia
Braga. Os povos indígenas e os sertões das minas do ouro no século XVIII. (Tese de doutorado), FFLCH,
Universidade de São Paulo, USP-SP, 2008.

1295
expansionista no Segundo Reinado estava intrinsecamente relacionado com a questão
indígena, suas terras e sua cultura, que eram vistas pelo governo e também pela Igreja como
lugares para a ação da civilização.

A defesa política da catequese missionária, tal como realizada pelo influente diretor de
Itambacuri, fazia-se necessária naquela época em que administrar oficialmente a população
indígena e sua força de trabalho significava deliberar sobre questões que envolviam
interesses presentes nas principais pautas do debate nacional, às voltas com o problema da
abolição e com o desgaste do antigo regime, responsável pela manutenção da catequese
missionária, entre outras atribuições designadas ao poder eclesiástico (MATTOS, 2004,
p.180).

Os capuchinhos foram chamados por decreto imperial em 1840 para cuidarem, além de outras
missões, da civilização dos índios5 nos sertões. Como um importante ramo do serviço público,
os aldeamentos ganharam no século XIX uma configuração diferente dos tempos coloniais.
Primeiramente, Dom Pedro II buscou sistematizar esse empreendimento como um serviço
público, organizando-o administrativamente, criando cargos gerais e locais, exigindo
relatórios acerca dos gastos e despesas, além de mapeamentos com o número de índios nas
províncias e localização dos aldeamentos.6

Essa busca por uma sistematização dos aldeamentos consolidou com a promulgação do
Decreto 426 de 1845, criando o Regulamento acerca das missões de catequese e civilização
dos índios7. Segundo José Oscar Beozzo (1983), esse documento possuía em suas diretrizes a
forma como se deveriam retomar as missões para a catequese com os índios, enfatizando o
predomínio da ordem capuchinha e dos militares para a civilização dos gentios. Além de
estabelecer o meio pacífico para catequizar os índios, deixou-os sob a administração espiritual

5
Teófilo Benedito Otoni, em suas Notícias sobre os selvagens do Mucuri, em carta destinada ao IHGB no ano de
1858, descrevia a população indígena do Mucuri, composta até aquele momento por: Macunis, Malalis,
Machacalis, NakNenuks, Aranaus, Bakués, Biturunas, jyporocks, e Pojichás, todos identificados como parte da
nação botocudos, denominação genérica para os índios que usavam botoques (alargadores) na boca. Em
Itambacuri havia um pouco de cada aldeia, o grande obstáculo ao trabalho missionário e considerados o “flagelo
do Mucuri”, eram os Pojichás. Ver mais em: DUARTE, Regina Horta. Notícia sobre os Selvagens do Mucuri.
Belo Horizonte: UFMG, 2002.
6
Op.cit; p.105
7
Segundo José Oscar Beozzo, que analisou as leis e regimentos da política indigenista no Brasil colônia e
império, a lei de 1845 parecia ter dois objetivos, por fim aos conflitos armados nas áreas de expansão do Estado
Nacional, e liberar as terras indígenas para a ocupação da lavoura. Ver mais em: BEOZZO, José Oscar. Leis e
regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.

1296
dos missionários. O novo Regimento das Missões reutilizava alguns pressupostos do
Diretório Pombalino8, como a manutenção do cargo de Diretor das aldeias.

Em Minas Gerais, o decreto de 1845 traria alguns missionários para a fundação de


aldeamentos nas regiões de fronteira, principalmente no leste e norte da província. No
entanto, é somente a partir de 1872 que começa efetivamente uma política sistemática, com a
criação de aldeamentos centrais. A lei nº 1921 de 19 de Julho de 1871, sancionada pela
Assembleia provincial mineira, estabeleceu as diretrizes para a consolidação de cinco
aldeamentos centrais, cuja função era aglutinar os índios dispersos pelos vales do rio Pardo,
Jequitinhonha, Mucuri, Doce e Grande.9

Segundo o presidente da província de Minas em 1873, Joaquim Floriano de Godoy, a criação


desses aldeamentos respondia a uma demanda da região, o desenvolvimento do comércio e da
lavoura, sendo que a civilização da província estava no sucesso de tal empreendimento. A
catequese era vista por Godoy, e outros que o precederam, como Joaquim Pires Machado
Portella, que criou o decreto nº1921 de 1871, como um assunto talvez secundário em outras
províncias, mas fundamental para o progresso do nordeste mineiro. Em meio a conflitos locais
e disputas em torno da colonização do Mucuri, a missão dos capuchinhos se consolidou como
uma opção concorrente à imigração estrangeira, defendida pelos Liberais da região,
representados pela família Ottoni.

Nesse sentido, o aldeamento de Itambacuri pode ser analisado como um verdadeiro palco de
disputas entre representações10 e discursos que se materializaram nas práticas de missionários,

8
O Diretório Pombalino foi criado em 1755 pelo irmão do Marquês de Pombal Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, então governador do Maranhão e Grão-Pará, para regulamentar as questões referentes à administração
dos índios e sua liberdade. Somente em 1757 este se estendeu as outras províncias. Com esse documento foram
regulamentadas e, em alguns pontos, reformadas a Lei de liberdade dos Índios de 1755, dispondo sobre a
liberdade dos índios e abolindo as administrações das ordens religiosas. Estabeleceu que os índios, apesar da
maioridade assegurada anteriormente pela lei de 1755 precisavam ser tutelados. A figura do diretor civil surge
nesse documento como o responsável por levar os índios ao trabalho e a civilização. Por esse mesmo documento,
os aldeamentos, então sob a administração temporal e espiritual dos jesuítas deveriam se transformar em vilas
sob a administração civil. Além de perder a tutela e controle sob os aldeamentos, os jesuítas foram expulsos do
Brasil em 1759/1760 acusados de usurpar as terras indígenas e sua mão de obra em benefício próprio. Foi
somente em 1798 que o Diretório Pombalino foi abolido, dando início a uma fase conhecida na historiografia
como “guerra aos bárbaros” e ausência de uma política “branda” no tratamento do índio, só retomada com o
Regulamento de 1845. Ver mais em: BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista
no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.
9
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais pelo presidente da província
Joaquim Floriano de Godoy no ato de passagem de sua administração para o vice-presidente Francisco Leite da
Costa Belém. Ouro Preto, Tip. de J.F. de Paula Castro, 1873.
10
Segundo Roger Chartier, Representações são classificações, divisões e delimitações que organizam a
apreensão do mundo social. Estas, devem ser pensadas como “apropriação criadora” porque permite perceber as

1297
índios e nacionais. Os missionários capuchinhos frei Ângelo e Serafim eram, nesse sentido,
representantes de uma Igreja reformista em um espaço criado para atender aos interesses de
um projeto de Estado. Nesse ambiente híbrido, dificilmente poderemos pensar em imposições
culturais, mas em circulações, em adaptações que criaram uma cultura própria, que traduziam
para além das pretensões universalistas da Igreja e do projeto colonial, uma experiência
Ultramontana.

Segundo Gustavo Souza de Oliveira (2010, p.14), em sua dissertação sobre o movimento
Ultramontano em Minas Gerais, o processo reformador do Catolicismo no século XIX, levado
a diante por alguns bispos, a saber, Dom Antônio Ferreira Viçoso (Bispo de Mariana), Dom
Antônio Joaquim de Melo (Bispo de São Paulo), Dom Antônio de Macedo Costa (Bispo do
Pará) e Dom Vital de Oliveira (Bispo de Olinda) esteve longe da rigidez apregoada por Roma,
adaptando-se às necessidades locais. Nosso objetivo é pensar no desenvolvimento dos ideais
reformadores a partir da sua práxis nas missões dos capuchinhos frei Serafim de Gorizia e frei
Ângelo de Sassoferrato, e de que forma estas contribuíram para a formação de uma cultura
religiosa no nordeste mineiro.

A civilização católica em ação: as missões e a práxis ultramontana

Segundo Louis Châtellier (1995, p.262), “o Ultramontanismo teve suas origens nas missões
jesuítas nos campos europeus, que buscavam varrer da cultura popular vestígios de uma
crença pagã através da catequese”. No século XIX, o movimento reformador do Catolicismo
seria identificado por seus adversários perjoritivamente como “jesuitismo”.

A partir Concílio Tridentino, ocorrido entre 1545 e 1563, a Igreja Católica pretendeu expandir
suas missões pelas terras de missão, inaugurando o que Nicolas Gasbarro (2006) chamou de
Cristianismo em ação. Segundo Gasbarro, “o encontro entre diferentes culturas deu origem a
um outro cristianismo[...]” (2006, p.78) a partir do qual as relações sociais entre os grupos
envolvidos se forjaram dentro de um código específico. Dessa forma, para o autor, as religiões
são pensadas do ponto de vista cultural, como representações históricas que aspiram
universalidade. Essa pretensão de uma cultura universal a partir da expansão do Catolicismo
era um dos pressupostos do Concílio Tridentino. No entanto, a cultura religiosa no Brasil se

ressignificações dos objetos de uma forma dialógica e não verticalizada, fixa e irredutível. Ver mais em:
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa, Presença, 1998.

1298
criou a partir de bases familiares, particulares e desvinculadas do poder central da Sé Romana.
Na coletânea sobre a História da Igreja no Brasil, em sua segunda edição, o historiador da
CEHILA, Eduardo Hoornaert descreveu a religiosidade no Brasil Colônia “com traços dos
elementos da Idade Média: oratórios, ermidas, pregadores itinerantes, confrarias, casas de
misericórdia, romarias, festas dos padroeiros e paróquias” (2008, p.112). Estas características
teriam, segundo o autor, inibido uma verdadeira “consciência religiosa” entre o povo, que
além de tudo sofria pela carência de religiosos dedicados exclusivamente aos trabalhos
espirituais.

Na Europa, este conjunto de manifestações da religiosidade popular sofreria profundas


modificações, mesmo antes das exigências de Trento, através das missões populares
desenvolvidas pelas ordens religiosas, como a jesuíta e capuchinha. Corroborando com a
análise de Hoornaert, Riolando Azzi (1992) enfatiza, que o Catolicismo no Brasil foi
deformado devido ao regalismo vigente. Assim, segundo Azzi, nas terras brasileiras as
decisões tridentinas pouco afetariam o Catolicismo, uma vez que este sofreu limitações pelo
regime do padroado, que desde a colônia orientava as relações entre Estado e Igreja. Os
reformadores do Catolicismo brasileiro enxergariam nos missionários capuchinhos um
apêndice para levar a cabo processo de evangelização conversão das almas pobres e
“ignorantes” dos sertões.

Os reflexos da filosofia tridentina durante o século XIX estariam presentes no movimento


Ultramontano iniciado por Bispos ligados aos preceitos de uma Igreja mais romana e menos
regalista. O espírito Ultramontano era o da reforma católica, e da formação eclesiástica do
clero, mas também era a preocupação com a difusão do evangelho, educação religiosa e moral
entre a população.

O final da década de 60 e início da 70 do oitocentos marcava no Brasil uma profunda crise


entre Estado e Igreja, culminando com a Questão Religiosa(1873-1875). Não nos cabe aqui
entrar nos pormenores da questão, uma vez que não é o foco do nosso trabalho. No entanto, é
visível que luta contra a Maçonaria, e contra todos os “demônios” da modernidade se
acentuam a partir da década de 70, principalmente com a convocação do Concílio do Vaticano
(1869-1870) e a luta declarada contra o Liberalismo e Maçonaria.

O jornal O Apóstolo, ao se dirigir contra a “praga” maçônica, e tomando como exemplo o que
se passava na Europa, recomendava ao povo:

1299
Será talvez esta a ultima que vos dirigimos, por occasião da seita maçônica que se vai
introduzindo no nosso bispado, e que daqui a pouco produzirá entre nós as mesmas
desordens que está produzindo nas Bispados litoraes do Imperio. Abram os olhos vem, e
vejam o que vai lá pela antiga Europa, e o que vai acontecendo entre os nossos vizinhos.
Cada um agarre bem o que tem, diz S. João no Apocalypse, tene quod habes. É christão?
Seja verdadeiro christão até a morte. Temos quem nos dirija para a felicidade deste mundo,
obedeçamos: temos quem nos dirija para a feliidade do outro, obedeçamos.

Mas se aquelles nos dissere: – a sociedade maçônica é boa, nada tem contra a religião; e a
outra autoridade nos disser: – é má, é péssima; não entre nella. Que faremos? Nosso
Senhor diz: “Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos despreza a vós, a mim
despreza”.11

Nesse contexto de verdadeira guerra contra as ideias Liberais, Maçônicas e de expansão do


protestantismo no Brasil, o clero reformador teve a ajuda das ordens regulares, como as
capuchinhas, jesuítas, e outras que haviam retornado ao Brasil, para levar à população isolada
das dioceses o espírito ultramontano e reformador através da difusão do evangelho nos
aldeamentos e vilarejos próximos do mesmo.

A práxis ultramontana pôde ser vislumbrada em Minas Gerais através da criação de


aldeamentos em regiões problemáticas para a atuação da administração civil e também do
clero secular, pouco adepto a esse tipo de trabalho. Em relatório à Assembleia Provincial
mineira, o diretor geral dos índios, Antônio Luiz de Magalhães Musqueira, elogiava a criação
dos aldeamentos centrais naquela província e comparava a situação dos índios antes e depois
da adoção do trabalho dos missionários capuchinhos.

Honra e glória ao governo Imperial, que se empenha em pagar sua dívida com Deus
estendendo misericórdia e civilização aos índios. As aldeias estavam até aquele momento (
antes da criação dos aldeamentos centrais) (grifo meu) nas mãos de diretores omissos, que
morando distante das aldeias, sem receber remuneração pecuniária ou honorifica( já que a
graduação de tenente-coronel não era vitalícia) não se interessavam em entranharem-se nas
matas para civilizar os gentios[...]12

Ainda no relatório, Musqueira ressaltava que a chegada dos frades Serafim e Ângelo seria
uma solução para os problemas enfrentados pela província com os conflitos entre os colonos e
índios no Mucuri. “Estes, longe de repelirem os frades, o que não seria de admirar, visto o

11
PASTORAL. Transcrição O Apóstolo. Seção Noticiário. 24/08/1873. Rio de Janeiro. Nº34, Ano VIII, p.5.
12
Relatório do diretor Geral dos índios, 30 de novembro de 1872. In: Relatório que o presidente da província
Joaquim de Godoy apresentou à Assembleia legislativa provincial em 15 de Janeiro de 1873, p.12.

1300
estado de hostilidade em que se achão com os colonos, foram logo visitá-los em
Philadelphia[...]”13, mais tarde Teófilo Otoni, em homenagem ao político liberal. Este havia
desbravado o Vale do Mucuri através da sua Companhia de Comércio e Navegação, criada
juntamente com Honório Benedito Otoni em 1847.14

A ocupação do Mucuri pela Companhia de Teófilo Otoni se realizou através da imigração


estrangeira, principalmente com famílias de colonos oriundos da Alemanha. Regina Horta,
seguindo a mesma linha que outros15 estudiosos sobre a questão indígena no século XIX,
apontou a transferência do foco sobre a mão de obra indígena para o interesse em suas terras,
como preocupação primordial da sociedade oitocentista. Dessa forma, a autora ao analisar a
ocupação do Mucuri e as relações entre índios e colonos, apontou para as disputas entre os
mesmos, e a consequente violação das terras dos indígenas e sua dizimação pelos fazendeiros
locais, e posteriormente sua dominação cultural, imposta pelas ações missionárias na região.

Para além dessa visão verticalizada, de sobreposições de culturas nas relações em disputa em
torno da natureza e sociedade em Itambacuri, Marta Amoroso (2009, p.67) enfatiza o papel
dos aldeamentos na construção de sociabilidades, ressignificação de identidades, e trocas
simbólicas.

Para a autora, através da Propaganda Fide,16 as missões dos capuchinhos ganharam um teor
mais moderno, devido à preocupação do Vaticano em romanizar o Catolicismo. Nesse
sentido, a antropóloga enfatiza a preocupação dos missionários capuchinhos em desenvolver
uma metodologia de conversão dos índios em cristãos trabalhadores.

A missão capuchinha praticada em Minas Gerais pelos missionários italianos guardava,


dessa forma, grande proximidade em sua prática com o exercício de reflexão de um

13
Relatório do diretor Geral dos índios, 30 de novembro de 1872. In: Relatório que o presidente da província
Joaquim de Godoy apresentou à Assembleia legislativa provincial em 15 de Janeiro de 1873, p.13.
14
A historiadora Regina Horta Duarte organizou correspondências e cartas escritas por Teófilo Otoni acerca dos
povoadores do Mucuri, os índios que lá habitavam quando chegou sua companhia, e em especial os relatos de
Otoni foram, que foram respostas às críticas feitas pela opinião pública à sua empresa. Ver mais em: DUARTE,
Regina Horta. Notícia sobre os Selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
15
Entre alguns estudiosos da questão indígena no século XIX, cuja teoria do deslocamento do interesse da
sociedade imperial do índio para suas terras, apontamos o trabalho de José Oscar Beozzo, Leis e Regimentos das
missões: política indigenista no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.
16
Campanha pela propagação da fé instituída pela Igreja católica no Século XVII. Foi criada em 1622 pelo Papa
Gregório XV e consolidada pelo seu sucessor papa Urbano XIII por meio do “Colégio Urbano de Propaganda”
em 1627, que organizou formalmente o processo de difusão da doutrina Cristã nas chamadas “terras de
Missões”. Os capuchinhos no Brasil estavam diretamente ligados a Propaganda, pela qual recebia suas
orientações. Esta dependência direta de Roma e não do Padroado dava as missões capuchinhas uma maior
liberdade de ação do que dispunha, por exemplo, as ordens seculares. Para mais informações ver: PRIMÉRIO,
Fidélis Mota de. Os capuchinhos em terras de Santa Cruz nos séculos XVII, XVIII e XIX. Apontamentos
Históricos. São Paulo, 1942.

1301
historiador da Ordem: em ambos os terrenos, tratava-se de enfrentar a decomposição
apenas aparente do universo, tendo em vista sua representação recomposta. No caso de
Itambacuri, a missão católica pretendeu apresentar a mistura purificadora, da qual emergiria
a unidade possível, o índio que pela mistura das raças era feito cristão laborioso.
(AMOROSO, 2009, p. 65)

A lógica da missão enquanto uma extensão do aparelho burocrático imperial perpassa a


historiografia acerca dos aldeamentos. Nosso objetivo, porém, sem esquecer do papel desses
locais como parte de um projeto maior de colonização, é entende-los em suas práticas
cotidianas, onde papéis e funções ganhavam novos significados. As missões em Itambacuri,
podem, nesse sentido, nos fornecer informações para compreender as práticas missionárias a
partir de seus próprios discursos, modos de operação e adaptações, que fujam dos discursos
simplistas de imposições culturais.

Em busca da terra de Canaã: a missão de Itambacuri e o trabalho de evangelizar os


povos no nordeste mineiro

Ao falar das missões de Frei Serafim e Ângelo em Itambacuri, o jornal O Apóstolo exaltava a
eficiência das missões capuchinhas em contraposição ao projeto liberal de colonização e
civilização das áreas de fronteira através da imigração estrangeira.

Oh! preço inestimável do preciosissimo sangue de nosso adorável Redemptor! Oh!


Exemplo edificante da abnegação apostolica dos verdadeiros ministros do Senhor! Oh!
Poder inaudito da verdadeira caridade.

Ah ! Se os nossos políticos ao menos equiparassem as missões catholicas no Brazil, tão


cheias de caridade, desinteresse, á essa immigração as mais das vezes de astrosa, que tantos
actos de avareza e cupidez deslustram, e com a qual o governo gasta milhares e milhares de
contos de réis... já nossos ubérrimos sertões admittidos no seio da grande família brazileira.

Um cento de Missionarios Capuchinhos, espalhados, pelos nossos sertões, faria mais do


que actualmente fazem essa chusma de emissários da colonisação, que nos vão empurrando
para cá quanta escoria encontram nos paizes estrangeiros. 17

A “escória” a que o jornal se referia eram os colonos alemães, belgas, suíços, portugueses e de
outras nacionalidades que partiram da Europa para colonizar o nordeste mineiro. Era
recorrente no jornal relacionar a imigração estrangeira à desordem, republicanismo e

17
MUCURI. Transcrição O Apóstolo. Seção Comunicados. 24/08/1873. Rio de Janeiro. Nº34, Ano VIII, p.3.

1302
protestantismo, em contraposição, as missões católicas seriam a melhor opção para a
Monarquia, uma vez que traziam os valores sedimentares da civilização, Catolicismo e
trabalho.

Além de ser portadora da “verdadeira” civilização, pois era a que levava o homem a conhecer
a palavra de Deus e seguir a doutrina cristã, as missões católicas, defendia o jornal, estavam
abnegadas de qualquer outro interesse, que não o da ação apostólica.

Em sua narrativa acerca da fundação do aldeamento de Itambacuri, frei Jacinto Palazzolo


(1973) enaltece a obra dos freis capuchinhos como uma verdadeira epopeia, homens sem
qualquer interesse material, que fundaram um verdadeiro campo de apostolado. Logicamente
essa visão apologética de Palazzolo estava relacionada aos objetivos do seu livro, que era
perpetuar a memória das missões franciscanas no Brasil.

Frei Serafim, abandonando então o rio São Mateus e cedendo às insistências dos índios,
acompanhado pelos mesmos, tomou o caminho indicado, em busca da terra de Canaã. Na
tarde do dia 19 de fevereiro de 1873, Frei Serafim, seu fiel companheiro e sua estranha
comitiva chegaram ao alto da serra que divide as águas do Itambacuri e Córrego d’Areia.
Do alto, dominando as alturas do soberbo vale que se deparava com extasiando a vista,
como que arrebatado pela beleza selvagem do panorama imponente, compreendeu ser
aquele lugar indicado pela vontade de Deus para plantar o marco da fundação do
aldeamento e a tenda do seu apostolado, inspirado e com acento profético, exclamou:
DAQUI NÃO SAIREI MAIS! (PALAZZOLO, 1973, p.43).

A descrição feita pelo historiador da Igreja sobre a fundação do aldeamento de Itambacuri


ressalta a ação desbravadora dos missionários no “descobrimento” de uma verdadeira terra
prometida. Tal como a visão de Abraão acerca de uma terra santa, rica e abundante, a
visualização de Itambacuri trazia alusão para Palazzolo ao mesmo acontecimento. A promessa
de uma próspera civilização nas selvas do Mucuri, através do trabalho dos missionários se
efetivaria na transformação do aldeamento em uma cidade. Nesse sentido, para o autor, a
grande obra de frei Serafim e Ângelo foi a de criar as bases de uma futura civilização
Católica, ordenada e convertida pela fé e trabalho nas matas do Mucuri.

Para além da visão apologética de Palazzolo, pensamos no aldeamento de Itambacuri não


apenas como local para a catequese e civilização indígena, mas também para atender as
necessidades dos moradores próximos ao estabelecimento, como famílias pobres oriundas das
colônias circunvizinhas e de outras províncias como as do nordeste. Em Relatório à

1303
Assembleia Provincial no ano de 1875, o então presidente da província, Pedro Vicente de
Azevedo trazia em anexo o relatório do diretor geral dos índios, Luiz de Magalhães
Musqueira, que falava sobre a situação do aldeamento e das lavouras plantadas pelos freis
para atender as necessidades dos habitantes de Itambacuri. A descrição de Musqueira
enfatizava os profícuos resultados daquele aldeamento, que até aquele momento havia
plantado 12 mil pés de café, roças de milho, além de terem construído alguns edifícios, para a
moradia dos freis, e outros dois para a educação de meninos e meninas, além de engenhos. A
Igreja matriz estava em construção, e o Diretor falava também da existência de casas para
famílias que ali moravam, oficinas, e uma cadeia18.

As famílias de nacionais que moravam em Itambacuri vinham em busca de moradia e também


comida, as roças plantadas no aldeamento possibilitava o mínimo para os mesmos. Estas
famílias eram auxiliares na civilização dos índios através do matrimônio. O casamento entre
lavradores indígenas e nacionais possibilitou uma “transformação espontânea dos selvagens”
(PALAZZOLO, 1973, p.196).

Palazzolo, ainda argumentando sobre as relações de fraternização entre nacionais e índios no


aldeamento de Itambacuri, defendia o progresso moral desse estabelecimento, para onde
inúmeras famílias se direcionavam para ouvir a palavra de Deus e receberem os Sacramentos.
“Duas mil pessoal, entre índios e civilizados, tomaram parte na imponente procissão! Duas
mil pessoas, em sua maioria arrancadas às trevas do paganismo, incorporadas à vida cristã,
pelo zelo inexcedível dos missionários” (Ibid., p.81). É importante ressaltar, porém, que não
era só a palavra de Deus que eles buscavam, mas também abrigo e comida.

A seca que muitas vezes castigava o nordeste mineiro e sertões baianos obrigava algumas
famílias à se dirigirem para Itambacuri, mas nem sempre a convivência com os índios era
pacífica, como queria demonstrar Palazzolo. Para Izabel Missagia (2004, p.24), “nunca houve
em Itambacuri a vitória da civilização, uma vez que os índios, mesmo após 20 anos de
aldeamento se revoltaram contra frei Serafim e Ângelo”.

No entanto, ressalta a socióloga “O Mucuri era para todos um país encantado, uma espécie de
Eldorado. Muitas caravanas penetraram então em suas cabeceiras” (MATTOS, 2004, p.254).
As lendas sobre Itambacuri continuaram na imaginação dos missionários e seus relatos, como
também no imaginário da população mineira, que acreditava existir lá uma promessa de
18
Relatório da Diretoria Geral dos Índios de Minas Gerais, anexo ao relatório de 1875, apresentado à
Assembleia pelo presidente da província Pedro Vicente de Azevedo.

1304
salvação da miséria. Esse Eldorado, na visão dos políticos adeptos à catequese missionária,
estaria relacionado a potencialidade da região para o desenvolvimento da agricultura e
comércio, que só seria realizável quando todos os obstáculos fossem retirados, ou civilizados
na ótica do progresso.

O ano de 1879 marca o início de uma crise nos aldeamentos centrais em Minas Gerais. Pela
leitura dos relatórios percebemos que, após a saída provisória de Musqueria da Diretoria
Geral, definitiva em 1880 com sua morte, os relatórios traziam algumas dúvidas sobre a
eficácia dessas missões. Em 1879, alguns aldeamentos são extintos, como o do Etueto, sendo
seus diretores acusados de má administração e de desvio de verbas públicas. Em 1880 veio o
golpe final, com o corte da ajuda pecuniária destinada aos aldeamentos.

Em 1889, o relatório de presidente de província trazia em sua seção sobre a catequese alguns
dados sobre a situação de Itambacuri.

A população propriamente indígena do Aldeamento de Itambacury eleva-se atualmente a


1050, sendo 511 do sexo masculino e 539 do feminino, mas existem ainda ali, entre
mestiços e nacionais 1010 indivíduos, em sua maior parte vinculados aos índios por
casamento[...] Possui o aldeamento, além da matriz, de sólida construção, e elegante
arquitetura, edifícios para escolas, para habitação dos diretores e dos índios, e para
máquinas. As escolas de primeiras letras, regidas por dois indígenas, são frequentadas por
19
108 alunos, 55 do sexo masculino e 53 do feminino.

A construção da matriz ocorreu no ano de 1883, depois de vários pedidos de ajuda de frei
Serafim para tal empreendimento, alegando que a partir desta se poderia pensar no progresso
de Itambacuri, através da fundação de uma cidade ao redor da igreja. “Estava ali erguido não
somente o templo material, mas a julgar pelo número de fiéis que se chegaram nesse dia à
mesa eucarística, aí estava formado um grande rebanho de Cristo, milhares de almas
arrancadas das trevas da barbaria [...]” (PALAZZOLO, 1973, p.114).

Considerações finais

19
Fala apresentada à Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais pelo vice-presidente barão de
Camargos por ocasião da instalação da 2.a sessão da 27º legislatura. Ouro Preto, Typ. de J.F. de Paula Castro,
1889, p.15.

1305
Buscamos nesse trabalho relacionar as missões capuchinhas com o desenvolvimento de uma
práxis ultramontana no nordeste mineiro. A partir da análise de alguns relatórios de presidente
de província e do jornal O Apóstolo foi possível visualizar certa esperança depositada nas
ações dos freis Serafim de Gorizia e Ângelo de Sassoferrato para a civilização dos habitantes
do vale do Mucuri.

Itambacuri ficava em um vale rico, com terras férteis e abundantes, muito bem aproveitadas
por trabalhadores nacionais e índios na plantação de gêneros de subsistência e comércio. O
milagre, apregoado aos missionários capuchinhos, abnegados apóstolos do evangelho, na
sobrevivência do aldeamento não poderia acontecer sem os braços que o sustentavam, criando
condições para que o mesmo sobrevivesse mesmo sem a ajuda do governo.

No entanto, não era só aos índios que servia o aldeamento, como vimos, muitas famílias iam
para o mesmo aos domingos e feriados, quando as celebrações aconteciam, como missas,
festas do padroeiro, ou para receber os Sacramentos. Devido à vacância comum naquele
momento, Itambacuri serviu como paróquia para onde um considerável número de pessoas se
deslocavam.

Para além da rigidez apregoada pelo Concílio Tridentino, as missões capuchinhas forjaram
práticas, em que a presença da Igreja e suas regras de comportamento, cuja inspiração era do
movimento Ultramontano, tiveram que se adaptar. Nesse sentido, fugimos dos discursos
triunfalistas, das apologias da primazia Seráfica, que enxergaram nos capuchinhos heróis
desbravadores, verdadeiros agentes de civilização. E por outro lado, também criticamos o
entendimento das missões reduzido à empresa colonial, uma vez que, como disse
anteriormente, elas produziram discursos e práticas culturais. Portanto, esta breve análise nos
indica que o aldeamento de Itambacuri era um espaço em que a prática ultramontana ficava
entre o “rígido e flexível”, ou seja, absorvida pela lógica cotidiana.

Fontes
Relatórios de Presidente de Província (1830-1930) disponíveis no endereço eletrônico:
http://www.crl.edu/brazil/provincial/minas_gerais
Jornal O Apóstolo, disponível no Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica da
Universidade Federal de Viçosa.
Referências

1306
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capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.13, nº 37, 1998.
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(Tese de doutorado), FFLCH, Universidade de São Paulo, USP-SP, 2008.
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PRIMÉRIO, Fidélis Mota de. Os capuchinhos em terras de Santa Cruz nos séculos XVII,
XVIII e XIX. Apontamentos Históricos. São Paulo, 1942.

1307
1308
A Lavagem de Santana: disputas e expressões de fé

Rennan Pinto de Oliveira1

Introdução

A “Nova” História Cultural trouxe para a historiografia novos campos de estudos que geraram
transformações nas concepções sobre história. As mudanças de concepções transformaram a
forma de ver e estudar a história, substituindo antigos paradigmas, como a história das
mentalidades, por novos, permitindo aos historiadores o debruçamento num variado campo de
estudo, entre eles, a Festa como um espaço de dinamicidade, movimento e sociabilidade,
composto por diferentes variáveis, apresentando diversos significados e sentidos. Segundo
Abreu, a Festa pode ser “um atraente caminho para se conhecer uma coletividade, suas
identidades, valores e tensões, através das atitudes, dos comportamentos, dos gestos e do
imaginário presente em suas celebrações.2” Considerando os festejos em homenagem à
Senhora Santana como uma grande festa dividida em várias etapas, ela pode se apresentar
como um amplo campo de estudos e análise para a pesquisa histórica.

As primeiras notícias a respeito do culto e devoção a Senhora Santana são de 1732, com o
casal Domingos Barbosa e Ana Brandão. Segundo Galvão3, no século XVIII, o casal dou à
Igreja Católica um terreno no Alto da Boa Vista, onde foi erguida uma capela em homenagem
a Santana e a São Domingos”, inicialmente, vinculada à Paróquia de São José da Itapororocas,
pertencente à comarca de Cachoeira.

Durante os dias dedicados a Festa de Santana, as homenagens se constituíam de diversos


momentos, isto é, do Bando Anunciador da Lavagem do Templo, da Levagem da Lenha, das
novenas, trezenas, missas e por fim, da procissão recepcionada, com queima de fogos,
quermesse, e as apresentações das filarmônicas e retretas que se apresentavam antes das

1
Mestrando em História pela UEFS. Contato: rennanoliveira5@yahoo.com.br.
2
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999. p.38.
3
Chegou a Feira de Santana no ano de 1965. E logo assumiu a posição de pároco da cidade e Cura da Catedral
de Santana. Dois anos depois, em 1967, foi promovido a Monsenhor. Na Universidade Estadual de Feira de
Santana, UEFS foi professor de Estudos de Problemas Brasileiros e Vice-Reitor nos dois mandatos de José
Maria Nunes Marques, Além de ter produzido e publicado vários textos, artigos e monografias sobre temas
históricos, religiosos e antropológicos, entre os quais merece citação “O Clero Baiano no Século XIX” e “Os
Povoadores da Região de Feira Santana”, este último foi publicado na Revista Sitientibus.

1309
missas e novenas. Esta composição de ordenamento da Festa da Padroeira de Feira de Santana
tinha significados, sentidos e simbolismos peculiares.

Dentre estas etapas que constituem a Festa tanto, aqui em Feira de Santana, quanto nas festas
de santos estudadas por Couto4, a Lavagem e seu comportamento parecem seguir um
fenômeno semelhante ao que acontece nas festas de largo na capital baiana, a exemplo a
Lavagem do Bonfim em Salvado, um dos objetos de estudo da autora.

A Lavagem de Santana é também uma festa dentro da Festa maior, pois leva consigo
elementos singulares que não se repetem em outras etapas da Festa de Santana. Sendo a
Lavagem uma “Festa” ela também podem ser definida como uma prática cultural, se a
colocarmos numa perspectiva historiográfica voltada para o estudo da cultura, a qual tem se
preocupado com temas voltado para esse aspecto, permitido pela chamada História Cultural
ou História Social da Cultura como discute Silva Lara5.

A Festa pode ser compreendida, entre outras coisas, como um ritual, produtor de símbolos e
significados que podem ser decifrados e compreendidos, além de poder ser vista também
como um texto passível de ser lido e investigado pelo historiador,assim como fez, Darnton ao
analisar através de um documento escrito por um burguês as relações sociais presente na
França do século XVII. Ele textualizou os ritos e as expressões na procissão que acontecia na
cidade de Montpellier “não para descobrir todos os quens, quês, onde e quandos de um
acontecimento, mas para ver o que o acontecimento significou para as pessoas que dele
participaram6”.

Sendo a Festa espaço de socializações, ela pode revelar como afirma Vovelle “um
maravilhoso campo de observação, momento de verdade em que um grupo ou uma

4
COUTO, Edilece Souza. As Lavagens nas festas Católicas de Salvador-BA. Ciências Humanas em revista, v.7,
n.2, São Luis/Ma, 2009.p.01.
5
Em seu artigo História Cultural e História social, Silvia Lara discute a importância do convívio e traz
complementações que essas duas linhas teóricas (alvo de tantos debates) podem trazer para a pesquisa e para a
resolução dos problemas apresentados pelo campo de estudos históricos. Ainda segundo a autora, recentes
trabalhos da “história social vêm demonstrando que não só "novos" aspectos da experiência humana devem ser
levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos para as complexas
relações culturais que os informam. ”(2008, p.3). Defende, também, que o historiador social, em seus estudos,
não pode deixar de levar em conta, os aspectos econômicos e culturais de uma sociedade, pois poderá correr o
risco de ser simplista nas suas investigações.
6
DARTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de
Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986. Darton 1986
p.295.

1310
coletividade projeta simbolicamente suas representações de mundo, e até filtra
metaforicamente todas as suas tensões.7”

A Lavagem de Santana sendo uma expressão cultural popular, também fazem parte do campo
simbólico, pois nele estão contidos símbolos que são desempenhados pelos participantes, de
forma direta ou indireta. Durante a saída do cortejo da Lavagem pelas ruas de Feira de
Santana, seus diversos símbolos e códigos podem ser interpretados e compreendidos através
do olhar matizador do historiador.

Assim como também podem ser captadas as relações de tensões e disputas quando se olha a
Festa como um espelho refletor de uma realidade existente na sociedade feirense, pois nesse
momento de realização do evento se presentificam nela fragmentos da realidade representados
por seus participantes durante o consumo do festejo. A pesquisa se propõe analisar os
diversos aspectos da montagem e funcionamento da Lavagem, além de buscar como as
performances produzidas pelos participantes da Lavagem produziram choque de
representações desencadeadora de disputas entre organizadores/participantes com a Igreja
Católica feirense.

A Lavagem e suas performances culturais

A Lavagem era um ritual encenado de forma cadenciada através das várias performances dos
sujeitos integrantes dessa etapa da Festa, dividida em dois momentos supostamente distintos,
porém complementares: um mais contrito com a entrada de pessoas no templo e outro que
pode ser considerado uma grande festa momesca devido a sua organização de ritual-cortejo.

Sendo o ritual como expressa Cox (1974) uma “forma de ação humana, que alimenta a
fantasia e corporifica-a na sociedade e na história” 8, nessa manifestação popular de caráter
historicamente construído, os partícipes se liberavam de suas restrições morais e sociais,
expressando corporalmente seus desejos e fantasias através dos gestos, movimentos e dança
embalada pelos sons das zabumbas e bandinhas. Nesse dia muito se era permitido: homem se
vestir de mulher, mulher se vestir de homem, se mascarar, se vestir de baiana, sendo a

7
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Tradução Maria Julia Cottuasser. 2ª Ed. São Paulo, SP:
Brasiliense, 1991.p.247.
8
Cox, Harvey. A festa dos foliões, 1974. Ed. Vozes

1311
criatividade o grande marcador da originalidade das fantasias materializadas para serem
usadas na Festa da Lavagem.

Esse dia pode ser comparado a uma grande manifestação carnavalesca, não com um caráter de
inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval, também não parece
se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute o autor. A Lavagem de
Santana parece ser composta por manifestações de caráter polissêmico9 apresentado pelas
suas multivivências, produtoras de significados para seus partícipes.

Eles se apropriavam da Festa para revelar seus sentimentos e representar, mesmo por um
curto tempo, a sua fé na padroeira da cidade. Participar da Festa podia ter um sentido muito
mais amplo de compartilhamento, cumplicidade, curtição e até mesmo de homenagem, sendo
possível também unir todos esses sentidos.

A Festa da Lavagem acompanhada ora por bandinhas, ora por Trio elétrico, acontecia na
Praça da Matriz. Esta festa, dita profana, devia e acontecia fora dos muros da Igreja, pois o
templo religioso deveria ser resguardado da profanação, sendo possível apenas a Lavagem de
seu chão e santuários no turno oposto à Lavagem “carnavalesca” que acontecia sempre à tarde
normalmente depois das 16h.

A separação e divisão de espaços evidenciam as fronteiras desses dois universos - o sagrado e


o profano10 - proibidos pela Igreja Católica de imiscuir-se, porém o grande paradoxo é saber
que a Lavagem também fazia parte da festa em homenagem a Santana e era indissociável
dela. Essa separação não aconteceu apenas entre os anos 60 e 80, a Igreja Católica feirense já
assumia essa postura desde as primeiras décadas do século XX quando proibiu os batuques e
festança nos espaços considerados sagrados e no interior da Igreja Matriz.

A Lavagem era um lugar de participação de todos, inclusive dos mais abastados da cidade. Os
filhos de empresários, comerciantes, médicos, populares, homens, mulheres, crianças e jovens
outros que estudavam na capital vinham se fantasiar para se entregar à diversão e saírem pelas
9
Esse caráter polissêmico da Festa da Lavagem toma como base os estudos de ABREU, Marta em O Império do
Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900...; de CUNHA, Maria Clementina
Pereira em Carnavais e outras f(r)estas: ensaio de história social da cultural; de Vovelle, Michel em Ideologias
e Mentalidades, em seus estudos sobre religião popular; e COUTO, Edilece em Tempo de festas: homenagens a
Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940).
10
Nesta proposta de pesquisa as noções de Sagrado e Profano são fundamentadas, inicialmente, a partir dos
escritos de Eliade (1992) e a discussão de Serra (2009). O sagrado e o profano são tidos como espaços de
circulação entre homens que se consideram homens religiosos, mas também fazem parte da festa profana no
Bando e na lavagem, existindo pessoas também que só fazem parte apenas da parte litúrgica ou apenas dos
festejos profanos e outros que transitam nos dois espaços.

1312
ruas. O universo da Lavagem era composto por agentes fixos e outros flutuantes, misturados
em prol de um interesse comum: a diversão e a fé. Puxando a Lavagem, tradicionalmente,
estavam as porta-bandeiras.

No começo, de manhã, corria o zabumba a recolher os porta-bandeiras. Apanhou Calu e lá


se foi o grupo buscar Paciência. Eram velhas raparigas, agora de respeito, de idade
provecta, que se apresentavam de saia bem rodada e bata aberta em rendas, como
costumavam vestir-se. Apanhavam agora Feliciana Carneiro. (BOAVENTURA, 2006,
p.22).

A narrativa do memorialista nos remete ao cenário das primeiras décadas do século XX,
apesar de não citar, as características apresentadas nos levam a supor que parece ser às
baianas a quem se refere. Nos anos 50 o grande destaque na comissão de frente da Lavagem é
a baiana Dolores do acarajé11, já entre os anos de 60 e 80, a Lavagem era pensada e levada
pelos terreiros de candomblé da Ialorixá12 Mãe Socorro e do Babalorixá Zeca de Iemanjá,
figuras cativas e marcantes na Lavagem13. Na sequência, organizadas pelos barraqueiros, em
sua maioria, vinham as carroças sempre enfeitadas e prontas para a disputa da mais bela.

Misturando-se aos partícipes da Lavagem estavam os mascarados e os fantasiados diluídos


entre as pessoas. Valia de tudo, o mais importante era a criatividade e a capacidade de
singularizar-se no meio de uma manifestação coletiva de tantos “atores”, criando e elaborando
de forma hilária suas performances, apresentadas aos espectadores a partir dos diversos temas.
Considero a Lavagem de Santana uma espécie de performance cultural. Esta, segundo Geertz
(1989), é encenada publicamente também como rituais religiosos, sendo

unidades de ação discrimináveis, caracterizadas por ocorrerem durante um determinado


período de tempo; englobando ainda, um programa organizado de atividades, um conjunto
de performers, uma audiência e um lugar ou ocasião para realizar a performance
(SANTOS, 2006,p.02a).

Santos (2006b) afirma ser a performance cultural também composta da mídia cultural,
referindo-se aos modos de comunicação que incluem igualmente a linguagem falada e os
meios de comunicação não linguísticas, tais como o canto, a dança, a encenação, as artes

11
Sua presença na Lavagem é narrada nas memórias de Lajedinho em seu livro de memórias: A Feira na década
de 30 (memórias); [s.n] Feira de Santana, 2004.
12
Ialorixá e Babalorixá são chefes de um terreiro de candomblé.
13
A presença dessas duas figuras é comentada nos jornais Feira Hoje e Folha do Norte durante anos de 1980 a
1987.

1313
plásticas e gráficas - que se combinam de várias maneiras para expressar e comunicar o
conteúdo de uma determinada cultura.

Como uma performance cultural e texto passível de ser lido, a Lavagem de Santana se
organizava a partir de uma linguagem com códigos compartilhados entre os sujeitos
participantes envolvidos em um enredo desdobrado em multivivências. Sua composição
heterogênea sugere que o cortejo seja visto não só em seu aspecto religioso. Contudo, como
discute Santos (2006c), a respeito da Lavagem do Bonfim, em Salvador, este tipo de festejo
deve ser visto “como um instrumento vivo e abrangente de comunicação social utilizado pelos
diferentes grupos que dela participavam para tornarem públicos os conteúdos, valores e
símbolos14”, e no transcorrer do cortejo era possível “impor um panorama móvel”, uma
espécie de imagem pública, repleta de significados15.

Assim como a Lavagem do Bonfim, a Lavagem de Santana também possuía seu panorama
móvel marcado pelas práticas dos participantes em suas performances, constituído por uma
forma de ser e acontecer singularizando-se diante das outras manifestações presentes nas
homenagens a Santana16. A conduta dos participantes os identifica a partir de suas práticas
expressas através de seu jogo corporal e dança cadenciados pela energia rítmica e sonora do
som das bandinhas e zabumbas. Neste movimento se exalava sensualidade e outras
simbologias aceitas no universo da Lavagem, mas totalmente rejeitadas em outro universo
social-moral.

Esta expressão corporal simbolizante da Festa era uma marca de representatividade


transmitida e reproduzida pelos participantes nos seus ciclos de mudanças e transformações
da Festa. Ela tinha práticas e formas verticalizantes ao longo de sua existência tais como a
presença das baianas, das músicas com tom de ambiguidade e ironia, das brincadeiras e
irreverências.

14 Ibidem p.12.
15 Ibidem p.12.
16 Para Paul Zumthor (2007), a performance “está marcada por sua prática – manifestação cultural lúdica não
importa de que ordem ( conto, canção, rito, dança), na performance o corpo é veículo que da forma ao que se
quer se comunicar, a performance envolve o uso da linguagem poética e que todo ato de performance é
reflexixvo, ou seja, cria uma experiência ao mesmo tempo em que reflete sobre ela.

1314
Extravagância e Encenações nas performances dos Travestidos e da Tribuna Popular

Levados pelas músicas de duplo sentido logo atrás das baianas, das carroças, das bandinhas e
zabumbas vinham os travestidos17, transitando entre sua ala e as das baianas, pois muitas
vezes eles se fantasiavam de baianas, mas eram facilmente reconhecidos por destoarem delas
pelos tons de cores extravagantes estampado nas suas roupas e enfeites.

Fotos 1,2 e 3 são do grupo de travestido participantes na Lavagem de Santana 18

A Festa da Lavagem para eles parecia ser um avesso 19 ou travessura, rompiam, em certa
medida, com a ordem estabelecida, mas não faziam dela uma inversão total como acontecia

17
O jornal os coloca como travestis, porém tenta fazer a diferença entre os travestis que ganham a vida usando
roupas de mulher e os Travesti de carnaval, aqueles que saiam, exclusivamente, na Lavagem. Discussão travada
no jornal Feira Hoje (26/01/82), Ano XII, n.2305.
18
Foto 1: Travesti caricato: sutiã de maiô, saia midi de chita, lenço. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305,
Foto 2: O Travesti passa, uma Senhora o aponta e a criança fica espantada. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII,
n.2305, Foto 3: Ilkias, o “Momo” de travesti: eufórico. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305.
19
Tomo emprestado o conceito explicitado pela Marlene Soares Pinheiro (1995) em seu estudo sobre o carnaval
-“em termos sócio-culturais, a noção de avesso se prende a toda e qualquer linguagem, principalmente a
comportamental, que contradiga as “boas normas” da moral vigente”. p. 21. Avesso é toda e qualquer linguagem

1315
nos carnavais medievais apontados por Burke (2010), nos quais ficavam em suspensão por
um tempo a ordem estabelecida e tudo era permitido desde a mudança de hierarquia à
liberação total do prazer corporal. Como no carnaval europeu ou no próprio carnaval
brasileiro, a Lavagem dentre suas manifestações apresentava encenações e performances
próprias, nas quais eram representados temas e mensagens diversos, falando de sexo, formas
de fé, religião, maternidade e política.

Participavam do grupo dos travestidos, tanto homens comuns, quanto filhos de comerciantes,
empresários, industriários, além de homens solteiros, casados ou até os enrustidos que não
podiam se expressar no cotidiano, pelos tabus e preconceitos existentes. De forma lúdico-
festiva, eles tinham seus corpos modelados por roupas femininas e maquiagem para, de forma
irreverente, fazer suas performances para o público.

No momento do desfile, os homens comuns, vestidos de mulher, quebravam sua rotina - como
apresentado nas fotos 1, 2 e 3 - se abandonando ao divertimento, à irreverência e de forma
ousada rompiam, como já fora dito os limites e regras sociais, se deixando fotografar sem
nenhum temor. Eles brincavam, a exemplo de “ ‘Um casal’, ‘ele’ de uns 30 anos, ela de uns
45 anos, perguntavam aos espectadores se queriam ver ‘um beijo’, mas logo depois
explicavam: é um beijo de mentirinha20”. Os travestis se entregavam ao som esfuziante das
bandinhas.

Eles eram a grande maioria da Lavagem, sempre engrossavam o cortejo com suas centenas de
participantes distribuídos nas ruas e eram admirados por seus observadores das calçadas, pela
ousadia (quase transgressora). Apesar de, muitas vezes, serem criticados, eles já faziam parte
da identidade da Lavagem, como descreve o jornal Feira Hoje, no ano de 1987: “os
personagens que, nos últimos anos, tanta polêmica vem despertando na comunidade feirense,
ora estimulando elogios, ora conduzindo as críticas ferrenhas - no sentido de estarem
desvirtuando a intenção sacro-folclórica da Lavagem de Santana21”.

Somando-se aos travestidos, às baianas, aos grupos folclóricos e outros. Estavam os


participantes da Tribuna Popular, representantes da fusão de dois importantes elementos na
performance cultural produzida pela Lavagem de Santana nas ruas da cidade: a irreverência e
o protesto com tons de críticas, ironia e sátira ao governo.

que, de forma inusitada, de súbito, perverte o hábito de estar e de ser, instaurando uma nova interrogação,
captação pura, ao textualizar ou ler um nascedouro nuança do mundo. p.21.
20 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV, nº3213, p.05.
21 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 23/01/1987, Ano XVI, nº3611, p.03.

1316
Levando reflexões da realidade vivida para a comunidade e seus espectadores “se utilizam de
dramatizações para protestos [...] 22”. A Lavagem não era um palco aberto somente para várias
expressões de fé, mas também um espaço para reivindicações políticas e protestos populares.
Através de suas dramatizações encenadas ao público, o Movimento de Tribuna Popular trazia
profundas críticas, feitas de formas criativas diversas, fosse a partir das metáforas, símbolos e
ludicidades ou de cartazes e faixas. Eles apresentavam para seus observadores, situações da
realidade que estavam diretamente ligadas ao momento presente. Isso nos permite concluir
que a Lavagem era também um espaço de critica de fina ironia das relações sócio-econômicas
e políticas vividas no país.

As Baianas na Lavagem

Concentradas no adro da Igreja Matriz, na Praça Padre Ovídio, as Baianas chegavam cedo
para se organizar e dar início ao cortejo da Lavagem, numa expressão de fé e ratificação da
ancestralidade afro-brasileira tão presente nas festas de largo na Bahia. Elas eram organizadas
nos primeiros anos da década de 1980 pelo Ialorixá Mãe Socorro, líder Terreiro de Oxossi,
situado na Rua Nova, e o Babalorixá Zeca de Iemanjá, líder do Terreiro Ilê Oguntê Omi Lodô,
localizado no Campo Limpo. Ao longo dessa década, foram introduzidas no cortejo da
Lavagem, Baianas de outros terreiros da cidade. Assim noticiou o jornal Feira Hoje23 sobre o
convite feito pela SETUR para a participação na Lavagem de Santana as baianas dos
Terreiros de Ogum do bairro Tomba sobre o comando de Mãe Benta Machado, do centro de
Mãe Zeti, além da presença de Baianas de Terreiros de Santo Amaro da Purificação e de
cidades da circunvizinhança para prestar suas homenagens a Senhora Santana ou Nanã, a
senhora dos lagos no sincretismo religioso.

Elas transitavam na Festa da Padroeira em três diferentes espaços: primeiramente, na


Lavagem, abrindo esse ato, considerado pela Igreja como profano e desvinculado da
instituição; dias depois, estavam presentes na Lavagem da Lenha, conforme Lajedinho
(2004), elas substituíam os vasos de água e flores levados na cabeça por feixes de lenhas para
serem colocadas na frente da Igreja Matriz e formar uma grande fogueira para lembrar os
tempos em que a cidade não possuía luz elétrica; e no último momento, seguiam a procissão,
o espaço sagrado que marcava o fim das homenagens à padroeira. A procissão foi o cenário

22 Noticia publicada no Jornal Folha do Norte,24/01/80, Ano LXX , nº 4676.


23 Jornal Feira Hoje 27/01/1984 ano XIV nº 2964.

1317
onde se apresentaram as maiores tensões e diferenças da Igreja para com os seguidores do
candomblé.

As Baianas, representantes principais da Lavagem na década de oitenta, percorriam o circuito


trazendo alguns dos ritos e símbolos dos terreiros para as ruas. Naquele momento, era
possível tornar público parte dos rituais e mecanismos de funcionamento do candomblé, como
encerrar o cortejo dando bênçãos e espargindo água de cheiro como símbolo purificador nas
cabeças dos seus acompanhantes, além de praticar a Lavagem simbólica do adro da Catedral
de Santana. Toda essa perfomance cultural estava associada “aos ritos lustrais realizados nos
terreiros de candomblé durante a Festa pública conhecida como “Águas de Oxalá”, quando
um dos mitos de Oxalá é revivido anualmente24”.

O desenvolvimento desse ritual de saudação ocorria então em dois momentos – realizado,


inicialmente, pela Ialorixá Mãe Socorro e, na sequência, por Zeca de Iemanjá, e seu registro
jornalístico nos dá os vestígios para compreender os lugares ocupados por eles na Lavagem e
seus papéis na realização dela. O Terreiro dos dois organizava a festa nos primeiros anos da
década de 1980.

As baianas, mas do “que representavam a personagem indispensável para a eficácia simbólica


do ato da Lavagem no imaginário dos [seus] participantes 25”, no largo do templo. Elas
revelam aos seus espectadores outra imagem passível de um diálogo entre religiões diferentes
em um mesmo momento festivo, apesar dessa mistura de práticas religiosas do candomblé e
do catolicismo nem sempre ser aceito por alguns setores da sociedade religiosa feirense, como
demonstra Josilvado Pires de Oliveira, em seus estudos sobre o candomblé e o curandeirismo
entre os anos de 1938 a 1970, na cidade de Feira de Santana26.

Durante a Lavagem as Baianas levavam para seus participantes e espectadores imagens e


representações repelidas e negadas pela Igreja Católica, em especial nos anos 70 e 80. O
resultado foi o choque de representações entre o que se expressava na Lavagem e como a
Igreja desejava ser representada. Naqueles anos o jogo de equilíbrio e sustentação da
Lavagem foi posto em risco. Os interesses do Clero, dos organizadores e participantes da

24 Ibidem p.09.
25 Ibidem p.09.
26 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. Adeptos da mandinga”: candomblés, curandeiros e repressão policial na
Princesa do sertão (Feira de Santana-Ba, 1938-1970). CEAO/UFBA: Salvador, 2010. Nesta tese de
doutoramento, ele estuda as perseguições e repressões policiais e políticas que o candomblé e seus membros
sofriam durante este período.

1318
Lavagem pareciam não entrar mais em negociação e conciliação, por conseguinte, ela parecia
apresentar sinais de que poderia acabar. Em alguns momentos essa ordem se tensionou e
quase rompeu, mas se recriaram novas relações ou se tirou de linha o objeto tensionador,
destarte o ponto de equilíbrio durou até 1987, quando ela foi extinta juntamente com outras
manifestações consideradas profanas pela Igreja Católica feirense.

Considerações finais

O estudo desenvolvido sobre a Lavagem de Santana teve o objetivo de analisar os diversos


aspectos da montagem e funcionamento da Lavagem, além de buscar como as performances
produzidas pelos participantes da Lavagem produziram choque de representações
desencadeadora de disputas entre organizadores/participantes e a Igreja Católica feirense.

Com base na pesquisa e no material usado pela pesquisa como livros de memorialistas e em
especial as notícias de jornais publicadas pelo Feira Hoje foi possível chegar a algumas
conclusões. Como a compreensão que a Lavagem tinha uma linguagem própria, formadas por
códigos e símbolos que a representava e dava a ela um caráter diferenciado das outras etapas
da festa de Santana como o Bando Anunciador e a Procissão realizada pela Igreja como
última etapa dos eventos em homenagem avó de Cristo.

A Lavagem pode ser comparada a uma grande manifestação carnavalesca, não com um
caráter de inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval, também
não parece se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute o autor. A
Lavagem de Santana parece ser composta por manifestações de caráter polissêmico27
apresentado pelas suas multivivências, produtoras de significados para seus partícipes.

Nela se exaltava a democracia e o respeito das diferenças, pois nela cabiam as Baianas,
travestido, carroceiros, cavaleiros e os protestos das condições sócias, políticas e econômicas
do país e região feito pelo Movimento de Tribuna popular, além dos seus espectadores que em
muito momentos acabavam saindo das calçadas e seguindo o cortejo puxado pelas baianas.

27
Esse caráter polissêmico da Festa da Lavagem toma como base os estudos de ABREU, Marta em O Império
do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900...; de CUNHA, Maria Clementina
Pereira em Carnavais e outras f(r)estas: ensaio de história social da cultural; de Vovelle, Michel em Ideologias
e Mentalidades, em seus estudos sobre religião popular; e COUTO, Edilece em Tempo de festas: homenagens a
Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940).

1319
Esse momento festivo trazia as varias visões de mundo, os espaços ocupados pelo
participantes no desfile durante o cortejo e os conflitos de poder. Entre os vários conflitos
encontrados pela pesquisa estavam as disputas pelo comando do cortejo entre Zeca de
Iemanjá e Mãe Socorro e o da Igreja diante a necessidade de acabar com a festa profana sob a
justificativa de distorção do verdadeiro sentido religioso da festa.

A partir da interpretação e descrição da Lavagem foi possível perceber que ela foi apropriada
de diversas formas pelos seus participantes, que a deram significados e sentidos próprios,
permitindo multivivências e expressões culturais apresentadas através das performances
culturais dos sujeitos participantes.

O Cortejo da Lavagem era uma grande festa, que tinha sentidos diferentes: para Igreja era um
grande ato de profanação e desrespeito ao sagrado, para a prefeitura e Secretária de Turismo
podia representar um grande potencial lucrativo e turístico uma vez que aumentava a
densidade populacional da cidade resultado do evento e para o povo era uma grande
manifestação das expressões populares. A grande querela se dava nos choque desses sentidos
e a disputas de interesses entre a Igreja, a Setur e o povo, que resultou na suspensão de toda
parte profana da festa e em especial a mudança de janeiro para julho das comemorações a
Santana, que foi resumida a parte religiosa.

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1322
1323
A produção conflituosa e controversa do aspecto religioso do
Espiritismo nos tempos de Allan Kardec (1857-1869)
Alexandre Ramos de Azevedo1

Introdução

O presente trabalho é uma retomada das reflexões produzidas no decorrer da pesquisa que
culminou com a defesa e aprovação, em 2006, da dissertação de mestrado desenvolvida sob o
título Abrigos para a infância no Brasil: por que, quando e como os espíritas entraram nessa
história? (AZEVEDO, 2006), no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, cujos resultados foram apenas parcialmente divulgados
(AZEVEDO, 2009; 2010).

No âmbito daquela pesquisa, identificamos o quanto a Modernidade transformou a tradição


cristã e colaborou para dar ao Espiritismo uma boa parte de sua identidade, tanto no campo do
discurso doutrinário quanto no das práticas sociais empreendidas na esfera histórica e secular
do movimento espírita. O Espiritismo teria, então, um pé na tradição cristã milenar e o outro
na Modernidade. Por isso, ele agiu de acordo com ambas as lógicas, junto ou separadamente.

Na lógica moderna, também entrou na disputa hegemônica do processo civilizador, com seu
projeto particular de mundo. Para isso, fez uso de espadas e escudos e sua fé se materializou
em monumentos que afirmaram seu vínculo com o Cristo, ou seja, sua identidade cristã. Estes
monumentos foram suas obras de caridade, dentre elas algumas que foram objeto da pesquisa
a qual nos reportamos como matriz para o presente trabalho: os abrigos ou asilos para a
infância órfã, desprotegida ou desamparada.

Aqui trataremos de um aspecto que consideramos importante para a compreensão deste grupo
social, da construção de seu imaginário e de sua identidade coletiva: a produção conflituosa e
controversa do aspecto religioso do Espiritismo nos tempos de Allan Kardec (1857-1869).

1
Mestre em Educação pela UERJ. Professor Substituto de Didática e Prática de Ensino na UFRJ, campus
Macaé. Técnico em Assuntos Educacionais no Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de
Macaé (NUPEM/UFRJ). Contato: somaralex@gmail.com.

1324
É interessante constatar como a controvérsia sobre o aspecto religioso perdura ainda hoje
neste movimento social. E escolhemos abordar essa controvérsia não como construção
posterior às obras consideradas basilares e constituintes daquela unidade que os espíritas
chamam de Doutrina Espírita, mas como elemento presente na própria construção dinâmica
destas obras, em um contexto histórico-social de conflito tanto no campo científico quanto no
religioso. E para isso, precisamos contar com as ferramentas da história cultural.

A história cultural como referencial teórico-metodológico escolhido

Em Chartier encontramos a seguinte definição para o referencial teórico-metodológico que


adotamos:

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito
às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as
classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e
partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as
figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o
espaço ser decifrado (CHARTIER, 1990, p. 16-7).

Essa visão construtivista da realidade social vinha ao encontro de nossas expectativas,


permitindo ampliar a ideia das descontinuidades e continuidades que apreendemos em
Foucault. Dava maior liberdade para entendermos os atores individuais e coletivos
produzindo formas diferenciadas de pensar e agir no mundo, mesmo que dentro de um
processo histórico mais geral, como a modernidade. O mundo poderia, então, ser subdividido
em grupos menores, com suas representações compartilhadas. Enfim, encontramos um lugar
no mundo para os espíritas, com seus discursos e práticas, sem esquecer, no entanto, que eles
estão encarnados no mundo, onde produzem e reproduzem suas identidades sempre em
relação, comparação e até conflito com os outros.

Neste sentido, concordamos em parte com Chartier quando afirma que:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios

1325
indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições
cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações
têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos
quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que
são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1990, p. 17).

Dissemos que concordamos apenas em parte porque não chegamos a ver, na história que
estamos contando, os espíritas em geral e, em especial, os brasileiros, numa luta pelo poder ou
pela dominação do ponto de vista político. Mas desde que o movimento espírita se organizou
para divulgar sua doutrina, há sim uma luta para afirmação social e pela conquista do espaço
que têm como seu. Acreditam que o Espiritismo veio para ficar e se expandir, a fim de
contribuir para a transformação social do planeta, como consequência da regeneração
humana, individual, através de várias reencarnações. Neste sentido, encontramos nos espíritas
uma prática com vistas a conquistar as mentes ou opiniões, em busca de uma hegemonia2
cultural. Entretanto, não é algo que se possa colocar em pé de igualdade com a luta de classes
e a revolução do proletariado, nem com a guerra santa, mas aceitamos a lógica das
concorrências e competição apresentada por Chartier que, neste sentido, assim conclui em
relação a uma de suas principais categorias de análise:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de


um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que
as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a
posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1990, p. 17).

Esta categoria de análise para Chartier distancia a nova história cultural de sua antecessora – a
história das mentalidades – que já proporcionava algum interesse e a possibilidade de se
ocuparem os historiadores com novos objetos, tais como “as atitudes perante a vida e a morte,
as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações familiares,
os rituais, as formas de sociabilidade, as modalidades de funcionamento escolar, etc.”
(CHARTIER, 1990, p. 14). Para ele:

Mais do que o conceito de mentalidade, ela [a noção de representação] permite articular três
modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação
e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a

2
Os discursos e as práticas que alguns personagens que ocuparam funções de destaque no movimento espírita do
período analisado, são semelhantes ao que foi proposto por Gramsci mais tarde, no que ele chamou de luta
hegemônica, conforme comparação que faremos adiante.

1326
realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas
que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no
mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas
institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas
ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da
classe ou da comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23).

Chegamos, então, a nos aproximar dos personagens que nos ajudarão a contar nossa história.
Pessoas singulares ou instâncias coletivas encarnadas no contexto sociocultural em que
existiram, ocupando posições de onde narram o que vêem, dão ênfase ao que está sendo mais
valorizado, realizam ou propõem a fundação de outras instituições com alguma função
específica etc.; enfim, produzem discursos e práticas que se tornam significativos –
representações coletivas – e que se incorporam no patrimônio cultural dos espíritas de sua
época e do futuro.

As representações não são meras fantasias ou quimeras, que habitam outro mundo que não
aquele ao qual acostumamos chamar de real, mas, segundo Chartier (1990, p. 18), são “as
matrizes de discursos e de práticas diferenciadas” e – citando Marcel Mauss – “mesmo as
representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são
verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos” (apud CHARTIER, 1990, p.
18).

E por falar em imaginação, alguns autores, tais como Sandra Jatahy Pesavento, ainda somam,
na condição de um novo e importante conceito que faria “parte do elenco de mudanças
epistemológicas que acompanham a emergência da História Cultural: o imaginário”
(PESAVENTO, 2004, p. 43). Este conceito parece se confundir com a ideia de representação
coletiva, pois segundo a autora citada “entende-se por imaginário um sistema de ideias e
imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si,
dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43).

Para esclarecer essa aparente igualdade de conceitos, nas palavras de Pesavento:

A ideia do imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um


conjunto dotado de relativa coerência e articulação. A referência de que se trata de um
sistema de representações coletivas tanto dá ideia de que se trata da construção de um
mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que
essa construção é social e histórica (PESAVENTO, 2004, p. 43).

1327
Ou seja, nos propomos a estudar diferentes aspectos do imaginário espírita. Estamos
buscando apreender o sistema de representações coletivas deste grupo social, que nos dá a
ideia de um conjunto – como acima foi dito – “dotado de relativa coerência e articulação”,
sem perder de vista de que se trata de uma construção social e histórica. Para isso, outra noção
importante tivemos a incluir acreditando fundamental dentre as categorias com as quais
trabalhamos, que é a de identidade, sobre a qual Pesavento (2004, p. 89-90) assim se refere:

Enquanto representação social, a identidade é uma construção simbólica de sentido, que


organiza um sistema compreensivo a partir da ideia de pertencimento. A identidade é uma
construção imaginária que produz a coesão social, permitindo a identificação da parte com
o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e estabelece a diferença. A identidade é
relacional, pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente ao eu ou
ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.

A obra de Allan Kardec como fonte desta pesquisa (1857-1869)

O ano de 1857, para os espíritas, é um marco importante, devido à publicação em Paris, no dia
18 de abril, da primeira edição francesa de O Livro dos Espíritos, obra de apresentação do
Espiritismo escrita por Allan Kardec, personagem fundamental desta história, que inclui
inclusive os Espíritos3.

Allan Kardec, na verdade, foi o pseudônimo escolhido por Hippolyte Leon Denizard Rivail
para divulgação do produto de suas pesquisas acerca da “imortalidade da alma, a natureza dos
Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o
porvir da Humanidade” (KARDEC, 2005b, p. 3), que iniciou com O Livro dos Espíritos
(1857), mas que teve continuidade em O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o
Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1866) e A Gênese (1868), as quais, em conjunto,
formam o que os espíritas brasileiros costumam chamar de obras básicas ou Pentateuco4. Foi
com esse nome, igualmente, que ele tomou as rédeas do movimento espírita nascente, tendo
como principal instrumento, além das referidas obras, o periódico mensal intitulado Revista

3
Não estranhem, mas os espíritas acreditam neles. Logo, o que os Espíritos dizem é significativo e deve ser
considerado pelos pesquisadores, que não precisam acreditar na existência dos mesmos, mas devem
compreender o papel que estes desempenham no imaginário do grupo social que estamos estudando.
4
Pentateuco por se tratarem de cinco obras. Além dessas, consideradas principais, Kardec publicou também
Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (1858), O que é o Espiritismo (1859), O Espiritismo na sua
expressão mais simples (1862), Viagem Espírita em 1862 (1862-3) e outras.

1328
Espírita, publicado sob sua inteira responsabilidade de janeiro de 1858, quando foi por ele
fundado, a abril de 18695.

Enfim, tivemos em mãos uma coleção de livros e periódicos, os quais tiveram uma função
importante em nossa análise, pois nela é que fomos encontrar a matéria-prima de onde
procuramos capturar a ação que nos interessa: discursos e práticas sobre a identidade espírita
e principalmente sobre o aspecto religioso desta identidade. Allan Kardec, com a Revista
Espírita e os diversos livros citados, fornece-nos as balizas para o nosso recorte cronológico:
1857 a 1869.

Mas os personagens em si não são propriamente importantes para o tipo de história que
queremos contar: uma história cultural. Entretanto, cada um ocupa certo lugar, de onde
observa, relata o que vê, produz ou mesmo reproduz opiniões e ideias que traduzem o espírito
da época e a identidade do grupo ao qual pertencem e que estão ajudando a formar, mas que
não se restringe apenas ao que já está posto concretamente naquele contexto, pois podem
também apontar para o que, acreditamos, está pronto ou maduro, para (re)aparecer, (res)surgir
ou (re)nascer, predizendo, prevendo, prescrevendo, projetando novas práticas ou,
simplesmente, atualizando práticas antigas.

Assim, os lugares ou funções que ocupam os personagens que vamos apresentar não podem
ser desconsiderados e, por isso, conferem relevo a estes sujeitos da história, que acabam se
tornando referência de nossa narrativa. Kardec, o codificador6 da Doutrina Espírita, aquele
que parece ter estabelecido a ordem do discurso espírita, definindo suas fronteiras iniciais, as
regras do jogo, mas que também inaugurou algumas práticas dentro do movimento espírita.
Mas também os Espíritos, cujo pensamento está transcrito nas obras de Allan Kardec, as quais
consultamos através de traduções conceituadas, editadas pela Federação Espírita Brasileira
(FEB)7.

5
Hippolyte Leon Denizard Rivail nasceu em Lyon (França), a 03 de outubro de 1804, e desencarnou – a morte
para os espíritas é chamada de desencarnação – em Paris, a 31 de março de 1869. Quando desencarnou,
portanto, a Revista Espírita de abril de 1869 já estava pronta. Somente na edição de maio daquele ano aparece a
notícia de sua morte e a revista passa a ser dirigida por um Comitê de Redação.
6
Kardec dizia que a doutrina era dos Espíritos e não dele. Não se apresentava como fundador do Espiritismo e
sim como codificador e, neste sentido, seu papel teria sido apenas o de reunir, baseado em critérios por ele
considerados racionais, científicos, e compilar as sínteses que foram publicadas na forma de livros.
7
Instituição fundada em 1884, que conquistou certa liderança no movimento espírita brasileiro e que teve
durante muitos anos o direito exclusivo de traduzir e publicar as obras de Allan Kardec em língua portuguesa.
Hoje essas obras estão em domínio público, mas as traduções publicadas pela FEB continuam gozando de grande
credibilidade entre os espíritas.

1329
A controversa e conflituosa construção do aspecto religioso do Espiritismo

Neste ponto, acreditamos importante estabelecer uma diferenciação que os adeptos do


Espiritismo fazem entre a doutrina e o movimento espíritas. A doutrina, para eles, é o
conhecimento produzido através da comunicação com os Espíritos, segundo alguns critérios,
dentre os quais aquele que Kardec batizou de universalidade dos ensinos dos Espíritos, o
qual, em resumo, significa dizer que o que um Espírito transmite através de um único médium
não pode ser acolhido como conhecimento fundamentado, mas apenas aquilo que for
confirmado através de vários Espíritos, por intermédio de diferentes médiuns e em lugares ou
centros distantes uns dos outros. Na prática, são consideradas obras doutrinárias,
fundamentalmente, os livros que Kardec publicou. Quanto ao Movimento Espírita, há um
entendimento de que este corresponde à organização social dos espíritas com vistas à
divulgação da doutrina codificada àqueles que não a conhecem. Neste sentido, o foco inicial
deste movimento também estava nas mãos de Kardec, que desde janeiro de 18588 passa a
publicar sua Revista Espírita.

Havia na época de Kardec um movimento muito mais amplo denominado Moderno


Espiritualismo, que englobava aqueles que em diferentes partes do mundo se interessaram em
estudar a realidade espiritual e estavam convencidos de que uma série de fenômenos que
ocorriam eram produzidos pelos espíritos daqueles que já viveram na Terra. Ou seja:
acreditavam que a morte era o fim da existência corporal, mas não da vida em si. Uma das
características que distinguia o moderno do antigo Espiritualismo era a pretensão científica
dos estudiosos, que a princípio e em geral não tiveram a intenção de criar novas religiões, mas
sim construir uma nova ciência ou uma nova filosofia, bem de acordo com o momento
histórico onde se situavam. Kardec pertenceu a essa gama de estudiosos, pois há muito vinha
se dedicando ao estudo do magnetismo humano.

Mas em algum momento o Espiritismo acabou assumindo também um aspecto religioso e isto
acreditamos ter ocorrido ainda quando sob a liderança de Kardec, residente em Paris. Só que
no Brasil, mais tarde, o chamado aspecto religioso da Doutrina Espírita parece ter se
desenvolvido numa intensidade ainda maior, tanto que os movimentos espíritas de outros
países, em seus discursos, ressaltaram várias vezes o caráter místico predominante entre os
brasileiros, que majoritariamente seguiram uma linha que muitos denominaram de

8
É bom recordar que a obra inaugural do Espiritismo – O Livro dos Espíritos – foi publicada em 18 de abril de
1857.

1330
espiritismo-cristão. Podemos dizer, sem muita dúvida, que existiram – e ainda existem –
muitos espiritismos, seja no transcorrer de sua constituição inicial, na França, seja também
mais tarde, nos vários países onde este fincou suas bases. Mesmo no Brasil, o Espiritismo
nunca foi homogêneo. Mas algo em comum entre esses diversos espiritismos e a chave para
entendermos a unidade nesta diversidade está em compreendermos como o Espiritismo
nasceu pelas mãos de Kardec, com múltiplas faces.

Basta conhecer algumas definições apresentadas por Allan Kardec, que a princípio
distanciavam o Espiritismo do terreno religioso, mas que, com o tempo, acabou firmando um
de seus principais apoios neste campo. Posteriormente, a corrente majoritária do Espiritismo
no Brasil acabou adotando a compreensão de que sua doutrina contemplava um tríplice
aspecto: científico, filosófico e religioso9. Seria importante estudar como e quando se firmou a
tese do tríplice aspecto, já que Kardec nunca conceituou o Espiritismo dessa forma,
explicitamente. Mesmo assim, não queremos questionar esse entendimento, mas demonstrar
que a doutrina espírita, assim como o movimento espírita, é um artefato cultural em constante
produção e reprodução. Não se trata, portanto, de um objeto estático.

Vejamos, então, as definições que havíamos prenunciado. Em 1859, no livro O que é o


Espiritismo:

O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica.


Como ciência prática ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos;
como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas
relações (Kardec, 2005c, p. 50).

Mas, no mesmo livro, Allan Kardec admite que:

Em resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente os espíritas que a buscavam, forçou-os a


retroceder; pela natureza e violência dos seus ataques ela ampliou a discussão e conduziu-a
para um terreno novo. O Espiritismo era apenas uma simples doutrina filosófica; foi a
Igreja quem lhe deu maiores proporções, apresentando-o como inimigo formidável; foi ela,
enfim, quem o proclamou nova religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina
melhor (KARDEC, 2005c, p. 126).

Ainda em 1859, na Revista Espírita de maio, respondendo ao Abade François Chesnel:

9
O aspecto religioso, sempre ocupando o último lugar nessa trilogia, acabou no decorrer do tempo e na prática
social assumindo a posição de maior destaque.

1331
Intitulais vosso artigo: “Uma nova religião em Paris”. Admitindo que tal fosse, com efeito,
o caráter do Espiritismo, aí haveria um primeiro erro, considerando-se que ele está longe de
circunscrever-se a Paris. [...] Em segundo lugar, o Espiritismo é uma religião? Fácil é
demonstrar o contrário. (KARDEC, 2004b, p. 204-5).

Mas no mesmo artigo, Kardec aproxima o Espiritismo da tradição cristã, da seguinte forma:

Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, e a prova disso é
que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso
renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu
culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas.
Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com as
observações espíritas. O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes
de toda questão dogmática. É verdade que tem consequências morais, como todas as
ciências filosóficas. Essas consequências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas
as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as
seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira
essência (KARDEC, 2004b, p. 205-6).

Apesar disso, permanece na posição de negar a alcunha de religião ao Espiritismo:

O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus
ministros. Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à
vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande
distância e creio que seria imprudência seguir tal ideia (KARDEC, 2004b, p. 206).

Entretanto, a relação com a tradição religiosa cristã era muito forte, tanto que mais tarde
surgem os livros O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, cujos
títulos já dizem um pouco do conteúdo sobre o qual versam. Assim, o Espiritismo, definido
inicialmente como ciência e filosofia, vai adquirindo cada vez mais sua vocação religiosa. Um
dos primeiros e maiores passos neste sentido foi dado com a publicação de O Evangelho
segundo o Espiritismo em abril de 1864, onde a doutrina espírita insere-se decisivamente na
tradição cristã, apresentando-se como a Terceira Revelação, após o advento de Moisés e,
depois, o aparecimento do Cristo, há 2000 anos (Kardec, 2004, p. 57). O Espiritismo seria,
ainda, o Consolador Prometido por Jesus, que teria dito, conforme consta do Evangelho de
João (14: 15 a 17 e 26):

Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro
Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: – O Espírito de Verdade, que o
mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a

1332
vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. – Porém , o Consolador que é
o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
recordar tudo o que vos tenho dito (apud KARDEC, 2004a, p. 144).

Antes mesmo de O Evangelho segundo o Espiritismo ter sido publicado, já era previsto seu
impacto no meio religioso, conforme trecho de mensagem atribuída a um Espírito, divulgada
mais tarde em Obras Póstumas10. Essa mensagem dizia, em 9 de agosto de 1863:

Aproxima-se a hora em que te será necessário apresentar o Espiritismo qual ele é,


mostrando a todos onde se encontra a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. Aproxima-
se a hora em que, à face do céu e da Terra, terás que proclamar que o Espiritismo é a única
tradição verdadeiramente cristã e a única instituição verdadeiramente divina e humana
(KARDEC, 2005a, p. 308).

Ainda antes, em 15 de abril de 1860, outro Espírito teria dito11 a Kardec:

O Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele reformará a legislação


ainda tão frequentemente contrária às leis divinas; retificará os erros da História; restaurará
a religião do Cristo, que se tornou, nas mãos dos padres, objeto de comércio e de tráfico vil;
instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai diretamente a
Deus, sem se deter nas franjas de uma sotaina, ou nos degraus de um altar. Extinguirá para
sempre o ateísmo e o materialismo, aos quais alguns homens foram levados pelos
incessantes abusos dos que se dizem ministros de Deus, pregam a caridade com uma espada
em cada mão, sacrificam às suas ambições e ao espírito de dominação os mais sagrados
direitos da Humanidade (KARDEC, 2005a, p. 299).

Logo, podemos dizer que o desenvolvimento do seu aspecto religioso era inevitável, pois que
entrou decididamente no domínio que era próprio da Igreja, a qual não aceitando os princípios
novos que o Espiritismo vinha propor, teria que, inevitavelmente, combatê-lo como uma nova
heresia. O confronto, mesmo que fosse de ideias, seria inevitável, de ambos os lados, a não ser
que um dos dois cedesse em favor do outro, o que efetivamente não ocorreu.

Mas o Espiritismo, essa nova religião cristã, teria desde o início características bem fortes da
Modernidade, a qual ajudou a gerá-lo. Dentre esses aspectos poderíamos destacar sua
tentativa de promover a aliança entre a Ciência e a Religião, bem como, o que é semelhante,
da fé com a razão:
10
Sua primeira edição foi em 1890 e reunia textos inéditos de Kardec, que ele não tivera tempo de publicar ou
que tenha achado por bem não o fazer. Lembremos que Kardec desencarnou em 31 de março de 1869.
11
Em geral, essas mensagens eram produzidas na forma escrita, através do que os espíritas chamam de
psicografia. A psicografia seria a mediunidade através da qual um Espírito escreve sua mensagem através do
médium, seu intermediário.

1333
A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as
coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher
o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no
conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo
corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos
seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se
à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo (KARDEC,
2004a, p. 63).

Por isso acreditamos ser possível falar de Espiritismo como uma Religião Moderna, algo
híbrido que em se definindo na prática desta forma, não deixa de estabelecer os conflitos que
terá a enfrentar, de um lado e de outro, bem como internamente. Em primeiro lugar porque,
propondo-se uma religião científica ou uma ciência religiosa – a ciência dos Espíritos –
acaba não sendo reconhecido como semelhante nem pelas ciências nem pelas religiões
estabelecidas ou tradicionais (VASCONCELOS, 2003, p. 93). Além disso, assumindo-se
como uma nova ciência perante uns ou sendo identificado como uma nova religião pelos
outros, teve que buscar seus fundamentos e parâmetros nos dois campos, mas à custa de
encontrar também neles seus principais opositores. É o preço justo a ser pago, para a
afirmação de uma nova identidade, pois o diferente há de surgir a partir dos referenciais que
obtém naquilo que já existe.

Os membros da Igreja católica serão seus principais opositores e muitas vezes perseguidores,
como maioria que eram tanto na França de Kardec quanto no Brasil, onde o Espiritismo
adquire muitos adeptos ainda no século XIX. Mas os ataques sofridos sempre tiveram
resposta nas páginas dos periódicos que consultamos12. Por outro lado, muitos são os
expoentes do catolicismo milenar que ressurgem como exemplos da caridade a que tanto os
espíritas prezam, além do que a presença destes mesmos expoentes, agora na condição de
Espíritos13, se faz uma constante seja no período da codificação kardequiana, ou seja mais
tarde no desenvolvimento histórico da doutrina espírita.

12
Estamos nos referindo aos periódicos: Reformador, órgão de divulgação da Federação Espírita Brasileira,
ainda em circulação; e Revista Espírita do Brasil, já extinta, publicada sob a égide da Liga Espírita do Brasil.
Tais periódicos figuraram entre as fontes para a pesquisa desenvolvida durante o mestrado em educação
(AZEVEDO, 2006).
13
Dentre os Espíritos que se comunicaram na época de Kardec, estão, segundo constam das fontes espíritas, São
Luis, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon etc.; ou seja, muitos dos santos e personagens que fizeram
história dentro da Igreja. Além disso, pode soar estranho para um texto acadêmico falar em Espíritos e
colocarmo-los como informantes de uma realidade. Mas a existência ou não dos espíritos não será posta aqui em
julgamento. Os espíritas acreditam nessa possibilidade e, por isso, as mensagens atribuídas a estas entidades

1334
No meio científico, não é tão diferente. Dentre os cientistas, havia aqueles que confirmavam e
os que negavam a realidade dos fenômenos espíritas, a sobrevivência da alma após a morte do
corpo físico e a possibilidade desta se comunicar com os vivos através dos médiuns ou se
tornando visível e até tangível, como é o caso do fenômeno de materialização de Espíritos,
estudado por alguns membros de corporações científicas da época. É claro que, para os
espíritas, a opinião favorável, vindo do campo científico, lhe era muito cara, devido mesmo a
sua pretensão de ser também uma ciência. Assim, as páginas dos periódicos que analisamos,
estão repletas de narrativas a respeito de cientistas espiritualistas ou dedicados à pesquisa
sobre a realidade espiritual. Sempre que havia a publicação de um livro ou a divulgação de
uma opinião favorável, isto era amplamente noticiado. Assim também, livros ou opiniões
contrárias provenientes dos homens de ciência acabavam objeto de outra gama de artigos, os
quais teriam a finalidade de contrapor com provas as conclusões adversas às teses espíritas.

Mas há também as divergências internas ao movimento espírita que atravessam sua história,
principalmente sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. Uns pendendo mais para o lado
científico-filosófico e outros para o religioso, tendo surgido ainda uma tentativa de consenso
formulada no tríplice aspecto da doutrina espírita, que procura reunir os dois lados num
equilíbrio que na prática acaba não ocorrendo. O aspecto religioso, principalmente no Brasil,
tem sido o hegemônico, apesar de nunca ter sufocado completamente vozes críticas que
existiram e continuam existindo.

Considerações finais

A partir da pesquisa que desenvolvemos, acreditamos ter percebido e podido destacar a


complexidade intrínseca ao estudo do conjunto de obras produzidos por Allan Kardec,
tomando como exemplo apenas um aspecto ou um detalhe que foi o objeto deste trabalho.

Mesmo sem questionar o caráter coerente e unitário desta obra, que foi considerada desde o
início como fonte ou repositório primário da doutrina espírita e das práticas desenvolvidas
pelos movimentos espíritas em todo o mundo, temos que ressaltar os aspectos dinâmicos da
construção desta obra.

metafísicas, como as que transcreveremos a partir deste ponto, têm grande importância na constituição do
imaginário e identidade coletiva desse grupo social, atuando no terreno de suas práticas e representações.

1335
Além disso, é importante compreender que os caminhos tomados pelo Espiritismo não
estavam sob o controle absoluto de Allan Kardec, assim como não tiveram nas mãos de
qualquer outro personagem isolado, grupo ou instituição que mais tarde ganhou destaque
nestes movimentos espíritas.

A produção do espaço social e cultural que aquela nova doutrina viria a ocupar, desde seu
início na França e mais tarde em diferentes lugares do mundo, dependeria dos conflitos e
disputas, mas também das articulações ou aproximações com os diferentes sistemas de
pensamento e tradições culturais existentes.

Em cada lugar e em cada contexto histórico, social e cultural, o Espiritismo e a doutrina


espírita terão produzido formas diferentes de organização, de práticas e arranjos discursivos,
para atender suas necessidades de momento e para continuar a construção que não tem fim.

Referências

AZEVEDO, Alexandre Ramos de. Abrigos para a infância no Brasil: por que, quando e
como os espíritas entraram nessa história? Orientação de Luiz Cavalieri Bazilio. Dissertação
(Mestrado em Educação), UERJ, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em
<http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5481>. Acesso em 18, ago,
2013.

__________. Abrigos espíritas para a infância: uma descoberta da infância sob o lema “fora
da caridade não há salvação”. In: SAMPAIO, Jáder (Org.). Pesquisa sobre o Espiritismo no
Brasil: textos selecionados. São Paulo: CCDPE-ECM, 2009, p. 155-170.

__________. Os espíritas e Anália Franco: práticas de assistência e escolarização no início do


século XX. Cadernos de História da Educação, v. 9, n. 2, p. 293-307, jul./dez. 2010.
Uberlândia, Editora da UFU, 2010.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


1990.

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 124. ed. Rio de Janeiro: Federação
Espírita Brasileira, 2004a.

__________. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano segundo – 1859. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004b.

__________. Obras póstumas. 35. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005a.

1336
__________. O livro dos espíritos. 85. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2005b.

__________. O que é o espiritismo. 51. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2005c.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.

VASCONCELOS, João. Espíritos clandestinos: espiritismo, pesquisa psíquica e antropologia


da religião entre 1850 e 1920. In: Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 92-
126, dez. 2003.

1337
1338
As representações do bispado brasileiro nos debates sobre a lei da
Separação do Estado das Igrejas em Portugal (1910 – 1911)

Carlos André Silva de Moura1

Dentro do territorio da Republica [portuguesa] ninguem póde ser perseguido por


motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que
professa.

(Art. 3.º da Lei da Separação do Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911
[DG 92, 21/4; CLP 1911, p. 430 – 446])

Os movimentos decorrentes da separação entre o Estado e a Igreja Católica no Brasil (1890) e


em Portugal (1911)2 envolveram vários setores da sociedade: os representantes das ideias
republicanas dos dois países, que defendiam as leis como afirmação de uma modernidade
política; os intelectuais conservadores, que discursavam contra as mudanças no status quo
nacional de cada lugar; e os membros do clero, diretamente atingidos com a nova realidade da
sua instituição.

Partindo das rupturas vivenciadas no mundo luso-brasileiro no final do século XIX e as


primeiras décadas do século XX, observamos como os diálogos entre os eclesiásticos
portugueses e brasileiros foram importantes para a formação do discurso de recatolização no
país ibérico. Ressalvamos que os formatos de separação político-religiosa nas duas
localidades guardaram especificidades. Enquanto no Brasil se desenvolveu uma separação que
permitia a manutenção da “parceria” entre os membros dos poderes civil e religioso, em
Portugal foram instituídas ações que distanciavam o clero do Estado, causando reações
anticlericais oriundas do governo e da população.

Desse modo, as atividades do projeto de Restauração Católica organizadas por clérigos


brasileiros serviram de exemplo para as movimentações que contribuíram com a reação
clerical no país ibérico. Neste instante, o bispado brasileiro passou a ser visto como uma
1
Doutorando em História na UNICAMP. Bolsista da FAPESP, com Estágio Sanduíche no Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa (ICS – UL). Orientado pela Profa. Dra. Eliane Moura da Silva. Contato:
casmcarlos@yahoo.com.
2
Durante o texto, utilizamos como marco para a separação entre o Estado e a Igreja Católica as datas de
publicação das respectivas leis no Brasil e em Portugal. Mesmo antes da divulgação das normais pelos
respectivos governos, após a proclamação das republicas, já se tinha estabelecido a secularização nos países.

1339
instituição atuante em um lugar que mesmo em processo de secularização, mantinha sua
organização em diálogo com o Estado para as ações de combate a “desordem”3.

Destacamos que o movimento de Restauração Católica foi desenvolvido pela Cúria Romana
com o objetivo de restabelecer o seu poder político, social e cultural nos países que estavam
propondo leis seculares e / ou laicizantes. Colaborando com o projeto católico, intelectuais
conservadores e religiosos mantiveram-se empenhados em países como a França, Portugal,
Espanha, Brasil e tantas outras localidades que apresentaram atritos entres o membros do
poder político e religioso.

Brasil e Portugal apresentaram características diferenciadas em seus movimentos,


principalmente quando aos formatos de secularização e/ou laicização adotados em cada
localidade. Os dois países desenvolveram projetos seculares que estavam de acordo com os
movimentos de modernidade política oriundo da Europa. A separação do Estado e da Igreja
era uma ação reivindicada por muitos movimentos políticos, inclusive entre alguns membros
do clero mais “iluminados”4.

Os conceitos que envolvem os processos de secularização e laicização muitas vezes são


utilizados como sinônimos. No entanto, suas aplicações apresentam importantes distinções
para a análise do movimento político-religioso que estamos investigando. Enquanto o
conceito de secularização está ligado a “saeculum (mundo, sobretudo, em sentido negativo na
sua relação com a salvação)”, o termo da laicidade “tem a sua raiz em loas (povo), donde vem
leigo e laico, em contraposição a clérigo, no quadro da hierarquização da Igreja e da tentação
do controlo total das ideias e valores que deveriam reger o mundo” (CATROGA, 2006, p. 08
– 09).

Em termos gerais, a secularização estava envolvida com a liberdade religiosa garantida pelo
Estado brasileiro, em 1890, e Português, em 1911. Em contrapartida, os movimentos de
laicização atingiram setores mais amplos da sociedade. Para Fernando Catroga, a laicização
3
Para Georges Balandier a desordem existe quando um elemento de um conjunto não está em harmonia com o
todo. Por isso, os discursos da Igreja Católica caracterizavam a desordem como as doutrinas da esquerda política,
o anticlericalismo, o pensamento moderno, as formas simbólicas de laicização, dentre outras ações que não
estavam em consonância com os ensinamentos da Cúria romana Cf. BALANDIER, 1997: p. 45.
4
Em pesquisa realizada na Biblioteca Nacional Portuguesa, encontramos várias cartas e discursos de líderes
católicos que defendiam a separação do Estado e da Igreja, por acreditarem que a secularização em Portugal
garantiria liberdade à instituição religiosa. Os debates também destacavam que com o formato, a Igreja Católica
passaria a ser subordinada apenas as ordens da Cúria romana.

1340
do Estado exige um programa compreensivo que tem seu ponto “nevrálgico no ensino e, de
modo mais abrangente, no domínio do espiritual e do simbólico. Combatendo a hegemonia
das Igrejas, nomeadamente da Igreja Católica, que se opôs tantas vezes à modernização”
(CATROGA, 2006, p. 08 – 09).

Os processos de laicização nos dois países aqui analisados foram diferentes pelas relações que
a Igreja Católica manteve com cada Estado após a sua secularização. Para José Mattoso, o que
distinguiu o procedimento de separação do Estado do clero em Portugal e no Brasil foi a
forma de reconhecimento da Igreja Católica nas leis de cada uma das nações. Em Portugal, a
Lei da Separação de 20 de abril de 1911 ignorava a existência de uma Igreja submissa a
Roma. O objetivo dos promotores dessa lei não era apenas a separação das duas instituições,
mas a laicização do Estado, a estatização e/ou “secularização” do cristianismo em terras
lusitanas. Evitava-se o modelo de “sociedade” independente como no Brasil, pois para os
republicanos portugueses a parceria implicaria na criação de um Estado religioso dentro de
um espaço laico (MATTOSO; RAMOS, 1993, p. 407 e 409).

Analisando as leis que instituíram a secularização nos dois países, percebemos que o
reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica foi o ponto fundamental para a
continuidade dos diálogos entre o clero e o Estado no Brasil. Em Portugal, a falta do
reconhecimento e o incentivo da fiscalização da população aos “crimes religiosos”, criados
pela lei de separação, colaboraram com as constantes querelas entre os dois poderes.

Os artigos 5º e 6º do Decreto nº 119-A, são os responsáveis pelo reconhecimento jurídico das


Igrejas no Brasil. O artigo 6º é importante para percebermos a responsabilidade que o Estado
continuou tendo especificamente com a Igreja Católica, mantendo as côngruas e os
seminários, oferecendo a liberdade para que a instituição continuasse a formar seu corpo de
eclesiásticos. Na lei se estabeleceu que:

Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para


adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á
propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes,
bem como dos seus edificios de culto.
Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes
serventuarios do culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios;
ficando livre a cada Estado o arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro

1341
culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes (Decreto nº 119-A, 7 de
Janeiro de 1890. Pub. Col. BR. 1890. V. 001, p. 000010, Col. 1.).

Os dois artigos são diferenciais importantes quando realizamos uma História Comparada com
a lei instituída em Portugal. João Seabra, ao desempenhar um estudo jurídico da Lei da
Separação do Estado das Igrejas - Decreto de 20 de Abril de 1911, destacou os esforços do
seu principal articulador, o Ministro da Justiça do Governo Provisório, Afonso Costa, para
promover um acerto de contas entre o Estado e a Igreja Católica. Para o autor, a lei foi
pensada como uma forma de desmobilizar o catolicismo em Portugal, estabelecendo artigos
que dificultassem o cotidiano dos religiosos no país (Cf. SEABRA, 2009).

Antecedendo a lei da separação, o Ministro da Justiça foi responsável por um conjunto de


decretos, com força de lei, que promoveu a expulsão dos jesuítas e a extinção de todas as
congregações religiosas. Suas medidas também foram responsáveis por ações que
colaboraram com o processo de laicização simbólica do Estado, como as proibições dos
juramentos eclesiásticos, do uso de imagens ligadas a Igreja Católica e da utilização pública
dos hábitos e vestes talares, o fim da referência à era de Cristo nos atos públicos, além da
promoção da descristianização da família, com a introdução do divórcio e a proibição da
celebração do batismo, matrimônio e funerais cristãos sem precedência do ato de registro civil
(SEABRA, 2009, p. 10).

Diferente do Decreto 119-A, que mesmo com a secularização do Estado brasileiro garantia a
liberdade de culto e os direitos civis aos membros de todas as religiões5, a lei de separação
portuguesa foi recebida pelo clero como um conjunto de normas que não apenas retirava a
posição de religião oficial do Estado, mas promovia uma perseguição aos seus membros em
caso de descumprimento de qualquer artigo.

Com uma lei composta por 7 capítulos e 196 artigos, em Portugal foram estabelecidas
normas, além das já citadas anteriormente, que determinaram que os bens eclesiásticos
passassem a ser de propriedade do Estado, a liberdade religiosa restringia-se à liberdade de
culto, estando condicionada no tempo, no espaço e nos sujeitos, extinguiam-se todas as
formas tradicionais de manutenção e sustentação do clero. Também se proibiu qualquer

5
Destacamos que muitas práticas religiosas, principalmente as oriundas dos cultos afros, não receberam a
liberdade de manifestações estabelecida pela lei brasileira. Alguns grupos foram perseguidos, com membros
presos ou destinados as instituições de saúde pública e mental, principalmente durante os anos de 1930 e 1940.

1342
contribuição ao clero que não estivesse garantida nas modalidades que a lei estabelecesse,
tendo a sua sustentação assegurada por uma pensão. O documento ainda exigia a criação das
comissões cultuais e que os seminários e missões passassem ao controle do Estado. Estas
foram algumas das normas determinadas no novo regulamento, que dificultaram o
desenvolvimento das atividades religiosas no país (Cf. OLIVEIRA, 1914).

Muitos dos artigos tiveram a intenção de macular a imagem do clero junto à população,
causando um verdadeiro “caça aos padres” em Portugal. Entre as determinações da lei que nos
chamam atenção, destacamos as pensões oferecidas aos religiosos. O ato foi bastante criticado
por líderes eclesiásticos, pois causava a dependência dos membros das dioceses com menor
poder econômico ao Estado. Em cartas da Nunciatura de Lisboa, encontramos recomendações
da Cúria Romana para que os padres não aceitassem as formas de sustento oferecidas pelo
governo republicano, como resistência as leis recém implementadas. Entre os tipos de pensões
oferecidas, eram garantidas contribuições aos filhos e viúvas dos líderes da Igreja Católica.

Mesmo sendo uma lei destina a todas as religiões presente no território português, o caso das
pensões foi direcionado especificamente aos membros da Igreja Católica. Diz o artigo 152º
que:

Em caso de morte de um ministro do culto católico, ocorrida depois de fixada a pensão, ou


desde o dia da proclamação da República, verificando-se, a requerimento dos herdeiros,
que teria direito a ela, o Estado concederá metade ou a quarta parte da pensão fixada ou
devida às seguintes pessoas de sua família:
[…]
2º Se sobreviver, alêm dos pais, ou de um deles, a viúva do pensionista, uma quarta parte da
pensão para esta e outra quarta parte para aquele ou aqueles;
3º Se sobreviverem um ou mais filhos menores do pensionista falecido, legitimos ou
ilegitimos, metade da pensão para todos eles, enquanto forem menores, com sobrevivência
de uns para os outros até à maioridade do mais novo;
4º Se, alêm dos filhos menores, sobreviverem só um ou ambos os pais, ou só a viúva, mãe
daqueles, a quarta parte para esta ou para os pais e a quarta parte para os filhos, com
sobrevivência duns para os outros; […] (Lei da Separação do Estado das Igrejas. Decreto
de 20 de Abril de 1911 [DG 92, 21/4; CLP 1911, p. 430 – 446])

Para João Seabra, a questão de se estabelecer uma pensão às viúvas e aos filhos dos
eclesiásticos era uma clara tentativa do Ministro da Justiça para se levantar o debate referente

1343
ao celibato, demonstrando as fragilidades do clero à população. A lei da separação portuguesa
teve como uma de suas inspirações à legislação francesa de 1905, que estabelecia
genericamente, que em caso de morte de um religioso, as pensões deveriam ser destinadas as
viúvas e possíveis filhos. Em tal determinação, estavam incluídos os rabinos, os pastores
reformados, dentre outros membros das religiões existentes na França. Aplicando as mesmas
determinações em Portugal, o Ministro da Justiça definiu que tal prática fosse aplicada apenas
paras os membros da Igreja Católica (SEABRA, 2009, p. 140).

Outra questão classificada como parte do processo de laicização simbólica foi a proibição do
uso dos trajes católicos em público. O artigo 176º proibia a utilização dos hábitos ou vestes
talares fora dos templos e das cerimônias cultuais, sob a pena de desobediência, por todos os
ministros, seminaristas, membros de corporações de assistência e beneficência, encarregadas
ou não do culto. Além disso, os religiosos estavam submetidos à fiscalização das autoridades
ou de qualquer pessoa do povo, podendo ser preso e encaminhado as autoridades por tal
delito.

O poder estabelecido aos cidadãos para fiscalizar a realização dos cultos ou do uso das vestes
acarretou perseguições de padres, prisões e até espancamentos. Por isso, os líderes religiosos
orientavam que a norma fosse cumprida para que não tivessem problemas com a justiça e
principalmente com a população estimulada por alguns governantes. Moradores de cidades
como Lisboa, Porto e Coimbra se apresentaram ao Ministério da Justiça para gratuitamente
fiscalizar o cumprimento deste artigo, proporcionando uma constante vigilância sobre as
atividades desenvolvidas pelos padres.

A preocupação com a integridade dos religiosos pode ser percebida nas cartas e bilhetes
presentes no Arquivo das Congregações da Torre do Tombo em Portugal. Na mensagem de J.
P. Dias Oliveira ao Padre Barros, informou-se a situação política em Lisboa e as
problemáticas enfrentadas pelos membros do clero, destacando-se para se ter cuidado com o
uso dos hábitos e com parte da população que se demonstrava resistente aos símbolos
católicos utilizados em público. Na correspondência, Dias Oliveira avisou que “os amigos não
venham á cidade com hábitos talares. Já hoje foram agredidos alguns sacerdotes. Isto é um
paiz perdido” (Carta de J.P. Dias Oliveira ao Pe. Barros. [s/d.]).

1344
A reação da Igreja Católica portuguesa aconteceu em diversas frentes. Desde a cúria, aos
religiosos com condições financeiras mais baixas que recusavam o recebimento das pensões.
O líder da Igreja romana acompanhou o desenrolar das questões que envolviam a laicização
em Portugal, orientando os eclesiásticos sobre as ações que deveria tomar em relação aos
pontos contrários aos ensinamentos do catolicismo.

Em 24 de maio de 1911, o Papa Pio X lançou a encíclica Iamdudum in Lusitania, criticando a


lei de separação entre o Estado e a Igreja em Portugal. Em seu texto, o religioso classificou as
determinações como excessos e crimes contra os membros da Igreja Católica, que tinha o
objetivo de desarticular os laços históricos entre a Santa Sé e o Estado português. Diante das
várias limitações impostas pelo governo ao clero, o Papa concentrou suas críticas nas
perseguições aos religiosos, nas pensões e na organização das comissões cultuais como forma
de manutenção dos cultos (PIO X, 1911).

A encíclica de Pio X foi a primeira reação oficial da Igreja à lei de separação em Portugal. No
entanto, outras formas de protesto foram realizadas por vários religiosos, como a divulgação
de manifestos na imprensa católica e a orientação aos fieis para não aceitarem as
determinações do Estado. Mesmo antes da publicação da Lei da Separação do Estado das
Igrejas, os eclesiásticos portugueses já articulavam formas de burlar os decretos publicados
pela República.

Com a lei de separação religiosa portuguesa, não apenas os líderes católicos, mas todos os
membros do clero, a exemplos dos seminaristas, foram proibidos de residir ou trabalhar juntos
em número superior a três. Por este motivo, percebe-se a preocupação dos eclesiásticos em
transferir as instituições de ensino, que também foram proibidas, para outras localidades com
o objetivo de continuarem com suas atividades.

Em maio de 1901, o padre Justino M. Lombardi enviou uma carta a um membro da


Companhia de Jesus em Portugal sobre a possibilidade do exílio de integrantes da
congregação no Brasil. Os cuidados na elaboração da correspondência são vários, não se
identificava o destinatário e a possível data de saída dos religiosos para a expatriação, formas
encontradas pelos envolvidos na troca dos documentos para a segurança em caso de
interceptação.

1345
O controle dos dirigentes da República portuguesa sobre as ações dos religiosos e suas
práticas sociais foi garantido a partir de um forte sistema de vigilância. Os dirigentes do
Ministério da Justiça e dos Cultos contavam com informantes que observavam o cotidiano
dos eclesiásticos, fiscalizavam suas ações em instituições como hospitais e escolas,
interceptavam cartas, dentre outros modos que garantiam o cumprimento das leis instituídas
pelo Estado.

Em seu texto, o padre Justino Lombardi destacou as condições político-religiosas no Brasil e


as formas que poderiam assegurar a recepção dos católicos portugueses. Segundo o prelado:

[…] Quanto á viagem do Ir. Lochu V. R. determinará melhor as coisa d’ahi pois as
circunstancias podem mudar de um momento para outro. Se em consequência dos desastres
de Portugal tivéssemos a facilidade de recebermos padres d’ahi a vinda do Ir. Lochu não
apresentaria dificuldade nenhuma. Já escrevi ao R. P. Geral e ao P. Provincial desse
Provincia convidando-os a enviar para cá os padres Irmãos de Portugal em caso de
expulsão de por acaso a carta não tivesse chegado ás mãos do dito padre N.R. pode repetir
o convite em nome de todos os padres do Brazil. Única precaução necessária para evitar
perseguições aqui na chegada é de virem em pequenos grupos vestidos como padres
seculares ou disfarçados. Seria melhor que viessem alguns antes da expulsão oficial se por
acaso se tivesse de realisar. Não desesperemos ainda da boa solução. O Governo aqui nos
protege: só a imprensa maçônica nos ataca violentamente; mas até agora foi batida. […]
(Carta do Padre Justino M. Lombardi a…. Itu, 29 mai 1901.)

A parceria entre o Estado e a Igreja era um dos principais pontos admirados pelo clero
português nas questões referentes à Restauração Católica no Brasil. A proteção referida na
citação anterior faz menção a não existência das perseguições aos membros do clero pelo
poder político, a exemplo das acorridas no país lusitano. Desde a separação do Estado e da
Igreja, o poder governamental se utilizou dos discursos católicos para legitimar suas propostas
políticas. No entanto, é importante destacarmos que o clero brasileiro também enfrentou
dificuldades nos debates com o Estado, principalmente nos assuntos que envolviam o ensino
religioso nas escolas e a promoção da sua politização (Cf. MOURA, 2012).

Foi durante o governo de Getúlio Vargas que as negociações entre os poderes civil e
eclesiástico se apresentaram mais intensas. As ações de combate à “desordem”, promovidas
pelo clero, serviram de apoio ao arquivamento dos discursos da esquerda durante a década de
1930. Tal parceria foi vista por membros da Igreja Católica portuguesa como um exemplo a

1346
ser seguido, pois mesmo com os poderes independentes, continuaram atuando em conjunto
para o combate à chamada desordem social (MAINWARING, 2004, p. 43).

As referências ao bispado, à lei de separação e ao movimento de Restauração Católica no


Brasil ficaram mais evidentes com o processo de punição do Bispo da Guarda. D. Manuel
Vieira Matos foi condenado pelas autoridades lusitanas por crimes que envolviam a
desobediência e a desordem pública, ao enviar uma carta ao Ministro da Justiça criticando os
meios adotados pelo Estado para a laicização em Portugal e suas ações de controle do clero.

O eclesiástico já tinha sido acusado de indisciplina durante a elaboração, distribuição e leitura


da Pastoral Collectiva do Episcopado Português ao Clero e fieis de Portugal, publicada em
24 de dezembro de 1910. D. Manuel Vieira Matos ficou responsável pela impressão do
documento na Tipografia Veritas, com o objetivo de distribuí-lo para apresentação nas missas
do dia 26 de fevereiro de 1911. No entanto, devido o acesso a pastoral ainda no período de
impressão, os membros do bispado da Guarda e Algarve tiveram condições de fazer a leitura
nos domingos de fevereiro. Em outras dioceses a Pastoral Collectiva não foi completamente
lida, pois ao ser entregue nas Igrejas de Lisboa foi intercepta e informado de sua existência ao
Ministro da Justiça, que proibiu a sua utilização pelos religiosos em todo o território
português.

Em circular oficial avisando dos “crimes” em que os eclesiásticos estavam envolvidos,


Afonso Costa solicitou informações dos bispos sobre quais os padres que já tinham realizado
as leituras. O representante do arcebispado da Guarda foi absolvido por ter apresentado a
pastoral antes de receber a circular do Ministro da Justiça, sendo inocentado do crime de
desobediência contra a ordem em Portugal6.

O conteúdo da Pastoral Collectiva do Episcopado Português não fazia acusações ao governo


provisório ou aos seus representantes, assim como, não defendia outros modelos políticos
como a Monarquia. O texto buscava uma conciliação entre o Estado e a Igreja, destacando o
reconhecimento e obediência dos religiosos aos sistemas governamentais em que estavam
inseridos, mas exigiam a liberdade de serem contrários às normas que não se apresentavam de
acordo com os seus ensinamentos.

6
O mesmo não aconteceu com o Bispo do Porto, que para ganhar tempo e permitir a leitura da Pastoral demorou
a responder os comunicados do Ministro da Justiça. Sobre o seu processo: Cf. SEABRA, 2009, p. 64 – 66.

1347
A pastoral foi um documento que também colaborou com as ações desenvolvidas pelos
membros da Igreja Católica no momento de maior efervescência do laicismo em Portugal.
Para os eclesiásticos:

Recuar perante o inimigo e guardar silencio, quando de todos os lados se levantam


clamores contra a verdade, é próprio de homem sem carácter ou de quem duvida da verdade
de suas crenças. Em qualquer dos casos, tal procedimento é indecoroso e faz injúria a Deus;
é inconciliavel com a salvação própria e com de todos; não aproveita senão aos inimigos da
fé; por isso que não há nada que dê ousio e fôrça aos maus como a fraqueza dos bons. – Ha
quem objetive que Jesus Christo, protector e defensor da Igreja, não carece de auxilio
humano. Não é que lhe faça mingua o podêr (respondemos): é que, por effeito de sua
grande bondade, nos quis reservar a nós uma parte de esforço e merecimentos pessoaes,
para a nós mesmos appropriarmos e applicarmos os fructos da salvação que a sua graça nos
adquiriu (Pastoral Collectiva, 1911, p. 29).

A intensa participação do bispo da Guarda na elaboração e distribuição da carta pastoral lhe


credenciou para ter suas atividades constantemente observadas pelo Ministro da Justiça
português. Suas ações e correspondências foram analisadas com cuidado, na busca de
qualquer incentivo a “desordem nacional”, uma das principais acusações que recaiam sobre os
religiosos envolvidos com os movimentos de reação católica.

Em julho de 1911, com uma carta de D. Manuel Vieira Matos a Afonso Costa, respondendo
sobre a intenção dos padres abandonarem seus postos devido às dificuldades financeiras,
iniciou-se uma discussão que o levaria a ser punido e expatriado das funções eclesiásticas. O
ministro da Justiça se utilizava dos instrumentos punitivos existentes nos diversos decretos e
leis publicadas pela República, como forma de controle do episcopado católico. Entre os
principais meios de penalidade, o degredo e a proibição de continuar com as funções
religiosas foram os mais utilizados pelo republicando, impedindo os eclesiásticos de
desenvolverem suas críticas contra o novo sistema político.

Em sua carta, o bispo da Guarda demonstrou a insatisfação dos membros do clero com os
impedimentos estabelecidos pela Lei da Separação do Estado das Igrejas, lembrando ao
político as ligações históricas entre a Igreja Católica e Portugal. D. Manuel Vieira Matos
destacou que durante o período monárquico o clero tinha livre acesso aos assuntos do Estado,
por isso o momento poderia ser considerado de paz e crescimento para o país.

1348
Com a leitura das correspondências entre os religiosos que questionavam a nova realidade dos
membros da Igreja no país lusitano, percebemos que um dos seus principais argumentos para
a crítica ao governo eram as afinidades entre os poderes político e eclesiástico durante a
Monarquia. Por isso, como forma de contra discurso, os republicanos mais exaltados
argumentavam que os problemas econômicos, sociais e políticos enfrentados pela população
portuguesa eram resultado dos “séculos de exploração do clero” em parceria com a família
real.

A carta do bispo ao representante da República foi enfática no assunto referente ao trabalho


dos padres no arcebispado da Guarda. Em seu escrito, além da questão da permanência dos
padres em suas funções, destacou-se que a concessão de pensões é uma forma humilhante
para a manutenção do clero. Para exemplificar seu argumento, utilizou-se da lei brasileira
como exemplo para as negociações de subsídios entre os religiosos. Para o Arcebispo:

Outra República nossa irmã é bem gloriosa, no dia em que entendeu dever separar-se da
Egreja, garantiu ao clero o que elle recebia, sem devassas sobre os seus haveres nem sobre
os seus sentimentos, deixando ainda á Egreja a propriedade de tudo o que lhe pertencia. Se
assim tivesse feito entre nós, o clero português, como o clero brasileiro, não teria levantado
os protestos que o dever lhe tem aconselhado e que malevolamente se teem interpretado
como hostilidade á República, quando são apenas os desabafos da consciência offendida
(Carta do Bispo da Guarda ao Ministro da Justiça Português. Guarda, 02 jul. 1911.)

As representações da manutenção da parceria entre a Igreja Católica e o governo brasileiro foi


o principal incentivo para os religiosos portugueses se utilizarem dos discursos e ações de
membros do bispado brasileiro. Durante o processo de punição do bispo da Guarda, que se
estendeu por vários meses, e durante seus pedidos de revisão de pena, o episcopado do Brasil
apareceu em seus escritos como uma instituição que não herdou prejuízos com a secularização
devido às negociações estabelecidas com o poder político.

O representante da Igreja Católica na Guarda buscava na ausência de um diálogo com o novo


poder instituído desde 05 de outubro de 1910, estabelecer novas formas de representações
simbólicas, baseadas na moral católica através de uma imagem de parceria entre duas
instituições que trabalhavam em acordo mútuo (Cf. CHARTIER, 1990, p. 20). No instante
dos protestos, das publicações que eram feitas pelo bispo e das cobranças realizadas ao

1349
Ministro da Justiça, observamos o eclesiástico como um intelectual que apresentou propostas
para as mudanças na governabilidade portuguesa.

As ações dos intelectuais, inseridos na instituição católica, estavam conectadas com um


movimento internacional que seguia um discurso de ordem, baseado nos ensinamentos da
Cúria romana. O processo de laicização foi fundamental para o surgimento de homens que
pensassem as alternativas para as mudanças sociais oriundas da Igreja, os quais classificamos
como intelectuais católicos (NUNES, 2005, p. 74).

Como represália às ações do bispo da Guarda, o governo republicano estabeleceu penas que
atingiram as suas atividades como religioso e o funcionamento da sua arquidiocese. Por
decreto de agosto de 1911, o seu Paço Episcopal foi confiscado e utilizado como repartição
para os serviços públicos. A prática era comum quando o Estado tinha a intenção de finalizar
as atividades de uma região eclesiástica, dificultando o culto católico na localidade.

A conclusão do seu processo o impunha o desterro por dois anos. Na tentativa de cumprir sua
pena, o religioso passou por várias regiões a busca de um lugar para moradia, mas sempre
encontrando reação dos “fiscais” do governo. Fixou-se em Mangualde, retornado a Guarda
apenas no final de 1913. Mesmo atendendo as determinações estabelecidas pelo Ministro da
Justiça, o bispo foi preso em outros momentos para prestar informações sobre os movimentos
políticos que surgiram em sua cidade de atuação.

O processo enfrentado por D. Manuel Vieira Matos é um dos pontos que diferencia a
secularização / laicização no Brasil e em Portugal. No país lusitano, percebe-se que o artigo 3º
da Lei da Separação do Estado das Igrejas, que estabeleceu que “Dentro do territorio da
Republica [portuguesa] ninguem póde ser perseguido por motivos de religião, nem
perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa” (Lei da Separação do
Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911), não foi levado em consideração nas
formas de controle estabelecidas pelo Ministro Afonso Costa.

Como contra discurso ao político republicano, vários religiosos apresentaram o exemplo das
relações da Igreja Católica com o Estado no Brasil. Os diálogos transoceânicos estiveram
presentes durante todo o processo de Restauração Católica no país ibérico, sendo apresentado
como uma possibilidade de convivência pacífica entre o político e o religioso. No momento

1350
dos debates sobre a assinatura da Concordata entre Portugal e a Sé Romana, as atividades do
episcopado brasileiro serviram de inspiração para as duas instituições, principalmente nas
questões que envolviam o ensino católico e a lei do casamento.

Para os membros da Igreja Católica no Brasil, um dos principais resultados dos diálogos com
os religiosos lusitanos foi o processo de recepção de ordens religiosas no país. O exílio de
membros do clero português possibilitou o desenvolvimento de uma ação cultural nos
diversos estados brasileiros, com a elaboração de métodos de ensino, atividades missionárias,
organização de retiros e seminários que deram suporte as práticas desenvolvidas no novo
espaço de atuação.

Os diálogos entre os membros da Igreja romana em Portugal e no Brasil foram fundamentais


para a formação dos discursos de reconquista católica no país lusitano. As representações de
um bispado atuante politicamente em seu país contribuíram para a reaproximação do clero
português com o Estado, afirmado com a assinatura da concorda entre as instituições em 07
de Maio de 1940.

Fontes

Archivio Segreto Vaticano. Archivio Della Nunziatura di Lisbona. Carta do Bispo da Guarda
ao Ministro da Justiça Português. Guarda, 02 jul. 1911

Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 4.
Carta do Padre Luiz G. Cabral a Alexandre. [s/d.].
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 6.
Carta de J.P. Dias Oliveira ao Pe. Barros. [s/d.].
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 7.
Carta do Padre Justino M. Lombardi a…. Itu, 29 mai. 1901.
Decreto nº 119-A, 7 de Janeiro de 1890. Pub. Col. BR. 1890. V. 001, p. 000010, Col. 1.
Federação das Associações Portuguesas do Brasil. O Cardial Cerejeira no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Alba Limitada, 1935.
Lei da Separação do Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911 [DG 92, 21/4; CLP
1911, p. 430 – 446]

OLIVEIRA, Carlos de. Lei da Separação do Estado das Igrejas anotada por Carlos de
Oliveira. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1914.

Pastoral Collectiva do Episcopado Português ao Clero e fieis de Portugal. Évora: Veritas,


1910.

1351
Pio X. Iamdudum in Lusitania. Roma, 24 mai. 1911.

Portugal e a Santa Sé. Concordata e Acôrdo Missionário de 7 de Maio de 1940. Lisboa:


Edição do Secretariado da Propaganda Nacional, MCMXLIII.

Referências

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1936. Recife: FASA, 1986.
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1997.

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Coimbra: Almedina, 2006.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL /
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

HOMEM, Amadeu Carvalho et. al. (Org.) Progresso e Religião: a república no Brasil e em
Portugal (1889 – 1910). Coimbra: EDUFU, 2007.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuições à semântica dos tempos históricos.


Rio de Janeiro: Contraponto / PUC – RIO, 2006.

MADUREIRA, Arnaldo. A Questão Religiosa na Iº República: contribuições para uma


autópsia. Lisboa: Livros Horizonte, 2004.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916 – 1985). São Paulo:
Brasiliense, 2004.

MATTOSO, José; RAMOS, Rui. História de Portugal: a segunda fundação. Lisboa:


Estampa, 1993. v. 06.

MOURA, Carlos André Silva de. Fé, Saber e Poder: os intelectuais entre a Restauração
Católica e a política no Recife (1930 – 1937). Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 2012.

NUNES, Catarina Silva. Compromissos Incontestados: a auto-representação dos intelectuais


católicos portugueses. Lisboa: Paulinas, 2005.

SEABRA, João. O Estado e a Igreja em Portugal no início do Século XX: a Lei da Separação
de 1911. Cascais: Principia, 2009.

1352
1353
Cândidas Palavras: literatura e missões protestantes no romance
“Candida” de Mary Hoge Wardlaw
Sergio Willian de Castro Oliveira Filho1

Introdução

The cathedral clock struck nine. They were in the little sala again. Augusto drew a
little book from his pocket.

“Candida,” said he, hesitatingly, glancing first at the closed windows, and lowering
his voice; “Candida, my father sends this little book to you. See, he has written
your name in it with his own hand.”

“Why, it is a Testament!” exclaimed Candida, lowering her own voice. “I thought


we were forbidden to read this book!”

“The priests do forbid it, but without authority, so father thinks. He half convinced
me, Candida; and I promised for myself to read it”

WARDLAW, 1902, p. 21

Ante o presente de casamento de Joaquim de Oliveira, seu sogro, Candida fora tomada pelo
temor de aquele livro que estava em suas mãos pudesse vir a lhe proporcionar castigos
advindos da Igreja ou até mesmo do próprio Deus. Sabia o quão já havia ido longe demais ao
casar-se com Augusto, filho de um protestante, e o quanto tal decisão havia trazido
desavenças na sua família, já que suas irmãs, Glória, Christina e Joanna não aceitavam tal
relacionamento afastando-se de Candida.

A comemoração do casamento fora organizada por sua tia, Dona Theresa, que cuidara de
Candida e de suas irmãs após a mãe destas ter falecido, apesar de tia Theresa não gostar dos
protestantes. Mas, afinal, Augusto não era um deles, e sim seu pai. Entretanto, aquele livro
dado por Joaquim de Oliveira ao jovem casal iria modificar todo o curso da história deles e
daqueles que os rodeavam. Tratava-se de um Novo Testamento, e a leitura do mesmo,
inicialmente, por parte de Augusto o fizera abdicar do catolicismo e adentrar na comunidade
protestante em Fortaleza liderada pelos missionários americanos Mr. e Mrs. Cary.

1
Doutorando em História pela UNICAMP. Orientadora: Prof.ª Dra. Eliane Moura da Silva. Contato:
sergiowfilho@ig.com.br.

1354
Dentro de algum tempo Candida começaria a ser atraída a caminhar pelo mesmo rumo, mas
não sem antes passar por uma série de dificuldades ao longo dessa jornada. Primeiro a morte
de seu primeiro filho, Timotheo, ainda bem criança. Aliado a isso a conversão de Augusto ao
protestantismo havia causado um grande mal-estar e, por fim, a reprovação de tia Theresa, a
quem Candida amava como se fosse sua mãe, gerando árduas discussões entre o jovem
protestante e a fervorosa senhora católica. Apesar disso, a dor causada pela morte da criança
havia propiciado a reconciliação entre as quatro irmãs.

Grávida novamente, Candida teve que morar com sua tia, já que Augusto resolvera migrar
para Manaus, após ouvir acerca das possibilidades de ascensão social aos que partiam com
destino aos seringais às margens do rio Amazonas. Candida passou a manter contato cada vez
maior com o casal de missionários protestantes, principalmente com Mrs. Cary, o que,
combinado à leitura do Novo Testamento, resultou na conversão de Candida à nova fé. Tal ato
gerou uma profunda mágoa em Glória, irmã mais velha de Candida, que era extremamente
devota à religião Católica. Entretanto, paulatinamente, através de Candida os membros da
família começaram a converter-se um a um ao credo protestante. Todas inclusive tia Theresa
nos momentos finais de sua vida viriam a abdicar do catolicismo, exceto Glória, a qual após a
morte de Theresa saíra de casa por não aceitar o novo rumo religioso tomado por suas irmãs.

Todo este processo não ocorreu sem conflitos gerados pela intolerância religiosa instigada
pelos padres e que causavam até mesmo risco de vida aos protestantes como no episódio em
que Candida visitaria Cherubina, participante da comunidade protestante, no bairro do Outeiro
tendo sido atacada a pedradas sob gritos de ordem, tais como, “protestante”, “padre casado”,
“fora com os protestantes”, “morte ao padre casado”.

Neste ínterim nasceria a filha de Candida, que receberia o nome de Estrela. Estrela veria o pai
somente durante alguns meses, quando Augusto retornou do Norte, passando uma temporada
com sua esposa e filha na fazenda de seu pai em Baturité, vindo a retornar novamente ao
Norte em seguida. Augusto acabou por não conseguir concretizar seus planos de melhoria de
condições de vida já que morreria de uma doença adquirida nos seringais, seu novo retorno ao
Ceará não pudera salvar-lhe a vida, sendo enterrado ao lado do túmulo de seu filho Timotheo.

Sozinha com Estrela e Florinda - uma criada que sempre estivera ao lado de Candida - a
jovem viúva ainda teve que enfrentar uma nova e terrível dificuldade: a seca que começara em
1888. Sua sogra, Dona Clementina, propusera a Candida que esta lhe desse Estrela, afirmando

1355
que a criança teria uma vida melhor na fazenda em Baturité, ao que Candida negara-lhe o
pedido. Durante a ausência de Augusto, quando o mesmo ainda vivia, Candida passou então a
estudar, aprimorara sua leitura e escrita, começava a aprender inglês e aritmética, tudo com
auxílio de Mrs. Cary, enquanto a pequena Estrela brincava com Evangeline e Nellie, filhas do
casal de missionários americanos.

Para sustentar a si e sua filha, Candida passou a trabalhar como governanta. Mas ainda faltava
a reconciliação com Glória, o que veio a acontecer durante os festejos juninos, quando a
própria Glória resolveu fazer as pazes com a irmã, vindo a aproximar-se da fé protestante
pouco tempo depois. A seca terminaria, a família estava novamente em paz e reunida, e um
horizonte de novas e sublimes expectativas se abriam para Candida, Estrela e o protestantismo
no Brasil com a proclamação da República.

Tais linhas gerais são o resumo da trama do romance “Candida; or, by a way she knew not. A
story from Ceara” de Mary Hoge Wardlaw. Tal livro toma como recorte periódico a década
de 1880 trazendo em suas páginas alusões diretas a abolição dos escravos no Ceará, a seca de
1888-1889, a migração de cearenses rumo às Províncias do Norte do Império e a Proclamação
da República, todos estes acontecimentos vivenciados pela autora que chegou ao Ceará em
1882. O enredo é ambientado primordialmente na cidade de Fortaleza lançando ao leitor
espaços tais como os arredores do Seminário da Prainha, o Passeio Público, a estrada de ferro,
o bairro do Outeiro. No entanto, alguns capítulos do romance se passam em Baturité (também
local de atuação da missão presbiteriana) e na região Norte do Império.

O Romance e a Missão

‘Candida’ foi o primeiro e único romance da missionária estadunidense Mary Wardlaw. Mary
Hoge, filha de um pastor presbiteriano, nascera em Baltimore no ano de 1855, casando-se aos
25 anos de idade com um jovem Reverendo presbiteriano chamado De Lacey Wardlaw. Um
mês após o casamento Lacey e Mary Wardlaw partiram para o Brasil na função de
missionários.

Após cerca de 21 anos (1880-1901) no Brasil (dois anos em Pernambuco e o restante no


Ceará) o casal retornaria aos Estados Unidos juntamente com suas quatro filhas. Durante a
estadia no Brasil o casal de missionários foi responsável pela implantação da igreja

1356
presbiteriana em Fortaleza e em Mossoró, além da atuação na cidade de Baturité no interior
do Ceará.

Publicado em 1902 nos Estados Unidos o romance de Mary Wardlaw se apresentava a um


público específico: estadunidenses que apoiavam o projeto missionário protestante nos
diversos recantos do mundo. Não foi à toa que a publicação seria viabilizada através do ‘The
Presbyterian Committee of Publication’ sediado em Richmond, o principal centro
presbiteriano dos Estados Unidos a partir do final do século XIX, tendo em vista que
Richmond abrigava o mais importante Seminário de formação de Reverendos presbiterianos e
o Comitê de publicação da Igreja Presbiteriana.

Segundo Mary, em sua introdução ao romance, a obra articulava-se rumo a um objetivo


essencial, além de um simples passatempo ou fonte para saciar curiosidades acerca do Brasil,
a autora pretendia:

The aim of this story is, primarily, to show the power of the gospel in Brazil, and, secon-
darily, to deepen the interest in Brazilians as fellow-beings. If, through its instrumentality,
the way of salvation should become clearer to some groping soul and the Saviour of sinners
dearer, I shall be blessed above measure (WARDLAW, 1902, p. 6).

Desta forma, através de seu romance, Mary Wardlaw buscava apresentar um relatório acerca
da atuação da missão protestante no Ceará na década de 1880 encabeçada por ela e seu esposo
De Lacey ao mesmo tempo em que supunha que a publicação deste escrito poderia servir
como um instrumento de proselitismo a seus compatriotas.

“Candida” surgia então como um tipo de literatura engajada e porque não dizer militante. Não
podemos tomar as linhas de tal romance como desinteressadas, mas pelo contrário, cada
capítulo, cada linha, cada acontecimento do romance voltava-se para a constituição de uma
perspectiva vitoriosa, apesar de sofrida, da implantação de uma comunidade protestante da
cidade de Fortaleza. Seus personagens são apresentados como fictícios, no entanto Mary
afirma que os fatos no romance seriam “strictly true” (estritamente reais), sugerindo ao leitor
a uma constatação de que de fato o que estaria a ler seriam as reais condições do Brasil no
período sobre o qual se escrevia.

Contudo, não podemos perder a perspectiva que “Candida” é um produto literário e como tal
articula-se como “um produto do desejo, seu compromisso é maior com a fantasia do que com

1357
a realidade. Preocupa-se com aquilo com o que poderia ou deveria ser a ordem das coisas,
mais do que com seu estado real” (SEVCENKO, 2003, p. 29).

Buscando alcançar o que considerava ser a real ordem das coisas, a autora apresenta a seus
leitores como figura central de seu escrito não um reverendo protestante e sua esposa
missionária, que, aliás, surgem com papéis secundários, mas sim uma brasileira comum, com
pouca instrução, cujos ofícios eram de lavadeira, costureira e governanta, a qual após casar-se
vai morar em uma pequena casa quase sem mobília, e que devido às dificuldades financeiras
vê seu esposo partir ao norte deixando-lhe com uma filha no Ceará.

Acreditamos que outros interesses, além dos confessados por Mary Hoge, existiam por detrás
de suas linhas. Uma das motivações está na grandeza da dimensão que envolvia o projeto
missionário protestante nos Estados Unidos desde o século XVIII, e principalmente no
oitocentos, quando esta nação passou a ser um dos maiores centros missionários protestante
do mundo. Contando com vários núcleos de aglutinação de jovens recém-egressos dos
seminários teológicos protestantes, tais como Nashville, Richmond e Nova York, várias
denominações protestantes nos Estados Unidos (presbiterianos, metodistas, batistas,
congregacionais) passaram a enviar inúmeros missionários para países estrangeiros,
especialmente para a África, a Ásia e a América Latina, como, por exemplo, o Brasil.

Podemos localizar o momento de fortalecimento destes movimentos missionários protestantes


intercontinentais na Inglaterra do século XVIII com a criação da ‘Old Missionary Society’ em
1702, seguida pela Sociedade Missionária Batista (1792), a ‘London Missionary Society’ e a
‘Scottish Church Society’ (1795), a ‘Bible Society’ (1804), a ‘General Baptist Missionary
Society’ e a ‘Wesleyan Missionary Society’ (1813) (DUNSTAN, 1964, p. 138).

Considera-se que com a difusão do protestantismo nos Estados Unidos advieram daí diversos
dos chamados movimentos avivamentalistas nas igrejas os quais exigiam de seus fiéis maior
investimento e dedicação no trabalho missionário para além das fronteiras; e tal processo
reforçou-se com a conjunta propagação do ideário do Destino Manifesto.

Tal perspectiva caminhava em uma direção em que a linha de raciocínio era a seguinte: como
detentores da “verdade” os protestantes estadunidenses deveriam estar convencidos de seu
supremo dever em compartilhar tal “verdade” às nações que ainda não haviam tido acesso a
tal privilégio concedido pelo próprio Deus. Forjava-se aí o que Rubem Alves denominou de
uma “utopia social protestante”:

1358
A melhor sociedade possível será aquela em que todos forem protestantes. Uma sociedade
protestante será livre, democrática e rica. Será livre e democrática porque o “livre exame” e
a própria organização política das Igrejas protestantes o exigem. Será rica porque o senso
de responsabilidade individual, exigido pela doutrina da mordomia, e a bênção de Deus
sobre aqueles que se submetem à sua vontade produzirão o máximo de bem-estar
econômico (ALVES, 2005, p. 275).

Desenvolvido tal horizonte, a maior parte dos recursos financeiros destinados às missões no
exterior partiam dos fiéis das igrejas que enviavam os missionários, os quais passavam então
a manter constante correspondência acerca dos locais que as missões atuavam assim como o
progresso e as dificuldades do trabalho, servindo tais escritos como relatórios aos seus
colaboradores. Em pouco tempo surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos periódicos
protestantes2 que subdividiam-se em diversas seções por países com o fim de promover o
trabalho dos missionários publicando a correspondência dos mesmos.

Tais cartas de missionários, ao serem publicadas, formataram um gênero literário deveras


difundido nos Estados Unidos:

o gênero literário das cartas, artigos e testemunhos sobre missões, que relatam os esforços e
as esperanças no futuro vindouro de conversão e salvação das almas, é tanto uma arte de
dizer como uma arte de fazer; suas construções formam um campo de operação dentro do
qual se produzem procedimentos e táticas que, de formas sutis, revelam as astúcias entre as
histórias vividas e as histórias narradas (SILVA, 2008, p. 33).

Estes procedimentos e táticas sutis, os quais Eliane Silva se refere se articulavam de acordo
com as necessidades pelas quais os missionários sentiam que eram imprescindíveis serem
reforçadas acerca de seus campos missionários. Desta maneira, mesmo não mais estando no
Brasil, Mary Wardlaw projetava a esta nação pela qual dedicara duas décadas de sua vida, um
futuro com a fé e as práticas protestantes que faziam parte do cotidiano do leitor
estadunidense.

Por esta razão mesmo não mais missionária em solo estrangeiro a autora de “Candida”
assumia o papel de anunciadora a seus compatriotas da necessidade de apoio aos missionários
que ainda estavam em outras nações e àqueles que preparavam-se para partir. O discurso de
Mary Wardlaw revestia-se com um prisma de grande legitimidade, levando-se em conta que a

2
Como exemplo de tais periódicos poderíamos citar: o The Missionary da Igreja Presbiteriana, publicado em
Richmond; e o The Gospel in All Lands da Igreja Metodista (mas que se postava como um periódico
interdenominacional), publicado em Nova York.

1359
autora, por haver vivido tanto tempo no país acerca do qual escrevia, possuía respaldo ante
seus leitores, surgindo aos olhos destes como detentora de confiabilidade.

Por sua temática de cunho declaradamente confessional protestante, a publicação de tal


romance não encontrou empecilhos por parte do ‘The Presbyterian Committee of
Publication’, órgão que era responsável pela publicação dos mais diversos escritos que
compunham a leitura devocional dos presbiterianos nos Estados Unidos, tais como hinários,
almanaques, livros de estudos teológicos, romances protestantes, obras acerca da organização
eclesiástica presbiteriana, feitos dos “grandes homens” da igreja.

Para fazer propaganda de suas publicações geralmente o ‘Committee’ postava ao final dos
livros anúncios de várias outras obras, apresentando inclusive o preço dos produtos. No caso
do romance de Mary Hoge, pudemos encontrar o preço pelo qual era comercializado quando
de sua publicação, ao final de outro livro editado pelo Comitê Presbiteriano (PHILLIPS,
1906)3, que no caso tratava-se de um dólar; ‘Candida’ surge em uma listagem ao lado de
outras publicações com a seguinte caracterização “Latest and Best books of missions”.

Memórias, desejos e expectativas

Na medida em que o romance de Mary Hoge constituiu-se como uma espécie de diário
romanceado, o qual tinha entre um de seus objetivos despertar em seus compatriotas o desejo
e a valorização do trabalho missionário protestante, tal livro está repleto de correlações entre
as memórias vivenciadas enquanto missionária no Brasil e aspectos concernentes ao projeto
que representa “Candida”, isto é, o projeto de um Brasil protestante. Uma destas ligações está
na temática central da obra que é o processo de desenvolvimento da primeira missão
protestante no Ceará ao findar do século XIX, processo do qual Mary foi participante ativa.

Assim, Mary e seu esposo, surgem no romance, se não nos papéis principais, pelo menos com
funções fundamentais para o desenvolvimento da trama. Mister e Misses Cary, são
representações diretas do casal Wardlaw, inclusive sendo o nome Cary um nome da família de
Mary Hoge4. Além de estadunidenses, os Cary passam durante o romance por situações que

3
A listagem ao final desta obra continha 49 publicações cujos preços variavam de 25 cents a dois dólares.
4
A dedicatória de “Candida” é dirigida a um primo de Mary Wardlaw, que a autora diz ter homenageado dando
o seu nome ao casal de missionários do romance.

1360
podem ser comparadas às experiências vivenciadas pelo casal Wardlaw postadas no periódico
cearense ‘Libertador’ e no ‘The Missionary’ nas décadas de 1880 e 1890.

O casal Wardlaw, quando de sua estadia em Fortaleza, fixara residência na Rua das Flores,
rua pela qual passavam rotineiramente cortejos fúnebres com destino ao cemitério da cidade.
Tais cortejos chamaram a atenção de Mary Wardlaw, que dedicaria uma matéria completa no
‘The Missionary’(THE MISSIONARY, 1890, p. 428-429) para abordar ritos fúnebres no
Brasil. Em seu romance, tal temática não passaria em branco, na medida em que ao abordar a
morte do pequeno filho de Candida e Augusto, Mary dedicara um capítulo inteiro intitulado
“Vou Para o Céo” abordando aspectos concernentes ao velório e funeral de Timotheo.

As descrições que Mary Hoge esboça em seu romance são bastante semelhantes as que
escrevera mais de uma década antes para seus compatriotas e que fora publicada no ‘The
Missionary’. Os cochichos dos presentes no velório acerca do absurdo da criança ter
demorado a ser batizada podem ser comparados ao que Mary afirmaria ser crença recorrente
no Brasil com relação às crianças não batizadas serem denominadas “pagãs”:

"They say," whispered one woman to another in the adjoining apartment, "that they let him
die without a candle."

"He just missed dying a pagan," returned her neighbor. "Who knows if this is a punishment
for leaving him so long unbaptized?" (WARDLAW, 1902, p. 108)

a child who dies before the time of responsibility. They say it is a little angel, and went
straight to heaven. This only applies to a baptized child; an unbaptized child is said to "die
a pagan." (THE MISSIONARY, 1890, p. 429)

Em seu romance Mrs. Wardlaw chega a descrever inclusive características do caixão do filho
de Candida e Augusto:

They went toward the sala. At the door Joanna turned back, and Mrs. Cary went in alone.

The little casket was of pure white, relieved with the figures of angels wrought in silver.
But the sweetest angel lay within. (…) in her three years of Brazilian life, she had never
before seen a baby prepared for burial. (WARDLAW, 1902, p. 109).

Tal descrição do caixão infantil mostra-se semelhante às esquifes das marchas fúnebres que
Mary Hoge presenciava da janela de sua casa na década de 1880, as quais, geralmente

1361
levavam as crianças em um “little cofin covered with blue or white cambrie trimmed with
silver braid” (THE MISSIONARY, 1890, p. 428).

Determinados tipos de resistências quanto à missão protestante, ou à simples presença dos


missionários em determinados espaços públicos da cidade de Fortaleza parecem ter sido
muito comuns. A tal ponto de no romance de Mary o desagrado de alguns habitantes da
cidade com relação aos protestantes em estes circularem por determinados ambientes públicos
se mostra com vigor quando da tentativa do Reverendo Cary em visitar um membro da
comunidade protestante, Hilário, o qual após sofrer um acidente de trabalho havia sido
internado na Santa Casa, chegando tal notícia até Candida por intermédio de seu primo
Cosmo:

They took him to the Santa Casa. One of your church members learned of it, and went for
Mr. Cary. They say there was a dreadful scene. I don't believe half the rumors, of course;
but they say the sisters tried to put Mr. Cary out by force, telling him he had no right to
come to a Catholic institution. 'Excuse me, Senhora,' said he, 'this building belongs to the
State' (WARDLAW, 1902, p. 182).

Surge aí a perspectiva dirigida àqueles que deveriam preocupar-se com os missionários que
estariam no Brasil sob as diversas dificuldades enfrentadas por aqueles que tão somente
teriam por desejo, parafraseando o próprio De Lacey Wardlaw, “convencer os brasileiros das
inovações do catolicismo”. Mary Wardlaw reforça algo que é tão marcante para todo o
cristianismo, tanto protestante quanto católico, que é a ideia da perseguição religiosa a qual,
quando posta ao extremo, fornece aos fiéis mártires que devem ser vislumbrados como figuras
exemplares.

Há nos diversos relatos de missionários protestantes em terras estrangeiras uma recorrência de


temas correspondentes a episódios concernentes a intolerância e perseguição religiosa
encetados por aqueles cujas missões desejavam alcançar, e tais relatos geralmente são
embutidos em envoltórios com uma carga emocional soberba. Tais narrativas possuíam uma
receptividade considerável por parte dos leitores protestantes, levando-se em consideração a
relação direta que estes tipos de episódios possuíam com os preceitos bíblicos segundo os
quais aqueles que levassem os ensinamentos de Cristo naturalmente seriam perseguidos por
sua fé.

1362
Tais relatos da violência física e verbal aos representantes da missão presbiteriana de
Fortaleza seriam destacados por Lacey Wardlaw no ‘The Missionary’, quando este afirmaria
que

A great deal of the popular prejudice has been overcome, but the opposition has become
more organized than ever. Still we are making progress and have had very little to disturb
us in the meetings we have had in the outskirts, even in that part where on two former
occasions my wife was struck with stones while visiting with me (THE MISSIONARY,
1890, p. 421).

Mary Wardlaw, segundo informa seu esposo, por duas vezes vítima de ataques a pedradas
forneceria aos leitores de seu romance um episódio deveras semelhante ao que lhe havia
sucedido no Brasil. Candida, ao visitar Cherubina, viúva de Hilário, e também pertencente à
comunidade protestante de Fortaleza, seria atacada a pedradas por pessoas que ao mesmo
tempo em que jogavam as pedras vociferavam contra os protestantes:

When they had walked some distance a voice shouted, "Protestante!"

Immediately a score or more of voices took up the cry, "Protestante!" "Married priest!"
"Down with the Protestantes! Death to the married priest!"

A stone fell behind them; another; two or three together; then a shower of stones came
crashing through the air (WARDLAW, 1902, p. 194).

Assim como Mary Wardlaw havia sido atacada nos “subúrbios” da cidade, Candida o fora no
bairro do “Outeiro”. E surge nas linhas de Mary Hoge, de maneira proposital, a alcunha pela
qual De Lacey Wardlaw fora tão apupado por aqueles que estavam descontentes com sua
presença na cidade: O “Padre Casado”. Apelido este que era lançado de maneira desdenhosa
e desafiadora como o fez um anônimo no ‘Libertador’ de 06 de setembro de 1883 após fazer
críticas ao missionário presbiteriano: “Mandem o seu padre casado para os Estados Unidos”.

Partindo do pressuposto da explícita inferioridade numérica dos protestantes no Brasil, assim


como das hostilidades exacerbadas de parte da população local que, por pouco conhecimento
dos evangélicos e sua doutrina, tomavam atitudes intolerantes, o discurso do romance de
Mary Hoge vagueia por caminhos que buscam através do tom emocional sensibilizar seus
leitores acerca das injustiças da perseguição religiosa.

Entretanto, o foco da história do romance “Candida” não se encontra no casal de missionários


Mr. e Mrs. Cary, mas naqueles a quem a missão desejava alcançar, isto é, os brasileiros. Por

1363
esta razão o centro da trama se passa em volta das relações entre as famílias de Candida e de
Augusto, principalmente a família de Candida que gradativamente é convencida do engano
religioso pelo qual estariam engodados e desta maneira acabam por optar por uma nova fé, a
protestante.

A figura de Candida surge desta forma aos olhos dos leitores estadunidenses como o alvo a
ser almejado pelos protestantes engajados no projeto missionário, na medida em que esta
figura trata-se de um símbolo alusivo aos brasileiros católicos. Durante todo o romance
Candida surge como uma personagem repleta de dúvidas acerca da sua fé católica, entretanto
resiste às mudanças por conta do desejo de manutenção das tradições, elemento este que surge
como fundamental na construção discursiva do romance, isto é, Mary Wardlaw sustenta que a
resistência por parte dos sujeitos do romance em serem alcançados pelos missionários
estadunidenses não se dava por conta de uma firme crença na fé católica, mas pelo receio de
romper com a tradição de seus familiares.

Contudo, Candida é apresentada como uma jovem mulher diferenciada de seus pares, por todo
o romance surge como uma pessoa cujo caráter moral e submissão ao marido são
apresentados de maneira louvável pela autora. Todos que mantinham contato com Candida,
em pouco tempo eram cativados pela simplicidade e humildade da protagonista da trama.
Significativa foi a escolha do próprio nome da personagem central da trama, a qual remete a
ideias de pureza, ingenuidade, inocência.

No entanto todos os atributos positivos do caráter de Candida parecem destituídos de sentido


sem um aspecto fundamental que é a conversão da mesma. E tal processo de aceitação a um
novo credo somente tornou-se possível com a ação de seu sogro, Joaquim de Oliveira, que
sendo protestante, dera-lhe de presente uma bíblia, assim como surge como traço fundamental
o acompanhamento dos missionários estadunidenses Mr. e Mrs. Cary que auxiliaram na
fundamentação da fé de Augusto e Candida.

Neste contexto, o subtítulo do romance salta aos nossos olhos como essencial para
compreensão da proposta de Mary a seus leitores, isto é, a trajetória de abdicação do
catolicismo por parte de Candida rumo a um “Caminho que ela não conhecia”. Isto é,
Candida e todos aqueles brasileiros que lhe rodeavam, tinham por necessidade o auxílio de
sujeitos que já conhecessem o “caminho”; ou, em outras palavras, a efetivação da missão

1364
protestante de salvação de almas no Brasil predispunha da ação direta dos protestantes norte-
americanos no que dizia respeito ao financiamento das ações missionárias.

Mas se por um lado Mary Wardlaw apresenta Candida como a representação dos brasileiros
pelos quais se devia investir no momento presente que a autora escrevia a seus leitores, por
outro, a esposa do reverendo Lacey Wardlaw, viria apresentar uma personagem que pode ser
encarada como a idealização absoluta do projeto missionário protestante para um futuro
Brasil: Estrella.

Estrella surge aos leitores do romance no décimo capítulo, sendo a segunda filha de Candida e
Augusto. Após a imensa tristeza causada pela morte do pequeno Timotheo, um novo filho
surge como portador de felicidade para o jovem casal. Casal este que já havia passado pelo
processo de conversão ao protestantismo, encontrando-se ambos numa busca dedicada ao
cumprimento dos comportamentos inerentes á sua nova fé. Tanto que até mesmo a escolha do
nome da criança por Candida mostrou-se como uma espécie de confirmação do novo modo de
vida da mesma:

"Candida," asked Joanna, a little later, "have you thought what you are going to call your
baby? You know she brought the name of Mary of the Assumption."

"(…) Listen, girls. It has been dark so long; dark here." She touched her brain. "And darker
here;" she touched her heart. "And now the night has gone; Augusto is going to recover. As
for my Timotheo," a great sob rose in her throat, but she kept on with what she had to say,
"he is with Jesus. I must only think of him as safe and happy. My dear sisters are given
back to me. And we all love Jesus. Yes, I, too, at last; I know I love him. This wee one came
as Heaven's own messenger of light, I shall call her Estrella" (WARDLAW, 1902, p. 123).

Desta forma, ao invés de chamar a filha de Maria da Assunção, seguindo a maneira


costumeira entre os brasileiros, ou seja, com “the name of the Saint upon whose Day it is
Born”, Candida rompe com o referido costume e afirma à suas irmãs que aquela criança
surgia como uma mensageira da luz que iluminava seu novo modo de ver o sagrado, daí o
nome Estrella.

Apesar dos vislumbres de dias menos sofríveis após o nascimento de Estrella, na realidade
Candida passa por inúmeras situações difíceis, como a partida do marido Augusto para o
Amazonas como migrante, a morte de Tia Theresa, os conflitos com sua irmã Glória por
haver renunciado ao catolicismo, a perseguição religiosa de habitantes da cidade, a morte de
Augusto, as dificuldades de sobrevivência impostas pela seca.

1365
Tal qual Mary Wardlaw percebia o protestantismo no Ceará, assim o era a personagem
Estrella, ambos “recém-nascidos”, porém já tendo que enfrentar diversos problemas, como os
enumerados acima. No entanto, ambos vistos como o caminho que solucionaria todas as
demandas daqueles que deles se aproximassem, na medida em que o protestantismo era
percebido pelos missionários como único caminho religioso viável, e a trama do romance de
Mary Hoge caminha rumo a esta mesma conclusão.

Estrella, então, surge como a esperança ante todos estes empecilhos na vida de Candida.
Devido a sua educação totalmente pautada em moldes protestantes, a filha de Candida mostra-
se ao leitor como destituída de valores e práticas negativas, que estariam presentes em outras
crianças de sua idade, mas filhas de pais católicos.

Necessitando sustentar a si e sua filha, Candida, já viúva, passa a trabalhar como governanta
de uma senhora chamada Lucretia, a qual não gostava dos mimos feitos por seu esposo à
Estrella e quando tinha oportunidade descontava seu descontentamento na filha da
governanta. Tal oportunidade é visível no episódio em que Estrella brincava com os filhos dos
patrões de sua mãe, Mariquinha, Anita e Pedro, o qual em um momento de raiva pueril grita
“Diabo” o que faz com que Estrella pare de brincar com as crianças e explicar a elas o
motivo: “mother doesn't let me play with children that say that word” (WARDLAW, 1902, p.
330-331).

Ante tal situação, Pedro quebra uma das rosas de sua mãe e inventa a esta que Estrella seria a
autora do delito, fazendo com que Lucretia vá tirar satisfações com Candida que prontamente
defende sua filha afirmando que “Estrella is perfectly truthful” (WARDLAW, 1902, p. 332).

A pequena Estrella aparece ao leitor como portadora de um diferencial ante as outras crianças
brasileiras, na medida em que se mostra totalmente obediente à sua mãe, não fazendo
traquinagens, não contando mentiras, além de mostrar-se uma criança extremamente cativante
a quase todos os adultos que a rodeiam por conta do referido comportamento.

A explicação para isso se mostra bastante simples ao leitor do romance de Mary Wardlaw, e
ela reside no fato da mãe de Estrella ser uma protestante que ensinava a filha seu modo de
vida religioso cotidianamente com o auxílio de Mrs. Cary e das filhas desta, Evangeline e
Nellie. Assim, o diferencial de Estrella era o fato de esta haver nascido protestante, ou, nas
palavras de um padre que visitaria Candida e tentaria fazer Estrella beijar sua mão, tendo seu
pedido recusado, a criança era “A genuine little Protestant” (WARDLAW, 1902, p. 218).

1366
Além dos aspectos inerentes à moral de Estrella, Mary Hoge destaca no romance outras
características que a criança apresentava por conta da ação de sua mãe. Uma destas
características era o fato Candida interessar-se por estudar português, aritmética e inglês para
em breve tornar-se a professora de Estrella visando para a criança um “futuro”, assim, ainda
bastante jovem Estrella é descrita na história como uma criança extremamente inteligente e
com poucas dificuldades para o aprendizado das lições dadas por sua mãe.

Outro fator pelo qual a autora faz questão de enfatizar era o modo como a pequena Estrella se
vestia:

Candida looked at the three little girls. Estrella's hair was freshly curled; Mariquinha's and
Anita's hung in an uncouth tangle. Estrella's stockings were whole, and her shoes neatly
brushed and tied. Her plain black and white checked calico was clean and well-fitting.
The other little girls were clad in faded finery. Anita's dress was unhooked half the way,
while torn lace hung from Mariquinha's (WARDLAW, 1902, p. 333).

Tal cuidado por parte de Candida revela muito mais que um zelo maternal, traz à tona uma
preocupação essencial ao modo de vida protestante do século XIX que era a compostura dos
trajes, inclusive das crianças.

Por haver nascido em lar protestante Estrella possuía todos os atributos necessários a um bom
seguidor desta fé, a tal ponto, do penúltimo capítulo do romance chamar-se “Estrellas’s first
work for Christ”. Após sair da casa de Dona Lucretia, Candida passou a trabalhar para outro
casal, Frederico e Esmerina Vieira, os quais rapidamente são cativados por Estrella. Esmerina
Vieira, uma mulher com deficiência física, surge no romance como uma boa mulher, porém
solitária e deveras amargurada por acreditar que, devido à sua situação, seu esposo não a
amava mais. Desta maneira, Dona Esmerina passa a compartilhar momentos com a criança
que apesar de bastante pequena possuía uma voz belíssima, o que agradava a patroa de
Candida.

Esmerina solicita, então, que todos os dias Estrella cantasse para ela e propôs-se a dar aulas de
piano à criança já que sabia tocar o instrumento. Na medida em que todas as canções entoadas
por Estrella possuíam conotação religiosa protestante, fica nítida, a ênfase que Mary Wardlaw
chama de “first work for Christ” de Estrella, que apesar da pouca idade já mostrava-se uma
espécie de missionária, a ponto de tocar o coração da patroa de sua mãe que mostrava-se
totalmente indiferente a qualquer tipo de religião.

1367
Além disso, de alguma forma, quase milagrosa, a autora dá a entender que a presença de
Candida e Estrella naquela casa fora fundamental para a reestruturação do casamento de seus
patrões; Frederico Vieira tornou-se mais atencioso com Dona Esmerina e decidiu partir rumo
ao Rio de Janeiro com sua esposa em busca de um tratamento para o problema de saúde da
mesma.

Considerações finais

Estrella é a personalização do devir idealizado ao Brasil a partir da perspectiva missionária de


Mary Wardlaw, isto é, um país que renasceria a partir de uma religião: o protestantismo. E tal
representação sob a personagem Estrella torna-se mais significativa se tomarmos a relação
que a autora faz ao final de seu romance entre a pequena filha de Candida e a queda da
monarquia no Brasil:

Two weeks later the monarchy fell. Across the threshold of the new dynasty we cannot pur-
sue her history. It is enough to say that she has richly redeemed the promise of her
childhood. In appearance, in intellect and in character, she deserves her name.

She is a star, — one that bids fair to shine the brighter, whatever clouds may gather. May it
be her privilege (as it was that of her parents) to "turn many to righteousness." Then, when
her light is withdrawn from earth, she will "shine as the stars forever and ever"
(WARDLAW, 1902, p. 352-353).

Mary Wardlaw e sua família partiram do Brasil em 1901, quando esta nação já era uma
República, e este novo momento político do Brasil foi extremamente significativo para os
vários missionários protestantes estadunidenses que aqui atuavam, na medida em que a queda
do Império e o estabelecimento do fim da união da Igreja Católica com o Estado Brasileiro
representou a estes protestantes um horizonte de múltiplas expectativas quanto à expansão
protestante na recém-nascida república, a qual cresceria juntamente com o recém-nascido
protestantismo brasileiro.

Desta forma, assim como Estrella, a visão formatada no projeto missionário era a que a
mensagem protestante seria uma luz que tinha por atribuição guiar os passos da República do
Brasil. Mary Wardlaw desenvolve a partir de “Candida” aquilo que já em 1888 almejava para
o Brasil: “We know that happy day is a long way off, but we look forward to it, and believe
that it will be ushered in with many blessings” (THE MISSIONARY, 1888, p. 434).

1368
Referências

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DUNSTAN, Leslie. Protestantismo. Tradução de George Braziller. Rio de Janeiro: Zahar


Editores, 1964.

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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SILVA, Eliane Moura. Gênero, Religião, missionarismo e identidade protestante norte-


americana no Brasil ao final do século XIX e inícios do XX. In. Mandrágora (São Bernardo do
Campo), v. 14, pp. 25-37, 2008.

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WARDLAW, Mary Hoge. Cândida; or, by a way she knew not. A story from Ceará.
Richmond: The Presbyterian Committee of Publication, 1902.

1369
1370
Comer o tatu antes ou depois da comunhão? As manifestações
religiosas dos brasileiros e o conhecimento das normas católicas
(segunda metade do séc. XIX)
José Leandro Peters1

Introdução

Neste trabalho proponho uma discussão sobre uma questão central: a valorização dos
brasileiros frente ao sacramento da Eucaristia a partir da leitura da Carta Ânua da
Congregação do Santíssimo Redentor do ano de 1901 (Casa de Aparecida, interior de São
Paulo). Este é um documento riquíssimo que permite levantar uma série de questionamentos
sobre a religiosidade brasileira e a atuação dos padres redentoristas no interior do estado de
São Paulo nos anos finais do século XIX.

Embasado por trabalhos recentes sobre as manifestações religiosas brasileiras, procurei ler
esse documento de maneira crítica, visualizando respeito e conhecimento onde os
redentoristas afirmavam existir indiferença e ignorância. Para promover essa leitura me
apropriei dos conceitos teóricos defendidos em parte por Pierre Bourdieu; Reinhard Koselleck
e Roger Chartier, os quais trabalham com os conceitos de representação e apropriação.
Segundo esses autores os indivíduos são formados dentro de uma cultura (habitus,
experiência, sociedade), mas eles não estão inertes nesse campo, eles devem serem vistos
como seres atuantes que se apropriam daquilo que lhes é dado de acordo com as suas
experiência e suas expectativas de futuro e reformulam a mesma ideia que lhe havia sido
apresentada reivindicando suas expectativas, suas perspectivas futuras (BOURDIEU &
CHARTIER, 2011; KOSELLECK, 2006). Desse modo torna-se possível a compreensão do
discurso redentorista exposto neste documento. A meu ver, a fala redentorista ao criticar o
catolicismo brasileiro faz parte de um discurso de legitimação do trabalho religioso
desempenhado no Brasil. Contudo, os relatos deixados pelos padres permitem uma leitura
distinta da conduzida por eles e observar justamente o oposto das ideias que eles propõem ao
longo do texto.

1
Professor do Instituto Federal de Educação do Sudeste de Minas Gerais (Campus Juiz de Fora). Doutorando em
História pela UFJF. Orientadora: Drª Beatriz Helena Domingues. Contato: joseleandropeters@yahoo.com.br.

1371
Breve relato sobre os documentos analisados e a memória neles proposta

Antes de iniciar uma discussão sobre os relatos dos padres redentoristas e sobre a
religiosidade dos brasileiros, algumas ressalvas são importantes e devem ser feitas para não
gerar interpretações inadequadas do discurso aqui proposto.

A primeira ressalva que faço é sobre o conjunto de regras da Igreja que estou tomando para
poder compreender a religiosidade expressa nesses documentos e o grau de compreensão que
as manifestações religiosas dos brasileiros permitem supor que o povo tinha dessas normas.
Para essa análise utilizei as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (VIDE, 2010),
isso porque embora as constituições não se encontrassem vigentes mais no período de atuação
do clero redentorista no Brasil, são essas mesmas Constituições que formaram os brasileiros
que são retratados nesses relatos, portanto a compreensão de religião oficial que eles possuem,
a meu ver, deve ser baseada nessas constituições e não nos documentos que a substituem após
a Proclamação da República.

Tenho noção de que os redentoristas, por chegarem ao Brasil em um momento em que as


Constituições não são mais o documento norteador da Igreja Católica, podem não
compreender essas manifestações religiosas dentro do contexto das normas que tomarei no
trabalho. Mas esse pode ser um dos motivos que os levaram a considerar o catolicismo desses
brasileiros pouco normatizado, gerando divergência entre a compreensão desses religiosos e
do historiador que outrora escreve esse texto.

É preciso compreender também que o documento analisado possui um objetivo claro:


informar aos superiores na Alemanha o andamento das missões religiosas no Brasil. Por esse
motivo é comum encontrar nesses relatos uma supervalorização do trabalho redentorista e
uma desvalorização do trabalho feito pelos párocos da região no período imediatamente
anterior à chegada da Congregação do Santíssimo Redentor no Brasil. É à atuação desses
religiosos que os redentoristas atribuem uma “falha na formação religiosa dos brasileiros”. Na
visão deles:

no Brasil, os párocos não escrevem os livros ou só conforme seu estado de humor, são os
que menos observam as prescrições do Direito Canônico e do Bispo. Entende-se pois que
os assentamentos de batismo e casamentos sejam deficientes e estragados. Ao se procurar
algo, recebe-se muitas vezes, a resposta “não se encontrou nos livros”. Compreende-se que,
onde não se pratica o celibato, não se sabe duma vida sacerdotal, não se pode esperar senão
mau trato e descuido nos sagrados deveres do ofício, sacrificando-se mesmo as confissões e

1372
as pregações, servindo o púlpito, muitas vezes para a exibição de espírito e talento oratório
sem nenhum valor prático para a vida religiosa e servindo só para embolsar 200-500 mil
réis ou marcos por uma pregação festiva. O que não dá lucro não se faz. É o princípio geral
(BRUSTOLONI, 1978, folha 101).

Fica claro nessa passagem a imagem que os padres da Congregação desenham do corpo
paroquial brasileiro, ou pelo menos daquele que encontraram na Paróquia de Aparecida.
Embora em alguns momentos faça referência a essa dualidade apresentada não é o objetivo
desse trabalho em si apresentar essa oposição e sim buscar nos relatos dos padres
redentoristas, mais precisamente na carta ânua do ano de 1904, passagens que permitem
observar o oposto à ideia apresentada pelos padres. Enquanto eles defendem nessas passagens
o pouco conhecimento e respeito dos brasileiros para com os sacramentos e as normas da
Igreja Católica, percebo nesses discursos, ou melhor, relatos, um conhecimento e respeito
significativo dos fiéis sobre os dogmas católicos. Entendo que em alguns momentos é
justamente o conhecimento sobre esses dogmas e os questionamentos que os indivíduos
levantam sobre eles que os levam a cometer falhas durante os sacramentos. Os relatos
permitem assim visualizar a forte religiosidade dos devotos quando imersos no espaço
religioso. Como aponta Célia Maia Borges:

Avaliar a religiosidade dos colonos pela forma como as pessoas se envolviam nas festas,
como bem chamou a atenção Sérgio da Mata, como o têm feito alguns historiadores,
na esteira do viajante Saint Hilaire, parece – me ser uma visão algo parcial: agradar aos
seus santos, orná-los e organizar as festas com muita pompa espelhava exatamente a
fé dos confrades (MATA, 1997, p. 50). Era isto a expressão de uma forte religiosidade que
refletia – se no desejo de requisitar o amparo de seus santos, quer para obter a proteção
naquela sociedade, quer para recuperar a saúde, obter prosperidade e garantir um bom
futuro na vida e no além (BORGES, 2011, p. 4).

A pesquisa de Célia Borges aponta essas conclusões para as representações religiosas dos
irmãos do Santíssimo Sacramento na Colônia. Acredito ser possível reportar noções parecidas
quando analisamos as manifestações religiosas dos devotos e católicos que viviam ou se
dirigiam a Aparecida e eram assistidos espiritualmente pelos redentoristas no final do século
XIX. Para tanto a leitura do documento é feita de maneira a questionar de maneira crítica os
argumentos levantados pelos redentoristas, levando em consideração, como já mencionei o
interesse desse grupo em mostrar a deficiência na formação dos católicos brasileiros.
Enquanto esses religiosos focam suas conclusões e afirmações nos números de comunhões

1373
oferecidas, procuro analisar os poucos relatos que aparecem nesses textos sobre o
comportamento dos fiéis diante dos sacramentos, mais precisamente a Eucaristia.

As comunhões

O número crescente de comunhões oferecidas no Santuário de Aparecida é apresentado nesse


documento como uma prova de que a política dos redentoristas estava sendo bem efetivada e
bem aceita pelos brasileiros. Quando pensamos quantitativamente, os números apresentados
pelos redentoristas realmente saltam aos olhos e se apresentam de maneira muito significativa,
apontado para uma maior adesão dos brasileiros ao sacramento e porque não dizer, até mesmo
ao catolicismo. Sobre o sacramento da Eucaristia, segundo o texto redentorista;

aumenta o número de ano para ano. Diz-se que, quando chegamos em outubro de 1894,
eram 300 as comunhões anuais. Já em 1895, apesar de os padres falarem mal a língua e as
pessoas não entenderem ou não serem entendidas, o número subiu a 2000. Com a
transferência dos PP. Wendl e Gahr para Campinas e dos PP. Wiggermann, Späch e Siebler
de lá para Aparecida, em fins de 1895, tomaram impulso as pregações e confissões,
chegando o número de comunhões a 7000 no ano de 1896. Em 1897, 14.000; em 1898, as
comunhões, contando-se as duas missões, foram 30.000, sendo 14.000 de Aparecida.
Dessas 30.000 uns 90 não se tinham confessado nunca ou só uma única vez. Acontece, às
vezes, que as pessoas comungam sem se confessarem ou observarem o jejum, mas fazem-
no por ignorância e não por maldade (BRUSTOLONI, 1978, folha 114).

O número baixo de comunhões distribuídas, antes de 18942, está relacionado não a pouca
importância que os brasileiros davam aos sacramentos, mas a um respeito extremo à
Eucaristia e às normas que a envolviam. Como aponta o documento, poucos desses indivíduos
tinham se confessavam ou conservavam o jejum, ficando, desse modo, impossibilitados de
comungar se levassem a sério, como me parece que ocorria, os sacramentos da comunhão.
Quando o redentorista cita um caso em específico esse temor pelas consequências de se tomar
a Eucaristia sem seguir os preceitos da religião católica aparecem de maneira mais clara. Diz
o documento;

Um homem veio de longe à missão e em jejum, pois queria comungar. Trazia na sacola um
tatuzinho já assado para o desjejum. Veio-lhe então a dúvida: como o tatu depois da
comunhão, então o Senhor Jesus fica abafado debaixo dele; como antes a comunhão, então
não está certo, mas ao menos, mas ao menos o tatu fica por baixo. Resolveu o caso,

2
Ano que marca a chegada dos padres da Congregação do Santíssimo Redentor no Brasil.

1374
comendo o bichinho e depois foi comungar muito devotamente (BRUSTOLONI, 1978,
folha 114).

Este trecho das permite uma série de apontamentos. Em primeiro lugar, é preciso entender a
justificativa do redentorista para a atitude deste indivíduo. Segundo o documento, o motivo
deste homem ter se colocado nessa situação, ou melhor, nesse questionamento, se comia o
tatu antes ou depois da comunhão seria o resultado de um certo abandono religioso pelo qual
passavam os brasileiros das regiões mais interioranas do Brasil. Conforme o padre
redentorista, no início desta mesma carta, a assistência espiritual dos brasileiros no período
anterior à chegada dos padres da Congregação no Brasil (ano de 1894) principalmente nas
regiões do interior do país. Portanto, estando os brasileiros em quase completo abandono
espiritual não tomariam conhecimento das normas que regiam a Igreja Católica, nem teriam
consciência da importância dos sacramentos dentro da Igreja, embora manifestassem a sua de
maneira veemente. Dentro deste contexto, Wendl cita o caso acima apontado como exemplo
da falha na formação religiosa do povo brasileiro. Deste modo o problema não é que o povo
não tem fé ou religião, o problema seria que eles não possuem conhecimento das regras que
norteiam a Igreja e os seus sacramentos. Ora, quando analisamos o texto acima o que me
parece é justamente o contrário.

De fato, a fé relatada por Wendl realmente parece existir, mas não nos cabe aqui o julgamento
deste ponto, o que nos interessa é outro lado da citação, o conhecimento sobre as regras da
Igreja e a importância dada pelo indivíduo que vai se comungar ao sacramento, a qual não me
parece diminuta. Pelo contrário, ele parece ter um conhecimento muito avolumado destas
regras e encarar de forma muito respeitosa o sacramento da comunhão. A questão que o
conduz a dúvida de comer o tatu antes ou depois da comunhão não é fruto da falta de
conhecimento e sim do farto esclarecimento que possui sobre a religião que se pôs a seguir. O
indivíduo tem a noção de que deveria se comungar em jejum, portanto não poderia comer o
tatu antes da comunhão, incorrendo, caso o ingerisse desse modo, em um grave pecado. Por
outro lado, ele se questiona sobre o fato de comer o tatu depois da comunhão, questão para ele
tão ou mais grave que a primeira, já que a hóstia consagrada era o símbolo do corpo e do
sangue de Jesus Cristo. Deste modo, o tatu ficaria sobre Cristo, o que seria, ao ver deste
homem, um fato muito grave. Quando ele levanta essa segunda questão permite perceber que
ele possuía o conhecimento de que a hóstia representava o corpo e sangue de Jesus e ele a
respeitava enquanto tal. Ao que me parece esse discurso pode ser lido como um indício em
sentido oposto ao apresentado pelo redentorista. Enquanto para o padre o discurso é uma

1375
prova do total desleixo espiritual em que viviam os brasileiros, para mim ele permite perceber
que por mais que os brasileiros estivessem em uma situação de desamparo pela Igreja
Católica eles tinham uma mínima noção da fé católica.

É possível afirmar, por meio desse relato, que esses indivíduos encaravam de forma séria os
sacramentos e que mesmo praticando uma religiosidade lida como devocional pelos
redentoristas e pela maior parte dos membros da Igreja Católica, não se distanciavam dos
anseios sacramentais do período. Como afirma Célia Maia Borges em artigo recente, o
número pouco expressivo de comunhões oferecidas dentro do Brasil, conforme foi apontado
no documento, não pode ser tomado como um significado de pouca religiosidade ou
indiferença dos brasileiros para com a Eucaristia.

Dizer que havia “uma grande indiferença” por parte dos colonos em relação à Eucaristia
cotidiana pelo fato de ela não se encontrar explicitada nos livros de compromissos,
conforme afirma Adalgisa Arantes Campos, pode não traduzir, do meu ponto de vista,
uma leitura suficientemente esclarecedora dos documentos (CAMPOS, 1984, p. 261).
Não era por constituir a missa um valor em si para o colono que este se dispensava de
frequentar a comunhão diária; ela era tão importante que exigia uma grande preparação
(Idem: 262). Como acertadamente demonstrou Sérgio da Mata, a baixa freqüência dos fiéis
à comunhão podia não significar uma “subvalorização da eucaristia no Setecentos mas
antes a sua hipervalorização” (MATA, 1997: 4157). Isto porque o colono podia deixar de
comungar por temor ao sagrado, por medo dos castigos e também pelo receio de não
corresponder ao modelo de cristão exigido pela Igreja (BORGES, 2011, p. 7-8).

O homem que traz o tatu reconhece que não pode comê-lo porque infringiria uma regra da
Igreja, mas, para ele, infringir a regra imposta era menos grave que permitir que o tatu
permanecesse sobre o corpo e sangue de Cristo, uma regra lógica, criada por ele dentro desse
catolicismo dito devocional. Essa decisão mostra a maneira respeitosa com que encara o
sacramento, logicamente interpretado segundo seus padrões culturais e religiosos. O homem
não admite que o tatu fique sobre Cristo. É possível pensar que como esse devoto, outros
também ficassem indecisos e decidissem por não comungar, como afirma Célia, isso ocorria
por temor de que algo lhes pudesse ocorrer. Se pensarmos nas relações entre os signos e seus
significados, este homem estaria até certo ponto correto em seu raciocínio, mas o fato é que
infringiu uma regra da Igreja (a qual fica claro, como já demonstrado, que ele possuía
conhecimento) e por isso é “condenado” e tomado como exemplo pelo redentorista de um
povo brasileiro que desconhecia e pouco valorizava os sacramentos da Igreja Católica, sendo
deixado de lado o julgamento lógico feito pelo indivíduo.

1376
É fato que os redentoristas ao escreverem essas cartas procuraram valorizar ao máximo suas
ações no Brasil, portanto exploram em muito o número das confissões e comunhões
oferecidas no Santuário3, como indica um dos documentos acima citado. Apresentam, como já
foi apontado no início dessa discussão sobre as comunhões, números muito expressivos a
partir do início da atuação redentorista na região. Dados como esses, bem como o relato aqui
citado e analisado ajudavam a corroborar o discurso redentorista, que afirmava terem
encontrado um povo espiritualmente abandonado, mas extremamente religioso, que a partir do
início de sua atuação passaram a adotar um catolicismo mais sacramental. Desse modo os
redentoristas mostram estar cumprindo o desejo da Igreja brasileira naquele momento, desejo
inclusive que motivou a vinda deles para o Brasil.

Mas mesmo apontando para toda essa “evolução sacramental” dos brasileiros, mais
precisamente para um aumento no número de indivíduos que se comungavam, os
redentoristas não deixaram de apontar para dificuldades ainda presentes para efetivação do
trabalho feito com os fiéis (em grande parte devotos da imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida). Eles citam, por exemplo, a dificuldade que tinham na assistência aos
doentes que habitavam o interior do país, mais precisamente, regiões que estavam a mais de
30 minutos de caminhada da região do Santuário. Locais em que o acesso só se daria por meio
da utilização de cavalos. Contudo havia um grande entrave para se assistir aos indivíduos
nessas regiões: levar a hóstia sobre os cavalos. O relato abaixo citado expõe a questão:

Andam pelos 800 os doentes visitados desde 1896; a comunhão só se leva no próprio lugar
a pé ou numa distância de meia hora, quando há condução. No Brasil, o viático é levado
solenemente com padre paramentado convenientemente, coroinhas, baldaquino e povo
acompanhado. O padre leva em geral duas hóstias consagradas, quando o doente é do lugar,
para poder trazer processionalmente o Santíssimo de volta.

Em todo o trajeto, canta-se o “Bendito e louvado seja o Smo. Sacramento da Eucaristia,


fruto sagrado do ventre da Sagrada Virgem puríssima, Sta. Maria”. Parece-me injusto o não
se levar a comunhão aos doentes de mais longe; não seria difícil obter licença do Bispo para
se levar o Santíssimo a cavalo, (os Capuchinos tem esse privilégio) acompanhado de um
ajudante também a cavalo (BRUSTOLONI, 1978, folha 114).

Por um lado, o texto permite perceber os entraves ao trabalho sacerdotal dos redentoristas.
Interessante que eles parecem apontar para as próprias regras da Igreja como uma barreira ao
desenvolvimento do trabalho de assistência espiritual aos brasileiros. As mesmas regras que

3
No caso o Santuário de Aparecida no interior do estado de São Paulo.

1377
eles dizem que os religiosos brasileiros não seguiam, nesse ponto são colocadas para explicar
porque ação missionária não alcançou números mais expressivos. O interessante é que
justificando a falta com um determinado grupo (os doentes) o texto do redentorista permite
visualizar que os sacramentos não eram encarados de maneira simplista pelos religiosos
brasileiros como uma leitura desatenta do documento permitiria supor. Da mesma forma que
o questionamento do homem que não sabia se comia o tatu antes ou depois da comunhão
partia não de um desconhecimento dos dogmas de sua religião e sim de um respeito a esses
dogmas, a situação acima descrita permite supor que, ao contrário do que afirma o
redentorista sobre a atuação paroquial naquele local antes da sua chegada, o respeito ao
sacramento da eucaristia era algo presente nessa sociedade. Visto o fato de a eucaristia não ser
levada a qualquer lugar, de qualquer forma, por qualquer pessoa. E quando acontece de ela ser
levada, seja em locais mais próximos ou mais longínquos, tudo é feito sob autorização do
bispo e há todo um cortejo e um cerimonial para seguir o trajeto. Como aponta o documento,
a saída do “Santíssimo Sacramento” da igreja é feito em cortejo acompanhado por um padre
com vestes adequadas para o processo, coroinhas, baldaquino e o povo em geral, que durante
o trajeto cantam músicas de louvor ao “Santíssimo Sacramento”, a Jesus Cristo e à Vigem
Maria. Quando as distâncias são mais longínquas e é necessária a utilização do cavalo para o
transporte, o padre também não segue sozinho, leva junto consigo um ajudante, o qual
provavelmente garantiria a boa execução dos rituais necessários ao respeito com o sacramento
viático.

Fato é que o texto redentorista apresenta esses casos em parte para afirmar o descompromisso
do corpo eclesiástico brasileiro com as funções religiosas a que estavam destinados, mas em
alguns momentos os relatos permitem perceber que os redentoristas esbarravam em
dificuldades similares aos seus antecessores. Desse modo, podemos compreender que os
redentoristas utilizam esses casos citados da forma que melhor lhes convém. Quando querem
criticar os padres que os precederam, os registros servem para corroborar um discurso
pejorativo da religião dos brasileiros afirmando uma possível indiferença dos brasileiros para
com os sacramentos e as regras da Igreja Católica, fruto de uma falha do corpo eclesiástico.
Contudo, quando não conseguem efetivar o trabalho, o discurso, em alguns momentos muito
próximo dos exemplos usados para crítica, emerge em um sentido contrário; para justificar
ações ainda não tomadas.

1378
Conclusão
Propus ao longo do trabalho uma leitura crítica da carta ânua dos padres redentoristas do ano
de 1901, um documento riquíssimo que permite uma série de interpretações. Procurei
demonstrar que o documento apresenta a visão dos redentoristas sobre a religiosidade
brasileira e a utilização de argumentos pelos padres para justificar o trabalho já efetuado e
aquele que ainda não foi concretizado. Foquei minha análise no sacramento da Eucaristia,
procurando mostrar como os redentoristas entendiam que os brasileiros o encaravam e como
os documentos permitem abordar a questão de maneira distinta sem aceitar a interpretação
oferecida pelos padres da Congregação. Em concordância com estudos recentes tenho
chegado à conclusão de que uma simples análise quantitativa que relaciona o pouco número
de comunhões a um desprezo brasileiro pela Eucaristia pode conduzir a interpretações que se
distanciem da realidade vivenciada. Até o momento dessa pesquisa tendo a concordar com a
Célia Borges quando a autora menciona que estas atitudes podem estar relacionadas a uma
supervalorização sacramental e não a uma subvalorização do sacramento eucarístico.

Conclusões como essa se tornam possíveis quando procuramos analisar os documentos de


maneira a dar importância aos casos neles citados sem desconsiderar os números neles
citados. É importante também não comprar o discurso apresentado pelos padres redentoristas
e procurar decifrar as intencionalidades desses indivíduos ao escrever esses documentos.
Desse modo o questionamento “comer o tatu antes ou depois da comunhão?” ecoa não como
um exemplo da desassistência espiritual ou indiferença ao catolicismo sacramental, mas como
um questionamento lógico segundo as concepções religiosas daquele indivíduo apontando
para uma supervalorização da Eucaristia por parte desse homem. Arrisco dizer que esse caso
específico citado pelos redentoristas aponta para uma possível explicação para o baixo
número de comunhões oferecidas antes de 1894 e permite levantar a hipótese de que o
número elevado de comunhões que se percebe posteriormente é o fruto de uma indiferença de
algumas regras católicas por parte dos redentoristas, permitindo que algumas pessoas
comungassem sem se confessar ou preservar o jejum, como no caso do homem que comeu o
tatu e depois tomou a Eucaristia.

Referências

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Sagrados: os Irmãos do Santíssimo Sacramento da Colônia. Em OLIVEIRA, Camila
Aparecida Braga; MODELO, Helena Miranda; BUARQUE, Virgínia Albuquerque de Castro

1379
(orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional de História da
Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EDUFOP, 2011. (ISBN: 978-85-
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Aparecida (1717 – 1917). Aparecida: ACMA, 1978.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

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WERNET, Augustin. Os Redentoristas no Brasil. Aparecida, SP: Editora Santuário, 1995.

1380
1381
Congreganismo e anticongreganismo: a situação eclesiástica em
Portugal entre 1820 e 1834
Gustavo de Souza Oliveira1

Introdução

Em Portugal a ausência da família real após o ano de 1808 proporcionou o emergir de liberais
desejosos por mudanças políticas. Em 1833, com a queda do reinado de D. Miguel, foi
consolidada a monarquia constitucional, que teve como uma de suas primeiras atitudes a
extinção das congregações religiosas masculinas no ano de 1834. Tal medida não significou o
abandonou da religião católica, mas a concretização do cisma entre o Reino de Portugal e a
Santa Sé, divisão que prevaleceu até 1841.

Desde o século XVIII havia uma questão religiosa, que considerou o clero regular um entrave
para o Estado. D. Maria I, no ano de 1789 criou a Junta de Exame do Estado Actual, e
Melhoramento Temporal das Ordens Regulares, que teve como dirigente o Bispo do Algarve,
D. José Maria de Melo. Esta organização examinava as congregações e elaborava pareceres
sobre a situação dos conventos, expondo quais necessitavam ser suprimidos e quais deveriam
ser melhorados (CORREIA, 1974, p. 102). A organização dessa Junta demonstrou que o
debate sobre a situação do clero regular não era uma discussão original do século XIX, mas
acontecia desde os anos setecentos.

Na interpretação de José Eduardo Horta Correia, os inquéritos produzidos pela Junta de


Melhoramentos permitem averiguar que muitas das casas religiosas não mantinham a vida
comum. Em 24 de outubro de 1800 uma ordem foi direcionada a todos regulares para se
recolherem aos seus conventos, pois eram rotineiras as saídas de clérigos com a finalidade de
tratar a saúde, acompanhar parentes doentes ou até mesmo para ir a banhos. Esta circunstância
tornou-se ainda pior após as invasões napoleônicas no início do século XIX, pois os claustros
serviram de quartéis para tropas portuguesas e estrangeiras (CORREIA, 1974, p. 102, 113,
118).

A partir dos anos de 1820 a condição eclesiástica sofreu mudanças. Os revolucionários não se
posicionaram contra o catolicismo, mas contrários às congregações. A experiência portuguesa
1
Doutorando e mestre em História pela UNICAMP. Bolsista da CAPES. Orientadora: Dra Eliane Moura da
Silva. Contato: gso_vicosa@yahoo.com.br .

1382
com o liberalismo pode ser compreendida se a dividirmos em dois momentos. O primeiro é
caracterizado pelos acontecimentos decorridos nos anos 20 do século XIX, vintismo. Já o
segundo é marcado pela Guerra Civil com as disputas entre os irmãos D. Miguel I e D. Pedro
IV entre 1832 e 1833.

O vintismo e o regalismo em Portugal

Para Isabel Nobre Vargues, o movimento conhecido como Revolução de 1820 marcou o
momento fundador do liberalismo oitocentista em Portugal. Com a mudança da corte para o
Brasil a colônia passou a abrigar a sede do Reino. A medida alterou as relações estabelecidas
no pacto colonial, fato acentuado com a abertura dos portos brasileiros. As relações mercantis
na América lusitana cresciam e o cenário em Portugal tornava-se caótico, devido à presença
das tropas francesas e a inoperância do governo regencial estabelecido em Lisboa
(VARGUES,1998 , p. 41-42).

No dia 24 de agosto de 1820 as tropas comandadas pelo coronel Cabreira se reuniram na


cidade do Porto para a leitura das justificativas da ação liberal. As principais metas eram a
criação de uma constituição, a manutenção da dinastia de Bragança e a defesa da religião
católica. Deste ato surgiu uma junta de governo presidida por Antônio da Silveira. A
Revolução de 1820 abalou as estruturas do Antigo Regime. Em 15 de setembro de 1820 a
manifestação tomou conta da capital, quando o tenente Aurélio José de Morais reconheceu o
movimento, assim, um governo interino foi instituído (VARGUES, 1998, p. 46, 51 e 52).

Entre 1820 e 1823 o vintismo se caracterizou pela criação do parlamento liberal em Portugal
(1821) e pela elaboração da Constituição (1822). Esta carta magna foi jurada e celebrada e o
próprio rei D. João VI antes de deixar o Brasil aceitou suas bases constitucionais
(VARGUES, 1998, p. 54 e 55). O novo estatuto não previa um Estado laico, pelo contrário,
definia o catolicismo como religião oficial. Torna-se evidente que o problema eclesiástico
debatido no parlamento durante o período liberal se concentrou no congreganismo (NETO,
2010, p.11 e 53).

Vítor Neto acentuou que o clero assumiu um novo papel. Eles deveriam auxiliar o regime
constitucional, utilizando a sua influência junto à população. Visava-se conseguir maior apoio
e adesão ao liberalismo (NETO, 1988, p. 47). Percebemos que os vigários seculares passaram
a ser entendidos como a expressão da religião em favor do Estado. Já os regulares eram

1383
interpretados como elementos de fragmentação da coesão nacional, uma ilha estrangeira
dentro de Portugal.

De acordo com Antônio Matos Ferreira, mesmo com o reconhecimento do catolicismo como
religião oficial, o juramento das bases constitucionais gerou o primeiro conflito entre o Estado
e aqueles que defendiam a não legitimidade do poder temporal sobre as questões religiosas. O
caso mais célebre foi protagonizado por D. Carlos Cunha e Meneses (FERREIRA, 2002,
p.24).

D. Carlos Cunha era o cardeal patriarca de Lisboa e em 1821 se envolveu em polêmica ao não
apoiar as bases constitucionais estipuladas pelos liberais. Por essa postura foi isolado no
convento de Buçaco e depois exilado para Baiona na França, local em que permaneceu até o
ano de 1823 (VARGUES & TORGAL, 1998, p. 57). Em 26 de fevereiro de 1821 os liberais
determinaram que os bispos e arcebispos portugueses enviassem comunicados a suas dioceses
argumentando que as reformas políticas apresentadas não desrespeitavam a religião católica.
Porém, a tentativa de usar o clero como instrumento para legitimar o novo formato político
encontrou resistência, como foi o caso do patriarca de Lisboa (FERREIRA, 2002, p. 26 e 27).
Em setembro de 1821 Carlos I enviou uma pastoral para os fiéis na qual apresentou sua
versão acerca do fato ocorrido.

Carolus I

Cardinalis Patriarcha Lisbonensis

[...]Quando communicámos ás autoridades Ecclesiasticas as ordens que recebemos, para


ellas darem o juramento sobre Bases da Nova Constituição, não inter puzemos o nosso
parecer, sobre se devião, ou não, prestalo: [...]; nem de maneira alguma quizemos influir na
opinião do nosso clero; antes deixámos inteiramente a cada hum practicar o que a sua
consciencia lhe dictasse. Mandando lhe junto a copia do Aviso que tinhamos recebido, para
que por elle viessem no conhecimento não ser de nós que a dita ordem tinha emanado, e da
qual so eramos executores, facto que se pode vereficar pelas participações que as
authoridadess competentes fixemos.

[...]Sabeis igualmente que a Jurisdicção Espiritual que temos sobre vos, so nos pode
ser suspensa segundo as regras prescritas nos Concilios: da Igreja a recebemos, so a Igreja a
pode tirar, havendo culpa verdadeira, e processo formado; porque o sacerdocio não se
governa pelas leis do Imperio: he hum distincto do outro; [...] Mas como o exercicio da
nossa jurisdição em parte se impossibilita pela nossa aucensia, julgamos ser do nosso dever
declarar, para socego das vossas consciencias, que logo que recebemos a ordem para sahir

1384
do nosso Patriarcado e hir para o convento do Bussaco, immediatamente expedimos huma
provizão ao exmo Collegio pella qual se lhe delegamos toda a nossa jurisdição ordinaria,
por estarmos hem persuadidos das suas virtudes, e que pello seu Santo zelo uzará de tudo
quanto fora bem da salvação das vossas almas. [...]

[...] Bayonna de França a 8 de setembro 1821.

2
C. Cardeal Patriarcha

Nesta circular o patriarca, explicou aos fiéis que foi exilado devido às acusações que davam
conta que ele desaconselhou aos sacerdotes a jurarem as bases da constituição. Ele
argumentou que apenas deixou claro aos clérigos que essa era uma orientação do governo e
não a sua posição pessoal. Na interpretação de D. Carlos Cunha, o aceitar ou não eram
decisões pessoais e cabia a ele apenas defender os interesses da Igreja. O cardeal não
reconheceu legitimidade no poder temporal para retirá-lo do cargo, mas diante das
dificuldades um colegiado foi designado para exercer suas funções.

De acordo com Antonio Matos Ferreira, a atitude do patriarca baseava-se na compreensão da


autonomia do catolicismo em relação ao governo liberal. D. Carlos Cunha acreditava que o
Estado perdeu sua legitimidade para intervir na religião no momento em que o liberalismo
estipulou que o rei não era magistrado supremo de direito divino, mas representante do povo.
Inaugurou-se uma diferenciação no pensamento religioso português nas duas primeiras
décadas do século XIX. Uns defendiam o Antigo Regime e o poder divino do rei e outros
aprovavam o liberalismo e o soberano como representante do povo. O debate político e
religioso em Portugal atingiu maior destaque e ampliou seus assuntos, passou a envolver a
função das ordens religiosas, o direito a liberdade de crença e a nomeação de cargos
eclesiásticos (FERREIRA, 2002, p. 24-25).

No entendimento liberal os clérigos deveriam ter uma função social. O padre passou a ser
compreendido como um funcionário público que se diferenciava de outros cargos apenas por
suas obrigações. Assim, as congregações religiosas não possuíam desempenhos vantajosos
para a nação, pois viviam em reclusão, possuíam muitos bens e se sujeitavam a lideranças
estrangeiras. Alicerçados nesta convicção o governo suspendeu as entradas de noviços e de
noviças em 23 de março de 1821 e 21 de agosto em 1822 (FERREIRA, 2002, p. 26).

2
Pastoral de D. Carlos Cunha e Meneses (Carlos I). Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa. Cota: R2751//22A.

1385
Para Antonio Matos Ferreira, o regime político que se constituía determinou uma nova
compreensão sobre a religião. O clero passou a ter mais vínculos com o poder estatal.
Transformou-se em um departamento da administração pública. Ocorreu uma clericalização
ao estilo liberal que serviu como uma desclericalização do modelo eclesiástico do Antigo
Regime, de atuação marcante na política e na sociedade. Nesta circunstância, uma resistência
ultramontana se articulou para tentar impedir a redução da influência religiosa (FERREIRA,
2002, p. 27).

A primeira experiência liberal não durou muito tempo, foi freada em 1823 com uma
demonstração clara do poder militar daqueles que se opunham a ela. A reação foi encabeçada
por D. Miguel e teve inicio em Vila Franca, conhecida como Vila-Francada. O rei D. João VI
alertado sobre uma possível contrarrevolução dirigiu-se àquela localidade e entregou ao seu
filho, o infante D. Miguel, o comando do exército, evitando qualquer confronto armando
naquele momento. A família real retornou a Lisboa e foi recebida por contrarrevolucionários
(VARGUES & TORGAL, 1998, p. 58-59).

A Guerra Civil e a efetivação liberal

A morte de D. João VI em 10 de março de 1826 reacendeu as disputas políticas no Reino de


Portugal. Antes de seu falecimento o monarca deixou direções que garantiam que D. Isabel
Maria deveria ser a sua sucessora. A regência da infanta caracterizou o ressurgimento do
liberalismo, que neste caso era demonstrado por uma nova carta constitucional remetida do
Brasil por D. Pedro em 1826 e pela criação de um parlamento bicameral. A oposição
organizou uma campanha na imprensa contra a carta magna e contra o então imperador
brasileiro (VARGUES & TORGAL, 1998, p. 62-63). Este foi apontado pelos oposicionistas
como o responsável por permitir que Portugal perdesse sua melhor colônia. “Arranca-nos a
mais vasta e a melhor das nossas colonias, e como paga d’este roubo manifesto, quer agora
que os Portuguezes tenhão por Soberano o Autor de suas maiores desgraças [...]” (CAMPOS,
1928, p. 37-38). Essa era a opinião de D. Frei Fortunato S. Boaventura anos depois já como
arcebispo de Évora.

A constituição e o direito de sucessão ao trono lusitano desencadeavam uma situação de crise


entre 1826 e 1827. Com o interesse de evitar o conflito buscou-se uma conciliação. Neste
sentido, em 1828 D. Miguel chegou à Lisboa para cumprir o acordo estabelecido com seu

1386
irmão. Ele deveria assumir o governo regencial no lugar de sua irmã D. Isabel, jurar a
constituição de 1826 e efetivar o casamento com sua sobrinha D. Maria II. No entanto, em
março de 1828 ele dissolveu a Câmara dos Deputados nomeou uma junta para convocar a
antiga assembleia dos três estados. Com essas medidas foi aclamado rei absoluto de Portugal.
Durante o tempo que esteve no poder conseguiu o reconhecimento de apenas três governos,
sendo eles: Espanha, Santa Sé e Estados Unidos. Ainda em 1828 teve inicio a resposta liberal
que se acentuou em 1831 com o retorno de D. Pedro a Portugal (VARGUES & TORGAL,
1998, p. 64-66).

O governo de D. Miguel não obteve grande aceitação internacional. Seu isolamento somado
aos erros cometidos em suas ações militares direcionou seu reinado ao colapso. D. Pedro IV 3
teve papel importante na vitória liberal, pois conseguiu que outras nações virassem as costas
para o seu irmão, impedindo alianças. Diante da impossibilidade de prosseguir com as
batalhas, generais reunidos em Évora optaram por uma rendição e uma proposta de armistício.
Em 26 de maio de 1833 foi assinado um documento de paz na localidade de Évora Monte,
Convenção de Évora Monte. Neste acordo ficou estipulada a anistia geral de todos os crimes
políticos, o retorno dos vencidos aos seus lares e a entrega das armas. A D. Miguel coube
devolver as joias da coroa e partir para o exílio com direito a uma pensão anual. Ele aceitou e
dirigiu-se para Roma, mas depois negou a convenção e manteve sua posição crítica aos
liberais com a esperança de conseguir retornar ao trono português (SILVA, 1998, p. 80-81).

A Monarquia Constitucional inaugurada após a Revolução liberal vislumbrou no catolicismo


uma forma de coesão nacional e, por isso, considerou uma ameaça à pátria todo o clero que se
submetia aos líderes estrangeiros. Baseando-se neste entendimento, parte dos deputados se
colocaram contrários aos ultramontanos e à Santa Sé, mas não defenderam a fundação de uma
Igreja Nacional (NETO, 2010, p. 12-13). Esta postura permite notar um retorno ideológico ao
regalismo do século XVIII, que conseguiu manter sua influência na política lusitana do século
XIX. Para os parlamentares o Estado necessitava exercer domínio também na esfera
espiritual. E por isso os textos constitucionais elaborados nos anos de 1822, 1826 e também
em 1838 orientavam-se pelos princípios regalistas. A religião deveria ser um pilar para o
regime político e não um elemento desagregador (NETO, 2010, p. 15-27).

3
Cabe ressaltar que ao retornar para Portugal D. Pedro I passa a ser conhecido como D. Pedro IV.

1387
A Santa Sé e o reconhecimento de D. Miguel I

Com a proclamação de D. Miguel como soberano absoluto de Portugal em maio de 1828


efetivou-se uma divisão na Igreja lusitana, uma parte do clero apoiou o novo monarca e a
outra se opôs a ele. Nesta conjuntura a Santa Sé adotou uma conduta cuidadosa e não declarou
seu posicionamento de forma clara. O núncio apostólico em Lisboa suspendeu suas funções
alegando mudanças políticas. Durante os curtos pontificados de Leão XII e de Pio VIII
nenhuma medida contundente ocorreu. As dioceses portuguesas sofriam com seus cargos
vacantes, pois o governo ainda não possuía o reconhecimento do pontificado e com isso as
nomeações estavam impedidas. Uma sensação de desgoverno imperava e pressionava um
posicionamento oficial do sumo pontífice. Com a eleição de Gregório XVI em 2 de fevereiro
de 1831 ocorreu a definição. Em agosto do mesmo ano o papa reconheceu D. Miguel como
soberano português e foram restabelecidas as funções diplomáticas com Portugal
(FERREIRA, 2002, p. 28-30).

Entre os religiosos indicados para ocupar funções episcopais encontrava-se Frei Fortunato de
S. Boaventura, padre regular que desde o retorno de D. Miguel se caracterizou como
personalidade importante da causa da contrarrevolução. No ano de 1828 discursou tanto na Sé
de Coimbra quanto na Igreja de S. João da Almedina sermões em ação de graças pela chegada
do monarca. Em sua mensagem enfatizou que “[...] antes mil vezes um rei mais que absoluto
do que cem despotas [...] hoje condemnados para sempre os inimigos do Senhor D. Miguel I.
Quem vos deo a suprema auctoridade a 24 de Agosto de 1820?” (CAMPOS, 1928, p. 33-35).
Seus dizeres estavam repletos de ataques aos liberais e de exaltação ao governo absolutista.
Devido ao seu apoio foi indicado para ocupar o cargo de Arcebispo de Évora em 29 de
setembro de 1831 sendo sua nomeação confirmada pelo papa Gregório XVI. A luta política de
Frei Fortunato era percebida na imprensa. No periódico Mastigoforo nos anos de 1830 a 1832
o sacerdote publicou artigos a favor do Antigo Regime, como ficou claro na definição de
absolutismo impresso naquele jornal (CAMPOS, 1928, p. 35, 50-51).

[...]Absoluto, e Absolutismo. – A primeira destas palavras he antiga, porém a outra he de


novo cunho e foi trazida, para subsidio da primeira tanto que lhe fexárão o seu novo
sentido. Vem de longe a transformação do sentido innocente da expressão – Rei absoluto –
já houve, quem arguisse os Publicistas Inglezes de terem feito o absolutismo Synonimo de
Despotico, e os mações encorrem na mesma censura – Rei absoluto quer dizer – hum Rei
como sempre forão os nossos, que fundarão, restaurarão, e ampliarão a monarquia [...]
(CAMPOS, 1928, p. 51).

1388
Nesta argumentação apologética o frei apontou uma diferenciação entre Absoluto e
Absolutismo. O primeiro era colocado apenas como característica de rei que garantiria a
ampliação da monarquia. Já o segundo seria uma expressão deturpada, construída pelos
maçons, que seria sinônimo de despótico. Sua interpretação acusava os liberais de atribuírem
sentido pejorativo a princípios do Antigo Regime.

O cisma religioso e a expulsão das ordens religiosas de Portugal

O reconhecimento papal do governo de D. Miguel coincidiu com a ofensiva do liberalismo.


D. Pedro abdicou do trono brasileiro e retornou à Europa e tornou-se líder do partido liberal e
defensor do direito de sua filha, D. Maria II, ao trono lusitano (FERREIRA, 2002, p. 30). Em
carta endereçada ao bispo de Roma D. Pedro IV deixou clara a sua insatisfação com o
posicionamento da Santa Sé:

Carta do Duque de Bragança a S. Santidade

[...]Eu sinto profundamente n’alma de me ver obrigado a declarar a Vossa Santidade que
não reconheço, desde já, nem reconhecerei para o futuro, como validas, as nomeações de
Bispos feitas pelo usurpador da Coroa de Minha Augusta Filha, antes farei intimar a todos
os candidatos que as acceitarem, e negociarem em Roma a expedição ordinaria de suas
Bullas, que se abstenhão de o fazer, sob pena de serem por mim considerados e tratados
como traidores e rebeldes a Sua Magestade Fidelissima, e se a Providencia favorecer, como
é de esperar a justiça da Sua Cauza, de serem expulsos do Reino [...].

Eu protesto diante de Deos, e de Vossa Santidade, que nenhum Principe foi, nem é mais
alheio do que Eu, do temerario desejo de excitar scisma, ou ainda a mais leve interrupção
da boa harmonia com a Santa Sé, mas Eu não ignoro que se os tempos estão mudando [...].

[...] Eu ao menos prevenindo a tempo provo evidentemente a Vossa Santidade, e ao mundo


inteiro, o vivo desejo que nutro, de evitar a Igreja de Portugal um scisma que a perturbe,
com todas as consequencias, que se não podem prever de tamanho desastre.

4
[...] D. Pedro, Duque de Bragança = Paris 12 de Outubro de 1831 .

Na correspondência fica evidente o descontentamento do Duque de Bragança com o


reconhecimento do sumo pontífice ao seu irmão, denominado por ele de “usurpador”.
4
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura de Lisboa, N. 1, fasc. 5,
sessão 14ª, página 102 v-105.

1389
Percebemos também uma intimidação aos sacerdotes que apoiavam D. Miguel, considerados
traidores e que por esse motivo deveriam ser expulsos do Reino. De acordo com Antônio
Matos Ferreira, a ameaça de promover um cisma religioso expressada por D. Pedro IV
significava tornar autônoma a Igreja portuguesa em relação à Santa Sé (FERREIRA, 2002, p.
30).

No momento que as tropas liberais avançavam e dominavam a parte continental começaram a


ser declaradas vagas às dioceses nomeadas pelo governo anterior e foram tratados como
traidores aqueles que de alguma maneira apoiaram o governo “usurpador”. Em 1833 o núncio
apostólico se retirou de Portugal dando início ao cisma religioso. No mesmo ano foi criada a
Comissão de Reforma Geral do Clero, presidida por Pe. Marcos Pinto Soares. Seguiram-se as
medidas que levaram ao fim as ordens regulares e a expropriação dos seus bens (FERREIRA,
2002, p. 30-31).

Mesmo com toda resistência do clero ultramontano, diante da situação política que ocorria em
Portugal, o liberalismo obteve sua vitória e dificultou a organização dos religiosos centrados
em Roma. A condição se agravou em 1834 quando o ministro de negócios eclesiásticos e da
justiça, Joaquim Antonio d’Aguiar, escreveu um relatório contra o clero regular e propôs o
decreto de extinção das ordens masculinas promulgado pelo Duque de Bragança.

No parecer elaborado por Joaquim Antonio d’Aguiar percebemos um claro interesse em


argumentar que as ordens regulares não eram naturais nem essenciais para o cristianismo. Aos
congregados pesavam acusações de tramar contra o trono, acumular riquezas e realizar
funções que cabiam aos párocos e bispos. Observemos um trecho do relatório.

[...]depois do Seculo 13, quando appareceram no mundo as quatro familias dos


mendicantes, que rivalizando e excedendo logo a todas as creações dos Seculos passados
aggravaram ainda tantos males: intrometteram-se nos negocios civis de maior momento,
prégaram com maior vehemencia a intollerancia, e pronunciaram-se abertamente contra a
supremacia do Poder Temporal, e contra a plenitude do Poder Espiritual, que compete aos
Bispos, como sucessores dos Apostolos. [...] Outro inconveniente resulta ainda bem grave e
que não foi sentido senão muito tarde e quando já tinha produzido estragos irreparaveis na
moral: quero fallar da diminuição da authoridade Parrochial. Esta foi absorvida em grande
parte pelas ordens regulares em geral, mas principalmente pelos corpos mendicantes: [...] os
costumes soffreram com isto uma inevitavel relaxação [...].

1390
Em nosso tempo, Senhor, quantas vezes não se tem urdido no claustro insidiosas tramas
contra o Throno Legitimo, e contra a civilisação, e liberdade nacional! Não é necessário
recordar antigos factos; basta o que se tem passado desde 1820. [...].

A existencia das Ordens Religiosas não se combina com as maximas d’uma saa politica [...]
as Ordens Religiosas são duplicadamente prejudiciaes á população: como celibatarias
deixam grande vasio nas gerações; como corpos de mão morta, absorvendo enormes
propriedades, que não se tornam mais alienar, fazem com que o numero consideravel
d’individuos não possam ter um palmo de terra [...].

Em conclusão, Senhor, é força extinguir as Ordens Regulares, e dar destino aos bens que
possuem. [...]. Paço das Necessidades, em 30 de Maio de 1834. – Joaquim Antonio
5
d’Aguiar.

Para o ministro, o clero regular interferia na liberdade e intrometiam nas questões políticas.
Sua atividade era interpretada como incompatível com as funções que os padres deveria
exercer, isto é, servir ao Estado por meio de uma função social. Neste entendimento, as
congregações eram vistas como entidades que visavam apenas os interesses próprios,
desconsiderando ou prejudicando a política que emergiu após a Convenção de Évora Monte.

O decreto de extinção foi assinado em 28 de maio de 1834 e possuía 5 artigos que


especificavam como seriam finalizadas as ordens:

Decreto

[...]

Artigo 1º. Ficam desde já extinctos em Portugal, Algarve, Ilhas adjacentes, e Domínios
Portuguezes todos os Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer Casas de
Religiosos de todas as Ordens Regulares, seja qual for a sua denominação, instituto ou
regra.

Art. 2º. Os bens dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer casas de
Religiosos das Ordens Regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional.

Art. 3º. Os Vasos Sagrados e Paramentos, que serviam ao Culto Divino serão postos á
disposição dos Ordinarios respectivos para serem distribuidos pelas Igrejas mais
necessitadas das Dioceses.

5
Coleção de decretos e regulamentos, 1835, página 184-188. Disponível em:
<http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/15/107/p460>. Acessado em 06/08/2013.

1391
Art. 4º. A cada um dos Religiosos dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, ou
quesquer Casas extinctas, será paga pelo Thesouro Público para sua sustentação uma
pensão annual, em quanto não tiverem igual, ou maior rendimento de Beneficio, ou
emprego público. Exceptuão-se:

Paragrafo 1º. Os que tomaram armas contra o Throno Legitimo, ou contra a Liberdade
Nacional.

Paragrafo 2º. Os que em favor da Usurpação abusaram do seu Ministerio no


Confessionario, ou no Pulpito.

Paragrafo 3º. Os que acceitaram Beneficio, ou Emprego do Governo Usurpador.

Paragrafo 4º. Os que denunciaram, ou peserguiram directamente os seus Concidadãos por


seus sentimentos de fidelidade ao Throno legitimo, e de adhesão á Carta Constitucional.

Paragrafo 5º. Os que acompanharam as Tropas do Usurpador.

Paragrafo 6º. Os que no acto do restabelecimento da Authoridade da Rainha, ou depois


delle, nas Terras em que residiam abandonaram os seus Conventos, Mosteiros, Collegios,
Hospicios, ou casas repectivas.

Artigo 5º. Ficam revogadas todas as Leis, e Disposições em contrario.

[...]Paço das Necessidades, em vinte e oito de Maio de mil oitocentos trinta e quatro. – D.
6
Pedro, Duque de Bragança – Joquim Antonio d’Aguiar.

Neste documento percebemos que a extinção das ordens englobava todas as suas áreas de
atuação. Foram finalizados hospitais, seminários, colégios, mosteiros e capelas. Tudo que
pertencia ao patrimônio dos congregados foi tomado e entregue ao governo. Os utensílios das
igrejas foram direcionados para as paróquias pobres. Os sacerdotes forçados a abandonar suas
residências e funções. Aqueles que não se envolveram com o governo de D. Miguel e não se
manifestaram contra o liberalismo puderam receber uma pensão anual.

Ao decretar a extinção das ordens D. Pedro IV valorizou um clero nacional representado pelos
párocos seculares. De acordo com Antônio de Matos Ferreira, o fim da atuação do clero
regular reduziu de forma significativa as maneiras de relação entre a Igreja Católica e a
população. Importantes centros educacionais foram fechados e a base do clero passou a ser
essencialmente formada por padres seculares (FERREIRA, 2002, p. 34).

6
Coleção de decretos e regulamentos, 1835, página 189. Disponível em:
<http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/15/107/p460>. Acesso em 06/08/2013.

1392
A Igreja Católica perdeu muito do seu suporte econômico, pois os bens das congregações
foram confiscados pelo poder temporal. Essa situação correspondeu ao triunfo de uma
concepção secular sobre o funcionamento da Igreja. Aos regulares que não foram
considerados traidores, restou aceitar a pensão e regressar a sua terra natal, empenhar em
atividades missionárias fora do Reino de Portugal ou passar por uma secularização, incluindo-
se em novas atividades dentro das dioceses. Esta última opção foi escolhida por muitos padres
que passaram a viver como vigários nas paróquias portuguesas ou em outras nações
(FERREIRA, 2002, p. 31).

Mesmo com a possibilidade de seguir como sacerdotes diocesanos diversos padres preferiram
deixar Portugal. No entanto, nem todos prosseguiram na vida comunal. José Nunes Cardoso
Vaz Leitão após se mudar para o Brasil, alegando desordens religiosas em Portugal, solicitou
ao núncio apostólico no ano de 1837 o direito de se tornar clero secular com atuação na
diocese de São Paulo.

Exmo e Rmo Snr

Diz Joze Nunes Cardozo Vaz Leitão, Chorista professo da Ordem de Santo Antonio dos
Olivaes de Coimbra, em Portugal, que sendo constante as desordens que tiverão logar em
sua Patria, e extinção das Ordens Religiosas vio-se o suplicante na necessidade de passar-se
para o Brazil e fazendo a sua rezidencia [fixa] no Bispado de S. Paulo [...]e neste sentido
requer a V. Exa Rma a Graça de lhe conceder Breve de perpetua secularização, assim
também poder herdar e testar dos bens que para elle adqueridos, cuja graça espera de V.
Exa Rma para tranquilizar o seu espirito e alcançar o estado de sacerdote secular que tanto
aspira e com os documentos juntos tem satisfeito tudo quanto V. Exa Rma exigiu, e assim
espera.

7
[R Mce]

Do pedido realizado por José Nunes Cardoso Vaz Leitão podemos supor duas considerações.
A primeira sugere que esse religioso foi favorável ao miguelismo e por isso não se manteve
em Portugal. A outra insinua que a situação religiosa era tão conturbada que mesmo sendo
possível receber uma pensão anual e trabalhar em alguma paróquia aquele sacerdote preferiu
migrar. Não podemos afirmar o que ocorreu durante sua vida, mas insinuamos que as
condições de trabalho no Brasil eram favoráveis aos religiosos. Ainda como regular trabalhou

7
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 62.

1393
na diocese de São Paulo, recebeu bens de doações e não encontrou dificuldades em seu
processo de secularização. Como podemos observar nos atestados seguintes:

O Padre José Antonio da Silva Chaves, Presbitero Secular Cavalleiro da Ordem de Christo,
Secretario do Bispado, e Escrivão da Camara Eclesiastica [] certifico que revendo os autos
do Patrimonio de José Nunes Cardozo Vaz Leitão, [...] o habilitando José Nunes Cardoso
Vaz Leitão chorista professo na Ordem de Santo Antonio dos Olivaes de Coimbra, e
residente na Provincia de São Paulo pedio que para ordenar-se de ordens sacras pedio se lhe
permittisse estabelecer patrimonio Ecclesiastico em huma [data] de terras de quarenta e
duas braças de testada, e hum quarto de legoa de fundo no lugar da fazenda denominada de
Santo Antonio dos Pinheiros no termo da Villa de Vallença da Comarca de Vassouras
dadas por Joaquim Bernardes Guimarães [...] Rio vinte de Setembro de mil oitocentos e
trenta e nove = Narciso da Silva Nepomuceno.= [...].

Rio de Janeiro vinte tres de setembro de mil oitocentos e trinta e nove. Eu o Pe Joze
Antonio da Silva Chaves, Escrivão da Camara Eclesiastica a subscrevi, e assignei.

8
O Pe Joze Antonio da Silva Chaves

Joaquim Claudio Vianna das Chagas, Presbitero Secular, Cavalleiro da Ordem de Christo,
Parocho [Conternado] da Freguesia de N. Sᵃ da Gloria de Villa de Valença, e Vigario da
vara da mesma.

Attesto que o [Vr] José Nunes Cardoso Vaz Leitão, durante a sua residencia nesta freguesia
portou-se com [regularidade] em seus costumes, e prestou serviços á Igreja[...] Freguesia de
Valença 10 de fevereiro de 1837.

9
Pe Vigario Joaquim Claudio Vianna das Chagas

Tais atestados foram anexados ao processo de secularização do padre José Nunes Cardoso
Vaz Leitão. As informações contidas nesses documentos permitem perceber que no Império
do Brasil o passado ligado às ordens regulares não influenciava na vida e atuação dos
religiosos. Ao contrário de Portugal não havia nenhum tipo de censura ao estilo de vida e
posses dos sacerdotes congregados.

O cenário português não era favorável ao clero centrado em Roma. Todavia, os problemas
enfrentados por congregados não significou que o ultramontanismo estava inoperante. De

8
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 68-69.
9
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 70.

1394
acordo com Vítor Neto, eles ainda atuavam e defendiam o retorno ao Antigo Regime.
Questionavam a legitimidade do poder temporal em substituir bispos e proclamavam nulas
todas as ordens que vinham de clérigos liberais. Colocavam em prática uma desobediência
aos vigários capitulares e aos poucos conseguiram sair de uma clandestinidade e retomar
velhos benefícios (NETO, 1988, p. 70). Na segunda metade do século XIX observa-se o
retorno gradual das ordens religiosas, mas sempre com o olhar atento do parlamento liberal
que tentava restringir suas ações.

Considerações finais

Concluímos que o decreto de extinção das ordens religiosas só veio a confirmar o cisma
religioso ameaçado por D. Pedro IV em carta direcionada ao papa. Ao assumir o trono, como
regente, o duque de Bragança cumpriu o que havia dito. Retirou todos os clérigos indicados
por D. Miguel e no ano de 1834 pôs fim aos congregados que eram o braço romano em seu
território. Valorizou os religiosos seculares e demonstrou que o liberalismo não era
anticlerical, mas contrário às ordens regulares.

Investigar o cisma religioso que surgiu em Portugal após as disputas entre ultramontanos e
liberais significa entender que o Brasil se constituiu como um campo importante de atuação
do clero regular. O Império brasileiro manteve a religião católica como oficial e permitiu que
congregações se instalassem e expandissem em seu território. Aqui se constituiu uma grande
atuação ultramontana durante o século XIX, pois foi neste espaço que os sacerdotes
congregados influenciados por Roma puderam atuar sem esbarrar nos interesses liberais em
voga na Europa.

Referências

CAMPOS, Fernando. D. Frei Fortunato de S. Boaventura. O mestre da contra-revolução.


Lisboa: Edição de José Fernandes Júnior, 1928.

CORREIA, José Eduardo Horta. Liberalismo e catolicismo. O problema congreganista (1820-


1823). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1974.

1395
FERREIRA, António Matos. Desarticulação do Antigo Regime e guerra civil. In:
CLEMENTE, Manuel & FERREIRA, António Matos (orgs.). História Religiosa de Portugal.
Religião e secularização, vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002.

NETO, Vítor Manuel Parreira. O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911).


Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988.

NETO, Vítor Manuel Parreira. A questão religiosa no parlamento 1821-1910. Lisboa:


Assembleia da Republica, 2009.

SILVA, António Martins da. A vitória definitiva do liberalismo e a instabilidade


constitucional: Cartismo, setembrismo e cabralismo. In: MATTOSO, José (dir.) História de
Portugal. O liberalismo, vol. 5, Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

VARGUES, Isabel Nobre. O processo de formação do primeiro movimento liberal: A


revolução de 1820. In: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. O liberalismo, vol. 5,
Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

__________; TORGAL, Luís Reis. Da Revolução à Contra-Revolução: Vintismo, cartismo,


absolutismo. O exílio político. In: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. O
liberalismo, vol. 5, Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

1396
Disseminação de idéias no milieu esotérico: notas sobre a
influência de Gurdjieff no Movimento Gnóstico de Samael Aun
Weor
Marcelo Leandro de Campos1

Introdução

O objetivo deste artigo é contribuir com o debate proposto pelo sociólogo italiano Pierluigi
Zoccatelli, que analisa a influência das idéias do esoterista armênio George Ivanovitch
Gurdjieff (1866-1949) sobre o Movimento Gnóstico fundado pelo colombiano Samael Aun
Weor em 1949.

Nosso objetivo é analisar estratégias discursivas de legitimação doutrinária e identitária no


milieu do moderno esoterismo ocidental. A definição e delimitação do esoterismo como
campo de estudo acadêmico é tema de um acesso debate dentro da Ciência das Religiões;
optamos pelo estudo do esoterismo enquanto campo específico de pesquisa, a História do
Esoterismo Ocidental, e em especial pela abordagem cultural proposta por historiadores como
Kocku von Stuckrad, Willian Goodrick-Clark e Wouter Hanegraaf, que consideram o
esoterismo como elemento estrutural da cultura ocidental; a delimitação do objeto de estudo e
a definição de sua identidade comum é feita a partir dos conceito de cultic milieu de Colin
Campbell (CAMPBELL, 1972, p. 122-123), e de “campo discursivo” de von Stuckrad, que
basicamente versam sobre como os traços comuns da cosmovisão esotérica superam as
barreiras institucionais e estimulam um intenso trânsito de idéias e uma profunda apropriação
sincrética (STUCKRAD, 2005, p. 3-11).

O sociólogo italiano Perluigi Zoccatelli realizou uma importante pesquisa sobre as idéias do
ocultista armênio George Ivanovich Gurdjieff (1866-1949); num primeiro momento ele
reflete sobre as possiveis influências presentes no processo de formação de sua “Psicologia do
Quarto Caminho”; em seguida ele analisa o impacto que as idéias de Gurdjieff tiveram sobre
o esoterismo tradicional e sobre a nova onda de espiritualidade sincrética conhecida como
Movimento Nova Era. Num de seus artigos ele analisa como a cosmovisão de Gurdjieff e seu

1
Graduando em História pela PUC/Campinas. Orientador: doutorando Fábio Augusto Morales Soares. Contato:
mlcampos_2005@hotmail.com.

1397
principal discipulo, o físico e psicólogo P. D. Ouspensky (1878-1947), são apropriadas e
representadas na obra do esoterista colombiano Samael Aun Weor.

Zoccatelli é um dos diretores do Centro Studi Sulle Nuove Religioni (CESNUR). Num artigo
para a revista Aries ele enumera as três razões que o levaram a estudar o tema: (1) Gurdjieff e
Samael são duas figuras muito importantes para a compreensão do milieu esotérico-ocultista
contemporâneo; ambos constituem a origem de uma complexa genealogia de grupos e
instituições que se difundiram a nível internacional e abarcam dezenas de milhares de
membros; nós acrescentaríamos que suas idéias não se restringiram ao campo religioso, tendo
exercido poderosa influência sobre a cultura e a sociedade modernas, desde campos tão
diversos como a educação, artes e psicologia, até a formação de movimentos políticos.
Zocatelli acredita que a dinâmica dos grupos criados por ambos esoteristas se encaixa na
categoria de “hipertrofia da filiação” proposta pelo sociólogo Massimo Introvigne, mas que
para afirmar isso faltam estudos mais detalhados; os estudos sobre Gurdjieff ainda contêm
uma série de lacunas importantes, enquanto que sobre Samael há pouquíssimo material
produzido até o presente2. (2) Zoccatelli considera que Samael e Gurdieff constituem dois
exemplos interessantes para validação do conceito hermenêutico-sociológico de “carisma do
livro”, proposto pela norte-americana Jane Willians-Hogan. (3) Finalmente, Zocatelli admite
que os ensinamentos de Samael lhe trouxeram uma compreensão muito mais profunda sobre o
verdadeiro papel da magia sexual (ou alquimia interna) nos ensinamentos do próprio
Gurdjieff, ao mesmo tempo em que destaca o papel central que o pensamento de Gurdjieff
desempenha na obra samaeliana: Zocatelli argumenta que Krum-Heller forneceu a Samael o
modus operandi da magia sexual, mas que todo o suporte teórico que sustenta a prática foi
extraído quase literalmente da obra de Gurdjieff e seu principal discípulo, Ouspensky
(ZOCATELLI, 2005, p. 267).

2
Além de dois artigos produzidos pelo próprio Zoccatelli, a produção acadêmica sobre Samael Aun Weor e seu
movimento se resume basicamente a um artigo de Andy Dawson sobre a Igreja Gnóstica em Curitiba, A
Phenomenological Study of the Gnostic Church of Brazil e a tese de Cristina Tamayo intitulada Gnosce Te
Ipsum: uma analisis antropologico de la Iglesia Cristiana Universal de Colômbia desde la perspectiva de la
Esoterologia, seguida de um artigo na Revista Cuestiones Teológicas intitulado El Movimiento Gnóstico
Cristiano Universal de Colômbia: um movimiento esotérico internacional nacido em Colômbia. O Movimento
Gnóstico também é tema de Massimo Introvigne no livro Il Ritorno dello Gnosticismo. O trabalho mais
completo sobre o assunto é do espanhol José Álvaro Lopez Bellas, Un estúdio de Antropologia Social de las
organizaciones: el caso del MGCU (Movimiento Gnóstico Cristiano Universal), de 2008, analisando a
instituição fundada por um dos principais discípulos de Samael, Joaquim Amortegui Valbuena (Mestre Rabolu).
O primeiro texto brasileiro sobre o assunto é de minha autoria, Usos da arqueologia no discurso religioso:
Samael Aun Weor e o renascimento do gnosticismo e foi apresentado na I Semana de Arqueologia do LAP-
UNICAMP, em 2013.

1398
Meu propósito é analisar o processo de assimilação das idéias de Gurdjieff por Samael.
Pretendo demonstrar que elas não ocorrem desde a fundação do Movimento Gnóstico, como
acredita Zocatelli (idem, p. 272), mas são fruto de um longa transição do modelo rosacruz de
Krum-Heller até o sistema gurdjieffiano que dura pelo menos uma década. Adicionalmente,
vou apresentar a hipótese de que toda uma problemática surgida ao longo dessa transição
doutrinária constitui a causa causorum do principal cisma dentro das instituições gnósticas
nos últimos anos de vida de Samael.

O iniciado rosacruz

Nosso estudo de caso analisa exatamente um personagem situado na transição entre o


esoterismo tradicional e a Nova Era, o esoterista colombiano Victor Manuel Gómez, auto-
intitulado Samael Aun Weor. Samael está situado num periodo de transição entre as
instituições esotéricas tradicionais formadas na segunda metade do século XIX e a nova
religiosidade de inspiração esotérica que vai se disseminar com incrível velocidade a partir da
década de 1960.

Victor Manuel Gómez (Samael Aun Weor) nasceu em Bogotá, em 1917, numa família de
classe média. O contato com a literatura espírita, sobretudo Kardec e Leon Denis, logo
despertou seu interesse por temas esotéricos; leu Blavatsky e aos 16 anos filiou-se à
Sociedade Teosófica (ST), que atuava na Colômbia desde 1921; em 1934 tornou-se
conferencista da S.T. No ano seguinte filiou-se à FRA (Fraternitas Rosicruciana Antiqua),
então dirigida por Israel Rojas3. A Rosacruz Antiqua é uma clássica escola esotérica
tradicional, com uma importante especificidade: ela faz parte das escolas européias que
incorporaram ao seu repertório de práticas mágicas os exercícios sexuais de algumas escolas
tântricas da Índia, conhecidos como sahaja maithuna (Krum-Heller, 1929, p. 43); seu
fundador, o médico e militar alemão Arnold Krum-Heller, havia sido discípulo de Theodor
Reuss, membro da prestigiosa ordem hermética Golden Dawn e fundador da OTO (Ordo
Templo Orientis). Krum-Heller teve entre seus colegas de estudos figuras como Spencer
Lewis (fundador da AMORC) e o famoso mago Aleister Crowley, um dos maiores ícones do
Ocultismo. Em 1910 Krum-Heller mudou-se para o México; mais tarde fundou sua própria

3
Os relatos autobiográficos de Samael e de seus principais discípulos são analisados por Lopez Bellas, p. 645. A
vida de Samael também é descrita em ZOCCATELLI 2000 e DOSAMANTES.

1399
instituição, a FRA, e realizou um giro por diversos paises sulamericanos para divulgar seu
grupo. A loja colombiana da FRA foi fundada em 19274.

Samael ingressou na FRA em 1935, e logo conquistou um cargo em seu braço litúrgico, a
Igreja Gnóstica. Em 1938 o dirigente colombiano da FRA, Israel Rojas, apresentou um
estudante, Omar Cherenzi Lind, à comunidade rosacruz como sendo um autêntico iniciado
vindo do Tibete; não demorou para que Israel Rojas se convencesse de que Cherenzi era o
próprio Avatara da futura Era de Aquário5. Isso produziu um grande entusiasmo inicial e
formou-se uma instituição congregando estudantes das diferentes escolas rosacruzes e
teosóficas, a Universidade Espiritual da Colômbia. Mas em pouco tempo Israel Rojas e
Cherenzi se desentendem seriamente e começa uma violenta troca de acusações entre os dois
partidos.

Samael se rebelou violentamente com a situação e acabou se afastando da instituição; essa


ocasião marca um momento de profunda crise existencial em sua vida: o afastamento da FRA
coincide com o abandono dos estudos (seguindo os passos de Krum-Heller, estudou medicina
por dois anos em Bogotá) e com o fracasso de um casamento que durou poucos meses.

No periodo entre 1941 e 1947, Samael abandonou a capital e passou a viver uma vida errante
pelo interior colombiano, ganhando a vida como uma espécie de curandeiro. Neste periodo
conheceu a mulher que seria sua companheira pelo resto da vida, Arnolda Garro.

Samael deixou deste periodo relatos que lhe conferem um ar de epopéia mítica que lembra em
alguns momentos a história clássica da iluminação de Buda, que deixa sua família abastada e
parte para a floresta em busca de uma experiência direta com o divino.

Um de seus relatos sobre os motivos que o levaram a se afastar da FRA:

Yo me convencí entonces que las teorías no conducen al hombre a ninguna parte y que las
escuelas de espiritualistas que para ese tiempo había en Colombia, eran solo jaulas de loros
que a ninguna parte me conducirían. (WEOR, 1950, p. 8)

4
Um interessante resumo histórico sobre a vida de Krum-Heller e a Fraternitas Rosicruciana Antiqua pode ser
vista em http://hermetic.com/sabazius/krumm.htm e http://fraargentina.host56.com/krummheller.htm. Além de
seu importante papel como líder esotérico Krum-Heller teve atuação política durante a Revolução Mexicana de
1910 e em alguns episódios da espionagem alemã no México durante a Primeira Guerra Mundial.
5
As aventuras de Omar Cherenzi, até ser desmascarado em 1947, na Europa, por um professor que falava
tibetano, são narradas em: http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/cherenzi-develado-t410.html

1400
Esse periodo marca o ponto de inflexão em sua vida: deixa de lado as teorias e se dedica
intensamente às práticas mágicas do repertório rosacruz; o resultado é um progressivo
processo de “iluminação”, que Samael atribui principalmente à prática do sahaja maithuna.
Transformado internamente, ele se autodenomina Aun Weor, “verbo divino” (LOPEZ
BELLAS, 2008, p. 652).

No inicio de 1948, Samael (agora Aun Weor) retorna à cidade de Cienaga e procura alguns de
seus amigos da FRA, Julio Medina e Rafael Romero Cortês, para anunciar sua missão
enquanto iluminado. Suas duas primeiras obras, O Matrimônio Perfeito ou a Porta de
Entrada à Iniciação, lançado em maio de 1950, e a Revolução de Bel, de outubro do mesmo
ano, são claramente dirigidas ao público rosacruz e possuem um propósito claro: combater as
doutrinas tântricas de Cherenzi.

Resumindo o conflito, Samael é adepto de exercícios sexuais onde existe a cópula, mas não se
chega ao orgasmo; a conjunção carnal (sahaja maithuna) serviria apenas para preparar a
energia sexual para ser canalizada internamente através de exercícios respiratórios
(pranayamas); Cherenzi, pelo contrário, é adepto de sistemas que admitem o orgasmo; o
sêmen retirado do órgão feminino é considerado mágico e é reabsorvido, seja por meio de
ingestão ritual ou reinserido na uretra por meio de exercícios iogues (WEOR,1950, pp. 15-20,
p. 45):

La Iglesia Gnóstica de Krumm Heller y El Kundalini o Serpiente Ígnea de nuestros mágicos


poderes de Omar Cherenzi Lind, son las dos antípodas del Kundalini. La obra de Krumm
Heller es una obra de magia blanca. La obra de Cherenzi es una obra de magia negra.
(WEOR,1950, p. 18)

O que a obra de Samael está documentando é um importante capítulo da evolução das práticas
sexuais tântricas no ocidente6.

Samael se apresenta neste momento como um defensor do “sistema autêntico”, o sahaja


maithuna tal como ensinado pelo fundador da Rosacruz Antigua. Krum-Heller menciona
pudicamente a prática em suas obras em latim: inmisio membri virilis in vaginam sine
ejaculatio seminis (Krum-Heller,1926). A importância e o próprio modus operandi da magia
sexual não são unânimes entre os discípulos de Krum-Heller, no entanto; seu próprio filho
Parsival Krum-Heller, aceito por parte da FRA como sucessor do fundador, vai defender um

6
A apropriação de técnicas de magia sexual por esoteristas europeus do século XIX é descrita por URBAN. Um
panorama histórico também pode ser visto em WALDEMAR.

1401
sistema misto em que o casal deve manter normalmente o sexo comum e praticar os
exercícios sem perda seminal em ocasiões específicas, como parte da preparação de discípulos
já em avançados graus iniciáticos7.

Cherenzi, por sua vez, é adepto das experiências de magia sexual feitas por Aleister Crowley
e adotadas pela O.T.O.; a magia sexual thelemita preconiza a perda seminal (inclusive através
da masturbação ou de relação homossexual) e sua ingestão como parte de um ritual mágico,
normalmente em grupo (Koenig, s/d).

Havia ainda um elemento complicador nesse debate: a relação amistosa entre Krum-Heller e
Crowley, observada em trocas de correspondência e citações recíprocas, aparentemente
indicando que as diferentes concepções sobre sexualidade tântrica não constituam obstáculo
significativo para o trabalho conjunto8.

Samael dá uma nova dimensão à questão sexual em sua cosmovisão: a magia sexual torna-se
o eixo central de toda a doutrina: “La Iniciación es únicamente cuestión de sacar el maximum
de provecho de la médula y del semen y para esto el único camino es querer intensamente a la
mujer –esposa–.” (WEOR, 1950, p. 10)

A transição

Como se pode constatar na leitura das obras iniciais de Samael, sua mensagem tem o
propósito inicial de defender o que ele considera a essência dos ensinamentos rosacruzes de
Krum-Heller, em especial a prática da magia sexual sem perda seminal, que ele intitula de
tantrismo branco (estabelecendo assim uma clara distinção com os exercícios admitidos por
Parsival e Cherenzi, classificamos de tantrismos cinza e negro, respectivamente). O alvo de
seu discurso é claramente o universo de adeptos e simpatizantes do milieu esotérico
colombiano; alguns são nominalmente citados no livro A Revolução de Bel: rosacruzes,
teósofos, maçons, estudantes da Universidade Espiritual e espiritualistas em geral (WEOR,
1950-b, pp. 81-113).

7
Um adepto de Parsival, defendendo seu sistema, afirma: “a instrução sobre magia sexual é feita de forma
interna e no último grau devido à seriedade do tema e à preparação que requer”.
(http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/samael-y-la-orden-rosacruz-t141.html)
8
Referências de seguidores de Crowley à Krum-Heller e Samael podem ser vistas em:
<http://www.astrumargentum.org/arquivos/ht/ensaios/thor_1.htm>

1402
Samael não tem o propósito de criar uma nova escola; sua preocupação mais evidente é de
estimular uma reforma nas instituições existentes9. Sua produção bibliográfica inicial é
destinada essencialmente a explicar os ensinamentos de Krum-Heller, como podemos ver a
seguir:

Em 1950 ele escreveu O Matrimônio Perfeito ou A Porta de Entrada à Iniciação e A


Revolução de Bel, onde a temática principal é a denúncia dos ensinamentos de magia sexual
de Cherenzi e Parsival e a apresentação da magia sexual tal como ensinada por Krum-Heller.

Sua terceira obra, Curso Zodiacal, de 1951, é toda baseada no livro homônimo de Krum-
Heller, de 1929, e são absolutamente complementares. O Tratado de Medicina Oculta y
Magia Prática, de 1952, é baseado essencialmente nas concepções de Krum-Heller sobre a
fisiologia humana.

No periodo de 1952 a 1960 Samael publicou um total de 20 livros; os livros doutrinários, no


entanto, permanecem sendo releituras do credo rosacruz, como é o caso de Logos, Mantram,
Teurgia, de 1959, que analisa Logos, Mantram, Magia de Krum-Heller, escrita em 1930.
Samael também faz menção freqüente de outro importante mestre da FRA, Jorge Adoum
(1897-1958), também conhecido como Mago Jefa.

Em 1961, porém, Samael empreende uma longa revisão de seu primeiro livro, O Matrimônio
Perfeito, e faz publicar uma edição “ampliada e corrigida”; o novo texto traz uma série de
modificações, não só de estilo, mas principalmente doutrinárias. Pela primeira vez é possível
perceber em sua obra o uso de idéias do universo ideológico de Gurdjieff, como os sete
centros da máquina humana (WEOR, 1961, p. 71), a transmutação dos hidrogênios, o
exercício de recordação de si mesmo (idem, pp. 74-76) e o famoso hidrogênio SI-12
resultante da prática de magia sexual (idem, p. 94). A quarta dimensão é explicada conforme
o modelo apresentado pelo principal discípulo de Gurdjieff, Ouspensky, que tem um trecho de
seu livro citado literalmente:

El gran escritor Pedro Ouspensky, dijo: En el mundo de las magnitudes infinitas y


variables, una magnitud puede no ser igual a sí misma; una parte puede ser igual al todo; y
de dos magnitudes iguales una puede ser infinitamente mayor que la otra. (WEOR, 1961, p.
165)

9
“Por aquella época el maestro no tenía la intención de formar ninguna escuela, sino que predicaba el sendero
del hogar doméstico, y trataba de entregar todas las claves del ocultismo en sus libros.”
<http://www.gnosis2002.com/revisiones/asg.htm> O comentário é referente à sua obra Apuntes secretos um
guru, de maio de 1952.

1403
Uma série importante de idéias gurdjieffianas também é mencionada sem que haja referências
ao autor, como é o caso do “quarto caminho”, a expressão que resume o método de Gurdjieff
e identifica o principal movimento criado a partir de seus ensinamentos, a Escola do Quarto
Caminho:

El primer camino lo vivimos en la vida práctica aprendiendo a vivir rectamente. El segundo


camino reside en nuestra Iglesia. Esta tiene sus sacramentos, sus rituales y su vida
conventual. El tercer camino lo vivimos como ocultistas prácticos. Tenemos nuestras
prácticas esotéricas. Ejercicios especiales para el desarrollo de las facultades latentes en el
hombre. El cuarto camino, la Vía del Hombre Astuto, la vivimos en la práctica dentro del
más completo equilibrio. Estudiamos la Alquimia y la Cábala. Trabajamos desintegrando el
yo psicológico. (Weor 1961, p. 60)

É o inicio de uma guinada definitiva no corpo doutrinário: o universo mágico rosacruz vai
gradativamente ficar em segundo plano; sob os refletores vai surgir toda uma noção de
psicologia transformadora fortemente apoiada nas idéias do Trabalho Interior da dupla
Gurdjieff/Ouspensky.

De forma esquemática, poderíamos afirmar que a doutrina samaeliana da década de 1950 tem
como pilares principais a Magia Sexual, as regras morais e éticas do cristianismo e os
exercícios mágicos e práticas litúrgicas rosacruzes. Em 1970, quando sua doutrina já está
consolidada, Samael resume seus ensinamentos no que ele chama de Três Fatores de
Revolução da Consciência. A influência de Gurdjieff neste novo formato é evidente: o
primeiro fator, a Morte Psicológica, tem como ponto de partida práticas descritas por
Ouspensky em seu livro Em busca do milagroso: fragmentos de um ensinamento
desconhecido; Samael divide a morte do ego em três etapas: (1) auto-observação do ego, (2)
compreensão do ego e (3) eliminação mística do ego. A primeira etapa é baseada
exclusivamente nos exercícios de auto-observação da dupla Gurdjieff/Ouspensky; a
compreensão utiliza elementos das meditações ensinadas por Krishnamurti, e a eliminação
mística é um desenvolvimento da idéia de partes autônomas do ser que encontramos em
Gurdjieff, mas que são apropriadas por Samael de uma forma muito original, formando o
coração de um culto do Eterno Principio Feminino, a Deusa ou Mãe Divina que lembra em
diversos aspectos o culto mariano dentro do catolicismo latinoamericano.

O segundo fator, o Nascimento Alquímico, é a Magia Sexual como ensinada por Krum-Heller
acrescida de todo o suporte teórico de Gurdjieff sobre a fisiologia das energias transmutadas
dentro do organismo.

1404
A apropriação de idéias de Gurdjieff por Samael vai produzir uma série de críticas, vindas
principalmente do próprio universo esotérico; é muito comum encontrarmos na internet listas
indicando as enormes passagens de livros de Gurdjieff e principalmente de Ouspensky que
são reproduzidas literalmente nas obras de Samael como se fossem de sua autoria10. Samael se
defende dizendo que sua missão é sintetizar as doutrinas existentes:

La gnosis misma es inseparable de él (o tertium organum), y aunque se acusa mucho a


Samael de tomar su doctrina psicológica de la escuela del cuarto camino a la que pertenece
esta cita, lo cierto es que él hace un revisionismo de lo que cita, y se apoya en lo que cita
para tratar de ir más lejos, desgraciadamente pocos lo pueden seguir, y por eso tanto
sabihondo lo acusa de plagio. (Pujalte-a, s/d)

Conclusão

Gostaria de encerrar este artigo com duas considerações finais: a primeira delas é que
Zoccatelli foi induzido ao erro de acreditar que Samael é adepto dos conceitos de Gurdjieff
desde 1950; na bibliografia de seu artigo ele cita o livro O Matrimônio Perfeito publicado
pela AGSACAC como sendo fiel reprodução da 1ª. edição colombiana de 1950. Na verdade
as instituições gnósticas somente publicam a edição revisada por Samael em 1961. A edição
de 1950, considerada “imperfeita” e desautorizada pelo autor, não voltou a ser republicada ou
traduzida11. Os outros livros publicados por Samael na década de 50 também passaram por
correções posteriores, seja feitas pelo próprio Samael, por seu secretário ou por alguns de seus
discípulos. À exceção de O Matrimônio Perfeito, que Samael revisou e seguiu reeditando
como sendo um dos livros fundamentais de sua doutrina, o restante de suas obras da década
de 50 adquiriram um status secundário; Samael se refere a elas como obras cheias de falhas
escritas antes da encarnação de seu Real Ser Interior.

A segunda consideração é a própria razão de ser deste artigo: acreditamos que a transição
ideológica que Samael realiza na primeira década de seu ministério, do rosacrucianismo de
Krum-Heller para a psicologia revolucionária de Gurdjieff/Ouspensky constituirá peça

10
Listas dessa natureza podem ser vistas, por exemplo, num dos mais acessados sites de combate ao
gnosticismo, La Gnosis Develada, em: http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/los-plagios-de-samael-al-
tertium-organum-de-ouspensky-t151.html e http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/plagios-de-samael-
aun-weor-al-cuarto-camino-de-gurdieff-t106.html. Uma descrição detalhada de passagens retiradas das obras de
Gurdjieff/Ouspensky também pode ser vista no Apêndice 1 da obra de Lopez Bellas, vol II., pp. 3-122.
11
O texto de 1950 somente tornou-se acessível recentemente, graças ao trabalho de divulgação das primeiras
obras de Samael empreendido por Francisco Caparros Pujalte em seu site http://www.gnosis2002.com.

1405
fundamental para a compreensão da dinâmica histórica das instituições gnósticas fundadas
por Samael Aun Weor, sobretudo após sua morte, em 1977. A síntese que Samael opera entre
elementos até então antagônicos (Gurdjieff é um crítico ferrenho do rosacrucianismo e da
teosofia) não foi integralmente assimilada por seus principais discípulos e as diferentes
instituições que compunham então o universo samaeliano: Julio Medina Vizcaino (V.M.
Gargha Kuichines), o mais importante membro da FRA a aderir às fileiras gnósticas na
década de 50, tornara-se dirigente da Igreja Gnóstica a nível internacional e permanecera em
grande medida fiel ao ideário rosacruz, especialmente à sua tradição litúrgica. A AGEACAC
(Associação Gnóstica de Estudos Antropológicos – Ação Civil), fundada no México, para
onde Samael se mudara no ano de 1956, e onde se destacam figuras como a esposa de
Samael, Arnolda Garro de Gómez (Mestra Litelantes), seu secretário Efrain Villegas Quintero
e sua filha Hypatia Gomes Garro, vai aderir integralmente à síntese rosacruz/Gurdjieff.
Finalmente, o Movimento Gnóstico Cristão Universal, fundado na Colômbia na década de
1960 e que a partir de 1978 será comandado por Joaquim Amortegui Valbuena (V.M.
Rabolu), é radicalmente partidário da Psicologia Revolucionária12.

Desde 1976 há na Colômbia uma crescente animosidade entre os partidários de Julio Medina
e Joaquim Amortegui. O falecimento do Mestre Samael, em dezembro de 1977, sem que
fosse indicado um sucessor para liderar o conjunto das instituições gnósticas, abriu espaço
para uma guerra aberta entre as duas facções a partir de 1978, e de ambas contra as
instituições sediadas no México (LOPEZ BELLAS, 2008, p. 815).

Enquanto as demais facções se proclamam defensoras fiéis da doutrina samaeliana, Joaquim


Amortegui opera uma reforma radical que ele intitula de Nova Ordem e que varre de sua
instituição todos os resquícios do rosacrucianismo: a totalidade das práticas litúrgicas foram
formalmente proibidas; com exceção de cinco obras que ele declara fundamentais (Tratado de
Psicologia Revolucionário, de 1975; A Grande Rebelião, de 1975; As Três Montanhas, de
1972; Sim, há Inferno, Diabo e Karma, de 1975, e O Mistério do Áureo Florescer, de 1971),
e do livro O Matrimônio Perfeito, que passou por um novo processo de revisão, todas as
outras obras do Mestre Samael foram proibidas (JARAMILLO-b, 2012, p. 110).

O prólogo da nova edição de O Matrimônio Perfeito traz a seguinte mensagem:

12
Cristina Tamayo Jaramillo descreve de forma resumida as diferenças estruturais entre as três facções
(JARAMILLO-b, p. 254)

1406
Na presente obra foram corrigidos alguns erros de imprensa que vinham de edições
anteriores, para que chegue de forma mais nítida às mãos de nossos leitores. Também
fizemos certos esclarecimentos pela primeira vez, em algumas partes desta obra, com a
finalidade de não dar lugar a más interpretações e para que o estudantado assimile o
ensinamento da maneira mais correta. (WEOR 1991, p. 1)

A renovação que Rabolu opera nos ensinamentos de Samael permite traçar uma série de
paralelos com processo semelhante que ocorre entre Gurdjieff e seu principal discípulo,
Ouspenky, que submeteu os ensinamentos de seu mestre a um rigoroso filtro, e em seguida
construiu sua própria interpretação do que constitui de fato o Quarto Caminho (Ouspensky
2010); da mesma maneira a Nova Ordem de Rabolu, sob a alegação discursiva de estar
“protegendo a essência dos ensinamentos de Samael” (RABOLU, 1982, p. 1), vai realizar
importantes mudanças de cunho ideológico e institucional e criar de fato uma nova forma de
gnosticismo que merece um estudo específico.

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1410
1411
Entre a modernidade e a barbárie: o discurso redentorista acerca
do progresso em Goiás (1894-1930)
Robson Rodrigues Gomes Filho1

Introdução

Embora comumente despercebida, a presença de religiosos europeus alemães em Goiás, em


boa parte do tempo transitando entre as casas goiana e paulista, acentuou – seja na imprensa
escrita, seja no próprio discurso religioso – as disparidades entre uma Europa industrial, um
estado de São Paulo em marcha de industrialização e “progresso”, e um estado de Goiás ainda
ruralizado e comumente vinculado às imagens de “atraso” e “decadência”, gerando aquilo que
acreditamos ser uma singular variação de compreensão de tempo e espaço por parte destes
agentes históricos específicos.

Desse modo, a primeira reflexão a que nos dispomos no presente trabalho fazer refere-se às
possíveis experiências temporais2 dos religiosos redentoristas em Goiás.

A vinda da Ordem Redentorista para o estado goiano, em 1894, se deu em um contexto


específico da história da Igreja Católica no Brasil: o fim do regime de padroado em 1890
imprimira à Igreja a necessidade de gerir seus próprios recursos financeiros, uma vez que o
subsídio estatal estava legalmente extinto. Em Goiás, mais precisamente, o bispo
(notadamente o mais ultramontano da história eclesiástica do estado) Dom Eduardo Duarte
Silva, que assumira a diocese goiana em 1891, marcava sua passagem pelo estado já com
diversos conflitos com as entidades laicas, tanto na política (conflitos com as oligarquias
vinculadas ao liberalismo e à maçonaria), quanto na religião (conflitos com irmandades leigas
que controlavam paróquias e festas religiosas).

O embate mais significativo para a decisão de Dom Eduardo em trazer uma ordem religiosa
estrangeira para o estado de Goiás se deu na cidade de Barro Preto (atualmente Trindade),

1
Mestre em História pela UFOP. Professor efetivo do curso de História da UEG/UnU-Morrinhos. Contato:
robson.educacao@yahoo.com.br.
2
A definição de experiência com que estamos trabalhando, refere-se, com já dito, à Koselleck, que define a
“experiência” como sendo “o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de
comportamento, que não estão mais, ou quem não precisam mais estar presentes no conhecimento” (Koselleck,
2006, p. 310).

1412
cuja romaria ao Divino Pai Eterno (ainda hoje a mais popular do estado, e uma das mais
frequentadas do Brasil) mantinha-se em mãos (religiosa e financeiramente) de irmandades
leigas. Com a necessidade de obter das romarias e festas populares o quinhão que caberia à
superação da crise financeira pós-padroado da diocese, Dom Eduardo – após ter seus padres
expulsos da tentativa de gerenciamento da festa – decidiu partir à Europa em busca de uma
ordem religiosa que lhe tomasse à diocese o controle da romaria de Barro Preto, e iniciasse
um processo de moralização das condutas eclesiásticas em Goiás 3. Foi neste contexto que
Dom Eduardo Silva negociou a vinda dos religiosos da Ordem Redentoristas da Baviera, na
Alemanha, para Goiás e São Paulo4.

Na Alemanha, entretanto, a congregação do Santíssimo Senhor Redentor vivia um período de


profunda crise desde 1873, quando durante a chamada KulturKampf (a “luta cultural”) Otto
von Bismarck expulsou os religiosos redentoristas do país, ligando-os à imagem dos jesuítas,
igualmente exilados. A motivação de tal expulsão refere-se especialmente ao fato de a Igreja
Católica estar vivendo o auge do ultramontanismo, em que a fidelidade à figura “estrangeira”
do papa, sobretudo com sua sobreposição aos Estados civis, ameaçava a unidade há pouco
forjada na Alemanha. Em todo caso, a congregação redentorista só pôde voltar a atuar no país
em 1894, ainda abalados com os 21 anos de exílio, coincidentemente no mesmo ano em que
receberam de Dom Eduardo o convite para a missão em Goiás5.

Neste sentido, visto o trânsito constante dos religiosos redentoristas entre as casas alemã,
paulista e goiana, acreditamos haver em nossos agentes históricos em questão aquilo que
chamamos de alteridade temporal, fruto tanto de suas experiências com três localidades
inteiramente distintas no que se refere à modernidade, quanto de suas diferenciadas
expectativas para estes diferentes espaços geográficos.

Em interessante reflexão sobre a relação temporal e geográfica de “antigos” e “modernos”,


François Hartog (2003) destaca como, a partir da modernidade e do descobrimento dos
“selvagens” americanos pelos europeus, o “antigo” deixou de ser uma localidade específica

3
Sobre os conflitos religiosos de Dom Eduardo em Goiás, bem como suas posturas diante do clero que
encontrou na região, ver: Santos (2008), Vaz (1997) e Gomes Filho (2011).
4
A repartição dos missionários redentoristas entre Goiás e São Paulo não estava nos planos iniciais de Dom
Eduardo, tendo deste um expresso descontentamento. Segundo ele mesmo relata em sua autobiografia, Dom
Joaquim Arco-Verde, bispo da diocese de São Paulo, ao saber dos religiosos conseguidos pelo bispo de Goiás,
igualmente os pediu para o superior da província redentorista alemã com intuito semelhante ao de Dom Eduardo:
administração do Santuário e Romaria de Aparecida do Norte. Ver: SILVA (2007).
5
Sobre as dificuldades de adaptação, conflitos e disposições das primeiras décadas dos Redentoristas em Goiás,
ver: Paiva (2007) e Gomes Filho (2011).

1413
do tempo, e tornou-se possível de ser igualmente balizado no espaço. É desse modo que
encaramos a experiência e expectativa de variação temporal vivida pelos redentoristas, uma
vez que seu trânsito entre Alemanha, São Paulo e Goiás marcava o descompasso de três
lugares espaciais localizados em diferentes tempos de desenvolvimento e progresso. Por outro
lado, tomamos ainda aquilo que Koselleck chama de “expectativas”, porquanto, o

futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas
pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise
racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.
(Koselleck, 2006, p. 310).

Também esta categoria formal parece-nos de singular importância para compreendermos que
tipo de anseios por progresso os editores redentoristas imprimiram em suas folhas, uma vez
que a singularidade de sua elaboração sobre o progresso em Goiás não pode ser desvencilhada
nem das experiências históricas, sociais e temporais, nem tampouco daquilo que esperavam
para um Goiás que ainda vivia sob a sombra do “atraso”. Assim, a partir de tais categorias
formais nos parece possível captar as impressões do modo como os editores em questão
compreendiam o tempo histórico de Goiás, elaborando, a partir de suas experiências europeias
e paulistas, bem como de suas expectativas para o sertão goiano, uma visão inteiramente
singular do que acreditavam por “progresso”. Destarte, nas palavras de Koselleck (2006, p.
308),

experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo
histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar
descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações
concretas no movimento social e político.

1. A Ordem Redentorista e a elaboração do progresso e atraso em Goiás

Voltando-nos, finalmente, para nossa fonte de pesquisa, o jornal Santuário da Trindade6,


deparamo-nos com um periódico escrito em meio a um interessante conflito de interesses
políticos, sociais, econômicos, e mesmo religiosos, entre diferentes e divergentes tendências
no estado de Goiás. Desde a proclamação da república brasileira, imperava no estado as
tendências liberais, sobrepostas inclusive ao positivismo, cujos conflitos com o liberalismo se

6
Para informações e reflexões mais específicas sobre o próprio jornal em si e seus editores, ver: Gomes Filho
(2011).

1414
tornaram conhecidas no período da Primeira República. No estado goiano, a oligarquia
representada pelos Bulhões (família de tendência maçom e liberal)7 tomou a dianteira política
durante as primeiras décadas da república, sendo superada, a partir da década de 1910 pelos
Caiado, cuja afinidade com o Partido Católico e com as agendas de preocupações da diocese
eram explícitas8. Além dos conflitos políticos, é de fundamental importância lembrarmos
outros importantes adversários da Igreja Católica no estado – os quais nos ocuparemos mais
adiante – cujas preocupações estiveram explícitas nas folhas do Santuário da Trindade.
Destacamos dentre eles a “maçonaria”, o “protestantismo” e o “espiritismo”.

Não obstante às divergências e conflitos entre adversários políticos e/ou religiosos em Goiás,
é ímpar lembrarmos-nos de um elemento que não só fez parte dos discursos de quase todas as
tendências em questão, como foi um artifício retórico responsável tanto pela autolegitimação
do discurso redentorista, quanto por ataques diretos a seus adversários: o nacionalismo.

Com o início de suas edições em 1922, ano do centenário da independência do Brasil, não
seria assombro a quantidade de matérias de cunho nacionalista lançadas pelo Santuário da
Trindade. De fato, todas as comemorações do centenário, seguidas de argumentos fortemente
patrióticos, fizeram parte das folhas do periódico em questão durante todo o ano de 1922.
Todavia, chama-nos a atenção o teor de tais matérias, cuja argumentação articulava-se em
torno do nacionalismo, imperialismo político estadunidense, combate ao protestantismo9 e, o
que nos é mais caro, o progresso.

Dentre muitas e variadas matérias que vinculam o nacionalismo e a religião, destacamos duas.
Na primeira, o editor chefe do jornal, Padre João Batista Kiermeier, argumenta em favor de

7
Lembramos que o bispo Dom Eduardo Silva, que trouxe os redentoristas à Goiás, teve diversos conflitos com a
família Bulhões, por suas tendências liberais, maçons e anticlericais, chegando até mesmo a ser expulso da
capital do Estado, passado a residir em Uberaba ainda no final do século XIX. Sobre estes conflitos, ver: Santos
(2008).
8
Sobre os conflitos entre Bulhões, Caiado e Igreja Católica em Goiás, ver: Vaz (1997) e Chaul (2002).
9
Sobre a vinculação nacionalismo e imperialismo estadunidense como forma de combate ao protestantismo,
trazemos como exemplo as seguintes matérias: “Anda por quasi toda parte um inimigo insidioso e traiçoeiro que
tenta roubar ao povo o que tem de mais precioso, a sua Religião, e junto com ella lhe rouba o amor à pátria e a
paz na própria família. Este inimigo é o protestantismo […] Os pregadores protestantes vêm quasi todos da
América do Norte e seu fim não é cuidar de Religião, mas ganhar partido para que os Estados Unidos da
América do Norte possam mais tarde predominar no Brasil. Assim já fizeram no México e em outros paízes. Se
elles quizessem mesmo tratar de religião deviam ficar no paíz delles, onde há vinte vezes mais pagãos e gente
sem Religião que no Brazil.”. (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 2, 15/07/1922); “[…] é realmente inimigo do
Brazil quem se torna protestante ou quem favorece a propaganda protestante norteamericana” (Santuário da
Trindade, Ano 1, nº 12, 02/12/1922); já em edição de 21 de outubro de 1922, o jornal se refere a um suposto
protestante em Campinas (Goiás) que distribuiria folhetos protestantes pela cidade: “Elle, porem, contará a seos
patrões que distribuiu tantos centos ou milheiros de folhetos e será bem pago por aquelles que querem fazer-nos
protestantes para nos tornar norteamericanos” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 9, 21/10/1922).

1415
que seriam os católicos os mais propícios para o desenvolvimento do verdadeiro patriotismo
no Brasil:

O amor à Patria é um sentimento nobre e justo, semelhante ao amor que votamos a nossos
Paes. É a Patria que nos viu nascer, que protegeu a nossa infância, que desenvolveu a nossa
mocidade. É a Patria o berço de nossos parentes e de todos os que comnosco fallam a
mesma língua e seguem os mesmos costumes. A Religião reconhece e proclama o dever do
amor à Patria, o dever que a todos assiste de trabalhar pela Patria. É um dever que a
propria natureza nos impõe e que a Religião approva e ennobrece. A experiência mostra-
nos mesmo que as pessoas religiosas são as mais patriotas, as mais dispostas a trabalharem
e fazerem sacrifícios pela Patria. [...] No centenário da independência ninguém deixa de
recordar os grandes benefícios que o Brazil deve no patriotismo do clero. […] Em parte
alguma Religião e patriotismo andaram sempre tão estreitamente unidos como no Brazil.
P.J.B. (Santuário da Trindade, nº 5, Ano 1, 26/08/1922. Grifos nossos)10

Na segunda, em edição seguinte do jornal, o apelo ao progresso tornou-se uma das marcas
indeléveis no discurso redentorista no que tange a defesa do patriotismo:

[…] o Centenário nos deixará também cousa mais preciosa e que mais dure: um augmento
de amor pela Patria e do desejo de trabalhar por seo progresso e por sua grandeza. Quem
trabalha pela Patria? Todo aquelle que se esforça para augmentar os recursos materiaes e
moraes do paiz. […] É patriota o official que procura trabalhar e aperfeiçoar-se e no seo
officio, porque emquanto trabalha para ganhar a vida, trabalha também para o
melhoramento de sua cidade, para o progresso da Patria. Não é patriota somente o
preguiçoso que não se dedica a nenhum trabalho serio e assim rotina-se um inútil um peso
para os seus e para a sua terra. Trabalha pela Patria quem trabalha pela instrucção […] A
instrução é a base de todo desenvolvimento e progresso. […] É inimigo da Patria quem por
interesse próprio excita ódios e [ilegível] partidárias, que são um [ilegível] empecilho do
progresso. […] Trabalha emfim pela Patria quem trabalha pela Religião. É certo que a
Religião é o mais firme laço da unidade nacional, que a religião é uma força moral de
inestimável valor, porque preserva o homem de mãos caminhos e lhe aumenta o amor ao
trabalho e a fidelidade no cumprimento de seos deveres. Por isso é inimigo da Patria quem
trabalha contra a Religião e pelo contrario, é benemérito da Patria quem contribue para
que a Religião cada vez mais augmente e floresça. P. J. B. (Santuário da Trindade, nº 6,
Ano 1, 26/08/1922. Grifos nossos).

As citadas matérias trazem-nos reflexões importantes, tanto no que tange a relação


“nacionalismo vs. religião”, quanto no que se refere à importante visão impressa sobre o
progresso. Em primeiro lugar, cabe-nos ressaltar que o discurso nacionalista ligado à religião

10
Destacamos que a norma linguística das citações do jornal Santuário da Trindade foi mantida do original.

1416
se opõe frontalmente às tendências oitocentistas da Igreja Católica ultramontana. A elevação
da nação à condição de produtora de sentidos (Anderson, 1989), tornando-se uma espécie de
religião secular, tornou-a adversária de uma Igreja ultramontana que se pretendia ainda mais
universal, tanto do ponto de vista político, quanto cultural e religioso. A influência do papa
sobre a soberania dos estados nacionais, conforme tentou impor o movimento ultramontano,
feria diretamente os princípios básicos do amor à pátria e serviço à nação. Todavia, tais
princípios, responsáveis pela vinda dos missionários redentoristas a Goiás, parecem ter se
perdido em uma nova aliança informal estabelecida ao longo das primeiras do século XX
entre Igreja Católica e Estado brasileiro11. Tal aliança mostrava-se igualmente forte nos
discursos redentoristas, conforme percebemos na primeira citação, cuja mensagem central
procura referir-se ao catolicismo como sendo não somente um catalisador do sentimento
nacional, mas o verdadeiro paladino da nação brasileira.

Já no segundo trecho citado do jornal, há uma evidente ligação feita entre três elementos
aparentemente relacionais, mas que guardam um paradoxo que necessita ser evidenciado:
nacionalismo, progresso e trabalho.

As relações entre trabalho e progresso, analisadas em primeira mão no Brasil por Iraci Galvão
Salles (1981), tiveram uma ascensão discursiva fundamentalmente na crise e abolição da
escravatura brasileira, tornando-se necessário a afirmação de que o progresso nacional viria
do trabalho enquanto fonte de enriquecimento, não de castigo. Todavia, conforme lembramos
em Weber (1989) e Troeltsch (1951), essa associação entre riqueza e trabalho ligada a
discursos religiosos remete-nos diretamente ao protestantismo, não ao catolicismo. Aqui,
precisamente, reside o paradoxo que desejamos expor: se, por um lado, o discurso
redentorista, conforme vimos na segunda citação do jornal, liga o progresso da nação ao
trabalho, e este trabalho à religião (“é inimigo da Patria quem trabalha contra a Religião e
pelo contrario, é benemérito da Patria quem contribue para que a Religião cada vez mais
augmente e floresça”), por outro, os mesmos editores redentoristas atacam o protestantismo
(precursor da relação “trabalho vs. religião”) como inimigo não só da religião, mas
fundamentalmente da pátria: “Anda por quasi toda parte um inimigo insidioso e traiçoeiro que
tenta roubar ao povo o que tem de mais precioso, a sua Religião, e junto com ella lhe rouba o
amor à Patria e a paz na propria familia. Este inimigo é o protestantismo” (Santuário da
Trindade, Ano 1, nº 2, 15/07/1922).

11
Sobre as relações entre Igreja Católica e Estado brasileiro no início do século XX, ver: Vaz (1997), Bruneau
(1974) e Hoornaert, et. al. (1983).

1417
Entretanto, mais curioso ainda é a crítica feita ao protestantismo pelo fato de este estar sempre
ligado a questões políticas e comerciais:

Os missionários protestantes não fazem bem algum no extremo oriente; antes seu interesse
é perturbar a paz. Esses missionários não ensinam o caminho ou doutrina de Deus aos
estudantes, sinão o caminho do diabo. Esquecem-se de que são propagadores da religião e
se metem em política. […] De modo contrário procedem os missionários catholicos: estes
não são commerciantes, não perturbam a paz dos povos, antes auxiliam a consolidar em
seos postos as autoridades legitimamente constituídas. Também no México os ministros
protestantes favoreceram a revolução e chegaram mesmo a pegar em armas e mandar seos
adeptos pegar em armas contra o governo. Bons missionários esses protestantes. (Santuário
da Trindade, Ano 1, nº 18, 24/02/1923)

Essa curiosa crítica à atuação intramundana do protestantismo – explícita em numerosas


matérias do periódico – nos remete a uma visão singular dos editores redentoristas sobre o
“trabalho” e o “progresso”, uma vez que “trabalhar” pela nação não poderia significar
interferir nos poderes legalmente constituídos, ou mesmo atuar política e economicamente a
partir de discursos religiosos (evidentemente para os adversários da Igreja, não para ela
própria). Antes disso:

Quem trabalha pela Patria? Todo aquelle que se esforça para augmentar os recursos
materiaes e moraes do paiz. […] Não é patriota somente o preguiçoso que não se dedica a
nenhum trabalho serio e assim rotina-se um inútil um peso para os seus e para a sua terra.
(Santuário da Trindade, nº 6, Ano 1, 26/08/1922).

Neste sentido, parece haver uma preocupação dos editores redentoristas, no que tange o
caminho do progresso da nação, sendo este fruto não da acumulação de bens para si (algo
inerente ao protestantismo), mas da necessidade de que o trabalho pessoal seja exercido em
prol do desenvolvimento econômico e financeiro da nação12.

Faz-se necessário lembrarmos ainda o fato de que, em plena década de 1920, época de
ascensão clara dos regimes totalitários na Europa, os religiosos redentoristas alemães em
Goiás não destoaram do nacionalismo político em franca ascensão em seu continente de
origem. Pelo contrário. Em diversas matérias do jornal Santuário da Trindade é perceptível
uma visão política inteiramente compassada às práticas totalitárias europeias, cujo conteúdo

12
Esta relação entre “progresso” e “trabalho” pode ser refletida também em termos do “medo da vadiagem”,
analisado por Oliveira (2006). Mais especificamente, no caso dos redentoristas editores do Santuário da
Trindade, esta oposição frontal à vadiagem ficou explícita no combate ao movimento messiânico de “santa
Dica”. Sobre o assunto, ver: Gomes Filho (2012).

1418
perpassa desde o combate ao comunismo13, a xenofobia14 e mesmo um apoio direto ao regime
fascista italiano, cujo conteúdo, mais uma vez, se liga diretamente a uma visão específica
acerca do progresso da pátria.

Diga-se o que quizer; uma cousa não se pode negar quanto a Mussolini: é um homem
extraordinário, um político de vistas largas, com visão estupenda das necessidades do
momento de energia e atuação inegualável. Agora que a Itália vai celebrar o sétimo
centenário da morte de São Francisco de Assis enviou ele uma mensagem grandiosa a todos
os italianos do mundo inteiro concitando-os a festejarem este grande santo como typo do
verdadeiro patriota, glória de sua nação e benemérito da humanidade. Assim esse homem
extraordinário de tudo se occupa, cultuando sempre a religião como o princípio e base de
toda felicidade e grandeza de sua pátria. Belo exemplo para esses político pygmeos de
nosso parlamento que com suas curtas intelligencias tanto se oppuzeram às emendas
religiosas. (Santuário da Trindade. Ano 4, n. 137. 19/12/1925. Grifos nossos).

Por fim, em diversas matérias, especialmente quando se trata de repressão a quaisquer formas
de vivência religiosa não católica, o Santuário da Trindade transparece posicionamentos de
combate religioso e político contra o “atraso” supostamente representado por seus
adversários. No que tange o espiritismo, este sempre é taxado – dentre outras coisas – como
um atentado à saúde pública15; com relação ao protestantismo são apontados argumentos

13
“No Rio de Janeiro constitui-se um partido communista, semelhante em seus planos ao que arruinou a Rússia e
que ainda faz a infelicidade daquelle grande paíz” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 6, 09/09/1922); “Os chefes
socialistas dizem aos operários que se deve guerrear os ricos e repartir os bens delles entre todos. Mas emquanto
assim fallam, fazem os operários pagar mensalidades e ocultamente ajuntam riquezas fabulosas […] Assim fez o
Sr. Trotzki, chefes dos communistas russos que já tem uma fortuna de mais de sessenta mi contos. E todos os
outros fazem isto mesmo. Operários, não vos deixeis explorar e não entreis em ligas que atacam a religião e a
propriedade.” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 7, 23/09/1922); Morreu Lenine, o grande carrasco que mandou
matar centenas de milhares de pessoas para fazer um paiz comunista. A desorganização, a revolução, o terror e a
fome tornaram a Rússia um paiz extremamente infeliz durante os annos que Lenine a tyrannisou de modo que
sua morte é certamente um allivio, a esperança de tempos melhores. (Santuário da Trindade. Ano 1, n. 4,
09/02/1922).
14
Em uma curiosa matéria do dia 7 de Outubro de 1922, o Santuário da Trindade divulgou uma longa matéria
sobre uma suposta vinda de mil famílias de imigrantes negros estadunidenses para povoarem o sul de Goiás, com
críticas de tom francamente xenofóbico: “Pelo ultimo recenseamento verificou-se que todo o Estado de Goyaz
não tem seiscentos mil habitantes, o que quer dizer que os brazileiros, os filhos do paiz, aquelles que têm luctado
com difficuldades e tropeços mil para o próprio progredimento, se hão de enfrentar de repente com quinhentos
ou seiscentos mil adventícios, activos, expertos, finos e endinheirados, que hão de absorver e anniquillar a
população nacional. E saberão os leitores que immigrantes são esses que vão invadir Goyaz? Basta que apellem
para sua memória. Hão de estar lembrados que os protestantes da America do Norte da raça negra que elles
detestam e odeam visceralmente […] Com essa gente vinda para cá, sobretudo em massas conquistadoras e
absorventes, se hão de produzir luctas religiosas, que sempre são as mais temíveis. Defendamos, pois, o nosso
patrimônio moral, que está crystallizado na Santa Egreja Catholica Romana”. (Santuário da Trindade, Ano 1, nº
8, 07/10/1922).
15
Inúmeras são as matérias do Santuário da Trindade em combate ao espiritismo (um dos adversários católicos
mais combatidos pelo periódico). Na maior parte delas, a expressa maioria dos argumentos utilizados pelo jornal
contra o espiritismo se refere à ideia de que este causaria loucura, sendo um verdadeiro “atentado à saúde
pública”, portanto, impensável em um país que almeja o progresso. Dentre as mais variadas, destacamos duas
como exemplo: “A quantos o espiritismo tem transtornado a cabeça. O director do hospício do Juquery, o grande

1419
contra o imperialismo estadunidense que impediria o progresso e patriotismo brasileiro, e,
consequentemente, goiano; quando se trata de curandeirismos e benzedores o periódico
aponta para uma direção voltada para a esfera de superstição e irracionalidade.

Em suas dezenas de artigos criticando as “supersticiosas” religiosidades não católicas, o


Santuário da Trindade utilizou-se não raras vezes de argumentos voltados para a
contraposição entre a “ignorância” – símbolo do atraso e letargia social supostamente cridos
de ser vividos por Goiás – e a “civilização”, marcada por uma religião antes de tudo “racional
e institucionalizada” (quando contraposta aos modelos de “magia” e “superstição” combatidos
pelo jornal), bem como por um desejo de uma sociedade culta e “civilizada”, portanto, imersa
no “progresso”. Tais posicionamentos podem ser visualizados em alguns trechos de artigos do
próprio jornal, utilizados como argumentos contra o movimento messiânico de “santa Dica”
16
:

[…] É incrível que no século 20 ainda haja pessoas que se prestem para taes babozeiras.
Mais uma vez se prova que a falta de religião e a ignorância do catecismo arrastam os
homens para a superstição e fanatismo. Mais uma vez pedimos providências ao Governo
contra essa mancha para os foros civilizados de Goyaz. (Santuário da Trindade. Ano 3, n.
93. 17/01/25)

[…] Não é isso uma vergonha para o nosso século tão adeantado que se julga livre de toda a
superstição e fanatismo? […] (Santuário da Trindade. Ano 4, n. 120. 14/08/25)

[…] Os motejos e sarcasmos indicando nomes e narrando as homenagens prestadas à Dica


na capital do estado, são verdadeiramente desconcertantes e humilhantes para os foros
cultos de Goyaz […] E a história não ficará nisso: daqui a dias essa imprensa collocará
nosso estado no rol das tribos selveticas que acreditam em feitiçarias e bruxas e nós
teremos que engulir a pílula porque os próprios goyanos deram a mão à palmatória.
(Santuário da Trindade. Ano 4, n. 123. 05/09/1925)

hospício de São Paulo declarou que grande parte dos doudos que ali estão internados, enlouqueceu por causa do
espiritismo” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 4, 12/08/1922); “Acontece muitas vezes que os que praticam o
espiritismo acabam loucos ou suicidam-se. O espiritismo é por isto um grande inimigo da humanidade, uma
praga terrível que, onde entre, causa os maiores estragos” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 11, 18/11/1922); “A
demência de um guarda-livros, chefes de família, e o suicídio de uma jovem, são os factos mais recentes. Não
faz dois mezes talvez suicidou-se uma senhora, num sanatório espírita, nos subúrbios da capital. […] Mas qual o
principal culpado de tantas desgraças? O código penal brasileiro não condena de forma clara a prática do
espiritismo? Como, pois, campeia ele, desenfreadamente, por toda parte? Que faz a nossa policia? E os nossos
governantes que providência tomam? Não é o caso de perguntarmos: onde estamos e para onde vamos?”
(Santuário da Trindade, Ano 1, nº 22, 21/04/1923).
16
Sobre as relações entre os redentoristas e o movimento messiânico de santa Dica em Goiás, ver: Gomes Filho
(2012).

1420
Tais argumentos, seja contra a prática do espiritismo, do protestantismo ou das superstições,
demonstram uma preocupação singular dos editores redentoristas não só com as práticas
religiosas adversárias do catolicismo, mas com a expectativa de “progresso” que se poderia
construir sobre a nação brasileira a partir daquilo que consideravam atraso, decadência ou
antipatriotismo. Estas preocupações, como pretendemos demonstrar com os expostos
argumentos, apontam, antes de tudo, para uma elaboração singular sobre o progresso da nação
brasileira, uma vez que não se tratava apenas do desenvolvimento material e econômico, mas
igualmente moral e religioso, construído sobre experiências não apenas com o tempo e espaço
do sertão goiano, mas sobretudo da alteridade deste com os tempos e espaços litorâneo e
europeu, de cujos exemplos constantemente citados, podemos perceber a singularidade de
uma visão de modernidade e progresso calcada na alteridade temporal e espacial de suas
experiências e expectativas.

Considerações finais

O presente artigo, embora com reflexões bastante iniciais, teve como propósito central refletir
sobre a possibilidade de se enxergar a singularidade da visão de progresso dos missionários
redentoristas editores do jornal Santuário da Trindade em Goiás. Esta singularidade baseia-se
no fato de, conforme acreditamos, haver uma específica alteridade temporal e espacial em
suas experiências e expectativas sobre a realidade que elaboraram, fruto de serem tais
editores, alemães com trânsito constante entre as casas provinciais de São Paulo e Goiás.
Neste sentido, foi o descompasso do desenvolvimento entre Europa, litoral e sertão que, ao
que nos parece, levou nossos agentes históricos em questão a experienciarem em Goiás tanto
um campo de experiências de atraso, como um horizonte de expectativas de progresso, cuja
atuação firme e convicta dos discursos impressos via periódico poderia servir como ação real
de transformação da realidade goiana.

Estas ações com vistas ao progresso de Goiás de modo algum ficaram apenas nos discursos
religiosos. Antes, foram os próprios missionários redentoristas que tomaram frente de ações
que acreditavam ser responsáveis pelo progresso de Goiás, como a construção da primeira
linha telefônica de Goiás, entre Campinas e Trindade, o estabelecimento da luz elétrica em
Campinas, ou mesmo a obtenção da primeira bicicleta vista na região. Tudo isso, amplamente
divulgado e autolegitimado nas linhas do Santuário da Trindade. Tais ações não apenas

1421
ilustram a preocupação com o progresso de que vimos argumentando até aqui, mas antes,
corroboram com nossa hipótese de uma atuação histórica (seja por meio dos discursos
impressos no jornal, seja através de tais ações “progressistas”) cuja elaboração da realidade
estava certamente calcada no cosmopolitismo de suas experiências e expectativas, a que
temos denominado “alteridade temporal”.

Referências

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BRUNEAU, Thomás. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola,


1974.

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modernidade. Goiânia: Editora da UFG, 2002.

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Redentoristas alemães em Goiás”. Horizonte. Belo Horizonte, vol. 9, n. 23, out-dez, 2011.

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1986.

1422
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1955). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Goiás, 1997.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989.

1423
O anticatolicismo norte-americano como bandeira protestante na
luta pelo Estado Laico no Brasil (1930 – 1945)
Paulo Julião da Silva1

Introdução

Em outubro de 1930 Getúlio Vargas chegou à presidência do país através de um Golpe de


Estado. O presidente permaneceria como chefe da nação por 15 anos usando diferentes
manobras e alianças políticas para manter-se no poder. Uma dessas alianças, vistas por
alguns especialistas como fundamental, foi a que fez com a Igreja Católica. O então
Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme, teria evitado que a “Revolução” fosse
feita “sem sangue” (LENHARO, 1986). Percebendo que se tratava da instituição com o maior
número de membros do Brasil naquele momento, Vargas se aproximou dos principais líderes
católicos realisando uma união “oficiosa” entre Estado e Igreja (CAVALCANTI, 1994).

Alguns grupos se levantaram contra tal união alegando que o Estado era laico e, portanto, não
poderia privilegiar uma religião em detrimento das demais. Dentre tais grupos estavam igrejas
protestantes. Diversas denominações evangélicas no país, como batistas, presbiterianos e
metodistas, usavam a Constituição de 1891 para justificar sua oposição. Tais denominações
chegaram ao Brasil em diferentes contextos durante o século XIX através de imigrações
norte-americanas. Alguns vieram por questões econômicas, outros por questões missionárias
(DAWSEY, C. B.; DAWSEY, J. M.). Durante a Era Vargas, foi grande o número de norte-
americanos presentes no Brasil com o objetivo de espalhar a fé protestante. A oposição às
ações de Vargas, como dos católicos, era baseada em princípios das referidas igrejas nos
Estados Unidos.

As representações dos protestantes norte-americanos acerca do catolicismo foram das mais


diversas. Acusações de antirrepublicanismo e de inibição das liberdades individuais eram as
que mais pesavam. A K.K.K. (Ku Klux Klan), conhecida pelos ataques a negros nos Estados
Unidos, também combatia pessoas e instituições católicas. O ideal do grupo não era apenas a
supremacia racial branca, mas também a supremacia política e ideológica republicana norte-
americana. Parece até um pouco contraditório, mas os membros da organização acreditavam
1
Doutorando em História Cultural pela UNICAMP. Projeto financiado pela FAPESP. Orientadora: Profª. Drª.
Eliane Moura da Silva. Contato: pauloemac@gmail.com.

1424
que para a república ser de fato estabelecida, era necessário viver o ideal de liberdade
democrática que diziam ser garantida nas igrejas protestantes do país (CORRIGAN; NEAL,
2010).

Na primeira metade do século XX surgiram diversos movimentos fundamentalistas teológicos


nos Estados Unidos (DEMERATH III, 1998). Tais movimentos contribuíram ainda mais com
o anticatolicismo que só cresceu e passou a ser uma das causas dos problemas no país na
avaliação de tais grupos.

Partindo dos Estados Unidos, missionários vinham para o Brasil financiado por missões, ou
por igrejas locais. Boa parte dessas pessoas acreditava que poderia de alguma forma
contribuir para a transformação do país (CRABTREE, 1953). Não apenas com formação
teológica, mas também em medicina, enfermagem, ou em alguma área da licenciatura
chegavam ao Brasil com um discurso progressista modernizador. Apesar de, a partir da
década de 1930, algumas denominações brasileiras passaram a se desligar das missões
estadunidenses (CASE , 1931), alguns vinham por conta própria, ou eram mantidos por
igrejas locais, e se espalhavam por diversas regiões do país com o objetivo de propagar a nova
fé.

Mesmo com o Congresso do Panamá em 1919 decidindo que a América Latina não era a
prioridade das missões protestantes já que era uma área cristianizada, muitos missionários
decidiam vir para o Brasil, pois acreditavam que o cristianismo pregado no país era falso. As
críticas ao catolicismo de início eram parecidas com as que eram feitas nos EUA. Igreja
retrógrada, que atrapalhava a implantação da república e, principalmente, idólatra. Porém, ao
se depararem com a situação brasileira, perceberam que o problema a enfrentar não era apenas
com a religião. Apesar de o país ser legalmente laico, a reaproximação do Estado com a Igreja
Católica era nítida. O golpe dado por Vargas em 1930 até deixou alguns protestantes, tanto
brasileiros como americanos esperançosos. Porém, com as ações tomadas pelo Estado a partir
de 1931, percebeu-se que além do catolicismo, o Estado Brasileiro também se mostrava como
um problema à expansão da fé evangélica (BRUNEAU , 1974).

O sonho de tornar o Brasil parecido com os Estados Unidos não mudou, mas percebeu-se que
não se faria isso apenas criticando o catolicismo. Além da crítica à Igreja e ao Estado, as
práticas de inserção na sociedade tiveram de ser repensadas. O simples fato de mostrar o
catolicismo como religião retrógrada nem sempre agradava aos ouvintes. Mostrar o Estado

1425
com um ideal de governo ultrapassado também não era suficiente. Passaram então a investir
com mais ímpeto na questão educacional, bem como na saúde. Acreditavam atrair pessoas
com tais métodos, e os viam como eficientes para a implantação da fé evangélica no país. É
certo que muitos fundamentalistas discordavam. Para tais, a bíblia por si só deveria bastar.
Porém, mesmo com a discordância de alguns, tais práticas foram uma crescente, apesar de
alguns fundos nos Estados Unidos cortarem o financiamento de missões o que dificultava o
trabalho no Brasil (SMITH, 1932. p. 1).

Escolas eram construídas ao lado de igrejas, bem como locais para atendimento médico, que
nem sempre eram hospitais. Ações políticas também foram tomadas, como a criação da Liga
Pró-Estado Leigo em 1931. Além dos problemas externos citados, havia também questões
internas. Divergências sobre onde deveriam ser aplicados recursos, dificuldades financeiras
em algumas regiões, e, inclusive, acusações de desvios de verbas das missões passaram a se
tornar um problema na expansão do protestantismo no Brasil (PIRES, 1930).

Algo interessante, é que o anticatolicismo entre os “irmãos do norte” tinha uma conotação
diferente do que ocorreu no Brasil. Porém, a visão de um país próspero, democrático, livre e
com princípios morais estabelecidos, era usada para justificar a defesa da separação entre o
Estado e a Igreja Católica, vista como atrasada, antidemocrática, degradada moral e
socialmente e com princípios que não condiziam com o verdadeiro cristianismo.

No presente texto, far-se-á análises de fontes e bibliografia sobre o anticatolicismo nos


Estados Unidos, mostrando como o discurso semelhante foi usado para combater a
aproximação entre Estado e Igreja Católica no Brasil. Usar-se-ão exemplos de combate ao
catolicismo em terras brasílicas, principalmente através de estratégias educacionais.

Reflexos do anticatolicismo norte-americano no Brasil: O discurso protestante a favor


da laicidade do Estado nas estratégias de inserção social

A construção de representações anticatólicas nos Estados Unidos remonta desde a época em


que ainda eram colônias inglesas. Os protestantes no país julgavam-se os verdadeiros
fundadores da nação e os eleitos de Deus para ocuparem o extenso território que aos poucos
era desbravado. Os evangélicos, principalmente republicanos e brancos, criaram
representações de inferioridade acerca do catolicismo. A religião romana era tida como

1426
corrupta, antidemocrática, supersticiosa, anticultural e antiamericana. Declaravam-se
defensores dos mais diversos tipos de liberdade e, a forma hierárquica de organização católica
era tida como uma ameaça. Citavam exemplos de países católicos europeus, mostrando-os
defensores de monarquias e contrários ao sistema republicano (Espanha, Portugal, França,
etc.) (MASSA, 2003).

Na primeira metade do século XX, os protestantes associaram o catolicismo ao fascismo. Os


discursos religiosos bem como questões de cunho político fizeram com que nos anos de 1930
e 1940, a rejeição à Igreja Católica crescesse nos Estados Unidos. O anticatolicismo também
passava por questões de xenofobia. Os verdadeiros americanos seriam os Anglo-saxões. Os
demais, não seriam “filhos da América”. Em muitos dos casos, os católicos que eram
descendentes de europeus de regiões distintas, foram vistos como “diferentes”
(NORDSTROM, 2006).

John Corrigan e Lynn S. Neal (2010) destacam alguns diferentes grupos e métodos de
combate ao catolicismo nos Estados Unidos. Além da K.K.K., que em seus discursos usavam
o mote do republicanismo para justificar suas ações, políticos e escritores conhecidos e
influentes nos Estados Unidos contribuíram para que o anticatolicismo proliferasse entre os
norte-americanos. Thomas E. Watson (1856-1922) é um grande exemplo. Watson produziu
diversos textos que instigavam o racismo, o antissemitismo e o anticatolicismo entre os seus
ouvintes e leitores. Seus escritos influenciaram perseguições públicas ao catolicismo e
serviram de âncora para a K.K.K., mesmo nas décadas que sucederam a sua morte.

Uma das principais instituições católicas atacadas pelos protestantes americanos, segundo os
autores acima, eram os conventos. As acusações contra tais locais eram das mais variadas. Os
protestantes relatavam que as mulheres eram tratadas como prisioneiras, sofriam abusos
sexuais e viviam em completo desespero tentando a todo o custo fugir. Era uma instituição a
ser expurgada da sociedade. Os conventos eram uma afronta às liberdades tão defendidas
pelos republicanos protestantes, haja vista que as mulheres precisavam obedecer a certas
hierarquias e se submeterem a determinados tipos de trabalho e opressão.

A forma como se dava o processo eleitoral americano, e como os candidatos eram escolhidos
em alguns casos mostra também a ideia de supremacia branca e protestante. Negros não eram
bem vistos por serem classificados como pertencentes a uma raça inferior. Judeus não
aceitavam Cristo como salvador e messias. Católicos se submetiam às ordens do Papa. Isso

1427
era “inadmissível”. Como em uma nação livre, alguém que assumisse um poder público
poderia estar sujeito a uma autoridade em outro continente? Católicos se viram de certa forma
aliviados quando Franklin Delano Roosevelt (católico) ganhou as eleições em 1932. O medo
era que as políticas republicanas com base protestante se alastrassem pela sociedade. É certo
que durante a Segunda Guerra Mundial, o anticatolicismo tornou-se mais intenso pela
associação ao fascismo. Porém, havia o medo que com um republicano no poder a
perseguição fosse ainda maior (MARLIN, 2004).

Na primeira metade do século XX, quando se aguardava o “fim dos tempos”, a Igreja Católica
era vista como a mãe de todas as desgraças na qual suas ações eram recheadas de atitudes
abomináveis e o seu líder maior, o Papa, era a representação do anticristo na Terra. Os
americanos acreditavam que por predestinação ou providência divina, os protestantes com sua
ética e moral, eram os principais representantes de Cristo no mundo e só eles mereciam gozar
dos “prazeres de ser americano”. O mito fundador da nação também teria contribuído para
que o anticatolicismo fosse uma constante nos EUA, inclusive nos dias de hoje. Teriam sidos
os protestantes puritanos os verdadeiros heróis que saíram da Inglaterra em busca de novos
horizontes no século XVII. Teriam sido eles, que com a ajuda divina teriam desbravado e
construído uma nação democrática e com liberdades individuais. Com essa visão, o
catolicismo se mostrava uma ameaça, haja vista sua organização eclesiástica, sem liberdades
de escolha e com a exigência de obediência a uma hierarquia que começava com o Papa
(JENKINS, 2003).

Nos anos 1930 e 1940, o anticatolicismo cresceu, mas, agora não só como uma religião que
era “teologicamente equivocada”. Nesse período era destacado que o problema do catolicismo
não era apenas religioso, mas, cultural. Não eram apenas os protestantes que rejeitavam o
catolicismo, mas o “espírito americano”. Era tida como a religião dos estrangeiros, dos
europeus, dos ignorantes. O nacionalismo que floresceu em vários países do mundo entre os
anos 1920 e 1945, era visto também no discurso anticatólico norte-americano como
antidemocrático.

Philip Jenkins (2003) descreve que o anticatolicismo ganhou a ajuda científica no século XIX
e XX. Estudos eugênicos revelavam que anglo-saxões e alemães eram mais inteligentes que
pessoas do sul da Europa, em sua maioria católicos e, também, mais inteligentes que africanos
e asiáticos.

1428
Tais discursos acerca do catolicismo chegavam ao Brasil com os missionários norte-
americanos. Deveriam ser copiados os exemplos da “maior democracia do mundo”. Teria sido
graças ao protestantismo que Estados Unidos eram a nação mais rica do planeta. Na Era
Vargas, com os privilégios que o catolicismo recebeu do então presidente, os evangélicos
passaram a atacar com mais ênfase o Governo e a Igreja. Jornais protestantes comparavam a
cultura brasileira com a norte-americana, mostrando que a causa dos atrasos social, político e
econômico que o país passava, estava associada aos privilégios que o os católicos recebiam.
Segundo os evangélicos, isso não ocorria nos Estados Unidos, apesar de os autores analisados
anteriormente mostrarem havia privilégios políticos para quem era protestante.

Discorria o periódico protestante, Expositor Christão:

Quer se queira ou não, quer se saiba ou não, lutar contra a Escola leiga é lutar contra a
unidade moral da Patria, uma vez que a missão essencial da escola leiga é manter e
argumentar, se possivel, essa unidade [...] Ao affirmar o pretenso anachronismo do laicismo
escolar, esqueceu talvez o ministro da educação que as duas maiores democracias do
mundo, a França e os Estados Unidos, berços gloriosos da Liberdade no Antigo e no Novo
Continente, fundaram seu edificio da instrucção popular, nesse “anachronico” laicismo
escolar, garantia unica da liberdade de consciência [...] Radicalmente contrario ao laicismo
escolar está, apenas sempre e sempre, o clericalismo romano. Não apenas contra o laicismo
escolar, uma das modalidades da liberdade de consciencia, senão contra essa propria
liberdade de consciencia (ANDRADE, 1931, p. 6).

O redator no Expositor Christão mostra sua indignação com o decreto publicado no ano de
1931, o qual instituía o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. A unidade da pátria
só seria possível com a escola leiga. A democracia é posta em questão citando exemplos de
países que adotavam tal sistema de governo. O primeiro, com a população essencialmente
católica possuindo o ensino laico. O segundo, com a população em sua maioria protestante,
tido como exemplo para o mundo, devendo ser copiado pelo Brasil. Principalmente os
Estados Unidos era exemplo a ser seguido (HACK, 2000). A liberdade estaria garantida a
partir do momento em que o laicismo fosse colocado em prática. Tanto o Estado quanto a
Igreja foram alvos do discurso protestante. O catolicismo estaria sendo radical no momento
em que exigia a presença da religião em setores públicos. A questão educacional tomou um
cunho político e religioso. Ter ensino religioso em escolas públicas era ser antidemocrático,
haja vista que não estavam sendo respeitados os que possuíam religião diferente. A liberdade
de consciência também é citada. Em um sistema republicano ela não poderia ser cerceada.

1429
Em 1934, os católicos viram seus privilégios reconhecidos constitucionalmente. Percebendo
que a posição que passariam a ocupar no Brasil frente ao catolicismo seria complicada, haja
vista que aqui os protestantes eram minoria, os evangélicos adotaram estratégias de inserção
na sociedade que foram além do proselitismo e discursos contra o Estado2.

Investir mais em educação foi uma das estratégias. Boa parte dos brasileiros não sabia ler. A
ideia de se construir uma escola para cada igreja não tinha sido tão eficaz. Mesmo assim,
apostaram na construção de grandes centros de ensino que de certa forma ajudaram na
propagação da fé evangélica. A pedagogia a ser adotada deveria vir dos Estados Unidos. Um
sistema de educação que preparasse para o mercado de trabalho, principalmente industrial. A
formação católica para bacharéis, nem sempre foi bem vista na mentalidade dos norte-
americanos (HACK, 2000). O Colégio em Porto Alegre, por exemplo, criou o curso
comercial.

Os educadores de preferência deveriam ser evangélicos. Em 30 de janeiro de 1945, a


missionária Helena Bagby escreveu a professora Alice Gerab, de São Paulo, pedindo sua
ajuda no trabalho missionário. É interessante que no decorrer da carta, percebe-se que o
chamado é para lecionar no Colégio Batista Americano em Porto Alegre, o qual necessitava
de uma docente. A missionária deixa claro que na cidade há professoras de qualidade,
porém, não eram protestantes.

[...] mas nós não estamos aqui para ensinar pequenas viboras como melhor picarem. O
cultivo de caracter christão tem primeiro lugar, a instrução por seu valor intrínseco tomando
posição secundaria, apezar de procurarmos com toda a dilligencia aperfeiçoar a ultima [...]
É por causa dessa necessidade de evangelismo e o mister de combinar a actividade
educacional com a religiosa, que abri a carta com a menção da palavra “missionária”, que
talvez até te assustasse (BAGBY, 1945, p. 1, 2).

As descrições acerca do outro tomam um cunho de verdade quando a intenção é a construção


de um discurso. O historiador Carlo Ginzburg (1991), analisando as representações em torno
do sabá, mostra como os inquisidores no início da Idade Moderna, realizavam questionários
aos réus e, com a ajuda de torturas, faziam com que tais vítimas confessassem crimes nunca
cometidos. Eram criadas representações de demonologias, bruxarias, feitiçarias e heresias. Em

2
Harriet Aileen Odom (1952) analisou a influência de igrejas protestantes na vida pública e privada de
brasileiros. Questões de raça, economia, morais, familiares e até de saúde estavam entre tais influências. As
igrejas procuraram inserção nos lares com o discurso de que Cristo deveria estar presente na vida de um cristão
por completo. Em relação ao trabalho missionário, diversos métodos de inserção social, considerados eficazes,
foram usados para se aproximar os brasileiros das igrejas evangélicas. Os métodos sofriam alterações, à medida
que era percebido as diferenças culturais das pessoas a serem alcançadas.

1430
muitos casos, os réus, ou vítimas, nem sabiam que eram vistos de tal forma. Os termos usados
para qualificar os católicos no Brasil, por parte dos protestantes não fogem da análise do
referido historiador. Nos templos, jornais, e em cartas, como a citada acima, eram construídas
representações que desqualificavam os católicos, mostrando-os como atrasados, degradados e,
como cita a missionária, domadores de víboras.

Os professores não católicos não serviam para o ensino das crianças. Em alguns casos, pais
católicos matriculavam seus filhos em escolas protestantes buscando a pedagogia mostrada
como inovadora e moderna que vinha dos Estados Unidos. A missionária deixa claro qual
seria a intenção primordial do ensino: o proselitismo. A instrução nas disciplinas escolares,
apesar de fundamental, era algo secundário na visão do Colégio. Como então não mostrar isso
de forma explícita para os pais? Contratando professores protestantes que soubessem como
combinar a atividade educacional com a religiosa, mesmo em disciplinas tidas como seculares
(RAFETA, 2008).

Investir na educação que não tivesse a participação católica era contribuir para o crescimento
do país. É interessante notar nas documentações que ser laico, era não ser católico. Uma
escola protestante, que se mostrava moderna, com cursos e disciplinas importantes para o
momento histórico, tinha em seu interesse primordial realisar o proselitismo. Outro ponto que
chama atenção, é que em algumas escolas evangélicas não existia a disciplina de ensino
religioso. A religião era inserida nas aulas de matemática, química, física e, principalmente
português e inglês (BAGBY, 1938). Esse era uma das bases da defesa do estado laico através
da educação, pelos missionários norte-americanos. Ora, se em uma escola confessional não
existia a disciplina de ensino religioso, como então o Estado poderia justificar essa disciplina
nas escolas públicas? Com tal argumentação, os protestantes discursavam a favor do Estado
Laico, criticando a atitude do Governo Vargas, mostrando-a como benéfica apenas para a
Igreja Católica e citando como exemplo a ser seguido, as escolas norte-americanas (RAFETA,
2008).

Considerações finais

Não foi apenas na Era Vargas que as ideias anticatólicas norte-americanas estiveram presentes
nas representações protestantes acerca da instituição em questão. Porém, foi nesse período
que se teve mais ênfase, já que em nenhum outro momento da República Brasileira a Igreja

1431
Católica teve tantos privilégios constitucionalmente reconhecidos. Os reflexos do
anticatolicismo norte-americano estiveram presentes também em investimentos na saúde e na
organização de grupos políticos que exigiam a laicidade do Estado presente na Constituição.
Os missionários que aportavam no país, precisaram mudar as estratégias de ataque à Igreja
quando viram que seus opositores tinham o apoio oficial. A escolha pela educação como
método de inserção social e evangelística foi segunda mais enfática, ficando apenas atrás do
das pregações em locais públicos. Os protestantes perceberam que nas escolas, as pessoas
eram mais “receptíveis” à nova doutrina.

Fontes e Referências

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estranha formula democratica adoptada pelo sr. Francisco de Campos. Expositor Christão.
São Paulo, 15, jul, 1931, p. 6.

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1432
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1433
1434
O Cristianismo na África agostiniana em Peter Brown
Adailson Nascimento Souza1

Introdução

Esta proposta de comunicação tem como finalidade desenvolver uma pesquisa relacionado a
contextualização do cristianismo ocidental do século IV e V, dentro desse contexto propomos
estudar a influencia da fé cristã no contexto africano onde Aurelius Augustinus ou o Bispo de
Hipona foi um dos maiores contribuintes para a evangelização, estaremos fazendo tal analise
dentro do pensamento de um dos maiores pesquisadores do hiponense Peter Brown.

Dentro do contexto cristão ocidental vivenciado por Agostinho vemos uma grande influência
da cultura africana e é essa influencia que pretendemos discorrer nesse trabalho. A partir daí
analisaremos o desenvolvimento da religião cristã na África agostiniana. Dentro dessas
perspectivas abordaremos os desafios que Agostinho teve de catequizar os africanos dentro de
uma sociedade totalmente pluralista e as influências da cultura cristã para os africanos.

Africa Agostiniana

Aurelius Agostinho, nascido no dia 13 de novembro de 354, em Tagasta, província romana da


Numídia, (atual Suq Ahras, na Argélia) nesse período a cidade estava com 300 anos de
existência e era considerado na época como “mui resplandecente” por ser uma cidade modelo
que chamava a atenção de quem a visitara, por seu verde-cinzento dos oliveirais, seus vastos
campos de trigo, óleo, cereais, mármore e peles, onde eram transportadas para as várias
cidades circunvizinhas existentes na época que dependiam desses materiais cultivado pelo o
povo africano em específico Tagaste, cidade natural de Agostinho.

Conhecida não só pelas belas paisagens, mas, por várias obras de engenharias que fazia de
Tagaste uma cidade modelo para as demais, dentre as construções realizadas está as enormes
hidráulicas e arquedutos que facilitavam o abastecimento de águas até os interiores mais
distantes, as águas distribuídas em suas maiorias eram recolhidas das chuvas em reservatórios

1
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Bolsista da CAPES/PROSUP. Membro do GP NEMES.
Orientando do Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé. Contato: aj.rui@terra.com.br.

1435
que podia se chegar a medir até 3 mil metros quadrados, onde eram fixos, todos essas
informações tem o intuito de nos localizarmos nos contexto da áfrica agostiniana em quais
eram na época a situação que fazia da áfrica uma cidade modelo para as demais.

Aos dezesseis anos de idade, Agostinho foi até a cidade de Cartago e

escancarou os seus olhos maravilhados diante de uma beleza até então desconhecida, que
emanava de todos os monumentos e das estátuas de sugestivos contornos. Lá, ele descobriu
o amor com suas queimaduras e o fervilhar das paixões, com alternâncias de exaltação e
vindita, de pudor e transbordamento. (HAMMAN, 1989. p. 11).

Toda essa beleza foi de espantar Agostinho, só que, no século IV ocorreu uma grande
estagnação que fez com que os projetos ainda em construção viessem a parar, obrigando-o as
riquezas africanas a mudar-se para os centros muito distantes, com isso, passa a prejudicar as
várias cidades e comerciantes que dependiam de tais centros para comercializarem seus
produtos.

Após as mudanças ocorridas Tagasta passa a ser uma cidade dependente, administrada pela a
África de Cartago, considerada na época como o símbolo da civilização, “não era uma cidade
distinta da zona rural”, pois, suas concepções era que “na terra que se buscavam os prazeres
da vida, quando se dispunha de meios para custeá-los” (BROWN, 2012, p. 24) os moradores
trabalhavam nos campos nas maiorias das vezes por prazeres e não por necessidades. Certo de
que a vida não era muito fácil além de força de vontade era necessário ter pessoas influentes
que pudessem ajudar a desenvolver suas habilidades. Tal ajuda e sorte Agostinho veio a
receber pelo o motivo de seu pai Patrício, homem pobre de recursos escassos, pagão, mas, que
tinha conhecimento com pessoas influentes a realizar seu sonho que era de ver seu filho
Agostinho dedicar exclusivamente nos estudos, Romaniano homem de grande influencia,
espécie de jurista que costumava defender suas propriedades na corte imperial, foi a pessoa
que ajudou a Agostinho a realizar o sonho de seu pai, pois “no mundo flexível do século IV, a
sorte e o talento podiam eliminar o abismo entre um Patrício e um Romaniano”(BROWN,
2012, p. 2) e quem as tinha era uma grande oportunidade de mudar de status, nesse caso,
quem tinha essa oportunidade era considerados de pensadores ou alto escalão se assim,
podemos dizer.

Os recursos da África eram muitos, não dependiam somente dos solos que eram tidos como
férteis, onde tudo que plantavam, colhiam com abundancia, mas, a população por seu turno,

1436
era trabalhadora e audaciosa. “o homem da região tinha o sentido de empreendimento e o
gosto pelo o comercio que, sobretudo os homens do litoral, haviam herdado dos fenícios. Até
mesmo os padres católicos se fariam recebedores do tesouro público, por gosto pelos negócios
– ou por compensação.” (HAMMAN, 1989, p. 12), é uma herança que os africanos trazem até
os dias de hoje mais com menos frequência.

Cristianismo Ocidental e a Cultura Africana do Século IV e V.

O cristianismo, religião que se fundamenta nos ensino de Jesus Cristo como o estabelecedor
das doutrinas conhecidas como os “Evangelhos” 2que marcaram a historia das religiões no
que se refere em específico no contexto Judaico, pois, conforme as escrituras Jesus o Messias
prometido nos escritos proféticos “veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” 3 a
partir daí, a Bíblia Sagrada conhecida pelos cristãos (pequenos cristos) passou a ser o seu
manual de seguimento moral e religioso para aqueles que acreditavam nos ensinamentos por
Ele (Jesus) instruído, não deixando de esquecer que, O Cristo não fundou nenhuma religião,
tais ensinamentos é que provocaram tantas repercussões que seus seguidores mais próximos,
com isso, resolveram descrever o que viam, sendo-os na maioria testemunhas diretas com o
Messias.

Dentre essa rápida passagem para descrevermos o que vem a ser o cristianismo, nesse tópico
relataremos o contexto propriamente dito de nosso tema proposto, que é o cristianismo da
vida de Agostinho que estar contido nos séculos IV e V, período em que dentro da cultura
africana em especifico, vemos ainda hoje, a influência dos mais poderosos em relação as
classes menores consideradas pobres, tal cultura era influenciada pela a elite de sua época,
onde as mesmas datava leis e normas conforme suas vontades, fazendo da população
cumpridores de leis que viabilizava suas necessidades comerciais e econômicas.

Patricio, Monica e Agostinho, tudo indica que eram de descendência “berbere”4, os mesmos
“eram sincretistas acolheram as divindades fenícias, egípcias, gregas e romanas sem no

2
São um gênero de literatura do cristianismo primitivo que contam a vida de Jesus, a fim de preservar seus
ensinamentos ou revelar aspectos da natureza de Deus. O desenvolvimento do cânon do Novo
Testamento deixou quatro evangelhos canônicos, que são aceitos como os únicos evangelhos autênticos para a
maioria dos cristãos.
3
Jo. 1. 11.
4
Os berberes (que chamam a si próprios Imazighen, ou seja, "homens livres"; singular Amazigh ) são um
conjunto de povos do Norte de África que falam línguas berberes, da família de línguas afro-asiáticas. Estima-se

1437
entanto abandonar suas próprias divindades” (HAMMAN, 1989, p. 12) tais práticas da cultura
religiosa da África agostiniana eram normais, até mesmo entre os cristãos acreditavam que
existiam uma divindade para cada necessidade que mais tarde a igreja católica daria
continuidade só que agora os nomes eram trocados por divindades latinas.

Tudo dar-se início no fim do século I quando judeus vindos da Líbia cirenaica para Jerusalém,
testemunhas vivas do Pentecostes chegam à áfrica para anunciar as boas novas que em pouco
tempo já tinha se infiltrado até mesmo nas tribos berberes que estavam localizadas nas
proximidades de Getúlia e Mauritânia que, devido a rápida expansão ocorreu vários martírios
por parte dos povos que não o aceitavam, “o cristianismo africano apresentava um espírito de
campanário e o orgulho da terra. Estava profundamente arraigado numa terra que se embebeu
no sangue dos mártires” (HAMMAN, 1989, p. 18), fazendo do cristianismo uma religião
muito perseguida, mas que a cada dia o seu crescimento era espantoso.

Devido sua característica própria, e diferente da época, o cristianismo passou a ser visto de
forma agradável pela população devido o cuidado com os excluídos e oprimidos, falavam
muito sobre fraternidade e igualdade, o temor diante a Deus, doutrina da salvação e da graça,
tais ensinamentos causou impacto até no fogoso Tertuliano, fazendo do cristianismo uma
religião diferente das outras existentes na África.

No contexto a qual estamos estudando o cristianismo já não era uma religião nova, já tinha em
torno de uns 300 anos de existência, tendo basicamente uma identidade própria e diferenciada
das demais e que ainda incomodava muita gente principalmente os imperadores não adeptos
da nova religião, tal exemplo estar no cisma que,

em 303 Diocleciano promulgou um última conjunto de medidas, conhecidos pelos os


cristãos sob o nome de “Grande Perseguição”, que foi aplicado durante 11 anos em partes
da Ásia Menor, da Síria e do Egito. A Grande Perseguição assinalou a chegada a idade
adulta tanto do novo império como da Igreja cristã. (BROWN, 1999, p.41).

...o cristianismo apesar de sua grande aceitação por parte dos caridados, uma grande parte
ainda se mantinha oposto a suas doutrinas.

que existam entre 58 e 75 milhões de pessoas que falam estas línguas, principalmente em Marrocos e Argélia,
mas também fazendo parte deste grupo os tuaregues, predominantemente nômades do Sahara.

1438
Com a dominação dos donatistas5 na África no século IV, vemos uma queda muito grande por
parte dos mesmos em relação ao poder dominante, as ameaças dos bárbaros militaristas
vindos da Pérsia, fazendo com que o perigo e os impostos aumentassem, nessa condição quem
houvesse de confrontar o imperador poderia comprometer toda a sua comunidade com o
castigo de quem o acusou (BROWN, 2012 p. 29) isso nos revela que a população não tinha
autoridade para reinvidicar seus direitos, se é que tinha direito na visão do imperador.

Diante dessas situações entendemos que no contexto africano vivido por Agostinho a religião
em específico o cristianismo não tinha uma aceitação ou influência agradável por parte do
império.

Influência da Fé Cristã no Contexto Africano em Peter Brown

A África coberta por uma influencia cultural que chegavam até a confundir-se em relação aos
seus cultos e adorações ao seu Deus ou deuses, isso, passa a ser um grande desafio para o
agora então bispo de Hipona Agostinho, que o incomodava bastante tais posturas dos cristãos
onde “as mesmas pessoas que cantavam ‘Aleluia’ encontravam-se para aclamar histriões e
pantomímicos” (HAMMAN, 1989, p. 113) sua indignação com tais posturas dos cristãos era
visíveis nos cultos.

Desde sua fundação a África já trazia consigo esses traços culturais fazendo-o diferenciada
das outras pela a valorização maciça do seu povo pela sua própria cultura, em alguns
momentos os organizadores eram obrigados a venderem suas propriedades para livrar suas
despesas, só que o prazer pela a prática de espetáculos como, teatro, mímica, pantomima, o
anfiteatro, o circo e as festas pagãs falavam mais fortes em sua natureza africana, sendo um
obstáculo para o anuncio da fé cristã.

Mas tais atitudes ainda que indignasse o bispo, em seus olhos podia ver o quanto tal sociedade
era carente de um Deus verdadeiro que viesse mostrar exatamente a eles o preenchimento do
vazio que havia em seus íntimos e que as festas e atividades culturais viriam a ser na sua
maioria das vezes seu refúgio, e como o cristianismo ainda não era bem aceito a ponto de

5
O Donatismo (cujo nome advém de Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia e posteriormente de Cartago) foi
uma seita religiosa cristã, considerada herética e cismática pelo catolicismo. Surgiu nas províncias do Norte de
África na Antiguidade Tardia. Iniciou-se no início do século IV e foi extinta no final do século VII. Os autores
que mais influenciaram os donatistas, em termos de doutrina religiosa, foram São
Cipriano, Montano e Tertuliano.

1439
abandonar suas práticas religiosas á outros deuses que não viesse a ser o Deus verdadeiro que
Agostinho propunha anunciar, mas, mesmo com tais dificuldades o hiponense não desistiu de
cumprir sua missão,

por mais que Agostinho descrevesse o espetáculo da natureza, onde o Criador estende sua
magnificência; por mais que fizesse admirar as maravilhas de Deus na história; por mais
que afirmasse que os campos são mais matizados que os cenários do teatro. Por mais que
prometesse o espetáculo futuro do Cordeiro no cenário da Nova Jerusalém; nesse dia o
africano de Hipona ou de Cartago não o seguia, (HAMMAN, 1989, p. 131).

Vemos que a influencia cultural era tão grande que aos olhos humanos vemos uma grande
impossibilidade de tal sonho de Agostinho vim a se realizar, isso demonstra o imenso desafio
que a Igreja cristã na pessoa de Agostinho como o líder responsável a evangelização ou
catequização dos africanos, enquanto “cristãos ou pagãos, os espectadores que voltavam do
circo encontravam nas ruas paroquianos que voltavam da missa” (HAMMAN, 1989, p. 131).

Mas a influencia cristã mesmo assim não deixou de ser vivida, mesmo com as grandes
dificuldades enfrentadas como era de costume dos adeptos da fé cristã morrer por causa dessa
verdade eles morreriam. Devido a perseverança de Agostinho podíamos perceber que a igreja
começara a prevalecer diante das situações acontecidas no ponto até de Salviano de Marselha
afirma que a causa já estaria praticamente ganha, pois, se andasse nas casa pelos os arredores
era muito difícil não ver um cristão, embora houvesse muitos pagãos, mas sempre existia
alguém que acreditavam em Jesus Cristo.

Mesmo ainda com práticas de adoração a outros deuses vemos a expansão do cristianismo de
um forma muito rápida devido sua veracidade e firmeza nas suas convicções de seus
seguidores demonstração mas exata estar quando em 382 o imperador “Graciano tenha
condenado a religião pagã e confiscado os templos em Cartago, o jovem Agostinho viu
templos amplamente abertos” (HAMMAN, 1989, p. 134) caso que não vínhamos com
frequência ou que até então não era muito aceito pelo o império e até por parte da igreja
católica na época, passamos a ver constantemente a mudança, mas também era notório de ser
sempre pagãos e céticos zombando-os, e ainda argumentavam que “ os cristãos participam de
nossas festas pagãs, retornam aos velhos ritos, recorrem à magia e imploram às divindades
nos momentos de aflição. Por que abandonar os nossos deuses, se os próprios cristãos os
veneram conosco? (HAMMAN, 1989, p. 142-143)”, vemos os maus exemplos de cristãos que

1440
conforme Agostinho ainda não tinha conhecido a Verdade verdadeiramente, fazendo-o
comprometer toda a igreja.

Não bastando os neófitos na fé em suas maiorias das vezes quando alguns dos seus familiares
estavam doente e recorria ao bispo ou a outro irmão em oração e o mesmo era curado
agradecia ao Senhor Jesus, se tal cura não ocorresse no tempo determinado os familiares já
recorria aos curandeiros, adivinhos demonstrando o total ligamento com os traços culturais
sociais.

Depois de grandes lutas, perseguições e menosprezo, vemos a igreja cristã tomando sua
autonomia diante da sociedade africana. Após o Edito de Milão, a igreja passou a ter
privilégios aos templos que até o momento não tinha, “entre outros, o direito de asilo junto
aos altares e santuários, velha instituição, conhecida de quase todos os países da Antiguidade,
que possibilitava a impunidade aos escravos, aos devedores e a todos os cidadãos perseguidos
pela polícia”(HAMMAN, 1989, p.289) para a igreja é uma vitória imensa, de ter conquistado
tais liberdade era como se deixasse livre a igreja a viver como ela pretende viver. A partir daí
a igreja passou a ser vista com outros olhos, onde o Estado era pela justiça para o povo, a
Igreja é pela misericórdia, sua missão é de “dar comida a quem tem fome, dar bebida a quem
tem sede, vestir a quem não tem roupa, acolher aqueles que não tem abrigo” desde então, o
cristianismo passou a ser visto como “uma espécie de oásis de humanidade em uma época de
regime ditatorial” onde a policia e os ricos da época eram capazes de fazerem grandes
barbáries só que, tal ação viesse ocorrer, o Bispo de Hipona tinha autoridade suficiente para
contestar contra tal ato cometido.

Considerações finais

No decorrer de toda a história da vida de Agostinho dentro de um contexto africano podemos


ver a força que tem a um homem que tem no seu coração a convicção de sua fé, não importa
qual seja sua religião, mas uma coisa é certa, a verdade sempre prevalece, e no desenrolar de
nosso texto tentamos o máximo discorrer a contextualização do cristianismo dos séculos IV e
V enfatizando em especifico os traços culturais da africana agostiniana e a influencia do
cristianismo, apesar de tal sociedade estar contida em crenças em vários outros deuses,
chegamos a conclusão que, a religião cristã influenciou sim a África com sua posição

1441
doutrinária, não como almejava, mas, vemos que a iniciativa foi dada e isso é o era um dos
itens mais importante para igreja.

E toda essa pesquisa veio a ser realizada dentro das pesquisas já elaboradas por um dos
maiores estudiosos do hiponense Peter Brown que dedicou sua vida a estudar a vida do Santo
Padre de Hipona.

Referências

BIBLIA, Thompsom: com versículos em cadeia temática; Antigo e Novo Testamentos /


compilado e redigido por Frank Charles Thompsom; tradução João Ferreira de Almeida. –
São Paulo: Editora Vida, 2012.

BROWN, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho, uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro.
– 7ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2012.

__________. A Ascenção do cristianismo no Ocidente. Tradução de Eduardo Nogueira,


Revisão de Saul Barata. Editorial Presença, 1999.

HAMMAN, A. – G. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

1442
1443
O rosto ambíguo do monoteísmo: libertação e violência na
instituição do monoteísmo no Antigo Testamento
Luiz José Dietrich1

Introdução

Ao lermos certas passagens da Bíblia deveríamos pedir para as crianças saírem da sala. “A
Bíblia é um catálogo de maus costumes”, apresenta um Deus violento ao qual estão
relacionadas muitas crueldades e carnificinas, “é um catálogo de crueldades, e o pior da
natureza humana.”2 Opiniões como esta, de José Saramago, importante escritor português e
prêmio Nobel de literatura, recentemente falecido, podem chocar muitas pessoas que possuem
Bíblia como seu referencial religioso. Claro que devemos reconhecer nas afirmações do
renomado autor certo grau de exagero, dado o contexto coloquial dessas frases. E com certeza
elas não são verdadeiras para a maior parte dos textos da Bíblia. Porém, já isso é um reflexo
da ambiguidade aludida no título. Uma grande parte das pessoas que leem a Bíblia,
frequentam sinagogas ou igrejas, não se dá conta das violências ali presentes. Para elas os atos
e as ordens de Deus não promovem violência, ou pelo menos violências que não sejam, desde
seu ponto de vista, justificadas. Pois o senso comum é que Deus é bom, e quer o bem das
pessoas. E muitos foram levados a crer que essa bondade se manifesta mesmo em seus atos
punitivos. Também é verdade que das comunidades religiosas do judaísmo e do cristianismo
nos chegam muitos relatos a respeito de pessoas que dedicaram e doaram suas vidas em prol
de outras se encontravam em situações de carência, miséria, fome, violência, etc., e também
de muitas instituições que atuaram neste sentido ao longo da história.

Porém, é fato conhecido que em nome do judaísmo e do cristianismo, já foram perpetradas


inumeráveis atos de violência longo da história, e também que ainda hoje presenciamos
muitos casos de intolerância, discriminação e violências cometidas em nome de Deus por
pessoas afiliadas a essas e outras religiões. Embora nos noticiários apareçam como conflitos
religiosos, geralmente as reais motivações são econômicas e políticas. Isso ainda hoje se
verifica em diversos conflitos em áreas produtoras de petróleo, de minérios, pedras e metais
preciosos, áreas com potencial para produção de energia, água e alimentos. Nas áreas em que

1
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor da Pontifícia Universidade Católica doPUC/PR.
Contato: luizdietrich@ig.com.br.
2
http://www.youtube.com/watch?v=UZxFXn07dTE&feature=related

1444
ocorrem estes conflitos e entre as populações e instituições neles envolvidas sempre há
pessoas e grupos que, a partir de sua fé e de determinado entendimento de seus textos
sagrados, participam, legitima e impulsionam estes conflitos, e outros que, também partido de
sua fé e de seus textos sagrados, buscam soluções de diálogo e pela construção de relações de
paz.

Esta ambiguidade vista no comportamento de judeus e de cristãos, seja na história, seja nos
dias de hoje tem suas raízes nas ambiguidades da história de Israel e de sua religião, pois suas
marcas acabaram por ser inscritas em seus textos sagrados. De fato dos textos sagrados se
tiram leituras para a guerra e leituras para a paz.

Esta comunicação visa contribuir para a compreensão da possível gênese dos textos
intolerantes e violentos do Antigo Testamento, e especialmente das concepções teológicas que
incluem e apoiam atos de intolerância, discriminação e violência. Com uma abordagem
histórica propõem-se uma compreensão e uma leitura libertadora destes textos e pistas para a
transformação das teologias deles emanadas.

Violência e libertação no processo de constituição do monoteísmo

De fato há na Bíblia muitos textos que incitam e legitimam a violência contra religiões e
contra as pessoas que nomeiam e cultuam a Deus de outros modos. A violência e a incitação a
atos de violência fazem parte de textos que ao longo da história de Israel serão considerados
sagrados e instituídos como palavras de Deus. Teologicamente a caminhada de Israel vai do
politeísmo ao monoteísmo, “da pluralidade à singularidade” (REIMER, 2009, p. 21-52).
Porém o movimento em direção ao monoteísmo acontece ou sob o patrocínio ou em aliança
com o poder político e carrega alto grau de violência, estando, quase sempre associado a um
projeto de concentração de riqueza, poder e de dominação e tendo uma função importante de
legitimação.

1445
No início, a religião oficial do rei Davi e de sua dinastia (c. 1000 a.C.)

Os primeiros passos na direção do monoteísmo talvez tenham sido dados por Davi, que ao
tornar-se rei após uma série de mortes (1Sm 22-2Sm 5) e em condições muito suspeitas (2Sm
16,5-8), leva um dos principais símbolos religiosos das tribos da região montanhosa central de
Israel, a arca, para dentro das muralhas de Jerusalém (2Sm 6,1-23). Embora a grande
quantidade de guerreiros, necessária para tomar a arca das tribos de Benjamim e Efraim,
possa estar exagerada: “toda a elite do exército de Israel: trinta mil homens” (2Sm 6,1), serve
para revelar parte da violência e da imposição implicada no ato. E após isso a divindade
conhecida com YHWH dos Exércitos (YHWH Sebaot), associada à arca, passa a ser o Deus do
rei e da monarquie davídica. E o culto a YHWH dos exércitos passa a ser uma espécie de
culto oficial.

Isto se torna visível nos vínculo entre a narrativa da luta entre Davi e Golias (1Sm 17,1-18,5)
e a chamada narrativa da arca (1Sm 4,1b-7,1). Estes textos apresentam uma série de conexões
tradicionais e textuais que permitem supor que tenham sido parte de uma redação anterior ao
período de Ezequias e Josias (DIETRICH, 2006, p. 129-135). A divindade comum às duas
narrativas é YHWH dos Exércitos. E assim como em 1Sm 4 YHWH do Exércitos é
representado pela arca, em 1Sm 17 é Davi quem representa YHWH dos Exércitos.

Em 1Sm 4,4 a arca é chamada: “arca da aliança de YHWH dos Exércitos, o entronizado sobre
os querubins” (também em 2Sm 6,2). E em 1Sm 17,45 Davi se apresenta para o combate “em
nome de YHWH dos Exércitos”. E em 2Sm 6,18, quando após estabelecer a arca em
Jerusalém Davi abençoa o povo em nome desta divindade.3

A simbologia nos textos também atesta essa relação. Em 1Sm 17,49 Golias, representando os
filisteus e seu Deus (1Sm 17,43) cairá diante de Davi com sua “face para a terra”. Exatamente
como em 1Sm 5,3 e em 5,4 o Deus filisteu, Dagon, cai diante da arca. Os sacerdotes e
escribas da dinastia davídica representam assim a presença de YHWH dos exércitos em Davi.

E o anacronismo de 1Sm 17,54, que diz que Davi levou a cabeça de Golias para Jerusalém –
que só será conquistada anos mais tarde (2Sm 5,6-10) – além de testemunhar a antiguidade da

3
Além das passagens já citadas, na chamada Obra Histórica Deuteronomista (que compreende os livros:
Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel) o nome YHWH Sebaot é ainda usado em 1Sm 1,3.11 ligado ao
santuário de Silo, em 2Sm 5,10, quando Davi já se encontra em Jerusalém, e em 2Sm 7,8.26.27; ée usado
também em 1Rs 18,15; 19,10,14.31; 2Rs 3,14; e provavelmente também no texto corrompido de 2Rs 19,31.

1446
narrativa, reforça a ligação entre as duas narrativas e a constituição de uma religião oficial,
religião do rei, possivelmente já com Davi ou nos inícios de sua dinastia em Jerusalém.

Porém, possivelmente YHWH tinha como sua jurisdição específica a organização dos
guerreiros e as batalhas em defesa das colheitas, das terras e da vida dos camponeses das
aldeias (cf. Ex 14,14.24-25.27; 15,2-3; Dt 1,30; Jz 4,14-15; 1Sm 4,3-6; 14,6; 17,47, etc.).
Seus rituais deviam envolver um tipo de aliança, ou compromisso, no qual quem ficava nas
aldeias se comprometia a cuidar dos órfãos e das viúvas dos defensores que viessem a morrer.
A partir desse núcleo básico, YHWH pode ter se tornado também o garantidor das relações
éticas de justiça e solidariedade (Ex 22,20-26, Dt 10,18-19; 24,10-22; 27,19; Sl 146,9; Is 1,17;
Jr 7,6). Embora certamente YHWH tivesse algum altar com destaque, e de algum culto
especial nas estruturas urbanas vinculadas à monarquia davídica, nessa época ele era adorado
ao lado de outras divindades, que atuavam nas outras áreas da vida, como Baal, responsável
pelas chuvas e pela fertilidade dos campos, El e Asherá e outras divindades responsáveis pela
fertilidade das mulheres e dos animais, entre outras (SMITH, 2006, p. 131-226; . Mas, a
colocação de YHWH como Deus do rei, da casa davídica, é o primeiro passo no processo que
terminará com YHWH sendo concebido como o Deus único para todo universo e para todos
os povos. A ambiguidade aqui se manifesta no fato de Davi conduzir lutas de libertação das
tribos da Palestina central contra o avanço dos Filisteus que as exploravam (1Sm 13-14; 2Sm
5,17-25). Porém ao encerrar a arca dentro dos muros da cidade por ele controlada, YHWH
dos exércitos passa a ser usado para legitimar seus projetos e o peso social da estrutura
monárquica que vai ganhando corpo com seu governo.

As reformas de Jeú/Eliseu, Joiada, Ezequias e Josias

Muito mais significativas para esse processo serão, no entanto, a série de reformas político-
religiosas efetivadas posteriormente pelas monarquias de Israel e de Judá. Embora não exista
conclusão definitiva sobre o alcance e a profundidade destas reformas, sem dúvida elas
avançam na direção da instituição do monoteísmo.

1447
A reforma de Eliseu e Jeú: YHWH, Deus oficial de Israel (841-814 a.C.)

No reino do norte, Israel, a dinastia de Amri (845-841 a.C.), que a partir de uma aliança com
os fenícios, parece ter adotado Baal e Asherá como divindades oficiais (1Rs 16,31-33; 18,19;
2Rs 10,25-27), será exterminada no contexto de uma guerra com a Síria e num golpe militar
desfechado pelo profeta Eliseu e por Jeú, um dos comandantes do exército de Amri. A
narrativa esmiúça os vários massacres, que culminam com a destruição do santuário de Baal,
das imagens de Baal e de Asherá, e a instituição de YHWH como Deus oficial também em
Israel (2Rs 9,1-10,31). É preciso notar, porém, que esta reforma deve ter se restringido ao
santuário oficial na Samaria e talvez alcançando também os santuários de Betel, Guilgal e Dã
(Am 4,4; 5,5; 7,10-13; 8,14), espaços controlados pelo rei. Nada se diz dos outros santuários
tribais e dos cultos populares nas aldeias, onde certamente Asherá e Baal continuavam sendo
cultuados ao lado de YHWH, das divindades familiares (Elohim) e de muitas outras
divindades e com muitas imagens.

A reforma do sacerdote Joiada: Baal é excluído de Jerusalém (835 a.C.)

Simultaneamente à ação de Jeú e Eliseu no reino do norte é realizada uma reforma no sul, no
templo de Jerusalém (2Rs 11,17-20, cf. 2Cr 23,1-24,16). Embora em menor grau esta também
envolve violência. Atalia era filha de Amri e mãe de Ocozias (2Rs 8,25-26), o rei de Judá
morto na reforma de Jeú. Atalia como Rainha Mãe (no hebr. gebiráh, cf. 1Rs 15,13)
exterminou os filhos sucessores de Ocozias e reinou em Judá por seis anos (2Rs 11,1-3). Esse
curto reinado – única mulher e única pessoa não descendente de Davi que ocupou o trono de
Jerusalém em cerca de 400 anos – terminou num golpe organizado por Joiada, sacerdote chefe
de Jerusalém (cf. 2Rs 12,8), com os guardas do templo e com o “povo da terra” (grandes
proprietários de terras que apoiavam política, militar e financeiramente à dinastia de Davi,
2Rs 11,14.18.19.20; cf. 16,15; 21,24; 23,15.20; 25,19). Joiada, com o “povo da terra” também
destroem o templo e os altares de Baal em Jerusalém, matam Matã, o sacerdote de Baal.
Parece ter havido uma aliança em que o rei e o povo da terra comprometiam-se a ser povo de
YHWH. Sua ação, no entanto, não deve ter ido muito além do templo, ou dos arredores do
templo de Jerusalém. É um prelúdio das reformas que serão empreendidas por Ezequias e
Josias em territórios mais amplos.

1448
A reforma de Ezequias (716-687 a.C.)

Pouco antes de Ezequias assumir o poder em Jerusalém a Assíria conquistou o reino de Israel
e destruiu Samaria (722 a.C.). O império assírio seguirá crescendo por amis algumas décadas
até incluir parte do Egito. Embora com o império assírio dominando todas as regiões
importantes ao seu redor, Ezequias busca manter Judá como um reino independente. Sua
reforma situa-se esse contexto de resistência. Ezequias prepara-se para uma guerra com o
exército assírio. Amplia o fornecimento de água cavando na rocha um canal de pouco mais de
500 m, que hoje é chamado de “o túnel de Ezequias”, levando água da fonte de Gion para
dentro de Jerusalém (2Rs 20,20; 2Cr 32,30; Eclo 48,17; Is 22,11). Também aumenta a área da
cidade, para que ela possa acolher tanto fugitivos do reino de Israel (722 a.C.), como os
nobres das 46 cidades dos arredores de Jerusalém (cf. 2Cr 30,18.25; 2Rs 22,14)4, que foram
saqueadas por Senaquerib em 701 a.C. (2Rs 18,13; 2Cr 32,1,) reforça o tamanho e a espessura
das muralhas que cercavam a cidade de Jerusalém (2Cr 32,5; Is 22,9-10).

É neste contexto de forte preparação militar que se dará uma importante modificação
teológica em Judá. Ezequias faz o reino de Judá adorar somente a YHWH e centraliza seu
culto em Jerusalém. É para lá que deverão a partir de agora serem levadas todas as oferendas
que anteriormente eram feitas fora de Jerusalém. Todos os santuários e cultos fora de
Jerusalém são proibidos, sejam eles dedicados a “outros Deuses”, às Deusas, ou mesmo a
YHWH. Todos os santuários, locais de culto (os “lugares altos”) fora de Jerusalém são
condenados e destruídos. Todos os outros Deuses e Deusas, e suas respectivas imagens são
destroçados e proibidos. A ideia é que para ter a proteção de YHWH, contra o poderoso
império assírio, Judá deve fazer uma aliança de adoração exclusiva a YHWH, ser o povo de
YHWH, para que YHWH seja o Deus de Judá (2Rs 18,3-6; 2Cr 29,1-31,1).

Como visto anteriormente, YHWH, no mundo politeísta vigente até então, era provavelmente
a divindade que patrocinava, guardava e dirigia os guerreiros encarregados da defesa armada
das vilas camponesas. Desde Davi era também o Deus do rei, da dinastia davídica. Com
Ezequias YHWH passará a ser o Deus nacional de Judá. No entanto, para ser a divindade
nacional, única divindade de Judá, sua jurisdição tem de abarcar todas as áreas da vida.
YHWH será então identificado com as divindades clânicas, familiares, chamadas
4
Nesse período, em menos de 20 anos a área cercada por muralhas em Jerusalém passou de 5 hectares (50.000
m2/0,05 Km2) para 60 hectares (600.000 m2/0,6 km2), e a população que vivia em seu interior passou de 1.000
ou 2.000 para 15.000 habitantes (cf. FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 29-331; LIVERANI, 2008, p.
195-199). Uma avaliação divergente, com números maiores, é apresentada por SHNIEDEWIND (2011, p. 98-
106). Porém este autor parece superestimar a importância de Jerusalém no tempo de Ezequias.

1449
genericamente de Elohim, e também com El, o grande Deus supremo do panteão cananeu (Dt
10,17), sendo que os cultos oficiais passam a atribuir a YHWH tanto as funções dos Elohim e
de El, como também as de Baal, de Asherá, de Astarte e de muitas outras que serão banidas
(Dt 28,1-68; cf. 7,12-16; 11,13-17: Ex 12,1-13,16). Com isso, funções, anteriormente
atribuídas a outras divindades, como a fertilidade das mulheres e dos animais, seus
primogênitos, a fertilidade e as primícias dos campos, a chuva, amor, saúde, doença, morte,
etc., paulatinamente são transferidas a YHWH (cf. Gn 20,18).

Essa tremenda centralização religiosa que tem como objetivo a centralização de todas as
oferendas em Jerusalém. Sacrifícios e oferendas que antes estavam dispersas em centenas de
locais sagrados, agora eram todas direcionadas a Jerusalém. Com isso Ezequias visa estocar
mantimentos e obter produtos para comerciar e obter recursos para suas obras, equipar seu
exército e o fortalecer suas defesas (2Cr 31,4-12). Porém a centralização religiosa foi feita,
como sempre acontece, com muita imposição e violência (2Rs 18,4.22; Is 36,7; 2Cr 30,13-14;
31,1). E como uma série de textos da chamada “Obra Histórica Deuteronomista” (Js, Jz, 1 e
2Sm, 1 e 2Rs), do Pentateuco e de vários livros dos profetas tiveram sua redação iniciada
nessa época, o rosto deste YHWH oficial violento, exclusivista, centralizador,
homogeneizador e intolerante ficou gravado na Bíblia.

A reforma de Josias (640-609 a.C.)

O que Ezequias fez em Judá, Josias sonhou fazer em todo Israel. Josias assume o poder
quando a Assíria, em decadência, é expulsa do Egito e se retira da Palestina. A reforma
centralizadora de Josias segue a inspiração e a pauta da reforma de Ezequias. Porém Josias
sonha estender o poder de Jerusalém, da casa de Davi, abarcando além de Judá também o
território do antigo reino do norte. Nos textos do Pentateuco e dos Livros Históricos redigidos
nessa época Josias projeta o ideal das 12 tribos unidas, adorando a um só Deus, seguindo a
um só homem, em aliança com YHWH. Mostra Moisés, Josué, os Juízes, Samuel, Saul e Davi
numa linha sucessória designada por YHWH, sempre realizando o papel que ele sonha para
si: as doze tribos unidas em um só povo, seguindo a um só homem e, todos adorando somente
a YHWH e somente em Jerusalém. A reforma de Josias veio após o longo reinado de
Manassés que foi completamente submisso à Assíria e deve ter reestabelecido o culto às
outras divindades em Jerusalém e em Judá e (2Rs 21,1-17). Com Josias YHWH passa a ser “o

1450
Deus de Israel”. Para realizar seu sonho de construir um pequeno império, projetado na mítica
imagem do império davídico-salomônico, criada pelos escribas e sacerdotes de Josias5, Josias
terá de enfrentar o faraó, que também pensa assumir o controle sobre o espaço vazio deixado
pelos assírios em retirada.

Como Josias terá mais condições políticas e militares de promover sua reforma e integrar em
seu domínio político o reino do norte – que o poder assírio em seu ápice não permitiu a
Ezequias – sua ação certamente terá um componente de violência maior (2Rs 23,4-23; 2Cr
34,3-7). A ampliação do domínio político sobre as terras e tribos do norte, a violência contra
os santuários, os Deuses e Deusas cultuadas há séculos, a violência contra seus sacerdotes,
sacerdotisas (2Rs 23,5-7.14.16.20) e seguidores necessita de uma justificativa forte e muito
bem elaborada. Com essa função grande parte do atual Pentateuco, dos livros da Obra
Histórica Deuteronomista, dos livros dos profetas pré-exílicos, de Provérbios e Salmos foram
redigidos de modo a dar suporte teológico e legitimação religiosa para a ação de Josias.

Muitos textos de Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio e dos Livros Históricos, com
YHWH ordenando que sejam mortos os cananeus, que seus templos, Deuses e imagens sejam
totalmente destruídos, provavelmente são redigidos nessa época, como Dt 13, o livro de
Josias, etc. Inscrevem no passado uma ordem dada por YHWH (a partir do “livro da Lei”,
“descoberto” no templo, provavelmente Dt 12-26 ampliado) que nunca teria sido seguida pelo
povo de Israel, mas que agora Josias estava decidido a implantar, com apoio de YHWH (2Rs
23,1-3).

E nestes textos transparece toda a ambiguidade da teologia oficial dessa época. Como o
principal adversário político de Josias é o faraó do Egito, YHWH será mostrado como o Deus
do Êxodo: “Eu sou YHWH teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”
(Ex 20,1). E o êxodo será descrito como uma luta entre o faraó, com seus Deuses e seu
exército de um lado (Ex 12,12; 14,25-28; 15,1-11), e do outro YHWH e “os filhos de Israel”,
as doze tribos unidas, sob o comando de um só homem, em aliança com YHWH (Ex 6,1.6-7;
7,4-5; 8,6; 10,1-2). Usa-se e reforça-se o sagrado rosto de YHWH, como um Deus libertador,
defensor da vida dos oprimidos, forjado desde a antiguidade no culto dos camponeses
armando a defesa de suas colheitas, sua liberdade e de suas vidas, refletido numa das mais
belas passagens da Bíblia: “YHWH disse: eu vi, eu vi, a miséria do meu povo que está no
Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso

5
Divergindo da interpretação apresentada por William M. SCHNIEDEWIND, citada na nota anterior.

1451
desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios” (Ex 3,7-8a; cf. 2,23-25; 6,5; At 7,34). Mas esse
sagrado rosto do YHWH que defende e promove a vida é posto a serviço do projeto de
dominação de Josias e usado para justificar toda a violência necessária para sua efetivação: a
“terra boa e vasta, terra que mana leite e mel”, que YHWH promete para o seu povo, é a terra
dos “cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus” (Ex 3,8b),
e estes povos deverão ser exterminados! YHWH mesmo vai ajudar a exterminá-los (Ex 23,23-
33). Estes povos deverão ser excluídos, desterrados, atacados e mortos ou escravizados por
quê? Somente porque adoram a outros Deuses, possuem imagens, cultuam suas divindades de
formas e modos diferentes daquele que Ezequias e Josias estão estabelecendo em suas
reformas centralizadoras da religião, com objetivos econômicos, políticos e militares.

Dêutero-Isaías: o rosto libertador do monoteísmo

As reformas de Jeú, Joiada, Ezequias e Josias avançam para a monolatria, ou henoteísmo:


adorar a um só Deus, porém reconhecendo a existência de outros Deuses, como, por exemplo,
Ex 20,3; 22,19; Dt 10,17; Js 22,22; 95,3; 96,4; 135,5; 136,2-3. Ainda não se chegou ao
monoteísmo, que é a crença de que só existe um Deus, não admitindo a existência de qualquer
outra divindade. Tal teologia só será alcançada entre os exilados da segunda deportação (587
a.C.), na Babilônia, por volta dos anos 550 a.C6. O Dêutero-Isaías (Is 40-55), escrito
elaborado, por esse grupo encontra-se recheado de afirmações como estas: “...eu sou: antes de
mim nenhum Deus foi formado, e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu sou YHWH, e
fora de mim não há nenhum Salvador.” (Is 42,10-11) Ou: “Assim diz YHWH, o rei de Israel,
YHWH, Deus dos exércitos, o seu redentor: eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há
Deus.”(Is 44,6); “Eu sou YHWH, e não há nenhum outro, fora de mim não há Deus.”(45,5)

Em Is 40-55 estão as afirmações monoteístas mais antigas da Bíblia Hebraica 7. Por trás deste
escrito estão os grupos de exilados da segunda deportação, muitos dentre eles eram levitas do
interior. Na luta contra opressão imperial, começam a afirmar que as Deusas e Deuses

6
Podem ter recebido influências do Mazdeísmo propagado pelo profeta Zaratustra (em gr. Zoroastro), instituído
como religião oficial persa mais ou menos nessa mesma época, que também propõe a existência de um único
Deus: Ahura Mazda. Ahura Mazda, a divindade única responsável pelo bem, tem um adversário, o Deus Harimã,
responsável pelo mal e pelo caos. Embora por isso o Zoroastrismo seja melhor qualificado como “monoteísmo
dualista”, há diversos pontos de contato com judaísmo, cristianismo e islamismo: possui um livro sagrado
revelado, Zend-Avesta, anuncia a vinda de um Messias nascido de uma virgem, e crê num juízo final.
7
As afirmações monoteístas encontradas em páginas ou livros anteriores a Is 40-55, como Dt 4,35.39; 32,39, são
provavelmente marcas de releituras exílicas ou pós-exílicas, onde a própria linguagem revela seu vínculo com o
texto de Is 40-55.

1452
babilônicos, que apoiavam e legitimavam a violência, a escravidão e a opressão, não são
Deuses. As divindades babilônicas opressoras e suas imagens na verdade nada são (Is 44,9-
20). Dessa forma começam a estabelecer a concepção monoteísta da fé de Israel (Is 43,10-13;
44,6-8; 45,5-6.21; 46,9;). Revela-se aqui o coração sagrado e libertador do monoteísmo: a
única divindade verdadeira é a que está junto aos oprimidos em luta contra a opressão. O
critério para estabelecer essa classificação é mais a função exercida pela divindade do que o
seu nome, suas características ou forma de culto. Como em Ex 3,14, a verdadeira divindade é
definida mais por uma ação do que por um nome ou por uma forma de culto. “EU SOU”, eu
sou o que sou para vocês, eu sou o que serei, o que estou sendo, presença solidária e
libertadora junto a vocês. Na sua resistência e luta por liberdade e dignidade os exilados
contam as histórias antigas acrescentando essas releituras e nelas refundam forças para manter
acesa a esperança da libertação e do retorno à terra de Judá.

No pós-exílio: Monoteísmo e violência em nome de Deus

Estas releituras, no entanto, irão consolidar-se nos escritos bíblicos somente após o retorno
dos exilados, a partir de 530 a.C., quando o rei Ciro da Pérsia irá derrotar o império
Babilônico e libertar os exilados. E principalmente entre 515-400 a.C., quando os persas
apoiarão a reconstrução do Templo, das muralhas e da cidade de Jerusalém, com o envio de
Neemias e do sacerdote Esdras.

No conflito que se estabelece com a volta dos exilados, que encontram os latifúndios de seus
antepassados ocupados há mais de 50 anos pelos camponeses remanescentes aos ataques
Babilônicos. Parte dos exilados, buscando reaver sua condição de latifundiários e nobres, irão
usar muitas das intuições e instituições libertadoras criadas no exílio para menosprezar,
condenar e excluir os camponeses remanescentes na terra de Judá.

Entre os anos 450-400 a.C. os sacerdotes, organizados a partir do novo Templo, serão
confirmados como intermediários entre o povo e o império persa, e com o transformação da
Judéia em uma província persa, os sacerdotes irão exercer o poder em nome de Deus. Esse
governo teocrático irá a impor nova concepção de Deus, do povo de Deus e do pecado.
YHWH será agora será considerado como Deus único e universal (Dt 4,39; 1Rs 8,60).

Porém, os elementos libertadores, que constituíam a sacralidade do monoteísmo nascido na


resistência à escravidão do exílio, foram substituídos por uma sacralidade ligada ao nome da

1453
divindade, a um lugar sagrado, a um conjunto de determinados rituais e leis e a uma
hierarquia sacerdotal bem definida. O nome será tão sagrado que só poderá ser pronunciado
pelo sumo sacerdote, e num ritual realizado uma só vez por ano (Lv 16). O templo, casa desta
divindade, é considerado o lugar mais sagrado do país, com espaços exclusivos aos
sacerdotes. Outra pessoa que adentrar a esses espaços é punida com a morte (Ex 19,13; Nm
1,51; 3,10; 2Cr 23,19). Faltas rituais serão punidas com a morte (Lv 20,1-21; 23,29-31; 24,10-
23; Ex 19,12; 31,14-15; Nm 15,32-36; 25,1-18) ou com a exclusão (Lv 10,11; 11,24-28.31-
45; Mc 2,15-17). A pureza racial e ritual torna-se o critério básico para definir quem pertence
ou não ao povo de Deus. E o pecado é agora definido pelas leis de pureza e impureza,
conforme o livro do Levítico. É nesse processo, aliás, que o Pentateuco – Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio – receberá a forma em que se encontra hoje em nossas
Bíblias. Serão promulgados como livros sagrados pelas autoridades do segundo Templo e
impostos como lei de Deus – e do rei – com apoio dos persas (Esd 7,25-26). E a
desobediência a essas leis poderá ser “castigada rigorosamente; com a morte ou o desterro,
com multa ou prisão.”

E Jesus? E o cristianismo?

Jesus, com certeza, herdou de seu povo uma concepção monoteísta de Deus. Porém
certamente não era a concepção definida pela teologia oficial de seu tempo, embasada tanto
na teologia centralizadora de Ezequias e Josias, como no monoteísmo legitimador da exclusão
e justificador de violências, hierarquias e privilégios dos sacerdotes do segundo templo. Essa
era na realidade, a teologia das pessoas que oficialmente condenaram Jesus à morte, ou
apoiaram essa condenação. E que nas décadas seguintes perseguiram e excluíram parte dos
primeiros seguidores e seguidoras de Jesus.

No entanto, hoje a ambiguidade representada pelo paradoxo dos atos de discriminação,


intolerância e violências cometidos por cristãos, em nome de Jesus, deveria levar os cristãos a
uma profunda reflexão e a uma reavaliação das raízes intolerantes desse cristianismo. Pois as
violências hoje, praticadas por grupos cristãos, em nome do evangelho de Jesus, revelam que
no decorrer da história do cristianismo aconteceu uma grande perversão. É isso que se pode
concluir da existência de grupos e pessoas cristãs que patrocinam, incitam e apoiam atos
discriminatórios e violentos. Transformações ao longo dos anos terminaram por colocar na
boca de Jesus a teologia das pessoas que o condenaram. O monoteísmo que legitimou a

1454
condenação Jesus tinha características semelhantes a este monoteísmo trinitário cristão que
promove, ou aceita calado, atitudes discriminatórias, intolerantes e violentas contra partes das
culturas e das religiões dos povos africanos e afrodescendentes, dos povos nativos das
Américas, e muitas outras etnias e religiões diferentes. Esse mesmo monoteísmo exclusivista,
homogeneizador manifesta-se também em posturas violentas contra as pessoas que mantem
ou desejam manter relacionamentos homo afetivos, ou combatendo as propostas que visam
reconhecer os direitos de tais pessoas a viverem suas orientações ou opções sexuais.

Tais teologias afastam-se muito da teologia de Jesus. Formaram-se certamente nos séculos
seguintes à morte de Jesus, quando uma corrente do cristianismo tornar-se-á religião oficial
do império romano. Nesta situação se fortalecerão as tendências centralizadoras,
hierarquizadoras, homogeneizadoras e exclusivistas dentro do cristianismo nascente para que
este pudesse cumprir o papel desenhado, não por Jesus, mas pelos objetivos e desejos do
império romano e de seus aliados. A colonização desse cristianismo será alimentada e
aprofundada depois do império Bizantino ainda pelo papel do cristianismo no império
colonial Britânico, no império Espanhol, no império Português, e também no domínio
imperial norte-americano.

Considerações finais

Uma leitura histórica e descolonizadora (DIETRICH, 2010, p.11-21) talvez possa resgatar
esse núcleo sagrado do judaísmo e do cristianismo, núcleo esse parcialmente soterrado sob a
grande carga de imperialismo, legalismos e ritualismos embutidos nos monoteísmos oficiais.
Uma releitura em perspectiva ecumênica e inter-religiosa pode superar as práticas
colonialistas e imperialistas e a compreensão exclusivista e homogeneizadora associadas ao
monoteísmo cristão, e saberá reconhecer que em todas as religiões existe um núcleo sagrado
direcionado à promoção e à defesa da vida, à prática do amor. Esse núcleo confere igual
dignidade às religiões de todos os povos.

No entanto a presença de muitas guerras, atitudes de discriminação, intolerância e violências


em nome de Deus ainda tão presentes em nossos dias e em nossa sociedade, tão
abundantemente marcada por nomes e símbolos cristãos, igrejas, cultos e celebrações, ao
mesmo tempo em que revelam a necessidade urgente de tais releituras, revelam também que
ainda estamos muito longe delas. A indiferença - quando não o incitamento – vigente em

1455
muitas das igrejas, aliada à indiferença frente às injustiças e às ainda escandalosas diferenças
sociais que caracterizam nossa nação, o individualismo insensível que se revela na oposição e
no combate à políticas de ordem compensatória e distributivista, e à intolerante e
antidemocrática beligerância contra políticas de Direitos Humanos, mostram que longe de um
“Reino de Deus”, estamos mergulhados no reino das ambiguidades, que sacralizam interesses,
hierarquias, concentração de poder e riqueza, muitas vezes legitimando-se com teologias e
discurso pretensamente defensores e promotores da vida.

Referências

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REIMER, Haroldo; SILVA, Valmor da (orgs.). Hermenêuticas bíblicas. Contribuiçõe ao I
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1456
1457
Protestantismo e culturas populares tradicionais: arranjos,
rearranjos e interações
Lauana Ananias Flor1

Introdução

Este artigo2 sugere uma breve discussão de um tema pouco contemplado pela historiografia
do protestantismo3 no Brasil. Muito focado em grandes personagens e embates polêmicos, o
protestantismo construiu a sua imagem representativa de forma porosa, pois digna de
questionamentos atualmente legítimos diante dos estudos das religiões. A proposta é
desvencilhar-se deste modus operandi e abordar temas incomuns, no caso, a participação
efetiva de pessoas simples e comuns do meio rural, na propagação de idéias protestantes
transmutadas para a realidade cotidiana.

No contexto brasileiro, muito se tem pesquisado acerca do protestantismo, porém não mais do
que o catolicismo, religião hegemônica em nosso país. É de praxe falar do catolicismo para
depois se mencionar o protestantismo, ambos constantemente em oposição. Diante de tal fato,
conclui-se que quando as pesquisas giram em torno do tema das culturas populares
tradicionais e as suas expressões religiosas, estas são comumente ligadas ao catolicismo, o
que evidencia uma constante ausência ou negação deste tema relacionado ao protestantismo
no Brasil, questão que aqui será questionada.

Enquanto o catolicismo, de certa forma, legitima e autoriza várias formas de crenças e até
mesmo ‘superstições’, o protestantismo e sua historiografia demonstram uma imagem
negativa do tema, por ressaltar principalmente o seu caráter civilizador, vinculando-o a
suposta superioridade dos ideais anglo-saxões, propagados pelos representantes do
protestantismo norte-americano.

1
Mestre em Ciências da Religião pela UMESP, com apoio do CNPQ. Graduada em Teologia pelo Mackenzie.
Orientador: Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth. Contato: lauana_correa@yahoo.com.br.
2
O artigo procede de parte da discussão apresentada por mim na dissertação: Manoel Moises, Mãe Bela e o
protestantismo rural na história da Igreja Presbiteriana em Cabeceira Grande (IPCG) - MG (1947-1970) em
2012.
3
Embora tenha como objeto de pesquisa o presbiterianismo, usarei o termo protestantismo constantemente,
devido ao fato de que nem sempre há a especificação nas fontes pesquisadas.

1458
De forma geral, acredita-se que o protestantismo se revela através de suas próprias
representações, e por tal razão, inviabiliza a compreensão das dinâmicas sociais. Segundo
Roger Chartier, historiador francês, consolidado na Nova História Cultural, “a representação
transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que produz
uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à força
bruta” (1990, p. 186). Neste sentido, o pensamento de Chartier sugere a submissão crítica
de “legados interiorizados e os postulados não questionados de uma forte tradição
historiográfica” ao mesmo tempo em que abre espaço para “compreender as práticas
complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”
(CHARTIER, 1990, p. 28). Se, como apregoa Chartier, o mundo é tido como representação,
se verá que:

Um uso ‘popular’ da religião modifica-lhe o funcionamento. Uma maneira de falar essa


linguagem recebida a transforma em um canto de resistência, sem que essa metamorfose
interna comprometa a sinceridade com a qual pode ser acreditada, nem a lucidez com a
qual, aliás, se vêem as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida
(CERTEAU, 2008, p. 78).

Mas como mostrar, não outra imagem do protestantismo brasileiro e sim, uma imagem
simplesmente diferente, aquela que está fora da história institucional e confessional? Como
mostrar a interação do protestantismo com as culturas populares tradicionais? Nesse
sentido, tendo como foco de estudo o presbiterianismo, pode-se apontar para a pesquisa de
Lidice Meyer P. Ribeiro e sua idéia de um protestantismo rural, ao afirmar que:

Observa-se no lençol de cultura caipira, delimitado por Antonio Candido, a existência de


um protestantismo que difere do protestantismo tradicional e urbano por apresentar
características próprias, incluindo crenças e interpretações que se assemelham mais ao
catolicismo rústico que ao protestantismo propriamente dito. Este protestantismo que
passo a denominar de protestantismo rural contrasta nitidamente enquanto ethos, modo
de operação e modo de vida do protestantismo urbano (2009, p. 189).

Esta idéia de um protestantismo rural originalmente é fruto de um trabalho de campo, o qual


teve por base o contexto da Igreja Presbiteriana em São João da Cristina, um bairro rural no
município de Maria da Fé, região sul de Minas Gerais (RIBEIRO, 2005; 2009). Segundo
Lidice Ribeiro, esse tipo protestante se desenvolveu em locais onde “não havia uma religião
oficial pré-estabelecida hegemonicamente contra a qual necessitasse de contrapor-se” e assim

1459
este “teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma nova forma religiosa: o
protestantismo rural” (2009, p. 201).

Assim, a idéia de um protestantismo tipificado como rural, embora em todo o momento a


discussão gira em torno do presbiterianismo, já é grande avanço para uma melhor
compreensão do que vem a ser protestantismo no Brasil. A suspeita é a de que o
protestantismo rural é portador de especificidades pouco contempladas pela historiografia do
protestantismo e pelas memórias institucionais. Esta especificidade se revela na articulação
entre a fé protestante e as culturas populares tradicionais no âmbito da vida cotidiana, das
relações familiares, da festa e na luta pela sobrevivência.

De fato, o protestantismo rural consegue colocar em discussão questões esclarecedoras e


originais, embora fique claro que ele próprio ergue-se em um espaço de rupturas e,
principalmente de continuidades, em um contexto de pouca ou esparsa assistência religiosa
por parte do catolicismo.

A hipótese aqui apresentada sugere que há processos de ocultação e/ou invisibilização na


historiografia do protestantismo diante de determinadas imagens que não representam a
ideologia hegemônica, ou seja, o apego aos ideais anglo-saxões e à herança do protestantismo
puritano, de origem norte-americana, fatores típicos do protestantismo de grande tradição. É
possível supor que os representantes desta ideologia fortemente impressa na concepção do
que vem a ser protestantismo no Brasil, pelo espaço privilegiado que possuíam, produziram a
própria historiografia, representativa de uma pretensa totalidade, o que pode ser questionado.
Sobre isso, têm-se algumas pistas diante do exposto por Michel de Certeau, ao indicar que:

Os ‘crentes’ rurais desfazem assim a fatalidade da ordem estabelecida. E o fazem utilizando


um quadro de referência que, também ele, vem de um poder externo (a religião imposta
pelos missionários). Reempregam um sistema que, muito longe de lhes ser próprio, foi
construído e propagado por outros, e marcam esse reemprego por “super-ações”,
excrescências do miraculoso que as autoridades civis e religiosas sempre olharam com
suspeita, e com razão, de contestar às hierarquias do poder e do saber a sua “razão” (2008,
p. 78).

Diante do exposto acima, se torna necessário desvincular o protestantismo de suas imagens


representativas. Estas imagens comumente são construídas nas fontes impressas e nos

1460
discursos eclesiásticos e oficiais. Elas são válidas como ferramentas da máquina institucional,
na criação de outra mentalidade, que desqualifica direta ou indiretamente o sujeito religioso e
a sua própria experiência religiosa. Sobre o tema das práticas e das representações, discutindo
também a questão da apropriação, Chartier sugere que:

o consumo cultural [...] pode assim escapar à passividade que tradicionalmente lhe é
atribuída. Ler, olhar ou escutar são, efetivamente, uma série de atitudes intelectuais que –
longe de submeterem o consumidor à toda-poderosa mensagem ideológica e/ou estética que
supostamente o deve modelar – permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a
desconfiança ou resistência (1990, p. 59).

Desta maneira, é possível refletir sobre a recepção e o consumo da mensagem protestante,


focando a recepção e não a emissão desta, tendo como foco o cotidiano. Para Certeau “o
cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (2008, p. 38). No cotidiano, a
mensagem religiosa escapa à passividade imposta pelas representações do protestantismo,
pois:

Aí, se manifesta a opacidade da cultura “popular – a pedra negra que se opõe à


assimilação”. O que aí se chama sabedoria define-se como trampolinagem, palavra que um
jogo de palavras associa à acrobacia do saltimbanco e à sua arte de saltar do trampolim, e
como trapaçaria, astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos
contratos sociais. Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço
instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por
não ter um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de representações estabelecidas
(2008, p. 79).

Protestantismo e mundo rural

Ora, é sabido que o protestantismo, mesmo tendo que em muitos espaços digladiar-se com o
catolicismo, tinha no universo rural o principal local de recepção de sua mensagem. Segundo
Lídice Ribeiro, pesquisas apresentadas por Emílio Willems, Maria Isaura Pereira de Queiroz e
Carlos Rodrigues Brandão apresentam o protestantismo convivendo simultaneamente com o
catolicismo rural e por tal razão, neste ambiente, adquiriu “características mais fortemente
diferenciadores e contrastantes do catolicismo, em prol de se firmar pela oposição,
desenvolvendo-se dentro dos parâmetros do protestantismo tradicional” (2009, p. 220s). Mas,

1461
longe da supremacia do catolicismo rural, o protestantismo rural desenvolveu “crenças e
práticas diferenciadoras” pelo fato de ter-se originado “num amálgama com as crenças já
existentes em nosso país” (RIBEIRO, 2009, p. 221).

O protestantismo rural possibilitou arranjos e rearranjos diferenciados do protestantismo dito


oficial. É o tipo que se pressupõe ser capaz da interação com as culturas populares
tradicionais. No entanto, é necessário assinalar que o protestantismo rural possui influências
do protestantismo tradicional e urbano. Para Lidice Ribeiro, há uma diversidade no
protestantismo e muitas variantes que surgiram no Brasil somam-se ao protestantismo rural,
que se expressa como mais uma vertente, um matiz dos “protestantismos brasileiros”:

Apesar de o protestantismo ser uma religião oriunda de outro país, trazida por missionários,
esta exerceu o famoso “jogo de cintura” brasileiro, se ajustando à cultura de raiz que
encontrou aqui, mantendo seus dogmas e ritos, apesar de reinterpretado, criando, assim, um
protestantismo genuinamente brasileiro (RIBEIRO, 2009, p. 223) .

A premissa básica para o surgimento deste tipo protestante é a ausência ou ineficiência de


uma religião estabelecida de forma hegemônica e desta maneira, as características principais
do protestantismo rural assumiram facetas presentes na sociedade rural brasileira. Se a
religiosidade popular, de forma geral, possui uma lógica própria, esta lógica gira em torno de
dois elementos centrais: o amálgama das crenças populares gira em torno da fé e do festar no
cotidiano (Machado, 1998, p. 175).

Em suma, defende-se a idéia de que o protestantismo rural, com as suas características


próprias em torno da questão do lúdico e da familiaridade com o sagrado (RIBEIRO, 2005;
2009) consegue, em grande medida, desvencilhar-se do protestantismo tradicional, portador
de suas próprias e específicas representações do mundo e que, por tal razão, assume a
interação com as culturas tradicionais do Brasil.

Desde a chegada do protestantismo ao Brasil nota-se que o povoamento do país era rarefeito,
dando a constituição de um mundo rural que teve o seu predomínio relativizado somente
depois da segunda metade do séc. XX, quando então se passa à transição do predomínio do
urbano. Observa-se que as características do mundo urbano vão efetivamente se entranhar na
sociedade brasileira somente a partir das décadas de 1960 e 1970

1462
Tais questões acima colocadas evidenciam o ambiente de interação cultural e social do
protestantismo, diante de sua inserção no Brasil e durante todo o seu processo de organização,
estabelecimento e desenvolvimento que ocorreu também diante de um lento e esparso
desenvolvimento do país.

É recorrente a afirmação de que a pregação protestante nas zonas rurais foi valorizada, e sem
sombra de dúvidas, foi uma franca estratégia de inserção, prática adotada no final do século
XIX, principalmente entre os presbiterianos. Segundo Willian Read, este padrão missionário
foi implantado por José Manoel da Conceição (1822-1873)4, e todos os campos missionários
passaram a segui-lo (s/d, p. 50).

Especificamente o presbiterianismo, apesar de ter dado os primeiros passos em grandes


centros populacionais do século XIX, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, não
foi capaz de atingir as “classes dominantes” fortemente imersas na religião católica, não só
por motivos religiosos, mas principalmente, devido às causas políticas (MENDONÇA, 2008;
RIBEIRO, 2009).

Contudo, longe dos centros mais povoados ao longo da costa brasileira, o protestantismo
soube aproveitar as brechas e fissuras para a sua inserção nas zonas rurais. Antonio Gouveia
Mendonça, discutindo especificamente as origens do protestantismo, levanta três razões
possíveis para tal ocorrência: o protestantismo chegou ao Brasil num momento histórico-
social favorável a tal acontecimento, desenvolveu-se na camada livre e pobre da população
rural e seguiu a trilha do café (2008, p. 28). Segundo a análise do autor, que tem como objeto
de compreensão os presbiterianos5, o protestantismo além da trilha do café foi
predominantemente urbano e de rarefeita intensidade (MENDONÇA, 2008, p. 184). Read
também demonstra tal questão ao afirmar que:

Os missionários presbiterianos pioneiros iniciaram nas cidades, sua obra no Brasil. Nesse
período, fundaram igrejas no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia e no Recife. Todas se
constituíram em centros importantes, mas foi escasso e muito lento o êxito obtido pelos
missionários. De modo geral, podemos afirmar que o trabalho missionário nas duas

4
José Manoel da Conceição é considerado o primeiro brasileiro a se tornar pastor presbiteriano. O ex-padre foi
ordenado em 17 de dezembro de 1865.
5
Mendonça (2008) justifica tal opção por afirmar que o ramo protestante brasileiro que mais se expandiu no
recorte cronológico de sua pesquisa (periodo final do Império, a partir de 1859) foi justamente os presbiterianos.

1463
primeiras décadas, limitou-se aos centros situados ao longo da costa, em função do fácil
acesso. Com a conversão e influência de Conceição, logo essa concentração única nas
cidades foi modificada (s/d, p. 50).

Emille G. Léonard, ao discutir também a questão de inserção do protestantismo afirma que


“foram os simples sitiantes que em certas regiões constituíram o ambiente privilegiado para o
desenvolvimento do protestantismo brasileiro”, tendo por base, dentre outros, os sitiantes de
Brotas, Dois Córregos, Rio Claro, regiões paulistas e também, Borda da Mata, em Minas
Gerais (2002, p. 111). Nesse sentido, o historiador francês ainda aponta que “os nomes de
fazendeiros são numerosos ao estudarmos a origem das igrejas protestantes no Brasil e pode-
se dizer que a maior parte destas comunidades nasceu nas próprias fazendas”, embora
Léonard também mencione o fato de que, nas fontes pesquisadas, “a distinção entre
fazendeiros e sitiantes é difícil e delicada” (LÉONARD, 2002, p. 110).

O que se pode intuir com esta exposição de fatos é que o ambiente fundante do protestantismo
brasileiro estava diretamente relacionado ao mundo rural de fazendeiros e sitiantes e as suas
respectivas famílias. Vale destacar que são esses sitiantes e moradores das zonas rurais que
carregam no cotidiano os elementos e crenças sem forte embasamento nas religiões
institucionalizadas, mas muitas vezes discriminados nas representações impostas, quando não
eliminadas da memória institucional.

Diante de tais fatos, fica também a questão da ausência dos consumidores da mensagem
religiosa na historiografia protestante e consequentemente, a inexistência da relação do
protestantismo com as culturas populares tradicionais no contexto brasileiro. Nota-se que no
que diz respeito ao contexto fundante e ao período posterior, chegando ao marco de um
centenário, este mesmo ambiente se refere ao aqui denominado universo das culturas
populares tradicionais. Diz respeito ao mundo caipira, sertanejo e de tantas outras expressões
culturais regionais, onde o protestantismo se colocou como uma opção religiosa.

Sabendo que o tema das culturas populares é por demais complexo, o que gera uma enorme
discussão, ressalta-se aqui, não um profundo estudo sobre a questão e sim, a opção pelo
sentido de interação entre este tema, a sociedade e a religião. Se conforme Euclides Marchi, a
discussão sobre cultura gerou a conclusão de que “ela é a totalidade dos produtos e atividades
de um povo, sejam eles de caráter social como os usos e costumes ou de caráter religioso,

1464
como as crenças, rezas e rituais” é aceitável então, a ideia de que “a cultura estrutura a
sociedade e é por ela também estruturada, fornecendo-lhe o equipamento cultural que se
manifesta de forma codificada” (2002, p. 33).

O município de Cabeceira Grande6, localidade que foi foco da pesquisa de dissertação,


pertence ainda hoje ao cenário de culturas populares tradicionais, ou melhor, pertence ao
cenário de permanência e dinamismo das culturas populares tradicionais. Nota-se que as
culturas populares tradicionais têm por referência o “cultivo da tradição, dos antigos
costumes, num contexto em que o discurso do moderno é predominante e agressivo”
(CASTRO, 2007, p. 44). Sabendo da contemporaneidade da cultura tradicional, e seguindo o
caminho oposto aos que dizem que a cultura brasileira é única, Mauricio Barros de Castro
(2007, p. 44) reconhece que esta cultura recebe “interferências e influências”, pois sua:

Construção se dá à base de continuidades e rupturas, mas que se mantém por meio da


memória e da oralidade – articuladoras de narrativas que engendram não apenas a voz, mas
também o corpo e o ritmo -, as quais se apresentam como fundamentais para manutenção
dos antigos costumes, na medida em que reelaboram um discurso atualizado da tradição.

Considerações acerca de uma pesquisa: o lavrador Manoel Moises (1905- 1972) e a


parteira Mãe Bela (1907-1983)

Na região de Cabeceira Grande o protestantismo, em sua forma leiga, dava os seus primeiros
passos em 19477, num período em que as igrejas pioneiras já se organizavam para celebrar a
jornada de um século do presbiterianismo no Brasil8.

Ressalta-se que esta história não tem o foco nos ‘ilustres’ personagens, os quais os feitos
heróicos são constantemente lembrados na historiografia protestante. Basta dizer que a
história da Igreja Presbiteriana de Cabeceira Grande (IPCG) confunde-se com a vida do
lavrador Manoel Moises e de tantas outras figuras daquele contexto, como por exemplo Maria

6
As origens da localidade, datada na década de 1950, estão historicamente ligadas aos municípios de Paracatu e
Unaí, no noroeste de Minas Gerais. A vila de Cabeceira Grande passou a distrito na década de 1960 e teve a sua
emancipação em 1995.
7
Nesta época, a localidade contava com uma fraca e esparsa assistência católica, refletida nos chamados pousos
de padre. Uma simples capela foi construída ali somente em 1951 e a assistência institucional se deu após a
década de 1990.
8
A questão da inserção do protestantismo no Brasil não será aqui tratada, pois julgo já ter disponíveis muitas
pesquisas sobre a questão. Sobre o tema, ver Lèonard (2002) e Mendonça (2008).

1465
Odete da Costa Vale, carinhosamente chamada por todos de Mãe Bela. Figuras centrais que se
entrelaçam no desenvolvimento e organização da IPCG.

Watanabe, discutindo a historiografia presbiteriana sugere que “os inúmeros sujeitos, os fieis,
chamados por Certeau de consumidores, não foram vistos nessa produção histórica” (2006, p.
19). De início, estes consumidores são tipificados como um advogado, juiz ou até mesmo, as
damas ilustres de São Paulo, etc., representantes da cultura erudita, mas dificilmente
aparecerá entre estes ‘ilustres’, usando a expressão mencionada por Léonard (2002, p. 107) o
lavrador e a parteira.

Léonard, sem dúvidas é quem melhor descreve o chamado “corpo protestante” brasileiro,
retrato do corpo social do país. Desde o início, todas as classes e todas as profissões ali foram
representadas, no entanto, comumente nem sempre seus representantes são nomeados.
Aparecem ali os camponeses, os escravos, os sitiantes, artesãos e operários. As pessoas
comuns são adjetivadas ou em grande medida, são representadas por algarismos, embora “os
algarismos não são o principal nem podem por si só dar-nos uma idéia da força que tomava
rapidamente o protestantismo brasileiro” (LÉONARD, 2002, p.105).

Diante de tais questões afirma-se a contemporaneidade de se resgatar biografias


‘coadjuvantes’ na historiografia protestante e analisar a veracidade do protagonismo dos
emissários e agentes da mensagem religiosa.

No decorrer da pesquisa de dissertação, o primeiro registro encontrado sobre a história de


personagens leigos na região de Cabeceira Grande diz respeito ao primeiro livro de Atas da
Igreja Presbiteriana naquela cidade:

No ano de 1947 (hum mil novecentos e quarenta e sete) veio da Congregação


Presbiteriana de Lagamar-MG, um senhor com o nome de Manoel Moises, trazendo a sua
mudança em um carro de boi para a fazenda Bolívia, de propriedade do sr. Atos
Cambraia Campos. Quando ficou sabendo que o mesmo era protestante impôs esta
condição: “para o sr. ficar na Fazenda não poderá falar do evangelho”. Este não aceitando
a condição, preferiu ir embora. Encontrando agregação com o sr. Antonio da Costa Vale,
na beira de uma vereda denominada Centro, onde começou a pregar o evangelho em uma
barraca, feita de ramos. O mesmo não perdia a oportunidade de falar do evangelho, fosse
a quem fosse. Encontrando com alguém, perguntava ao despedir-se: “já ouviu falar do
invangelo”. Se a resposta fosse negativa, dizia ele – é preciso ouvir! Por causa do mesmo

1466
pronunciar invangelo em vez de evangelho, era muito criticado. Por isso, se alguém
possuía um animal muito bruto, e com muito trabalho o dominava e dizia: “conheceu o
invangelo!” (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA GRANDE , Atas do
Conselho, 1988).

Na Fazenda Bolívia, Manoel Moises construiu uma casa de capim para sua moradia e lá ele
tinha o costumeiro hábito de pregar o evangelho. Neste contexto surgiram as primeiras
adesões ao protestantismo na região, como também registra-se a única ocorrência de
oposição à mensagem de Manoel Moises.

Nota-se que mesmo diante de um cenário desfavorável, a insistente pregação de Manoel


Moises formou naquela região o primeiro ponto de pregação, na Fazenda São Caetano, local
que posteriormente foi denominado Ebenézer9. Na localidade ainda existe uma precária
construção, marcas de um tempo passado, onde se realizavam aulas de alfabetização e as
reuniões de evangelização.

Imagem 1 e 2 – Ruínas de Ebenézer – Fazenda São Caetano, Cabeceira Grande-MG10

A presença de Manoel Moises na região teve grande repercussão, tanto que era do
conhecimento de muitos uma composição, uma moda de viola, cuja letra se refere a imagem
do pregador protestante. Foi diante de lembranças vagas e incompletas que se deu o registro.
Segundo a colaboradora, a sra. Ilda José Viana, era mais ou menos assim:

Essa nova religião

9
Termo de origem bíblica.
10
Arquivo pessoal. A antiga igrejinha em Ebenézer está abandonada, mas ainda resiste aos novos tempos e
diante da necessidade de abertura de pastos para os animais da propriedade. Nota-se que é uma construção
rústica, construída com tijolos, barro e vigas de aroeira.

1467
É uma grande ilusão
Até quem não sabe ler
Anda com o livrinho na mão (FLOR, 2012)11.

Embora na forma de crítica, a composição reforça a influência do protestantismo na região e


demonstra o apego à Bíblia, o que seria o mesmo que “o livrinho na mão”, algo do
conhecimento da sociedade local e por si só, uma marca do protestantismo, ou seja, o apego
às Sagradas Escrituras.

Com a forte e influenciadora presença do Manoel Moises na Fazenda Centro e as primeiras


conversões naquela região, como também na região mais próxima à Fazenda Bolívia surgiu
também o início do apoio institucional de missionários e missionárias, oriundos de duas
distintas missões americanas ligadas a IPB: a Missão Brasil Central (CBM) e a Missão Oeste
do Brasil (WBM). Um representante de uma dessas missões escreveu um relato dando conta
da presença de Manoel Moises naquela região. O Revdo. Midkff12 em uma News Letter,
escrita em junho de 1948 descreveu o ocorrido e fez um breve relato a respeito desse homem
do campo:

At Fazenda Bolívia, near Formosa, an illiterate man who became truly converted through
having the bible read to him, has been leading the people spiritually the last couple of years,
and many have become converted through him. It was a marvelous thing to meet an talk
with this man of God and preach to nearly 150 people who gathered in from 20 miles or
more aroud 60 men in 2 days had made us a landing strip. Several have joined the church.
Each Sunday teams of two or more go out to hold meetings in different places. “Manoel
Moiséis” is the name of this extraordinary man (NEWS LETTER FOR JUNE, 1949 ).

Há também o registro de que a Fazenda Baixão era o ponto de partida para a evangelização
aos sábados e domingos (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA GRANDE, Atas
do Conselho, 1988). Neste cenário de movimentação e desenvolvimento do protestantismo,
a Fazenda Baixão era comprovadamente outra importante referência para os presbiterianos,
justamente por pertencer a uma das pessoas que primeiramente aderiram ao
presbiterianismo naquele cenário: Mãe Bela. A Ata registra a adesão de Mãe Bela ao
protestantismo com detalhes importantes.

11
Segundo a sra. Ilda José Viana, estes versos foram criados em um pouso de folia por seu sogro, o sr. João
Ribeiro Viana, hoje já falecido. Entrevista concedida em 26 de setembro de 2011.
12
Harry P. Midkff, membro da CBM e também integrante da Comissão Central do Centenário da Igreja
Presbiteriana do Brasil (IPB).

1468
Durante a semana, dona Ana13 ensinava aos alunos ler e escrever, mas também ensinava a
palavra de Deus. Nos fins de semana, sempre ia para o Baixão, precisamente para a casa de
Mãe Bela que a tempo era crente. E por sinal, muito perseguida, muitas vezes pelos
próprios irmãos de sangue. Queremos lembrar uma frase muito dita por ela: “aceitei a
Cristo, não só por mim, mas por causa dos meus filhos”. Ela era viúva e o seu maior desejo
era ver os filhos crescerem honrados (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA
GRANDE , Atas do Conselho, 1988).

Mãe Bela, neste contexto, não só recebia os pastores, missionários e missionárias em sua casa,
como também constantemente andava com Manoel Moises para a realização dos cultos. Não
só porque era da região, mas principalmente por ser parteira e possuir a função necessária
àquele contexto. Com os conhecimentos médicos que possuía e sua confirmada atenção aos
problemas de saúde da população local, fato que a obrigava a conhecer a região, bem como
também as famílias e os seus respectivos endereços, ela foi um importante contato de Manoel
Moises.

É Mãe Bela a responsável pela doação da madeira usada para construir, em forma de mutirão,
a casa pastoral de Filadélfia14, em 1952, outra localidade de apoio aos serviços religiosos e
educacionais das missões presbiterianas. É ela também, a principal benfeitora à época da
construção do templo presbiteriano inaugurado posteriormente em 1970, pois foi a
responsável pela doação do terreno onde hoje se realizam cultos e escolas bíblicas dominicais
da IPCG.

Além de toda a importância dentro da IPCG, Mãe Bela teve forte atuação como parteira na
região de Cabeceira Grande. Com os conhecimentos que tinha da medicina rústica teve
grande participação e honrosa imagem na sociedade local. Em sua homenagem foi criada a
Creche Mãe Bela, hoje Centro de Educação Infantil Mãe Bela.
Consequentemente, a presença institucional da IPB, com o apoio das missões americanas, o
protestantismo ali foi bem sucedido, interagindo com a sociedade e a cultura locais. Mesmo
demonstrando o seu caráter civilizador e progressista, em sua forma institucional, acredita-se
que foi a forma simples como se apresentou primeiramente naquele contexto, através da
imagem e do trabalho do lavrador Manoel Moises, o maior fundamento para interação do
protestantismo com as culturas populares tradicionais na região. Julga-se que por esta razão,

13
Ana Correa, missionária da CBM.
14
Outro nome de forte tradição bíblica, comumente usado por fieis protestantes.

1469
é possível intuir que ali se desenvolveu o protestantismo rural, o que favoreceu e reforçou o
dialogo cultural entre a nova proposta religiosa e a sociedade local. Dentro deste contexto e de
forma pontual alguns fatores observados são relevantes: a noção de culto como festa, a crença
em seres fantásticos, como por ex. o Romãozinho, a crença em ritos protetivos e o uso mágico
de ervas em conformidade com a medicina rústica (FLOR, 2012).

É devido a inserção do protestantismo rural na localidade que Mãe Bela permaneceu com a
prática de parteira, sem observar na profissão, nenhum tipo de interdições negativas impostas
pela mensagem protestante.

Considerações finais

Diante do exposto acima, ressalta-se a importância do trabalho leigo no protestantismo. É


fruto da pregação de Manoel Moises na região de Cabeceira Grande a existência de várias
igrejas em todo o Noroeste de Minas e outras regiões. Ora, é sabido que foram crentes da
região de Cabeceira Grande os responsáveis pelo estabelecimento de congregações e igrejas
presbiterianas nas localidades de Bonfinópolis de Minas, Buritis de Minas, Natalândia, Unaí,
regiões mineiras, e Goiânia e Formosa no Estado de Goiás, conforme bem colocam Neves da
Costa Vale e Raimundo Mariano Costa (FLOR, 2012)15.

Embora Ferreira afirme que “desde o início a WBM, como outras missões, não pode
prescindir do elemento leigo nacional, [...] a referência ao trabalho dos evangelistas, homens e
mulheres é quase inexistente nos registros históricos da Missão” (1996, p. 26). O certo é que,
conforme afirma Leonard, “quando uma população está pronta ao conhecimento e aceitação
de uma nova ideologia, ela se propaga como um incêndio na floresta, por faíscas dispersas
levadas pelo acaso dos ventos, ou do Espírito” (2002, p. 101s).

É com a participação de leigos e a dedicação às pregações bíblicas que o protestantismo


resistiu às intempéries cotidianas na pacata Cabeceira Grande. Assim, a exemplo de Manoel
Moises, vários pregadores e pregadoras leigos surgiram e com a ajuda de vários fiéis, o
templo da IPCG foi construído a partir de 1968, em forma de mutirão e inaugurado em 1970.
Mais uma vez, destaca-se o papel de Mãe Bela, pois a parteira conseguiu ao que tudo indica,
15
Entrevistas concedidas respectivamente em 20 de setembro de 2011 e 23 de setembro de 2011.

1470
no árduo trabalho ao pé da máquina e mediante as doações que recebia pelos serviços
prestados aos doentes da região, a aquisição de um terreno, o qual foi ofertado à IPCG,
organizada em 1988, local onde hoje se localiza o templo presbiteriano na cidade.

A IPCG foi organizada em 17 de abril de 1988, e de inicio, possuía 57 membros comungantes


e 28 membros não comungantes. É diante da organização e do registro histórico da
instituição e os relatos de colaboradores e colaboradoras, as principais tessituras sobre a
história da IPCG e consequentemente, os fatos relacionados a Manoel Moises e Mãe Bela.
Pessoas leigas e analfabetas a quem acertadamente a historiografia do protestantismo deveria
dar um lugar de honra, pois fizeram de suas vivências tradicionais uma linguagem acessível
para a implantação e consolidação do protestantismo na região mineira.

Referências

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História Oral. NEHO/USP. São Paulo, Ano I, n° I, p. 51-57, Jan/Jun. 2007.

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2008

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Janeiro: Difel/Editora Bertrand Brasil, 1990.

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Edição Ceibel, 1996.

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Igreja Presbiteriana em Cabeceira Grande (1947-1970). Dissertação (Mestrado em Ciências
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caminhos cruzados de um mesmo tempo (1950-1985). Tese (Doutorado em História Social),
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análise do bairro rural de São João da Cristina, MG. Tese (Doutorado em Antropologia
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FERREIRA, João Cesário Leonel (org). Novas perspectivas sobre o protestantismo
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WATANABE. Tiago Hideo Barbosa. De pastores a feiticeiros: a historiografia do


protestantismo brasileiro (1950-1990). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião).
Universidade Metodista de São Paulo, 2006.

Outros

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organizada em 17 de abril de 1988

NEWS LETTER FOR JUNE, 1949 , Pasta 1947- Diversos. Arquivo Presbiteriano.

Entrevistas

COSTA, Raimundo Mariano. Entrevista concedida em 23 de setembro de 2011.

RUBSTEIM, Neves da Costa Vale. Entrevista concedida em 20 de setembro de 2011.

VIANA, José Viana. Entrevista concedida em 26 de setembro de 2011.

1472
1473
Reflexos da União Prussiana na formação de luteranismos no Rio
Grande do Sul: das comunidades livres até a fundação de sínodos
confessionais evangélico-luteranos

Renato Rodrigues Farofa16

Introdução

Este trabalho apresenta os reflexos da União Prussiana na constituição do luteranismo no Rio


Grande do Sul. Ao questionar a respeito da influência da União Prussiana, o trabalho analisa
fatores externos e internos na formação de luteranismos em solo gaúcho. Como elemento
externo, o que realmente esta união provocou antes da chegada da imigração alemã ao Brasil,
ou seja, no protestantismo evangélico alemão? Como esta união contribuiu para o
ressurgimento de um luteranismo estritamente confessional? E dentro dos elementos internos,
que tradição eclesiástica, que luteranismo os imigrantes alemães construíram ao chegarem ao
estado do Rio Grande do Sul a partir de 1824? Assim, o trabalho mostra como o luteranismo
se desenvolveu, com ou sem a influência da União Prussiana, desde as comunidades livres até
a formação de sínodos evangélico-luteranos no Rio Grande do Sul.

A situação política e religiosa na Prússia

Para entender a situação religiosa na Prússia é preciso levar em conta a formação nada
homogênea desse território. Com uma política de anexação de territórios, a Prússia do século
XVI ao XIX obteve um crescimento expressivo tanto no âmbito territorial quanto no
populacional17. Entre 1740 e 1786, sob o reinado de Frederico II, o Grande, aconteceram as
ampliações territoriais mais expressivas, quando a população chegou a 5,4 milhões de
habitantes (WACHHOLZ, 2004, p. 91).

16
Bacharel em Teologia pela ULBRA. Especialista em Teologia Ministerial Pastoral pelo Seminário Luterano
Concórdia, São Leopoldo. Graduando em História pela UFU. Contato: renatofarofa@yahoo.com.br.
17
Segundo Wachholz (2004, p.91), a cidade de Brandemburgo, ao norte da cidade de Wittenberg, é o centro e
ponto de partida para a formação e ampliação da Prússia. Entre o ano de 1608 a 1619, houve a anexação dos
territórios de Kleve, Mark e Ravensburgo e do então ducado da Prússia. Com a união destes territórios a pequena
Brandemburgo cresceu consideravelmente e a partir de então passou a se denominar de Prússia. No reinado de
Frederico Guilherme, o Grande (1640-1688), o território sofreu alterações. Estas ocorreram devido ao final da
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e a Paz de Westfália (1648) permitiu as anexações de Magdeburgo,
Halberstadt e Minden ao oeste. Com isso a Prússia chegava na metade do século XVIII com aproximadamente
1,5 milhão de habitantes e com uma superfície que superava os 100 mil Km 2.

1474
Estas alterações transformaram a Prússia em um grande território geograficamente unificado.
Mas, este mesmo território não tinha uma administração coesa. Isto era o resultado de um
estado unido por um Rei e governado por diferentes Duques, Príncipes e Condes. A soma de
ducados, principados, condados e cidades livres chegava ao total de 348. Essa diversidade
administrativa tinha grande influência no aspecto religioso do povo.

A política de soberania de territórios foi gradativamente diminuindo e no ano de 1814 o


número de estados soberanos diminuiu para apenas 38 (ZIERER, 1990, p.81). Agora a Prússia
estava dividida em dez províncias:

As fronteiras estabelecidas em 1815 permaneceram inalteradas até 1866. Tratava-se de um


território de 278 mil Km2 com uma população superior a 10 milhões de habitantes. Estas
fronteiras políticas também determinaram as fronteiras das Igrejas territoriais.
Diferentemente das fronteiras políticas, as fronteiras eclesiásticas se mostraram bem mais
estáveis, de forma que permaneceram como tais até 1918. Concretamente, o território
prussiano foi dividido em 10 províncias: 1) Prússia (Oriental), 2) Prússia Ocidental, 3)
Posen, 4) Silésia, 5) Pomerânia, 6) Brandemburgo, 7) Saxônia, 8) Westfália, 9) Jülich-
Kleve-Berg e 10) Baixo Reno (WACHHOLZ, 2004, p.94-95).

Assim, ao falarmos de igrejas na Prússia, devemos lembrar que elas são provinciais. É
importante lembrar que em nenhuma Província existia uma única denominação. Em todas as
províncias havia luteranos, reformados, católicos, judeus e menonitas, estes dois últimos em
pequeno número (Idem, p.95). Contudo, existiam aquelas com predominância de uma
denominação18. A política contribuiu e muito para esta diversidade confessional. Ao longo
dos anos, a Prússia recebeu as mais diversas formas de expressão de fé cristã e deve tudo isso
a política de anexação de territórios.

A União Prussiana, defesa da fé luterana e a formação de igrejas livres

Desde a Reforma, as guerras contribuíram para transformar e alterar não só o mapa político
europeu, como também a fazer com que diferentes denominações cristãs (em especial
18
Conforme Wachholz (2004, p.92), Brandemburgo em 1539 aderiu ao luteranismo, e mesmo com a primeira
anexação feita nos anos de 1608 a 1619, não teve alterações quanto a isto. Esta província que abrangia Berlim no
século XIX possuía apenas 34 comunidades reformadas, sendo que o luteranismo era dominante.
Semelhantemente, o território da Pomerânia era predominantemente luterano. Com exceção de cinco
comunidades reformadas, o restante da população, ou seja, 98,44% professava a fé luterana. Com predominância
reformada, havia apenas algumas cidades como a de Lingens e Tecklemburgo. Nelas, o luteranismo era
praticamente inexistente. Diferente de tudo isto, era a realidade das províncias da Renânia e Westfália, nelas o
catolicismo era dominante.

1475
luteranos e reformados), tivessem de conviver sob um mesmo território. Toda essa
multiplicidade denominacional na Prússia afetou o reinado (1770 – 1840) de Frederico
Guilherme III. O rei da Prússia que era de confissão reformada, casou-se com uma luterana. A
confissão diferente de ambos não impediu o casamento do rei, mas impossibilitava que ele e a
esposa pudessem participar conjuntamente da Santa Ceia. Este foi o motivo principal que em
conjunto com a comemoração dos 300 anos da Reforma (TEICHMANN, 1996, p.16), levou o
rei Frederico Guilherme III a dar início ao processo de união:

No século XVII, a casa reinante tornara-se calvinista. Frederico Guilherme III (1770-1840),
casado com uma luterana, não podia comungar com ela na Eucaristia. Usando os 300 anos
das 95 teses de Lutero, em 31 de outubro de 1817, buscou reunir luteranos e calvinistas em
uma só igreja (DREHER, 1999a, p.142).

O propósito do rei era que, a partir de então, passassem a existir em seu reino, somente
católicos e evangélicos. Mas essa união não foi tão simples assim. Muitas diferenças que
separavam luteranos de reformados teriam de ser deixadas de lado. Para colocar em prática
suas ideias e poder comungar junto com a esposa, Frederico Guilherme III precisava de uma
nova ordem litúrgica. Essa ordem não poderia ser luterana ou reformada, pois os conceitos
eucarísticos eram bem distintos. Por isso, o rei ordenou elaborar uma nova ordem litúrgica,
assim “Os ministros estavam prontos a abolir os nomes ‘luterano’ e ‘reformado’ e só usar o
(nome) ‘evangélico’. Mas quando o rei produziu uma nova liturgia, ele (o rei) ficou chocado
por encontrar uma discordância quase unânime por parte do clero” (NICHOLS, 1956, p.154).

Essa nova ordem (agenda litúrgica) não agradou a todos. Tanto reformados quanto luteranos
ficaram descontentes. E, além disso, o nome evangélico passou a ser adotado para denominar
os protestantes na Prússia.

Apesar de ser colocada em uso essa nova liturgia, ainda houve grupos que resistiram e não a
usaram. Em vista disso, no ano de 1830, em comemoração aos 300 anos da Confissão de
Augsburgo (apresentação da doutrina luterana ao imperador Carlos V e aos príncipes
alemães), Frederico Guilherme III avançou o processo de união. Foi nesse ano que o rei da
Prússia oficializou a Igreja Evangélica Territorial da Prússia. E com ele isso outorgou um
decreto tornando obrigatório o uso da nova liturgia; “O rei da Prússia sabia que a causa da
união avançaria pela adoção de uma agenda comum. Uma ordem administrativa datada em 30
de abril de 1830, autorizava o uso da força do estado para superar a resistência a União”
(SCHULTZ, 1964, p.60).

1476
Essa falta de diálogo e uso da força por parte do estado geraram muitas controvérsias. O
resultado desta oposição não poderia ser outro do que de um rompimento com a ideia de
união entre evangélicos. Especialmente entre os luteranos, a união não foi bem aceita. Nesse
grupo surgiu um movimento de reavivamento confessional que se opunha a toda e qualquer
forma de unionismo (WACHHOLZ, 2003, p.59-63).

Com a União realizada por Frederico Guilherme III, deu-se início ao movimento de
consciência confessional. No século XIX surgiram com isso muitos defensores da fé
genuinamente luterana. Entre eles Wilhelm Löhe (1808-1872), que se preocupou em preparar
uma liturgia essencialmente luterana e Johannes Konrad von Hofmann (1810-1877),
especialista em Lutero, colaborou muito com este movimento (ALAND, 1986, p.335).

Mas o principal expoente deste período foi Claus Harms (1778-1855). Primeiro, em resposta à
comemoração dos 300 anos da divulgação das 95 teses de Lutero, feita pelo rei da Prússia, ele
publicou 95 teses contra a União Prussiana. E, depois, fazendo uma convocação a todos que
estivessem de acordo com sua posição em defesa da fé luterana:

As seguintes teses são dirigidas contra todo tipo de erro e confusão na Igreja Luterana. O
autor está preparado para explicá-las em maior detalhe, para apoiar, defender e assumir
responsabilidade por elas, caso esta tarefa ficar grande demais para ele, ele pede a todos os
luteranos genuínos e aqueles que estejam de acordo com ele, e que tenham bom domínio da
fala e de escrita, que lhe dêem apoio fraternal (SCHULTZ, 1964, p.66).

Este movimento não obteve muito sucesso, mas mesmo assim serviu de base para a fundação
de comunidades luteranas livres na Europa e fora do velho continente, como no caso da LC-
MS (Lutheran Church – Missouri Synod) nos Estados Unidos em 1847, fundado por saxões
não atingidos pela União Prussiana, mas estritamente luteranos.

A situação política e religiosa na chegada dos protestantes no Rio Grande do Sul

Assim como não se pode separar o luteranismo no sul do Brasil da imigração alemã 19, não
pode haver separação da chegada desses imigrantes com o propósito do império brasileiro do
século XIX. Como não se podia usar mão-de-obra dos escravos, para poder entrar no mercado
internacional de capital e divisão de trabalho, o Brasil teve de buscar outro tipo de

19
Denominaremos os prussianos neste trabalho de alemães, uma vez que os trabalhos publicados assim
identificam esses imigrantes oriundos deste território.

1477
trabalhadores que substituíssem os escravos. Este era um dos motivos para trazer colonos
europeus para o Brasil.

No caso do Rio Grande do Sul, existia um fator determinante para o interesse na chegada de
europeus. A então província de São Pedro era praticamente despovoada e suas fronteiras eram
vulneráveis a qualquer investida dos países vizinhos. Sabendo dessa situação, D. Pedro I
solicitou a vinda de mais de 3000 soldados prussianos, sendo na maioria oriundos de casas de
correções, para a formação de um exército no RS (HUNSCHE, 1975, pp.38-40). Estes
elementos ajudaram para a solidificação das fronteiras nacionais, processo que levou muitos
anos e com sucessivas guerras (ROCHE, 1969, pp.11-12)20.

Passados sete anos da União Prussiana, chegam ao Brasil esses imigrantes em sua maioria
protestantes. Diante da miséria causada pelo capitalismo industrial que acabou por formar no
velho continente uma grande massa de desempregados (DREHER, 1999b, p.111), muitos
colonos não tinham alternativas senão migrar. Além de uma situação política turbulenta no
RS, os imigrantes evangélicos tinham de enfrentar uma legislação religiosa que não lhes eram
favorável. No Brasil, toda e qualquer religião que não a católica, era apenas tolerada. Com
isso, os protestantes tinham de construir seus templos sem a aparência de igreja, e ter seus
próprios cemitérios, pois os públicos eram somente para os católicos (TEICHMANN, 1996,
p.39-40).

Somando a este quadro, existia uma diversidade religiosa entre os imigrantes. Além de alguns
católicos, os evangélicos vinham de várias denominações:

Também sob o ponto de vista sociorreligioso era grande a variedade dos emigrantes. Além
dos mencionados livres-pensadores e católicos, havia entre os protestantes, que constituíam
mais da metade dos emigrantes, luteranos, reformados, unidos, bem como, entre os teuto-
russos, especialmente menonitas (PRIEN, 2001, p.30).

Esse número de evangélicos aumentou durante o século XIX no RS. Estima-se que, nos
primeiros cinquenta anos de colonização, viviam aproximadamente 20.000 evangélicos no
estado, e que pelo final do mesmo século a população evangélica já se aproximava dos 80.000
(FISCHER, 1986, p.34); a grande maioria oriunda da Prússia.

20
O autor relata que a fronteira com o Uruguai só foi reconhecida em 1851.

1478
O período congregacionalista e a formação de comunidades livres

A situação religiosa nas primeiras décadas da imigração foi bem difícil para os protestantes. O
atendimento pastoral era quase inexistente. Entre 1824 até 1864 vieram ao Brasil menos que
20 pastores (PRIEN, 2001, p.50) e ao RS apenas seis pastores ordenados, sendo que apenas de
um se poderia confirmar o estudo teológico (DREHER, 1984, pp.66-69)21. O assim chamado
período congregacionalista ocorreu entre os anos de 1824 a 1864. Por isso, esse período
também é denominado de “seca espiritual” (FISCHER, 1986, p.35).

Mesmo nesta situação os evangélicos organizaram suas próprias comunidades. Oriundos de


uma tradição evangélica de total dependência do governo, e sem ter tido uma educação que
lhes possibilitasse a organização de paróquias, os colonos alemães acabaram por formar
comunidades de emergência.

Chegando aqui, os imigrantes se defrontaram com uma situação nova e desconhecida para
eles. Não havia Consistório. O estado não providenciava nem sequer escolas, e muito
menos cuidava dos assuntos da Igreja. Se quisessem ter igreja, os imigrantes teriam que
usar seus próprios recursos. E, de fato, eles não ficaram de braços cruzados. Fizeram o que
puderam com seus poucos recursos, seus limitados conhecimentos e com experiência
nenhuma na questão de uma escola e igreja independente do estado. O modelo que
conheciam era o de uma igreja territorial. Adaptaram esse modelo, na medida do possível,
ao novo ambiente. O estado não regulamentava e controlava a Igreja? Então, eles mesmos
teriam que tomar o lugar do estado, ou pelo menos o do patrono local, e estabelecer igrejas,
regulamentar as taxas a serem pagas ao pastor, etc (BUSS, 2000/2, p.17).

Dentro da comunidade de emergência deveriam existir pastores. Com a indiferença da igreja-


mãe em enviar missionários para atender os imigrantes, surge a figura do “pastor-colono”
(TEICHMANN, 1996, pp.35-36). Estes, por sua vez, vinham das mais diversas profissões.
Havia entre esses gente séria e dedicada ao trabalho pastoral, mas também existiam
aproveitadores da situação. Mas foi nesta fase que o luteranismo no RS, mesmo que quase
sem atendimento pastoral, começa a se estruturar. Foi esse pastorado que deu início à
formação do luteranismo no RS. Através desses “pastores-colonos” que a fé evangélica
resistiu até a chegada, em número maior, de pastores ordenados. Este mérito de preparar o
solo para o luteranismo institucional se deve a esses pastores (WACHHOLZ, 2003, p.498-
499).

21
Conforme o autor, o único pastor seria Johann Peter Christian Haesbert. Nasceu em 1807 na cidade de Cleve,
Alemanha. Migrou para os Estados Unidos e estudou teologia no seminário luterano de Gettysburg. Chegou ao
Rio Grande do Sul em 1845 e assumiu a comunidade de Hamburgo Velho.

1479
Devido a uma estrutura eclesiológica e comunitária inicialmente marginalizada, os imigrantes
tiveram dificuldades na participação da sociedade como um todo. Isso contribuiu para um
futuro pensamento provinciano dos luteranos (DREHER, 1988, p.53-54).

Nessa estruturação eclesiástica que vai surgindo, tudo é “nosso”, na expressão comunitária
desses agricultores: nossa Igreja, nossa escola, nosso cemitério, nosso pastor. A
consequência eclesiológica dessa Igreja comunitária é que a Igreja, com o passar dos anos,
mais e mais, vai terminar nos limites da colônia, faltando a percepção para a catolicidade da
Igreja (DREHER, 1999b, p.121-122).

Esse espírito congregacional extremado nas comunidades luteranas dificultou em muito a


atuação dos primeiros pastores ordenados.

Tentativas de igrejas sinodais: dificuldades e a resistência das comunidades livres

Somente nos anos de 1863 e 1864 é que a situação começa a mudar entre os luteranos no RS.
Com a vista em 1863 de von Eichmann (embaixador da Prússia), ficou constatada a situação
em que se encontravam espiritualmente os colonos aqui chegados. Eichmann fez contato com
o Evangelisher Oberkirchenrat de Berlim (CSEB), e o mesmo providenciou um pastor para o
RS (REHFELDT, 2003, p.24).

Hermann Borchard foi o pastor que aceitou o chamado. Com sua chegada em 1864, o
luteranismo institucional começa a ser organizado no RS, não só porque ele era um pastor
com formação teológica, mas devido ao fato dele manter um bom relacionamento com o
diretor da “Sociedade Evangélica para os Alemães Protestantes na América do Norte”
(SEAPA), o Dr. Friedrich Fabri (HESS, 1986, p.8). Quatro anos após a chegada do pastor
Borchard à São Leopoldo, mesmo com a resistência de muitas comunidades 22, foi fundado,
em 11 de fevereiro de 1868, por iniciativa do mesmo, o primeiro sínodo evangélico no RS. A
fundação deste sínodo tinha os seguintes objetivos:

22
Entre os anos de 1864 a 1886 foram enviados ao Rio Grande do Sul 23 missionários de diversas regiões da
Alemanha (PRIEN, 2001, p.72-73). Os missionários que chegaram naquele estado enfrentaram uma série de
dificuldades. Eles tinham a difícil tarefa de conquistar a confiança dos evangélicos do RS (DREHER, 1984,
p.73). Essa resistência era resultado de um longo período sem atendimento que essas comunidades enfrentaram.
Somando a isso o sentimento de liberdade e de independência, muitos evangélicos viam na figura do pastor
ordenado um intruso, pois ele não teria ajudado na formação da comunidade e agora viveria às custas da mesma
(TEICHMANN, 1996, p.62-64).

1480
A iniciativa de Borchard concretizou-se em 1868, quando foi fundado o Sínodo
Teuto-Evangélico da Província do Rio Grande do Sul (Deutsch-Evangelische
Synode der Provinz Rio Grande do Sul). Como um dos objetivos principais era
lutar contra os pastores não-ordenados, somente foram aceitos, no Sínodo, pastores
ordenados e comunidades que tinham um pastor ordenado trabalhando, ou
esperavam receber alguém com tal qualificação (TEICHMANN, 1996, p.46).

Este sínodo teve a participação de nove pastores e de nove comunidades na sua fundação. Não
foi um número expressivo, até porque não havia muitos pastores ordenados neste estado e este
acabou por ser um sínodo de curtíssima duração. Já no ano de 1875, ele foi desfeito, devido
especialmente em função da independência das comunidades e a diversidade confessional dos
clérigos e comunidades.

Sobre a autonomia das comunidades, se somavam ainda as grandes distâncias de uma


comunidade a outra, com as precárias estradas. Com tudo isso, ficava muito difícil uma ação
sinodal. E quando ainda se conseguia algum tipo de contato, as desconfianças e resistências
das comunidades eram grandes. A desconfiança era tamanha que as comunidades chegaram
até mesmo a considerar o sínodo como uma espécie de inquisição (WACHHOLZ, 2003,
p.373).

A situação confessional deste primeiro sínodo foi sem dúvida um fator importante. Essa
questão confessional consistia no fato de que agora o sínodo deveria trabalhar em conjunto e
sob uma única linha doutrinária. Até então, não havia divergências porque as comunidades
eram totalmente independentes uma das outras. Mas, com a fundação do sínodo, a diversidade
confessional instalada no RS prejudicou o andamento da organização sinodal (HESS, 1986,
p.17).

O quadro começou a mudar no ano de 1874, com a chegada de Hamburgo (Alemanha) à São
Leopoldo, do Rev. Dr. Hermann Wilhelm Rotermund que declarava-se confessionalmente
teólogo do cristianismo positivo (TILLICH, 1999, p.123)23. O nome de Rotermund está
intimamente ligado à fundação do Sínodo Riograndense. Ele foi enviado pelo CAPSB
(Comitê para os Alemães Protestantes no Sul do Brasil) a pedido de Friedrich Fabri ao RS
para tentar revitalizar o sínodo existente (PRIEN, 2001, p.118). Durante o período de 1870,
ano da saída de Borchard, até o ano de 1886, ano da fundação do Sínodo Riograndense, as
23
Tillich explica que o cristianismo positivo, desenvolvido por Schleiermacher, se baseava no conhecimento
positivo de uma realidade histórica. Assim se fazia distinção entre teologia filosófica, histórica e prática. E a
teologia dogmática agora pertencia a teologia histórica e não mais à filosófica.

1481
condições para a fundação de uma igreja institucionalizada melhoraram consideravelmente:

As condições para a fundação de um sínodo seriam bem diferentes e mais favoráveis do


que há 16 anos. Neste período, teria crescido significativamente o número de comunidades,
a autoconsciência do povo evangélico perante o catolicismo romano, a consciência dos
leigos em relação à fundação de uma igreja institucionalizada, bem como a vida religiosa e
participação nos cultos. Apesar dos receios dos pastores mais velhos, os pastores em geral
estariam concordando sobre a necessidade de um trabalho eclesiástico. Um dos motivos
para esta aproximação maior entre os pastores teria sido a fundação da caixa de
previdência. Outro impulso teria sido dado pelas circulares enviadas por Rotermund com as
quais ele almejou uma unidade interna para assuntos comunitários, pastorais, litúrgicos
(WACHHOLZ, 2003, p.403).

Rotermund em nenhum momento desistiu de uma união eclesiástica. O que de fato beneficiou
os projetos de Rotermund foi o crescente número de pastores missionários enviados ao RS.
Em 1886, já atuavam em torno de 20 pastores, enquanto que em 1868 eram em torno de 10
clérigos. Isso colaborou contra o independentismo das comunidades. Tendo em vista esta
situação mais amistosa, Rotermund enviou circulares para as comunidades convocando-as
para os dias 19 e 20 de maio de 1886, em São Leopoldo, para discutir a fundação de um novo
sínodo. Após discutirem a proposta de organização, sete pastores e sete leigos assinaram o
documento que marca a fundação do Sínodo Riograndense.

A posição confessional do Sínodo Riograndense: Luteranismo unido

A posição adotada pelo Sínodo Riograndense em relação à confessionalidade foi uma


continuidade da teologia já antes adotada por Borchard. Hermann Borchard, apesar de ter uma
origem luterana era de posição confessional unida. Isso muito se deve ao seu espírito
missionário que o levou a vários lugares do mundo para atender os protestantes (DREHER,
1986, p.23-25), fossem eles luteranos, reformados ou unidos24.

24
No Rio Grande do Sul ele constatou nas comunidades de São Leopoldo e Lomba Grande
(município de Novo Hamburgo), que os protestantes eram em sua maioria reformados, e com
isso procurou desde o inicio se adaptar à situação na qual ele se encontrava. Diferente era a
situação no sul do Rio Grande do Sul, onde existiam evangélicos de origem pomerana
(REHFELDT, 2003, p.41-42), que eram em sua maioria luteranos.

1482
Diante desta situação, o Sínodo Evangélico Alemão da Província do Rio Grande Sul, no que
diz respeito à confissão estaria de acordo com a Igreja Territorial Evangélica da Prússia
(WACHHOLZ, 2003, p.371). Essa confissão tinha caráter unido de acordo com os estatutos
da comunidade evangélica de São Leopoldo, que antes mesmo da fundação do sínodo já em
1865 adotava o prontuário evangélico-prussiano (Idem, p.464).

Passados os anos, na fundação do Sínodo Riograndense, Rotermund desejou num primeiro


momento dar ao sínodo um caráter confessional luterano (STEYER, 1999, p.126). Esta
posição de Rotermund logo teve de ser revista. Um dos grandes motivos era a origem dos
imigrantes e principalmente a procedência dos pastores (WACHHOLZ, 2003, p.461). Com
isso, nos estatutos propostos por Rotermund para o novo sínodo, teve de ser alterado:

Pechmann sugeriu que a formulação “especialmente a Confissão de Augsburgo” fosse


suprimida do anteprojeto (art.2) alegando que nem todos os membros das comunidades a
reconheciam. Brutschin manifestou-se favorável à manutenção desta formulação alegando
que era preciso estabelecer uma clareza confessional, caso contrário, o sínodo não poderia
defender-se diante das seitas. Rotermund, embora desejasse pessoalmente a manutenção da
formulação, ressaltou que não deveria haver barreiras às comunidades, mas permitir que
todas se filiassem ao sínodo... A formulação foi suprimida com três votos contrários. Esta
decisão fez com que o Sínodo Rio-Grandense ficasse sem uma base doutrinário-
confessional definida, pois o objetivo era não criar obstáculos para a filiação de
comunidades. Por outro lado, a decisão representou uma tomada de postura semelhante à da
União confederativa que caracterizava a própria Igreja Territorial da Prússia (Idem, p.468).

Esta discussão a respeito da confessionalidade se estendeu até a realização da assembleia


sinodal no ano de 1894 em Novo Hamburgo. Nesta assembleia se confirmou a postura
confessional do Sínodo Riograndense, no qual assumiu uma postura unida. Esta união era
confederativa como já havia sido mencionada em 188625 e assim se assemelhava a postura
confessional da Igreja Territorial da Prússia e de muitos missionários que atuavam em solo
gaúcho.

A formação de um sínodo confessional estritamente luterano no Rio Grande do Sul

A fundação de uma igreja estritamente luterana no Rio Grande do Sul tem início na primeira

25
Wachholz (2003, p.146) explica que a união confederativa era diferente da absortiva. Na absortiva todas as
comunidades deveriam ser unidas sob uma mesma confissão, e na confederativa todas as comunidades eram
unidas em um sínodo, mas ficando livre no que diz respeito a postura confessional.

1483
década do século XX, ligado à concepção luterana da LC-MS que era contra qualquer tipo de
unionismo. Esta viria a ser a linha teológica de um novo sínodo entre os imigrantes no RS.

O Sínodo de Missouri (LC-MS) que foi fundado por alemães nos Estados Unidos em 1847,
manifestou no fim do século XIX sua preocupação pelos luteranos brasileiros sem
atendimento espiritual:

Também nessa época, a atenção de membros influentes do Sínodo de Missouri começou a


ser dirigida para a América do Sul, onde, somente no sul do Brasil, centenas de milhares de
imigrantes alemães e seus descendentes, um grande número deles de orientação religiosa
luterana, viviam sem cuidado espiritual adequado... no final da década de 1890, aconteceu
uma mudança de atitude em relação às condições dos imigrantes luteranos alemães no sul
do Brasil. Em lugar de uma postura de gratidão, porque nos Estados Unidos as coisas não
eram tão difíceis como no Brasil, começou a surgir uma postura de preocupação e um
sentimento de responsabilidade em relação aos luteranos brasileiros (REHFELDT, 2003,
p.29-30).

Essa preocupação com os irmãos luteranos brasileiros foi levada até a convenção da LC-MS.
E na convenção de 1899 ficou decidido iniciar um trabalho missionário no Brasil. Esse foi o
ponto de partida para o início da missão no Brasil, “a convenção agiu como resultado de um
senso de obrigação em relação aos irmãos luteranos alemães que estavam em situação de
abandono [espiritual]” (Idem, p.31-32).

O grande êxito da LC-MS no RS resultava na dificuldade que o Sínodo Riograndense


encontrava em atender as comunidades de evangélicos neste estado e não por uma questão
confessional. O expressivo aumento no número de imigrantes entre os anos de 1890 e 1900,
devido principalmente a abolição da escravatura e da Proclamação da República, fez com que
o Sínodo Riograndense ficasse impotente diante de tal situação (PRIEN, 2001, p.104)26.

O baixo número de clérigos, o pastorado-leigo, e o grande número de evangélicos luteranos


sem atendimento incentivaram e acabaram por contribuir para o sucesso da missão da LC-MS
no RS. Entre 1º de julho de 1900, data de fundação da primeira congregação, com 17 famílias
(STEYER, 1999, p.35) em Colônia São Pedro, Pelotas e 2 de maio de 1905, data da segunda
Convenção do recém fundado (em 24 de junho de 1904) Distrito Brasileiro do Sínodo
Evangélico Luterano Alemão de Missouri, Ohio e outros Estados, o número de membros já

26
Segundo Prien, a abolição da escravatura fez com que se incentivasse a vinda desses imigrantes para o Brasil
na busca de uma substituição da mão-de-obra. E a república oferecia melhores condições, no que diz respeito à
questões de ordem civil, ao imigrante europeu.

1484
cresceram para a marca dos 7.115 membros (Idem, p.116).

Considerações finais

A formação de igrejas luteranas de confessionalidades distintas no RS é fruto de todo um


contexto em que viviam os imigrantes protestantes nesse estado. Na maioria dos casos, esses
protestantes estavam interessados primeiramente no atendimento e não tanto no aspecto
confessional de ambos os sínodos. Essas comunidades estavam interessadas nos pastores e
não na confessionalidade, fosse ela confessional luterana estrita ou unida. Também houve os
que resistiram as tentativas, tanto dos missionários oriundos da Europa quanto dos Estados
Unidos e mantiveram o modelo congregacionalista de comunidades livres sem pastores
ordenados. Os acontecimentos durante os primeiros oitenta anos de imigração alemã no RS,
com seus conflitos internos e externos acabaram por marcar as identidades confessionais e
eclesiásticas luteranas que vieram a se estruturar ao longo do século XX. Sendo assim, mesmo
que a União Prussiana tenha afetado a teologia dos missionários chegados ao RS, a fundação
de luteranismos distintos tem uma maior relação com a falta de atendimento espiritual do que
pela posição confessional dos membros destas comunidades.

Referências

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ZIERER, Otto. Pequena História das Grandes Nações: Alemanha. 10.ed. Trad. José
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1487
GT13 – História e historiografia do
protestantismo no Brasil

Coordenadora

Francisca Jaquelini de Souza Viração


Mestre em Ciências da Religião. Professora da Faculdade Vale do Salgado em Icó, CE.

Resumo

O grupo de trabalho pretende discutir a História e a Historiografia do protestantismo no


Brasil, desde o Brasil Colonial até os dias atuais. O espaço para debates e discussões vem em
tempo oportuno para se pensar sobre o protestantismo no Brasil não apenas o que se sabe
dele, mas o como se sabe dele. A criticidade sobre a temática é imperativa em nossos dias, já
que ainda existem inúmeras lacunas historiográficas a serem preenchidas, como o
protestantismo no Brasil Colonial, tanto França Antártica, Equinocial como o Brasil
Holandês. Além de proporcionar o diálogo mais aguçado sobre o protestantismo indígena, as
mais variadas formas de manifestação desta religião no Brasil (Histórico, Pentecostal e
Neopentecostal) e discutir sobre sua historiografia para propor novas formas de ver esta
religião em nosso país.

1488
A ignorância de um pensar: a história da ausência do pensamento
protestante sobre a questão social no Brasil
José Edson do Carmo Lima1, Wagner Pinheiro da Silva2

Introdução

O processo histórico de formação da assistência social no Brasil apresentou um perfil singular


quando comparado a outros países, por conseguinte buscava compreender a conjuntura
socioestrutural da qual estava logrando em decorrência de uma política desenvolvimentista
que cogitava mudanças extremas no cenário nacional.

Em suma, esse processo de formação foi incapaz de absorver importantes influências que
culminariam na consolidação de uma melhor e mais ampla compreensão da questão social, a
exemplo disso, podemos destacar o pensamento protestante, que por sua vez foi visivelmente
ignorado.

A má interpretação do termo Estado laico no Brasil tem de fato, contribuído para ampliar o
desprezo a qualquer vertente de inspiração religiosa, sob alegação da cisão da Igreja-Estado, a
influência do pensamento protestante ficou à margem do processo histórico de formação
social.

A questão social e o protestantismo

Ideologicamente falando, o Serviço Social no Brasil é marxista, apesar de muitos pensadores


da questão social discutirem uma maior pluralidade teórico-metodológica, o método crítico-
dialético é o oficial. Por conseguinte, todos os conceitos desta ciência partem apenas de sua
cosmovisão, desta feita o pensamento protestante sobre a questão social é ignorado.

Para entendermos o paradigma materialista histórico marxista e outras definições para os


conceitos que são tratados nesta ciência, partiremos do seguinte pressuposto: para um
marxista o pensamento protestante não passa de mera filantropia, e a filantropia é entendida
apenas como mera, pois segundo seu paradigma não emancipa o homem. A diferença de

1
Graduando em Serviço Social pela Faculdade Vale do Salgado (FVS). Contato: edsoncl.lc@hotmail.com.
2
Graduando em Serviço Social pela FVS. Contato: wagnerumierd@gmail.com.

1489
pensar é grande. Já para os protestantes a responsabilidade social da igreja é muito maior que
filantropia.

E esta não deixa o Estado de lado como se acredita, a igreja é entendida como a consciência
do Estado. Calvino tinha a visão de que tanto a igreja como o Estado serviam aos propósitos
de Deus, e se este não praticasse a justiça era dever da igreja fiscalizar e cobrar do Estado que
cumpra seus deveres e até resisti-lo se este o forçar que pratique atos contrários ao
cristianismo. Foi com esta visão que os puritanos ingleses fizeram sua revolução nos idos de
1640, e como diria Christopher Hill, um marxista:

Os ingleses tiveram que enfrentar situações revolucionárias inesperadas, durante dos anos
de 1640 e 1650, sem nenhuma orientação teórica, como a que Rousseau e Marx deram a
seus sucessores franceses e russos, e sem a experiência de acontecimentos anteriores que
pudessem ser chamados de revoluções. Eles tiveram de improvisar. A Bíblia em inglês foi o
livro ao qual naturalmente voltaram-se em busca de orientação (HILL, 2003, p. 29).

Aqui vemos um dos maiores historiadores marxistas afirmando da possibilidade de


orientações teóricas de revoluções políticas virem de fontes religiosas, ou seja, a religião pode
criar sim consciência política e produzir pensamento político. Outro grande marxista, talvez o
maior historiador marxista da Inglaterra, Edward Palmer Thompson, em seu clássico livro a
formação da classe operária inglesa afirma que “a consciência de classe, no sentido marxista
do termo, surgiu também pela experiência anterior a 1830 da cultura radical” (THOMPSON,
2002, p. 304), ou seja, das idéias de reforma social.

Novos grupos protestantes como metodistas e cristãos bíblicos, pregadores leigos, também
contribuíram para a formação desta cultura radical, como o metodista William Wilberforce
que dedicou sua vida para por fim a escravidão no Império Britânico. Para este grande
historiador marxista, algumas denominações protestantes fizeram parte dos grupos radicais
que contribuíram para a formação da consciência de classe dos trabalhadores ingleses.

É curioso o fato disto ser completamente ignorado no Brasil. Se dois dos maiores
historiadores marxistas afirmam ser possível ao protestantismo criar concepções políticas e
ajudar na formação da consciência de classe, por que o pensamento protestante sobre a
questão social é exaurido pelo Serviço Social brasileiro? Este é um questionamento pertinente
em um tempo onde o protestantismo cresce tanto no Brasil.

1490
As instituições criadas por protestantes como a Associação Cristã dos Moços, o Exército de
Salvação, a Visão Mundial, cada uma dentro de seu contexto, buscam a valorização da pessoa
humana, a luta pelos seus direitos, sua autonomia como cidadão e justiça social. A diferença é
que entendem esses conceitos fora dos padrões marxistas. A igreja se vê como sal e luz, tem
motivações religiosas, mas produz eficazes transformações sociais. A história destas
instituições testemunham isso.

Hoje o Serviço Social defende em seu projeto ético-político a metodologia de atuação como
interventiva e de transformação da realidade, embasado no método dialético e materialista do
alemão Karl Marx, pregando contra a exploração, alienação e perda de direitos. Partindo da
crença no verdadeiro sistema socialista baseado no manifesto do partido comunista, dentre
outros, enfatizando a construção de um pensamento ideologicamente crítico-transformador
abdicando ao clientelismo, assistencialismo e filantropia para obter uma possível construção
coletiva de consciência de classe, onde os mesmos lutam pela concretização dos seus direitos
e liberdades. “Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante
aprimoramento intelectual” (BRASIL, Lei 8.662/93, principio VII).

Embora a garantia do pluralismo esteja explicito entre os princípios fundamentais do atual


código de ética do Serviço Social, contudo, ocorre uma desvalorização do pensamento
protestante onde o mesmo poderia contribuir dentre outras formas, na compreensão da
realidade vivenciada pelas diversas comunidades em nosso país, bem como um possível
aprimoramento na aplicabilidade dos mecanismos de intervenção no meio societário, tendo
como um de seus princípios a transformação e combate das vulnerabilidades e injustiças
sociais existentes.

A questão social e o protestantismo brasileiro: a Conferência do Nordeste

Em julho de 1962 na cidade de Recife, especificamente nas dependências do colégio


presbiteriano Agnes Erskine, ocorreu a IV Conferência Nacional promovida pelo Setor de
Responsabilidade Social da Igreja (SRSI) e Confederação Evangélica do Brasil (CEB), tendo
como tema central: Cristo e o processo revolucionário brasileiro, nesse período houve um
despertar do pensamento protestante frente a um exacerbado conjunto das expressões da

1491
questão social, oriundas dos efeitos nefastos da conjuntura socioeconômica nacional, que por
sua vez explicitava-se em maior escala principalmente na região Nordeste.

A partir da preocupação com esses conflitos sociais, emerge a necessidade de identificar,


avaliar e discutir uma nova perspectiva de participação no trato das questões pertinentes ao
pleno desenvolvimento da sociedade, partindo da iniciativa de representantes de entidades
ligadas à igreja evangélica brasileira em convidar teóricos e estudiosos das ciências sociais a
não somente participarem do evento, mas também contribuírem para que de fato houvesse
uma verdadeira transformação da realidade.

A atenção especialmente dada para com o possível enfrentamento da questão social, assim
como, a preocupação de determinadas entidades protestantes de mudar a sua forma de atuação
objetivando alcançar não só melhores, como também resultados de maior magnitude na
própria sociedade, torna-se, algo surpreendentemente inovador e inesperado conforme
assevera o cientista político Dr. Joanildo Burity.

O que é notável não é que falassem em revolução, mas que eles falassem em revolução.
Afinal, lendo-se os jornais, revistas, manifestos e outros documentos da época, o discurso
da ‘revolução’ é altamente freqüente. Fossem indivíduos, partidos, organizações civis ou
militares, de boca em boca, a ‘revolução’ se repetia. Mas que os protestantes, sabidamente
ausentes e resistentes a qualquer aproximação das ‘coisas do mundo’, ou seja, das questões
e problemas sociais e políticos, se pusessem lado a lado com os movimentos sociais e
políticos do período, isto sim, é digno de surpresa (BURITY, 2011, p. 13).

Dentre os participantes estavam teólogos, intelectuais e estudiosos como Richard Shaull,


Waldo Cesar, Celso Furtado, Paul Singer, Gilberto Freire, dentre outros, somando também
com um contingente de 167 representantes de 14 diferentes denominações protestantes,
incluindo representantes das 16 unidades federativas e delegados de cinco igrejas dos Estados
Unidos, México e Uruguai.

Durante a conferência foi realizada em sua totalidade seis palestras onde os integrantes se
debruçavam sobre as bases e princípios bíblicos relacionando-os com o cenário social,
político, e econômico do Brasil. Em suma, num âmbito teológico o reverendo João Dias
Araújo tratou do conteúdo revolucionário do ensino de Jesus sobre o reino de Deus,
compactuando com tal linha de pensamento o reverendo Joaquim Beato discursou sobre os
profetas numa época de transformações sociais, já o reverendo Edmond Sherrill discorreu em
relação da missão total da igreja numa sociedade em crise.

1492
Em relação à participação dos intelectuais convidados bem como a desenvoltura que
culminou na concepção de uma nova forma de pensar a ação social, podemos destacar o
doutor Celso Furtado que discorreu sobre o Nordeste no processo revolucionário brasileiro, o
professor Juarez Alves que fez sua alocução sobre resistências às transformações sociais no
Brasil e o professor Paul Singer ressaltou sobre as mudanças sociais da sociedade
contemporânea.

Brasil estava dentro de um processo revolucionário diante do qual as igrejas não poderiam
se omitir. Por isso, a agenda da conferência contava com dois aspectos complementares: de
um lado, uma análise de conjuntura que seria processada por sociólogos e economistas
neutros, isto é, que nada tinham a ver com as igrejas e, de outro, propostas teológicas no
sentido de chamar a atenção das igrejas para o seu papel na situação histórica pela qual o
país passava. [...] As análises de conjuntura, cujo espaço era tomado pelas questões sociais
provocadas pela industrialização e pela crise do campesinato, foram feitas por Gilberto
Freyre, Celso Furtado, Paulo Singer e Juarez Rubem Brandão Lopes. A chamada à
responsabilidade das igrejas diante do “estado revolucionário” ficou a cargo de pastores
envolvidos com as “novas teologias”, como o luterano Ernst Schlieper, o metodista Almir
dos Santos, os presbiterianos Joaquim Beato, João Dias de Araújo e Sebastião Gomes
Moreira, e os episcopais anglicanos Edmund Knox Sherrill (bispo) e Curt Kleemann. A
Conferência do Nordeste, com repercussão nacional e internacional, causou grande impacto
dentro das igrejas. A situação agravou-se com a chegada de novo “bando de teologias
novas”, a intensificação do conflito entre fundamentalismo e ecumenismo e o golpe militar
de 64 (MENDONÇA, 2005, p. 62).

Em contrapartida ao extraordinário intento proposto pelo segmento cristão a partir de 1962,


que visava concatenar forças que subseqüentemente pudesse reverter o quadro da atual
conjuntura social, nasce hoje o ideário que de fato atrai nossa atenção, é justamente a
incompreensível ausência do pensamento protestante no processo de transformação das
relações sociais. Indubitavelmente há uma tentativa explicita de escamotear qualquer vertente
de cunho religioso, no pretexto de garantir a laicidade do Estado, marginaliza-se por sua vez
as possíveis explicações da realidade social oriundas principalmente do pensamento
protestante.

Estado laico é aquele em que as instituições religiosas e políticas estão separadas, mas não
é um Estado em que só quem não tem religião tem o direito de manifestar-se e qualquer
manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir suscetibilidades de quem não
acredita em Deus [...] na concepção dos que entendem que num Estado Laico, sinônimo
para eles de Estado Ateu, só os que não acreditam no Criador é que podem definir as regras
de convivência, proibindo qualquer manifestação contrária ao seu ateísmo ou agnosticismo,

1493
teríamos uma autêntica ditadura da minoria contra a vontade da esmagadora maioria da
população (MARTINS, 2012).

A questão social e o protestantismo atual: o Pacto de Lausanne, a evangelização e ação


social como parte do dever cristão

O Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial foi realizado em Lausanne, Suíça,


em 1974, onde contou com a participação de mais de 2.300 líderes evangélicos, vindos de
cerda de 150 países. Com o tema: Que a terra ouvirá a sua voz, no evento foram realizadas
sessões plenárias de estudos bíblicos, bem como discussões e debates sobre assuntos de cunho
teológico e social, visando se debruçar melhor sobre o modelo estratégico e os métodos da
qual seriam aplicados ao evangelismo. Na ocasião o encontro produziu o Pacto de Lausanne,
uma declaração de que almejava definir a necessidade, as responsabilidades e os objetivos
para alcançar uma melhor difusão do Evangelho.

Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar
o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação
dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus,
toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui
uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes
considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a
reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o
envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são
necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por
nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica
também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de
discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que
existam [...] a salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de
nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta (LAUSANNE, Suíça,
1974, Parágrafo 5º).

O Pacto de Lausanne de modo inovador desafiou os cristãos a cogitarem juntos, uma nova
forma de evangelismo, diferente do modelo até então utilizado, direcionando-os assim para a
concretização de um pensamento que vislumbrava a necessidade de criar de maneira coletiva
uma conscientização da responsabilidade social cristã, onde a mesma esta diretamente ligada

1494
para com a compreensão do meio social da qual esta subentendida em sua conjuntura uma
série de contrastes e problemas que merecem urgentemente de uma atenção especial.

Seu discurso repercutiu em nas diferentes nações presente no evento, incluindo o Brasil,
ocasionando um grande desdobramento na própria natureza da evangelização. Justamente por
isso foi criada também uma comissão da qual seria encarregada para dar abertura e
continuidade num aprofundamento cada vez maior da ação social cristã, foi assim chamada de
Lausanne Committee for World Evangelization (LCWE), sob a presidência do evangelista
canadense, Leighton Ford.

Lausanne 74 foi, indubitavelmente, o maior evento da história do evangelicalismo,


demonstrando que a Igreja encontrava-se em perfeita harmonia com sua época. Evidencia-
se tal assertiva ao ser observado o leque de temas propostos, encabeçado pela
evangelização e tratado pelos congressistas. Alguns deles merecem destaque: a questão
cultural, a realidade da pobreza que vem atingindo milhões de pessoas, a responsabilidade
social cristã, a batalha espiritual, dentre outros. Estas sintonia e preocupação com a
realidade foram um dos fatores que tornaram o referido encontro tão significativo e
contundente para as décadas que se seguiram (ROCHA, 2002, p.7).

As experiências da Conferência do Nordeste e do Pacto de Lausanne deixaram frutos no


pensamento social e político do protestantismo brasileiro. O Bispo anglicano do Recife
Robinson Cavalcanti, falecido ano passado, foi um dos maiores expoentes das Ciências
Políticas no Nordeste, grande professor da UFPE e da UFRPE, Cavalcanti pensava a realidade
brasileira através de seus olhos de bispo, e eles não atrapalharam sua ativa atuação como um
dos fundadores do PT. Em seu clássico Cristianismo e Política afirmou:

Não há lugar mais político do que uma igreja. O que são os sistemas episcopal,
presbiteriano e congregacional senão formas eclesiásticas de governo? O que fazemos
quando elegemos um pastor ou excluímos um membro? Onde encontraríamos tão
representadas as fraquezas humanas, o orgulho e a inveja, a luta pelo poder, as
“queimações” e os conchavos, as tendências e os partidos (de Paulo, de Apolo...)?
(CAVALCANTI, 2002, p. 15).

Para Robinson Cavalcanti a própria vida eclesiástica de um protestante o forma como um ser
político. E ele não para por aí, praticamente clama a participação protestante na vida política
do Brasil, citando a necessidade de uma maior conscientização política, já que julga seus
próprios irmãos de fé acomodados ou com visão restrita em relação à atuação na vida política
do país:

1495
Ser conscientizado é dever de todo cidadão. Somente as minorias privilegiadas, que
monopolizam o exercício do poder, é que não estão interessadas nesse processo, antes
preferindo a apatia e a ignorância que tanto as beneficia. Ressaltamos a necessidade de
evitarmos uma conscientização unilateral (uma só fonte), pois um amadurecimento político
pressupõe uma absorção seletiva, um acesso a dados e opiniões de diversas tendências e
procedências. Sendo a atividade política algo necessário, válido e digno, os cristãos,
esclarecidos, devem se fazer presentes, interessados em gerir alguma coisa pública (res
publica), não só para assegurar os seus direitos e cumprir seus deveres (e os de sua família,
de sua igreja, de sua categoria profissional etc.), mas também para permear a sociedade de
valores que redundem em uma maior benefício para todos e cada um. É o que a Bíblia nos
ensina e o que a história atesta (CAVALCANTI, 2002, p.16 e 17).

Considerações finais

Compreendendo a existência incontestável da participação histórica do protestantismo na


construção de subsídios que induziram um aprimoramento do diálogo assim como da
interação entre igreja e sociedade civil exposto na realização de encontros e congressos
voltados para a responsabilidade igualitária da igreja, ligada diretamente ao dever cristão de
não só compreender, como também tratar do espraiamento dos problemas oriundos das
expressões multifacetadas da questão social.

De maneira contraditória não vemos uma difusão em nosso país de manifestações tão
importantes das quais marcaram, não somente a história do pensamento protestante, como
também a iniciativa de almejar e mudar o contexto político e socioestrutural dentre outros,
consequentemente não apenas proporcionando uma simples alusão a um marco histórico, mas,
sobretudo, uma completa reflexão das novas configurações sociais.

Em meio a tempos de mudanças no sistema capitalista o Serviço Social brasileiro tem muito o
que ganhar conhecendo mais a fundo os teóricos protestantes da questão social. E só assim
honrará o princípio do pensamento pluralista de seu código de ética. Diante de tantas e
inegáveis contribuições do pensamento social protestante, respaldados no presente artigo.
Continuar alheio a essas contribuições é inaceitável em um país com 45 milhões de usuários
protestantes.

1496
Referências

BURITY, Joanildo. Fé na revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro


(1961-1964). Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011.

__________. Cristianismo e política. Viçosa: Ultimato, 2002.

HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. São Paulo: Editora
Civilização Brasileira, 2003.

ROCHA, Calvino Teixeira da. Responsabilidade social da Igreja. Londrina: Editora


Descoberta, 2003.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O Protestantismo brasileiro e suas encruzilhadas. Revista


USP, São Paulo, n. 67, p. 48-67, setembro/novembro de 2005.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. São Paulo, SP,
Editora Paz e Terra, 2002.

BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da


profissão. - 10ª. ed. rev. e atual. - Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2012.

Internet

MARTINS, Ives Ganga da Silva. Estado laico não é estado ateu. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2012-nov-26/ives-gandra-estado-laico-nao-estado-ateu>. Acesso
em 10 de julho de 2013.

Pacto de Lausanne. Disponível em:


<www.monergismo.com/textos/credos/Pacto_de_Lausanne.pdf>. Acesso em 30 de junho de
2013.

1497
1498
“A saga” de Eurico Nelson em Belém do Pará: relatos de outra
história
Ezilene Nogueira Ribeiro1

Introdução

Esta comunicação propõe-se apresentar alguns aspectos que favoreceram a chegada do


cristianismo batista em Belém do Pará nos idos dos séculos XIX e XX. A implantação dessa
igreja em solo paraense deve-se a Eurico Nelson, um sueco que foi viver “pela fé” numa
cidade adensada pelo processo da exploração da borracha, e que permitia em seu cenário a
movimentação de várias pessoas atraídas pelo sonho da riqueza imediata, a febre pelo “ouro
negro”.

Embora seus biógrafos batistas afirmem que Eurico Nelson deixou o “norte nevoso” da
Suécia e foi para a “fornalha Equatorial”, superdimensionando àquela ideia de sacrifício dos
mitos fundadores, observei que o contexto econômico da época lhe foi generosamente
favorável. Muitos imigrantes por conta do ciclo estavam adentrando na Amazônia, uns
subvencionados pelo governo paraense, outros por conta própria, já que o sonho da riqueza
era a sensação mais evidente no momento.

Além do mais, o crescimento urbano foi responsável pelas transformações consideradas de


caráter modernizante: construções de prédios públicos, casarões em azulejos trazidos da
Europa, monumentos, praças, etc. Todos, ícones dessa fase de glória da metrópole paraense
que de fato se tornou uma cidade cosmopolita. Além disso, passava-se a impressão de que
Belém era uma metrópole rica, porém na realidade seus habitantes ainda debatiam-se com
problemas relativos à insalubridade2. Sem dúvida, estes foram alguns dos aspectos que
favoreceram a presença de Eurico Nelson na região, que gostaria de apresentar neste trabalho,
pois são os resultados de minha pesquisa de mestrado.

A história documental de Eurico Nelson encontra-se disponível em códices pertencentes à


Biblioteca e Arquivo Histórico dos Batistas do Sul dos Estados Unidos, em Nashville. São
várias cartas manuscritas e datilografadas, escrita por Eurico Nelson a amigos, familiares e
1
Mestra em Ciências da Religião pela UMESP, especialista em Formação de Docentes em História do
Cristianismo pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), professora da Faculdade Teológica Batista
Equatorial. Contato: grutabel@yahoo.com.br.
2
Termo usado pelas autoridades sanitárias da época para indicar exposição de pessoas a agentes nocivos à saúde.

1499
representantes das organizações batistas. Fiz um recorte dessas cartas, a partir do ano de 1898,
quando Eurico Nelson já estava efetivamente vinculado a uma junta batista, já que em data
anterior, embora não vinculado à junta alguma, mas em nome da igreja batista, realizou
atividades missionárias na condição de voluntário.

Os sujeitos históricos e Eurico Nelson

O trabalho do historiador paraense José Ronaldo Trindade foi importante nesse trabalho, pois
apresentou além dos sujeitos ébrios, meretrizes e cafetinas que destacou no seu trabalho como
sujeitos simples que “teciam suas tramas no plano do cotidiano” (TRINDADE, 1999, p. 11)
outras pessoas, que também pobres e excluídas, ficaram muito tempo “escondidas” da
historiografia oficial. Trindade estudou um dos bairros centrais mais antigos de Belém. Estou
me referindo ao bairro da Campina,3 local em que o historiador observou qual era a vivência
dos indivíduos que ali forjavam suas atividades de lazer e trabalho a partir do critério das ruas,
concluindo que eram pessoas que viviam em cortiços ou em outros tipos de habitações
coletivas conhecidas como casa de cômodos, ou ainda “hospedados em estalagens ou em
hotéis que utilizavam como locais voltados para a prostituição, jogo ou outra atividade”
((TRINDADE, 1999, p.14).

Mas sobre a população que transitava na cidade, visualização imprescindível na feitura deste
trabalho, o autor identificou a presença de imigrantes estrangeiros de diversas nacionalidades:
turcos, árabes, judeus marroquinos, italianos, espanhóis, norte-americanos, húngaros,
franceses, “todos convivendo na cidade e desenvolvendo atividades variadas” (TRINDADE,
1999, p.48), além de migrantes nordestinos, negros, índios e mestiços, afirmando que essa
miscelânea étnica compunha um cenário que “maquiava” dos visitantes recém-chegados as
cenas reais que se queriam apresentar pelas elites e era para Trindade, “a pluralidade cultural
do lugar” (TRINDADE, 1999, p. 48).

O resultado disso era uma grande diversidade étnica que confluía para os espaços da rua do
bairro da Campina, o bairro “mais agitado do final dos oitocentos” (TRINDADE, 1999, p.48),
concentração justificada pela insuficiência de indústrias em Belém e para a formação de
bairros operários nas áreas periféricas, principal alternativa do trabalhador do setor terciário e

3 Rotulado como o bairro das ruas de marginalidade e prostituição em Belém, até hoje.

1500
motivo suficiente para que “qualquer pessoa interessada em manter alguma atividade de
subsistência procurasse fixar moradia nessas redondezas” (TRINDADE, 1999, p. 48).

Trindade (1999) afirma ainda que o bairro da Campina era de fato o bairro mais populoso da
época e também abrigava o centro comercial da cidade, muito agitado na época. Foi sem
dúvida, um dos mais procurados pelos recém-chegados que pretendiam pleitear algum tipo de
ocupação “seja no comércio ou nos serviços públicos ou através de expedientes”
(TRINDADE, 1999, p.45), embora sua intenção na pesquisa fosse o de compreender como
todas essas pessoas experimentavam a diversidade de referências culturais, hábitos, práticas e
línguas.

Uma das características mais marcantes das ruas do bairro da Campina era a diferença social
latente que dividia seus moradores. Alguns habitavam suntuosos sobrados de até três
pavimentos, o que já denotava uma diferença marcante em relação aos outros moradores que
viviam em cortiços, homens pobres que moravam na mesma rua ou na rua seguinte, próximas
a ruas em que podia haver vários sobrados ou nenhum, como a Rua General Gurjão e
Riachuello que eram consideradas ruas de meretrício.

Eurico Nelson: relatos biográficos

O que se sabe a respeito de Eurico Nelson além das cartas, encontra-se publicado pela
denominação batista desde 1945. São biografias que relatam, de forma heroica, sua vida
missionária na Amazônia, sua participação na fundação de igrejas batistas no Brasil e sua
experiência como colportor4. Encontrei na Suécia algumas publicações a respeito da
imigração em massa de suecos para os Estados Unidos no início do século XIX, entre elas
havia uma que tratava sobre Eurico Nelson. É um texto de autoria de Jansson (1959) 5,
informando que Eurico Nelson nasceu em Bittinge, norte de Big Mellosa, em 09 de janeiro de
18636. Seu pai Anders Nilsson se converteu a fé batista em 27 de abril de 1859. Foi Anders
que começou a implantação do cristianismo batista em Stora Mellosa, na Suécia, com a

4
Àquele que vende Bíblias ou Novos Testamentos.
5
Segundo este texto, Erik Jansson, foi um dos missionários suecos pioneiros no Brasil em 1912. Foi publicado
durante as comemorações dos 100 anos da Assembleia de Eldstodens Molnstodens, em data provavel de 17 de
abril de 1959.
6
Esta data diverge da registrada por seus biógrafos batistas brasileiros.

1501
prática de reuniões em casa para escolas dominicais. Sua esposa Anna Maria, a princípio da
igreja luterana foi batizada depois.

Em 1854 ainda não havia igreja batista em Stora Mellosa, mas o pietismo foi um movimento
crescente nas paróquias luteranas da Suécia. Foi através do professor, organista e funcionário
paroquial John Palmqvist que o pietismo ingressou na paróquia de Stora Mellosa, embora
conflitos tenham surgido com os grupos tradicionais. Tais embates, segundo Jansson, acabou
ocasionando os processos migratórios para os Estados Unidos, já que os suecos que foram
aderindo a movimentação das igrejas livres foram considerados pelo governo como
dissidentes do luteranismo.

Segundo o historiador sueco Hans Norman (1974) em abril de 1869, varios suecos emigraram
para a América do Norte. Somente em Gotemburgo, havia aproximadamente 300 familias de
imigrantes e muitos eram batistas. Anders Nilsson tornou-se o líder do grupo maior. Anders
Nilsson e sua família se estabeleceu em Kansas, e fundou uma congregação batista com 25
membros.

Para Erik Jansson, em 10 de abril de 1877, Eurico Nelson foi batizado por seu próprio pai
Anders Nilsson aos 14 anos de idade, esta seria a idade de Eurico Nelson quando chegou na
América do Norte. Aos 22 anos sentiu que estava sendo chamado para pregar o evangelho.
William Bagby, escreveu no jornal batista dos Estados Unidos sobre a inserção batista no
Brasil. Foi nesta ocasião que Eurico Nelson decidiu viajar para o Brasil. Aportou em Belém
do Pará, desembarcando em um navio denominado Esperança.

Quanto a sua permanência no Pará, não há no texto biográfico, porém, informações mais
precisas sobre a experiência social de Eurico Nelson com paraenses propriamente ditos. Seus
biógrafos não fazem referência sobre os primeiros adeptos batistas paraenses, provavelmente
nem sequer existiram, embora Eurico Nelson já estivesse na Amazônia há algum tempo
tentando convencê-los a seguir a fé. Entre os biógrafos de Eurico Nelson destacam-se Reis7,
Landers8, Bratcher9, Crabtree10 e Almeida11, que trazem poucas informações divergentes a

7
O Pastor batista José dos Reis Pereira escreveu uma biografia de Eurico Nelson editada pela Casa Publicadora
Batista, em 1945.
8
John Landers escreveu uma tese de doutorado, biografando Eurico Nelson e seu trabalho missionário no Brasil.
9
Bratcher foi o único biógrafo batista que conseguiu entrevistar Eurico Nelson em Manaus, quando este já
estava com idade avançada.
10
Asa Routh Crabtree, considerado o historiador dos batistas. No livro História dos Batistas no Brasil: até o ano
de 1906, refere-se saudosamente ao “Apóstolo da Amazônia”, termo que os batistas adotaram para se referir a
Eurico Nelson.

1502
respeito da trajetória missionária do biografado, porém, percebe-se que há certos filtros ao
falar sobre as culturas locais ou sobre as primeiras aproximações de Nelson com nascidos no
Pará, e isso pra mim é muito estranho, já que além dele ter vendido bíblias pelas áreas centrais
de Belém, bastante movimentadas na época, sua esposa Ida Nelson durante o dia, montou um
ateliê de costura em casa. Nesse espaço alugado vendia bíblias e literaturas protestantes,
enquanto costurava, por esta razão é muito provável que seu contato com o povo paraense ou
com as pessoas que transitavam na província fosse muito intenso.

Verifiquei, contudo, que José dos Reis Pereira, um de seus biógrafos, ao se reportar à
população paraense, utilizou expressões claramente preconceituosas, ao afirmar, por exemplo,
“que o homem procedente da Amazônia era ignorante e obscurecido pelo catolicismo”
(PEREIRA, 1954 p.64), mas esta referência também já é conhecida nos estudos sobre o
protestantismo, já que David Gueiros ao falar da questão religiosa na Amazônia, vaticinou:

Belém do Pará não era um lugar muito amistoso para com a “verdadeira religião”, qualquer
que fosse esta. Até certo ponto, sua população não era de modo algum diferente do resto da
população brasileira, que de um ponto de vista ortodoxo ou teológico tendia mais a ser
“superticiosa”. Nesse ponto, tanto os missionários como os clérigos católicos ultramontanos
estavam de perfeito acordo – para ambos os grupos, os brasileiros não eram cristãos
verdadeiros (GUEIROS, 1980, p.170).

Quanto à história de Eurico Nelson no meio acadêmico, há algumas citações de Martin


Dreher12 sobre ele como fundador das igrejas batistas na Amazônia, porém no meio religioso
batista foram produzidas biografias a seu respeito que em geral procuram retratá-lo como um
herói, embora, como já foi dito, não fosse missionário vinculado às missões na época e que
veio voluntariamente propagar a fé na região. Em razão deste aspecto, grande parte de sua
história biográfica valoriza o trajeto histórico do biografado a partir do ano de 1897, quando
já se encontrava vinculado à Junta de Richimond, pois para este grupo religioso é importante
que o termo “missionário” esteja ligado a alguns critérios. Além do mais, o período de 1891 a
1896, ou seja, os seis primeiros anos, não são comentados nesses trabalhos biográficos.

Durante aproximadamente seis anos de sua permanência no Pará, não encontrei nenhum
registro da adesão de paraenses à fé batista. Em 1896, Eurico Nelson enviou uma carta ao

11
Antonio Batista de Almeida escreveu um livro intitulado “80 anos construindo a glória de Deus”. Este
material, porém não consta data de publicação e nem editoração. Presume-se que seja uma publicação da década
70 do século XX.
12
Martin Dreher, historiador da igreja. É professor de história na Universidade Vale dos Sinos, no Rio Grande
do Sul e membro do CEHILA.

1503
pastor batista Salomão Ginsburg que estava em Recife, convidando-o a organizar uma igreja
batista no Pará. Nessa época o casal Eurico e Ida Nelson contavam com uma família de
batistas oriundos de Maceió, além de um grupo de pessoas que, segundo Reis (1963), havia
abandonado o pastor metodista Justus H. Nelson, proprietário e redator do Jornal ―O
Apologista Cristão Brazileiro13.

Outros relatos

Na escrita de outra história sobre Eurico Nelson, procurei destacar, a princípio, o contexto
regional que recepcionou o proselitismo de Nelson. O papel das correntes migratórias
marcaram intensamente as transformações que iam se operando na urbe e o aparecimento de
outras expressões religiosas já se notavam. Antes dos Batistas, já circulavam em Belém os
metodistas que já possuíam igrejas e administração definida. Os metodistas também chegaram
dentro do contexto do ciclo da borracha. Diante do aumento das demandas populacionais
causadas por este ciclo, problemas relacionados à saúde pública, no entanto, afetaram
diretamente a imagem que se propagandeava de Belém fora dos contextos amazônicos e, em
minha opinião, representou um verdadeiro contrassenso, pois as classes hegemônicas da
região defendiam a ideia de atrair imigrantes para o Pará, com fins capitalistas.

Os altos valores cobrados nos aluguéis foi um dos assuntos mais recorrentes nas cartas
pessoais de Eurico Nelson. Ele não tinha alocação prévia de estrangeiros e nem tampouco
subvenção do governo. A historiadora Edilza Fontes (2002) afirma que os imigrantes que
chegavam à região nessa época, vieram diretamente ao Pará, sem passar pelo Rio de Janeiro
ou São Paulo, situação facilitada pela estreita ligação entre o Brasil e os Estados Unidos
através das companhias de navegação que traziam aos portos brasileiros, diversos imigrantes
procedentes da Europa e dos Estados Unidos.

Além do mais, para sua sobrevivência na cidade, Eurico Nelson passou a praticar
colportagem, com venda de bíblias e literaturas nos centros, principalmente nos bonds que
circulavam próximo ao porto, e desta forma se mantinha. Quanto às epidemias, sua esposa Ida
Nelson adoeceu por duas vezes, embora se registre uma nota no jornal metodista, de que
Eurico Nelson pretendia abrir um azilo para cuidar de doentes de febre amarela no Pará. Não

13
Jornal que circulava na província paraense, pelos idos de 1890. Justus Nelson atribuía à propriedade do jornal
a Igreja Metodista e funcionaria no jornal como redator.

1504
confirmamos, porém, a existência desse tipo de estabelecimento, uma vez que os órgãos de
Saúde Pública, nos códigos de Postura municipais, multavam frequentemente os locais que
não se adequavam as normas de prevenção à doença ou comunicação aos órgãos competentes.

Os imigrantes que vinham subvencionados pelo estado, como no caso dos portugueses,
encontravam com maior facilidade moradias para alugar em Belém e aqueles outros, vindos
espontaneamente, como era o caso Eurico Nelson, enfrentavam as duras realidades de não
encontrar lugar para ficar em Belém naquela ocasião. Tinham que dispor de altos valores para
o pagamento de aluguel principalmente nas áreas mais centrais da cidade. Estes eram os
espaços de moradia das elites, logo eram áreas privilegiadas e com os valores acima do
orçamento da maioria populacional, esta última em geral, morava nas áreas periféricas mais
baratas, porem contempladas por todos os tipos de problemas decorrentes da falta de
estrutura. Por esta razão, achamos improvável que um homem que veio sem subvenção para o
Pará, sobrevivendo de venda de bíblicas, tenha tido condições de abrir uma espécie de asilo
para ajudar pessoas debilitadas por febre amarela.

Confirmei, contudo, que as visitas a pessoas doentes nos hospitais que atendiam os afetados,
de fato foi possível sim, e sem muitas dificuldades, já que sendo sueco, Eurico Nelson se
comunicava com facilidade com os que estavam hospitalizados. Segundo os dados estatísticos
da Saúde Pública14 os mais “atacados” por febre amarela, eram os embarcados de origem
norueguesa, sueca e dinamarquesa.

Outro aspecto que considerei favorável na inserção batista foi o momento político da
província. O ideário de progresso, desenvolvimento econômico, temáticas visíveis no
processo emancipador da República cogitou uma maior liberdade de circulação de
estrangeiros protestantes no Brasil e no Pará não foi diferente, embora a explicação que
encontramos para inferir a não adesão de paraenses a evangelização de Eurico Nelson seria a
profunda identificação dos paraenses com as devoções tradicionais em todo o vale. Verifiquei
que esta questão foi silenciada nos documentos do ambiente religioso, porém voltavam
fragmentadas as biografias ao destacar as dificuldades corriqueiras de Eurico Nelson, sempre
de forma excessiva.

Um guardião do passado?

14
Na época foram criados vários órgãos de fiscalização das demandas, cito a Inspetoria Geral do Serviço
Sanitário do Pará, o Instituto Bacteriológico, o Instituto Clinicas e Bromatológicas, o Hospital de Isolamento e o
Desinfectório Central.

1505
Além dos aspectos que já são bem conhecidos na Academia, quanto à construção biográfica
de mitos fundadores de igrejas cristãs, procurei destacar no meu trabalho o aspecto
fragmentário das biografias de Eurico Nelson. Aquilo que Giovanni Levi (1996) afirmou
sobre construir uma narrativa que dê conta dos elementos contraditórios que constituem
representações que dele se possa ter conforme os pontos de vistas e as épocas. E foi
exatamente este aspecto que considerei ao reconstituir o contexto social que agia Eurico
Nelson. Os limites e lacunas impostos pelo biógrafo José dos Reis Pereira, ao selecionar
apenas os sucessos da vida do biografado, sem articulá-los com maiores pormenores do
contexto imediato, de fato fragmentou o todo narrativo, e além do mais, o biógrafo batista
deixou de vinculá-los com o curso de vida das outras pessoas que construíram com ele laços e
experiências sociais, e assim fazendo deixou questões “abertas” sobre o ambiente que
germinou a fé batista em Belém do Pará.

Neste trabalho, recorri a análise de construção de imagens e discursos no campo das Ciências
da Religião, em que Campos analisa “a função do louvor ao passado e aos lideres na criação e
manutenção de uma cultura organizacional” (1999, p.88). Esta atividade para o autor é
extremamente importante no campo religioso, particularmente na fase de institucionalização e
rotinização do carisma, pois cria um senso de identidade e de maior coesão entre os agentes
ao desenvolver um trabalho pedagógico. Daí a importância dos “celebradores”, pois eles
procuram estabelecer um elo entre o que “foi” e o que “será”.

De todos os biógrafos, somente Bratcher conheceu de fato Eurico Nelson. Apesar disso, a
produção da imagem de herói construída por biógrafos que não o conheceram pessoalmente,
como o pastor batista José dos Reis Pereira, lá pelo ano de 1960 criou a ideia de que somente
um grupo que se identificasse com os ideais de Eurico Nelson (um personagem do passado
batista) seria capaz de persistir no trabalho missionário batista, qualquer outro modelo,
deveria ser de fato retirado, de tal forma que nada fosse mencionado.

Por esta razão, infiro que o silêncio de José dos Reis Pereira sobre os problemas que Eurico
Nelson enfrentou em relação ao contexto paraense fugia completamente ao discurso que se
pretendia imprimir a partir de sua imagem idealizada e é por esse motivo não há uma sequer
referência a respeito das populações locais que recepcionaram a fé batista em Belém do Pará,
nem tampouco as querelas que Nelson travou com o metodista Justus Nelson, que chegaram a
ser ofensivas e publicadas na imprensa paraense do passado, ou ainda as cisões ocorridas na

1506
primeira igreja batista entre os anos de 1901 e 1905, bem antes do aparecimento do
Movimento Apostólico de Fé, de cunho pentecostal.

Com a palavra, a transcrição de uma publicação de Justus Nelson que encontrei entre os
códices da coleção pessoal de Eurico Nelson, que não deixam dúvidas quanto tais embates e
que indicam a intensidade das discussões entre os dois protestantes:

Junto com esta lhe remetto um convite amigável para esclarecer-nos um ponto ―essecial
fundamental da sua fé – a rocha mesma em que está constituída a igreja batista. Só depois
de escrito o meu convite foi que li em ―As Boas Novas‖ de 28 de fevereiro p.p a
declaração do seu collega, o Rev. W.M.Bagby sobre o mesmo ponto fundamental, e no
mesmo sentido que no convite e representado a declaração do irmão. Diz elle: ―é essencial
não só ser baptizado (immergido), mas que o batismo seja legal e válido, e para o batismo
ser válido e legal é preciso, 1° que a pessoa baptizada seja regenerada antes do batismo; 2°
que quem faz o baptismo seja membro de uma igreja da mesma fé como as chamadas
Baptistas (porque só estas são igrejas de Christo, legalmente constituídas) e que seja,
authorizadas por uma tal igreja de Deus a baptizar.

A construção de Eurico Nelson como herói batista que foi o fundador das primeiras igrejas
batistas na Amazônia, um apóstolo, “um herói autêntico, um verdadeiro missionário que pode
ser colocado na gloriosa galeria dos Paton, dos Carey, dos Judson” (PEREIRA, 1954, p.59),
tanto no livro O Apóstolo da Amazônia de José dos Reis Pereira, como na tese de doutorado
de John Landers é uma interpretação que muito se aproxima ao modelo de “guardião do
passado” analisado por Campos (1999), pois este autor enfatiza que a tarefa de construir a
realidade social e a cultura organizacional das instituições religiosas cabe aos seus
“celebradores” que nessa tarefa cooperam também para a manutenção do poder, na medida
que eliminam outras tendências.

Diante desse embasamento teórico a respeito da construção biográfica compreende-se que um


protagonista que para seus contemporâneos não mereceu consideração digna de muitas notas,
dependendo do discurso e de qual instituição está envolvido, pode se tornar posteriormente
uma referência “superdimensionada” (ALENCAR, 2006) na compreensão de certos eventos.

Por outro lado, para compreensão da construção biográfica de O Apóstolo da Amazônia basta
se comparar dois momentos distintos de Eurico Nelson: o primeiro que marca a sua chegada
em Belém do Pará, quando era um personagem “marginal” da história dos batistas, sueco,
desconhecido, sem habilitação ao ministério pastoral. Esta posição dentro do contexto

1507
institucional não deixou de ser percebida por Eurico Nelson, razão pela qual se compreende a
nota magoada em um artigo que escreveu para o jornal Batista do ano de 1923, quando
afirmou que “não era fácil escrever sobre aquele assunto (referindo-se ao trabalho inicial em
Belém do Pará) e nem tampouco agradável”15. Fez uma dura critica ao artigo do Pastor
batista Salomão Ginsburg, durante os festejos do centenário da denominação batista no Brasil,
o criticando abertamente por não ter mencionado a “missão do norte” em seus artigos e “não
disse uma palavra sequer sobre Belém do Pará, quando se assim não fôra, estava na
obrigação de falar, pois cooperou commigo na organização da 1ª igreja de Belém, tendo elle
mesmo feito os primeiros baptismos no rio Amazonas”16. Enquanto Eurico Nelson travava
esse longo embate, José dos Reis Pereira, na escrita biográfica ia minimizando os fatos
enaltecendo principalmente suas virtudes, ao afirmar que:

É oportuno repetir que, no seu desejo insopitável de pregar o evangelho no Brasil, Eurico
Nelson não contava com nenhum auxilio humano. Não tinha ainda sido consagrado ao
ministério e por isso também não esperava a remuneração de nenhuma igreja. Mas decidira
partir e nada neste mundo seria capaz de demovê-lo. Um dos traços distintivos do seu
caráter, desde a infância, segundo o testemunho de seu irmão Carlos, era a firmeza de seus
propósitos e a pertinência com que os levava a termo. Era um “homem de uma só peça”,
desses que só dizem “sim, sim – não, não” (PEREIRA, 1954, p. 43).

Percebe-se que para seus contemporâneos Eurico Nelson era apenas um “homem de Deus”,
esforçado, um colportor que fugiu do padrão do grupo. Seu heroísmo foi ter deixado “o
melhor dos mundos” (ALENCAR, 2009, p. 72) e vir para o “Inferno Verde” (PEREIRA,
1954, p.20), fundando as primeiras igrejas batistas na Amazônia, porém enquanto não está
institucionalizado como de praxe, ninguém reconhece o trabalho desenvolvido nos seis
primeiros anos de permanência no Pará antes de ser vinculado a uma junta missionária ou
ordenado de fato um pastor batista. A história que se reconhece é a história a partir de 1897,
quando funda a primeira igreja em Belém e quando é vinculado a Junta Americana de
Richimond.

Depois de morto, o cinqüentenário dos batistas foi o momento ideal para projetar a imagem de
Eurico Nelson no imaginário batista. Uma representação heróica em torno do batista Eurico
Nelson como foi projetada no livro O Apóstolo da Amazônia está claramente inserida naquela

15 O Jornal Batista, de 04 Jan. 1923, p.10.


16 O Jornal Batista, de 04 Jan. 1923, p.10.

1508
tarefa de construção de imagem já amplamente discutida pelo campo historiográfico e a
respeito de “heróis” missionários no meio protestante, destaca-se o conceito de “construção
ideológica” discutido por Alencar (2006) ao afirmar que a historiografia missionária é uma
espécie de épico quando contada por algum representante da instituição que está envolvido,
principalmente quando se prioriza a glória, o sofrimento (martírio) com privações, doenças e
até “morte sacrificial”. O pastor José dos Reis Pereira tornou-se um “guardião do passado” ao
eternizar a memória de Eurico Nelson como um modelo de missionário batista ideal, embora
no Livro de Ouro da Convenção Batista Brasileiro, publicado recentemente pelos batistas, um
registro de cinco linhas em um único parágrafo, marcam a sua extensa passagem de 47 anos
de trabalho missionário no Brasil:

No extremo norte do país, decorrente do trabalho de Eurico Nelson, foi fundada a Primeira
Igreja de Belém do Pará, em 1897; e, em 1900, a primeira Igreja Batista de Manaus. O
evangelho e os batistas cresciam e se espalhavam no território brasileiro. O total de
membresia brasileira já alcançava 1.500 (BARBOSA; AMARAL, 2007, p.34).

Eurico Nelson continuava seguindo, mesmo morto, o estigma que seus contemporâneos
batistas lhe reservaram em vida.

Considerações finais

Eurico Nelson é um personagem que “escapa” ao modelo de missionário idealizado pelos


batistas brasileiros. A história da gênese do protestantismo batista em Belém do Pará guarda
em sua dinâmica as peculiaridades do seu obreiro fundador. Em 1897, sua “invisibilidade”
chegou ao fim e, muito provavelmente nesses seis primeiros anos de permanência no Pará,
sua insistência em superar todos os limites granjeou-lhe enfim o reconhecimento de sua
teimosia pelos demais batistas contemporâneos, embora como missionário tivesse
permanecido à margem daquele olhar batista que somente aceitava na direção das igrejas um
“obreiro” consagrado ao ministério pastoral através da sucessão apostólica.

Eurico Nelson podia ser considerado um pregador “rural” ao chegar ao Pará, pois tudo lhe era
acessível, a teologia, o ministério e a Bíblia. Era extremamente auto-suficiente, que se
depreende inclusive das biografias batistas a seu respeito. Tinha plena liberdade para tratar de
todos os assuntos, por isso tomava a iniciativa de pregar nas embarcações dinamarquesas,
norueguesas e americanas que aportavam em Belém. Sentia-se totalmente livre para pregar a

1509
mensagem cristã entre os grupos sociais que transitavam na cidade de Belém. Era um
missionário sem qualquer dependência de outro corpo eclesiástico (AZEVEDO, 2004, p.127),
pois entendia que o seu relacionamento fundamental ocorria entre Deus e o indivíduo (Cristo
e o indivíduo), numa prerrogativa de igreja em que a salvação antecede a membresia.

No trabalho inicial, quando enfrentou vários obstáculos, a maior parte deles foi sem dúvida a
dificuldade financeira em manter sua família num país estranho, sem trabalho, sem recursos,
dependendo exclusivamente de sua fé. Os problemas que foram se apresentando diariamente,
a princípio, não são decorrentes de um ambiente hostil, pois os diversos sujeitos sociais que
transitavam na urbe já tinham como corriqueiro a oferta de vários produtos nas áreas centrais
da cidade. Judeus marroquinos e turcos eram exímios vendedores de bugigangas e produtos
importados. O centro de Belém do Pará era um “mercado aberto” no auge da exploração da
borracha. Ali conviviam pessoas de vários lugares e nacionalidades, que se encontravam num
cotidiano considerado “turbulento”. Encontrar um local para vender bíblias tornou-se uma
tarefa difícil e bastante concorrida, diante de uma freguesia tão eclética e um empresariado tão
variado.

Isto posto, inferiu-se que o cristianismo batista trazido por Eurico Nelson de forte traço
pietista e conversionista pouca referência exerceu no homem autóctone da Amazônia, e por
esse motivo compreende-se que os primeiros membros da primeira igreja batista em Belém ou
eram de outras igrejas batistas procedentes das demais regiões brasileiras ou eram
provenientes de outros grupos religiosos já estabelecidos no Brasil, como metodistas e/ou
presbiterianos.

Diante dos fatos, percebe-se nas suas atitudes dos seus primeiros anos em Belém, que Nelson
não se enquadrou no modelo padrão estabelecido pela organização batista americana
responsável pela implantação do protestantismo de missão batista na Bahia e nem tampouco
fundou a primeira igreja batista no Pará de acordo com o princípio landmarkista da igreja
apostólica (AGUIRELLA, 1988).

Apesar de todos os seus esforços para missionar no Pará e implantar uma igreja batista em
Belém, esta última sofreu em menos de dez anos dois cismas decorrentes de problemas
eclesiológicos e/ou doutrinários, principalmente os ocasionados nos anos de 1899, 1901 e
1911 que resultou na fundação da futura Assembléia de Deus no Brasil. Apesar de todos esses
contratempos criou-se em torno dele um modelo idealizado pelos batistas brasileiros já em

1510
meados do século XX, que procurei visualizar através daquela construção biográfica de José
dos Reis Pereira (1954). Este último, durante a crise desencadeada pelo movimento radical na
década de 60 do século XX, projetou uma representação de Eurico Nelson a partir de uma
narrativa épica de seu trabalho.

Para concluir convém observar que a valorização dos sujeitos “invisíveis” acabou por revelar
duas possibilidades: a existência dos cortes no campo religioso que legitima certas práticas e
condena outras. Essa percepção foi possível de observar na história biográfica de Eurico
Nelson entre os anos de 1890 a 1897, em Belém, que não deixou, contudo de demonstrar que
se tratava de um personagem independente. Diante de tudo isso, infere-se que o resultado
desse percurso reflete de fato nos choques que surgiram até mesmo no meio dos seus próprios
seguidores batistas, que de uma forma bem peculiar, guardavam como modelo o perfil
emblemático do seu pioneiro.

Referências

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da Formação de uma mentalidade Religiosa (1960-1985). Dissertação (Mestrado em Ciências
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1512
1513
Educação protestante em perspectiva na imprensa batista
Anna Lúcia Collyer Adamovicz1

Introdução

O trabalho proposto pretende focalizar a maneira como a imprensa batista realizou entre os
anos de 1901-1930 uma produção jornalística profícua e uma literatura instrutiva
compromissada em noticiar os descompassos e os progressos alcançados pelos movimentos
sociais, políticos e culturais da Primeira República brasileira, conferindo pronunciado
destaque para as discussões acerca do panorama geral da Educação formal e religiosa na
nação. A pesquisa teve início no processo de desenvolvimento da tese de Doutorado de título
Imprensa Protestante na Primeira República: Evangelismo, Informação e Produção Cultural
(O Jornal Batista 1901-1922), defendida junto ao departamento de História da Universidade
de São Paulo, quanto se constatou a viabilidade de se dar prosseguimento à pesquisa sobre a
imprensa protestante no Brasil utilizando o Jornal Batista como fonte principal, ampliando e
aprofundando esta temática, a partir da investigação privilegiada das questões relativas aos
avanços do projeto batista na área de Educação.

Observou-se na ótica conceitual da longa duração que a defesa de dois princípios


fundamentais da Reforma – o direito ao livre exame das Escrituras Sagradas e à liberdade de
consciência religiosa – havia estreitado as relações entre a Imprensa e Educação protestantes
desde o seu nascedouro: no século XVI, o início do trabalho de tradução da Bíblia para as
línguas vernáculas europeias, havia fomentado a criação de periódicos de diferentes
confissões e motivado a abertura de escolas vinculadas às congregações nascentes. A
especificação da metodologia a ser adotada remete à questão das diferentes possibilidades de
pesquisas cujas temáticas estão relacionadas ao campo circunscrito a História da Educação &
Religião. Neste sentido, deve-se salientar que o trabalho será conduzido de modo a abarcar as
perspectivas metodológicas da Nova História Cultural, na qual se destacam as abordagens do
objeto investigado contextualizando historicamente seus aspectos culturais, sem que, no
entanto, sejam negligenciadas as formulações teológicas presentes em sua visão de mundo e
as formas de organização institucional do movimento religioso estudado.

1
Doutora em História Social pela USP e integrante do GEHER (Grupo de Estudos de História da Educação e
Religião) da Faculdade de Educação da USP. Contato: adamovicz@usp.br.

1514
A imprensa batista: educação e modernidade

Desde os primórdios do trabalho batista no país em meados do século XIX, os missionários


americanos e os seus colaboradores nacionais atribuíram grande importância à imprensa
denominacional enquanto instrumento indispensável para a formação religiosa e instrução dos
fiéis novos convertidos que passaram a integrar os quadros de membros das igrejas batistas do
Brasil. A fundação do Jornal Batista em 1901, no Rio de Janeiro, viria a favorecer a
concretização deste ideal missionário e educacional, ao viabilizar a difusão dos preceitos
religiosos e dos valores culturais desta denominação protestante. A ação missionária
conduzida pela denominação batista em território brasileiro, ao procurar transpor as barreiras
geográficas e sociais que dificultavam o seu trabalho de divulgação do ideário do
protestantismo entre o grande contingente populacional do país, estendeu os limites de seu
programa educacional a regiões onde os evangelistas atuavam como professores (o projeto na
área de publicações não restringia o seu campo de ação aos centros urbanos, onde o grau de
instrução de seus leitores era mais elevado).

A luta dos protestantes por um espaço religioso na sociedade brasileira desenrolou-se através
de práticas educacionais específicas articuladas em dois níveis: no nível ideológico, o objetivo
era introduzir elementos transformadores na cultura brasileira e, no instrumental, era auxiliar
a veiculação da mensagem evangélica entre as camadas desprovidas da população (sendo o
primeiro representado pelos grandes colégios americanos, e o segundo, pelas escolas
paroquiais). O Jornal Batista refletia o pensamento destes preceptores que procuravam superar
as adversidades encontradas na implantação de seu programa educacional, e os seus
idealizadores mobilizaram-se no sentido de angariar recursos materiais e humanos para
assegurar o êxito de um projeto editorial que visava à promoção de um modelo ético-social e
à construção de um processo de cidadania. Este projeto previa a extensão do programa de
educação religiosa e possuía como diretriz o objetivo de garantir o acesso à informação, por
meio da qual os seus interlocutores poderiam ser mais bem preparados para acompanhar e
participar dos debates em que eram discutidas pautas de natureza política e social, sobretudo
no que diz respeito à questão dos direitos cívicos e da democracia dentro da recém-
estabelecida ordem republicana.

O debate sobre as condições precárias do sistema educacional brasileiro que se dividia em


ensino leigo e ensino religioso católico era frequente em fins do século XIX. Na época em que
as missões protestantes se fixaram definitivamente no Brasil, já se manifestava na sociedade

1515
brasileira o intuito de modernizá-lo. O complexo ideológico do protestantismo norte-
americano foi bem recebido pelos integrantes das elites dirigentes que eram, em sua maioria,
favoráveis ao ensino dos princípios democráticos nas escolas - a igualdade de direitos, a
responsabilidade individual, a liberdade intelectual e religiosa. A elite nacional havia sido
cliente da Educação católica por mais de três séculos e os missionários evangélicos
perceberam a necessidade de iniciar um trabalho na área de Educação que possibilitasse a
abertura de colégios protestantes, através dos quais poderiam oferecer uma nova alternativa ao
grupo que buscava um novo tipo de orientação pedagógica. Os primeiros missionários que
aqui desembarcaram logo se convenceram de que, somente com o doutrinamento religioso, o
protestantismo não ganharia espaço na cultura brasileira: era necessária uma ação educativa
sistematizada capaz de criar uma força de renovação que deslocasse a Igreja Católica do seu
posto hegemônico.

A partir da segunda metade do século XIX, o estabelecimento no Brasil de congregações


católicas atuantes na área educacional ocorrera na esteira do processo de laicização do ensino
na Europa, mais especificamente a partir da disseminação do modelo pedagógico republicano
francês que instituiu a Educação laica e universal sob a direção do poder público, provocando
com as suas novas políticas educacionais o fechamento de muitas escolas confessionais na
maioria dos países europeus ocidentais2. Visando ao fortalecimento organizacional da
instituição, a hierarquia da Igreja Católica incentivou a vinda para a América Latina das
congregações envolvidas com trabalhos pedagógicos, as quais passaram a empreender a
abertura de escolas particulares, como vistas a dar continuidade ao avanço de seu projeto
missionário. No período circunscrito aos anos 1849-1912 um número expressivo de
congregações católicas radicou-se no Brasil3, configurando um movimento progressivo de
expansão da educação confessional (LEONARDI, 2011, p.105-106). Este fenômeno pode em
parte explicado como uma consequência das pressões sofridas com o avanço do laicismo
europeu, e em parte compreendido a partir da implantação da política ultramontana na
América Latina.

Após a proclamação da República no Brasil em 1889, e tendo-se em vista a consecutiva


2
A laicização do ensino foi mais uma etapa do processo de predominância do poder público sobre o poder
religioso, que se iniciou durante a Revolução Francesa, ganhou vulto no final do século XIX e consolidou-se
com a instauração da República em 1905. Nos anos de 1880, ocorrera um importante acontecimento no terreno
da Educação: Jules Ferry organizou a educação primária, tornando-a pública, gratuita e obrigatória.
3
No 1º Anuário Católico produzido pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social (Ceris), datado de
1965 e conservado no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, é possível constatar grande entrada de
congregações católicas femininas no Brasil no período mencionado as quais anunciavam ter como finalidade
principal a Educação.

1516
dissolução do sistema do Padroado4 em 1891, podem-se observar mudanças significativas que
o novo regime promoveu na esfera da Educação, não somente em termos jurídicos através da
implantação de novas políticas públicas, mas por intermédio da disseminação de novas
escolas do pensamento filosófico-pedagógico professadas por intelectuais positivistas e
educadores leigos. Em contrapartida, neste mesmo ambiente social marcado pelo crescente
processo de secularização da cultura, surgem novas escolas católicas fundadas por religiosos
europeus formados sob a égide do movimento ultramontano5, o qual tencionava restaurar o
catolicismo brasileiro nos moldes da romanização do clero. A maior parte destas
congregações de origem europeia recém-chegadas em território nacional no inicio do período
republicano elegeu o trabalho docente como função primordial, e por meio da ação educativa
pretendiam instruir as novas gerações, assegurar a continuidade do ensino religioso católico,
angariar recursos materiais e humanos para a manutenção das obras assistenciais realizadas
pelas instituições religiosas a que pertenciam - em um âmbito geral, deveriam cooperar para a
reestruturação da Igreja brasileira, sob a orientação do episcopado ultramontano.

A proclamação da República em 15 de novembro de 1889 foi recebida com entusiasmo pelos


missionários batistas que trabalhavam no Brasil, pois apesar do seu distanciamento da política
brasileira, entenderam o advento da República como o início de uma era de reformas
religiosas inaugurada pelo decreto de separação entre o Estado e a Igreja, que foi promulgado
em 1891. Os princípios democráticos da constituição da República estavam em harmonia com
os princípios batistas e a política do novo regime trouxe um novo encorajamento a todos os
grupos protestantes. No início da República, apenas uma pequena parte da população
brasileira estava familiarizada com as denominações evangélicas e ainda havia um número
reduzido de nacionais trabalhando na obra. Mas os missionários contavam com a lealdade dos
brasileiros convertidos e com a disposição, por parte da população em geral, de respeitar os
princípios democráticos também no campo da religião.

A imprensa batista, desde os primeiros anos de sua atuação, desempenhou papel relevante no
processo de desenvolvimento das missões protestantes em território nacional. Através da
leitura do conjunto de suas publicações é possível constatar que o traço mais característico da
4
Sistema que estabelecia o monarca português como patrono da Igreja e instituía o catolicismo como religião
oficial em seus domínios coloniais, concedendo-lhe o poder de administrá-la e organizá-la em nome da Santa Sé.
Dentre os direitos firmados em tratado com o Vaticano, era concedida ao rei a incumbência da arrecadação do
dízimo e a nomeação de bispos e de outros religiosos, que deveriam ser aprovados pelo Papa.
5
O Ultramontanismo é um movimento surgido na França no século XIX como uma reação ao crescente
secularismo do período pós-revolucionário. Fundamentava-se em uma doutrina política centralizadora da Igreja,
que privilegiava o poder decisório de Roma e assentava-se na defesa do dogma da infalibilidade papal em
matéria fé e disciplina.

1517
literatura produzida encontra-se em seu conteúdo religioso e pode-se observar que, em grande
parte de seus escritos, estão também presentes as suas convicções políticas, sobretudo no que
se refere à defesa do princípio da separação entre o Estado e a Igreja. Em sua produção
jornalística é recorrente a manifestação de sua crença no princípio da liberdade religiosa (as
suas referências à necessidade de separação entre o Estado e a Igreja como único meio capaz
de viabilizá-lo) e a posição assumida em defesa do direito ao livre acesso às Escrituras, que só
poderia ser assegurado através da implantação de um programa eficaz de combate ao
analfabetismo. Destacava-se também a sua preocupação com ausência da experiência
democrática, ou a pouca familiaridade que com ela haviam tido os brasileiros em sua história
política e religiosa.

Até o ano de 1889, o catolicismo havia sido a religião de Estado no Brasil e como tal possuía
sólidas bases de sustentação enquanto religião oficial, exercendo influência determinante na
vida cultural da nação e dispondo de significativa representatividade política. Sob esta
perspectiva e tendo em vista as críticas veiculadas através da imprensa que os grupos
protestantes receberam de representantes do clero católico (os confrontos ideológico –
doutrinários que se deram através dos jornais seculares e religiosos), é possível afirmar que o
espaço de discussão criado onde muitos destes debates foram travados possibilitou aos
missionários batistas a abertura de um importante espaço para a exposição de suas ideias.
Muitos dos episódios registrados na história da denominação batista no Brasil revelam que os
missionários se utilizaram dos órgãos de imprensa como estratégia de resistência e souberam
conduzir discussões polêmicas de forma a conquistar com as bases argumentativas de seus
escritos o respeito e a simpatia de muitos leitores.

Após a instauração da República, importantes reformas no âmbito da religião foram


corroboradas com a promulgação da Constituição de 1891 e, ainda que uma parcela da
população não estivesse preparada para aprovar a decisão que instituía definitivamente a
liberdade de culto, a maioria dos intelectuais brasileiros de inclinação liberal incluía nas
pautas de seus discursos uma crítica contra a prática da intolerância religiosa. Contudo, ainda
em 1901, e quase por uma década após a proclamação da república pode-se verificar no
discurso de alguns clérigos católicos uma deliberada desaprovação dos plenos direitos legados
aos pregadores protestantes de ministrar os seus ensinamentos à população; e pode-se
identificar na imprensa evangélica a persistência da renitente acusação de que a Igreja
Católica resistia duramente, tanto no plano da ação política quanto no nível do discurso,
perante o estado e a opinião pública, ao processo de efetivação do lema republicano da

1518
concessão de plena liberdade religiosa a todos os cidadãos.

O protestantismo havia sido introduzido na sociedade brasileira em uma época de reformas,


na qual mudanças sociais haviam sido acionadas pelos integrantes das elites brasileiras. As
propostas destes reformadores seculares coincidiam com o modelo social preconizado nos
Estados Unidos pela denominação batista (defensora do regime republicano e dos valores
democráticos), e os missionários expressaram no Jornal as suas convicções, mostrando-se
favoráveis à instauração da república e a não intervenção do Estado em assuntos religiosos.
Os batistas desaprovavam o indiferentismo religioso de muitos políticos e de intelectuais
brasileiros e, embora reconhecessem que o movimento liberal e as reformas políticas haviam
beneficiado a expansão do movimento protestante, mantiveram certo distanciamento da
política nacional. Os reformadores seculares do Brasil, quase em sua totalidade, pretendiam
curar as mazelas sociais do país mediante mudanças operadas no sistema jurídico, político e
econômico, ao passo que os missionários evangélicos estavam comprometidos com uma
reforma de ordem religiosa que tinha em sua obra educacional uma importante ferramenta
para a transformação daquele espaço sociocultural.

O momento histórico em que os missionários protestantes passaram a desenvolver seu


trabalho no Brasil é caracterizado pela efervescência das ideias que têm nos conceitos de
modernidade e de modernização o seu principal paradigma. O seu ideário de civilização é o
modelo de desenvolvimento típico do mundo ocidental, marcado pelo pensamento voltado
para o porvir, que toma como essencial o pensamento racional – o fascínio pelas ciências. Os
espaços públicos das grandes cidades e os modos de vida se transformavam simultaneamente,
em um movimento de adesão ao cosmopolitismo identificado com o estilo de vida parisiense.
A inserção do Brasil na Belle Époque se deu a partir de uma nova atitude mental que se
refletia nas novas formas de comportamento e de sociabilidade (SEVCENKO, 1985, p. 25-
28). Neste contexto histórico marcado pelo cosmopolitismo, os elementos relacionados ao
passado ibérico são colocados como entraves à modernização do país. A crítica presente neste
discurso dirige-se à sociedade colonial, no âmbito da política, da economia, da cultura, das
ciências, da religião, e da Educação, onde o anticlericalismo ganhara particular destaque.

Seja através do consumo dos artigos de última moda ou da recepção entusiasmada das novas
estéticas ou das novas escolas filosóficas em voga o Brasil ilustrado do inicio do século XX,
colocava-se como coparticipante do modelo cultural que primava pelo “triunfo da
modernidade sobre o atraso”, pela crença na primazia da racionalidade, que instaurava uma

1519
crise na identidade religiosa do homem contemporâneo (SEVCENKO, 1988, p.14).
Concomitantemente, a religião cristã estava tendo o seu número de fiéis reduzido nas
sociedades europeias e, de um modo geral, com a exceção dos EUA, a religião ocidental
nunca havia sofrido maior pressão no meio intelectual e político como no final do século XIX
(HOBSBAWN, 1987, p. 245). Neste sentido, o protestantismo de missão proveniente dos
EUA que se estabeleceu no Brasil no início da Primeira República, está inserido em um
movimento histórico que é de certa forma, uma reação contra o processo de secularização que
se instalava na Europa e que se refletia nas posições ideológicas das lideranças políticas e
intelectuais da América Latina.

Para a intelectualidade sul-americana elevar o nível educacional da população implicava


inculcar-lhe o espírito do iluminismo, fazendo a apologia do racionalismo, do progresso
científico, das conquistas da modernidade, ao mesmo tempo em que se criticava em seu
discurso anticlerical o indesejável “atraso” em que se encontravam os países de procedência
católica. A postura da Igreja Católica de resistência à ideologia da razão e do progresso havia
se tornado uma discussão central no ambiente cultural brasileiro e também nas comunidades
religiosas. Neste contexto, percebe-se que as críticas dos missionários batistas dirigidas às
lideranças católicas do país são proferidas no sentido de questionar a forma com que o
catolicismo prestava assistência espiritual à população, entendida como insuficiente para
libertar o povo de sua “estagnação espiritual” e sobrepujar a “ignorância das massas”.
Observa-se um redirecionamento da discussão sobre o papel histórico do protestantismo em
diversos artigos publicados pela imprensa batista no período, onde a ênfase passa a ser dada a
sua projeção no horizonte científico e cultural do mundo contemporâneo.

Neste período abundaram matérias que traziam informes sobre as novas descobertas
realizadas em todas as áreas do saber, pois eram noticiadas constantemente novas teorias
científicas (como as mais recentes descobertas das ciências, a invenção de novas máquinas, os
avanços tecnológicos), e também as conquistas no terreno político-social, de modo que a
capacidade engenhosa dos cientistas, artistas e políticos dos países protestantes era
grandemente enaltecida no Jornal. Os artigos eram elaborados de modo a pontuar as
contribuições históricas de personalidades de origem protestante nas diversas áreas do
conhecimento, das artes e da política, sendo citados, dentre numerosas figuras proeminentes
os grandes nomes da história do desenvolvimento das ciências naturais, humanas e das artes.
Pode-se observar na articulação destes textos, o intuito de vincular os conceitos de progresso
e de civilização às nações de formação protestante, uma vez que procuram evidenciar o nível

1520
de desenvolvimento técnico, artístico e científico que estas nações haviam atingido e
estabelecer uma relação entre a liberdade de consciência religiosa (entendida como herdeira
do pensamento protestante), e o processo de aprimoramento de suas instituições políticas e
educacionais.

A formação do pensamento protestante brasileiro, contemporâneo à ideologia do progresso e


da civilização, veio a suscitar uma importante discussão a respeito das possíveis relações de
compatibilidade entre fé e razão, religião e progresso, tendo ampla repercussão no ambiente
cultural brasileiro. Os missionários protestantes juntamente com os intelectuais liberais
difundiram amplamente na imprensa a ideia de que à medida que o povo sul-americano
passasse a abdicar da religião católica, seus países logo dariam demonstração de principiar
uma etapa de sua história em que os benefícios do progresso poderiam ser sentido em todos os
setores da sociedade (GRAHAN, 1973, p. 294). Predominava nos círculos evangélicos o
pensamento de que o protestantismo era uma religião cristã que se harmonizava
substancialmente com o ideário da modernidade, ao passo que para o “catolicismo
retrógrado” do Syllabus6, a única civilização possível para a raça humana seria a sociedade
medieval. No juízo crítico do imaginário protestante da época, a Igreja Católica teria sido
através dos séculos um inimigo inveterado do engenho humano, uma vez que o papado teria
patrocinado uma luta feroz contra a filosofia, a ciência e a imprensa nos seus primórdios,
buscando cercear os progressos da razão porque a sua independência ameaçava o seu poderio
(TARSIER, 1933, p. 269).

Na compreensão evangélica do período, o primeiro passo rumo ao alto patamar de civilização


alcançado pelas nações europeias desenvolvidas teria sido dado com o advento da Reforma
protestante que propiciara o despertar para a necessidade de reconhecimento legal dos direitos
individuais, em virtude de sua defesa do princípio do livre exame das Escrituras. O êxito de
sua militância em favor da observância do direito de liberdade de consciência religiosa teria
contribuindo para a dissolução do modelo de organização social vigente durante séculos na
Idade Média - o “absolutismo religioso” a que se refere o Jornal Batista - no qual os reis e os
povos teriam estado submetidos ao julgo do poder pontifício permitindo que a Igreja Católica
pudesse desfrutar sobejamente de suas prerrogativas políticas e de seus privilégios materiais.

Na visão dos missionários batistas, no contexto das sociedades contemporâneas, os povos da


6
Bula papal expedida pelo Papa Pio IX em 1864, através da qual o pontífice romano declarou uma série de
proposições condenatórias, citando dentre elas as atividades praticadas pelas sociedades bíblicas protestantes,
que foram classificadas entre “os erros da modernidade”.

1521
Europa e da América Latina ainda estavam sendo dominados pelo “obscurantismo” do
catolicismo ultramontano, sendo facilmente manipulados por estas “lideranças reacionárias”
que travavam uma luta acirrada contra a intelectualidade liberal e contra os pastores
protestantes, para que se não fossem erradicados destas nações o analfabetismo, a superstição,
e mesmo o fanatismo religioso. A sua opinião era de que a Igreja Romana, ao invés de instruir
essas populações transmitindo-lhes o conhecimento bíblico e facultando-lhes o acesso à
cultura geral, optara por mantê-los cativos da mais “crassa ignorância”, pensando com isso
que poderia torná-los imunes aos “efeitos subversivos” tanto do discurso liberal quanto da
prédica protestante. Conforme podemos constatar na leitura dos artigos do Jornal Batista que
foram publicados no período, está fortemente arraigada no imaginário da denominação a
convicção de que o ideário e o modo de vida protestante eram as ferramentas ideológicas mais
eficazes para libertar a nação brasileira de sua “ignorância” e para fazê-la percorrer o caminho
da modernização e do progresso, concorrendo para a aquisição da “prosperidade industrial
rigorosa e luxuriante tal como uma floresta tropical” de que falava Ruy Barbosa7 e outros
integrantes da elite intelectual do país (GRAHAN, 1973, p. 294).

Desde o início do século XIX havia tanto em nosso sistema religioso bem como em nossa
cultura elementos favoráveis à inserção do protestantismo em terras brasileiras, e esta
disposição pode ser percebida através das ações reformistas de padres e leigos católicos que
vieram a se tornar colaboradores dos missionários protestantes (entre eles citamos o ex-padre
católico Antônio Teixeira de Albuquerque, o primeiro brasileiro ordenado ministro batista). A
cultura brasileira como um todo cedia espaço a um pluralismo que também se refletia em
nosso sistema religioso. Movidos pela aspiração de uma reforma espiritual de bases bíblicas,
alguns membros do clero católico tornaram-se adeptos dos princípios reformistas e aderiram
ao movimento reformador, tornando-se importantes agentes na implantação de novas igrejas.

Também entre os intelectuais idealizadores das reformas sociais que ocorreram no final do
século XIX, encontramos o parecer favorável ao encaminhamento da separação entre o Estado
e a Igreja presentes nos discursos de Ruy Barbosa, Saldanha Marinho, entre outros. O Jornal

7
Richard Grahan, em seu livro sobre a modernização no Brasil menciona a frase de Rui e com ela transige,
adicionando a informação de que outro brasileiro traduziu prontamente para o português o livro do escritor
francês Emílio de Laveley “Do Futuro dos Povos Católicos”, logo que ele foi posto à venda em 1875. A obra
teve ampla repercussão no meio evangélico porque supunha que as nações protestantes triunfariam sobre as
católicas, alegando que este evento se concretizaria pelo fato de os protestantes investirem na educação,
fomentarem o desenvolvimento científico, cultivarem o sentimento de nacionalismo e respeitarem a liberdade
intelectual. A imprensa protestante de um modo geral procurou divulgar essa ideia, na medida em que retratava o
protestantismo como o contraponto do catolicismo não apenas no terreno dogmático, mas também em seu
incentivo para que os povos trilhassem as sendas do progresso e da modernidade.

1522
Batista elogiou insistentemente a posição política de intelectuais brasileiros que eram
defensores dos ideais do liberalismo como foi o caso de Saldanha Marinho e a sua atuação na
chamada Questão Religiosa ocorrida em 1870. Em sua obra A Igreja e o Estado, o autor
equacionara a problemática das relações estreitas entre o poder temporal e espiritual, fazendo
a asserção de que a força da lei política era impotente para manter as crenças religiosas, já que
os seus rigores e a sua força de coerção poderiam somente fazer dos cidadãos “vítimas ou
hipócritas, mas nunca crentes”. Saldanha Marinho fez uma célebre exposição do ponto de
vista liberal, ao declarar que em uma sociedade na qual não há unidade de crenças, a religião
não pode ser o fundamento da organização política; e assim sendo, concluiu que “não poderia
existir regularmente religião de Estado no Brasil” (HOLLANDA, 1974, p. 333).

Outro exemplo ilustrativo do alcance dos debates acerca do protestantismo entre intelectuais
brasileiros é a referência que Rui Barbosa lhe faz em sua obra (o que remete a ideia de que a
sua repercussão não se restringia às comunidades religiosas). Rui Barbosa refere-se ao
protestantismo como um movimento nascido da liberdade da consciência individual, cuja
consequência política é a liberdade religiosa e afirma que “do protestantismo é filha a
instrução popular, que constitui a grande característica, o principal instrumento e a
necessidade vital da civilização moderna". O autor problematiza as questões religiosas da
América Latina discorrendo sobre a tensão gerada pela crença no progresso como regenerador
da sociedade e a luta do catolicismo pela permanência dos valores tradicionais, por vezes
opostos aos progressos técnico-científicos. Conforme os questionamentos próprios de seu
tempo, a ideia de que o progresso, a conformação mais igualitária da sociedade e uma cultura
mais elevada são fenômenos sociais encontrados em países de formação protestantes, estão
frequentemente presentes em seus discursos (BARBOSA, 1950, p. 163).

Considerações finais

O protestantismo era assimilado pelas comunidades evangélicas brasileiras como aliado da


democracia e do progresso, defensor da independência do pensamento individual através do
livre exame da Bíblia e incentivador da educação dos fiéis, implicando uma moral mais
elevada pelo grau mais profundo de consciência dos valores cristãos. No início do século XX,
os missionários batistas americanos e os membros brasileiros da denominação empenharam-
se na ampliação de seu campo de trabalho e decidiram direcionar os seus esforços ao setor

1523
educacional, pois estavam determinados a contribuir com a transformação da atmosfera
cultural do país. Em suas congregações localizadas nas regiões rurais, a ação evangelizadora
batista foi acompanhada da iniciativa de promover a alfabetização que tornava possível a um
número maior de fiéis o estudo individual da Bíblia; nas cidades, a preocupação era aprimorar
o sistema educacional, e elevar o grau de instrução daqueles que tinham acesso à Educação
formal. Tanto o analfabetismo popular como as deficiências do sistema de ensino brasileiro
eram considerados pelos batistas como um entrave ao desenvolvimento de um conjunto de
valores positivos para a formação intelectual do indivíduo e para a ilustração da cultura
nacional.

Entre os anos de 1901 e 1930 a imprensa batista também privilegiou em suas pautas as
severas críticas ao desempenho do catolicismo romano no âmbito da Educação, buscando
demonstrar sistematicamente em seus artigos como eram atrasados na alfabetização os súditos
das nações católicas, em contraste com os altos índices estatísticos de escolaridade observados
entre os cidadãos dos países protestantes. Esta grande defasagem na área educacional era
patente nos países católicos e estava na mira da imprensa evangélica que pintava um quadro
sombrio desta desfavorável realidade social, em que a média de percentagem de analfabetos
chegava a aproximadamente 60% da população, enquanto que nas nações onde o
protestantismo era a religião majoritária, não passava de 4%, em média. Quando o assunto era
o analfabetismo no Brasil, as críticas ao clero católico se intensificavam, pois grande parcela
da responsabilidade pela administração do ensino brasileiro fora diretamente delegado à Igreja
Romana por séculos, e os estudos do censo indicavam naquele momento a existência de cerca
de 80% de iletrados na nação.

A posição dos batistas sobre essa questão se assentava na explicação de que o clero também
deveria ser implicado como um agente responsável pelo fenômeno de atonia moral na
política: o argumento era o de que, em parte, a Igreja Católica deveria ser responsabilizada
pela debilidade intelectual das massas que ficaram alijadas do acesso à cultura letrada,
tornando–se indivíduos sem o instinto do direito, sujeitos a uma obediência passiva quase
servil; e na sua diagnose, esta marginalização da maioria dos cidadãos do processo político
enfraquecia as instituições civis e o próprio sentido da nacionalidade. Então, para além da
propagação dos princípios centrais da Reforma, os articulistas de O Jornal Batista
empenharam-se para oferecer ao seu público leitor informações sobre o desenvolvimento do
seu projeto educacional, noticiando a expansão da rede de suas instituições escolares, de suas
formas de organização e de seu projeto pedagógico. Os missionários idealizadores deste

1524
periódico o conceberam como um instrumento para a evangelização e instrução de brasileiros
residentes em diferentes localidades e a estratégia missionária em torno da implantação de um
programa de publicações de tal escopo, sediado no Rio Janeiro, tinha como metas não
somente o aprimoramento da formação religiosa, mas também a produção de material
educativo que seriam utilizados nos colégios e lares batistas de todo o país.

A realização da vocação batista cívico-missionária em solo brasileiro, no início do século XX,


representou para um número significativo de contemporâneos a consolidação de uma ética
cristã (que tem nas Escrituras a sua única regra de fé e vida) e o despertar religioso em uma
época, em que o advento da Revolução cientifico-tecnológica causara grande impacto nas
sensibilidades religiosas. A Imprensa batista atuou como veículo reformador das crenças
básicas do sistema religioso brasileiro e muitos artigos publicados nestes primeiros anos
procuravam fortalecer o entendimento dos novos convertidos acerca das regras de fé e prática
historicamente propagadas pelo protestantismo, fornecendo as bases para a formação de uma
nova mentalidade religiosa. Quanto ao conteúdo apreendido através da leitura da
documentação referente ao período, pode-se concluir que nela são evidenciados: o
compromisso dos missionários com a evangelização do povo brasileiro, a sua preocupação
com o aprimoramento da Educação formal e teológica dos fiéis, bem como a intenção de
transmitir conhecimento histórico a seus leitores através da elaboração de artigos que
abordavam questões relacionadas à história da Igreja e das religiões.

Referências

ADAMOVICZ, A.L.C., Imprensa protestante na Primeira República: evangelismo,


informação e produção cultural – (O Jornal Batista, 1901-1922). Tese de Doutorado. São
Paulo: USP, 2008.

AZEVEDO, Israel Belo. A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista


brasileiro. Piracicaba: UNIMEP, 1996.

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Ministério da Educação, 1950.

GRAHAN, Richard. Grã Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo:


Brasiliense, 1973.

HOLLANDA, Sérgio Buarque; CAMPOS, Pedro Moacyr (Org.). História Geral da

1525
Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1974.

HOBSBAWM, Eric. The Age of the Empire (1875-1914). Nova Iorque: Random House, 1987.

LÉONARD, Émile G. Protestantismo brasileiro. São Paulo: Aste, 1997.

LEONARDI, Paula. Congregações católicas e educação: o caso da Sagrada Família de


Bordeaux. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11 n.2 (26) Campinas, p.103-129,
2011.

MEIN, David. O que Deus tem feito. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e
Publicações da Convenção Batista Brasileira, 1982.

PEREIRA, José Reis. História dos batistas no Brasil. Rio de Janeiro: JUERP, 1982.

REIS, Álvaro. As conferências do Padre Júlio Maria. Rio de Janeiro. Livraria Evangélica,
1908.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil República: da Belle Époque a era
do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

TARSIER, Pedro. Roma, o Jesuitismo e a Constituinte: estudo histórico-crítico. Porto Alegre:


Livraria Universal, 1933.

1526
1527
Émile-G. Léonard e seu lugar na historiografia protestante
brasileira
Marcone Bezerra Carvalho1

Introdução

Em conferência dada na École Pratique des Hautes Études Jean-Paul Willaime2 afirmou em
relação ao historiador Émile-G. Léonard

que todos os especialistas do protestantismo têm uma dívida com ele: a sua Histoire
Générale du Protestantisme não tem sido substituída e, se muitos trabalhos estão sendo
dedicados ao estudo dos protestantismos dos diferentes continentes, a leitura da obra de
Léonard continua sempre estimulante pelas pistas de pesquisa que abre. A consulta
freqüente dessa magistral obra permite adquirir uma visão mundial do estabelecimento e
desenvolvimento do protestantismo (WILLAIME, 2000, p. 17-18).

Na opinião de outros estudiosos franceses, sua monumental Histoire assegura a ele um lugar
entre os clássicos no estudo do fenômeno protestante (LE BRAS, Gabriel & GROUPE DE
SOCIOLOGIE DES RELIGIONS, 1962, p. 3). Foi devido à sua dedicação à temática
protestante que o acadêmico recebeu dois títulos de Doutor Honoris Causa: pela Universidade
Livre de Amsterdã (1955) e pela Faculdade de Teologia de Montpellier (1959).

Émile-G. Léonard não é desconhecido na academia brasileira. “A maior autoridade francesa


em História da Reforma Protestante” – assim alguns se recordam dele em nosso país (FILHO,
SIMÃO e FRANÇA, 1989, p. 26). No entanto, diferentemente do cenário internacional, sua
importância e a influência exercida por ele nos estudos relacionados ao protestantismo
brasileiro ainda precisam ser reconhecidos3. O presente artigo ressalta a singularidade de sua
obra “brasileira” e destaca a pertinência do debate dos seus pontos de vista.

Émile-G. Léonard: aspectos biográficos


1
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Contato: rev.mbc@gmail.com
2
Diretor e professor na École Pratique des Hautes Études (Seção de Ciências Religiosas).
3
Abordamos este assunto na dissertação de mestrado defendida no começo do ano: Émile-G. Léonard e sua
Contribuição aos Estudos do Protestantismo Brasileiro.

1528
Guillaume Jules Émile Léonard4 nasceu em 30 de julho de 1891 em Aubais, cidade do sul da
França localizada entre Nîmes e Montpellier. A região é significativa para a história do
protestantismo francês, pois é depositária da herança das églises du désert 5 e dos camisards6
do século XVIII: área onde seguidas gerações de protestantes viveram e desenvolveram um
forte senso identitário (WATANABE, 2011, p. 84). O próprio Léonard a descrevia como
“terra de camisarda” (LÉONARD, 1962, p. 9).

A família de Léonard é legatária da tradição huguenote. Os antepassados dele constam nos


arquivos de Genebra – que, no século XVIII, recebeu muitos refugiados franceses. Quanto aos
estudos, Léonard foi aluno nos Liceus das cidades de Saint-Étienne, Montpellier e Paris. Em
1911, o estudante aubaisienne ingressou no École de Chartes, da Sorbonne, mas só foi
diplomado arquivista paleógrafo anos depois. É que de 1915 a 1918 ele serviu como
subtenente de artilharia na 1ª Grande Guerra. Retomou, em 1918, seu curso na École e, em
janeiro de 1919, se diploma como primeiro da turma.

O início de sua carreira profissional aconteceu em Roma. De outubro de 1919 a junho de 1922
foi membro da École Française de Rome. De volta à França, atua como bibliotecário da seção
de manuscritos da Bibliothèque Nationale de Paris (junho/1922 a outubro/1927). Depois da
capital francesa, volta à Itália para viver em Nápoles (novembro/1927 a março/1934) -
vinculado ao Institut Français e à Universidade local. Seu doutoramento pela Faculté des
Lettres de Paris se dá em 1932.

Nova mudança de endereço acontece em 1934, quando retorna à França. Agora em Caen,
região da Normandia, ele consegue seu primeiro emprego como professor titular. Na Faculté
des Lettres ensina história da Idade Média e história da Normandia. Preside a Sociedade dos
Antiquários. Sua permanência em Caen se estende até 1940. Essa experiência resultou na obra
Histoire de la Normandie. De Caen, Léonard volta ao sul do país: Aix-en-Provence, lá
permanecendo de 1940 a 1948 como professor de história na Faculté de Lettres e de história
da igreja na Faculté Libre de Theologie.

4
O uso de um nome “social” diferente do nome de registro se deve a um costume da época, como nos explicou
em carta a filha dele, Sra. Jeanne-Marie Léonard.
5
A expressão “igrejas do deserto” designa as comunidades huguenotes que sobreviveram na clandestinidade
durante a perseguição estatal, entre 1685 – ano de revogação do Édito de Nantes (de 1598) – e 1787 – quando foi
decretada a tolerância religiosa no país.
6
A denominação “camisards” foi dada aos calvinistas que se levantaram contra a monarquia em 1702,
reivindicando liberdade de culto. “Camisard” vem do tipo de camisa que identificava os revoltosos. A rebelião
terminou em 1715, quando foi firmado um acordo de paz.

1529
Nessa altura, década de 40, Léonard já desfruta de reconhecimento acadêmico e seu contato
com o grupo da Escola dos Annales é visível: publica, na revista homônima, Economie et
religion. Les protestantes français au XVIIIe siècle (1940), La question sociale dans l’armée
française au XVIII siècle (1948) e algumas resenhas ao longo desses anos. Por mais que sua
bibliografia revele pesquisas sobre diferentes temáticas, a partir de então, com mais de 40
anos, Léonard passa a se dedicar cada vez mais ao assunto acerca do qual será reconhecido e
ganhará projeção internacional: a história da Reforma e do protestantismo. Seu contato com
Lucien Febvre remonta à essa época. É relevante observar essa aproximação entre eles porque
Febvre teve influência crucial na história de Léonard. Foi por indicação sua que ele veio ao
Brasil lecionar na USP; é também por indicação sua que Léonard o substituirá como diretor e
professor da École Prátique des Hautes Études. A pedido de Febvre, Léonard escreve Le
Protestant Français (1955), obra que lhe rende dois prêmios e uma elogiosa resenha do
próprio Febvre na revista Annales.

Em maio de 1948 Léonard, desembarca em São Paulo onde ficaria por 2 anos e 8 meses.
Segundo Bastide a vinda de Léonard para USP atendeu ao pedido de Lucien Febvre e Fernand
Braudel (BASTIDE, 1962, p. 79). Sua vinda tinha uma finalidade dupla, por assim dizer:
lecionar e, sobretudo, pesquisar “o país que, naquele momento, tinha os mais altos índices de
crescimento do protestantismo mundial” (WATANABE, 2011, p. 86). E, de fato, sua estada
entre nós foi profícua. Sua inserção no cenário intelectual paulistano é digna de apreciação.
Em dois e oito meses, entre idas e vindas à França, além de ensinar na Faculdade, visitou e
conheceu o acervo de bibliotecas da capital e do interior, publicou em periódicos
confessionais, escreveu para o jornal O Estado de São Paulo, assinou resenhas, ocupou o
púlpito, freqüentou igrejas, ciceroneou e apresentou compatriotas ao público brasileiro,
estabeleceu amizades que perduraram pelos anos e leu a bibliografia pertinente à história do
país e do protestantismo. No entanto, seu grande feito entre nós foi ter produzido uma obra
absolutamente importante sobre o movimento evangélico nacional.

Na expressão de sua fé, ele freqüentou as Igrejas Cristã de São Paulo e Presbiteriana
Conservadora; visitou, ou na condição de convidado ou como pesquisador-observador, outras
igrejas - tanto aquelas ligadas ao protestantismo histórico como as que estavam à sua margem.
Por aqui, fez amigos, relacionou-se com líderes evangélicos e seus liderados, familiarizou-se
com os arquivos e bibliotecas – eclesiásticos ou não – e desenvolveu alta estima por dois
aspectos do protestantismo brasileiro: a evangelização e a Escola Dominical (LÉONARD,
1962, p. 9).

1530
Em dezembro de 1950, devido aos compromissos com a École em Paris, ele volta à França.
Os termos da carta-renúncia do seu contrato com a Faculdade deixam perceber seu afeto para
com a instituição e os brasileiros:

Lamento não poder continuar a servir a Universidade de S. Paulo, mas na França


continuarei, quando for útil, a prestar a minha colaboração. Aproveito o ensejo para
expressar a V. Excia. os meus agradecimentos pela consideração com que sempre me
distinguiu, solicitando transmitir aos meus colegas da Congregação a expressão de meus
sentimentos de cordialidade e estima. A V.Excia, Snr. Diretor, renovo a afirmação de
admiração e amizade, com meus votos pela felicidade pessoal de V. Excia e pelo progresso
da nossa Faculdade (Apud CARVALHO, 2012, p. 33).

Instalado em Paris, ele assume efetivamente a direção da École Prátique des Hautes Études.
Em 1955, passa a integrar o Conselho Administrativo da Sociéte de l’Histoire de France.
Nessa década ele desfruta do respeito dos pares e passa a colecionar títulos e honrarias dentro
e, eventualmente, fora do país. No fim de outubro de 1961, uma queda causou a fratura da
perna e o agravamento do seu estado de saúde; é que ele, deprimido, vinha sofrendo de uma
forte crise anêmica. Por causa do acidente, não mais se levantou, falecendo em 11 de
dezembro.

A Historiografia Protestante Brasileira antes de Émile-G. Léonard

Quando Léonard por aqui aportou, a presença protestante em nosso país não tinha completado
100 anos. Referimo-nos ao estabelecimento dos missionários a partir de 1855, com a chegada
do casal Kalley no Rio de Janeiro7. Tratava-se, segundo a opinião de Léonard, de um
protestantismo “ainda em sua primeira adolescência ou primeira infância” (LÉONARD, 2002,
p. 16).

Uma vez aqui, Léonard imediatamente se debruçou sobre a literatura produzida pelos
protestantes, sobre os autores e obras clássicas da história do Brasil e iniciou seus contatos e

7
Mencionamos isso porque o objeto de estudo que Léonard cunhou de “protestantismo brasileiro” diz respeito
tão somente às igrejas implantadas pelos missionários a partir da segunda metade do século XIX. Cf.
LÉONARD, Emile-G. O Protestantismo Brasileiro, p. 16 e, especialmente, p. 20. Os alemães luteranos dentre
outros estrangeiros, por um lado, e os pentescostais – aos quais ele denominava de “iluministas” -, por outro, não
foram por ele analisados. Os pentecostais, ou “iluministas”, até foram estudados, mas a parte dos “históricos”.

1531
conversações com estudiosos e líderes das igrejas evangélicas. Ainda estava por ser escrita
uma síntese do evangelicalismo brasileiro. Existiam trabalhos dispersos e alguns poucos
dedicados à história de cada denominação. Estes eram de importância relativa, uns mais
outros menos, variados quanto à temática e nem sempre de fácil acesso.

Referindo-se à historiografia protestante dessa época anterior à pesquisa de Léonard, o


historiador Odilon Nogueira de Matos (1916-2008), assevera:

Durante muito tempo a história do Protestantismo no Brasil foi colocada em bases


denominacionais. Cada denominação possui seus historiadores, autores de obras mais ou
menos extensas, igualmente mais ou menos valiosas, todas elas indispensáveis, sem dúvida,
para o conhecimento da crônica do estabelecimento e desenvolvimento das respectivas
igrejas (...). Mas foi só com o livro do professor Émile G. Léonard que se fez o primeiro
estudo realmente valioso sobre o Protestantismo, do ponto-de-vista sociológico (MATOS,

1985, p. 338-339).

Mendonça afirma que Léonard foi o iniciador “da historiografia protestante nos trilhos da
pesquisa científica, pois que até então os historiadores do protestantismo eram formados em
teologia e limitavam-se à uma história confessional, apologética ou polêmica e edificante”
(MENDONÇA, 2008, p. 288).

Ao analisar especificamente a literatura histórica produzida pelos protestantes na primeira


metade do século, Watanabe situa a década de 30 como o período em que surgiu o interesse
pela história denominacional nas três principais igrejas de origem missionária da época:
Presbiteriana, Batista e Metodista. Para ele, nos anos 30

as igrejas passavam por um momento de nacionalização das suas estruturas eclesiásticas e,


muitos dos seus pastores procuravam construir uma Teologia nacional. Os evangélicos
procuravam uma independência política e financeira das juntas de missões norte-
americanas, sendo os anos 1930, o momento da independência. Os livros de história serão a
representação desse momento especial de autonomia e da necessidade do protestantismo
pensar uma identidade histórica nacional. Ao mesmo tempo em que adquiriam
independência nos anos 1930, os protestantes estabeleciam debates ácidos contra os
católicos e reagiram contrariamente a aproximação feita por Getúlio Vargas com a Igreja
Católica. Os livros serão a representação desse momento político e religioso do Brasil, da
força da intelectualidade católica e expressão da reação protestante contra a reaproximação
entre Estado e Igreja no Brasil (WATANABE, 2011, p. 23).

1532
Observando especialmente, mas não exclusivamente, os livros Cincoenta annos de
Methodismo no Brasil, Annaes da Primeira Egreja Presbyteriana de São Paulo e História dos
Baptistas no Brasil de 1907 até 1935, Watanabe contextualiza os mesmos no quadro da
produção historiográfica vigente no país e chega à conclusão de que eram obras influenciadas
- na sua metodologia - pela tradição dos Institutos Históricos e Geográficos estaduais e do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, livros que procuravam, de alguma forma, servir às
igrejas evangélicas no seu processo de legitimação na sociedade brasileira, majoritariamente
católica, demonstrando a superioridade civilizacional do protestantismo. Ademais, havia o
desejo de nacionalização, de autonomia das igrejas em relação às suas mães americanas
(WATANABE, 2011, p. 24-25) - justamente num momento histórico em que a geração
daqueles que conheceram os missionários fundadores já tinha desaparecido ou estava por
desaparecer.

O Protestantismo Brasileiro

Antes de falarmos da principal obra brasileira de Léonard, O Protestantismo Brasileiro,


oferecemos a relação de textos escritos por ele sobre o Brasil ou que contém algumas de suas
opiniões sobre o país, material de singular importância para compreender seu brasilianismo,
isto é, seu entendimento acerca da realidade brasileira.

1. Bibliographie sommaire du protestantisme brésilien, 2 páginas, datilografado8;

2. Serge Milliet et la défense de la culture française au Brésil, 5 páginas, datilografado 9;

3. 1548-1848. Dois Grandes Aniversários da Fidelidade à Doutrina Evangélica (1ª parte), em


O Presbiteriano Conservador, nº 7, de setembro de 1948. Apesar do título, tanto nesse como
no texto seguinte Léonard tece algumas opiniões sobre a realidade brasileira;

4. 1548-1848. Dois Grandes Aniversários da Fidelidade à Doutrina Evangélica (2ª parte), em


O Presbiteriano Conservador, nº 8, de outubro de 1948;

8
Possuímos o original que nos foi ofertado pela Sra. Jeanne-Marie Léonard. O documento não tem registro de
data. Todavia, pelas informações nele contidas, é possível concluir que o mesmo foi redigido entre 1952 e 1953.
9
Possuímos uma cópia que nos foi ofertada pela Sra. Jeanne-Marie Léonard. Uma anotação feita pela própria no
verso da última folha registra a data do texto: 20/9/1948.

1533
5. Experiências Espirituais Francesas e Brasileiras, em Cooperador Cristão, setembro-
outubro de 1948;

6. Experiências Eclesiásticas Francesas e Brasileiras, em Cooperador Cristão, novembro-


dezembro de 1948;

7. L’EGLISE PRESBYTÉRIENNE DU BRÉSIL ET SES EXPÉRIENCES


ECCLÉSIASTIQUES, 108 p., número especial de Études Evangéliques, Janvier-Mars 1949,
revista trimestral da Faculté Libre de Théologie Protestante d’Aix-en-Provence. Trata-se,
como ele informa na nota de rodapé nº 1, de uma das partes de Le Protestantisme brésilien -
“en préparation” (LÉONARD, 1949, p. 1).

8. Saudação ao Presbitério Conservador, discurso proferido em 28 de junho de 1949 durante a


II sessão da X Reunião Ordinária do Presbitério Conservador, na cidade de São Paulo;

9. Brasil, terra de História, em Revista de História, nº 2, 1950, p. 219-228;

10. Le probléme du messianisme dans ses rapports avec le nationalisme chez les nègres du
Brésil, em Le Monde Non-Chrétien, nº 19, 1951, p. 316-326;

11. O PROTESTANTISMO BRASILEIRO. ESTUDO DE ECLESIOLOGIA E DE


HISTÓRIA SOCIAL, em Revista de História, nº 5 a 12, 1951-1952 – artigos posteriormente
reunidos num único volume, O Protestantismo Brasileiro, de 315 páginas - que por uma
dessas ironias que a história reserva aos homens seria publicado pela ASTE, editora criada
pelo movimento em relação ao qual Léonard não nutria simpatia: o ecumênico;

12. L’Évangile au Brésil, em La Revue de l’Évangélisation, julho-agosto de 1952, p. 208-235;

13. L’ILLUMINISME DANS UN PROTESTANTISME DE CONSTITUTION RÉCENT


(BRÉSIL), 1952 e 1953, de 114 páginas. Esta obra é a continuação de O Protestantismo
Brasileiro. L’Illuminisme desenvolve o assunto com o qual Léonard encerra sua obra maior;

14. Protestant français et protestant brésilien, em Revue de Psychologie des Peuples, 1º


trimestre de 1953, p. 40-57;

15. La Formation d’une société protestant au Brésil, capítulo da coletânea L’éventail de


l’histoire vivante, 1954, p. 241-253;

1534
16. Pionniers de la foi, 1955, editora La Cause. Tradução do livro Bandeirantes da Fé, de
Maria de Mello Chaves, com introdução de 5 páginas e notas explicativas para o público
francês;

17. La Confession de foi brésiliene de 1557, em Archiv für Reformationsgeschichte, sem data,
p. 204-212, e em Mélanges Netter, 1958;

18. Le Denominationalisme dans le protestantisme brésilien, manuscrito preparado para


impressão mas não publicado10, 7 p., sem data;

Além desses escritos, Léonard publicou Guillaume Apollinaire meu camarada de caserna no
jornal O Estado de São Paulo11, e assinou duas resenhas que também foram publicadas no
Brasil: Um Parlamentar Paulista da República, de Alfredo Ellis Júnior (REVISTA DE
HISTÓRIA, 1951, 215-219), e Séville et l’Atlantique (1504-1650), de Huguete e Pierre
Chaunu (REVISTA DE HISTÓRIA, 1956, 534-537). Outro escrito, não publicado, é o
fichamento da obra O índio brasileiro e a Revolução Francesa de Afonso Arinos de Melo
Franco12.

Os escritos mais conhecidos e, por certo, os mais importantes, são os maiores, que foram
publicados de forma independente – ou seja, em volumes próprios e não como parte de uma
coletânea ou de uma revista. O 1º a ser lançado foi L’Eglise Presbytérienne du Brésil et ses
expériences ecclésiastiques, que, conforme Léonard registra na primeira página, era parte de
uma obra em preparação (O Protestantismo Brasileiro). Foi publicado na França no 1º
semestre de 1949 e nunca vertido para o português. A comparação de L’Eglise com as páginas
de O Protestantismo Brasileiro dedicadas ao presbiterianismo no Brasil revela que, apesar do
que pode sugerir a observação do autor, não se trata do mesmo texto inserido numa obra mais
ampla.

A continuidade da pesquisa sobre a igreja evangélica brasileira resultou no aparecimento de


oito artigos sucessivos na trimestral Revista de História da USP (nºs 5 a 12 – de janeiro de
1951 a dezembro de 1952), artigos que o autor desde o início escreveu para sair em livro,
lembra-nos Salum - que prefaciaria a obra 10 anos depois. A obra deveria ter sido publicada

10
Possuímos uma cópia, que nos foi enviada pela Sra. Jeanne-Marie Léonard.
11
Em 08 de agosto de 1948.
12
Possuímos uma cópia que nos foi enviada pela Sra. Jeanne-Marie, intitulada “Analyse de Franco (Affonso
Arinos de Mello), O Indio brasileiro e a Revolução Francesa. As origens brasileiras da theoria da bondade
natural. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1937. (Collection ‘Documentos Brsileiros’)”. O material, de 5
páginas, não tem data.

1535
pela editora presbiteriana. Aliás, o retardamento da publicação não significa que não tenha
havido interesse ou mesmo tentativas de fazê-lo. O Dr. Eurípedes Simões de Paula, diretor da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e editor da Revista,
compactuava desse interesse Infelizmente ele não chegou a vê-la publicada devido ao seu
falecimento em dezembro de 1961 - meses antes do lançamento de O Protestantismo
Brasileiro pela ASTE. Prefaciada por seu meu melhor amigo no Brasil, o livro possui dez
capítulos apensados a outras duas partes: uma introdução e um levantamento bibliográfico
comentado.

O Protestantismo Brasileiro é a principal obra de Léonard sobre o Brasil, em relação à qual


estão associadas L’Eglise e O Iluminismo num Protestantismo de Constituição Recente. A
primeira consistindo no início da pesquisa (e também numa parte considerável dela) e a
segunda completando-a. Segundo Mendonça, na Revista, “estava em plena academia, entre
historiadores. Mas, em forma de livro, em 1963, fechou-se no círculo eclesiástico”
(MENDONÇA, 2004, p. 2). Com 10 capítulos apensados à introdução e à uma seção
intitulada “Fontes e Bibliografia”, o texto tem 315 páginas e 573 notas de rodapé13.

De partida, temos que observar esta obra sobre o Brasil foi escrita seguindo uma orientação de
Febvre, fato admitido pelo próprio autor, que procurou fazer uma “história social e
psicológica” (SALUM, 1962, p. 466-467). Nada mais natural visto que Léonard nutria grande
admiração por quem ele considerava o mestre da historiografia francesa dos nossos dias e
também porque naquele momento havia um declarado interesse dos annalistes pela América
do Sul.

Eis os aspectos reveladores da ligação de Léonard à Escola dos Annales, tais como se
mostram em O Protestantismo Brasileiro:

- a proposta de fazer um “estudo de eclesiologia e de história social religiosa”, em distinção a


uma história meramente confessional (LÉONARD, 2002, p. 15). Em vez da história factual,
ou événementielle, a história analítica, interpretativa;

- os indícios daquilo que ficaria conhecido como psicologia histórica ou, mais comumente,
história das mentalidades (LÉONARD, 2002, p. 16)... “o que importava para ele era a história
das ideias” (GUIRAL, 1962, p. 32);
13
São os números dados por Salum no prefácio da obra (p. 12). Ele se baseia no original (p. 9) e não na edição
tal como a conhecemos. Esta possui 340 páginas (desconsiderado o prefácio do próprio Salum) e 745 notas
(incluídas as notas do tradutor).

1536
- “A comparação entre a Europa e o Brasil” para se servir “de uma imagem análoga, diagonal
ou oblíqua...” (LÉONARD, 2002, p. 16) trata-se de um exercício de inovação diante da
historiografia da época, inovação típica da nouvelle histoire soprada por Febvre, Bloch e
companhia. “Se é verdade que os Annales procuravam conhecer o passado a partir do
presente, num método regressivo, Léonard quer conhecer o presente do ‘outro’ para conhecer
o ‘seu’ passado” (WATANABE, 2011, p. 94);

- O uso de variadas ferramentas, tais como a “História comparativa, a Etnografia, a


Sociologia, para entender o protestantismo brasileiro” (WATANABE, 2011, p. 95) bem como
de todas as fontes possíveis e até de dados colhidos em pesquisas de campo feitas por ele e
por outros. Mencione-se ainda o aproveitamento de obras da História do Brasil, de livros
católicos, de revistas eclesiásticas etc.

Essa ampliação documental e construção de uma história que recusava o relato factual, tal
qual era praticada pelos historiadores eclesiásticos, permitiu a visualização de outros
agentes, em especial, os leigos, o início de comunidades menores e uma problematização
sobre quais grupos sociais nos quais o protestantismo teria tido maior aceitação
(WATANABE, 2011, p. 106).

- A elaboração dos capítulos de seu O Protestantismo Brasileiro utilizando como instrumental


teórico a “história-problema” (WATANABE, 2011, 107).

Na “Introdução” o autor registra que seu estudo está relacionado a uma pesquisa mais ampla:
“os acontecimentos, as situações e as evoluções da história espiritual européia”. Não pretende
ser, diz ele, uma “história confessional” ou uma “história religiosa”, mas sim “um estudo de
eclesiologia e de história social religiosa” que consiste

na delimitação e no estudo das formas de Igreja que respondem a tais ou quais necessidades
religiosas, a tal ou qual psicologia, e no estudo dos problemas institucionais e práticos,
eclesiásticos e algumas vezes políticos levantados pela implantação e desenvolvimento de
crenças e de igrejas... estudo do “corpo social”... fazendo das Igrejas realidades, realidades
humanas, com todas as peculiaridades que surgem desta tradução da Idéia ao “real”
(LÉONARD, 2002, p. 16).

Léonard faz a comparação entre duas realidades, Europa e Brasil, mesmo reconhecendo que
seus estados são muito diversos, e revela seu pressuposto de que, ao se ter “uma consciência
mais profunda” dos referidos contextos, se conseguirá “uma compreensão melhor dos
fenômenos brasileiros atuais bem como dos fenômenos europeus de outrora”.

1537
Como partícipe do círculo dos Annales, a proposta de Léonard é inovadora. Ao se lançar no
“estudo de eclesiologia” ele está se referindo ao estudo dos problemas ocasionados pelas
“necessidades religiosas” assim como de outros (institucionais, práticos, eclesiásticos,
políticos) que surgiram no desenvolvimento das igrejas. Busca, dessa forma, entender a
“psicologia histórica” – expressão que já havia sido usada por Hernri Berr (1900), Marc Bloch
(1924) e Lucien Fevbre (1938) e que acabou sendo substituída pelo termo “mentalidades”
(BURKE, 1997, p. 132). Ao mesmo tempo, quando menciona “história social religiosa” ele
está advogando o estudo do contexto social como elemento básico de explicação do problema
religioso entre os homens e não apenas conforme as doutrinas e estruturas da instituição
(WATANABE, 2011, p. 105). O foco é o grupo na sua diversidade, e não os personagens
principais, os pastores ou a história institucional. Isso porque Léonard era, além de
historiador, ou melhor, por ser historiador, “um verdadeiro sociólogo (...) que se interessa pelo
real, pelo móvel, pelo social que se faz e continua a se transformar” (BASTIDE, 1962, p. 83).
Para tanto, ele se serve de uma gama considerável de documentos e fontes na elaboração do
seu texto. Eis aí, no material pesquisado e consultado, outra novidade encetada pelo modelo
historiográfico de Léonard. Que fique claro: novidade entre os autores que até então tinham
escrito sobre o protestantismo no país. É disso que trata a seção seguinte do livro: “Fontes e
Biliografia” – onde temos “uma ‘aula’ sobre como fazer história” (ARCI, 2012, p. 222).
Obras importantes contendo o histórico das igrejas evangélicas, clássicos da historiografia
brasileira, teses e monografias escritas por estrangeiros, estatísticas diversas, biografias,
periódicos denominacionais, atas, arquivos (públicos ou particulares), bibliotecas
(eclesiásticas ou não), papéis oficiais, documentos familiares, testemunhos orais, visitas de
campo etc., enfim, o francês seguiu à risca o mote da escola a qual pertencia: “tudo é
história”. Não somente pelo repertório documental e a utilização dos diversos tipos de fonte,
mas também pelos assuntos que se propõe a analisar - que revelam outro princípio caro aos
annalistes: o da “história-problema”, em oposição à história factual (WATANABE, 2011, p.
107) -, a abordagem leonardiana traz um sopro de novidade à historiografia protestante
vigente.

Depois de O Protestantismo Brasileiro, os historiadores do movimento evangélico no país


passaram a ter uma dívida com Léonard, visto que seu texto se tornou uma leitura
indispensável. É o que será mostrado em seguida.

1538
A Historiografia Protestante Brasileira depois de Émile-G. Léonard

A importância de Léonard na academia nacional é reconhecida por diversos autores,


protestantes ou não. Por várias razões, o depoimento de Roger Bastide constitui-se no mais
relevante que temos sobre a obra “brasileira” dele. É que Bastide já estava no país antes do
seu compatriota chegar e por aqui permaneceu até depois do seu regresso (1938-1954).
Notemos o que ele diz acerca do nosso personagem:

Foi assim que Émile-G. Léonard pode escrever sua magnífica monografia: O
Protestantismo Brasileiro. Estudo de eclesiologia e de sociologia religiosa, publicado na
Revista de História de São Paulo, assim como os diversos artigos publicados na Revista da
Faculdade de Teologia Protestante d'Aix ou na Biblioteca da Escola de Altos Estudos.
Quantas vezes discutimos juntos esses problemas, e eu pude acompanhar durante sua estada
brasileira o pesquisador atormentado pelo seu objeto. Eu digo: atormentado. Ao trabalho
para o qual estava proposto não faltavam dificuldades... Os documentos não faltaram, mas
eles estavam abandonados em algum armário empoeirado... Houve uma segunda fonte de
documentação, mais facilmente acessível, e que eu chamaria literatura sociológica: as
estatísticas de igrejas, dos pastores, dos fiéis, os regulamentos eclesiásticos, os jornais
religiosos. Porém, as cifras e os artigos não significam nada se não souberem ler, em
filigrana, a vida espiritual da qual eles não são mais que a expressão (...). Assim, durante a
pesquisa, o historiador se confunde em sociólogo, em um sociólogo sem dúvida oposto a
uma sociologia acadêmica que lhe parecia falsa, porém que faz de todo o conjunto de sua
obra uma contribuição valiosa tanto para a sociologia quanto para a história social do
protestantismo (BASTIDE, 1962, p. 82-84).

O primeiro estudo acadêmico realizado sobre o pentecostalismo e publicado em nosso país,


conforme nos lembra Campos (CAMPOS, 1997, p. 37), é o de Beatriz Muniz de Souza: A
experiência da salvação: Pentecostais em São Paulo. Publicado em 1969, trata-se da sua tese
de doutoramento apresentada em 1967 na UNICAMP (SOUZA, 1969, p. 15). Ao longo das
154 páginas do texto a influência de Léonard se faz presente do início ao fim da obra. Ele não
é apenas o primeiro autor citado, mas também o mais citado: 11 vezes, com vários excertos
seus transcritos nas notas de rodapé14. Depois dele, aparecem Prudêncio Damboriena com 5
citações, Cândido Procópio Ferreira de Camargo com 4 e Max Weber com 4. Aliás, para ser
mais preciso na observação, registramos que a bibliografia elencada por Souza revela que
Léonard é também, dentre os teóricos, o autor mais consultado por ela – com quatro de suas
obras listadas (SOUZA, 1969, p. 175).

14
Conferir as páginas 21, 29, 33, 80, 110, 116, 124, 135, 141, 155 e 161.

1539
Em 1970, o americano Carl Joseph Hahn defendeu sua tese de doutoramento na Universidade
de Edimburgo, Escócia. A mesma ficou inédita em português até 1989 quando a ASTE, por
meio da tradução de Antonio Gouvêa Mendonça, lançou-a entre nós: História do Culto
Protestante no Brasil. A conclusão a qual Hahn chegou é aquela já presente em O
Protestantismo Brasileiro. Mendonça, na nota introdutória ao livro, foi preciso:

o autor constata que o culto protestante no Brasil contém um desvio básico: nunca é a
jubilosa resposta do homem ao amor de Deus pela humanidade mas é, antes, o
cumprimento de um dever acrescido de elementos. As “ordens de culto” são instruções para
o cumprimento desse dever. O fiel, ao mesmo tempo que cumpre um dever, aprende. Ora,
dever e aprendizado são trabalhos. Foi por isso que Léonard estabeleceu a diferença entre o
culto no Brasil e na Europa: aqui “culto = trabalho”, lá “culto = adoração” (HAHN, 1989,
p. 12).

No início e no final do seu texto, Hahn não tem dificuldade em assumir o que Mendonça e
qualquer leitor mais atento percebem: sua dependência de Léonard (HAHN, 1989, p. 23-24 e
359-360). Para Hahn, a obra do francês “é a mais completa obra sobre o protestantismo no
Brasil” (HAHN, 1989, p. 384).

Três anos mais tarde, outra tese de doutoramento foi defendida. David Gueiros Vieira
defende, na The American University, em Washington, D.C., Protestantism and The
Religious Question in Brazil: 1850-1875. Nela, encontramos o seguinte parecer: “the
scholarly, and to date the most complete, work on Protestantism in Brazil, by Professor
Émile-Guillaume Léonard, which contributed the germinal thought for the present study”
(VIEIRA, 1973, p. 7).

No mesmo ano da tese de Vieira (1973), Boanerges Ribeiro publicava Protestantismo no


Brasil Monárquico – sua dissertação de mestrado. O autor dedica a obra a três pessoas, sendo
uma delas Léonard. Como Vieira, Ribeiro confessa sua dívida para com ele: “sua sugestão de
que aspectos da própria Igreja Católica Romana de então possibilitaram a aceitação do
Protestantismo pareceu-me merecedora de exame” (RIBEIRO, 1973, p. 11).

Em 1979, Rubem Alves trouxe a lume Protestantismo e Repressão15. Trata-se de sua tese de
livre-docência apresentada à UNICAMP. Nela Alves afirma ser possível estabelecer pelo
menos “três tipos ideais no Protestantismo”: o protestantismo de reta doutrina, o
protestantismo do sacramento e o protestantismo do espírito (ALVES, 1979, p. 35-36).

15
Atualmente o livro é publicado com o título Religião e Repressão.

1540
Indagamos: onde, ou em quem, ele se baseou para desenvolver esta tipologia? Ou teria sido
um insight dele? A julgar por suas palavras, não parece ser este o caso:

Não sou capaz de explicar o método que me levou a construir o tipo que irei descrever
(protestantismo de reta doutrina), no transcurso deste trabalho. Há emoções, valores,
experiências biográficas envolvidas no processo. Muitas sugestões me foram feitas pelas
discussões que já se deram em torno do assunto (ALVES, 1979, p. 35).

Asseguramos que se trata de uma ligeiríssima adaptação das “três vias de acesso ao divino”
mencionadas pelo francês. Alves conhecia a principal obra de Léonard. Ela aparece na
bibliografia, na seção “obras não-citadas” (ALVES, 1979, p. 289). Em outros escritos Alves
também se utiliza da reflexão de Léonard (ALVES, 1981, p. 130-131).

Para Leonildo Silveira Campos, “Emile Leonard (1891-1961) deixou uma notável obra no
campo da história do protestantismo francês e também da história social do protestantismo
brasileiro” (CAMPOS, 2008).

“Emile-Guillaume Léonard (...) é o responsável nesse período pela publicação de uma das
mais importantes obras de eclesiologia e história social do protestantismo brasileiro”, assevera
a antropóloga Lidice Meyer Pinto Ribeiro (RIBEIRO, 2007, p. 121).

Dentre os nomes que não optaram pelo protestantismo como tema de seus interesses, mas que
reconhecem a contribuição de Léonard no que se refere à bibliografia nacional referente ao
tema, citamos alguns. Isaac Nicolau Salum, na conclusão do prefácio dO Protestantismo
Brasileiro, desfere: “são estes, pois, seus grandes méritos: trabalho pioneiro, documentação
rigorosa, lúcidas intuições, exposição muito agradável” (LÉONARD, 2002, p. 17).

Para Eurípedes Simões de Paula, o francês era “grande conhecedor da História Social da
França e da Itália na época moderna, deixou marcada sua presença no Brasil com uma
excelente História do Protestantismo no Brasil, publicada em fascículos pela Revista de
História” (PAULA, 1971, p. 430).

Referindo-se aos franceses que serviram à USP, Novais diz que todos eram

de primeira qualidade. O Leonard é o principal historiador do protestantismo na França e


quando veio, inaugurou uma das duas cátedras de História (havia a cátedra de História da
Civilização e a de História da Civilização Brasileira). Excepcionalmente, Leonard,

1541
especialista em História do Protestantismo, escreveu um artigo muito interessante sobre o
protestantismo no Brasil (NOVAIS, 1994)16.

José Ribeiro de Araújo Filho, Aziz Simão e Eduardo d’Oliveira França, todos catedráticos na
USP, e que foram alunos da geração francesa, testemunham: “Este esteve no Brasil (...) e ao
voltar à França sucedeu a Lucien Febvre na Universidade de Paris, tornando-se, por sua obra,
a maior autoridade francesa em História da Reforma Protestante; em São Paulo escreveu
trabalho fundamental sobre a História do Protestantismo no Brasil” (FILHO, SIMÃO e
FRANÇA, 1989, p. 26).

Na sua Teoria da História do Brasil, ao discorrer sobre a temática religiosa, José Honório
Rodrigues pontua que “estudos como os de José Carlos Rodrigues, de Erasmo Braga e
Kenneth Grubb, e especialmente de Emile G. Leonard, revelam o nascimento e a expansão
paulatina das várias seitas protestantes que contam, hoje, com mais de dois milhões de fiéis”
(RODRIGUES, 1978, p. 189).

Em Ordem e Progresso Gilberto Freyre se utiliza da obra de Léonard:

Alguns aspectos do desenvolvimento do Protestantismo – inclusive no período evocado


neste ensaio – vêm sendo estudados sob critério sociológico pelo Professor Émile G.
Léonard, que (...) publicou em 1949 (fasc. I, t. IX) um ensaio, “L´Eglise presbytérienne au
Brésil”, seguido de outro, “O Protestantismo Brasileiro. (...)”, aparecido na Revista de
História, de São Paulo, fasc. I, 1951 (...). Vejam-se, ainda, do Professor Léonard, o artigo
“Le protestantisme brésilien” (...) e o livro, “L´illuminisme”, publicado em Paris em 1953 e
que lembra de Miguel Vieira Ferreira... (FREYRE, 1990, p. LXXXI). (...) É aspecto da
interpenetração, que se vem verificando no nosso País, de Protestantismo e Brasileirismo,
que merece estudo minucioso, além das páginas que já lhe consagrou um pesquisador
francês – o Professor Émile G. Léonard – no seu L´Illuminisme... (Paris, 1953) que (...)
lembra que nos cururus, ou desafios populares ao violão, paulistas, a Bíblia – por influência
Protestante, e, em grande parte, de missionários anglo-saxões – vem competindo com a
História do Brasil como fonte de inspiração por assim dizer erudita dos mesmos cantadores
(FREYRE, 1990, p. 581-582).

Por fim, evocamos Antonio Gouvêa de Mendonça, autor que mais escreveu em nosso país
sobre o tema abordado por Léonard – o protestantismo brasileiro. Ele contextualiza a
contribuição de Léonard assim: pioneirismo, ao lado Bastide e Henri Desroche nos estudos da
religião no Brasil – o primeiro em relação ao candomblé, o segundo quanto aos milenarismos

16
Disponível em http://moodle.stoa.usp.br/file.php/1216/IEA22/Fernando.pdf. Acesso em 05/10/11.

1542
e messianismo, e Léonard no que concerne ao protestantismo (MENDONÇA, 2008, p. 254).
Léonard foi também “o iniciador da historiografia protestante no Brasil nos trilhos da
pesquisa científica” (MENDONÇA, 2008, p. 288). E arremata, referindo-se à obra maior do
francês: “julgo este livro o primeiro a ser escrito ‘para fora’, para o mundo extra-eclésia...”
(MENDONÇA, 2004, p. 3).

Portanto, à luz do exposto, é nítida a primazia da produção leonardiana no contexto da


historiografia e, mais do que isso, na bibliografia protestante no Brasil. Historiadores,
sociólogos e antropólogos - protestantes ou não -, atribuem à sua obra um lugar de destaque e
respeito.

Considerações finais

Como foi demonstrado, o historiador francês está no “Olimpo” da produção historiográfica


nacional relacionada ao protestantismo. Por isso, é mister reconhecer a necessidade de se
discutir, criticar e confrontar a obra de Léonard a fim de que ela seja devidamente avaliada.
Sim, avaliada, sobretudo nesses dias em que o contingente evangélico tem ganhado cada vez
mais espaço na mídia, no mercado editorial e no mundo acadêmico. Ao mesmo tempo em que
a obra do mestre francês sugere pistas, intuições e caminhos a serem exploradas, ela pode
oferecer estradas e direções equivocadas, erros a serem repetidos. Sem exagero podemos
afirmar que, no que se refere aos estudos do protestantismo, o nome de Léonard é sempre
evocado, freqüentemente lido, muito respeitado, mas raramente questionado.

Recentemente, na França, Julie Clarini saudou no jornal Le Monde o aparecimento do livro


Tenaces huguenots, de Patrick Cabanel, assim: “Desde a História Geral do Protestantismo
(1961), de Emile-Guillaume Léonard, esperávamos esta nova coletânea”17. Vê-se que, por lá,
a obra dele ainda é lembrada. Que por aqui possamos ir além e debatê-la.

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17
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1546
1547
História e historiografia da imprensa presbiteriana no segundo
reinado
Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros1

Introdução

Esse artigo é um breve resumo do que temos analisado em nível de mestrado. O nosso tema é
a história da inserção do protestantismo no Brasil imperial. Nosso foco é a análise do primeiro
periódico protestante publicado no Rio de Janeiro, a Imprensa Evangelica, jornal de
publicação presbiteriana. Nossa principal preocupação com o presente artigo é apresentar ao
leitor, de forma panorâmica, quem foram as principais personagens envolvidas na produção
desse periódico, quais eram suas principais linhas editoriais e por fim, fazer uma contribuição
historiográfica, apresentando os principais trabalhos publicados no Brasil que abordaram este
tema.

Como referencial teórico, nós partimos das reflexões de Pierre Bourdieu a respeito das
relações entre o campo religioso e o campo político. Entendemos que o campo religioso
brasileiro constitui-se como um espaço de luta entre o novo que estava se inserindo naquele
momento, isto é, o protestantismo, e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que
tende a conservação e a defesa do monopólio da gestão dos bens de salvação, excluindo a
concorrência. Além disso, outra reflexão importante de Bourdieu para a nossa análise é a
afirmação de que a “a subversão herética reclama-se do regresso às primeiras fontes, à
origem, ao espírito, à verdade do jogo, contra a banalização e a degradação da qual ele foi
objeto” (BOURDIEU, 2003, p. 119).

O Brasil imperial era constitucionalmente católico, mas tolerava outras religiões com
restrições. Entretanto, devido a necessidade de atrair imigrantes no processo de substituição
gradual da mão de obra escrava pela livre, diversos protestantes passam a constituir colônias
no Brasil, sem intenções proselitistas, o que muda com a vinda dos missionários, a partir do
segundo reinado, e principalmente a partir do momento em que eles passam a publicar artigos
religiosos na imprensa.

1. Fundadores do jornal
1
Mestrando em História pela UFRRJ. Licenciado em História pela UFRRJ. Orientador: Prof. Dr. Marcello
Otávio Néri de Campos Basile. Contato: phcmedeiros@yahoo.com.br.

1548
A missão presbiteriana no Brasil teve início em 12 de agosto de 1859 com a vinda do jovem
reverendo Ashbel Green Simonton, enviado pela Board Foreing of the Presbyterian Church
dos Estados Unidos. Suas primeiras atividades foram com os marinheiros norte-americanos,
tripulantes do navio John Adams comandado pelo capitão Mason, principalmente. Essa
atividade, entretanto, durou pouco tempo, desestimulado pelo choque entre o puritanismo de
Simonton e a “vida muito frívola” dos marinheiros (MATOS, 2002, p. 126-128).

Além da assistência aos marinheiros, Simonton procurou se aproximar de outros imigrantes


como consta em diversas partes de seu diário. Mas para nosso estudo, interessa especialmente,
o contato que Simonton teve com o missionário Robert Reid Kalley a partir de 31 de agosto
de 1859. Segundo afirmações feitas em seu diário, Simonton recebeu acolhida na Igreja
fundada por Kalley, na Saúde, a Igreja Evangélica Fluminense, fazendo preleções nessa
Igreja. Kalley teria insistido para que Simonton se movesse em segredo, e pensava “que seria
melhor que as sociedades que mandam missionários para países papistas tivessem fundos
operacionais secretos. Acha que é tempo de começar a pregar em português e que já há
pessoas prontas a sofrer por Cristo”. Kalley também desaconselhava oferecer serviços
religiosos aos norte-americanos. Simonton registra que não havia concordado com os
conselhos de Kalley, não aceitava se manter em segredo e pretendia sim trabalhar com os
americanos, afinal, essa poderia ser uma possibilidade de tê-los como aliados (MATOS, 2002,
p. 127).

Semanas depois, ocorre o conflito entre os dois missionários, motivado por intrigas a respeito
das intenções de Simonton sobre o campo missionário carioca. Após a resolução do
imbróglio, Kalley expõe sua ansiedade por cultos públicos e que só não os iniciava por temer
não ser bem sucedido ou estabelecer maus precedentes. Julgava que Simonton seria melhor
amparado na tentativa, pois não era visado pessoalmente, e teria a proteção do consulado
americano. “Informou-me que tinha tido a opinião de alguns dos melhores advogados daqui
sobre a legalidade da tentativa” (MATOS, 2002, p. 135).

Ao citar “a opinião de alguns dos melhores advogados”, Kalley fazia referência a uma
situação em que estava envolvido. Em 07 de janeiro de 1859, receberam o batismo em sua
Igreja, as senhoras Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto;
Gabriela era irmã de Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês do Paraná, e de Nicolau Neto
Carneiro Leão, futuro barão de Santa Maria; isto é, Kalley havia batizado duas damas da
Corte, num país com restrições ao proselitismo.

1549
A situação de Kalley se agravou quando o visconde do Rio Branco o denunciou perante o
consulado britânico, por desobediência às leis brasileiras de restrição aos cultos divergentes
do catolicismo. Para se defender, Kalley enviou uma relação de questões a respeito dos
limites da tolerância religiosa no Brasil a três juristas brasileiros: José Thomaz Nabuco de
Araújo, Urbano Sabino Pessoa de Mello e Caetano Alberto Soares. A resposta que ele obteve
desses juristas foi amplamente favorável a liberdade do culto protestante em solo brasileiro.

Em 16 de julho de 1859, munido da resposta dos juristas, ele envia sua defesa ao consulado
britânico, e apela para o fato de que se a situação não se resolvesse, ele estaria no direito de
informar a todos os países donde o Brasil esperasse colonos imigrantes para que não se
enganassem com a liberdade aparente na Constituição do Império. Em 03 de agosto de 1859,
o governo aceita a documentação e põe um fim à demanda (REILY, 1984, p. 97-100), De
acordo com Douglas Nassif Cardoso (2001, p. 134), “estes pareceres e a resolução
governamental foram a jurisprudência necessária para a implantação do protestantismo no
Brasil, servindo de referência aos demais grupos que começaram a chegar ao país”, essa
análise corrobora com o que a fonte diz a respeito do encontro entre Kalley e Simonton.

Dentre as atividades missionárias de Kalley, a que mais interessa para nosso estudo é a
frequente publicação de artigos religiosos em jornais da Corte. De acordo com David Gueiros
Vieira (1980, p. 132), Kalley teria publicado entre outubro de 1855 a dezembro de 1866,
aproximadamente, trinta e cinco artigos no Correio Mercantil. No mesmo jornal, também
teria publicado em série a obra O Peregrino de John Bunyan. No Jornal do Commercio, a
partir de 1864, Kalley também teria publicado artigos que teriam provocado os ultramontanos.
Ainda de acordo com Vieira (1980, p. 147) os artigos escritos por Kalley teriam influenciado
Simonton a tomar a decisão de fundar a Imprensa Evangelica.

A chegada em 25 de julho de 1860 de Alexander Latimer Blackford, cunhado de Simonton,


foi o reforço necessário para a missão presbiteriana no Brasil. Logo depois, outro reforço
presbiteriano iria colaborar com a expansão missionária, foi a nomeação em 25 de novembro
de 1861 de Francis Joseph Christopher Schneider, para trabalhar, inicialmente, com os
colonos alemães.

A organização da primeira Igreja Presbiteriana do Brasil ocorreu em 12 de janeiro de 1862,


quando foram recebidos por profissão de fé Henry E. Milford e Camilo Cardoso de Jesus, que
foi batizado nesse mesmo dia. “Assim foi a nossa organização em igreja de Jesus Cristo no

1550
Brasil. Foi uma ocasião de alegria e prazer. Muito antes que minha pequena fé esperava, Deus
permitiu-nos ver a colheita dos primeiros frutos de nossa missão” (MATOS, 2002, p. 152).

Importantes adesões a Igreja Presbiteriana no Brasil contribuíram com a fundação e o


desenvolvimento do jornal Imprensa Evangelica, nos referimos à conversão de José Manoel
da Conceição, de Antônio José dos Santos Neves e de Domingos Manoel de Oliveira
Quintana. Sobre Quintana, não temos muitas informações, a não ser que ele tornou-se
membro da Igreja Presbiteriana em 06 de novembro de 1864, no domingo seguinte à
publicação da primeira edição da Imprensa Evangelica.

José Manoel da Conceição era um padre brasileiro, ordenado ao presbítero em 28 de junho de


1845. Foi formado segundo o Catecismo de Montpellier, condenado pela Santa Sé em 1721,
mas chancelado para formação do clero luso pelo marquês de Pombal em 1770, seu centro de
formação foi o Seminário de São Paulo, ainda regido pela reforma pombalina (VIEIRA, 1980,
p. 128-136). Teve contato com a literatura, as artes e a medicina alemã com dr. Teodoro
Langaard, um liberal dinamarquês, e posteriormente, teve contato com a teologia protestante
através do editor Henrique Laemmert (HAHN, 1989, p. 189). De acordo com Vieira, algumas
atitudes de Conceição o tornavam um padre singular para a época, vivia somente das côngruas
que o governo pagava, não aceitava receber emolumentos por sacramentos, foi considerado
um iconoclasta, quando sugeriu que as antigas imagens de sua Igreja fossem quebradas e
enterradas para que novas fossem postas no lugar, e os seus sermões eram cheios de citações
de autores clássicos alemães, dando a impressão de estarem “cheias de heresias luteranas”
(VIEIRA, 1980, p. 143), recebendo a fama de padre protestante (HAHN, 1989, p. 190-191).

Em novembro 1863, Blackford vai até Rio Claro para conhecer o padre protestante. A
conversa teria sido sobre a obra redentora realizada por Jesus, sem muitas polêmicas. “Ambos
estavam de comum acordo a respeito dos textos bíblicos lidos” (CÉSAR, 2000, p. 107). Quase
um ano depois, em 23 de outubro de 1864, Conceição prega seu primeiro sermão em uma
igreja não católica e professa sua fé em Jesus Cristo, tornando-se evangélico. E em 17 de
fevereiro de 1865, o recém-formado Presbitério do Rio de Janeiro ordena Conceição ao
ministério pastoral, sendo este então o quarto ministro presbiteriano do Brasil.

Conceição, entretanto, de acordo com o que a historiografia tem apontado até agora, manteve
sua singularidade enquanto pastor presbiteriano, ele não aceitava permanecer fixo em um
lugar, antes preferia manter uma vida de evangelista itinerante. Na sua missão itinerante,

1551
Conceição teria visitado ao todo quarenta cidades, trinta e duas na província de São Paulo,
cinco no Rio de Janeiro e três em Minas Gerais (CÉSAR, 2000, p. 109). De acordo com
Émile G. Léonard (1981, p. 64-67), Conceição foi útil aos missionários americanos, para abrir
caminho, principalmente em São Paulo, lançando os fundamentos de diversas congregações.

Por fim, falemos um pouco de Antônio José dos Santos Neves, poeta, taquígrafo do Senado,
funcionário do Ministério da Guerra e membro do partido liberal. Convertera-se ao
protestantismo presbiteriano em 1863. De acordo com Vieira (1980, p. 150), Santos Neves via
o protestantismo como “fonte de ‘progresso’”. Como poeta escreveu uma obra de dois
volumes, o primeiro intitulava-se Louros e Espinhos, continha versos patrióticos e religiosos
sobre a Guerra do Paraguai, além de um apelo ao imperador para conceder plena liberdade de
culto no país; o segundo intitulava-se Homenagem aos Heróis Brasileiros na Guerra Contra
o Governo do Paraguai Sob o Comando em Chefe dos Marechais do Exército, Sua Alteza
Real o Senhor Conde D’Eu e o Duque de Caxias. Oferecido a Sua Majestade Imperial o
Senhor Dom Pedro II. Como protestante, compôs uma série de hinos adotados pelas igrejas
evangélicas. Em 1868, tornou-se maçom, convidado por um presbiteriano, Possidônio M. de
Mendonça Jr; e, em 1872, publicou um poema em homenagem à Maçonaria no qual
reclamava a abolição da escravatura.2 Na Imprensa Evangelica, Simonton registra que ele
contribuía compondo poemas para serem publicados na folha (MATOS, 2002, p. 169).

Simonton, Blackford, Schneider, Conceição, Santos Neves e Quintana, de acordo com os


registros do diário de Simonton e com os relatórios pastorais arquivados no Centro de
Documentação da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, essa foi a equipe que fundou,
desenvolveu e divulgou a Imprensa Evangelica, o primeiro jornal protestante do Brasil.

2. Linha editorial da Imprensa Evangelica

Defendemos que houve duas linhas editoriais principais no jornal, uma propriamente
religiosa, e outra mais política. Ao analisarmos a linha religiosa do jornal pudemos identificar
a formação intelectual e religiosa de Simonton, que dirigiu o jornal de 1864 até 1867, e de
Blackford que dirigiu o jornal de 1868 até 1876. E ao analisarmos a linha mais política,
pudemos identificar os contextos históricos nos quais os redatores estavam inseridos, além

2
Vieira (1980, p. 164) informa que Possidônio se ofereceu a ajudar a Imprensa Evangelica na solicitação de
assinaturas em 1867, ele teria conseguido um número considerável de assinaturas.

1552
dos diálogos que eles mantiveram com determinados discursos políticos da época. Seguindo
as orientações de John Pocock, ao analisarmos o jornal procuramos conhecer as situações
históricas e os contextos a que o editor estava situado e aos quais sua enunciação se vinculava
(POCOCK, 2003, p. 67-75).

Ao analisarmos o jornal, pudemos identificar a formação intelectual dos seus principais


redatores, Simonton e Blackford. A seguir faremos um retrospecto da história religiosa norte-
americana para em seguida identificar nas publicações do jornal, de que forma essa herança se
faz presente. Procuramos dividir a história religiosa norte-americana em quatro fases: o I
Grande Despertar, a Era Metodista, o II Grande Despertar e o desenvolvimento do
conservadorismo protestante.

O primeiro Grande Despertar, ou avivamento, teve como principais lideranças, Jonathan


Edwards e George Whitefield, suas pregações baseavam-se no arrependimento de pecados e
na fé em Jesus Cristo. Velasques Filho (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2002, p. 83)
afirma que a pregação de Jonathan Edwards era baseada na justificação pela fé, com forte
interpretação calvinista enfatizando a incapacidade humana de alcançar a satisfação da justiça
divina por seus próprios méritos. A grande obra que marca este período é o sermão de
Jonathan Edwards de 1741, Pecadores nas mãos de um Deus irado. Após a morte de Jonathan
Edwards em 1758, o avivamento continuou sob a direção dos metodistas.

Os metodistas enfatizavam mais a conversão do que o batismo, mais a experiência religiosa


do que o pertencer a uma instituição eclesiástica. “A certeza da conversão se dava pela
capacidade de renúncia aos prazeres sociais (...) A moralidade metodista irá exercer grande
influência nas concepções protestantes na América e nas áreas de missão” (MENDONÇA,
2008, p. 84-85). Velasques Filho, afirma que a teologia baseada no medo da punição eterna,
na soberania absoluta de Deus e na doutrina calvinista de eleição, daria lugar, neste momento,
à “... capacidade livre do ser humano de aceitar ou rejeitar a salvação que Deus, através de
Jesus Cristo e por obra do Espírito Santo, oferece a todas as pessoas” (MENDONÇA;
VELASQUES FILHO, 2002, p. 85). Nesse ínterim, ocorre a expansão dos Estados Unidos
para o sudoeste, e a seita protestante que irá acompanhar essa expansão é o metodismo,
gerando aquilo que ficou conhecido como Era Metodista.

Os metodistas conseguiram se adaptar ao evangelismo de “fronteira”, pois, estavam


habituados a reuniões ao ar livre, com pregadores leigos e itinerantes, com teologia simples e

1553
emotiva. Para Velasques Filho (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2008, p. 94-95) a
teologia dos metodistas estava baseada no tripé: arminianismo, puritanismo e pietismo. Como
arminianos, eles defendiam que a salvação estava condicionada a uma experiência pessoal de
fé de cada um, e não a um pré-determinismo de Deus, e uma vez aceitando a Cristo para
salvação, podia-se rejeitá-lo. Como puritanos, eles defendiam que o eleito deveria dar sinais
exteriores de salvação, a inatividade religiosa era muito mal vista, o ativismo, por outro lado,
era considerado sinal de fé e de eleição. E como pietistas, eles defendiam o progresso
espiritual do crente em busca da “perfeição cristã”, não se preocupavam com disputas
teológicas, viviam isolados do mundo e eram predominantemente leigos.

Após a expansão do metodismo, ocorre o II Grande Despertar. Para Mendonça (2008, p. 86-
87), a ênfase desse movimento centrava-se na “descida do Espírito Santo” e no combate aos
vícios. As pregações procuravam introduzir todas as tradições teológicas, a fim de atenuar as
divergências entre as diversas seitas. A teologia desse avivamento era uma resposta às
condições de uma sociedade em que as oportunidades estavam abertas a todos, portanto, devia
estar desprendida do calvinismo tradicional que pregava a soberania absoluta de Deus e a total
incapacidade do homem. O principal personagem deste momento é Charles Grandison
Finney, que passou a entender, após sua conversão, a salvação como um assentimento
intelectual voluntário. Assim um conceito que também se forma neste momento é o
evangelicalismo, dando ênfase mais na experiência de conversão do que na própria conversão,
uma experiência que se repetiria ao longo da vida cristã (MENDONÇA; VELASQUES
FILHO, 2002, p. 82-87).

Outra questão levantada por Mendonça (2008, p. 92) a respeito dos avivamentos foi a ideia de
se formar uma civilização cristã que ultrapassasse as fronteiras americanas, base para a
empresa missionária. No século XIX, desenvolveu-se a ideia de que a vinda do Reino de Deus
se daria com a implantação da civilização cristã no mundo.

Por fim, temos o desenvolvimento do conservadorismo protestante. Velasques Filho


(MENDONÇA, 2002, p. 112-118) caracteriza esse momento como uma reação ao liberalismo
teológico do século XIX. A filosofia empirista de Francis Bacon e a filosofia do senso comum
de David Hume e Thomas Reid teriam fornecido os fundamentos para o conservadorismo
protestante. A filosofia do senso comum aplicada à religião teria sido sistematizada por John
Witherspoon, sexto presidente do Colégio de New Jersey, futura Universidade de Princenton,
nos seguintes pontos: universalidade da verdade, capacidade da linguagem de expressar o

1554
mundo real e a capacidade da memória de conhecer objetivamente o passado. A Bíblia torna-
se fonte exclusiva do conhecimento de Deus, e seu estudo deveria, obrigatoriamente, ser
baseado na literalidade do texto. O estudo científico não seria rejeitado, conquanto não
contradissesse a fé.

O conservadorismo redundou no fundamentalismo protestante. As principais vertentes do


fundamentalismo eram: o combate ao cientificismo secularizante, a escatologia milenista, a
inerrância bíblica e o dispensacionalismo. O Colégio de New Jersey e o seu seminário, centro
de formação dos principais missionários presbiterianos, inclusive Simonton e Blackford,
tornaram-se o principal foco de divulgação dessas ideias.

Cada um desses aspectos se fizeram presentes ao longo das publicações da Imprensa


Evangelica. Artigos como: “Vinde a Jesus” publicado a partir de 03 de março de 1866 no qual
se defendia a ideia da necessidade de conversão para escapar da ira divina que puniria a todos
os pecadores é uma herança das ideias do primeiro Grande Despertar, e também do
evangelicalismo do segundo Grande Despertar. Em outros artigos como “O anjo historiador
do anno-novo”, publicado em 05 de janeiro de 1867, no qual recomendava ao leitor a cumprir
os propósitos de viver uma vida melhor mesmo após a experiência de conversão, pudemos
notar a ideia de “perfeição cristã” do pietismo. Na série “Catecismo da nossa redempção”,
publicado entre 20 de abril até 16 de novembro de 1867, no qual se procurava demonstrar que
Deus havia planejado a salvação do homem desde a criação do mundo, nota-se a presença do
discurso dispensacionalista do fundamentalismo protestante norte-americano.3 E o combate ao
cientificismo secularizante fez-se presente em artigos como: “narração de cousas memoráveis
passadas no Palacio dos macacos em Paris no 1º de janeiro do anno da graça de 1865 por F.
Puaux”, publicado em 15 de junho de 1867, combatendo o darwinismo; e, “A eschola dos
materialistas”, publicado na mesma edição.

Com a morte de Simonton em dezembro de 1867, Blackford assume a direção do jornal


juntamente com Schneider. Durante a gestão de Blackford, essa linha editorial continuou com
algumas variantes, dentre as quais, o maior apelo à escatologia milenarista, e o uso da história
eclesiástica como meio de combater o catolicismo (IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 142):
“A origem e o progresso do romanismo”, publicado entre 18 de julho e 21 de novembro de

3
O dispensacionalismo pode ser considerado como sendo uma filosofia cristã da história. Tal doutrina sustenta
que a relação de Deus com o homem está dividida em sete dispensações, todas elas referidas na Bíblia. A última
dispensação é o milênio, quando a humanidade estará sob o governo pessoal de Jesus Cristo (MENDONÇA;
VELASQUES FILHO, 2002, p. 124).

1555
1868; “A historia da igreja”, publicado em 19 de setembro de 1868; e, “Historia
ecclesiastica”, publicado entre 03 de outubro de 1868 até 1º de julho de 1871. Para o editorial,
o cristianismo estava dividido em algumas fases históricas. O primeiro período era o do
cristianismo primitivo, “notavel por sua simplicidade e pureza”, esse período foi até
Constantino. De Constantino até a Reforma Protestante, a “gloria do christianismo apostolico
[ficara] mareada pelo espirito ambicioso e carnal”. Na Reforma Protestante ocorrera “a
ressurreição rapida da igreja do Deus vivo do sepulcro de superstição em que por seculos
tinha estado encerrada” (IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 116 e 172).

Durante a gestão de Blackford também transparece a ideia de caracterizar o papa e o


catolicismo como sendo a besta e a prostituta apocalípticas, presentes em livros como o
Apocalipse de João e o livro do profeta Daniel (IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 110-111).
Acompanhando a análise de Vieira (1980, p. 147-148, 174), podemos inferir que Blackford ao
se aproximar de Tito Franco de Almeida, escritor do artigo “Os Fariseus” de 1863 no qual
considerava os padres, os fariseus da época, e o papa, a besta do Apocalipse. No Brasil essa
ideia aparece inicialmente na tradução da obra The cause and cure of infidelity, publicado em
1861 por Richard Holden, missionário episcopal estabelecido no Pará, no Jornal do
Amazonas, de propriedade de Tito Franco de Almeida. Nesta interpretação, para a Imprensa
Evangelica, a Reforma Protestante aparecia como sendo a ferida que a besta recebeu
(IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 111) e como a revolução que possibilitou aos “escravos da
tyrania e illusão romanas [adquirirem] uma independencia”, ocorrendo, dessa forma, “a
ressurreição rapida da igreja do Deus vivo do sepulchro de superstição em que por seculos
tinha estado encerrada” (IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 171-172).

Uma série de artigos em defesa da liberdade religiosa é publicada ao longo das duas primeiras
fases do jornal. O jornal defendia que a liberdade religiosa tinha importância mundial
(IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 116, 127, 136). Em outros momentos defendia que a
liberdade religiosa era necessária para o progresso social e econômico brasileiros, a exemplo
de outros países nos quais havia essa liberdade (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 165). Para
os redatores, a liberdade religiosa também não deveria estar fundamentada em filosofias
iluministas e sim em leis práticas, deixando a cada um a possibilidade de escolher a melhor
confissão (IMPRENSA Evangelica, 1866, p. 65-66, 73-74, 81-82, 89-90, 97-98).

Algo que também chamou nossa atenção ao longo da análise é o diálogo que o editorial da
Imprensa Evangelica manteve com o discurso liberal, principalmente, com o discurso de

1556
Aureliano Cândido Tavares Bastos. A primeira menção a Tavares Bastos no jornal ocorreu
em 06 de abril de 1867, com a transcrição do artigo “reflexão sobre a imigração”. Para os
editores, não havia dúvida que os estadistas brasileiros entendiam a necessidade de se garantir
a liberdade religiosa, bastava apenas estabelecer as bases dessa liberdade. Tavares Bastos
defendia que aqueles que queriam restringir a liberdade religiosa eram retrógrados, opositores
do progresso (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 54).

Em 03 de agosto de 1867, Tavares Bastos é mencionado novamente no jornal, dessa vez para
destacar o seu projeto de casamento civil. No entanto, o jornal lamentava o fato de que o
projeto estivesse engavetado (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 116).

3. Historiografia a respeito da história da Imprensa Evangelica

Dentre os primeiros trabalhos acadêmicos a respeito da História das missões protestantes no


Brasil, podemos destacar os trabalhos de Émile G. Léonard, Boanerges Ribeiro e David
Gueiros Vieira.

Em sua obra O Protestantismo Brasileiro: Estudo de Eclesiologia e História Social, com


primeira edição em 1963, Émile G. Léonard, historiador francês associado à École de Hautes
Etudes, pode ser considerado como o fundador dos estudos acadêmicos a respeito do
protestantismo brasileiro. Sua hipótese teórica partia do fato de que as circunstâncias sociais e
religiosas do período imperial no Brasil reproduziam a conjuntura histórica da Reforma
Protestante na Europa. Seu intuito era se afastar da história denominacional/confessional,
escrevendo uma História Social do protestantismo brasileiro. Suas principais contribuições
foram o destaque aos fatores sociais e políticos que contribuíram para a inserção do
protestantismo no Brasil; sem omitir os percalços pelos quais os missionários tiveram que
enfrentar ao longo do século XIX.

Boanerges Ribeiro acompanha a análise de Léonard em sua obra Protestantismo no Brasil


Monárquico, 1822-1888, publicada em 1973. Em sua obra, Ribeiro se propõe a analisar
aspectos da cultura brasileira do século XIX que possibilitaram a inserção dos protestantes no
Brasil oitocentista. Ele parte de uma hipótese do trabalho de Léonard de que aspetos da
própria Igreja Católica de então teriam favorecido a inserção protestante, e vai além,
afirmando que não só o catolicismo, mas todos os “sistemas sociais estavam comprometidos

1557
na situação cultural propícia à aceitação no País, das Denominações Protestantes” (RIBEIRO,
1973, p. 11-12). O autor defende que pelo menos em três setores: legislativo, político e
religioso; a sociedade brasileira já estava se preparando para a aceitação do protestantismo,
antes mesmo da chegada dos missionários. Sua tese é a de que o sistema brasileiro aceitou o
protestantismo de forma “consciente e deliberadamente” (RIBEIRO, 1973, p. 31).

David Gueiros Vieira também mantém um diálogo com Émile Léonard e com Boanerges
Ribeiro. Em sua obra O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil,
publicada em 1980, fruto de sua tese de doutorado, o autor procurou examinar outro campo
que possibilitou a inserção dos protestantes ao longo da segunda metade do oitocentos, isto é,
a maçonaria. Vieira procurou demonstrar como os maçons estavam extremamente vinculados
aos protestantes, tanto os protegendo ante os clérigos ultramontanos, quanto os apoiando na
prática missionária. Houve, também, jornais protestantes que transcreveram artigos escritos
por maçons. O estudo de Vieira possui grande valor por ser extremamente denso em questão
de fontes. Embora se baseie em uma teoria que ele próprio diz ter “má reputação”: a teoria da
conspiração, defendendo que forças maçônicas, republicanas, protestantes, liberais e outros
grupos se aliaram para destituir o poder político da Igreja Católica (VIEIRA, 1980, p. 12).

Outro autor a ser destacado é Antônio Gouvêa Mendonça e sua obra O Celeste Porvir: A
inserção do protestantismo no Brasil, com primeira edição em 1984, fruto de sua tese de
doutorado em Ciências Sociais pela USP. Nesta obra o autor procurou demonstrar como a
mensagem missionária foi aceita pela sociedade brasileira. A preocupação que norteia o seu
trabalho é analisar o protestantismo recebido por aqueles que realmente se converteram à
nova fé: o homem pobre da zona rural de São Paulo. Tendo em vista que aquela camada da
população brasileira, em sua maioria, era analfabeta, o autor destacou a importância que o
primeiro hinário protestante - Salmos e Hinos - teve na expansão da fé, exercendo,
principalmente, um papel pedagógico, substituindo, por vezes, o discurso doutrinário do
pastor que visitava a comunidade raramente.

A primeira crítica ao trabalho de Léonard que encontramos foi feita por Mendonça, na obra
que escreve em conjunto com Prócoro Velasques Filho, professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, intitulado Introdução ao Protestantismo no Brasil, publicado em
1990. Para Mendonça, Léonard não teria estabelecido um diálogo necessário com a sociedade
brasileira nem com a Igreja Católica, descumprindo o que havia prometido, isto é, “propor um
estudo de eclesiologia e história social” (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2002, p. 83).

1558
As principais contribuições deste trabalho de Mendonça e Velasques Filho se centram na
atenção que é dada às mudanças de ordem social, teológica e filosófica que atingiram tanto a
sociedade brasileira quanto a sociedade norte-americana, lugar de origem da maioria dos
missionários.

Outros autores recentes procuraram estudar a inserção do protestantismo, a partir da análise


de atuação de um missionário específico, esse é o caso, primeiramente, de Douglas Nassif
Cardoso em Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta; a história da inserção do
protestantismo no Brasil e em Portugal, publicado em 2001, fruto de sua dissertação de
mestrado em Ciências da Religião, defendida na UMESP, em 2000; e depois, de Sérgio Prates
Lima em Peregrinos, missionários e protestantismo: o caso de Robert Reid Kalley,
dissertação de mestrado em História, defendida pela UFRRJ em 2010. Os dois autores, a
partir do enfoque teórico das ciências sociais, principalmente das reflexões de Pierre
Bourdieu, defendem que Robert Kalley pode ser considerado um profeta em meio a uma crise
institucional religiosa aberta no Brasil.

Sobre a imprensa protestante no XIX, temos a obra de José Carlos Barbosa, Negro não entra
na Igreja: espia pela banda de fora; protestantismo e escravidão no Brasil Império,
publicado em 2002, fruto de sua dissertação de mestrado pela UnB. Analisando jornais e
cartas de viajantes, Barbosa defende que na inserção do protestantismo no Brasil, houve
pouca preocupação social com os negros, para os missionários era muito mais importante a
evangelização e a conquista da mente dos brasileiros. Para o autor, os missionários só se
preocuparam com a abolição quando ela já era iminente. Por fim, o autor defende que aqueles
que se preocuparam com a escravidão não o fizeram por motivos sociais, e sim por motivos
econômicos, pois esse era um entrave para o progresso do Brasil.

Especificamente sobre o jornal Imprensa Evangelica, recentemente foi publicado o livro O


jornal Imprensa Evangelica: diferentes fases no contexto brasileiro (1864-1892), publicado
em 2009, fruto da dissertação de mestrado em Ciências da Religião pela PUC-SP, defendida
em 2006 por Edwiges Rosa dos Santos. Para a autora, o jornal Imprensa Evangelica foi uma
das principais estratégias utilizadas pelos presbiterianos para expandirem a sua fé em
território brasileiro. A sua obra se divide em três partes, na primeira, ela retoma toda a
discussão a respeito das condições de inserção do protestantismo de missão no Brasil
imperial, baseando seus argumentos em autores já citados como Léonard, Vieira e Ribeiro, a
autora chega às mesmas conclusões. Na segunda parte de seu trabalho, há um panorama das

1559
diferentes fases do jornal, ela defende que a Imprensa Evangelica pode ser dividida em quatro
fases: a gestão de Simonton (1864-1867), a gestão de Blackford (1868-1876), a gestão de
George Whitehill Chamberlain (1877-1885) e a última fase de 1886-1892, que a autora não
conseguiu identificar uma gestão clara, pois, esse é o período em que ocorrem os conflitos
entre os missionários americanos e os nativos na direção da Igreja Presbiteriana do Brasil.

De certa forma, o trabalho que estamos desenvolvendo em nível de mestrado é complementar


ao trabalho de Edwiges Rosa dos Santos, a autora fez uma análise panorâmica do jornal,
apresentando uma fonte até então pouco pesquisada. Em nossa pesquisa procuramos
aprofundar algumas questões que ficaram em aberto na pesquisa de Rosa dos Santos.

Sem dúvida alguma essas obras não representam e nem chegam perto da totalidade de obras
escritas a respeito do protestantismo no Império, mas cremos que as obras abordadas aqui
representam um conjunto muito importante para o nosso tema.

Conclusão

Sem dúvida alguma, devido ao espaço exíguo de um artigo, esse texto ficou com diversas
lacunas. Procuramos apresentar um pouco daquilo que estamos estudando de forma bem mais
aprofundada em nossa pesquisa.

Neste texto procuramos defender a ideia de que a formação intelectual dos missionários, e
suas redes de sociabilidade no Brasil refletiram diretamente na produção dos artigos da
Imprensa Evangelica. E de forma a contribuir para produção de novas pesquisas, procuramos
apresentar de forma panorâmica os principais trabalhos a respeito da inserção do
protestantismo no oitocentos.

Referências

BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na Igreja. Espia pela banda de fora: Protestantismo
e escravidão no Brasil Império. Piracicaba: Unimep, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século Edições, 2003.

1560
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley. Médico, missionário e profeta: A história da
inserção do protestantismo no Brasil e em Portugal. São Bernardo do Campo: edição do autor,
2001.

LÉONARD, Émile G. O protestantismo brasileiro. São Paulo: ASTE, 2006.

LIMA, Sergio Prates. Peregrinos, missionários e protestantismo: o caso de Robert Reid


Kalley. Orientação de Margareth de Almeida Gonçalves. Dissertação (Mestrado em História),
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2010.

MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O Celeste Porvir. A inserção do protestantismo no Brasil. 3ª


ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

__________; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. 2ª Ed.


São Paulo: Edições Loyola, 2002.

POCOCK, J. G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Editora da Universidade de


São Paulo, 2003.

REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo:


ASTE, 1984.

RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973.

SANTOS, Edwiges Rosa dos. O jornal Imprensa Evangélica. Diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1892). São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2009.

VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

Fontes

IMPRENSA EVANGELICA. Rio de Janeiro, 1864-1867, BN PR-SOR 03254. Disponível


em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx>. Acesso em 02 ago. 2013.

MATOS, Alderi Souza de (Org.). O diário de Simonton 1852-1866. 2ª ed. Cambuci: Editora
Cultura Cristã, 2002.

1561
1562
O protestantismo e a historiografia no Brasil: crise conceitual
João Marcos Leitão Santos1

Introdução/Status Quaestiones

Como de domínio público entre os especialistas nos estudos do protestantismo brasileiro, a


segunda metade dos anos oitenta marcou o incremento das investigações deste tema no
universo acadêmico, principalmente. Este fenômeno coincidiu com a emergência de certa
hegemonia de práticas historiográficas ligadas a tendências contemporâneas mais ou menos,
conforme os casos, ligados a pressupostos pós-modernos, cujo efeito mais evidente foi o
acento nas descontinuidades sobre a ideia continuidade dentro do fazer histórico, e passou-se
a considerar lugar comum a diversidade do protestantismo em seu processo histórico, levando
a popularização da adoção da expressão protestatismos, que trouxe, supomos,
involuntariamente, a associação daquilo que um dia foi um objeto mais ou menos claro, o
protestantismo brasileiro, a um conjunto de práticas religiosas, principalmente entre o
pentecostalismo e suas muitas derivações, muitas vezes com o sacrifício de uma tão
necessária, como apressada precisão conceitual.

Este trabalho, informamos de saída para evitar frustrações nos eventuais leitores abre mão
deliberadamente do caráter propositivo, pois o status de provisoriedade da investigação a que
se encontra, conforme anunciado no tema, ainda não lhe permite uma proposição como teses a
ser demonstrada. Antes se constitui uma interrogação para ouvir dos colegas que se debruçam
sobre o protestantismo brasileiro sobre a validade da concepção majoritária de que não é
possível a construção de um ponto gregário a partir do qual se possa oferecer uma identidade
– com todas as ambiguidades que esta ideia contém – para o protestantismo brasileiro, sim, no
singular, e que também trará consequências próximas por exigir que certas práticas religiosas
tão residuais e quase caricaturadas que são nomeadas como protestantismo ou como
derivações deste passem a exigir novas caracterizações.

Para construir este debate, partimos de uma pequena retrospectiva da concepção de


protestantismo que esteve presente ao longo do tempo e associada ao seu considerado evento
fundador, a Reforma Religiosa do século XVI, oferecer algumas caracterizações construídas

1
Doutor em História Social/USP. Professor do PPG em História da UFCG. Contato: tmejph@bol.com.br.

1563
no processo de reconhecimento do protestantismo no ocidente, e algumas inflexões sobre a
questão conceitual.

Protestantismo: esforço de caracterização

Protestantismo em seu sentido etimológico agrega três significados. Historicamente remonta a


uma linguagem jurídica imperial alemã de marcado conteúdo político e cultural. Num
segundo momento tornou-se uma “autodeterminação religiosa pela qual em determinada
situação histórica, a consciência religiosa e espiritual de certos grupos e orientações eclesiais
tentou se exprimir comunitariamente. Finalmente designa globalmente igrejas que se
diferenciam do catolicismo, não sendo possível a compreensão deste desligado daquele
enquanto referencial histórico” (MAURER, 1970, p. 354). Todavia o próprio Maurer vai
afirmar, que tal antinomia, tal anticatolicismo, não corresponde a essência do protestantismo,
mas é uma decorrência incidental de sua evolução histórica.

Se acompanharmos Maurer, vamos perceber que o protestatio como conceito jurídico


significava uma declaração pública e solene. Na idade média sua caracterização evolui num
sentido negativo, constituindo-se num testemunho publico contra alguém. Todavia, se
conserva a sua positividade, uma vez que constitui um apelo a um direito superior e
antecedente.

Toda protestatio possui um caráter religioso. Seu caráter legal permanece com instrumento
jurídico pelo uso que faculta a alguém que encontra sob ameaça ou imagina está sobre ela no
futuro. Este caráter ganha maior associação as origens do protestantismo se nos reportarmos a
um evento específico, a Dieta de Spira em 1529, esta já uma negação dos direitos
reconhecidos pela Dieta de 1526. Mas esta problemática distancia-se do tema proposto para
esta comunicação.

Mais importante talvez seja registrar que os debates dela decorrentes se incluiu o fenômeno de
consciência, uma vez que a crença religiosa não permitia flexibilizações, exigia um
comprometimento radical, onde a responsabilidade pessoal já não se submetia a decisão da
maioria. Não se há de ignorar, todavia, as implicações políticas desta questão. Porém, será
este reconhecimento político da maioria sobre a decisão de consciência de uma minoria, o
determinante da inserção histórica e da caracterização substantiva do protestantismo nascente.

1564
Ao afirmar categoricamente o domínio da Escritura sobre as suas consciências, fixam a
determinação desta mesma Escritura sobre a totalidade das suas experiências pessoais e
eclesiais.

Roger Mehl já nos lembrava que os fatos sociais tem uma dimensão axiológica, do qual nem
um grupo social pode eximir-se. E afirmando que nenhuma sociologia do cristianismo pode
prescindir de uma sociofenomenologia do objeto religioso específico" (MEHL, 1974, p. 12) e
completa afirmando que o protestantismo se entende como responso de uma palavra viva
manifesta em livros sagrados, de onde derivam suas práticas comportamentais; daí que sua
preocupação primária é com a pregação da Palavra de Deus. No protestantismo a comunidade
é a imagem da situação existencial dos fiéis diante de Deus.

O protestatio possui uma implicação inalienável de liberdade que a ele se impunha, que era
revestida de uma natureza escatológica ao fixar que se destinava a “todos os que agora e no
futuro estiverem abertos a Santa palavra de Deus” como entendeu Lutero (WHALLE, 1967)

Daí o protestantismo evoluiu para significar, predominantemente, num conceito coletivo para
designar as igrejas e comunidade cristãs que se distinguem da Romana, e que o fazem por
uma determinada maneira de compreender a eclesialidade, a igreja, inevitavelmente, por
exigência do rigor histórico, associadas ao movimento de Reforma religiosa do século XVI,
mesmo havendo comunidades que se organizaram em períodos posteriores guardando
características herdadas de seus momentos fundadores, que fazem com que a sua identificação
com os determinantes históricos do protestantismo seja uma tarefa simplista, porém,
necessária, reconhecendo que as próprias igrejas cujas raízes estão no século XVI, tem sido
objeto de mudanças específicas, matizadas na trajetória histórica e cultura da sua inserção.

Neste processo é possível então caracterizar dois perfis de protestantismo, um primeiro


marcado por sua postura ligadas às questões de fé e vida cristã e um segundo que se defronta
mais com demandas de questões eclesiológicas, incluindo a liturgia e a relação do magistério
com a Escritura (MEHL, 1981).

O protestantismo visto como resposta a tais questões que em geral se apresentam da


existência mesma da igreja ou com maneira mesmo de fé e vida possibilita compreender as
diversas faces que possui se revelam confessionalmente ou em sua espiritualidade, e as
variedades dos sistemas que apresentam como contidos dentro do universo de sua identidade.
Assim, assumimos a possibilidade de falas de um protestantismo universal.

1565
Se entendermos que do ponto de vista epistemológico o conceito se constitui uma síntese de
marcas segundo as quais os entes os abrangidos pelo conceito não se distinguem, porque o
conhecimento científico exige clareza conceitual, produzida pelo rigor do método, nos vemos
sobre a exigência cognitiva de operar distinções, que sejam cartesianamente claras e distintas.

Isto robustece a compreensão que resiste a perceber o protestantismo como anti-catolicismo,


ou mais especificamente, como não-catolicismo, e sim afirmá-lo como uma expressão cristã
autônoma com características muito bem determinadas e geradoras de identidade. E neste
ponto, não se ignora que a afirmação ou o surgimento de toda identidade se dá num espaço
ocupado por outras pretensões de identidade e porque a referida afirmação consiste em traçar
uma fronteira que se para o que sou/somos do que não sou/somos. E que isto este processo
está associado ao caráter contingente de toda identidade, em suas condições históricas,
sociais, culturais e políticas (no sentido convencional) e esta contingência desautoriza suas
pretensões de detenção da verdade, de legitimação universal ou de superioridade natural, mas
que não impede a determinação conceitual que opera a clara distinção dente entes de dada
realidade interpelada. Neste sentido os sistemas simbólicos fornecem novas formas de se dar
sentido à experiência das divisões, e a discussão sobre identidades sugere a emergência de
novas posições (DURRELMAN, sd; WELCH & DILLEMBERGER, 1958)

A distinção e a diferença implicam na necessidade demarcar território de identidade em


relação a outros e organizar internamente a economia das distâncias, isto é, o funcionalmente
e partilha do poder do campo assim definido, aí está o político.

Assim catolicismo e protestantismo se colocam distintivamente como expressões do ser


cristão, que apesar de situar-se intra eclesia, não se restringe a uma expressão eclesiológica,
mas informa sobre uma questão de identidade fundada sobre a prática e a confessionalidade.
Isto nos obriga a transcender a simples identificação de uma “essência protestante”
caracterizadora, e buscar identificar no universo coletivo amplo das comunidades a identidade
protestante. Dito de outra forma, o protestantismo não se reduz a confessionalidade, porém
representa uma atitude de fé e conduta ante o anuncio do evangelho.

Como já sugeriu Stuart Hall, as identidades, que adquirem sentido por meio da linguagem e
dos sistemas simbólicos, fazem com as representações identitárias, atuem simbolicamente
para classificar o mundo e suas relações, portanto, é, em substância, relacional, depende para
existir de algo fora dela que fornece condições para que ela exista, operando dialeticamente

1566
no binômio negação-similaridade, e fazendo com que a diferença seja sustentada pela
exclusão, quase sempre de natureza simbólica em detrimento da dimensão fática, diferenças
que possuem hierarquias e a graus (Cf. HALL, 2000).

O protestantismo, portanto, como fenômeno multifacetado, exige para sua compreensão que
se percorra concepções várias, que possibilitem nessa pluralidade maior precisão. Por isso diz
Anderson que “se tivermos que para compreender corretamente o protestantismo teremos que
levar em conta tanto os seus frutos como a suas raízes, seus resultados e o que dele procede”.
(ANDERSON, 1953, p. 164) (grifo nosso). Neste esforço de compreensão se sobressaem dois
aspectos principais: a realidade eclesial ou religiosa e a realidade filosófica, que impõe a
necessidade de se caminhar para além do senso comum, e um exercício intelectivo categórico
e conceitual.

É um atributo próprio da intelecção, das características inalienáveis do intelecto humano, o


exercício de abstração. Ela é o que nos permite separar de um todo uma característica que não
possui existência independente. O intelecto, portanto, opera isolando e apreendendo de um
objeto concreto determinada nota ou conjunto de notas essenciais que caracterizam e definem
tal objeto, assim, ordenamos grupos porque compreendemos qualidades que se colocam ou
reconhecem sob determinados conceitos, que por sua vez, os conceito, compõem-se de partes,
abrangendo complexos inteiros de características.

Cada cultura como sistema partilhado de significações tem suas formas de classificar o
mundo, e constrói lugares sob um certo grau de consenso. (EAGLETON, 2005), e serve de
intermediação da experiência, fornecendo categorias básicas de autoridade (RAYMOND,
2000). Por isso, “separar, purificar, demarcar e punir transgressões tem como sua principal
função impor algum tipo de sistema a uma experiência inerentemente desordenada. É apenas
exagerando a diferença entre o que está dentro e o que está fora, acima e abaixo, homem e
mulher, a favor e contra, que se cria a aparência de alguma ordem” (DOUGLAS, Apud.
HALL, 2000, p. 46).

Neste ponto é possível afirmar que o protestantismo (o complexo inteiro) pode ser visto
também sob duas outras características, uma de uma negação e uma de afirmação,
significando que o protestantismo constitui-se uma recusa/superação a determinadas
expressões históricas tanto sociais, como eclesiais e filosóficas, e que também deve ser
reconhecido por aquilo que ele afirma e não apenas por situar-se negativamente em relação a

1567
realidades que estavam postas, porque “o protestantismo se originou daquilo que os
reformadores criam e não daquilo que eles negavam” (KERR Jr, Apud AMARAL 1962, p.
109).

Segundo Jay Adams

A reforma reagiu contra a hierarquia nas relações Deus-Homem, a partir do pressuposto


que elementos fundadantes da condição humana – pecado e culpa – não se trabalham
através das agências humanas.

A reação implica enfrentamento e ruptura com elementos substantivos da tradição cristã


que se erigiu sob a tradição católica e romana. Primeiro contra o arcabouço explicativo-
normativo do cristianismo conforme consolidado na teologia da igreja. O agente
enunciador de tal depósito da fé era a hierarquia disposta em instrumentos constitucionais
progressivamente institucionalizados no Direito Canônico. A dimensão operativa que regia
a articulação entre a teologia, o depósito da fé e a autoridade que era sua gestora eram os
sacramentos.

O destinatário e beneficiário final das verdades religiosas do cristianismo era a grande


massa de fiéis, de gente tornada católica pela socialização e pela cultura. Mas a dispensação
dos mistérios da fé também tinha operado como elemento deformador da condição humana,
pelo que uma nova perspectiva do ser humano, demandante de uma nova elaboração das
verdades cristãs emergia, e suas marcas seriam próximas a o humanismo e se voltaria para a
dimensão racional da experiência.

A forma que assumiria este novo homem seria resultado do seu encontro com a liberdade, e
o usufruto da liberdade de consciência, autonomia condicionada na doutrina cristã
reformada pelas intervenções permanentes do Espírito Santo, a que cabia delinear a forma
pneumática desta nova consciência.

A fórmula de maior repercussão para demarcar a emergência desta nova consciência


apareceria na doutrina protestante como sacerdócio universal de todos os crentes. A
emancipação do espírito no caminho da salvação, agora sem agência tutelares, significava
uma indicação sólida da manifestação subsequente de uma forma radical de laicismo.

Há outra faceta que importa ser colocada previamente para esta reflexão que diz respeito a
originalidade do protestantismo. A reforma não foi original por protestar, esta já era uma
experiência da Igreja desde os seus primórdios, e os princípios que o protestantismo defendeu
e que o caracterizaram, não foram também originais, mas a sua relevância está na ênfase dada
a cada uma destas questões.

O protestantismo não deve ser indistintamente identificado com expressões eclesiais e


religiosas, que atribuem a si mesmas esta identidade, quando, ao contrário, não é possível
inferir em suas características elementos constitutivos do protestantismo, entendido como
movimento religioso que teve seu surgimento concreto associado a Reforma do século XVI.

1568
Neste sentido nos aproximamos da necessidade de construir categorias operacionais para o
tratamento analítico do protestantismo, uma vez que as Categorias são modos de atribuição de
um predicado a um sujeito que interpela sua substância, o que é e a qualidade qual atributo
lhe serve de predicado, e são unidades de classificação para ordenar e classificar os fatos da
experiência.

Da mesma forma não se deve identificar como protestantismo o somatório das denominações
religiosas, que na experiência brasileira tornou-se majoritária e quase hegemonicamente
evangelical, que apesar de conterem elementos de história e formulações doutrinárias
aproximadas, também não constrói relação de identidade com os princípios especificamente
protestantes.

Neste ponto talvez seja útil a compreensão lembramos a tese de Troeltsch (2008) de
demonstrar que o cristianismo não é inteligível sem a história dos influxos sociais do seu
ambiente, examinando como as necessidades ligadas a existência de comunidades cúlticas
explicam o desenvolvimento do dogma e como a ética da igreja tem exercido influência social
determinando formas de organização política, jurídica, econômica e sociocultural. Na
primeira intenta demonstrar a vitalidade do grupo religioso e no segundo as funções sociais
que leva a efeito uma religião nos domínios da ética social.

Nesta lógica é possível inferir que o protestantismo se entende como responso de uma palavra
viva manifesta em livros sagrados, de onde derivam suas práticas comportamentais; daí que
sua preocupação primária é com a pregação da Palavra de Deu, e nele a comunidade é a
imagem da situação existencial dos fiéis diante de Deus.

As defecções e variações que tanto ocuparam o saudoso professor Antonio Gouveia


Mendonça, é resultado do fenômeno conhecido onde toda religião que se caracteriza por certa
continuidade histórica, e tem sua "época crítica que Mehl identificou como a conjuntura "em
que se encontra submetida a ação da sociedade mas que inspirando-a" (MEHL, 1981, p. 38).

A religião tem sua característica básica no transmitir-se, o que faz por meios diversos e não se
transmite sem evoluir internamente. Só a história nos permite entender como alguns aspectos
das comunidades religiosas mantém o estilo com que se difundiram. Se a história nos fornece
os dados em sucessão e as formas, a sociologia os requer para formar seu conceito da religião
que investiga e também para entender seu processo evolutivo. "O objetivo do sociólogo é

1569
reconstruir tipos religioso..." (MEHL, 1981, p. 41) para distinguir os fenômenos entre si,
portanto, para o representar conceitualmente.

Outra especificidade que não deve ser suficiente para produzir identidade de uma comunidade
como o protestantismo é a sua exclusiva remissão ao evento da Reforma (a continuidade
histórica), pois os reformadores tinham como proposta inicial promover uma reforma na
igreja de Roma de natureza teológica e institucional e não objetivavam o estabelecimento de
outra família confessional dentro da tradição cristã. Associado a isto, deve-se reafirmar,
enquanto demonstração do não deve ser entendido como protestantismo, que ele não é
identificado pela sua oposição ao catolicismo romano, pois, de certa forma, o protestantismo
não se opõe a tradição católica, apenas assumiu uma postura não romana, mas que apenas
conjunturalmente representa uma tendência de sua prática histórica. Além disso, como já foi
visto na significação etimológica da palavra protestatio está acentuado o seu caráter
afirmativo de sentença declaratória.

Munod, então nos diz que a Reforma “nos apresentou uma igreja romana a reformar e uma
igreja romana reformada em duelo” (MUNOD, 1928, p. 147, 148), e que deste duelo uma, a
reformada, recusou-se a ser romana na medida em que foram excluídos como inovadores se
obrigaram a organizar-se forma dos espaços oficiais.

Assim, frente ao catolicismo, a Reforma foi um enfrentamento a uma religião que era vista
como gestual, supersticiosa, de indeclinável simbiose com o espaço civil, e este
enfrentamento deu-se na teologia, na tradição – enquanto expressão de poder -, na liturgia,
nos costumes e em relação ao próprio poder político. Com isto pretendia afirmar a supremacia
dos direitos espirituais sobre a autoridade institucionalizada, organizada nos cânones
eclesiásticos, a supremacia da Escritura e da Fé, sobre o aparato litúrgico e simbólico.

Neste contexto é necessário que se afirme que a Reforma não foi uma afirmação da
independência do pensamento ou dos direitos absolutos do indivíduo como muitas vezes
anunciada, mas propunha a substituição da autoridade do Magistério Eclesiástico como
equivalente a autoridade das Escrituras, uma vez que entendia que estas já não guardavam
relações simétricas, caminhando num processo de institucionalização através de confissões e
do estabelecimento das igrejas nacionais. Ainda concernente a esta dimensão eclesiástica ou
religiosa do problema, deve-se dizer que o protestantismo é essencialmente uma hermenêutica

1570
eclesial, i.é, uma compreensão geradora de sentido e identidade, daquilo que constitui-se a
Igreja.

Por isso a reforma dará ênfase a eclesiologia, a comunidade como espaço de segurança contra
a heterodoxia. Assim, como efeitos decorrentes próximos da expressão religiosa da Reforma é
possível afirmar o reordenamento da religião interior, rompendo com o seu condicionamento
institucional e que “no terreno moral é o cultivo da consciência” (AMARAL, 1962, p. 70).

Decorre deste efeito a organicidade que foi adquirindo o processo, perdendo seu caráter de
movimento, na medida em que o risco do subjetivismo exigia alguns fundamentos de normas
eclesiásticas, sem com isso pretender a regulamentação da vida religiosa, de caráter
institucional, moralista, sacramental ou dogmático; antes pelo contrário, afirmando a
“autoridade intrínseca e imediata da palavra de Deus” como verdade que se estabelece pelo
reconhecimento pessoal. Desta forma consumada a cisão, passaram logo protestantismo e
catolicismo romano, como era natural, a ser entidades opostas que se lançaram em ataques
recíprocos, e não somente, ambos têm vivido quatro séculos como ainda se têm distanciado
ideologicamente mais e mais no decurso desse tempo (Id., p. 85) (grifo nosso).

A marca normativa desta compreensão de igreja é constituir-se ela em estado de tensão


permanente, derivada do caráter dual e inalienável de possuir uma essência espiritual/ mística
e uma forma empírica/ concreta. Próximo do princípio tillichiano pode-se dizer que onde há
esta tensão, há uma atitude protestante.

Na verdade o protestantismo não se caracteriza por um individualismo radical extremado, que


se opõe a vida comunitária, ou, a igreja mesma, antes, assume um caráter reacionário radical
contra uma forma de ser igreja “em cuja maneira de entender-se a si mesma fica suprimido o
fator essencial da tensão entre sua esfera espiritual e a sua forma empírica” (REINHOLD,
1964, p. 590). Como decorrência do estabelecimento desta identidade, o reconhecimento da
presença desta tensão substantiva, surge a necessidade de uma postura diante da realidade
concreta como ela se mostra, considerada sob a existência da diversidade protestante e sua
relação com o mundo.

A diversidade que tantas vezes tem sido objeto de crítica em relação ao protestantismo pode
ser entendida a partir de que é esta mesma diversidade que amplia a possibilidade de
existência concreta de caráter pluralista, mesmo se estando atento ao fato de que ela pode
migrar de sua positividade, para ser apenas a expressão da “tortura moral” que impõe o

1571
sectarismo, ou conflitos que revelam em suas bases, marcas da estratificação social, as
controvérsias político-econômicas, o individualismo, os fatores geográficos, entre outros
matizes, inclusive porque "Um grupo social possui não somente estruturas, organizações,
práticas e símbolos, mas também estas realidades tem um sentido, pretendem significar algo,
tendem para algo mais além delas mesmas" (MEHL, 1981, p. 42 ).

Em relação ao mundo “o protestantismo rechaça toda espécie de cristianização do


mundo”(REINHOLD, 1964, p. 596), porque o mundo não é visto como lugar de afastamento
do homem de Deus, e também não pode haver nenhuma relação qualitativa de superioridade
da igreja, porque o mundo se constitui um espaço a existência da igreja e outras esferas da
sociedade, tendo a igreja relação diferenciada, na medida em que esse se mostra como lugar
para o exercício da fé e das possibilidades de serviço para o cristão.

A igreja se objetiva na ação que decorre da relação entre Palavra e sacramento. O


protestantismo não entende a Palavra segregada do sacramento, porque a presença de Cristo
encontra o homem no sacramento e este faz visível a palavra. O protestantismo tem como
sacramentos o Batismo e a Ceia, atribuindo aos demais, achados no catolicismo a condição de
“ações da igreja”, só legitimadas a partir da Palavra, embora haja grupos dentro do
protestantismo que não atribuem caráter sacramental aos atos do batismo e da Ceia,
considerando-os apenas como ordenanças eclesiásticas.

A igreja terá sua forma-no-mundo sempre determinada pelas condições da historicidade, não
havendo possibilidade de esta se constitua em realidade supra-histórica encravada no mundo
por uma forma de inserção sobrenatural. Do ponto de vista teológico ela é realidade histórica
decorrente da presença de Deus em Cristo na Encarnação. É preciso considerar o grupo
religioso como complexificado e composto de três esferas distintas: comunidade autônoma
diferenciada da comunidade global, corpo social em relação com os demais e comunidade
sobrenatural. É preciso explicar como a comunidade se torna autônoma recruta seus membros
se mantem e se difunde.

Outro aspecto importante a ser considerado e que não deve ser confundido é que
protestantismo enquanto ideia, projeto, princípio, não se confunde com as configurações
históricas que adquiriu. O protestantismo não se restringe aos modelos históricos que se
derivaram de sua ontologia. Por isso, nenhuma comunidade protestante constitui-se uma
representação perfeita do protestantismo e do seu ideário, uma vez que o movimento de

1572
reforma “se reduz ao que ele foi e não ao que gostaríamos que ele fosse” (AMARAL, 1962, p.
165), para com isso afirmar que o protestantismo sempre estará desprovido de qualquer
caráter de finalização ou conclusão. Eclesia reformata, semper reformanda.

Assim o cristianismo que não se constitui uma realidade eclesiástica ou uma realidade
doutrinaria em sua essência, vê a emergência destes caracteres doutrinais e eclesiásticos sendo
incorporados progressivamente. As fórmulas e símbolos que se constituíram rigidamente a
fim de resistir ao enfrentamento com o catolicismo no século XVI começam a resistir a si
mesmas e a critica, como lembra Niebhur “... degenerou em justiça de crença o que antes fora
experiência de justificação pela fé” (NIEBHUR, 1947, p. 118). Este processo de formulação
doutrinal, numa complexa dualidade entre a liberdade e a confissão agravou historicamente a
fragmentação em torno de uma incipiente organicidade do protestantismo e muitas vezes
produziu experiências de individualismo e intolerância, associando muitas vezes a isto, uma
ética como principio desagregador, como demonstrou Alves (1982).

Por possuir um caráter humano, e ser uma denuncia contra toda rigidez dogmática, o
protestantismo em perspectiva histórica, como portador imperfeito dos princípios da Reforma,
trouxe em si mesmo suas possibilidades de deformação, mas também a possibilidade de
evoluir, criticar-se, adaptar-se, guardando a sua responsabilidade em ser uma expressão do
cristianismo e expressão da Reforma, com vistas a unidade, a tolerância, a inserção social, ao
fim do exotismo e do caráter iconoclasta, inclusive por emergir no contexto das mudanças que
ocorreram no mundo ocidental, e de uma nova concepção de mundo. Por isso ele se apoia
nestas mudanças produzidas pela modernidade, pelo humanismo, e o faz num processo
interativo em que influencia e se deixa influenciar, num modelo que é simultaneamente tenso
e dialético, na medida que julga e rechaça estas contribuições do advento moderno, ao mesmo
tempo em que nutre-se e influi sobre ele.

Segundo Amaral, a demonstração deste processo pode se verificar no estilo de vida


protestante. A piedade tradicional vai colocar a sua ênfase sobre a Escritura de forma
sacralizada, sem se aperceber que isto se constitui em antítese ao conceito de Deus vivo/
dinâmico e que desloca a centralidade da pessoa de Cristo da teologia para uma condição
subordinada. A resposta dessa comunidade fechada ao confronto com o racionalismo, vai
também produzir-se em função dessa relação com a Escritura, numa ética moralista e muitas
vezes intolerante, associada ao pietismo, com sua ênfase na regeneração individual e
secundarização do serviço, a partir de uma subjetividade radical, cuja compreensão da

1573
santificação vai significar a ruptura de relações entre a comunidade cristã e a comunidade
secular (MACIEL, 1972).

A associação do protestantismo ao mundo moderno fez com que, na medida em que este
entrasse em crise, esta correspondesse a uma crise no protestantismo, com o envelhecimento
das “pequenas cristandades ou subculturas” e a secularização do movimento missionário,
esgotando-se a ideia de que o protestantismo era fundamental para o fim da cristandade
tradicional.

Conclusões

O esforço empreendido nesta comunicação foi sugerir que a compreensão do protestantismo


brasileiro, demanda a reelaboração conceitual do protestantismo, como elemento permissivo
de uma ordenação do universo religioso do protestantismo, o que não se faz sem o esforço de
demarcar as diferenças, a busca por um elemento substantivo, sem o qual nenhum fenômeno,
histórico, sobretudo, é passível de constatação de sua realidade.

Lembrando que a construção de qualquer aparato conceitual se institui pela demarcação do


gênero e da diferença dos entes, a partir da proposição que a diferença constitui-se naquilo
separa uma identidade da outra. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio dos
sistemas simbólicos de representação, quanto por meio de formas de exclusão social.

A reflexão sobre o complexo problema da identidade que permeia a contemporaneidade não


se faz sem remissões históricas, muito especialmente para o historiador. Sabidamente, os
processos identitários resultam de práticas de significação e sistemas simbólicos por meio dos
quais os significados são produzidos, sendo significado e símbolo características inerentes a
religião e aos sistemas religiosos, onde sempre os diferentes significados são produzidos por
diferentes sistemas simbólicos.

Assim, toda identificação, segundo Hall, corresponde a um processo pelo qual nos
identificamos com os outros, seja pela ausência da consciência da diferença, seja como
resultado de supostas similaridades, que é próprio das construções conceituais. Notadamente,
todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder
incluindo poder para definir o que é incluído e o que é excluído. Por seu turno, a cultura
molda a identidade ao dar sentido a experiência e ao tornar possível optar gera modos

1574
específicos de subjetividade, a partir das variedades de relações simbólicas, e pelas relações
sociais.

O passado e o presente exercem um importante papel neste processo, pois indivíduos e grupo
são herdeiros de algum passado e se comportam a partir da identidade fornecida pelo passado,
e quando algo que se supões fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida,
gera-se a incerteza que é o elemento dinâmico da mobilidade identitária.

As identidades, produzidas em momentos particulares do tempo e em conflito estão sempre


localizadas no interior das mudanças sociais, culturalmente construídas e por isso são sempre
objeto de contestação, o que faz com que a afirmação política das identidades exija uma
forma de autenticação, frequentemente, reivindicando a história, obrigando a busca por uma
forma dialogal que indique como podemos negociar entre a própria história e a do outro.

Em síntese, sugerimos que o estudo do protestantismo, seu tratamento analítico, está


comprometido até que sejamos capazes de oferecer caraterizações plausíveis, diferenças
substantivas em relação a outras configurações religiosas, ainda que admitidas precocemente
como derivadas ou associadas ao protestantismo, e se quisermos compreender os significados
partilhados que caracterizam os diferentes aspectos da vida social, temos que entender como
seus elementos são classificados simbolicamente, proposta a ser testada, em nosso objeto de
estudo.

Referências

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1575
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trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.
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Universidade Federal de Goiás. Goiania, 1972.

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l958.

WHALE, J.S. The protestant tradition. New York, Westminster Press, l967.

1576
1577
Pensamento político do metodismo em Belém do Pará: registros
históricos do jornal O Apologista Christão Brazileiro na transição
republicana do Brasil (1890-1891)
Tony Welliton da Silva Vilhena1

Introdução

Hodiernamente, pesquisadores vêm vasculhando a história intelectual do país, elaborando


uma série de subsídios teóricos que auxiliam a renovação dos conhecimentos dos padrões e
dilemas fundamentais da sociedade e da política brasileira, este campo de pesquisa vem sendo
chamado de pensamento social no Brasil ou pensamento político brasileiro.

Aliada deste empreendimento, esta pesquisa considera que observar as tendências políticas do
jornal O Apologista Christão Brazileiro2, editado pelo missionário metodista Justus Henry
Nelson, em Belém do Pará, assume relevância na percepção das tensões ideológicas e
transformações sociais verificadas na transição do Império para a República, sobretudo, nas
questões que tangem a religião.

Este trabalho preocupa-se em pontuar os temas políticos mais relevantes do jornal no período
de janeiro de 1890 a fevereiro de 1891, interregno entre o início da sua publicação e a
aprovação da primeira Constituição republicana. O Brasil passava pelo período conhecido por
governo provisório, chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca. A recém criada República
brasileira vivenciava intensos debates sobre qual ideário republicano se instituiria no país e
pautaria a Constituição.

Durante vinte e um anos (1890-1910), Justus Nelson produziu o jornal O Apologista Christão
Brazileiro, divulgando notícias locais, nacionais e internacionais, estudos bíblicos, matérias
de propaganda religiosa protestante e opiniões políticas, registrando e permitindo que
percebamos a perspectiva da minoria religiosa, bem como sua reação e seu posicionamento,
diante às mudanças políticas e econômicas.

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Ciências da Religião pela UMESP, bacharel e
licenciado em Ciências Sociais pela UFPA. Integrante do GP Movimentos Sociais, Educação e Cidadania na
Amazônia (GMSECA). Orientador: Prof. Dr. Henry Willians Silva da Silva. Contato:
tonysvilhena@hotmail.com.
2
Toda a produção do Jornal encontra-se microfilmada na Biblioteca Pública Estadual Arthur Vianna, Seção de
Microfilmagem, em Belém do Pará.

1578
A tiragem do jornal era de mil exemplares, o que revela uma grande penetração social, pois
circulava não só no Pará, mas em estados de todas as Regiões do país (SALVADOR, 1982),
além de exemplares que eram enviados para os EUA, alcançando um público de leitores
metodistas e não-metodistas muito expressivo para aquele período.

Fatores que favoreceram a circulação de um jornal protestante-metodista na Amazônia


ainda no século XIX

Belém era uma cidade despontada no cenário internacional devido ao vertiginoso crescimento
da economia gomífera. Por causa do forte fluxo migratório, o crescimento demográfico
registrado no Pará era extraordinário para aquela época3. A maioria dos imigrantes vinha do
Nordeste, fugindo da seca e em busca de oportunidades de melhorar de vida. Mas havia
também imigrantes estrangeiros como os norte-americanos que fugiram da guerra civil. Esta
intensa movimentação populacional, somada à riqueza criada pela economia da borracha, fez
a cidade de Belém fervilhar culturalmente.

Em decorrência dessas modificações pelas quais passa a região na segunda metade do


século XIX, as oligarquias agrárias tendem a se transformar e adaptar à economia nascente
[...] A formação dessa nova elite intelectual, posteriormente, além de contribuir para o
aumento de profissionais liberais, concorrem também para introdução de novos hábitos de
vida (SARGES, 2002, p. 82).

Politicamente, Belém via florescer descontentamentos cada vez mais incontidos dos políticos
liberais que consideravam “o relacionamento econômico extremamente desfavorável da
Amazônia com o governo central” (WEINSTEIN, 1993, p. 127). Este discurso colaborava
para o aumento da oposição à monarquia. Crescendo a pujança dos liberais, que combatiam a
centralização administrativa e fiscal, e dos republicanos, que queriam derrubar o Império.

O ministro anglicano, Richard Holden, que cumpriu destacadas ações de propaganda


protestante na cidade de Belém, no início da década de 1860, já revelava em seu diário o
clima de insatisfação na região e a possibilidade disto reverter-se favoravelmente em
ampliação da inserção protestante no Brasil. Dizia ele que

o norte é a principal sede do sentimento republicano, e mais, insinua-se que no caso de o


Imperador morrer, haverá um desmembramento do Império e a formação de uma República

3
Em 1880 a população do estado era de 270.000, passando para 445.000 em 1900, segundo o IBGE (Apud
PROST, 1998, p. 30).

1579
Setentrional. Quão importante é que nossa influência silenciosa pudesse ter um ano ou dois
para fazer-se sentida e conhecida, antes que o tempo das novas cristalizações chegue. As
épocas revolucionárias nos Países Papistas são sempre uma boa oportunidade para a
introdução do Evangelho, pois, no meio de rugir da tempestade o humilde trabalho
missionário pode existir despercebido, de modo que, apesar de pedir a Deus que o dia ainda
esteja longe, acho que devíamos tomar em consideração em nossos planejamentos algo que
é mais do que uma contingência (Apud VIEIRA, 1980, p. 177).

Em 1886, foi fundado o Clube Republicano do Pará. Este refutava tanto o Partido
Conservador quanto o Partido Liberal. Nos dizeres do seu Manifesto encontramos a
radicalidade daquele pequeno grupo contra o Império:

A República, que é o reinado de luz, não pode deixar de ser aurora da libertação dos nossos
cidadãos. Para quebrar o trono do rei é necessário quebrar o trono dos algozes. Assim, nós
opomos a uma monarquia de escravos, a República dos homens livres (ROQUE, 1996, p.
95).

Esta agitação política, expressão mais extremista do antimonarquismo, somada à falta de


prestígio nacional dos políticos paraenses frente ao governo imperial, encontrava eco mesmo
nas lideranças dos partidos constitucionais, Conservador e Liberal, permitindo que os
republicanos tivesses cada vez mais adesões. Como afirma Weinstein (1993, p. 131), “esse
pequeno magote de republicanos surpreendeu-se falando para um público receptivo cada vez
maior”.

No dia 15 de novembro de 1889, as forças republicanas destronaram a monarquia e chegaram


ao poder em todo Brasil, sendo o Pará um dos estados onde encontraram menos resistência,
visto que há muito tempo já se ansiava por mudanças.

Não houve grandes problemas, no dia 16 de novembro de 1889, para implantação do novo
regime em Belém (...). O povo foi às ruas, movido pela natural curiosidade; as tropas
acataram as instruções vindas do Rio; e os republicanos locais, como no resto do país, uma
minoria, apanhados de surpresa, viram-se, de repente, transformados em senhores da
situação (ROQUE, 1996, 93).

É neste clima de mudança dos rumos políticos da nação que encontramos a brecha que os
protestantes precisavam para marcar sua posição na sociedade, ainda mais no Pará, um estado
onde a insatisfação era generalizada. Registra-se que até então, o Brasil imperial era um país
oficialmente católico, sendo os acatólicos apenas tolerados. Senão vejamos o que dizia o
Artigo Cinco da Constituição de 1823:

1580
Art. 5. A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas
as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo (Apud REILY, 1984, p. 28).

A partir da Proclamação da República, os protestantes passaram a vislumbrar as


possibilidades de se estabelecerem e se disseminarem com as liberdades garantidas
constitucionalmente. Uma decisão importante para este intento protestante foi o Decreto 119-
A, de 07 de janeiro de 1890, do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do
Brasil, abona a liberdade religiosa:

Art. 1º - É proibida à autoridade federal, assim como à dos estados federados, expedir leis,
regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a a criar
diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento,
por motivo de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas; Art. 2º - A todas as confissões
religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a
sua fé e não serem contrariados nos atos particulares ou públicos, que interessem o
exercício deste decreto; Art. 3º - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos
nos atos individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem
agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente,
segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público (Apud REILY,
1984, p. 225-226).

A secularização republicana reconfigurou a esfera religiosa no Brasil com a quebra do


monopólio católico e a saída dos protestantes da penumbra histórica em que estavam
submetidos legalmente. Desta maneira, o protestantismo ecoava como a novidade formadora
do ideário de nação republicana, já o catolicismo era tratado como antiquado e ultrapassado.

Fica evidenciado que a religião protestante implantada no Brasil, a partir da segunda


metade do século XIX, cumpriu um papel civilizatório, na medida em que ofereceu uma
alternativa ao status quo religioso, até então absoluto de vertente Católico Romana, e, além
disso, representou um acesso ao que era considerado, não só pelos protestantes, mas pelas
próprias elites liberais brasileiras, um avanço à modernidade em termos educacionais,
morais e de costumes (MARTINS; CARDOSO, 2006, p. 9).

O protestantismo era apresentado como sinônimo de modernização liberal, progresso e


civilização, aliando-se a grupos políticos liberais na defesa da livre consciência e da separação
da Igreja e Estado (CONRADO, 2006). Como diz Rui Barbosa, em plena polêmica da
secularização dos cemitérios que, embora bancados e geridos pelo Estado, eram

1581
exclusivamente utilizados por católicos, sendo os acatólicos sepultados em cemitérios
particulares ou valas comuns,

o protestantismo nasceu da liberdade da consciência individual, cuja conseqüência política


é a liberdade religiosa; do protestantismo é filha a instrução popular, que constitui a grande
característica, o principal instrumento e a necessidade vital da civilização moderna; ao
protestantismo está associada uma exuberância de prosperidade industrial, luxuriante e
vigorosa como a vegetação dos trópicos, em contraste com os países onde os processos de
governos católicos, aplicados em seu rigor, cansaram as almas e esgotaram a energia moral
do povo (BARBOSA, 1950, p. 163)

Outrossim, o aquecimento econômico e a abertura política corroboraram terminantemente


para o intenso movimento tipográfico observado no Estado no ano seguinte, 1890. Somente
em Belém foram vinte e seis surgimentos de novas revistas e jornais com diferentes enfoques
e orientações -político, artístico-literário, religioso, comercial e esportivo (BIBLIOTECA
PÚBLICA DO PARÁ, 1985, 123). Sendo que neste bojo, no dia 04 de janeiro daquele ano,
surge a primeira edição do jornal da Igreja Metodista Episcopal do Pará: O Apologista
Christão Brazileiro, com o lema de “jornal religioso semanal para famílias, dedicado à
propaganda da verdade evangélica” (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, p.
1).

O Apologista Christão Brazileiro: política e missão na Amazônia

Logo no editorial da primeira edição do jornal, num discurso envolto da estratégia de busca de
legitimação, junto com o fortalecimento e a ampliação da proteção para sua atuação social,
intitulado “Nosso Programa”, Justus Nelson argumenta a favor da República:

segundo nosso parecer, a república é a forma de governo que melhor conserva os direitos
do maior número de cidadãos, ou, por outros, que mais chegada é aos princípios da religião
christã. Portanto, somos republicanos, não republicano francez, mas sim americano. A
verdadeira república permite e exige a existência de Deos, da consciência, das convicções.
Faltando isso, só pode haver a tyrania ou a anarchia. No mesmo acha-se, ou achar-se-lhe o
governo republicano do Brazil. Procuraremos, portanto apurar a consciência e despertar

1582
convicções firmes, sem as quaes a república vindoura do Brazil não poderá ser feliz (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 1, p.1) 4.

A república aparece sacralizada não por ser uma obra divina, mas por ser manifestação do
povo, cujos direitos, estes sim, eram sagrados e universais. Esta é uma herança do Iluminismo
que enfatizava os direitos individuais e privilegiava as fontes seculares de legitimidade das
instituições políticas frente às religiosas.

É interessante perceber o tom do excepcionalismo da cultura política norte-americana que


Nelson lança mão ao diferenciar a república francesa da americana. Sugerindo, sutilmente, ser
a primeira, desarmônica, e a segunda, pacífica e perfeita. Como afirma o diplomata brasileiro
Carlos Fonseca, o excepcionalismo é a certeza de que os EUA “são uma nação excepcional,
produto de uma trajetória histórica única e com um papel no mundo - a que muitos se referem
como “missão” - igualmente extraordinário” (2007, p. 150).

Na esteira do excepcionalismo, vem a necessidade obrigatória de se propor o modelo político


estadunidense para os outros países. A variante secular do excepcionalismo “tende a enfatizar
as peculiaridades do modelo político democrático e liberal construído nos Estados Unidos,
por vezes advogando a necessidade de promovê-lo e reproduzi-lo mundo afora” (ibid, p. 150).

Ainda no primeiro número do O Apologista, Nelson apresenta a tradução do hino Nosso Paiz,
uma oração pela nação brasileira em formação que idealiza um governo civil com princípios
cristãos, assentado em bases religiosas, senão vejamos alguns trechos:

Divino Salvador!

Contempla com fervor

Nosso Paiz!

Dá-nos interna paz,

Governo bom, capaz,

Dita que satisfaz,

Sorte feliz!

... Olhamos para Ti

Oh! Vem reger aqui

4
A transcrição dos textos do referido jornal encontra-se fiel aos originais por não comprometer o entendimento
da leitura.

1583
Tu, Rei dos reis!

Dirige o pátrio lar;

Ensina a governar,

Conforme o teu mandar,

Por justas leis

... Ao chefe da Nação

Outorga a direção

Do teu amor;

Guia-o p’ra te servir,

E, no eternal, porvir,

De ti gostar ouvir

Doce louvor

(O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº1, p. 2).

Para Fonseca, esta ponte entre o temporal e o sagrado aludida neste hino é arquitetada pela
concepção de religião civil que permite aos norte-americanos “associar secularismo político e
religiosidade social, juntar Deus e pátria, de maneira a conferir santidade religiosa ao
patriotismo e legitimidade nacionalista às crenças religiosas” (2007, p. 155). A religião civil é
um “somatório de mitos organizados à maneira de ‘instrumento discursivo’, que vinculava
política e moralidade e, assim fazendo, facilitava o consenso social e oferecia sentido à
existência da comunidade” (ibid., p. 154).

Como a campanha anti-protestante do clero católico estava nas ruas de Belém, o Apologista
também serviria para pontuar o posicionamento protestante frente à Igreja Católica, sempre
fazendo esta ligação entre o mundo civil e o religioso, tendo o intento de formar um
sentimento de participação dos cidadãos na esfera pública. Contra-argumentando o discurso
católico condenatório da pulverização do protestantismo, no texto A Igreja e as Igrejas,
vemos no jornal a seguinte opinião de seu redator,

a Igreja de Roma não tem razão quando aponta ‘as milhares de seitas’ (são cincoente pouco
mais ou menos) como um dos males indisíveis do protestantismo. Ao contrário, esta mesma
diversidade de formas de governo e de costumes e de opinião es que a Igreja de Roma
procura estrangular, e que nas igrejas evangélicas acha livre expressão, é o que, pela ajuda

1584
de Deos há de conservar para as gerações vindouras a pureza da fé, a liberdade da
consciência e a liberdade civil (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 1,
p. 2).

Mais à frente, encontramos a apresentação das Regras Gerais, uma adaptação de um


documento elaborado por João Wesley, fundador do metodismo, para delimitar a conduta
necessária dos integrantes das comunidades metodistas. O reverendo Justus Nelson, no intuito
de contextualizar as Regras à realidade da moralidade brasileira faz alguns acréscimos como,
por exemplo, a proibição da mentira. Pois

na adaptação das Regras Gerais as necessidades do meio em que nos achamos, o traductor
acrescentou às cousas prohibidas a mentira, cousa que não foi tão necessário prohibir-se aos
ingleses que se dizem ser christãos. Porém, como no Brazil a mentira é ensinada e praticada
como virtude, a sua prohibição tornou-se de primeira importância na adaptação das Regras
(O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº1, p. 4).

Embora sendo uma religião minoritária na cidade, Justus Nelson acredita que o metodismo
pode ser uma parte integrante e atuante do processo constitutivo da sociedade. Reside neste
esforço argumentativo a tentativa de impactar a esfera pública das relações sociais
aproveitando-se da recomposição do campo religioso, deslegitimando a frouxidão da conduta
moral católica e estabelecendo um novo referencial identitário para um indivíduo postular-se
cristão.

Logo, o que parece ser uma simples recomendação comportamental, reveste-se de ação
política dos indivíduos que se associam ao metodismo, pois estas Regras marcam a explícita
opção de ruptura daquele grupo social com condutas não condenadas pelo catolicismo como,
além da citada prática da mentira, o ágio, a posse ou tráfico de escravos e o acúmulo da de
riquezas econômicas, entre outras.

Os clérigos não descansavam quando se tratava de projetar a sociedade que consideravam


ser a ideal, segundo seus princípios culturais e religiosos. Asseio, saúde, trabalho,
obediência eram valores que expressavam a disposição para uma prática de vida
santificada, um dos pilares da teologia wesleyana que naquele período sinalizavam para o
compromisso social com as sociedades que acolhiam suas igrejas e escolas, não deixando
de ser, dentro das circunstâncias, um envolvimento com a economia, com a educação e com
a política do país (ALMEIDA, 2007, p. 48).

A opção pelo metodismo é um ato político por representar um manifesto de rotura social, pois
era a Igreja Católica que mantinha a supremacia no estabelecimento dos preceitos morais e

1585
éticos do país. Ao assumir-se metodista, o indivíduo altercava contra o monopólio católico
dos códigos da vida pública, apresentando um novo modelo de cidadania e organização do
Estado, visto que antes era a Igreja Católica que

detinha o monopólio dos principais atos cívicos e ritos de passagem comuns à vida dos
brasileiros, como o batismo, o casamento e o sepultamento, e estar fora dela significava não
desfrutar da cidadania que tais atos simbolizavam [...]. Essa interpenetração entre Igreja
Católica e o Estado possibilitava, na prática, que questões religiosas fossem tratadas como
meramente políticas ou leigas e que a religião fosse utilizada para fins políticos do Estado
(CORDEIRO, 2005, p. 112).

Neste sentimento de ruptura social, outro posicionamento relevante fala acerca da atuação das
mulheres na igreja e na política, pois na Igreja Metodista as mulheres já ministravam
sacramentos e exerciam o sacerdócio. Acompanhemos esta citação sob o título “As senhoras
na política”:

O mundo vae cedendo pouco a pouco à mulher o seu lugar de social de direito. Este século
vai reconhecendo que as mulheres pensam, que lêem, e que estudam, e que quanto mais
entram no pensamento das nações mais ellevadas estas se tornam... Os factos vão
demonstrando que é absolutamente infundado o escarneo que nega à mulher a capacidade
de entender de política (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 20, p. 1) .

Voltando ao primeiro número, dentro do noticiário intitulado Do Estrangeiro, o Apologista


informa sobre uma reunião de diversas organizações de artistas, trabalhadores e lavradores,
ocorrida na cidade de S. Louis, nos Estados Unidos, a favor de leis que combatessem a
formação de trustes. Aproveitando a oportunidade, o redator, perspicazmente, posiciona-se
contra as ideias socialistas, embora finalize o texto apoiando outras reivindicações das classes
trabalhadoras e artísticas.

Como era de se esperar, são representadas entre ellas muitas idéias caprichosas socialísticas
como abolição dos bancos nacionais, e a decretação do dinheiro avulso, e a propriedade
exclusiva e nacional de terrenos. Mas outras idéias de sua propaganda são de primeira
importância, como a propriedade nacional dos caminhos de ferro e outras vias de
transportação, legislação contra as combinações dos capitalistas que se chamam ‘trusts’, e
que actualmente aumenta a oppressão da lavoura e das classes artísticas e trabalhadoras (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº1, p. 2).

Neste trecho, também percebemos que Nelson preocupa-se em preencher o jornal com
notícias do seu país de origem para atualizar os outros norte-americanos que haviam migrado

1586
ou estavam de passagem pelo Brasil, por outro lado, também servia para espelhar diante da
realidade brasileira como funcionava um país que primava pela liberdade de reunião das
organizações políticas e como estas podiam influenciar diretamente na formulação de leis.
Pois,

assim como os demais representantes do protestantismo missionário norte-americano, os


metodistas chegaram ao Brasil totalmente identificados com a política liberal dos Estados
Unidos. Imbuídos de ideais civilizadores, os primeiros missionários concebiam a sua
missão não apenas no sentido de propagar a sua religião, mas também de difundir na
sociedade brasileira a sua cultura e, em consequência, os valores de liberdade, democracia,
civilização e progresso. Para os metodistas a cultura protestante norte-americana, fluindo
por meio da educação, acabaria por transformar o Brasil de forma a inseri-lo na civilização
cristã (CORDEIRO, 2005, p. 118).

Naquela conjuntura de formatação do marco legal do Estado Republicano, Nelson preocupa-


se com a criação de leis que resguardassem os direitos dos trabalhadores, como o descanso
semanal. Na verdade, sendo o domingo este dia de descanso, ampliaria o público que poderia
comparecer aos cultos da Igreja Metodista.

Uns taberneiros não querem que seus caixeiros tenham um momento de descanso na vida.
O pobre caixeiro pode trabalhar das 6 horas até às 9 da noite por trezentos e sessenta e
cinco dias no ano. Não faz mal, que aguente até morrer. Depois de morto há outros rapazes
bastante desempregados, que podem servir, o caixeiro morto não faz falta (diz o patrão)... É
dever do governo proteger os direitos dos fracos contra os fortes. Os empregados têm
direitos que os patrões devem respeitar (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO,
1890, nº 6, p. 1).

Impregnado por este espírito civilizatório, Justus Nelson reproduz a obra de Emílio de
Laveleye intitulado O futuro dos povos catholicos, no anseio de contribuir com uma reflexão
de apelo liberal sobre o desenvolvimento da nação brasileira. Como veremos em seguida, esta
obra aponta para a origem do atraso econômico e científico das nações católicas e exalta o
progresso das nações protestantes. Outrossim, O Apologista trás à tona a defesa da garantia
constitucional de um Estado leigo.

Os paízes catholicos, de ambos os lados do Atlântico, estão, pois entregues a luctas


intestinais que consomem as suas forças ou pelo menos que não deixam caminhos tão
regulares e tão rapidamente como os povos protestantes [...] Para qualquer homem que
queira interrogar os factos sem preconceitos, fica pois estabelecido que a Reforma é mais
favorável que o catholicismo ao desenvolvimento das nações [...] Ora até hoje, os Estados

1587
protestantes são os únicos que tem conseguido assegurar a instrucção a todos. Os Estados
catholicos em vão decretam a instrucção obrigatória, como a Itália, ou despendem muito
dinheiro para esse fim, como a Bélgica, elles não conseguem dissipar a ignorância (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 4, p. 2).

Com seus textos ou reproduções de artigos n’O Apologista, Justus Nelson alimentava
constantemente esta compreensão que relacionava o casamento entre Estado e catolicismo
com o atraso e a ignorância da nação. Senão, por fim, vejamos este trecho da reprodução de
um artigo de Rui Barbosa sobre a liberdade religiosa, expressa no O Apologista Christão
Brazileiro, nº 06, de 08 de fevereiro de 1890, que expressa que a história dos séculos de
instituição do catolicismo “é uma longa demonstração do maléfico efeito da proteção do
estado sobre o christianismo. O pacto de aliança entre a soberania e o altar é, foi e há de ser
sempre, pela força das cousas, um pacto de mútua e alternativa servidão” (ibid., p. 2).

Justus Nelson, como boa parte dos missionários americanos, ainda usou outra estratégia de
disseminação do pensamento liberal-protestante: a escola. Assim, em janeiro de 1881, apenas
seis meses após estabelecer-se em Belém, Nelson funda o Colégio Americano. É interessante
perceber que a fundação da escola antecede a da Igreja, organizada em 1º de julho de 1883.

Os missionários e missionárias norte-americanos fundadores de igrejas e escolas metodistas


no Brasil, tanto na segunda metade do século XIX quanto na primeira metade do século
XX, estavam convictos de que eram agentes a serviço da implantação da civilização no país
escolhido como campo de missão. As suas ações religiosas e educacionais visavam
expandir uma visão de mundo segundo a qual uma realidade resultante do sucesso obtido
no seu país de origem poderia ser instaurada em seus locais de atuação. Pretendiam instituir
novos comportamentos, tencionando compor uma ordem social acalentadora de princípios
condizentes com os desígnios divinos, caminho que, para eles, seria o único possível para
se alcançar a “salvação eterna”. Novos comportamentos, novas posturas e novos hábitos,
filtrados pela crença e cultura religiosa protestante seriam os alicerces a sustentar uma
sociedade que se pretendia moderna e civilizada. Quem não se encaixasse nessa visão de
social e religiosa, era entendido como atrasado (ALMEIDA, 2007, p. 44).

Por fim, as concepções de Nelson sobre a missão metodista que desenvolve na Amazônia são
impregnadas da ideologia do destino manifesto, onde os EUA aparecem como paradigmas de
uma sociedade perfeita, escolhida por Deus, com a importante missão de levar ao mundo o
seu modus vivendi (FONSECA, 2007). Duncan Reily descreve o destino manifesto da
seguinte forma,

1588
como Deus, por Moisés, libertou os israelitas da escravidão no Egito, pela travessia
maravilhosa do Mar Vermelho, os puritanos se libertaram da opressão dos soberanos
ingleses Tiago I e Carlos I, atravessando o Atlântico no pequeno navio Mayflower. Deus
estabelecera seu pacto com o povo liberto, no Sinai; paralelamente, os puritanos, antes de
pôr os pés em terra seca na América, firmaram o Mayflower Pact. Explicitaram que haviam
encetado sua viagem de colonização “para a glória de Deus, avanço da fé cristã e honra do
nosso rei e país, solene e mutuamente, na presença de Deus, e cada um na presença dos
demais, compactuamos e nos combinamos em um corpo político civil.” Finalmente, como
Josué havia conquistado a terra da promissão, os americanos viam como seu “destino
manifesto” conquistar o continente de Oceano a Oceano, espalhando os benefícios de uma
civilização republicana e protestante por toda a parte (1984, p. 19).

Ana Lúcia Cordeiro corrobora com esta análise quando aponta que “os metodistas pioneiros
julgavam ser o povo escolhido por Deus para estabelecer o cristianismo protestante no mundo
todo” (2005, p. 117).

Considerações finais

Tanto a história quanto a sociologia da religião demonstram certa limitação ou reducionismo


na análise do discurso religioso protestante na constituição de um pensamento social no país.
Esse menosprezo implica no número tímido de ocorrências de abordagens sociológicas sobre
a presença protestante no Brasil, especificamente na Amazônia, no século XIX, sem que
pesquisadores repercutam sobre sua relevância para formação da sociedade brasileira.

Logo, trazer à tona as ações de agentes pioneiros do protestantismo brasileiro, sobretudo na


Amazônia, como neste caso do pensamento político do jornal O Apologista Christão
Brazileiro, editado pelo missionário metodista Justus Nelson, com destacada ênfase liberal,
além de cooperar no levantamento de novos dados historiográficos e sociológicos, expõe a
perspectiva ativista e intelectual de uma das expressões fundantes da República no país. Pois a
opção pelo protestantismo, entre os vários ramos, o metodismo, antes de ser uma orientação
de natureza estritamente religiosa, era a sinalização da ruptura social daqueles que aspiravam
constituir uma nova sociedade, na sua óptica, liberal e moderna.

Neste metodismo que tenta imprimir na vida concreta as aspirações de seu sentimento
religioso, encontra-se a confirmação dos escritos de Max Weber, que afirma que a unidade
das práticas religiosas são primordialmente racionais e voltadas para o mundo físico. Sendo

1589
que a ação religiosa, “ainda que não seja necessariamente uma ação orientada por meios e
fins, orienta-se, pelo menos, pelas regras da experiência” (WEBER, 1977, 279). Assim,
Weber defende que em todas elas há necessidades ou propósitos sociais ligados a um fim,
cujo desenvolvimento, em sua grande maioria, tem alcance político e econômico.

Com seus artigos, notícias e reproduções literárias, O Apologista Christão Brazileiro propõe-
se em irradiar o ideário de construção da nação brasileira, o qual era imprescindível na
sustentação da República, tentando desconstruir a imagem daquele tipo humano brasileiro
formado no latifúndio rural o qual Oliveira Vianna (Apud COSTA, 2006, p. 2) chama de
“amante da solidão e do deserto, rústico e anti-urbano, fragueiro e dendrófilo”. Pois, “o ser
personalista assim formado não possuiria em sua base histórico-social os elementos
necessários à formação dos laços de solidariedade exigidos para o surgimento de uma vida
política tal qual idealizada pelas elites liberais que então inauguravam a República” (ibid.).

Conclui-se que não era intenção do jornal postular um projeto de poder, mas influenciar
determinantemente as decisões de quem detinha o poder. Assim visava contribuir na
formatação de um ideário de nação pós-império, disputando as consciências.

Referências

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Estudo da Religião, São Paulo, nº 1, p. 41-60, 2003. Disponível em:
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metodistas e católicos na Primeira República brasileira. Horizonte, v. 04, nº 7, Belo
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Fora, 2006. Disponível em: http://www.ufjf.edu.br/defesa. Acesso em: 08 out. 2006.

1590
FONSECA, Carlos da. Deus está do nosso lado: excepcionalismo e religião nos EUA.
Contexto Internacional, v. 29, nº 1, Rio de Janeiro, p. 148-185, jan./jun. 2007.

MARTINS, Luiz Cândido; CARDOSO, Luís de Souza. A dimensão civilizatória dos


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Paulo: HUTICEC, 1993.

Fontes

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Ano I, nº 1. Belém, 04 jan. 1890.

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Ano I, nº 4. Belém, 25 jan. 1890.

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Ano I, nº 6. Belém, 08 fev. 1890.

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Ano I, nº 20. Belém, 17 maio 1890.

1591
1592
GT14 – Igrejas inclusivas LGBTT e a luta
contra a intolerância religiosa

Coordenadores

Luiz Carlos Avelino da Silva Renan Antônio Silva

Doutor em Psicologia Escolar e do Mestrando em Desenvolvimento Regional


Desenvolvimento Humano pela USP. pela Uni-FACEF.
Professor na UFU.

Resumo

A emergência de grupos que discutem as relações entre religiões cristãs e homossexualidade


só pode ser entendida dentro de condições sócio-históricas específicas. No Brasil,
transformações sociais insufladas pela atuação e pela organização política dos movimentos
homossexuais se intensificam desde a década de 1990, relacionadas aos direitos civis, à
reivindicação da despatologização, à luta contra a violência e a discriminação e,
principalmente, ao enfrentamento da epidemia de AIDS no país. Encaradas pelas minorias
como um refúgio para a livre prática da fé, as igrejas “inclusivas” – voltadas
predominantemente para o público gay – vêm crescendo a um ritmo acelerado no Brasil, à
revelia da oposição de alas religiosas mais conservadoras. O grupo temático agregará
trabalhos que reflitam sobre pensamento sobre sexualidade, preconceito, fé e inclusão dos
homossexuais brasileiros em igrejas “diferenciadas”, criadas para um público visto como
“diferenciado”.

1593
A diferença se tornando unidade: análise dos temas da semana
nos grupos de discussão na Igreja Missionária Inclusiva em
Maceió
Niara Oiara da Silva Aureliano1

Introdução
A construção do ser social, principalmente no que diz respeito à gênero e sexualidade, vem
sendo estudada há séculos, desde os tempos dos mais antigos filósofos, cientistas sociais,
antropólogos, historiadores. Entende-se que tendo sido a religião judaica, em união
posteriormente ao nascido cristianismo, a base moral da sociedade ocidental, delimitações de
comportamento, de ser, agir, ter e pensar foram construídas e solidificadas à seu bel prazer
por séculos e mantém-se fortes nos dias de hoje. Em termos gerais, a maioria dos
comportamentos de gênero e sexualidade no mundo ocidental tem a mesma base: religiosa.

Entretanto, como era de se esperar, há diferenças significativas de uma região para outra.
Obviamente, não apenas a partir da religião se constrói a identidade do indivíduo; e é nesse
ponto que se deve entender a construção da identidade social do humano, que é construída e
moldada a partir das interações sociais, a partir do meio em que vive, internalizando logo o
que chamamos de moral, acreditamos ser certo ou errado, e sendo iniciado, na maioria das
vezes inconscientemente, na religião de seus pais.

Assim, traçada a identidade social do indivíduo, traça-se também os parâmetros da construção


de sua identidade social religiosa e, para os realmente adeptos, forçosamente ou por livre
vontade, o comportamento que deve passar a seguir a partir disto. Neste sentido, é a
sexualidade dos indivíduos, partindo de uma análise das religiões cristãs, que transcorre em
seu desenvolvimento no que é considerado por alguns psicólogos e sexólogos como um
desenvolvimento insuficiente.

Os homens heterossexuais são os que mais se aproximam do pleno desenvolvimento da


sexualidade, estejam eles vinculados à doutrinas religiosas ou não, pois estas costumam ser
mais flexíveis no que diz respeito ao comportamento sexual masculino, chegando a basear-se

1
Graduanda em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela UFAL. Orientada pelo Prof. P.h.D.
José Wagner Ribeiro Contato: niaraaureliano@hotmail.com..

1594
em estudos científicos, além da bíblia sagrada, para solidificar a liberdade sexual masculina,
com poucas ressalvas. Além disso, há também a ordem burguesa, que está estritamente ligada
à ordem vigente religiosa, e que garante o maior desenvolvimento da sexualidade masculina.

Porém, as liberdades sexual feminina hetero e homossexual e o desenvolvimento da


sexualidade homoafetiva masculina são extremamente prejudicados. As religiões monoteístas,
de culturas patriarcais, expressam a soberania masculina heterossexual ao subjugar o corpo
feminino e as sexualidades consideradas desviantes. Sobre isso, a homofobia pode ser
considerada talvez uma característica de religiões patriarcais, quando, a partir do século XIX,
foi o discurso médico-científico o grande impulsionador da medicalização do corpo. Em
contrapartida, a ciência também publicava, especialmente em meados da década de 1970,
outras concepções do que seria doença: a homofobia, não a homossexualidade. Natividade e
Oliveira (2009) afirmam:

A categoria homofobia é tributária de um período histórico em que o termo


“homossexualidade” aglutinava manifestações de disposições eróticas muito distintas sob
um único rótulo. A noção, na formulação proposta pelo psicólogo norte-americano George
Weinberg nos anos 1970, designava (e qualificava como sintomas de uma doença mental)
sentimentos e atitudes de aversão à homossexualidade masculina e feminina, assim como à
“inversão de gênero”. As motivações subjacentes a essas reações de repúdio poderiam ser
muito plurais, mas seus efeitos alinhavam-se em função de demarcarem e depreciarem uma
categoria de pessoas (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 226).

O que representam as igrejas inclusivas no cenário evangélico?

Entretanto, de certo além da doutrina católica, foram outras doutrinas cristãs, as de igrejas
pentecostais e neopentecostais, as que mais se fixaram em solo brasileiro. O pentecostalismo,
a saber, instalou-se no Brasil oficialmente ainda na primeira década do século passado “[...]
através das Igrejas: Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus. Essas igrejas foram
trazidas dos Estados Unidos da América pelo italiano Luís Francescon e os suecos Daniel
Berg e Gunnar Vingren que aqui firmaram suas doutrinas” (SILVA, 2007, p.2).

Já o neopentecostalismo, ou pós-pentecostalismo (apesar de haver discordâncias sobre o uso


correto deste último termo por não haver rupturas entre o pentecostalismo e a nova doutrina,
mas uma continuação), invade o país a partir da década de 1970, baseando sua crença no dom
da cura divina.

1595
O neopentecostalismo ou pós-pentecostalismo é um termo adotado para distinguir a nova
roupagem que o pentecostalismo brasileiro vem desenvolvendo desde a segunda metade
dos anos 1970, que cresceu e se fortaleceu nos anos 1980 e 90. A Igreja Nova Vida,
fundada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo missionário canadense Robert McAlister, foi o
palco inicial que fez nascer as maiores representatividades desse movimento, através das
igrejas: Universal do Reino de Edir Macedo (1977), Internacional da Graça de Deus (1980),
Cristo Vive (1986), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976), Comunidade da
Graça (1979), Renascer em Cristo (1986) e Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (1994)
(SILVA, 2007, p.3).

Neste sentido, a explosão do neopentecostalismo no Brasil reorganiza também outros debates.


Em primeiro lugar, o crescimento do pentecostalismo, de qual aquele deriva, está no Brasil
concentrado nas regiões Norte e Centro-Oeste, conforme demonstra Mariano “O Nordeste,
com apenas 10,4% de evangélicos, continua sendo o principal reduto católico e, por isso, a
região de mais difícil penetração protestante, enquanto o Norte e o Centro-Oeste, com 18,3%
e 19,1% [...]” (MARIANO, 2000, p. 121). Entretanto, é importante salientar que estão em
Alagoas dois dos municípios menos católicos do país: Campestre, no extremo norte do estado,
e Roteiro, no litoral sul, segundo censo do IBGE.

Neste ponto, é também um dos maiores propagadores da intolerância religiosa e contra


propostas progressivas como casamento igualitário, legalização do aborto, e etc., apesar de ser
relativamente novo no país. É importante salientar que as religiões de matriz africana, em
oposição aos segmentos cristãos, dão enorme visibilidade às minorias: mulheres, homens e
mulheres homossexuais, bissexuais e transexuais podem inteiramente integrar seus rituais e de
suas escalas hierárquicas.

Configuram uma espécie de “inimigo comum” (da Igreja Católica e das religiões de matriz
africana) a ser combatido. Isto porque, segundo a Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa – CCIR/RJ, um dos atores de maior destaque em nível local e nacional, seriam os
neopentecostais responsáveis pela atualização e pela prática da intolerância religiosa no
país (VITAL DA CUNHA, 2011, p. 1).

Chega-se então à seguinte questão: no contexto atual, o que representa a igreja inclusiva ou
“renovada”? Sabe-se que as igrejas evangélicas pregam, sejam elas das correntes pentecostais
ou neopentecostais, novas ideias que constituem então uma nova doutrina em que problemas,
males, inconveniências são todas causadas pelo diabo; que foi causado pela falta de religião
ou pela presença em centros espíritos ou rituais de matriz africana. “O diabo torna-se a causa

1596
principal de todos os males, sejam eles materiais, espirituais ou existenciais. A necessidade de
retirá-lo, libertar-se, faz-se, então, fundamental” (SANTOS, 2004).

O culto da igreja inclusiva no Brasil, relativamente recente (começo dos anos 2000), baseia-se
na aceitação de sexualidades não heterossexuais e a religião cristã. Diferentemente de outras
igrejas neopentecostais, uma sexualidade que se “desvia” da norma padrão não é tida como
artimanha do diabo ou um “encosto”; aqui, é a inclusão a característica maior.

A igreja inclusiva chega aos fieis maceioenses na tríade: incluir-reconciliar-amar. Incluir


cristãos de sexualidade não-aceita por outras doutrinas e simpatizantes; reconciliá-los com
eles mesmos e com Deus; e, neste sentido, prepará-los para cumprir o maior ensinamento que
Jesus Cristo deixou: amar. A si, ao próximo e a Deus. Incluindo e reconciliando vidas através
do amor.

Características neopentecostais nas igrejas inclusivas exibem-se a partir da realização de


batismos, vigílias, cultos de louvor e adoração; além disso, discussões em grupos sobre temas
de interesse dos praticantes. Essa questão é levantada neste artigo por trazer uma diferença no
que diz respeito às outras doutrinas de origem bíblica e patriarcal: aqui, não é a Bíblia Sagrada
quem guia o escolhido (o pastor) para repassar aos fieis a mensagem; mas é um psicólogo
clínico o facilitador das discussões. Atentaremos a isso mais a frente.

Uma Igreja Inclusiva numa capital com cara de interior

Maceió, com cerca de 1 milhão de habitantes, é a capital e cidade mais populosa de Alagoas.
Apesar de sua beleza, está em Alagoas uns dos piores níveis de desenvolvimento social,
violência contra mulheres, contra a juventude negra e contra os LGBTTs. Neste sentido, é
importante salientar que é na “Terra da Liberdade”, da capital ao interior do Estado, que a
violência contra as minorias se instalaram e perpetuam.

Localizada no bairro do Poço, parte baixa de Maceió, é a única igreja inclusiva do Estado.
Com cerca de 20 membros fixos, a maioria do gênero masculino, a igreja não tem sede
própria. Seus poucos membros tem, em sua maioria, faixa etária inferior a 30 anos. Não há
membros fixos heterossexuais; em sua maioria, os heterossexuais que comparecem às
celebrações são familiares dos membros e, ainda assim, aparecem ocasionalmente.

1597
A igreja tem uma página na rede social Facebook em que convida os cristãos a comparecerem
aos cultos, vigílias, e outras atividades organizadas pela I.M.I. Nesta página, diferentemente
dos comentários postados em matérias de veículos alagoanos de comunicação (em que muitos
religiosos, católicos ou evangélicos baseiam firmemente a homofobia na Bíblia Sagrada), a
igreja anuncia e convida os cristãos a participarem de atividades da igreja: cultos, vigílias, etc.

Nesta nova sede (onde estão alojados desde junho), um espaço relativamente pequeno e
simples, eles dividem as atividades a serem realizadas na semana. Fixamente às quintas-feiras,
ocorrem os cultos de oração; aos sábados, os cultos de adoração e louvor (musicalmente
agitados, letras gospel em ritmos como sertanejo são cantadas pelos fieis); aos domingos são
realizados os cultos de celebração – com momentos de leitura da palavra bíblica e momentos
de reflexão, em que frases de auto ajuda ou até capítulos de obras literárias são levadas para
serem discutidas no culto; a intenção é gerar ânimo nos fieis para enfrentar a semana que se
inicia. Nas terças-feiras ou sextas-feiras encontros para discutir a teologia inclusiva eram
realizados na sede da igreja, o chamado Grupo de Estudo de Teologia Inclusiva (Geti). Com a
mudança de sede, esses encontros foram temporariamente interrompidos. As sextas-feiras são
destinadas para a realização dos encontros do grupo de discussão.

Buscando outros caminhos: a psicologia entra em cena

A sociedade cristã é invariavelmente, salvo importantíssimas exceções, influenciada por seus


líderes religiosos. Os pastores neopentecostais, em específico, possuem atrás de si grande
poder midiático, o que, em outras palavras, nada mais é que o modo mais forte de “espalhar a
palavra”. A palavra é a bíblica, interpretada livremente pelo pastor. Entretanto, nesse sentido,
é importante salientar que quando o ensinamento de teologias como a Teologia da
Prosperidade, por exemplo, de alguma forma vão de encontro ao ensinamento bíblico, que
está subjugado ao livre poder de interpretação, logo é a palavra então contornada, moldada ao
interesse do discurso.

As diferentes teologias usadas pelas doutrinas pentecostais e neopentecostais servem, então,


como uma nova forma de interpretação ou aprofundamento da palavra bíblica. A Teologia
Inclusiva, discutida na Igreja Missionária Inclusiva de Maceió em grupos, é constantemente
chamada por outros religiosos de “teologia gay”. A Igreja Missionária Inclusiva, fundada em
Maceió por um pastor de Recife, apresenta particularidades: nos grupos de discussão e grupos

1598
de estudos de teologia inclusiva (Geti) são psicólogos, assistentes sociais, jornalistas e outros
profissionais registrados a facilitarem os debates. Neste sentido, as discussões, que tendem a
esclarecer e ajudar os jovens cristãos a aceitarem sua condição sexual enquanto criação de
Deus e viver, assim, para Deus, não têm a Bíblia Sagrada como central. A Bíblia é usada,
apenas, para contextualização da questão debatida.

Analisando esta questão, entende-se: é à luz da psicologia e de outras ciências humanas, a


partir de textos filosóficos, sociológicos, etc., que se pretende fazer crescer dentro desses
cristãos a visão racional sobre o mundo. Neste sentido, a orientação feita por um profissional
e não pelo pastor, ou outro membro da igreja considerado apto por ela, evidencia
discrepâncias entre a forma de se fazer refletir: diferentemente de outras igrejas classificadas
como neopentecostais, a formação político-social mostra-se, então, como ponto alvo nestes
grupos de discussão; uma formação que não parte do livro sagrado, mas a partir da
racionalização dos problemas sociais.

Elencando-se os últimos temas da semana, têm-se: Relacionando-me: como me relaciono


comigo mesmo?, Como lidar com a carência afetiva e sexual? e Homofobia à luz da
psicologia. Realizados de abril ao início de junho do corrente ano, todas as discussões foram
facilitadas por um psicólogo devidamente registrado. Os jovens cristãos expunham seus
medos, dúvidas e inseguranças que serviam então de conteúdo para o debate (mas cabe
salientar que um debate amplo, geral, mas ao mesmo tempo intimista).

Considerações finais

Considera-se, então, que diferentemente dos neopentecostais que atribuem problemas sociais,
físicos, políticos e à respeito de sua sexualidade à mazelas do diabo e à necessidade de cura
divina, pela fé e “aceitação de Jesus Cristo”, na Igreja Missionária Inclusiva de Maceió esses
problemas são racionalizados: a homofobia é um problema psicológico e social e os
homossexuais são criações divinas; os problemas sociais e políticos da sociedade alagoana
(aos quais esses cristãos reservam momentos em seus cultos para orar por sua cidade, estado e
país) são resultados da falta de educação, saúde e distribuição de renda, não de alguma
maldição divina ou “armadilha do anjo caído”.

1599
Neste sentido, a igreja inclusiva diverge de uma das características mais importantes da
doutrina neopentecostal. As ciências humanas lançam então luz sobre questões políticas,
econômicas, sociais e sobre o próprio indivíduo, enquanto a Bíblia serve de ponto de
contextualização. A doutrina desta igreja em específico parece, neste caso, abrir mão de
questões que, para muitos, não a apetece. Logo, além da formação religiosa, igrejas renovadas
podem ser capazes de formar também cidadãos.

Referências

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Eletrônica Inter-Legere, n. 2, 2007, p. 1-7. Disponível em
<http://cchla.ufrn.br/interlegere/revista/pdf/2/es01.pdf>. Acesso em 15 jul. 2013.

VITAL DA CUNHA, Christina. “Traficantes evangélicos” e intolerância religiosa nas favelas


hoje: o caso de Acari, no Rio de Janeiro. In: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências
Sociais. Diversidades e (Des)igualdades, Salvador. Universidade Federal da Bahia, 2011.
Disponível em <http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/ resources/anais/3/ 1307136906_
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CONLAB2011.pdf>. Acesso em 19 jul. 2013.

1600
Internet

Alagoas tem cidades menos católicas do país. Alagoas 24 horas. Disponível em


<http://www.alagoas24horas.com.br/conteudo/?vCod=153267>. Acesso em 29 jul. 2013.

Fiéis precisam manifestar dons para serem escolhidos pastores, afirma pesquisa. UFAL. Disponível em
<http://www.ufal.edu.br/noticias/2013/07/fieis-precisam-manifestar-dons-para-serem-
escolhidos-pastores-afirma-pesquisa>. Acesso em 29 jul. 2013.

Cristãos gays de Alagoas se reúnem em igreja inclusiva em busca de Deus. G1. Disponível
em <http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2013/06/cristaos-gays-de-alagoas-se-reunem-em-
igreja-inclusiva-em-busca-de-deus.html>. Acesso em 29 jul. 2013.

1601
1602
A pomba-gira sou eu: aspectos da identidade transexual com a
religiosidade afro
Tássio Acosta Rodrigues1

Introdução

O interesse na formulação desse artigo deu-se após entrevistas com diversas transexuais
femininas que, a partir de agora, serão chamadas de trans.mulheres, terem nas religiões de
matriz africanas como escolhas de filosofia de vida. Muitas delas encontraram total aceitação
de suas condições nas casas de santos e amparo emocional por parte das mães e pais de
santos, assim como os irmãos de santos dessas casas, das quais frequentam.

A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas e com análise qualitativa dos dados que são
apresentados dentro da narrativa, sem um lócus determinado. Todas as entrevistadas foram
muito receptivas e se mostraram disponíveis para dirimir todas as questões apresentadas. Os
nomes reais foram suprimidos no texto para garantir o anonimato.

Das trans.mulheres entrevistadas para esse artigo, todas tiveram dificuldades de entendimento
consigo (com o Eu) e com o outro (aqueles que estavam aos seus redores). Dificuldades essas
das quais fizeram com que a respectiva identidade individual, do Eu, ficasse um período de
suas vidas desnorteados, com questionamentos sem respostas e dificuldades no
relacionamento intrapessoal e interpessoal.

A identidade da pessoa transexual

Pessoas nascidas em corpos cuja anatomia não condiz com seus entendimentos necessitam de
atributos e intervenções para (re)significarem suas existências. Atributos e intervenções essas
que podem ser de uma mudança de registro do nascimento para o nome social, através da
carteira de identificação de nome social,2 e/ou até mesmo a intervenção cirúrgica como, por
exemplo, mastectomia e/ou neofaloplastia, esta última ainda em caráter experimental no

1
Cursando especializações em Ética, Valores e Cidadania na Escola, pela USP, e em Patrimônio Histórico,
Memória e Preservação pela Universidade Santa Cecília. Graduado em História pela Universidade Católica de
Santos. Contato: tassiocosta@gmail.com.
2
DIÁRIO OFICIAL DE SÃO PAULO. 21/05/2013, Disponível em
<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/54561884/dosp-legislativo-21-05-2013-pg-24>. Acesso em 30 jun.. 2013.

1603
Brasil, assim como diversas outras intervenções cirúrgicas. Porém, de acordo com o
entendimento legal para a respectiva autorização, a pessoa transexual tem que apresentar uma
comprovação de sua própria condição. Comprovação essa que não basta seu relato de vida e
dificuldades na inserção no meio social, há de obter uma série de laudos médicos,
psicológicos e psiquiátricos, pois no entendimento de determinados setores médicos, as
pessoas transexuais sofrem de algum tipo de disfunção psicológica.3 No entendimento legal,
para que haja qualquer cirurgia de intervenção em um transexual, há de se ter um laudo
expedido por junta médica,4 aumentando o sofrimento de quem busca adequar sua imagem
interna com o corpo que não é reconhecido como seu.

Enquanto a medicina e o judiciário criam barreiras burocráticas através de laudos e papéis que
dificultam a inserção das pessoas transexuais na sociedade, elas ficam a mercê dos olhares
críticos, discriminatórios e negativos do outro. Entende-se o outro como pessoas inseridas na
sociedade das quais seguem as normas e padrões convencionais heteronormativos.

O presente estudo acompanha os estudos de Berenice Bento na qual as pessoas “transexuais


em tratamento” têm total entendimento e conhecimento de suas condições onde numa
possível negativa de laudos, a unanimidade de opinião foi presente: fariam a cirurgia por
conta própria, com uma faca, ou até mesmo estariam dispostas a abreviarem suas vidas
através do suicídio (BENTO, 2006, p.52).

Essa obrigatoriedade de laudos médicos das quais as pessoas transexuais são impostas e vistas
pelo outro, como seres doentes, com transtornos e que necessitam de tratamento, dificultam o
que de fato elas realmente necessitam: respeito e entendimento de que suas condições são
formas subjetivas do comportamento humano, onde não é possível mensurar e criar uma
obrigatoriedade de normas e prosseguimentos a serem seguidos. Afinal de contas a identidade
de gênero assim como a sexualidade, é subjetiva e há a possibilidade de que intervenções de
agentes externos, como questões culturais, por exemplos, busquem heteronormatizar tais
condições através das dicotomias do gênero (WARNER, 1991, p. 09).

3
O DSM V afirma que as pessoas transexuais sofrem de Disforia de Gênero, enquanto no DSM IV afirmava que
sofriam de Desordem de Identidade de Gênero. Hoje uma pessoa transexual tem que passar por avaliações
médicas e psicológicas por no mínimo dois anos para ter o direito de adequarem seus próprios corpos a suas
identidades de gênero.
4
Junta Médica é uma equipe de psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais destinadas a
avaliar a condição da transexualidade do paciente.

1604
Os indivíduos são sempre sujeitos do controle e normas sociais em qualquer sociedade. No
ponto de vista da sexualidade, a descoberta do sexo biológico do bebê, que ainda na barriga
da mãe já desencadeia uma série de normas, padrões e imposições. Quando o bebê crescer, ele
estará entrelaçado numa gama de significações e dispositivos que determinaram e
padronizaram sua existência de acordo com o seu gênero através de brincos, vestimentas,
nomes, cores, brinquedos, brincadeiras, etc.

Berenice Bento usa costumeiramente a expressão abjeto para as pessoas transexuais.


Expressão essa que cria uma gama de significados para as vivências dessas pessoas. Como,
por exemplo, a exclusão social, familiar, escolar etc. Deve-se lembrar que a identidade de
gênero de uma pessoa transexual que não conhece a sua real condição, viverá em eterno
conflito com ela mesma.

Vale ressaltar que a sua condição como transexual nada tem a ver com a sua orientação
sexual. Podemos ter trans.mulheres homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Assim como
podemos ter trans.homens homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Identidade de gênero e
orientação sexual são conceitos e expressões do ser humano totalmente distintos, sem que
tenha que haver (mais) uma normatização. Esse é outro ponto que muitos transexuais têm
dificuldade durante as sessões de análise com a junta médica. Muitas das trans.mulheres
entrevistadas relataram que não bastassem elas terem baixa aceitação e entendimento perante
a junta médica, elas ainda tinham que "fazer a hetero"5 pois aqueles que estavam analisando-
as queriam também engessar e heteronormatizar as relações.

"No terreiro fui aceita, no terreiro sou eu. Lá, a pomba-gira sou eu."

Essas foram as palavras que mais chamaram a atenção nas entrevistas realizadas, o impacto
foi tão grande que se fez necessário colocá-las no título do artigo. “A pomba-gira sou eu”, o
discurso de pertencimento está muito além da respectiva religiosidade, está no fato do
entendimento de que, assim como a pomba-gira pertence ao gênero feminino, com vestes
femininas e trejeitos femininos, no corpo de um médium masculino, a trans.mulher também
está na mesma condição.

5
Entende-se a expressão ‘fazer a hetero’ manter-se no padrão heteronormativo.

1605
Não só as pombas-giras são, mas as trans.mulheres também são inquilinas nos próprios
corpos onde buscam um entendimento consigo e com o outro (CECCARELLI, 2008, p. 57).
Esse entendimento ocorreu perfeitamente dentro das casas de santos. Muitos porquês podem-
se elencar para possíveis questionamentos que poderiam desvirtuar do foco do texto, porém a
premissa principal não é essa e, sim entender qual a relação essas trans.mulheres criaram com
as pomba-giras.

O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos, dos olhares, ou
seja, de uma estilística definida como apropriada. São esses sinais exteriores, postos em
ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo (BENTO, 2011, p. 553).

A incongruência entre a imagem do espelho e seus entendimentos (e necessidades) foram


bases e principais questionamentos em todas as suas vidas. Quando no terreiro estiveram e
viram homens incorporando entidades espíritas femininas, logo viram suas próprias
condições. Tais incorporações deixaram de ser simples entidades espirituais para tornarem-se
identidades reais. As trans.mulheres identificaram-se automaticamente.

Assim como as pombas-giras estavam em corpos que não lhes pertenciam, essas
trans.mulheres estavam nas mesmas condições. Em uma eterna busca por um corpo que de
fato lhes representassem com total sentimento de pertencimento.

Motivos diversos levaram para essa identificação, mas um dos principais dá-se pelo respeito
que tais entidades impõem ao frequentadores do terreiro, através de adoração, presentes,
atenção, beleza, feminilidade e sensualidade.

A figura da pomba-gira é vista pelos umbandistas como a “mulher de Exu” ou “Exu


fêmea”. As pombas-giras se referem, antes de tudo, aos espíritos de prostitutas, cortesãs,
cafetinas, mulheres sem família e sem “honra”. Além de possuírem as mesmas
características que seus “parceiros”, elas carregam consigo toda a ambigüidade dos exus
aliada a uma imagem feminina fortemente sexualizada (SULIVAN, 2008, p.4).

Os frequentadores dessas casas de santos veem as pombas-giras como sinônimos de


veneração, encantamento e sensualidade, assim como as respectivas trans.mulheres que
nortearam esse artigo, sempre se viram, só que de forma inversa as entidades religiosas, elas
são reiteradamente ridicularizadas pela sociedade e mídia, e excluídas pelas famílias.

Muitas relataram que no itinerário de suas casas até os terreiros, as zombarias e agressões
verbais eram constantes. Chamadas de “putas”, “travecos” e “João”, essa rotina fazia parte de

1606
seus cotidianos. Porém, quando na casa de santo entravam, os atabaques tocavam e as vestes
colocavam, toda essa realidade ultrajante desaparecia, viviam verdadeiros momentos de paz
com demasiado orgulho e tinham o respeito de todos que ali estavam. Praticamente uma
fábula da Disney, mas a princesa na verdade eram as Pombas Giras.

Da vestimenta ao cabelo, dos presentes às formas de agir, muitas dessas trans.mulheres,


mesmo fora de seus terreiros mantêm esses signos e sinônimos. Muitas disseram durante as
entrevistas que “aquele olhar dela” e “aquela forma dela agir” era o sonho que elas tinham e
visualizavam como mulher. “A minha pomba gira sabe se portar e impor o respeito, um dia eu
também terei tudo isso!”. Vestes bem arrumadas, perfumes exalando pelo terreiro e
sensualidade, para essas trans.mulheres as pombas-giras são muito mais do que simples
venerações religiosas. São, acima de tudo, venerações de feminilidade e poder.6

Faz-se necessário lembrar que até mesmo essa feminilidade das quais essas respectivas
trans.mulheres afirmaram ter como objetivo e desejo mantêm-se na dicotomia de gênero onde
segue aquela ordem de que a mulher é feminina, meiga, sensual e passiva. Dentro do
imaginário dessas trans.mulheres a imagem do gênero feminino tem que seguir essa
normatização “que ensina e produz certas formas de pensar, agir, estar e se relacionar com o
mundo” (CECHIN; SILVA, 2012, p. 626).

A heterogeneidade presente nas casas de santos faz com que as condições individuais dos
frequentadores não sejam o foco e muito menos motivos de questionamentos. Todos estão ali
com o mesmo objetivo: adorar a divindade incorporada nos médiuns. Naquele momento, a
aceitação das trans.mulheres e o respeito passam a ser o pensamento e filosofia dos
frequentadores, o que é extremamente necessário para elas. Tudo o que a trans.mulher
gostaria de ser, mas por algum motivo (questões jurídicas, laudos médicos etc) não ocorre, ela
tem durante aquelas horas de festividade e religiosidade, o direito integral de ser quem de fato
ela sempre foi e pertenceu: gênero feminino.

O gênero, portanto, é o resultado de tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais


[...] As experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados
a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas (BENTO, 2011, p. 551).

Se não somos predestinados a tais obrigações, por que devemos engessar as possibilidades de
vivência e convivência? Quais as necessidades que temos em estabelecer métodos, padrões e
6
Para entender mais a respeito das relações de poder no meio social, ler A Microfísica do Poder, de Michel
Foucault.

1607
normas para as práticas? Esses questionamentos esquecem que está no direito individual a
liberdade de manifestar-se, seja como quiser, desde que não agrida verbal e fisicamente o
próximo.

Considerações finais

É importante retomar um dos principais documentos internacionais, a Declaração Universal


dos Direitos Humanos (1948) para explicitar qual a perspectiva é adotada na presente
discussão. No seu Artigo II esclarece que

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS,
1948)

A aceitação da condição trans na sociedade é uma luta e busca continua não só das pessoas
transexuais como de qualquer outra que luta a favor da diversidade, do respeito, da tolerância
e da pluralidade, incluída a sexualidade e a identidade de gênero.

Faz-se necessário respeitar o direito individual a suas manifestações e não a discriminação por
meio de críticas negativas ou imposições externas a partir de padrões pré-estabelecidos. O
padrão de "normalidade", principalmente o heterossexista, fazendo uso de sua condição
hegemônica impõe formas de agir e tratar as trans.mulheres.

Impor e atrelar aos transexuais sejam eles masculinos ou femininos, a necessidade de laudos
para cirurgias de readequação e entraves burocráticos para mudança de nome, traz ainda mais
sofrimento para aqueles que necessitam principalmente de entendimento, e não um
atendimento.

Assim como a rápida e imediata identificação que as trans.mulheres entrevistadas tiveram


com as pombas giras, elas têm o mesmo rápido e imediato repúdio para com seu corpo, não
aceitam e não compactuam com aquilo que nasceram. Atrás de um discurso de necessidade de
se regulamentar para o bem da pessoa transexual, cria-se mais sofrimento e dificuldades.

1608
Atualmente no Brasil é possível encontrar-se discursos e ações contra o segmento trans
baseado principalmente em critérios religiosos, ligados a heteronormatividade, um exemplo
tácito disso é que o Ministério da Saúde, por meio do ministro Alexandre Padilha, desistiu no
dia 05/08/2013, de estender o tratamento hormonal para transexuais a partir de 16 anos no
Sistema Único de Saúde (SUS), por conta de uma ligação telefônica do Pastor Samuel
Ferreira, presidente da Igreja Assembléia de Deus, contrário a portaria. 7 Nesse caso
específico, existe um contraponto bastante significativo, pois o Conselho Federal de Medicina
(CFM) já havia se manifestado favoravelmente à temática, que foi discutida em diversas
reuniões por mais de dois anos. A que se considerar o que deve nortear um Estado laico,
aparentemente, essa questão ainda não foi plenamente resolvida no Brasil.

Durante todo o artigo foram feitas aproximações entre as pombas giras e as trans.mulheres,
como já dito, não se trata de exaltação de uma determinada religião em detrimentos de outras,
mas de reafirmar a possibilidade de aceitação que elas têm nos cultos das religiões afro-
brasileiras, a partir de um ponto de identificação. A necessidade e desejo de pertencimento
das trans.mulheres, como de todas as pessoas, podem e devem ser respeitado a partir de
políticas públicas específicas direcionadas a esse segmento dentro de uma perspectiva de
Direitos Humanos, onde ninguém deve ser alvo de constrangimento por conta de suas
características.

Referências

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo. Sexualidade e gênero na experiência transexual.


Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006.

________. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. In: Revista de Estudos
Feministas, v.19, n.2, Florianópolis, p. 549-559, 2011.

CECCARELLI, Paulo Roberto. Transexualismo. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2008.

CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava a Barbie: uma boneca
para todos e para ninguém. In: Fractal, Rev. Psicol., v.24, n.3, p. 623-638, 2012.

7
Portaria que beneficia transexuais é suspensa. GPS Gospel. Disponível em <http://www.gpsgospel.com.br/planalto-
suspende-portaria-para-tratamento-de-transexuais-pelo-sus-a-pedido-do-pastor-samuel-ferreira/>. Acesso em 03
ag.o 2013.

1609
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

SULIVAN, Barros. Possessão, gênero e sexualidade transgressora: análise biográfica de uma


pomba-gira da Umbanda. Fazendo Gênero 8 – Corpo, violência e poder. Florianópolis, 2008.

WARNER, Michael. Introduction: Fear of Queer Planet. Duke University Press. n. 29, p. 3-
17, 1991.

Internet

Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10/12/1948, Disponível em


<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 02
ago. 2103.

Diário Oficial de São Paulo. 21/05/2013, Disponível em


<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/54561884/dosp-legislativo-21-05-2013-pg-24>. Acesso
em 30 jun. 2013.

Portaria que beneficia transexuais é suspensa. GPS Gospel. Disponível em


<http://www.gpsgospel.com.br/planalto-suspende-portaria-para-tratamento-de-transexuais-
pelo-sus-a-pedido-do-pastor-samuel-ferreira/>. Acesso em 03 ago. 2013.

1610
1611
Comunidade Cristã Inclusiva: movimento LGBTTIS ou
pentecostal? 1
Regiane Ap. de Lima2

Introdução

A questão religiosa homossexual está em evidência por sua atuação participativa dentro do
movimento pentecostal. Historicamente homossexualidade era indiscutível do ponto de vista
teológico e prático religioso. A transmissão religiosa familiar tradicional gerava uma coerção
suficiente para a propagação do sistema moral ao qual bania qualquer discussão sobre a
questão e realizava a repressão total do assunto. O único espaço religioso com aceitação do
publico gay são as religiões afro-brasileiras.
O movimento pentecostal em vista de seu histórico ascético e fechado às transformações e
questionamentos tem assimilado algumas mudanças no cenário brasileiro desde as décadas de
60 do século XX, como se pode observar com a Teologia da Prosperidade e a abertura para as
tecnologias e para o acúmulo de bens, acreditando que o sucesso financeiro é um medidor de
fé.

Nesse sentido, há um envolvimento cada vez maior com o mundo social, principalmente na
busca por controle dos instrumentos de riqueza e prestígio e entrada no cenário político para
conquista de poder dentro da esfera pública. No entanto, a maioria das denominações
pentecostais no que toca a questão da homossexualidade e o seu julgamento religioso, ainda
são muito arcaicos e condenatórios no que se refere a “moral e bons costumes”.
Mesmo existindo grupos homofóbicos contrários à inclusão e impulsionados pela ideia de
“cura gay”, avanços são visíveis acerca da aceitação e reflexão sobre a hermenêutica bíblica e
religiosa na questão da sexualidade.

"Não existe cura gay, porque homossexualidade não é doença", diz. E continua: "Mas não
podemos tolher o direito de um profissional, como um psicólogo, de estudar um assunto

1
Trabalho realizado a partir de pesquisa preliminar desenvolvida ao longo de 2012 por meio da observação de
campo em instituições religiosas e dos estudos desenvolvidos na disciplina “Estudos de religiões e
religiosidades” vinculado ao curso de Ciências Sociais e ao LERR/UEL. Projeto de Iniciação Científica
“Comunidade Cristã Inclusiva: Movimento LGBTS ou Pentecostal?” sob orientação do Prof. Dr. Fabio Lanza –
Departamento de Ciências Sociais – UEL.
2
Graduanda em Ciências Sociais pela UEL. Contato: tuti34@bol.com.br.

1612
que ainda não se colocou nele um ponto final, ainda é uma incógnita, ainda é um fenômeno.
E é isso que esse projeto de decreto legislativo prevê".3

O interesse desse estudo é observar e contribuir com o debate sobre a temática de inserção do
gay em qualquer religiosidade, principalmente na pentecostal que é o foco da pesquisa.
A sociedade brasileira na atualidade vive uma constante pressão pelas grandes transformações
econômicas e tecnológicas ocorrida no mundo globalizado. No Brasil, a distribuição de renda
é precária e o abismo da desigualdade é gigantesca, tudo se reverte em péssimas condições de
vida, saúde, falta de acesso à moradia digna, educação e também na inadimplência civil pelo
consumo desenfreado daquilo que se compra com os olhos e sem lastro financeiro suficiente.
Somando essa reflexão ao universo homossexual, é possível pensar o sofrimento e a morte de
“valores tradicionais” como propulsor para a busca de um segmento religioso como uma
resposta desse sofrimento material e espiritual, onde tentam encontrar, em alguns casos, uma
explicação das atuais relações sociais dentro deste contexto.

O foco é investigar o processo de religiosidade e socialização na comunidade cristã Cidade de


Refúgio da cidade de Londrina no Paraná. Identificar se entre os sujeitos dessa instituição
religiosa pentecostal - organizada por gays, lésbicas e transexuais - existe uma perspectiva de
reivindicação política ou apenas há uma procura por um espaço para o exercício religioso
individual respondendo a toda essa pressão social.

Breve histórico do pentecostalismo norte americano ao brasileiro

Gramsci diz que “[...] as concepções de mundo mais difundidas no corpo social são,
efetivamente, o senso comum e a religião, sendo a religião um conjunto ideológico [...]
portanto, importante na formação da cultura e política de um povo”. (GRAMSCI Apud
PORTELLI, 1984, p. 24-5)

Não tem como pensar as relações sociais e politicas sem levar em consideração que a religião
contribui na formação das ideias, de onde a raiz é plantada nas concepções de ver a si e o
outro, a matriz de pensamento religioso. E dentro dessa perspectiva podemos observar um
fenômeno crescente na cultura brasileira que são os movimentos pentecostais. De acordo com
o ultimo Censo feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Ciência), a partir da

3
Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, deputado (PSC-SP) e
pastor. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-video-feliciano defende-projeto-da-cura-
gay-e-diz-ser-bodeexpiatorio,1046743,0.htm, acessado em 17/08/2013.

1613
entrevista para a revista do Instituto Humanitas Unisinos a professora Meneses do Programa
de Pós Graduação em Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro falou sobre os dados a respeito do pentecostalismo.

Todos esses dados já foram sublinhados pelos pesquisadores que se pronunciaram sobre os
resultados do censo de 2010, mas esses comentaristas também assinalaram algumas
surpresas, como o decréscimo no número de membros da Igreja Universal do Reino de
Deus, igreja de modelo hierárquico, centralizado e episcopal, e o crescimento expressivo da
Assembleia de Deus, igreja de modelo mais congregacional, capilar e deliberativo, para
além de diferenças teológicas e litúrgicas entre ambas. Esse dado é extremamente relevante,
pois nos impede de tratar os evangélicos, mesmo os pentecostais, em bloco, de modo
unívoco, e nos leva a pensar na riqueza de sua diversidade interna, bem como nas diferentes
modalidades de agregação e pertencimento compreendidas por essa identidade religiosa.
(MENESES, 2012)4.

Nessa conjunta a temática da homossexualidade e meio religioso pentecostal ganham


destaque na sociedade brasileira. Para compreender o Pentecostalismo é necessário entender a
trajetória de Parham que foi durante anos Metodista, mas sua passagem por lá durou apenas
cinco anos, pois acreditava mesmo no dom da cura, milagres que sua antiga religião
distanciava de seus membros. (CAMPOS, 2005, p.109) Wilhian J. Seymour nasceu e foi
batizado na Igreja Católica tendo posteriormente em sua adolescência vivenciada na Batista e
na Igreja Metodista Episcopal para negros.
Seu contato com os pentecostais ocorreu quando se uniu aos holiness5 grupo esse inspirado
pelas pregações de Phoebe Palmer, uma evangelista do ano de 1830 que mais tarde veio a
inspirar os metodistas. Quando a pastora da igreja onde frequentava Seymour saiu para
trabalhar como governanta na casa dos Parham, ao qual se mudaram para Huston abrindo uma
filial de sua escola bíblica, ela o convidou para assumir o pastorado em seu lugar. (CAMPOS,
2005, p.111)

Essa nova escola que se instaurava na cidade ensinava os alunos que eram possíveis fazer
ligação entre experiências extáticas com transe, glossolalia (falar em línguas estranhas) e
dom do Espirito Santo. Ou seja, experiências místicas que os possibilitavam ter um contato

4
MENEZES, Renata disponível em < http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_
content&view=article&id=4588&secao=400.>. Acesso em 17 ago. 2013.
5
Cruzada ou avivamento da santidade (em inglês “holiness”) que teve como personagem central Phoebe Palmer,
ao qual pregavam a cura pelo Espirito Santo e dom de línguas (falar línguas estranhas).Disponivel em
<http://www.mackenzie.br/6982.html>. Acesso em 17 ago. 2013.

1614
real e perto do divino, igual aos da festa de Pentecostes, festa bíblica comemorativa a
ressurreição de Jesus, onde seus discípulos recebiam o Espirito Santo.
Dentro desse contexto vale lembrar que os Estados Unidos viviam um momento efervescente,
pois refletiam agitações que ficaram marcados por traumas como a Guerra Civil, libertação
dos escravos, tensões raciais, crises no mundo da agricultura, industrialização crescente e
chegada de milhões de imigrantes europeus pobres.

O processo de urbanização e industrialização faz crescer rapidamente a América urbana,


esvaziando a zona rural e as pequenas cidades e vida, locus de um intenso reavivamento
espiritual do camp meting. No entanto, a explosão de movimentos voltados ao ideal de
santificação oferecia às pessoas traumatizadas por uma guerra civil terrível, pela falta de
um norte seguro, ou então deslocado pela mobilidade populacional, algumas ilhas de
incertezas. Assim o cinturão da bíblia e as comunidades emocionais seriam ricas
oportunidades para o encontro de regras seguras, inflexíveis e indiscutíveis para a vida
cotidiana. (CAMPOS, 2005 p.105)

Segundo Campos (2005), dentro desse cenário Seymour iniciou seus estudos bíblicos na
escola recém aberta em Huston por Parham. Ele não podia estudar dentro das dependências da
escola porque o racismo de seus lideres não deixavam, então ele ficava nos corredores fora
das salas de aula aprendendo sobre as teorias pentecostais.
A partir desse contexto no final do século XIX e início do XX, que o Movimento Pentecostal
se constitui nos Estados Unidos e a seguir nos países sul americano, pois Seymour abriria uma
igreja na famosa Rua Azusa em Los Angeles que revolucionou o mundo religioso até então.

Um negro, filho de ex- escravos da Louisiana, então com 36 anos de idade, começou em
abril de 1906, num templo abandonado de uma igreja Metodista Africana, no bairro negro
de Los Angeles, uma caixa-preta, da qual começaram a sair gritos, convulsões, proféticas,
glossolalia, curas, milagres, prodígios a toda sorte de coisas, que rapidamente chamou a
atenção da imprensa e por meio dela, de todo o país. Em 18 de abril de 1906, o jornal Los
Angeles Times publicava uma matéria que começava afirmando estarem os seus repórteres
diante de “uma sobrenatural babel de línguas” e de uma “nova seita de fanáticos” formada
em sua maioria por negros e imigrantes pobres, liderados por um pregador negro, Wilhian
Seymor. (CAMPOS, 2005, p 110)

O avivamento da Rua Azusa foi o primeiro avivamento pentecostal a receber atenção


significativa, acreditavam que qualquer pessoa poderia ser profeta, ter revelações e falar em
línguas estranhas. Pregavam a equidade entre as pessoas, as mulheres que na época não
podiam votar, dentro da comunidade elas participavam ativamente de qualquer atividade até

1615
mesmo assumindo cargos de liderança. Naquela comunidade viviam negros, brancos e
imigrantes, não existiam separações entre as culturas, enquanto nas ruas a Ku Klux Klan,
racismo e pobreza destruíam as dignidades e identidades. Como disse Campos (2005, p.111)
pessoas simples se tornavam lideres e celebridades religiosas, produtores religiosos, pois
havia condições sociais para que isso ocorresse.

O pentecostalismo chegou ao Brasil no ano de 1910 com a Congregação Cristã no Brasil e


1911 com a Assembleia de Deus, num país bem heterogêneo culturalmente e de acordo com
Ricardo Mariano quando houve a chegada dessa duas denominações foram claras as
distinções eclesiásticas e doutrinárias que com o passar do tempo geraram claras diferenças
doutrinárias entre as duas. (MARIANO,1999, p.23)

Os evangelistas suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg (fundadores da


Assembleia de Deus), vieram ao impulso de experiências místicas
(sentiram-se chamados para). Por sua vez, o imigrante Luigi Francescon
(fundador da Congregação Cristã no Brasil), convertido presbiteriano nos
Estados Unidos da América, depois pentecostal, veio apenas com a intenção
de disseminar a sua experiência religiosa. (BITTENCOURT FILHO, 2003
p.115)

Ou seja, esse movimento já chegou no Brasil com grande facilidade em se adaptar com uma
estrutura espontânea e flexível na aculturação popular. O pentecostalismo se adaptou muito
rapidamente ao modo de vida brasileiro, seus seguidores passaram a transição da sociedade
“tradicional” para a “moderna” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p.116) Várias outras
denominações pentecostais foram criadas e moldadas dentro da cultura brasileira, com suas
doutrinas rígidas e uma interpretação bíblica integralistas ou fundamentalistas pautadas em
cima de uma moralidade rigorosa. (BITENCOURT FILHO,2003, p.119)

Após a segunda Guerra Mundial, década de 50 do século XX no Brasil a religiosidade


pentecostal ampliou e se institucionalizou diante da repressão das igrejas originais do
protestantismo. (MENDONÇA, 1998, p.75) Seus espaços aumentaram pois com êxodo rural
levado pelo grande crescimento das cidades e indústria, geraram transformações culturais e
novas necessidades humanas. É a partir dessa religiosidade, das transformações culturais e
sociais, das discussões políticas e identitárias, que colocaram em pauta as discussões de
gênero e sexualidades.

1616
Religiosidade inclusiva

A religiosidade inclusiva já vem sendo percebida há algum tempo por intelectuais das áreas
das Ciências Sociais e Teológicas. É um movimento que tem como protagonistas gays,
lésbicas e transgêneros ao qual em sua maioria vieram de outras denominações evangélicas.
A pesquisa em desenvolvimento foi realizada a partir do trabalho etnográfico em uma
comunidade inclusiva de Londrina-PR no ano de 2012, chamada Cidade de Refúgio.
Vale lembrar que estudos acerca das sexualidades foram de grande importância na reflexão
das discussões sobre inclusão homossexual nos espaços religiosos. Nesse sentido, uma
contribuição importante são os estudos da teoria Queer uma teoria que questiona a
normatividade heterossexual como ponto de partida. O estranhamento Queer está no fato de
que até os anos de 1990 as Ciências Sociais tratavam a ordem social como sinônimo de
heterossexualidade, e com isso os estudos sobre “minorias” terminavam por naturalizar e
continuar a norma heterossexual.

Assim como nas comunidades eclesiais de base e nos grupos de mulheres, gays e lésbicas
resgatam suas experiências, suas formas de experimentar, de ver e de encarar o mundo, para
poder emergir como sujeitos de sua própria realidade, no fazer da sua própria história e na
construção de uma teologia que responda às suas vivencias. (MUSSKOPF, 2004, p.132)

A antropologia como uma ciência que lida com diferenças coloca a necessidade de deslocar o
olhar para o estudo do outro partindo dessa perspectiva, e não olhando a homoafetividade
como desvio “perspectiva na qual a heterossexualidade é pensada como normal e
inquestionável”. (MISKOLCI, 2009, p.2)
Podemos lembrar também que discussões feministas da década de 1960 , pensando na própria
Teologia Feminina e da Libertação na América Latina são elementos que fomentaram a
construção de uma teologia que refletisse sobre a homossexualidade. São teorias que vieram
para inspirar discussões sobre inclusão nas esferas pública/privada dando a alternativa para
exercer a liberdade das práticas religiosas cristãs sem uma perspectiva de cura e fomentando
uma cidadania gay.
Natividade cita Regina Fachini ao comentar sobre avanços nesses estudos:

Em 1997, o centro Acadêmico de estudantes de História da USP (CAEHUSP) organizou


um ciclo de debates sobre direitos humanos e homossexualidade, contemplando como um
dos eixos a relação entre religião/igreja e preconceito. Fachini (2004) informa que nesse
encontro algumas lideranças se articularam para a criação da primeira Comunidade Cristã

1617
Gay. O primeiro grupo que passou a se reunir no CAEHUSP foi responsável pela
ordenação dos primeiros pastores gays no Brasil. (NATIVIDADE, 2010, p. 92)

O trabalho está em fase inicial pesquisando a Igreja Cidade de Refúgio em Londrina-PR,


movimentos de cunho político e por direitos civis de despatologização da sexualidade tida
como desviante tiveram o papel importante na ruptura do medo e constrangimento por parte
dos sujeitos em exercer suas liberdades, aqui em foco a religiosa. (NATIVIDADE, 2010, p.
91)

Dentro da religiosidade inclusiva existe uma interpretação conciliadora entre orientação


sexual diferente da norma da heterossexualidade e o exercício da vida religiosa.
(NATIVIDADE, 2010, p. 91).
O início dessa prática foi em 1968 pelo pastor Troy Perry que transformou sua igreja de
Comunidade Metropolitana para Igreja Cristã Contemporânea nos Estados Unidos e de acordo
com Marcelo Natividade (2010) entre 1996 a 1997 o grupo ativista Corsa de São Paulo
organizou discussões sobre a exclusão dos homossexuais pelas diversas religiões. Também
reiterando que as religiões de Matriz Africana foram identificadas como as mais abertas à
inclusão dentro de seus cultos em contra posição a resistência das outras denominações.

“As igrejas inclusivas são um fenômeno recente no Brasil, surgido a partir do final dos anos
1990 com a articulação de alguns grupos que discutiam religião e homossexualidade a
partir da experiência de LGBTs em suas igrejas de origem. Mas somente a partir do inicio
dos anos 2000 que acontece uma proliferação de diversas denominações religiosas
inclusivas no Brasil.” (WEISS DE JESUS, 2003, p. 01)

Com a observação etnográfica realizada na Igreja Cidade de Refúgio em Londrina-PR,


percebe-se que os membros consideram o método utilizado como “a teologia da
compreensão”, um lugar onde o homossexual possa ter espiritualidade, orientação e apoio
psicológico. Não se declaram sectaristas e ascéticos dando espaços ao carisma, experiências
de transe afirmando ser presença do Espirito Santo, falando em línguas e orações altas.

Encontro com outro

“Portanto, se o olhar possui uma significação especifica para um cientista


social, o ouvir também goza dessa propriedade.” (OLIVEIRA,1998, p.03)
No dia 26 de março foi a inauguração da Cidade Refúgio no Hotel Sumatra, localizado na Rua
Senador Souza Naves em Londrina. Fui com a expectativa de que teriam poucas pessoas

1618
presente e que seriam pessoas gays e com aparências sofridas pelos vários problemas tantos
financeiros, educacional e de preconceito.

Logo na recepção que foi no salão do centro de eventos, todo o meu próprio pré-conceito caiu
por terra. Fui bem recebida por pessoas que se comunicavam muito bem. O salão era grande
com espaço pra umas 150 pessoas, porem, presentes lá percebi umas 80 pessoas. O salão
muito bem decorado de branco, tendo letreiros dando boas vindas aos visitantes, logo que
entravamos tinha uma mesa com livros, cds e dvds falando a história da igreja, das pastoras e
sobre a nova Teologia denominada Inclusiva.

No palco (usado como altar) tinha tudo muito bem estruturado com bateria, violões, guitarra,
baixo, teclado e um púlpito para a pregação, algumas cadeiras ao fundo. Um grupo de pessoas
ficava na parte de baixo do palco com uma mesa contendo instrumentos que controlavam o
som, o microfone e um telão com informações da igreja e letra de hinos. No decorrer de uns
minutos antes de começar o culto foram chegando mais pessoas principalmente casais
homoafetivos. Pessoas da faixa de idade entre 19 a 39 anos, extremamente bem vestidas, mais
não uma veste característica de pessoas evangélicas pentecostais, com roupas mais recatadas e
fora da moda, porém, de jovens atualizados na moda vigente. Fui recebida calorosamente pelo
pessoal que ficava na porta e que às vezes andavam no meio do salão conhecendo os
visitantes. Logo chegou a protagonista da noite que era a pastora Lanna Holder e sua esposa
Rosania Rocha. Lanna responsável pela pregação da palavra como eles dizem, e Rosania
como ministra de Louvor, cantora. Duas pessoas extremamente carismáticas e comunicativas.
Voltando a descrição da parte física do espaço, fiquei admirada pela estrutura e suporte que
eles tinham, aparelhos de última geração e computadores para administrar som e imagem no
momento do culto, sendo uso de data show e retroprojetor também.

O curioso no momento dos hinos foi um dançarino na frente fazendo coreografias nos ritmos
das músicas tocadas. Outro ponto que percebi foi o fervor que os membros que vieram de São
Paulo adoravam e gritavam “Glorias a Deus”, cantavam de olhos fechados. Muitos cantavam
e oravam juntos, pulavam, choravam, seguravam na mão uns dos outros. Entretanto, não era
como igrejas clássicas pentecostais e achei muito próximo com grupo católico carismático.
Refletindo sobre as leituras nas Ciências Sociais, percebo o quanto é importante o trabalho
etnográfico, como esse encontro empírico com o outro completa o entendimento dos sujeitos
e suas práticas. Fui como pesquisadora, observadora de um mundo que eu achava que
conhecia, mas ao mesmo tempo, sabia que iria me deparar com novidades, porém não

1619
imaginei que seriam tantas novidades, que isso causaria um impacto em mim como sujeito.
Percebi naquele instante que estava vivendo um pouco o mundo do outro, praticando a
alteridade e um grande estranhamento. “Os antropólogos deixam sua cultura nativa para
estudar uma outra e, na volta, tendo se familiarizado com o exótico, tornam-se exótica sua
cultura familiar, na qual a identidade social renasce”. (PEIRANO, 1995, p.58)

Logo após o louvor e apresentações ardorosas de cânticos e orações chegou a vez da


protagonista da noite, a pastora Lanna Holder falar. Deu suas boas vindas a todos os visitantes
chamando cada um que estava lá para se colocarem de pé e receberem um abraço coletivo dos
membros antigos da igreja. Após, explicou que a igreja não estava na sociedade para pregar o
fundamentalismo religioso nem somente levantar a bandeira gay, mas que estavam ali para
incluir qualquer um que se sentissem excluídos. Explanou do porque a igreja se chama Cidade
Refúgio, por ter tido uma cidade na história bíblica que abrigavam pessoas excluídas,
refugiadas porem, amados por Deus, e que outras igrejas fundamentalistas iriam ter sim que
aceita-los porque eles nasceram iguais a todos e com os mesmos direitos.
Falou bastante sobre o amor ao próximo, sobre que aquele dia era o tempo de se entregar para
a obra de Deus, de se arrepender de todas as coisas que estava fazendo de ruim, que podia
deixar o passado de lado e que deveria esquecer tudo que passou para conseguir progresso na
vida.

Comentou sobre o dizimo, mais não se prendeu mais que 10 minutos nesse discurso, passaram
uma sacolinha recolhendo ofertas e acabou o assunto. Ficando claro que não se pautam na
Teologia da Prosperidade e nem no fundamentalismo religioso. A missionária era muito
carismática e muito eloquentes conseguindo prender a atenção de todos que estavam lá de
forma sútil e dominadora.

Após o termino da fala de Lanna, foi apresentado aos visitantes a pastora que seria
responsável por Londrina, Pastora Eddy, uma mulher de cabelos grisalhos e com roupas
masculinas. Ela passou o endereço de onde seria a igreja na cidade, dias de inauguração e as
atividades rotineiras daquela filial.

Considerações finais

O estudo aqui quer compreender essa nova religiosidade emergente e refletir dentro de seus
ambientes aos impactos nos sujeitos como protagonistas desse polêmico movimento.

1620
Os objetivos que norteiam a investigação buscam identificar entre os sujeitos se existe uma
perspectiva de reivindicação política de quebra ao tradicionalismo moral evangélico ou
apenas um espaço religioso, e a partir da coleta de matérias nos cultos e da observação
participante é possível apresentar como resultado parcial a inexistência de discursos políticos
da bandeira política LGBTs, porém instigam a luta pela inclusão não só do homossexual, mas
das mulheres e dos negros.

Referências

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz Religiosa Brasileira. Religiosidade e Mudança Social.


Petrópolis, RJ: Vozes, KOINONIA, 2003.

MARIANO, Ricardo. Pentecostais. Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Ed. Loyola, 1999.

MENDONÇA, Antônio G. Pentecostalismo e as Concepções Históricas de sua Classificação.


In: DE SOUZA, Beatriz Muniz; GOUVEIA, Eliane Hojaij; JARDILIANO, Jose Rubens Lima
(orgs). Sociologia da Religião no Brasil. Sociedade Religiosa Edições Simpósio, São Paulo:
PUC,1998, p.73-91.

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a Questão Religiosa. Edições Paulinas 1984.

Internet

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. In: Mana, v.06,n.1, Rio de


Janeiro, 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
93132000000100009&script=sci_arttext>. Acesso em 18 ago. 2013

CAMPOS, Leonildo Silveira. As origens Norte Americanas do Pentecostalismo Brasileiro:


observações sobre uma relação ainda pouco avaliada. In: Revista USP, São Paulo, n°67.
p.100-115, setembro/novembro 2005. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/67/08-
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Censo 2010. Fotografia panorâmica da vida nacional. IHU on line. Disponível em


<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4588&
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MUSSKOPF, André Sidnei. A Teologia Que Sai do Armário: Um Depoimento Teológico. 7°


Jornada Teológica da CETELA (Comunidad de Educacion Teológica Ecumênica Latino
Americana y Caribeña, La Paz. Bolívia de 13 à 17 de julho de 2003. Disponível em
<http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp34art09.pdf >. Acesso em 15 mar. 2013.

1621
MATOS, Alderi Souza de. O movimento Pentecostal: Reflexões a Propósito do seu Primeiro
Centenário. Fides Reformata ,V Xl,n°2,2006,p.23-50.Disponivel em:
<http://www.mackenzie.br/6982.html>. Acesso em 18 ago. 2013

MISKOLCI, Richard. A teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da


normalização. In: Sociologias. Porto Alegre, ano. 11, n.21, p.150-182, 2011. Disponível em
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NATIVIDADE, Marcelo. Uma Homossexualidade Santificada? Etnografia de uma


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Disponivel em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010085872010000200006&script
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PEIRANO, Mariza. A Favor da Etnografia. In: Revista de Antropologia,v.40, n.1,São Paulo


1997. Disponível em<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-
77011997000100008&script=sci_arttext>. Acesso em 18 ago. 2013.

Marco Feliciano. Defende projeto da 'cura gay' e diz ser 'bode expiatório. Estadão.com.br.
Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-video-feliciano-defende-
projeto-da-cura-gay-e-diz-ser-bode-expiatorio,1046743,0.htm>. Acesso em 18 ago. 2013.

1622
1623
Evangélicos e as relações de gênero na implantação
de uma Igreja Inclusiva em Campinas
Livan Chiroma1

Campinas, reconhecida no folclore popular como uma cidade gay brasileira, encontra-se
localiza no interior do estado de São Paulo. É o segundo município mais populoso do interior
do país. Cerca de um quarto de seus habitantes declaram-se evangélicos (25,35%),2 índice
pouco acima da média nacional (22,2%). A fé católica firma-se como preferência (69,94%),
além de uma presença marcante dos sem religião (7,9%). Em 2011 deu-se inicio em
Campinas o processo de plantação da primeira Igreja Inclusiva da cidade. As comunidade
inclusivas, ramificações do movimento evangélico, tem se multiplicado no Brasil à partir da
década de 90 e crescendo em ritmo acelerado3 em diversas novas denominações. Este artigo
pretende analisar características destas Igrejas voltadas ao público homoafetivo, compreender
sucintamente a formação destas denominações além de tentar capturar o trânsito religioso
demonstrado entre seus fiéis e por fim analisar as representação e fronteiras em relação ao
pensamento evangélico tradicional (resistente a inclusão do público GLBT em suas práticas
diárias).

Como metodologia utilizaremos bibliografia, pesquisa de campo e fontes virtuais (sites, blogs
e midia social dos interlocutores). Em nossa bibliografia lançaremos mão de Natividade
(2010) e, sobretudo, Anezini (2013).4 Este artigo também se pautou em pesquisa de inspiração
etnográfica realizada entre Janeiro e Abril de 2012 em visitas de campo, período de
cumprimento das disciplinas do meu mestrado, sendo o trânsito religioso e novas
configuração de pertencimento religioso no Brasil - especialmente os “Evangélicos Sem
Vínculos Institucionais” o objeto em destaque na dissertação.5
Igrejas Inclusivas

1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP. Filiado ao GIPESP (Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em
Sociologia do Protestantismo). Bolsista CNPq. Graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de
Campinas e graduando em Ciências Sociais pela UNICAMP. Contato: livanveiga@gmail.com.
2
Segundo o Censo 2010, Campinas tem 1.080,113 habitantes. 636.703 católicos, 273.812 evangélicos, sendo
que 171.941 ( 62.79%) de origem pentecostal e 33.374 ( 12,18%) evangélicos de missão. Os Sem Religião
perfazem 86.403 sujeitos.
3
Ao final do artigo, sumário de igreja encontradas até a data de finalização desta análise. Pesquisa realizada na
internet e nas mídias sociais.
4
Anezini gentilmente forneceu o mimeo de sua monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais
(Unicamp).
5
Mestrado realizado junto ao GIPESP, orientação do Prof. Leonildo Silveira Campos.

1624
As igrejas inclusivas pretendem incluir a temática GLBT6 em suas práticas cotidianas.
Tradicionalmente as igrejas evangélicas “convencionais” opõe-se as práticas homossexuais.
Em certos casos os casais homoafetivos são aceitos porém, são proibidos de assumirem
cargos e lideranças formais. Denominarei para este artigo como “tradicionais” as instituições
não inclusivas, agências evangélicas que refreiam a prática homossexual. Para Anenizi
(2013), Igreja Inclusiva é:

“Igrejas que se caracterizam pela possibilidade da vivência da religiosidade cristã, mesmo


que seus adeptos tenham conduta sexual distinta da heterossexualidade. Essas igrejas fazem
uso de teologia inclusiva, cujo método, no caso da Para Todos, é a visão histórico-crítica, e
pensam diversas expressões sexuais não heterossexuais como abençoadas” (2013, p. 28)

Weiss (apud Anenzini, 2010) ainda afirma que é “Um termo êmico e controverso pelo qual se
designam igrejas que, em geral podem ser definidas por compatibilizar as formas de
sexualidades não heterossexuais e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas.”
(Anenzini, 2013, p. 28 apud Weiss de Jesus, 2010, p. 132). Ainda, nesta tentativa de
compreender o termo, encontramos Natividade (2010), onde:

“Tal segmento se destaca no campo religioso mais amplo pela criação de cultos nos quais
homossexuais podem tornar-se pastores, reverendos, diáconos, presbíteros, obreiros,
ocupando, assim, cargos eclesiais. Esse movimento é protagonizado em sua maior parte por
pessoas egressas de denominações evangélicas e/ou paróquias católicas” (Natividade,
2010).

Implantação de Igrejas: motivações a revisão dos discursos

No seio do movimento evangélico se encontra a evangelização. Esta prática corresponde a


pregação da bíblia seguida da aceitação da salvação em Jesus Cristo por indivíduos não
declarantes da fé cristã. Os dizeres ide por todo mundo,7 revela o mandamento de missão e
vocação. É a principal motriz do fiél evangélico, por isso a continua necessidade da
evangelização e também da implementação de novas comunidades e várias regiões, que

6
Utilizarei a sigla “GLBT” (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros). Para André Musskopf é a mais
utilizada pelos movimentos civis e pesquisas acadêmicas. Existem outras variações, como GLS, LGBTTTI e
outras derivações.
7
Mateus 28.19.

1625
acolham e doutrinem os convertidos à fé. Esta ênfase conversionista e expansionista esteve
historicamente em várias calhas, de acordo com os movimentos teológicos e culturais das
diversas denominações. Encontramos em Bosch (2011) algumas faces das motivações para o
empreendimento missionário: 1) Movimento cristão de estudantes: “Evangelizar o mundo
nesta geração”; 2) Movimento Étnicos: evangelizar todas as tribos povos e raças; 3) AD
2000: A volta de Jesus8 virá através da pregação do evangelho à todas as nações9 - Pacto de
Lausanne (Missão Integral / Evangelical): O Evangelho todo, para o homem todo, para todos
os homens. Estas convenções influenciam fundamentalmente os formatos da plantação de
novas igrejas cristãs e a gestão da alteridade diante de diversas culturas.

A gestão ontológicas destas lógicas regulam a permeabilidade dos movimentos missiológicos


em relação à cultura particular de cada povo. Esta gestão de significados produz graus de
adaptação de uma mensagem evangélica e regula as interações instituição religiosa - mundo.
O campo religioso brasileiro é vibrantemente diverso e os evangélicos estão longe de
representar um movimento coeso. Dos pentecostais aos protestantes de missão, dos rigores
fundamentalistas até teologias progressistas, são diversas as representações. Se os
movimentos mais conservadores pregam o rigor hermético e vigilância moral no
comportamento do fíél, do outro lado, outras perspectivas conduzem à um mimetismo
cultural, uma inculturação radical, a permeabilidade irrestrita com o Outro, uma prática
missiológica de sobreposição. Se nas vertentes mais rígidas observamos um esquema de
sustituição (a cultura do missionário solapando os rituais e sistemas religiosos do povo
evangelizado), nesta forma a cultura religiosa procura compreender a cultura local,
assimilando-a calidamente à suas próprias práticas.

De maneira geral a atual expansão do setor pentecostal e não pentecostal no campo religioso
brasileiro indica a preferência pela missão de salvação de almas e inclusão do fiél em uma
nova rede que santifica seus próprios circuitos e pecaminiza interlocutores externos, as coisas
do mundo, incluindo a ingerências na construção social das sexualidades. Para Souza:

Apesar da perda do poder regulador da religião nas sociedades secularizadas o que se


verifica é ainda um forte religious appeal na maneira como os sexos se reconhecem
socialmente (...). Num pais declaradamente religioso como o Brasil, mesmo que o poder
religiosos esteja relativizado pelas implicações da secularização, pensar as representações

8
Retorno de Jesus, segundo algumas linhas teológicas.
9
Mateus 24:14; 4.

1626
de gênero demanda pensar o papel da religião na construção social dos sexos (SOUZA,
2006, p.9).

Campo religioso brasileiro: expansão e maleabilidades

Apesar de polissemia, abertura e capilaridade do cotejo gênero e religião, a categoria


derivada, homossexualidade e religião é tabu. Para Facchini e Carrara:

Assim, a despeito da necessidade de relativizarmos a concepção de que a religião seja um


campo opositor radical ao movimento LGBT [...] nas entrevistas, a percepção geral é a de
que o fundamentalismo religioso é um dos principais oponentes do movimento LGBT [...]
na atualidade. Nesse sentido, algumas igrejas – e sujeitos cuja atuação profissional e
política seguem de perto seus preceitos - foram largamente apontadas como o grande
“núcleo duro” de resistência às propostas de mudança social trazidas pelo Movimento
LGBT” (FACCHINI; CARRARA, 2011, p. 6).>

A normatização heterossexita perfaziam as referência canônica nos estudos das minorias. A


quebra deste monopólio veio à partir dos anos 60 com o estranhamento da naturalização da
norma heterossexual. Tal norma considerava as identidades sexuais dos sujeitos não
maleáveis, “divinizados”. Servindo-se dos conceitos e métodos nas obras de Michel Foucault
e Jacques Derrida, formulou-se o que convém chamar de Teoria Queer (Queer Theory). Para
esta referência pós-estruturalista o sujeito é encarado como “provisório, circunstancial e
cindido” (Ribeiro, 2011) e as sexualidades como construídas historicamente. Nos
pensamentos de Foucault sublinha-se que a sexualidade não é proibida, antes produzida por
meio de discurso (Miskolci, 2009). Teóricos como Eve K. Sedgwick, David M. Halperin,
Judith Butler e Michael Warner, começaram a cotejar a proposta de Foucault junto às teorias
que envolviam a sexualidade, propondo que gênero é um dispositivo histórico do poder que
marca as sociedades ocidentais modernas e se caracteriza pela inserção do sexo em sistemas
de unidade e regulação social (MISKOLCI:, 2009).

Os estudos queer sublinham a centralidade dos mecanismos sociais relacionados à


operação do binarismo hetero / homossexual para a organização da vida social
contemporânea, dando mais atenção critica a uma politica de conhecimento e da
diferença [...] os teóricos queer compreendem a sexualidade como um dispositivos
histórico de poder (MISKOLCI, 2009).

Este processo ajudou a definir as esferas de atuação de cada gênero para além do

1627
determinismo biológico, que tipologicamente representanva as mulheres com sendo serenas,
dóceis, submissas e homens - ríspidos, cuidando do bem estar das mulheres e da sociedade.
Para estes autores a modelagem sexual é produzida pelas relações de poder e não somente
como resposta à uma configuração do sexo biológico ou divinizado. Esta desnaturalização
abre precedentes para incluir outras clivagens, como a questão da homossexualidade em um
olhar agora codificado por estas novas referências e alteridades. Para Bellotti (2007) o
imaginário judaico cristão reforça a manutenção destes papéis generificados modelaradores da
divisão sexual social religiosa, santificando o domínio masculino e secundarizando as
representações do feminino (BELLOTTI, 2007). Considerando que na construção social de
certos ramificações evangélicas os pastores, bispos ou apóstolos ocupam a posição do ungido,
cujas falas são a voz de Deus, o ciclo do domínio se fecha em um habitus climatizado à estas
qualificações.

Para amplificar estas representações, no que segue analisaremos obras da literatura


evangélica que abordam o o tema GLBT. Observar autores poderá lançar luz na questão
homossexual quando abordada por determinados segmentos evangélicos. Em “A cura para o
homossexual” (1978),10 encontramos assim como a promiscuidade heterossexual, o
homossexualismo é uma condição espiritual e um problema psicológico. Na obra “O
homossexualismo na cultura e na igreja” (1998) observamos o homossexual é considerado
um pervertido indesejado [...] o homossexualismo é algo vergonhoso e terrivelmente
humilhante para nossa cultura (p. 33). Por fim, a publicação “homos-sexus - o que a bíblia
diz sobre a homossexualidade” (2011) observa que a orientação sexual pode ser causadora de
promiscuidade, tendências ao alcoolismo e uso excessivo de drogas e problemas emocionais,
(p. 79-80), ainda a afirmação de que certos distúrbios mentais ocorrem com mais frequência
muito mais elevada entre homossexuais.

Breve histórico das Igrejas Inclusivas e análise geral

A partir dos anos 1990 nota-se o crescimento em ritmo acelerado das igrejas inclusivas no
Brasil. O rápido surgimento de inúmeras denominações, cismas e a publicização das mesmas
junto às mídias de massa, incluem-nas como a mais nova protagonista no mapa dos estudos
das religiões, gênero e sexualidade no Brasil. Elas acolhem cerca de 10.000 fieis, ou 0,005%
da população brasileira. [...] Hoje, segundo o IBGE, há 60 mil casais homossexuais no
Brasil. Para grupos militantes, o número de gays é estimado entre 6 a 10 milhões de

10
publicação original em inglês e publicado no Brasil pela primeira vez em 1983.

1628
pessoas.11 Em cerca de 10 denominações principais e 40 congregações em processo de
implantação.12

Esta seção pretende analisar sucintamente certas “ondas” históricas das lutas e conquistas dos
movimentos GLBT no Brasil, entendemos que esta ondas foram concomitantes a
consolidação das releituras sociais das igrejas evangélicas, até ao ponto da atual pré
normatização das agências religiosas inclusivas.

A Igreja Comunidade Metropolitana (ICM) é a pioneira nesta recente vertente da igreja


evangélica. Foi fundada pelo Reverendo Troy Perry em 1968, na cidade de Los Angeles. No
Brasil a denominação deu os primeiros passos no Rio de Janeiro entre 2002 e 2004,
implementando células13. Mesmo com o encerramento das atividades desta tentativa inicial,
foi implementada, na mesma época, uma filial em Porto Alegre. No final da década a
denominação já se encontrava em Fortaleza, Natal, Vitoria, Belo Horizonte, São Paulo e Rio
de Janeiro (NATIVIDADE, 2011, p. 94).

Natividade (2010) analisa o percurso para o surgimento destas alternativas religiosas


inclusivas, observando o histórico do movimento GLBT no país. Primeiro ponto destacado
por Natividade é a atuação e organização política dos movimentos GLBT durante os anos 90.
Neste período o movimento gay ganha visibilidade e empatia da sociedade diante do signo
das minorias sociais e reivindica a despatologização da homossexualidade, o exercício dos
direitos humanos e o enfrentamento do AIDS. Suscitado por este ambiente, surge também a
exigência da inclusão de gays e lésbicas na religiosidade cristã. Segundo ponto é a quebra da
hegemonia católica e o fortalecimento do movimento protestante como segmento afeito às
mudanças e consciente das dinâmicas de transformações socioculturais mais amplas, com
incrível capacidade de inovação e espaço para rupturas (p. 91). Concomitante ao
crescimento do protestantismo evangélico, inicia-se o enraizamento dos fenômenos da
considerada pós-modernidade nos grandes centros urbanos brasileiros: O sagrado desloca-se
da esfera pública em direção à uma atuação cada vez mais individual, pormenorizada e
intima. (p. 91-92). Esta autonomia para as escolhas possibilitou a construção da diversos

11
Segundo o jornalista Luís Guilherme Barrucho que assina a matéria “Desafiando preconceito, cresce número
de igrejas inclusivas no Brasil”. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120329_
igrejas_tolerancia_gays_lgb.shtml >. Acesso em 07 jan. 2013.
12
Na tabela I, 18 novas denominações (algumas micro denominações) e igrejas independentes. A tabela é uma
boa amostra do crescimento em ritmo acelerado das Igrejas Inclusivas no Brasil.
13
Grupos, predominantemente domésticos, que proporcionam proximidade e comunhão entre seus participantes.

1629
estilos de vida e um clima cultural livre, sem precendentes para o debate do gênero e da
sexualidade. Os crescimento censitário dos evangélicos (à galope e à partir da década de
1990), ensejou o fortalecimento de organizações religiosas potencialmente mais preparadas às
rápidas adaptações culturais do país, um cenário propicio para a consolidação da igrejas
evangélicas gays friendly. O terceiro destaque é a conquista e visibilidade do debate sobre a
diversidade sexual, nas esferas públicas. O movimento GLBT politiza-se causando embates e
estranhamento inevitável com a tradicional cosmovisão cristã heteronorminativa. Uma
percepção sociológica da sexualidade se difundiu entre diversos atores, organizações e
movimentos sociais, pluralizando discursos. ( p. 92)

A primeira igreja inclusiva genuinamente brasileira foi a Acalanto - Ministério outras


Ovelhas, em São Paulo, fundada pelo pastor Victor Orellana, em 2002. Orellana é
considerado o primeiro pastor assumidamente gay no Brasil (MUSSKOPFI, 2012, p.193)
ordenado pelo Pastor Nehemias Marien, (Igreja Presbiteriana Bethesda) (Musskopf, 2012, p.
277). Orellana também participou da fundação da Comunidade Cristã Gay articulada em
1997, quando o Centro Acadêmico de Estudantes de História da USP (CAEHUSP) organizou
um ciclo de debate sobre direitos humanos e homossexualidade, contemplando como um dos
eixos a relação entre religião/igreja e preconceito (NATIVIDADE, 2011). O pequeno grupo
passou a se reunir no próprio centro acadêmico iniciando uma igreja autônoma.

A Acalanto foi pioneira no Brasil e inspirou várias outras Igrejas Inclusivas. Em 2006 alguns
de seus membros fundaram a CCNE - Comunidade Cristã Nova Esperança. A Igreja Crista
Evangelho Para Todos - ICEPT São Paulo. Segundo Natividade, surgiu por volta em 2004, à
partir da antiga igreja Acalanto, fundada pela pastora Indira Valença.14 A unidade de
Campinas iniciou suas atividades em 2009 devido a presença de membros da ICEPT na
cidade. Em meados de 2011, os primeiro encontros foram em sala alugada em hotel, logo
depois passaram a se reunir em uma escola de inglês (ANEZINI, 2013, p. 30).

Resumidamente, o debate sobre o gênero visto como uma construção social à partir dos anos
60, relidos pela Queer Theory, à partir dos anos 80, ressoou nas igrejas protestantes, com o
surgimento do eixo das Igrejas Inclusivas na década de 1990. Para Duarte sistemas simbólicos
14
Disponível em <http://www.igrejaparatodos.org/pastores.html#>. Acesso em 15 ago. 2013. A informação no
site indica que Pastora Indira iniciou a pregação ao público GLBT à partir de 1988, nos anos 90 abriu sua casa
para acolher irmãos de fé em conflito com suas igrejas tradicionais e serem acusados de pecadores, excluídos do
Reino de Deus pelas suas igrejas. O site afirma que ela Indira era moderadora do primeiro Grupo GLS Cristão
no Brasil, no final dos anos 90.

1630
fixados pelas instituições religiosas são fixos até o momento em que uma necessidade
especial não é atendida (SOUZA, 2006, p. 28), [assim o fiel realiza] novas combinações que
lhes permitam lidar com seu cotidiano, realizando sua bricolagem a partir de elementos
escolhidos de sistemas religiosos diversos, configurando uma verdadeira religiosidade da
escolha contínua (SOUZA, 2006, p. 28).

O resultado disso é um Deus metamorfoseado, constituído da multiplicidade simbólica que


só a experiência do trânsito proporciona. Um Deus híbrido, pouco ortodoxo, redesenhado a
lápis, cujos contornos podem ser apagados e refeitos de acordo com a novidade da próxima
experiência, proporcionando uma permanente reinvenção do sagrado (SOUZA, 2006, p.
28).

Podemos dizer que as Igrejas Inclusivas representam uma nova onda ou tendência na gestão
das particularidades simbólicas e teológicas dos fenômenos religiosos no Brasil. Devido à
suas particularidades, causam estranhamento na comunidade evangélica tradicional como
observado na página oficial da Para Todos Campinas15, onde encontramos o seguinte
comentário, postado por um visitante virtual:

“não profanem o evangelho, isso é inaceitável, estão confundindo seriamente, ama o


homossexual, com aceita o homossexualismo ou então “Igreja Gay [SIC]? Os gays
deveriam ser os primeiros a ficarem um pé atrás com a igreja e a religião e acabam,
sofrendo tudo que sofrem, criando isso? Realmente não entendo”.

Nos testemunhos observados dos membros da Igreja notou-se trajetórias e biografias


conforme nos aponta Anezini (2013) e Natividade (2011). João16 afirmou sofrer rejeição de
sua família evangélica. Sua igreja anterior, uma comunidade pentecostal, também o rejeitou
quando revelou sua orientação sexual. A rejeição veio através de uma solicitação para
frequentar outra igreja, pois estaria fora dos padrões pregados naquele instituição. Paulo,
outro entrevistado, fez a mesmo percurso: inserido em uma igreja tradicional, passou à ser
exposto quando assumiu sua homossexualidade.

Cláudio, frequentava anteriormente uma igreja neopentecostal. Afirmou que, ao revelar sua
homossexualidade à antiga igreja, foi acusado que estaria sob a influencia de um escosto

15
Disponível em <https://www.facebook.com/profile.php?id=100004091894570&fref=ts>. Acesso em 10 mar.
2013.
16
Todos os nomes são fictícios.

1631
espiritual. Portanto, para sua purificação teria que ser exposto diante da congregação durante
algumas semanas e ser submetido à rituais de expulsão de demônios e encostos para alcançar
libertação da entidade espiritual. Paulo, ao assumir sua homossexualidade, afirmou que foi
convocado frente à igreja, no dia de ceia do Senhor para que pedisse perdão sobre seu pecado
sexual.

Ambos passaram por um período na categoria dos Evangélicos Sem Vínculo Institucional. A
integração na igreja inclusiva Para Todos serviu de consolidação da suas próprias identidades
de gênero. Fraser (2008) observa que a participação em grupos de acolhimento colaboram na
consolidação da identidade de gênero e superação das rejeições aos quais os sujeitos foram
expostos. Podemos concluir que trânsito religioso nas igrejas evangélicas inclusivas segue um
certo fluxo: 1) o desligamento das instituições às quais eram filiados, 2) seguido de um
período de desfiliação, 3) Por fim, filiação à uma igreja gay friendly. Desta forma, igrejas
históricas e/ou fundamentalistas ditas tradicionais funcionam como “doadoras universais”,
fornecendo seus fiéis homossexuais às novas formas alternativas. Em conversas e entrevistas
notaram-se que grande parte dos membros já eram cristãos antes de frequentarem a ICEPT,
predominantemente evangélicos, mas com a presença de alguns ex catolicismo.

No período do campo, cerca de 50 pessoas estavam presentes na ICEPT Campinas


semanalmente no culto de Domingo e cerca de 15 no cultos de oração, que acontecia durante
as Quarta-Feiras. A maioria são jovens entre 17 até 35 anos. 80% de casais gays formados por
homens.

A liturgia17 de formato pentecostal, culto agitado e com manifestações de emoção e


informalidade. Um culto animado, característico culto pentecostal. Muitos discursos, orações
e cânticos subordinavam-se às lógicas da ruptura do sistema tradicional e opressor. Em
orações, interpretação dos textos bíblicos e nas homilias realizadas, diversos exemplos e
testemunhos referiam-se à liberdade de expressão e do amor de Deus para com todos e todas.
“Antes sofríamos, agora somos aceitos”. O discurso é relacionados à liberdade de escolhas e
ao fato que Deus “ama a todos”. Até no panfleto de propaganda encontra-se o slogan “Para
Deus somos todos iguais”. Em sua pesquisa, Victor Orellana afirma: em sua grande maioria
os [membros] eram pessoas oriundas de ambientes evangélicas tradicionais, que, ao mesmo
tempo em que procuravam ter uma auto afirmação gay, ainda traziam muitos conflitos de

17
Liturgia é ordem dos elementos que acontecem em um culto ou missa.

1632
aceitação e de dificuldades de inserção social (ORELLANA apud MUSSKOPF, 2011, p,
277).

A ICEPT realiza bimestralmente o seminário A Bíblia e a homoafetividade. Neste evento a


liderança ajuda a reforçar, através de um worshop, sua identidade, reafirmando os princípios
hermenêuticos bíblicos que apóiam a homossexualidade, rompendo com a exeges
tradicional18. A teologia inclusiva baseia-se na leitura histórica-critica da Bíblia. Esta
interpretação procura entender os significados dos versículos levando em consideração a
época em que foram escritos (histórico) e lançando mão da cultura contemporânea para
interpreta-los (crítico). O seminário tem os seguintes objetivos:

“[1)] Aborda de maneira objetiva e completa todos os versículos bíblicos usados por
homofobicos, [2)] Objetiva desmistificar e derrubar a hipocrisia e discriminação que
algumas pessoas e igrejas pregam sobre a homossexualidade alegando estarem embasadas
na Bíblia, [3)] É realizado nas unidades da Igreja Para Todos, e [4)] Também é ministrado
gratuitamente em ONGs, escolas, empresas ou grupos de amigos e em qualquer cidade,
desde que com quorum mínimo de pessoas”.19

Conforme citado em outro treinamento, de outra denominação inclusiva: o “problema não é a


bíblia, mas sim os cristãos que lêem”,20 afirmam.

Considerações Finais

Concluímos afirmando que as Igrejas Inclusivas são tendência no campo religioso brasileiro 21.
As organizações religiosas estão cada vez mais fragmentadas e independentes dos grandes
eixos denominacionais. Esta emancipação permite releituras diversas quanto as práticas e as
teologias de cada uma. Muitos ministros religiosos de igrejas inclusivas outrora foram
pastores e presbíteros em igrejas históricas, pentecostais não inclusivas. A não normatização
da homossexualidade no protestantismo convencional impeliu que determinadas lideranças
procurassem caminhos próprios e empreendessem suas versões gay friendly evangélica.

18
Interpretação das línguas bíblicas originais.
19
Disponível em <http://www.igrejaparatodos.org/curso_biblia_versus_homoafetividade.html> . Acesso em 17
ago. 2013
20
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=Ut3lAzjKfyE>. Acesso em 10 ago 2013. Afirmação do
Pastor Marcos Gladstone, que ministra o curso “A Bíblia sem preconceitos”.
21
Comparando os resultados da pesquisa de Natividade, que analisou as principais ramificações de igrejas
inclusivas no Brasil em 2010. Em 2013 já observamos a expansão do quadro. Esta informação esta contida na
tabela I, anexa.

1633
Outro consideração é apontar que o recrudescinto desta opções de fé impulsionarão dois
movimentos dentro do cenário evangélicos brasileiro em geral. Em primeiro lugar, o reforço
das vertentes fundamentalistas, que amplificarão e pautarão as cosmogonias bíblias da
criação, pois deles advém as teologias do “sexo binário” (homem e mulher); em segundo
22
lugar, as vertentes progressistas estarão cada vez mais abertas ao dialogo e a construção da
diversidade sexual nas organizações eclesiásticas.

Além disso as igrejas evangélicas estão cada vez mais voltadas a atender demandas
segmentadas da sociedade brasileira, tais como igrejas para jovens, orientais, classe média,
roqueiros, etc. As teologias que expressam a inculturação radical também vascularizam esta
circulação simbólica no campo religioso e criam novas expressões e lógicas de fé, aliadas aos
recentes estudos hermenêuticos que procuram legitimar a temática homoafetiva nas práticas
cristãs evangélicas.

TABELA 1
Principais denominações e igrejas independentes inclusivas
* Pesquisa realizada na internet e em midias sociais virtuais

Nome Sede Congregações Fundador

CCNE CCNE São Paulo – Guarulhos - SP Justino Luiz de Oliveira


Comunidade Cristã Nova SP ABC - SP
Esperança # Ribeirão Preto - SP
Vitoria - ES
Chapecó-SC
Natal - RN
Fortaleza – CE
Recife - PE
São Luis – MA
Argentina
Portugal

ICM Belo Horizonte - MG Dr. Troy Perry - EUA


Igreja da Comunidade Fortaleza - CE
Metropolitana# São Paulo - SP
Rio de Janeiro - RJ
Vitória - ES
Maringá – PR

22
http://delas.ig.com.br/comportamento/2013-05-23/os-evangelicos-progressistas.html

1634
Divinópolis - MG
Mairiporã – MG
Baixada Fluminense – RJ
Cuiabá – MT
Caxias do Sul – RS
Teresina-PI
Maceió -AL

ICC Rio de Janeiro RJ - Campo Grande RJ - Marcos Gladstone


Igreja Cristã Niterói
Comtemporânea RJ - Duque de Caxias
RJ - Nova Iguaçu
RJ - Centro
MG - Belo Horizonte
SP - São Paulo

ICEPT São Paulo Campinas Pastora Indira Valença


Igreja Cristã Evangelho (2004)
Para Todos

CCCR São Paulo Londrina Lana Holder


Comunidade Cristã
Cidade de Refúgio

CEP Santo André - SP


Comunidade Expressão
Plena

Comunidade Betel Rio de Janeiro

CFCA Brasília - DF
Comunidade Família
Cristã Athos

Igreja Inclusiva do Porto Alegre - RS


Brasil

Novo Templo Guarulhos - SP


Igreja Cristã Pentecostal

Ministério Inclusivo Pr. André Cally


Livres em Cristo

Igreja Gay Monte da Bauru - SP Aloisio Pereira da Silva e


Adoração pastora Cristina Gonçalves

IMI Maceió - AL
Igreja Missionária
Inclusiva

Igreja Reviver Apóstolo Pablo Dantas

Ministério Incluir em Cabo Frio - RJ Pastor Alexandre Costa


Cristo

1635
Igreja Apostólica Nova Pastora Andréa Gomes
Geração em Cristo

Comunidade Cristã Campo Grande - RJ Reginaldo Tupinambá


Plenitude e Graça

Referências

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<http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/476>. Acesso em 05 mai
2013.

1637
1638
Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo: o perfil de
uma igreja inclusiva e militante
Aramis Luis Silva23

Introdução

Em meio a uma série de denominações religiosas que despontam na cena pública brasileira
por conta das suas participações na controvérsia em torno das relações homoeróticas e dos
tópicos temáticos que delas se desdobram (união civil entre pessoas do mesmo sexo,
tratamento psicológico para redefinir orientação sexual, intervenções cirúrgicas para mudança
de sexo, práticas corporais alternativas orientadas ao prazer, etc.), as ditas igrejas cristãs
inclusivas surgem como interessantes elementos de um sistema de discursos orientado à
reconfiguração e visibilidade dos significados dessas condutas sexuais e afetivas.

Contrariando a imagem de um campo de disputas simbólicas concebido como resultante de


uma clivagem entre uma militância laica civil versus religiosos tradicionalistas, essas igrejas
operam no interior desse sistema como aparelhos produtores de agentes “híbridos”, isto é,
militantes civis engajados em prol da “causa LGBT”24 inspirados e mobilizados por
argumentos ditos religiosos.25 Uma configuração na qual a trajetória dessas organizações
autoproclamadas cristãs, sob o enquadramento das políticas de identidade, passam a se
confundir na história recente com a própria trajetória do movimento homossexual brasileiro
(FACCHINI, 2005; NATIVIDADE, 2007).26 Enfim, um bom caso para uma pesquisa que se
insere no marco de discussões sobre as religiões & espaço público e pretende contribuir para a

23
Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Pesquisador do Cebrap e vinculado ao GE sobre Mediação
e Alteridade (Gema) e ao GP sobre Religião e Esfera Pública. Contato: aramisluis@uol.com.br.
24
Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
25
O termo híbrido é aplicado em função de um efeito retórico (a busca do contraste) para delinear um horizonte
empírico e não uma vinculação ou afinidade a qualquer teoria do hibridismo, quadro conceitual, aliás, que
procuramos nos distanciar. Nesta seara de pesquisa (igrejas inclusivas), a percepção da existência de campos
supostamente autônomos entre religião e política é um dado etnográfico e é constitutivo da própria construção de
trajetórias dos agentes (eles se pautam por essa normatividade). Todavia, estamos diante de um ponto de
transformação desse processo e da própria representação nativa sobre ele.
26
Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos (um dos principais pontos de eclosão do movimento
LGBT), país no qual se assistiu à emergência dos movimentos gays cristãos paralelamente à formação de demais
organizações civis afinadas em torno da dita causa homossexual, no Brasil o surgimento de grupos religiosos
associados em torno das bandeiras LGBTs ocorre com força a partir do final da década de 90, praticamente duas
décadas depois da formação das organizações não-religiosas. Autores como Facchini (2005), Natividade (2007 e
2008) e Weiss de Jesus (2012) nos fornecem pistas em suas produções como ocorreu esse entrelaçamento de
relações entre as organizações civis laicas e as instituições religiosas, processo marcado pelo trânsito de agentes
de uma instância a outra. Marcelo Natividade, particularmente, sugere a ideia da formação nascente de um
“movimento gay cristão no Brasil (2007, p.82).

1639
compreensão dos contemporâneos processos de produção (simultânea) de sujeitos e dos seus
repertórios de sentidos, bem como os procedimentos comunicativos que os colocam em
circulação.

Cientes da existência de um cenário institucional muito mais amplo e crivado por distinções
reguladas por variados padrões de moralidade sexual, como atestam levantamentos e análises
recentes (WEISS DE JESUS, 2012; NATIVIDADE, 2008; e MUSSKOPF, 2008), colocamos
em foco a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), particularmente o núcleo paulistano.
A fim de explicitar virtudes e limites da nossa escolha, bem como adiantar alguns pontos de
interesse que guiam nossa observação, faremos uma breve e esquemática apresentação dessa
organização de abrangência internacional, assim como registrar de que modo estamos
estabelecendo relações com esse campo de pesquisa. Comecemos por aí.

A chegada ao campo

Ligados a um grupo de investigadores que está promovendo uma cartografia das controvérsias
em curso envolvendo agentes religiosos e seus posicionamentos frente a temas dissonantes
para a sociedade brasileira,27 encontramos em uma notícia veiculada na internet uma
oportunidade para nos aproximarmos de uma nova frente de pesquisa e enriquecer o
mapeamento do grupo com a “controvérsia do homoerotismo”: a Igreja da Comunidade
Metropolitana de São Paulo (ICM-SP), organização para nós até então desconhecida,
anunciava a abertura de um curso sobre a História da Sexualidade 1 – A vontade de saber, de
Michel Foucault. O grupo de religiosos cristãos, acossado pelo crescente ataque
fundamentalista e que neste ano galgou simbólica posição dentro da máquina governamental
com a nomeação do deputado e pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara de Deputados Federal, estava interessado em compreender de
que modo a metodologia genealógica daquele autor contribuiria para o seu projeto histórico
de desconstruir preconceitos incutidos ao longo de sua formação religiosa junto às suas
comunidades primárias.

27
Referência ao Grupo de Pesquisa Religião & Espaço Público, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Paula Montero.
Deles fazem parte ainda: Lilian Sales, César Augusto de Assis Silva, Eduardo Dullo, Carlos Gutierrez, Jaqueline
Moraes Teixeira, Henrique Fernandez Antunes, Leonardo Siqueira Antônio, Milton Bortoleto e José Edilson
Teles.

1640
Vimos no momento que se abria uma possibilidade de inserção em um novo campo de
pesquisa. Proferido em 11 encontros, sempre às quintas-feiras, entre 17h30 e 19h00, entre os
dias 14 de fevereiro e 23 de maio de 2013, o curso sobre a obra de Foucault se constituiu
como uma privilegiada janela para o universo discursivo da ICM, que foi (e está sendo)
posteriormente complementado com a participação nos cultos de domingo, a nossa atual
plataforma a observação participante. Além da ICM de São Paulo, tivemos oportunidade de
visitar em agosto deste ano a ICM de Fortaleza durante um dos seus cultos dominicais.

Igreja da Comunidade Metropolitana em rede

A Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo e as demais existentes no País fazem


parte de uma organização global, criada em 1968, nos Estados Unidos, em meio às
reivindicações pelos direitos civis que colocaram os ditos grupos minoritários em evidência
no cenário norte-americano. Marcado tanto pelo forte caráter ecumênico (pelo menos,
enquanto um valor a ser expresso) quanto por suas raízes protestantes, a igreja foi fundada
pelo Reverendo Troy Perry, filho de uma mãe batista e pai petencostal, sujeito que fora
expulso quando jovem do Midwest Bible College, em Chicago, por ter se confessado a um
pastor “ser homossexual”.28

Depois de idas e vindas entre igrejas, o fim de um casamento com uma filha de pastor
interpretado como uma malsucedida tentativa de “cura gay”, expatriação para Alemanha por
conta de um alistamento militar e uma tentativa de suicídio, a criação da ICM surge na
biografia de Perry como ponto culminante de um processo de autoaceitação e de combate à
homofobia externa e internalizada.29 Um caminho no qual a proposição de uma renovação
hermenêutica dos ensinamentos morais bíblicos e o engajamento político pelos direitos (e
visibilidade) gays tornaram-se indissociáveis.

28
Em texto divulgado em site da ICM, Troy Perry conta com mais detalhes: “Eu sabia que os homens me
atraíam. Porém não havia um nome para isso naquela época, naquele tempo as pessoas acreditavam que se
alguém incorria em atos homossexuais, era um heterossexual que andava mal, era um comportamento doentio,
mau, criminoso, pecaminoso. A homossexualidade era nomeada somente às escondidas... Eu pensava que era o
único". Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago
2013.
29
“Deus me disse: te amo, Troy. Eu não tenho enteados nem enteadas, tenho filhos e filhas”, conta o reverendo.
Antes de fundar a ICM, o religioso buscou inúmeras igrejas para frequentar mediante condição de que pudesse
contar às demais pessoas que era gay. “Disse à minha mãe que não ia mentir a ninguém sobre quem eu sou”. Os
trechos foram extraídos do site da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-
igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago. 2013.

1641
“A ICM prega um evangelho inclusivo de três pontos: salvação cristã, comunidade Cristã e
igualdade de direitos”, afirma o reverendo em trecho divulgado pelo site da instituição,30 nos
sugerindo em que termos a liderança religiosa pode convergir com a política e associativismo
militante. A Confissão de Fé Inclusiva, texto ritualmente lido durante os cultos, e no caso da
ICM de São Paulo, afixado e exposto nas paredes da igreja, é ainda mais eloquente:

“Creio em Deus, Pai de todos, que deu a terra a todos os povos e a todos ama sem distinção.
Creio em Jesus Cristo, que veio para nos dar coragem, para nos curar do pecado e libertar
de toda a opressão. Creio no Espírito Santo, Deus vivo que está entre nós e age em todo o
homem e em toda a mulher de boa vontade. Creio na Igreja, posta como um farol para todas
as nações, e guiada pelo Espírito Santo a servir todos os povos. Creio nos direitos humanos,
na solidariedade entre os povos, na força da não-violência. Creio que todos os homens e
mulheres são igualmente humanos. Creio que só existe um direito igual para todos os seres
humanos, e que eu não sou livre enquanto uma pessoa permanecer escrava. Creio na
beleza, na simplicidade, no amor que abre os braços a todos, na paz sobre a terra. Creio,
sempre e apesar de tudo, numa nova humanidade e que Deus criará um novo céu e uma
nova terra, onde florescerão o amor, a paz e a justiça. Amém.”

Porém, destacando que foram necessárias certas mediações para estabelecer o trânsito entre
esses dois âmbitos, o religioso e o político, no mesmo relato, o reverendo enfatiza que foi
preciso quebrar algumas barreiras, pois alguns integrantes do movimento de direitos LGBT
suspeitaram da ideia de ter como aliados pessoas que se assumiam como religiosas. A sua
interpretação para o fato nos parece ainda mais significativa, pois evidencia sua visão crítica e
reformadora do papel das organizações cristãs: “Eles já haviam sido muito feridos pela Igreja
e não importava que esta fosse uma igreja gay ou lésbica”, conta o religioso, reconhecendo
que a experiência comunitária baseada no ideário tradicionalista cristão se impunha para
muitas trajetórias de vida como fonte de exclusões, violências e sofrimentos. Seu projeto
compreendia a fundação de uma igreja baseada em uma nova visão de comunidade.

Atualmente, a ICM está presente em mais de 50 países no mundo, seja em forma de igrejas
formalmente instituídas ou missões. Ela está inclusive em países como a Arábia Saudita e
Uganda, onde as práticas homoeróticas são passíveis de punições legais, inclusive com a pena
de morte. Segundo informações de fontes da ICM de São Paulo, a igreja, por meio de relações
com entidade médicas locais, funciona nesses países como uma espécie de núcleos que

30
A História da ICM. Ver o site da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-
igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago. 2013.

1642
garantem a transferência para outros países de pessoas que estão sob ameaça das autoridades
nacionais.

Nos Estados Unidos, a ICM enfrenta forte oposição das igrejas cristãs, principalmente aquelas
de orientação fundamentalista. Por conta disso, Troy Perry precisa viajar regularmente sob a
vigilância de guarda-costas e já sofreu 22 vezes o amargor da notícia de uma filial da sua
igreja ser arrasada por incêndios criminosos. Em contrapartida, a igreja já vem colhendo há
alguns anos alguns trunfos públicos nesse país. Perry, por exemplo, assumiu uma cadeira na
Comissão de Direitos Humanos do Condado de Los Angeles, foi convidado pelo ex-
presidente Jimmy Carter para a discussão sobre direitos homossexuais na Casa Branca em
1977 e foi hóspede do ex-presidente Bill Clinton em 1997 durante a Conferência sobre
Crimes de Ódio da Casa Branca. Por sua vez, a reverenda Nancy Wilson, que ocupa
atualmente o principal cargo na hierarquia da igreja, por meio de um convite para participar
de uma celebração na Casa Branca, foi reconhecida publicamente pelo presidente norte-
americano Barack Obama como uma liderança religiosa local.

No Brasil, a igreja está estabelecida oficialmente há 7 anos, com igrejas e missões em várias
cidades brasileiras, como São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro, Cuiabá, Maringá, Vitória, Belo
Horizonte, Divinópolis, João Pessoa, Teresina, São Luis e Porto Alegre.31 E todos esses
núcleos – nacionais e internacionais – estão organizados em torno da Fraternidade Universal
das Igrejas da Comunidade Metropolitana (FUICM),32 possuem um clero escalonado em
níveis hierárquicos com pastores formados em seminários e cursos especializados da própria
instituição, liturgia unificada organizadas e executadas por ministérios locais e defendem
aquilo que eles chamam de Teologia Inclusiva, vertente segundo a qual alguns informantes
dizem estar fortemente inspirada pelas Teologia Feminista e pela Teologia da Libertação.33

31
Musskopf (2008) nos lembra que a presença da ICM é anterior. Segundo o autor, em 2003, foi realizada a I
Conferência das Igrejas Metropolitanas no Brasil com o objetivo de adensar o trabalho que a instituição
mantinha no Brasil via rede eletrônica de computadores. A meta era abrir núcleos locais e presenciais. Já no ano
seguinte, o reverendo e fundador Troy Perry viajou para o Rio de Janeiro para participar da criação da ICM na
cidade. Porém, dois anos depois, o núcleo foi descredenciado pela organização internacional por divergências
administrativas e regimentais. A festa de aniversário da ICM de São Paulo foi comemorada no dia 11 de agosto
durante uma celebração marcada para ocorrer antes do culto dominical de domingo.
32
A liderança da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana é exercida desde 2005 pela
reverenda Nancy Wilson, sob o cargo de “moderadora”. No livro memorialístico Nossa Tribo: Gays, Deus e a
Bíblia, editado no Brasil pela editora Metanoia, ela se define como uma pensadora do ecumenismo terrorista,
numa alusão bem-humorada ao seu trabalho de fazer convergir a Teologia e a Teoria Queer.
33
Certamente a leitura, interpretação e o trabalho de transposição da Teologia da Libertação para a Teologia
Inclusiva realizados pelos intelectuais/teólogos da ICM despontam como uma frente de investigação a ser
realizada.

1643
ICM-SP

“Somos uma comunidade de pessoas que compartilham do desejo de viver a mensagem de


Jesus de forma a incluir, e não excluir; curar, e não ferir; pacificar, e não guerrear; libertar, e
não aprisionar; incentivar a liberdade e criatividade de pensamento”,34 exemplifica o estilo
retórico da organização o texto de apresentação da ICM São Paulo, núcleo atualmente sediado
em uma sobreloja instalada no número 231 da Rua Sebastião Pereira, próxima à estação de
metrô Santa Cecília, no centro da cidade de São Paulo. Endereço discretamente sinalizado por
uma pequena placa à porta estampando uma bandeira-símbolo do movimento gay: o arco-íris.

Fundada em agosto de 2006 pelo hoje reverendo Cristiano Valério, psicólogo e ex-ativista do
Grupo Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor35 e atual pastor-moderador
local e responsável pela coordenadoria de desenvolvimento das ICMs do Brasil, a ICM-SP
está organizada em um corpo administrativo escalonado entre pastores, diáconos e demais
lideranças escolhidas em assembleias gerais para ocupar posições em
“departamentos/ministérios”, “conselhos” e a “diretoria’, esta última composta por
Presidência da Igreja, Vice-presidência, Secretaria da Igreja, Tesouraria e Conselho Fiscal.

Os pastores devem ser ordenados e nomeados pela Fraternidade Universal das Igrejas da
Comunidade Metropolitana, mediante formação teológica referendada pela Fraternidade, mais
complementação teológica oferecida pela entidade. Os diáconos dependem da indicação do
pastor e da aprovação da comunidade religiosa. Atualmente, a ICM-SP conta com seis
diáconos, sendo três identificados com nomes femininos e três masculinos. Importante
também destacar o lugar simbólico que as assembleias gerais ocupam para a organização.
Como expressões rituais da reafirmação do seu compromisso com os ideais democráticos e de
igualitarismo participativo – princípios para o seu modelo de exercício de poder –, a
promoção periódica de tais assembleias é marcada por certa suntuosidade reflexiva a fim de
destacar o caráter especial daquele evento, que se configuraria como um sinal diacrítico da
igreja.

34
Texto de apresentação da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/>. Acesso em 5 ago. 2013.
35
O Grupo Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor é uma entidade civil criada há 13 anos e
direcionada à luta pelos direitos civis humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Sediado na
cidade de São Paulo, a partir de 2001 tornou-se uma organização não-governamental (ONG) concentrada em
projetos de intervenção social na área de prevenção às DST/Aids e na formação de professores da rede pública
em relação à temática da diversidade sexual, entre outros. Nos primeiros anos de atividade da ICM, a igreja
dividiu espaço físico com o Corsa, mantendo até hoje, além do pastor, outro agente que também pertencia às
fileiras da ONG, o diácono Dário Neto.

1644
As lideranças são responsáveis por coordenar uma agenda que tem semanalmente três dias
fixos de atividades, congregando, em média, 60 pessoas, cuja a maioria é formada por homens
que se identificam como homossexuais. Além deles, um pequeno grupo de mulheres (10% da
audiência), organizado em torno do Ministério de Mulheres (o ICM Delas, responsável pelo
culto pelo menos uma vez ao mês), que engloba inclusive aqueles que seriam descritos pela
terminologia LGBT como transgêneros, e pessoas com deficiência auditiva, organizados no
Ministério de Surdos (5% da audiência).

Às quintas – Quinta-feira de Adoração – a igreja fica aberta das 14h00 às 21h00. Este é o
intervalo para o atendimento pastoral à tarde, sessões de estudo sob o comando do
Departamento de Formação e Ensino a partir das 17h30 (foi nesse âmbito que ocorreu o curso
do Foucault)36 e o Culto de Celebração e Adoração, iniciado a partir das 20h00. Aos
domingos, desde as 18h00, a igreja fica por conta do culto, no qual também acontece a Santa
Ceia (partilha da hóstia e do cálice de Cristo) que, ao lado do batismo, se constituem como os
dois únicos sacramentos professados pela ICM. Os cultos são regidos por uma estrutura
litúrgica regulada pela matriz, cabendo ainda variações e acentos rituais locais decorrentes das
igrejas de referência dos seus membros. Roteiros de celebração são postos nas cadeiras como
o do “Boletim Informativo da Igreja da Comunidade Metropolitana”.37

Os sábados, enfim, estão reservados às atividades e cerimônias especiais, como celebrações


de aniversários e casamentos. Em algumas ocasiões, são promovidas rodas de conversas, em
que são debatidos assuntos diversos. Vale destacar ainda que em muitas ocasiões as reuniões e
cerimônias também são promovidas fora do espaço físico da igreja.

A ICM-SP já esteve sob a mira de análises acadêmicas (NATIVIDADE, 2008; MUSSKOPF,


2008; MARANHÃO FILHO, 2011; e WEISS DE JESUS, 2012a e 2012b) que hoje podem
nos municiar com importantes informações sobre a estrutura desta organização e sua história,
bem como fornecer elementos que nos ajudam a compreender as dinâmicas internas que
entrelaçam seus membros em específicos projetos institucionais. Particularmente na seara

36
Atualmente está sendo promovido um curso de especialização em Libras. Na sequência, está programada a
abertura de um novo curso de Foucault. A igreja promoverá uma leitura dirigida de Território, Segurança e
População.
37
Esquematicamente, as etapas do culto são: acolhida; prelúdio; boas-vindas; oração inicial; leitura do Salmo;
momentos de louvor; testemunhos de gratidão; hino de contrição; mensagem; cântico de louvor; momento de
entrega do dízimo; Santa Ceia; anúncios; oração final; bênção apostólica; poslúdio (WEISS DE JESUS, 2012, p.
102). Os cultos geralmente são presididos pelo pastor-mediador Cristiano Valério, sempre com a intensa
participação de outros membros, seja na leitura bíblica, evocações e cantos. Além do pastor, também podem
presidir o culto diáconos ou outros religiosos convidados.

1645
antropológica, a entidade ganhou especial atenção na época da produção da tese de doutorado
de Fátima Weiss de Jesus, defendida em 2012 no PPGAS/UFSC. Segundo a autora, orientada
por questões teóricas distintas das nossas, sua intenção foi compreender as articulações entre
gênero, sexualidade e vivência religiosa nesse específico espaço dito inclusivo, focando em
sua análise em “como se dá a construção e valorização de ‘femininos’ entre gays, lésbicas,
travestis, transexuais e drag queens (WEISS DE JESUS, 2012b)”.38

Mas, a partir do produtivo diálogo que estabelece com o trabalho de Marcelo Natividade
(2008), que anos antes usara a Igreja da Comunidade Metropolitana (em geral) como um
espelho para identificar as especificidades do seu objeto de estudo de então, a Igreja Cristã
Contemporânea (ICC),39 a autora chega a termos que nos interessam particularmente. Lendo o
Código de Conduta e Disciplina dos/as Clérigos/as da ICM, documento existente dentro do
Manual do Clero, organizado pela Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade
Metropolitana, Weiss de Jesus, também se valendo de interessantes entrevistas com membros
da igreja, identifica a sexualidade como o “eixo teológico estruturante da ICM” (WEISS DE
JESUS, 2012, p. 104). Indo além, uma vez que a “sexualidade é positivada, entendida como
um dom de Deus, que não está limitada às relações estáveis, à reprodução, preocupa-se com
relações igualitárias e consentidas” (idem), esse dispositivo é também, como já havia
demonstrado ao seu modo Natividade, assumido como uma linguagem para organização dos
múltiplos gêneros e código para a expressão performativa de múltiplas humanidades
possíveis, organizadas por novos regimes de regulação de conduta compartilhados em vida
comunitária.

Sexualidade como um campo de batalha... política e espiritual

“Portanto, irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são vocês:
entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos de alta
sociedade. Mas, Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios; e

38
Ainda sobre a ICM de São Paulo, especificamente, núcleo no qual iniciamos em maio nossa pesquisa de
campo por meio da frequência em um curso sobre o Livro História da sexualidade – a vontade de saber, de
Michel Foucault, ministrado para membros da comunidade, vale destacar que ela acaba de ver eleito o seu
diácono Dário Neto como um dos 20 representantes da sociedade civil do Conselho Estadual dos Direitos da
População Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual do Estado de São Paulo. Também militante do PSOL,
Dário concorreu em eleição de votação popular promovida no dia 29 de junho ao lado de mais três candidatos
ligados a outros partidos.
39
O surgimento da Igreja Cristã Contemporânea está associada a primeira tentativa de abertura da ICM no Rio
de Janeiro. Saiba mais em Weiss de Jesus (2012).

1646
Deus escolheu o que é fraqueza do mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o
mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o
mundo pensa que é importante. Desse modo, nenhuma criatura pode se orgulhar na
presença de Deus. Ora, é por iniciativa de Deus que vocês existem em Jesus Cristo, o qual
se tornou para nós sabedoria que vem de Deus, justiça, santificação e libertação, a fim de
que, como diz a Escritura: ‘Aquele que se gloria, que se glorie no Senhor’.” 1 Coríntios
1:26-31 (Edição Pastoral)

O trecho da carta aos Coríntios opera no contexto da ICM como índice de legitimidade
espiritual para o seu específico projeto de Teologia Inclusiva, ou, como também define a
reverenda Nancy Wilson (2012), de Teologia Queer. “Somos um movimento que proclama
fielmente o amor inclusivo de Deus para todas as pessoas e que testemunha com orgulho a
sagrada integração entre espiritualidade e sexualidade”, anuncia o texto no qual a instituição
declara publicamente sua Missão e Visão40. Reconhecendo a historicidade constituinte da
moralidade cristã, bem como as influências culturais que a moldam através dos séculos, a dita
Teologia Inclusiva ergue-se como um projeto desconstrutivista de forte inspiração na tradição
da teologia bíblica (alemã), interessada em recuperar os sentidos históricos dos textos
tornados cânones. Assim exemplifica o reverendo Marcio Retamero a execução prática desse
projeto teológico dentro da sua igreja inclusiva:

“Não há outro, para uma leitura inclusiva da Bíblia, senão o víeis ou método histórico-
crítico de análise dos textos que compõem a Bíblia. A leitura inclusiva da Bíblia pressupõe
que o leitor ou o pregador bíblico assuma a tarefa – nem sempre fácil – de desconstrução do
pensar teológico, inclusive o dogmático, para, a partir daí, construir este novo edifício que
chamamos de ‘Teologia Inclusiva’” (RETAMERO, 2010).

A Teologia Inclusiva da ICM coloca em cena a figura do homossexual, articulando uma vida
espiritual com orientações e práticas sexuais para além daquelas estabelecidas como norma
moralmente aceitas. Mas, como bem demonstrou Natividade, “partindo do pressuposto de que
não existe ‘homossexulidade’, mas ‘homossexualidades’”, se existem múltiplas experiências e
mediação nesse campo inclusivo nacional em formação (NATIVIDADE, 2010, p. 111), a
ICM se posiciona nesse campo sob o compromisso de ir além da simples positividade das
ditas orientações sexuais heterodiscordantes. Interpretando suas mensagens pastorais, que
assumem combativamente o tema da homofobia e da exclusão de gays, lésbicas, trânsgeneros
como importantes tópicos discursivos, podemos afirmar que seu projeto está fundando na

40
O texto pode ser encontrado na íntegra no site da ICM-SP. Disponível em
<http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago 2013.

1647
ideia de uma crítica radical da heteronormatividade e de qualquer configuração na qual a
inclusão figure como uma concessão ao status quo. A partir dessa posição, ganhamos chave
de interpretação para as suas posturas ditas libertárias em relação a temas como relações
sexuais fora do casamento, poligamia, práticas sexuais alternativas, trânsito entre gêneros, etc.

Observando o discurso elaborado pela Igreja Cristã Contemporânea sobre a


homossexualidade – marcado pelo desejo de extinguir ou minimizar a separação entre os ditos
homossexuais e heterossexuais – Marcelo Natividade bem nos lembra que:

“a busca por reconhecimento social é perpassada por uma constante reflexão sobre como
proceder na promoção da igualdade: tomar a diferença como eixo das reivindicações ou
elaborar discursos que tendem a apagá-la, forjando fendas e forçando rachaduras em
sistemas de valores tradicionais, de modo a obter mudanças estruturais mais profundas?
(NATIVIDADE, 2010, p. 112).

A resposta da ICM, como expressam seus discursos pastorais ou textos de divulgação, é


inequívoca. “Na ICM, nós acreditamos que na nossa humanidade, somos santos. Somos
libertos das definições que as outras pessoas fazem de nós”, registra a Missão e Visão da
instituição. Mais adiante, sinalizando de que modo se distancia de qualquer orientação que faz
ver a castidade, contenção de conduta ou valorização à discrição (seja ela em nome de uma
masculinidade ou feminilidade alinhada a uma norma) como o caminho para uma “santidade”,
para fazermos alusão ao termo empregado por Natividade, os ideólogos desta igreja inclusiva
formulam:

“Na ICM, nós acreditamos que Jesus presidiu o caminho com atos de compaixão e atos de
justiça. Por termos sido um povo nas margens da sociedade, compreendemos
completamente a graça que Deus estendeu a nós. Nós buscamos nos distanciar da exclusão
e nos aproximar da inclusão de todos os que são de alguma forma marginalizados. Com
ousadia, colocamo-nos do lado daqueles que resistem às estruturas de exclusão, como Jesus
fez, e trabalham para garantir liberdade para todas as pessoas. Na margem, somos
abençoados.”

Em linha com as formulações queer, é da margem e pela margem, isto é, de um lugar social
considerado como estranho, interdito, impuro e/ou imoral, que a ICM reivindica seu acesso à
experiência ao sagrado. Experiência que compreende a comunhão comunitária da aceitação,
não do estranho, interdito, impuro e/ou imoral, mas da figura social que metaforizaria essas
condições, isto é, o “homossexual”, aquele que existe em muitas formas de ser. “Nós vivemos
a nossa crença de que é na margem que somos abençoados/as e fornecemos muitas formas

1648
para as pessoas encontrarem nossa mensagem de libertação e inclusão.” Mais adiante,
evidenciando de forma a política se impõe como uma língua para uma atuação política, o
texto institucional arremata:

“Na ICM, nós experimentamos a destruição de almas que vem da retórica carregada de
ódio. Ao restaurarmos nossas almas, descobrimos que nossas vozes falarão a libertação que
vem através da paz, da compaixão, do amor, do respeito e da graça. Como seguidores de
Jesus, nós acreditamos no privilégio sagrado de todos as pessoas trabalharem por sua
salvação. Embora sejamos uma igreja cristã que segue a Jesus, nós respeitamos as outras
tradições de fé e trabalhamos junto com elas para libertar todos os que são oprimidos pelo
ódio, pela falta de consideração e pela violência”.

Interessante notar que no contexto discursivo da ICM “libertação” e “salvação” são textos de
assinatura teológica, no sentido que Agamben deu ao termo, que, ao invés registrarem em sua
memória semiótica sua vinculação religiosa para fazer referência a ela em uma nova matriz
secularizada, expressariam a relação de imanência entre história e cosmologia, numa primeira
escala, e corpo e espírito, em numa outra. Num sentido diametralmente oposto observado por
Natividade em relação às “curas milagrosas” e aos rituais de “libertação” (da
homosseuxalidade) pentecostal, nos quais tais fenômenos “reportariam à necessidade de
ordenar, submeter o indivíduo divergente ou sem fé às regras vigentes entre os crentes”
(NATIVIDADE, 2007, p. 102), a batalha sexual que metaforizaria uma batalha espiritual na
ICM se daria em nome da conquista da autonomia e não da repressão como expressão de
força espiritual.

Considerações finais

Uma vez encerrado o esforço de circunscrever a ICM-SP sob a luz de um novo problema
teórico, esperamos ter tornado mais convincente a nossa escolha de eleger essa instituição
como plataforma para analisarmos os processos de produção e veiculação de discursos que
amalgamam as gramáticas do político e do religioso. Como já vem demonstrando a análise
dos discursos de agentes ditos religiosos em torno de certas controvérsias empreendidas pelos
demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa sobre Religiões & Espaço Público, as falas
postas em cena pela ICM fazem muito do “que colocar em circulação no espaço público
discursos religiosos, ‘traduzindo seus insights éticos em um idioma secular’
(HABERMAS,1983, p.5, apud MONTERO, 2012) mas, sim remodelam, repensam e

1649
retrabalham as próprias noções de religioso e secular” (MONTERO, 2012). Indo além,
fazem da religião uma linguagem para instaurar uma nova agenda política, na qual a
aclamação pública de identidades originadas em torno de condutas sexuais torna-se correlata
no plano mítico à reivindicação do reino de Deus na história.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do


governo: homo sacer II. São Paulo: Boitempo, 2011.

FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e a produção e identidades


coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Curso dado no Collège de France


(1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Jesus me ama no dark room e quando
faço programa: narrativas de um reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização
do discurso religioso sobre sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis
e Psique, v.1, n. temático, Porto Alegre, p.166-194, 2011.

MONTERO, Paula. Religiões e controvérsias públicas: experiências, práticas sociais e


discursos. Relatório Parcial do Projeto Regular, Processo 2011/02948-6, Período:
01/08/2011 a 30/07/2012.

MUSSKOPF, André. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil.
Orientação de Rudolf Von Sinner. Tese (doutorado em Teologia), Escola Superior de
Teologia, São Leopoldo, 2008.

NATIVIDADE, Marcelo. T. O Combate da castidade: autonomia e exercício da sexualidade


entre homens evangélicos com práticas homossexuais. Debates do NER, ano 8, n. 12, Porto
Alegre, p. 79-106, 2007.

_________. Deus me aceita como eu sou? A disputa sobre o significado da homossexualidade


entre evangélicos no Brasil. Orientação de Peter Fry. Tese (doutorado em Antropologia
Social), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.

_________. Uma homossexualidade Santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva


pentecostal. Religião & Sociedade, v. 30, Rio de Janeiro, p. 90-120, 2010.

RETAMERO, Marcio. Pode a Bíblia Incluir? Por um olhar inclusivo sobre as sagradas
escrituras. Rio de Janeiro: Metanoia, 2010.

1650
WEISS DE JESUS, Fátima. Unindo a cruz e o arco-íris: Vivência religiosa,
homossexualidades e trânsitos de gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São
Paulo. Orientação de Miriam Pillar Grossi. Tese (doutorado em Antropologia Social), UFSC,
Florianópolis, 2012a.

_________. A existência drag em uma igreja inclusiva no Brasil. Trabalho apresentado no VI


Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH,
realizado em Salvador, Bahia, Brasil, entre 1 e 3 de agosto de 2012b.

WILSON, Nancy. Nossa Tribo: Gays, Deus e a Bíblia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012.

Internet

ICM - Igreja da Comunidade Metropolitana. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/>.


Acesso em 5 ago. 2013.

1651
1652
Espaços religiosos de inclusão e diversidade sexual: um estudo
sobre uma igreja inclusiva paulistana e os elementos sagrados e
profanos em torno da noção de sexualidade

Marina Santi Lopes Garcia1, Ana Keila Mosca Pinezi2

Introdução
O pluralismo religioso é um forte elemento da contemporaneidade e pode ser observado na
existência de muitas denominações que ressignificam as noções de pecado, como é o caso das
igrejas inclusivas. Elas surgiram no Brasil entre os anos 1990 e 2000, com uma teologia que
se aproxima muito de igrejas tradicionais, mas se distanciam destas por flexibilizarem alguns
valores considerados inquestionáveis.

Essas vertentes formulam novas hermenêuticas e também novas formas de atrair e acolher
membros da comunidade LGBT, reinterpretando a noção de pecado, em especial em relação à
opção sexual, dando legitimidade para a homossexualidade.

O estudo dessas questões levou-nos a entender a influência que essas vertentes exercem sobre
as percepções que estes fiéis tem do mundo, como suas condutas são alteradas e como eles
lidam com a própria sexualidade e fé.

Capítulo 1 – Revisão bibliográfica

1. A religião como um sistema simbólico

Esse artigo se propõe a analisar questões tradicionais tratadas de maneira diferente no campo
religioso brasileiro com a emergência de novas vertentes religiosas. Antes de entrar na
especificidade da temática desta pesquisa, é importante que se deixe claro qual a noção de
religião adotada neste trabalho.

Aqui, entenderemos religião como

1
Graduanda em Ciências e Humanidades pela UFABC. Orientada pela Profa. Dra. Ana Keila Mosca Pinezi.
Bolsista JTC/CAPES. Contato: marina.santilopesgarcia@gmail.com
2
Doutora em Ciências Sociais pela USP. Professora adjunta IV da UFABC. Coordenadora do PPGCHS –
UFABC. Contato: ana.pinezi@ufabc.edu.br.

1653
(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de
existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições
e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).

A partir desse conceito, podemos observar que a religião concede legitimidade a certas noções
de sagrado e profano. No caso das igrejas inclusivas, o fiel tem acesso a um sistema de
símbolos e condutas que possibilitam que ele alcance o reconhecimento da sociedade, a partir
de “uma nova forma de ver e interpretar o Sagrado e o Profano” (MOREIRA, 2012, p. 11),
dando sentido a vida de homossexuais que querem vivenciar a sexualidade sem abandonar sua
fé.

Religião e sexualidade se intersectam no sentido de que a primeira exerce grande influência


sobre a forma como a última é encarada e aceita na sociedade, já que

(...) a religião é um importante campo nas configurações sociais, suas convicções,


posicionamentos e atuações no campo da sexualidade influenciarão, de alguma forma, nas
configurações tanto vivenciais quanto políticas de organização e vivência desta
(GIUMBELLI, 2005, p. 700).

2. Pensando a religião no mundo contemporâneo e novas vertentes religiosas: o caso das


igrejas inclusivas

O pluralismo religioso é um forte elemento da contemporaneidade e pode ser notado na


emergência de muitas denominações que dão novos significados aos valores nos domínios de
sagrado. As chamadas igrejas inclusivas são um exemplo disso.

A modernidade trouxe uma onda de tolerância às minorias sexuais, impactando na forma


como algumas vertentes religiosas mais tradicionais pensam a questão da sexualidade. Assim
“podemos observar uma “reinvenção” da tradição […], abrindo possibilidade para múltiplas
escolhas e pertencimentos religiosos no seu campo hegemônico” (STEIL, 2001, p. 117).

Esse parece ser o caso das chamadas igrejas inclusivas que surgiram no Brasil entre 1990 e
2000. Elas vinculam-se, por meio de alguns elementos, às igrejas tradicionais, enquanto se
distanciam destas, flexibilizando alguns valores considerados inquestionáveis.

A emergência dessas vertentes religiosas só foi possível após um processo de transformações

1654
sociais, como apontado mais adiante. Sendo assim, “a secularização multiplica os universos
religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo
de modernidade” (STEIL, 2001, p. 11). Partindo desse princípio, a diversidade e sua aceitação
estariam intrínsecas ao processo de modernização da sociedade.

Os impactos da modernização e, assim, do pluralismo “podem ocasionar dissonâncias para os


indivíduos entre suas crenças fundamentais, mudando percepções do mundo ao redor dele e
valores divergentes sobre o outro” (LUMMIS, 1999, p. 603).

O estudo de vertentes religiosas inclusivas e de seus impactos na vida dos fiéis significa, além
de uma ameaça às bases religiosas tradicionais, a reivindicação pela inserção de grupos
outrora marginalizados nas instituições religiosas. As igrejas inclusivas se fazem interessantes
porque, como afirmam Natividade & Oliveira (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 139),
“destacam-se no cenário religioso amplo por serem iniciativas evangélicas autônomas,
lideradas por gays e lésbicas egressos de denominações convencionais”.

O surgimento de denominações religiosas mais abertas à diversidade sexual teve início na


década de 1990 e se disseminou durante os anos 2000. Segundo Jesus (JESUS, 2010, p. 132),
as igrejas inclusivas “podem ser definidas por compatibilizar sexualidades não heterossexuais
e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas”.

As igrejas inclusivas surgiram num período em que “transformações sociais insufladas pela
atuação e pela organização política de movimentos homossexuais, [...] relacionadas aos
direitos civis, à reivindicação de despatologização, à luta contra a violência e a discriminação”
(NATIVIDADE, 2010, p. 91).

Assim, a demanda por religiões que aceitassem membros da comunidade LGBT cresceu
baseada não apenas na exclusão de líderes de igrejas tradicionais que assumiram sua
sexualidade, mas “sobretudo pela configuração de importantes diferenças teológicas e adoção
de condutas morais (sexuais)” (JESUS, 2010, p.91).

Essas denominações “formulam uma teologia que reinterpreta a proibição da


homossexualidade, considerando esta “orientação sexual” uma “criação de Deus”, uma
bênção divina, e não mais um “pecado”” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 131). Dessa
maneira, esses indivíduos encontram maneiras de pertencer a uma religião sem sofrer
homofobia declarada, em que os efeitos se alinham na “função de demarcarem e depreciarem

1655
uma categoria de pessoas, como afirma Weinberg” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p.
126).

Apesar de formarem uma categoria única, as denominações apresentam uma heterogeneidade


no que concerne às teologias utilizadas. Uma delas prega a criação de uma teologia inclusiva
específica, também conhecida como Teologia Queer. Nessa teologia, seu “alvo mais imediato
de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade” (LOURO, 2001,
p. 546 apud JESUS, 2010, p. 143). A outra age por meio da promoção de “interpretações
históricas e hermenêuticas alternativas, que questionam os juízos morais conservadores sobre
relações entre pessoas do mesmo sexo” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 139). Uma das
características mais importantes desses discursos se insere no

(…) ensinamento de que “Deus aceita os homossexuais como eles são” e compreende uma
pedagogia da aceitação, [...] fornecendo subsídio para que gays e lésbicas possam efetuar a
passagem de uma percepção negativa de si à identidade de um gay evangélico
(NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 140).

Outra controvérsia se dá nos aspectos práticos da vida religiosa. Natividade & Oliveira
afirmam que algumas igrejas inclusivas assumem uma postura mais tradicional, defendendo a
monogamia e uma conduta que não remeta à promiscuidade. Outras tem uma visão
extremamente positiva e valorizada da homossexualidade, incentivando ações que
demonstrem um certo orgulho por sua orientação sexual.

Como afirma Jesus (2010, p. 140), os trabalhos que tratam de igrejas inclusivas “centram sua
reflexão sobre a participação de homens gays”, mas também apontam para a valorização do
feminino por algumas comunidades inclusivas que permitiram a aproximação de um público
pouco frequente nessas igrejas, como travestis, transsexuais e lésbicas, enquanto que, em
outras, a frequência é composta “majoritariamente por gays e qualquer traço considerado da
feminilidade é “condenado”” (NATIVIDADE, 2008 apud JESUS, 2010, p. 140).

A importância do desenvolvimento de igrejas inclusivas se mostra “na medida em que tem se


dedicado a legitimar práticas e modos de vida não heterossexuais re-significando o texto
bíblico” (JESUS, 2010, p. 141). Dessa maneira, elas se tornam também uma ferramenta de
legitimação e aceitação de sua orientação sexual.

1656
Capítulo 2 – Metodologia

Esta pesquisa objetivou compreender como se insere e é visto o grupo de homossexuais no


seio de uma igreja inclusiva, a Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE), cuja sede está
situada na região do ABC paulista, mais especificamente no município de Santo André.

Esse grupo religioso tem características, por um lado, de uma igreja com costumes
tradicionais, como atitudes discretas e relações monogâmicas, mas, por outro, tem a
característica de compatibilizar orientações sexuais dissonantes da heterossexualidade,
unindo-os com uma vertente social, que se manifesta pela criação de grupos de apoio e troca
de experiências (NATIVIDADE, 2010).

Para compreender como os homossexuais são vistos e inseridos nessa comunidade religiosa,
abordei o tema com base na teoria antropológica e sociológica. Foi realizado trabalho de
campo, que se baseou no método etnográfico, que pressupõe também observação participante
e entrevistas abertas. A etnografia é a descrição de como um povo ou grupo social se
relaciona entre si e com os outros. No entanto, se trata de uma descrição que leva em conta os
significados, símbolos e sentidos que estão presentes nos discursos e nas ações dos indivíduos
em foco.

Para realizar a etnografia, visitei essa igreja, aos domingos, no culto de adoração que acontece
no horário de 19 horas, e às terças-feiras, no culto de intercessão, que acontece no horário de
20 horas. Num primeiro momento, realizei apenas observação participante, que “supõe a
interação pesquisador/pesquisado. As informações que obtém, as respostas que são dadas às
suas indagações, dependerão, ao final das contas, do seu comportamento e das relações que
desenvolve com o grupo estudado” (VALLADARES, 2007, p. 154).

Foram abordados 05 participantes da CCNE, caracterizados na tabela abaixo, com a ajuda de


uma ficha de inscrição (Anexo I). É importante dizer que são utilizados, neste trabalho, nomes
fictícios dos entrevistados, bem como na descrição da observação participante. Esse grupo de
cinco pessoas foi abordado por meio de entrevistas abertas e individuais, partindo de um
roteiro que as norteou (Anexo II). As entrevistas foram gravadas com a permissão dos
entrevistados. Foi feita a transcrição dessas entrevistas na íntegra para posterior análise dos
dados.

1657
Tabela de Entrevistados

Nome Idade Orientação Sexual Frequentou outras igrejas?


Qual (is)?

Saulo 24 Homossexual Sim. Igreja Noiva do Cordeiro


(Pentecostal Evangélica)

Lucas 18 Homossexual Não.

Mateus 22 Homossexual Sim. Batista e Assembleia de


Deus

João 50 Homossexual Sim. Igreja Paz e Vida,


Assembleia de Deus e Acalanto
(inclusiva)

Salete 30 Transsexual Sim. Igreja Universal do Reino


de Deus, Batista e Renascer em
Cristo

Caracterização da Igreja Inclusiva estudada

Essa comunidade religiosa se situa na região central de Santo André, próxima a comércios,
condomínios residenciais, bom fluxo de transporte público e um shopping, o que valoriza o
bairro. O prédio tem portas de vidro, que oferecem fácil acesso a qualquer pessoa. O espaço é
pequeno e à frente há um pequeno altar e um púlpito. No altar, há um teclado e, à esquerda do
altar, os fiéis que participam do coral se posicionam para cantar os hinos. Para maior interação
dos fiéis, slides com as letras dos hinos e imagens que remetem à mensagem dos hinos são
projetados em uma parede acima do altar. Não há qualquer imagem de santos e nem qualquer
outra imagem, nem mesmo uma cruz. O que há é uma pequena placa, ao lado do altar, com o
logo da CCNE, com os dizeres “Uma Igreja que Acolhe a Diversidade Humana”.

1658
O ambiente é bastante acolhedor. Como todos os fiéis se conhecem pelos nomes, os membros
se cumprimentam com bastante intimidade e, ao perceberem a presença de um novo fiel,
aproximam-se e oferecem boas vindas calorosas, café e água, antes do início do culto e ao
final dele. Apesar de a igreja ser formada, em sua maioria, por homossexuais, parece não
haver discriminação por parte deles em relação aos heterossexuais, já que pude perceber que
eu era a única pessoa de orientação heterossexual. O tratamento que recebi, por ser
heterossexual, não se modificou durante todas as visitas à igreja.

Os fiéis também são, em sua maioria, homens e jovens. Em alguns cultos, havia uma criança
que acompanhava sua avó. O culto é acompanhado por, aproximadamente, 50 pessoas. A
maioria se acomoda em assentos, enquanto o restante permanece atrás deles, em pé. Essa
configuração se mantém na maior parte dos cultos, com pouca variação na quantidade de
fiéis.

A CCNE realiza três cultos por semana, todos à noite, além de oferecer ministérios de canto,
dança, teatro, que visam louvar a Deus, e ter uma biblioteca com livros direcionados ao uso e
interpretação da Bíblia. Há apenas um pastor, mas, esporadicamente, pastores de outras
comunidades inclusivas são convidados para pregar nos cultos, como foi o caso da minha
primeira visita à igreja. Além disso, há bastante participação dos fiéis nos cultos, por meio de
depoimentos e participação nos rituais, por exemplo, o dízimo.

O culto é iniciado com hinos, que apresentam, em alguns casos, letras que demonstram o
caráter inclusivo dessa comunidade, enquanto um fiel ou mesmo o pastor fazem a abertura do
culto com orações e pedidos a Deus. Após esse momento, um fiel, previamente escolhido, vai
até o púlpito e incentiva as pessoas a contribuírem com o dízimo, por meio de depoimentos
que revelam a influência positiva que a religião exerceu em sua vida. Da segunda vez em que
estive lá, quem realizou esta atividade foi uma frequentadora da comunidade, que tinha traços
masculinos em termos biológicos, mas que estava vestida como mulher e tinha expressão
corporal feminina. Ela não fez nenhum relato que comprovasse a influência positiva que a
participação no dízimo tinha trazido à sua vida, apenas afirmou que quem sabe da sua história,
percebe o bem que a contribuição causou.

Disso se segue mais um hino, que geralmente é escolhido por esse fiel. O culto segue com a
leitura de um trecho da Bíblia sugerido pelo pastor, ele desenvolve um diálogo sobre esse
trecho que, em uma das minhas visitas, fazia referência à diferença dos relatos dos apóstolos

1659
Mateus, Marcos, Lucas e João a respeito dos homens que foram crucificados junto a Cristo.
Ao final, todos se cumprimentam, desejando bençãos. Todo o culto é rodeado por muita
emoção.

Em uma de minhas visitas, aconteceu um ritual que simboliza a Última Ceia de Jesus. Após a
leitura da Bíblia, próximo ao final do culto, juntos, todos comem um pedaço de pão, que
simboliza a carne de Jesus, e tomam um pequeno cálice de suco de uva, que representa o
sangue de Cristo. Esse ritual da Santa Ceia é idêntico ao praticado nas outras igrejas
tradicionais evangélicas/protestantes.

Em minhas últimas visitas, que ocorriam às terças-feiras, ocorreu uma campanha denominada
Voltar a Respirar, que tinha como intuito incentivar os fiéis a orar por outras pessoas e, se
possível, trazê-las fisicamente à igreja. A princípio, foram distribuídos pequenos sacos com
alguns feijões dentro. Os fiéis deveriam orar por uma semana, a fim de identificar quais
pessoas deveriam receber essas preces. Após essa semana, os feijões foram plantados e seu
crescimento simbolizaria a influência da fé na vida dessas pessoas.

Os cultos de terça-feira tiveram sua configuração alterada e passaram a ser dedicados a essa
campanha. No início, houve pequenas apresentações de teatro, que visavam demonstrar que o
indivíduo deve resistir às tentações terrenas – dinheiro, fama, promiscuidade – para que possa
conhecer uma vida de vitória com Deus. Após esse momento, hinos eram cantados e o culto
voltava à configuração habitual.

A Bíblia é a mesma usada em igrejas evangélicas tradicionais e não tradicionais. O discurso


não tende a ser voltado exclusivamente para homossexuais. Os principais pontos abordados
relatam que os fiéis devem perdoar todos aqueles que, de alguma forma, os tratam de forma
preconceituosa, como os personagens das histórias bíblicas. Além disso, ressaltam alguns
trechos que incitam ao amor e à aceitação de Deus perante a orientação sexual dos fiéis. O
discurso se aproxima mais da questão sexual quando se lê trechos em que se mostram
exemplos de personagens bíblicos, que vencem a recriminação e as dificuldades impostas pela
sociedade, obtendo a vitória apenas por confiar no amor de Deus, como é o caso de Noé, que
teve seu primeiro filho aos 100 anos, graças à confiança na palavra de Deus.

1660
Capítulo 3 – Análise

1. Religião e aceitação sexual e religiosa

A religião tem uma influência muito grande na criação e no desenvolvimento de conceitos e


noções que o indivíduo tem sobre o mundo e sobre si mesmo, “seja por força dos dogmas ou
simplesmente por padrões morais aos quais os fiéis se engajam formando identidade do
grupo” (JESUS, 2010, p. 134). Sendo assim, a educação religiosa é muito importante na
formação da noção de sexualidade.

As religiões mais tradicionais tendem a excluir e a marginalizar indivíduos com orientação


sexual dissonante da heterossexualidade, como já afirmado acima. Sobre isso, um
entrevistado aponta que “ninguém quer os homossexuais (…) muito pelo contrário, excluem,
jogam pra fora” (JOÃO, 50 anos).

Muitos fiéis, que hoje frequentam a Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE), tem família
religiosa, muitas vezes em vertentes evangélicas tradicionais. Esse aspecto faz com que o
homossexual tenha maior dificuldade em aceitar sua sexualidade e sentir-se confortável
consigo mesmo, levando-o a adotar condutas que camuflem sua orientação, como é o caso de
um dos entrevistados, que afirma que “tinha que namorar [uma mulher] pra parecer pra
família que eu era heterossexual” (SAULO, 24 anos).

Além disso, um ambiente em que os homossexuais são submetidos a uma posição de


pecadores, faz com que o indivíduo tenha medo de expressar sua religiosidade. Vejamos o
que diz um dos entrevistados:

“E você querendo adorá, você tem toda aquela espiritualidade, todo aquele amor por Deus,
querendo expressar esse amor e você não consegue porque todo mundo te diz que é errado
e você se sente errado” (JOÃO, 50 anos).

Nesse aspecto, a CCNE traz para o fiel a legitimidade religiosa que ele não encontra em
outras vertentes tradicionais e mesmo nas mais recentes neopentecostais. Por desenvolver
uma hermenêutica que prioriza a evangelização do homossexual, essa igreja inclusiva faz com
que o estigma colocado sobre a sexualidade se desfaça, mostrando um Deus que busca fiéis
pelo que eles são como pessoas, sem distinguir a opção sexual. Confirmando essa
característica, uma fiel aponta que “a palavra de Deus fala (…) que ele não vê como homem,
ele vê o coração, não nossas vestes ou nossa opção sexual” (SALETE, 30 anos).

1661
A legitimidade sexual é concomitante à legitimidade religiosa entre os adeptos da CCNE, de
modo a não exigir do indivíduo uma postura que esconda ou suprima sua sexualidade.
Segundo Natividade, “é possível dizer que uma percepção sociológica das sexualidades se
difundiu, (…) pluralizando discursos e instituindo novas zonas de legitimidade e
ilegitimidade” (NATIVIDADE, 2010, p. 92). Todos os entrevistados responderam que se
sentem mais livres e acolhidos dentro da comunidade inclusiva no que tange à vivência da
sexualidade. Apesar desse aspecto acolhedor, a noção de religião que apresenta uma
sexualidade normativa – a heterossexualidade – parece não desaparecer das noções simbólicas
sobre o sagrado para o indivíduo que faz parte dessas igrejas inclusivas. Pode-se observar
isso no depoimento de um fiel:

Nos primeiros três meses, (…) não consegui dar liberdade pro Espírito Santo de Deus, não
consegui sentir Deus aqui neste lugar (…) de passar tantos anos em uma igreja onde falava
“não, não pode”, “gay vai pro inferno”, “você tem que mudar, tem que pedir pra Deus a
libertação”. (...) Eu tava apavorado quando eu tava aqui (SAULO, 24 anos).

O trabalho feito pela comunidade, em especial pela liderança da igreja inclusiva CCNE, é
possibilitar uma alternativa em relação à forma como os fiéis acham que Deus os vê. Segundo
um dos entrevistados, “Deus tá pouco se importando com isso (orientação sexual), né? Porque
o maior de todos os mandamentos é adorar a Deus sobre todas as coisas, com toda tua força,
com todo o teu entendimento e somente a Deus” (JOÃO, 50 anos). Esse ensinamento

(...) compreende uma pedagogia da aceitação, ensejando processos de elevação da


autoestima e fornecendo subsídio para que gays e lésbicas possam efetuar a passagem entre
uma percepção negativa de si à identidade de um gay evangélico (NATIVIDADE;
OLIVEIRA, 2009, p. 140).

O que se pode ver, pelos depoimentos, é que a igreja inclusiva CCNE enfatiza o amor divino
como algo que se sobrepõe às escolhas humanas e à própria conduta dos fiéis. Dessa maneira,
a opção sexual torna-se descentrada na teologia desse grupo e aparece como uma
naturalização da sexualidade humana, sem que seja espiritualizada e nem vista como uma das
características do ser cristão. Tratada como algo periférico na conduta do fiel, a sexualidade
passa a ser um dado que não influencia a relação do indivíduo com o sagrado, ao mesmo
tempo em que, despida da noção de pecado, tem um espaço de liberdade para, dessa forma,
compatibilizar-se com os ideais cristãos de adesão religiosa.

1662
2. Condutas sobre sexualidade e vida social

A CCNE tem, em sua doutrina, uma conduta diferente das igrejas evangélicas tradicionais,
“prega a conciliação entre uma orientação sexual dissonante da norma da heterossexualidade
e o exercício da vida religiosa” (NATIVIDADE, 2010, p. 90). O sexo é visto como “não só
uma troca de prazer, mas deixar de ser dois pra ser um” (MATEUS, 22 anos). Dessa maneira,
substitui-se a noção do quem e como se exerce a sexualidade pela noção cristã de
complementaridade e de união, sem distinção de gênero.

A relação sexual não é proibida desde que aconteça dentro de um relacionamento estável e,
de preferência, com um membro de igrejas inclusivas. Essa preferência por membros ou pelas
relações endogâmicas pode apresentar dificuldades para alguns fiéis. Sobre esse aspecto, uma
das entrevistadas afirma que “sexo sem amor é pecado. Infelizmente, é assim que a gente tem
nossa orientação” (SALETE, 30 anos).

Esse tipo de preferência por relacionamentos estáveis entre membros da comunidade


apresenta duas vertentes. A princípio, pode ser considerada como uma forma de arrebatar
mais fiéis. Mas, além disso, pode se mostrar como uma forma de forçar os fiéis a
desenvolverem um tipo de relacionamento com várias restrições, de outra natureza, ou seja, a
conduta esperada de um frequentador dessa igreja.

Curiosamente, um dos entrevistados coloca o sexo como uma forma de prazer e diversão, que
só pode ser obtida por meio do amor: “Deus fez o sexo pra gente aproveitá! (entre risos) Se
não fosse pra ser bom, não teria prazer, não seria gostoso, né?” (JOÃO, 50 anos).

Observa-se, então, uma forma de liberdade e prazer controlada, em que o indivíduo pode
viver sua sexualidade desde que corresponda às expectativas da orientação recebida na igreja.
Isso demonstra que, embora as igrejas inclusivas abram espaço para outras formas de
sexualidade, há regras, interditos e normas que norteiam essas outras formas, o que reafirma o
fato de que a sexualidade, embora descentrada, num primeiro momento, no que tange à
relação com o sagrado, volta ao centro refeita, remodelada e que deve se adequar a outras
regras, muitas vezes as tradicionais encontradas nas vertentes religiosas das quais vieram uma
boa parte dos adeptos das igrejas inclusivas. Uma sexualidade alternativa é fundante de uma
nova maneira de relacionar-se com o sobrenatural, embora os valores tradicionais emerjam
fortemente no formato de como essa sexualidade alternativa deve ser vivenciada pelo adepto.

1663
3. Reação externa à CCNE

Sobre a reação de grupos externos à CCNE, a principal ideia que se tem é a de que os fiéis são
vistos como pecadores, sendo julgados pelas pessoas que não estão inseridas na comunidade.
Como apresentado por um dos entrevistados, o julgamento e as críticas normalmente vem de
outros grupos religiosos, como demonstrado no trecho: “Os religiosos, no entanto, eles não
aceitam e não respeitam e te julgam, né?” (JOÃO, 50 anos).

É interessante perceber nessa fala, a de João, que os religiosos são os tradicionais, aqueles
que, de uma certa maneira, ainda possuem o monopólio do sagrado e de seus dogmas. Assim,
esse grupo parece se opor, paradoxalmente, à noção do religioso e assume a identidade do
outro, do não-religioso, não como um grupo que não busca uma relação intensa com o
sagrado, mas que a busca de uma maneira alternativa e opositora às tradições do religioso.

Entre os entrevistados, há também a presença de críticas de familiares, como afirma Saulo (24
anos) no trecho: “minha irmã mesmo disse que essa igreja onde eu tô é lugar de
endemoniados, que não é lugar de Deus, pelo fato de ela já ser da outra igreja (...) tradicional”
(SAULO, 24 anos).

A comunidade também já sofreu o ataque de uma emissora de televisão, que filmou um culto
sem a permissão dos fiéis e dos responsáveis pela igreja e passou em rede nacional, no intuito
de ridicularizar e inferiorizar os fiéis e a igreja. Segundo os entrevistados, esse foi o único
ataque direto que o grupo já sofreu.

Há, porém, uma visão que destoa das que indicam o julgamento e a crítica como sendo o
principal aspecto da reação de indivíduos externos à comunidade, como afirma Mateus (22
anos) no trecho:

(...) ultimamente, alguns pensam que é loucura. Mas, para outros, também é uma forma de
buscar a Deus e não estar no meio do mundo, se prostituindo, se drogando. Mesmo sendo
um homossexual, eu estou na casa do senhor, adorando ao senhor e levando minha vida
íntima com Deus (MATEUS, 22 anos).

Apesar de tantas reações negativas, é possível observar que sua fé na ideia de que Deus
legitima essa prática se sobrepõe às reações externas, como apontado por um entrevistado que
afirma que “eu sei que, pra religiosos, eu nem pastor sou. (…) Eu to... pouco me importando

1664
com eles. Como eu te falei, eu tenho a minha experiência com Deus e eu sei que Deus me
aceita. Então, isso pra mim é o suficiente” (JOÃO, 50 anos).

A fala de Mateus, acima, aponta, também, que há a ideia de que apesar ou mesmo sendo
homossexual o adepto da CCNE sente-se como um indivíduo que vence essas barreiras para
aproximar-se do divino. Nesse discurso, parece ficar clara a contraposição ao discurso
tradicional, mas, ao mesmo, tempo, utilizar-se dele para legitimar uma relação com o divino
que ultrapassa as mazelas dos que vivem no mundo. Ao dizer que poderia “estar se
prostituindo, se drogando”, Mateus dá-nos uma pista sobre como esses fiéis se veem: como
aqueles que vencem as tentações, inclusive as que se aproximam do status de ser
homossexual, para ter uma relação com o sobrenatural que é, segundo a fala desses adeptos,
representado pelo mesmo Deus das igrejas de vertente evangélica tradicional.

Ainda, pode-se perceber que a homossexualidade é limpa, purificada de outras práticas


frequentemente associadas a ela, como a drogadição e a promiscuidade, procurando
“estabelecer parâmetros, a serem seguidos por gays e lésbicas, que demarcassem os domínios
de uma vida cristã” (NATIVIDADE, 2010, p. 103). Dessa maneira, a homossexualidade, nos
moldes das regras da CCNE, passa a ser algo natural e sem uma necessária interrupção ou
obstacularização da relação com o divino.

4. A CCNE e as mudanças na vida dos fiéis

A inserção do indivíduo não apenas no espaço físico da igreja, mas também na comunidade
formada por ela, traz mudanças muito profundas à vida dos fiéis. Alguns relatam mudanças de
amizades, de condutas, de lugares que frequentam e da forma como lidam com a sua
sexualidade.

Um dos nossos entrevistados afirma que a CCNE mudou sua vida no sentido comportamental:
“eu criei maturidade, que eu não tinha” (LUCAS, 18 anos). Esse mesmo entrevistado afirma,
em outros trechos, que costumava frequentar baladas, ou seja, um ambiente que, na visão
religiosa, remete à promiscuidade e a relacionamentos pouco estáveis. Assim, pode-se
observar que a mudança citada pelo fiel traz uma questão de amadurecimento espiritual no
que se refere ao tratamento do próprio corpo e da própria sexualidade.

1665
Mateus (22 anos) aborda uma outra mudança como sendo a principal: “eu sempre relutava
contra isso (orientação sexual) e me julgava e devido aos encargos e ao trabalho em outros
ministérios (internos à igreja, como coral), (…) aqui me fez enxergar de uma forma diferente
o amor de Deus”. Nesse caso, a mudança ocorrida foi interna, no sentido de mostrar ao
próprio indivíduo que suas práticas são legítimas, o que não se desvincula da relação externa
com a comunidade e nem mesmo da dimensão mais externa, que é a da relação com outras
comunidades evangélicas.

Uma das entrevistadas coloca ainda que a mudança principal não se dá por uma questão
institucional, de frequência aos cultos, mas “mais pela conversão de aceitar Jesus Cristo,
entender o caminho de Deus e começar uma vida nova seguindo a Jesus” (SALETE, 30 anos).
Vê-se um discurso desses fiéis idêntico aos discurso dos evangélicos tradicionais. A
diferença, que muitas vezes é banida do próprio discurso e da visão religiosa desses adeptos, é
a forma de lidar com a sexualidade, com o corpo, muito embora haja também regras e
interditos claros para o exercício dessa sexualidade alternativa para o homossexual cristão.

Considerações finais

A partir dos dados obtidos, procurei apresentar como adeptos de uma igreja inclusiva pensam
sua espiritualidade e sexualidade diante do padrão de legitimidade religiosa cristã. Apesar de
aceitar e compatibilizar a homossexualidade, a igreja apresenta muitas similaridades com as
igrejas tradicionais, como os rituais e a forma como o sermão acontece, bem como um rol de
regras e interditos de como a sexualidade deve ser vivenciada.

O efeito que a religião tem na vida desses fiéis se reflete, principalmente, na aceitação de sua
sexualidade, como apresentado nas análises, mas também se dá em aspectos comportamentais
e sociais, há uma “constante preocupação em dissociar o ambiente religioso de formas de
sociabilidade que implicassem comportamentos percebidos como “promíscuos”
(NATIVIDADE, 2010, p. 103). Além disso, a igreja oferece serviços de aconselhamento e
palestras que guiam as pessoas no sentido de orientar pelos caminhos da igreja e auxiliar em
aspectos pessoais da vida dos fiéis, oferecendo-lhes suporte de como compreender-se como
homossexuais que buscam uma relação institucionalizada com o sagrado.

1666
Devido a esses aspectos, além da fé, os fiéis passam a dividir aspectos da vida pessoal e as
amizades e outras manifestações sociais normalmente ficam concentradas a outros fiéis e
compromissos ligados à igreja. Todos os entrevistados apresentam um sentimento de orgulho
de pertencer a essa grupo que chamam de uma nova família. Esse grupo religioso, portanto,
parece ser o espaço para libertar-se da culpa da homossexualidade e para vivenciar, seguindo
o modelo tradicional de estrutura da fé cristã evangélica, uma relação com o sagrado despida,
paradoxalmente, da alusão à sexualidade. Assim, poderíamos dizer que, de certa maneira, o
fiel da CCNE experimenta uma relação com o sobrenatural desprovido de sua própria
sexualidade. Parece ser uma relação em que o fiel torna-se assexuado, em um momento, e,
ambiguamente, reafirma sua forma alternativa de vivenciar sua sexualidade alternativa à
heterossexualidade, em outro.

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1668
1669
Igrejas Inclusivas: novo movimento religioso ou mais uma igreja
cristã emergente?
Cosme Alexandre Ribeiro Moreira 1

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo apresentar e classificar as Igrejas Inclusivas, que
buscam desconstruir os traumas carregados pelos homossexuais, redefinindo a
homossexualidade e seu lugar na religião cristã, com fundamentação na Teologia Inclusiva,
para isso serão considerados os conceitos de Novos Movimentos Religiosos, Seitas e
Igrejas. Para a fundamentação deste trabalho, o primeiro capítulo analisará quais são as
origens do termo Novos Movimentos Religiosos, buscando apresentar definições e conceitos
que permitam uma identificação direta dos principais argumentos utilizados pelos
estudiosos do tema, para essa classificação. Nesse contexto apresentar-se-á como elemento
principal dessa nova conformação religiosa, a figura do líder carismático, com fator
decisivo para entender as causas que permitem a criação de movimentos religiosos com
características próprias e quais as consequências para o mundo religioso, diante de tantas
novas denominações religiosas que se apresentam invariavelmente como detentoras da
verdade divina.

O segundo capítulo tratará da história e formação de uma nova configuração religiosa que
tem demonstrado grande fôlego para crescer, ao menos no âmbito do público LGBT, que
professa ou professou uma religiosidade com bases nos princípios cristãos. Esse novo
sistema religioso cristão que reconhece a homossexualidade como uma apenas mais uma
forma de viver a sexualidade dada por Deus e por isso longe de ser considerada como
pecado, atrai adeptos que buscam uma vida religiosa nos fundamentos cristãos do amor
incondicional, sem a necessidade de abandonarem ou ocultarem suas preferências sexuais,
para que possam fazer parte de uma comunidade religiosa cristã, sem sofrerem quaisquer
tipos de discriminação, é parte integrante do seu sistema de captação e manutenção de seus
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP. Graduado em Ciências Jurídicas pela UNICID e em
Teologia pela UMESP. Pós-graduação "Lato sensu" em Direito Penal ESMP. Membro do GE de Gênero e
Religião, Mandrágora/NETMAL/UMESP, linhas de pesquisa Religião e Dinâmicas Sócio-Culturais. Servidor
Público Estadual. Bolsista CAPES/CNPQ, na modalidade Bolsa Flexibilizada. Contato:
arquivocosme@gmail.com.

1670
adeptos, aplicando a chamada Teologia Inclusiva fundamentada na Teologia da Libertação,
para dar voz às minorias sociais, também no âmbito religioso.

O terceiro capítulo como parte final deste trabalho discorrerá sobre as proximidades e
distanciamentos que as Igrejas Inclusivas possuem com os sistemas religiosos classificados
pelos estudiosos das Ciências da Religião, como igrejas, seitas e Novos Movimentos
Religiosos, buscando demonstrar de forma inequívoca que muitos elementos podem ser
considerados como inerentes a todos eles, demonstrando com isso que uma posição
religiosa “puro sangue” é quase impossível de ser concebida, ao menos em se tratando de
religiões de vertente cristã evangélica.

Por último, nas considerações finais serão apresentadas algumas percepções a respeito das
Igrejas Inclusivas, enquanto movimento religioso ligado diretamente à causa LGBT. Nesse
contexto, como religião pensada quase exclusivamente para atender às demandas de um
público específico, habitualmente possuindo visões e posições conflitantes com as demais
denominações cristãs evangélicas, porém possuindo momentos de conciliação com os
pensamentos cristãos predominantes. Essa complexidade permite uma visão ampla das
dificuldades enfrentadas por aqueles que dedicam suas vidas para entenderem como as
relações entre indivíduos são construídas a partir de uma necessidade intrínseca ao modo de
vida do homem antigo que permanece no homem moderno, a necessidade de fazer parte e
entender sua ligação com o transcendente que não consegue ver, mas pode sentir.

Novos movimentos religiosos: origens

A sociedade moderna não perdeu ao longo de sua evolução a necessidade de buscar


explicações para suas origens. Nessa busca ciência e religião possuem características
próprias no processo cognitivo, para desvendar os mistérios da natureza humana. O papel da
ciência nesse processo talvez seja o mais simplificado, uma vez que, na maior parte dos
fundamentos de seus fundamentos, não existem pontos de tensões entre seus atores sociais,
o que não ocorre nas religiões. Com fundamentações básicas muito diferentes entre si, as
religiões são respostas aos anseios espirituais do homem, não segundo uma premissa básica
e sim, de acordo com vários desejos e interpretações sobre de onde viemos e para onde
iremos. Nesse contexto, as religiões crescem e florescem, inovando conceitos, crenças e
atribuições ao ser humano, segundo a visão profética que seu líder recebe diretamente de

1671
Deus. Muitas se declaram como as verdadeiras religiões, outras convivem em “harmonia”
com as demais. Nesse universo religioso de múltiplas opções, em especial o caso brasileiro,
reconhecido por muitos como uma das nações mais religiosas do mundo, não pela
quantidade de pessoas religiosas, mas pela quantidade de religiões existentes no território
nacional.

Ao longo dos tempos, inúmeros movimentos religiosos surgem e desaparecem sem que sua
história seja objeto de pesquisas sérias e imparciais, para determinar sua classificação como
um Novo Movimento Religioso, ou se apenas mais uma cisão de movimentos existentes.
Desta forma muitos grupos religiosos não foram classificados adequadamente e por esta
razão, tem-se buscado ampliar os estudos a respeito do tema, em especial entender e situar
momentos e espaços específicos onde líderes carismáticos atuam e de que forma sua
mensagem, quase sempre apocalíptica, passa a fazer parte do imaginário popular. A origem
histórica do termo remonta à década de 1980, quando estudantes de sociologia e teologia
cunharam o termo para referir-se a quaisquer religiões não reconhecidas nas principais
correntes religiosas, em substituição ao termo seita que carregava intrinsecamente uma forte
conotação pejorativa, entretanto, o uso desses termos com significados específicos ainda
não é pacífico no meio acadêmico e por vezes ambos são utilizados para conceituar
religiões onde em tese, seus líderes estariam utilizando a fé das pessoas para manipulá-las e
explorá-las.

Conceituar Novos Movimentos Religiosos não é tarefa fácil, pois ao longo dos anos, os
termos seita, igreja e novos movimentos religiosos passaram quase que a qualidade de
sinônimos, uma vez que, a classificação sempre parte da vontade subjetiva do indivíduo que
está realizando a classificação e, desta forma seus desejos, anseios e interesses sejam eles
religiosos ou comerciais, sempre influenciam suas colocações. Entretanto, alguns estudiosos
do tema apresentam algumas características, que facilmente definem e podem ser utilizadas
para a elaboração de um conceito com fundamentação imparcial.

1. Origem fundada na contestação de algo que já existe; 2. Líder carismático e


paternalista que provoca nos membros confiança e submissão; 3. Os grupos são
conduzidos de forma vertical e totalitária; 4. A obediência ideal é cega e há um forte
controle grupal sobre cada integrante; [...] 8. Crença de que o grupo é o único fiel à
divindade e que os demais traíram suas origens, substituindo a verdade original por uma
mentira (teoria da caducidade dos demais grupos, seitas e religiões); 9. Eleicionismo e

1672
salvacionismo dos que fazem parte do grupo; [...] 14. Proselitismo compulsivo e
obrigatório (CAMPOS, 2002, p. 102-103).

Ao analisar as características do que se compreende por Novo Movimento Religioso nota-


se, a existência de uma fé fundamentada na crença absoluta de que a nova religião é na
verdade a única e verdadeira religião e que seu líder é o único com as verdadeiras
mensagens divinas que devem ser propagadas a todo custo para a conversão do maior
número possível de infiéis. Essas características tão duramente criticadas por estudiosos dos
movimentos religiosos, vistas como consequência da falta de bom senso, para dizer o
mínimo, sobre as pessoas que buscam respostas para situações do dia a dia, por meio de
explicações religiosas mirabolantes, estariam fadadas ao esquecimento com a evolução da
sociedade pós-moderna, ao que parece não aconteceu. O final do século XX na verdade
demonstrou um processo contrário: “Tais abordagens apontam o que seria o reverso,
denominado reencantamento do mundo, ou, ainda, a revanche de Deus”. (RODRIGUES,
2009, p. 46).

Analisar essas novas conformações religiosas como sendo apenas uma das formas que
indivíduos ou grupos sociais, se utilizam das explicações sobrenaturais para desvendar as
causas das mazelas sociais que atingem a humanidade é na verdade, simplificar a discussão,
desqualificando o discurso dos defensores dessa nova realidade religiosa.

Novos Movimentos Religiosos e a figura do líder religioso carismático

Todo movimento religioso possui seus líderes. Alguns previamente determinados pela
hereditariedade outros escolhidos por votação, outros por inconformismo. Como agentes
agregadores e formadores de opiniões, os líderes carismáticos possuem papel vital na
formação e propagação destes novos paradigmas religiosos, uma vez que, o carisma é fator
determinante para a formação e manutenção do grupo. Os líderes carismáticos,
invariavelmente, apresentam-se como portadores divinos das verdades absolutas, emanadas
diretamente da divindade. Como elo entre a humanidade e a divindade, o líder carismático
religioso geralmente se autodenomina ou é denominado por seus seguidores fiéis, como
filho das estrelas, o enviado, filho do sol, ou outros títulos que deixem bem claro sua
estreita relação com o divino. Estabelecendo sua liderança sobre as pessoas mais próximas
que fazem parte de seu círculo social, seus ideais ganham força e volume muito mais por

1673
sua capacidade de influenciar as pessoas, que propriamente pela coerência de suas ideias.
Diferente do religioso comum, o líder carismático que inicia seu próprio movimento
religioso, não costuma ser um religioso fervoroso, sendo muitas vezes, até mesmo avesso à
religião, até o momento em que recebe o “toque divino”. A capacidade de projeção de ideias
e pensamentos sobre as pessoas faz do líder carismático um dominador absoluto do espaço
em que são desenvolvidas suas estratégias e teorias religiosas.

Exceção à regra, alguns líderes religiosos possuem um histórico religioso bem vasto,
passando por diversas denominações religiosas. Esse tipo de líder carismático em geral,
acredita que os mandamentos divinos não estão sendo seguidos da maneira correta, o que os
leva em primeiro momento, a um enfrentamento com os líderes de sua religião e
posteriormente o rompimento total com o líder, porém muitas vezes, não com a instituição,
mantendo o nome da instituição com o adendo ao final, de expressões como renovada ou
simplesmente realizando modificações no posicionamento das expressões que formam o
nome religioso. Os Novos Movimentos Religiosos são possíveis pela necessidade do ser
humano em manter uma relação próxima com o sagrado e de preferência sem grandes
privações de sua vida material. Os líderes carismáticos captam com perfeição essa
transcendência do comportamento humano e fundamentam todas suas ações para cobrir
esses claros espirituais vividos pela sociedade.

Igrejas Inclusivas história e formação

O universo religioso brasileiro é vasto. O povo brasileiro reconhecido mundialmente como


um dos povos mais místicos do mundo é bombardeado com novas religiões que surgem
indiscriminadamente. Igrejas para lutadores, surfistas e outros praticantes de esportes
radicais, igrejas underground conhecidas e reconhecidas como exclusivas para evangélicos
punks, skinheads, headbangers, góticos e outras formas de cultura da nova geração que se
voltou para a religião, em especial a evangélica, sem a necessidade de abandonarem seu modo
de vida, demonstram com clareza como é difícil entender os sentimentos que levam os mais
variados grupos, que em tese, não deveriam fazer parte de grupos religiosos, muito menos,
ligado ao Cristianismo que originariamente exige de seus adeptos o rompimento total com
seus costumes mundanos, para que sejam eleitos para herdar o reino dos céus.

1674
O Brasil vive atualmente uma nova manifestação religiosa cristã, onde o álcool, o fumo, o
divórcio, sexo entre adolescentes, ou fora do sacramento do casamento, já não são vistos
como o sinal dos tempos ou uma incapacidade do indivíduo abandonar o mundo do pecado.
O exercício da sexualidade em especial tem sido objeto de muitos debates que envolvem
velhas e novas religiões de vertente cristã. O amor de Cristo que outrora era utilizado como
moeda de troca para o pecador conseguir viver uma nova vida, atualmente tem sido utilizado
como arma para a manutenção do status quo do novo convertido. Esse cenário nos traz a baila
à questão das Igrejas Inclusivas, conhecidas no cenário religioso nacional como Igrejas Gays,
por pregarem um evangelho de inclusão do público homoafetivo no cenário religioso cristão
que sempre alijou os homossexuais de uma participação efetiva no dia a dia das igrejas
cristãs.

A Igreja Inclusiva é novidade no cenário religioso brasileiro, dedicada a demonstrar que a


opção sexual não deve ser levada em conta, quando o assunto é apresentar o Deus amoroso,
que não faz acepção de pessoas, ou de sexualidades. Esse posicionamento é apresentado pelos
integrantes das Igrejas Inclusivas com o mesmo caráter revolucionário das intenções de
Cristo. A novidade das Igrejas Inclusivas não está fundamentada na inclusão de minorias
sociais, uma vez que, o Pentecostalismo nasce nos Estados Unidos com essa vertente,
concedendo voz a negros e mulheres em seu contexto religioso, sua novidade é a integração
de homossexuais a uma religião cristã. Caracterizada principalmente por sua nova forma de
analisar, assimilar e pregar os ensinamentos bíblicos, sua origem remonta à criação da Igreja
Comunidade Metropolitana na cidade de Los Angeles em 1968, pelo Reverendo Troy Perry.
Nos anos seguintes em razão de seu crescimento e expansão a ICM inicia um processo de
formulação de uma nova teologia, fundamentada nas raízes da Teologia da Libertação.
Fundamentada nesse novo paradigma teológico, onde a inclusão dos socialmente rejeitados é
seu objetivo maior, a ICM pode-se inferir, é responsável pelo termo Teologia Inclusiva, que
caracteriza as Igrejas Inclusivas. Seu embrião gerou muitos frutos em terras brasileiras e
atualmente existem inúmeras comunidades eclesiásticas voltadas à inserção religiosa cristã do
público LGBTT, havendo, contudo, uma rejeição ao estereótipo de que são igrejas
essencialmente destinadas apenas aos homossexuais, ainda que intrinsecamente estejam
ligadas à causa homossexual, proporcionando ferramentas importantes na luta pelos direitos
civis e sociais.

Conscientes de sua força junto aos homossexuais cristãos, as Igrejas Inclusivas tem
buscado, por meio de ações afirmativas, como acompanhamento pastoral e psicológico,

1675
desconstruir o muro que foi erigido entre homossexualidade e espiritualidade cristã,
utilizando-se muitas vezes, dos próprios textos bíblicos que são utilizados para condenar a
homossexualidade, realizando uma releitura teleológica-inclusiva desses textos. O amor
ágape praticado e pregado por Cristo é a todo o momento evocado como instrumento
justificador da possibilidade de uma vivência religiosa cristã, sem a necessidade do
abandono da homossexualidade. A utilização de frases de impacto e efeito proporciona a
fixação do pensamento em seus membros e visitantes, construindo uma forma toda nova de
ver, ouvir e sentir o texto bíblico. Venha como está, Deus te ama como você é, o seu amor
não é pecado, Cristo não faz acepção de pessoas, são frases repetidas a todo o momento,
sejam nas reuniões oficiais, nos cultos e conversas entre amigos. Essa nova visão teológica
e as técnicas utilizadas para angariar novos adeptos e manter aqueles que se entregaram a
essa nova experiência religiosa, possuem grande relação com os métodos utilizados pelos
Novos Movimentos Religiosos para seu crescimento. O trabalho psicológico de
desconstrução dos paradigmas religiosos que condenam a homossexualidade, bem como a
autoafirmação da homossexualidade como apenas mais uma maneira de viver a sexualidade,
são características que definem com precisão as Igrejas Inclusivas e possibilitam sua
conceituação. “Igreja Inclusiva é o termo êmico e controverso pelo qual se designam essas
igrejas, que em geral podem ser definidas por compatibilizar sexualidades não
heterossexuais e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas” (WEISS DE JESUS,
2010, pg. 132).

Teologia Inclusiva

O universo religioso sempre esteve permeado por inúmeras crenças e formas de viver a fé.
Entretanto, discutir Teologia trazia uma carga intrínseca compreendida apenas como o
estudo da palavra do Deus cristão. Quaisquer outras teologias que fossem debatidas, de
imediato eram apresentadas como heresias, isso mudou. No meio acadêmico moderno não
se fala mais em estudo da Teologia, e sim, das Teologias. Assim, foi possível o estudo de
novos deuses, quebrando a hegemonia existente até então. Cada religião institucionalizada
possui seus fundamentos teológicos e a Teologia Inclusiva apresenta novos fundamentos do
Deus cristão, de acordo com as convicções de seus líderes. Como ciência a Teologia
Inclusiva é ignorada por muitos apesar de já contar com mais de quarenta anos de
existência. Dentre os vários conceitos a respeito do tema, pode-se inferir que Teologia

1676
Inclusiva é uma proposta de releitura dos textos sagrados, em especial a Bíblia Cristã,
surgida a partir e com fundamentação na Teologia da Libertação, que busca a inserção das
minorias sociais em todos os aspectos do cotidiano social, inclusive no religioso.

A Teologia Inclusiva, como a própria denominação sugere, é um ramo da teologia tradicional voltado para a
inclusão, prioritariamente, das categorias socialmente estigmatizadas como os negros, as mulheres e os
homossexuais. Seu pilar central encontra-se no amor de Deus pelo homem, amor que, embora eterno e
incondicional, foi negado pelo discurso religioso ao longo de vários séculos. (FEITOSA, 2010, p. 13 -14).

Como se pode notar o a inclusão de todas as pessoas no cotidiano social é o principal


argumento da Teologia Inclusiva, atrelado ao fundamento bíblico de que o amor de Deus é
incondicional e que não se pode discriminar as pessoas por suas opções sexuais, classes
sociais.

A Teologia Inclusiva como forma específica de inserção religiosa cristã, demonstra muito
comprometimento com os movimentos LGBT, abrindo espaço para que o público
homoafetivo possa apresentar-se como ator social pleno, atuando em todos os aspectos do
culto, desde a membresia à liderança, sem quaisquer óbices na ocupação dos cargos mais
elevados.

As comunidades inclusivas configuram-se como espaços de inserção de gays e lésbicas,


promovendo a participação, efetiva e plena, dessa minoria como sujeitos agentes e
articuladores da dinâmica corporal da Igreja, com palavra e reconhecimento a partir de
suas experiências e histórias, única possibilidade de dar à luz uma teologia adequada às
suas realidades existenciais (FEITOSA, 2011, p. 25-26).

Como forma de oposição à política discriminatória praticada contra os homossexuais no


âmbito religioso, a Teologia Inclusiva demonstra grande força para manter coesa a
população LGBT Cristã, em torno dos ideais.

Igrejas Inclusivas: classificação

Toda e qualquer forma de classificação está fundamentada em primeiro momento em


questões ligadas aos interesses de grupos previamente determinados a respeito do tema. As
classificações em causa própria são vistas como espúrias, pois, trazem em seu cerne,
somente as qualidades do grupo ou movimento, não possuindo a imparcialidade necessária
para ser validada. O mesmo acontece com a parte adversa que frequentemente apresenta as

1677
falhas do grupo ou movimento que são contrários, demonstrando que suas construções estão
fundamentadas não em hipóteses válidas ou pesquisas que demonstrem uma construção
sólida e sem reservas de seu pensamento, e sim, em pré-conceitos carregados de
preconceitos. A análise imparcial dos temas sociais é absolutamente necessária para que
seja considerada válida e agregadora de conhecimentos. No tema em questão, a análise
realizada por cientistas sociais que estudam os fenômenos religiosos são a base para
delimitar a classificação das Igrejas Inclusivas no universo religioso cristão, em meio à
sociedade moderna sedenta de líderes que lhes mostrem o caminho da salvação, seguindo
parâmetros pré-estabelecidos cientificamente.

Por muito tempo os conceitos de igreja, seita e novo movimento religioso têm sido bastante
debatidos e por vezes não se chega a um denominador comum a respeito do assunto,
entretanto, os estudiosos que se debruçam sobre o tema religião não poupam esforços para
apresentarem conceitos que mesmo não conseguindo plena aceitação das partes envolvidas,
ao menos demonstram um caminho possível. Iniciar a análise pelos institutos mais antigos
no campo religioso brasileiro parece à decisão mais acertada.

[...] os especialistas em sociologia da religião têm usado a palavra “igreja” para designar
uma “instituição que foi, como resultado da obra de redenção, dotada de graça e
salvação” e que pode “receber as massas, e ajustar-se ao mundo”; enquanto “seita” se
aplica aquela “instituição formada de voluntários, composta de crentes cristãos, rigorosos
e explícitos, unidos entre si pelo fato de todos terem experimentado o novo nascimento
(CAMPOS, 2002, p. 99).

Como se pode notar, o termo igreja é reconhecido como uma instituição religiosa que
conseguiu adaptar-se e ajustar-se ao mundo, como forma do exercício do proselitismo e ao
mesmo tempo acenando aos seus adeptos a necessidade do mundo religioso evoluir de
acordo com a sociedade que a envolve e permeia. O termo seita em contrapartida apresenta
uma instituição que não se adapta aos padrões existentes no mundo, isolando-se ao máximo
e fechando-se em si mesma, como forma de manter padrões morais e religiosos, que não
seria possível se fosse aberta ao convívio de forma pacífica com elementos contrários a seus
posicionamentos. Os conceitos utilizados pelo meio acadêmico, apesar de demonstrarem
coerência, não costumam ser utilizados pelos religiosos que em geral, consideram suas
instituições igrejas e as demais como seitas. Nesse contexto essas instituições se aproximam
e muito do conceito de novos movimentos religiosos, que advogam serem os únicos
detentores da verdade divina considerando os demais ramos religiosos, ainda que sejam do

1678
mesmo tronco ancestral, como infiéis que deixaram de lado a verdadeira religião por
realizarem concessões para manterem ou atraírem novos adeptos.

As cerimônias religiosas realizadas nas Igrejas Inclusivas situadas na cidade de São Paulo
demonstra se não um sincretismo religioso ao menos uma mescla litúrgica, com músicas
ritmadas, danças, estudos bíblicos, orações que envolvem elementos das Igrejas Protestantes
Tradicionais e Evangélicas. Observa-se com muita nitidez nesse novo espaço religioso, uma
nova forma de interpretar os ensinamentos básicos da vida cristã, com ressignificações não
somente dos textos bíblicos, mas, de forma muito mais ampla a toda a vida religiosa da
comunidade. Nesse aspecto as Igrejas Inclusivas se assemelham muito ao conceito de
Igreja, uma vez que, estão em perfeita sincronia com o mundo secular moderno, em especial
no tratamento dado às questões sobre a homossexualidade, como totalmente compatível
com a fé cristã segundo os ensinamentos de Jesus Cristo. Esse posicionamento sobre a
questão cristã e a homossexualidade serem ou não compatíveis aproximam as Igrejas
Inclusivas dos conceitos aplicados aos Novos Movimentos Religiosos e as seitas.
Apresentando sua verdade sobre os enganos cometidos ao longo dos séculos por
denominações religiosas cristãs ao condenarem os homossexuais e seus comportamentos, as
Igrejas Inclusivas assumem o aspecto de únicos detentores da verdade divina, característica
primordial dos Novos Movimentos Religiosos e das seitas, entretanto, ao menos nas igrejas
visitadas, a figura do líder carismático que atrai multidões por seu carisma, não é presença
tão marcante, mas existe. Os adeptos dessa nova configuração religiosa aderem às Igrejas
Inclusivas, não apenas por sua ideologia e sim, como forma de se sentir aceito social-
religiosamente, agregando a isso um sentimento de pertença ao movimento que emite
respostas esperadas a perguntas previamente formuladas no consciente e subconsciente dos
grupos cristãos LGBT, a respeito de seus sentimentos, angústias, anseios, amores e
desilusões vividas por professarem uma fé que na verdade os excluía por serem diferentes.

Considerações finais

Analisar novas configurações religiosas para enquadrá-las em conceitos ou definições é


tarefa árdua. Toda análise deve primar pela imparcialidade e o pesquisador deve despir-se
de suas paixões para não contaminar seu trabalho com seus posicionamentos pessoais.
Conseguir essa imparcialidade quando o objeto de estudo envolve experimentação prática,

1679
não demonstra grande dificuldade, porém, na ausência da experimentação o que sobra nada
mais é do que o posicionamento subjetivo do pesquisador que se não for muito bem
aplicado e explicado, torna-se alvo de críticas duras e por vezes destrutivas. No caso em
questão, apesar de não ser possível a experimentação prática, muitos são os estudiosos a
respeito do tema e por isso, a subjetividade do autor já não é mais somente sua, fazendo
parte de um senso e consenso comum, o que viabiliza uma análise mais apurada com a
abordagem de diversas posições a respeito.

As Igrejas Inclusivas são novas realidades no mundo religioso cristão, que podem até ser
aceitas ou não, contudo, negar sua existência como um movimento cristão, uma vez que,
todo o desenvolvimento de suas atividades é fundamentado na Bíblia Sagrada e nos
ensinamentos de Jesus Cristo e dos Apóstolos, é no mínimo falta de bom senso. Negar pura
e simplesmente a existência de movimentos religiosos somente pelo fato de não seguirem
uma norma geral imposta pelas comunidades religiosas cristãs tradicionais, em especial às
evangélicas, é “tapar o sol com a peneira”. Os Novos Movimentos Religiosos não são
afetados por posicionamentos contrários a suas ideias e ideais, muito menos, pelo fato de
serem ignorados pelas religiões estabelecidas, sejam elas de quais vertentes forem. Diante
dessas considerações cabe uma análise das ações e reações provocadas pelas Igrejas
Inclusivas sejam por seus posicionamentos a respeito das demais igrejas cristãs, sejam por
suas doutrinas e fundamentos religiosos ou simplesmente pela liturgia utilizada em seus
templos.

Como característica principal dessa nova configuração religiosa, salta aos olhos o
posicionamento das Igrejas Inclusivas, como igrejas cristãs de características evangélicas
pentecostais, voltadas para os dons do espírito, curas divinas, campanhas para quebras de
maldições, curas interiores, retiros espirituais e Teologia da Prosperidade dentre outros,
elementos comuns e sempre presentes nas denominações evangélicas pentecostais.
Entretanto, a semelhança entre Igrejas Inclusivas e Igrejas Pentecostais, não vão além destes
elementos cúlticos, que por vezes, são mesclados com elementos dos ritos religiosos das
denominações Protestantes Tradicionais, com o uso de estola sacerdotal, colarinho
clergyman e divisão hierárquica nos moldes protestantes tradicionais. No que concerne às
doutrinas implementadas pelas Igrejas Inclusivas, o sistema religioso é bem diverso das
demais igrejas cristãs, sejam elas de vertentes evangélicas ou católicas. A principal
característica doutrinária apresentada por essa nova configuração religiosa, está
fundamentada no pensamento de que o pecado não pode ser imputado a comportamentos

1680
humanos relacionados ao exercício da sexualidade, seja ela qual for, pois acreditam que
toda forma de amor emana da criação divina, seja ela hetero ou homossexual. Contudo, para
algumas Igrejas Inclusivas, a homossexualidade praticada fora da segurança da igreja,
como por exemplo, nas casas de prostituição, são considerados profanos, devendo ser
evitados. Nesse contexto, a doutrina se aproxima das igrejas tradicionais, pois, o
relacionamento monogâmico é visto como princípio fundamental da ação de Cristo na vida
do indivíduo, afastando-o de comportamentos tidos como perniciosos como prostituição,
uso de drogas e promiscuidade.

Uma análise mais aprofundada demonstra ainda, que as Igrejas Inclusivas se aproximam dos
conceitos de seitas e de Novos Movimentos Religiosos, pois, acreditam ser donos da
verdade divina. Suas doutrinas fundamentando como único e grande pecado da humanidade
a falta de amor ao próximo, demonstra um afastamento das doutrinas das demais igrejas,
mas não somente delas e sim, da sociedade brasileira em geral, ainda com estrutura
patriarcal e machista. Outro fundamento que aparece em algumas das Igrejas Inclusivas
visitadas na cidade de São Paulo, que podem caracterizá-la como Novo Movimento
Religioso é a figura do líder carismático, ainda que em menor intensidade seja uma
realidade presente. Com discursos inflamados, que acariciam os egos de seus adeptos, os
líderes carismáticos das Igrejas Inclusivas invariavelmente, proferem palavras de ordem e
autoafirmação inflamando nos membros sentimentos de solidariedade mútua e aceitação de
sua homossexualidade como oriunda da vontade ou atos de Deus, despertando naqueles que
ainda não assumiram sua condição perante seus parentes e amigos, segurança e confiança
para fazê-lo.

Diante do quadro apresentado, verifica-se que as Igrejas Inclusivas englobam em suas


doutrinas e no seu cotidiano elementos correlatos às igrejas cristãs, às seitas e aos novos
movimentos religiosos. Com essa amplitude não é possível enquadrá-las em nenhuma das
três categorias analisadas de forma estanque. Agregando elementos tão variados e distintos
as Igrejas Inclusivas se apresentam como uma nova forma de pensar a religião cristã e, sob
todos os aspectos analisados, a classificação mais acertada é reconhecê-la como uma Igreja
Cristã Emergente, pois mesmo guardando relações com os demais conceitos, possui
elementos próprios e distintos que as caracterizam.

1681
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1684
1685
GT15 – (In)tolerância, gênero e religião
Coordenadoras

Maria José Fontelas Rosado Nunes Josefa Buendia Gómez


Doutora em Ciências da Religião pela Doutora em Literatura Espanhola e
PUC/SP. Professora na PUC/SP. Hispano-Americana pela USP. Professora
Pesquisadora do CNPQ. na Faculdade Sumaré.

Comentador/a

Breno Martins Campos Paula Leonardi


Doutor pela PUC/Camp. Doutora em Educação pela USP.
Professora na Universidade São Francisco.

Resumo

O Brasil tem sido considerado um país de fácil convivência entre diferentes, inclusive no
campo das religiões. Nos últimos anos, porém, à medida em que a sociedade se torna cada vez
mais plural em termos religiosos, temos assistido a manifestações públicas de intolerância.
Tais manifestações dão-se em um contexto político novo de investimento de setores religiosos
conservadores na sociedade e no Estado, seja disputando lugares de poder no Executivo, seja
conquistando espaços cada vez maiores no Parlamento ou ainda, ampliando as possibilidades
de incidência social pelo uso das mídias e do trabalho de assistência. A ampliação do poder
político desses grupos expressa-se, entre outros, nas tentativas de reverter avanços em relação
a direitos nos campos da sexualidade e da reprodução, afetando diretamente a população
LGBTTI e, particularmente, as mulheres. O GT propõe a discussão de questões que dizem
respeito às articulações entre liberdade religiosa, democracia e a efetivação dos direitos de
cidadania em um Estado constitucionalmente laico.

1686
Comunidades de terreiro: relatos da intolerância
Lucas de Deus da Silva1092

Introdução

O presente artigo tem por finalidade analisar alguns dados coletados através do questionário
aplicado durante a pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz Africana do Rio
de Janeiro”1093 realizada pela PUC/Rio, com o intuito de identificar a maneira pela qual a
intolerância religiosa se manifesta no Rio de Janeiro. Procura visibilizar as manifestações de
preconceito, discriminação e intolerância a que estão sujeitos os indivíduos praticantes das
religiões de matriz africana. Neste artigo, a partir de um recorte da pesquisa, iremos discutir
especificamente sobre os tipos de agressões ocorridas contra as religiões de matriz africana e
que desdobramento judicial estes ataques vem provocando dentro do universo estudado.

Os dados recolhidos pela pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz Africana
do Rio de Janeiro” correspondem a um universo de 847 casas mapeadas. A totalidade das
casas mapeadas não representa a quantidade absoluta existente no Rio de Janeiro e, por isso,
os dados e as reflexões decorrentes delas não tem o intuito de representar a variedade das
casas de religiões de matriz africana que compõem a região metropolitana. No entanto, os
dados produzidos a partir de uma análise qualitativa dialogam com a vasta literatura acerca da
temática da intolerância religiosa o que confere autenticidade a pesquisa.

Na medida em que os dados da pesquisa apontam a discriminação religiosa como algo


concreto tipificando as formas e os locais onde elas ocorrem, produz no imaginário social
uma ruptura da ideia de harmonia racial e social valorizadas na sociedade brasileira, deste
modo, traz à tona a necessidade do Estado de interferir nesse processo de perseguição. Dentro
dessa perspectiva, o intuito da pesquisa é potencializar a capacidade dos cidadãos adeptos as
religiões de matriz africana a reivindicarem políticas públicas específicas ao Estado que
combata o cerceamento da liberdade religiosa, garantindo desta maneira, o livre exercício a
liberdade religiosa. Sendo assim, o Estado estará objetivando os fundamentos prescritos na

1092
Graduando em Ciências Sociais pela PUC/RJ. Bolsista PIBIC/CNPq na pesquisa “Mapeamento das Casas de
Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro: Visibilidade e intolerância Religiosa”. Orientado pela Profa.
Dra. Sonia Maria Giacomini. Contato: dedeuslucas@yahoo.com.br
1093
A pesquisa é um projeto realizado pela PUC/RJ com financiamento do Governo Federal através da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Coordenadores do projeto: Profa. Dra. Sonia
Maria Giacomini, Profa. Dra. Denise Pini Rosalem da Fonseca e pelo Prof. Dr. Luiz Felipe Guanaes Rego.

1687
Constituição Federal de 1988, que em seu Artigo V, Inciso VI, afirma ser “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos
e garantida na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Breve histórico sobre as formas de legitimação das religiões no Brasil republicano

Desde o período da escravidão a população negra junto com todo o seu complexo cultural
fora tratada como seres inferiores, o negro, “na verdade, não era concebido como parte do
gênero humano; era considerado coisa, mercadoria” (SILVA, 2009, p.126). Num estudo
elaborado pelo Hédio Silva Jr em que ele se debruça sobre o aparato jurídico do escravismo é
possível averiguar, as “regras implícitas e explicitas enderaçadas ao controle e subjugação dos
africanos escravizados”. O autor traz a público algumas leis que visibilizam a sua afirmação,
tais como: “equiparava o escravo a animais e coisas (Tít. LXII), criminaliza a feitiçaria,
punindo o feiticeiro com a pena capital (Tít. III)” (SILVA JR, 2007, p. 305). Mesmo com a
abolição a população negra continuou sendo subjugada, sendo submetida aos piores postos de
trabalho, expropriadas das condições mais básicas de sobrevivência (PRANDI, 1996). No
entanto, com a instauração da República construiu-se no imaginário social brasileiro o “mito
da democracia racial” que segundo Carlos Hasenbalg, produz uma “ausência de preconceito e
discriminação racial e, consequentemente, oportunidades econômicas e sociais iguais para
brancos e negros” (HASENBALG, 1979 p. 242). O imaginário de harmonia racial destina-se
a socializar a totalidade da população de forma igual evitando áreas potenciais de conflito.
Uma vez a democracia racial sendo entendida como algo real, as manifestações de
preconceito passam a ser atribuídas a diferenças de classe (HASENBALG, 1979). Sendo
assim, a discriminação racial, o preconceito e a intolerância religiosa são encobertos pela
ideologia construída pelos grupos dominantes, pois, reiteram no país um sentimento de
igualdade inexistente. Segundo Marlise Silva, essas formas de pensar, ver e sentir o mundo
“determinam práticas sociais, tais como a violência, o preconceito, a discriminação etnorracial
e a religiosa” (SILVA, 2009, p 128).

No Brasil, o processo de laicização se inicia com o rompimento do Estado com a Igreja


Católica, formalizado com a promulgação da primeira Constituição republicana de 1891 que
aboliu o conceito de religião oficial. No que diz respeito à presença do religioso no espaço
público brasileiro, Emerson Giumbelli, contribui na reflexão sobre a intolerância religiosa ao

1688
fazer um panorama histórico sobre qual definição de religião o catolicismo, o espiritismo, os
cultos afro-brasileiros e as igrejas evangélicas, respectivamente foram legitimados. Segundo
ele, o debate acerca da liberdade religiosa no inicio do século XX não se debruçava sobre qual
religião teria liberdade, mas sim, qual liberdade desfrutaria a religião, cuja referência era a
Igreja Católica (GIUMBELLI, 2008). A conceitualização no que concerne a liberdade
religiosa estava sujeita a hierarquização das confissões religiosas em que a Igreja Católica
mantinha sua supremacia, gerando desigualdades religiosas desde o início da República
brasileira.

Numa conjuntura em que o código penal criminaliza a prática do “espiritismo” e a da “magia


e os seus sortilégios” (SILVA JR, 2007), os espíritas questionaram as práticas do Estado e
postularam suas práticas mediúnicas com a noção de religião, argumentando que suas práticas
tinham como meio e como fim a caridade e, portanto, exerciam o princípio inerente à religião.
Com efeito, embora seja a partir de então conferido o estatuto de religião aos cultos
mediúnicos, o contraste entre o tratamento dado aos espíritas e aos cultos afro-brasileiros pelo
Estado são inegáveis. A antropóloga Paula Monteiro analisa as concepções de transe no
espiritismo e nas religiões de matriz africana pela ciência e pela Igreja Católica que indicam
um dos motivos que ocasionam o tratamento diferenciado dado as religiões. Segundo ela, na
concepção científica o transe espírita era entendido como “resultante de processos
biopsicológicos universais estudados pelas ciências da mente”, e o transe ocorrido nas
religiões de matriz africana “era da ordem das patologias raciais” (MONTEIRO, 2006, p. 55).
Na concepção religiosa, o espiritismo atendia aos pobres e não evidenciava a intenção de
dolo, já as religiões afro-brasileiras estavam centradas em “possessão” e danças “diabólicas”
e, portanto, não podiam ser reconhecidas como crenças religiosas (MONTEIRO, 2006). Para
Monteiro, a percepção de transe, ocorrido durante cerimônias afro-brasileiras, como possessão
demoníaca está baseada na perspectiva eurocêntrica da Igreja Católica, “que contribuiu para a
condenação moral desse tipo deformado e invertido de transe” (MONTEIRO, 2006, p. 55).
Posto que a noção de religião estava acentada na ideia de caridade, Giumbelli, relata a ruptura
com essa perspectiva ocorrida por meio da inserção dos neopentecostais no campo religioso
brasileiro. Os neopentecostais trazem para esse cenário o “plano da prosperidade” que
ocasiona uma inversão do conceito de religião, “ao invés de doar, a religião pede”
(GIUMBELLI, 2008, p.9), ou seja, o princípio da caridade dar lugar à prosperidade,
rompendo assim, segundo o autor, com o vínculo entre pobreza, religião e tradicionalidade.

1689
Tolerância e intolerância religiosa

O princípio da liberdade religiosa surge em meio a um contexto europeu nos séculos XVI e
XVII em que a discriminações civis eram constantes, os Estados que possuíam uma religião
oficial passavam por conflitos rotineiros por vezes sangrentos (GIUMBELLI, 2003). Levando
em consideração que o reconhecimento enquanto expressão religiosa e sua respectiva
legitimação passaram por meios de dispositivos jurídicos diferentes, Giumbelli argumenta que
o princípio de liberdade religiosa foi uma resposta a esses conflitos

Vem associada a um certo modelo, tido como solução para essa situação problemática:
discriminações e conflitos cessariam a partir do momento em que Estado e igrejas fossem
autonomizados e em que a crença e a prática religiosas dependessem apenas da consciência
individual (GIUMBELLI, 2003, p. 76).

Este princípio está em total consonância com a democracia moderna que propõe a laicização
do Estado, igualdade das religiões perante a lei e garantia da diversidade religiosa. Além do
princípio da liberdade religiosa associar-se aos valores da democracia moderna ela está
prescrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião
ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou
coletivamente, em público ou em particular (Artigo 18 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos)

Não obstante a esses princípios verificamos uma bibliografia específica sobre os constantes
processos de intolerância religiosa que segundo Marlise Silva

É uma expressão que descreve atitudes fundadas em preconceitos e caracterizadas pela falta
de respeito às diferenças de credos religiosos práticados por terceiros, podendo resultar em
atos de discriminações violentas dirigidas a indivíduos específicos ou em atos de
perseguição religiosa, cujo alvo é a coletividade (SILVA, 2008, p. 128).

Ricardo Mariano, ao discorrer sobre o conceito de intolerância religiosa preocupa-se em


discernir esse conceito ao de discriminação religiosa. Segundo ele, pode um país ser tolerante
e mesmo assim produzir discriminação (MARIANO, 2007). Corroborando com o autor, há
num artigo escrito por Geraldo Rocha, alguns depoimentos de adeptos das religiões de matriz
africana na Baixada Fluminense, nos quais dialogam com o recorte apresentado por Mariano.

1690
Abaixo se encontram um desses relatos que se referem aos organismos públicos como
instituições que reproduzem atos de discriminação.

[...] existe uma discriminação institucional. Organismos como defensoria pública, polícia e
prefeitura afrontam e descriminam os terreiros na Baixada Fluminense. Alguns desses
órgãos colocam certas exigências para os terreiros existirem, que não são colocadas para as
igrejas das demais religiões. (ROCHA, 2011, p. 16).

Essas práticas contrariam os princípios basilares do serviço público que segundo Silva Jr,
“tem por obrigação legal valorizar uma cultura de paz, compreensão e respeito recíproco entre
os humanos, e não servir à intransigência e ao preconceito” (SILVA JR, 2009, p. 207).
Percebe-se, portanto, que a “a instauração de um regime de tolerância para diversos cultos não
é garantia da eliminação da discriminação legal” (BLANCARTE, 2003 apud MARIANO,
2007, p. 123). Igualmente, Norberto Bobbio em “A Era dos direitos” problematiza as noções
de tolerância e intolerância que para ele seriam ambíguas, pois, ambas podem ter sentido
negativo e positivo (BOBBIO, 1992). Segundo ele, estas noções podem ser interpretadas de
maneiras diferentes, de acordo com os contextos históricos e sociais. Em meio à
complexidade na definição dos conceitos de tolerância e intolerância religiosa, Norberto
Bobbio define tolerância como o “reconhecimento do igual direito a conviver, que é
reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se
considera depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos ao erro de boa-fé” (BOBBIO,
1992, p. 213). Intolerância, portanto, seria o não reconhecimento desses direitos. Segundo o
autor, as práticas de intolerância se baseiam na crença que religiosos possuem em serem
portadores da única verdade e consequentemente incumbidos por Deus a impor suas
convicções. Geraldo Rocha aponta mais duas possibilidades no que concernem as
dificuldades em reconhecer a liberdade religiosa, essas dificuldades estão ligadas ao
preconceito com relação às religiões de matriz africana e às práticas de proselitismo religioso
(ROCHA, 2011). A partir da reflexão do Bobbio, percebemos que as noções de tolerância
subjugam aquilo que é tolerado, criando assim, uma hierarquia valorativa das crenças
religiosas. Estes impasses da tolerância legitimam os discursos que as lideranças religiosas
das casas de matriz africana expressam ao afirmarem que não querem ser toleradas e sim
respeitadas, quando são indagadas sobre a intolerância religiosa no Brasil. Em texto

1691
produzido coletivamente por lideranças religiosas e apresentado na abertura da Plenária
Nacional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana,1094 definem intolerância religiosa como:

Expressão que não dá conta do grau de violência que incide sobre os territórios e
tradições de matriz africana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por
ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem
demonizadas e / ou reduzidas em sua dimensão real. Tolerância não é o que queremos,
exigimos sim respeito, dignidade e liberdade para SER e EXISTIR.

Esse discurso encontra expressão no texto do Zvi Yavetz em que ele “considerava injurioso
tolerar alguém e achava que a verdadeira virtude estava em reconhecer e respeitar o outro”
(YAVETZ, 1992, apud MARIANO, 2007, p. 125).

O neopentecostalismo e as religiões de matriz africana

O movimento neopentecostal é reconhecido como a terceira fase do pentecostalismo, e


assume o caráter de novo pentecostalismo, pois, enfatiza em áreas até então pouco
valorizadas, assumindo características específicas. Vagner Gonçalves da Silva indica
algumas dessas características do neopentecostalismo como, a ênfase na teologia da
libertação, a organização a partir de uma lógica empresarial, o uso da mídia em prol do
proselitismo em massa e a centralidade na “batalha espiritual” contra as outras religiões,
sobretudo, as de matriz africana (SILVA, 2007).

Conforme apresentado por diversos estudiosos do campo religioso brasileiro, a expansão


evangélica no Brasil não só aumentou o número de religiosos adeptos do neopentecostalismo,
como também, os casos de intolerância religiosa praticados contra as religiões de matriz
africana tornaram-se mais episódicas (ORO, 2007; SILVA, 2007; SILVA JR, 2009). Na
história de perseguição aos cultos afro-brasileiros, os neopentecostais são os agentes
antagônicos mais empenhados em desqualificá-los. Segundo o Bispo Macedo – líder da Igreja
Universal do Reino de Deus – “a Umbanda, Quimbanda, Candomblé e o espiritismo de um
modo geral, são os principais canais de atuação dos demônios” (MACEDO, 1987, apud,
ORO, 2007, p. 42). A “demonização” das religiões de matriz africana não é um fenômeno
recente no cristianismo, entretanto, há um acirramento da doutrina da “batalha espiritual” na

1094
Divulgado no mês de julho de 2013, na III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial –
CONAPIR.

1692
teologia neopentecostal. Vagner da Silva recorda do livro “Mãe de Santo” publicado pelo
fundador da Igreja pentecostal da Nova Vida, o missionário canadense Walter Robert
McAlister, em 1968, que deixa claro a guerra declarada aos cultos afro-brasileiros (SILVA,
2007). Os temas centrais da “batalha espiritual” são a identificação das divindades afro-
brasileiras com o demônio, a libertação dos adeptos das religiões de matriz africana pelo
poder do sangue de Jesus e a consequente conversão. Os neopentecostais não veem as
divindades do panteão afro brasileiro como crendices populares ou folclore, eles reconhecem
o poder dessas divindades, no entanto, para eles, são “espíritos demoníacos” que iludem e
ameaçam a vida da população brasileira (SILVA, 2007). O fato das sessões de descarrego
assumir a centralidade dos cultos da IURD1095 evocando e vilipendiando as divindades afro-
brasileiras leva o Ricardo Mariano a concluir que “os demônios constituem o ‘braço direito’
das igrejas que o combatem metódica e sistematicamente” (MARIANO, 2007, p.139).

Não obstante a demonização das religiões de matriz africana, Ari Pedro Oro (2007) apresenta
três aspectos que mostram que IURD possui similitudes com as religiões de matriz africana.
O 1° aspecto é o que ele determina como “igreja religiofágica”: “apropriação e atribuição de
novos significados a elementos de crenças tomados de outras igrejas e religiões”; 2° aspecto é
a “igreja da exacerbação”: “amplificação desses elementos e de outros já existentes no campo
religioso”; o 3° aspecto é a “igreja neopentecostal macumbeira”: “metamorfose dessa igreja,
sobretudo em determinados rituais, que ao invés de distanciá-la das religiões afro-brasileiras
que combate, delas se aproxima”. As sessões de descarrego, a invocação e libertação coletiva
de demônios, são segundo o autor, semelhantes a algumas cerimônias de casas de matriz
africana (ORO, 2007). Dialogando com Pedro Oro, Vagner da Silva em seu artigo “Entre a
Gira de Fé e Jesus de Nazaré”, também tipifica algumas práticas dos cultos neopentecostais
que se assemelhariam ao universo das comunidades de terreiro. Segundo Silva, nos cultos
neopentecostais a palavra falada, “suas palavras de fogo”, possui poder mágico simbólico, é
através da palavra que se expulsam os “demônios”. Esse poder é uma característica das
religiões afro-brasileiras. Segundo ele, há “cosmogonias cruzadas”, ou seja, a uma
ressemantização das divindades e entidades afro brasileiras.

Ao indagar sobre a aparente inércia das religiões de matriz africana aos ataques dos
neopentecostais, Pedro Oro assinala que um dos motivos para a indiferença das comunidades
de terreiro aos ataques reside no antagonismo cosmogônico entre ambas as religiões.

1095
A forma que se convencionou pelos estudiosos identificar a Igreja Universal do Reino de Deus

1693
Enquanto a IURD concebe o mal de forma transcedental cujo sua ética está baseada na guerra
contra o demônio, as religiões de matriz africana em geral concebem o mal “como tendo
origem nos seres humanos, sendo os espíritos meros instrumentos usados por eles” (ORO,
2007, p.53). Diante dessa questão observada pelo Oro, será que realmente existe uma guerra
santa, ou somente há uma deflagração da IURD de guerra aos cultos afro-brasileiros, que
apesar de serem vítimas dos ataques de intolerância religiosa não possuem uma postura
belicosa. Analisando os relatos da pesquisa Mapeamento, averiguamos uma recorrência no
que diz respeito à possível inércia das religiões de matriz africana que reforçariam esse
questionamento sobre a forma que assume a “batalha espiritual”.

A discussão sobre intolerância religiosa no âmbito da Lei brasileira a partir de 1988

A tipificação de certas práticas pentecostais como crime pelo poder público é apontada por
Mariano como uma possível contribuição ao enfrentamento dessas práticas, no entanto, o
autor caracteriza essa tipificação como um possível problema, pois ao tipificar esses atos
correriam o sério risco de inibir a liberdade religiosa dos neopentecostais (MARIANO, 2007).
Ao mesmo tempo, entretanto, Mariano afirma que os evangélicos “protagonizam atos
explícitos de ‘violência simbólica’ que estigmatizam, desqualificam e rebaixam moralmente
os adeptos dos cultos afro-brasileiros” (MARIANO, 2007, p. 126). Em meio a essas
discussões, Hédio Silva Jr, afirma que a liberdade de expressão não se caracterizaria como um
direito absoluto prescrito na Constituição e, portanto, “à medida que a liberdade de expressão
passa a ser utilizada para pregar o preconceito e a discriminação, tem-se um quadro de abuso
e não de uso do direito” (SILVA JR, 2009, p. 206). Nesse sentido, as práticas encaradas pelos
evangélicos como o livre exercício da sua liberdade são caracterizadas como discriminações
religiosas e, por conseguinte, seriam enquadradas no artigo 208 do Código Penal brasileiro
que afirma: “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar a cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente de
ato ou objeto de culto religioso”. Além do artigo 208 do código penal a constituição brasileira
de 1988 em seu artigo V, retrata sobre o tema da liberdade de crença. Silva Jr aborda várias
leis que dizem respeito à liberdade religiosa, tais como, a “Lei n° 7.716/89, que pune a
prática, a incitação e a indução a discriminação ou ao preconceito por motivo de religião
(art.20)” (SILVA JR, 2009, p.208).

1694
Em 2003 o Supremo Tribunal Federal, “entendeu que a discriminação religiosa submete-se na
norma constitucional que criminaliza a prática do racismo” (SILVA JR, 2009, p.316) sendo
assim, os indivíduos praticantes da discriminação religiosa estão sujeitos aos mesmos efeitos
punitivos do crime de racismo no Brasil.

A intolerância de natureza religiosa/racial configura uma das faces mais abjetas do racismo
brasileiro, mantendo-se intacta ao longo de toda a História, e resistindo, inclusive, ao
processo de democratização, cujo marco fundamental foi a promulgação da Constituição de
1988 (SILVA JR, 2009, p. 210-211).

Por esse motivo, Silva Jr imbuído da perspectiva do direito, é enfático em afirmar que os
agentes protagonistas de discriminação religiosa devem ser tratados como criminosos,
segundo manda a Lei.

Metodologia

A análise dos dados coletados da pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz
Africana do Rio de Janeiro” está fundamentada numa reflexão antropológica sobre a
religiosidade no cenário brasileiro atual. Devido à diversidade e complexidade do universo
das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro, foi necessário construir categorias
analíticas que dessem conta da complexidade do universo estudado, a fim de respeitar a
identidade religiosa autodeclarada pelos respondentes. As análises minuciosas dos relatos
encontrados nos questionários da pesquisa permitiram identificar as diversas formas e os
locais sob as quais as agressões se manifestam: verbal, física, contra a casa, contra os adeptos,
na rua, no cemitério, na escola pública e privada, locais de trabalho, em transportes coletivos,
matas e beiras de cachoeira.

A partir destas análises, foi possível a construção de categorias que dessem conta das diversas
expressões de discriminação religiosa relatadas pelos respondentes do questionário. Os relatos
foram classificados segundo: I- local da manifestação (público / privado); II - Tipo de
agressor (vizinho, evangélico, outros); III - Tipo de alvo (pessoa, casa, outros); IV - Tipo de
agressão (verbal, física, outras) V - Tipo ação/ processo judicial (de quem, contra quem,
onde/situação). Todas essas categorias descritas são baseadas nas informações que os
respondentes relataram ao pesquisador de campo. Por meio destas categorias identificamos os
locais de maior recorrência de discriminação religiosa, os principais agressores, os principais

1695
alvos, as agressões mais sofridas pelos adeptos das religiões afro-brasileiras e a maneira pela
qual os processos judiciais ocorrem e se desenvolvem na sociedade brasileira. As categorias
classificatórias que organizam os relatos convergem, em alguma medida, com a classificação
feita pelo Geraldo Rocha em seu artigo intitulado “A intolerância religiosa e as religiões de
matrizes africana no Rio de Janeiro”, publicado em 2011. No artigo Rocha utiliza as
categorias “família”, “o local de trabalho”, “a escola”, “a rua”, “a relação com organismos
públicos”, “no espaço religioso”, que segundo Rocha, são esferas da vida humana que sofrem
diversas práticas de intolerância religiosa afetando diretamente os processos de interação
social (ROCHA, 2011). A convergência entre as pesquisas com temas correlatos legitimam a
validade dos dados produzidos por meio da análise dos questionários.

Alguns dados da pesquisa

Por meio da análise dos relatos encontrados no questionário do Mapeamento, o primeiro dado
bastante significativo que aparece é que mais da metade dos relatos (52,4%) afirmaram que a
casa ou algum adepto havia sofrido algum tipo de discriminação religiosa. No que diz respeito
aos tipos de agressores verificamos no universo pesquisado que a maior parte das agressões
aos adeptos das religiões de matriz africana são empreendidas por evangélicos, seguida por
vizinhos e vizinhos evangélicos. Os agressores compreendem 32%, 27% e 7%,
respectivamente dos casos relatados.

Das agressões relatadas no questionário destacam-se em maior número as agressões verbais -


187 casos relatados - e, em seguida, as agressões físicas - 100 casos relatados - sendo elas
variadas de acordo com o contexto. Portanto, as agressões sofridas variam desde um
xingamento até a invasão ao templo religioso, sempre seguida de depredações visando os
símbolos sagrados. Dessas agressões verbais, verificamos uma recorrência de expressões
evocando o “demônio” proferidas contra o adepto, o que nos permite perceber uma constante
tentativa de identificação das Comunidades de Terreiro à figura que personifica o mal no
cristianismo. Na tentativa de construir um glossário dos xingamentos proferidos aos religiosos
de matriz africana, foram identificados 66 xingamentos nos relatos da pesquisa. Desses
xingamentos, 37 dos mesmos, isto é, 56%, foram identificados pelo uso de expressões
demoníacas. As expressões encontradas foram: casa do diabo (1); casa do encosto (2); casa do
satanás (1); casa endemoniada (1); chuta essa macumba (1); coisa do capeta (1); cultuadores

1696
do demônio (1); demônio (5); diabo (3); encosto (1); endemoniada (1); endemoniados (2);
está amarrado (3); coisa do demônio (1); filhas do diabo (1); filhos do diabo (1); ligação com
o diabo (1); mulher do demônio (1); mulher do diabo (1); o demônio mora ao lado (2); o
diabo está com você (1); pacto com o demônio (1); religião do diabo (1); sai demônio (1);
satanás (1); trabalhar para o demônio (1). Percebemos com isso uma consonância desses
dados com a bibliografia acerca da intolerância religiosa que é categórica em dizer que um
dos motivos que animam a perseguição aos cultos de matriz africana é a constante associação
do demônio as religiões de matriz africana. Esses dados visibilizam de forma concreta um dos
problemas gerados pela existência de uma teologia que endemoniza as religiões de matriz
africana.

A pesquisa indica ainda outras formas de agressões menos expressivas no universo estudado,
tais como: agressão sonora (5); impedimento/não atendimento em espaço público e/ou
privado (12); impedimento dos religiosos de entrar na escola por estar caracterizado como um
religioso (5); proselitismo religioso (16) e denúncia as autoridades competentes contra a casa
de culto de matriz africana.

Outro dado significativo é a utilização das ferramentas legais como um dispositivo de


cerceamento da liberdade religiosa. Alguns relatos mostram que vizinhos acionam a polícia
com o intuito de acabar com festas religiosas, denuncia a polícia por causa do barulho dos
toques, é relatado denúncias de vizinhos a polícia acusando casa a de privações e cárcere
privado, entre outros. A baixa reação dos adeptos das religiões de matriz africana na esfera
judicial, observada na pesquisa, encontra expoente na reflexão desenvolvida por Vagner da
Silva: “as reações dos religiosos afro-brasileiros que eram quase insignificantes há duas
décadas tem crescido, mais ainda estão longe de representarem um movimento articulado”
(SILVA, 2007, p. 18). Um dos motivos para poucas reações no âmbito legal esta associada a
falta de conhecimento jurídico que dificulta o acesso a essas ferramentas, que tem por
obrigação garantir o cumprimento da lei. Além disso, “as religiões afro-brasileiras,
reconhecidamente gozam de baixo prestígio social, logram menor aceitação social e são
compostas por indivíduos com menor renda e escolaridade” (MARIANO, 2007, p.140).

1697
Considerações finais

A construção de políticas públicas voltadas para as comunidades de terreiro estão em


consonância com um Estado democrático de direito e, consequentemente, o negligenciamento
do Estado a essas populações contribuem para que os princípios democráticos permaneçam
apenas no plano formal das leis reiterando as desigualdades raciais, sociais e de intolerância
religiosa do país.

Se ficarmos no plano do dever ser sem nos lançarmos na luta pela rela efetivação dos
direito à liberdade religiosa, estaremos no terreno da pura abstração da ideia de democracia,
o que reforçaria a invisibilidade da herança cultural afrodescendente e, em especial, das
religiões de matriz africana (SILVA, 2009, p. 130).

Os dados produzidos pela pesquisa demonstram a necessidade de se construir políticas


públicas efetivas que combatam as discriminações sofrida pelas religiões de matriz africana
do Rio de Janeiro e garantam o livre exercício da liberdade religiosa. A pesquisa visibiliza os
lugares e as formas que a discriminação religiosa manifesta-se, contrariando assim, o
imaginário de tolerância inerente a um país conhecido pelo pluralismo religioso. Portanto, a
instauração de políticas públicas que objetivem enfrentar a discriminação religiosa, parece ser
um direcionamento na luta pela ampliação de direitos e, consequentemente, a efetivação de
um Estado democrático de direito. Assim, propiciando a plena autonomia dos indivíduos na
escolha do direcionamento religioso e concomitantemente gerando uma cultura de paz,
desejada por todos os cidadãos. Desta forma, os conflitos e as disputas inerentes a democracia
ocorrerão dentro dos limites da razoabilidade da Lei (MARIANO, 2007).

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Internet

Lideranças de matriz africana divulgam texto orientador em plenária da III CONAPIR.


SEPPIR. Disponível em <http://www.seppir.gov.br/iii-conapir/2013/07/liderancas-de-matriz-
africana-divulgam-texto-orientador-em-plenaria-da-iii-conapir>. Acessado em 10 jul. 2013

1700
1701
Da ortodoxia ao clericalismo:
Igreja, Estado e as tentativas de influência eclesiástica no poder
público
Guilherme Borges Ferreira Costa1

Em dezembro de 2009, foi lançado pelo governo federal o assim chamado PNDH-3 (3º
Programa Nacional de Direitos Humanos).2 O documento, contendo mais de quinhentas
orientações governamentais, foi publicado no Diário Oficial da União após passar pela
assinatura do então presidente da República e de vinte e oito de seus principais ministérios,
além de ter sido submetido à vistoria jurídica da Casa Civil.3 Entre seus itens, alguns
despertaram grande interesse nacional, em razão de seus conteúdos particularmente
polêmicos, tais como:

- alocação de objetivo estratégico visando a angariar apoio à aprovação do projeto de lei que
descriminaliza o aborto, levando em conta a autonomia das mulheres para decidir sobre seus
corpos;4

- ações programáticas visando a apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre
pessoas do mesmo sexo;5

- promoção de ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos;6

- articulação de direitos trabalhistas e previdenciários de profissionais do sexo por meio da


regulamentação da profissão.7

1
Mestrando em Sociologia pela USP e graduado em Ciências Sociais pela mesma universidade. Orientado pela
Profa. Dra. Maria Helena Oliva Augusto. Bolsista CAPES. Contato: guibc@uol.com.br
2
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Disponível em <http://www010.dataprev.gov.br/ sislex/
paginas/23/2009/7037.htm>. Acesso em 30 mai. 2013.
3
SALOMON, Marta. Críticos tiveram quatro meses para mudar projeto, diz Vannuchi. Folha de São Paulo, São
Paulo, p. A7, 9 de janeiro de 2010.
4
Diretriz 9; objetivo estratégico III; ação programática “g” da primeira versão do PNDH-3.
5
Diretriz 10; objetivo estratégico V; ação programática “b” da primeira versão do PNDH-3.
6
Diretriz 10; objetivo estratégico V; ação programática “c” da primeira versão do PNDH-3.
7
Diretriz 7; objetivo estratégico VI; ação programática “n” da primeira versão do PNDH-3.

1702
Como era de esperar, setores da Igreja Católica reagiram pública e prontamente, em alto e

bom som,8 aos artigos do documento presidencial arrolados acima, mas o Governo, na versão

final do decreto9, não excluiu nenhum dos propósitos supracitados. O segundo item em

questão teve a redação revista, passando a ênfase à consideração do aborto enquanto tema de

saúde pública. Contou também, tal item, com a adição do seguinte anexo singelo, mas

“escandaloso”:

- recomenda-se ao Poder Legislativo a adequação do Código Penal para a descriminalização

do aborto.10

Os outros pontos-chave continuaram intactos na pauta definitiva.

Colocação do problema

Na intenção de ser claro já de saída, faz-se necessário esclarecer sem demora qual o objetivo

da pesquisa na qual este texto se insere como reflexão parcial: observar a legitimidade social

do catolicismo conservador no interior da Igreja no Brasil e, para além dos limites clericais,

também no que diz respeito ao âmbito jurídico-político nacional. A ideia é fazer uma análise

do possível prestígio daquelas alas católicas marcadamente ortodoxas e do seu potencial de

persuasão, tanto no que se refere às fileiras institucionais eclesiásticas, quanto no que

concerne às esferas propriamente estatais. Em outras palavras, o foco da investigação está nas

iniciativas de intervenção política de viés católico-conservador, e no modo como tais

iniciativas se apresentam valorizadas (ou não) pelo poder público e pela institucionalidade

católica do país.

8
Ver, por exemplo, CARIELLO, Rafael. Igreja também critica plano de direitos humanos de Lula. Folha de São
Paulo, São Paulo, p. A6, 8 de janeiro de 2010.
9
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto número 7.177, de 12 de maio de
2010. Disponível em < http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em 30 mai. 2013.
10
Diretriz 9; objetivo estratégico III; ação programática “g” da segunda versão do PNDH-3

1703
Toma-se como ponto de partida a observação dos embates múltiplos entre representantes do
poder federal e clero desencadeados pela divulgação oficial do PNDH-3. A escolha desse
conjunto bem delimitado de acontecimentos tensos de produção de discursos não menos
tensos baseia-se na constatação de uma certa singularidade histórica sua, na qual esses
processos aparecem como que revestidos de características supostamente novas, para não
dizer de um novo caráter, quando comparados com outras conjunturas nada remotas de
relações Igreja-Estado em nosso país.

Trata-se, tudo leva a crer, de um caso no mínimo delicado para a Igreja Católica nos dias
atuais, em cujo quadro ela aparece se colocando numa situação peculiarmente embaraçosa,
deslocada, fortemente prejudicial para a sua imagem pública ainda altamente positiva,
porquanto historicamente consolidada ao longo da segunda metade do século XX, de
defensora incondicional das prerrogativas constitucionais. De porta-voz tribunícia das
liberdades básicas, a Igreja passa não só a se mostrar em desacordo frontal com grupos LGBT
e militantes feministas – adversários costumazes –, mas nesse caso ela se dava a ver também
na contracorrente de organizações em defesa dos direitos humanos e, não menos importante,
na contramão de um governo que alcançava então um apoio popular recorde, quase 80% de
aprovação nacional.11

Mas além dos controversos ocorridos, já por si altamente significativos, há outro fator que
sustenta a opção empírica deste projeto: a repercussão midiática nada desprezível que o atrito
provocou e ao mesmo tempo recebeu, objetivada fisicamente na considerável quantidade de
material impresso e digital passível de investigação que foi produzida desde o início da
grande polêmica. Possibilidade aberta de observar, analisar e avaliar, a partir de um feixe de
episódios recentes e fartamente documentados, a quantas anda o poderio político da hierarquia
eclesiástica da era Ratzinger num Brasil em que se vê esgotar o monopólio católico de gestão
do capital simbólico12, esvaindo-se conjuntamente seus mecanismos de legitimação social.

Uma controvérsia religiosa pública [...] funciona como um banho revelador. Ou como um
sismógrafo. Detecta mudanças importantes de concepção da vida social, registra
deslocamentos conceituais fundamentais, imperceptivelmente em processo,
molecularmente em progresso na institucionalidade mesma da sociedade (PIERUCCI,
1996, p. 285).

11
CANZIAN, Fernando. A 9 meses de sair, Lula tem aprovação recorde de 76%. Folha de São Paulo, São
Paulo, p. A4, 28 de março de 2010.
12
SCHWARTSMAN, Hélio. Revolução quase silenciosa. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A2, 30 de junho de
2013.

1704
O sem-número de disputas que acercaram e constituíram o caso do PNDH-3, por mais locais
que esses embates fossem em relação à vastidão do universo católico, resulta num desses
dispositivos analisadores (HERVIEU-LÉGER, 1999) por meio dos quais se apresenta possível
localizar dinâmicas sociais – políticas e simbólicas – cujas implicações suplantam e muito o
próprio ocorrido naquilo que diz respeito aos seus enredamentos imediatos.

A secularização e o seu contrário: por uma definição de conservadorismo católico

Ainda sem entrar, porém, nas complicações que perpassam as controvérsias fundadas no
PNDH-3, este texto dá um passo atrás e procura esclarecer, antes, o que aqui se entende por
“catolicismo conservador” e respectivos sinônimos. A opção pela realização de um recorte
definidor redundou duma tomada de decisão que se mostrou indispensável para efeitos de
viabilização do esforço de análise interpretativa. Dada a ampla gama de pré-noções que se
avolumam no uso mais do que corrente das expressões “católico” e “conservador”, fez-se
necessário, pois então, um exercício de elucidação conceitual, tendo em vista a reconstrução
dos adjetivos em questão para a sua utilização nas condições estritas de categorias
sociológicas descritivas. Com o afastamento dos pressupostos de senso comum, o que se
procurará com o emprego dos termos citados são os ganhos classificatórios que eles podem
propiciar para uma análise rigorosa. E para assim o fazer, é imprescindível a fixação
sistemática dos nomes nas coisas. O que não implica, importante deixar claro, numa busca por
“definições definitivas” de sentidos terminológicos. Trata-se simplesmente de localizar, em
meio a múltiplas confusões de significados, uma definição conceitual mínima, talvez
provisória, pois instrumental, que tenha por finalidade imediata a análise em processo.

“Saber do que se fala sempre ajuda” (PIERUCCI, 1998): é nesse postulado, simples de tão
pragmático, que se inspira a sessão que se inicia.

“A secularização que importa em primeiro lugar”

A Igreja Católica é um “objeto selvagem à domesticação” (PONDÉ, 2011, p. 14). A


imensidão de seu alcance (temporal e espacial), os mil intrincamentos doutrinais e morais, o
sem-número de atores em cena (e não só os atores atuais, mas também os antecessores, os
quais ainda com muita presença de palco), tudo se reúne para dar a qualquer análise sobre o

1705
catolicismo o aspecto do risco e da incerteza. Ou seja, o desafio não está só em desviar de
toda a carga de senso comum que se formula sobre a Igreja e pela Igreja. Também por sua
infinitude, o objeto em questão se mostra muitas vezes opaco e de difícil aproximação. Mas
ainda que com esse entrave, ou melhor, exatamente por causa desse entrave, cabe propor uma
estratégia de análise: a identificação dos aqui nomeados ideários e práticas católico-
conservadores pode se tornar factível pela investigação preliminar da realidade em oposição a
qual esses ideários e práticas se erguem. E neste procedimento há uma não disfarçada
apropriação do esboço de conservadorismo idealizado por Karl Mannheim (1986).

Ele, Mannheim, vai propor que a postura conservadora é antes uma postura de reação ao
gradativo fim das sociedades e sensibilidades tradicionais. O sistema de pensamento
conservador seria, consequentemente, um “contra-sistema”, que emerge, vale dizer, por
rejeição ao pensamento do direito-natural. Seguindo esse raciocínio, para explicar o
conservadorismo se faz proveitoso, primeiro, compreender a conjuntura que o motiva a se
impor em luta. Ou seja, para conceber a intenção básica dos conservadores, é positivo que se
apreenda a modernidade contra a qual e para a qual os mesmos se mostram ressentidos.

Porém, posto que aqui não se trata de um conservadorismo genérico, mas sim daquele
propriamente religioso e decisivamente católico, é, pois então, a questão da modernidade
religiosa – ou modernidade secular, dá no mesmo (PIERUCCI, 2008a) – que se coloca
forçosamente para a análise. Pela compreensão da contemporaneidade laica, pode-se acercar
pelas beiradas, e por efeito de contraste, a ortodoxia clerical. Cabe destrinchar essa
modernização, pois então, na expectativa de que na identificação daquilo que o
conservadorismo católico não é, na observação daquilo que ele hostiliza, se mapeie aquilo que
ele é.

Contudo, voltando ainda ao parágrafo logo acima, ali “modernidade religiosa” e


“modernidade secular” foram alocadas como expressões de mesmo significado. Essa
sinonimização dos termos pode soar controversa, haja vista o embaraço atual que se desperta
ao tocar no tema da secularização.13 Fora do Brasil, por exemplo, só faz crescer o número de
pesquisadores que vão argumentar contra o paradigma sociológico clássico da religião, aquele
que pensa o declínio da fé na razão direta do progresso da modernidade capitalista. Esses
especialistas armam seu posicionamento teórico, por sua vez, esgrimindo dados que

13
“É incrível como soa atrevido e torto [...] hoje um sociólogo falar em declínio da religião e ousar qualificá-lo
de persistente” (PIERUCCI, 1998, p. 100).

1706
mostrariam um crescimento nas últimas décadas, nas sociedades europeias e norte-
americanas, de novos movimentos religiosos (cf. ENTOTH, 2005; DAWSON, 2006) – muitos
deles que, de tão exóticos e “orientalistas” (SAID, 2007), parecem por vezes capazes de
dinamitar qualquer princípio de racionalidade cultural. Mas a dessecularização no primeiro
mundo não se dá apenas por essa comoção de espiritualidades alternativas. Do mesmo modo,
também como contra-evidência ao processo de secularização, é citada a possível alavancada
de confissões do cristianismo evangélico (STARK, 2008), para não falar da invasão islâmica
na Europa, que, a confiar nos diagnósticos catastrofistas (cf. CALDWEEL, 2010), há de estar
ocorrendo a passos largos. Já aqui no capitalismo periférico, longe do escopo ocidental das
análises que fundam a sociologia, a situação encontrada é ainda mais calamitosa para a tese da
secularização: o processo pelo jeito passou ao largo das bandas de cá e a fé aparentemente só
se revitaliza por estes sítios (PIERUCCI, 1997, p. 102). Essas formas emergentes da religião
remeteriam, por sua vez, à incontornável natureza não secular do ser humano (BARRET,
2012). A sede pelo sagrado como necessidade invariável de nossa condição.

Não cabe neste momento entrar no mérito de deduções que escapem à alçada sociológica, e
que assim procedam por meio de apelos de cunho idealista que, na busca pela essência
humana abstrata, reportam-se a uma ontologia a-histórica. Saindo pela tangente das
discussões de raízes metafísicas, resta ainda assim destacar o que soa como uma distorção
comum nos argumentos adversários à teoria da religião weberiana. A afirmativa dos
“dessecularizantes” vai sempre na direção de apontar uma religiosidade efervescente e plural
no que diz respeito ao âmbito privado-íntimo. São as conversões e reconversões particulares –
em ebulição, ao que parece – que são colocadas como evidência da ressacralização pela qual
passamos. É urgente que se deixe claro, pois então, que o processo de secularização, ao menos
aquele tipificado por Weber, seu principal teórico, é sempre secularização da sociedade, e de
modo algum envolve uma supressão contingente da religião no que concerne à esfera
individual:

Precisamente os valores últimos e mais sublimes se retiraram da vida pública e se


refugiaram ou no reino transcendente da vida mística ou na fraternidade das relações
humanas diretas e pessoais. [...] Nada há de acidental no fato de que, hoje em dia, só nos
círculos mais pequenos e íntimos, nas situações humanas pessoais, em pianissimo, é que
pulsa algo que corresponde ao pneuma profético que nos tempos passados abrasava grandes
comunidades e as mantinha coesas (WEBER, 1982, p. 182).

1707
Também Mannheim vai falar da retração para o privado de certas esferas anteriormente
públicas (as esferas da vida onde prevalecem os sentimentos pessoais e religiosos), numa
espécie de compensação pela crescente racionalização da “vida oficial” em geral
(MANNHEIM, 1981, p. 94). “As relações originais e irracionais do homem com o homem e
do homem com as coisas” são impelidas para a periferia da vida do indivíduo, em contraste
com consistente desenvolvimento racional de esferas mais representativas. “Como deve-se
esperar, de fato persistiram, mas como geralmente acontece na história, submergiram e
tornaram-se latentes, manifestando-se no máximo como uma contra-corrente oposta à corrente
principal” (idem).

O sagrado é capaz de ter um valor dos maiores na esfera do exercício devocional privado, o
que, contudo, não tem consequências de fôlego no interior das instituições sociais dominantes.
Como pontua Bryan Wilson ao longo de sua obra (1982), sendo a sociedade moderna
caracterizada pela dinâmica generalizada de procedimentos impessoais e burocráticos de
controle, os despertamentos religiosos, que podem bem ocorrer, ficam desde já
impossibilitados de ter por consequência algum retrocesso na fundamentação da ciência e da
república como modelos hegemônicos de organização da vida social. “Desde quando a
sociedade moderna repousa sobre as relações pessoais? Delírio microssociológico do mais
puro” (PIERUCCI, 1997, p. 113).

Em outras palavras, concedamos então o privilégio da dúvida à hipótese defendida pelos


adversários da tese da secularização. Digamos que toda essa propalada efusão da fé vai além
de um efeito midiático amplificador das proporções, refletindo realmente um incremento do
significado da religião na existência das pessoas. Ainda assim, mesmo que se experimente
hoje, no Brasil e no mundo, um fantástico reavivamento do sagrado, isso em nada desbanca o
processo de secularização, cuja ênfase está menos no conteúdo psicossocial das pertenças
religiosas e sim nas mudanças estruturais das sociedades tradicionais para as sociedades
modernas. Como se vê, o processo de secularização é a rigor um macroprocesso. E
macroprocesso este que, além do mais, não se refere ao que vai acontecer num futuro de curto
ou longo prazo. Não se trata de profecia acadêmica mistificada ou da indicação de um telos
cuja ocorrência está pré-condicionada, mas sim de uma identificação ex-post e objetiva do já
ocorrido na abertura da contemporaneidade: o banimento da religião do centro que garante a
coesão social; a retirada do sagrado de seu protagonismo na matriz cultural totalizante; a
perda de alcance sobre a pluralização das esferas autonomizadas; e, principalmente, a

1708
racionalização da ordem jurídico-política, a qual começa com o disestablishment da religião
para fora da esfera do Estado (idem, 2008a).

Mais do que na luta da modernidade cultural contra a religião, e mesmo mais do que na perda
do monopólio da verdade para a ciência, é no declínio da fé como potência in temporalibus
que se impõe com nitidez, à vista geral, a realidade histórica da secularização. Afinal, a
formação de todo e qualquer Estado liberal democrático trouxe e traz consigo não menos do
que a derrocada da logística do magistério religioso como sustentáculo organizador da
geografia política (MICHAEL, 1999, p. 356). No movimento de atribuição da posição central
ao direito nacional, há, em simultâneo, a desinstalação do pedestal transcendente para a
legitimidade governamental. Fora do escopo religioso, é aí que se instala a racionalidade
utilitário-instrumental do positivismo jurídico, o qual referência e vetor de nossa desencantada
política contemporânea. Assim, talvez esteja aqui, na laicidade estatal, um ponto inequívoco
(dada sua evidência), um mínimo consenso entre inúmeras contestações mútuas sobre a
factualidade ou não do declínio da fé na modernidade. Se tomado o Estado como locus de
análise, pode-se dizer que se está, finalmente, a tratar de “um fenômeno [...] incontroverso”
(MARTELLI, 1995, p. 274) quando se fala em processo de secularização.

Se comparada ao caráter “líquido” da secularização difusa dos mundos da vida, a


secularização jurídico-política é muito mais sólida no que diz respeito à sua factualidade
empírica facilmente constatável. O privilégio sociológico de se voltar os olhos ao Estado não
se resume, entretanto, à maior possiblidade analítica de medição e avaliação aí encontrada.
Observar a crescente diferenciação estrutural da religião em relação aos espaços do poder
público traz consigo a oportunidade de se visualizar aquela que Pierucci classifica como a
“secularização que importa em primeiro lugar” (2008a) – a que diz respeito às liberdades civis
e políticas de todos e cada um de nós: convivermos “sob o domínio da lei” num Estado
democrático de direito.

Sem a separação entre Estado e religião, o traço que porventura ocorrer de modernidade
religiosa aqui ou acolá será apenas um prenúncio dela, oxalá um anúncio, mas não ela
própria, não a modernidade religiosa propriamente dita. Nesse sentido, apreende-se a
separação Estado/Igreja como cravando o elo último de uma regressão histórico-empírica
com pretensão teórica de imputá-la geneticamente como causa histórica da modernidade
religiosa enquanto pluralidade religiosa ativada (idem p. 12).

1709
E uma vez de acordo com a estimativa de Ernst Troeltsch, para quem a Säkularisation des
Staates é “o fato mais importante do mundo moderno” (2012), parece razoável que toda vez
que aqui se fale em secularização, a ênfase esteja toda ela na secularização do aparato
jurídico-político.

As liberdades modernas e seu católico adversário

A influente socióloga francesa especializada no estudo do catolicismo em seu país, Danièle


Hervieu-Léger, propõe que, dado que a gênese e desenvolvimento das sociedades modernas
(HERVIEU-LÉGER, 2003, p. 2) implicaram construção de um perfil antropológico típico
pautado pela autonomia pessoal, o resultado cultural histórico foi uma "ética do homem
moderno fundada na subjetividade radical",14 à qual se seguiu a afirmação política daqueles
direitos humanos inalienáveis, que se desenvolveram "rompendo com os princípios católicos"
(POULAT, 1986; ROSADO-NUNES, 2008a). De um lado, se estabelece o suposto de um
"direito individual a abandonar a fé" e, do outro, inversamente, se coloca o privilégio dos
clérigos, como os únicos guardiões dos tesouros espirituais, de, no limite, impor a crença
verdadeira valendo-se da legislação (CURRAN, 2002), posto que "a liberdade consiste em
poder viver mais facilmente conforme as prescrições da lei eterna, com o auxílio das leis
civis".15

Entre o catolicismo romano e o moderno Estado liberal, Émile Poulat, por sua vez, aponta
uma contradição de ideários "infindável e, talvez, insuperável" (op. cit., p.28), contradição
que se expressa recorrentemente por estratagemas de intervenção eclesiástica no âmbito
político-legal, principalmente no que diz respeito àquilo que a socióloga Rosado-Nunes
classificou como "novos campos de legalidade" (ROSADO-NUNES, 2008a, p.75), em cujo
interior, segundo ela, desponta "a novidade representada pela proposição dos direitos sexuais
e reprodutivos". Incipientes direitos que não podem mais ser considerados alheios à realização
da democracia e da cidadania. Ocorre, no entanto, que do lado da Igreja Católica, como
escreve ainda Rosado-Nunes, continua valendo o pressuposto segundo o qual questões
relativas à sexualidade e à reprodução humana relevam da ordem da natureza:

14
Todos os excertos cujos originais são franceses foram traduzidos pela pesquisadora Maria José Rosado-Nunes.
15
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Libertas Praestantissimum. Disponível em <http://www.fsspxbrasil.com.br
/page%2006 -7-Libertas.htm>. Acesso em 30 mai. 2013.

1710
“[...] ou seja, são questões que se situam fora do político (...) e como tal, quando a Igreja
Católica procura interferir nas legislações nacionais sobre esses campos, (...) ela não o faz
em nome do debate democrático (...). É em nome da competência que lhe foi outorgada
pelo direito divino que ela dá sua palavra autorizada e intenta impô-la sobre a sociedade
toda, uma vez que é a própria natureza do que é humano que está em jogo” (idem, p.77).

Estabelece-se assim uma "heteronormatividade" – expressão do PNDH-316 – pela qual a


estrutura de dominação masculina que gera o discurso clerical se eterniza através de um
paradigma que esconde seu caráter histórico e mutável por meio de uma construção simbólica
da fixidez biológica (BOURDIEU, 2002). O "intransigentismo eclesiástico" (cf. POULAT)
reproduz as disposições incorporadas como habitus, naturalizando-as por um processo de
desistoricização das divisões sexuais socialmente estabelecidas. E à esfera jurídico-política
cabe a guarda e submissão ao “destino biológico” (PONDÉ, 2011), uma vez que este é
também um “destino teológico”, logo de injunção impreterível.

Desse modo, assim como um dos atos causais primeiros da modernização de uma comunidade
nacional se encontra na secularização do poder público (PIERUCCI, 1998 e 2008a), decidiu-
se na pesquisa adjetivar dado catolicismo como conservador se e na medida em que o mesmo
incorrer no ataque a esse princípio, isto é, toda vez que setores da Igreja Católica se
manifestam em oposição ativa à legitimidade do Estado laico. Em outras palavras, pode-se
dizer também que aqui o conservadorismo que interessa é aquele preocupado em barrar as
liberdades contemporâneas só viabilizadas para todos e cada um com avanços na
racionalização política de direito e de fato.

Se a modernidade de uma sociedade pode ser avaliada pela valorização que se concede ao
arbítrio individual (HERVIEU-LÉGER, 1999, p.299), além de implicar no “empoderamento”
dos membros cidadãos da coletividade para que tenham condições de definir articuladamente
os rumos daquela na qual se incluem (idem, p.298); em contrário, o conservadorismo
eclesiástico, segundo o concebemos, se constitui na negação ativa de tais possibilidades
abertas de autonomia. E isso nos dois sentidos apontados por Hervieu-Léger: no que diz
respeito à direção das existências particulares e no que toca aos direcionamentos do corpo
social. A oposição à autonomia nas esferas privada e pública, por sua vez, se apresenta como
não-reconhecimento de uma legitimidade garantida constitucionalmente. E esse
desmerecimento eclesiástico de direitos emancipatórios assegurados pela constituição secular

16
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto número 7.177, de 12 de maio de
2010, p. 99. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em 30 mai. 2013.

1711
deriva, em continuidade, da rejeição a toda “autoridade mundana não submissa ao poder
espiritual”17. Falando sinteticamente, consideramos como conservadora aquela posição que
contraria o poder público laico por meio da não aceitação de sua legalidade enquanto
desvinculada do aparato doutrinal e institucional católico - "Devem todos os governantes
atender à soberania suprema de Jesus Cristo e na ordenação temporal nada dispor que impeça
a difusão do Reinado Social do Divino Salvador. Pelo contrário, incumbe-lhes facilitar a
atividade da Igreja de Deus".18 Tal ideário se expressa ainda na declaração do principal líder
leigo da hoje maior comunidade católica nacional, a Canção Nova (OLIVEIRA, 2009); em
entrevista qualitativa para a pesquisa, a liderança disse a respeito do PNDH-3:

Esse nefasto programa (...) quer impor ao país uma ideologia que destrói os valores e os
conceitos sagrados de nossa sociedade cristã, edificados ao longo de séculos. (...) Como
muitos bispos disseram (...), o governo deveria preservar nossas raízes católicas, mas
destrói a nossa cultura.

E se a crítica teocrática à laicidade é o que define primeiro o que aqui se entende por
conservadorismo eclesiástico, não dá para deixar de lado, na constituição de nossa categoria,
o grande influxo da mesma nas discussões várias acerca dos assim classificáveis “novíssimos
direitos sexuais e reprodutivos”. A propósito, Rosado-Nunes coloca os “prazeres da cama”
sem finalidades procriativas como indícios de um processo secularizador radical, de uma
revolução em curso a que se contrapõem as tentativas católicas de controle dos corpos e dos
sexos (ROSADO-NUNES, 2008a, p.77). E é particularmente nos intentos de barrar o
reconhecimento legal da competência dos sujeitos na condução de suas existências sexuais
que encontramos a ortodoxia clerical em sua forma conservadora quase ideal-típica.

Articulando, pois, as recentes argumentações dogmáticas do clero católico no Brasil, e


respectivas práticas hierocráticas, com a nossa definição a respeito do que constitui
conservadorismo eclesiástico, pode-se captar com clareza a questão de fundo em jogo no
problema enfrentado pela pesquisa. É sobretudo no que concerne às regulamentações legais
das sexualidades, que a categoria em investigação se condensa aos nossos olhos.

17
BONIFÁCIO VIII, Papa. Bula Unam Sanctam. Disponível em <http://www.newadvent.org
/library/docs_bo08us. htm>. Acesso em 30 mai. 2013.
18
Terceiro catecismo da doutrina cristã. Campos: Serviço de animação eucarística mariana, 2005, p. 264.

1712
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1715
1716
Discurso, poder e mulheres na cibercultura: uma análise
das consequências sócio-políticas do conceito de corporeidade
difundido no ciberespaço por adeptas das novas
espiritualidades femininas e formação de capital simbólico e
social
Sabrina Alves19

1. Introdução
Considerando o contexto da cibercultura e das teorias de comunicação propomos Discurso,
poder e mulheres na cibercultura: uma análise das consequencias sócio-políticas do
conceito de coporeidade difundido no ciberespaço por adeptas das novas espiritualidades
femininas e formação de capital simbólico e social.

Esta proposta de trabalho trata-se de início de uma pesquisa para uma tese de doutorado. Por
isso, aqui, será abordada mais suposições do que conclusões dado o andamento da pesquisa
encontrar-se nos meses iniciais do segundo semestre. Contudo, trata-se de uma pesquisa que
teve suas primeiras descobertas no mestrado em Ciências da Religião.

No mestrado em Ciências da Religião buscamos estudar e compreender a espiritualidade e a


construção do divino que nasce da percepção do corpo de um determinado grupo de mulheres
que tem como base, as fases sexuais biológicas das mulheres cisgênera20 e que com base nas
necessidades da contemporaneidade estabeleciam ritos de passagem pelas fases da vida. Tal
estudo foi realizado pelo método de entrevistas no modelo histórias de vida. Primamos em
observar os processos de resistência, as práticas e as potencialidades desses saberes

19
Mestre em Ciências da Religião e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Graduada em
Comunicação. Membra participante do GE GREPO coordenado por Maria José Rosado Nunes Orientada pelo
Prof. Dr. Eugênio Trivinho.. Contato: alves.sabrina@gmail.com.
20
Cisgênero é um adjetivo usado no contexto das questões de género para se referir a um tipo de identidade de
género constituída pela concordância tradicional entre o sexo biológico de um indivíduo e o seu comportamento
ou papel considerado socialmente aceito para esse sexo. Em algumas situações, cisgénero começa a ser usado
para identificar uma identidade de género concordante com um dos (tipicamente dois) estereótipos de género
socialmente reconhecidos, independentemente de haver ou não concordância com o sexo biológico Nesta
perspectiva, cisgénero é o contraste de transgénero no espectro do identidades de género. De acordo com
Jaqueline Gomes de Jesus (2012), cisgénero é "um conceito que abarca as pessoas que se identificam com o
gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento, ou seja, as pessoas não-transgénero". A origem da
palavra vem do Latim, onde o prefixo cis- significa "ao lado de" ou "no mesmo lado de", fazendo alusão à
identificação, à concordância da identidade de gênero da pessoa com seu sexo (sexo biológico, sua genitália).

1717
construídos, e, de que modo, estariam a partir dessas percepções, tais sujeitos produzindo
novas leituras religiosas e, consequentemente, políticas.

Tendo em vista que o meio de proliferação desses conteúdos produzidos por tais mulheres
ganhou fôlego no final da década dos anos 90 em função da ampliação dos computadores em
rede, entendemos que um novo e peculiar discurso esteja sendo produzido dentro das redes
sociais.

Por ser o ciberespaço local de trocas simbólicas, de busca de informação e da aquisição de


status, coloca-se portanto, como desafiador o posicionamento para a conquista de novos
recursos de poder. Tem-se então o poder de opinar e decidir com certa autonomia, ou
empoderar-se à medida que se abrange o domínio sobre determinado assunto. O que se
observa até aqui é que, tais grupos, ao utilizar ferramentas informáticas de comunicação
colocam em pauta vocabulários, expressões e imagens que denotam uma outra versão do
corpo das mulheres cisgênera, as quais cultuam a relação da natureza com seus corpos,
opondo-se ao das agendas de publicidade e da grande mídia.

Tal movimento começa a ganhar contornos nos idos anos 70 nos movimentos new age de
espiritualidade. Contudo, na década de 90 e começo dos anos 2000 com a ampliação da
internet caseira, as experiências ganharam novas formas de serem compartilhadas. Mas foi
mesmo com tomada autônoma dos ciberespaços dos blogs e redes sociais, onde o conceito de
“espiritualidade feminina” se propagou no contexto de espiritualidades fluídicas que mesclam
conhecimentos das filosofias orientais, de medicinas tradicionais, como xamãs e pajés,
neurociência e psicologia. A atuação das adeptas das “novas espiritualidades femininas” se dá
com a divulgação de encontros, workshops e a formação de “círculos de mulheres” nos quais
a proposta é quase sempre para o “resgate do sagrado feminino”, cura dos padrões
“masculinizantes” das “mulheres modernas”, e outros. Sobre o contexto do que se trata o
chamado “resgate”, teremos oportunidade em falar com o avançar da pesquisa, esmiuçando a
expressão dentro do seu contexto.

Em uma pesquisa por artigos, dissertações e teses, não encontramos nenhum que mencione a
análise dessa relação – novas espiritualidades das mulheres e ciberespaço. Encontramos sim,
um crescente interesse na análise dos movimentos das grandes religiões instituídas, como
catolicismo, protestantismo e outras, e o seu uso das ferramentas da Web, como sites, ou

1718
ciberreligiosidades. Contudo, foi observado que não fazem os devidos recortes de classe, raça
e gênero.
Outra base que pretendemos usar, mas que também verificamos que a produção é bastante
tímida, é a relação ciberespaço e feminismo. Assim como nas religiões as mulheres quase
sempre são maioria, nas redes sociais o número de pessoas que utilizam os serviços são
autodenominadas mulheres. Consideramos portanto que, estaria aí neste cruzamento de
constatações uma material de grande relevância para os estudos da cibercultura, biopolíticas,
para os estudos de gênero e para as configurações das novas-religiões.

2. Objeto de estudos
O presente Projeto de Pesquisa versa sobre a forma, o conteúdo e as consequências sócio-
políticas das mensagens produzidas pelas mulheres dos grupos denominados “círculos de
mulheres” no ciberespaço, ao utilizarem com certa autonomia as ferramentas da internet
caseira, como computadores e sinal de internet em casa sempre à disposição, para divulgar
suas vozes e expressões espiritualizadas sobre seus corpos. Nesse contexto, levaremos em
consideração que tal grupo faz uso do resgate de uma sabedoria sapiencial entrelaçada com
necessidades contemporâneas a partir de marcadores como menstruação, gestação/puerpério e
menopausa junto com a visão espiritualizada da natureza e, que, de certa forma, no
vocabulário dessas mulheres classificam as pessoas como aptas ou não a buscarem o “resgate
do sagrado feminino” como se estivessem em constante processo de cura.

Para interpretar tais protagonismos nas redes sociais, trabalhamos aqui com a ideia de que
comunicação constitui-se da interação, do processo, dos encontros, da experiência vivida,
vínculos, compartilhamento de tempo e espaço, não restrito aos meios, tampouco às técnicas.
A partir desse entendimento do processo comunicativo, questionamos a ausência de
comunicabilidade, ou seja, o seu reverso, a incomunicação, na divulgação das mensagens no
ciberespaço por tais membras dos “círculos de mulheres”. Estariam os excessos de imagens
e informação, principalmente sem fonte e transformadas em memes, terminariam por deixar
não-identificada as mensagens por outros grupos de mulheres? Nesse cenário, que para
Baitello Júnior (2005), parece extremamente propício para a incomunicação, não são apenas
os excessos ou as facilidades da propagação das mensagens, os responsáveis pela
incomunicação, mas ela é também resultante do fenômeno de desigualdades sociais e de pré-
conceitos arraigados e reforçados pelas estruturas de poder.

1719
Considerando que tais mulheres dos “círculos de mulheres” são cisgêneras, de diversos países
e comunicam-se entre si no ambiente web divulgando seus encontros, suas mensagens,
imagens e posicionamentos sobre seus corpos e o seus conceitos de “espiritualidade
feminina”, pretendemos saber por que tais grupos, mesmo estando em um ambiente de alto
grau de comunicabilidade como o ciberespaço, com possibilidade de difusão em ampla escala
das mensagens, incorrem no processo da incomunicação com outros grupos ou outras
mulheres, principalmente as cis negras e as trans*21 brancas ou negras.

3. Tempos fluídicos
Ao nos referirmos a “novos movimentos de espiritualidades”22 e, especificamente “novas
espiritualidades de mulheres”, falamos de algo pontualmente autodenominado “círculos de
mulheres” ou “círculos femininos”.23 Verificou-se no mestrado que tais agrupamentos estão
espalhados pelo mundo com diferenciadas abordagens, mesclando conhecimentos de
filosofias orientais, ocidentais, psicologia junguiana, neurociência, além de conceitos de
saúde das medicinas tradicionais de diversas etnias do mundo associando a diversos panteões
mitológicos. Observou-se até aqui que são quase sempre constituídos por mulheres cisgêneras
e, principalmente, formados nas áreas urbanas e em grande maioria classe média. Podem ser
constituídos fisicamente ou no ambiente web.

21
O termo trans pode ser a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, como transexual
ou transgênero, ou até mesmo travesti. Por isso, para evitar classificações que correm o risco de serem
excludentes, o asterisco é adicionado ao final da palavra transformando o termo trans em um termo guarda-chuva
[umbrella term] – um termo englobador que estaria incluindo qualquer identidade trans “embaixo do guarda-
chuva”. Daí a ideia do guarda-chuva. Além disso, o termo também pode incluir pessoas trans* que se
identificam dentro e/ou fora do sistema normativo binário de gênero, ou seja, da ideia normativa que temos de
“masculino” e “feminino” que forma um binário. O uso do asterisco como um termo englobador, é menos
estigmatizador e mais fluido, de modo que elimina classificações excludentes e abre também a possibilidade da
pessoa se identificar como quiser. É importante ressaltar que a identidade é soberana e as pessoas trans* tem a
palavra final quanto a sua própria identificação. Disponível em < http://transfeminismo.com/trans-umbrella-
term/>. Acesso em 15 maio 2013.
22
Em “novas espiritualidades” pensamos o conceito apresentado por TERRIN, Aldo Natale, Nova Era. A
religiosidade no Pós-Moderno. São Paulo: Loyola, 1996. Aqui o novo e o antigo se misturam. Estão sempre em
movimento nesta espiritualidade em que os elementos do Oriente se misturam com o Ocidente. Símbolos como
xamanismo, figuras míticas de pajés, meditações, e a sacralização da natureza fazem parte de uma religião
performática. Dão a idéia de um conjunto de crenças e práticas espirituais que não pertecem a ninguem.
Sobrevive no trânsito religioso e nas muitas oportunidades de composição religiosa que o individuo pode dispor.
23
Autodenominam-se Círculo de mulheres pessoas que em reunions tem como pauta o “resgate do sagrado
feminine”, conceitos junguianos de feminilidade, e algumas vezes inclui dança e cantos. Usam diversos motivos
para se disponibilizarem assim, e podem estar juntas fisicamente ou virualmente.

1720
A pesquisa tem-se configurado até aqui na reunião de textos e imagens, vídeos (espalhados
em blogs, redes sociais como facebook e twitter) produzidos por tais adeptas dos “círculos de
mulheres”. Estão espalhados pelo mundo, mas estamos nos atendo até o presente momento
aos formados em alguns países das América Latina, como Brasil, Chile e México, da Europa,
como Espanha e Inglaterra e da América do Norte, Estados Unidos. Outras entradas e a
expansão do corpus estão em processo de discussão e análise de orientação. O processo
fundamentátorio sairá do conjunto de twitter e post feitos nos blogs e facebook dos grupos de
discussão e compartilhamento frequentados pelas mulheres dos grupos “círculos de
mulheres”.

Abaixo podemos observar um dos muitos grupos de “ círculos de mulheres” convocando


outras pessoas para participarem de seus eventos.

“Benção do Útero - Sintonização Miranda Gray 24

Nascer Gerar - Nascendo o feminino, Gerando o Sagrado juntamente com Casa Sândalo,
convida à todas as mulheres para juntas realizarmos a Benção do Útero na Sintonização de
Miranda Gray pela primeira vez em JUNDIAÍ - SP .

" A Bênção está disponível para todas as mulheres, quer tenham ou não útero, quer tenham
ou não ciclo. A energia do Divino Feminino é para todas nós. A única condição para a
Bênção é que as mais jovens tenham já tido a sua primeira Lua, de modo a receber a
energia."

LEIA COM ATENÇÃO

Para participar dessa Benção é NECESSÁRIO se cadastrar no site da Miranda Gray


http://www.mirandagray.co.uk/register.html , pois a mesma emana sua energia para cada
uma que ai estará registrada.

Ao se cadastrar você recebera um e-mail avisando que seu registro foi confirmado (caso
não receba é necessário se cadastrar novamente)

Ao se cadastrar você acessara um link contendo TODAS as informações do que é a Benção


do Útero e as Meditações que iremos realizar nesse dia e nos próximos 28 dias (em sua
casa)

24
Disponível em <https://www.facebook.com/events/184644651711682/?fref=ts>. Acessado em 10 ago. 2013.

1721
Essa Benção pode ser realizada individualmente, mas como sabemos quando nos unimos
em círculos de mulheres a energia de cura que se estabelece cria uma energia de AMOR,
curando não só nós como o Feminino de Mãe Gaia

Estaremos realizando a nossa conexão na Casa Sândalo


(https://www.facebook.com/CasaSandaloBistro?fref=ts) em Jundiaí as 20h00, junto
também com nossas amadas irmãs da Casa Jaya em São Paulo, aonde a Julia Larotonda
focalizadora de círculo de mulheres e Moon Mother, estará facilitando um círculo, e
também junto das amadas irmãs de Porto Alegre, aonde a Franciele Martins focalizadora do
Círculo Treze Luas estará reunindo a mulheres para juntas sintonizarmos a Benção de
Miranda, portanto pedimos para aquelas que irão participar que coloquem o horário das 24
GTM correspondente as 20h00 aqui no Brasil

(Aquelas que não puderem comparecer, se cadastrem no melhor horário para vocês e
recebam essa energia em suas casas)

Para a BENÇÃO é NECESSÁRIO Trazer:

1 Vela

2 Cumbucas (uma para água e outra para fogo)

Frutas para abençoar

Objetos para o altar

1 Lenço cachecol para cabeça (escolha uma cor que expressa a fase do seu ciclo, ou a fase
da sua vida, ou o Divino Feminino)

Pedimos por gentileza que façam a inscrição pelo nosso e-mail nascergerar@gmail.com ou
diretamente na Casa Sândalo. Em caso de dúvidas entre em contato

Lembremos sempre que Nós Mulheres precisamos nos unir para voltarmos a compartilhar
tudo aquilo que trazemos em nosso ser. Nos unindo nos curamos umas as outras (Quando
você se cura, eu me curo. Quando eu me curo você se cura) e curaremos nossa Sagrada e
Amada Mãe Terra

Venham compartilhar esse momento magico conosco.

Unindo-se em um só VENTRE em um só Coração

Local: Rua Senador Fonseca - 247 - Centro Jundiai – SP. Horário : 19h15 as 21h30

Contribuição Voluntaria. Casa Sândalo.

1722
Tal convocação foi feita por iniciativa de um grupo no Brasil, interior de São Paulo, estando
“sincronizado” à proposta da inglesa Miranda Gray. Observa-se neste caso, um misto de
virtual com o presencial, e a exclusão imediata das mulheres trans*, das mulheres cis sem
acesso a internet, o que as poderia configurar pertentes à classe baixa e, ainda negras.

4. Problema(s) de pesquisa

Sabemos que no universo das religiões, principalmente as instituídas, as mulheres são sempre
maioria. Contudo, nunca chegam a cargos de liderança. Por isso, observar a difusão de novas
formas espiritualidade formada por grupos de mulheres que se auto-organizam em torno de
saberes do próprio corpo e utilizam de forma autônoma a web, tendo em vista o contexto
social e histórico das mulheres no mundo, é relevante para os avanços político-sociológico
não só das mulheres, mas de todas as pessoas.

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Todavia, ao entendermos que o ciberespaço é local de troca simbólicas, de busca de
informação e de aquisição de poder, tais trocas estabelecidas pelos grupos “círculos de
mulheres” podem significar um fortalecimento da cooperação, da confiança, da solidariedade
entre pessoas e instituições, ou uma formação de capital simbólico, social e político. Mas,
mesmo com adeptas espalhadas pelo mundo, e, estando em um meio que promoveria a
comunicação sem fronteiras, como a web, observamos que há uma “não-comunicação” para
com outros grupos de mulheres. Uma resistência a comunicação com outras mulheres, onde já
podemos pensar na incomunicação.

Portanto, interessa-nos saber quais as consequências sócio-políticas da incomunicação dos


grupos “círculos de mulheres” para outros grupos de mulheres que não se reconhecem nas
mensagens verbais, visuais, sonoras, não-verbais produzidas em ambiente web por esses
grupos.

Uma vez que tais grupos podem não reconhecer seus privilégios e feitas essas considerações
indaga-se tais questões:

1 ) O resultado das informações, verbais, visuais, sonoras, não-verbais que produzem,


reforçam estereótipos de genêro e de classe, gerando uma estrutura ofensiva e violenta?

2) E, ao usarem uma linguagem de autonomia do corpo, criando espaços de lideranças de


espiritualidade na rede, sabendo que religião e ambiente web ambos estão construídos sob o
domínio patriarcal, por que mesmo assim, com amplas possibilidades de comunicabilidade,
incorreriam no não-reconhecimento de seus discursos por mulheres negras cis, trans* e
outras?

3) E pretendendo informar e comunicar, por que não se comunicam com outras mulheres fora
do context de “novas espiritualidades”?

4) Além disso, ao tomarmos conhecimento do momento social e político em que esses grupos
surgiram e se desenvolveram, conteporâneos aos movimentos de mulheres e feministas de
Segunda Onda25, pretendemos investigar as origens das idéias que são divulgadas atualmente
por essas mulheres dos grupos “círculos de mulheres”.
25
Conceito de feminismo nascido a partir dos anos de 1960.

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5. Hipóteses

A suposição preliminar de que, tais adeptas ao produzirem material de divulgação, estariam


ao mesmo tempo abrindo espaços para novas formas de espiritualidade e capital simbólico na
rede, mas e, também reforçando estereótipos de gênero, sexistas, morais e conservadores,
desta forma, incorrendo na incomunicação para alguns e tendo um grande potencial de adesão
por outros. Para tanto, averiguaremos as identidades que surgem na troca dessas informações
no ambiente do ciberespaço considerando toda sua fluidez e como se constituiriam mensagens
ofensivas para outros grupos de mulheres e de pessoas.

A configuração societária dessas mulheres cisgênera que compõe os “círculos de mulheres”


por nós pesquisado é baseada não só em um fator biológico, mas também em relações
construídas socialmente de poder aquisitivo que envolve acesso a outras literaturas e leituras
de sites em outras línguas, por exemplo, e, sendo talvez, essa a chave, que aponte para o
grupo de mulheres brancas classe média.

6. Objetivos

Analisando tais grupos nas redes sociais e em blogs, pretende-se:

a) desvendar a construção sócio-político produzida por esses sujeitos no ciberespaço


sobre seus conceitos de corporeidade;
b) compreender o processo de incomunicação dos grupos de “círculos de mulheres”
com outras mulheres.
c) investigar quais seriam as consequências para outros grupos de mulheres e de
pessoas;
d) compreender como isso extrapola o ambiente midiático;
e) E, em particular verificar como estariam contribuindo para o direito e a liberdade
sexual-reprodutiva das mulheres cisgêneras brancas e negras hétero ou lésbicas negras ou
brancas não-adeptas e as outras pessoas trans*.

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7. Marcas da dominação
As grandes religiões no mundo são baseadas em figuras e princípios masculinos, como
deuses, sacerdotes, santos, profetas e iluminados. De acordo com Joan Scott (1995,p.86) essas
representações e construções dos sentidos e significados relacionados às masculinidades e
feminilidades dependem dos aspectos sociais, culturais, políticos e históricos.

Esta abordagem auxilia a justificar como símbolos constroem e destroem identidades, sendo
capazes de dar significado às estruturas de dominação masculina estabelecidas em
determinado lugar. Tendo isso, destacamos que não só os símbolos, mas os discursos e
práticas religiosas também tem marca da dominação.

Nesse embate, é importante destacar que a religião, como aspecto cultural, produz e reproduz
dominantes de uma sociedade, muitas vezes segregando, aqueles ou aquelas, determinando
espaços para as identidades. Da mesma maneira a cultura produzida pelos sujeitos se apropria
dos meios para comunicar. Pode-se dizer que as novas tecnologias da informação e da
comunicação ultrapassam a mítica noção de ferramenta, prótese ou extensão do próprio corpo
(JOHNSON; REGIS, 2002). No entanto, vale ressaltar que, a geração de um ambiente
sustentado por máquinas e softwares, esta sujeita ao peso da cultura patriarcal falocêntrica.
Por conseguinte, como outros meios, capaz de reproduzir e nutrir valores tradicionais e
conservadores que legitimam práticas conservadoras fomentando práticas discriminatórias e
de desvalorização das mulheres e de outras minorias.

Em resumo o ciberespaço não é um lugar neutro de gênero. Sem dúvidas, trata-se de um lugar
de tensões, disputas e de contestação de crenças e valores.

Nesse sentido, a pesquisa prentende contribuir para novos olhares e arranjos sócio-políticos e
culturais, não só de todas as mulheres mas também, para todas as pessoas tendo como veículo
de fomentação o ciberespaço, onde evidentemente, os devidos recortes de gênero, classe e
raça se fazem necessários.
8. Quadro teórico-epistemológico
No contexto posto, para as observações e investigações pertinentes ao objeto de estudo
utilizar-se-á para as consequências sócio-políticas das mensagens produzidas no ciberespaço
pelas adeptas dos “círculos de mulheres”, teorias focadas na temáticas de poder do
multiculturalismo, ciências e filosofias políticas, além de teorias feministas e de gênero que

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nos ajude a fazer o devido recorte para análise. Se fará necessário contextualizar também, o
percurso das mulheres na sociedade, utilizando concepções políticas e culturais sobre a
participação das mulheres e suas construções históricas na cultura ocidental. Bem como,
teorias sociológicas e antropológicas que contemplem os conceitos mencionados de “novas
espiritualidade”, “espiritualidade new-age” e “espiritualidade femininas”.

Tendo em vista a utilização do discurso do corpo no bojo das mensagens das membras dos
“círculos de mulheres”, sem dúvidas, nos parece bastante coerente o uso de teorias de
corporeidade, para amplificar a compreensão de como utilizam e com quem intenção usam o
corpo, bem como suas devidas consequências dos conceitos divulgados para outras pessoas.
Para as devidas investigações do ambiente em que tais adeptas serão investigadas, a web,
teorias da cibercultura e do ciberespaço, e, em particular das redes sociais.
Esta sendo pensado em contexto de orientação a adequação da utilização das teorias
multiculturais e pós-modernas. Além de teorias da comunicação quanto a especificação de
concepções e perspectivas.

9. Conclusão
Tendo em vistas tais desafios, tal comunicação nos apresenta uma oportunidade de troca e
novos olhares sobre o tema, para que avancemos na pesquisa de modo suficientemente
inclusivo, mesmo que, por vezes, nosso comportamento aculturado na estrutura social
capitalista, patriarcal e sexista nos faça falhar.

Verificamos que tal abordagem nos coloca diante do desafio de constantemente revermos o
lugar da fala dominante que, em maioria, é o lugar da pessoa privilegiada. Mas entendemos
que tal lugar pode muitas vezes não considerar a interseccionalidade, e mesmo uma mulher
classe média, classe historicamente oprimida mesmo que branca, pode estar no lugar social
diante de outros grupos, privilegiada, se considerarmos a situação de mulheres negras, gordas,
lésbicas, trans* e pobres.

Entendemos que a fala protagonizada por tais grupos pesquisados, “círculos de mulheres”, se
posiciona do lugar de quem assume as expressões do próprio corpo, o que sem dúvidas,
historicamente coloca as mulheres em empoderamento político diante do lugar que seu corpo
ocupa na trama social, independentemente do estado. Mas entendemos até aqui que tais

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membras dos “círculos de mulheres” ao utilizarem as ferramentas da web , lugar por si de
poder, estariam a partir de seu lugar oprimido reconstruindo falas do opressor para outros
grupos.

Agradecemos desde já, toda e qualquer contribuição que vier a partir desta comunicação, e,
serão sem dúvidas fontes de reflexão para pensarmos alguns marcadores como diferença e
intersccionalidade para os estudos de gênero, religião e cibercultura.

Referências
BAITELLO JÚNIOR, Norval. As Irmãs Gêmeas: Comunicação e Incomunicação. In

__________; CONTRERA, Malena Segura; MENEZES, José Eugênio de O. (orgs). Os Meios


da Incomunicação. São Paulo: Annablume; CISC, 2005.

SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise histórica. Educação e realidade.
In: Educação & Realidade, vol. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, pp. 71-99.

Internet

Facebook. Disponível em <https://www.facebook.com/events/


184644651711682/?fref=ts>. Acessado em 10 ago. 2013.

Transfeminismo. Disponível em < http://transfeminismo.com/trans-umbrella-term/>.


Acesso em 15 maio 2013.

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“Eu amo homossexuais como eu amo bandidos”: o pensamento
religioso de Silas Malafaia
Andrew Feitosa do Nascimento1

Introdução

Entre as tradições religiosas, as de origem abraâmica, representaram, no transcurso da


história, muito bem o papel de normalizadoras do desejo, com seus processos específicos de
controle da conduta e repressão daqueles que se desviaram/desviam do conjunto de regras por
elas elaborados.

No Brasil, a tradição religiosa cristã instalada juntamente aos demais elementos europeus
postiços próprios do processo colonizador, construiu bases sólidas para manutenção de sua
hegemonia. A partir da segunda metade do século XX o espaço antes ocupado sem
concorrência efetiva pela Igreja Católica Apostólica Romana começou a ser dividido pelo
crescente avanço dos pentecostalismos e neo-pentecostalismos.

Na passagem daquele século para o presente constituiu-se, de maneira cada vez mais
expressiva, uma bancada no legislativo federal formada essencialmente por líderes
evangélicos, assim como programas televisivos ou outros canais de telecomunicação que têm
em tais figuras seus principais produtos. Destes, destacaremos, por meio desse trabalho, a
figura do pastor Silas Malafaia e sua construção discursiva acerca das homossexualidades.

A partir do levantamento no portal eletrônico verdade gospel, delimitado nas entrevistas e na


coluna do pastor Silas Malafaia e nas manifestações presentes na seção comentários,
ambicionamos, compreender a justificação religiosa para a intolerância contra a população
formada por gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros na história do
presente no Brasil, bem como apontar a explicação religiosa sobre a formação de um
indivíduo homossexual, destacando um dos principais polemistas evangélicos em atividade no
país e sua recepção.

1
Graduado em Educação Física pela UCDB e em Turismo pela UFMS. Integrante do Universo Dialógico – GP
em História, Cultura & Política e do LabDiS (Laboratório de Estudos em Cultura e Diversidade, Política e
Sexualidade). Contato: andrew_ufms.ucdb@hotmail.com.

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Silas Malafaia se propõem a discutir, em sua coluna na verdade gospel, inúmeros temas que
envolvem a Igreja, a família, religião, política, as relações afetivas e os ensinamentos da bíblia
de um modo geral. Dos temas existentes na coluna, delimitamos a temática que se referia,
direta ou indiretamente, à homossexualidade.

Integramos, juntamente com os textos da coluna do pastor, os comentários de seus seguidores.


Houve uma seleção sobre os comentários, realizada na medida em que se encontrou um
grande numero de comentários feitos logo abaixo da fala do colunista. As falas demonstravam
a opinião de pessoas que se manifestavam, a favor ou contra, o havia sido discutido no texto
de Silas Malafaia. Os critérios utilizados para a seleção dos comentários foram as opiniões
que apoiavam Silas Malafaia e que expressavam sentimentos de apatia á homossexualidade. A
utilização destes critérios foi realizada, pois interessa-nos neste artigo, em perceber a
variedade de justificativas religiosas sobre os temas ligados a homossexualidade,
especialmente os discursos que demonstram, consciente ou inconscientemente, o sentimento
de repulsa, de raiva e de homofobia frente ao ato homossexual e/ou indivíduo homossexual.

O texto se estrutura em três momentos, sendo a apresentação do pastor evangélico Silas


Malafalaia, elencando suas atividades políticas e sociais, posteriormente, a representação do
homossexual pelo mesmo, e finaliza com os comentários realizados no portal verdade gospel.

Silas Malafaia

Silas Lima Malafaia atua como pastor protestante, estando à frente como líder da igreja
Assembleia de Deus-Vitória em Cristo, possui programa em redes emissoras de televisão, é
dono de gravadoras e autor de livros, CDs e DVDs, que como podemos notar na citação
retirada do portal eletrônico Mídia Gospel.com, possui vendas em nível nacional. Além disso,
podemos perceber também, que sua entidade possui um numero representativo de pastores em
todo país, os quais buscam disseminar as ideias religiosas de seu líder.

[...] líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, ainda é presidente do Conselho
de Ministros do Estado do Rio de Janeiro (Comerj), vice-presidente do Conselho
Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (Cimeb), entidade que agrega mais
de 8,5 mil pastores brasileiros, e presidente da Editora Central Gospel e da gravadora
Central Gospel Music. É um dos líderes evangélicos que mais vendem CDs, DVDs e livros
religiosos para evangélicos e não evangélicos no País. Há 30 anos ininterruptos na

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televisão, seu programa “Vitória em Cristo” é exibido todos os sábados em três emissoras:
Bandeirantes, Rede TV e CNT; e de segunda a sexta-feira, apenas na CNT. A versão
dublada é exibida em mais de 200 países (Mídia gospel, 11 abril 2013).

O pastor, partindo de seus preceitos religiosos, se dispõem a discuti várias questões


sociopolíticas e se posiciona “com um estilo polêmico e contestador, ataca fortemente a
banalização do casamento e do divórcio, a imoralidade sexual e a legalização do aborto e da
união homossexual” (Mídia gospel, 11 abril 2013). Chamamos a atenção, dentre essas
questões, a sua posição frente á homossexualidade.

Sobre esta questão, Silas se posiciona contra a união de pessoas do mesmo sexo, pois o
casamento está diretamente ligado a relações heterosexuais e tem como objetivo apenas a
perpetuação da espécie, é contra também, a adoção de crianças por gays, pois não acredita que
duas mulheres ou dois homens tenham a capacidade de desenvolver um ser humano (Mídia
gospel, 11 abril 2013).

No ano de 2008 liderou manifestações contra o projeto de Lei 122 diante o congresso
nacional, que objetiva criminalizar atitudes homofóbicas. Também articulou em campanhas
nas redes sociais, como no microblog Twitter em que convoca seus seguidores a enviar email
aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STJ) para que o órgão não reconheça a união
homoafetiva. Percebe-se então a postura de um ativista político contra os interesses do
movimento LGBTT e do público homossexual, posicionando nestas questões, com valores e
preceitos religiosos.

A homossexualidade na ótica de Silas Malafaia

Em uma entrevista no programa De Frente com Gabi, apresentado pela jornalista Marília
Gabriela, Silas Malafaia, referindo-se a sua relação com o homossexual, afirma: “eu amo
homossexuais como amo bandidos” (Mídia gospel, 08 maio 2013). Esta resposta era feita ao
questionamento da apresentadora, ao entender como homofóbica, a posição do pastor.

Negava-se pela resposta, que o pastor era contra, diretamente, ao indivíduo homossexual, e
que não havia qualquer impessoalidade, apenas não se aceitara o comportamento que o
indivíduo realizava. Embora, o indivíduo realize a prática homossexual, Silas Malafaia,
demonstra ter afeto que independe da atitude. Fazia então, um esforço em diferenciar o

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indivíduo de suas atitudes, e de julgar o segundo independentemente da pessoa. No entanto,
ao comparar o homossexual com um bandido, o pastor demonstra também um juízo de valor,
na qual, entende-se a prática homossexual como desviante e pecaminosa. Sobre esse juízo de
valor, percebe-se, o realsamento desta idéia, em outros momentos de sua fala, como no espaço
eletrônico verdade gospel, onde atua como colunista.

A nós, evangélicos, como Igreja de Cristo, coluna e baluarte da verdade, cabe pregar o
evangelho e convocar os pecadores ao arrependimento. Mas a nós não cabe odiar ninguém.
Devemos amar o pecador e condenar o pecado. Porém amar não é aprovar nem justificar
comportamento errado. Existe uma grande diferença entre amar a pecador e concordar com
suas práticas (Verdade gospel, 16 jul. 2013).

Percebe-se no discurso, o pecado na relação afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas,
mesmo que ela seja errada, não se deve odiar aquele indivíduo que a comete, ao contrário, o
evangélico, segundo o pastor, deve amar a todos.

Nós, evangélicos, amamos os homossexuais, mas não concordamos nem aceitamos o


homossexualismo. Não se trata de homofobia [aversão violenta a homossexuais] nem
preconceito religioso, e sim de seguirmos princípios éticos, morais e espirituais que se
baseiam no conhecimento que temos da Lei e da vontade de Deus para o ser humano ter
uma vida plena, feliz e eterna (Verdade gospel, 16 jul. 2013).

Defendo a si e aos evangélicos que situam a prática homossexual como algo errôneo, o pastor
afirma que não se trata de preconceito e nem homofobia, como é afirmado por homossexuais
e grupos do movimento LGBTT, e sim, de preceitos éticos, morais e espirituais. A lei de
Deus, que aparece na bíblia, segundo ele, aponta que uma pessoa só chegará ao “reino de
Deus”, além de outras “virtudes”, não praticar o ato homossexual ou, caso tenha cometido, se
arrepender do ato.

Em 1 Coríntios 6.10,11, está claro que nem os efeminados nem os sodomitas (ou seja, os
homossexuais passivos e os ativos) herdarão o reino dos céus. A menos que eles se
arrependam dessa prática abominável aos olhos de Deus e convertam-se a Cristo, serão
condenados a passar a eternidade no inferno, um lugar de pranto, dor e ranger de dentes
(Mateus 13.40-42; 24.51) (Verdade gospel, 16 jul. 2013).

A alternativa então, aquele que possui gestos e atitudes femininas (afeminado) e/ou aquele
que é homossexual, é se arrepender de seu ato pecaminoso, e buscar se converter na palavra
de Deus, que no caso, é mediada pela bíblia sagrada.

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Embora remédios e técnicas terapêuticas não possam transformar um homossexual em
heterossexual, se ele reconhecer seu erro, confessá-lo a Deus, pedir perdão e entregar sua
vida a Cristo, será justificado pelo sangue de Jesus, liberto do pecado que o domina e
transformado em uma nova criatura. Mas, para isso, é preciso, sobretudo, que o
homossexual tenha consciência da sua condição pecaminosa e queira dar um novo rumo à
sua vida. É uma decisão pessoal dele render-se à verdade, entregar-se a Cristo (Verdade
gospel, 16 jul. 2013).

Neste ponto de vista, a homossexualidade não é um fator genético, e sim comportamental.


Não estando ligado á questões biológicas, a homossexualidade é uma escolha. Ainda neste
ponto de vista, na medida em que o indivíduo reconhece seu erro, pode pedir perdão de seu
pecado.

Alguns dizem que a homossexualidade é uma questão biológica, genética; o indivíduo já


nasce homossexual. Entretanto, nenhum cientista jamais provou essa tese.

Não existe um gene que determine que uma pessoa será homossexual. Os cromossomas XX
determinam que ela será do sexo feminino, e os cromossomas XY, que será do sexo
masculino. Portanto, essa tese de que o homossexualismo é genético é uma falácia; uma
mentira. Deus criou o ser humano como macho ou como fêmea. Ele estabeleceu que eles
teriam atração sexual um pelo outro e que, da relação sexual entre eles, nasceriam filhos
(Gênesis 1.27,28).

Aliás, é por causa desse princípio que a espécie humana tem subsistido. Se não houvesse
casamento entre homem e mulher, não seria possível a perpetuação da espécie (Verdade
gospel, 16 jul 2013).

A explicação científica complementa o discurso religioso de Silas Malafaia para negar a


homossexualidade como fator genético. É citado pelo pastor, trechos da bíblia em que o
indivíduo, ao manter relação sexual com outro indivíduo do mesmo sexo, é sentenciado a
morte. Embora, não exista mais a pena de morte para o homossexual no Brasil, o pastor
afirma que ainda existe uma pena equivalente, senda a morte espiritual.

A despeito de ser um comportamento aprovado em muitas sociedades antigas e modernas, o


homossexualismo é pecado. A rejeição à prática homossexualismo é clara na Palavra de
Deus. Em Levítico 18.22 (ARA), constatamos uma exortação direta a não dar lugar a essa
prática.

Em Levítico 20.13, vemos que a pena na Lei mosaica para quem praticasse o
homossexualismo era a morte.

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No Novo Testamento, apesar de não haver mais a pena de morte, observamos que a morte
espiritual persiste para o homossexual, entregue por Deus ao que Paulo chamou, em
Romanos 1.28, de sentimento perverso (ARC) ou disposição mental reprovável (ARA).
Neste mesmo texto, o homossexualismo é denominado paixão infame; torpeza; erro. Leia 1
Timóteo 1.8-11 (NVI) (Verdade gospel, 16 jul. 2013).

O termo “homossexualidade” é substituído pelo termo “homossexualismo”, sabe-se que a


terminologia “ismo” remeta a doença. Além do homossexual ser considerado doente, outros
adjetivos são atribuídos pejorativamente, como paixão infame, torpeza e erro. Quanto aos
adjetivos, como a terminologia imprópria, que remete a doença, os grupos de afirmação
homossexual buscaram, no transcurso da história, demonstrar que as atribuições são
preconceituosas. Mas, segundo Silas Malafaia, os grupos ativistas querem mesmo é
conquistar privilégios na legislação e na sociedade.

Há muito tempo que venho dizendo sobre a diferença entre ativistas gays e homossexuais.
O segundo grupo quer viver apenas segundo a opção sexual que fizeram. O primeiro grupo
quer ter privilégios e direitos acima de toda a coletividade social. Querem calar qualquer
um que se opõe às suas práticas e objetivos, querem ter a liberdade para fazer o que bem
entenderem, não respeitando os valores e princípios de ninguém. Eles clamam por direitos,
mas o objetivo é cercear o direito dos outros e ter direitos para anarquizar, esculhambar,
denegrir e enxovalhar quem quer que seja (Verdade gospel, 25 jul. 2013).

A ideia de que os homossexuais buscam privilégios, e não direitos, é também sustentada em


um dos textos de portal verdade gospel, com o título Ativistas gays fazem manobra jurídica para
aprovar privilégios; entenda. O texto descreve um mandado de injunção de autoria da Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) em andamento no
Supremo Tribunal Federal (STF).2

Os comentários no portal verdade gospel

2
“Mandado de injunção coletivo, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros –
ABGLT, em que se requer, nuclearmente: i) o reconhecimento de que ‘a homofobia e a transfobia se enquadram
no conceito ontológico-constitucional de racismo’ ou, subsidiariamente, que sejam entendidas como
‘discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais’; ii) a declaração, com fundamento nos incisos
XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de mora inconstitucional do Congresso Nacional no alegado
dever de editar legislação criminal que puna, de forma específica, a homofobia e a transfobia, ‘especialmente
(mas não exclusivamente) a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a conduta de ‘praticar, induzir
e/ou incitar o preconceito e/ou a discriminação’ por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real
ou suposta, da pessoa”. Ver: Ativistas gays fazem manobra jurídica para aprovar privilégios; entenda. Verdade Gospel
Disponível em <http://www.verdadegospel.com/ativistas-gays-fazem-manobra-juridica-para-aprovar-privilegios-
entenda/?area=1>. Acesso em 17 ago. 2013.

1735
Os comentários feitos no portal verdade gospel, logo abaixo da fala de Silas Malafaia,
demonstram, no geral, apoio ao pastor. Buscam, também, reconfortá-lo, pois é perseguido por
homossexuais, que insistem em não aceitar a “verdade de Deus”.

Segundo o comentarista, a retribuição ao pastor, por ser perseguido por homossexuais e por
lutar em mostrar a “verdade”, será recompensada por Deus, que o honrará.

È tempo da igreja abrir a boca, somos cidadãos temos o direito de expressar nossa
opinião,acorda igreja vamos orar por um propósito, neutralizar as forças malignas deste
mundo. Isso já é uma perseguição com o Pastor.Vamos orar POVO DE DEUS,ACORDA
BRASIL !!! NÃO CALE PASTOR SILAS É O NOSSO DIREITO DE FALAR. DEUS
VAI TE HONRAR (Verdade gospel, 11 abril 2013).

Ao contrário da benção, aqueles que se opõem ao ponto de vista do pastor, receberão o


castigo de Deus. Percebe-se que, o líder religioso não pode ser contestado, pois possui a
verdade, aqueles que o desafiarem, estarão fadados á receber algum tipo de penitencia,
entendida como “castigo divino”.

Pastor estão tentando fazer com o senhor o mesmo que fizeram, com o apostolo Paulo. O
mundo sabe que DEUS fez Adão e EVA , não ADÃO E IVO.

Estas pessoas, vão ter que prestar contas a DEUS por tocar em um ungido do SENHOR. E
estes gays tem que tomar vergonha na cara e se aceitar como DEUS os vez .E não ser o que
não são povo dentes, que precisa de ajuda principalmente a de DEUS, para serem libertos,
destes atos demoníacos (Verdade gospel, 11 abril 2013).

Os “atos demoníacos” são as relações entre duas pessoas do mesmo sexo. Assim como no
discurso de Silas, o modelo binário, homem e mulher, é apontado também pelos seus
seguidores, como o único provindo da Deus.

Além de o homossexual estar fadado a ser punido “quando for prestar contas com Deus”,
pode sofrer também, punições de Deus antes de sua morte. Intervindo Deus, sobre a injustiça
para aqueles que defendem valores e princípios religiosos.

Nosso amado Pr. Silas, o senhor está debaixo dos nossos joelhos. Deus é contigo, eu não
tenho dúvidas! Essa perseguição ignóbil e ultrajante será resolvida pelo Deus dos céus que
não se deixa escarnecer. Que absurdo e ignorância essa… Quer dizer que não se pode mais
defender valores e princípios? Eu não posso acreditar! Então, defender valores e princípios
é ser retrógrado, quadrado, intolerante e obscuro!!! Tem nada não, Deus está contemplando
tudo e, certamente, entrará em ação (Verdade gospel, 11 abril 2013).

1736
Forja-se um modo de respeito ao homossexual, que se aceita o indivíduo, mas não a sua
prática. Como foi dito anteriormente, o homossexual é visto como uma pessoa que busca
privilégios, além de destituir valores, percebe-se na fala do comentarista, como o cristão não
deve se posicionar. Sendo “imundo” um cristão aceitar tais imposições.

basta basta basta …. ja tirou Deus das escolas, agora rediculariza as familia, casando
pessoas do mesmo sexo e permitindo que adote criança, isso e totalmente imundícia.

e uma vergonha pra qualquer pais aceitar tal feitos, os pais que aceita isso esta sem respeito.

Respeitamos os homem ou as mulheres que querem o mesmo sexo, Mais nao venha impor
leis para aceitar isso , SOU TOTALMENTE CONTRA.

cristao aceitando isso, e uma vergonha, Imundo! naquele grande dia nao vai ter
misericórdia (Verdade gospel, 11 abril 2013).

As falas demonstram que os privilégios dos homossexuais, afetam diretamente os direitos e


princípios religiosos.

Vergonha nimguem mais pode simplesmente não gostar de gays não,pois quando alguem
pensa assim eles chamam logo de preconceituoso! Pois digo-lhes,se algum gay vier dar em
cima de mim ou tentar alguma coisa de indecente em referencia a mim “SERA MENOS
UM GAY NA TERRA” (Verdade gospel, 11 abril 2013).

Nesta disputa de poder, há uma configuração entre o “bem” e o “mau”. Entre os dois lados,
Silas ocupa espaço do “bem” e os homossexuais ocupam o espaço do “mau”.

repreendo... em nome de JESUS!!! TODO DEMÔNIO, RESPONSÁVEL POR ATINGIR


MINISTÉRIO DE PASTORES, E TENTAR IMPEDIR, A OBRA DO SENHOR! não se
preocupe, pastor! o leão da tribo de judá! Vai na frente… E essa pomba gira, do inferno, vai
cair! (Verdade gospel, 11 abril 2013).

Figuras malignas religiosas são atribuídas aos homossexuais nos discursos dos comentaristas,
que revelam a luta entre o “bem” e o “mau”.

Delimitamos esta discussão à população LGBT. No entanto, este corte feito em nossa
pesquisa, não restringe a questão á este grupo, pois abrange grande parte da população, em
geral, as minorias que não se encaixam nos modelos de uma sociedade normativa.3

3
Amylton de Almeida aponta, na década de 1980, que epiléticos, hippies, mães solteiras, loucos, homossexuais,
delinquentes, prostitutas, vagabundos, drogados, alcoólatras, surdos-mudos, tísicos, exibicionistas, anões,

1737
O preconceito, manifestado de forma diferente nos grupos, parte do mesmo princípio, a
anormalidade como fator de depuração e de exclusão. Neste caso, aparecendo recentemente
na história, a heterossexualidade é o elemento normalizador.

[...] nas sociedades contemporâneas temos o hábito de naturalizar certas idéias ou


comportamentos como se os mesmos fossem cristalizados; é o caso, por exemplo, das
construções de gênero como reguladoras de práticas sexuais imutáveis. A sociedade
moderna adotou como norma imperativa de conduta sexual a idéia de heterossexualidade,
segundo a qual os seres humanos estão divididos entre os homens e mulheres que se atraem
mutuamente e, nessa e outras configurações, entre ativos e passivos, respectivamente. A
heterossexualidade nos leva a acreditar que o comportamento sexual está biológica e
anatomicamente delimitado, não há como fugir à regra (GOMES, 2010, p. 09).

Percebe-se a heteronormatividade como elemento regulador da conduta social. Neste modelo


binário, nega-se a diversidade sexual e busca-se manter o modelo de sociedade baseado na
família heterossexual com vistas à reprodução da espécie e ao agrado a Deus.

Considerações finais

Os líderes religiosos de nosso tempo, assim como em outros tempos, são firmes e dispostos a
demonstrar a verdade absoluta, e com isso, carregam multidões consigo. Após textos
calorosos na coluna de Silas Malafaia, os comentários, demonstram o apoio daqueles que se
aconchegam nas ideias conservadoras e que possuem o desejo da verdade.

O que podemos perceber, de um modo geral, neste trabalho, é o julgamento das minorias
sexuais em nome de Deus. Chamamos atenção ao discurso persuasivo sobre o indivíduo que
se torna pecador pelos pensamentos e atitudes imorais. Nota-se também, ao longo do trabalho,
os discursos normativos que são dirigidos à outra forma de pensar ou de se comportar,
motivando direta ou indiretamente, uma violência simbólica e/ou física. O fato de que não se

leprosos, sifilíticos, albinos, anarquistas, mulheres, impotentes, frígidas, os que se creem covardes, inconstantes
ou perigosos, os pecadores, os tímidos ou os que têm pênis pequeno (ou seja, ao menos metade da humanidade)
sentem-se culpados por haver transgredido a norma ou se sentem enfermos, anormais, tarados, por não terem se
ajustado em sua conduta, sentimentos e atitudes aos ditames da classe dominante. Ou, ainda, sentem-se
envergonhados ou humilhado por não corresponderem aos valores ou expectativas construídos socialmente
enquanto representações sociais sobre o “padrão ideal” do ser humano, seja do ponto de vista estético ou
comportamental. SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil contemporâneo:
representações, ambiguidades e paradoxos. Tese (Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação
em História, Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011, 14 p.

1738
tem atenção sobre estas violências por parte dos lideres religiosos, faz-nos pensar, que a
religião insiste em negar como consequência de seus valores.

Será que devemos ser todos iguais? Aos que não seguirem as verdades dos líderes estarão
correndo o risco de serem punidos por uma forma divina? Será que o modelo binário, que
garantirá a perpetuação da espécie, é único modelo criado por Deus? Estas são algumas
perguntas que podem ser feitas a partir das idéias de Silas, expostas aqui.

Na explicação da construção/descontrução identitária homossexual do ponto de vista cristão,


abriga algumas idéias que estão presentes nos discursos dos líderes religiosos cristãos. Silas
encarna tais idéias, que aparecem claramente neste texto, dentre elas, listamos:

O indivíduo não nasce homossexual, e sim, escolhe ser;


A formação identitária do homossexual está ligada a seu convívio social;
O indivíduo poderá deixar de ser homossexual na medida em que reconhece o ato como
erro, e assim, poderá para o reino de Deus.
Já o indivíduo homossexual e os grupos do movimento LGBTT na sociedade, são visto pelo
pastor, como:

Destruidores do âmbito familiar e seus valores morais;


Os ativistas do movimento LGBTT, são homossexuais que buscam privilégios na
legislação e na sociedade.
Além das idéias sobre o homossexual, destaca-se também, no discurso de Silas Malafaia,
algumas características que são típicas do ponto de vista cristão:

A religião cristã possui uma verdade absoluta;


Os pastores são porta vozes de Deus.
Entendemos que estas idéias podem ser a matrix influenciadora de um comportamento atípico
frente ao homossexual. É o caso, por exemplo, quando a religião reivindica para a si a
universalidade da verdade, negando outras explicações de mundo, tornando-se então,
inflexível com a diversidade. Neste sentido, associamos os comentários, que impelem uma
violência moral e/ou física ao homossexual, com as ideias apontadas, encarnados na figura de
Silas Malafaia. E, afirmamos, por este estudo, que há incongruências discursivas, entre as
idealizações nas falas de Silas e os discursos e práticas de preceitos religiosos cristãos. Por
exemplo, a afirmação que o cristão deve amar a todos, independente de suas práticas, se

1739
contradiz, aos sentimentos de ódio e repulsa frente à diversidade sexual, que por sua vez,
podem ser observados na sessão comentários do portal eletrônico Verdade gospel e neste
texto.

Referências

GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Representações e práticas sexuais na Antiguidade. In.


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de (orgs). Poéticas do
Desejo. Campo Grande: Life, 2009, p. 09-28.

SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil contemporâneo:


representações, ambiguidades e paradoxos. Orientação de Vera Lúcia Puga de Souza. Tese
(Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de
História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011.

Internet

A intolerância vergonhosa do ativismo gay; Pr. Silas comenta. Verdade gospel. Disponível em
<http://www.verdadegospel.com/a-intolerancia-vergonhosa-do-ativismo-gay-pr-silas-
comenta>. Acesso em 25 jul. 2013.

Ativistas gays fazem manobra jurídica para aprovar privilégios; entenda. Verdade gospel. Disponível em
<http://www.verdadegospel.com/ativistas-gays-fazem-manobra-juridica-para-aprovar-
privilegios-entenda/?area=1>. Acesso em 17 ago. 2013.

É possível a um homossexual abandonar essa prática? Verdade gospel. Disponível em


<http://www.verdadegospel.com/e-possivel-a-um-homossexual-abandonar-essa-pratica/>.
Acesso em 16 jul. 2013.

Eu amo os homossexuais como amo os bandidos, diz Silas Malafaia à Gabi. Mídia gospel.
Disponível em <http://www.midiagospel.com.br/eu-amo-homo-como-amo-bandidos-diz-
silas-malafaia-a-gabi>. Acesso em 08 maio 2013.

Conheça o pastor Silas Malafaia. Mídia gospel. Disponível em


<http://www.midiagospel.com.br/noticiasgospel-religiao-evangelicas/conheca-pastor-silas-
malafaia>. Acesso em 11 abril 2013.

Silas responde a intolerantes gays que querem cassar seu registro de psicólogo. Verdade
Gospel. Disponível em <http://www.verdadegospel.com/pr-silas-responde-a-intolerantes-
gays-que-querem-cassar-seu-registro-de-psicologo/>. Acesso em 11 abril 2013

1740
1741
Intolerância religiosa no Brasil: características, estratégias
de enfrentamento e tendências no Serviço Social
Graziela Ferreira Quintão4

Introdução

Historicamente, as religiões têm desempenhado papel importante nas relações sociais,


políticas e econômicas na sociedade brasileira. Nas últimas décadas, o cenário religioso
brasileiro sofreu mudanças; o catolicismo, religião historicamente hegemônica sofreu perdas
gradativas entre seus adeptos. Enquanto há uma tendência de redução de católicos, o
crescimento do número de evangélicos, e especialmente os (neo) pentecostais, multiplicam a
cada década.

Na sociedade civil e nos movimentos sociais em particular, a religião vem ocupando um


espaço diferenciado. A ampliação dos direitos ao exercício da liberdade religiosa tem se
destacado como importante fenômeno na democracia no Brasil. Contudo, perduram
manifestações de resistência aos avanços alcançados no ordenamento constitucional
brasileiro, que se expressam através de práticas de intolerância religiosa, inclusive dentro das
instituições que formam o sistema de justiça e de garantia de direitos, em especial
direcionadas aos grupos religiosos afro-brasileiros. Diante desses ataques, têm crescido as
reações dos grupos religiosos afro-brasileiros e de seus aliados, que vinham sendo quase
insignificantes nas duas últimas décadas.

Considerando a importância deste tema para a comunidade do Serviço Social, apresentaremos


dados de um levantamento de estudos produzidos em programas de pós-graduação na área de
Serviço Social e dos posicionamentos políticos de sua principal entidade representativa - o
Conselho Federal de Serviço Social - em relação a discussões e ações de movimentos sociais
acerca da liberdade e intolerância religiosa no Brasil.

4
Mestre em Política Social pela UFF Assistente Social do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Contato: grazielaquintao@yahoo.com.br.

1742
Intolerância religiosa no Brasil: características e estratégias de enfrentamento

As tendências no cenário religioso brasileiro apontam para uma redução dos católicos. De
acordo com o censo demográfico de 2000, se em 1970 os católicos representavam 93,1% da
população, esse percentual foi caindo a cada década, chegando em 1991 a 83,3% e em 2000
representavam 73,8% da população.5 Em 2010, seguindo a tendência de redução observada
nas duas décadas anteriores, e ainda mantendo-se maioria, os católicos passaram a representar
64,6% da população. Em paralelo, foram nessas últimas décadas que houve maior
crescimento do conjunto de evangélicos, somando em 2000, 26.184.941 pessoas (MARIANO,
6
2004). A consolidação deste crescimento dos evangélicos foi verificada em 2010, quando
passaram a representar 22,2% da população, 42,3 milhões de pessoas.7 Nas duas últimas
décadas do século XX, o grupo dos “sem religião”, assim como os evangélicos, apresentou
maiores taxas de crescimento, constituindo hoje 7,3% da população (idem). Já os cultos afro-
brasileiros vêm sofrendo uma perda lenta, gradual e contínua de seguidores nas duas últimas
décadas do século XX. Em 2000, apenas 0,34% dos brasileiros se declararam pertencentes à
umbanda ou candomblé (PIERUCCI, 2004), percentual que se manteve em 2010.8

Toda a agitação que tem sido vista no cenário religioso brasileiro é, de acordo com Pierucci
(2008), nada mais que o resultado da ampla liberdade de que gozam os profissionais e
ativistas de toda e qualquer expressão de crença religiosa em nossa República. Desde a
constituição republicana,

“o Brasil passou por um longo processo histórico-religioso, gradual, mas constante, quase
imperceptível em seus avanços paulatinos, mas muito bem marcado no traçado da trajetória
percorrida sem retorno à vista: a progressiva demissão do estamento eclesiástico católico, a
destituição das regalias e precedências monopolísticas a ele reservadas por quatrocentos
anos como religião oficial, do período colonial até o fim do Segundo Império.”
(PIERUCCI, 2008, p. 14)

Nesse sentido, a evolução no ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito à liberdade
religiosa, gradativamente ampliou o exercício desse direito. No período imperial, a

5
“O exato seria dizer que mostra isso uma vez mais, como, aliás, tem feito sempre, compassando a intervalos
regulares de dez anos um declínio que é constante, persistente... parece impor-se ao catolicismo brasileiro como
um fado: inexorável.” (PIERUCCI, 2004, p. 18).
6
Dentre estes, foram os pentecostais os que mais cresceram; de 1991 a 2000 saltando de 8.768.929 para
17.617.307 de adeptos, entre 1991 a 2000. Ou seja, o número de adeptos saltou de 5,6% para 10,4% da
população (idem).
7
Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias>. Acesso em 14 jul. 2012.
8
Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias>. Acesso em 14 jul. 2012.

1743
Constituição de 1824 estabelece a religião católica como oficial, embora estenda às outras
religiões o direito à liberdade. Contudo, o exercício dessa liberdade se restringia ao âmbito
doméstico, o que significava a existência de uma inferioridade jurídica dessas religiões em
relação à Igreja Católica.9

Corrêa (2008) sinaliza que apesar das proclamações liberais da Constituição de 1824 e do
Código Criminal de 1830, o direito ao culto doméstico era válido para os protestantes
europeus, e não para os africanos, sendo que o sistema de controle das religiões de origem
africana ficava, na prática, à mercê das autoridades locais. De acordo com Silva Jr. (2007), a
história do colonialismo e o escravismo no Brasil confunde-se com a história da subordinação
do direito penal aos interesses dos senhores de engenho, na medida em que a lei, sobretudo no
Código Criminal do Império, não se limitava a garantir o trabalho e a subjugação do negro
escravizado. “Mais do escravizar e explorar o africano, era necessário importa-lhe uma
religião, devassar sua identidade cultural, convencendo-o do poder de vida e de morte de que
dispunham seus algozes.” (SILVA JR., 2007, p. 308)

Com a Proclamação da República, a Constituição de 1891 estabelece a separação entre Igreja


Católica e Estado, garantindo liberdade para o exercício de todos os credos religiosos. 10 No
mesmo sentido, o Código Penal de 1890 passou a qualificar como crime os atos contra a
liberdade de culto e prescrever a punição cabível. Contudo, tal avanço constitucional não
alterou a repressão estatal às práticas religiosas afro-brasileiras, já que esse mesmo código
penal criminalizava as práticas de curandeirismo, espiritismo e utilização da magia.
(CORRÊA, 2008) A Constituição de 1934 dará continuidade à perspectiva da Constituição
11
anterior, no que diz respeito à separação entre Igreja e Estado. Já a Constituição de 1946
trouxe uma nova dimensão na relação Igreja-Estado.12 A Constituição de 1969 destacava-se
em relação às anteriores por associar o princípio da igualdade à proibição de discriminação
em razão de credo religioso.13 A Constituição de 1988 imprime ao Estado um caráter

9
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em 25 jul.
2013.
10
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em
25 jul. 2013.
11
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm> Acesso em
25 jul. 2013.
12
Os avanços verificados estão no seu artigo 141, que assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no
país a liberdade e o direito à assistência religiosa.
13
Conforme mostra em seu art. 153, § 1º, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho,
credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.” Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc01-69.htm> Acesso em 25
jul. 2013.

1744
rigorosamente laico, vedando de um lado, que o mesmo estabeleça alianças ou relação de
dependência com qualquer culto; e de outro, que dificulte o funcionamento de culto de
qualquer natureza (SILVA JR.º, 2007). Essa transição e consequente superação do discurso
teológico-confessional sobre a liberdade religiosa para um patamar jurídico-constitucional
trouxeram aos Estados contemporâneos, a exemplo do Brasil, como refere Corrêa (2008, p.
44) “uma possibilidade de alargar o âmbito de proteção desta liberdade, realçando o debate
em torno da igualdade de condições neste aspecto para todos os cidadãos.”

Perduram, contudo, manifestações de resistência aos avanços alcançados no ordenamento


constitucional brasileiro, manifestações e práticas de intolerância étnico-religiosa, inclusive
dentro das instituições que formam o sistema jurídico, o que acaba desfavorecendo e portanto,
não garantindo direitos a profissionais e ativistas de determinados grupos religiosos. Segundo
Silva Jr. (2007), a partir de alguns dados da realidade, como uma pesquisa realizada por
Schiritzmeyer (1997), de julgamentos de curandeirismo e charlatanismo no Brasil, no período
de 1900 a 1990 - que demonstra a frequente associação feita pelo judiciário entre tais delitos e
práticas religiosas de origem africana, vistas como insalubres, bárbaras e primitivas - é
possível afirmar “a existência de um verdadeiro hiato entre os direitos constitucionalmente
deferidos e o cotidiano de violações de direitos que vitimizam os templos e ministros
religiosos do candomblé.” (SILVA JR.º, 2007, p. 315) Neste sentido, o autor aponta ainda,
que templos de candomblé em todo o país não têm assegurado o exercício de direitos
deferidos às religiões. 14 São também frequentes denúncias de invasão dos templos, praticadas
por agentes de segurança pública, em qualquer horário, sem mandado judicial. (idem)

A intolerância religiosa não é um problema em si mesmo, que está circunscrito ou limitado às


diferenças de crença religiosa. Integra a intolerância étnico-racial, que está relacionada com
diferenças identitárias, individuais e coletivas, referidas às ideias de etnia, raça, cor, gênero,
crenças, aparência, origem, entre outros. Assim como afirmou-se na Declaração de Durban,
África do Sul, em 2001, 15 a intolerância dos tempos atuais está intimamente relacionada com
a conquista e dominação pelos europeus dos povos da África, das Américas e da Ásia. Tal
dominação utilizou-se de força militar com a eliminação dos corpos (genocídio) e o etnocídio,
que visava à eliminação dos valores étnicos dos povos dominados. “Era preciso apagar da

14
Dentre os quais, a imunidade tributária do templo; a inscrição dos sacerdotes no sistema de seguridade social;
o reconhecimento da validade civil do casamento realizado nos templos; o direito de sepultar os sacerdotes no
templos, entre outros. Grande parte dos sacerdotes, geralmente pessoas de origem extremamente humilde,
envelhece e morre sem ter acesso à previdência social.
15
[PDF] Declaração de Durban – OAS – Disponível em < www.oas.org/.../ ..>. Acesso em 25 jul. 2013.

1745
mente desses povos as suas lembranças, suas concepções de mundo, tradições e crenças, e os
seus deuses.” (DA SILVA, 2009, p. 17) As religiões afro-brasileiras foram perseguidas pela
igreja católica ao longo de quatro séculos, e pelo Estado republicano, sobretudo na primeira
metade do século XX, quando este utilizou a repressão e controle social e higiene mental. Da
mesma forma, também pelas elites sociais, que nutrem um misto de desprezo e fascínio pelo
exotismo, que sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus
descendentes. Mas desde a década de 1960, quando essas religiões conquistaram relativa
legitimidade nos centros urbanos, não se tinha conhecimento de agentes antagônicos tão
empenhados em desqualificá-las, como os evangélicos (neo)pentecostais. 16

Nesse sentido, o autor recolheu informações sobre casos de “ataques” 17


(neo)pentecostais às
religiões afro-brasileiras, que foram publicados na imprensa escrita e na literatura acadêmica
nos últimos anos, que nos possibilita entender melhor a natureza e a extensão das
perseguições.

A ofensiva das denominações evangélicas (neo)pentecostais estende-se, desde os cultos no


interior das igrejas, onde são frequentes as sessões de exorcismo ou “descarrego” de entidades
demoníacas, geralmente associadas aos deuses de outras denominações religiosas, em especial
18
as afro-brasileiras, até aos programas televisivos religiosos, onde símbolos e elementos das
religiões afro-brasileiras são desqualificados. Outros exemplos ilustram práticas de não
aceitação de símbolos da herança africana no país que tenham relações com as religiões afro-
brasileiras, como quando livros didáticos abordando a temática sobre história e cultura afro-
brasileira começaram a ser produzidos. O fato de ter sido colocado nos livros escolares, as

16
Silva (2007) destaca as três ondas, fases ou momentos históricos que dividem o movimento pentecostal, que
surgiu no Brasil no início do século XX, sobretudo a partir das décadas de 1950 e 1960. Nessa época, esse
movimento religioso expandiu a base de suas igrejas, adensando o número de denominações e ganhando maior
visibilidade. A segunda onda do pentecostalismo se distinguiu pela ênfase do dom da cura divina, e a terceira,
iniciada nos anos 1970, com grande projeção nas duas décadas seguintes, foi marcada por diferenças
significativas no perfil das igrejas surgidas e nas práticas adotadas, com o acréscimo do prefixo latino “neo”, o
neopentecostalismo assumiu um abandono( ou abrandamento) do ascetismo, valorização do pragmatismo,
utilização da gestão empresarial na condução dos templos, ênfase na teologia da prosperidade, utilização da
mídia para o trabalho de proselitismo em massa e de propagandas religiosas, e centralidade da teologia da
batalha espiritual contra as outras denominações religiosas, sobretudo, as afro-brasileiras e o kardecismo.
17
Segundo o autor, “o termo “ataque” está sendo usado no sentido de uma investida pública de um grupo
religioso contra outro. Certamente as razões desse ataque se justificam, do ponto de vista do “atacante”, por
convicções religiosas. E deste ponto de vista, o termo é visto como sinônimo de “evangelização”, “libertação”,
etc. Faz parte aliás, de um léxico “belicoso”, no qual figuram outros termos como “batalha”, “guerra santa”,
“soldado de Jesus” e outros, presentes no discurso neopentecostal que descreve suas ações contra o demônio e os
sistemas religiosos que supostamente o cultuam. Do ponto de vista dos grupos afro-brasileiros, obviamente o
ataque possui inúmeros outros significados, sendo visto como sinônimo de “intolerância religiosa”,
“preconceito”, “discriminação”, etc.”(SILVA, 2007, nota 17).
18
Como o “Fala que eu te escuto”, “Ponto de Luz”, “Pare de sofrer”, “Show da Fé”, entre outros, transmitidos
pela Rede Record e por outras emissoras que têm seus horários comprados pelas igrejas (neo)pentecostais.

1746
religiões de origem africana ao lado de religiões hegemônicas como o cristianismo, dando-
lhes o mesmo espaço e legitimidade destas, gerou protestos de educadores e políticos
evangélicos. Além disso, a ofensiva se realiza através de publicações de igrejas (neo)
pentecostais, como o livro “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios?”, 19 que foi objeto
20
de uma Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal da Bahia, por conter de forma
recorrente, afirmativas preconceituosas e discriminatórias desferidas contra outras formas de
manifestações religiosas e credos, em especial, os afro-brasileiros. A Justiça Federal de 1.ª
Instância da Bahia deferiu a liminar, tal como requerida pelo Ministério Público Federal. 21
Contudo, a venda do livro foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal - a partir de recursos
reivindicados pelos acusados - que defendem a liberdade de expressão - e atualmente é
possível adquiri-lo em lojas, templos ou pelo site da IURD.

Diante desses ataques, as reações dos grupos religiosos afro-brasileiros e de seus aliados, que
vinham sendo quase insignificantes nas duas últimas décadas, têm crescido, embora não
representem “um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos, que
cada vez mais se empenham em ocupar espaços estratégicos nos meios de comunicação e nos
poderes Legislativo e Executivo.” (SILVA, 2007, p. 18) Na última década, porém, algumas
entidades federativas de religiões afro-brasileiras têm procurado estabelecer interlocução com
agentes do poder público, movimento negro, organizações não governamentais, etc.

Na Bahia, iniciou-se em 2000, o Movimento Contra a Intolerância Religiosa, que constituía


uma articulação da Federação Baiana de Culto Afro, o Centro de Estudos Afro-Orientais (da
UFBA), o Programa Egbé – Territórios Negros (desenvolvido pela Koinonia – Presença
Ecumênica e Serviço) e outras instituições afins. Em São Paulo, houve organização de
passeatas e atos de protestos contra a discriminação religiosa, numa articulação do Instituto de
Tradição e Cultura Afro-brasileira (Intecab) e a Comissão de Assuntos Afrodescendentes com
as comunidades religiosas. No Rio Grande do Sul, surgiu em 2002, a CEDRAB (Congregação
em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras), que é formada por sacerdotes das religiões de
matriz africana. (ÁVILA, 2009) Em 2008, foi fundada no Rio de Janeiro, a Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), que tem como principais objetivos, combater o
preconceito religioso, com a formação de uma agenda e de reconhecimento de direitos à
liberdade religiosa e enfrentamento da intolerância religiosa, a partir de demandas
19
O livro é de autoria do Bispo Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus.
20
Disponível em <www.prsp.mpf.gov.br/.../Acao%20Civil%20Publica%20> Acesso em 24 nov. 2011.
21
Disponível em <http://www.prba.mpf.gov.br/links-uteis/manifestacoes/acoes/liminar_universal_.pdf>. Acesso
em 25 jul. 2013.

1747
endereçadas ao poder público, em especial aos sistemas de segurança pública e de justiça –
representando um diferencial deste movimento social.

Nesse sentido, a CCIR tem ensejado ações de mobilização popular, que visam à discussão de
propostas de políticas públicas específicas relativas à questão da intolerância religiosa. O
evento mais importante promovido pela Comissão, a “Caminhada em Defesa da Liberdade
Religiosa”, que está em sua quinta edição e é uma passeata realizada na cidade do Rio de
Janeiro, na orla de Copacabana (local escolhido por proporcionar maior visibilidade para o
evento), na qual as pessoas levam cartazes e faixas com suas reivindicações, no que diz
respeito ao campo religioso do acesso a direitos relacionados à liberdade religiosa. Os
participantes da Caminhada são convidados a usar roupas brancas ou aquelas características
de sua religião, o que possibilita que sejam identificadas várias denominações religiosas e
étnicas. A Primeira Caminhada foi realizada no dia 20 de setembro de 2008 e reuniu cerca de
vinte mil pessoas, contando com comitivas de onze Estados e duzentos e trinta e cinco ônibus
de oitenta e sete municípios fluminenses. No processo de mobilização da Caminhada, a
Comissão buscou dialogar com a Sociedade Beneficente Muçulmana, a Federação Israelita do
Estado do Rio de Janeiro, dentre outras, trazendo para o movimento grupos que não
participaram da constituição da Comissão, mas que também aderiram à reivindicação de
políticas públicas voltadas ao tema, o que formou o Fórum de Diálogo Inter-Religioso, ainda
em 2008, agregando judeus, muçulmanos, hare krishnas, budistas, umbandistas, ciganos,
candomblecistas, entre outros. Esse Fórum objetiva a difusão, ampliação do debate e
mobilização da sociedade em defesa das garantias constitucionais relativas à liberdade de
expressão e consciência religiosa.

Nos eventos mencionados, foi distribuído o Guia de Luta contra a Intolerância Religiosa e o
Racismo, que trata de temas como a discriminação racial, intolerância e discriminação
religiosa, assim como informações sobre a legislação. Neste sentido, busca orientar as pessoas
para que elas possam identificar atos de intolerância e registrá-los nas delegacias de polícia,
22
como também esclarecer os policiais sobre a Lei Caó e a maneira adequada de tipificar os
crimes dessa natureza.

Tais ações da CCIR demonstram, que em pouco tempo de existência, conquistou uma maior
visibilidade e debate no espaço público, do que movimentos existentes há mais tempo em

22
Lei 7.716/89 - Carlos Alberto de Oliveira - que a partir das alterações que sofreu, passou a definir o crime de
intolerância religiosa.

1748
outras regiões do país, visto ter ensejado a criação de um Plano Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa. O Plano Nacional incluiria questões, como a implementação de lei que
torna obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira; proibição por parte
do governo federal a empresas e órgãos públicos de anunciarem ou patrocinarem programas
de emissoras que transmitem ou produzem programação de conteúdo discriminatório ou
proselitista; a punição pelo Ministério das Comunicações, com a retirada de programação do
ar e aplicação de multas às emissoras de televisão e rádio que promovam a intolerância
religiosa; a atualização de todas as delegacias do país para o uso da Lei 7.716/89 (Lei Caó), e
a realização de um censo nacional das casas de religião de matriz africana em parcerias com
universidades em cada estado. Contudo, a possibilidade de veto pela Bancada Evangélica no
Congresso Nacional indica que há grandes desafios colocados para esse movimento, na
concretização de políticas públicas.

A Subprocuradoria-Geral de Justiça de Direitos Humanos e Terceiro Setor do Ministério


Público do Estado do Rio de Janeiro promoveu em 17 de agosto de 2009, uma audiência
pública para debater o combate à intolerância religiosa, sendo a primeira vez que um
Ministério Público estadual realizou um encontro para tratar do tema. A reunião contou com a
participação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa e da sociedade civil
organizada, e na ocasião, foi designado um promotor de justiça como representante do MP
junto à Comissão. Embora tal parceria do MPRJ com os movimentos sociais que lutam contra
a referida causa seja um avanço, apenas reafirma um dos preceitos institucionais, na medida
em que está entre as funções do Ministério Público, combater todos os tipos de discriminação,
inclusive os de natureza religiosa. Além do Ministério Público, outras instituições apoiaram a
Comissão, como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ); Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro; Universidade Federal Fluminense (UFF), Secretaria Especial de
Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR), entre outras organizações.

Liberdade e intolerância religiosa no Brasil: tendências no Serviço Social

Foi realizado por Quintão (2012), um levantamento de teses e dissertações produzidas em


cursos de pós-graduação na área de Serviço Social que trataram de temas relacionados à
religião ou cursos de outras áreas de conhecimento, que trataram especificamente de serviço

1749
social e religião.23 Foram verificados, 27 cursos de pós-graduação stricto sensu na área de
Serviço Social. Em relação a grupos e projetos de pesquisa, foram encontrados 04 específicos
sobre temas e questões referentes à religião. Contudo, não se pode afirmar que estes grupos
sejam únicos e nem que outros também estudem a questão de forma transversal a outros
temas. Isso porque a base web ainda é recente e as atualizações são ainda muito limitadas nos
sites de âmbito acadêmico. No levantamento, sobre a produção nos programas de pós-
graduação foram encontrados 34 estudos, sendo que nenhum deles tratou sobre questões
referentes à liberdade ou intolerância religiosa.

A maioria dos estudos levantados foi produzida em períodos mais recentes, tendo sido
encontrados 14 estudos no período de 1991-2000 e 17 estudos entre 2001 -2010. Quanto ao
nível acadêmico, são 27 dissertações de mestrado e 07 teses de doutorado. Em sua maioria,
foram produzidos em universidades católicas, onde foram encontrados 20 estudos. Em relação
ao conteúdo dos estudos, foi verificado, a partir da leitura mais atenta dos resumos e
sumários, que aparecem mais os temas referentes à Igreja Católica e história do Serviço
Social; criação das primeiras escolas de Serviço Social; pastorais da criança e da juventude;
assistência social católica; comunidades eclesiais de base, e recentemente, ainda que de forma
pontual, temas sobre a relação do serviço social com a religião; dependência química, gênero
e religião; violência; igrejas evangélicas e secularização; assistência social evangélica, dentre
outros.

24
A ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social), entidade
acadêmico-política e científica, tem o papel de propor e coordenar a política de formação
profissional na área de Serviço Social, com o foco central, na formulação e implementação de
estratégias que permitam a articulação entre a graduação e a pós-graduação, e ainda, a
definição de uma política de pesquisa para a área de Serviço Social que priorize eixos, temas e
abordagens, que favoreçam a qualificação da produção e fortaleça e consolide o Serviço
Social como área de produção e conhecimento.

Neste sentido, o estatuto da ABEPSS, aprovado na Assembleia de dezembro de 2008, prevê,


no artigo 34, a necessidade de criação dos grupos temáticos (GTs) para pesquisas na área de
Serviço Social. A implementação dos GTPs teve início em 2010, e um aspecto fundamental
23
A busca foi realizada em bancos de teses digitais, quais sejam, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações, Banco de Teses da Capes, assim como nos bancos de teses e dissertações de todos os programas
de pós-graduação da área de Serviço Social. O período de busca se deu entre os meses de agosto e setembro de
2011.
24
Fundada em 1946 como ABESS (Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social).

1750
que perpassa o debate em todos eles é a vinculação entre o projeto ético-político profissional e
uma perspectiva societária emancipadora, orientada por uma compreensão do ser social como
um ser sócio histórico auto constituído pelo trabalho e criador da cultura, em suas diversas
formas de manifestações e fruições. 25

Os GTPs se constituem a partir de grandes eixos temáticos, que comportam dimensões como
a democracia, cidadania, esfera pública, direitos humanos, dentre outros. Contudo, na
sistematização proposta para as áreas dos GTPs novamente há uma ausência do tema da
religião nas áreas propostas, o que desfavorece a abertura para a construção de um espaço
privilegiado para a reflexão teórica e estímulo para a elaboração, produção e circulação de
ideias e conhecimento acerca de temas sobre a religião; religiosidades; espiritualidade;
conflitos religiosos; etc, e suas influências na sociedade e no Serviço Social, e mais
especificamente, no exercício profissional dos assistentes sociais.

No que diz respeito ao posicionamento do Serviço Social em relação aos movimentos sociais
que hoje direcionam suas lutas para o direito à liberdade religiosa e reivindicam políticas
públicas que combatam a intolerância religiosa e promovam a valorização de expressões e
culturas dos grupos religiosos mais atingidos, foi verificada no website do CFESS (Conselho
Federal de Serviço Social), a página do ‘CFESS Manifesta’ 26
– onde estão disponíveis os
principais posicionamentos políticos da categoria. Foram verificados todos os manifestos
disponíveis, e entre as várias questões abordadas nos mesmos, não se encontrou temas
relativos ao direito à liberdade religiosa ou combate à intolerância religiosa.

Considerações finais

De acordo com Trindade (2001), os instrumentos e técnicas que medeiam as atividades


produtoras de regulação das relações sociais – aqueles que servem de apoio para o
estabelecimento de controle de comportamentos sociais, baseados em normas sociais – não
são objetos concretos. Segundo a autora,

“Estes instrumentos possuem um caráter menos “instrumental” (no sentido de ser algo que
se utiliza para ajudar a atingir um resultado concreto) e mais processual, pois a mediação se

25
Disponível em <http://www.abepss.org.br/briefing/documentos/GTPs_Novembro_de_2009_Final.pdf>.
Acesso em 25 jul 2013.
26
Disponível em <http://www.cfess.org.br/publicacoes_manifesta.php>. Acesso em 25 jul. 2013.

1751
constitui em procedimentos, atitudes, posturas que visam levar os homens a produzir novas
atitudes” (TRINDADE, 2001, p.05).

São instrumentos diferentes daqueles que medeiam a produção material, o que significa, que
eles não trazem em si uma dinâmica de aplicação que, se seguida à risca, proporcionará a
consecução daquilo que se planejou. “Os aspectos relativos à relação
subjetividade/objetividade são muito mais decisivos, já que os resultados almejados se
referem à mudança na consciência de outras pessoas, na mudança de seus comportamentos.”
(idem) A mediação se realiza menos em decorrência da configuração e organização da
técnica, e mais em decorrência da postura e atitude do sujeito que age. O que explica o fato de
tais instrumentos e técnicas sociais só adquirirem conteúdo à proporção que são postos em
movimento pela subjetividade. Nesse sentido, o alcance dos resultados pretendidos é muito
mais incerto. Há uma diminuição das possibilidades de controle do processo de
desenvolvimento da atividade e dos resultados. Conforme nos diz a autora,

“Dessa forma, as técnicas não são portadoras de uma capacidade imanente de alcançar
determinados resultados, pois são mobilizadas a partir da capacidade teleológica dos
sujeitos, no sentido de pôr finalidades, a partir das necessidades presentes na realidade a ser
transformada. Portanto, há um conteúdo e uma direção social próprios ao uso das técnicas,
que impossibilita qualquer consideração sobre uma possível neutralidade técnica.”
(TRINDADE, 2001, pp. 05-6, grifo da autora).

É na operacionalização de seus instrumentos interventivos (atendimentos, entrevistas, visitas


domiciliares e institucionais, etc), que os assistentes sociais poderão se defrontar com
expressões da identidade religiosa da população usuária dos serviços prestados. Nesse sentido,
posicionamentos sectários, proselitistas e discriminatórios podem ocorrer no cotidiano de
trabalho dos assistentes sociais, de forma consciente ou não.

A escassez de estudos específicos sobre temas relacionados à liberdade e intolerância


religiosa revela que o Serviço Social não tem contribuído com a produção de conhecimento
destas questões, tornando-se portanto, despreparado para o debate sobre a atualidade da
questão religiosa na realidade brasileira. Estudos que envolvam discussões sobre as minorias
religiosas, em especial as de matriz africanas, que historicamente têm sido discriminadas e
perseguidas, e ainda, as mudanças no cenário religioso brasileiro, além do declínio de adeptos
do catolicismo e o crescimento das denominações evangélicas, dentre muitas outras questões.

1752
O posicionamento político da principal entidade representativa do Serviço Social sugere que,
embora a profissão tenha avançado bastante em seus últimos Códigos de Ética sobre a questão
da religião, hoje defendendo como um dos seus princípios fundamentais; o exercício do
Serviço Social sem ser discriminado nem discriminar, por questões de religião,27 não há,
contudo, uma luta pelo reconhecimento deste direito, em específico, sugerindo uma
hierarquização da escala de direitos dentro da profissão, onde o direito a pertencer a uma
religião e exercer uma identidade religiosa não é objeto de nenhum posicionamento nas
entidades da profissão e, portanto, não recebe prioridade em seu reconhecimento e garantia. O
estudo sugere que a superação de tais limitações parece estar na inclusão de questões
referentes à religião e à espiritualidade nos espaços de debates acadêmicos e profissionais do
Serviço Social.

Referências

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congregação em defesa das religiões afro-brasileiras. Orientação de Ari Pedro Oro.
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QUINTÃO, Graziela Ferreira. A. Questão religiosa no trabalho do assistente social:
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( Mestrado em Política Social) , UFF, Niterói, 2012.

27
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em 25 jul. 2012.

1754
1755
GT16 – Marketing, espetáculo e ciberespaço:
entre diversidades e (in)tolerâncias religiosas

Coordenador/a

Eduardo Meinberg de Albuquerque Jacqueline Ziroldo Dolghie


Maranhão Filho Doutora em Ciências da Religião pela
Doutorando em História Social pela USP. UMESP.
Mestre em História pela UDESC.

Comentadores
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Emerson Sena da Silveira da Religião pela mesma instituição.
Doutor em Ciência da Religião pela UFJF.
Professor no Programa de Pós-Graduação Stewart M. Hoover
da mesma instituição. Professor da University of Colorado.
Diretor do Center of Media, religion and
Leonildo Silveira Campos Culture da mesma instituição.
Doutor em Ciências da Religião pela
UMESP. Professor e Coordenador do

Resumo

De que maneiras mercado, marketing, espetáculo e ciberespaço se articulam às múltiplas


formas de (in) tolerâncias e diversidades religiosas? Inspirado por esta questão, este GT
propõe-se a analisar trabalhos que envolvam produções como megacultos, corpo, moda,
canção, dança e outras manifestações artísticas, relacionados a diferentes formas de mídia,
como a impressa, a radiofônica, a televisiva e a cibernética – e preferencialmente, associados
à (in) tolerância a pessoas que se identificam através de marcadores sociais diversos
(identidade de gênero, orientação sexual, cor, geração, etc.). Serão bem vindos trabalhos que
apresentem análises e suscitem diálogos a partir de etnografias, etnografias digitais, histórias
orais, narrativas pessoais, análises de imagens, discursos e outras possibilidades teórico-
metodológicas.

1756
A internet e seus perigos:
individualismo e poder entre as Testemunhas de Jeová
Suzana Ramos Coutinho1148

1. Introdução

As Testemunhas de Jeová são um grupo religioso que, em um contexto de acelerado avanço


tecnológico e comunicacional, permanecem quase “invisíveis” no que diz respeito ao espaço
midiático. Não possuem atualmente programas em rádios nem em televisão, não se associam
com outros grupos religiosos (tornando a prática ecumênica inviável), e apenas em raros
momentos são vistos dando entrevistas ou utilizando algum meio de comunicação para expor
sua fé. Por outro lado, utilizam massivamente o meio escrito, com suas publicações A
Sentinela e Despertai!, com tiragem quinzenal de 22 milhões de revistas, e são facilmente
reconhecidos quando batem às nossas portas, ainda que identificados no senso comum como
participantes de uma “seita”, para nos trazer uma mensagem. Mas afinal, que grupo é este que
apesar de não estar na mídia, cresce em média cerca de 7% ao ano? Que grupo é este que
conta atualmente no Brasil com mais de 600.000 adeptos e ainda assim investe mais de 107
milhões de horas por ano no trabalho proselitista?

A especificidade deste artigo está calcada na busca de entendimento da prática missionária


das Testemunhas de Jeová, considerando que o processo comunicativo do grupo é elaborado
sob padrões diferenciados daqueles da comunicação no mundo atual. Enquanto diversas
pesquisas vêm revelando que inúmeros grupos religiosos têm utilizado progressivamente
diferentes meios de comunicação para o proselitismo (DORNELLES 2002, RADDE-
ANTWEILER 2008) - e aqui subentende-se a utilização da mídia e da televisão, mas
principalmente da Internet -, as Testemunhas de Jeová por sua vez rejeitam o uso desses
meios, concentrando seus esforços no testemunho formal através de conversas pessoais.

As Testemunhas de Jeová – sociedade religiosa de caráter milenarista que mais agrega


adeptos no mundo contemporâneo – surgiu em 1872 na Pensilvânia (EUA) sob o nome de
União Internacional dos Inquiridores da Bíblia. Seu fundador foi Charles Taze Russel (1853-

1148
Pós-doutora pela Cambridge University e Ph.D em estudos da Religião pela Lancaster University, Inglaterra.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião no Mackenzie. Contato:
sucoutinho@gmail.com.
1757
1916), um presbiteriano convertido ao adventismo que passou a reinterpretar os textos
bíblicos. Baseado nos livros de Daniel e Apocalipse, Russel fixou o fim do mundo para o ano
de 1874 e/ou quando o movimento atingisse 144 mil adeptos. Após sua morte, Russel foi
substituído por Joseph Franklin Rutherford (1896-1942), que rebatizou oficialmente a religião
como hoje a conhecemos, Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, popularmente
identificados como Testemunhas de Jeová. Russel reinterpretou a idéia dos 144 mil eleitos à
Doutrina da Grande Multidão, onde estes 144 mil são escolhidos para reinar com Cristo no
céu e as demais Testemunhas viverão na Terra sob o domínio de Cristo, como seus súditos.

Uma das características mais marcantes das Testemunhas de Jeová é a importância dada à
divulgação, transformando suas publicações e comunicação de textos em aspectos de grande
prioridade. Outra característica relevante da atuação deste grupo reside no fato de possuírem
uma estrutura altamente centralizada e hierarquizada, “refletindo o controle centralizado de
suas atividades e do pensamento de seus membros” (FAILLACE, 1990:106).

Breve história da comunicação das Testemunhas de Jeová

É uma construção das Testemunhas de Jeová a importância do desenvolvimento dos


diferentes sistemas de comunicação para sua tarefa proselitista. No período de maior
desenvolvimento da Revolução Industrial, embora os benefícios trazidos por este
desenvolvimento fossem utilizados para promover objetivos comerciais e políticos, também
estavam disponíveis para o campo religioso. Este cenário foi utilizado pelo grupo para o
desenvolvimento de uma iniciativa que teria repercussões internacionais. A primeira delas
ocorreu no final do século XIX, quando a comunicação telegráfica passou a revolucionar a
comunicação mundial. Russel, o fundador do grupo, passou a utilizar os jornais, que eram
segundo ele “o grande fator de influência na vida diária do mundo civilizado”
(PROCLAMADORES, p. 85). No ano de 1913, calculou-se que através de 2000 jornais, os
sermões de Russel alcançavam quinze milhões de leitores entre Estados Unidos, Canadá e
Europa

A segunda empreitada ocorreu em 1912, quando deram início a um projeto chamado


“fotodrama da Criação”. O fotodrama era uma combinação de filme fotográfico e slides,

1758
sincronizado com gravações musicais e diversos discursos gravados em fonógrafos. Segundo
informações do grupo, até o final de 1914 o fotodrama foi apresentado a milhões de pessoas
na América do Norte, Europa, Nova Zelândia e Austrália.

A terceira grande estratégia proselitista utilizada pelas Testemunhas de Jeová ocorreu assim
que a radiodifusão comercial foi iniciada. Em 1922 Rutherford (sucessor de Russel, que
faleceu em 1916) proferiu seu primeiro discurso pelo rádio, na Califórnia. Dois anos mais
tarde, em fevereiro de 1924, a emissora WBBR, de propriedade da Torre de Vigia, em Nova
Iorque, começou a operar. Com o tempo, o grupo passou a transmitir mundialmente através
do rádio programas e discursos bíblicos. Em 1933 “havia 408 emissoras que transmitiam a
mensagem do Reino em seis continentes” (PROCLAMADORES, p. 80).

Em 1933, as Testemunhas de Jeová começaram a empregar outro método de pregação. Um


fonógrafo transportável, com amplificador e alto-falante, era utilizado para divulgar os
discursos de rádio de Rutherford. Eram usados também carros e barcos de som para
divulgação. O uso dos fonógrafos levou ainda a outra inovação – a pregação de casa em casa
com fonógrafos leves. “Em 1934, a Sociedade passa a produzi-los, assim como uma série de
discos de 78 rpm que continham discursos bíblicos de 4 minutos e meio. Com o tempo, foram
usadas gravações em disco que abrangiam 92 assuntos diferentes” (Ibid., p. 87). Ao todo, a
Sociedade produziu mais de 47 mil fonógrafos. Entretanto, deu-se mais ênfase às
apresentações orais da mensagem do Reino, de modo que o serviço com os fonógrafos foi,
aos poucos, eliminado. Ao lado desta postura estratégica, as Testemunhas de Jeová passaram
a participar de encontros dominicais que visavam o testemunho do grupo através da visitação
de casa em casa. Esta prática passou a ser constantemente estimulada pela liderança e
reafirmada através de argumentos bíblicos.

Mas se historicamente as Testemunhas de Jeová utilizaram os mais diversos e avançados


meios de comunicação no trabalho proselitista, atualmente caminham em um sentido
diferenciado do quadro histórico apresentado. Esta diferença reside na priorização da
comunicação face a face. Apesar de não ser uma prática nova, considerando que desde 1927
os membros do grupo eram incentivados a gastar uma parte de todos os domingos no
testemunho em grupo e indo de casa em casa, atualmente essa prática de comunicação pessoal
é fortemente aliada à produção escrita.

1759
Esta diferença de foco pode ser notada no fato de as Testemunhas de Jeová não utilizarem
este novo espaço virtual possibilitado pela Internet. Possuem uma página na Web, porém
orientam os membros do grupo no sentido do máximo de evitação possível, considerando ser
um ambiente perigoso para sua moralidade e fé. Em uma de suas publicações, alertam: “É
necessária extrema cautela no uso da Internet (...) É preciso saber que muitos sites na Internet
foram criados por pessoas de intenções imorais ou desonestas. E muitos sites que talvez não
sejam imorais ou desonestos, como os grupos de bate-papo, são pura perda de tempo. Fique
longe de tudo isso!” (DESPERTAI, 22/01/2000, p. 21).

A comunicação das Testemunhas de Jeová atualmente se dá através da leitura e da fala como


método prioritário. A leitura, através de um vastíssimo material de excelente qualidade
gráfica, e a fala, através de suas visitas de casa em casa, denominado por eles de “trabalho de
campo”. A mudança de abordagem se deu por determinação da própria Instituição, que visava
um contato mais direto e eficiente dos membros com as pessoas que desejam alcançar.

Religião e as novas práticas de comunicação

Em um cenário de constantes e velozes transformações e diante de uma sociedade de massas,


grupos religiosos se vêem obrigados a repensar seus princípios e modelos de atuação e para
isso, passam a fazer uso dos meios de comunicação de massa. A expansão industrial da
década de 1960-1970 consolidou definitivamente esse processo, criando mercados
consumidores de bens industriais e culturais, onde os meios de comunicação passaram a
assumir a produção de visões de mundo que orientam a sociedade. Ambas as instituições,
Igreja e Indústria Cultural, são produtoras de valores mais ou menos hegemônicos, mas se
organizam segundo lógicas totalmente distintas. De acordo com Montero (1986), este fato fez
com que a mensagem religiosa não se transformasse em “um produto a ser vendido”, apesar
do fenômeno religioso ter sido considerado por muitos estudiosos com um “bem” vendável no
mercado. Segundo Montero (Ibid.), alguns autores “procuram mostrar como as estratégias de
conquista de novos conversos vai progressivamente assumindo a mesma racionalidade do
marketing, técnica que busca maximizar a eficácia na venda de um produto” (Ibid., p. 68).

Dentro deste contexto, diversos grupos religiosos passam a se utilizar dos meios de

1760
comunicação como eficazes instrumentos de conversão e evangelização de fiéis. No Brasil,
instituições religiosas passaram a se apropriar deste mercado no final dos anos 70, com o
surgimento do que passou a se chamar de fenômeno da “Igreja Eletrônica”. Entre os
estudiosos deste fenômeno está Assmann (1986), que elaborou um estudo relacionado à
“Igreja Eletrônica” dos Estados Unidos e à sua influência na América Latina. Partindo do
cenário norte-americano, de intenso e crescente uso dos meios eletrônicos (especialmente da
TV) por lideranças religiosas que elaboravam um tipo de mensagem salvacionista
(supersavers), o autor desenvolve a idéia da necessidade de se conhecer o fenômeno que se
desenrola nos Estados Unidos para poder caracterizar melhor a originalidade dos programas
religiosos eletrônicos em nossa realidade. Este fenômeno foi absorvido por diversos grupos
religiosos brasileiros.

O início dos anos 80 foi marcado por uma “concorrência” na fé. Segundo Montero (1986), já
naquele período os protestantes mantinham 250 estações de rádio através do país. Pastores do
protestantismo histórico tinham uma presença semanal em 88 emissoras de TV e 43 rádios.
Os pentecostais aos poucos entravam em cena, com suas curas e milagres. A Igreja Católica
neste período, segundo a autora, já começava a se preocupar com o relativo atraso da
instituição nos meios de comunicação.

O cenário atual constitui-se, entretanto, de forma diferenciada daquele da década de 80. Há


que se considerar uma tendência mais ou menos geral dos grupos religiosos para o uso dos
recursos comunicativos, no sentido de ampliar a discussão que envolve o fato das
Testemunhas de Jeová optarem por meios de comunicação que de certa forma podem ser
considerados tradicionais, como a escrita e o contato pessoal. Igrejas como a Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD) buscaram influir, segundo Mariano (1999), de dois modos: o
primeiro via conversão pessoal e o segundo, pelas vias midiáticas e política. Desta forma, a
partir dos anos 80 passaram, então, a ingressar e investir mais sistematicamente na TV. Além
do papel evangelístico e da tentativa de atingir novos públicos, IURD e Renascer em Cristo
lançaram mão da televisão para iniciar a formação de Comunidades Pentecostais de Caráter
Virtual (GOUVEIA, 1999). Logo, se há aproximadamente trinta anos as Igrejas Pentecostais
brasileiras empenhavam esforços na promoção da evangelização face a face, hoje, segundo
Gouveia (Ibid.), o emprego de tal estratégia coloca-se como frágil e limitadora.

Transformações na forma de utilização da mídia também ocorreram com a Igreja Católica. De


1761
acordo com Montero (1986), na década de 80, por exemplo, a Igreja atuava aquém do
considerável avanço demonstrado por grupos religiosos “concorrentes”. Este quadro
transformou-se principalmente a partir de 2000, quando na ocasião da Jornada mundial das
comunicações de 2002, o papa João Paulo II elaborou um documento oficial convidando a
comunidade católica à reflexão do tema “Internet: um novo fórum para a proclamação do
Evangelho”. Este documento foi uma forma de convite à comunidade católica a “aventurar-
se” no mundo do ciberespaço e a potencializar o seu uso para proclamar a mensagem
proposta.

Internet às avessas

O contexto de inovações e possibilidades tecnológicas delineia um novo ambiente


denominado ciberespaço, do qual diversos grupos religiosos têm se utilizado. A Internet é um
importante espaço utilizado por eles, propiciando o diálogo dos fiéis entre si e com outras
pessoas, tornando-se um novo campo e novo meio de proselitismo, e sendo utilizada até
mesmo pelas religiões históricas. Para que o fenômeno protagonizado por grupos religiosos e
sua relacão com a Internet possa ser compreendido, é necessário considerar que detalhes
técnicos, políticos e históricos não só levaram à constituição da Rede como também
permitiram a criação de chats por iniciativas individuais que podem congregar – on line –
crentes de várias denominações religiosas. Inicialmente projetada para colocar máquinas em
contato, a Internet acabou tendo sua finalidade subvertida para se tornar um poderoso espaço
de sociabilidade, demonstrando o que muitos autores (como Guimarães, 2000) chamou de
“vocação para a interação”. Diversos estudos têm permitido que este espaço seja pensado não
somente como espaços de sociabilidade, conforme mostrou Guimarães (2000), nem apenas
como espaços onde a força do “divino” é percebida, conforme mostrei em pesquisa anterior
(2002), mas sobretudo como espaço onde a evangelização é praticada e onde o proselitismo é
exercido livremente.

A reflexão a respeito da utilização da Internet como espaço missionário encaminhou-me à


reflexão de que, em geral, grupos evangelizadores tenderiam a usar a Internet como espaço
missionário. Até então, a associação entre Internet e missão era uma obviedade que me levou
à conclusão antecipada desta relação, onde igrejas e/ou diferentes grupos religiosos
reproduziriam na Internet suas próprias técnicas de evangelização - só que, neste caso,

1762
adaptadas.

De início, acreditei que as Testemunhas de Jeová utilizariam (assim como diferentes salas de
bate-papo) a Internet como espaço missionário. A realidade, porém, revelou-se surpreendente.
Minha primeira impressão foi que as Testemunhas de Jeová simplesmente não “existiam” no
mundo virtual, especialmente quando comparadas com outros grupos religiosos. A discreta
presença do grupo limitava-se, durante a realização de pesquisa de campo em 2004, à página
oficial - disponível em diversos idiomas, conforme atuação do grupo nestes países. Este “não-
uso” da Internet possibilitou o início de minhas investigações com as Testemunhas de Jeová.
Durante 5 meses, acompanhei com regularidade as reuniões semanais e eventos importantes
do grupo em uma congregação situada no bairro da Lagoa da Conceição, em Florianópolis.

Um importante aspecto a ser considerado reside no fato de que a prática exercida pelo grupo -
o trabalho proselitista de visitação de casa em casa – contrapõe o “web-evangelismo”
praticado por usuários de canais de bate-papo vinculados a diferentes grupos religiosos.
Pensar na forma como as Testemunhas de Jeová se comunicam com o “mundo” hoje,
significa também considerar a necessidade de entender e conhecer como os membros do
grupo se comunicam entre si. Vale ressaltar, porém, que o entendimento deste processo de
comunicação não implica em realizar uma “etnografia da fala” nem tampouco uma
“etnografia da leitura” (LEWGOY, 1998). O que desejo aqui é apresentar ao leitor o modo
como as Testemunhas de Jeová se utilizam do vasto aparato bibliográfico disponível no
processo de evangelização e a opção pela não utilização de novas tecnologias.

Missão e novos meios de comunicação

Pesquisas anteriores (JUNGBLUT 2000, COUTINHO 2000) possibilitaram visualizar a


Internet não somente como espaço de reforço de determinadas verdades religiosas. Mais além,
a relação destes usuários com ambientes de natureza religiosa revelaram-nos a possibilidade
de utilização da Internet como campo missionário.

Quando pensa-se a atuação missionária cristã tradicional, tem-se como referência o


missionário que sai de seu ambiente (casa, Igreja, bairro, cidade, país) em busca de novos
fiéis. O ide passa a ser assumido como ação principal e os resultados implícitos desta ação
serão fruto desta busca pelo “perdido” e “sem salvação”. Usando o campo missionário
1763
tradicional como referência, a Internet passa a se revelar como renovadora de paradigmas. Se
no campo tradicional a intenção é de busca, a atuação missionária na Internet é de
oferecimento. Já não há neste tipo de ambiente a ação ativa do missionário no sentido de
buscar o indivíduo, de tomar a iniciativa no contato interpessoal. Os missionários na Internet
passam a esperar que os usuários procurem suas páginas disponíveis, ou aguardam uma visita
em seus chats. Os web–missionários também tomam a iniciativa, mas agora já não mais no
sentido de buscar o indivíduo, mas sim de oferecer a mensagem, aguardando passivamente a
visita de outros usuários passíveis de serem evangelizados. É preciso considerar que este
oferecimento engloba diferenças nas estratégias de atuação e no grau de intervenção da
abordagem, a partir do momento em que os missionários virtuais passam a dispor de diversos
aparatos técnicos que possibilitam estas diferenças nas estratégias. Quando um determinado
grupo disponibiliza sua Home Page para acesso irrestrito, estabelece uma forma de
oferecimento e um grau menos elevado de intervenção em relação ao indivíduo, pois o
contato somente se estabelece se o usuário se interessa pelo conteúdo expresso na Home
Page, ou seja, se este mesmo indivíduo procura determinada página em um site de busca. Por
outro lado, ao ter acesso a uma mala direta de e-mails e através dela enviar uma série de
textos evangelísticos, o web-missionário atua de forma mais direta em relação ao “perdido” e
o seu grau de intervenção é potencialmente elevado.

Mas se a proposta é, através da análise do não-uso da Internet, refletir acerca do projeto


missionário desenvolvido pelas Testemunhas de Jeová, torna-se então necessário delimitar o
conceito de missão para ampliarmos a construção do objeto de estudo aqui apresentado.
Encontrei relativa dificuldade ao levantar referências bibliográficas que dêem conta da
discussão sobre missão, sobretudo no campo das ciências humanas. A teologia, por sua vez,
ofereceu os subsídios teóricos necessários para o prosseguimento desta discussão. Um
importante autor que tratou desta temática foi David J. Bosch, principal teólogo da missão
cristã protestante da segunda metade do século 20. Bosch (2002) admite que diante de um
quadro de muitas ambigüidades quanto ao conceito de missão (entre eles, o motivo
imperialista, cultural e colonialista), é necessário estabelecer uma definição provisória do
termo. Por missão, Bosch entende uma ação com uma característica persuasiva, que propõe
um relacionamento dinâmico com o divino. Bosch estabelece uma diferença entre missões
humanitárias (enquanto engajamento missionário no tocante às realidades de pobreza,
injustiça etc.) e missões evangelísticas (convite ao arrependimento e à conversão, anúncio do
perdão). Considero (na mesma medida cuidadosa de Bosch, julgando não serem a mesma

1764
coisa, apesar de estarem vinculados) que missão está relacionada à primeira conversão e
dirigida aos “não-cristãos”, e que evangelismo está ligado à reconversão, à busca do próximo
afastado. Considero também que missão é mais amplo que evangelismo, sendo este parte
essencial da missão.

A perspectiva missionária das Testemunhas de Jeová, apesar de elaborar aspectos semelhantes


aos da missão cristã, estabelece valores diferenciados com relação ao personagem central da
sua prática, não assumindo o cristianismo como eixo único da sua identidade religiosa. Jesus
Cristo não ocupa papel central e motivador das suas ações, e as pessoas atuam na experiência
de uma missão que, em nome da salvação, promove a doutrina e elabora estruturas de
plausibilidade (BERGER, 1997) que objetivam o reforço dos valores morais e identitários do
grupo e a constante ampliação de suas fronteiras. Dito de outra forma, o aumento do número
dos que se pode contar como Testemunhas de Jeová.

A missão testemunha-de-jeová parece ser, portanto, sinônimo do proselitismo e da busca


incessante de uma conversão a um modo de vida específico, permeado de regras, valores,
condutas e visões de mundo que definem e constroem a identidade testemunha-de-jeová e
que, do seu ponto de vista, conduz à salvação. Uma prática proselitista que não inclui outros
espaços nem outras vivências que não sejam as determinadas pelo grupo. Por isso a
experiência ecumênica torna-se inviável, e a relação estabelecida com o “extramundo”, ou
seja, tudo aquilo que caminha à margem dos valores testemunha-de-jeová (inclusive o
cristianismo padrão) é impraticável. A concepção de missão cristã de Bosch diz que a igreja é
enviada ao mundo para servir e amar. Mas a missão das Testemunhas de Jeová não é feita do
serviço e do amor ao próximo (apesar de anexá-los ao seu discurso em alguns momentos).
Elas não realizam missão como uma ação humanitária. São enviadas ao mundo com um
intuito mais específico, de proselitismo e conversão.

Internet, individualismo e poder

O estudo de Jungblut (2000), que tratou do aspecto da construção do indivíduo na Internet, é o


ponto de referência que aqui vou utilizar para pensar a construção das Testemunhas de Jeová
como missionárias e sua relação com a Internet. Jungblut analisou a forma como os
evangélicos atualizam, através da Internet, certos padrões de comportamento social

1765
experimentados em diferentes esferas da sociedade em geral, o ciberespaço e o campo
evangélico. O trabalho de Jungblut pode, neste contexto, contribuir em diversos aspectos,
considerando que este autor está pensando o indivíduo dentro de um quadro de
“transformações inéditas e tão globalmente impactantes” (Ibid., p. 42). As atitudes frente a
estas rápidas transformações sociais evidenciam, ainda mais, aspectos específicos do
indivíduo presente nas Testemunhas de Jeová em contraposição ao indivíduo na sociedade
moderna e contemporânea.

Jungblut faz uma reflexão sobre a construção do “eu” na Internet. Na impossibilidade de


utilizar formas tradicionais de se apresentar diante de outros, através do corpo, voz, roupa,
etc., este “eu”, ao se utilizar de meios de comunicação, precisa se construir e se descrever
como pessoa para o outro. E é neste exercício, no que ele pressupõe de poder de auto-
representação, que o indivíduo atual mostra-se talvez mais nu do que nunca. Este “eu” que
Jungblut se refere, no que tange às Testemunhas de Jeová, não oferece possibilidades de auto-
representação. O que parece essencial nestes processos todos em que se vê o indivíduo no
ciberespaço são, na opinião de Jungblut, os novos poderes, as novas formas de autonomia, de
liberdade que este “eu” passa a desfrutar. No caso das Testemunhas de Jeová, por outro lado,
a representação frente ao mundo secular (dentro e fora dos meios de comunicação) é
construída e determinada não por uma parcela de pessoas que compartilham uma mesma
cosmovisão, mas por uma Instituição que tem uma atitude totalizante para com a vida dos
membros. Logo, o que encontramos na Internet não é este “eu” sugerido por Jungblut, com
poderes de auto-representação, mas sim a Instituição. A Instituição que pensa, que fala, que
decide, que tem voz única. Logo, a face que se mostra ao mundo secular, a face que
encontramos na Internet, é a face da Instituição.

Para as Testemunhas de Jeová, há um reconhecimento da utilidade deste espaço virtual,


admitindo ter um certo valor educativo e relativa importância no mundo dos negócios e das
comunicações. Porém reside exatamente aí um dos seus grandes perigos: por ser um grande
território livre para manifestações individuais e de diversas idéias possíveis, passa a ser um
espaço altamente periculoso, contendo todas as perversões humanas possíveis. Entre elas a
pornografia, livremente disponível para ser acessada por crianças, jovens e adultos. Em um
relato em uma de suas publicações, alegam: “Alguns sites são chocantes. E podem aparecer
sem mais nem menos (...) Eles tentam enlaçar você. Querem seduzi-lo – para tirar o seu
dinheiro (...). Uma vez que você começa a ver matéria imprópria, é difícil parar – é uma coisa

1766
que vicia mesmo.” (Despertai!, 22/01/2000). Não somente a pornografia é fonte de alerta,
mas também a pedofilia. As Testemunhas de Jeová alertam seus membros, em especial os
pais, contra estes exploradores de crianças: “Alguns pedófilos participam em conversas
eletrônicas interativas com jovens. Fingindo-se de crianças, esses adultos extraem nomes e
endereços de jovens insuspeitos” (Despertai!, 22/07/1997). Ou então: “Não há limites ou
restrições ao tipo de informação que os usuários da Internet podem implantar e acessar. Esse
é um ambiente onde geralmente as crianças e os adolescentes são alvos fáceis do crime e da
exploração (...)” (Ibid.). Seja como for, a liberdade que esse território oferece compromete em
sua visão não somente o aspecto moral da família como também propicia informações
apóstatas a respeito do grupo, preocupação central no discurso das Testemunhas de Jeová.
Exemplifico esta argumentação no que se refere ao uso do email com esta citação: “As
informações talvez lhe sejam passadas na forma de experiências ou comentários sobre nossas
crenças. Estas informações são passadas a outros que, por sua vez, também as passam adiante.
Geralmente, não há como confirmar as informações, que podem ser inverídicas. Os
comentários podem servir de fachada para divulgar idéias apóstatas” (Nosso Ministério do
Reino, novembro de 1999).

Esta fragmentação dirige nosso olhar para os considerados perigos do ciberespaço, claramente
confirmados no discurso das Testemunhas de Jeová. O fato é que o “eu” das Testemunhas de
Jeová é na verdade a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados (eu Testemunha de
Jeová = eu Organização). O “eu” individual não encontra espaço no ambiente virtual, já que é
absorvido pela identidade abrangente da Instituição, que em todos os momentos se apresenta
como mediadora destas informações. Isto é revelado pelo fato de a Instituição orientar os seus
membros a não disponibilizarem páginas na Internet, instruindo-os a remeterem qualquer
informação sobre a Sociedade à página oficial. Absorvem, desta forma, as expressões e
discursos individuais possivelmente elaborados neste meio virtual. Há não somente uma
relativização no uso da Internet, mas também uma clara intervenção da Instituição no sentido
de impedir qualquer possibilidade do eu Testemunha de Jeová vir a ser um indivíduo
autônomo.

Conclusão

A Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados - uma entidade despojada de qualquer


elemento que remeta a indivíduos específicos e, portanto, despersonalizada - é o principal ator

1767
do processo missionário/proselitista, e em nome do grupo delimita e constrói espaços de ação
dos membros, estimulando o aperfeiçoamento de técnicas de persuasão e reivindicando para
si o domínio da vivência religiosa individual dos seus membros. A Bíblia, ao lado da
Sociedade, tem espaço privilegiado mas somente sob a ótica da interpretação oferecida pelo
próprio grupo. Estes elementos centrais do fazer missionário testemunha-de-jeová é que vão
determinar que outros aspectos – como o uso da Internet, por exemplo - não façam parte do
conjunto das ações missionárias do grupo.

Quando me refiro à missão testemunha-de-jeová, penso que há o estabelecimento do limite de


sua prática missionária à prática proselitista, ou seja, a busca incessante de uma conversão não
somente a Jeová Deus, mas a um modo de vida específico, que inclui regras determinadas,
valores compartilhados, condutas e visões de mundo que elaboram a identidade testemunha-
de-jeová. Uma prática proselitista que não inclui outros espaços nem outras vivências que não
sejam determinadas pelo grupo.

É possível afirmar, deste modo, que a missão testemunha-de-jeová é uma prática


sistematizada pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados que visa à condução das
atividades de seus membros a uma disciplinarização de suas ações. Esta disciplinarização tem
como fim último a diligência de seus membros à prática proselitista. Mas não somente. É esta
disciplinarização que dá à Instituição a legitimidade do domínio de espaços, formas,
narrativas e identidades individuais. Estas identidades individuais passam então a assumir a
identidade da Organização que, para manter o controle sobre esta disciplinarização, elabora
estruturas de plausibilidade que visam reforçar a visão de mundo por ela determinada.
Este discurso unitário, elaborado e mantido pela Organização, cria também outros discursos
como o temor frente à Internet. Um dos principais argumentos diz respeito à questão da
identidade, considerando que há grande preocupação em relacionar-se com uma “falsa”
Testemunha de Jeová. A reivindicação da Instituição sobre a identidade individual do
membro se dá principalmente através de duas formas: a proibição de narrativas individuais,
que são substituídas pelo discurso unitário da Sociedade frente ao mundo secular e a
orientação de evitação pelo indivíduo das coisas deste mundo, oferecidas pela Internet:

É necessária extrema cautela no uso da Internet (...). É verdade que existem muitas fontes
úteis na rede, como bibliotecas, livrarias e canais noticiosos. Por exemplo, a Sociedade
Torre de Vigia (dos EUA) recentemente anunciou seu próprio endereço mundial na rede
(...) que serve para fornecer informações corretas a respeito das Testemunhas de Jeová.

1768
Ainda assim, deve-se reconhecer que existem influências extremamente prejudiciais na
Internet, incluindo pornografia e apostasia. O cristão deve ter em mente o conselho de
Paulo: ‘Isto, portanto, digo, e dou testemunho no Senhor, que não mais andeis assim como
também as nações andam na improficuidade das suas mentes... Tendo ficado além de todo
senso moral, entregaram-se à conduta desenfreada para fazerem com ganância toda sorte de
impureza. Mas vós não aprendestes que o Cristo seja assim’. (Efésios 4:17-20). (...) É
preciso saber que muitos sites na Internet foram criados por pessoas de intenções imorais ou
desonestas. E muitos sites que talvez não sejam imorais ou desonestos, como os grupos de
bate-papo, são pura perda de tempo. Fique longe de tudo isso! (Despertai, 8/01/1998).

A anulação da identidade individual significa também o estabelecimento de uma relação de


separação para com o (ou “do mundo”) “mundo”. Separar-se do “mundo” e distanciar-se da
Internet, na medida em que esta não oferece alternativas e mecanismos de ordenação, domínio
e controle, ou seja, é vista como livre e indisciplinável, possibilita a elaboração de
mecanismos de ordenação produzidos pela Sociedade Torre de Vigia que visam à construção
de estruturas de plausibilidade que reforçam as visões de mundo compartilhadas pelo grupo,
possibilitando que as Testemunhas de Jeová se apresentem ao “mundo” através de uma única
prática: a prática proselitista.

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SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS. Os jovens perguntam...


como evitar os perigos da Internet?. Despertai!. p. 19-21. 22 jan. 2000. Watchtower Library
2001 – Edição em português. São Paulo, n.º 1, 2001. CD ROM.

1770
1771
A mão de Deus está aqui e na televisão: análise etnográfica dos
cultos da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), na Sede
Regional, em São Luís - MA

Jaciara Fonseca dos Santos1

Introdução

A Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) apresenta um crescimento vertiginoso em seus


15 anos de atuação no cenário religioso brasileiro. Deve-se tal fato ao seu discurso religioso
basear-se na ênfase do milagre de cura, do uso dos testemunhos, na realização de megacultos,
da figura carismática embutida na imagem de seus líderes e do recurso ao universo midiático?

Empreenderemos aqui uma tentativa de compreensão da instrumentalização desses elementos,


na dinâmica de atuação da única igreja neopentecostal que atualmente impõe-se como maior
concorrente da já estabelecida e maior representante do neopentecostalismo no Brasil, a Igreja
Universal do Reino de Deus, da qual o líder e fundador da IMPD, o autointitulado Apóstolo
Valdemiro Santiago foi bispo.

Utilizamos como metodologia de pesquisa abordagens etnográficas por meio da observação


participante dos cultos -os discursos, as posturas, a estética e usos simbólicos de artefatos
sagrados- enquanto espaços de atuação e de seu uso como instrumento de proselitismo e
propaganda, como também o monitoramento da programação televisiva do canal 39 da Igreja
Mundial do Poder de Deus, em São Luís – MA.

Da cisão veio a concorrência

O que de mais característico pode haver no fenômeno pentecostal é sem dúvida o processo de
ruptura e de continuidade. As cisões geram muito mais do que desafetos e escândalos, elas
geram novas instituições, novos líderes, novas possibilidades de escolha de qual igreja seguir.

1
Graduada em História pela UFMA. Membro do GP História e Religião. Orientada pelo Prof. Dr. Lyndon de
Araújo Santos. Contato: jaciara_jc@hotmail.com. Este artigo foi escrito com base no trabalho intitulado: “A mão
de Deus está aqui nas Cajazeiras”: a presença da Igreja Mundial do Poder de Deus em São Luís- Maranhão
(1998-2012). Monografia (Graduação em História), UFMA, São Luís, 2013.

1772
A Igreja Mundial do Poder de Deus é fruto desse processo. A ruptura entre o bispo Edir
Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e o bispo Valdemiro Santiago foi o
ponto de partida para que a IMPD nascesse.2

Da primeira reunião realizada em fevereiro de 1998, que contava um total de 16 pessoas,


passando peloo dia 09 de março de 1998, na cidade de Sorocaba, São Paulo, em que funda a
Igreja Mundial do Poder de Deus, o ex-bispo da IURD viu noticiada a inauguração, em 2006,
do prédio da sede da IMPD em um site, cujo texto destacou a dimensão do lugar,
aproveitando para alertar o bispo Edir Macedo: “O bispo Macedo que se cuide. Será
inaugurado em São Paulo, dia 15, o maior templo evangélico do mundo! São 50 mil metros
quadrados, no Bairro do Brás, e só no estacionamento cabem 10 mil automóveis” .3 A IMPD
passava a ser vista como forte concorrente da IURD.

O agora líder da IMPD faz questão de esclarecer em seus relatos sobre a formação da igreja
que sofreu e sofre muita perseguição por parte daqueles, que segundo ele, não querem ver a
obra de Deus crescer, e por isso, tentam atrapalhar o seu ministério. A ênfase nas
perseguições e sofrimentos pelos quais ele passou para conseguir criar a IMPD é
constantemente frisada nos pronunciamntos do apótolo e demais bispos e pastores.

Segundo o pesquisador Adroaldo José da Silva Almeida,

As disputas, dentro do campo religioso, acentuam-se na medida em que os interesses dos


diversos indivíduos que compõem o campo tornam-se cada vez mais específicos. Não
havendo mais a possibilidade de acomodar esses interesses, os grupos divergentes
ideológica ou teologicamente do corpo de especialistas religiosos — estes últimos
consagrados também pela tradição — são marginalizados ou expulsos da comunidade
religiosa. (ALMEIDA, 2005 p. 61-62)

O apóstolo Valdemiro deixa a IURD, pois o outro ministério não mais seguia a verdade das
escrituras: “Já não via isso na igreja [...], pois não pregávamos mais a verdade. Mas era

2
Valdemiro Santiago foi membro da IURD por 18 anos. Passou pelos cargos de obreiro e pastor. Sua atuação
mereceu destaque, sendo consagrado a bispo em abril de 1992 (CAMPOS apud REZENDE, 2011, p. 71), até
chegar a membro do conselho de bispos, a cúpula da liderança da Universal em que os cargos são ocupados por
pessoas de alta confiança do bispo Edir Macedo. Sua figura tornou-se conhecida no meio da IURD no Brasil,
sendo enviado para realizar um trabalho missionário em Moçambique, no ano de 1996. Sobre sua ida para
Moçambique, de início tratava-se de ajudar na expansão da IURD no continente africano, porém, por sua
personalidade carismática estar ganhando cada vez mais espaço no seio da IURD, levanta-se a hipótese de que a
figura de Valdemiro passou ser vista como ameaça à liderança da IURD, tendo sido essa a motivação que levou
à transferência de Valdemiro para Moçambique, em 1996 (ALMEIDA, 2010).
3
Notícia veiculada no site http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2006/junho/08/bis.asp?bis=marciog, In: Bitun
2007, p. 49.
1773
obrigado a obedecer à direção. Oramos a Deus e ele colocou em nosso coração para que
saíssemos. Nada foi planejado”.4 Assim recebendo uma suposta “orientação divina”,
abandona o antigo ministério e passa a falar contra esse. Nesse momento, o apóstolo transita
próximo à figura do profeta weberiano.5“Se o profeta usurpa o poder graças à revelação
divina e predominantemente para fins religiosos (WEBER, 1999, p. 306), é para também se
distinguir dos sacerdotes e, ao mesmo tempo, colocar em dúvida o fato de estes últimos serem
os únicos portadores de um encargo divino especial” (ALMEIDA, 2005 p. 73).

O pesquisador Ricardo Bitun, durante uma conversa com um pastor da IMPD, soube que a
IURD, no ano de 2005 havia “desconsagrado” Valdemiro Santiago da condição de bispo
(BITUN, 2007, p. 65), numa tentativa de desautorizar Valdemiro Santiago, negando sua
autoridade religiosa, outrora outorgada pela própria IURD. O título de bispo, recebido ainda
na Universal, foi mantido em uso até dezembro de 2006. Na ocasião de um culto no dia 23 do
mesmo mês, Valdemiro Santiago foi consagrado a apóstolo, e sua esposa Franciléia recebeu o
título de bispa.6

Da cisão com a IURD, o cenário religioso brasileiro viu o despontar de uma nova e forte
liderança carismática e o surgir de uma nova institituição. Essa nova instituição faz uso de
uma estratégia para alcançar seu publico e estabelecer-se no extenso rol de igrejas
evangélicas.

A mão de Deus e a televisão

Uma das razões para o crescimento dos pentecostais é a sua faceta neopentecostal:

O pentecostalismo assume formas diversificadas do tradicional, mostrando faceta


maniqueísta e correndo paralelo ao catolicismo popular e santoral católico quando funciona
em torno da aquisição de bens simbólicos na base de troca. Esse pentecostalismo posterior,
que recebeu o nome de neopentecostalismo, ao assumir um sincretismo mágico, deixou
para trás o gueto cultural do protestantismo tradicional e contabilizou os dados da cultura

4
Idem nota 3.
5
“Agente religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir de grupos marginais, produz por seu
discurso ou sua prática uma nova concepção religiosa,(...) onde a legitimação dessa inovação é conferida pelo
carisma (...) o carisma pessoal dá ao profeta legitimidade para contestar a ordem religiosa estabelecida e
instaurar uma nova ordem simbólica” (OLIVEIRA apud BITUN, 2007, p.66 )
6
Informação contida em José Tadeu de Almeida, 2008, p. 3. O pesquisador não deu mais detalhes de tal evento
ocorrido no dia 23 de dezembro, limitando-se a dizer que conversou com membros da IMPD em suas pesquisas.
O trabalho de Ricardo Bitun não faz menção a Valdemiro como apóstolo, mas como bispo, por ter sido escrito
anterior à sua “consagração”.
1774
brasileira para crescer de maneira extraordinária nas três últimas décadas (MENDONÇA,
2003, p.158).

A aproximação com o universo simbólico da religiosidade popular deu ao neopentecostalismo


uma imagem bem distante da do protestantismo histórico ou de missão, primordialmente
ascético e iconoclasta em seus modos de ser. A ruptura com o secular dos primeiros tempos
deu lugar a reapropriação e ressignificação de elementos da religiosidade popular na criação
da identidade neopentecostal. Segundo Leonildo S. Campos, “esses neopentecostais
cresceram em número, porém, ao ampliar os seus respectivos universos simbólicos,
incorporaram símbolos, crenças e se tornaram portadores de teologias e discursos, híbridos e
sincréticos” (CAMPOS, 2011, p.506).

A maioria dos fiéis da IMPD não é de novos convertidos, mas sim de pessoas que já passaram
por outras igrejas pentecostais. Segundo Ricardo Bitun,

Esses fiéis compõem um público flutuante, o qual caminha às margens da igreja instituição
e tem como principal característica a facilidade com que estabelecem o trânsito entre uma
igreja e outra à procura das melhores ofertas de bens religiosos. Nos últimos anos tem se
intensificado o chamado trânsito religioso. Fiéis que até então migravam apenas do
catolicismo e das religiões afro-brasileiras para o pentecostalismo, agora realizam seu
trânsito entre as igrejas neopentecostais, em busca de sua “bênção”, com especial destaque
a bênção da cura divina (BITUN, 2007, p. 5).

Um dos fatores que também contribuiu para o crescimento dos pentecostais- e


neopentecostais- foi o uso da mídia como instrumento de propaganda e proselitismo,
alcançando os fiéis em todas as partes do globo.

A entrada massiva dos pentecostais na mídia foi possibilitada ainda nos anos 80, pela política
implementada pelo governo Sarney, que segundo Baptista (2007), estes veículos foram
utilizados como “moedas de troca para os constituintes votarem conforme sua orientação. A
porcentagem de evangélicos que se beneficiou com este esquema equivaleu à que favoreceu o
conjunto maior de parlamentares” (BAPTISTA, 2007, p. 213).

Nesse contexto, a IMPD destaca-se mesmo sendo uma igreja com poucos anos de existência,
mas que já possui uma expansão significativa e um complexo sistema de meios de

1775
comunicação, onde a televisão ocupa um papel central, isso foi possível em parte pela grande
captação de recursos e pelo apoio de lideranças políticas.7

A IMPD inaugurou em 1º de agosto de 2008 a TV Mundial, na cidade de São Paulo. Por não
possuir concessão, a emissora transmite sua programação pela internet e pelas emissoras
locadas. No ano de 2008, dois anos depois da inauguração do Grande Templo dos Milagres, a
IMPD negociou o acordo que garantiu 22 horas de programação no Canal 21, pertencente ao
Grupo Bandeirantes de Comunicação (CARDOSO e LOPES, 2011, p. 55). A IMPD também
inaugurou, no ano de 2009, o complexo de estúdio de televisão chamado de Cidade Mundial:
A Mão de Deus Está Aqui, com uma área de 400 m².

A IMPD assinou um contrato em 2011 com a Rede Bandeirantes, adquirindo a transmissão de


quatro horas no período da madrugada, espaço esse que pertencia a Assembleia de Deus-
Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia. A assessoria do pastor divulgou nota de repúdio à
atitude do apóstolo Valdemiro Santiago, classificando-o como “verdadeiro traíra [...].
Entendemos que de onde ele veio, o DNA não podia ser diferente”.8 Conforme observou
Campos (2008) “o clima de competitividade entre grupos religiosos se tornou o cenário típico
de uma produção midiático-neopentecostal em que vencer o concorrente, tal como no mundo
dos negócios, legitima quaisquer técnicas comunicacionais” (CAMPOS, 2008, p. 22), e
rompem quaisquer cláusulas contratuais. O contrato da Igreja Mundial do Poder de Deus com
o Grupo Bandeirantes de Comunicação foi renovado em 2012. O novo contrato estabelece o
arrendamento do Canal 21 até o ano de 2015.9

Constatamos que a IMPD possui um total de 17 retransmissoras da TV Igreja Mundial, 15


retransmissoras da TV CI, 37 retransmissoras da rede Canal 21 e mais 11 emissoras afiliadas.
A concentração de suas retransmissoras dá-se principalmente na região sudeste, seguida da
região nordeste, região sul, região centro-oeste e região norte.

Quadro 1: Distribuição das transmissoras da programação televisiva da IMPD

7
Na comemoração do oitavo aniversário da IMPD, em São Paulo, o apóstolo Valdemiro fez um agradecimento
especial aos políticos ali presentes como o Deputado Gilberto Nascimento, por intermediarem a locação do
estádio, que quase foi vetada pela prefeitura, “e, graças a estes “homens de Deus” (políticos presentes) aquela
reunião se concretizara” (BITUN, 2007, p. 85).
8
Ver site www.gospelmais.com.br, In: Rezende (2011).

9
http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimas-noticias/2012/10/02/igreja-mundial-faz-acordo-com-band-e-fica-no-
canal-21-ate-2015.htm

1776
Fonte: SANTOS, 2013.

Segundo Elaine Regina de Oliveira Rezende, a IMPD obteve um salto de 715% no número de
templos entre os anos de 2007 e 2008. Segundo a pesquisadora foi nesse mesmo período que
a IMPD obteve um aumento no número de horas na programação televisiva (REZENDE,
2011, p. 133).

O número de templos da IMPD no Brasil ultrapassa a casa dos 2.000, fazendo- se presente em
todas as regiões do país, com uma concentração destes na região sudeste. Um número
expressivo se levarmos em consideração que se trata de uma igreja com 15 anos de existência.
Em nossas pesquisas bibliográficas achamos dados referentes à sua expansão nos anos de
2007 a 2011, o site da IMPD também oferece um levantamento do número de templos da
denominação. Os dados dos pesquisadores consultados trazem o que seriam os números da
IMPD relativos a 2007-2011:

TABELA 1 – Número de templos da IMPD 2007-2011

1777
ANO NÚMERO DE TEMPLOS
2007 70

2008 500

2009 1279

2010 2092

2011 2114
Fonte: SANTOS, 2013

O site da IMPD traz a informação de que no início de 2013 seriam 2213 templos espalhados
pelos estados do país.10

Culto em ação

O universo neopentecostal trouxe para a dinâmica do culto evangélico uma série de


inovações, tomadas a emprestimo do espaço da religiosidade popular. O ascetismo presente
nas práticas do protestantismo histórico e do pentecostalismo inicial foi, de certo modo,
suplantado por novas formas de ser do neopentecostalismo. Essas práticas refletiram-se
principalmente no culto, o momento de reunião dos crentes para a adoração da divindade.

O neopentecostalismo construiu sua identidade a partir da explicação e resolução dos males


que assombram a vivência no mundo, com base em uma profunda assimilação e
ressignificação de elementos do catolicismo popular, das religiões kardecistas e afro-
brasileiras ao discurso pentecostal. Assim, os neopentecostais “cresceram em número, porém,
ao ampliar os seus respectivos universos simbólicos, incorporaram símbolos, crenças e se
tornaram portadores de teologias e discursos, híbridos e sincréticos” (CAMPOS, 2011, p.506).
O que antes foi rejeitado pelo protestantismo histórico e pelas primeiras igrejas pentecostais,
tornou-se elemento fundamental do discurso do neopentecostalismo.

A presença e a atuação do poder de Deus, por meio do Espírito Santo, antes percebidas no
pentecostalismo clássico por meio da manifestação de transes e, principalmente, da
glossolalia, e no deuteropentecostalismo por meio da cura e do exorcismo, passam a ser
percebidas no neopentecostalismo a partir da triangulação da prática do exorcismo,
prosperidade e cura.

10
Ressaltamos que esses números podem variar conforme as dinâmicas próprias do campo religioso.
1778
A IMPD diferencia-se nesse momento, da imagem concebida como a do discurso
neopentecostal, ao trazer para o núcleo de suas práticas o milagre da cura, colocando em
segundo plano a prática do exorcismo. O culto é organizado em torno do momento de atuação
do poder de Deus, por meio da figura do líder spiritual, que atua na condução do fiel para a
obtenção do milagre. O mal ainda existe, as religiões afrobrasileiras e kardecistas ainda são
instrumentos de sua atuação, a possessão ainda manifesta-se nos cultos, contudo não toma o
lugar central, esse é dado à ação do Espírito Santo por meio da manifestação de milagres de
cura.

Enquanto na experiência da glossolalia, o indivíduo é dominado pelo Espírito Santo, que


passa a falar por meio desse, percebemos que no processo do milagre de cura visto na IMPD
considera-se que o Espírito Santo atua não por meio do indivíduo, mas nele próprio, por meio
da mediação do líder religioso na oração ou pelo objeto consagrado por este. A glossolalia é
uma experiência de foro íntimo entre o fiel e a divindade, perpassada primordialmente pela
emoção. A cura é uma experiência em que o indivíduo vê a divindade atuando pelo Espírito
na solução dos males, constitui-se como uma experiência prática que atinge a emoção. Na
IMPD constatamos que tal situação é instrumentalizada na condução do fiel à crença no poder
da divindade e de sua real atuação dentro da instituição, como também na contribuição do fiel
com dízimos e ofertas, para o sustento da obra de Deus.

Diante dessa configuração, segundo Ricardo Bitun, tanto a IMPD como a IURD,

movimentam o campo religioso como um campo de forças entre produtores de bens


religiosos (BOURDIEU, 1974, p. 81). Neste confronto de forças dentro do campo religioso,
bispo Waldemiro se apresenta como sacerdote, “agente da religião estabelecida, aquele que
reproduz e pereniza um sistema de crenças e ritos sagrados”, assim como o profeta “agente
religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir de grupos marginais,
produz por seu discurso ou sua prática uma nova concepção religiosa, (...) onde a
legitimação dessa inovação é conferida pelo carisma (...) o carisma pessoal dá ao profeta
legitimidade para contestar a ordem religiosa estabelecida e instaurar uma nova ordem
simbólica” (OLIVEIRA apud BITUN, 2007, p.66).

A IMPD, tal qual a IURD possui uma oferta de bens, estruturando suas práticas litúrgicas e
seus cultos consoantes às necessidades apresentadas por seu corpo de fiéis. A manutenção da
igreja, enquanto detentora do discurso religioso é embutida no rol dessas necessidades, uma
vez que o fiel necessita receber o milagre do poder de Deus por meio dos líderes da
instituição.

1779
A pregação da palavra, a oração e os cânticos, presentes desde os primórdios do cristianismo,
estão presentes na estrutura do culto na IMPD. Somam-se a estes a realização de campanhas
de oração, os momentos de dízimos e ofertas, o uso de objetos, os momentos de intercessão e
a ênfase nos testemunhos. Estes elementos foram instrumentalizados na dinâmica de atuação
da igreja. Faremos aqui uma breve exposição sobre a oração,o testemunho e a pregação.

A IMPD realiza longos períodos de oração, durante os seus cultos, como também, um
momento de oração, chamado de subida ao monte. Trata-se de uma espécie de ritual de
sacrifício do líder, em prol da igreja e dos fiéis. De acordo com o pesquisador Paulo Romeiro,

A oração no monte é uma prática constante no ministério de Valdemiro. De acordo com o


apóstolo, a Mundial é fruto de oração no monte de São Roque, interior de São Paulo. Há
anos, enquanto orava naquele lugar, Deus lhe falou que a obra que ele colocaria sob a sua
responsabilidade seria muito grande, seria para avivar o evangelho de Jesus Cristo, resgatar
as ovelhas que estavam perdidas, mudar a história de vida das pessoas que não suportavam
mais o sofrimento. A Mundial é considerada por muitos como a última porta de esperança.
Valdemiro sobe constantemente ao monte acompanhado de seus obreiros para orar pelos
pedidos de oração e consagrar os objetos (toalhas e chaves) que serão usados nas
campanhas (ROMEIRO, 2007, p.7).

Tanto o apóstolo como os bispos das sedes fazem uso da subida ao monte e tais momentos
são filmados e transmitidos na programação da TV MUNDIAL.

A edição das filmagens resulta em um vídeo que ressalta o momento sacrificial dos líderes,
que muitas das vezes aparecem carregando galões de água, litros de óleo de unção, livros de
dizimistas, urnas com pedidos de oração e demais objetos utilizados nos cultos. A sonoplastia
traz músicas de fundo que em suas letras exaltam a necessidade da oração e do sacrifício, para
que se alcance o milagre. Os closes sobre os rostos dos líderes cansados, suados e ofegantes,
completam a produção visual. O bispo e pastores da sede estadual em São Luís, costumam
realizar esses momentos na área litorânea da cidade. Ao final da subida, os bispos e pastores
apresentam ao telespectador o motivo específico da subida e encerram com uma oração,
realizada muitas vezes de joelhos, em que se apresentam a Deus, os elementos carregados na
subida.

Os cultos da IMPD apesar de não seguirem uma distribuição fixa- costume da maioria das
igrejas evangélicas- possuem uma lógica ordenada entre o testemunho dos fiéis e a palavra
pregada pelo bispo e/ou pastor. O momento do testemunho é o momento em que o fiel reparte
com os presentes a alegria de receber o milagre, propaga a veracidade do que é pregado e
1780
reafirma sua fé na instituição, no caso, na IMPD. O que é reapropriado pelo bispo ou pastor,
que constantemente declaram ao final dos testemunhos que esse é o poder de Deus que atua
na Igreja Mundial do Poder de Deus. O fiel é convidado a falar para toda a igreja sobre a
bênçao ou milagre que recebeu. Durante a observação dos cultos da sede estadual em São
Luís, percebemos a ênfase dada ao testemunho, consoante aos cultos dirigidos pelo apóstolo
Valdemiro na sede nacional. Notamos que os bispos costumam seguir um roteiro durante o
testemunho do fiel:

-O bispo pergunta o nome da pessoa e pede a ela que conte como era a sua vida antes de
vir para a IMPD- os entrevistadores sempre tomam cuidado para que não sejam citados
nomes de outras instituições ou líderes religiosos;

-O bispo pede que a pessoa conte como ela conheceu a IMPD- nesses momentos, quando
alguns relatam que conheceram a IMPD através da programação televisiva, o bispo aproveita
para ressaltar a importância da manutenção da programação televisiva local e nacional;

-O bispo pergunta o que aconteceu na vida dela a partir de sua participação nos cultos
da IMPD- nesse momentos, os relatos de aquisição de emprego, ganhos de causas na justiça,
trnasformação da família são dados, contuda são os relatos de cura que geralmente dominam
o número de testemunhos. A menção à participação de campanhas e de uso dos objetos é
frequente;

-O bispo pede que a pessoa finalize o seu testemunho, glorificando a Deus- nesses
momentos os bispos abraçam efusivamente as pessoas, dando gritos de aleluia e glória a
Deus, afirmando que o a mão de Deus está na IMPD.

Durante o monitoramento da programação televisiva local da IMPD em São Luís, o canal 39


exibiu vídeos voltados para a importância da televisão como veículo de comunicação e
instrumento utilizado para a pregação do evangelho, por parte da IMPD. A seguir, têm-se as
transcrições de dois desses vídeos.11

VOCÊ SE LEMBRA DE COMO CONHECEU A IMPD? _ Eram dias de angústia, noites


de choro. Você ligou a televisão e viu a IMPD. As lágrimas rolaram de alegria..Você
prosperou..Sua família foi restaurada, porque alguém antes de você contribuiu para o
programa de televisão. Em São Luís, o canal 39 funciona 24 horas, e precisa de sua ajuda.
Seja coluna desse ministério. Deposite na conta corrente ou adquira o seu Carnê Oferta de

11
Alguns desses vídeos estão disponíveis no site www.youtube.com.br
1781
Amor e receba uma toalhinha Sê Tu uma Benção e seja mais um das 5000 colunas do canal
39.

DÍZIMO, OFERTA E SACRIFÍCIO_ O dízimo, a oferta é tido como forma de barganha


por alguns. Mas em Mateus 10:5-8 diz: “Jesus enviou os doze com as seguintes instruções:
"Não se dirijam aos gentios nem entrem em cidade alguma dos samaritanos. Antes,
dirijam-se às ovelhas perdidas de Israel. Por onde forem, preguem esta mensagem: O
Reino dos céus está próximo. Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os
leprosos expulsem os demônios. Vocês receberam de graça; dêem também de graça.” Em
2 Pedro 2:1-3 diz: “No passado surgiram falsos profetas no meio do povo, como também
surgirão entre vocês falsos mestres. Estes introduzirão secretamente heresias destruidoras,
chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina
destruição. Muitos seguirão os caminhos vergonhosos desses homens e, por causa deles,
será difamado o caminho da verdade.” Quanto custa um milagre? Os que agem assim
causam escândalo e atrapalham a IMPD. Você é livre, você é filho de Deus, Jesus já fez o
sacrifício para que você receba a salvação. Bênçãos vêm para os que são obedientes. As
ordenanças de Jesus são cumpridas na IMPD. A IMPD precisa da sua contribuição para
manter a obra de Deus. Veja que tipo de sacrifício o apóstolo e os pastores têm feito à
Deus por você. Veja onde o seu dinheiro é investido (imagens de curas e milagres ,
testemunhos de pessoas que conheceram a IMPD pela televisão).

As imagens utilizadas nos vídeos são de cultos, das pregações do apóstolo, dos bispos e
pastores e da logomarca da IMPD são mescladas nos vídeos com imagens da natureza e de
filmes com cenas do sofrimento de Jesus, tendo como música de fundo som instrumental.

Os bispos e pastores da IMPD possuem um estilo de pregação deveras dinâmico e quase


caricato. Muitos realizam pequenas encenações, para tornar a pregação mais didática, o que
por vezes é visto com bons olhos pela congregação.12 Em um dos cultos que acompanhamos,
o bispo pediu que um dos pastores subisse em suas costas, para simbolizar o fardo espiritual
que estava sobre as costas das pessoas que não haviam recebido uma intervenção divina em
suas vidas. O corpo de fiéis, apesar de um momento inicial de risos, permaneceu muito atento
à explicação dada pelo bispo.

Nos cultos que acompanhamos na sede estadual em São Luís, percebemos que as pregações
duravam em média 30 minutos. Os textos das escrituras, utilizados nas pregações, são
também permeados pela ênfase dada ao poder de Deus em realizar milagres, como também
pelo uso da Teologia da Prosperidade. No momento da pregação, “o pastor-ator tangibiliza as

12
Por vezes o bispo pede o auxilio dos pastores nessas encenações, para que eles formem muros, encenam
pequenos cercos. Etc.
1782
forças sagradas diante de uma multidão que, como em um teatro de arena, também participa
da encenação, com gestos” (CAMPOS, 1999, p. 360-361).

Para a pesquisadora Karla Patriota,

Hoje, a sociedade contemporânea experimenta uma nova aura, dessa vez não mais de
fascínio sagrado, mas de um fascínio essencialmente espetacular – trata-se de mais um
fenômeno cultural da contemporaneidade, em que o conhecimento e as vivências religiosas
passam a ser predominantemente estruturados por meio do consumo de imagens e do
estímulo às emoções (PATRIOTA, 2008, p.70).

Os fiéis que frequentam a IMPD na sede estadual em São Luís, por diversas vezes,
demonstraram uma profunda expectativa sobre o que aconteceria no culto, demonstrando uma
profunda devoção em seus gestos e posturas.

Considerações finais

A Igreja Mundial do Poder de Deus, apesar de estar alocada na categoria neopentecostal, traz
em si um conjunto de práticas tomadas a empréstimo das outras categorias evangélicas.
Criando assim a sua dinâmica de relação com a esfera do sagrado e com os fiéis.

O fiel, após tentar uma série de recursos a fim de alcançar a solução do seu problema,
encontra na IMPD, uma igreja que utiliza de grandes recursos para propagar que ali a Mão de
Deus está operando milagres, a figura de uma liderança carismática, disposta a acolher todos
que adentram por suas portas. Alcançando o milagre, por intermédio do líder religioso, o fiel
passa novamente a crer em Deus, uma vez que por meio da figura dos líderes da IMPD,
alcançou os meios necessários para obter o seu milagre. O líder por sua vez, conduz o fiel a
perceber que o milagre veio diretamente das mãos de Deus, mãos essas que operam na IMPD,
e que derramaram sobre o líder a unção do homem de Deus. Em uma espécie de movimento
de bumerangue, a atribuição do milagre é lançada sobre a figura da divindade, mas retorna ao
líder uma vez que a mediação foi realizada pela sua fé.

As visitas realizadas nos cultos da IMPD, na sede estadual em São Luís, proporcionam uma
ampliação na verificação da dinâmica própria do movimento neopentecostal, no contexto
histórico maranhense. Somam-se as particularidades que vêm sendo construídas pela IMPD,
ao longo de sua atuação, as dinâmicas percebidas no decorrer das pesquisas que apontaram
para a reapropriação característica do pentecostalismo da segunda onda, a ênfase na cura
1783
divina. As características do movimento neopentecostal, o recurso à teologia da Prosperidade,
o uso de objetos mágicos e a liderança carismática, somam-se na formação da identidade da
IMPD, enquanto representante de uma religiosidade sincrética, que oferece a um amplo
número de fiéis, a possibilidade de garantir mais que uma experiência extática, oferece uma
experiência prática de perceber-se em contato com a esfera do sagrado e vendo o seu agir,
através da figura dos líderes da IMPD.

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1787
A propagação da fé através do e-mail numa visão da Mística e do
Sagrado
Valter Luís de Avellar1

Introdução

A Internet é uma espécie de projeção de tudo quanto existe no espírito humano. Uma
extensão do que o indivíduo é, no dia-a-dia, e que não modifica a índole das pessoas. Muitas
pessoas, por exemplo, têm dificuldades em lidar com o anonimato. Quando ocorre uma
situação em que o indivíduo não precisa se identificar, como é o caso da Internet, existe a
possibilidade de vir, à tona, coisas malignas e ruins. Por outro lado, a Rede viabiliza também
uma sociabilidade com estímulos religiosos que apenas esse ambiente propicia.

Desde que a Internet se popularizou, há dezoito anos, um fato com o qual lidamos todos os
dias, ao abrirmos a nossa caixa postal eletrônica, são as mensagens relacionadas à atitude
positiva, valores positivos, otimismo, sabedoria, espiritualidade e sentido da vida. São muitos
os que se utilizam do e-mail para enviarem e receberem mensagens humanísticas e espirituais.
No artigo são apresentados alguns conceitos que podem ser aplicados a esse fenômeno do e-
mail como a Espiritualidade, a Mística, o Sagrado, a Ética, a Moral e os Valores. Em nosso
entender, uma das motivações dos internautas, ao enviarem mensagens humanísticas e
espirituais, tem conexão com a propagação da experiência mística pessoal. Quanto aos efeitos,
o fenômeno pode proporcionar o encontro com o Sagrado e suas conseqüências éticas.

1. A propagação da fé pelo e-mail

Espiritualidade é uma dimensão do profundo de cada ser humano. Todo ser humano é
portador de Espiritualidade (BOFF, 2000, p. 99). A Espiritualidade é aquilo que produz
dentro de nós uma mudança, uma transformação capaz “de dar um novo sentido à vida ou de
abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério
de todas as coisas” (BOFF, 2006, p. 45). A tarefa da Mística, que indica o cuidado com o
mistério, é vivenciar e elaborar a Espiritualidade interiormente. É conscientizar-se de tal

1
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Contato: avellar@unicap.br.
1788
dimensão, trazê-la ao nível da prática e reservar-lhe um lugar explícito no projeto humano
(BOFF, 2000, p. 99).

Em uma abordagem fenomenológica, a Mística se manifesta de três formas fundamentais, que


remetem para diferentes dimensões da realidade: a experiência mística, uma experiência
subjetiva e pessoal cujo centro é a idéia de união com Deus ou com o princípio fundamental
de toda realidade; o místico em si mesmo que não pode ser traduzido em palavras; o
pensamento místico, ponto de conexão entre as duas primeiras, que registra a experiência
mística, informando sobre o caráter inexprimível desta e da realidade transcendente para o
qual ela aponta (SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 18-19).

Comecemos com o pensamento ou discurso reflexivo místico. Segundo Sell e Brüseke, a


definição de Mística de Kolakowsky é a que abrange uma maior variedade de fenômenos que
estão presentes em diferentes religiões (monoteístas, panteístas ou mesmo sem um Deus
pessoal) e em diferentes formas de união com Deus, e que admite toda e qualquer variedade
de condições que são consideradas necessárias para que ocorra o encontro com a Mística
(2006, p. 23):

Doutrina segundo a qual é possível, dentro de certas condições, que a alma humana, que é
uma realidade diferente do corpo humano, comunique-se por meio de uma experiência (não
sensível, mas análoga por suas características diretas àquela que se produz no contato do
sentido humano com os objetos) com a realidade superior que conserva a primazia (no
tempo ou na criação) em relação a toda outra realidade; admite-se ao mesmo tempo que
esta comunicação, ligada a uma intensa afeição de amor, e também livre de toda
participação das faculdades físicas do homem, constitui um bem particularmente desejado e
que ela é, ao menos nas suas formas mais intensas, o bem supremo que o homem pode
conquistar na sua vida terrestre (KOLAKOWSKY apud SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 22).

A partir de sua definição, Kolakowsky deduz que algumas características estão presentes de
forma quase invariável nos movimentos místicos:

A convicção de que a natureza humana abandonada a si mesma é totalmente corrompida,


ou pelo menos incapaz de participar positivamente na criação de valores; desprezo total
pelo saber natural, profano e teológico, e o reconhecimento do fato de que a experiência
mística é inefável; a idéia de um amor totalmente desinteressado (ou seja, a renúncia a sua
própria salvação como motivo de união mística); a negação do tempo (ausência do passado
e do futuro na imagem do mundo), ou a imagem do tempo como algo ilusório, subjetivo ou
fenomenal; reconhecimento de um antagonismo entre a individualidade (especialmente o

1789
emprego da própria vontade) e a perfeição; reconhecimento de um antagonismo entre
criatura e o criador (apud SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 23).

A experiência mística propriamente dita refere-se ao lado subjetivo e interior dos místicos.
Para Sell e Brüseke, existem dois caminhos que podem levar à sua compreensão: a análise
psicológica dos estados místicos e os relatos de quem os vivencia. Os relatos dos místicos são
formas aproximadas de compreensão para tentar traduzir a experiência em si. Como a fala
deles está longe de traduzir o que realmente acontece, eles preferem se utilizar de metáforas,
analogias e símbolos no lugar de conceitos (2006, p. 23-26). Frei Betto observou a
necessidade de Mística através da grande procura de exemplares de Paulo Coelho e de livros
esotéricos (aí incluídos os de Espiritualidade), nas bienais do livro (1999, p. 28).

A experiência do internauta que vivencia uma Mística passa por isso. Ele faz o seu relato
utilizando-se de mensagens relacionadas à sabedoria adquirida ao longo de sua caminhada
Mística. Ele tenta fazer-se entender aos outros internautas através do e-mail, utilizando, como
mensagens, trechos desses livros procurados nas bienias ou poemas, parábolas, crônicas e
textos filosóficos. Boff também tem observado essa necessidade das mensagens dos místicos.
Em suas palavras, ele afirma que “nós temos fome e sede” dos místicos, que eles “despertam
em nós a dimensão espiritual” (BOFF, 2006, p. 45). O teólogo Carlos Josaphat, dentro de sua
concepção cristã, expressa essa “rede de místicos” ao afirmar que “estamos todos ‘plugados’,
à transcendência que é Palavra, ao Logos fonte de vida e de luz, o qual está na origem e no
destino de cada um e de todos os seres humanos, sendo-lhes princípio de sentido” (In:
BOGAZ; COUTO, (Orgs), 2004, p. 39).

O último vértice do triângulo seria “o místico”, aquilo que encarna a dimensão transcendente
e não racional do Sagrado. Para Rudolf Otto, a essência da Mística é constituída desse caráter
misterioso e divino que ele chama de Numinoso. Portanto, a Mística é essencialmente uma
propriedade do Numinoso (SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 65).

Como temos observado, a Fenomenologia da Religião, que trata da experiência do Sagrado e


do Numinoso, está presente em muitos autores. Martelli, por exemplo, aborda a sociologia
abrangente de Joachim Wach, que é uma síntese das perspectivas abertas pelos
fenomenólogos sobre a experiência religiosa, junto com a dos clássicos da Sociologia.
Segundo Wach, a Religião tem como definição “a experiência social do Sagrado”, na qual ele
concilia a Fenomenologia de Rudolf Otto, que considera o Sagrado ao nível da consciência,
com a abordagem clássica da Sociologia da Religião, que situa a experiência religiosa dentro

1790
de um interesse orientado para as problemáticas sociais (apud MARTELLI, 1995, p. 171-
173). Com isso, ele afirma que “somente quem fez uma experiência religiosa autêntica é
capaz de reconhecer, na pesquisa histórico-social, aquilo que é autenticamente religioso”
(1995, p. 173). Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado, convida o leitor a se lembrar dessa
experiência e desaconselha a prosseguir a leitura quem nunca a vivenciou:

Convidamos o leitor a fixar a atenção num momento em que experimentou uma emoção
religiosa profunda e, na medida do possível, exclusivamente religiosa. Se não for capaz ou
se até não conhece tais momentos, pedimos-lhe que termine aqui a sua leitura (1992, p. 17).

Segundo a Fenomenologia da Religião, o Sagrado constitui a base ontológica da experiência


religiosa. A Religião, então, é uma forma específica de leitura do que é o Sagrado. Segundo
Otto, essa categoria especial de interpretação e avaliação, que só existe no domínio religioso,
possui aspectos ditos racionais, ou seja, passíveis de uma apreensão pelo pensamento
conceitual através da observação dos seus efeitos de caráter emocional, e aspectos não
racionais, que escapam à primeira apreensão, sendo exclusivamente captados enquanto
sentimento religioso e impossível de traduzir em conceitos (1992, p. 86-87). Essa experiência
religiosa que designa o Sagrado, abstraído de todo elemento racional, é definida por Rudolf
como o sentimento Numinoso (1992, p. 14). Esse encontro do indivíduo com a essência divina
pode, segundo a análise de Otto, ser apreendido por sentimentos opostos de horror e espanto,
por um lado, e êxtase irresistível e fascinação, por outro.

A partir da sua experiência e de outras pessoas, Wunibald Müller, um autor da atualidade que
faz uma releitura de Otto, afirma que o encontro do Sagrado pode acontecer em diferentes
situações, como na natureza, na liturgia, nos sonhos, nos pensamentos e na leitura. O correio
eletrônico da Internet, através da leitura de mensagens relacionadas à existência humana,
pode ser uma das situações desse encontro:

[...] o lugar capaz de despertar em mim estes sentimentos (do Sagrado) pode ser uma igreja,
pode ser o encontro com o Grand Canyon ao nascer do sol, pode ser a celebração da
eucaristia ao cair da noite no deserto do Sinai, ou de manhã cedinho em um altar de
sacrifícios sobre uma elevação na cidade nabatéia de Petra. Ou quando eu penso em meu
período de estudos em Israel, e nas palavras que me são familiares da Bíblia, ainda hoje eu
sinto um pouco do toque do numinoso que então me foi dado experimentar (2004, p. 45).

O usuário da Internet que recebe um e-mail, algumas vezes, desperta para o Sagrado, quando
ele é “tocado” no mais profundo do seu ser pela assimilação do conteúdo dessas mensagens
numa espécie de despertar interior. Segundo Müller:
1791
Quando este mundo se encontra fechado ou bloqueado, uma determinada situação de nossa
vida pode fazer com que ele volte a se tornar ativo. Talvez ao entrarmos em algum lugar
especial, ao nos encontrarmos em uma região particularmente bela e experimentarmos aí
alguma coisa que nos toca tão profundamente que nossa capacidade de experimentar o
sagrado volta a ser ativada (2004, p. 25).

Essa possibilidade de despertar o Sagrado através desse novo fenômeno, faz com que o
internauta queira participar, assiduamente, como emissor e receptor das mensagens:

Ser tocado pelo sagrado é uma experiência que deve envolver com sua atmosfera o meu
pensar, o meu sentir e o meu agir. Quase sempre eu consigo isto de uma forma bastante
precária. Mas não desisto de estar aberto para esta experiência. Para mim não existe outra
alternativa. É a trilha que descobri para mim, a rota que eu sigo, convencido de que ela me
leva para onde eu me encontro, para o que constitui meu anseio mais profundo – não
importando o que este seja ou o que possa ser (2004, p. 43).

A Ética também é abordada em nossos estudos. Mas antes que iniciemos esta jornada teórica,
temos que fazer uma distinção entre Moral Social e Ética, já que para o senso comum esses
conceitos são sinônimos. Leonardo Boff faz a seguinte distinção entre Moral e Ética:

A Ética é parte da filosofia. Considera concepções de fundo acerca da vida, do universo, do


ser humano e de seu destino, estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades.
Uma pessoa é Ética quando se orienta por princípios e convicções. Dizemos, então, que tem
caráter e boa índole (2003, p. 37).

A Moral é parte da vida concreta. Trata-se da prática real das pessoas que se expressam por
costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é Moral quando age
em conformidade com os costumes e valores consagrados. Estes podem, eventualmente, ser
questionados pela Ética. Uma pessoa pode ser Moral (segue os costumes até por
conveniência) mas não necessariamente Ética (obedece a convicções e princípios) (2003, p.
37).

A Moral Social, para Sell e Brüseke, está fundamentada na sociedade, a partir de um conjunto
de representações que os membros de uma coletividade têm em comum. Ela expressa a
consciência coletiva e orienta, com seus critérios, o agir do indivíduo. Mesmo que um
membro da sociedade não concorde com ela, sente-se no dever de agir como se concordasse.
Portanto, a Moral Social é uma força que exerce poder sobre o indivíduo. A Ética passa pelo
desconforto que o indivíduo sente em certas situações em que os outros membros da
sociedade estão em sintonia. Com sua Ética, ele tem a sensação que a Moral da sociedade está
na direção errada. Dessa forma, a Ética muitas vezes é anti-social e por isso ela é denominada

1792
de Ética da Resistência. Porém, em outras situações, a Moral Social pode convergir com a
Ética por influência desta última. Nesse caso, esses valores éticos não se fundamentam na
sociedade (2006, p. 226-227). Uma pergunta vai surgir, então, por conta disso: onde estaria a
fonte dessa Ética?

Sell e Brüseke se baseiam em Rudolf Otto quando afirmam que a força que o Numinoso
possui, fundamenta qualquer valor ético. Esses valores que a integram, não são construídos na
sociedade, mas são derivados dessa força. A Ética está além da Moral Social, que é construída
pela consciência coletiva num momento histórico (2006, p. 63). Portanto, “a sensibilidade
Mística para o Numinoso, abre um caminho para a fonte de uma Ética que é mais do que mera
Moral Social” (2006, p. 225). O que nós temos observado, através da nossa experiência, é que
os conteúdos humanísticos e espirituais dessas mensagens que circulam pelo e-mail podem
proporcionar consciência de valores éticos ao agir humano. E isto está de acordo com Müller.
Sentir-se tocado pelo Sagrado fundamenta uma Ética que realiza ações concretas no dia-a-dia.
Mudanças de atitude que muitas vezes vão de encontro à Moral Social:

[...] Seguir esta trilha e encontrar este caminho influenciado pelo sagrado, isto me é dado
por uma força e uma instância que vão muito além destas competências, que, em última
análise, são competências humanas. É uma força que, às vezes, a bem da santidade, pode
exigir que eu siga uma direção diferente do que oficialmente se considera correto
(MÜLLER, 2004, p. 43).

Na nossa sociedade em crise, a Moral que permeia a mente da coletividade é a do


individualismo, da competição, do consumismo, da posição social, da busca do prazer
imediato, do “ter” em detrimento do “ser” e do narcisismo. A partir desse contexto, como essa
nova mídia, que é a Internet, pode colaborar para uma Ética de dimensão social, visando à
qualidade humana? Construindo a nossa fundamentação em Carlos Josaphat, comecemos com
a definição de Comunicação Social:

[...] um feixe de palavras, gestos, idéias e imagens, luzes, ruídos ou sons, coligados e
harmonizados em um “código”, que o “comunicador” “emite” a fim de que seja recebido,
decifrado e compreendido pelo seu “destinatário” (2006, p. 23).

É importante frisarmos que a Ética pressupõe e exige que a comunicação exista e que venha a
ser uma rede eficiente que leva mensagens e estabelece a comunhão entre as pessoas (2006, p.
25). Com essa relação, passamos agora para a definição da Ética da Comunicação Social:

1793
A ética da comunicação social se define como o projeto de uma orientação livre e
responsável do processo e do sistema de informação, bem como dos comunicadores e do
público, visando ao bem da própria informação e da sociedade, uma e outra encaradas sob o
ângulo do bem comum, do respeito das pessoas, dos valores e direitos fundamentais (2006,
p. 34).

A partir desse conceito, podemos avaliar que, para que a Ética da Comunicação se torne
efetiva, é preciso que ela tenha influência sobre as atitudes de cada um dos profissionais da
comunicação e de todos que nela estão interessados e envolvidos. Além disso, os valores,
normas e modelos de comportamento da Ética, que têm como fundamentos o reconhecimento
do primado da dignidade da pessoa humana e a aceitação da prioridade do bem social, sobre
todos os interesses particulares de indivíduos, grupos e sociedades, se traduzam em modelos
de orientação para o próprio sistema de comunicação (2006, p. 34-35).

No campo da Ética, os Valores, enquanto bens humanos almejados, são universais e, como
convêm à dignidade da pessoa, merecem ser desejados por todos e para todos, dentro de uma
apreciação racional. A Ética da Comunicação fundamenta-se no equilíbrio dos interesses
particulares e desses Valores humanos fundamentais. A Ética estimula e fundamenta o agir
humano através de seus objetivos, determinados e desejados em virtude de uma intenção
racional e livre (2006, p. 62-63). Esses objetivos humanos da mídia podem ser sintetizados
em quatro ideais ou exigências normativas que se conectam e interagem: a Dignidade percebe
o ser humano em sua singularidade e grandeza próprias; a Responsabilidade surge no plano da
ação como o ponto mais alto da liberdade, é reconhecer-se investido de direitos e deveres a
exercer em virtude da exigência do ser humano de agir para o próprio bem e o bem dos
outros; a Felicidade exprime a realização harmoniosa das aspirações de cada um; o Bem
Comum é a certeza de um núcleo de direitos fundamentais, de bens materiais e culturais para
todos (2006, p. 66-72). Ao se tornarem operacionais, os objetivos humanos da Comunicação
Social concretizam-se em uma escala de Valores Éticos (2006, p. 74).

Definimos Valores como “os princípios normativos supremos, fontes de motivação e de


legitimação das opções e decisões, assumidas com reflexão e liberdade”. Eles direcionam
racionalmente as atitudes humanas como ideais imperativos de caráter absoluto. A reflexão
Ética sintetiza então quatro Valores, interdependentes, que são necessários e suficientes para
servir de base ao agir humano no plano pessoal e social: a Verdade, a Liberdade, a Justiça e a
Solidariedade. A Verdade se constitui e se estrutura por um consenso racional e livre, cujo
objetivo é o Bem Comum. A Liberdade é o primeiro elemento constitutivo do agir humano e

1794
fonte dos outros Valores. Se os membros de uma sociedade não a possuem, especificamente
na informação e comunicação de idéias, eles não podem exercer os direitos e deveres pessoais
e sociais. A Justiça tem como objetivo a promoção de todos os direitos para todos, a procura e
a promoção do Bem Comum através de uma informação verdadeira. Do ponto de vista do
comunicador, este deve ser leal e buscar a exatidão do que transmite. A Solidariedade faz-se
presente na própria comunicação porque esta em si mesma é aberta a ela quando a mídia leva
ao interesse pelas outras comunidades, povos e continentes, valorizando o outro, o diferente
(2006, p. 75-83).

A Internet, em nosso caso de estudo, aperfeiçoa potencialmente a Comunicação Social e


caracteriza-se pela interatividade, uma forma de comunicação que particulariza o seu alvo e
intensifica o seu impacto, conectando os parceiros virtuais e permitindo o diálogo e a
influência recíproca, independentemente da distância e em tempo real. Cada indivíduo pode
entrar na Grande Rede, dispondo de um computador, bem como de uma iniciação técnica
bastante elementar. E a partir daí, ele pode intervir, interagir, criticar as comunicações
propostas, enviar mensagens novas, criar parcerias, constituir e alargar um público, que tem
algo de próximo, superando a massificação e o anonimato de outras mídias. O Ciberespaço
atrela os dados técnicos e as dimensões psicológicas, sociológicas, culturais, Éticas,
espirituais, agregando num mesmo ambiente as influências, as dependências, as
interdependências, as forças e as fraquezas, as ambições e as aspirações intensas que
constituem ou condicionam o novo modo de ser, de viver e de conviver da humanidade.
Como conseqüência, essa forma de comunicação fica à disposição dos gostos individuais,
numa tentativa de satisfazê-los, penetrando na intimidade de cada um (2006, p. 163-177).

Antes de respondermos à pergunta feita anteriormente “como a Internet pode colaborar para
uma Ética de dimensão social, visando à qualidade humana?”, temos que levantar ainda
alguns aspectos negativos desse novo meio de comunicação. Nesse ponto, podemos ver que a
Moral de nossa sociedade também vai estar presente nesse meio. Os indivíduos podem
satisfazer os seus gostos através do erotismo e hedonismo, gastar o tempo em futilidades e
aventurar-se em propostas contrárias a uma Ética responsável. Outro fato negativo é a
exclusão digital ou discriminação virtual. Uma camada da população que não tem acesso a
Rede Mundial de Computadores por ser menos favorecida economicamente (2006, p. 163-
164, 184-185).

1795
A Internet também tem aspectos positivos que contribuem para uma interação na sociedade e
uma influência sobre a qualidade da convivência social. O intercâmbio de amizade, de mútua
ajuda, da cultura, do aprimoramento intelectual, profissional e mesmo espiritual são exemplos
disso. Além disso, “a Ética bem avisada pode discernir e apontar modelos presentes ou
possíveis dos valores humanos: de Verdade, Justiça, Liberdade e amor, prestes a desabrochar
em Solidariedade mundial”. Dessa forma, vislumbramos na Internet a possibilidade e mesmo
a presença de uma interatividade esclarecida e responsável capaz de modificar as formas de
viver, de conviver, de comunicar e de organizar a sociedade, a começar pela família, pela
empresa, pela escola e pela religião. Existindo essa Liberdade de semear Responsabilidade e
Solidariedade pela Rede, transformamos a dura e complexa realidade social (2006, p. 163-
183).

O que podemos tirar de proveito nesse esboço teórico apresentado é que um internauta pode
despertar para o Sagrado quando lê na sua caixa de entrada do correio eletrônico uma
mensagem de conteúdo humanístico ou espiritual. E por vivenciar uma experiência mística ou
ser conduzido a ela a partir desse contato, ele tem a possibilidade de repassar tal mensagem
para outros na Internet com a perspectiva de ser entendido. Isso possibilita a conexão em rede
de indivíduos em comunhão afetiva, de laços de amor e de amizade verdadeiramente
humanos, que se desdobra na realidade da existência, na comunhão real e generosa de
interesses e na mútua doação de si mesmos em meio às belezas e rudezas da vida (2006, p.
187). Dessa forma, essa rede proporciona a Ética, base do agir humano, com seus objetivos de
Dignidade, Responsabilidade, Felicidade e Bem Comum e seus Valores da Verdade,
Liberdade, Justiça e Solidariedade que poderão impactar a realidade social.

Carlos Josaphat, em uma concepção teológica cristã, afirma que a Internet vai se tornando
mais acolhedora ao Logos (Palavra, revelação divina). Numa visão otimista, ele acredita que o
aparecimento dessa rede de computadores autônomos, que tem como característica a
interatividade, dinamiza a verdade e a dignidade, os demais valores e direitos humanos
universais. Ele afirma também que nesse novo meio de comunicação estariam presentes
“indícios da encarnação da Palavra divina mediante a presença universal e dinâmica dos
valores humanos, que são outros tantos dons divinos salvadores: a verdade, a justiça, a
liberdade e o amor que se faz solidariedade mundial” (In: BOGAZ; COUTO, (Orgs), 2004, p.
35-36).

1796
A seguir, apresentaremos exemplos comentados de alguns textos que foram enviados através
da Internet. Uma mensagem que circulou pelo e-mail, por exemplo, foi a história de um
viajante que se perdeu na floresta. Ela tem um conteúdo espiritual muito forte porque aborda a
brevidade da nossa existência e o desapego às coisas materiais:

Um viajante que se perdera na floresta viu-se sozinho em meio ao cair da noite e saiu
procurando um abrigo. Encontrou uma pequenina casa onde vivia um velho. Explicou sua
situação e o velho gentilmente ofereceu sua casa para que lá pernoitasse. Quando entrou, o
viajante pôs a mala no chão e surpreendeu-se com a pequenez da construção. Naquela
diminuta casa, além de um velho fogão de barro, só havia uma cama, uma mesa e uma
cadeira. Sem esconder a incredulidade, o viajante perguntou ao velho se ele vivia ali
mesmo. O velho indo além da pergunta, respondeu que não precisava de nada mais do que
realmente precisava. Mas o viajante, curioso, insistiu em saber como ele se virava com tão
poucas coisas. O velho apontou para a mala no chão e disse que ele devia saber pois
também tinha poucas coisas. - Mas eu estou só de passagem... Sorriu o viajante, muito
lógico. E o velho respondeu: - Eu também.

Uma outra, que foi retirada do livro “O Enigma do Iluminado”, tem como título: “Perdoar os
Nazistas”. O tema principal é o perdão:

Um antigo preso de um campo de concentração nazista visitava um amigo que partilhara


esse sofrimento com ele.

- Já perdoou os nazistas? - perguntou o amigo.

- Sim.

- Pois eu não. Ainda estou consumido de ódio por eles.

- Nesse caso - disse com doçura o amigo – você ainda é prisioneiro deles.

Nossos inimigos não são aqueles que nos odeiam, mas sim aqueles a quem odiamos
(MELLO, 2000, p. 147).

A mensagem “Quase Acreditei”, que circulou na Internet, nos conta, na forma de um poema,
o processo de conversão de uma pessoa:

Quase acreditei que não era nada

ao me tratarem como nada.

Quase acreditei que não seria capaz

quando não me chamavam,

por acharem que eu não era capaz.

1797
Quase acreditei que não sabia

quando não me perguntavam

por acharem que eu não sabia.

Quase acreditei ser diferente

entre tantos iguais,

entre tantos capazes e sabidos,

entre tantos que eram chamados e escolhidos.

Quase acreditei estar de fora

quando me deixavam de fora porque...

que falta fazia?

E de quase acreditar adoeci;

busquei ajuda com doutores,

mestres , magos e querubins.

Procurei a cura em toda a parte

e ela estava tão perto de mim.

Me ensinaram

a olhar para dentro de mim mesmo

e perceber que sou exatamente

como os iguais que me faziam diferente.

E acreditei profundamente em mim.

E tenho como dívida com a vida

fazer com que cada ser humano se perceba,

se ame,

se admire de si mesmo,

como verdadeira fonte de riqueza.

Foi assim que cresci:

acreditando.

Sou exatamente do tamanho de todo ser humano.

E por acreditar

perdi o medo de dizer, de falar, participar,

1798
e até de cometer enganos.

E se errar?

Paciência, continuo vivendo...

por isso aprendendo.

(Autor desconhecido)

Considerações finais

A Internet é um ambiente que veio para ficar e não um modismo. Seja pela forma do acesso,
que é ágil e quase instantânea, seja pelo alcance mundial: as religiões sabem que esse meio
tem um potencial grande como veículo divulgador da fé. A tendência do seu crescimento faz
com que as Instituições Religiosas Formais invistam nesse ambiente de forma massiva. Por
outro lado, o próprio indivíduo também faz uso desse meio de comunicação para propagar
mensagens humanísticas e espirituais através do e-mail. Partindo de alguns enfoques
conceituais das ciências humanas, buscamos evidenciar de forma mais clara alguns aspectos
que envolvem esse fenômeno religioso.

Em algumas ocasiões, a questão da Mística pode estar presente quando percebemos a


importância do emissor da mensagem. Parece-nos que existem internautas considerados
místicos pelos outros. E quando eles enviam mensagens de conteúdos espirituais, estas são
mais bem aceitas e seus ensinamentos mais facilmente interiorizados pelo indivíduo. É
possível um encontro com o Sagrado nessas situações. Alguns relatos também nos mostram
que a experiência mística pessoal reflete no correio eletrônico. O indivíduo tem a sensação de
que é um mero instrumento de uma força ou algo superior que o impele a enviar essas
mensagens edificantes.

Em geral, as mensagens que circulam pelo correio eletrônico da Internet não modificam a
visão de Deus do internauta e estes também não abandonam a religião que professam. As
mensagens podem preencher algumas lacunas deixadas pela Instituição. É um novo
movimento religioso no sentido de que, se a religião não está suprindo todas as suas
necessidades espirituais, o indivíduo precisa de outros meios como esses tipos de e-mail.

Nesse “complemento” que as mensagens proporcionam, existe o fato de que o usuário da


Internet está inclinado a ter uma visão integradora das religiões. Ele não se importa com as
diferenças sociais e religiosas quando participa dessa interatividade pelo e-mail. Por quase
1799
não haver conteúdo dogmático Institucional, a mensagem, em si, é, mais facilmente aceita,
com menos resistências, propiciando uma comunhão de pensamentos em rede. Nesse nível de
encontro do Sagrado, comum aos seguidores das mais diversas religiões e correntes
filosóficas que acessam a Internet, é possível estabelecermos um diálogo através de
mensagens. Um entendimento universal da dimensão espiritual e humana inerente a todos os
seres humanos.

Referências

BOFF, Leonardo; BETTO, Frei. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
(Coleção Arco do Tempo).

________. Depois de 500 anos: que Brasil queremos?. Petrópolis: Vozes, 2000.

________. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003.

________. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.


(Coleção Auto-estima).

BOGAZ, Antônio; COUTO, Márcio A. (Orgs). www.deus.com: desafios da teologia num


mundo virtual ‘e o Logos se fez site?’. São Paulo: Loyola, 2004.

JOSAPHAT, Carlos. Ética e mídia. São Paulo: Paulinas, 2006.

MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995.

MÜLLER, Wunibald. Deixar-se tocar pelo sagrado. Petrópolis: Vozes, 2004.

OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Ed. 70, 1992. (Coleção Perspectivas do Homem).

SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade. Itajaí: Univali, São
Paulo: Paulinas, 2006.

1800
1801
Anjos, demônios sociais e canções de amor
Claudefranklin Monteiro Santos1

Introdução

A cena é emblemática. João de Santo Cristo, baleado pelas costas, tomba amparado por sua
amante, Maria Lúcia, que também foi atingida, carregando uma criança no ventre. Na outra
extremidade, de um pequeno campo de futebol de várzea, num subúrbio pobre de Brasília, o
traficante Jeremias contempla a cena com o mesmo ódio que lhe fez sacar dois tiros certeiros.
Convencido de que havia se livrado de seu concorrente e da mulher a quem julgava traidora,
ele é surpreendido por João de Santo Cristo com uma Winchester-22. O traficante cai com
cinco tiros cravados no corpo. Era o desfecho de uma típica cena de faroeste norte-americano,
que se configura numa das muitas canções da Banda Legião Urbana, representando uma
realidade hipotética, que poderia ter sido do Distrito Federal dos anos 80.

Em 2013, a saga de João de Santo Cristo foi encenada nos cinemas brasileiros num filme
homônimo ao título da música: Faroeste Caboclo. No mesmo ano, cinéfilos de todas as
idades, sobretudo adolescentes e fãs da banda que cresceram nas últimas duas décadas,
puderam assistir a história que contava o início do maior grupo de rock brasileiro: Somos Tão
Jovens. Alguns anos antes, em 2011, o autor Wagner Moura e a jovem atriz Aline Moraes já
haviam emocionados plateias do Brasil inteiro com o filme O Homem do Futuro, vivendo um
romance embalado pelo sucesso Tempo Perdido.

As pessoas nascidas em 1996, ano da dissolução do grupo em função da morte de seu


vocalista e líder, Renato Russo, somente agora, no auge da adolescência, conseguem
vislumbrar os efeitos que aquela sonoridade nova do rock nacional havia produzido entre os
anos 70 e 90 do século XX, cujos efeitos ainda se fazem sentir, com uma atualidade
atemporal. O cinema reforça o fascínio em torno daquela que até hoje é considerada a maior
banda de rock da história da música popular brasileira e desperta interesses em diversos
movimentos, inclusive no campo acadêmico.

Criada em 1982, na cidade de Brasília, a Banda Legião Urbana alcançou sucesso e


popularidade, sobretudo entre os jovens. Empunhando um rock de protesto e sob a liderança

1
Doutorando em História pela UFPE. Mestre em Educação e Licenciado em História pela UFS. Professor no
Departamento de História da UFS. Pesquisador e vice-líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades (GPCIR). Contato: franklinmonteiro@oi.com.br.
1802
de Renato Russo, se transformou numa bandeira de luta social para uma juventude carente de
liberdade e ainda aprendendo a viver com uma democracia muito tênue. Ao passo em que
seus componentes amadureciam frente à conjuntura histórica, seu líder vivia às voltas com um
drama pessoal que o levou a óbito em 11 de outubro de 1996: a AIDS. De Faroeste Caboclo a
Pais e Filhos, entre demônios sociais e canções de amor, a Banda Legião Urbana deixou um
repertório rico de possibilidades para os estudiosos das religiosidades no mundo
contemporâneo, revelando um sentimento que ultrapassa, ao mesmo tempo em que também
atravessa, o institucionalmente estabelecido. O presente trabalho quer mergulhar nesse
potencial analítico e procurar entender o universo social e religioso do Brasil dos anos oitenta
e noventa do século XX, à luz de uma discussão historiográfica e dentro de uma perspectiva
que congrega estudos culturais em torno do tema música crítica popular.

A música crítica popular

Ocupando lugar privilegiado na história sociocultural do Brasil, a música, dentro da


perspectiva de Marcos Napolitano, se apresenta como a “tradutora dos nossos dilemas
nacionais e veículo de nossas utopias sociais” (NAPOLITANO, 2005, p. 7). Nesse sentido,
pode-se dizer que a música produzida pela banda Legião Urbana, em certa medida, traduz
isto, na medida em que escancarou as vísceras sociais do Brasil de pelo menos três décadas,
tornando-se sempre atual, e, ainda assim, apontando para soluções onde o amor e as
religiosidades se apresentam como os únicos esteios de uma sociedade mergulhada em um
caos muitas vezes absurdo.

Por isso mesmo, aquele autor nos convida a pensar a música enquanto fenômeno popular,
dentro de uma ótica onde a crítica histórica ajude a compreender a música da Legião Urbana
no contexto em que ela foi gerada, avaliando suas influências e reverberações no campo
social, nas tramas sociais e na afetividade e sensibilidades dos sujeitos. Uma música popular
não somente em seu sentido estrito ardoniano,2 de “música-comercial-urbana”, mas enquanto

2
Uma referência aos estudos culturais de Theodor Adorno (1903-1969), filósofo e mentor de uma crítica
musical. A guisa de refletir sobre os efeitos estéticos e sociais da “indústria da arte”, o teórico alemão é
conhecido como o pioneiro numa reflexão mais sistemática sobre o que ele chama de uma arte travestida em
indústria. Trata-se de uma leitura imprescindível para qualquer estudo sobre música popular. É bem verdade que,
até pela natureza de nosso trabalho, não nos aventuraremos na empreitada de ler seus textos a respeito, mas
reconhecemos essa necessidade na medida em entendemos que a contribuição de Adorno torna as a música
popular um corolário de uma indústria que mexeu profundamente com a estética e com o jeito clássico de ouvir e
pensar a música. Cf. ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução: José Lino
Grunnewald. In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980, p, 165-192.
1803
fenômeno potencializado da mediação cultural entre o ser, a história e suas demandas sociais
e pessoais (NAPOLITANO, 2005, p. 9).

A ideia de uma canção popular está condicionada ao fato de que ela é “veiculada através da
indústria fonográfica e dos meios de comunicação de massa” (NAVES, 2010, p. 7). Assim, a
banda Legião Urbana, enquanto produtora de uma música massificada, e, portanto, popular,
se insere num momento da história da música brasileira quando novos estilos musicais vão,
também, surgindo, a exemplo do rock nacional dos anos 80 do século XX. Uma época em que
o rádio, com o advento e consolidação da FM (frequência modulada), e, sobretudo, a
televisão, com a onda dos videoclipes, alçam a música popular a um patamar ainda maior de
alcance e de consumo, e, necessariamente, de influência nos hábitos, modos de ser e,
particularmente, de pensar.

As mudanças promovidas pelo período do pós-revolução industrial fez, depois das guerras
mundiais do século XX, aumentar “o interesse por um tipo de música, intimamente ligada à
vida cultural e ao lazer urbano” (NAPOLITANO, 2005, p. 12). Quando a banda Legião
Urbana estourou no Brasil, aquele interesse estava mais sólido e só aumentava a sua demanda.
Aquela geração, batizada por Renato Russo de “geração coca-cola”, queria uma música para
dançar, para revoltar-se, mas também, para pensar e amar. Sob o torpor das drogas e suas
fugas evasivas, uma música que também fazia e queria transcender.

Para Santuza Cambraia Naves, a geração dos anos 80 do século XX desenvolveu um tipo de
rock que ao tempo em que recebia influências norte-americanas, também agregava
características novas que lhe creditaram uma “feição brasileira” (2010, p. 19), notadamente
com uma maior ênfase ao ritmo. Nesse sentido, destoava da Bossa Nova e da MPB,
principalmente por estes ensejarem mais a melodia ou a harmonia melódica. Isto, em parte,
cabe para compreender a musicalidade do rock nacional, de um modo geral, mas não serve
para explicar a musicalidade da Legião Urbana, na medida em que, seu principal compositor,
também primou por aqueles dois elementos. Sensível e poético, Renato Russo imprimiu à
banda uma boa pitada de elementos melódicos e harmônicos, alguns deles, inclusive, variando
com uma sonoridade e ritmia mais fortes e aparentemente desconexa e desarmônica, digna de
grandes concertos de música clássica. Exemplo disso é a canção Metal Contra as Nuvens (CD
Legião Urbana V, faixa 2, 1991).

1804
De qualquer forma, a opção metodológica adotada por Santuza Naves nos pareceu mais
apropriada para a análise a qual nos propomos fazer de análise das canções da banda Legião
Urbana, pois ela tem, em sua essência, o desenvolvimento rico do que o autor classifica como
“componente crítico” (2012, p. 19). O conceito de “canção crítica” nos apresenta como salutar
para nossos objetivos. Para Naves, é a partir da Bossa Nova que a música popular brasileira
assume a condição proposta por ele, de que nos utilizamos no presente artigo, de “veículo por
excelência do debate intelectual”, necessariamente por que passa a operar duplamente, seja
com o texto, seja com o contexto, no plano interno, e, também, no plano externo (Idem, pp.
20-21). A nosso ver, a música da banda Legião Urbana vai, perfeitamente, ao encontro dessa
assertiva, notadamente, como uma categoria bem representativa de “canção crítica”. Para
tanto, é preciso, de igual modo, compreender o perfil de seus componentes, de modo
particular, de Renato Russo, como operador desse conteúdo crítico que passa a constar do
universo inspirador do grupo.

Do rock in roll clássico, quase punk, ao blue melódico, a musicalidade refinada e intelectual,
mas também escrachada e pseudoingênua, a banda Legião Urbana alcançou públicos os mais
diversos ao longo de trinta anos e torna-se, portanto, um interessante objeto de crítica
histórica e sociocultural. Estudos em torno da música popular, em especial, os mais recentes,
revelam que é difícil sustentar abordagens generalizantes e normativas, afirma o autor
(NAPOLITANO, p. 36). É preciso levar em conta as variáveis históricas e sociológicas.

A música é produzida num determinado contexto histórico, sob certas condições do tecido
social. Além disso, afora seu consumo cultural, é preciso levar em consideração suas
representações, suas apropriações e suas circularidades no tempo, na história. Assim, somos
adeptos da tese de que “(...) o documento artístico-cultural é um documento histórico como
outro qualquer, na medida em que é produto de uma mediação da experiência histórica
subjetiva com as estruturas objetivas da esfera socioeconômica” (NAPOLITANO, 2010, p.
32).

1805
Demônios sociais3 e canções de amor

Em grande medida, pode-se afirmar que o Rio de Janeiro e parte considerável do Nordeste,
notadamente a Bahia e Pernambuco, forjaram as formas musicais do Brasil entre os séculos
XIX e XX (NAPOLITANO, 2005, p. 39). O surgimento da banda Legião Urbana redireciona
o foco para a nova Capital Federal. A partir dos anos 80, Brasília torna-se o centro irradiador
de um fenômeno da música brasileira. É bem verdade que, para tal estado de coisas, contribui,
decisivamente, a conjuntura histórica do lugar, que refletia um quadro político e social pós-
ditadura militar, que, ainda que estivesse reexperimentando a democracia, vivia um clima
nebuloso e tenso.

A banda Legião Urbana, pode-se dizer, foi um dos desdobramentos de uma época da música
popular produzida no Brasil no contexto de supressão das liberdades individuais dos anos 70.
De um momento de nossa história em que o rock in roll se configurava como uma expressão
de uma contracultura, que expunha as condições políticas de um regime de governo militar,
mas também a forma de produzir cultura no país naquele contexto adverso (NAVES, 2010, p.
107). Assim, aquela geração havia atualizado a linguagem do rock para as condições locais
(idem, p. 116), algo que a Legião Urbana seguiu fazendo nas décadas subsequentes em outro
patamar e com outra formatação, aliando crítica social e canções de amor, com uma boa e
significativa dose de religiosidade.

Contextualizando os anos 80, é possível perceber um rock brasileiro que bebia de fontes
diversas, particularmente de origem norte-americana e inglesa. Entre as influências, destaque
para o punk anglo-americano. Para Naves, a influência desse estilo, da chamada “atitude
punk” se manifestava “na utilização de uma linguagem despojada, de estreita comunicação
com os aficcionados, fosse ela politizada (anárquica) ou hedonista” (2010, p. 122). Como
diria a canção Teorema (CD Legião Urbana, 1985, faixa 10): “Parece energia, mas é só
distorção”. Na mesma música, a tônica libertária da influência punk sobre o grupo, de senhor
da história e do destino, ao sabor do aconteça o que aconteça, faça você mesmo: “Não peça
permissão / É só você quem deve decidir o que fazer”.

Em 1985, a banda Legião Urbana lançou seu primeiro álbum gravado em estúdio, de um total
de oito4, ao longo de quinze anos de existência. Sua formatação inicial, 1982, tinha Renato

3
Demônio é uma forma representativa de anjo. No plural, também pode denotar complicações de diversas
ordens. A categoria é utilizada aqui para representar problemas de ordem social, como miséria, degeneramento
moral, mazelas, entre outros.
1806
Russo no vocal e guitarra, Marcelo Bonfá, na bateria, Dado Villa-Lobos, na guitarra, e Renato
Rocha, no baixo. Um grupo de rock que revolucionou o estilo em nível nacional, com
diversas influências, como o já citado punk e o folk. Não tardaram para se tornar uma das
maiores bandas do gênero e influenciar de forma significativa uma juventude que crescia num
período de reabertura democrática da história do Brasil. Em destaque, “(...) letras politizadas,
contestadoras e eivadas por uma certa melancolia...”.5

Eram tempos de abertura política, mas tensos e dramáticos. No ano anterior, o país ficava
desapontado com a derrota da Medida Dante de Oliveira no Congresso Nacional, que
propugnava eleições diretas. Assim, mesmo os militares tendo saído de cena, os civis tomam
as rédeas do poder e elegem, indiretamente, o político mineiro Tancredo Neves, que faleceu
antes mesmo de tomar posse, em 21 de abril de 1985. Era um início de um lento, nem sempre
progressivo, de um processo de redemocratização o Brasil.

Antes de lançar o primeiro álbum da banda Legião Urbana, Renato Manfredini Júnior, o
Renato Russo, professor de inglês e estudante de jornalismo,6 ainda nos anos 70, tentou levar
adiante seu primeiro projeto artístico no campo da música. A banda Aborto Elétrico durou até
1982 e imprimiu um novo estilo de rock brasileiro, que naquele momento só podia ser ouvido
em circuitos muito restritos e para um público específico de classe média, composto
basicamente por universitários. Apesar de não lograr êxito, a banda Aborto Elétrico plantou a
semente de um rock que pôs Brasília na condição de celeiro de grandes sucessos nacionais ao
lado da Legião Urbana, como Capital Inicial e Paralamas do Sucesso.

Nunca é demais lembrar que em 1985 o rock internacional descobria o Brasil. Naquele ano,
entre os dias 11 e 20 de janeiro, aconteceu a primeira edição do Rock in Rio. A cidade do Rio
de Janeiro tornou-se, por alguns instantes, a capital internacional do rock in roll, que reuniu
atrações como Iron Maide, AC/DC e Queem, esta última numa performance inesquecível e
histórica de Fredie Mercury.

4
Em razão das limitações técnicas no que diz respeito ao número máximo de caracteres para a confecção do
presente texto, de acordo com as Normas de Edição de Trabalhos Completo para os Anais do I Simpósio
Regional Sudeste e I Simpósio Internacional da ABRH, nossa análise limitar-se-á a cinco álbuns apenas.
5
Cf. CD Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 1).
Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 07.
6
Renato Russo era carioca de nascimento, ocorrido no dia 27 de março de 1960. Teve uma infância
movimentada às voltas com as viagens do pai, como a que o fez morar em Nova York por mais de um ano,
quando foi instalar-se em Brasília no ano de 1973. Depois de quinze anos à frente da banda Legião Urbana,
Renato morre vitimado pelas complicações da AIDS, enfermidade descoberta seis anos antes de seu falecimento
em 1996. Cf. MARCELO, Carlos. Renato Russo, o filho da revolução. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2012.
1807
A juventude dos anos 80 estava atônita com tudo que acontecia no país. De alguma forma, ela
buscava alento em novas coisas que pudessem aplacar suas carências e seus desejos. Nascia
dali uma afinidade entre artista e público que ultrapassou o entretenimento, pois as letras da
banda Legião Urbana, contundentes, encontraram ressonância com “a insatisfação difusa dos
jovens da época”.7
Assim, a canção Será (CD legião Urbana, 1985, faixa 1) caiu como uma luva para atender aos
anseios da juventude da segunda metade dos anos 80. Um misto de medo e ansiedade
dominou a cena criativa de seus compositores, que nutria um sentimento de dúvidas,
traduzidas em muitas de suas inquietações e desilusões, como nos versos “brigar pra quê, se é
sem querer, quem é que vai nos proteger?” O grupo denunciava o egoísmo e a compreensão
difusa do amor.

O amor descartável, que visa apenas o sexo, o prazer e o hedonismo, fala fundo aos jovens e
seus excessos, inclusive em sua sanha desenfreada por fugas (drogas), são motes inspiradores
da canção A Dança (CD Legião Urbana, 1985, faixa 2). A atitude do grupo pode até parecer
careta, mas Renato deixava claro como esse caminho poderia ser sem volta. Lembra muito a
música Como Nossos Pais, sucesso de 1976, de autoria de Belchior, notoriamente ouvido na
voz de Elis Regina por muitos anos. Nesse sentido, vejamos o que diz um trecho: “Você é tão
moderno, se acha tão moderno / mas é igual aos seus pais, / é só questão de idade, passando
dessa fase / tanto fez e tanto faz”.

Na canção Baader-meinhof Blues (CD Legião Urbana, 1985, faixa 8), o grupo afirma que
amar o próximo é démodé e o diz não como se estivesse concordando que deva ser assim.
Pelo contrário, ao falar de amor, sobretudo Renato Russo, se ressente da falta desse amor
numa sociedade cuja justiça é desafinada, em meio a uma violência que fascina, de que aquele
princípio do Antigo Testamento, tão renovado pela figura do Cristo, agora se torna suplantado
pelo sentimento de está cheio por se sentir vazio. Mais adiante, numa canção assinada por
Renato Russo, Metrópole (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 7), o grupo critica o tempo
presente, o espetáculo do horror e o apelo ao trágico, à burocratização da vida e das pessoas, à
futilidade e frivolidade das pessoas e suas vidas guiadas por regras de repartição pública, com
seu mal serviço, e pelas novelas de ocasião, que mata a humanidade restante nelas. Nesse
sentido, em Plantas Embaixo do Aquário apela: “Faça do bom-senso a nova ordem” (CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 8).

7
Cf. CD Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 1).
Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 23.
1808
Quase trinta anos depois, a sociedade brasileira ainda tenta entender aquela ruptura de 1985.
Em tempos de Comissão da Verdade, vítimas das atrocidades da Ditadura Militar ainda não
têm sepulturas e seus entes pratearam um vazio que ainda não define bem quem é quem e
quem foi quem entre todos os “vencidos”. O clima democrático obscureceu a verdade dos
crimes cometidos: “Sou brasileiro errado / vivendo em separado / contando os vencidos / de
todos os lados” (Petróleo do Futuro – CD legião Urbana, 1985, faixa 3). O Estado
democrático de direito implantado em 1985 e confirmado mais tarde pela Constituição de
1988, na visão da banda deitou sobre a sociedade mais dúvidas e inseguranças do que
certezas, onde o inimigo não é claro e logo se transforma naquele que vai ocupar as
instituições para zombar do povo com suas manobras escusas: “Nos defendemos tanto tanto
sem saber / porque lutar” (Soldados - CD legião Urbana, 1985, faixa 9) ou ainda em outra
canção mais conhecida: “Mudaram as estações e nada mudou” (Por Enquanto - CD legião
Urbana, 1985, faixa 11); expressão que ficou famosa na voz da cantora brasileira Cássia Eller
em 1990.

Como se vê, politicamente, o grupo fala às claras e com muita franqueza e até usa trocadilhos
para expressar suas concepções: “Pra seu governo / o meu estado é independente” (Baader-
meinhof Blues - CD legião Urbana, 1985, faixa 8). Assim, as palavras “governo” e “estado”
pode até parecer algo coloquial de uma briga de namorados, mas tem um recado direto e
profundo. A canção Fábrica (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 11) é uma ode à liberdade
e é bem politizada no que se refere às questões trabalhistas no país. Ela vai ao encontro dos
oprimidos pelo trabalho. Não tem conteúdo marxista, mas aponta para a luta de classes e
clama, com esperança, por dias melhores, pois, para Renato Russo, que assina sozinho a letra:
“Deve haver algum lugar / onde o mais forte não consegue escravizar”.

Renato Russo escolhe uma canção para classificar a geração de seu tempo. Geração Coca-
Cola é uma música símbolo daqueles tempos pós-ditadura, ao mesmo tempo em que se
apresentava como o prenúncio de uma juventude que hoje grita nas ruas, “de crianças
derrubando reis / fazendo comédia com a suas leis”. Rotulada assim com muita, foi a geração
da banda e de Renato Russo, era filha da “revolução”, pois foi assim que os militares
classificavam o golpe de 64. Burgueses sem religião, porque a classe média chegava à
universidade e descobria que ela, a religião, era ópio do povo8 e que Deus estava morto.9 Uma

8
Expressão atribuída a Karl Marx, em sua obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844.
9
“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!”, afirmou o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche na obra Gaia Ciência, de 1882.
1809
geração que quando adulta viu os “Caras Pintadas” derrubarem Collor da Presidência da
República em 1992: “Vamos fazer nosso dever de casa / aí então vocês vão ver”. Uma
geração que sempre ouviu dizer “cresça e apareça!”, da qual ninguém perguntou se estava
pronta, que “ficou completamente tonta / procurando descobrir a verdade” (O Reggae – CD
Legião Urbana, 1985, faixa 7). Numa democracia que prega a liberdade, mas que pede uma
identidade se não quiser apanhar, que convive com a violência, sem ter armas para se
defender, pois “os assassinos estão livres, nós não estamos” (Teatro dos Vampiros - CD V:
Legião Urbana, 1991, faixa 5).

No segundo álbum do grupo, lançado em 1986, já era possível perceber seu amadurecimento,
com letras românticas e baladas de conteúdo ainda mais crítico-social, sempre focado,
também, numa experiência transcendente, na maioria das vezes alucinantes. Com José Sarney
efetivado na condição de Presidente da República, um civil desde 1964, um “ambiente de
otimismo enganoso” foi, de certa forma, influenciando a criação musical e letrista da banda,
às voltas com sua estrondosa aceitação no mercado fonográfico. Nessa nova fase do grupo,
Renato Russo imprime, cada vez mais, uma liderança e influencia que foi decisiva para os
seus autos e baixos, sem falar de seu desempenho nos palcos, lembrando uma espécie de Elvis
Presley epilético, um punk alucinado que convidava seu público a mover-se, sair do lugar,
mexer a cabeça e pensar.

A ideia de uma afirmação pós-ditadura tomou conta dos anseios daquela “geração coca-cola”,
um estado de independência inspirava jovens de todas as idades e seus ecos ainda se fazem
sentir nas ruas, a exemplo de versos como esse: “Quando o que eu mais queria / Era provar
pra todo mundo / Que eu não precisava / Provar nada pra ninguém” (Quase sem Querer - CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 2). A canção Que país é este (CD Que país é Este: Legião
Urbana, faixa 1) foi composta por Renato Russo em 1978, mas como sucesso só estourou em
1987, no terceiro álbum da banda. Virou uma música atemporal e muito atual, curiosamente
muito atual, capaz de responder aos problemas políticos e os demônios sociais de pelo menos
três décadas da história do Brasil. E bem começa uma quarta década e a melodia já se
apresenta como um aporte para compreender as chamadas “vozes da rua”. Naquele ano, a
democracia, ensaiando mais uma Constituição (1988), não conseguia dar alento ao povo
brasileiro, ávido por melhores condições: “(...) o país continuava a patinhar economicamente,
a dar guarida aos corruptos e a semear desesperanças com relação ao futuro”.10

10
Cf. CD Que País é Este: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v.
3). Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 10.
1810
As experiências religiosas e exotéricas de Renato Russo são flagrantes em partes
consideráveis das letras do grupo. Tendo passagens pelas chamadas ciências ocultas e pela
astrologia (da qual não se apartou hora nenhuma), Russo imprimiu uma dimensão espiritual
nas canções que iam mostrando um sujeito cada vez mais maduro sobre sua relação com
Deus, sobretudo, diante da AIDS e a iminência da morte.
A figura do anjo é uma imagem recorrente na obra da banda Legião Urbana. É o mote
inspirador até mesmo para seu nome, pois a palavra legião consiste numa reunião de vários
anjos. Ora essa imagem inspira bondade, ora rebeldia e protesto. Ela aparece pela primeira
vez na música Quase sem Querer (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 2), na expressão
“Como um anjo caído / fiz questão de esquecer”. “Anjo caído” remete, normalmente, à
Lúcifer (luz bela), um anjo que gozava da predileção de Deus antes de ser condenado por
desobediência e tornar-se a representação do mal na teologia cristã. No que diz respeito esta,
se diz que aquele anjo fez questão de esquecer-se do plano de divino de salvação.

Em “O infinito é realmente / um dos deuses mais lindos” (Quase sem Querer - CD Dois:
Legião Urbana, 1986, faixa 2), aponta para a ideia de transcendência do grupo. No trecho “É
o mal que a água faz, quando se afoga / E o salva-vidas não está lá porque não vemos” (CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 1) é possível perceber uma clara menção à ausência de fé
em meio as circunstancias torpes da vida. A música traz como título uma passagem conhecida
do Antigo Testamento: Daniel na Cova dos Leões. À propósito, ao longo dos oito álbuns da
banda, são dezenas de elementos daquele livro sagrado, inclusive expressões literais ou
indiretas, o que demonstra conhecimento do texto. Nunca é demais lembrar, que também o
Novo Testamento está entre os motes de inspiração do grupo, notadamente mais presente nas
letras assinadas individualmente por Renato Russo.

Na música Eduardo e Mônica (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 4), um trecho chama
atenção para o vimos refletindo: “E quem um dia irá dizer / Que não existe razão / Nas coisas
feitas pelo coração”. Essa convivência entre a racionalidade universitária com o
sentimentalismo romântico e religioso foi uma marca registrada da Legião Urbana. Razão e fé
é uma das discussões mais antigas e espinhosas da Igreja Católica, por exemplo, e que chegou
a envolver dois de seus mais importantes doutores: Santo Agostinho e São Tomaz de Aquino.
Ao longo dos álbuns, as letras vão dando pistas de sua maneira de ser religioso. A ideia é
acreditar duvidando, inquirindo, provocando, se arriscando. Na canção Acrilic on Canvas, isto
já começa a se evidenciar: “Mas então por que eu finjo que acredito no que invento?” (CD

1811
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 3). Em Tempo Perdido (CD Dois: Legião Urbana, 1986,
faixa 4) fala fundo aos jovens. Trata-se de uma espécie de evocação da guinada que eles
precisavam dar em relação as coisas da vida, afinal, “somos tão jovens”. A letra é repleta de
elementos que vão do poder do jovem ao respeito que se precisa ter pelo sobrenatural ou pelo
menos da convivência estratégia, de sobrevivência mesmo, que precisa ter com ele: “Não
tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora”. Provocação era o estilo de Renato
Russo quando o assunto era fé e religiosidade. Na passagem da canção Depois do Começo
(CD Que País é Este: Legião Urbana, 1987, faixa 4), “Deus, Deus somos todos ateus / Vamos
cortar os cabelos do príncipe / E entregá-los a um deus plebeu”, duas questões sobressaem.
Ora ele grafa a palavra Deus com letra maiúscula, ora com letra minúscula, deixando claro a
quem se dirige. Em seguida, dirige a Deus, declarando que todos são ateus, não acreditam
Nele. Essa era a ideia de Renato: contradizer, confundir, criar paradoxos de propósito,
desconsertar.

Assumindo o papel de um índio hipotético, que se questiona sobre mais de quatro séculos de
conquista (à época) Renato Russo, na canção Índios (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa
12), faz um balanço da chegada dos portugueses ao território brasileiro, sintetiza todo
desapontamento dos nativos e cria uma representação de um índio queixando-se das táticas
dos conquistadores, dos seus modos e de seu aparato ideológico. Nesse sentido, chama
atenção uma passagem de cunho religioso, envolvendo o dogma católico da Trindade Santa e
o martírio de Cristo na Cruz: “Quem me dera ao menos uma vez / Entender como um só Deus
ao mesmo tempo é três / E esse mesmo Deus é morto por vocês / É só maldade então, deixar
um Deus tão triste”. Trata-se, portanto, de um paradoxo constrangedor entre o credo e a
instituição, entre a fé e a Igreja.

Faroeste Caboclo é uma obra-prima de Renato Russo no contexto novo rock brasileiro (CD
Que País é Este: Legião Urbana, 1987, faixa 7). A letra é repleta de possibilidades para
entender o seu escracho com o Cristianismo, ao mesmo tempo em que, no deboche
provocativo, revela elementos de uma singular, porém, contraditória religiosidade. O
personagem João de Santo Cristo11 é muito complexo, pois reúne os demônios sociais que
Renato Russo denúncia em sua musicalidade, mas também a saga do amor sincero, do sujeito
que é o resultado das agruras e dilemas da vida. São vários os símbolos forjados por Russo
nessa canção, que provocam as mais variadas reações, dentro de uma dubiedade que lhe

11
O sobrenome é uma referência às origens do personagem João. Trata-se de uma hipotética fazenda do interior
baiano. Santo Cristo também é o nome de uma cidade do Noroeste do Rio Grande do Sul.
1812
peculiar, ora irritante e fascinante e desconcertante, como em “Deixou pra trás o ódio que
Jesus lhe deu”, pois João se via e se sentia abandonado por Deus e pelo mundo, as voltas com
várias tramas: miséria e de sua família, infância difícil diante do assassinato do pai pelas mãos
de um policial, a vingança, enfim, pelos dramas inúmeros de sua trajetória até Brasília e
estando lá, que vão culminar com a sua morte, ao lado de sua Maria Lúcia, que lhe havia
proporcionado um raro momento de aconchego de Deus. O Santo Cristo era pobre,
trabalhador e carpinteiro como o Cristo, mas ao longo dos anos de sua existência foi ao
inferno por pelo menos três vezes. Os trocadilhos são muitos e Renato o faz com
intencionalidade e genialidade, forçando um paralelismo constrangedor para os mais pudicos
da fé cristã, mas ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de atentar-se para princípios
defendidos pelo próprio Cristianismo, como a justiça e a sede de justiça, o amor, a ternura, a
solidariedade e a esperança. Assim, “O Santo Cristo era Santo porque sabia morrer”,
morrendo com uma dignidade difusa, em busca de uma felicidade que não encontrou repouso
nele.

Considerações finais

As canções crítico-populares da banda Legião Urbana contribuíram para superar uma


compreensão adorniana de que, por ser uma arte industrializada, a música popular atendia a
ao propósito de alienar as massas. Sucesso fonográfico, industrial, elas foram ao encontro e
resultado de um processo de conflitos estéticos, mas também ideológicos, na medida em que
escancara uma sociedade em pé de guerra, provocando uma necessidade, também, exorcismo
de seus demônios sociais, de suas mazelas, refletidas muitas vezes no plano pessoal dos
sujeitos históricos e nos agentes culturais, como Renato Russo.

Nesse sentido, pudemos notar que a relação de Renato Russo com seu público foi visceral,
mas não focou apenas em sua pessoa. Ele foi a expressão de uma banda, e, sobretudo de uma
geração que se via no palco, dizendo e fazendo coisas que ele fazia e pensava, cantando
lamentos, denunciando os fantasmas e tentando exorcizar os demônios sociais, mas também
cantando o amor, numa nova maneira de se relacionar com o sobrenatural, representado não
só na ideia do Deus cristão-católico, santos, bem como em anjos, forma idealizada de crianças
e homens divinizados.

1813
Para Santuza Cambraia Naves (2010, pp. 124-125), as bandas do rock nacional que surgiram
no contexto pós-anos 70, a exemplo da Legião Urbana, alcançaram maior respeitabilidade
crítica e um público mais diversificado, na medida em que foram adotando algumas práticas
características da MPB, como preparo intelectual mais refinado, o amadurecimento, embora
ainda agudo e forte, de uma crítica social, o gosto pela melodia e pela harmonia,
diferentemente de outros grupos que preferiram continuar fazendo um rock menos estético e
mais escrachado, a exemplo do Ultraje a Rigor, e, porque não dizer, dos Mamonas Assassinas
num outro contexto. Talvez isto, explique a longevidade, a renovação e a aceitação da Legião
Urbana, mesmo depois da morte de Renato Russo e do consequente desmanche do grupo em
1996. A banda Legião Urbana, quase quatro décadas depois, ainda consegue não só vender
seu produto, como ela ainda influencia no modo de pensar de uma geração que nem havia
nascido quando o grupo estourava nas paradas de sucesso.

Ainda que isso não se configure num todo e que nos falte elementos para afirmar com mais
precisão, de alguma forma pode-se dizer que a banda até influenciou na resignificação de
grupos que optaram por uma espécie de “rock de Jesus”, em especial se pensarmos no caso da
banda Catedral, onde o vocalista Kim em muito lembra a performance vocal de Renato Russo.
Onde o denuncismo da Legião mexe, de forma significativa, não só com uma juventude
evangélica, mas também católica. Uma música que transcende e que vive no limiar entre o
profano e o sacro.

Referências

ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução: José Lino


Grunnewald. In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980, p, 165-192.

NAPOLITANO, Marcos. História e Música. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

MARCELO, Carlos. Renato Russo, o filho da revolução. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2012.

NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2010.

1814
Coleção

Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião
Urbana; v. 1).

Legião Urbana: Dois. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 2).

Que País é Este: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião
Urbana; v. 3).

Legião Urbana: V. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 5).

Discografia

Legião Urbana: Legião Urbana. CD. São Paulo: EMI, 1985.

Legião Urbana: Dois. CD. São Paulo: EMI, 1986.

Que País é Este: Legião Urbana. CD. São Paulo: EMI, 1987.

Legião Urbana: V. CD. São Paulo: EMI, 1991.

1815
1816
Catolicismo renovado nas mídias sociais: o discurso mercadológico de um popstar da fé
Adriana do Amaral Freire1, Karla Regina Macena Pereira Patriota Bronsztein2

Introdução

A década de 90 assistiu a um grande espetáculo da fé no sentido literal. A figura do padre


de meia idade na sacristia e atrás do altar é substituída no imaginário social por homens
jovens e sorridentes, com grande poder de comunicação e utilizadores da música e da mídia
como os principais veículos de transmissão da mensagem religiosa (FERNÁNDEZ, 2005,
p.132).

Estamos submersos em uma sociedade que foi denominada por Debord (1967), como a
“Sociedade do Espetáculo”. Já na primeira tese do seu livro, o autor assegura que a vida das
sociedades modernas se apresenta como uma imensa “acumulação de espetáculos”. O que
viabiliza, por conseguinte, que a atual consciência ontológica encontre alguns de seus
alicerces no próprio espetáculo.

Logo, não é difícil concluir que o campo religioso não ficou isento do entrelaçamento e
absorção do contexto espetacular que abarca a vida de todos na contemporaneidade. De fato,
inseridos numa conjuntura marcada pela lógica midiática e assinalada pela dilatada presença
da comunicação e das imagens em todas as esferas da vida cotidiana, nos deparamos com o
crescimento pujante, e de caráter ubíquo, do espetáculo e do entretenimento também na esfera
religiosa (PATRIOTA, 2008).

Com efeito trata-se, a nosso ver, de mais um fenômeno cultural contemporâneo, no qual o
conhecimento e as vivências religiosas passam a ser predominantemente estruturados por
meio do consumo de imagens e do estímulo às emoções - inescapáveis, portanto, às lentes
espetaculares da mídia. Como bem afirmou Prandi (2000), numa entrevista a Revista Isto é, a
religião, que antes era um instrumento de formação de valores, está se tornando um produto
de consumo imediato e passível de experimento, troca ou rejeição, e que amanhã, como já é
hoje, o espetáculo será muito mais importante do que a doutrina religiosa.3

1
Doutoranda em Comunicação pela UFPE. Mestra em Extensão Rural e Desenvolvimento Local. Membro do GP
Publicidade nas Novas Mídias. Bolsista CAPES. Contato: adfreire2@hotmail.com.
2
Doutora em Sociologia e mestre em Comunicação pela UFPE. Professora Adjunta 3 do Curso de Publicidade e
Propaganda e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE. Coordenadora do GP Publicidade nas
Novas Mídias. Contato: k.patriota@gmail.com.
3
Em entrevista concedida a Bruno Weiss, para a Revista Istoé. Edição 1579. O bem e o banal. O pluralismo de
tendências terá de conviver com a ampliação da fé como produto de consumo. Publicada em 05.01.2000.
1817
Portanto, impulsionados pelo aprofundamento reflexivo de tal conjuntura - que ainda dialoga
com a ampla dimensão mercadológica da contemporaneidade - verificamos, nesse cenário, a
manifestação de um panorama religioso específico: o da Igreja Católica Apostólica Romana,
seus representantes e suas aparições midiáticas. Em algumas destas, no entanto, são
ressaltados escândalos sexuais envolvendo crianças, determinados problemas administrativos
relacionados à corrupção e a evidência clara de uma doutrina de teor “conservador” que,
muitas vezes, resiste ao estabelecimento de diálogos com o tempo presente e com a nossa
sociedade de essência pós-moderna.

Soma-se a isso o fato de que, nos últimos vinte anos, a cada ano consecutivo, o catolicismo
vem perdendo 1% de fiéis para outras denominações (sejam estas cristãs ou não), como
reconheceu um de seus representantes, o Frei Betto, em palestra proferida no Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, no mês de abril do
corrente ano. Com efeito, a Igreja Católica distingue o momento da crise em que está situada
e busca reagir contra o que vem promovendo a fragilização de sua imagem.

É nesse contexto, buscando sobreviver e manter sua soberania, que a Igreja Católica vem
renovando as suas práticas e aceitando ações e interlocuções que seguem as tendências de
mercado, a exemplo do despontar, em seu seio, de clérigos como os Padres Marcelo Rossi4 e
Fábio de Melo.5

Visivelmente distantes dos padres tradicionais, como os que estamos acostumados a ver na
maioria das missas dominicais de comunidades brasileiras, estes possuem configurações
marcadamente distintas em relação às imagens habituais do clero: modernos, atléticos,
bonitos, cantores e com constante presença na mídia secular. Mas não apenas isso os
diferencia dos “clássicos” clérigos católicos de outrora, como bem pontua Fernandéz, quando
se refere ao conteúdo de suas mensagens (grande parte veiculada através da música): “o que
se privilegia é o ritmo e a capacidade de mobilizar emocionalmente tornando a adesão
religiosa uma opção prioritariamente emocional, sem grandes elaborações da mensagem
doutrinal” (FERNANDÉZ, 2005, p.132).

4
Marcelo Mendonça Rossi (São Paulo, 20 de maio de 1967) tornou-se um fenômeno de mídia e cultura de
massas no final dos anos 90. Ficou muito conhecido pela forma como adota danças e coreografias típicas da
Renovação Carismática Católica (RCC) e pela publicidade dos trabalhos (CDs, DVDs, cinema e televisão).
Andrade Junior (2006) lembra que, diferentemente dos outros padres, Rossi transformou a sua missa num evento
com linguagem e roupagem midiáticas. O autor descreve que o padre Marcelo organiza tais missas com
diferenciais, a nosso ver, de essência espetacular, pois se centra na sua “ginástica litúrgica”, que, de acordo com
Andrade Junior (2006) aproxima-se de um show de auditório, um showmissa.
5
Estaremos discorrendo detalhadamente sobre ele no tópico Quem é o midiático Padre Fábio de Melo?
1818
Esses novos padres estão sempre presentes em programas televisivos de auditório de grande
audiência, em shows que mais se assemelham a grandes festivais da indústria musical e em
todos os espaços midiáticos que lhes rendam publicitação da imagem – até no cinema6. Tal
visibilidade “promocional” também é ampliada para os ambientes 2.0 da web – estes,
extremamente favoráveis à autopromoção constante dos indivíduos midiáticos.
Consequentemente, nesses espaços é possível dar continuidade as práticas que nem sempre
são plausíveis nos recintos das mídias tradicionais, permitindo o alargamento de ações
interativas de construção e consolidação identitária na proximidade com os fãs.

Com isso em mente e a partir desta breve contextualização inicial, este trabalho propõe, como
principal objetivo, analisar os usos e discursos de uma personalidade do catolicismo, numa
perspectiva mercadológica e espetacular, classificando-o como um popstar da fé, no ambiente
das mídias sociais digitais. Para isso, nos debruçamos sobre a fanpage do Padre Fábio de
Melo, na rede social Facebook – FB (facebook.com/PadreFabiodeMelo) e no seu perfil na
rede Twitter (twitter.com/pefabiodemelo). Analisamos fragmentos dos discursos veiculados e
alguns dos conteúdos postados nesses espaços, considerando como ponto de partida, além da
sua dimensão midiática, as possibilidades interativas, a construção identitária espetacular e as
vertentes promocional e mercadológica, constituintes da imagem do padre em questão.

Esta reflexão também visa fortalecer o debate que envolve mídia, religião e sociedade no
contexto brasileiro contemporâneo. Dessa forma, pretendemos, nos tópicos a seguir,
promover um relato breve sobre a religiosidade Católica Apostólica Romana e seu
entrelaçamento midiático, expor um pouco da trajetória do padre Fábio de Melo e descrever o
ambiente virtual que propomos como objeto de investigação, ao mesmo tempo em que
analisamos e inferimos os parâmetros que reconfiguram e constroem as relações que se
estabelecem hoje entre religião, mídia, mercado e espetáculo, campos anteriormente tidos
como totalmente desvinculados.

O Catolicismo apostólico romano no Brasil: mídia e religião

Até o final do século XIX, o catolicismo quase reinou absoluto como religião oficial do Brasil
(SOUZA, 2005). O autor, em suas análises (2005; 2008), traça um panorama histórico da
6
A exemplo de Padre Marcelo Rossi, com os filmes Maria, Mãe do Filho de Deus (2003) e Irmãos de Fé (2004).
1819
emergência e evolução do cenário midiático religioso no contexto brasileiro, concluindo que
até a metade do século XX, a Igreja Católica estava “mais voltada para as suas próprias
questões internas” (SOUZA, 2005, p. 17) e, só a partir de 1950 é que passa a reagir ao
crescimento de outras religiões no país.7

Nesse sentido e na contramão da constituição Inter multiplices, documento oficial da Igreja


sobre a imprensa8 (que afirmava que a mídia era responsável por divulgar ideias contrárias à
fé e aos bons costumes), a Igreja Católica, após a instauração de críticas e diálogos com os
meios de comunicação, começou a defender e estimular o uso da mídia como um importante
instrumento para a evangelização e difusão de seus postulados. Inclusive, tendo o Papa João
Paulo II, em sua encíclica Redemptoris Missio, afirmado que a mídia é o Areópago9 dos
tempos modernos, ou seja, local ideal para o anúncio e a proclamação da fé católica (ALVES
& BRONSZTEIN, 2011).

Com a visão ampliada para a importância da mídia, a Igreja se constituiu como dona de um
conglomerado midiático que abrange três emissoras de televisão: Canção Nova, Rede Vida e
Século XXI, além de editora de livros, revistas, jornais, internet e centenas de emissoras de
rádios espalhadas pelo país. Dessa forma, a Igreja não só tem investido nos jovens “padres
cantores” como estratégia para a propagação da religião católica, mas também na luta contra a
adesão a outras instituições religiosas, especialmente ao neopentecostalismo10, e de “quebra”
ainda tem apostado no desenvolvimento de suas atividades econômicas, uma vez que o
crescimento das vendas de produtos religiosos, nos veículos disponíveis, é um dos aspectos
mais rentáveis da inserção midiática.

Obviamente a presença católica na mídia não ficou restrita ao seu conglomerado de


comunicação e aos espaços que a igreja tem adquirido em veículos massivos diversos. Hoje
há a ampliação, institucional ou não, do catolicismo midiático nos mais diversos meios,

7
As peculiaridades de um Brasil religioso, cada vez menos católico, não são reveladas da noite para o dia. É
verdade que tais variações são observadas de forma mais palpável depois de 1980, todavia, o movimento de
redução do catolicismo está ocorrendo de forma significativa pelo menos desde a década de 40 (PATRIOTA,
2008).
8
Elaborado no pontificado do papa Inocêncio VIII no século XV.
9
De acordo com Atos 17:16-33, Paulo fez um discurso no Aerópago, chamando os atenienses da idolatria para o
culto ao Deus verdadeiro (o Deus do Cristianismo).
10
Nome que se dá aos pentecostais da terceira geração. Diversos autores os têm designado de maneiras diversas,
entretanto neste trabalho assim os chamamos, porque é possível perceber que eles diferem muito dos
pentecostais históricos e dos da segunda geração. Dessa forma, semelhantemente a Mariano (1995), acreditamos
tratar-se realmente de um novo pentecostalismo: (...) “termo que mais vem ganhando terreno nos últimos anos
entre os pesquisadores brasileiros para classificar as novas igrejas pentecostais. Embora recente entre nós, o
termo foi cunhado há vários anos nos Estados Unidos” (MARIANO, 1995, p. 25).
1820
inclusive os digitais. Trata-se, de forma mais ampla e estendida às diversas correntes
religiosas, do que se convencionou chamar de “midiatização da religião” (GASPARETO,
2011). A reflexão acerca desse fenômeno contemporâneo retrata o surgimento das novas
formas de "fazer religião" - quando a mídia adentra, dialoga e transmuta as experiências
religiosas dos fiéis.

Aportados nesse cenário de religiosidade midiatizada e com o intuito de observar algumas


nuanças da presença católica no ambiente digital e seus diálogos com a sociedade do
espetáculo e o mercado contemporâneo - que também compreende os bens religiosos,
optamos por estudar a atuação de uma personalidade católica específica - que alia o sagrado
ao midiático em ações que poderíamos chamar de uma espécie de marketing religioso
virtual.11 Como já mencionamos anteriormente, o alvo da análise é o padre Fábio de Melo,
presença constante nas mídias tradicionais e digitais, de quem o discurso e prática no
ambiente digital servirá de corpus para a compreensão do entrelaçamento que um novo
catolicismo promove entre mercado, espetáculo e fé. Para isso, antes de nos voltarmos para o
conteúdo compartilhado em seu nome nos espaços online, trouxemos um pouco da história de
vida e trajetória religiosa desse novo ícone do catolicismo moderno.

Quem é o midiático Padre Fábio de Melo?

Mineiro, nascido em 3 de abril de 1971 e o mais novo dos oito filhos do pedreiro Dorinato
Bias Silva e da dona-de-casa Ana Maria de Melo Silva, Fábio de Melo é, além de um
sacerdote católico, artista (cantor), escritor, professor universitário e apresentador de tevê.
Como formação acadêmica, tem graduação em Teologia e mestrado em Antropologia
Teológica. Originário da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, o Padre
Fábio foi ordenado em 2001 e hoje atua na Diocese de Taubaté, interior de São Paulo. Entre a
sua produção intelectual, artística e evangelística, estão 11 livros publicados e também vários
CDs gravados e distribuídos para o mercado - o que gerou a comercialização de mais de 1,8
milhão de unidades12 em gravações que contam com a participação de consagrados cantores
da Música Popular Brasileira, a exemplo de artistas como Toquinho, Fábio Júnior e Renato
Teixeira.

11
Uma tentativa de satisfazer as necessidades das pessoas no campo da fé através da oferta de “bens religiosos”
(não necessariamente físicos e/ou tangíveis) na mídia digital.
12
As informações desse parágrafo foram acessadas no site: <https://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%
A1bio_de_Melo>. Acesso em 26 maio 2013.
1821
De acordo com a Revista Isto é,13 o Padre Fábio declara que vive num sítio em uma região
rural de Taubaté e aprecia uma vida tranquila, ao mesmo tempo em que afirma que está cada
vez menos urbano. A mesma revista relata, contraditoriamente, uma vida que só é possível
nas áreas urbanas e em metrópoles: o Padre, segundo descreve a publicação, já vendeu dois
milhões de CDs e 700 mil DVDs e, até então, tem realizado cerca de 100 shows anuais e pelo
menos um lançamento de CD ou DVD por ano.14 Além disso, Fábio de Melo também se
tornou nacionalmente conhecido por seu trabalho como apresentador de um programa
transmitido pela TV católica Canção Nova.

Suas aparições midiáticas ocorrem em diversos programas e emissoras sejam católicas ou não.
Na TV Globo, por exemplo, já participou de programas como: Estrelas, Domingão do Faustão,
TV Xuxa, Programa do Jô e Fantástico, esse último com a exibição de um clipe do seu novo
CD. Em suas aparições públicas e fora dos templos católicos não costuma usar batina, afirma
que “não gosta de parecer padre, na acepção tradicional”. De acordo com Marthe & Martins
(2009) o padre é um homem “bem-apessoado e vaidoso”, que cuida da aparência física e só se
veste com roupas de grife: “cultiva, enfim, uma imagem de homem atraente”. O que é
sobremodo alargado em meio a esse cenário, católico, artístico e midiático, e que tem
dialogado com os postulados religiosos contemporâneos.

Assim, vemos o despontar do sucesso do Padre Fábio de Melo que, tendo como referencial o
Padre Zezinho,15 se transformou em um dos grandes ícones de vendas do mercado editorial e
fonográfico. Seus shows, cuidadosamente elaborados, contam com cenografia, superprodução
e atraem centenas de pessoas – o que o torna, além de um atrativo e grande vendedor de CDs e
DVDs de ancoragem religiosa, a melhor definição para a expressão “popstar da fé”.

13
CARDOSO, Rodrigo; LOES, João . A rotina dos popstars da fé. Isto É Independente, 25.Mai.12. , Ed. 2220.
Disponível em <http://www.istoe.com.br/reportagens/209097_A+ROTINA+DOS+ POPSTARS+DA+FE>.
Acesso em 26 maio de 2013.
14
Na nossa última contagem eram, ao todo, 23 CDs: Iluminar (ao vivo); Iluminar; Grandes momentos 2; Eu e o
Tempo; Kit Eu e o Tempo; Coletânea Padre Fábio de Melo - 3 CDs; Vida; Enredos do Meu Povo Simples;
Grandes Momentos; Enredados - Volume 2; Enredados - Volume 1; Cristão; Filho do Céu; Sou um Zé da Silva
e outros tantos; Tom de Minas; Humano Demais; Marcas do Eterno; Saudades do Céu; As Estações da Vida;
Canta Coração; De Deus Um Cantador. 8 Livros: Cartas entre Amigos: Sobre Ganhar e Perder; Mulheres Cheias
de Graça; Cartas entre Amigos - Sobre Medos Contemporâneos; Quando o sofrimento bater à sua porta;
Mulheres de aço e de flores; Quem Me Roubou de Mim?; Amigos somos muitos, mesmo sendo dois; Tempo:
saudades e esquecimentos. 1 DVD: Bem da Palavra do Bem, disponíveis para comercialização em lojas e no site
no Padre
15
Pe Zezinho destaca-se entre os primeiros clérigos a fazerem sucessos na mídia fonográfica e editoria, ainda
na década de 1960. Membro da congregação Sagrado Coração de Jesus e Diocese de Taubaté em São Paulo, este
padre além de cantor é também escritor e apresentador do Programa Direção Espiritual, transmitido
semanalmente pela rede de TV Canção Nova. Possui um estilo jovem e apresenta-se com roupas de grifes sob
um físico moldado por exercícios. De voz baixa e calma atrai muitos fãs, em sua maioria, do sexo feminino.
1822
De acordo com a revista Veja16, “o fenômeno Fábio de Melo leva sua aproximação com o
universo mundano (tratado aqui na dimensão do show business)17 a um extremo inédito”, já
que o padre é classificado entre os maiores recordistas de vendas de CDs no Brasil. Sua
excelente posição no ranking do mercado editorial e fonográfico impulsiona milhares de fiéis
a assistirem seus showsmissas, considerados pela mídia como mega-eventos religiosos.

Mesmo com toda a visibilidade conquistada no espaço midiático tradicional, o Padre Fábio
não se fez ausente dos espaços interativos da internet e das mídias sociais. Possui um site
oficial através do qual os usuários podem se conectar ao seu perfil no Twitter - que conta com
mais de 540 mil seguidores (16.06.2013) e com quase 13 mil registros de tweets (realizados
diariamente e várias vezes ao dia), desde agosto de 2012. No Facebook o Padre possui uma
fanpage oficial em que, ao contrário do Twitter, não há atualizações diárias e o conteúdo
postado tem um caráter marcadamente promocional – peculiaridade das fanpages, que
diferem das páginas pessoais nas quais os amigos se relacionam na rede. Como definidas pelo
próprio Facebook: “As páginas de fãs (fanpages) existem para que as organizações, empresas,
celebridades e bandas transmitam muitas informações aos seus seguidores ou ao público que
escolher se conectar a elas”.18 O que evidencia a perspectiva de olhar para o Padre Fábio
como uma marca com fãs e “consumidores”. Por fim, no Twitter, os posts apresentam um ar
mais informal, porém o espaço é igualmente aproveitado para a divulgação de seus shows e da
rotina artística que estrutura o seu dia a dia.

Uma nova forma de propagar a fé ou a promoção mercadológica e espetacular de um


popstar religioso?

Campos (1997), em livro Teatro, Templo e Mercado, mesmo tendo como objeto de análise a

16
Edição 2098, de 4 de fevereiro de 2009.
17
Entrelaçado às diversas esferas que envolvem as artes performáticas, incluindo as dimensões financeiras,
criativas e estruturais dos espetáculos como entretenimento.
18
O Facebook ainda defende que tais páginas são semelhantes aos perfis dos usuários comuns (não marcas) mas
“podem ser aprimoradas com aplicativos que ajudem as entidades a se comunicarem e interagirem com o seu
público e adquirirem novos usuários por recomendações de amigos, históricos dos Feeds de notícias, eventos do
Facebook e muito mais”.
1823
Igreja Universal do Reino de Deus,19 abordou vários aspectos relacionados a junção dos mass
media, da religião e do mercado - no sentido amplo do termo. O autor postulou que, da
manifestação do panorama religioso-midiático contemporâneo, “emergem ideologias,
processos institucionais e estratégias de comunicação, que exigem novos perfis de líderes e
fiéis”. Nesse sentido, Campos (1997, p. 295-296) defende que “a visão de mundo, como um
enorme Shopping Center, tende a fundir templo e mercado, propaganda e publicidade, religião
e comércio”.

Tal visão ganha concretude e ampliação quando vemos o despontar dos novos perfis dos atores
religiosos aos quais Campos (1997) fez referência. A pergunta então seria: são os novos líderes
religiosos que moldam os novos fiéis, ou são os novos fiéis que demandam o aparecimento de
novos líderes? A resposta a essa questão ainda nos parece de difícil articulação, pois nos falta
elementos concretos para a sua formulação, contudo, ao analisar dois espaços de propagação
discursiva (Twitter e Facebook) de um líder midiático do catolicismo moderno, podemos ver
aflorar uma peculiar e marcada fusão de elementos religiosos, espetaculares e mercadológicos
– o que evidencia, claramente, um novo perfil de liderança religiosa.

No Twitter do Padre Fábio a sua presença diária e intensa atividade dão à sua página no
microblog20 um tom bastante pessoal. Nesse espaço, ao contrário do Facebook, o uso da
primeira pessoa é recorrente. No Twitter, além de utilizar sua página - de mais de 540 mil
seguidores - como espaço estratégico de divulgação publicitária para seus produtos (CDs,
DVDs, livros e shows) quase sempre “retweetando” as publicações de outras pessoas (tabela
1), o padre fala de si, emite opiniões como consumidor (tabela 2), partilha sua rotina diária
(tabela 3), expõe seus parâmetros de espiritualidade (tabela 4) e pensamentos variados sobre a
“vida” (tabela 5) – as duas últimas se constituindo como as postagens que mais conseguem
adesões como favoritas, além de obterem recordes de “retweets”.

POSTAGEM
Participe no dia 7 de abril da Festa da Misericórdia na CN. Haverá também gravação do DVD do
@pefabiodemelo: http://bit.ly/WhHuol.
Lindo e emocionante a gravação do DVD do Padre Fábio de Melo na Cancao Nova.
UM DOS MAIS BELOS ENCONTROS DA MUSICA CATÓLICA !!!!! Hoje 06 de abril na Canção

19
Principal expoente do movimento neopentecostal no Brasil, fundada em 1977 por Edir Macedo.
20
Nesse caso só são permitidas micro-postagens como um diário pessoal (ideia inicial para os blogs) de apenas
140 caracteres cada.
1824
Nova DVD @pefabiodemelo !
Gravação do #DVD @PeFabiodeMelo aqui na @cancaonova saiba + http://youtu.be/hIOi3OQzJoQ?a

Tabela 1 – Exemplos de Retweets promocionais dos produtos dados pelo Padre Fábio

POSTAGEM  R
REPERCUSSÃO
Vergonhosa a cobertura da @Vivoemrede aqui em Manaus. 53 Retweets
13 Favoritos
O pior é que a gente não tem pra onde correr. Já tive Tim, Claro e Nextel. 79 Retweets
Agora tenho dor de cabeça, no estômago, nas costas... 24 Favoritos
O encanador cobra 120 reais só pela "visita". Será que por este preço a 64 Retweets
visita inclui um bolo de fubá? 31 Favoritos
Agora, sem brincadeira, eu sempre gostei dos produtos da marca. Vamos 30 Retweets
aguardar o resultado das investigações. 18 Favoritos

Tabela 2 - Exemplos do Padre Fábio de Melo como consumidor - 16.06.2013

POSTAGEM  R
REPERCUSSÃO
Hoje cantamos em Borba, AM, coração da Amazônia. Povo querido, 53 Retweets
acolhedor. É uma honra poder conhecer o Brasil. 13 Favoritos
Hoje estaremos no Clube Português em Recife. Será as 21H. 39 Retweets
17 Favoritos
Hoje tivemos a primeira reunião para preparar a gravação do DVD. Será dia 98 Retweets
06/04 na Canção Nova, em Cachoeira Paulista 34 Favoritos

Tabela 3 - Exemplos de Tweets com a rotina de shows do Pe. Fábio - 16.06.2013

POSTAGEM  R
REPERCUSSÃO
Não há um só dia em que não necessite ser protegido de mim mesmo. O 394 Retweets
algoz que pode me derrotar não está fora. Ele se esconde é aqui. Em mim 96 Favoritos
Não é possível admitir que o amor a Deus justifique o nosso desamor aos 499 Retweets
humanos. 132 Favoritos
Não é sempre que Deus pode ser encontrado nos altares. Há momentos em 600 Retweets
que Ele habita é o coração da dor. 176 Favoritos

Tabela 4 - Exemplos de Tweets sobre espiritualidade – 16-06.2013

POSTAGEM  R
REPERCUSSÃO
A estrada que nunca é longa. A que nos devolve aos que amamos. 252 Retweets
93 Favoritos
A arte é a beleza a nos contar os fatos. 163 Retweets
55 Favoritos
Impressionante como necessitamos encontrar culpados para justificar nossas 661 Retweets
incompetências. 183 Favoritos

Tabela 5 - Exemplos de pensamentos diversos sobre a vida - 16.06.2013

Percebe-se que, por utilizar o Twitter com uma participação mais informal, pessoal e
interativa, os discursos possuem uma dada regularidade, mesmo havendo conteúdos

1825
heterogêneos no espaço, que podemos caracterizar, de acordo com Foucault (2008), como
uma formação discursiva – evidenciando as regularidades que se relacionam com uma
formação ideológica (definida como um ajuntamento complexo de representações e práticas
ideológicas atreladas às posições de classes em confronto na esfera de uma dada formação
social).21

A partir dessas colocações, a análise que realizamos do discurso desse popstar da fé católica,
nos conduz à percepção de um sujeito ativo, que trabalha e que interfere, não apenas alguém
que é meramente afetado pelo discurso católico que, por ele, “deve ser proferido”.
Obviamente entendemos que as condições de produção “condicionam” tal discurso (trata-se
de um sacerdote católico que usa o título de Padre na sua página pessoal do Twitter e ainda se
constitui como um representante da Igreja Católica), mas não necessariamente determinam,
afinal só o entendimento de um sujeito ativo pode explicar porque “as coisas foram como
foram” – e vemos, por exemplo, um Padre assumido como “consumidor” e que se permite
“filosofar” e comentar sobre assuntos cotidianos, estes totalmente desvinculados da religião
que professa.

Ressaltamos ainda que o fato de o sujeito, no caso em análise o Padre Fábio de Melo, não ser
considerado o centro do discurso católico que ele representa, não significa necessariamente
que ele seja apenas um sujeito afetado e estático, por meio do qual as determinações sociais
chegariam ao Outro. A própria língua permite manobras, desvios ou escapes, fazendo com
que ocorra uma escolha no modo do dizer e do não-dizer: o padre, no Twitter, quase nunca se
promove como artista – para isso, ele usa os outros (seguidores) retweetando as postagens de
dimensões mercadológicas relacionadas a ele – o que corrobora com o fato de que o Padre
parece perceber que Twitter tem um forte potencial para construção de negócios e promoção
de “marketing on-line” (KOMM & BURGE, 2009).

Com efeito, Komm & Burge (2009) apontam para a eficiência do Twitter na promoção de
produtos no meio web e para a ampliação do faturamento de empresas, marcas e
personalidades que o utilizam com fins promocionais, ressaltando, inclusive, ser possível zerar
os custos iniciais de comunicação nesse tipo de mídia – e mesmo que Fábio de Melo saiba do

21
Neste contexto, Pêcheux e Funchs (1990) argumentam que as formações discursivas existem a partir das
formações ideológicas. Portanto, as formações ideológicas induzem o que o sujeito pensa e as formações
discursivas o que ele diz. Não é à toa que através da formação discursiva o sujeito edifica o seu discurso e acaba
por (re)produzir a realidade. É justamente por este atrelamento ao contexto do social que Althusser (1974) vem
afirmar que a constituição do sujeito deve ser encontrada no bojo da ideologia.

1826
potencial de seus 540 mil seguidores e monitore as postagens relacionadas ao seu nome
(comprovado por seus retweets), ele parece bem mais preocupado no Twitter em projetar para
si uma imagem positiva, cotidiana e “normalizada”, mas com fortes alicerces espirituais e
propositalmente desvinculada do artista que se autopromove para vender CDs, DVDs e livros.

Já a fanpage do padre Fábio de Melo no Facebook, possui um conteúdo explicitamente mais


mercadológico do que no Twitter. Este fato pode ser justificado até pelo sentido dado as
fanpages. De acordo com Nelson (2012), as fanpages são dispositivos criados pelo Facebook
para dar aos empresários, prestadores de serviços, celebridades, artistas, associações ou
grupos, o seu próprio espaço diferenciado em relação às páginas tradicionais do Facebook.
Estas possuem, assim, características mercadológicas mais evidentes, configurando-se num
ambiente mais provável para ações promocionais. Estes espaços virtuais, quando utilizados por
um líder religioso (católico ou de qualquer outra denominação) para disseminação de
conteúdos, pode fazer emergir em sua superfície a fusão moderna da religião com o mercado –
e se o agente religioso ainda possuir “dotes artísticos”, a fusão também vai ocorrer com o
espetáculo e toda a sua carga ligada ao “entretenimento”.

Tal extensão estruturada nas fanpages é alicerçada, quando pensamos particularmente no


catolicismo contemporâneo, no que Souza (2007) denominou de Renovação Popularizadora
Católica, na qual “o clérigo é ostensivamente a figura central. Em torno dele forma-se toda
uma estrutura de mídia e marketing religiosos” (2007, p. 161). Assim, além das muitas
celebrações-espetáculo de padres midiáticos como Marcelo Rossi e Fábio de Melo, o
movimento tem adotado, de forma ampla, diversas técnicas de marketing: “feiras de produtos
estritamente católicos, shows e demais eventos afins vêm sendo recorrentemente organizados”
(SOUZA, 2007, p. 161).

Nos espaços das mídias sociais utilizadas pelo Padre Fábio, e em especial no Facebook, sua
atuação ganha total relevância discursiva e notoriedade, como um local em que os produtos
ligados à sua personalidade estão expostos – as postagens são, em grande medida, para falar de
seus shows, seus CDs, seus livros, suas aparições na mídia – e nunca na primeira pessoa, como
no Twitter. A tônica é a promoção da atuação do padre na dimensão espetacular e produtiva do
“artista” dono da fanpage no Facebook, a qual é utilizada em um sentido visivelmente
comercial, como podemos observar em alguns exemplos que selecionamos a seguir (tabs.6 a8):

PRODUTO POSTAGEM
CD – venda Já está disponível nas Lojas Americanas o CD "No Coração da Jornada,"
álbum oficial da Jornada Mundial da Juventude - 09.05.13

1827
CD – lançamento Padre Fábio de Melo lança em breve seu novo álbum de músicas religiosas,
"Estou Aqui"! Neste lançamento, pela primeira vez na carreira Padre Fábio
vestirá paramentos litúrgicos em comemoração dos seus 10 anos como
sacerdote. O lançamento está previsto para dia 8 de outubro. – 27.09.2012
CD – venda autografada Hoje tem tarde de autógrafos do álbum "Estou Aqui" na Lojas Americanas
do Shopping ABC em Santo André! O evento está marcado para 16h. Não
perca! - 22.11.12

Tabela 6 - Anúncios para facilitar e estimular a aquisição de seus produtos no Facebook

PRODUTO POSTAGEM
DVD – Show Agora você pode assistir ao show do DVD "No Meu Interior Tem Deus"
no Netflix Brasil! Clique aqui e confira – 06.05.13
Clip de música O iTunes chegou no Brasil! Baixe o novo clipe do Padre Fábio de Melo
"A Vida do Viajante" – 13.12.11
Vídeo de DVD Assista no VEVO ao vídeo "Vida de Viajante" que faz parte do novo DVD
"No Meu Interior Tem Deus". Clique aqui: http://sonym.us/7EnIV –
24.11.11
Vídeo síntese das Curta o vídeo mostrando um pouco do que já rolou por aqui! – 28.06.12
postagens no Facebook

Tabela 7 - Produção disponibilizada para acesso online no Facebook

PRODUTO POSTAGEM
Show Padre Fábio de Melo - Show: "Queremos Deus" (70 fotos) – 08.04.13
Aparição na mídia – O Padre Fábio de Melo é capa e matéria da revista Isto É desta semana. Leia
Revista isto É aqui. – 28.05.12
Aparição na mídia – Confira a matéria do Jornal A Tribuna com o Padre Fábio de Melo –
Jornal A Tribuna 19.12.11
Show Show Natal Mágico (23 fotos) – 03,12.11.
Aparição na mídia – TV Encontro de fé! Gravação do TV Xuxa com Padre Marcelo Rossi, Padre
Xuxa Fábio de Melo, Damares Oficial e Regis Danese. – 14.03.12
Aparição na mídia – Padre Fábio de Melo no "Estrelas" (3 fotos) – 26.01.13.
Programa Estrelas – TV
Globo

Tabela 8 - Imagens de shows e aparições na mídia

Nos conteúdos selecionados para demonstrar como se dá a presença do Padre Fábio de Melo
na rede social Facebook, tornam-se evidentes as estratégias de marketing via a vasta produção
de conteúdos de teor publicitário para divulgar shows, lançamentos de livros, CDs e DVDs,
além de informar os locais onde tais produtos estão disponíveis para aquisição e ofertar
“amostras” da produção artística, por meio de links com clips e músicas. Trata-se, portanto, de
um lócus personalizado e adequado (repleto de fãs) para a autopromoção dessa personalidade
midiática que também é, antes de tudo, religiosa.

1828
Considerações finais

O diálogo religioso-mercantil que observamos, ao analisar duas páginas em redes sociais


digitais de um representante do catolicismo moderno, nos permite a clara identificação de
uma nova “lógica mercadológica sob a qual a esfera da religião opera” (GUERRA, 2003). De
fato, de acordo com o autor, tal conjuntura no campo religioso valoriza o conhecimento das
necessidades e desejos das pessoas, ao mesmo tempo em que amplia a importância de
modelos específicos de práticas e discursos religiosos que dialoguem com as demandas das
organizações religiosas – o que, segundo Guerra, gera uma “maior flexibilidade em termos de
mudança de seus ‘produtos’ no sentido de adequá-los, da melhor maneira possível, para a
satisfação da demanda religiosa dos indivíduos” (2003, p.1). O que é bastante visível e
mensurável por meio das interações, “curtidas” e números de seguidores nos espaços de
caráter interativo como as redes sociais utilizadas pelo popstar Fábio de Melo.

No Twitter vemos a evidente preocupação do Padre com temas espirituais e cotidianos – o


que vem a promover uma aproximação que se pretende “intima e normalizada” com seus
fiéis-seguidores (no sentido duplo do termo). Nesse espaço, a dimensão mercadológica sofre
uma espécie de “opacidade”, pois não é feita de forma ostensiva e direta, como no Facebook
– espaço totalmente destinado a publicitação midiática e espetacular do artista religioso Fábio
de Melo.

É bem provável que a dimensão espetacular e mercadológica das ações do Padre Fábio se
constituam como respostas ao contínuo imperativo que as diversas organizações religiosas –
incluída a Igreja Católica – tem para contrapor às demandas dos fiéis-consumidores, o que
solicita, por conseguinte, a modelagem no conteúdo discursivo, a oferta de produtos atrativos
(na maior parte das vezes de cunho espetacular e/ou diversional) e a instauração de um novo
tipo de diálogo. Segundo Guerra (2003), essa “dependência” das instituições religiosas em
relação às aspirações e desejos dos consumidores “parece variar de maneira diretamente
proporcional ao nível de competição em um dado mercado religioso e também se relaciona
com as mudanças no papel social da religião na vida dos indivíduos” (GUERRA, 2003, p.2).
No caso analisado, nos fica claro que o catolicismo que estimula e promove a emergência de
padres cantores, artistas e escritores não ficou isento do entrelaçamento e absorção do
contexto espetacular e mercadológico que dita o consumo moderno e cria demandas atrativas
para a manutenção e ampliação de fiéis que, se não fosse por tais atrativos, provavelmente já
teriam “batido em retirada”.

1829
Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. J.J. Moura Ramos.
Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974.

ALVES, Maria Lúcia; BRONSZTEIN, Karla Patriota. Mega-events and religious spectacles:
new singularities within the consuption society. In: 31º Conférence de la SISR - Société
Internationale de Sociologie des Religions, 2011, Aix en Provence. 31º Conférence de la
SISR - Société Internationale de Sociologie des Religions, 2011.

ANDRADE JUNIOR, Péricles Morais de. Uma estrela da fé: o padre Marcelo Rossi e o
catolicismo brasileiro. Orientação de Lília Junqueira. Tese (Doutorado em Sociologia) UFPE,
Recife, 2006.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, Templo e Mercado: organização e marketing de um


empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio Editora e
Universidade Metodista de São Paulo, 1997. p. 295-296.

DEBORD, Guy. (1967). A Sociedade do espetáculo (seguido do prefácio à 4ª edição italiana).


Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FERNÁNDEZ, Sílvia. Padres cantores e a mídia: Representações da identidade sacerdotal. In:


Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 7, n. 7, Porto Alegre, 2005.

FOUCAULT, Michael. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008

GUERRA, Lemuel. As influências da lógica mercadológica sobre as recentes transformações


na Igreja Católica. In: Revista de Estudos da Religião, n. 2. pp. 1-23, 2003.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando. São Paulo: USP,


1995.

MARTHE, Marcelo; MARTINS, Sérgio. Cantar com fé. In: Revista Veja, Edição 2098, 2009.

PATRIOTA, Karla. O Show da fé: A religião na Sociedade do Espetáculo. Orientação de


Roberto Motta. Tese (Doutorado em Sociologia), UFPE, Recife, 2008.

SOUZA, André Ricardo de. Igreja in concert: padres cantores, mídia e marketing. São Paulo:
Annablume, 2005.

__________. Igreja Católica e mercados: a ambivalência entre a solidariedade e a competição.


In: Religião e sociedade, vol.27, n.1, pp. 156-174, 2007.

__________. As Investidas Católicas na Mídia. In: Revista de Estudos da Religião – REVER,


v.9. São Paulo, 2008. pp. 27-45.

1830
1831
E quando Deus vira Google? O adolescente
e sua percepção sobre Deus no Facebook

Kate Fabiani Rigo1

Introdução

A dinâmica das relações pessoais, econômicas e até mesmo religiosas está apresentando às
pessoas uma nova maneira de agir, interagir e até mesmo expressar a sua espiritualidade ou
adesão religiosa. A mobilidade e a pluralidade é uma realidade que está sendo debatida e
analisada nas mais diversas áreas de estudo do campo da Teologia e das Ciências da Religião.

A pesquisa se desenvolveu metodologicamente a partir da pesquisa de cunho qualitativo e


etnográfica virtual a partir de observação não participante nos meses de junho e agosto de
2013 com o monitoramento de Páginas Comunitárias do Facebook que tivessem associação
direta com a palavra Deus e com idade popular a partir dos 13 anos. O Facebook foi o objeto
escolhido para o desenvolvimento deste artigo, uma vez que, esta rede de relacionamento
virtual, reúne um número expressivo de usuários e é muito popular entre os adolescentes.

O artigo se organiza a partir da caracterização do adolescente do século XXI e sua interação


com o espaço virtual por meio das redes sociais. A partir desta caracterização apresenta-se a
construção da imagem de Deus a partir da perspectiva de Ana Maria Rizzuto. Por fim,
analisam-se qualitativamente algumas postagens compartilhadas no Facebook.

Adolescente virtualizado

Quando se aborda a temática “Adolescência” em pleno século XXI, é preciso estar atento as
constantes modificações identitárias e culturais que este grupo possa estar inserido. A
diversidade e a virtualidade possibilitam uma gama de características que dificultam o
enquadramento do adolescente numa categorização estanque. Atualmente, os adolescentes
possuem diferentes características culturais, identitárias e sociais e ele não é mais visto por
sua singularidade e sim por sua pluralidade. De acordo com Monica Macedo:

1
Doutoranda em Ciências da Religião pela EST. Membro dos GPs História do Cristianismo na América Latina e
Currículo, identidade religiosa e práxis educativa – EST. Bolsista CAPES. Orientada pelo Prof. Dr. Wilhelm
Wachholz. Contato: kate@novaformacultural.com.
1832
Os tempos atuais, marcados pelo imediatismo e pela imagem, são também, produtores de
inegáveis avanços científicos e tecnológicos nos mais diversos campos do saber. O ser
humano, contudo, está sujeito às vicissitudes do tempo e é, irremediavelmente, incompleto,
como sujeito psíquico. É neste contexto de fragilidade que se estabelece o ideário de uma
imagem proposta pela cultura contemporânea na qual o ter tem prioridade em detrimento do
ser. Esse é o cenário das demandas contemporâneas o qual deverá abarcar o processo de
construção da identidade do adolescente. (MACEDO, 2010, p. 112)

O processo de construção identitária do adolescente do século XX é um processo, em muitos


dos casos, solitário. O adolescente no período escolar acaba passando por uma espécie de
abandono de seus responsáveis legais, que não o acompanham mais com o mesmo zelo, da
época da educação infantil ou no período de alfabetização. O crescimento físico do
adolescente, muitas vezes é confundido com o crescimento emocional do mesmo. Não é raro
encontrar adultos que acham que ele já está “grande” o suficiente para dar conta das 10
disciplinas curriculares que os acompanham por pelo menos 4 horas diárias, de tarefas extras
em casa e de uma vida social dentro ou fora do ambiente virtual. Ele é constantemente
cobrado pelo alcance de resultados, seja no campo educacional, profissional ou pessoal.

Durante a pesquisa, este post publicado na Página Comunitária Psicopatas Anônimos chamou
a atenção por representar bem o quanto a expectativa da “beleza” adolescente está mais aos
olhos dos adultos do que do próprio adolescente.

Há muita pressão externa em cima do sucesso adolescente do século XXI, nesta época, que os
adultos consideram a mais bela de todas as épocas. A família cobra responsabilidade, a escola
cobra resultados e seus pares a popularidade. Além disso, ele tem um universo midiático que
diz o quanto ele deve pertencer a um padrão estético específico e o quanto ele deve ser bem
sucedido para ser uma pessoa realizada. Ser adolescente no século XXI parece ser muito mais
complicado do que ter sido adolescente no século XX. Antes era necessário manter e moldar

2
Página Comunitária Psicopatas anônimos. 771 curtidores e 641 compartilhamentos. Disponível em:
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=551394068251498&set=pb.314187328638841.-
2207520000.1374195935.&type=3&theater >.Acesso em 17 de jul. 2013.
1833
apenas um perfil identitário, hoje, é preciso definir a identidade na vida real e atualizar
constantemente as múltiplas identidades do espaço virtual.

Imagem de Deus

Pensando no universo adolescente do século XXI, que precisa construir e manter um perfil
identitário dinâmico surge o seguinte questionamento: Como o adolescente do século XXI
está construindo e compartilhando a imagem de Deus no Facebook?

O adolescente desta época de transformações tecnológicas, virtuais e da imagem, possui uma


grande dificuldade de se relacionar e se identificar com algo não concreto. Numa sociedade
marcada pelo fazer científico e pelo viver das aparências, torna-se complicado convencer um
adolescente de classe média/alta a seguir ou a se identificar com uma figura que está
associada ao abstrato conceito de onisciência e onipresença: DEUS. Além disso, o
adolescente elitizado, relaciona a figura de Deus e a fé exacerbada com as religiões neo-
pentecostais, que constantemente são relacionadas ao seu poder de midiatização. Ser religioso
ou acreditar em Deus, muitas vezes é visto como algo popular e não atrativo para um grupo
que vive em meio ao consumo e a uma dinâmica vida nos espaços sociais e virtuais.

O desenvolvimento da imagem de Deus é uma construção que inicia nos primeiros anos de
vida de uma criança, e com o passar dos anos essa imagem vai se modificando de acordo com
as fases de desenvolvimento humano. De acordo com a pesquisa de Ana Maria Rizzuto:

Deus é encontrado na família. Na maior parte do tempo, ele é oferecido pelos pais à
criança; ele é encontrado na conversa do dia a dia, na arte, na arquitetura e em eventos
sociais. Apresentam-no como sendo invisível, mas apesar disso, real. Por fim, a maioria das
crianças é apresentada oficialmente à “casa de Deus”, um lugar em que Deus supostamente
“mora” de uma forma ou outra. Esta casa é governada por regras muito diferentes de
quaisquer outras; a criança é apresentada ao ritual, ao comportamento oficial que se espera
dela ali e a outros eventos em que o encontro com Deus é socialmente organizado
(RIZZUTO, 2006,p.23).

Pensando a respeito da citação e relacionando com a realidade familiar em que as crianças e


adolescentes dos grandes centros urbanos vivem, fica fácil compreender como Google pode se
transformar em Deus. As famílias possuem uma rotina atribulada devido as suas extensas
horas de trabalho, as crianças e adolescentes passam mais tempo dentro de suas escolas do
que com suas famílias em casa, as avós e avôs do século XXI não possuem mais o estereótipo
1834
de velhinhos que esperam os seus netos com bolo para o café da tarde e que os levam para a
Igreja para aprender onde fica a casa de Deus. Não há quem auxilie a criança e nem o
adolescente a construir a sua imagem sobre a figura de Deus, ele apenas tem uma breve ideia
na escola e na televisão com a programação dos canais ligados a instituição neopentecostal.

O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira ,ao comparar os dados do senso de 2000 e de 2010,
utiliza a expressão desafeição religiosas e ressalta que houve “o crescimento de jovens entre
15 e 19 anos sem religião. As novas gerações brasileiras têm uma forma religiosa muito
diferente das antigas gerações. Em termos de projeção, isso é algo a ser pensado”.3

A transmissão de valores e crenças também envolve a memória coletiva. Referida a um


acontecimento fundador, a memória reelabora continuamente o passado. Mas na
modernidade a memória perde importância, uma vez que as identidades religiosas resultam
de escolas individuais. Uma das consequências deste hiato é o desmoronamento dramático
do saber religioso. A ignorância dos elementos de base da cultura cristã é, hoje, a norma na
Europa, sobretudo entre os mais jovens (RIBEIRO, 2009, p.82).

O afastamento institucional não está somente entre os adolescentes, mas também entre os
adultos. Esse afastamento de pais e filhos está gerando uma crise nos valores antes passados
pela família ou pela comunidade religiosa a qual o grupo familiar pertencia, além disso a
imagem de Deus não é construída dentro do ambiente familiar, mas fora dele.

Quando Deus vira Google?

Esse desmoronamento do saber religioso está evidente no pensamento adolescente uma vez
que sua definição de Deus está relacionada ao Google, como foi apresentado em um blog
disponível na internet. O texto apresenta evidências que Google está diretamente relacionada
a figura de Deus. O texto foi colocado na íntegra, justamente para que possa gerar reflexão
por parte do leitor.

3
RIBEIRO, Pedro de Oliveira. A desafeição religiosa de jovens e adolescentes. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511180-desafeicao-religiosa-esse-conceito-seria-central-para-
entendermos-os-sem-religiao-entrevista-especial-com-pedro-ribeiro-de-oliveira. Acesso em 03/06/2013.
1835
9 provas de que Google é Deus

1-O Google é onisciente

O Google é a entidade mais próxima de atingir a onisciência (saber de tudo) que existe. Ele
indexa mais de 9,5 bilhões de páginas da web, o que é mais do que qualquer outro
mecanismo de busca. Além disso, ele organiza e distribui essas informações, para nós,
meros mortais.

2-O Google é onipresente

O Google está virtualmente em todos os lugares da Terra. Bilhões de páginas indexadas e


hospedas em todos os cantos do mundo. E com o aumento de redes de Internet Wi-Fi é
possível que uma pessoa acesse o Google de qualquer lugar do planeta.

3-O Google responde a sua prece.

Você pode fazer uma prece ao Google na forma de busca para achar a solução de qualquer
problema. O Google te dirá tratamentos para doenças, como melhorar a saúde, sites em que
você pode encontrar o amor da sua vida e qualquer outra coisa que lembre uma prece
normal. O Google aponta o caminho e deixa você tomar uma decisão.

4-O Google é imortal

O Google é virtualmente imortal. Seus algoritmos estão espalhados por milhares de


servidores. Se algum fosse destruído ou desligado, outro servidor, sem dúvida, tomaria seu
lugar. O Google pode, teoricamente, durar para sempre.

5- O Google é infinito

A Internet crescerá para sempre, e o Google irá para sempre indexar seu crescimento
infinito.

6- O Google se lembra de tudo

Ao enviar suas opiniões, fotos, textos e pesquisas o Google os guardará em cachê páginas
da web armazenadas em diversos servidores. Quando você morrer, você irá existir para
sempre na memória do Google. Uma espécie de vida após a morte.

7-O Google é Benevolente

Ele não é mal. Na verdade, isso faz parte da filosofia da Google, uma empresa não precisa
ser má para ganhar dinheiro. Além de não ter sido usado de motivo para nenhuma guerra,
ataque terrorista, sacrifício ou invasão.

8- O Google é mais procurado que qualquer deus

De acordo com o Google, termo “Google” é mais procurado que os termos “God”, “Jesus”,
“Allah”, “Buddha”,”Christianity”,”Islam”, “Buddhism” e “Judaism” juntos.

Deus é considerado uma entidade na qual nós mortais recorremos em momentos de


necessidade. O Google é muito mais solicitado do que qualquer ” Deus”.

9- Evidências

Você pode encontrar evidências da existência do Google com facilidade. Se ver é crer, vá
agora mesmo em google.com e comprove você mesmo que ele existe. Para acreditar na
existência do Google você não precisa nem de fé.4

4
KNUTTZ, Gilberto. Nove provas de que o Google é, na realidade, Deus. Disponível em
<http://cybervida.com.br/nove-provas-de-que-o-google-e-na-realidade-deus>. Acesso em 04 jun. 2013.
1836
Não é raro encontrar um adolescente que confirme e até acredite na ideia apresentada de
forma humorística no meio virtual. O adolescente do século XXI está diretamente ligado à
tecnologia, logo, sua relação com a figura de Deus acaba sendo substituída ou associada ao
pensamento puramente científico não dando espaço ao pensamento humanístico teológico.

Deus conectado e Deus compartilhado no Facebook

Ao iniciar a pesquisa, a palavra Deus foi colocada no campo de buscas do Facebook, a partir
da conta pessoal da autora deste artigo. As quatro primeiras Páginas comunitárias foram
analisadas, como mostra a imagem abaixo:

Figura 15

Dentre estas quatro, apenas uma estava dentro do critério inicial de análise, onde a idade
popular dos participantes das páginas fosse a partir dos 13 anos de idade. Desta forma, a
Página Comunitária que foi pesquisa e será analisada neste artigo, será a Página “Deus” que
possui 509.927 curtidores, idade popular dos 13 aos 24 anos e a sua maioria pertence a cidade
de São Paulo.6 As demais Páginas não foram usadas neste trabalho, pois estavam relacionados
a idade popular a partir dos 18 anos, o que fugia do foco etário desta pesquisa que se detém a
análise da visão de Deus compartilhada por adolescentes entre 13 aos 17 anos.

A Página Deus possui até o momento 25.990 postagens em sua linha do tempo. Essas
postagens promovem mensagens e imagens relacionadas com a figura de Deus, Jesus Cristo e

5
Pesquisa realizada entre os meses de junho-agosto de 2013 a partir do perfil pessoal da autora. Disponível em <
https://www.facebook.com/kate.rigo.9>. Acesso em 03 jun. 2013.
6
Página Comunitária Deus. Disponível em < https://www.facebook.com/AmoDeusS2?fref=ts>. Acesso em 04
jun. 2013.
1837
a vendas de sapatos e roupas que não seguem um estilo, convencionalmente, conhecido como
cristão.

Figura 27

A Página, por agregar um grupo considerável de adolescentes e jovens adultos, utiliza o


espaço virtual não somente para difundir ou compartilhar mensagens ligadas a Deus, ou a fé
Cristã, mas também utiliza o espaço para promover a venda de produtos femininos como
sapatos, roupas e anéis energéticos, e todos sem nenhuma característica ou motivo religioso.
O número de compartilhamento, de postagens com conteúdo religioso é baixo, como no post
abaixo:

Figura 38

Mesmo com a imagem, buscando uma ligação com o adolescente a partir da ideia de festa, o
post teve apenas 23 compartilhamentos e 287 curtir. O que demonstra que o adolescente, no
espaço virtual, não está compartilhando e nem curtindo com frequência a figura de Deus.

7
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/media/set/?set=a.32170
9647940466.69498.321694901275274&type=3>. Acesso em 03 jul. 2013.
8
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=416634888447941&
set=a.321709647940466.69498.321694901275274&type=3&theater>. Acesso em 06 ago. 2013
1838
Ainda mais se considerarmos que esta página possui um número superior a 500 mil
agregados, ou seja, Deus é curtido, mas não compartilhado no espaço virtual.

No entanto, quando a palavra Deus aparece associada a um elemento de pleno conhecimento e


interação do público adolescente da cidade e principalmente de classe média/alta, como o site
de busca Google, o número de compartilhamento dispara, como podemos observar no post
abaixo:

Figura 49

A postagem teve 358 compartilhamentos e 681 pessoas curtiram. O adolescente associa a


figura de Deus com o Google. O interessante é observar que na imagem, Google encontra
Deus e dá ao indivíduo a opção de escolher a opção que melhor se encaixa com o seu
momento. Sabemos o que o adolescente do século XXI dos grandes centros e de uma classe
economicamente favorecida, possui maior interação e atenção do Google do que de seus
próprios familiares, como aborda Macedo e Ayub:

Abordar a temática da adolescência envolve refletir também sobre os efeitos dos tempos de
consumo, fluidez e imediatismo sobre a família. Constata-se na contemporaneidade haver
um colapso das hierarquias representadas pelas instituições tradicionais; entre elas, situa-se
a família. [...]

Percebe-se que o recurso parental à gratificação proporcionada aos filhos pela via do
consumo, em certos casos, busca camuflar ou minimizar situações de escassez ou privação
de afeto por parte da família, podendo promover, cada vez mais, o enfraquecimento do
vínculo afetivo. (2010, p.116)

9
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=416634
888447941&set=a.321709647940466.69498.321694901275274&type=3&theater>. Acesso em 06 ago. 2013
1839
A família está cada vez mais desconectada do universo do adolescente virtualizado. E isso faz
com que o mesmo, deixe de ter a oportunidade de pensar e de construir uma imagem de Deus.
Além da família, as instituições escolares confessionais também não conseguem criar
momentos de discussão com o adolescente sobre a figura de Deus. Essa falta de espaços para
o diálogo dentro do âmbito familiar e escolar das instituições particulares confessionais está
fazendo com que o adolescente busque suas respostas e seu espaço de expressão nas redes de
relacionamento como o Facebook, já que este está sempre disponível para divulgar seus
pensamentos, suas angústias e suas crenças.

Considerações finais

Estamos vivendo um momento de modificação social e comportamental. O adolescente do


século XXI está mais conectado com o mundo virtual do que com o mundo real. Suas crenças
estão relacionadas ao consumo e a exaltação de uma juventude que parece ser perpétua. O
Google está sendo o seu maior mentor, seu melhor ouvinte e o seu amigo para todas as horas.

A figura de Deus está perdendo a sua popularidade entre os adolescentes urbanos de classe
média/alta, por não ser visível, por não oferecer respostas tão instantânea quanto o Google e
principalmente por não dar ao adolescente a possibilidade da vida eterna na terra, como o
Google consegue proporcionar. Esse afastamento ou até mesmo descrença em relação a figura
de Deus, na sociedade urbana elitizada está fazendo com que os adolescentes vivam uma
espécie de vazio espiritual, pois não se acham finitos e não se percebem como pessoas dignas
de serem amadas pelo outro, a evidência disso está no aumento da violência entre estes
adolescentes, na falta de vínculos amorosos duradouros, no consumo de entorpecentes e na
própria ideação ou ato suicida que está aumentando cada dia mais nas redes de
relacionamento do Facebook. É necessário criar alternativas de diálogo no meio familiar e
escolar, para que as futuras gerações tenham a oportunidade de voltar a pensar sobre a
existência ou não de alguma divindade maior que nos guarde.

Referências

MACEDO, Monica Medeiros Kother; GOBBI, Adriana Silveira. Adolescência e psicanálise:


intersecções possíveis. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

1840
________; AYUB, Renata. A escuta da adolescência em tempos de excessos. In: MACEDO,
Monica Medeiros Kother; GOBBI, Adriana Silveira. Adolescência e psicanálise: intersecções
possíveis. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

RIBEIRO, Jorge Cláudio. Religiosidade jovem: pesquisa entre universitários. São Paulo:
Loyola/Olho d´Água, 2009.

RIZZUTO, Ana Maria. O nascimento do Deus Vivo. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

Internet

KNUTTZ, Gilberto. Nove provas de que o Google é, na realidade, Deus. Disponível em


<http://cybervida.com.br/nove-provas-de-que-o-google-e-na-realidade-deus>. Acesso em
04/06/2013.

RIBEIRO, Pedro de Oliveira. A desafeição religiosa de jovens e adolescentes. Disponível em


<http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511180-desafeicao-religiosa-esse-conceito-seria-
central-para-entendermos-os-sem-religiao-entrevista-especial-com-pedro-ribeiro-de-oliveira>.
Acesso em 03/06/2013.
Página Comunitária Deus. Disponível em
<https://www.facebook.com/AmoDeusS2?fref=ts>. Acesso em 04 jun. 2013.

Página Comunitária Psicopatas anônimos. Disponível em


<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=551394068251498&set=pb.314187328638841.-
2207520000.1374195935.&type=3&theater >Acesso em 17 jul. 2013.

1841
1842
Lápides, flores e velas virtuais: os rituais post-mortem nos
cemitérios on-line (1990-2013)1
Julia Massucheti Tomasi2

Introdução

Realizar um cortejo fúnebre, vestir o morto com sua mortalha, participar do velório, tocar os
sinos de morte e visitar o cemitério no dia 2 de novembro são alguns dos rituais de morte
presentes no decorrer dos séculos. Entre os variados rituais relacionados com a morte do ente
está o luto - palavra que remete aos sentimentos de dor e tristeza, o luto tem variados
significados, mas quando mencionado, é logo associado ao pesar pela morte de alguém. 3 O
luto, como bem sintetiza Edgar Morin (1997, p. 80), “exprime socialmente a inadaptação
individual à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a
fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes.”
De acordo com Jeffrey Kauffman (2004, p. 321), que atribui várias definições para a palavra
luto, esta pode ser compreendida como

[...] uma resposta psicológica à morte ou a outra qualquer perda, e é igualmente a expressão
ou comunicação dessa resposta. [...] O luto é, então, entendido como o ritual do luto.
O luto é um processo de posicionamento face à perda e à morte.
O luto é habitualmente descrito como ocorrendo em estágios ou fases. As teorias
desenvolvimentistas dividem o trabalho de luto numa série de fases ordenadas
sequencialmente no tempo.

No decorrer da história, o luto foi vivenciado de diferentes formas, sendo que muitos dos
rituais cristãos de luto encontrados desde o medievo, e que perpassaram até a
contemporaneidade, são herdados do luto judaico. Entre tais rituais pode-se destacar o luto

1
Este artigo faz parte da dissertação intitulada “Eternamente Off-Line”: as práticas do luto na rede social do
Orkut no Brasil (2004-2011), defendida no ano de 2013, no Programa de Pós-Graduação da Universidade do
Estado de Santa Catarina.
2
Mestre e graduada em História pela UDESC. Doutoranda em História pela UFSC. Contato:
juliamtomasi@hotmail.com
3
A morte de uma pessoa próxima costuma causar muitas dificuldades para a vida dos que ficam, podendo
ocasionar implicações psíquicas na vida do enlutado, desenvolvendo “até o aparecimento de doenças
psicossomáticas, depressão, ansiedade, melancolia e psicopatias.” (OLIVEIRA, 2001, p. 92). Alguns enlutados
podem demonstrar seu pesar por algum tempo, atingindo inclusive algumas décadas, como aqueles que passam
por uma morte trágica, enquanto outros podem expressar mais brevemente. Do mesmo modo que a duração do
luto, pode-se destacar a forma como este é manifestado, sendo que algumas pessoas conseguem demonstrar sua
dor mais naturalmente, enquanto outras são mais recolhidas e introspectivas. Enfim, o luto, como a memória, vai
modificando-se com o passar dos anos, tendo em vista que “não é um processo moldado (‘elaborado’) no tempo
histórico.” (PORTELLI, 2006, p. 109).
1843
fechado, que costuma findar com a missa de sétimo dia, as missas mensais e anuais realizadas
em memória dos entes mortos, a celebração anual do dia de finados, entre outros ritos de
morte, conforme destaca Júlio de Queiroz (2008, p. 73).

As práticas de luto no decorrer da história

Na primeira metade da Idade Média, as práticas de luto eram um dos rituais de morte mais
dramáticos. Estas eram manifestações bastante violentas, pois os enlutados, logo após a morte
do ente querido, “rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, esfolavam as faces,
beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes,
teciam elogios ao defunto, o que é uma das origens da oração fúnebre”, como apresenta Ariès
(2003, p. 107-108).

Já era encontrado também no medievo o trabalho feito pelas carpideiras, as mulheres que
eram pagas para chorar e demonstrar a dor da perda durante o funeral, através de choros,
gritos e lamentações (ARIÈS, 2003, p. 128). Em muitos países, as carpideiras tomaram o
espaço anteriormente ocupado pela família e amigos durante os rituais de post-mortem,
perdendo-se com isso a autenticidade e espontaneidade4.

Diferentemente, do final da Idade Média até o século XVIII, o enlutado tinha que expressar
sua dor da perda por determinado período, mesmo que esta não estivesse mais presente, de
modo que o tempo de luto poderia “ser reduzido ao mínimo por um novo casamento
precipitado, mas nunca era abolido.” (ARIÈS, 2003, p. 71). Outra característica é a visitação
constante dos familiares e amigos à casa da família enlutada, sendo que nesse período teve
início o ritual de reclusão e resguardo dos enlutados, afastando-os inclusive de algumas
exéquias5. O objetivo para o período de reclusão é explicado por Ariès através de duas
motivações: permitir que os sobreviventes que estavam realmente enlutados e infelizes

4
As carpideiras ainda são bastante encontradas no Oriente Médio, já que através delas aumenta-se “a intensidade
dos lamentos e as dimensões da tristeza socialmente obrigatória: elas se arrancam os cabelos, espalham cinzas,
rasgam suas roupas, laceram a si mesmas com as unhas, num ritual que talvez provoque mais emoção do que
exprima”, como ressalta Rodrigues (2006, p. 41).
5
Durante o século XIX, a reclusão e o resguardo dos familiares do falecido se tornaram mais voluntários do que
obrigatórios, não sendo mais proibida a participação dos familiares nas exéquias, como nos cortejos e velórios,
de modo que “não mais se tolerava que fossem as mulheres afastadas dos serviços fúnebres, como antigamente”
conforme aponta Ariès (2003, p. 249). As mesmas práticas de reclusão estiveram presentes em algumas cidades
brasileiras até a primeira metade do século XX, como observado em Urussanga, interior de Santa Catarina.
Nessa cidade, muitos dos familiares do falecido, em especial os mais próximos, costumavam ficar “durante
meses e às vezes anos resguardados dentro de casa, visto que a vida social dos enlutados era controlada.”
(TOMASI, 2010, p. 96).
1844
pudessem resguardar sua dor do mundo, “consentindo-lhes esperar, como um doente em
repouso, a amenização de seus sofrimentos” (ARIÈS, 2003, p. 247); e um meio de “impedir
os sobreviventes de esquecerem demasiado cedo o falecido, excluindo-os durante um período
de penitência, das relações sociais e dos prazeres da vida profana.” (ARIÈS, 2003, p. 248).

A partir do século XIX, modificam-se essas formas de praticar o luto, sendo tais
transformações como um retorno aparente, depois de sete séculos, dos modos espontâneos
presentes na Alta Idade Média (ARIÈS, 2003, p. 72). Os enlutados passam então a demonstrar
o sofrimento espontaneamente ou de modo histérico para os psicólogos de hoje: chora-se,
jejua-se, desmaia-se e desfalece-se, tocando até mesmo os limites da loucura, de forma que
essas manifestações eram para os enlutados bastante legítimas e necessárias. Tal “excesso”
das práticas de luto durante o século XIX tem para Ariès (2003, p. 72) um significado: “os
sobreviventes aceitam com mais dificuldade a morte do outro do que o faziam anteriormente.
A morte temida não é mais a própria morte, mas a do outro.”

E no decorrer do século XX e na primeira década do XXI, alteram-se novamente as


expressões de luto. Em muitos países ocidentais,6 e principalmente nas zonas urbanas, nota-se
geralmente o luto isolado, individual, silenciado e sem o negro na vestimenta, presente desde
a Idade Moderna, no século XVI. Chorar na presença de familiares, amigos e vizinhos pode
parecer vergonhoso e deprimente para muitos, de forma que chora-se comumente em casa,
porém não junto dos demais, e sim em um cômodo escondido, longe do círculo familiar.

Essa individualização da dor da perda acaba fazendo com que a morte diga respeito apenas ao
enlutado, que a vivencia desamparado, de modo que nenhum enlutado pode escapar “ao
trabalho de luto, o aspecto mais angustiante da nossa memória, pois nos confronta com a
presença invisível daqueles que nos precederam”, como enfatiza o historiador Michel Vovelle
(2010, p. 13). E quanto mais o falecido for “próximo, íntimo, familiar, amado ou respeitado,
isto é, ‘único’, mais violenta é a dor; nenhuma ou quase nenhuma perturbação se morre um
ser anônimo, que não era ‘insubstituível’.” (MORIN, 1997, p. 32).

6
As características da morte e das práticas do luto apresentadas no decorrer desse artigo se restringem a morte
ocidental, em especial dos países católicos. Podem-se destacar, nesse sentido, alguns rituais bastante diferentes
dos encontrados no ocidente e presentes em algumas partes do mundo. Segundo Sigmund Freud (1996, p. 68-
69), um “dos costumes mais estranhos, e ao mesmo tempo mais instrutivos, que estão ligados ao luto é a
proibição de pronunciar o nome da pessoa morta. Esse costume é extremamente disseminado, manifesta-se de
variadas formas, e tem conseqüências importantes. É encontrado não apenas entre os australianos e polinésios
[...], mas também entre povos separados uns dos outros por grandes distâncias como os samoiedos da Sibéria e
os todos da Índia Meridional [...]”.
1845
E, contemporaneamente, como bem destaca Ariès, expressar a dor da perda não causa muitas
vezes sentimento de pena nos indivíduos, mas sim

repugnância; é um sinal de perturbação mental ou de má-educação, é mórbido. Dentro do


círculo familiar ainda se hesita em desabafar, com medo de impressionar as crianças. Só se
tem o direito de chorar quando ninguém vê nem escuta: o luto solitário e envergonhado é o
único recurso, como uma espécie de masturbação – a comparação é de Gorer (ARIÈS,
2003, p. 87).

Conforme destaca Jeffrey Kauffman (2004, p. 322), as transformações dos rituais de luto na
era pós-moderna são profundamente evidentes, sendo que “os rituais de luto perderam o seu
poder normativo e o seu valor de orientação implícito, as teorias e os estudos sobre o luto
através dos métodos das ciências positivas e da psicologia surgiram para ajudar a definir e a
sancionar o luto”.

Espera-se que o indivíduo enlutado seja discreto no seu trabalho de luto, de modo que
demonstre pouca ou nenhuma lágrima e comoção nos rituais de morte, como no velório, no
enterro e nas missas realizadas em intenção ao ente falecido, segundo evidencia o antropólogo
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (2002, p. 80): “Discreto, também, deve ser, o
comportamento do enlutado nos diversos trâmites socialmente valorizados de despacho do
corpo e da expressão de sofrimento público no processo de despedida (velório, enterro, missa
de sétimo dia etc.).”

Nesse mesmo contexto, percebe-se que a sociedade, que nos séculos passados fazia-se
presente após a morte, visitando e apoiando o enlutado, agora está, em muitos casos, distante,
talvez pelo medo de não saber expressar as condolências adequadas ou vergonha de mostrar a
dor, o sofrimento e as lágrimas.

Em algumas cidades brasileiras, sobretudo das áreas rurais, percebe-se que durante a primeira
metade do século XX, muitas práticas do luto ainda eram constatadas, visto que o luto era
representado pela vestimenta preta,7 pelas visitas e mensagens de condolências de parentes e
amigos e pelas intervenções na vida social, como o resguardo dentro de casa.

Entretanto, em grande parte das cidades brasileiras, as transformações das práticas do luto
foram se intensificando no decorrer do século passado. Entre as décadas de 1960 e 1970, o
luto gradualmente foi deixando de lado seu caráter público e interativo, e a vestimenta preta

7
Às vezes a cor preta não estava em toda a vestimenta, mas ao menos em alguma peça ou fita preta presa na
roupa ou no chapéu.
1846
“como sinônimo de dor cai em desuso”, conforme destaca a socióloga Marisete Horochovski
(2009, p. 12). E no século XXI, a individualização da dor da perda pela morte faz parte da
vivência de muitas pessoas e o luto tornou-se para muitos indivíduos um problema, quando
não uma doença.8

Além disso, durante o século XX e a primeira década do XXI, o tempo de duração do luto
diminuiu, de forma que as marcas públicas anteriormente tão comuns como as faixas pretas
colocadas em frente às casas e comércios, que indicavam que se estava de luto, apagaram-se.
E a ausência de alguns rituais de morte, como a não realização de um velório ou
sepultamento, deixam muitos familiares e amigos do falecido “sem meios de expressar o luto
e o pesar, tão necessário nessas circunstâncias.” (OLIVEIRA, 2001, p. 25). Assim, o
sofrimento e a dor da perda podem estar presentes na vida do enlutado durante meses, anos e
décadas, mas isso não deve ser demonstrado fora do âmbito individual.

Alguns enlutados acabam inclusive preservando a memória da pessoa morta por meio de seus
objetos pessoais, como as roupas, sendo, às vezes, mantido intacto o quarto do falecido, como
se este fosse retornar algum dia9. Para tais indivíduos, o processo do luto pode ocasionar
também os bloqueios de memória, como esquecimentos de experiências vivenciadas junto do
ente, antes deste falecer, em especial os fatos que ocorreram próximos à data da morte, além
dos casos de enlutados que não recordam do velório ou enterro, aos quais efetivamente
compareceram e participaram.

Em suma, as práticas de luto, tão presentes no decorrer da história, como os choros


constantes, o resguardo dentro de casa e a vestimenta preta, transformaram-se no decorrer do
século passado em interditos, quando não em indiferenças em relação à morte. Com bem
resume Ariès (2003, p. 250): “Hoje, à necessidade milenar do luto, mais ou menos espontâneo
ou imposto segundo as épocas, sucedeu, em meados do século XX, na sua interdição”.

8
Muitos enlutados são atualmente vistos ou tratados como depressivos.
9
Segundo Roberto DaMatta (1997, p. 158), para muitos enlutados, seus entes mortos parecem não morrer,
permanecendo vivos nas suas lembranças diárias, demandando atenção e reverências, sendo que, para DaMatta
(1997, p. 155) “quanto mais saudade, mais intensa é a memória do morto ou do lugar. Quanto menos saudade,
menos intensidade na recordação.”
1847
Os rituais de morte nos cemitérios on-line

Nesse contexto, percebe-se que contemporaneamente muitos enlutados utilizam novos meios
e espaços para expressarem a dor e a perda, como os sites de cemitérios on-line, encontrados
desde meados da década de 1990, além das redes de sociabilidade, como os perfis pessoais de
mortos na rede social do Orkut. Estes são ambientes virtuais em que os enlutados podem
enviar mensagens de pesar nos memoriais de seus entes falecidos.

Assim, no decorrer dos séculos XX e XXI, além das transformações dos rituais post-mortem
descritos anteriormente, como a práticas do luto que se tornaram tão individualizadas,
solitárias e introspectivas, percebem-se, ao mesmo tempo, novas formas em lidar com a perda
no mundo virtual. As contemporâneas práticas do luto na internet, como deixar mensagens de
pêsames ou páginas on-line recordando o ente falecido, são encontradas em muitos sites de
cemitérios on-line, que são criados para lembrar e preservar a memória do falecido. Existentes
desde meados da década de 1990 em diversos países, como Alemanha, Estados Unidos,
França e Portugal, os cemitérios on-line têm como principal objetivo disponibilizar páginas
com memoriais de pessoas mortas.

Breves pesquisas na internet são suficientes para encontrar uma grande quantidade de
cemitérios on-line, como o Emorial das Erinnerungs-Portal Menchen gedenken,10 da
Alemanha, o Jardin Celestial Cementerio Virtual11, do Equador e o MyCemetery.com,12 dos
Estados Unidos. Em muitos desses cemitérios, os visitantes podem depositar flores e velas
virtuais13 nos memoriais de cada falecido, além das mensagens de saudade, bastante
frequentes nesses cemitérios on-line.

Um dos mais antigos cemitérios virtuais é o estadunidense “The Virtual Memorial Garden”,14
criado no ano de 1995, por Lindsay Marshall. O site, que tem como único idioma disponível o
inglês, é composto por seções com memoriais de pessoas mortas, de modo que cada falecido

10
Portal Emorial das Erinnerungs-Portal Menchen gedenken: <http://www.emorial.de/>. Acesso em 10 jul.
2012.
11
Portal Jardin Celestial Cementerio Virtual: <http://www.jardincelestial.com/index.html>. Acesso em 10 jul.
2012.
12
Portal MyCemetery.com: <http://www.mycemetery.com/my/index.html>. Acesso em 10 abr. 2013.
13
Para depositar as flores e velas virtuais, os visitantes necessitam adquiri-las nos sites, variando o valor dos
produtos, conforme o cemitério. As velas costumam “apagar” e as flores “murchar” virtualmente depois de sete
dias on-line.
14
Portal The Virtual Memorial Garden: < http://catless.ncl.ac.uk/VMG/>. Acesso em: 10 jul. 2012.
1848
possui um espaço como uma verdadeira lápide,15 com informações gerais, como idade que
possuía, nome completo e datas de nascimento e falecimento. Os visitantes podem criar
gratuitamente tais memoriais, além de possuírem também a opção de incluir uma fotografia
do ente e deixar mensagens de luto, que demonstram quase sempre dor e saudade, como no
memorial a seguir, de uma filha que expressa seus sentimentos pelo falecimento de seu pai,
que morreu no ano de 1983: “I miss you dad, but you'll always be a part of my being. Thanks
for everything! With all my love Your daughter [...]”.16

Nesse cemitério on-line, os memoriais mais frequentes são os de adultos, mas existem alguns
casos de crianças e natimortos, sendo encontrados inclusive memoriais de pessoas que
morreram há anos, como de um bebê que nasceu e morreu no ano de 1927. Alguns desses
memoriais infantis descrevem os últimos momentos de vida da criança, como também o
motivo de sua morte, conforme exemplo a seguir, de um menino que nasceu em 1992 e
morreu em 1995: “[...] was a beautiful child, a happy child. He was doagnosed with cancer at
2 years old. He died just after his third birthday. We love him, and miss him”.17

O site também possui um livro de visitas existente desde o ano de sua criação, de forma que
os internautas podem assiná-lo deixando seu nome, e-mail e mensagem. O livro de assinaturas
possui recados de visitantes de diversas partes do mundo, como México, Rússia, Alemanha e
Inglaterra, sendo possível visualizar as centenas de mensagens criadas desde o ano de 1995,
como algumas expostas abaixo:

A very worthwhile service on the Internet (12/07/1995); Thank you for providing myself
and others with the opportunity to express our bereavement over the loss of loved ones. It is
reassuring knowing that loved ones will forever be immortalized and remembered
(16/07/1995); A great idea. A fitting memorial for the on-line generation (21/07/1995); It
was like being in a real cemetery (30/07/1995); Merging the virtual world of the InterNet
with the virtual world of rememberance is more than logic (26/08/1995); This is a good
page. It will let our loved one live in our hearts for ever (09/11/1995); Thank you so much

15
Nas lápides de uma sepultura física, costumam conter variados dados, como, por exemplo, nome completo do
falecido, datas de nascimento e morte, fotografia, além dos epitáfios.
16
“Eu sinto sua falta pai, mas você sempre será uma parte do meu ser. Obrigado por tudo! Com todo o meu amor
Sua filha [...]” (tradução da autora). Disponível em: <http://catless.ncl.ac.uk/vmg/B/Ba.html>. Acesso em 10 jul.
2012.
17
“[...] era uma criança linda, uma criança feliz. Ele estava com câncer diagnosticado com menos de 2 anos de
idade. Ele morreu logo após seu terceiro aniversário. Nós o amamos, e sinto sua falta” (tradução da autora).
Disponível em: http://catless.ncl.ac.uk/vmg/B/Ba.html. Acesso em: 10 jul. 2012.
1849
for having this website. I'm a very private person when it comes to my emotions, so this
helps me to be able to express my grief. God Bless You! (15/05/2007).18

Percebem-se nestas variadas mensagens que os internautas demonstram o interesse nos


memoriais, sendo que alguns, já no ano de 1995, enfatizam a importância e utilidade das
páginas criadas para os mortos. Entre as mensagens, pode-se destacar a última supracitada,
que foi enviada no ano de 2007, em que o internauta menciona o valor da página, tendo em
vista que ele se considera uma pessoa muito reservada, e que tem dificuldades para
demonstrar sua dor fisicamente. Com isso, o visitante agradece pela existência do site, pois
através dele, expressar a dor e a tristeza pela morte de um ente torna-se mais fácil.

Outro cemitério on-line bastante acessado pelos internautas e que possui diversificadas
práticas de luto é o “Le Cimetière Virtuel”,19 criado na França, no ano de 2003. Segundo
matéria do site Terra, o Le Cimetière Virtuel foi criado por Daniel Coing-Daguet, uma pessoa
apaixonada por informática, que criou o endereço para fazer uma homenagem a seus artistas,
cantores e escritores preferidos e que já haviam morrido. Depois de algum tempo “ele montou
perfis para os familiares que partiam, e depois para os amigos, os amigos dos amigos. Até que
hoje qualquer pessoa pode se cadastrar no endereço e registrar a página de quem quer que seja
- com a condição de que a pessoa esteja morta” (TERRA, 2007).

O Le Cimetière Virtuel possui grande quantidade de perfis de falecidos, que são criados
gratuitamente, de modo que o acesso aos visitantes não é permitido em todas as páginas dos
memoriais, existindo algumas privadas, acessadas apenas com senha. No memorial de cada
falecido, os enlutados podem depositar flores e velas virtuais e enviar mensagens de dor e
saudade, além de possuir um espaço bastante parecido com uma lápide, tendo em vista que
traz informações pessoais do ente morto e as fotografias para identificá-lo. As velas e flores
gratuitas duram 24 horas no perfil do homenageado, e posteriormente são apagadas. Quanto
às outras homenagens, essas são vendidas pelo site, como os variados tipos de velas e arranjos
de flores virtuais que duram sete dias no perfil, sendo que o vaso de flor mais barato pode ser

18
Um serviço muito útil na Internet; Obrigado por proporcionar a mim mesmo e aos outros a oportunidade de
expressar nosso luto pela perda de entes queridos. É reconfortante saber que os entes queridos serão para sempre
imortalizados e lembrados; Uma ótima idéia. Um memorial adequado para a geração on-line; É como estar em
um cemitério real; Mesclando o mundo virtual da Internet com o mundo virtual de recordação é mais do que
lógico; Os mortos estão por toda parte! Por que não na Internet!? Boa idéia. Obrigado; Muito obrigado por ter
este site. Eu sou uma pessoa muito reservada quando se trata de minhas emoções, então isso me ajuda a ser
capaz de expressar a minha tristeza. Deus vos abençoe! (tradução da autora). Mensagens disponíveis em:
<http://catless.ncl.ac.uk/vmg/1995/aug.html>. Acesso em: 10 jul. 2012.
19
Portal Le Cimetière Virtuel: <http://www.lecimetiere.net/index.php>. Acesso em: 10 jul. 2012.
1850
adquirido por 1,80 euros, devendo ser pago com cartões de crédito/débito, transferência
bancária ou cheque.20
Em datas especiais, como Natal, dia das crianças, dia das mães e, principalmente no dia de
finados, o site recebe grande quantidade de visitantes, em especial dos enlutados, como de
familiares e amigos do morto, que deixam as mensagens de pesar, tristeza e sofrimento, além
de depositarem as velas e flores virtuais. Nos dias de finados, percebe-se que alguns
memoriais são bastante ritualizados com as variadas formas virtuais de homenagear o ente, de
modo que algumas páginas ficam completamente “movimentadas”, floridas e enfeitadas,
como se fossem verdadeiras sepulturas.

Pensando-se na sua estrutura, o Le Cimetière Virtuel é dividido em cinco seções, entre elas a
“Particuliers, Petits Anges, Célébrités, Religion e Mémorial”, podendo o visitante navegar
por todas elas. Em cada uma destas seções, existe um espaço de introdução, com explicações
do que se encontrará nesse item, como também os últimos dez falecidos acrescentados, os
“aniversariantes” de nascimento e morte do dia, além do destaque dado aos perfis esquecidos
(os menos acessados) e aos mais visitados daquela seção.

Imagem 1 – Página de entrada do Le Cimetière Virtuel21

Uma das seções mais visitadas e ritualizadas pelos internautas é a “Pequenos anjinhos”. Nela,
encontram-se perfis de crianças falecidas de diferentes partes do mundo, como de natimortos,
de bebês que morrem com poucos dias de vida, e também de crianças maiores. Nessa seção

20
Pode-se observar que muitos dos cemitérios on-line tornaram-se um mercado bastante lucrativo, de modo que
a morte e os mortos podem propiciar lucros para empresas de variados ramos. Assim, na grande maioria dos
cemitérios on-line, os visitantes necessitam pagar para enviar alguma mensagem, depositar uma vela ou flor
virtual, ou mesmo para criar um memorial para seu ente falecido. Ou seja, muitos dos rituais de morte presentes
nos cemitérios virtuais são comercializados, vendendo-se as flores, as velas ou as mensagens on-line por
variados preços, conforme o modelo escolhido pelo cliente.
21
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
1851
infantil, é grande a quantidade de recados deixados pelos familiares, especialmente pelos pais,
sendo acrescidas as mensagens diversas imagens de brinquedos, como bonecas, ursos e
carrinhos, além das flores e velas virtuais. Junto ao perfil das crianças, são encontradas em
alguns casos fotografias da sua sepultura física (Imagem 2), das mães durante a gravidez, dos
bebês hospitalizados e das crianças brincando. Um caso bastante particular é o perfil de um
menino que já nasceu sem vida no dia 3 de fevereiro de 2005. No seu memorial, os familiares
colocaram uma imagem do ultrasson de sua mãe, conforme exposto abaixo.

Imagem 2 - Memorial da seção “Petits Anges” com uma Imagem 3 - Memorial de um natimorto com imagem do
foto da sepultura de uma criança.22 ultrasson de sua mãe.23

Já na seção “Indivíduos”, uma das maiores em número de perfis de falecidos, são encontradas
as páginas de memoriais de pessoas que morreram com diversas idades (com exceção das
crianças), e de variadas nacionalidades, como franceses, italianos, brasileiros, alemães,
ingleses, argelinos e belgas. Nesses perfis, costumam aparecer fotografias, dados de
identificação do morto, como idade que possuía, nome completo, nacionalidade, datas de
nascimento e morte e o signo do zodíaco, além das flores, velas e mensagens de saudade
deixadas pelos internautas.

Outro espaço bastante procurado pelos visitantes do Le Cimetière Virtuel é a seção


“Celebridades”, que foi criada para homenagear famosos e personalidades históricas de vários
períodos e de distintas partes do mundo. Ludwig Van Beethoven, Honoré de Balzac, Ayrton
Senna, Johannes Kepler, Michael Jackson e Whitney Houston são alguns dos nomes
encontrados nessas páginas de memoriais.

22
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
23
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
1852
Já na seção “Religião” estão presentes perfis de alguns religiosos falecidos, como o memorial
do Padre Pio Francesco, do Papa João Paulo II (conforme Imagem 4) e da Madre Theresa,
além das homenagens realizadas aos santos, como São José, Santa Rita e Santa Teresinha do
Menino Jesus. Nesta seção, os visitantes podem inserir os dados gerais sobre os religiosos,
como também enviar mensagens de condolências, como constatado no memorial do Papa
João Paulo II, que além das informações de seu nascimento e morte “18 maio de 1920 - 02 de
abril de 2005. Morreu com 84 anos - Basílica de São Pedro do Vaticano” encontrou-se a
seguinte mensagem: “Très Saint Père, veillez sur mon fils svp”24. Os internautas podem
depositar, do mesmo modo, as flores e velas, tanto as gratuitas quanto as pagas, conforme
observado no memorial a seguir, do Papa João Paulo II, com as variadas espécies de flores
depositadas na página.

Imagem 4 – Seção Religion e Memorial de João Paulo II 25

Por fim, a seção “Memorial” homenageia uma série de acontecimentos trágicos ocorridos em
diversas partes do mundo no decorrer da história, além de pessoas que morreram nesses
eventos, como alguns dos soldados que faleceram na Segunda Guerra Mundial. Entre as
dezenas de episódios destacados estão: o atentado de 7 de julho de 2005, na cidade de
Londres, o atentado de Madri, que ocorreu no dia 11 de março de 2004, a Tsunami de 26 de
dezembro de 2004, o naufrágio do Titanic, em 15 de abril de 1912, o atentado as torres
Gêmeas, ocorrido no dia 11 de setembro de 2001 e o terremoto no Haiti, no ano de 2010.

Além do Le Cimetière Virtuel, outro exemplar de cemitério on-line é o “Cemitérios de


Portugal”26. Criado em 2010, no idioma português, o site disponibiliza gratuitamente jazigos
24
Mensagem disponível em: <http://www.lecimetiere.net/memoire/page-5580.html>. Acesso em 18 maio. 2013.
25
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2013)
1853
virtuais para os falecidos. Nesses memoriais, podem ser incluídas informações gerais sobre o
morto (como uma lápide virtual), suas músicas favoritas, fotografias e vídeos, como também
as mensagens de condolências e dedicatórias ao ente. Há também um espaço para divulgar a
data e local do velório, das missas em homenagem ao falecido, o endereço da igreja em que
estas serão celebradas, e também um mapa com o local do cemitério onde o falecido ficará
sepultado. Segundo consta no site, tais dados disponibilizados no jazigo virtual substituem as
publicações nos jornais locais. E para facilitar a criação de um memorial, o site possui uma
seção com todas as instruções, além de disponibilizar um modelo ilustrativo de jazigo virtual
com dados fictícios, como dedicatórias, horários das missas e mapa do cemitério.

Nesse cemitério on-line, os visitantes dos jazigos virtuais também podem depositar flores e
velas, que permanecem na página durante uma semana, de forma que é cobrada uma taxa
individual para cada produto. Através da aquisição de créditos, que valem por um ano, a
pessoa pode então enviar as flores e velas para qualquer jazigo, até seus créditos findarem ou
expirarem. Nesse site, o visitante pode escolher entre oito opções diferentes de arranjos de
flores, e apenas dois tipos de velas (Imagem 5).

Imagem 5 – Páginas do “Cemitérios de Portugal” 27

Considerações finais

Em síntese, percebe-se que o enlutado vê nesses cemitérios on-line um espaço para praticar os
rituais post-mortem, como através das expressões de luto nas mensagens de pesar, podendo o

26
Portal Cemitérios de Portugal: <http://www.cemiteriosportugal.com/>. Acesso em 10 jul. 2012.
27
Fonte: Cemitérios de Portugal (2013)
1854
internauta recordar e preservar a memória do ente falecido. Em algumas datas especiais, como
no dia de finados, os sites recebem uma grande quantidade de visitantes, como nos cemitérios
físicos, de modo que alguns memoriais de falecidos ficam enfeitados e coloridos com a
variedade de arranjos de flores e formatos de velas virtuais, da mesma forma que as sepulturas
reais.
Mas, afinal, o que motiva os enlutados a escolherem os cemitérios virtuais para expressarem
sua tristeza e pesar pela morte do falecido? Para muitos indivíduos, a ausência de um espaço
físico para ritualizar seu morto, como uma sepultura em um cemitério físico, é um motivador
para tal ocorrência, sendo os cemitérios virtuais como um espaço de memória, local em que se
pode falar do ente morto e também da sua dor, como a saudade diária causada pela perda.

Enfim, muitos enlutados pagam para manter o jazigo de seus entes, porém, não no cemitério
físico, mas no cemitério on-line, podendo visitá-lo diariamente em qualquer horário e local,
utilizando apenas as ferramentas do mundo virtual. Todavia, isso não significa dizer que essas
práticas fúnebres, principalmente as de luto, são mais amenas e apáticas por estarem presentes
no espaço virtual, já que muitos enlutados se sentem a vontade para demonstrar seu pesar pela
morte do ente querido apenas na internet, como através das mensagens virtuais, que podem
sintetizar a constante dor da perda em algumas palavras.

Referências

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DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

HOROCHOVSKI, Marisete Teresinha Hoffmann. No tempo do “Guardamento”: Rituais de


morte narrados por velhos. In: SBS - Congresso Brasileiro de Sociologia, 14, 2009. Rio de
Janeiro. Anais Eletrônicos... Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Disponível em
<http://starline.dnsalias.com:8080/sbs/arquivos/15_6_2009_11_51_3.%20Hoffmann%20Horo
chovski.pdf>. Acesso em 10 fev. 2012.

KAUFFMAN, Jeffrey. Luto. In: HOWARTH, Glennys; LEAMAN, Oliver (Coord.).


Enciclopédia da morte e da arte de morrer. Lisboa: Quimera Editores, 2004.

1855
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contemporâneo. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.1, n.1, pp.77-87, João Pessoa,
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OLIVEIRA, Tereza Marques de. O psicanalista diante da morte: intervenção psicoterapêutica
na preparação para a morte e elaboração do luto. São Paulo: Editora Mackenzie, 2001.

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de


1944): mito, política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de
Moraes. (Orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p.103-130.

QUEIROZ, Júlio de. Morrer para principiantes: ensaios. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. 2 ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006.

TOMASI, Julia Massucheti. “Eternamente Off-Line”: as práticas do luto na rede social do


Orkut no Brasil (2004-2011). 2013. 178 p. Orientada por Gláucia de Oliveira Assis.
Dissertação (Mestrado em História), UFSC, Florianópolis, 2013.

________. Morte à italiana: os ritos funerários no município de Urussanga (SC) no decorrer


do século XX. 2010. 120 p. Monografia (Graduação em História) – Centro de Ciências
Humanas e da Educação – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

VOVELLE, Michel. As almas do purgatório, ou, o trabalho de luto. São Paulo: Editora
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Internet
Cemitérios de Portugal. Disponível em <http://www.cemiteriosportugal.com/>. Acesso em 10
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Cemitério virtual tem mais de 10 mil tumbas. Terra tecnologia. Disponível em


<http://tecnologia.terra.com.br/noticias/0,,OI2051503-EI12884,00-Cemiterio+virtual+tem+
mais+de+mil+tumbas.html>. Acesso em 10 jan. 2012.

Emorial das Erinnerungs-Portal Menchen gedenken. Disponível em


<http://www.emorial.de/>. Acesso em 10 jul. 2012

Jardin Celestial Cementerio Virtual. Disponível em


<http://www.jardincelestial.com/index.html>. Acesso em 10 jul. 2012.

Le Cimetière Virtuel. Disponível em <http://www.lecimetiere.net/index.php>. Acesso em 18


maio. 2013.

1856
MyCemetery.com. Disponível em <http://www.mycemetery.com/my/index.html>. Acesso em
10 abr. 2013.

The Virtual Memorial Garden. Disponível em <http://catless.ncl.ac.uk/VMG/>. Acesso em 10


jul. 2012.

1857
Mborai: o canto sagrado guarani
João José de Félix Pereira1

Introdução

Mborai: O Canto Sagrado Guarani, forma com Mimby: A Arte de Fazer e Tocar Flautas de
Bambu e Mborayu: Um Conceito da Espiritualidade Guarani, uma trilogia sobre a música e a
espiritualidade Guarani. Entre 1991 e 1995 escrevi a dissertação de mestrado Mimby: A Arte
de Fazer e Tocar Flautas de Bambu. Essa dissertação foi defendida em 1995 no programa de
Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Entre 2008 e 2010 escrevi a tese de doutorado
Mborayu: Um Conceito Da Espiritualidade Guarani, essa tese foi defendido em 2010, no
programa de Ciências da Religião da UMESP. O estudo que apresento, agora, faz parte da
minha pesquisa de pós-doutorado, nela me detive especificamente na poética do Mborai,
Canto Guarani, cujo conteúdo tem cunho religioso, linguagem afetiva que é compartilhada
reciprocamente por todos que tem em si o sentimento de pertença a esse liame social.

1. Mba’eã’ã: um esforço em busca de valor e força espiritual.

No Mborai que apresento Mba’eã’ã e que faz parte do meu estudo de pós-doutorado, canto
coletado por Martínez Gamba (GAMBA, 1984, p.52), apresenta o contraste entre o princípio
econômico Guarani e o do Jurua, do ocidental; raiz de toda uma incompreensão da maneira de
viver e de tratar as coisas entre essas duas culturas que compartilham o mesmo espaço. O
ponto crucial desse canto está no dizer:

Arajeapo awã xe tataxyna rupa ñemomba’e awykyguy, xe tataxyna rupa rakã poty
ñemomba’e awykyguy, urukure’a’i te ma (...) há’eguy maem, juruapy ame’em ramowe,
aupity wa’erã xo’o’i, mba’e re’em’i, juky’i re’em ro, u’ixim reko axy, Xe reta kwere há’e
jawi kwe’i rewe roupi awã, ore rataypy rupa mbowy’i re. (BAPTISTA, 1996, p. 10).

Ã’ã significa esforçar-se por conseguir algo, os cantos constituem um esforço em busca de
valor e força espiritual. Ñemomba’e awykyguy é aquilo que se toca, refere-se à madeira que

1
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor de Composição Musical na UNESPAR Participa do
GP NETMAL da UMESP. Orientado pela Prof. Dr. Sandra Duarte de Souza. Contato: awajupoty@ig.com.br.

1858
esta em contacto com o côncavo das mãos ao se entalhar um animalzinho. Rakã poty nomeia
os dedos e as unhas: ramos floridos. Por outro lado, o côncavo das mãos, palma das mãos
contêm a neblina vivificante, a força criadora. Juru’a: o ocidental; juru: boca; a: aberta;
literalmente é o falador, o que fala muito. A tradução desse trecho é:

Possa eu fazer com o que tocam os meus leitos de nevoeiros, com o que roçam os ramos em
flores de meus leitos de nevoeiros, imagenzinhas de pequenas corujas (...) e só depois de os
vender aos estrangeiros, comprarei carne, um pouquinho. Pouquinho de açúcar. Pouquinho
de sal salgadíssimo e de imperfeita farinha de milho, para comer junto com todos os meus
irmãos, todos, em torno aos poucos assentos de nossas fogueiras (BAPTISTA, 1996, p. 11).

Em seu texto sobre os Guarani, Neblina Vivificante, Josely Vianna Baptista relata que:

À margem da existência dos habitantes de Missiones, os Mbya trabalham a madeira


(contemplando o desmatamento que vem desnudando a região), esculpindo as talhas, os
animaizinhos citados em suas milenares plegarias, seus cantos de caráter mágico-religioso.
(BAPTISTA, 1996, p.9).

No relato, da Josely temos bem ilustrado o contraste entre a espoliação econômica da natureza
e o deleite de apreciá-la, porque para o Guarani o desejo de prosperidade econômica,
ambições políticas ou qualquer outra ambição pouco significam e não o preocupam. Seu ideal
de cultura é de outra ordem, o da vivência, do deleite místico da divindade.

A espiritualidade ocupa o coração da cultura Guarani. Ferido esse coração, a cultura


empalidece e, destribalizada, se dilui entre as camadas mais depauperadas do caboclo e do
caiçara brasileiro, do mestiço paraguaio e do criollo argentino. O caiçara e o caboclo, o
mestiço e o criollo são situados à margem na sociedade juru’a, pois não a compreendem no
seu sentido real, supõem conhecê-la, mas não conseguem entender os seus princípios
econômicos e, portanto, mesmo trabalhando muito, não têm retorno econômico condizente
com as suas horas de trabalho, ou seja, eles próprios não sabem valorizar o seu trabalho em
termos econômicos ocidentais. E claro, na sua forma artesanal de trabalho, não tem a mínima
chance de competir com as companhias pesqueiras, no caso do caiçara; e no caso do caboclo,
sua agricultura manual não tem a mínima chance de competir com a agricultura mecanizada e
aditivada de insumos como é praticada no sul do Brasil, na Argentina e no leste do Paraguai.
Ficando então o resíduo Guarani, mas, com um pé na sociedade ocidental, também eles,
encontram-se em via de extinção pela absorção através da aculturação escolar e instrução
técnica.

1859
No caso do Guarani, a distância é maior, porque tem os dois pés fincados em sua cultura.
Observando um Guarani ao vender um Tangua, imagenzinha, podemos conferir que ele
coloca em sua mercadoria um valor relativo à sua necessidade, então para o juru’a
dependendo da necessidade do Guarani, o preço será caro ou barato, mas nunca
compreensivo, porque nunca será o mesmo para o mesmo objeto, ou para algum semelhante,
como se poderia supor. Para o juru’a o preço deveria ser o mesmo, caso não haja inflação;
mas para o Guarani não, depende da sua ou, da necessidade dos seus, de quanto precisam para
ir tocando a vida e, poder deleitar seu espírito, não mais que isso. Portanto, o preço se
avaliado pelo material e pelo tempo de serviço é sempre, para um apreciador esclarecido,
muito barato. Um Guarani pode levar dias fazendo um Tangua e, no entanto, vendê-lo pelo
preço de um pacote de sal, se essa é a sua necessidade, mas também pode sair pelo preço de
um telefone celular, se for a sua necessidade; mas se o comprador negociar pode conseguir até
de graça, se disser que admira o objeto, mas que não tem dinheiro para pagá-lo, porém, que
tem roupas ou, seja lá o que for que o índio também necessite, para oferecer em troca pelo
Tangua. E essa aquisição será partilhada com todos os membros de seu Tekowa, aldeia, para
quem também possa servir.

As relações entre os Guarani não são balizadas pelo status social, pela situação econômica ou
social do indivíduo; mas pelo Mborayu, o espírito que os une, e que nos une. Esse é um
conceito fundamental para se compreender a diferença entre a concepção Guarani e a juru’a.
Para se entender essa diferença e o estranhamento gerado entre as duas culturas que partilham
este espaço do cone sul da América é necessário se fazer uma digressão no tempo e vermos
alguns conceitos.

2. A gênese de um mal entendido

Apreciando esta questão com um olhar Guarani, aprendemos que Mborayu: “O Espírito que
nos Une”, nos une por afinidades, nos fazendo um povo, e dentro desse povo, com os mais
afins, nos torna uma parcialidade. Mas também nos une com os nossos dessemelhantes, nos
trazendo contrastes e, assim possibilitando a expansão da nossa concepção de mundo.

Por um lado temos os Kario ou Karijo que se autodenominam Ñandewa’ete, que se


distinguem dos ñandewa e, dos mbya, dos kaiowa, dos xiripa, dos Awa Guarani e, assim por

1860
diante. Porém, somos todos humanos e, nos identificamos com toda essa família planetária,
somos todos filhos e filhas de Ñandexy Ywy Retã, a Mãe Terra.

As diferenças geram contrastes dentro dessa imensa família humana e, isto é inegável. Essa
diferença gera estranheza e, quando não estamos atentos a essa estranheza, nos permitindo
flexibilizar conceitos, caímos nas armadilhas dos preconceitos.

Para se compreender essa armadilha e, portanto nos conscientizarmos de como nos tornamos
prisioneiros no presente de, aywu marã, conceitos que nos causam mal-estar, apresento a
seguir uma digressão sobre a gênese desse mal entendido.

Por ocasião das primeiras expedições ao Rio da Prata, com a posterior fundação de
Assunción até o momento em que é implantado o sistema de “encomienda”, no Paraguai,
no ano de 1556, o espanhol que entra em contacto com os Guarani – e com outros indígenas
da região – é alguém que está de passagem. Nesse primeiro momento o Guarani será visto e
conceituado sob dois aspectos fundamentais: política e socialmente, como eventual aliado;
economicamente, como possível fornecedor de alimentos (MELIÁ, 1987, p. 20).

Essas primeiras notícias, embora tenham sido dadas por aventureiros que estavam de
passagem, vão trazer informações sobre aspectos importantes do modo de ser do povo
Guarani que os conhecimentos posteriores virão confirmar. Assim, a carta de Luis Ramirez,
de 1528 diz:

Aqui com nosotros está outra generación que son nuestros amigos, los cuales se llamam
Guaranis por outro nombre Chandris: estós andan dellamados por esta tierra, y por otras
muchas, como corsários a causa de ser enemigos de todas estotras naciones... son gente
muy trahidora... estos señoream gran parte de la India y confinan con los que habitan la
Sierra. Estos traen mucho metal de oro e plata en muchas planchas y orejeras con que
cortam la montaña para sembrar: estos comen carne humana (RAMÍREZ, 1941, p.98).

Diego Garcia (1530), por sua parte, chama a atenção sobre os recursos alimenticios dos
Guarani. “Habitan el las islas otra generación que se llama los Guaranies; estos comen carne
humana..., tienen e matan mucho pescado e abatíes (milho), é siembran e cogen é calabazas”.
(GARCIA, 1941, p. 47-52).

O mote desses relatos é:

Estos comem carne humana”, esse estigma perdura ainda na mente de muitas pessoas
pouco informadas, que acham que mesmo hoje em dia os índios são antropófagos, coisa
que dessa maneira nunca foram. Seria como hoje julgarmos todo europeu como cruel e

1861
sanguinário porque os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças praticavam
crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e
os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre ( LAS
CASAS, 2001, p. 34).

Esse é apenas um detalhe dessa crueldade, infinitas outras aconteceram, de todas as maneiras
possíveis, sempre com requinte de maldade e evidências de demência.

Mas se mesmo em extremo desespero e fome foi cometida a antropofagia, o estigma não deve
perdurar, é possível que isso tenha acontecido em situações como a descrita por um sacerdote
católico:

A eles e a elas não lhes davam a comer (...) de tal sorte que o leite secava nos seios das
mães e assim em pouco tempo morriam todas as criancinhas. E em virtude de estarem os
maridos separados, não coabitando com as mulheres, a geração cessou entre eles; eles
morriam nas minas de trabalho e de fome, e elas morriam do mesmo modo nos campos
(LAS CASAS, 2001, p.41).

O que nos vemos nesses relatos é o conflito entre uma cultura que praticava a reciprocidade e
outra que praticava o intercâmbio. O Guarani recebeu bem o estrangeiro, dentro do seu
conceito de reciprocidade, lhe forneceu viveres e abrigo; pelo estrangeiro foi julgado como
alguém que estava desejando algum intercâmbio, ou aliança. Quando perceberam que não
desejavam nada além do convívio, foram julgados como inofensivos e possíveis de serem
escravizados, pois nada pediam em troca, e tudo de si doavam. Então lhe tomaram tudo, até a
própria liberdade e a vida. Ou seja, a sociedade de intercâmbio maximizou o lucro ao extremo
e a satisfação desmedida do interesse próprio. Essa diferença de conceitos é bem
compreendida por Melia e Temple:

La reciprocidad implica la preocupación por el outro y esto em vista a establecer valores


tales como la paz, la confianza, la amistad, la comprensión mutua. El intercambio utiliza
esos primeros valores que permitem salir de la violência. Restablece por outra parte la
competición de lós intereses, la competência vital, las leyes de la naturaleza más bien a
partir de la confianza, de la paz, de la comprención producidas por la reciprocidad. El
intercambio es uma relación de interes que supone pues uma reciprocidad minimal, y es por
eso por lo que se Le otorgan a veces los valores de la reciprocidad. Se comprende así que se
la pueda confundir igualmente com uma forma de reciprocidad, uma forma de reciprocidad
mínima, mientras que el puro don sería uma forma de reciprocidad máxima. Em realidad
invierte el movimento de la reciprocidad, al menos de la reciprocidad de dones, pues em
vez de mirar el bien del outro, busca la satisfación del interes próprio. (MELLIÀ/TEMPLE,
2004, p.86).

1862
Entre todos, jesuítas e não jesuítas – excetuando, claro, os mesmos Guarani – Segundo Meliá,
Montoya é o melhor conhecedor da Cultura Guarani, acredito que do período missioneiro,
sem dúvida isso é verdade, no dizer de Meliá:

é Antônio Ruiz de Montoya o melhor conhecedor da cultura Guarani, como fica patente em
suas diversas obras. O Tesoro de la Lengua Guarani contém a maior suma etnológica
Guarani já coletada, uma lavra por enquanto muito insuficientemente explorada pelos
próprios pesquisadores do Guarani. A partir das palavras “chave”, com suas conotações e
associações, consegue-se levantar quadros sumamente ricos e bastante completos sobre os
mais diversos aspectos da cultura Guarani, na sincronia do tempo dos primeiros contatos. A
obra lingüística de Montoya, formalmente sincrônica, encontra sua dimensão diacrônica nas
cartas e, sobretudo, na Conquista Espiritual, onde o índio Guarani, em contato com o
mundo colonial, revela a própria identidade através de sua ação e reação. Montoya será
assim um dos principais autores para a etno-história Guarani (MELIÀ, 1987, p. 27).

Antonio Ruiz de Montoya fez o primeiro verbete do termo Jopoi, reciprocidade, em sua obra
“Arte Vocabulário Tesoro y Catecismo de La Lengua Guarani”, obra editada em 1639. Assim
é apresentada essa obra na edição: “Conquysta espiritval hecha por los religiosos de La
Compañia de Iesús, em las Provincias del Paraguay, Paraná, Vruguay, y Tape. Escrita por El
Padre Antonio Rviz de La misma Compañia. Dirigida a Octavio Centvrión, Marques de
Monasterio. Com privilegio. Em Madri. Em La imprenta Del Reyno. Año 1639. (4), 104 ff.
In-4”.

Uma versão em Guarani, junto com a tradução portuguesa, apareceu sob o titulo de “Aba reta
y caray eym baecue Tupã upe yñemboaguyje uca hague Pay de La Comp@ de IHS
poromboeramo aracae P. Antonio Ruiz icaray eym bae mongetaypy hare oiquatia caray ñeen
rupi ymã cara mbohe hae Pay ambuae ogueroba aba ñeen rupi. Año de 1773 pipe. S. Nicolas
PE. Ad majorem Dei Gloriam” (Annaes da Bibliotheca Nacional, vol. VI, Rio de Janeiro
1879).

Montoya era tido pelos Guarani como Paje (xamã), porque fez as disciplinas espirituais, e
recebeu nome Guarani, ele se chamava Guaracitã, ou seja Sol Resplandecente. E o próprio
Montoya reconhecia que seu mestre de vida espiritual foi o índio Inácio Pires de Floretas, que
lhe ensinou uma espécie de exercícios místicos. (cf. MELIÀ, 2009, p.72). E, em 1614
Montoya foi excomungado por ter feito coisas contra a lei divina e humana. (cf. 2009, p. 74).
Montoya praticou Jopoi, a reciprocidade. De certa forma a doutrina cristã comporta esse
conceito, mas para o estabelecido pelas encomiendas essa era uma questão fechada, e

1863
Montoya sofreu as consequências. Em suma o mal-entendido surge de uma falta de qualquer
vontade de entendimento, pois, tratava-se de conceitos antagônicos com relação aos
princípios norteadores da economia que colocavam em risco um sistema baseado no poder
patriarcal, do senhor que se impõe pela força, defendendo seus interesses próprios em
detrimento do coletivo e, de certa forma Montoya “contaminado” pelo convívio com os
Guarani, entrou em choque com a sua sociedade de origem, mas não de opção. Mas de
qualquer maneira esta é mais uma questão polêmica e difícil de ser compreendida na
distância, pois envolve uma relação de paixão e de marcas recíprocas, cujas cicatrizes
perduram ainda no presente.

3. Considerações finais

O discurso do conhecimento sobre a cultura Guarani sempre teve uma ansiedade em torná-lo
contínuo, preenchendo suas lacunas com díspares conteúdos, e hoje se dá por contente
achando que pôde representá-lo totalmente. Acredito que a cultura Guarani nunca foi
apreendida plenamente, e que nunca será, exatamente pelas lacunas deixadas pelas
destruições, que causaram a extinção de vários aspectos da cultura Guarani. Não podemos
afirmar que o que hoje ela é, diz do que ela foi ou será, posto que hoje ela se recicla e busca
reestruturar-se e auto-resgatar-se, dentro do que julga ser. Como nos diz outro trecho do
canto, Mba’eã’ã: “...Ore ywara tyre’ym mbowy mbowy’i /rogueropyta’i wa’e/ nde ywypy
poteri./ ywypo amboa’e’i kwerupe ame’em ramowe”. (BAPTISTA, 1996, p. 10). Ou seja: “...
Nós, uns poucos e poucos órfãos de teu paraíso,/que ainda animamos uns aos outros, apesar
disso,/ para ir vivendo em tua morada terrena./ Depois de aos forasteiros os ter vendido.”
(idem, p. 11). É como dizer que nós vamos tentando juntar nossos cacos para tentar não
deixar escorrer o conteúdo que nos comporta. Que não entendemos muito bem porque temos
que fazer isso além de que se não o fizermos não sobreviveremos. Que nos esforçamos para
fazer o que não nos causa esforço, mas prazer como cantar e dançar para Ñamandu: a natureza
de todos os mundos, que através do mborayu, o espírito que nos une, em uma situação
paradoxal. Mas, que inexoravelmente, é o caminho para Ywy’marã’heym, a Terra-sem-mal,
porque não há outro caminho senão através dessa terra onde até o “u’ixim reko axy”, como é
dito em outro trecho da canção (cf. ibidem), ou seja, até a “farinha de milho é imperfeita”
(ibidem), porque não é de awaxy ete, o milho perfeito multicolorido, mas de milho hibrido ou

1864
transgênico, alimento que foi profanado, pois para o juru’a o milho não é sagrado; porém, não
o podemos acusar pelos pesares que causa pois não sabe e não entende isso.

4. Referências

BAPTISTA, Josely Vianna. Neblina Vivificante. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba,


1996.

GAMBA, Martínez. El Canto Resplandeciente – Ayvu Rendy Vera. Buenos Aires: Ediciones
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1865
1866
Narrativas digitais nas diversas redes educativas que atravessam
as aprendizagens em terreiros de Candomblé no Brasil
Máira Conceição Alves Pereira1

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de analisar as narrativas digitais construídas por meio de
imagens, vídeos, textos e interações em redes sociais digitais compartilhados por praticantes
dos terreiros de Candomblé. O eixo da análise recai sobre as diversas redes educativas que se
entrelaçam cotidianamente nesses terreiros, alcançando o ciberespaço, em que seus
praticantes aprendem sobre a religião, seus rituais, seus valores e filosofia de vida, sobre as
formas de se relacionar entre si, com a Natureza e com os deuses cultuados.

A emergência do campo e do objeto da pesquisa aqui apresentados em forma de ensaio, uma


vez que se encontram ainda em construção, em estágio embrionário, origina-se e inspira-se
em Caputo (2012),2 cuja pesquisa de vinte anos com crianças de Candomblé revela que elas
escondem sua fé na escola por se sentirem discriminadas, tanto religiosa quanto racialmente,
embora tenham crescido aprendendo a amar os Orixás e a cultura de seus ancestrais.

Caputo (2012) conclui que fazer parte da religião não se mostra suficiente para assumi-la em
outros espaços, sobretudo na escola. O amor ao Candomblé permanece, mas as crianças
desenvolvem táticas para lidar com o preconceito e a hostilidade nas escolas, negando e
escondendo, muitas vezes, a própria fé.

O papel das narrativas digitais será analisado em sua potência criadora de novos significados
para os praticantes do Candomblé, conferindo mais visibilidade para a religião e contribuindo
para a superação do preconceito, validando práticas e crenças, viabilizando interações e novas
aprendizagens e fortalecendo identidades de forma alinhada com a concepção de que as redes
se inserem em todas as fibras do cotidiano.

1
Psicóloga pela UFRJ, Mestre em Administração Pública e Empresarial pela FGV/RJ. Professora do curso de
graduação em Psicologia do Centro Universitário IBMR Membro do GP Ilè Obà Òyó, Contato:
mairapereira@uol.com.br.
2
Caputo, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. 1ª. ed.
Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
1867
Na perspectiva aqui ensaiada, tanto narrativas digitais quanto os próprios terreiros são tidos
como redes educativas ao lado da cibercultura. Afinal, não é possível compreender as tensões
e os paradoxos atuais sem compreender o fenômeno da cibercultura, que para Santos (2012)
significa a cultura contemporânea estruturada pelas tecnologias digitais em rede que “vem se
caracterizando atualmente pela emergência da mobilidade ubíqua em conectividade com o
ciberespaço e as cidades” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 3). Ainda dialogando com as
autoras, para Pierre Lévy, o termo cibercultura evidencia uma forma inovadora de
comunicação “gerada pela interconexão de computadores ao redor do mundo, não abrangendo
apenas a parte de infraestrutura material, mas também esse novo universo informacional que
abriga os seres humanos que a mantêm e a utilizam” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 3).

Nesse contexto cibercultural, as narrativas digitais relativas ao Candomblé podem ser como
dentes-de-leão3 soprados ao vento, espalhando a esperança de novos tempos de convivência
na e com a diversidade, de respeito pela diferença, de vitórias nas lutas contra a proliferação
da discriminação religiosa e de resistência na preservação dos cultos aos Orixás. Em uma
3
A inspiração da analogia com os dentes-de-leão tem sua origem nas reflexões poéticas de Stela Guedes Caputo
em sua página no Facebook, conforme transcrito a seguir: “Vamos soprar os dentes-de-leão. Lavei os pratos bem
rápido, duas ou três panelas. Sequei tudo ligeiro e corri para o quintal atrás no terreiro. Queria ver que algazarra
era aquela que os meninos faziam. Estavam soltando pipa enquanto a festa não começava. Comemoramos
ontem, 19 de janeiro, nosso aniversário e o início das atividades do ano no Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá, em
Santa Cruz da Serra, Duque de Caxias. Meu coração é guiado pelo coração delas. Foi pelas mãos de crianças e
jovens de terreiros que há muito tempo me aproximei do candomblé. As mesmas mãos me tornaram do
candomblé. Uma opção radical pelo lugar em que quero estar, pelas pessoas com quem desejo estar e pela fé que
devagar me chega como as sementes de dente-de-leão que João Vitor me soprou ontem. Porque fé deve ser algo
leve de brotar, no semear delicado, suponho. Se for na força só pode ser outra coisa.
Lanhei a perna em um vergalhão, cortei o dedo no cerol. Tentava ajudar a desenrolar a linha. Tudo estava
agitado porque João Vitor entrou em um cruza. Os amigos gritavam: “dá linha...dá linha”. João cortou e
comemoramos. Mas logo depois, “estancou”. “A linha era fraca”, resmungaram. Os olhos dos meninos estavam
no céu, mas os ouvidos atentíssimos ao mínimo som que revelasse o início do candomblé no barracão.
“Começou?”, perguntava um. “Não, ainda não. Dá tempo de correr atrás da que cortamos”. E lá foram eles pelos
quintais dos vizinhos.Antes disso, porém, enquanto conversávamos no meio das folhas e flores, dois dos
meninos me pediram para postar as fotos, mas para não marcá-los no facebook. “A gente gosta de olhar no seu,
mas se marcar, a gente aparece para os nossos amigos da escola e tenho vergonha!”, disse um. “Tenho medo de
perder meus amigos. Na escola todo mundo me zoa quando vê meu face”, completou o outro. Quando sumiram
atrás da pipa ficamos eu e os dentes-de-leão. Dente-de-leão é o nome comum de várias espécies pertencentes ao
gênero Taraxacum que, por brotar espontaneamente, sem mesmo a intervenção humana, indica solo fértil, solo
bom. Também resiste fortemente às condições ruins e renasce sempre, sendo por isso símbolo de união,
resistência, otimismo e esperança. A festa começou. Bem antes disso os meninos retornaram sem a pipa. Não
ousaram enfrentar os cães que guardam os quintais dos vizinhos. Dois foram para os atabaques,um deles, João
Vitor. O outro se preparou para receber Oşalá que, quando chegou agigantou aquele corpo franzininho franzinho.
Foi em cima dos magros ombrinhos que o grande Òrìṣ à ergueu o terreiro inteiro. Epà Bàbá!
Meus meninos são reis, como são reis e rainhas meninos e meninas de todos os terreiros. Cantam, tocam e
dançam como reis. Sabem yorubá, conhecem as folhas, soltam pipas e...vão à escola. Eu chorei quietinha quando
Oşalá chegou. Em parte por sua força, em parte porque não me conformo com uma escola que envergonha
guerreiros. Disse que o dente-de-leão brota espontaneamente. Quisera viver em um país em que as religiões de
matriz africanas fossem respeitadas, principalmente nas escolas. Como sei que não vivo, quisera que mudar essa
realidade fosse tão simples e espontâneo como o nascer dos dentes-de-leão. Mas mudar as desigualdades de
classe, raciais e de cultura em nosso país nunca foi espontâneo. Então precisamos soprar juntos e espalhar as
resistências, os otimismos, as esperanças, os dentes-de-leão”.
1868
reflexão poética, Stela Guedes Caputo, comenta a relação das crianças do seu terreiro com as
fotos publicadas por ela no Facebook. Há encantamento e expectativa pela postagem das
fotos. Contudo, há também a ressalva de que esses mesmos meninos desejam não ser
marcados nas fotos para que não se sintam envergonhados perante os colegas da escola que
fazem parte de suas redes no Facebook.

O brincar, o dançar, o cantar, o estar com amigos, o aprender e o ensinar e tantas outras ações
compõem e caracterizam o terreiro de Candomblé como uma rede educativa para as crianças e
demais praticantes da religião. Como as redes educativas são múltiplas e se intercruzam, elas
ultrapassam os limites físicos e sagrados dos próprios terreiros e atingem o ciberespaço por
meio de imagens, textos e narrativas digitais diversas. Como nos ensina Alves (2008), 4 há
muitos outros espaçostempos de aprendizagens além da escola, em que se vive, se aprende e
se ensina. Destacam-se neste ensaio os próprios terreiros e as redes sociais virtuais.

Há outra consideração, entretanto, em relação ao papel assumido pelas narrativas digitais para
o Candomblé. Por ser uma religião permeada e caracterizada por Àwo, que significa segredos
na língua Yorubá, as variadas narrativas digitais poderiam expor seus praticantes a
discriminações e perseguições, resultado da incompreensão de seus fundamentos por pessoas
leigas e da intolerância às religiões de matriz africana. Portanto, o papel dessas narrativas
digitais pode abarcar aspectos positivos no sentido da divulgação do Candomblé e no
fortalecimento da identidade de seus praticantes e também alguns pontos de atenção e de
tensão por meio dos variados usos, por variados autores, dessas narrativas. Em ambos os
casos, a oportunidade de debate gerada e de produção de sentido, com disputas de
significados, constitui o tecido de uma complexa rede de subjetividades (SANTOS, 1995), em
um fluxo de novas aprendizagens e múltiplas possibilidades não excludentes, pois neste
ensaio de pesquisa o

ponto crucial é que o ciberespaço é ao mesmo tempo, coletivo e interativo, uma relação
indissociável entre o social e a técnica. Essa perspectiva nos leva a pensar o ciberespaço,
então, como um potencializador de infinitas ações interativas, um novo espaço de
comunicação, de sociabilidade, de reconfiguração e de autorias (SANTOS; SANTOS,
2012, p. 4).

4
Entrevista realizada em 30 de outubro de 2008 com Profa. Nilda Alves, Professora titular da UERJ, onde
coordena o Laboratório Educação e Imagem, para o Programa Salto Para o Futuro, da TV Escola. Disponível em
<http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevista.asp?cod_Entrevista=54>. Acesso em: 08 de agosto de
2013.

1869
Parcerias intelectuais: notas sobre o quadro teórico-metodológico

Além da inspiradora e principal parceira intelectual da pesquisa, Stela Guedes Caputo, este
ensaio dialoga com as definições de cibercultura encontradas em Santos e Santos (2012), nas
quais se destacam o entrelaçamento das relações entre pessoas e tecnologias digitais que
produz linguagens e signos mediados e socializados pelo digital. Segundo as autoras, quando
citam Lévy,

há uma nova maneira de pensar os meios de comunicação que se organizam dentrofora do


ciberespaço. As tecnologias de informação e comunicação potencializaram os
espaçostempos de convivência e aprendizagem, principalmente quando levamos em
consideração o uso de interfaces interativas, mídias digitais e redes sociais. É no
ciberespaço e especificamente nos ambientes virtuais de aprendizagem que saberes são
produzidos pela cibercultura, principalmente no que se refere a aprender com o outro e em
conjunto, criando uma rede de aprendizagem em um ambiente aberto, plástico, fluido,
atemporal e ininterrupto (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 3).

A complexidade das questões, dos paradoxos e dos conflitos contemporâneos, incluídos nesse
escopo de contornos imprecisos a intolerância e a discriminação religiosa e racial, além do
amplo e variado universo das narrativas digitais que dialogam com o Candomblé e atravessam
as redes educativas nos terreiros, é evidente e requer o entendimento do fenômeno da
cibercultura.

É também crucial reconhecer o contexto de complexidade e de transformações sociais da


pesquisa em construção. Para lidar com problemas complexos como os apresentados neste
ensaio, são necessários um novo olhar, uma nova escuta, uma nova abordagem metodológica
e novas formas de ação e intervenção. Tal contexto de complexidade requer novas estratégias
e considera as mais variadas redes educativas. O Candomblé cria-se e recria-se
incessantemente por meio das narrativas digitais compartilhadas por seus praticantes. Essa
criação-recriação de significados entra no espaço dos terreiros, desdobrando-se e dialogando
com o interior e com o exterior desse espaçotempo, sem linearidades, sem fronteiras. Afinal,
seus praticantes estão no mundo, vivem e fazem parte de outras tantas redes. Nem sempre,
entretanto, os praticantes do Candomblé tem conhecimento do seu potencial criador e de sua
força transformadora em suas diversas intervenções no mundo. Poucos se reconhecem autores
de mudanças e construtores de uma nova relação social com o Candomblé, que se caracteriza

1870
pela valorização da coletividade, noção que se amplia indefinidamente no ciberespaço por
meio da cultura do compartilhamento.

Scharmer (2010) inclui uma nova forma de liderança no centro do processo de mudança e
reinvenção da realidade, conforme a passagem a seguir:

(...) não me refiro principalmente a líderes individuais, mas à nossa liderança distribuída ou
coletiva. Todas as pessoas realizam mudança, apesar de suas posições ou títulos formais. A
liderança neste século significa deslocar a estrutura de atenção coletiva – nosso ouvir – em
todos os níveis” (SCHARMER, 2010, p.15).

A Teoria U, descrita por Scharmer (2010), se propõe ao fortalecimento da “capacidade


coletiva de recriar o mundo” por meio de um renovar social criativo que toma como ponto de
partida as transformações das motivações de caráter íntimo, originadas na essência do
indivíduo.

Com observações profundas, experiências em diferentes países e uma sabedoria desenvolvida


em sua experiência profissional, Scharmer (2010) identifica inovadores e criativos fatores
emergentes, derivados da mesma crise, que apontam favoravelmente para uma radical
mudança no campo social. Ressalta uma nova forma de presença e de poder, uma qualidade
de conexão diferente que “começa a crescer espontaneamente a partir e por meio de pequenos
grupos e redes sociais”, estabelecendo e dinamizando vínculos com uma fonte mais profunda
de criatividade e conhecimento, num dado campo social: ir além dos padrões do passado para
avançar rumo ao verdadeiro poder. Os desafios enfrentados hoje, entre os quais o racismo e a
intolerância religiosa em nosso país e, mais especificamente, a discriminação contra os
praticantes do Candomblé, não poderão ser resolvidos com as soluções convencionais que
tínhamos até agora, sendo necessário apostar na colaboração entre diferentes atores. "Os
problemas serão resolvidos por pessoas reais e não por processos", afirma Scharmer (2010).

A vida no campo social pode ser compreendida em termos de rede, mas não de reações
químicas, e sim, de comunicações. Redes vivas em comunidades humanas são as redes de
comunicação e também as redes educativas. Cada comunicação cria pensamentos e
significados, os quais, por sua vez, dão lugar a comunicações posteriores, e, assim, uma rede
inteira gera a si própria.

Aqui, cabe uma referência à importância de ações colaborativas para gerar transformações das
realidades, em que diferentes atores unem seus saberes e seus esforços em nome de um

1871
objetivo comum. Se o ser se considera parte do todo e se vê espalhado em infinitas conexões
dessa grande rede, ele também se enxergará como parte da solução e buscará estabelecer
parcerias com outras pessoas e grupos para conhecer o problema em maior profundidade. É
assim que muitas comunidades de povos dos terreiros ou povos de Axé, como podem ser
chamados os praticantes do Candomblé, podem traduzir e exercitar a vida coletiva,
colaborativa e transformadora por meio de suas variadas narrativas digitais, por meio das
quais falam de si, da sua fé, de sua indignação contra o preconceito, de suas tradições, de seus
Orixás, de suas lendas ancestrais, de seus desafios, de seus dilemas, do orgulho que sentem de
sua religião.

A visão complexa admite os contrários, o avesso das coisas, não os nega, não os separa e os
reúne na compreensão da realidade. A complexidade remete à multirreferencialidade, muito
mais além da tradição disciplinar que rege nossa forma de ver o mundo, de lidar com os
problemas e de fazer Ciência. A disciplinaridade, isto é, a separação dos diferentes
conhecimentos por áreas específicas e estanques, tem sua origem na formação das
universidades modernas, no Século XIX, conforme observou Morin (2007). Trata-se de uma
fragmentação do conhecimento que insiste em marcar presença na atualidade e limita nosso
potencial de solucionar problemas e mudar realidades, além de inibir ações colaborativas e
inclusivas.

A sociedade está cada vez mais cheia de vozes, ideias e culturas diversas. Portanto, não se
pode crer que todos enxergam as coisas da mesma maneira, que se pode fazer as coisas do
jeito que sempre foram feitas, pensando que o que uma pessoa faz não afeta os outros ou vice-
versa. Isso pode ser perigoso para nossa própria existência e coexistência.

A noção de rede vem despertando tal interesse nos trabalhos teóricos e práticos de campos
tão diversos como a ciência, a tecnologia e a arte, que temos a impressão de estar diante de
um novo paradigma, ligado, sem dúvida, a um pensamento de relações em oposição a um
pensamento de essências (André Parente, 1994, citado por SANTAELLA; LEMOS, 2010,
p. 7).

O prognóstico de André Parente escolhido por Lucia Santaella (2010) para abrir o capítulo de
introdução do seu livro Redes sociais digitais, se potencializa com o surgimento e com a
explosão das redes sociais da internet. Com isso, “as redes passaram também a penetrar por
todas as fibras do cotidiano” (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 7), o que equivale a dizer que
as redes são vivas e fazem parte das nossas vidas, em suas múltiplas dimensões, incluindo a

1872
forma de pensar e de fazer ciência, considerando as vivências e os saberes cotidianos,
produzidos por pessoas comuns que se implicam e transitam nessas redes, aprendendo,
ensinando, se equivocando, transformando, compartilhando, interagindo, vivendo.

Os estudos dos cotidianos se alinham e dialogam com o contexto teórico da complexidade. Na


concepção do estudo dos cotidianos não há separação entre os diversos espaçostempos e
processos de aprendizagens. O entendimento das redes educativas pressupõe a existência de
uma conexão estreita, indissociável, entre os múltiplos processos. Uma rede educativa, como
o terreiro, por exemplo, incorpora outras tantas redes como a escola, a cidade e as narrativas
digitais produzidas nas redes sociais da internet. O conjunto e a intersecção dessas redes
exerce papel formativo. “Somos esse acúmulo de ações e acontecimentos culturais cotidianos,
insignificantes, mas formadores necessários”, nos lembra Alves (2003, p. 1). A abordagem
metodológica das pesquisas do cotidiano também critica o fazer científico típico da
modernidade, “que para se “construir” teve a necessidade de considerar os conhecimentos
cotidianos como “senso comum” a serem “superados” pelos conhecimentos científicos”
(ALVES, 2003, p. 4).

A internet será considerada campo na presente pesquisa, assim como os terreiros em


momentos pontuais de conversas com os praticantes do Candomblé e também as diversas
redes educativas dentro e fora do terreiro, mais especificamente, as redes sociais na internet.
Há perspectivas metodológicas específicas a respeito da internet, como revelam Fragoso,
Recuero e Amaral (2011). No presente estudo a internet desempenha também um papel de
lugar onde os fenômenos pesquisados podem ser observados em seus registros e rastros.

A análise de redes sociais ou sites de compartilhamento de conteúdos na internet tem provado


ser um instrumento particularmente capaz para promover a compreensão de uma sociedade
que se encontra cada vez mais estruturada como uma rede e que utiliza novas interfaces e
recursos de rede. Como a pesquisa social sempre foi difícil, com remotas possibilidades de
observar a sociedade em ampla escala, a internet, nessa perspectiva, se apresenta aos
pesquisadores como um presente. Esse presente também inclui uma contrapartida que é o
excesso de interações sociais observáveis. Contudo, os pesquisadores sociais compartilham o
novo mundo dos sistemas complexos na busca da atribuição de sentido a dados altamente
complexos. A sociedade em rede nos força a trabalhar de novas maneiras e a estudar a
sociedade de formas igualmente novas (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011).

1873
A abordagem metodológica pretende mapear e dialogar com os rastros deixados pelas
narrativas digitais relacionadas ao Candomblé nas redes sociais da internet. Em uma fase mais
adiantada da pesquisa, ora apresentada como ensaio, em seu estágio ainda de esboço, deseja-
se ouvir com sensibilidade, respeito e curiosidade os significados e desdobramentos dados por
alguns praticantes da religião nos terreiros por meio de conversas. Como os praticantes do
Candomblé percebem e se relacionam com as narrativas digitais presentes nas redes sociais da
internet? Como essas narrativas digitais afetam os diversos cotidianos dos praticantes de
Candomblé e contribuem para a superação da discriminação religiosa e racial? Essas são
algumas das questões norteadoras do estudo. Há também espaço para práticas dos povos de
terreiro que se desdobram e se reconfiguram em narrativas digitais autorais na internet, uma
vez que o conceito de redes educativas não obedece linearidades e admite vários sentidos e
possibilidades criativas, incluindo noções supostamente contrárias, em uma convergência-
fluxo entre o dentro e o fora, o individual e o coletivo, o público e o privado, o revelar e o
esconder, a teoria e a prática, o ensinar e o aprender.

Em fluxo com tais questões e considerações, o presente ensaio se apoiará na exposição


comentada de narrativas digitais por meio de imagens e textos publicados em redes sociais
como o Facebook e o Youtube, sobre Candomblé. As narrativas digitais aqui apresentadas
receberão o mesmo cuidado que Alves (2003) nos ensina ao explicitar a forma com a qual
trabalha com as imagens em seus estudos, reconhecendo que os muitos espaçostempos
cotidianos em conhecimentos são criados e trocados em um processo de tessitura cultural, em
que diferentes leituras são igualmente possíveis, “que é como vem sendo chamada a entrada
de quem olha, sente e, tantas vezes, toca e cheira uma imagem” (ALVES, 2003, p. 6), tendo
em vista que imagens e narrativas digitais nos exigem a incorporação de suas diferenças e de
sua variedade.

Dialogando com imagens e outras narrativas digitais relacionadas com o Candomblé

Selecionar imagens e outras narrativas digitais presentes na internet que ilustrem e dialoguem
com as questões desta pesquisa, ora ensaio, se mostra tarefa desafiadora e árdua, uma vez que
são incontáveis os exemplos disponíveis cotidianamente. Essa produção nunca cessa e a rede
se amplia a cada clique, a cada comentário, a cada compartilhamento.

1874
Foram selecionadas algumas dessas imagens e narrativas presentes no Facebook, em páginas
temáticas públicas sobre o Candomblé e sobre a cultura africana em geral, como uma amostra
do potencial criativo e educativo dessas redes. O objetivo é apresentá-las e comentá-las nesta
seção. O acervo dessas imagens e narrativas é grandioso e se amplia a cada momento,
configurando-se como importante desafio metodológico da pesquisa em fase mais madura e
consistente não só o seu arquivamento adequado como também as formas de organizar e
analisar as informações e as referências múltiplas.

Uma das questões que a pesquisa pretende responder é como as narrativas digitais afetam os
diversos cotidianos dos praticantes de Candomblé e contribuem para a superação da
discriminação religiosa e racial? Pressupõe-se, ainda, que essas imagens e narrativas digitais
disseminam a imagem do Candomblé de forma positiva e fortalecem a identidade dos
praticantes da religião, que se sentem confiantes e orgulhosos em relação a sua fé e a suas
escolhas de vida.

1875
Figuras 1, 2, 3, 4 e 5 – Páginas públicas da Casa de Oxumarê e do Projeto Matrizes Que Fazem no Facebook 5

As primeiras figuras ilustram como a superação de preconceitos pode ser um dos resultados
atingidos pelas narrativas digitais nas redes sociais da internet, embora as leituras das
imagens, as diversas produções de sentido, dependam diretamente dos mais diferentes
leitores. Os comentários publicados relativos às imagens, contudo, demonstram o sentimento
de orgulho, de solidariedade e de pertencimento dos praticantes do Candomblé.

Por meio dessas narrativas, são difundidos também a cultura, a filosofia de vida, o respeito
pelo convívio na coletividade e o saber ancestral que fazem parte do Candomblé. Em
conversas com praticantes presentes nas figuras 5 e 6 foi possível tecer algumas novas redes

5 Disponíveis em <https://www.facebook.com/casadeoxumare>
e em <https://www.facebook.com/pages/ Matrizes-Que-
Fazem/113022635441843>. Acesso em 03 de ago. 2013.
1876
de significados, conferindo um caráter autoral a essas imagens. Na figura 5, temos o
autorretrato de uma recém-iniciada no Candomblé que vivenciou na faculdade onde cursa o
último período do curso de Pedagogia a discriminação religiosa em seu período de preceito,
que é a fase que se segue à iniciação na religião. Uma professora lhe dirigiu ofensas e
insinuou durante as aulas que sua escolha pessoal e religiosa havia sido equivocada. A autora-
personagem da foto optou pelo trancamento da disciplina e publicou a imagem na página do
Projeto Matrizes Que Fazem no Facebook, associando à imagem e a um provérbio africano
ensinado por sua Iyalorixá (Mãe de Santo), Mãe Márcia d’Oxum, que sintetiza o valor de se
respeitar as pessoas como princípio estruturante da religião. Já na figura 6, temos citação e
imagem de Mãe Márcia D’Oxum, Iyalorixá, idealizadora e coordenadora do Matrizes Que
Fazem, projeto de ações sociais e afirmativas, sediado e vinculado ao Egbe Ile Iya Omidaye
Ase Obalayo, terreiro de Candomblé situado no município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

Outras narrativas disseminam implicações políticas e engajamentos em lutas por igualdade no


sentido da conscientização dos praticantes de Candomblé, como nos exemplos a seguir:

1877
Figuras 6, 7 e 8 – Página pública no Facebook da Casa de Oxumarê

São evidentes as narrativas em defesa da liberdade religiosa e da igualdade racial, gerando


muitos compartilhamentos e aprendizagens dentro e fora das redes sociais da internet.

Há também narrativas digitais no Facebook que exaltam características do Orixá, ampliando o


conhecimento acerca da cultura e da religião.

1878
Figuras 9, 10, 11 e 12 – Páginas públicas no Facebook da Casa de Oxumarê e de Yalodê, originalidades nagô 6

Apresentar imagens reverenciadas de matriarcas na hierarquia do Candomblé com imagens


associadas a ensinamentos de sua autoria também é uma outra tática observada nas redes
sociais da internet.

6 Disponíveis em <https://www.facebook.com/casadeoxumare>
e em <https://www.facebook.com/ yalodeoriginalidades>. Acesso em 03 ago.
2013.

1879
Figuras 13 e 14 – Imagem de Mãe menininha do Gantois publicada na página do Projeto Matrizes Que Fazem
no Facebook e de Mãe Stella de Oxóssi na página pública de Yalodê, originalidades nagô

Há ainda imagens e narrativas que remetem à fusão entre Orixá e praticante do Candomblé,
revelando espaçostempos de reforço e exposição da fé, valorizando a relação próxima,
inseparável com a religiosidade, com impactos na visão de mundo. Religião, vida, Orixá,
pessoa representam aqui instâncias intimamente unidas.

1880
Figuras 15, 16 e 17 – Página pública de Yalodê, originalidades nagô

Convites para festividades nos terreiros também são compartilhados no Facebook,


convocando, de forma democrática, a participação das pessoas em momentos de celebração,
de forma visível, aberta, transparente, de uma prática religiosa que teve, por muitos anos, suas
cerimônias restritas a poucos e, muitas vezes, às escondidas pelo temor da perseguição.

Figura 18 – Página do Projeto Matrizes Que Fazem no Facebook

1881
Há também as narrativas disponíveis no Youtube. No vídeo Brincando com os Deuses, por
exemplo, a infância no Candomblé e a experiência do transe são tratados de forma leve e as
vozes ouvidas são as das próprias crianças de terreiro, com suas produções de sentido acerca
de fenômenos de difícil apreensão pela lógica da modernidade e vivências íntimas com o
sagrado.

Figura 19 – Vídeo-documentário Brincando com os Deuses no Youtube7

Muitas são as leituras possíveis dessas imagens e narrativas digitais. Seu verdadeiro sentido
poderá ser compreendido ao se conviver e ao se conversar com os praticantes do Candomblé
nos próprios terreiros e em outros espaçostempos.

(Co)responsabilidade do povo de Axé em sua itinerância pelas redes sociais na internet

Além de se relacionar com a divulgação de uma imagem positiva e sem preconceitos acerca
do Candomblé, as narrativas digitais em redes sociais da internet podem trazer questões e
dilemas quanto aos usos que expõem rituais secretos e exclusivos para os iniciados. Há
também publicações feitas por praticantes de segmentos diferentes da religião contendo
críticas que indicam rupturas e discriminações dentro do Candomblé. Como delinear os
limites entre o que pode ou não ser revelado? Há controle possível das imagens e narrativas
que circulam na internet? Sabe-se que tal controle é inviável e incoerente com a própria noção
de internet e com a cultura do livre compartilhamento. É importante reconhecer essas tensões

7 Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=9tzDZpOkHB8> Acesso em 04 de jul 2013.


. .
1882
e conflitos no tecido dessas redes educativas e também como pauta legítima de diálogos e
debates nessas redes.

Nesse sentido, uma publicação recente na página pública de um dos mais importantes e
tradicionais terreiros de Candomblé do país no Facebook, convoca os praticantes da religião,
chamados no post de Povo do Axé, a zelarem pelo conteúdo de suas postagens nas redes
sociais, (co)responsabilizando-os pelas possíveis consequências danosas de tais atos.

Povo de Axé, cuidado com que postamos nas redes sociais

O advento da internet possibilitou uma maior aproximação entre as pessoas. Mesmo em


continentes distintos é possível manter diálogos e ter a sensação que estavam lado a lado.
Mas, como tudo existe dois lados de uma mesma moeda. A nossa religião passou a ser
ainda mais exposta e por consequência mais perseguida. Cabe a nós, povo de Axé, ser mais
cauteloso e cuidadoso com o que postamos, com as informações que estão sendo
divulgadas, pois determinados dados, ao invés, de nos fortalecer, será utilizado contra nós.
Nossas cerimônias internas, rituais sagrados, não devem ser expostos, uma vez que fogem
da compreensão dos leigos.

Gostaríamos de aproveitar e fazer um apelo aos usuários das redes sociais, que mesmo com
boas intenções, se apropriam dessas imagens e as expõem apontando os erros e
denunciando a falta de conduta religiosa dos personagens em questão. Temos a certeza que
esta conduta não contribui com nossa religiosidade, muito pelo contrário, fomenta uma
imagem depreciativa dos nossos rituais para sociedade.
Mesmo ciente de ter visualizado uma postura equivocada ou ter presenciado um ritual que
não segue os preceitos religiosos, não faça a crítica negativa. Ao invés disso, poderíamos
orientá-las, criarmos campanhas resgatando os princípios e conduta religiosa. Vamos criar
páginas elogiando as boas ações e exaltando os nomes das pessoas hierárquicas e de boa
conduta. Pense nisso!!!

Somos responsáveis pela imagem da nossa religião. (Post de 14 de agosto de 2013, na


página pública da Casa de Oxumarê no Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/casadeoxumare>. Acesso em: 17 de agosto de 2013).

Nessa perspectiva, a visibilidade libertadora das narrativas digitais relacionadas ao


Candomblé pode assumir tons de vigilância punitiva. Lidar com questões desse nível de
complexidade é desafio compartilhado por praticantes do Candomblé e por pesquisadores da
relação entre religião e ciberespaço. A cultura do cuidado, típica do viver em comunidades de
Candomblé, cuidando de si e do outro, aponta caminhos de novas análises e leituras.

1883
Considerações finais

Há ainda um longo percurso a ser percorrido na delimitação do escopo da pesquisa e,


sobretudo, na análise das narrativas presentes na internet e nos terreiros, produzidas pelos
praticantes do Candomblé. Por ora, cumpriu-se, ainda que parcialmente, o objetivo de expor a
riqueza do campo e a relevância do estudo para a compreensão das redes educativas
relacionadas ao Candomblé no contexto da cibercultura. Muitas são as imagens e narrativas
digitais que conferem visibilidade à religião e contribuem para movimentos contra a
discriminação religiosa.

Retornando à fonte de inspiração da pesquisa e do presente ensaio, Stela Guedes Caputo, foi
em seu perfil no Facebook que foi localizada, em um post público, a narrativa escolhida para
encerrar este texto. Nela, Stela rememora o início da sua pesquisa em construção perene e
materializada no livro Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de
candomblé, em vínculos de afeto que a uniram às crianças de Candomblé, à pesquisa, à
religião. Em um dos trechos, ela afirma que “quem escreve com amor e respeito cria coisas
além do texto”. Trata-se de uma homenagem carinhosa à Tauana dos Santos, hoje com 23
anos, cuja imagem aos dois anos estampa a capa de seu livro.

Figura 20 – Perfil de Stela Guedes, post público no Facebook de 04 de maio de 2013

Trata-se também do testemunho da autora acerca das mudanças em sua própria vida, na forma
como vê o mundo, se relaciona com as pessoas e com a vida, completamente imbricada com

1884
sua pesquisa. É no respeito às pessoas e na valorização dos vínculos de afeto que sua pesquisa
se pauta. Dessa forma, a autora sempre foi acolhida nos terreiros e hoje suas narrativas tomam
as redes sociais, apontando novas formas de fazer ciência, contribuindo para a alegria e o
orgulho dos praticantes de Candomblé, em especial, as crianças, e também inspirando novas
pesquisas e a produção de novas imagens do Candomblé, feitas com respeito, carinho e
espalhando-se sem limites, em uma espécie de doação-presente, unindo-se a tantas outras
imagens e narrativas que transitam no ciberespaço.

Referências

ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação, número 23,
maio/junho/julho/agosto, 2003.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças
de Candomblé. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede - a era da informação: economia, sociedade e


cultura; v. 1. São Paulo: Paz e Terra. 6ª. ed., 1999.

LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia


planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

KAHANE, Adan. Como resolver problemas complexos. Editora Senac, 2008.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina. 3ª edição, 2007.

FRAGOSO, S.uely; RECUERO, Raquel.; AMARAL, Adriana. Métodos de pesquisa para


internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.

SANTAELLA, Lucia; LEMOS, Renata. Redes sociais digitais: a cognição conectiva do


Twitter. São Paulo: Paulus, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.


São Paulo: Cortez, 1995.

SANTOS, Rosemary S.; SANTOS, Edméa Oliveira. Cibercultura: redes educativas e práticas
cotidianas. Revista Eletrônica Pesquiseduca, pp. 159-183, v. 04, n. 07, jan-jul 2012.

SCHARMER, Otto. Teoria U: como liderar pela percepção e realização do futuro emergente.
Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2010.

1885
1886
O marketing eletrônico como instrumento de manipulação da fé

José Wagner Ribeiro8

Introdução

O culto tem início com a chegada do pastor Jaime, após algumas frases de boas vindas aos
fiéis que lotam o templo, inicia-se um importante processo de salvação (como foi por ele
mesmo caracterizado o ato). O pastor começa a exorcizar uma pessoa, que sob seu conceito
está possuída por forças do demônio por ser homossexual. O processo ocorre durante 15
minutos sob gritos de “Sai, Satanás, deste corpo”. Só então o pastor acrescenta que finalmente
a pessoas está curada, “voltou a ser gente”.

Ao contrário do que muitas pessoas poderiam pensar, este culto não foi assistido em nenhuma
igreja, e sim veiculado no dia 20 de setembro de 2002, às 08:30h da manhã, no canal Rede
Record de Televisão. Faz parte de uma vasta programação religiosa transmitida pelo canal. A
Rede Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, tornou explícito o problema da
vinculação entre os meios de comunicação e a religião. Nos dias atuais, a igreja tem se
apresentado como um promissor empreendimento, e os líderes religiosos são em sua maioria
verdadeiros empresários da fé, com capacidade administrativa de um eficiente profissional de
marketing. Foi exatamente com este propósito que o Bispo Edir Macedo resolveu adquirir a
concessão da Rede Record de Televisão em 1989.

Apesar de buscar manter a grade de programação original da emissora, os programas


religiosos também tiveram maior espaço na Record. Como pudemos observar, antes eram
transmitidos apenas de madrugada. Agora, têm início às 21:30h, prosseguindo até às 09:00h
da manhã. O programa Fala que eu te escuto, um dos carros-chefe da emissora, transmitido no
início da madrugada, mescla debates ao vivo e simulações gravadas. Participam do debate
pessoas de religiões diversas e atividades variadas, como médicos, advogados, psicólogos,
professores e a artistas. O telespectador pode participar. Durante duas horas, oito telefonistas
atendem ao público, que ligam de todo o Brasil. As simulações são feitas por atores, com
formato peculiar relativo ao assunto que é debatido no programa do dia. O programa tem
conquistado o público de uma forma geral, segundo pesquisas realizadas.

8
Professor P.h.D. na UFAL. Coordenador do NEP em Comunicação e Informação (NEPEC). Contato:
josewagnerribeiro@bol.com.br.

1887
Na prática, a Rede Record de Televisão, na qual está vinculada a Rede Família, de Edir
Macedo, tem hoje um patrimônio invejável. São trinta e nove emissoras, entre próprias e
afiliadas, somando 247 retransmissoras em todo o país. Todas utilizam equipamentos de
última geração, como o sistema digital, por exemplo. Ela utiliza recursos semelhantes aos da
Rede Globo, como a edição em sistema digital. A Rede Record é considerada uma das
melhores televisões do mundo em termos de agilidade visual.

Desde os primeiros anos após ter sua concessão cedida para a Igreja Universal do Reino de
Deus, a Rede Record apresentou, de imediato, características básicas da Igreja Eletrônica,
espelhou suas técnicas e produções nos valores comerciais da indústria televisiva.
Trabalhando com a trilogia: fé, salvação e cura. Vendendo a salvação, os televangelistas
prometem na TV a cura de doenças, ascensão social, a paz de espírito, discutem
homossexualidade, brigas de família e drogas, tudo dentro de estratégias de marketing que
visam atingir ainda mais fiéis (CAMPOS, 1988, p. 23).

Os programas religiosos funcionam para aumentar o envolvimento financeiro e simbólico dos


espectadores. Durante o intervalo dos programas, pode-se conferir o que há de mais novo em
produtos evangélicos. Pode-se comprar, através de pedidos pelo telefone, CDs, assinaturas de
revistas, livros, entre outros.

A Rede Record utiliza sua verdade bíblica através dos fiéis, aumentando ainda mais a
credibilidade de sua teologia. Ao longo dos programas e cultos, os pastores pregam que só é
feliz quem faz parte da IURD. As pessoas aparecem dando depoimentos, dizendo-se livres
dos mais diversos problemas, sejam eles emocionais ou até mesmo financeiros. A família tem
sido o assunto mais discutido pelos programas religiosos, muitos têm programações
específicas para casais e crianças, mas estão cada vez mais sendo moldados para os diversos
tipos de espectadores, assim como programas musicais gospel, voltados para adolescentes. A
família na Igreja Eletrônica é sempre representada dentro dos clássicos padrões de hierarquia.

A religião está hoje disponível em várias televisões de qualquer país, nos mais diferenciados
sistemas de transmissão, desde a TV aberta, por cabo ou antenas parabólicas. Os aspectos da
religião, que é mostrada na televisão, seguem modelos desenvolvidos em filmes, rádio e
ficção, tudo com a intenção de aumentar a audiência.

Falamos anteriormente em Igreja Eletrônica, modelo de culto utilizado principalmente pela


IURD, consideramos pertinente explicar melhor este fenômeno que se fortaleceu nos Estados

1888
Unidos, a partir das décadas de setenta e oitenta, associado ao crescimento das congregações e
denominações de evangélicos. Sabemos que os programas religiosos estão disponíveis na TV
desde o seu surgimento, só antes eram apenas com o objetivo de manter a rede no ar.
Algumas vezes eram também veiculados por algumas emissoras, programas religiosos pagos,
com o propósito de tornar popular alguma religião. Depois do aumento da popularidade da
televisão os programas religiosos foram perdendo cada vez mais seu espaço, já que a maioria
das igrejas utilizava o espaço através de caridade das emissoras.

O primeiro homem a utilizar a TV em um programa religioso foi o pastor Billy Grahan.


Percebendo que seus sermões empolgavam as massas, o pastor começou a utilizar a televisão
como uma extensão dos cultos, inaugurando assim aquilo que mais tarde seria denominado de
Igreja Eletrônica. O culto eletrônico do Dr. Grahan deu início a uma onda de imitadores nos
Estados Unidos e no resto do mundo, fazendo crescer o movimento neopentecostal dentro e
fora do território americano. Auxiliado por seus assistentes, o pregador era anunciado diversas
vezes antes de entrar em cena, causando expectativa nos espectadores, sua oratória era sempre
cheia de emoção e carisma para prender ainda mais a atenção de quem o assistia.

Já nos anos sessenta, algumas igrejas evangélicas começaram a adquirir suas próprias redes de
televisão, visto que notaram o quanto era rentável para o aumento de sua popularidade. A
característica mais evidente que diferencia a Igreja Eletrônica são os líderes carismáticos
(televangelistas), que na maior parte das vezes acabam sendo considerados verdadeiros astros
pelos fiéis. A transmissão da Igreja Eletrônica representa uma realidade cultural em particular,
representa um jogo específico de símbolos e valores para seus telespectadores.

Antes, a Igreja Eletrônica sobrevivia através de contribuições financeiras dos fiéis. As


contribuições eram feitas explicitamente por meio do telefone. Com o passar do tempo e a
orientação das consultorias de marketing, as estratégias de mercado foram mudando. Hoje, as
emissoras oferecem produtos como fitas, vídeos, livros etc. como forma de angariar fundos.

O crescimento da Igreja Eletrônica está nas soluções simplistas, no fortalecimento da fé, na


esperança e na diversão. Os espectadores podem até fazer seus pedidos relacionados a
necessidades físicas, espirituais, financeiras, amorosas, e tudo isso podia ser ouvido no ar. É
comum até mesmo os fiéis acompanharem rituais como o da benção da água, onde se coloca
um copo com água na frente da TV e este é abençoado pelo pastor; o fiel que bebe da água
poderá até mesmo curar enfermidades. Essa e outras técnicas atraem cada vez mais
telespectadores, que sentem atraídos pela facilidade com que a salvação entra em seus lares.
1889
O sucesso da Igreja Eletrônica no Brasil estourou a partir de 1992. Além da Rede Record, da
Igreja Universal do Reino de Deus, outra emissora também agrega as características da Igreja
Eletrônica: a Rede Vida, uma emissora UHF, da Igreja Católica. Apesar de termos a presença
de religião em quase todas as emissoras do país, estas duas são as que mais possuem
características da Igreja Eletrônica. A maior expressividade em termos de disputa de
audiência, de estratégias de marketing e de rivalidade está entre a televisão dos católicos e dos
evangélicos da IURD.

Preocupado com o aumento da popularidade da Rede Vida, o bispo Edir Macedo promete
ainda implantar mais um canal exatamente no estilo da Igreja Eletrônica; ela já está no ar em
Salvador e em dezoito municípios do sul da Bahia, sendo sintonizada também no Estado do
Rio Grande do Sul. Batizada de Rede Família, a emissora tem a proposta de trabalhar somente
com programas religiosos. Segundo líderes da Igreja Universal, brevemente ela ficará no ar 24
horas. Por enquanto, em caráter experimental, a emissora está com dezoito horas de
programação.

O maior desafio para Edir Macedo, como líder da Igreja Eletrônica no Brasil, tem sido driblar
o crescimento dos carismáticos católicos, que têm um tipo de comportamento parecido com o
dos evangélicos, e acima de tudo fazer crescer ainda mais a popularidade de sua teologia
através da televisão.

A Folha Universal

A agressiva estratégia de ocupação da mídia pela IURD inclui ainda a implantação de um


jornal que pudesse estampar as notícias da igreja. Batizada de Folha Universal, o impresso
tem periodicidade semanal, sua tiragem chega a atingir 1.400 exemplares com circulação
nacional.

É claro que essa conquista custou à IURD mais investimentos, já que o jornal sobrevive
basicamente às custas da igreja e sua distribuição é gratuita e a periodicidade é quase nula,
quanto existe é feita apenas por empresários envolvidos com a IURD. A Folha Universal é
produzida por uma editora pertencente à própria igreja, que trabalha também com publicação
de livros e revistas evangélicas.

1890
Além de ter uma linha editorial voltada para o engrandecimento da IURD, o jornal busca
ainda englobar temas atuais. Os artigos e matérias são bem elaborados, e sua boa diagramação
o torna ainda mais atraente. Suas manchetes sempre são ilustradas com fotos de ótima
qualidade. Podemos observar que os aspectos positivos da Folha Universal não acabam por aí,
já que não se caracteriza como a maior parte dos outros veículos religiosos impressos, que
sempre utilizam uma diagramação pesada e com poucas cores. A Folha Universal trabalha
com material de boa qualidade e é quase toda colorida.

É dividida em dois cadernos. O primeiro caderno traz algum acontecimento que engrandecem
a IURD, falam principalmente da sua expansão no Brasil e no mundo, assim como as matérias
publicadas no dia 17 de dezembro de 2002, edição 558, Excursão levará turistas de santos e
Porto Alegre a Irecê e Mais de 10 mil pessoas estiveram presentes à inauguração da Igreja
Universal do Reino de Deus em Alcântara. O semanário enfoca que as ações da igreja são
acima de tudo um meio de levar a palavra de Deus até todos. A manchete é sempre voltada a
explicar algum fato ocorrido sob o ponto de vista da teologia iurdiana. Como exemplo
podemos tomar o caso Pedrinho , que sob o aspecto da IURD só aconteceu devido à falta de
religiosidade que aflige os brasileiros. Outros tópicos são ainda abordados no primeiro
caderno, assim como o milagre da fé, saúde, educação e cidadania. Já o caderno dois é mais
variado, os temas nem sempre possuem conotação religiosa específica; buscam sempre falar
sobre relacionamentos familiares, problemas sociais e política.

O mais interessante é que todas as publicações são recheadas de matérias de testemunhos de


pessoas que tiveram suas vidas melhoradas depois de entrarem para a IURD. Como exemplo
observamos a matéria Força da confiança em Deus, publicada também na edição 558, que
conta a história de uma mulher identificada como Carmem, que tinha dificuldades para
engravidar, mas após muita determinação e apoio espiritual da igreja teve o filho tão desejado.

Os testemunhos são por vezes relatos de suspensão de fenômenos como alucinações, delírios,
uso e dependência de diversas drogas, do restabelecimento de laços familiares, afetivos e,
principalmente, de um reencontro de sentido da vida. São biografias que encontram, de uma
certa forma, um espaço dentro da Folha Universal, para serem elaboradas e publicadas.

Outro ponto forte da Folha Universal é a coluna dedicada à opinião do leitor. Desta forma o
veículo pode se mostrar como sendo mais aberto ao público, o que aumenta ainda mais sua
credibilidade. No entanto, o que mais emociona os fiéis é poder acompanhar os artigos
assinados pelo bispo Edir Macedo e outros líderes da igreja, como o bispo Marcelo Crivela.
1891
Os fiéis acreditam ter através da Folha Universal um meio para escutar o divino, já que os
seus líderes carismáticos são vistos como pessoas a serviço de Deus. Os que o fazem acham
que dessa forma conseguem oferecer, de certa maneira, uma terapêutica para seus membros
que contribui com algum resultado positivo em suas vidas.

Pastor on-line

Para conquistar cada vez mais um público heterogêneo, a Igreja Universal utiliza uma
estratégia de marketing que compreende a ocupação da mídia em suas diversas formas:
televisão, rádio, jornal, chegando até a internet.

Os fiéis agora podem navegar em um portal eletrônico totalmente criado para o mundo
evangélico. Basta apenas acessar www.arcauniversal.com.br e conhecer o mundo iurdiano
através da tela do computador. Trata-se do maior portal evangélico da América Latina.

Os apelos espirituais começam a aparecer assim que a tela de início do site é baixada. Um
banner chama a atenção de quem navega, ostentando a mensagem de salvação típica da
IURD: procurando uma luz no fim do túnel? Universal do Reino de Deus! Os apelos são em
sua maioria ocultados através de links interativos, assim como o pastor on-line, que se diz o
amigo fiel de todas as horas, no entanto de todas as vezes que pudemos navegar no site nunca
encontramos nenhum pastor on-line, mesmo sendo informados que o serviço estaria
disponível 24 horas por dia. Além das pesquisas interativas, que em sua maioria já expõem
perguntas e respostas mais coerentes, ou então limitam o visitante a das respostas que
agradem a IURD.

Com grande destaque na página principal, a Arca News dispõe diariamente de informações
nacionais, internacionais, esportivas e religiosas. É importante ressaltar que é preocupação da
Universal, como não poderia deixar de ser, que todas as matérias disponíveis no site
enfoquem o lado bom e humano da igreja por meio de projetos sociais, eventos e
principalmente ajuda espiritual.

O portal foi elaborado para atingir o mais variado público. Existe links direcionados às
crianças, mulheres e jovens. Toda semana o internauta pode conhecer a capa do jornal Folha
Universal e acompanhar as matérias que são distribuídas na Folha Principal, que engloba os

1892
links Milagres da fé, Nacional, Educação e Cidadania; e Folha 2, onde as matérias giram
sempre dentro dos temas Política, Saúde, Esportes e Variedades.

Ao longo do Arca Universal se pode observar as características marcantes da IURD: salvação,


cura e fé. A salvação estimula a conversão dos internautas que ainda não fazem parte da
Universal. Procura solucionar, com um simples click do mouse qualquer problema pessoal. A
fé está ligada tanto à cura quanto à salvação, ou seja, é através dela que se consegue alcançar
a prosperidade.

A teologia da Universal é reforçada como sendo algo real, verdadeiro e que dá certo por meio
dos testemunhos de pessoas que freqüentam a IURD e que de alguma forma mudaram suas
vidas. Ao visitar o site no dia 17 de dezembro de 2002 encontramos os seguintes testemunhos:

A força da confiança de Deus: Carmen teve dificuldades para engravidar, mas após muita
determinação teve o filho tão desejado;

Maravilhas no Templo da Glória do Novo Israel: dentre as recordações de sua infância,


Carla Patrícia Alves da Silva, 21 anos, estão as constantes visitas à Igreja Universal, que
fazia acompanhada de sua mãe em transformação no interior;

A maior benção que Taísa Marins Trocado recebeu na igreja Universal foi o encontro que
teve com Deus.

Estratégias para arrebanhar fiéis em um país onde o número de evangélicos aumenta a cada
dia.

Aleluia FM – 100,3 Megahertz

O rádio é um dos meios mais antigos de comunicação, e sabendo da sua popularidade a Igreja
Universal do Reino de Deus possui hoje cerca de 30 emissoras espalhadas em todo o Brasil.
Uma delas, a rádio Aleluia, freqüência 100,3, localiza-se em Maceió há cinco anos. Todas
possuem o objetivo de disseminar a teologia da IURD e converter ainda mais fiéis.

Com o intuito de conhecer o funcionamento da rádio Aleluia, realizamos uma entrevista com
um ex-funcionário, André Muricy de Medeiros, que trabalhou durante um ano e meio na
empresa. Pudemos, através desta iniciativa, entender melhor como se deu o processo de
implantação da rádio em nossa cidade. Além de que tivemos a oportunidade de enriquecer
nossa pesquisa.

1893
O rádio é utilizado principalmente como um meio que pode atravessar fronteiras, e por atingir
um público bem mais diversificado. Um único pastor pode evangelizar milhares de pessoas ao
mesmo tempo sem ao menos sair de dentro dos estúdios. Observamos que a forma de fazer
programas ao vivo é uma das características das emissoras evangélicas. No momento que um
ouvinte liga para um programa o pastor tente de alguma forma convertê-lo, mostrando todas
as vantagens de se fazer parte da IURD.

O público alvo dos programas das rádios são sempre pessoas atormentadas por algum tipo de
problema, em sua maioria são pessoas de classe média baixa que procuram de alguma forma
tornar a vida mais fácil de ser aceita. Os chavões fazem parte do diálogo entre o locutor e o
ouvinte para assegurar a audiência. O depoimento de pessoas que tiveram a vida mudada após
a entrada na IURD torna ainda mais sedutor a conversão dos ouvintes. O locutor utiliza
situações de angústia, também chamada de fraqueja, uma brecha para entrar na vida de cada
um trazendo a salvação.

Os programas nunca são de alguma forma democráticos, apenas são postos no ar depoimentos
que interessem a IURD. Já que sobrevivem exclusivamente através da igreja, senda esta a
grande diferença entra as rádios comerciais e as evangélicas.

Considerações finais

Concluímos que a expansão da Igreja Universal do Reino de Deus em Maceió está


intimamente ligada ao uso intensivo da mídia como uma ferramenta poderosa na conquista
dos fiéis. A tentativa de adaptação desta igreja em acompanhar as mudanças na sociedade, em
especial dos processos de comunicação, tem sido realizada com afinco, visto que inúmeros
tipos de investimentos estão sendo feitos para que possa da melhor forma possível transmitir
suas mensagens religiosas e assim convencer ainda mais as pessoas de que a religião pode ser
algo pleno.

A Igreja Universal do Reino de Deus tornou-se um exemplo do sucesso através do emprego


de técnicas de marketing; faz parte de um movimento neopentecostal, que se propaga a cada
dia em nossa sociedade. O grande estímulo da IURD é que o campo religioso está se tornando
concorrencial, facilitando o surgimento de instituições ágeis como ela, o que acarreta uma
acirrada disputa, seja pela audiência de programas religiosos ou até mesmo pela freqüência
em cultos. Desta maneira, ela precisa estar sintonizada com as necessidades e desejos de um
1894
público, formando assim seu próprio mercado, empregando estratégias de marketing e de
propaganda, que podem ser observadas através de sua teologia, administração e organização.
A IURD está totalmente baseada em um mercado capitalista, onde o principal objetivo é
atender as necessidades sociais dos seres humanos.

Chegamos a esta conclusão por meio das observações e análises dos programas de televisão
produzidos pelas lideranças da IURD e exibidos diariamente nos canais da TV Record. Entre
as principais características observadas nos programas veiculados, notamos que sempre é
mostrado que existe uma facilidade de acesso da população à religião. O contato com Deus
passou a ser feito de maneira simples e objetiva. O pastor, que também assume o papel de
apresentador é o mediador entre os mortais e Deus. Para a teologia iurdiana a religião
desempenha um papel fundamental para o homem. Assim como o atendimento médico é um
serviço essencial, a religião, sob seu ponto de vista, passou também a ter um papel igualmente
essencial para a humanidade.

Entre as características que observamos na IURD, percebemos que ela sempre sugere um
meio de salvação dos problemas sociais, sejam eles de ordem física, emocional ou até mesmo
financeira. Um suposto canal de comunicação entre o público massificado e as lideranças
iurdianas sugere uma impressão de democracia. Outro artifício muito utilizado diz respeito ao
calendário de eventos da igreja. Variando de temas ou épocas especiais, a programação
semanal é muito valorizada na mídia da igreja. Cada dia da semana foi destinado para sanar
um tipo de problema social. Ora, todos desejam prosperidade, saúde, amor, e desta maneira
são induzidos a acompanhar todas as correntes sugeridas. Isto faz com que diariamente os
cultos sejam freqüentados e também diariamente os fiéis possam dar suas contribuições
financeiras.

Vendendo basicamente a salvação, prosperidade e cura, ela atinge patamares surpreendentes


de crescimento em um país que há alguns anos era considerado por sua maioria como sendo
católico. Hoje já são mais de três milhões de fiéis que freqüentam cerca de dois mil templos.
É exatamente para essa massa de pessoas que a IURD avança ainda em investimentos, sejam
eles direcionados para compra de emissoras de rádio (ao todo já são 30 no Brasil), aquisição
de canais de televisão ou mesmo ampliação e construção de seus templos.

É óbvio que a IURD oferece explicações diferentes para o seu sucesso. Segundo seu líder
supremo, bispo Edir Macedo, o sucesso da IURD é fruto do Espírito Santo. Segundo ele, não
se trata de marketing bem feito, boa administração, nem qualquer outra razão humana. A
1895
IURD investe ainda em projetos sociais, a fim de desenvolver um marketing institucional.
Esta iniciativa visa melhorar a imagem da igreja que sofre com as críticas da mídia. Com os
projetos, a IURD passou a sentir mais confiança e notou que pode realmente ser uma presença
expressiva na sociedade.

Sentimos que seria por demais elementar estabelecer que a IURD seja vista apenas como uma
seita vendendo “milagres”. Sabemos que seu crescimento se deu através de estratégias de
marketing, que incluem a solução imediata dos problemas sociais, motivo este que seduz
principalmente os menos esclarecidos, mas não exclui sob nenhum aspecto os ditos mais
esclarecidos. A necessidade de provar que realmente a vida dos fiéis será mudada após a
conversão, fez a IURD lançar mão de testemunhos em todos os seus programas televisivos e
radiofônicos. As histórias contam sempre casos de pessoas que sofriam e tiveram suas vidas
melhoradas. Após a confirmação do “milagre”, da libertação do sofredor, o pastor convida
essas pessoas a buscar um templo da IURD para iniciar sua caminhada de libertação.

Assim, partindo de um ponto de vista psicológico, tivemos que lidar com os fenômenos
denominados de curas e salvação que os membros da IURD realizam. Chegamos à conclusão
de que seria precipitado negar totalmente este fenômeno, pois sabíamos que a cura poderia
simplesmente ser algo passageiro e existir apenas no imaginário dos fiéis. Um resultado mais
profundo sobre este fenômeno só poderia ser levado adiante por meio de testes e
acompanhamentos constantes, além de exames médicos que poderiam ser realizados nas
pessoas que diziam realmente estarem curadas de algum problema de saúde. Além do que
vimos na IURD relatos de pessoas que realmente tiveram suas vidas melhoradas, pois
encontraram na religião um consolo para sair de vícios, e também pessoas que restabeleceram
laços familiares e afetivos.

Compreendemos que a IURD não está unicamente envolta em teatralização dos fatos, pois
parte (pequena se comparada à quantidade de fiéis) dos testemunhos são aparentemente
verídicos. Claro que não sabemos até que ponto existiu a interferência da IURD. Isso só seria
possível de ser estudado se tivéssemos também acompanhado a vida anterior das pessoas
entrevistadas.

Concluímos ainda que será determinante para a continuidade do crescimento da IURD uma
possível reformulação da fórmula iurdiana, que promete a cura, a salvação, exorcismo e
prosperidade, como solução para todos os problemas. Cito porque várias outras correntes
neopentecostais já estão empregando esta mesma fórmula de crescimento. Algumas não
1896
sabem administrar tão bem a relação entre a religião e o dinheiro como a IURD, mas outras
estão se tornando verdadeiras rivais na arregimentação de fiéis. Como exemplo temos a Igreja
Católica que através do movimento carismático tem se tornado uma grande concorrente de
Edir Macedo.

Sabemos ainda que o nosso estudo não poderá parar por aqui, e sim deverá servir de alguma
forma para embasar outras pesquisas mais aprofundadas sobre o fenômeno neopentecostal.

Referências

BERMA, George. O marketing na igreja. Rio de Janeiro: VUPERP, 1991.

BORDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas


temporais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

CAMPOS, Lenildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

1897
1898
O que dizem os evangélicos sobre o incêndio na boate Kiss: lazer e
(in) tolerância cultural

Waldney de Souza Rodrigues Costa9

Introdução

No desenvolvimento da pesquisa para a produção da minha dissertação de mestrado, tenho


percebido, cada vez mais, que o âmbito do lazer é profícuo para se pensar algumas
articulações da religiosidade dos evangélicos. Neste texto pretendo mobilizar algumas
constatações minhas, ainda que não possam ser exauridas devidamente neste espaço, através
das quais percebo a articulação de um conjunto de significações do imaginário10 evangélico
sobre lazer. Através destas significações quero propor uma reflexão sobre como surgem
algumas formas de pensar que se apresentam intolerantes.

Para esta tarefa proposta, quero fundamentar aminha análise em torno de um fato ocorrido
este ano no Brasil que gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se
pronunciarem sobre o caso, o que possibilitou esta análise. Trata-se da tragédia que ficou
conhecida como o incêndio da boate Kiss. Então, este trabalho visa problematizar declarações
e discursos de evangélicos sobre o ocorrido. Analisando falas coletadas em pesquisa
etnográfica e em sites e redes sociais, o objetivo principal é apresentar como, apesar de vários
destes sujeitos se envolverem em atividades de lazer aparentemente semelhantes a que estava
acontecendo na boate, algumas características do evento em que se originou o incêndio são
vistas como pecaminosas e condenadas.

O texto será dividido em quatro partes diretamente ligadas ao seu título, pretendendo com isso
afunilar o assunto sobre o qual quero tratar neste espaço. Inicialmente, discuto a possibilidade
de falarmos em “evangélicos”, na segunda parte descrevo um pouco do que ocorreu no
incidente. Na parte seguinte problematizo brevemente o uso do termo lazer e ao final, trabalho
9
Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012)
pela mesma instituição e em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na
área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. Contato:
dnney@ibest.com.br.
10
Por imaginário tenho entendido um conjunto de significações imaginárias (CASTORIADIS, 1982) que
agrupadas, constituem um conjunto através do qual o sujeito lê a realidade definindo suas formas de pensar e
agir, ou seja, permeia sua cultura. Nos termos de Gilbert Durand (1989), estas significações são construídas
através de um “trajeto antropológico”.
1899
algumas significações operadas pelos evangélicos em torno deste tipo de vivência para tentar
explicar um pouco de como o imaginário lhes possibilita formas de pensar que geram este
tipo de intolerância cultural, apesar de que, de forma bem ambígua, eles se apresentam
tolerantes para com vivências aparentemente semelhantes.

O que dizem os evangélicos?

De imediato, eu deveria pedir desculpas pelo título do texto. Quem conhece um pouco do
campo religioso evangélico sabe que é muito difícil afirmar o que os evangélicos dizem sobre
qualquer coisa. Como bem acentuou a professora Miriane Frossard (2013, p. 46), ao pesquisar
o turismo religioso evangélico a heterogeneidade desta vertente religiosa impossibilita
generalizações. Aliás, uma coisa a se perguntar é a que grupo religioso podemos chamar de
evangélico.

Sem querer entrar em pormenores desta discussão, indico ao leitor apenas um capítulo de um
livro publicado recentemente em que Martin Dreher (2013) em que ele explica como é
possível entender a relação entre protestantismo e o que se chama genericamente de
“evangélicos” aqui no Brasil, mas o fato é que, desde o período de implantação do
protestantismo de missão no Brasil, os protestantes se referiam a si próprios como evangélicos
(MENDONÇA, 2005). Dentre os motivos para isso, Rubem Alves afirma que era “para se
distinguirem dos papistas.” (ALVES, 2005, p. 12). Ao que parece, este termo, que fazia
referência ao papa, era utilizado na época para se referir aos missionários católicos.

Pois bem, o mesmo Rubem Alves afirma que o que se chama de evangélico hoje, nada tem a
ver com o protestantismo clássico (ALVES, 2005, p.12). Mas, a despeito disso, me parece ser
a opção mais plausível a de Zwinglio Dias quando, ao se referir aos pentecostais
especificamente, afirma que devido ao seu “inegável parentesco com determinadas expressões
do Protestantismo de Missão, não temos como não considera-los como parte da grande
família do protestantismo latino-americano.” (DIAS, 2008, s/p).

Deste ponto de vista, ainda que ajam muitas rupturas, no decorrer do “trajeto antropológico”
(DURAND, 1989) das culturas que deram origem a estas cisões, é possível que algo do
imaginário anterior tenha permanecido no imaginário emergente. No decorrer do texto, o

1900
leitor perceberá que acabo adotando esta posição e isso muito tem a ver com o tipo de
pesquisa que tenho efetuado.

Minha pesquisa tem sido produzida com viés antropológico de caráter etnográfico e o grupo
que pesquiso está inserido em uma igreja que tem passado por um forte crescimento nos
últimos anos. Trata-se de um grupo composto por uma maioria de jovens entre quinze e vinte
e cinco anos de uma grande igreja batista em Juiz de Fora, cidade situada na zona da mata do
estado de Minas Gerais. Este grupo por nome Fixados em Cristo possui uma média de
trezentos jovens ativos, segundo um de seus membros informou, e promove vários eventos
para jovens. Destaquei em outro trabalho, já citado (COSTA, 2013), vários eventos de lazer
que ocorreram entre 2012 e 2013 sob sua organização.

Este grupo pertence a uma das mais antigas igrejas evangélicas em Juiz de Fora. Nesta cidade
há varias igrejas que reivindicam em seus nomes a identidade batista, mas é difícil precisar
qual está vinculada a que convenção. Há também algumas que não são vinculadas a nenhuma.
Neste cenário batista juiz-forano, a Primeira Igreja Batista de Juiz de Fora – MG (PIBJF)
chama a atenção por tratar-se de uma instituição eminentemente histórica, mas que tem
passado por algumas transformações recentes que parecem ser de grande relevância. Segundo
os dados de seu site oficial, foi uma igreja evangélica pioneira no Estado de Minas.
Comemorando neste ano (2013) 86 anos de presença na cidade, a instituição já passou por
várias reorganizações, especialmente na década de 1950. Mais recentemente, além das
mudanças administrativas, a instituição passou por transformações de ordem espacial.

Ainda segundo o site da igreja, com a chegada do pastor Aloísio Penido Bertho, que é quem
está atualmente na direção da instituição, ocorreu uma grande mudança no perfil da igreja. O
número de membros ativos saltou de trezentos para dois mil11. O templo se tornou pequeno e
passou-se a alugar as instalações do Ginásio Sport Club, localizado na Avenida Barão do Rio
Branco, no centro da cidade, para melhor acomodar os frequentadores dos cultos realizados
nas noites de sábado e domingo. Em pouco tempo, os cultos das noites de quarta também
passaram a ser realizados no ginásio.

11
Esta também é uma informação do site. Talvez seja questionável, visto que é muito comum as igrejas
superestimarem o contingente de membros que possuem. Mas no período que estive em campo, ocorria uma
campanha de recadastramento de membros, em que as pessoas são convocadas a atualizar seus dados na
secretaria da igreja, para confirmar que estão ativos. Esta campanha tem sido realizada todo ano nesta igreja, ao
que parece, numa forma de controlar a quantidade de votos necessários para aprovar as decisões de assembleias,
como a que foi realizada para definir um estatuto de uma casa de recuperação de narcóticos a ser criada.
Acredito que este fato aumenta a confiabilidade dos dados informados.
1901
A solução encontrada para melhor acomodar as pessoas foi alugar as instalações da antiga
malharia Master, também localizada na avenida Barão do Rio Branco. Durante o tempo em
que estive em campo, era muito comum, especialmente no momento da coleta de ofertas, os
dirigentes do culto falarem o valor do aluguel deste espaço, que se afirma ser de trinta mil
reais. Trata-se de um espaço relativamente grande. Com um salão com capacidade para três
mil pessoas sentadas, o espaço também agrega várias outras instalações que também são
utilizadas com diversas funções.

Na apresentação destes dados o que me importa é destacar a forma breve com que esta igreja
cresceu e a forma como isto aconteceu. O que tenho constatado através de pesquisa de campo
é que, neste crescimento, a igreja recebeu grande quantidade de membros vindos de outras
igrejas ditas evangélicas, pentecostais ou não. No contato com o grupo pesquisado, pude
perceber que, apesar de assimilarem muito da visão teológica institucional, muitas
significações advindas da teologia da igreja a que pertenciam anteriormente continuam a
permear o imaginário destes jovens. Então, ao que parece, está acontecendo um câmbio de
imaginários evangélicos, pelo menos no contexto em que estou pesquisando.

Mas acredito haver motivos para se acreditar que fenômeno semelhante não está ocorrendo
somente nesta igreja. Por que ele pode acontecer de outra forma que é bem mais
potencializadora. Trata-se da mídia. Como acentuado por Magali Cunha (2013), parece que o
Brasil está vivenciando “tempos de cultura gospel”. Desta forma, a mídia e os meios de
comunicação interativos, comumente chamados de redes sociais, se apresentam como grandes
veículos de promoção de religiosidades, o que promovem, em maior escala, estes
intercâmbios de imaginários religiosos evangélicos.

É por estas razões acima descritas que penso ser possível de falar sobre o que os evangélicos,
de maneira geral, estão pensando sobre determinados assuntos. Penso que é possível e talvez
até desejável. Em determinadas pesquisas sobre temas pontuais, uma reflexão sobre como
outros grupos que compõem esta grande vertente conhecida como evangélicos, pode ajudar a
entender heterogeneidades que se apresentem no grupo pesquisado e é nesta linha que
pretendo desenvolver esta reflexão.

Estou consciente de que existem vários problemas relativos a estas questões, mas visto que,
durante algum tempo, no desenvolvimento da ciência social brasileira, a antropologia não
dedicou ao protestantismo, nem mesmo a sua versão (neo) pentecostal, a mesma atenção dada

1902
às religiões de matriz afro, (MONTERO, 1999, p. 357) e que muitas pesquisas deixaram
escorregar categorias nativas (leia-se institucionais) para a pesquisa sociológica, como por
exemplo, a categoria de conversão, (MONTERO, 1999, p. 359); as pesquisas de viés
antropológico que têm emergido não podem se deixar seduzir pela visão institucional. Pelo
contrário, devem se empenhar em retratar os sujeitos em sua realidade.

Olhando para esta realidade atual descrita por Cunha (2013), a qual tentei aqui dar uma
contribuição a partir do contexto que pesquiso, a consciência do que se passa em outras
realidades inerentes ao contexto evangélico se apresenta para mim como uma alternativa
profícua. É o que acredito que vai ser possível perceber na análise que se segue. Meu foco é
sobre as falas de evangélicos sobre uma tragédia ocorrida. O tema me ocorreu em pesquisa de
campo, mas a atenção aqui recairá sobre as falas que, de modo geral, foram julgadas
intolerantes.

Sobre o incêndio na boate Kiss

Era um culto de jovens realizado ao sábado, situado no contexto em que descrevi acima,
quando fui surpreendido com uma série de afirmações do pregador fazendo alusão ao fato de
que vários jovens haviam perdido suas vidas por estarem afastados da presença do senhor,
segundo ele. Tratava-se do incêndio na boate Kiss. Para além dos muitos dados que flutuam
na internet sobre o que de fato ocorreu, quais os culpados e se foram julgados adequadamente
ou não, antes de pensar o porquê das afirmações que foram proferidas pelo pregador, se faz
necessária uma breve apresentação da situação do incêndio em si.

Em traços gerais, o que aconteceu foi que, em uma madrugada de janeiro deste ano, ocorria na
boate Kiss, situada em Santa Maria – RS, um evento chamado “Aglomerados” em que
aconteceria a apresentação de uma banda famosa por seus shows pirotécnicos que envolviam
fogos de artifício e também a apresentação de alguns DJ’s. Ao que parece, devido a um ato
imprudente durante o show pirotécnico da banda, iniciou-se um incêndio que se transformou
em uma das maiores tragédias deste tipo já vista no país, com a morte de mais de duzentos
jovens.

O ocorrido gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se pronunciarem sobre
o caso. Grande polêmica se deu em torno de algumas declarações de pessoas que se

1903
identificaram como evangélicos, pois algumas afirmações se apresentaram intolerantes não só
para com a cultura dos jovens que ali estavam, mas também para com a dor das famílias que
perderam seus entes.

As declarações deste tipo podem ser tipologizadas em pelo menos três argumentos. O
primeiro, que foi o mais projetado nas ditas redes sociais, especialmente no site Twiter é o de
que “o diabo fez sua colheita”, neste sentido, argumentos semelhantes tentavam apontar para
o fato de que um ente maligno havia preparado aquele lugar para depois promover a morte
das pessoas que ali se encontravam para toma-las para si.

O segundo argumento que mais identifiquei nas redes foi o de que havia uma obreira12 que
estava na boate e acabou sendo morta pelas chamas por que estava fazendo o que não deveria.
Neste sentido, os argumentos deste tipo enfatizavam o fato de que uma pessoa temente a Deus
não deveria frequentar estes lugares que se apresentam como espaços de perdição. Aqueles
que enfatizavam isso focavam todo o tipo de coisas ruins que poderiam acontecer nestes tipos
de vivências de lazer.

O terceiro argumento é o que de um “ex-pastor” que estava “desviado” dos caminhos do


Senhor, sobreviveu ao incêndio e tinha voltado para a igreja. Os que articulavam falas deste
tipo, em geral, enfatizavam o fato de que este “ex-pastor”, enquanto tal, não estava tendo uma
alegria verdadeira no evento. A alegria autêntica estaria na igreja e o incêndio teria servido
para esclarecer este jovem sobre esta realidade.

Sobre os dois últimos argumentos citados, importa, para além da discussão sobre se de fato
ocorreu o que estão falando, destacar a construção dos argumentos para entender como são
articuladas as significações que compõe o imaginário destes evangélicos sobre lazer.

Antes de prosseguir com a discussão, torna-se relevante notar o fato curioso de que alguns
evangélicos, possivelmente os mesmos que pronunciaram coisas deste tipo, participam de
atividades de lazer aparentemente semelhantes às que estão repudiando, o que destaca o
princípio de ambiguidade que compõe o imaginário religioso brasileiro. (SCHULTZ, 2007).
A título de exemplo, vou colocar lado a lado um cartaz de um evento promovido pelo grupo
qual pesquiso e o cartaz do evento “Aglomerados”, para que se possa perceber que
visualmente são muito próximos na linguagem empregada.

12
Termo utilizado por algumas denominações evangélicas para identificarem uma cooperadora, também é
chamada de diaconisa em alguns contextos.
1904
Figuras 1 e 2 – Cartazes dos shows: Gurizada Fadangueira no evento “Aglomerados” 13 e Oficina G3 na PIBJF.14

Lazer?

No decorrer do texto venho empregando várias vezes o termo lazer, mas como já estou
caminhando para a análise e apresentação dos resultados, julgo necessário fazer uma pausa
para tecer algumas considerações sobre o que estou pensando quando assim o faço. Cristina
Gomes (2013) constatou, ao pesquisar uma vasta quantidade de bibliografias, que
Dumazedier foi o pesquisador estrangeiro que mais influenciou a literatura científica
brasileira sobre o assunto. Ao se tornar referência no Brasil, a partir da década de 70, o
sociólogo teve seu conceito de lazer citado em diversas obras sobre o assunto. Tal conceito
está sistematizado no livro Lazer e Cultura Popular, em que o lazer é apresentado como:

[...]Um conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja
para repousar, seja divertir-se, recrear-se, entreter-se, ou ainda desenvolver sua formação
desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, após
livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.
(DUMAZEDIER, 1973, p. 34)

Com este conceito, o autor conjuga dois elementos, o tempo e a atitude. Estando preocupado
com o fato de que, em muitos casos, o vocábulo lazer é empregado para se referir a apensas
13
Boate promoveu festa Aglomerados que virou tragédia. Disponível em:
<www.noticiasnobrasil.org/2013/01/a-festa-agromerados-na-boate-kiss-vira.html>. Acesso em: 3 junho 2013.
14
Oficina G3 em Juiz de Fora. Disponível em: <
http://www.radiovidacataguases.com/index.php/evento.php?id=22 >. Acesso em: 5 junho 2013.
1905
um de seus conteúdos, de maneira muito incompleta, ele procura criar uma definição que
pudesse circunscrever o fenômeno, conjugando os dois elementos que dividiam duas grandes
linhas de pensadores que o precederam. (MARCELINO, 1987, p. 27). Assim, na primeira
parte, enfatiza o quesito atitude quando afirma que “o indivíduo pode entregar-se de livre
vontade” e, ao final, evoca o quesito tempo ao dizer “após livrar-se ou desembaraçar-se das
obrigações”.

Mesmo sem desconsiderar suas contribuições, é importante notar que este sociólogo francês
também sofreu algumas duras críticas posteriores, sendo que sua abordagem funcionalista
chegou a ser acusada de um “falso humanismo”. (MARCELLINO, 1987, p. 35). Gomes
(2008) assinala que a definição de Dumazedier, ao tratar o lazer como fenômeno isolado, se
revela frágil por não dar conta de vivências dinâmicas que hoje são facilmente observadas na
realidade, como as que serão tratadas nesta pesquisa. Ela cita como exemplo a ambiguidade
do conceito de “semilazer” criado pelo próprio pesquisador. (DUMAZEDIER, 1979).

Na preocupação de separar um quadro de atividades às quais não subsistisse qualquer dúvida


de serem opostas ao lazer, Dumazedier engloba “atividades rituais ou ligadas ao cerimonial,
resultantes de uma obrigação familiar, social ou espiritual (visitas oficiais, aniversários,
reuniões políticas, ofícios religiosos)”. (DUMAZEDIER, 1973. p.31). Condicionado pelo seu
tempo, o pesquisador não previu que conteúdos culturais abertamente reconhecidos por ele
como lazer, poderiam ser conjugados com os “ofícios religiosos”, dando origem a vivências
complexas como as que surgem no mundo gospel de hoje.

Sendo assim, esta definição que busca identificar o que é lazer com intensa preocupação em
destacá-lo das obrigações, não se mostra suficiente para descrever vivências desse tipo, que se
contrastam com a vivência promovida no evento “Aglomerados”. Marcellino (1987) percebeu
esta limitação e, ao propor o lazer como elemento pedagógico, recomenda outra visão que,
tanto valorize o fenômeno em si mesmo, quanto entenda a sua íntima dialética com as demais
esferas sociais. Inspirado em Geertz (2008), ele defende que o lazer seja interpretado como a
“cultura vivenciada no tempo disponível”. (MARCELLINO, 1987, p.29).

Para Gomes (2008a), há hoje uma tendência da literatura científica brasileira a esta tipo de
abertura antropológica. É o que explora em suas obras posteriores. Ela que, anteriormente
(GOMES, 2008b), buscando retomar as raízes históricas na Grécia Antiga, entendia o lazer
como um fenômeno que englobava quatro elementos, sendo: tempo e atitude, conjugados por

1906
Dumazedier (1973, 1979), mas também espaço e cultura; explorados por Marcellino (1987);
agora volta sua atenção totalmente para o âmbito cultural. Tal posicionamento surgiu após
perceber que, quando as raízes do fenômeno são remetidas ao mundo ocidental, seja à
modernidade ou à Grécia antiga, as concepções que emergem não contribuem muito para
explicar vivências do lazer em outros contextos marginais, como a América-latina.

Como resultado desta nova perspectiva, Gomes e Elizalde conceituam o lazer como “a
vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço social”. (GOMES; ELIZALDE,
2012, p. 30). Estou tendente adotar esta perspectiva, pois, pensando este fenômeno de um
ponto de vista cultural e tratando a cultura em perspectiva semiótica (GEERTZ, 2008), é
possível perceber que, ainda que não chamem eminentemente de lazer, algumas significações
do que povoam o imaginário das várias vertentes evangélicas se referem a ele. Algumas
destas significações dão vazão a afirmações intolerantes do tipo acima exposto. Entender um
pouco delas é a tarefa a seguir. Para facilitar a leitura para aqueles que não estão
familiarizados com discussões que flutuam em meio aos estudos do lazer, sugiro que leia-se
lazer como diversão.

(In) tolerância cultural? Algumas significações dos evangélicos sobre lazer

Para entender estas interpretações dos evangélicos que se apresentam intolerantes, julgo ser
necessária uma breve exposição de algumas significações que compõem o imaginário dos
evangélicos sobre lazer. Lendo a bibliografia sobre a inserção do protestantismo no Brasil,
especialmente aquele dito protestantismo de missão identifica-se que, como foi muito
influenciado pelo pietismo estadunidense (MENDONÇA, 1994), foi gerado em seu interior
uma significação que pode ser entendida como a “neurose do tempo” (MENDONÇA;
VELASQUES FILHO, 1990, p. 187), segundo a qual emerge a imagem do protestante como
aquele que não deve desperdiçar o seu tempo, aproveitando-o para se dedicar ao serviço da
“obra do senhor”.

Quando o pentecostalismo ascende no Brasil, são promovidas outra significações, advindas


do “repto pentecostal à cultura católico-brasileira” (SANCHIS, 1996). Nota-se que a oposição
ao catolicismo, que já estava presente no protestantismo anterior, foi acentuada com as
primeiras igrejas pentecostais que, transferem tal oposição à cultura em geral, criando a
imagem de que algumas vivências comuns de lazer dos brasileiros, embora pareçam
1907
prazerosas, são na verdade, “falsas alegrias” que não se comparam à “alegria da salvação”,
são “lugares de perdição”, visto que os frequentadores destes espaços estão condenados ao
inferno, e também são espaços de atuação demoníaca, em que participar destas vivências é
“abrir brecha” para que o diabo possa atuar na vida do crente.

Mas surgiram novas significações que recentemente emergiram no imaginário evangélico


sobre lazer. As principais são advindas da abertura neopentecostal, que passou a valorizar o
lazer como algo importante e até desejável na vida do crente. Mas não se pode ignorar as
significações advindas do gospel, através do qual foram criados espaços híbridos entre a
diversão e a religiosidade, tornando ambíguas algumas vivências que, variando o conteúdo,
mantém a forma das vivências de lazer ditas seculares.

É na operação deste emaranhado de significações, algumas aparentemente contraditórias, que


surgem as afirmações tidas como intolerantes feitas sobre o incêndio na boate Kiss.
Especialmente aquelas advinhas do pentecostalismo clássico. A visão de que “o diabo fez sua
colheita”, por exemplo, opera a ideia de que o evento “Aglomerados” era na verdade um
espaço de atuação demoníaca; o fato de se acentuar que “uma obreira morreu por que estava
nesta festa” opera a significação de que são lugares de perdição. Por último, o fato de que “o
pastor sobrevivente voltou para a igreja” acentua a significação de que são lugares de uma
“falsa alegria”, ou seja, a alegria verdadeira é estar na igreja. Interessante como estes dois
últimos pontos se deram no contexto da Igreja Universal do Reino de Deus, tida como
expoente do neopentecostalismo, caracterizado por uma abertura comportamental, mas que
não consegue apagar de todo o imaginário do pentecostalismo precedente. Esta fato torna
latente a ambiguidade da discussão.

Considerações finais

Como foi discutido do decorrer do texto, existem várias interpretações a respeito do que
representem o tipo de vivência do qual se tratava o evento que deu origem ao incêndio na
boate Kiss. De maneira geral, algumas interpretações de evangélicos podem ser vistas como
intolerantes, pelo tipo de leitura que fazem da situação que ocorreu. Como pude demonstrar,
estas interpretações advém de algumas significações que compõem o imaginário evangélico
sobre lazer, fazendo parte da visão de mundo destes sujeitos, ou seja, sua cultura. Algumas
são até muito ambíguas, visto que alguns evangélicos curiosamente participam de eventos
1908
aparentemente semelhantes. Mas o que concluo é que as afirmações que podem ser lidas uma
espécie de intolerância cultural, poderiam ser pensadas em outra chave, como fruto de algo
que já possui um termo técnico bem adequado: etnocentrismo. Sendo este uma tendência
natural das culturas, se faz necessário aprofundar a reflexão sobre a forma como entendemos
estes sujeitos.

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Oficina G3 em Juiz de Fora. Disponível em: <
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1910
1911
O Testemunho Religioso no ciberespaço: uma forma (cri)ativa de
interpelar o outro
Ronivaldo Moreira de Souza1

Introdução
A parceria entre religião e mídia alterou a forma de demarcação de espaços e adesão de fiéis
entre as religiões. Se antes este processo se baseava mais no corpo a corpo, hoje a corrida pela
exposição midiática e a comunicação voltada para as massas são o centro desta disputa
(MORAES, 2010. p.32).

Em meio ao intenso trânsito religioso brasileiro, as igrejas se veem frente ao desafio de


estabelecer sua legitimidade organizacional neste universo chamado mídia. Porém, aventurar-
se neste espaço midiático significa operar em dois polos distintos: de um lado a necessidade
de preservar a natureza tipológica do discurso religioso não admitindo autoridade além da sua
própria ou outros discursos acima dele; do outro, assumir o risco de (con)viver em um espaço
habitado pela diversidade de discursos outros o que representa uma ameaça à própria
transcendência do discurso religioso.

Este desafio migratório das comunidades religiosas locais para a mídia insere um paradoxo
constitutivo para o discurso religioso evangélico. É preciso manter os traços tradicionais da
tipologia discursiva religiosa, visto ser ela quem define o lugar em que o leitor precisa se
colocar para interpretar o discurso e em função de qual finalidade este discurso foi
organizado; mas também, há uma evidente necessidade de adaptar os gêneros tradicionais do
discurso religioso evangélico (sermão, testemunho, louvor, e etc.) ao suporte material de
mídia na qual passará a veiculá-lo. O pastor que antes interpelava uma audiência passiva
sentada nos bancos de um templo no domingo a noite observando in loco as reações do seu
público, agora se vê em um estúdio diante de uma câmera falando para uma audiência sem
rosto, para um tipo ideal de enunciatário que presumivelmente consumirá este discurso de
maneiras diversas de acordo com o meio no qual o discurso será veiculado.

Com isto em mente, o problema que aqui se propõe investigar é como a Igreja Universal do
Reino de Deus elabora um misto testemunho-publicidade para interpelar o enunciatário em
1
Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. Bolsista FAPES. Contato:
Kawai150@hotmail.com. Este trabalho apresenta resultados parciais da minha dissertação de mestrado sob o
título: Ethos em cena: A interação do ethos na construção da cena enunciativa do discurso dos fiéis da IURD;
orientada pelo professor David Mesquiati de Oliveira, doutorando em Teologia pela PUC/RJ.
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uma mídia caracterizada pela diversidade e alcance das mensagens, considerando-se ainda o
comportamento ativo da audiência nesta mídia digital. A pesquisa levanta a hipótese de que se
por um lado a tipologia do discurso posiciona o enunciatário para interpretar o texto
interpelando-o a partir desta identidade a ele atribuída, por outro, o discurso precisa adaptar-se
ao suporte de mídia sendo capaz de interpelar o enunciatário posicionando-o quanto à maneira
como consumirá o texto.

Como ponto de partida este trabalho investigará algumas características do discurso religioso.
Em seguida, observará o gênero Testemunho Religioso na sua forma tradicional e as
mutações deste gênero ao migrar para a mídia. Depois, especificará alguns pressupostos
teóricos sobre a mídia digital e suas implicações quanto ao discurso religioso. Por fim,
aplicará estes conceitos à página de testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus
disponível no endereço eletrônico: www.eucreioemmilagres.com.br.

A natureza constituinte do discurso religioso


Ao investigar o discurso religioso Maingueneau o classificou como um discurso constituinte
cuja pretensão “é de não reconhecer outra autoridade além da sua própria, de não admitir
quaisquer outros discursos acima deles” (MAINGUENEAU, 2008. p.37). Para se tornar fiador
dos demais discursos, o discurso religioso não pode admitir discursos que o valide, pelo
contrário, ele precisa gerir na própria enunciação um estatuto auto-fundado
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU. 2008. p.126). Desta forma, Maingueneau concluiu que
o discurso religioso dá sentido aos atos da coletividade, pois, opera normatizando e
garantindo comportamentos dela, ou seja, “eles pretendem delimitar, com efeito, o lugar-
comum da coletividade, o espaço que engloba a infinidade de “lugares-comuns” que aí
circulam” (MAINGUENEAU, 2008. p.39).
Segundo o autor, ao incorporar um modo de vida o discurso religioso confere autoridade
particular aos seus enunciados à medida que se inscreve em uma comunidade que é correlata
deste discurso construindo, desta forma, uma cena enunciativa eficaz. Para tal, a instituição
enunciadora deste discurso precisa ser capaz de realizar o mundo que pretende descrever ou
promover. Para produzir um discurso eficaz a instituição precisa estar, ela mesma, investida
dos valores que prega (MAINGUENEAU, 1997. p.64). Desta forma, o dispositivo
enunciativo é capaz de fundar sua própria existência extraindo sua legitimidade de uma Fonte
da qual se coloca apenas como encarnação. Esta dinâmica promove “uma circularidade

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constitutiva entre a imagem que ele dá de sua instauração e a validação retrospectiva de certa
configuração da comunicação, da repartição de autoridade, do exercício do poder que ele
cauciona, denuncia ou promove por seu gesto instaurador” (MAINGUENEAU, 2008. p.54).

O discurso religioso na mídia digital: o desafio de (con)viver com a diversidade


O alcance, a acessibilidade, a descentralização da produção e a circulação ilimitada de
mensagens são peculiaridades já investigadas exaustivamente pelos pesquisadores da nova
mídia (OLIVATTI, 2008. p.239). Em sua minuciosa investigação sobre a profusão de
informações geradas e intercambiadas na internet, Lévy se apropriou do relato bíblico do
dilúvio para ilustrar o arranjo informativo da grande rede:

“E Jeová fechou a porta por fora” (Gênesis 7,16). A arca foi fechada. Ela simboliza a
totalidade reconstituída. Quando o universo está desenfreado, o microcosmo organizado
reflete a ordem de um o macrocosmo que está por vir. [...] Quando Noé, ou seja, cada um
de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano
agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção diferente.
Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estarão
eternamente à deriva na superfície das águas (LÉVY, 1999. p.15).

O autor afirma ainda que esta nova dinâmica comunicacional incide na construção dos
sentidos. Se nas sociedades orais a divergência de sentido era mitigada pelo fato da mensagem
ser recebida no mesmo contexto de sua produção, na comunicação escrita os problemas de
recepção e interpretação foram exacerbados pela distância espaço-temporal entre a produção e
recepção da mensagem. Surgiram então mensagens (entre elas a religiosa) concebidas para
preservar seu sentido independentemente do contexto. Em sua obra, Lévy defende a hipótese
de que “a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta ao seu contexto, como
ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala [...]. A nova universalidade não depende
mais da auto-suficiência dos textos [...]. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão
das mensagens entre si [...]” (LÉVY, 1999. p.15). Portanto, o ciberespaço é constituído por
esta integração de diferentes vozes onde os participantes têm um papel ativo.

Este papel ativo e coexistente de um enunciador/enunciatário cria uma nova relação entre a
audiência e o meio/suporte. A audiência antes interpelada como agente passiva (ouvinte,
telespectador, espectador, e etc) agora é atraída pela interação, o que lhe confere uma nova
identidade, ou seja, “o espectador transforma-se no novo usuário que acessa a rede para
buscar por sua própria conta tudo o que necessita [...]. Os usuários podem interagir com redes

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e pessoas [...], e podem criar personagens e papéis, e até mesmo identidades, o que antes só
era permitido aos atores, na tela da televisão” (VILCHES, 2003.p.21-22). Vilches destaca
ainda que esta interação tem seu inicio na forma compreensível pela qual a máquina se
apresenta ao usuário permitindo a este ultimo uma experiência de gestão por meio de objetos
visuais preparados para interagir. Esta interface “não é um complemento do ato de ver, como
o controle remoto [...]. A interatividade permite aos usuários usarem as mídias para organizar
seu espaço e seu tempo, e não o inverso, como acontecia nos meios tradicionais baseados na
manipulação das imagens e dos sons, a partir de um centro emissor” (VILCHES, 2003.p.24).

Esta dinâmica comunicativa da mídia digital afeta a produção e o consumo do texto em dois
aspectos. No primeiro, verifica-se que a linguagem precisa ser criada para propiciar a escolha
e o consumo individualizado, proposta oposta ao do consumo massivo propiciado pelos meios
de comunicação de massa. Texto e interface se completam na proposta de arrancar a audiência
da inércia da recepção de mensagens impostas de fora e transformá-la no usuário treinado
para buscar a informação e o entretenimento (SANTAELLA, 2003. p.27). No segundo
aspecto este processo afeta também o consumo dos textos, pois, nos meios digitais a “marca
principal está na busca dispersa, alinear, fraguimentada, mas certamente uma busca
individualizada da mensagem e da informação” (SANTAELLA, 2003. p.27). Se por um lado
a mídia digital propicia uma comunicação massiva em termos numéricos, por outro, não o é
em termos de simultaneidade e uniformidade da mensagem recebida. A multiplicidade de
mensagens e de fontes torna a audiência mais seletiva (CASTELLS, 2005. p.424).

Castells recorreu aos estudos semióticos para explicar a dinâmica da interatividade no


ambiente virtual. A fusão de vários meios em um único espaço intitulado multimídia, não é
uma indução à uma realidade virtual, mas sim, a construção de uma realidade virtual. O autor
argumenta que toda a realidade é comunicada por meio de símbolos e na comunicação
interativa humana, “todos os símbolos são, de certa forma, deslocados em relação ao sentido
semântico que lhes são atribuídos. De certo modo, toda realidade é percebida de maneira
virtual” (CASTELLS, 2005. p.459). Castells explica que a mídia digital constitui um sistema
de comunicação capaz de criar uma virtualidade real, pois, “todas as mensagens de todos os
tipos são incluídas no meio porque este fica tão abrangente, tão diversificado e tão maleável,
que absorve no mesmo texto de multimídia toda a experiência humana, passado, presente e
futuro” (CASTELLS, 2005. p.459).

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Castells conclui que esta lógica comunicativa da mídia digital enfraquece o poder simbólico
dos emissores tradicionais como a religião, por exemplo, se este estiver fora do sistema.
Porém, uma vez recodificado para esta nova mídia, o discurso religioso tem seu poder
multiplicado “pela materialização eletrônica dos hábitos transmitidos espiritualmente: as
redes de pregadores eletrônicos e as redes fundamentalistas interativas representam uma
forma mais eficiente e penetrante de doutrinação em nossas sociedades do que a transmissão
pelo contato direto da distante autoridade carismática” (CASTELLS, 2005. p.461).

Tendo em mente estes pressupostos teóricos este trabalho se interessa pela constante
recorrência que as igrejas neopentecostais fazem do gênero Testemunho Religioso como
forma de doutrinação e adesão de novos fiéis por meio da mídia digital.

O gênero testemunho religioso

Para analisar o testemunho religioso se faz necessário conhecer alguns traços peculiares deste
gênero. Oliveira define o gênero testemunho como “aquilo que se declara a respeito de uma
pessoa ou de um fato, com o objetivo de produzir convicção” (OLIVEIRA, 2010. p.56). Para
o autor esta atividade comunicacional no meio religioso, especialmente no cristianismo, está
atrelada à tarefa de comunicar o evangelho contribuindo para a divulgação da religião cristã.
Segundo sua constatação, tradicionalmente o testemunho religioso se dava na forma de
comunicação direta interpessoal ora de pessoa a pessoa, ora de forma pública durante as
reuniões informais nas casas, e formais (cultos, missas) nos templos. O autor atesta que em
sua “configuração original o gênero testemunho cristão estava somente no domínio religioso e
na modalidade oral” (OLIVEIRA, 2010. p.58). Oliveira lembra ainda que no decorrer do
tempo a prática quase foi extinta da liturgia católica e das igrejas protestantes históricas,
porém, com o fenômeno do neopentecostalismo o gênero se tornou o centro da liturgia.

Francisco observou que o testemunho é uma forma tradicional de prédica protestante e


também uma questão de obrigação de consciência para o crente. Basicamente, o gênero
consiste em “um modo de narrar a vida a partir das mudanças instauradas pela crença. [...]
Como uma marca da narrativa, o testemunho constitui-se no elemento estruturador da
performance de quem “ao aceitar Jesus como seu salvador”, se reconhece e quer ser
reconhecido como “nascido de novo”” (FRANCISCO, 2011. p.2). O autor observa que a
proposta deste gênero articulado em dois momentos centrais – antes e depois – é construir no

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tempo presente uma nova identidade e um novo modo de afirmação social atravessado pelos
valores da crença (FRANCISCO, 2011. p.3). Sobre este binômio da estrutura narrativa do
gênero, Mafra acrescentou que a “estrutura típica do testemunho [...] organiza-se segundo um
processo de reconhecimento de um determinado estado volitivo x que, com o auxílio ou
intervenção de Jesus, transformou-se no estado y” (MAFRA, 1999. p.378).

O testemunho iurdiano na mídia: uma forma de marketing institucional

Diante das particularidades do gênero e dos indicadores de sua finalidade na prática religiosa
pode-se recorrer a estudos já realizados neste campo tendo como corpus a recorrência do uso
dos testemunhos pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Campos observou que a espontaneidade discursiva que marcava o gênero em sua forma
tradicional foi substituída na IURD pelo formato do tipo espontâneo-administrável onde
predomina um claro direcionamento daquilo que o depoente deverá dizer, eliminando assim
tudo o que poderia destoar do discurso padrão da igreja (CAMPOS, 1997. p. 306). Nesta
mesma perspectiva Francisco constata que o roteiro narrativo do testemunho dos fiéis da
IURD se concentra na resposta a três perguntas básicas: “Como era sua vida antes de chegar
à igreja? Como você chegou até a igreja? Como está sua vida agora?” (FRANCISCO, 2011.
p.4). Este roteiro assegura os eixos narrativos antes/depois tendo como ponto de
transformação a intervenção da Universal.

Ao mensurar o fenômeno de forma quantitativa, Fonseca constatou que o antes nos


testemunhos dos fiéis da IURD, definido pela expressão “fundo do poço”, ocupa em média
75% da narrativa e é sempre o ponto de partida dos depoimentos (FONSECA, 2003. p.271).
Mafra explica esta estrutura alegando que o “modelo testemunhal da experiência a nível
individual está condicionado a uma disponibilidade anterior da pessoa para a transformação,
quer dizer, sem a insatisfação não há como produzir milagres” (MAFRA, 1999. p.379).
Moraes vai além quando diz que o fiel só desejará a recompensa ofertada pela igreja se de fato
tiver necessidade dela e é por meio dos testemunhos que a audiência consegue identificar os
problemas que devem ser solucionados em sua vida, ou seja, os “testemunhos funcionam
como tipos ideais, sempre tocando em pontos nevrálgicos que afligem boa parte das pessoas”
(MORAES, 2010. p.174).

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É quase consenso na literatura a natureza mercadológica da Igreja Universal do Reino de
Deus, com isto, algumas incursões investigativas neste viés dão conta do caráter publicitário
da apropriação iurdiana do gênero testemunho. Ao comparar a forma tradicional do gênero
com a apropriação iurdiana do testemunho, Oliveira aponta que o que antes consistia no
simples relato de uma benção alcançada arquitetado sobre informações pertinentes ao
problema e sua solução, cuja finalidade era a glorificação do nome de Deus; no modelo atual
tem como objetivo divulgar uma marca (instituição) e vender produtos (OLIVEIRA, 2011.
p.7). O autor atribui a esta mutação o fenômeno da adequação da religião à dinâmica de
mercado culminando, por fim, na migração de gêneros da tradição religiosa para meios
midiáticos o que reconfigura as noções de coletividade, momento e lugar (OLIVEIRA, 2010.
p.58). Sua conclusão é que o uso que a IURD faz do gênero é um misto de testemunho-
publicidade, “um tipo de testemunho que só serve para glorificar a(s) instituição(ões) [...],
portanto, o testemunho que era uma forma antiga e espontânea de compartilhar a fé, carrega
em seu bojo a intenção intrínseca da promoção” (OLIVEIRA, 2010. p.103).

Testemunho religioso no ciberespaço: a estratégia iurdiana para inerpelar a audiência

Diferente do que normalmente acontece nos endereços eletrônicos de outras igrejas e


empresas, onde o nome comercial é parte integrante do endereço eletrônico, a página de
testemunhos da IURD não estabelece de início qualquer vinculo entre ela e o discurso ali
enunciado. O discurso interpela o enunciatário, não em função de sua empatia com a IURD,
mas em função de sua fé.

E enunciatário crente2

Para entender melhor, a pesquisa recorre ao videoteipe veiculado pela TV Record nos
intervalos comerciais de sua programação. Um texto narrado insere uma pergunta: “Você
acredita em Deus?”. Após isto uma sequencia de imagens de lugares paradisíacos desfilam na
tela. No desfecho, outro texto narrado: “então você acredita em milagres.
www.eucreioemmilagres.com.br”.3 A lógica argumentativa é bastante óbvia explicitada pela
conjunção coordenativa conclusiva “então”: “Se você acredita em Deus, então você acredita

2
O termo crente aqui, não indica o indivíduo cristão, mas, aquele que tem a competência de crer ou acreditar.
3
Vídeo disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=mpHo2MlieEk>. Acesso em dez. 2012.
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em milagres”. Neste caso, o endereço eletrônico funciona como uma declaração pessoal de fé:
eucreioemmilagres.

Ao acessar o endereço eletrônico www.eucreioemmilagres.com.br o enunciatário se depara


com um vídeo de 20 segundos de duração. Um instrumental suave serve como fundo musical
enquanto surge na faixa escura da tela o seguinte texto: “Transformação de vidas”. A seguir
uma série de imagens que incluem paisagens naturais e até um casal se beijando, são inseridas
sucessivamente. Por fim, um outro texto surge: “Eu creio em milagres”.

Observe que o apelo argumentativo é semelhante. A questão é: por quê as imagens do mundo
natural são evocadas para comprovar a existência do mundo sobrenatural? É que estes
enunciados sincréticos concordam com o primeiro tópico da declaração de fé da IURD: “Há
um só Deus, Vivo, Verdadeiro e Eterno, de infinito poder e sabedoria. O Criador e
Conservador de todas as coisas visíveis e invisíveis [...]” (grifo meu). O Deus da IURD é
portador de um poder infinito que se comprova nas belezas da criação, mas também, é um
Deus que age e esta condição ativa é comprovada na conservação das coisas que criou.
Portanto, crer nesse Deus vivo e de infinito poder significa por implicação, crer na
possibilidade de milagres.

Sendo assim, antes mesmo de assistir aos testemunhos, o enunciatário interagiu por duas
vezes com uma espécie de declaração de fé: a primeira ao digitar o endereço eletrônico do
site; a segunda no vídeo de abertura: Eu creio em milagres. É este jogo discursivo capaz de
produzir um enunciado que faz o tu dizer eu que garante a instauração do discurso. O “eu” é o
sujeito que crê, a este enunciatário é atribuída tal competência a partir da qual será
interpelado.

O enunciatário usuário
Uma vez interpelado pelo discurso em função de sua tipologia e sendo este discurso
indissociável de seu suporte material, o enunciatário também é interpelado pelo suporte
material em função do modo de circulação e consumo deste texto. O primeiro posiciona o
enunciatário para interpretar o texto (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008. p.96), o
segundo posiciona o enunciatário para o consumo do texto.
Sendo o discurso da IURD veiculado por meio de um suporte material de mídia digital,
conclui-se que precisa ser capaz de interpelar seu enunciatário como usuário porque esta é a

1919
expectativa que este suporte suscita no enunciatário. Para que isto aconteça são necessárias
duas coisas:
A interface precisa apresentar o discurso na forma de uma prestação de
serviços;
A interface precisa convocar o enunciatário à interação atribuindo a ele uma
competência ativa4.
Após o vídeo inicial anteriormente analisado, o enunciador é direcionado para a página com
os depoimentos e relatos dos fiéis. Observa-se no topo da página, canto superior esquerdo, o
enunciado: “Eu creio em milagres”. A destacabilidade textual recai sobre a declaração “Eu
creio”. Esta declaração permanece imóvel no topo da página independentemente do acesso a
qualquer dos depoimentos.

Abaixo desta declaração, existem textos linkados: MILAGRES DE LIBERTAÇÃO;


MILAGRES NA VIDA SENTIMENTAL; MILAGRES NA VIDA FINANCEIRA;
MILAGRES NA FAMÍLIA; LIBERTAÇÃO DOS VÍCIOS. Estes links conduzem o
enunciatário a depoimentos secionados pela temática já explícita no texto. O texto é ao
mesmo tempo uma informação e um acesso ao conteúdo. Os depoimentos são
disponibilizados no formato audiovisual com duração média de três a cinco minutos. Os
vídeos são expostos na forma de um mosaico e agrupados em blocos de seis. Um dispositivo
do lado direto e esquerdo da página permitem ao enunciatário avançar para o próximo bloco
de vídeos e retroceder ao anterior. Cada vídeo é identificado pela imagem e nome do fiel. Para
acessá-lo, basta um clique sobre a imagem.

No canto inferior esquerdo da página um banner traz os seguintes dizeres: “Coloque seu nome
no livro de oração. Estaremos orando por você”. Abaixo em destaque um enunciado
imperativo: “Clique aqui”. O banner leva para uma página onde o enunciatário pode colocar
seu nome e e-mail e seu pedido de oração. Já no canto inferior direito é possível acessar a
Rede Aleluia, emissora de rádio na qual a IURD transmite suas doutrinas. Logo abaixo outro
texto linkado: “Orientação Espiritual”. Um enunciado logo abaixo diz: “Receba orientação
sob a luz da palavra de Deus”. Basta um clique no “Fale conosco” para ter acesso a uma
página onde o enunciatário insere seus dados pessoais (nome, e-mail, telefone, país e cidade
onde mora), além do assunto para o qual deseja orientação e uma mensagem contendo as
informações pertinentes ao assunto.

4
Para retomar o termo utilizado por Vilches (2003. p.21).
1920
Nota-se que a exposição do discurso instaurada pela interface o apresenta diante do
enunciatário como uma prestação de serviços buscando causar a impressão de que a IURD
está colocando à disposição do enunciatário seu conhecimento prático e sua “expertise” para
orientá-lo em diferentes áreas da vida (sentimental, financeira, familiar, e etc.). O enunciatário
não é interpelado apenas pela sua capacidade de crer, mas também, pela utilização dos
serviços cedidos pela IURD, o que o transforma em um usuário. Comprova-o também as
ofertas de serviços na parte inferior da página apresentados por enunciados que alternam entre
“mandamentos” e promessas: “Coloque seu nome no livro de oração. Estaremos orando por
você”.5

Observa-se ainda que esta interface confere ao enunciatário uma competência ativa. É o
enunciatário quem seleciona o “serviço” que deseja de acordo com sua necessidade e seu
tempo. Em um vasto universo com oitenta depoimentos6 o agrupamento de vídeos pelo
conteúdo temático ajuda na otimização do tempo do enunciatário permitindo-lhe acessar
diretamente o “serviço” que deseja.

Se na tipologia o discurso da IURD confere ao enunciatário a competência de crer, no seu


suporte material a interface confere a este enunciatário uma competência ativa. Tudo é
cuidadosamente elaborado para interpela-lo como um usuário capaz de interagir com o
discurso. O acesso ao conteúdo dos vídeos por meio de um clique sobre a imagem do
depoente dá ao enunciatário a competência de um mediador: É ele quem dá a palavra a quem
quer por meio de um clique, e é ele quem silencia a quem quer por meio de um clique. A ele é
dado o poder de decidir quem vai lhe falar.7

Considerações finais

Desta investigação é possível concluir que ao migrar para a mídia digital o discurso religioso
opera preservando sua natureza constituinte e ao mesmo tempo adaptando e alterando seus
gêneros às regras do suporte material que incidem, por fim, na maneira pela qual passa a
interpelar sua audiência.

5
Diga-se de passagem, uma estrutura textual que lembra às encontradas no texto bíblico.
6
Dados coletados em junho de 2013.
7
Claro que isto se dá apenas no ponto de vista da interação proposta pela interface, uma espécie de simulacro,
pois, independentemente do depoimento que selecionar o enunciatário sempre estará diante da voz institucional
da Universal direcionando a finalidade do gênero.
1921
Quanto ao seu caráter constituinte, mesmo convivendo com a diversidade de discursos outros
neste instável oceano da mídia digital, o discurso iurdiano não cessa de atribuir a si a missão
de assinalar o lugar destes outros discursos tentando constantemente subordiná-los. Os
depoimentos postados no site são repletos de testemunhos daqueles que quando estavam no
“fundo do poço” buscaram auxílio na ciência e em outras religiões, porém, só alcançaram o
milagre quando aderiram à Igreja Universal. É por meio deste jogo de exclusão e apropriação
do discurso outro que a IURD propõe legitimar seu posicionamento discursivo e seu lugar
institucional.

Contudo, o simples fato de migrar para a mídia exige deste discurso uma estratégia precisa
para interpelar a audiência. Os testemunhos que a Universal veicula têm como finalidade não
apenas a fidelização de seus fiéis visando superar a ameaça do trânsito religioso, mas também,
fazer disto uma oportunidade de suscitar a adesão de novos fiéis. Desta forma, a IURD não
interpela sua audiência em função de uma empatia com a igreja, mas sim, em função de uma
crença na existência da divindade. Apropriando-se da metáfora de Lévy é possível concluir
que em meio a esta infinidade de microcosmos organizados no oceano da comunicação digital
faz-se necessário encontrar o lugar da homogeneidade a partir do qual seja possível interpelar
o maior número de arcas possíveis. Uma pesquisa encomendada pela agência de notícias
Reuters constatou que 84% dos brasileiros acreditam em Deus ou em um ser supremo. É deste
ponto característico da cultura brasileira que a Universal interpela sua audiência: “Você
acredita em Deus?”. Acessar os testemunhos na página da IURD é responder a esta
interpelação: www.eucreioemmilagres.com.br.

Uma vez acessando o conteúdo da página, o enunciatário se depara com uma interface que
atribui a ele a identidade de um usuário. O discurso lhe é apresentado como uma prestação de
serviços: é a Igreja Universal dispondo sua expertise para “orientar” o usuário em assuntos
referentes às finanças, família, sentimentos, além de orientação espiritual e orações. A este
usuário é atribuída uma competência ativa dando-lhe o direito de selecionar os serviços que
deseja de acordo com seu tempo e suas necessidades.

Referências

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empreendimento neopentecostal. 2ª edição. Petrópolis – RJ: Vozes, 1999.
1922
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<http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/mafra.pdf>. Acesso em 12 abril 2013.

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda


Indursky. 3º edição. Campinas: Pontes/Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997.
MORAES, Gerson Leite de. Idade mídia evangélica no brasil: uma análise da força midiática
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OLIVATTI, Tânia Ferrarin. Internet, youtube e semiótica: Novas práticas do usuário


produtor. In: DINIZ, Maria Lúcia Vissotto Paiva; PORTELLA, Jean Cristtus (orgs).
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OLIVEIRA, Derli Machado de. Mercado, marketing e religião: o gênero testemunho no


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Gêneros Textuais). Natal - RN: outubro de 2011. Disponível em:
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________. Testemunho, mídia e prosperidade: o evangelho segundo o capitalismo neoliberal.


Orientação de Cleide Emilia Faye Pedrosa. Dissertação (Mestrado em Letras). UFS, São
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SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. In:


Revista Famecos (PUCRS), n. 22, Porto Alegre, p. 23-32, 2003.

1923
VILCHES, Lorenzo. A migração digital. Tradução Maria Immacolata Vassallo de Lopes. São
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Internet

Brasil é o 3º país onde mais se crê em Deus, diz pesquisa. G1. Disponível em<
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Em que cremos. Arca universal. Disponível em <http://www.arcauniversal.com/iurd/


emquecremos.html>. Acesso em 11 de jul. 2013.

1924
1925
Religião e ciberespaço: cultura do imaterial e estética classicista
no portal dos Arautos do Evangelho

Flávia Gabriela da Costa Rosa Amaral1

Introdução

A Igreja Católica se apresenta como vertente do cristianismo com grande número de adeptos,
mas reconhece que o islamismo já supera o número de seguidores da “Igreja de Pedro”, como
se referencia. Define-se como “Una, Santa, Católica, Apostólica”. No entanto, observam-se
características diferentes em grupos nas quais ela se subdivide. Um desses grupos se define
como Associação de Direito Pontifício são os Arautos do Evangelho.

Com o objetivo de utilizar a internet para expressar e reverberar seus valores, esses grupos
aumentam gradativamente sua presença no ciberespaço, o que demonstra o desejo de se
apropriar de um instrumento simbólico - a internet.

Especificamente sobre os Arautos do Evangelho, não se menciona em suas publicações


oficiais, inclusive na página oficial na internet, em que tipo de universo simbólico cristaliza-se
a sua principal ideologia. Desperta curiosidade o discurso que se dirige aos seguidores no
ciberespaço. O ‘lócus’, considerado então democrático e espaço livre, é usado, com
frequência, para um público específico, que decifre os códigos e os discursos. Sobre a o
estímulo à cultura do imaterial, faz-se necessário analisar de que forma o conceito é reforçado
pelo grupo em seu canal na internet, e como os elementos da estética classicista se apresentam
nesse meio de comunicação.

Os Arautos do Evangelho e seu lugar nas Associações e Movimentos Católicos

O Concílio Vaticano II, que aconteceu de 1962 a 1965, em Roma, provocou na Igreja Católica
grandes reflexões e nela estabeleceu novas posturas. Embora, quase 50 anos depois, diversos
líderes religiosos e outras associações e movimentos da Igreja Católica ainda resistam às
definições surgidas no Concílio, assembleia histórica para a Igreja, não se pode negar que
uma das grandes novidades foi a visão gregária que a Igreja assumia, a partir daquele

1
Doutoranda e mestre em comunicação pela UNIP. Contato: jornalista.gabriela@gmail.com

1926
momento, que se refere ao lugar dos movimentos e associações na instituição.
Sobre os movimentos, o site oficial do Vaticano dispõe de uma seção sobre o DECRETO
APOSTOLICAM ACTUOSITATEM em latim, ou Decreto sobre o Apostolado dos Leigos,
que explana a “importância e atualidade do apostolado dos leigos na vida da Igreja”. A página
cita em seu primeiro parágrafo:

1. O sagrado Concílio, desejando tornar mais intensa a atividade apostólica do Povo de Deus
(1), volta-se com muito empenho para os cristãos leigos, cujas funções próprias e
indispensáveis na missão da Igreja já em outros lugares recordou (2). Com efeito, o
apostolado dos leigos, que deriva da própria vocação cristã, jamais poderá faltar na Igreja. A
mesma Sagrada Escritura demonstra abundantemente como foi espontânea e frutuosa essa
atividade no começo da Igreja (cfr. Act. 11, 19-21: 18, 26; Rom. 16, 1-16; Fil. 4, 3). Os
nossos tempos, porém, não exigem um menor zelo dos leigos; mais ainda, as condições atuais
exigem deles absolutamente um apostolado cada vez mais intenso e mais universal. 2

Como explica o documento, a Igreja Católica viu nas associações e movimentos a


oportunidade de se aproximar das comunidades, levando em consideração que a crise na
formação de novos padres para esse exercício já é há algum tempo realidade enfrentada pela
instituição.

Ao que se refere aos Arautos do Evangelho, em livro comemorativo publicado em julho de


2001, o grupo comemora o título de Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício,
“que ocorreu por ocasião da festa litúrgica da Cátedra de São Pedro, (22 de fevereiro) em
2001”.

A aprovação lhes conferia a partir daquele momento um mandato especial, que implicava à
comunidade uma relação própria com a Cátedra de São Pedro, ou seja, com o Papa, líder
máximo da Igreja Católica, possibilitando que não mais estivesse como ponto de referência
um bispo. A medida fez a vertente, agora mais próxima do Papa, ganhar respeito da
comunidade católica e expandir os trabalhos. Sua organização demonstra complexidade
quando o assunto é defini-los. De acordo com seu site oficial, o www.arautosdo.org.br, “a
Associação dos Arautos é composta predominantemente por jovens entre 15 e 25 anos, e está
presente em 78 países”. Está subdivida em membros que abraçam a vida religiosa, e membros

2
DECRETO APOSTOLICAM ACTUOSITATEM, Disponível em <http://www.vatican.va/
archive/hist_councils/iivaticancouncil/documents/ vat-ii_decree_19651118_ apostolicam-
actuositatem_po. html>. Acesso em 01 jun. 2012.

1927
leigos, que estão engajados em outras atividades do movimento.

Segundo o canal oficial dos Arautos na internet, dos abraçam a vida religiosa está a masculina
Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli, constituída por membros dos Arautos do Evangelho
que se ordenaram sacerdotes, e na feminina Regina Virginum, ramificação feminina dos
Arautos. Ambas receberam aprovação pontifícia em 4 de abril de 2009. Há também os leigos
que não professam votos, mas praticam o celibato, vivendo em casas destinadas
especificamente para rapazes ou para moças, e os Cooperadores. Desta categoria fazem parte
aqueles que tenham constituído família, ou ainda, exerçam profissão que não permita tempo
livre para se envolver com as atividades do grupo, e dispõem-se a participar dos encontros
periódicos dos Arautos.

É citado no portal que, em seus estatutos (material não disponível no canal), está delineada a
vocação dos Arautos do Evangelho:

Esta Associação nasceu com a finalidade de ser instrumento de santidade na Igreja,


ajudando seus membros a responderem generosamente ao chamamento à plenitude da vida
cristã e à perfeição da caridade, favorecendo e alentando a mais íntima unidade entre a vida
prática e a fé.3

As palavras “plenitude” e “perfeição” são claros sinais de um discurso de


autoengrandecimento de um grupo que se pretende eleito, escolhido, ou seja, exemplo para os
demais, bem peculiar à estética classicista.

Esse comportamento se daria em decorrência do fechamento nele mesmo, e assim os


membros enxergam-se como parte integrante de uma “comunidade”. O fechamento, o qual
Zygmunt Bauman (2001, p. 16) denomina como círculo aconchegante, prevê uma
organização viva e fechada (sem acesso), na qual seus membros se sentem seguros, capazes
de defendê-la contra possíveis “invasores” ou demais fatores que abalariam sua estabilidade.

As lealdades humanas, oferecidas e normalmente esperadas dentro do ‘círculo


aconchegante’, não derivam de ‘uma lógica social externa ou de qualquer análise
econômica de custo-benefício’. Isso é precisamente o que torna esse ‘círculo
aconchegante’: não há espaço para o cálculo frio que qualquer sociedade em volta poderia
apresentar, de modo impessoal e sem humor, como ‘impondo-se’ à razão. E essa é a razão
porque as pessoas afetadas por essa frialdade sonham com esse círculo mágico e gostariam
de adaptar aquele mundo frio ao seu tamanho e medida. Dentro do ‘círculo aconchegante’
3
Informação disponível em www.arautosdoevangelho.com.br. Acesso em maio de 2011.

1928
elas não precisam provar nada e podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e
ajuda14. (BAUMAN, 2001, p. 16).4

Sobre sua origem, as informações oficiais da Associação não são elucidativas. O mesmo livro
(2001, p.56) menciona que a origem dos Arautos “teve a Providência seus desígnios
misteriosos”, referindo-se aos “insondáveis desígnios de Deus”.

A linguagem textual dos Arautos do Evangelho nos falam tanto quanto o texto que constroem
em seu canal. Neste sentido, destacamos também a linguagem utilizada para a internet: a
figura do fundador, monsenhor João Scognamiglio Clá Dias. Clá possui uma área criada
especificamente para suas mensagens, no endereço www.joaocladias.org.br, que detalha das
origens do fundador à trajetória da sua vida pública e, segundo informações dessa área, é
brasileiro, nascido em São Paulo, a 15 de agosto de 1939. O canal enfatiza a data
comemorativa da Igreja Católica por ocasião de seu nascimento: a 15 de agosto se celebra a
solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Afirma ainda que seus pais, António Clá Dias e
Annitta Scognamiglio Clá Dias, “constituíam uma família de imigrantes europeus (o pai era
espanhol e a mãe italiana), na qual a fé católica, herdada de seus maiores, era ainda muito
viva”.

Com fotos do fundador em quase todas as páginas, o site menciona o grau acadêmico de João
em vários momentos, inclusive na página oficial dos Para haver identificação, as facções da
Igreja Católica imprimem um sinal em seu chamado ‘trabalho de evangelização’, o qual
denominam “carisma” que, de acordo com informações de seu site oficial, “os leva a procurar
agir com perfeição em busca da pulcritude em todos os atos da vida diária, mesmo estando na
intimidade, que está expresso no sublime mandamento de Jesus Cristo: ‘Sede perfeitos como
vosso Pai Celeste é perfeito’ (Mt 5, 48)”. No que se refere à espiritualidade, de acordo com o
seu estatuto, procuram viver a religiosidade tendo como referência três pontos: Eucaristia,
Maria e o Papa. Esses conceitos estão estampados no brasão5 que ostentam, no portal e nas
roupas.

Os Arautos do Evangelho e TFP


4
No livro “Comunidades: a busca por segurança no mundo atual”, Zygmunt Bauman
menciona que quanto mais fechadas as comunidades, mais segurança elas sentem e mais
homogêneas são, não permitindo a interferência externa, logo, questionamentos sobre
condutas e discursos (BAUMAN, 2003, p. 16).
5
Sobre o brasão ver <http://www.arautos.org.br/imprimir/19510.html> . Acesso em 22 maio
2011.

1929
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP6 define-se como
entidade cívica legalmente registrada em São Paulo em 1960. Fundada por um grupo de
católicos leigos tradicionalistas, encabeçados por Plínio Corrêa de Oliveira e com atuação
política destacada nas décadas seguintes ao seu surgimento, a TFP, mesmo com a morte de
seu criador, em 1995, ainda possui sócios que mantêm sua organização original. Formam, em
cada Estado, uma seção, tendo à frente um diretório seccional, que se divide em subseções,
coordenadas por dois órgãos de jurisdição em todo o país: o Conselho Nacional, com o
encargo das atividades sociais em seus aspectos culturais e cívicos, e a Diretoria
Administrativa e Financeira Nacional, cujo campo de ação é definido pelo próprio título.

Sua matriz de interpretação do mundo deriva do catolicismo integrista, doutrina


contrarrevolucionária que preconiza uma reedificação da ordem social cristã como a única
solução aceitável para a solução dos problemas engendrados desde o fim da época medieval
pela chamada modernidade (ZANOTTO, G. 2006; p. 8).

Matéria publicada pela revista Veja7 menciona que as grandes brigas que racharam a TFP se
deram após a morte de Plínio, como mencionado, em decorrência da disputa por donativos
entre a TFP e os Arautos do Evangelho. Outra matéria, esta publicada pela Folha de S.Paulo,
e reproduzida no site www.fundadores.org.br, datada de 13 de dezembro de 2008, afirma:

Eles perderam o controle da entidade em 2004, numa disputa judicial que havia começado
em 1997. Um grupo dissidente, liderado pelo hoje monsenhor João Scognamiglio Clá Dias,
exigiu na Justiça o direito de que as decisões da organização não fossem tomadas apenas
pelo pequeno grupo de, então, oito sócios-fundadores remanescentes. Os dissidentes
perderam em primeira instância, mas ganharam a causa e o controle da TFP em decisão do
Tribunal de Justiça de São Paulo em 2004. Desde então o processo aguarda julgamento
final no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Entre 2004 e 2006, os sócios-fundadores e seus
seguidores se separaram da “nova” TFP e passaram a se denominar “Associação dos
Fundadores da TFP”. Há dois anos, nova decisão proibiu o uso da sigla pelos fundadores.
Eles então passaram a se denominar apenas “Associação dos Fundadores”. Clá Dias e seus
seguidores, também fundadores da associação ligada à Igreja Católica Arautos do
Evangelho, são acusados pelos fundadores de terem tomado o controle da entidade que teve
seu auge no regime militar (1964-1985) para abandonar a principal característica da TFP: a

6
Quem é a TFP. Disponível em <http://www.tfp.org.br/tradicao-familia-e-propriedade/luz-
agua-ou-lenha>. Acesso em 05 jun. 2011.
7
Matéria “A TFP do B”, publicada pela revista Veja em 28 de abril de 2004. Disponível em
<http://veja.abril.com.br/280404/p_094.html>. Acesso em 24 jun. 2011.

1930
militância política em defesa intransigente do direito de propriedade e combate a
movimentos sociais que ameacem esse princípio (FOLHA DE S.PAULO; 13 de dezembro
de 2008).

A matéria afirma, na ocasião em que se celebrava o centenário de Plínio (2008), que


fundadores do grupo perderam o direito de usar a sigla da TFP e que disputas judiciais após a
morte de Plínio deram poder ao grupo dos Arautos do Evangelho, que teria deixado de fazer
militância política.Com esse DNA vemos florescer uma vertente da Igreja Católica que hoje
possui forte atuação “on line”.

Cavaleiros Templários

Em busca dos referenciais simbólicos que norteiam os Arautos do Evangelho, deparamo-nos


com as constantes semelhanças com os Cavaleiros Templários.
Na história, tudo o que provoca pouca informação é passível de devaneios, oriundos da
capacidade imaginativa do ser humano. Encontrar informações que sejam fiéis aos Cavaleiros
Templários não foi tarefa fácil, dado o número de especulações sobre sua verdadeira história.
Quisemos investigar as semelhanças dos Arautos do Evangelho com os Cavaleiros
Templários, a fim de validar nossas citações sobre as sobreposições temporais.

Em artigo apresentado no Congresso Internacional de História (setembro de 2011), Augusto


Moretti Junior e Jaime Estêvão dos Reis8 citam que em 1120 “alguns cavaleiros cruzados que
participaram da tomada de Jerusalém, receberam a missão de proteger os peregrinos que
viajavam à Terra Santa contra os ataques dos muçulmanos”. Os pesquisadores explicam a
estruturação do poder na Ordem Militar dos Cavaleiros Templários. O grupo buscou, como
afirmam, a proteção dos peregrinos e o reconhecimento da Igreja Católica para oficialmente
terem uma identidade.

Ao completarem nove anos de estadia em Jerusalém, Hugo de Payns, representando aquele


pequeno grupo de cavaleiros, compareceu diante do Concílio de Troyes, com a intenção de
obter o reconhecimento da Ordem pela Igreja Católica, acabar com a crise de identidade que
os irmãos passavam e conseguir uma Regra que pudesse normatizar seu funcionamento”

8
Artigo intitulado “A estruturação do poder na Ordem Militar dos Cavaleiros Templários”,
apresentado no Congresso Internacional de História, setembro de 2011, disponível em
<http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/68.pdf>. Acesso em 20 dez. 2012.

1931
(MORETTI, A. e ESTEVAO, Jaime Apud Demurger. 2011).9

A partir daí encontramos as primeiras semelhanças entre os Arautos do Evangelho e os


Cavaleiros Templários. Os Arautos do Evangelho se preocupam em se respaldar em um
estatuto que os ampara nas regras e orientações de vida do membro. Por esse estatuto o grupo
conseguiu a Aprovação de Direito Pontifício, que lhe dá, assim como aos Templários, o
direito de responder diretamente ao papa, o que é na realidade o que os caracteriza no cenário
das vertentes católicas do Brasil.

Sobre as especulações acerca do segredo que a Ordem protegia, mais se destaca a de que os
Templários seriam guardiões do Santo Graal. O mistério acontece pelo que realmente seria o
Santo Graal e quais indícios fizeram com que essa questão permanecesse latente no
imaginário humano. O Graal, segundo a revista Sociedades Secretas, seria uma taça.

Diz a lenda que foi a taça na qual Jesus bebeu na última ceia; outra lenda diz que foi a taça
em que José de Arimateia colheu o sangue que saiu das feridas de Jesus na cruz. Uma
terceira versão da mesma lenda diz que Maria Madalena teria coletado o sangue de Jesus
nessa taça. (SOCIEDADES SECRETAS, Escala, 2011; p. 96).

Jean Chevalier, no “Diccionario de los Símbolos” (1986, p. 536), cita várias definições para o
Graal. Menciona Julius Evola (Julius Evola, en BOUM, 53), quando define “el grial... es
propriamente un objeto sobrenatural, cuyas principales virtudes son: que alimenta (don de
vida); ilumina (espiritualmente); hace invencible. Segundo o autor, entre as várias
explicações, a menos delirante é a de Albert Béguin, que define o Graal como sangue de Jesus
Cristo; o do cálice, que segundo a doutrina católica foi oferecido aos discípulos na última
ceia, no ritual em que é lembrado em todas as missas, e aquele sangue que impregnou os
tecidos do sepulcro:

El graal representa a la vez, y substancialmente, a Cristo muerto por los hombres, el cáliz
de la santa cena (es decir la gracia divina concedida por Cristo a sus discípulos), y en fin el

9
Augusto Moretti Junior e Jaime Estêvão dos Reis citam os estudos de Alain Demurger
sobre a estruturação do poder na Ordem dos Templários. Moretti e Estêvão mencionam que
em 26 de novembro de 1095 “um dia antes da proclamação da primeira Cruzada”, houve uma
discussão sobre as mudanças de propostas de direcionamento da Igreja Católica, que ficou
conhecida como Reforma Gregoriana. Apoiados nos estudos de Demurger, os historiadores
mencionam que “a reforma visava, prioritariamente, libertar a Igreja do domínio dos laicos”.
O artigo pode ser lido na íntegra no link: http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/68.pdf

1932
cáliz de la misa, que contiene la sangre real del Salvador. La mesa donde reposa el vaso es,
pues, según estos tres planos, la piedra del santo sepulcro, la mesa de los doce apóstoles, y
por fin el altar donde se celebra el sacrificio cotidiano. Estas tres realidades, la crucifixión,
la cena y la eucaristía, son inseparables y la ceremonia del grial es su revelación, al ofrecer
en la comunión el conocimiento de la persona de Cristo y la participación en su sacrifício
salvifico. (CHEVALIER, 1986, apud BEGG, p. 18).

Lendas e especulações à parte, é possível analisar pela contextualização do surgimento dos


Arautos do Evangelho que há a busca incessante pelo modelo de perfeição e beleza. Os
elementos de semelhança com os Cavaleiros Templários permitiriam afirmar que se
acreditaria defensora de um Santo Graal.

Em ambas as Ordens estão implícitos conceitos de eugenia: para ‘ser de Deus’ é preciso, além
de aceitá-lo e viver de acordo com os ensinamentos da Igreja Católica, pertencer a um grupo
de pares idênticos, belos e perfeitos.

No documentário “Arquitetura da destruição”10 (Peter Cohen, Suécia, 1992), há a descrição de


toda a ação do ditador alemão Adolph Hitler para eliminar o que não se enquadrava no que
entendia por perfeição. A produção detalha em imagens e descrições históricas como o
ditador alemão sacrificou vidas que se não se encaixavam no seu padrão de beleza: assassinou
doentes mentais, idosos e portadores de deficiência física. Outro documentário do mesmo
diretor, “Homo Sapiens 1900” (1998), detalha em fotografias e documentos o que é o
conceito de limpeza racial para a construção de uma raça superior. O ideal de perfeição é o
que hoje entendemos por ‘eugenia’. O termo foi popularizado no século XIX por Francis
Galton, que se consagrou, entre outras teorias, como um dos fundadores da antropologia,
segundo estudo de Geraldo Salgado-Neto.11

Não é nosso objetivo nos aprofundarmos no tema eugenia, mas as citações demonstram como
na contemporaneidade alguns ideais permanecem vivos nos discursos, inclusive no âmbito
religioso. A primeira imagem sobre os Arautos do Evangelho é a indumentária e a relação que
se estabelece com os Cavaleiros Templários, incluídas a organização e a semelhança dos

10
No documentário “Arquitetura da destruição”, o sueco Peter Cohen enfoca a trajetória do
ditador alemão Adolph Hitler, que culminou no extermínio de milhares de judeus, sob a
prerrogativa de purificação da raça humana.
11
Citação de Geraldo Salgado-Neto, doutor em Agronomia pela Universidade Federal de
Santa Maria, em artigo Sir Francis Galton e os extremos superiores da curva normal.
Publicado na Revista de Ciências Humanas v.45, n. 1, p. 223-239, 2011.

1933
integrantes. Em uma primeira análise, chega-se a supor que se trata de uma vertente
tradicional do catolicismo.

Para os Arautos do Evangelho, a internet é uma das principais formas de relacionamento com
seus seguidores. Já a algum tempo, estudiosos demonstram uma grande preocupação com os
caminhos que a obsessão pela velocidade podem tomar. Konrad Lorenz em seu livro “Os oito
pecados da civilização” (1973; p. 28) chama a atenção para a aceleração do cotidiano do
homem e sua conseqüente cegueira, em decorrência do senso estético e moral afetado pela
superpopulação das cidades, que resvala, inclusive, na sua insensibilidade diante de uma
diversidade de situações grotescas, e que os Arautos do Evangelho, vertente da Igreja Católica
ignoram, quer por desconhecimento, quer por questões particulares do grupo.

O senso estético e moral estão estritamente ligados. É evidente que os homens, obrigados a
viver nas condições das quais falamos, sofre a atrofia de um e de outro. A beleza da
natureza e a beleza cultural, criado pelo homem, são necessárias à saúde moral e espiritual
do ser humano. Essa cegueira total da alma para com tudo aquilo que é bonito, difundida
atualmente em grande velocidade e em toda parte, é uma doença mental que deve ser levada
a sério, não fosse pelo fato de acarretar a insensibilidade diante dos fatos moralmente mais
repreensíveis. (LORENZ, K. 1973; p. 28).

O Portal dos Arautos do Evangelho e a comunicação no ciberespaço

Criado em 2008 com o objetivo de evangelizar através da internet e tornar conhecido o


trabalho dos Arautos do Evangelho, o portal, em meados de 2011, utilizava o endereço
www.arautosdoevangelho.com.br. Em 2012 o site seguiu as novas tendências da tecnologia
encurtando o endereço ou URL para www.arautos.org. No entanto, para não desestimular o
usuário a continuar na página, caso ele digite o endereço antigo será redirecionado para o
endereço atualizado.

O canal dispõe de uma diversidade de ferramentas para manter conectados os seus seguidores
e está disponível em português, espanhol e italiano. Possui área para cadastro, o que confere
aos cadastrados um email diário com o Evangelho do Dia e atualizações de notícias. Registra
uma média de 955 mil visitas por mês e 715 mil visitantes únicos, contabilizando cerca de
1.855.000 visualizações de páginas, segundo informações disponibilizadas pelos próprios
Arautos para esta pesquisa. Esse número de acessos é considerável para um site de um grupo

1934
que se supõe tão segmentado, pressupondo um fenômeno maior do que se imagina12.

Todo o site possui links que levam a uma diversidade de desdobramentos de página que pode,
facilmente, fazer com que o internauta se perca em suas páginas. Ao posicionar o mouse sobre
o meu “Quem somos”, por exemplo, é aberta com os seguintes submenus: “Arautos do
Evangelho”, “Virgo Flos Carmeli”, “Regina Virginum” e “ITTA – Instituto Teológico São
Tomás de Aquino”. Em cada um desses itens, históricos sobre o funcionamento e subdivisão
dos Arautos do Evangelho que foram descritas no capítulo I desta pesquisa. Importante citar
que a cada click, os links ganham novos endereços.

Tomaremos as contribuições de Malena Contrera (2010; p. 52) sobre a sociedade da emissão e


a cultura do excesso. Segundo a pesquisadora, essa apologia ao excesso é típica da era
industrial capitalista, onde a cultura do excesso pensa ser êxtase, e “o êxtase parece ser a
resposta do homem contemporâneo à vacuidade do sujeito e ao desaparecimento do objeto
que o seduziu”, ou seja, o esvaziamento do sentido pela não identificação com o próprio
corpo, tendo como resultado a “cultura da aparição e da experimentação ilimitada”.

Sabemos que o êxtase nasce com a cultura, como símbolo do homo religious 13; não é novo
fato de que o êxtase sempre nos pareceu irresistível. Novo, porém, é sua emancipação do
contexto do ritual e da busca de transcendência, já que inicialmente o homem buscava os
estados alterados da consciência e o êxtase nas práticas religiosas ou em rituais específicos
(que ele cria exatamente para conter e e significar essas práticas), em práticas que
demarcavam claramente o caráter extraordinário do êxtase – com tempo e espaços
diferenciados e delimitados – e que o relacionavam com uma função transcendente ou
mítica. O êxtase era, enfim, um meio para a ampliação da consciência ou para a
comunicação com os deuses (como no caso do xamanismo), e não um fim em si mesmo
(CONTRERA, M. 2010; p. 52).

A estruturação do portal e a constante auto-afirmação no discurso do portal dos Arautos do


Evangelho nos leva a refletir o fechamento deste grupo em si mesmo. As expressões, a
referência a si mesmo e a tentativa de utilização do ciberespaço para reverberar os valores
desta vertente da Igreja Católica, nos leva a crer que o grupo fala ‘para si’.

12
E-mail enviado pela coordenação do grupo em 07 de junho de 2011 para fins dessa
pesquisa confirmam a informação citada. No entanto, a pesquisa encontrou uma grande
dificuldade em acessar dados sobre o portal, referentes à acessos, ferramentas entre outros.
Também não foram encontradas referências em outros sites da internet que não fossem só o
próprio www.arautosdoevangelho.com.br.
13
Apud Mircea Eliade sobre o caráter religioso do homem.

1935
A cada click os menus se desdobram e a possibilidade de informação são infinitas. Entre
notícias, destaques da TV Arautos, enquete, foto do dia, capa do último boletim distribuído
aos membros desta vertente da Igreja Católica, banner convidando o internauta para assistir a
missa on-line ao vivo, últimos artigos, últimos posts dos blogs, galerias de imagens, ainda na
lateral direita links que se repetem. Em sua arquitetura extremamente confusa, vemos um
portal no qual a cada click os menus se desdobram e as possibilidades de informação são
infinitas.

Tendo em vista todos esses conceitos e análises, podemos dizer que há uma identificação do
grupo com a estética caótica da internet, e um uso exacerbado de conceitos que pode espantar
um internauta que se aventure a navegar por essas páginas. Conforme veremos mais adiante, o
canal, nada mais é que uma tentativa para utilizar a cibercultura como forma se auto-
legitimação do grupo, independente de quais sejam os esforços e sacrifícios do corpo e do
ritual para que isso ocorra.

Vemos ainda no discurso dos Arautos do Evangelho uma quantidade de informações que
muitas vezes remetem a eles mesmos e que, no entanto, não oferece interação com aqueles
que acessam o portal. São perguntas sem respostas, sugestões sem confirmação de que foram
recebidas, comentários sobre os posts que não são mencionados. Tal performance se
contrapõe ao conceito que conhecemos por internet 2.0, que deveria oferecer interatividade
total aos usuários. Para Sodré, isso também pode ser uma estratégia de poder.

Aquele que agora não se deixa ver é o mesmo que retém o poder, as regras de organização
disciplinar daqueles que são vistos. Esta dicotomia entre ver e ser visto é correlata de outra,
fundadora da “função” individualmente moderna: a separação radical, por parte do
indivíduo, entre “si mesmo” e seu papel social. (SODRÉ, M. 1990; p.23).

Redes Sociais

Aderindo às tentativas de novas formas de relacionamento pela internet, os Arautos do


Evangelho também possuem perfis e esforços de interatividade nas chamadas redes sociais, e
demonstram um grande desempenho nesse universo em seus diferentes formatos.

Em outubro de 2011, quando fizemos este levantamento, no facebook haviam 7 perfis


diferentes (facebook.com/joaocladias, facebook.com/arautosdoevangelho, facebook.com/
heraldos, facebook.com/ virgofloscarmeli, facebook.com/araldidelevangelo,

1936
facebook.com/pages/heralds-of-thegospel, facebook.com/pages/ArautosdoEvangelho).
Infelizmente não é possível saber se todas pertenciam ao grupo, mas levavam o nome da
vertente da Igreja Católica e continham informações e direcionamentos ao portal. Nesta
ocasião, a home mostrava o número dos chamados “curtidores” da página oficial que
ultrapassava 7 mil pessoas que se disponibilizaram a seguir as ações dos Arautos. Na data de
nova avaliação43, os dados nos mostram que 28.769 pessoas curtem a página oficial do grupo
e recebem suas atualizações.

Algumas imagens postadas no facebook confirmam o que já foi citado sobre o apelo
hiperbólico da linguagem utilizada pelos Arautos do Evangelho na internet. Nas postagens
dos curtidores da página da vertente da Igreja Católica, nenhum ‘curtir’ por parte dos Arautos,
o que corresponde a um sinal de que as publicações são lidas, analisadas e que agradam esta
vertente da Igreja Católica, possível indício que a grande preocupação do grupo é apenas falar
e não estabelecer algum tipo de troca.

Lugar possível entre a matriz religiosa cristã e a internet – a noção de religare na mídia
contemporânea

As novas formas de comunicação da Igreja Católica, principalmente a internet, possivelmente


não levaram em conta como as experiências religiosas se transformariam a partir da
comunicação mediada pelos equipamentos eletrônicos e suas imbricações no campo da
experiência do religare. Malena Contrera, em artigo apresentado XIV Compós (2005), explica
a relação entre a nova ambiência das sociedades contemporâneas e as crescentes facilitações
técnicas. Segundo a pesquisadora, a realidade predispõe a uma “espécie de utilização
invertida dos aparatos midiáticos”.

O meio que primeiramente se prestava a ser um conector/ vinculador entre as partes


comunicantes, passa a agir algumas vezes como um distanciador simbólico para pessoas
submetidas a um ambiente saturado, já que interpõe, entre as partes envolvidas, aparatos
eletrônicos e elementos técnicos (CONTRERA, M. 2005; p. 3).14

Segundo a pesquisadora, há um “fim do real”, o que leva à procura de uma realidade

14
Artigo A Dessacralização do mundo e a sacralização da mídia: consumo imaginário
televisual, mecanismos projetivos e a busca da experiência, apresentado na XIV Compós,
2005, Niterói RJ. GT Comunicação e Cultura. Disponível em GT - Comunicação e Cultura.
Disponível em <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_687.pdf >. Acesso em 07 maio
2012.

1937
alternativa, resultando na busca de uma religiosidade que preencha esse vazio. Jorge Miklos
(2012; p.9),15 com base nos estudos de Malena Contrera, sugere uma dupla contaminação
entre a esfera do religioso e a midiática: os formatos religiosos se apropriando do elemento
ritual religioso, sugerindo, de acordo com o pesquisador, ‘uma estética própria’, resultando na
ciber-religião.

Assim, as experiências religiosas no cyberspace – a ciber-religião, como fenômeno


midiático, nada mais são do que uma busca por um território encantado, mas quem acaba
sofrendo este encantamento é a própria mídia (MIKLOS, 2012; p. 9).

Especificamente no portal, é possível detectar contaminação entre o religioso (tradicional) e o


midiático (moderno), explícito na maneira como o grupo lança mão desses dispositivos. Há a
exacerbada emissão de conteúdo e raras oportunidades de interatividade, como sugere o
modelo de internet atual. É possível observar comentários não respondidos, solicitações sem
notificações de leitura e a mesma informação duplicada de várias formas, nos textos do portal
e nas postagens das redes sociais.

A saturação no portal é traço de uma linguagem que induz à reflexão sobre a necessidade da
emergência no cenário midiático, descrita por Malena Contrera, de uma civilização que
precisa de heróis.

A partir do que aqui se propõe, é possível verificar a relevância de uma questão latente
analisada no início deste capítulo, presente no portal: a insistência na figura do fundador João
Clá Dias nas páginas do grupo na internet.

Numa sociedade sem heróis pessoais, surgem então instâncias, instituições, que se
apresentam sob um evidente discurso heróico,16 na tentativa de evocar as identificações e o
poder simbólico-mítico do herói (poder esse que será, depois, muito convenientemente
usado); entre elas, atualmente no Brasil, vemos destacarem-se duas: as novas religiões
evangélicas e a mídia (CONTRERA, 2010, p. 26).

15
MIKLOS, Jorge. Ciber-religião: a construção de vínculos religiosos na cibercultura. São
Paulo, Idéias e Letras, 2012.
16
No livro O poder do mito, Joseph Campbell fala sobre a saga do herói e a motivação para
tantos heróis na mitologia. Campbell explica “A façanha convencional do herói começa com
alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as
experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade”(CAMPBELL,
1990, p.137).

1938
Uma das justificativas para se dedicarem a estabelecer performance na internet é a tentativa
de difundir sua mensagem, atendendo ao chamamento da Igreja Católica. Mas os
antagonismos do discurso e o excesso de informações abrem lacunas para esta pesquisa
questionar os objetivos dos Arautos. No cyberspace, espaço-tempo imaterial, em que o corpo
é abolido da experiência religiosa, analisa-se onde se encaixa o discurso tecnófago dos
Arautos do Evangelho e de que forma uma comunidade não porosa faz um elogio ao valor
simbólico do meio. Nesse universo, o padrão de um católico ideal, imaterial, ou seja, puro
espírito (não corpóreo), encontra abrigo perfeito.

Outorga-se à internet uma espécie de poder divino, que Malena Contrera (2012, p.55)
denomina crise das competências simbólicas A pesquisadora ressalta que essa “natureza
autorreferente da tecnologia retroagindo sobre a linguagem e criando aí um mundo de alta
produtividade, porém fechado para o espanto, para o não operacionalizável, para o não
comunicável, para o encantamento sem palavras frente à grandiosidade do desconhecido e do
silêncio” (2012, p. 74).

Outro ponto da relação religião/internet centra-se no uso das categorias temporais. Conforme
explica Mircea Eliade (1962, p.63), “o Tempo para o homem religioso não é nem homogêneo
e nem contínuo”. No ambiente internet não há limitação de tempo e hora. O conteúdo está
disponível e se adapta a quem o acessa. Embora não tenha sido verificada interatividade da
atualização do portal e das redes sociais, conforme análises no início deste capítulo, as
atualizações são feitas diariamente.

A abolição de tempo ritual na execução contínua dos programas da internet leva a retomar a
área “Reze por mim” no portal. Em qualquer horário de acesso, visualiza-se a mensagem que,
a partir daquele momento, um membro está rezando por ele, em um imediatismo
desrritualizador, como uma “usurpação dos atributos divinos pela tecnologia mediática”, no
caso, a onipresença simulada pela rapidez do meio. Esse conceito é denominado por Jorge
Miklos (2012, p. 57) de midiofagia. O pesquisador define que há ação de devoração e
metabolização por parte dos meios de comunicação eletrônicos interativos dos conteúdos
arcaicos presentes no imaginário de uma cultura, e após esse processo uma devolução dos
seus interesses.

(...) Denominamos de midiofagia a ação dos meios eletrônicos interativos (mais


precisamente, os computadores e outras tecnologias capazes de rede) e seus formatos de
apropriar-se (devorar) de conteúdos arcaicos da cultura, em particular os atributos divinos, e

1939
identificar-se com eles (MIKLOS, 2012, p. 61).

Tais análises nos levam á seguinte reflexão: qual o custo de muitas vezes haver a tentativa de
se seduzir o fiel e engajá-lo nas atividades próprias de cada vertente da Igreja Católica?

Ambiente Imaginário dos Arautos do Evangelho e relação com ideais estéticos


classicistas no portal

O conceito que mais se aproxima daquele que remete à análise do ambiente midiático em
questão, o cyberspace, propõe vivências do homem concreto em um não lugar. Essa reflexão
fica ainda mais complexa quando se transfere esse panorama para o campo da religiosidade.
Por isso, nos utilizaremos dos estudos sobre o imaginário midiático proposto por Edgar
Morin, denominado “noosfera”.

As representações, os símbolos, mitos, ideias, são englobados simultaneamente pelas


noções de cultura e Noosfera. Sob o ponto de vista da cultura, constituem sua memória os
seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Sob o
ponto de vista da Noosfera, são entidades feitas de substância espiritual e dotadas de uma
certa existência. Saída das próprias interrogações que tecem a cultura de uma sociedade, a
Noosfera emerge como realidade objetiva, dispondo de relativa autonomia e povoada de
entidades a que vamos chamar de ‘seres do espírito’ (MORIN. 1992, p. 101).

Morin ressalta que se vive em um universo de “signos, símbolos, mensagens, figurações,


imagens, ideias”, e que há ação e reação diante das diversas situações com base nesse
universo que, por outro lado, mediam as “relações dos homens entre si, com a sociedade, com
o mundo” (1992, p. 102). No entanto, o estudioso pondera que o crescimento e o
desenvolvimento dessa atmosfera garantem a expansão da comunicação com o universo, e
que a proliferação noosférica dos mitos e das abstrações acentua a separação entre o mundo
humano e a natureza.

Sobre a autodeterminação, os Arautos do Evangelho se mostram como os próprios Cavaleiros


Templários. As semelhanças históricas e conceituais analisadas nesta pesquisa indicam uma
vertente tradicionalista que busca recuperar para a Igreja Católica o que ela perdeu
historicamente. Entre os itens a serem assinalados está o número de seguidores, cujas razões
estão em sua história, sua atuação, na incompreensão da evolução da humanidade ou no poder
de persuasão. Por isso, o grupo demonstra todo o tempo a determinação em reconstruir essa

1940
história, baseada em cristãos produzidos em série, que aceitem sua doutrina, identifiquem-se
com sua ideologia e disseminem esse conceito.

Embora seja um grupo antagônico, com fortes características medievais, que se aventura a
mergulhar na modernidade dos meios tecnológicos - o meio de comunicação ao qual este
estudo se atém, o cyberspace permite espaço a todos aqueles que desejam ‘seu lugar ao bit’.
Ao se apropriar de estratégias específicas e de elementos muito fortes da estética classicista e
da estética medieval, buscam criar/reforçar sua imagem pública por meio do portal, o que se
verá a seguir.

No portal observa-se a tentativa de o grupo relacionar virtude e beleza, em evidente


preocupação com a imagem e questões estéticas. Fundamentado em elementos da estética
classicista, o grupo parece tentar criar essa identidade com o público, e mostra que a melhor
forma de se alcançar a virtude é pela beleza. Há coerência com sua definição: “Seu carisma os
leva a procurar agir com perfeição em busca da pulcritude em todos os atos da vida diária”.
Existe ainda relação entre cultura e evangelização (cuja afirmação é insistente pelos Arautos
em seu portal insiste, quando cita que o grupo busca evangelizar “através da beleza e da
arte“).

Para uma relação mais cuidadosa do portal com a ‘estética classicista’, deve-se recorrer aos
estudos de E. H. Gombrich, em “A história da arte” (1950). O autor analisa as principais
características da arte, e denomina o período da arte clássica como “O Império do Belo”,
ocorrido entre os séculos IV a.C e I d.C.

A busca da reprodução do corpo ou concepção arquitetônica perfeitas foi marca desse


período. De acordo com Gombrich, construções como o Partenon e o templo de Erecteion,
localizados em Atenas, destacaram-se pelos detalhes ricamente decorados, imprimindo “graça
e leveza”, que marcaram a escultura e a pintura do período. Gombrich menciona que, com o
tempo e o aperfeiçoamento da técnica, durante o século IV as estátuas ficaram famosas em
toda a Grécia, e os gregos passaram a discutir arte. Ele enfatiza que “os gregos educados
discutiam agora pinturas e estátuas como discutiam poemas e teatro; elogiavam sua beleza ou
criticavam sua forma e concepção”. (1950, p. 100). Fruto dessa evolução, a busca dos artistas
em reproduzir o corpo com perfeição chegava ao seu auge pelo conhecimento adquirido.

Não existe corpo humano que seja tão simétrico, tão bem construído e belo quanto o das
estátuas gregas. As pessoas pensam frequentemente que o método empregado pelos artistas

1941
consistia em observar muitos corpos e deixarem de fora qualquer característica que não lhes
agradasse; que começavam copiando meticulosamente a aparência de um homem real e
depois o embelezavam, omitindo qualquer irregularidade ou traço que não se
harmonizassem com a ideia de um corpo perfeito. Muitos dizem que os gregos
‘idealizaram’ a natureza e que a conceberam em termos de um fotógrafo que retoca um
retrato eliminando pequenos defeitos. Ocorre, no entanto, que uma fotografia retocada e
uma estátua idealizada carecem usualmente de caráter e vigor. Tanta coisa fica de fora e
tanta é eliminada que pouco restará além de um pálido e insípido espectro do modelo.
(GOMBRICH, 1950, p. 103-104).

A análise de Gombrich reveste-se de importância tendo em vista sua afirmação sobre a


irrealidade de tamanha tentativa de perfeição, faz refletir que tal idealismo é utópico e mostra
a perseguição para alcançar objetivo quase assustador. O autor lembra que na tentativa de
criar uma imagem com equilíbrio irreal, a “alma”, em seu contexto mais amplo, fica excluída
daquilo que deveria ser o seu fim primeiro, considerada “impura” demais para ser aceita.

Ao transpor seu pensamento para este objeto de estudo, outra característica embasa a hipótese
das discussões anteriores: a impressionante tentativa de disciplinamento do corpo e criação de
um modelo padronizado e perfeito. Assim como Praxíteles17 e outros famosos artistas da
estética clássica, os Arautos do Evangelho pretendem reproduzir um católico idealizado, belo,
inteligente e simétrico, inclusive fisicamente.

Os estudos de Gombrich, além da defesa do belo, perpassam a noção de perfeição e mostram


que a tentativa dos gregos de criar uma imagem perfeita era mais profunda. Segundo ele, as
representações não eram muito fiéis, excluindo-se, por exemplo, rugas da testa ou da
expressão.

O artista nunca reproduzia o formato do nariz, as rugas da testa ou a expressão específica


do retratado. É um fato estranho, que ainda não examinamos o bastante, terem os artistas
gregos, nas obras que vimos, evitado dar às cabeças uma expressão particular.
(GOMBRICH, 1950, p. 106).

Considerações finais
17
Praxíteles, citado por E. Gombrich, foi um famoso escultor da Grécia Antiga, que possui
várias obras, conhecidas por meio de cópias romanas de sua autoria, mencionadas na
antiguidade. É considerado um dos responsáveis pela evolução do Alto Classicismo para o
Helenismo.

1942
Os Arautos do Evangelho, onde quer que estejam, despertam curiosidade e perplexidade pela
uniformidade até mesmo no comportamento, formas de se expressar, andar e falar. No portal,
há imagens de diferentes momentos em que não é possível identificar diferenças entre dois
membros. Sobre o conceito de beleza, que se destaca nas formas de doutrinamento ou
evangelização dos Arautos do Evangelho, para Umberto Eco (1987) a Idade Média, a despeito
da Antiguidade Clássica, conferiu novo significado a alguns temas, “preocupando-se em
incorporá-los a marcos filosóficos, propondo uma nova consciência sistemática”, entre eles a
estética. Ao se pensar em beleza, a Antiguidade Clássica referia-se à natureza e à sua
realidade; boa parte da tradição medieval remetia-se à tradição cultural, contaminada por
conceitos do cristianismo, ou seja, não havia dissociação entre belo e verdadeiro; logo,
bom.Ainda sobre beleza e perfeição, Umberto Eco menciona outras definições de beleza da
Idade Média. Segundo o autor, havia uma concepção quantitativa que definiria o conceito de
beleza que aparecia no pensamento grego, a chamada “teoria de proporções“.

Essas definições revelam uma vertente da Igreja Católica extremamente apegada aos ideais de
beleza e perfeição estabelecidos pela Idade Média. Embora nascido no Brasil, mais
precisamente em São Paulo, o grupo pretende, a cada clique no portal e nas redes sociais,
tentar convencer que os belos são mais merecedores do “reino dos céus”.

Deduz-se que a figuração dos Arautos do Evangelho no cyberspace chega a ser irônica. Um
grupo com performance e pensamento de séculos passados tenta utilizar ferramentas da
modernidade para reverberar seu pensamento e criar sua imagem pública. Fora do contexto
histórico da Era Clássica, essa visão é extemporânea, revelando um grupo que atribui valor à
beleza, imprimindo a ela o conceito de simetria. Logo, à visão de que o belo tem de ser
igualmente simétrico e padronizado. Há a supervalorização da imagem, pois por meio dela é
mais fácil incentivar a padronização. Esse aspecto enquadra-se nas hipóteses levantadas no
início deste trabalho, de que há tentativa de doutrinação pelos Arautos do Evangelho,
especialmente na linguagem na internet - portal ou redes sociais. Uma doutrinação que visa à
padronização estética e religiosa do que entendemos por católico. O católico ideal seguida e
insistentemente mencionado pelos Arautos do Evangelho.

Na ciber-religião, o elemento primordial da experiência religiosa, o corpo, já não está


presente. Nesse espaço onipotente, em que tudo é possível, em que qualquer comportamento
encontra abrigo, não há estranhamento sobre limites/impossibilidades de um corpo mortal,
que pode não ser eternamente belo ou idêntico a outro. Corpos reais não são produzidos em

1943
série sem que isso implique um tipo de processo altamente repressivo das particularidades
humanas.

Concluímos que nessa dinâmica a construção da identidade dos Arautos do Evangelho no


cyberspace abre lacuna para a definição das reais intenções do grupo ao se expor, e induz a
questionar se acreditam que o católico ideal é imaterial, distante de todos as imperfeições e
ignorâncias, que pode ’ser criado’ e ’viver’ uma experiência em um não lugar.

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1945
1946
GT17 – “No templo, no quartel e no porão”:
os protestantes e a ditadura militar
brasileira

Coordenadores/a

Leonildo Silveira Campos Leandro Seawright Alonso


Doutor em Ciências da Religião pela Doutorando em História Social pela USP.
UMESP. Professor e coordenador no
PPCIR da mesma Universidade. Luciane Silva de Almeida
Doutoranda em História pela UFMG.
Professora Substituta do IFMG/Ouro
Preto.

Resumo

“No templo, no quartel e no porão” pretende remontar as diferentes análises históricas,


sociológicas e políticas da relação dos protestantes com a ditadura militar brasileira (1964 –
1985), nos espaços múltiplos de atuações. Perguntamo-nos pelas dessemelhantes
performances políticas dos protestantes na ditadura militar brasileira e pelas documentações
que abrangem os arquivos públicos, institucionais e pessoais. Relatos sobre apoio, resistência
e colaboração não apenas com o Regime Militar, mas com os grupos resistentes ou com a luta

armada brasileira são fundamentais para a composição de determinados corpus documentais.


Documentações distintas e narrativas criativamente produzidas por meio da história oral ou de
outras metodologias são registros analíticos desejáveis nos textos submetidos. Na busca por
políticas públicas, “ad extremum”, todos os trabalhos aceitos e encaminhados para este GT,
serão apreciados por dois dos responsáveis pela área na Comissão Nacional da Verdade, CNV
e uma convidada.

1947
“Nadando contra a corrente”: a atuação da juventude protestante
através da juventude batista baiana (1960-1970)
Luciane Silva de Almeida1

Introdução

Na conjuntura de intensa mobilização política vivenciada pela sociedade brasileira a partir dos
anos de 1950, destacou-se entre os protestantes uma juventude entusiasmada com a
possibilidade de uma prática de tipo novo ou alternativo e de uma consciência autocrítica,
enfrentando, como consequência, a reação das rígidas estruturas de poder das igrejas ou a
incompreensão dos irmãos conservadores que correspondiam sempre à maioria da membrezia.
Segundo Burity (1989, p.82), nesse momento, duas alternativas restavam a este segmento
radicalizado das igrejas: a passividade gerada pelo desânimo (quer permaneçam nas igrejas ou
não) e o confronto com o conservadorismo, sendo por este identificada como “rebeldes ou
comunistas”.

Apesar de atingir seu auge nos anos 1960, o primeiro registro de um movimento estudantil
evangélico organizado no Brasil foi verificado em 1925, no Instituto Granbery, em Juiz de
Fora, MG, com o nome de União de Estudantes para o Trabalho de Cristo (UETC), sendo o
pastor presbiteriano Jorge Cesar Mota um dos seus organizadores. Em 1940, as UETC’s
uniram-se a algumas Associações Cristãs de Acadêmicos (ACAs), que trabalhavam apenas
com universitários, formando a União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB). Em 1942, a
UCEB se filiou a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (Fumec) como movimento
pioneiro.

1. A Juventude Batista Baiana

No estado da Bahia das décadas de 1960 e 1970 um setor dos jovens batistas, organizados em
torno da Juventude Batista Baiana (JBB) assumiu um importante papel em defesa do
envolvimento do evangélico com a política e os problemas sociais. A Juventude Batista

1
Mestre em História Social pela UEFS, doutoranda em História pela UFMG, integrante do GP História Política
– culturas políticas na história sob orientação do prof. Dr. Rodrigo Patto Sá Motta. Professora substituta do
Instituto Federal de Minas Gerais, campus Ouro Preto. Contato: luhistoria2004@yahoo.com.br.

1948
Baiana era uma organização que tinha como principal objetivo, aglutinar jovens das Uniões
de Mocidade da Denominação Batista do estado. Era uma estrutura reconhecida pela
Convenção Batista Baiana, desde o seu surgimento na década de 1950, como a instância
responsável por organizar a juventude batista, mas, em termos especificamente doutrinários e
administrativos.

Apesar de aglutinar representantes do pensamento progressista batista durante os anos finais


da década de 1960 até os anos 1970, a trajetória anterior da Juventude Batista Baiana, não
seguiu sempre esse pensamento. Até 1965, sua composição havia sido sempre conservadora
sido presidida durante vários anos por Raimundo Coelho que fazia parte de umas das mais
tradicionais e conservadoras famílias batistas da capital baiana. Assim, durante os primeiros
anos da década de 1960, e até depois do Golpe de 1964, a JBB ainda gozava do
reconhecimento e prestígio da Convenção Batista. Este prestígio era refletido no jornal Batista
Bahiano que durante esse período concedeu em quase todas as suas edições um espaço, as
vezes de uma página inteira, à JBB, onde tratava principalmente dos “Congressos de
Mocidade” estaduais e nacionais e das atividades do coral da Igreja Batista de Sião. Nesse
ano, a reeleição de Raimundo Coelho para a presidência da Mocidade, foi comemorada pelo
jornal como o “alvorecer de um novo ano na Juventude Batista Bahiana” (O Alvorecer de um
Novo Ano na JBB. Batista Baiano. Maio/junho de 1960, p. 07).

O surgimento de pequenos grupos de jovens que se posicionavam contrários aos grupos


ligados a JBB foi verificado a partir da década de 1960 principalmente nas igrejas mais
antigas, freqüentadas pela classe média e por jovens universitários oriundos dela. Desse
grupo, o primeiro a despontar de forma mais ativa foi o da Igreja Batista de Sião, onde, nos
anos 1960, segundo Marli Geralda Teixeira2, haviam dois grupos de mocidades, e num deles,
organizou-se um grupo de jovens contrários a Raimundo Coelho. É importante dizer que esses
jovens batistas eram os grandes responsáveis pela articulação da ACA na Bahia – mesmo tipo
de Associação que entre os presbiterianos paulistas deu origem a UCEB. Assim, entre os
jovens das igrejas batistas de Salvador, tornou-se comum a realização de grupos de estudos
destinados a discutir a realidade brasileira, política, economia, remessa de lucros,
imperialismo, enfim, assuntos que faziam parte do cotidiano político do Brasil da década de
1960, mas que, segundo os pastores, não deveria ser preocupação da Igreja.

2
Doutora em História e pesquisadora da história dos batistas no Brasil. Fez parte da mocidade da Igreja Batista
de Sião e, posteriormente da Igreja Batista da Graça. Atualmente não faz parte da membresia de nenhuma
Denominação Batista.

1949
Em 1965, os jovens batistas que faziam parte da ACA, organizaram a primeira candidatura de
oposição da história da JBB, conseguindo eleger através de uma forte mobilização seu
representante, o jovem Iraci Spinola, da IB Dois de Julho, à presidência do órgão. Em 1966,
para garantir a reeleição de Spinola, antes da Assembléia que elegeria a nova diretoria, esse
grupo fez uma espécie de mobilização velada pelas Denominações Batistas que existiam em
Salvador à época. A campanha teve resultado, e numa eleição que geralmente contava com 20
a 30 votantes, participaram cerca de 500 pessoas, o que fez com que Raimundo Coelho
desistisse de colocar sua candidatura garantindo a vitória dos jovens da ACA com uma
maioria esmagadora de votos (MUNIZ, Agostinho. Entrevista concedida a autora em 2011).

Logo nos primeiros meses, esses jovens passaram a organizar reuniões de estudos da Bíblia,
onde os textos eram utilizados como referência para analisar a realidade brasileira, o que
deixou clara a gestão independente e atuante que a nova diretoria pretendia construir na JBB.
A partir daí, a Juventude Batista Baiana passou a ter um papel mais contestador, tanto nas
questões internas à Denominação, quanto na problematização de temas político-sociais do
país. Nesse sentido posicionou-se a favor da participação do crente na política, deixando
evidente sua busca por espaço. Os membros da JBB buscaram reproduzir em sua estrutura a
democracia que pleiteavam dentro da igreja, e que já não mais via na sociedade controlada
pelos militares, nesse sentido tinha por princípio nas eleições de sua diretoria a não reeleição
pela segunda vez para que não houvesse personalismo no cargo (Seção da Juventude Batista
Baiana. Jornal Batista Baiano. Maio de 1967, p.04).

Nos primeiros anos de atuação da nova JBB, o espaço destinado aos jovens no jornal Batista
Baiano passou a ter informes regulares e mensais sobre as diversas atividades realizadas e
textos com suas reivindicações, como quando noticiou a participação da JBB no 7º Congresso
da Mocidade Batista Brasileira, realizado em Niterói no estado do Rio de Janeiro:

O presidente da Juventude Batista Baiana, Iraci Spinola, foi escolhido como chefe da
delegação da Bahia, que estava composta com a maioria de membros da Capital, não
faltando o interior, principalmente de Conquista, Feira, Jequié e Juazeiro. Dois baianos
foram eleitos para o Conselho Nacional da Mocidade: Agostinho Muniz, membro efetivo, e
Eraldo Tinoco, suplente [...] A atuação da caravana da Bahia despertou a atenção, pois
trabalhou condignamente, mesmo sem contar com a colaboração dos que, ainda no nosso
meio não compreendem o alto espírito que dirige a Juventude Batista Baiana (Seção da
Juventude Batista Baiana. Jornal Batista Baiano. Setembro de 1966, p.03).

1950
Observando essa nota, fica claro que logo nos primeiros meses de atuação, membros da nova
diretoria já assumiram papéis importantes na organização da mocidade batista a nível
nacional, contudo, as criticas àqueles que “não compreendem” a JBB nos indicam que a
participação dos jovens baianos neste tipo de evento, já não era bem vista.

A manutenção deste espaço no jornal certamente deveu-se a atuação de Agostinho Muniz, que
por ter ligações profissionais e pessoais com o Pastor Belmiro Sampaio – redator-chefe do
Batista Baiano à época – e cursar jornalismo, foi convidado por ele para assumir a edição do
jornal. Contudo, realizou tal atividade de maneira não oficial, para evitar as reações dos
conservadores que não concordavam com suas práticas e posicionamento político.

Outra característica da JBB era o fato dela conseguir integrar jovens de diversas igrejas e,
portanto, em diferentes condições sociais. Dela faziam parte desde membros das Igrejas
Batistas de Sião e Dois de Julho, provenientes das classes médias e alta de Salvador; até
jovens da Primeira Igreja Batista – localizada, à época, na região da Baixa dos Sapateiros –
conhecida entre os batistas como uma igreja mais popular. Segundo o relato de Agostinho
Muniz: “não discriminávamos ninguém, tinha líderes jovens naquelas igrejas que
independiam de formação educacional, com a abertura da JBB essas lideranças foram tratadas
pelo potencial que tinham não por causa do nível universitário, ou se era rico ou não”
(MUNIZ, Agostinho. Entrevista concedida a autora em 2011).

A preocupação dos jovens baianos com o cerceamento da liberdade era uma constante e não
só em nível local. Como exemplo, podemos citar um episódio no qual um pastor do
Departamento de Treinamento da Mocidade Batista Brasileira foi destituído de seu cargo por
ter permitido que os jovens tentassem publicar na Revista Juventude Batista um texto
intitulado: Criança: sexo, Deus e salvação – que levou os diretores da Casa Publicadora
Batista a tirar esse exemplar de circulação. Diante deste fato, a JBB, em nome de todas as
Uniões de Mocidade da Bahia, publicou uma “declaração de inconformismo” na qual
afirmava:

A “renúncia” do pastor Luis Schettini Filho do Departamento de Treinamento, não é mais


do que uma despedida forçada pelos atuais dirigentes da nossa entidade máxima com a
finalidade de impedir a independência do trabalho da Mocidade. A interferência de
dirigentes de certa organização particular nos problemas que nos pertencem, é cada vez
mais acentuada, porque querem impedir nosso maior esclarecimento a esta altura,
insofismável e de difícil negação [...] O que desejamos não é superar os demais trabalhos da

1951
Denominação Batista Brasileira. Somos, porém, uma força e vamos trabalhar. Com a nossa
inevitável autonomia os outros setores, também, devem processar uma reformulação
administrativa, para que não sejam sufocadas (Seção da Juventude Batista Baiana. Jornal
Batista Baiano. Novembro de 1966, p. 2)

Nesse texto, podemos observar a indignação que a interferência dos líderes batistas em
questões específicas dos jovens causou. A reivindicação por autonomia se faria uma constante
nas publicações da JBB no Batista Bahiano. A nova e autônoma JBB, não agradou em nada
aos pastores batistas baianos e as reações à ela ocorreram de diferentes formas que variavam a
medida em que sua visibilidade aumentava. A princípio optou-se por uma estratégia que
tentava mantê-la sob o controle da Convenção ao mesmo tempo em que encarava com
descrédito suas reivindicações. Essa forma de agir foi percebida e duramente criticada pelos
jovens que lançaram um “Manifesto Adolescente” que, dentre outras reivindicações, dizia:

O adolescente não deve ser comandado, deve ser orientado. [...] A integração no trabalho
da igreja é impedida pela indiferença com que os adolescentes são tratados. O adolescente
se sente bem com aquele que lhe dá importância, se a igreja aceitasse o adolescente como
ele é, seria uma nova fase para a igreja (Adolescentes reclamam nova estrutura. Jornal
Batista Baiano. Novembro de 1966, p.02).

2. Reações ao avanço dos “missionários comunistas”

O Manifesto Adolescente foi o último texto reivindicatório publicado na coluna da mocidade,


pois, nos últimos meses de 1966 o pastor Ebenézer Cavalcanti assumiu a direção do jornal
Batista Baiano e passou a retomar o controle do que era publicado. Durante todo o ano de
1967, a publicação limitou-se novamente a informar questões práticas sobre os congressos
nacionais e estaduais da mocidade e sobre os feitos do aclamado coral de jovens da Igreja de
Sião, encabeçado por Raimundo Coelho.

A partir de 1968, os poucos espaços dedicados à Mocidade Batista traziam textos produzidos
pela nova diretoria da JBB que, voltou a ser ocupada por jovens com o pensamento alinhado
ao da hierarquia e que continuaram utilizando o espaço para divulgar ações rotineiras, mas,
dessa vez apelando para um discurso com um tom conciliador:

Amados irmãos jovens, vamos esquecer as tristezas, decepções, até derrotas e unidos na
pessoa de Jesus Cristo, o alvo da Suprema Vocação, pois alcançaremos o mundo para
DEUS, e assim coesos no mesmo amor cristão, 50º Congresso e JBB, formaremos a mais

1952
expressiva força que DEUS tem para ganhar o mundo para o seu reino (A Juventude Batista
Baiana no Dois de Julho. Jornal Batista Baiano. Julho de 1968, p.02).

Percebe-se que além da idéia de renovação, convocou-se os jovens para cumprir com aquela
que seria a verdadeira vocação cristã, ou seja, o trabalho de evangelização. As acusações
direcionadas aos jovens eram feitas também nos boletins semanais das igrejas, segundo uma
carta aberta divulgada pela União de Mocidade da Igreja Dois de Julho nos meses que
antecederam a crise que estava por vir entre eles e o pastor Ebenézer Cavalcanti, denunciava:

a mocidade perdeu o contato porque de certo tempo pra cá deixou de ser acompanhada, e
ouvida. [...] basta que recordemos muitos dos ataques e insinuações (sem fundamentos),
colocados em diversas edições do Boletim da Igreja, ainda que para isso se estivesse
desviando e desvirtuando seu uso (Carta da União de Mocidade da Igreja Batista Dois de
Julho. Salvador, 19 de setembro de 1974. Documentação IBN ).

A reação aos jovens progressistas também ocorreu de forma mais severa através do processo
que afastou os jovens não só da diretoria da JBB como também das suas próprias igrejas.
Apesar de ganhar força nos anos finais da década de 1960, tal prática, teve início ainda em
1966. Segundo Agostinho Muniz:

66 é um ano emblemático da liderança protestante e de Juventude porque aí passam a


ocorrer as eliminações desse pessoal que não rezava pela cartilha da liderança oficial da
Igreja e dos pastores, Ebenézer mesmo foi o primeiro a comandar uma grande exclusão
desses jovens [...] cito 66 porque foi em 66 que isso ficou muito claro uma... uma coisa
articulada entre a repressão da Ditadura dentro das igrejas e a liderança da igreja, os líderes
da Igreja começaram a reagir contra aquele pessoal que dentro da própria igreja era
chamado de muito “cor de rosa”, alguns chamados de comunistas como foi o meu caso que
fui denunciado como sendo atuante comunista, como tendo ligações com o Partido
Comunista fora da Igreja e eu atuava na Igreja como um braço desse, do Partido... eu nunca
fui comunista, nunca pertenci ao Partido, embora tenha até freqüentado reuniões pra saber
como é, pra conhecer, mas nunca me atraiu o materialismo histórico (MUNIZ, Agostinho,
entrevista concedida a autora em 2011).

De fato, a maioria dos progressistas batistas nunca fez parte do partido comunista. O próprio
jornalista Agostinho Muniz apesar de ter se aproximado da Ação Popular faz questão de
deixar claro que nunca foi membro do Partido Comunista. Entretanto, alguns jovens
protestantes aproximaram-se do PCB e foram duramente condenados a exemplo de Norberto
Bispo dos Santos Filho, membro da Igreja Batista Dois de Julho, que, segundo relato de sua
irmã Ellen Mello, sabendo que seria afastado do rol de membros caso assumisse ser

1953
comunista, optou por ele próprio deixar a igreja logo após a sua filiação ao Partido (MELLO,
Ellen. Entrevista concedida a autora em 2007).

Os fatos ocorridos a partir de 1966 também são relatados pela professora Marli Geralda
Teixeira, ex-membro da Igreja Batista de Sião:

Foi em 1966 o racha, ai veio a grande acusação: “é um bando de comunista!” Pronto, você
chamar alguém de comunista em 1965, era uma coisa perigosíssima.... ouvia-se
“comunista, comunista!”... “é! não é!” um bate-boca, etc.. e houve alguns detalhes sórdido
inclusive, muito sórdidos e que resultaram na eliminação da igreja de uma de nossas
líderes, Maria Assis (TEIXEIRA, Marli. Entrevista concedida a autora em 2010).

Diante do clima de desconfiança e acusações exposto anteriormente, os conflitos entre esses


jovens e o pastor foram se agravando, até o dia em que os líderes da Igreja Batista de Sião,
resolveram eliminar do rol de membros, sem muito alarde e sem nenhuma justificativa
verdadeiramente válida, a jovem Maria Assis, uma das lideres da União de Mocidade de Sião,
segundo nos relatou Marli Geralda Teixeira:

Expulsaram Maria Assis da igreja numa sessão em que só eles participaram, ninguém soube
e isso foi o estopim e o grupo todo resolveu também sair da igreja, sair não, exigir a volta
dela, ousadia demais exigir a volta dela, como era impensável dentro do aparato de
Valdívio Coelho voltar atrás das decisões, era impensável, ele era irredutível, era o jeito
dele, era um cacique, então ele expulsou todo mundo da igreja, deu carta de transferência a
todo mundo, ao grupo todo (TEIXEIRA. Marli. Entrevista concedida a autora em 2010).

A exemplo do que ocorreu na Igreja Batista de Sião, os jovens da IB Dois de Julho ligados a
vertente progressista da JBB que ousaram contestar o pastor, também sofreram duras
retaliações. Entretanto, a expulsão que só veio ocorrer em 1975, foi resultado de um longo
processo de perseguições e acusações, incentivado pelo pastor Ebenézer Cavalcanti, iniciado
ainda na década de 1960, especificamente, 1966, ano em que ocorreram eliminações do rol de
membros dos jovens da Igreja Batista de Sião.

No caso da Igreja Batista Dois de Julho, antes da eliminação em massa, houveram as


acusações, as exclusões não-oficiais, em resposta ao comportamento daqueles jovens que não
estava sendo bem visto aos olhos da maioria conservadora, em especial, do seu pastor, e que,
portanto, não seria tolerado. A princípio, essa hostilidade ainda pouco declarada seguiu uma
linha mais moralista, foram condenadas as aproximações desses jovens com o movimento de

1954
teatro e o “comportamento inadequado” praticados por eles principalmente por conta da
realização de atividades como excursões e retiros espirituais de carnaval.

Essa trajetória contestadora de Agostinho Muniz foi resgatada e somada às novas acusações
sobre sua índole e ações frente à JBB. Assim, em 1975 o jovem Muniz recebeu do pastor
Ebenézer Cavalcanti, com a aprovação da Igreja, sua carta demissória 3 como um “convite”
para que ele se retirasse da Igreja Batista Dois de Julho. A partir daí, os desentendimentos
entre o pastor Ebenézer Cavalcanti e a União de Mocidade tornaram-se cada vez mais
recorrentes e mais expostos. Após este evento, os jovens lançaram um manifesto à igreja,
assinado por 24 membros, onde expuseram suas insatisfações e denunciaram as acusações e
práticas de que estavam sendo vítimas. As principais críticas foram direcionadas a falta de
assistência dada a eles pelo pastor Ebenézer Cavalcanti.

Dando continuidade aos atos de censura intensificados naquele ano, a Igreja Batista Dois de
Julho proibiu que a União de Mocidade realizasse campanhas para levar novos participantes
às suas reuniões e vetou a circulação dos boletins impressos pela mesma, bem como a
divulgação de suas atividades no jornal Batista Bahiano, a essa época, dirigido por Ebenézer
Cavalcanti. Após este evento, os jovens lançaram um manifesto à igreja, assinado por 24
membros, onde expuseram suas insatisfações e denunciaram as acusações e práticas de que
estavam sendo vítimas. As principais críticas foram direcionadas a falta de assistência dada a
eles pelo pastor Cavalcanti e às acusações direcionadas ao grupo, informando que

[O pastor Ebenezer] em plena Escola Dominical, acusou-os de comunistas e perniciosos.


Acusações infundadas que sequer teve condições de sustentar, apesar de feitas em público.
Também não houve reação, A Mocidade está amadurecida e procurou compreender, com
compaixão, esse rasgo de fraqueza (Carta da União de Mocidade da Igreja Batista Dois de
Julho. Salvador, 19 de setembro de 1974. Documentação IBN ).

Como era de se esperar o Manifesto, não foi bem recebido na Igreja Dois de Julho visto que
era insustentável que dentro da igreja existissem jovens que contestassem tão publicamente a
hierarquia e a autoridade do pastor. Assim recomendou-se que o “Manifesto” fosse
considerado “sem fundamento” e arquivado.

A partir daí a situação ficou insustentável, e no dia 10 de outubro de 1974, depois de uma
tumultuada sessão da Igreja onde o grupo ligado à União de Mocidade teve sua fala cerceada,

3
Liberação do membro, mediante aprovação pela congregação, para que o membro em questão escolha outra
igreja de sua preferência.

1955
a jovem Liane Cumming e Silva deu e pediu sua Carta de Transferência sendo acompanhada
por cerca de 26 outros como a decisão foi tomada de forma não planejada eles ainda não
tinham uma igreja para ir sendo naquele momento compulsoriados 4. Posteriormente esse
grupo organizou a Igreja Batista de Nazaré, que continuou enfrentando muita resistência no
campo batista baiano e durante anos foi considerada o reduto ecumênico dos protestantes
baianos, mas sobre a qual não trataremos no artigo.

Ambos os casos demonstram que a prática da delação e expurgo dos jovens batistas baianos
tem dois auges em momentos distintos: em 1966, com a eliminação de cerca de 30 membros,
entre jovens e seus parentes, da Igreja Batista de Sião pelo pastor Valdívio Coelho; e em 1975
quando foi a vez de Ebenézer Cavalcanti por fim aos ‘missionários comunistas’ da sua igreja.
Ambos os grupos fundaram novas comunidades batistas similares em sua origem mas de
trajetórias e orientação profundamente diferentes.

Considerações finais

O período que abrange as décadas de 1960 e 1970 no Brasil marcou uma dicotomia na
história do país: por um lado havia o conservadorismo e a repressão por parte do governo
ditatorial e por outro um maior engajamento de jovens que sonhavam com a liberdade social e
política e com uma sociedade mais justa. Os jovens protestantes não ficaram de fora dessa
realidade tendo representantes que atuaram em ambas as partes5. Neste artigo, utilizou-se dois
casos que comprovam o esforço de jovens em construir uma prática voltada à participação
política sem ter que afastar-se da sua profissão de fé. No entanto, tal aproximação com idéias
da esquerda em um momento político em que elas eram consideradas “perigosas”, fez com
que essas iniciativas fossem abafadas ou, em termos práticos, condenadas.

Em geral, as hierarquias batistas, bem como parte esmagadora da sua membrezia,


relacionavam tudo o que era enquadrado como sendo “coisas deste mundo” a imagens
negativas em prol da máxima de que evangélicos não deveriam se envolver com política, e
muito menos com as idéias ‘subversivas’ da esquerda. Tal pensamento reverteu-se na prática

4
A carta compulsória é destinada aos membros que querem ser liberados de sua igreja de origem mas ainda não
tem uma igreja destino definida, entretanto, ela tem um prazo de validade determinado e caso a nova igreja não
seja escolhida dentro deste prazo o membro deixa de ser considerado como tal.
5
Para uma leitura mais aprofundada acerca do assunto sugere-se os trabalhos de ALMEIDA (2011) e SILVA
(2007), ambos citados integralmente nas referências bibliográficas deste artigo.

1956
em de retaliações, perseguições, acusações e até a exclusão permanente do seu convívio.
Assim, analisando o desenrolar dos fatos, podemos observar que as formas de repressão e
condenação aplicadas aos jovens progressistas protestantes, seguiu o roteiro de perseguições,
denúncia e condenações empregado pela Ditadura Militar contra seus opositores. Dessa
forma, repetiu-se dentro do universo protestante o autoritarismo conservador ao qual estava
refém toda a sociedade brasileira em geral.

No caso específico da Bahia, os acontecimentos relatados resultaram em profundas alterações


no campo batista baiano. A nova e autônoma JBB, não agradou em nada aos pastores batistas
baianos e as reações a ela ocorreram de diferentes formas que variavam a medida em que sua
visibilidade aumentava. A princípio optou-se por uma estratégia que tentava mantê-la sob o
controle da Convenção ao mesmo tempo em que encarava com descrédito suas
reivindicações.

Analisando as práticas, representações e ressignificações de discursos dos evangélicos e em


especial da hierarquia, podemos afirmar que estes não ocorreram de forma isolada à dinâmica
política do país, ao contrário, foram fortemente influenciados por ela. Para além disso,
comprovaram a característica exclusivista comum entre os batistas, tão bem descrita por
Rubem Alves, quando ele afirma que: “a diferença é a prova da cumplicidade com o demônio,
porque quem não é igual a nós [protestantes] só pode ser contra nós” (ALVES, 1987, p.27).

Referências

ALMEIDA, Luciane S. “O comunismo é o ópio do povo”: representações dos batistas sobre o


comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia (1963-1975). Dissertação de
Mestrado. UEFS: Feira de Santana, 2011.

ALVES, Rubem A. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987.

BURITY, Joanildo Albuquerque. Os Protestantes e A Revolução Brasileira, 1961-1964: A


Conferência do Nordeste. Recife. Dissertação de Mestrado. UFPE. 1989.

SILVA, Elizete da. Protestantismo y Teologia de la Liberación. In: GONZALEZ, Alfredo


Prieto; CALZADILLA, Jorge Ramirez (org). Reliogion, Cultura e Espiritualidad: a las
puertas del tercer milenio. La Habana: Editora Caminbos, 2000.

SILVA, Elizete da. Protestantismo ecumênico e realidade brasileira. Trabalho de Professor


Pleno. Feira de Santana: UEFS, 2007.

1957
1958
“No Brasil vivemos numa democracia”: os batistas e os direitos
humanos nos anos derradeiros da ditadura militar no Brasil
(1978-1988)
Adriano Henriques Machado1

Introdução

Poucos dias após o golpe militar de 1964, no O Jornal Batista (OJB), órgão oficial da
Convenção Batista Brasileira (CBB) e principal veículo de comunicação dos batistas no país,
o seu novo editor, o pastor José dos Reis Pereira fazia algumas considerações a respeito do
momento pelo que passava a política brasileira e seus possíveis desdobramentos:

A democracia já não está mais ameaçada. A vontade do povo foi entendida e respeitada [...]
Um milagre de Deus, atendendo às orações do seu povo. É o que cremos. [...] A vitória da
democracia, o restabelecimento do respeito à constituição, o crédito de confiança dado do
Congresso Nacional, tudo isso, significa para nós, crentes, oportunidade. Não será agora
que se vai estabelecer censura e limitação da liberdade no Brasil. Mas que tal hora nunca
1920chegue (PEREIRA Apud AGUILERA, 1988, p. 158).

No excerto acima, retirado do editorial Responsabilidade dos crentes nessa hora, de doze de
abril de 1964, fica claro o apoio da direção do jornal ao golpe capitaneado contra o presidente
João Goulart. O articulista via como positiva essa ação política e justificava que tal atitude era
necessária, devido ao momento de intranqüilidade pelo que passava a sociedade brasileira,
causada por uma minoria comunista que colocava em risco a democracia brasileira. O editor
também salienta que havia sido feita a vontade da maioria do povo brasileiro, prova disso
seria a ausência de resistência ou manifestações contrárias ao episódio.

Esse posicionamento era compartilhado por amplos setores da sociedade brasileira da época,
principalmente por aqueles que possuíam um forte viés anti-comunista, como no caso de parte
significativa dos evangélicos brasileiros, num contexto fortemente marcado pela bipolaridade
da Guerra Fria.

1
Doutorando em História Social pela PUC/SP. Bolsista CAPES. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heloisa de Faria Cruz.
Contato: bozo.rqop@gmail.com.

1959
É claro que grande parte dos que apoiaram a deposição de Jango acreditavam, pelo menos
num primeiro momento, que esse ato representava uma contra-revolução, ou seja, uma ação
preventiva frente à possibilidade de um golpe perpetrado por grupos de esquerda ou forças
comunistas. Destaca-se desse modo a fala do próprio editor do jornal, que via o
acontecimento como uma vitória da democracia, numa posição bastante ambígua e
contraditória, visto que o golpe derrubou um presidente legalmente no cargo. Porém, o que
chama mais atenção no texto do pastor é sua parte final, na qual ele alerta para o perigo do
estabelecimento de algum tipo de censura ou cerceamento de liberdade por parte do novo
governo.

Contudo, não demorou muito para que os militares, que apregoavam a defesa da democracia e
bradavam contra o perigo da instalação de uma ditadura comunista, começassem a organizar
um governo autoritário marcado pela censura, cassações, perseguições, prisões, violências e
torturas contra aqueles que se colocavam em oposição à sua ideologia. Assim, o golpe
preventivo, que muitos acreditavam ser uma etapa provisória até à organização de novas
eleições, tornou-se numa longa noite escura que duraria mais de duas décadas.

Frente a isso, diversos grupos ou pelo menos parte daqueles que apoiaram o golpe em 1964,
observando a escalada ditatorial pelo que adentrava a sociedade brasileira, que muitas vezes
atingia pessoas ou órgãos desses próprios grupos, passaram a criticar as arbitrariedades
cometidas pelo regime, principalmente após 1968, com a promulgação do Ato Institucional n.
5 (AI-5), que fechou ainda mais o regime e instalou um sistema de perseguição e repressão,
além de uma forte censura aos diversos meios de comunicação e às atividades artístico-
culturais. No entanto, outra parcela da sociedade só passou a ter uma atitude mais crítica ou
posicionou-se pelo fim do governo ditatorial, entre a segunda metade dos anos 1970 e início dos
1980, quando o governo militar passava por um forte desgaste e houve um crescimento das
forças que lutavam pela volta da normalidade democrática, no que ficou visível em diversas
movimentações, como na luta pela Anistia e nas grandes manifestações pelas Diretas Já.

Desse modo, o presente artigo busca discutir como os batistas brasileiros, ou pelo menos, o
seu grupo dominante, que controlava a Convenção Batista Brasileira e conseqüentemente o
seu órgão oficial - O Jornal Batista - posicionaram-se frente à ditadura militar, principalmente
no que diz respeito às arbitrariedades cometidas pelo regime e nos casos de grave violação aos
direitos humanos. Entretanto, como outros estudiosos já se debruçaram sobre essa questão nos
primeiros momentos do regime ditatorial, este trabalho centra-se no período conhecido como

1960
abertura política, com destaque para os anos entre 1978 e 1988; momento este em que o
governo passava por uma forte crise de legitimidade e ocorria uma grande contestação frente
ao mesmo, a qual vinha de diferentes setores sociais e numa conjuntura em que muitos grupos
faziam uma autocrítica ao apoio dado aos governos militares nos seus anos mais repressivos
ou mesmo buscavam construir uma memória em que procuravam se desvincular para com
essa herança autoritária.

Os batistas nos primeiros anos da ditadura civil-militar

O claro apoio do editor do OJB ao golpe militar de 1964 pode trazer a falsa impressão de que
os batistas brasileiros eram hegemonicamente compostos por grupos fortemente
conservadores e anti-comunistas. Porém, uma análise mais aprofundada do período anterior
ao golpe, com destaque para o início dos anos 1960, demonstra que ao invés de uma posição
monolítica frente às questões sócio-políticas, os batistas brasileiros passavam por uma grande
efervescência no debate sobre questões como: a Missão Social da Igreja, a atuação do fiel
batista frente às questões sócio-políticas e às reformas de base.

Exemplo dessa agitação política pôde ser observado nas diversas colunas e artigos do OJB do
período, com destaque para a atuação de dois grupos, com linhas de pensamento político
bastante antagônicas: de um lado a corrente “conservadora”, que se posicionava
contrariamente à discussão e atuação dos batistas nas questões sócio-políticas, as quais
emergiam na sociedade brasileira de então, com o argumento de que essa participação estava
marcada pelo viés da luta de classes e pela infiltração comunista, o que poderia desvirtuar a
função espiritual da igreja; de outro lado, destacava-se o grupo ligado ao Movimento Diretriz
Evangélica, liderado pelo pastor David Malta do Nascimento, que defendia a missão social
dos batistas e proclamava por reformas estruturantes na sociedade brasileira.

Dois acontecimentos demonstram claramente essa agitação política dentro dos meios batistas
e ressaltam também o momento no qual o grupo que defendia uma maior atuação dos mesmos
frente às questões sócio-políticas conseguiu maior apoio e projeção. Um primeiro episódio
aconteceu no plenário da 45ª Assembléia Anual da CBB, ocorrida em 1963 na cidade de
Vitória, com a criação, em regime provisório, da Comissão de Ação Social (CAS), que
buscava desvencilhar a Ação Social de um conceito meramente assistencialista-beneficente,
tendo como proposta de ação a análise dos problemas sociais e da conjuntura política

1961
brasileira. Até à chegada do golpe a Comissão teve destacada atuação, com a elaboração de
boletins, escrevendo uma coluna no jornal denominacional, realizando ciclos de estudos e
uma conferência, com a temática Cristianismo e Sociedade (AGUILERA, 1988, p. 181-187).

Porém, o evento que trouxe maior notoriedade e demonstrou a força dessa corrente foi a
veiculação do Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil, elaborado numa reunião da Ordem
dos Ministros Batistas do Brasil, que contou com a presença de mais de 200 pastores no ano
de 1963. Esse documento, direcionado à denominação batista e à toda sociedade brasileira,
publicado com destaque na capa do OJB de quatorze de setembro do mesmo ano,
recomendava a atuação efetiva dos membros da igreja na política do país e nas organizações
de classe, defendia o fim da exploração do homem pelo homem e apregoava a necessidade da
realização de reformas estruturais na sociedade brasileira, visto que:

[...] reconhecemos a inadequação da presente estrutura social, política e econômica para a


realização plena da justiça social, pelo que insistimos na necessidade de um reexame
corajoso, objetivo e despreconcebido da presente realidade brasileira, com vistas à sua
estruturação em moldes que possibilitem o atendimento das justas aspirações e
necessidades do povo (ORDEM..., [1963]).

Entretanto, logo após o golpe, toda a discussão em torno dessas temáticas foram suprimidas,
censuradas ou mesmo silenciadas, tanto no âmbito da diretoria da CBB e em suas convenções
anuais, e conseqüentemente em seu periódico oficial. Uma mostra disso ocorreu com a
Comissão de Ação Social, que passou a ser criticada e questionada no plenário da Assembléia
de 1965, onde se instalou uma Comissão Especial para avaliar suas atividades, a qual
concluíra que a CAS havia dado um sentido ideológico às suas ações em prejuízo das
atividades fundamentais do cristianismo, até ser totalmente dissolvida na Assembléia de 1968.

Atitude de caráter mais autoritária ocorreu nas páginas do O Jornal Batista, que depois de ter
trocada a sua direção após o golpe, o novo editor, além de apoiar efusivamente a deposição
perpetrada pelos militares, rapidamente suprimiu as colunas que tratavam da Missão Social da
Igreja e os debates sobre as questões e problemáticas sócio-políticas pelo que passava a
sociedade brasileira.

A respeito do posicionamento dos batistas frente aos primeiros anos do regime militar, dois
importantes estudos analisaram fortemente a questão: a dissertação em Ciências da Religião,
intitulada Um povo chamado Batista: um jornal (OJB) a serviço da formação de uma
mentalidade religiosa (1960-1985), de José Miguel Mendonza Aguilera, defendida ainda em

1962
1988, que discute o pensamento e o posicionamento dos batistas dentro do contexto brasileiro,
tendo como principal fonte o próprio OJB; e a dissertação O comunismo é o ópio do povo:
representações dos batistas sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia
(1963-1975), da historiadora Luciane Silva de Almeida, de 2011, que discute as
representações dos batistas frente ao governo militar e em relação ao comunismo, com foco
nos batistas baianos das cidades de Salvador e Feira de Santana, entre os anos de 1963 e 1975.

Tendo como base esses dois estudos e analisando também as páginas do O Jornal Batista,
torna-se claro que houve nos primeiros anos dos governos militares uma forte aproximação e
estreitamento de relações entre os batistas brasileiros e as autoridades militares de então.
Como exemplo dessa aproximação pode-se citar a troca de visitas entre batistas e autoridades
político-militares, a realização de cultos de ação de graças em datas nacionais, principalmente
na semana da pátria, a publicação de artigos no OJB dando “vivas” à Revolução de 64, que
havia trazido tranqüilidade, harmonia e progresso para o país e inclusive a publicação na capa
do periódico de fotos em que os presidentes-ditadores eram apresentados e saudados. E até as
diversas Campanhas de Evangelização que foram lançadas nesse período faziam referências
ao momento político do país, nas quais as mesmas teriam como um de seus objetivos ajudar a
salvar o Brasil, ou seja, aliavam-se ao discurso propagandeado pelos militares de um Brasil
grande e forte, que combatia os elementos considerados subversivos. Desse modo, todas as
arbitrariedades e violências cometidas no período mais sangrento da ditadura militar, entre
fins dos anos 1960 e início dos anos 1970 são praticamente ignoradas ou omitidas nos artigos
e editoriais produzidos pelo OJB.

A construção teológico-religiosa desse discurso batista para com os regimes militares dava-se
basicamente em torno de dois pontos: de que a igreja deveria ater-se aos assuntos de caráter
espiritual e com isso distanciar-se das temáticas e problemas sócio-político-econômicos; além
da evocação da tradição batista de respeito às autoridades, baseada biblicamente na Epístola
de Paulo aos Romanos, com o argumento de que as mesmas são constituídas e enviadas por
Deus.

Outro ponto de conciliação entre o discurso batista e a ideologia do governo militar instalado
era o seu caráter anti-comunista, posicionamento este que vinha sendo construído em grande
parte dos meios batistas e evangélicos brasileiros há diversas décadas, no qual tal sistema era
visto como uma ameaça à democracia e principalmente ao cristianismo e às liberdades
religiosas.

1963
Nesse mesmo sentido, analisando o campo batista baiano, a historiadora Luciane Silva de
Almeida demonstra como se dava num local específico essa colaboração entre batistas e
autoridades político-militares, como na articulação para o recebimento do governo federal de
um terreno para a construção do Hospital Evangélico da Bahia, em 1966; na ocupação de
cargos públicos, cujo exemplo maior foi a nomeação do diácono batista Clériston Andrade
como prefeito de Salvador, em 1971. Além disso, relata a censura e a perseguição sofrida por
jovens batistas por parte da hierarquia da igreja, os quais propunham debates sobre política e
questões da realidade brasileira e tinham uma aproximação com o ecumenismo, além de
contestarem questões internas da estrutura da denominação, sendo alguns deles expulsos de
suas igrejas, tendo como uma das acusações suas ligações com o comunismo.

É claro que muitos assuntos e questões que dizem respeito à relação entre os batistas
brasileiros e a ditadura civil-militar em seus primeiros anos e nos períodos mais violentos do
regime ainda encontram-se em aberto e merecem ser mais profundamente estudados. Porém,
o presente artigo busca compreender como os batistas brasileiros, ou melhor, a CBB e o seu
órgão oficial posicionaram-se nos momentos derradeiros da ditadura militar brasileira, a partir
de 1978 e avançando a análise até 1988, com destaque para a problemática dos direitos
humanos e como os mesmos compreendiam o caráter e as ações políticas dos governos civis-
militares de então.

Os batistas e os direitos humanos

Principalmente a partir da segunda metade dos anos 1970, os governos militares começaram a
sofrer um forte desgaste de legitimidade e muitas críticas passaram a ser dirigidas a ele, seja a
respeito das violações dos direitos humanos, pelos anseios de maior participação popular nas
decisões do país ou pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Dessa forma, muitos
grupos que tinham até então apoiado, cooperado e sido aliados de primeira hora dos militares,
ou mesmo se omitido perante estas questões, passaram a se rearticular e reconstruir seus
discursos e posicionamentos. Destaca-se assim, o crescimento e o fortalecimento das
correntes que se articulavam junto a essas novas demandas democráticas, com destaque para o
que ocorreu em algumas instituições religiosas, como no caso de parte da Igreja Católica e
também em alguns setores das igrejas evangélicas.

1964
Sobre as violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime ditatorial pouco é
discutido no OJB desse período. Porém, a temática pautou um editorial do jornal, por ocasião
da visita do presidente estadunidense Jimmy Carter ao Brasil, em 1978, o qual foi produzido
como resposta a um artigo escrito por um jornalista presbiteriano, que salientava o fato de que
tal presidente, apesar de ser um diácono batista, não tinha ido ao encontro dos seus irmãos
brasileiros, mas sim se reunido com membros da hierarquia católica e de outras igrejas.
Carter, na época como presidente e até os dias de hoje, teve como uma de suas bandeiras de
atuação a defesa dos direitos humanos, desse modo, o jornalista afirmava que a decisão do
presidente norte-americano decorria do fato dos batistas brasileiros não terem feito nenhum
pronunciamento sobre a temática.

Como resposta ao jornalista presbiteriano, o editor José dos Reis Pereira, primeiro justifica o
não encontro com o presidente como algo natural, devido a característica batista de separação
entre Igreja e Estado e da discrição para a relação com as autoridades constituídas. A respeito
da acusação de omissão para com a questão dos direitos humanos, o editor salienta que por
estar próximo de uma viagem não tinha como mostrar uma seleção dos pronunciamentos dos
batistas brasileiros a respeito da temática, porém, ressalta que diferente de outras confissões
religiosas, eles não faziam protestos, passeatas ou tomavam partido político. E cita como
exemplo desse tipo de politização o caso abaixo:

O arcebispo de São Paulo tomou atitude francamente política quando participou de uma
cerimônia ecumênica de homenagem a certo ativista comunista que morreu na prisão dizem
alguns que por suicídio, dizem outros que por tortura. Desde que o caso estava sendo objeto
de investigação falecia autoridade ao arcebispo para fazer um julgamento que, por sinal,
coincidia com o dos comunistas, que sabem bem aproveitar-se desses fatos, embora justiça
na terra do comunismo seja piada de humor negro (PEREIRA, 1978, p. 3).

O fato a que o editor fez referência, não foi um simples episódio, mas ele discorre sobre um
dos casos mais simbólicos de tortura ocorridos na ditadura militar. O ativista comunista citado
na matéria era o jornalista e então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog que
foi morto sob tortura nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, em 25 de outubro de
1975. Já a cerimônia ecumênica citada por Pereira foi um dos mais célebres desagravos feitos
contra a violência impetrada pelos militares, a qual além do arcebispo de São Paulo, D. Paulo
Evaristo Arns, uma das mais importantes lideranças no combate a tortura e a perseguição
política em todo o Cone Sul, contou com a presença de outras lideranças religiosas, tais como
o rabino Henry Sobel e o reverendo presbiteriano Jaime Wright. A morte de Vlado, como era

1965
conhecido, teve repercussões nacionais e internacionais e o ato realizado, mais que uma
simples celebração ecumênica, foi um importante evento articulado pelo Sindicato dos
Jornalistas do Estado de São Paulo, no qual compareceram mais de 8 mil pessoas dentro e
fora da Catedral da Sé de São Paulo. Sendo assim, uma das primeiras grandes manifestações
públicas contra a arbitrariedade do governo ditatorial desde a promulgação do AI-5 e
considerada por muitos como o episódio que deu uma grande guinada para o crescimento do
movimento que defendia a redemocratização do país.

Porém, para Pereira o ato em desagravo à morte do jornalista não havia sido um protesto em
favor dos direitos humanos, mas sim uma ação meramente política do cardeal católico, visto
que segundo ele, como o caso ainda não fora julgado, as autoridades religiosas não poderiam
manifestar-se. Além disso, ele coloca em dúvida as acusações de morte por tortura, dizendo
que esse era o argumento defendido pelos comunistas, que de alguma forma buscavam
aproveitar-se do fato, colocando-se assim, ao lado de uma parte dos militares que tentaram
construir a absurda história de suicídio mediante enforcamento, versão esta descabida e logo
refutada por praticamente toda a sociedade e até por setores do governo e das próprias forças
armadas.

Torna-se importante salientar que o editorial não havia sido escrito logo após a morte e a
realização da cerimônia ecumênica, mas sim três anos depois, quando os próprios militares
pressionados pelos manifestos decorrentes da morte de Herzog e de outras ações violentas,
haviam substituído o comandante responsável pelo II Exército. Dessa forma, o
posicionamento do editor explicitado acima, demonstra de forma bastante clara que o apoio
do OJB à ditadura militar e aos seus desmandos permaneciam inabaláveis, mesmo quando boa
parte da opinião pública e diversos setores da sociedade manifestavam-se contrariamente a
essas violências.

Retornando ao artigo de Pereira, ele finaliza suas considerações dizendo que Carter ao se
encontrar com o arcebispo de São Paulo, estava agindo de forma ingênua e ainda o critica
dizendo que o presidente norte-americano deveria ser mais crítico para com os países do
bloco socialista.

Essa atitude de Carter parece ter abalado a relação entre os batistas brasileiros e o presidente
norte-americano, pois o OJB, que havia feito saudações quando este se elegeu presidente,
quando da derrota deste para Ronald Reagan, em 1980, dois artigos fizeram comentários a

1966
respeito de sua atuação como presidente. Neles coloca-se que Carter apesar de ser um diácono
batista, com boas intenções e defensor dos direitos humanos e dos oprimidos, o seu governo
teria tomado algumas atitudes contraditórias. Nesse sentido, ganha destaque o artigo de
Herezon Dias, onde defende que o verdadeiro motivo da derrota de Carter havia sido “uma
conseqüência natural de seu envolvimento com a idolatria, através da hierarquia do
catolicismo romano” (DIAS, 1981, p. 11), que na prática significava a participação de
representantes do seu governo e dele próprio em solenidades e encontros com católicos no
Vaticano, mas principalmente sua prestigiosa visita ao cardeal de São Paulo, na qual o
político estadunidense teria dado significativa importância. Dessa forma, além de colocar-se
contrário às articulações a favor dos direitos humanos promovidas por Carter e D. Paulo, ele
também condena a atitude do presidente norte-americano para com os católicos, destacando o
forte caráter anti-ecumênico encampado pelo grupo batista dominante desse período.

A questão da tortura e dos direitos humanos no Brasil eram assuntos praticamente ignorados
pelo jornal nesse período de abertura, tanto que apenas mais um editorial, escrito em
novembro de 1985, chamado Tortura: Nunca Mais? retomou o assunto. O editorial referia-se
ao livro recém-lançado, de título homônimo, só que sem a interrogação ao final, o qual teve
grande repercussão, pois foi o primeiro grande trabalho a esquematizar e exemplificar como
se instalou o sistema repressivo na ditadura militar, os locais e métodos de tortura, além de
citar as pessoas e os grupos perseguidos. O livro havia sido organizado por uma equipe que
tinha trabalhado entre os anos de 1979 e 1985 em cima de inquéritos produzidos pelos
Tribunais Militares, num projeto articulado e coordenado pelo arcebispo de São Paulo, D.
Paulo e o reverendo Jaime Wright.

Contudo, em seu editorial, José dos Reis Pereira, ao invés de comentar o conteúdo do livro
que revelava boa parte das práticas e violências cometidas pelo regime militar contra os
direitos humanos, faz a seguinte reflexão: “Observamos, todavia, que há engano em dizer que
a tortura caracterizou o regime inaugurado em 1964. Ela vem de muito antes no Brasil”
(PEREIRA, 1985, p. 3). A partir disso, o pastor cita que houve a prática de tortura em
diversos momentos da história republicana brasileira e que essa prática era antiga e comum
em nossa sociedade, por isso a mesma continuaria a acontecer no país, visto que:

A razão principal é que de homens pecadores não podemos esperar atitudes constantes de
tolerância, de paciência, de boa vontade e, sobretudo, de amor. [...] Enquanto o Evangelho
de Jesus Cristo não dominar a vida brasileira dizer que nunca mais haverá tortura é
excessivo otimismo (PEREIRA, 1985, p. 3).

1967
As conclusões e posicionamentos colocados pelo pastor acima são bastante esclarecedoras e
até estarrecedoras do pensamento de parte dos batistas brasileiros para com a temática dos
direitos humanos. Pois, apesar de no artigo afirmar que a solução dos problemas e atritos
envolvendo opinião e política deveriam ser resolvidos através do debate e de forma pacífica,
nenhuma condenação ou ao menos qualquer tipo de reprovação é feita aos praticantes de
tortura na sociedade brasileira. E mais do que isso, na tentativa de amenizar e relativizar as
violências e o sistema repressivo instalado pela ditadura militar, o religioso usa o argumento
de que essas práticas eram habituais na história do país e constituíam quase que um elemento
cultural congênito da sociedade brasileira, em que apenas a conversão dos homens aos
princípios evangélicos poderia trazer alguma alteração.

“No Brasil vivemos numa democracia”: a compreensão dos batistas acerca do caráter
político do regime militar

Num editorial de setembro de 1980, O Jornal Batista posicionou-se claramente sobre a


problemática da ditadura: “[...] evidentemente somos contra qualquer espécie de ditadura;
somos contra prisões arbitrárias; somos contra torturas [...]” (PEREIRA, 1980, p. 3).

Tendo esta declaração como referência vários questionamentos ficam em aberto: por que um
total silenciamento do jornal para com a ditadura militar instalada no Brasil, marcada em
diversos momentos por prisões arbitrárias e num sistema repressivo fundamentado na tortura?
E além dessa omissão, por que, mais do que um respeito às autoridades, o que se via do grupo
dirigente batista era uma complacência para com esses governos e muitas vezes um apoio
direto ou indireto às suas ações?

É claro que a construção de conceitos sobre o que caracteriza uma ditadura ou uma
democracia são bastante subjetivos e até díspares, dependendo de quem lhes dá valor, visto
que cada pessoa carrega em si suas experiências e interesses. Essa observação pode-nos
ajudar a compreender porque os batistas brasileiros tiveram esse posicionamento perante a
ditadura brasileira. Assim, analisando suas declarações políticas no período de abertura
política, percebe-se que para esse grupo o Brasil não vivia num regime ditatorial, mas: “No
Brasil vivemos numa democracia. Adjetivada ou não, é uma democracia. A comprovar isso há
as eleições que temos tido, as casas do Congresso, as assembléias estaduais. Como cidadãos
votamos nas eleições realizadas” (PEREIRA, 1983, p. 3).

1968
Para exemplificar ainda mais essa compreensão da vigência de uma democracia no país, um
editorial de setembro de 1979, destacava que no Brasil, além do funcionamento do Congresso
e da existência de dois partidos políticos, havia liberdade de imprensa, a censura estava
praticamente suspensa, era possível criticar o governo através desses meios e “[...] há a
máxima liberdade religiosa” (PEREIRA, 1979, p. 3). No mesmo sentido, o editor do OJB
num texto sobre as eleições de 1982 fez a seguinte colocação: “Após uma ditadura de quase
15 anos [...]” (PEREIRA, 1982, p. 3); numa declaração importante, pois reconhece que em
algum momento houve ditadura militar no Brasil; no entanto é interessante observar que a
ditadura militar ainda em vigor, segundo ele já teria terminado e havia durado quase 15 anos,
estabelecendo provavelmente o seu final com a revogação do AI-5 em 1978 ou com a
promulgação da Lei da Anistia em 1979.

Partindo disso, torna-se importante destacar que a ditadura militar brasileira, vigente entre os
anos de 1964 e 1985, configurou-se por diferentes contextos e fases, sendo em alguns
momentos marcada pela forte censura, perseguição e instalação de um violento sistema
repressivo, e em outros, por uma maior abertura ou mesmo certa possibilidade de participação
política, como no caso de algumas eleições legislativas. É claro que o desgaste político e as
pressões internas e externas fizeram com que os militares abrissem certas brechas, tais como
no caso da Lei da Anistia e a revogação do AI-5.

Porém, o poder central e os principais órgãos decisórios sempre estiveram em mãos militares
ou de pessoas e grupos ligados a eles, visto que a própria censura permaneceu vigorando até o
ano de 1988. Assim, o malabarismo teórico construído pelo OJB para justificar sua aliança
com os militares e a postura democrática destes, além de ser uma anomalia política conceitual
do que é um regime democrático, ia muitas vezes além do que os próprios ideólogos e
defensores do regime militar tentavam arquitetar para justificar seus feitos.

É importante salientar que praticamente em todos os momentos no qual o OJB defendia a tese
de que no Brasil havia um regime democrático, a questão surgia como resposta ou
contraposição às ditaduras comunistas, citando os países da União Soviética ou Cuba e
comparando a democracia existente entre esses regimes. Ressalta-se assim, que além do apoio
aos governos militares, essa compreensão política mostra que a tradição anti-comunista do
jornal não tinha arrefecido com o passar do tempo, mas permanecia como uma das fortes
características da tradição batista desse período. Interessante notar nesse caso, que apesar dos
batistas brasileiros possuírem uma forte ligação com os Estados Unidos; visto muitas vezes

1969
como exemplo de sociedade a ser implantada por aqui, o modelo democrático instalado no
Brasil, diferentemente do que era feito com as ditaduras comunistas, nunca era comparado
com o sistema político estadunidense, considerado como uma das democracias mais estáveis e
consolidadas do mundo.

Para tentar entender esse constructo teórico-político articulado pelo OJB, acredito que uma
análise mais aprofundada da relação entre o grupo dirigente batista e os governos militares,
principalmente com o do general Figueiredo (1979-1985), pode oferecer alguns subsídios para
tanto.

Porque, nesse período de abertura política, diversos fatos e acontecimentos demonstraram que
a relação entre esses dois grupos foi fortalecida e teve sua proximidade aumentada, sendo tal
fato reconhecido por eles próprios: “Ponderamos que atualmente há da parte daqueles que
estão no governo uma certa abertura para com o povo batista, coisa que não havia há vinte e
cinco anos especialmente em virtude da pressão exercida pela hierarquia católica”
(PEREIRA, 1981, p. 3).

Assim, além da presença constante de prefeitos, governadores e autoridades militares nas


Assembléias anuais da CBB, foi durante esse governo, mais precisamente no ano de 1981,
que dois dos mais importantes líderes batistas, Nilson do Amaral Fanini e Irland Pereira de
Azevedo formaram-se no principal local de propagação ideológica do regime militar, a Escola
Superior de Guerra (ESG), como mostra Souza (2008, p. 111-112). Destaca-se que os dois
pastores citados estiveram diversas vezes na diretoria da Convenção Batista Brasileira, entre
os anos 1970 e 1980, revezando-se nos cargos de presidente e vice-presidentes, além de
diversos outros postos que assumiram na estrutura da CBB e também na Aliança Batista
Mundial (ABM), demonstrando assim, a forte ligação estabelecida entre a diretoria da CBB e
o regime militar desse período.

O próprio general-presidente Figueiredo participou duas vezes de eventos realizados pelos


batistas. O primeiro foi um culto realizado na Igreja Memorial Batista de Brasília, em julho de
1980, que contou com a presença de diversos ministros, deputados e pastores de diversas
denominações, em ação de graças à lei que estendia aos pastores os benefícios concedidos
pela Previdência Social, sendo a primeira vez que tal autoridade participava de um culto
batista no país, segundo o OJB.

1970
Outro evento foi a participação de Figueiredo e de outras autoridades militares, em agosto de
1982, no aniversário do programa Reencontro apresentado pelo líder denominacional Nilson
do Amaral Fanini, realizado em pleno estádio do Maracanã, o qual teve a presença de
milhares de pessoas e ocorreu num momento bem próximo às eleições que seriam realizadas
no mesmo ano, ato este que foi visto por muitos da época como um comício em apoio aos
grupos que apoiavam os militares. Tal relacionamento entre o pastor e o governo federal
acabou sendo coroado com a concessão de um canal televiso no Rio de Janeiro, em janeiro de
1984.

Considerações finais

Dessa forma, fica claro que a aproximação do grupo que possuía a hegemonia da CBB com os
militares permaneceu bastante estável nesse período, e mais do que isso, deu sinais de que a
abertura política foi o momento mais vigoroso dessa relação, como demonstra a participação
de militares em eventos religiosos e até com a concessão de uma rede televisiva. E mais do
que isso, o discurso explicitado pela elite dirigente batista, veiculado principalmente no OJB,
permanecia em total sintonia com o pensamento articulado pelos militares, onde se tentava
elaborar diversas justificativas político-religiosas para o abafamento das violências cometidas
pelo regime militar e construindo até uma nova periodização histórica para o regime.

Isso mostra que diferentemente de outros grupos e confissões religiosas, que nesse momento
passavam a ter uma posição mais crítica aos desmandos cometidos pelos militares, ou
emergiam grupos que defendiam a volta das liberdades democráticas e uma maior
participação popular nas decisões do país, no caso dos batistas essa mudança de
posicionamento não ocorreu. E se existiam grupos que possuíam uma linha de pensamento
mais crítica perante essas questões, os mesmos, ou foram silenciados e abafados pela corrente
hegemônica ou não conseguiram articular-se ou mesmo apoio para forçar uma maior disputa
de poder na estrutura da CBB e do OJB.

Referências

AGUILERA, José Miguel Mendonza. Um povo chamado batista: um jornal (OJB) a serviço
da formação de uma mentalidade religiosa (1960-1985). Orientação de Prof.º Dr.º Antonio

1971
Gouvêa Mendonça. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de
Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1988.

ALMEIDA, Luciane Silva de. “O comunismo é o ópio do povo”: representações dos batistas
sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia (1963-1975). Orientação de
Prof.ª Dr.ª Elizete da Silva. Dissertação (Mestrado em História Social), Departamento de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana, 2011.

SOUZA, Edilson Soares de. Diálogos (Re) Velados: a trajetória e os discursos político-
doutrinários dos batistas brasileiros. Orientação de Prof.º Dr.º Euclides Marchi. Dissertação
(Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

Fontes

DIAS, Herezon. Os verdadeiros motivos da derrota de Jymmy Carter. O Jornal Batista, Rio
de Janeiro, 08 fev. 1981, p. 11.

ORDEM DOS MINISTROS BATISTAS DO BRASIL. Manifesto dos Ministros Batistas do


Brasil. [1963] In: LESSA, Hélcio da Silva. Ação Social Cristã. Guanabara. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/32351078/Acao-Social-Crista-Helcio-da-Silva-Lessa>. Acesso em:
30 jul. 2013.

PEREIRA, José dos Reis. Os batistas e os direitos humanos. O Jornal Batista, Rio de Janeiro,
23 abr. 1978, Editorial, p. 3.

__________. Lavagem cerebral. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 18 nov. 1979, Editorial, p.
3.

__________. A ilusão dos cristãos-marxistas. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 07 set. 1980,
Editorial, p. 3.

__________. Favores dos poderes públicos. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 30 ago. 1981, p.
3.

__________. Eleições. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 05 dez. 1982, p. 3.

__________. Quando é necessária a contestação. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 24 jul. 1983,
p. 3.

__________. Tortura nunca mais?. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 17 nov. 1985, Editorial,
p. 3.

1972
1973
O cristão frente às autoridades civis: a mentalidade dos
protestantes pernambucanos no Golpe Militar de 1964
Zilma Adélia Soares Lopes1

Introdução

O posicionamento dos cristãos diante das questões do mundo é multifacetado. Esse fato deve-
se justamente por ser o protestantismo no Brasil composto por uma diversidade de segmentos
teológicos, que se fizeram historicamente através dos protestantismos de missão, ou
conversionista, e de imigração. Assim, é difícil estabelecer uma linha tênue entre os
segmentos provenientes dessas variações e, portanto, fica claro que não há um consenso
acerca de como se portar diante de situações sociais complexas, tais como sistemas políticos.
Mas, é possível fazer um balanço historiográfico que se seja capaz analisar e expor o modo
como os protestantes se comportaram nos momentos de efervescência política e social
decisivos para a história do país. Um desses momentos marcantes foi a Ditadura Militar no
Brasil. Este artigo, portanto, visa considerar o contexto do Golpe Militar de 1964 em
Pernambuco e o/os posicionamento/os dos protestantes diante do Golpe, através de uma
pesquisa bibliográfica preocupada com essa questão.

Sendo assim, inicialmente, este artigo pondera acerca da situação sociopolítica em


Pernambuco no período em que os impasses e discussões provocadas pelo governo do
presidente João Goulart se fizeram impetuosos, entre 1962 e 1964. A seguir, nos ocupamos
em analisar as discussões que refletiam a mentalidade dos evangélicos, atentando para o fato
de que diferentes correntes ideológicas predominaram e agiram no sentido de reger a postura
dos protestantes acerca de uma revolução no Brasil. Feito isso, objetivamos demonstrar em
que medida os diálogos estabelecidos entre o pensamento oficial das igrejas e os poderes civis
resistiram ou contribuíram à efetivação do discurso propagado pelos militares.

1
Graduanda em História da UFPE. Contato: zilma_adelia@yahoo.com.

1974
Entre 1962 e 1964: contexto sociopolítico

O Brasil, no período anterior ao Golpe, engolfava-se na tensão política que vigia. João
Goulart, presidente da República na época, era compreendido como um político incapaz de
satisfazer os anseios do Brasil, tanto no momento em que atuou na presidência como
posteriormente pela historiografia. Mas, de acordo com a historiografia recente, a correnteza
que arrastou Goulart para fora da presidência está condensada na radicalização das esquerdas
e nas flagrantes conspirações intentadas pelos militares contra o governo de João Goulart que
não toleravam a posição de política conciliatória adotada pelo presidente que agiu no sentido
de levar a cabo seu projeto das reformas de base (FERREIRA, 2011, p. 345-400).

Em Pernambuco, o Golpe se inseriu num contexto peculiar: uma conjuntura de miséria e


pobreza atormentava a população. O anseio pela mudança dessas condições instigava os
trabalhadores rurais, principalmente, a reivindicarem melhores condições de vida, inspirados
pela Revolução Cubana. Além disso, o perfil esquerdista do governador da situação, Miguel
Arraes, também deve ser acrescentado a essa análise. Essas circunstâncias alarmavam os
políticos de posição direitista, bem como os Estados Unidos: temiam uma revolução socialista
no Brasil através de Pernambuco. Isto por conta dos constantes diálogos entre os integrantes
das esquerdas pernambucanas, como também das Ligas Camponesas, com Cuba.

A influência de Cuba foi um dos fatores decisivos para a tomada do poder pelos militares.
Este país “apoiou, concretamente, os brasileiros em três momentos bem diferentes”. Para nós
aqui, vale destacar o primeiro, que “foi anterior ao golpe civil-militar. Nesse momento, os
aliados preferenciais do governo cubano eram as Ligas Camponesas” (FERREIRA;
DELGADO, 2012, p. 60). Perceber a influência da Revolução Cubana nas Ligas Camponesas
faz-se de suma importância para compreender o que se passava em Pernambuco nos anos
anteriores ao golpe, visto que havia um intenso borbulhar de insatisfação no meio rural
pernambucano. Francisco Julião foi o líder que mais se pautou na Revolução Cubana,
servindo como mediador de um intercâmbio entre integrantes do movimento e os
revolucionários cubanos, dos quais aqueles receberam, inclusive, treinamento militar (SILVA,
2010, p. 84-85).

Tal efervescência alarmava os Estados Unidos. O medo de que houvesse um levante


comunista gerado em Pernambuco era inquietante. A condição social dos pernambucanos
nesses momentos preliminares causava crescente revolta entre a população, provocando

1975
apreensão entre os políticos alinhados ao liberalismo norte-americano, como também aos
Estados Unidos, que temiam o perigo potencial de um levante comunista na região. Para que
se tenha ideia do estado de pobreza extrema vivida em Pernambuco no início da década de
1960, temos a descrição feita por Arthur Schlesinger, um dos assessores do presidente dos
Estados Unidos John F. Kennedy, numa ocasião de visita a esse estado, em 1961: “Eu jamais
vira uma região de tamanho desespero – uma aldeia miserável e estagnada após a outra,
casebres de barro escuro, crianças de pernas tortas e barrigas imensas, onde não se via
praticamente nenhum velho” (SILVA, 2010, p. 84).

Ademais, o governo do estado, a partir de janeiro de 1963, foi assumido por Miguel Arraes,
que se elegeu em 1962 através do Partido Social Trabalhista (PST), apoiado pelo Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e setores do Partido Social Democrático (PSD) 2. Sobre esse
governador e sua política, vale destacar o que Flávio Weinstein Teixeira escreveu, uma vez
que nos dá um panorama geral da situação político-econômico-social do momento:

Miguel Arraes deu um aspecto popular a suas administrações, projetando-se como um líder
de esquerda de dimensões além do meramente regional. Em meio à complexa e polarizada
disputa política que antecedeu a intervenção militar de março de 1964, o nome de Arraes
passou a ser seguidamente lembrado como um candidato de peso à sucessão de João
Goulart. [...] De fato, não havia grandes dificuldades em se trabalhar sua imagem como a de
alguém comprometido com a redenção dos oprimidos e marginalizados. Afinal, fora ele
quem promovera o Acordo do Campo, em 1963, garantindo direitos trabalhistas a
trabalhadores rurais. Fora ele quem enfrentara um lockout e um boicote dos proprietários,
chegando a confiscar mercadorias a fim de assegurar o abastecimento popular. E também
criara o Movimento de Cultura Popular, permitindo o desenvolvimento de um inédito
movimento em favor da educação de jovens e adultos trabalhadores. Além disso, Arraes
urbanizara amplas áreas da cidade de Recife e apoiara irrestritamente a utopia
desenvolvimentista da Sudene, criada no fim do governo JK para concentrar os esforços de
planejamento e investimento públicos no Nordeste. E, enfim, fora ele quem colocara o
poder público como mediador dos conflitos sociais e não mais como um extenso “aparelho
repressor” 3.

Miguel Arraes foi deposto após o Golpe Militar, em 1964, visto que tinha um perfil alinhado à
esquerda e simpático ao PCB, conforme visto acima, o que possibilitou aos seus opositores

2
Miguel Arraes de Alencar. Governo do Estado de Pernambuco. Disponível em
<http://pe.gov.br/governo/galeriadegovernadores/miguel-arraes-de-alencar>. Acesso em 10 ago 2013.
3
O redentor do agreste. Revista de História. Disponível em
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/o-redentor-do-agreste>. Acesso em 10 ago 2013.

1976
uma visão dele como comunista, apesar de não assumir tal posição. Exilou-se em 1965 e
manteve-se afastado da política até 1979, quando foi anistiado.

A Revolução em Pernambuco: diferentes perspectivas

O período imediatamente anterior ao Golpe de 1964 foi marcado por um anseio por
revolução, tanto entre as esquerdas quanto pela direita. Esta, representada por alguns grupos
políticos, empresariais e militares, visava tomar o poder a fim de salvar a democracia do
iminente comunismo que supostamente estava sendo introduzido por Jango no Brasil. Devido
à política feita pelo presidente, de boas relações com os países socialistas, a direita junto com
os militares agia no sentido de efetivar suas conspirações através de instituições, tais como o
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), ambas orientadas pela CIA (FERREIRA, 2011, p. 359-360).

Ao passo em que a direita assim procedia, “as esquerdas partiram para a estratégia de
pressionar o governo e mobilizar os trabalhadores nas ruas [...]. Em processo de crescente
radicalização, atacavam o Congresso Nacional e exigiam de Goulart medidas radicais e
imediatas” (FERREIRA, 2011, p. 357) no sentido de concretizar as reformas de base,
sobretudo a reforma agrária, ponto crucial para as esquerdas nessa pauta. No que tange a
questão da democracia, é possível compreender que

como conclui Argelina Figueiredo, a questão democrática não estava na agenda da direita e
da esquerda. A primeira sempre esteve disposta a romper com tais regras, utilizando-as para
defender seus interesses. A segunda, por sua vez, lutava pelas reformas a qualquer preço,
inclusive com o sacrifício da democracia [...]. Entre a radicalização da esquerda e da direita,
uma parcela ampla da população apenas assistia aos conflitos, silenciosa (SOARES;
FERREIRA, 2001, p. 173) 4.

No que se refere ao silêncio por parte de “uma parcela ampla da população”, deve-se refletir
com acuidade. Os protestantes de Pernambuco acabaram por ser heterogêneos nesse sentido.
Houve aqueles que foram prosélitos dos ideais militares para salvar a democracia brasileira
das crises ocorridas que teriam sido provocadas pelos comunistas no Estado, “os protestantes
pernambucanos se aliaram a outros evangélicos do país no Dia Nacional do Jejum e Oração

4
Esta citação do autor Jorge Ferreira é escrita em referência ao pensamento da autora supracitada. Ver
D’ARAÚJO, Maria Celina. Os sindicatos, carisma e poder. O PTB de 1945-65. Rio de janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p. 202.

1977
para que Deus os livrasse do perigo vermelho que rondava a sociedade” (SILVA, 2010, p.
102).

Então, de fato, houve uma aproximação entre alguns protestantes com o regime por que estes
se posicionavam contra o comunismo definitivamente, pois entendiam ser o marxismo uma
teoria diabólica por propagar um ideal ateísta que provocava o temor de uma possível perda
de liberdade religiosa no país. Mas não apenas por isto, também havia o temor de uma
possível guerra civil provocada pelas esquerdas. “Medo da esquerda e simpatia pela direita
parece refletir fielmente a mentalidade protestante majoritária” (REILLY, 1985, p. 315).
Portanto, havia, de fato, evangélicos no período que “apenas assistiam aos conflitos,
silenciosa” (SOARES; FERREIRA, 2001, p. 173): os fieis que, orientados por seus líderes
eclesiásticos,

viam as esquerdas como um empecilho ao progresso religioso, e os militares, segundo os


protestantes, combateriam melhor esses grupos no país, abrindo espaços para a expansão
dos evangélicos, bem mais que os governos antecedentes. Logo aquele que se declarava
verdadeiro cristão deveria ter respeito e solidariedade ao regime instalado, orando pelos
governantes, pois o país estaria entrando numa era messiânica de paz política e religiosa
(SILVA, 2010, p. 104-105).

E após o Golpe, em 1964, os fieis foram convocados novamente para agradecer a Deus pela
vitória militar. Isso levou os militares a enxergarem nos protestantes pernambucanos
importantes aliados que inibiriam eclesiasticamente e politicamente seus fieis.

Segundo João Dias de Araújo (1982), a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), por exemplo,
posicionou-se de modo a instruir os fieis diante da situação de tensão política e social
“perigosa” do comunismo. Este autor destaca que a Igreja Presbiteriana foi a mais envolvida e
a mais comprometida com o Golpe de 1964 por causa das ligações que tinha com a classe
média e por gozar de prestígio nos meios políticos e militares. A participação ativa de líderes
presbiterianos nos acontecimentos políticos e sociais durante o regime militar e antes mesmo
do Golpe se deu ainda durante as tramas para a deposição de João Goulart da presidência.
Vários pastores presbiterianos que apoiaram a tomada do poder pelos militares, demonstrando
que vários setores da IPB se entrosaram com a o Golpe de 64. Por esses motivos entre outros,
Araújo conclui que a IPB identificou-se com o conservadorismo político, condenou os
renovadores como modernistas, mundanos e comunistas e postulou que a Igreja nada tem a
ver com a situação social (ARAÚJO, 1982).

1978
Convém relembrar que o termo que pairava sobre todos na época era revolução, e perceber
que os protestantes também se utilizaram deste termo. Tal fato é interessante de ser observado
e o cientista político Joanildo Burity nos apresenta isso:

O notável não é que falassem em revolução, mas que eles falassem em revolução. Afinal,
lendo-se os jornais, revistas, manifestos e outros documentos da época, o discurso da
revolução é altamente frequente. Fossem indivíduos, partidos, organizações civis ou
militares, de boca em boca, a revolução se repetia. Mas que os protestantes, sabidamente
ausentes e resistentes a qualquer aproximação das coisas do mundo, ou seja, das questões e
problemas sociais e políticos, se pusessem lado a lado com os movimentos sociais e
políticos do período, isto sim, é digno de surpresa (BURITY, 2011, p. 13).

Muitas igrejas protestantes agiram em vista de alertar os crentes no sentido de que a revolução
que deveria ocorrer não seria nos moldes comunistas, mas de acordo com os ensinamentos
bíblicos. Essa preocupação foi evidenciada na Conferência do Nordeste em 1962, cujo intuito
foi o de encontrar soluções para os problemas sociais nordestinos de acordo com os
parâmetros cristãos (CÉSAR, 1962). Para os protestantes, esta Conferência aconteceu no
tempo e no lugar oportuno, pois o Nordeste estava sendo conhecido nacional e
internacionalmente como a Cuba Brasileira ou o Estopim da Revolução e a cidade Recife
como a Moscousinha Brasileira. Estes que assumiram uma posição mais crítica em relação às
questões sociais alarmantes do período assentiam que o Brasil estava em um processo
revolucionário do qual os protestantes não deveriam se esquivar. Por isso, incumbiram-se da
tarefa de levar a Revolução de Cristo para o país e, nesse contexto, para Pernambuco
especificamente (SILVA, 2010, p. 91, 92).

Esses cristãos protestantes que pregavam um evangelho social tiveram seus discursos
confundidos com o discurso das esquerdas e dos comunistas pelos que adotaram uma posição
a favor dos conservadores. Por isso, após o Golpe, muitos deles sofreram perseguições dentro
mesmo das instituições religiosas das quais participavam e dos seminários teológicos delas,
sendo inclusive entregues como subversivos às autoridades civis do período. Foi o caso do
Reverendo e professor do Seminário Presbiteriano do Norte: João Dias de Araújo, autor do
livro Inquisição sem fogueiras: vinte anos de Igreja Presbiteriana do Brasil (1954-1974).

1979
Considerações finais

Após essa análise, é possível considerar que no período anterior a instauração da Ditadura,
houve uma movimentação de diversos setores sociais, inclusive de protestantes. Estes,
especificamente, pregavam a necessidade de se haver reformas sociais, a fim de impedir a
introdução do comunismo. Necessitava-se de uma revolução para tentar conter um levante
comunista no país. Para alguns protestantes conservadores, essa revolução foi a tomada do
poder pelos militares, o que foi visto por estes como uma providência divina, resposta de
Deus às orações do povo. Assim, alguns setores dos protestantes pernambucanos constituíram
um importante e eficiente aliado das forças políticas conservadoras e dos conspiradores que
realizaram o Golpe Militar.

Existiu, portanto, uma oposição entre os prosélitos de um evangelismo social, que defendiam
transformações sociais na estrutura do país, e os adeptos de um protestantismo reacionário,
que defendiam a permanência dessas estruturas sociais vigentes. Assim, alguns setores
protestantes do período podem ser caracterizados a partir de sua identificação com a
permanência da estrutura social e o espírito anticomunista. Estes acabaram sendo
considerados como verdadeiros cristãos, pois supostamente estavam pautados nas afirmações
bíblicas dos apóstolos acerca das autoridades civis. Àqueles que, entretanto, não concordaram
com as posições oficiais de suas lideranças, foram taxados como deturpadores, subversivos,
desobedientes à missão espiritual da Igreja; foram vistos como comunistas, e por isso
sofreram perseguições dentro das igrejas das quais faziam parte.

Referências

ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem Fogueiras: vinte anos de Igreja Presbiteriana do
Brasil (1954-1974) – 2ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1982.

BURITY, Joanildo. Fé e revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro


(1962-1964). Rio de Janeiro: Editora Novos Diálogos, 2011, p. 13.

COSTA SILVA, Carlos Alberto da. O cristão e a autoridade civil a partir de alguns textos
bíblicos. Revista de Teologia e Ciências da Religião (UNICAP), Ano IV, nº 4, Pernambuco,
p. 128 – 143, 2005.

FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge
(org.); DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da

1980
experiência democrática de 1945 ao golpe civil militar de 1964. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, Vol. 3, p. 357.

LIMA JÚNIOR, José Ferreira de. Protestantismo e Golpe Militar em Pernambuco: uma
análise da Cruzada de Ação Básica Cristã. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)
UNICAP, Recife, 2008.

REILLY, Alexander Durkan. A história documental do protestantismo no Brasil. São Paulo:


Aste, 1985, p. 315.

ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge


(org.); DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da ditadura –
regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2012, Vol. 4, p. 60.

SILVA, Paulo Julião. Protestantes no embate anticomunista em Pernambuco (1945-1964).


Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional), UFRPE, Recife, 2010.

SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge Ferreira (orgs.). A história vai ao cinema.
1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 173. Esta citação do autor é escrita em referência
ao pensamento da autora supracitada. Ver D’ARAÚJO, Maria Celina. Os sindicatos, carisma
e poder. O PTB de 1945-65. Rio de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 202.

Internet

Miguel Arraes de Alencar. Governo do Estado de Pernambuco. Disponível em


<http://pe.gov.br/governo/galeriadegovernadores/miguel-arraes-de-alencar>. Acesso em 10
ago 2013.

O redentor do agreste. Revista de História. Disponível em


<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/o-redentor-do-agreste>. Acesso em 10 ago
2013.

1981
1982
Presbiterianos e apoio ao governo militar: reação e intolerância
internas
Silas Luiz de Souza1

Introdução

O apoio prestado pela Igreja Presbiteriana do Brasil – IPB, ao governo militar é uma
evidência já aferida. No entanto, muitos estudos sobre a atuação dos presbiterianos e dos
protestantes no período militar ainda devem ser realizados para lançar luz sobre as variadas
nuances das relações entre os diversos atores sociais e seus lugares em determinado período
histórico. Neste momento em que se aproxima o cinquentenário do golpe militar e se espera
ansiosamente o desfecho da Comissão Nacional da Verdade, retornar ao tema e buscar em um
grupo social específico como foi pensado e efetivado a relação com o governo militar ajuda a
conhecer melhor nossa própria sociedade. O apoio oficial que os presbiterianos deram ao
regime militar pode ser entendido como parte da estratégia de luta por espaço no campo
religioso brasileiro. Os protestantes não lutavam mais apenas com a Igreja Católica
Apostólica Romana, mas também com os pentecostais, chegados meio séculos antes, porém
percebidos tanto por católicos como por protestantes tardiamente, quando seu crescimento
começou a preocupar os grupos mais antigos. Usa-se aqui a ideia de campo religioso de Pierre
Bourdieu (2005, p. 27-98), conceito que tem sido amplamente utilizado para entender a
religião na sociedade brasileira, com seu dinamismo e vigor que provoca cada vez mais a
atenção dos estudiosos. Para o intelectual francês nenhum campo certamente é totalmente
autônomo, integrando-se, influenciando-se e modificando uns aos outros. Assim, estudar um
campo lança luz no entendimento da sociedade.

A religião é de fundamental importância na vida humana desde seus primeiros passos. O


campo religioso sempre esteve ligado à manutenção simbólica da sociedade e, neste
particular, a relação da religião com a política é fato presente em todas as culturas. Bourdieu
(2005, p. 70-73) afirma que “por estar investida de uma função de manutenção da ordem

1
Doutor em História pela UNESP/Assis. Mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Licenciado em História
e formado em Teologia. Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e no Seminário Presbiteriano do
Sul. Participa do NUMEP – Núcleo Multidisciplinar de Estudos do Protestantismo (UPM) e do GP “Memória
religiosa e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias” (UMESP). Contato:
silasluizdesouza@gmail.com.

1983
simbólica em virtude de sua posição na estrutura do campo religioso, uma instituição como a
Igreja contribui sempre para a manutenção da ordem política.” Dominique Julia procurou
demonstrar a relação estreita entre o campo religioso e os demais campos e como a religião é
afetada pelas mudanças sociais. Suas primeiras palavras em bem conhecido estudo para os
historiadores dessa área são: “As mudanças religiosas só se explicam, se admitirmos que as
mudanças sociais produzem, nos fiéis, modificações de ideias e de desejos tais que os
obrigam a modificar as diversas partes de seu sistema religioso” (JULIA, 1995, p. 106). Em
novas condições sociais, o grupo religioso se esforça para interpretar a sua participação no
mundo a partir de sua experiência de fé e de sua herança teológica. É uma via de mão dupla.
As condições sociais provocam uma leitura teológica específica a partir da herança teológica,
enquanto a teologia é transformada pelas condições sociais, a fim de dar conta da nova
situação. Isso não se dá, no entanto, sem conflitos e oposições internas.

No caso da IPB se houve uma disposição para apoiar os novos mandatários do país, houve
também uma oposição interna cuja visão teológica, embora calcada na mesma herança
calvinista, estaria mais propensa à crítica da situação e não simplesmente a um apoio tão
pronto e decisivo como se fez. Esse grupo foi rechaçado pela liderança denominacional.
Pastores foram despojados, igrejas e concílios foram dissolvidos ou transferidos. Essas
disputas nem sempre eram claras para os membros das igrejas locais ou para os de fora. Essa
disputa pode ser identificada por aquilo que Bourdieu chama de “uma forma particular da luta
pelo monopólio”, que é a oposição entre a ortodoxia e a heresia, abordada assim:

Os conflitos pela conquista da autoridade espiritual que se instauram no subcampo


relativamente autônomo dos sábios (teólogos), produzindo para outros sábios e instados
pela busca propriamente intelectual da distinção a tomadas de posição cismáticas na esfera
da doutrina e do dogma, estão destinados por sua natureza a permanecer restritos ao mundo
“universitário”. Ao que tudo indica, o cisma clerical tem possibilidades de tornar-se uma
heresia popular, apenas na medida em que a estrutura das relações de concorrência pelo
poder no interior da Igreja lhe oferece a possibilidade de articular-se com um conflito
“litúrgico” e eclesiástico, ou seja, um conflito pelo poder sobre os instrumentos de salvação
(BOURDIEU, 2005, p. 63).

Nas deliberações conciliares e nas reportagens do jornal oficial o conflito aparecia como
teológico, em torno da verdade do evangelho. A defesa da verdadeira doutrina foi a
argumentação usada para o exercício da intolerância contra aqueles que, por sua postura

1984
teológica e ideológica, estariam agindo contra o Evangelho de Jesus Cristo, contra as
autoridades eclesiásticas e contra o governo legalmente estabelecido no país.

O regozijo com a “gloriosa revolução”

O apoio explícito ao governo militar foi apresentado desde as primeiras horas do golpe. A
primeira edição do Brasil Presbiteriano, BP, logo após o estabelecimento do novo governo,
estampou na primeira página a postura que seria tomada pela igreja a partir daquele momento:
“Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão regozijando com os resultados da
gloriosa revolução de março-abril: o expurgo de comunistas e seus simpatizantes da
administração do nosso querido Brasil” (BP, abril de 1964, p. 7). As explicações para esse
pronto apoio são variadas. Dois pontos são importantes. Os presbiterianos tinham atingido os
estratos médios da população nacional e tais grupos se preocupavam com as conquistas
materiais que vinham alcançando, por isso se manifestaram em eventos como a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade. Assim, a ideologia liberal vinda com os missionários, com
sua intransigente defesa das liberdades individuais, especialmente as liberdades de
pensamento, da propriedade e de religião, sempre fez parte do aparato ideológico desse grupo.
Embora o tipo de liberalismo presente na sociedade brasileira e no protestantismo desde o
século XIX possa ser questionado, por parcial e reducionista, não resta dúvida que esses
aspectos liberais contribuíram para uma visão de mundo que lutaria contra todas as forças
consideradas empecilhos para o exercício das liberdades, como o comunismo.

O segundo ponto é o fundamentalismo. Esse não é apenas um fenômeno religioso, mas, na


sociedade moderna, é “a tentativa de proporcionar aos indivíduos desenraizados e inseguros
novamente o apoio psíquico” (TÜRCKE, 1995, p. 51) para subsistir quando a sociedade não
atende mais suas necessidades. Martin Dreher (2002, p. 80) diz que no protestantismo o
fundamentalismo é uma “contra-ofensiva a um modernismo que, assim diziam, havia se
apossado do mundo protestante”. As transformações da religião propostas pela modernidade
são recusadas e procura-se retornar aos fundamentos históricos da fé. James Barr (1978, p. 11)
aponta para o fato de que “o coração do fundamentalismo não é a Bíblia, mas é uma forma
particular de religião”, especialmente a partir dos avivamentos nos Estados Unidos. A ênfase
na conversão, própria dos Avivamentos, é uma característica essencial do fundamentalismo.
A linha divisória entre falsos e verdadeiros cristãos, isto é, os convertidos, é garantida,

1985
conforme Barr, na manutenção da sã doutrina. A doutrina advém da leitura bíblica, uma forma
particular de leitura, visto que existem muitas interpretações e distintas correntes teológicas
no decorrer do tempo. A leitura particular do fundamentalismo parte da experiência de
conversão e da necessidade de confirmá-la a partir dos dogmas retirados da Escritura. Nesse
momento é que entra a explicação bíblica, dogmática, para apoiar o governo em uma leitura
fundamentalista, na qual o fiel deve ser ordeiro e obediente às autoridades. Essas
características demonstram o caráter cristão e veracidade da conversão. Portanto, o aparato
ideológico e teológico para apoiar o governo militar veio também do fundamentalismo.

Citou-se que o primeiro número do jornal após o golpe militar já apresentava o apoio dos
presbiterianos. Necessário se faz informar que havia uma edição pronta quando o golpe
ocorreu. A mesa diretora da IPB cancelou essa edição e fez publicar outra, informando isso na
nova edição, destacando-se os seguintes itens:

1º) Que o jornal procure refletir o pensamento oficial da Igreja;

4º) Que se declare que a edição do jornal que traz o Nº 8, do ano VII, 2ª quinzena de abril,
não é publicação da Igreja Presbiteriana do Brasil, nem é seu Órgão Oficial, mas é de
exclusiva responsabilidade do ex-redator; (BP, abril de 1964, p. 1).

No mesmo número, também em primeira página, há uma moção informando-se que ela teria
sido entregue para o “Secretário particular do presidente”:

O Brasil, ilustre Marechal, odeia o comunismo, - mas com a mesma generosidade e altivez
de sentimentos - odeia, igualmente, toda e qualquer forma totalitária ou fascista de governo.
Na certeza irrebatível de que “a justiça exalta as Nações e de que o Pecado é o opróbrio dos
Povos”, - hipotecam, Senhor Presidente, - respeitosa e patrioticamente, enorme soma de
confiança em seu Governo (BP, abril de 1964, p. 1).

A preocupação em lutar contra o comunismo aparece cada vez mais intensamente no BP. As
teorias políticas de esquerda eram consideradas inimigas da fé cristã. Para a leitura
fundamentalista e liberal da Bíblia seria impossível esposar ideias esquerdistas e ser cristão
verdadeiro ao mesmo tempo:

Pastores, Seminaristas, Presbíteros, crentes, não podem abraçar a ideologia vermelha e


permanecer na Igreja. Se quiserem ser comunistas, que o sejam, mas renunciem à jurisdição
da Igreja e não contaminem o rebanho. Uma coisa ou outra. Ou Cristo ou Belial (BP, maio
de 1964, p. 7).

1986
Em 1969, o BP comentou as celebrações do sete de setembro pela IPB em todo o país, com o
corolário: “destaca-se, nas comemorações presbiterianas, a intercessão pelas autoridades e a
afirmação de respeito à lei e à ordem” (BP, setembro de 1969, p.1). As comemorações do
sesquicentenário da independência tiveram participação ativa dos presbiterianos com cultos
por todo o país. Amplas reportagens no BP comentavam que os sermões tratavam da doutrina
da soberania divina sobre nossa pátria, além de incentivarem o respeito à vida, ao trabalho,
aos bens, à reputação, à família e aos concidadãos (BP, agosto e setembro de 1972, p. 1).
Temas presentes no discurso ideológico dos militares. Na leitura fundamentalista o dogma
servia para legitimar o poder político. A consolidação do apoio pode ser destacada com a
decisão, em 1975, de investir em pastores que quisessem cursar a Escola Superior de Guerra.
Pela importância do documento, transcrevo-o em seu inteiro teor:

Doc. XXXV - Sugestão no sentido de aproveitamento por ministros presbiterianos do


Curso Intensivo mantido pela Escola Superior de Guerra.

Considerando a importância da orientação filosófico-doutrinária da ESCOLA SUPERIOR


DE GUERRA (sic) para os líderes brasileiros;

Considerando a possibilidade de pleitear uma vaga junto à Escola Superior de Guerra para
os pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil no curso de pós-graduação da referida Escola;

Considerando a oportunidade da Igreja Presbiteriana do Brasil estar presente no ambiente


do mais alto nível cultural do País em assuntos econômico-político e psico-social;

A Comissão Executiva do Supremo Concílio resolve:

a) Entrar em contato com a Escola Superior de Guerra para estudar a possibilidade de


conseguir uma vaga anualmente em nome da Igreja Presbiteriana do Brasil;

b) Que os futuros pastores estagiários sejam indicados pela própria Comissão Executiva do
Supremo Concílio;

c) Que a IPB, através da Fundação Educacional, conceda bolsa de estudo ao estagiário visto
ser o curso de dedicação exclusiva no período de um ano (DIGESTO PRESBITERIANO,
CE-75-070).

No entanto, esse tipo de visão não era da totalidade da IPB. As questões sociais, a crítica às
posturas políticas consideradas opressoras e a defesa de reformas na sociedade estiveram

1987
declaradamente presentes na vida da igreja antes do período militar2, continuaram por algum
tempo depois do golpe, mas foram rechaçadas pela política eclesiástica oficial como heresia.

Uma oposição “pouca e rouca”

A administração eclesiástica se esforçou para desqualificar e limitar a oposição interna que


existia nesse período. O BP noticiou a reunião da Comissão Executiva, em 1969, com a
manchete na primeira página: “Supremo Concílio – Reúne-se a CE – Ambiente de trabalho e
harmonia”. No entanto, o texto demonstra que havia um grupo perturbador da ordem: “já são
poucas e roucas as vozes dos que tentam apenas perturbar, e nada trazem de construtivo” (BP,
1º. e 15 de março de 1969, p.1). A oposição existia, apesar dos esforços pela limpeza. Era, no
entanto, pequena e cada vez mais sem voz. As regiões de Campinas - SP, Rio de Janeiro,
Vitória – ES e Salvador – BA eram as localidades nas quais se concentravam as principais
lideranças de oposição ao governo da IPB no período.

Muitas notícias, transcrição de decisões conciliares e artigos do BP mostram a atuação da


oposição. Esse grupo criou um jornal especificamente para combater a política oficial da
igreja: Jornal Presbiteriano, JP. Foi fundado por pastores e presbíteros3 da região de
Campinas – SP. Essa cidade é importante polo do presbiterianismo brasileiro, pela
antiguidade, capacidade intelectual, moral e capital religioso de sua liderança. O
presbiterianismo da região acumulou um importante capital simbólico. Os dois primeiros
missionários da igreja do sul dos Estados Unidos da América vieram para Campinas, no rastro
dos imigrantes estabelecidos na região. Além do estabelecimento de igrejas, criaram escolas e
abrigou o Seminário da Igreja. O mais antigo Seminário teológico da América Latina está na
cidade de Campinas desde 1907. Assim, o JP chegava no bojo de um rico capital simbólico
no contexto presbiteriano. O periódico, mensal, começou a circular em novembro de 1974 e
foi publicado até abril de 1978, esforço considerável para a época. Produzido na cidade de
Campinas se manteve, contudo, como voz da oposição presente em todo o país.

O grupo que comandava o jornal representava parte da elite intelectual e teológica da IPB,
pois vários deles eram professores do Seminário, além do trabalho e liderança pastoral e ação
missionária. É importante lembrar que a igreja tinha apenas duas escolas teológicas no
2
Para mais informações sobre isso pode ser consultado: SOUZA, 2005.
3
Presbítero é um líder leigo, sem formação teológica, eleito em assembleia dos membros de uma igreja local
para atuar em conjunto do pastor tanto no cuidado pastoral como na administração material daquela comunidade.

1988
período: o Seminário Presbiteriano do Sul e o Seminário Presbiteriano do Norte, visto que um
terceiro seminário durara pouco tempo e fora fechado poucos anos após o golpe militar
acusado de práticas ecumênicas e comunismo. Os professores do Seminário de Campinas
atuantes no JP são: Júlio Andrade Ferreira, que foi Reitor e prolífico escritor; Américo
Justiniano Ribeiro; Waldyr Carvalho Luz, tradutor das Institutas de João Calvino e professor
da Unicamp; Odayr Olivetti, que fora missionário no estrangeiro e tradutor de outra versão
das Institutas; Joás Dias de Araújo, também missionário no estrangeiro e dinâmico plantador
de igrejas. Além desses, todos pastores, deve-se citar o Presbítero Eduardo Lane, o
proprietário do jornal conforme o expediente, também ligado ao Seminário, tendo sido seu
diretor por alguns anos. Lane foi candidato derrotado à presidência do Supremo Concílio 4 da
IPB no mês de julho de 1974, poucos meses antes do lançamento do JP. A importância de seu
nome está no fato de ser neto do primeiro missionário a residir em Campinas e filho de outro
missionário, responsável por doar o terreno onde se construiu o prédio em que funciona o
Seminário, todos com o nome Eduardo.

Essa oposição “pouca e rouca” pretendia, através do JP “edificar a família da fé pela


doutrinação, exortação, testemunhos, mensagens estimulantes, informações exatas e variadas,
exemplos dignos,” conforme o editorial do primeiro número. Querendo o novo jornal dar
“informações exatas” e “exemplos dignos”, revela que não estaria ocorrendo isso na IPB.
Contudo, não fala apenas veladamente, mas expõe com clareza a condição de oposição,
afirmando que a linha editorial pretendia “desempenhar, com equilíbrio e serenidade, o
importante papel de oposição construtiva, que tem sido sempre característica distintiva de
todo o regime lidimamente democrático, do qual o sistema presbiteriano é uma das mais altas
expressões históricas” (JP, novembro de 1974, p.1).

O JP ecoa por suas páginas posições teológicas que explicam o motivo de serem considerados
inimigos mesmo da igreja e do Evangelho. Uma das acusações que a oposição recebia era o
de comunismo. O discurso de combate à esquerda esteve presente desde cedo na prédica e nos
jornais da igreja. Quando setores da igreja desenvolveram uma teologia que questionava os
desajustes sociais e propunha posturas menos liberais e individualistas houve os que se
preocuparam e manifestaram sua contradição. Esses entendiam que o discurso social se
aproximava, ou mesmo era, discurso comunista. Em 1956 um artigo no antecessor do BP com

4
Supremo Concílio é a assembleia geral da igreja nacional. É constituído de representantes, pastores e
presbíteros, de todos os presbitérios, em número igual, independente do número de membros ou pastores do
concílio. Essa assembleia se reúne a cada quatro anos.

1989
o título A Igreja e o comunismo diz que a ideologia de esquerda é mais facilmente propagada
em países católicos, pois o catolicismo deixa o povo nas trevas da ignorância, mas o
protestantismo forma uma população culta e progressista (O Puritano, 25 de abril de 1956, p.
1). Alguns meses depois do golpe, elogia-se o combate ao comunismo, pois “ninguém, que
verdadeiramente ame este país e aprecie o regime da liberdade, terá deixado de aplaudir, com
entusiasmo, a reviravolta que, de um momento para outro, nos livrou do caos e impediu que o
Brasil caísse nas mãos dos comunistas” (BP, julho de 1964, p. 4). Houve uma identificação da
ação social da igreja com comunismo, como se vê em um texto de 1967 denunciando que “o
evangelho social quer fazer da Igreja casa de pasto ou pensão de amplitude universal, pensão
popular gratuita. Mas a grande comissão dada por Cristo a seus discípulos não inclui esse
estranho meio de evangelização”. Espiritualiza-se a missão da igreja permanecendo no
individualismo liberal:

A tarefa da Igreja de Cristo é pregar o Evangelho para salvação dos pecadores. Os homens
salvos, restaurados no corpo e na alma, sentir-se-ão capacitados para pelejar por um mundo
melhor. Ponha-se o Evangelho nos corações, porque os homens remidos por Cristo irão
dedicar-se também à solução dos problemas sociais. Assim a Igreja estará agindo
socialmente, sem declarar-se socialista (BP, 1º. e 15 de setembro de 1966, p. 7).

Do ponto de vista da liderança presbiteriana havia um discurso equivocado no outro grupo,


pois com roupa teológica escondia seu comunismo. Eram inimigos do país e inimigos da
igreja. Uma reportagem no JP exemplifica o pensamento do grupo considerado herético.
Após noticiar as tarefas de ação social de uma determinada igreja o articulista encerra assim:

Com efeito, o Deus que conhecemos na Bíblia é um libertador que destrói os mitos e as
alienações. Um Deus que intervém na história para quebrar as estruturas de injustiça e
suscita profetas para assinalar o caminho da justiça e da misericórdia.

O que nos diz a Bíblia? A Bíblia vaticina uma era de justiça para os oprimidos, quando o
homem na terra não fará violência; O Senhor fará brotar justiça, e as nações a verão. E que
o Senhor pede de ti, ó homem, senão que pratiques a justiça?

Esta foi a pregação dos profetas e de Jesus; de Jesus e dos apóstolos. Justiça foi o tema do
Monte,5 onde o Senhor lançou os distintivos do Reino e suas condições de cidadania (JP,
março de 1976, p. 3).

5
Referência ao Sermão do Monte, Evangelho de Mateus, capítulo 5.

1990
O discurso era linguagem semelhante tanto do movimento ecumênico como do movimento
que ficou conhecido como evangelical, este aglutinado na Fraternidade Teológica Latino-
Americana. O movimento ecumênico tem na criação do Conselho Mundial de Igrejas, em
1948, um marco fundamental. Nessa assembleia de organização o Conselho Mundial de
Igrejas estabeleceu claramente o que já se vinha discutindo como a “responsabilidade social
da igreja e do cristão”. A Confederação Evangélica do Brasil organizou, em 1955, o Setor de
Responsabilidade Social da Igreja, ecoando em solo brasileiro as discussões do protestantismo
ecumênico mundial (SOUZA, 2005, p. 120-128). Por outro lado, o movimento evangelical,
que era certa reação ao ecumenismo, também se preocupava com questões sociais e
desenvolveu o conceito de Missão Integral, com importante participação de latino-
americanos. Em 1974, em célebre congresso mundial dos evangelicais, em Lausanne, Suíça,
René Padilha apresentou a conferência “A evangelização e o mundo”, criticando os norte-
americanos e o imperialismo do Primeiro Mundo ao fazer missão. No mesmo evento, Samuel
Escobar falou sobre “A evangelização e a busca de liberdade, de justiça e de realização pelo
homem” desafiando os missionários a lutar por transformações sociais e políticas como
tarefas inalienáveis da missão cristã. Esses dois grupos eram acusados pelos presbiterianos
fundamentalistas ciosos da defesa da fé e do verdadeiro evangelho. Procedeu-se com denodo
e promoveu-se expurgo de pastores, igrejas e presbitérios. Não houve diálogo ou tolerância
para com o cristianismo destoante para a visão dos dirigentes eclesiásticos.

Essa oposição pequena e que ia ficando cada vez mais sem voz dentro da igreja seria a
possibilidade que a IPB teria de ter uma visão mais crítica em relação ao governo militar, pois
sua visão teológica da missão da igreja, da responsabilidade social dos cristãos ou o conceito
de missão integral indicavam posturas políticas mais à esquerda. Foi exatamente de terem
tendências comunistas a acusação que receberam e o motivo da intolerância com sua presença
e as diversas tentativas de expurgá-los.

Exercício da intolerância

A intolerância foi abertamente demonstrada no sermão que foi proferido na abertura da


reunião do Supremo Concílio em 1974, quando Eduardo Lane foi o candidato da oposição. O

1991
texto bíblico para a prédica foi o primeiro livro de Samuel 15. 3 e 186. O texto versa sobre a
ordem divina para a matança dos amalequitas, inimigos de Deus e de seu povo. A aplicação
para a situação do momento foi que a oposição à administração da igreja era de “amalequitas”
que deveriam ser extirpados da IPB. Este evento se tornou folclórico na igreja e exemplo de
mau uso da Bíblia e do sermão.

Um dos mais emblemáticos casos de expurgo ocorreu com João Dias de Araújo. Pastor e
professor no Seminário Presbiteriano do Norte, dedicado à poesia e à música. Dentre os hinos
que compôs, o transcrito abaixo é um dos mais significativos:

Que estou fazendo se sou cristão,


Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão,
Há muitas vidas sem salvação.
Mas Cristo veio pra nos remir,
O homem todo, sem dividir:
Não só a alma do mal salvar,
Também o corpo ressuscitar.

Há muita fome no meu país,


Há tanta gente que é infeliz,
Há criancinhas que vão morrer,
Há tantos velhos a padecer.
Milhões não sabem como escrever,
Milhões de pobres não sabem ler:
Nas trevas vivem sem perceber
Que são escravos de um outro ser.

Que estou fazendo se sou cristão,


Se Cristo deu-me o seu perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão,
Há muitas vidas sem salvação.
Aos poderosos eu vou pregar,
Aos homens ricos vou proclamar
Que a injustiça é contra Deus
E a vil miséria insulta os céus. (NOVA CANÇÃO, 1987, p. 113)

6
“Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás
homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos”; “Enviou-te o SENHOR a
este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até
exterminá-los”.

1992
Além disso, outro exemplo de seu pensamento foi a palestra na paradigmática Conferência do
Nordeste, tendo assim se manifestado ao criticar a ação da igreja:

A tarefa da Igreja seria entrar, por exemplo, nos mocambos e dizer: “Jesus é o Salvador”. A
tarefa terminaria na simples proclamação. O resto não compete à Igreja, mas ao governo e
às instituições de caridade. Uma das maiores heresias afirmadas abertamente por muitos
cristãos chamados ortodoxos e fundamentalistas é que a “Igreja nada tem a ver com os
problemas sociais”. Dizer isto é mutilar o Evangelho de Cristo e a mensagem do Reino de
Deus. (CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL, 1962, p. 44).

O conferencista concluiu assim sua exposição:

Como filhos do Reino de Deus somos parte da rebelião dos tempos atuais. Devemos estar
na vanguarda dos movimentos de transformação do mundo contemporâneo. O clima
revolucionário do Século XX é percebido através da revolução marxista-leninista, da
revolução do proletariado, da revolução racista, da revolução nacionalista, da revolução da
autodeterminação, etc. Dentro desse vulcão em ebulição está operando a revolução do
Reino de Deus, isto é, a soberania de Deus sobre a História, dando a diretriz segura para a
humanidade no presente e no porvir. (CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL,
1962, p 57).

O JP publica diversas reportagens sobre o caso de Araújo que havia recorrido à Justiça do
Trabalho depois de ser demitido do Seminário. O próprio pastor se explica:

Fui obrigado pela direção da Igreja. Fui constrangido, fui empurrado, fui forçado porque
certos órgãos da administração da IPB não queriam obedecer às leis de nossa Pátria. Se eu
não levasse a IPB à Justiça do Trabalho, estaria sendo conivente com as injustiças que vêm
sendo praticadas contra professores dos Seminários da Igreja Presbiteriana do Brasil, desde
1966. (JP, fevereiro de 1975, p. 1).

Historiando os acontecimentos desde 1970, afirma que depois de muito esforço conseguiu ser
recebido pela Comissão Especial dos Seminários. Na reunião foi informado “das supostas e
vagas acusações sem provas que levaram a comissão a determinar minha demissão do SPN”
(JP, fevereiro de 1975, p. 1). Essas acusações, embora não explicitadas estão claramente
expressas nos exemplos dados com a música e com o texto da palestra.

Concílios também foram punidos por se colocarem em oposição aos dirigentes da igreja. Em
1975, a Comissão Executiva da IPB decidiu: “Transferir à jurisdição do Sínodo de São Paulo
os concílios eclesiásticos Presbitério de Vitória e Presbitério de Colatina” (DIGESTO
PRESBITERIANO, CE-75E1-001). Um Sínodo é normalmente composto por presbitérios

1993
limítrofes territorialmente de modo que a transferência provocou a estranha situação na qual
um presbitério passou a pertencer a um Sínodo distante de sua própria região. O Presbitério de
Colatina protestou perante a Comissão Executiva e recebeu como resposta: “tomar
conhecimento e encaminhar ao Sínodo de São Paulo, para as devidas providências”.
(DIGESTO PRESBITERIANO, CE-76-047). O Presbitério de Vitória promoveu mudanças
estatutárias para procurar safar-se de medidas como essas. O Sínodo de São Paulo, respaldado
pela Comissão Executiva decidiu excluir o Presbitério de sua jurisdição e da IPB. Ao ser
questionada pelo Presbitério de Campinas, a Comissão Executiva respondeu que “o
Presbitério de Vitória, de fato e de direito, desvinculou-se da Igreja Presbiteriana do Brasil, ao
registrar as alterações de seu Estatuto.” (DIGESTO PRESBITERIANO, CE-76-050),
responsabilizando o próprio Presbitério pela exclusão, embora o estatuto registrasse que “O
Presbitério de Vitória é filiado à Igreja Presbiteriana do Brasil”. O Presbitério de Campinas se
pronunciou dizendo ser “injustificável que resolução tão séria, de eliminar do seio da IPB um
concílio inteiro, com história e tradição formadas, sem que tal ato se baseie sobre um único
artigo da C.I ou do C.D.”7 A Comissão Executiva criticou o Presbitério de Campinas, no qual
“o assunto foi abordado de forma nitidamente parcial.” (JP, março de 1976, p. 8).

Por participar de consulta promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas, o que era falta grave
para aquela época, o Presbitério de Salvador foi punido decidindo-se “transferir o Presbitério
do Salvador à jurisdição do Sínodo de Pernambuco.” Foi determinado que o Sínodo de
Pernambuco “declare dissolvido o Presbitério de Salvador e tome as providências para apurar
a extensão e a natureza da participação de pastores em celebrações ecumênicas, tomando as
providências necessárias” (DIGESTO PRESBITERIANO, CE-74-036).

Um articulista que não era da região de Campinas e não era ele mesmo adepto de práticas
ecumênicas ou de posturas de esquerda criticou a direção da igreja pela intolerância contra os
que tinham tais práticas: “Comissões e concílios, escritores e oradores, agem energicamente
contra os ‘ecumenistas’ e ‘modernistas’. São despojados, ou colocados à margem, ou citados
publicamente, ou atacados rudemente.” (JP, outubro de 1975, p. 4).

Um velho pastor, já jubilado, comenta a crise da igreja e em seu texto irá aparecer, pela
primeira vez, uma declaração clara de que estaria havendo interferência do poder político
externa, do poder militar, na IPB:

7
C.I. – Constituição da Igreja; C.D. – Código de Disciplina da Igreja.

1994
Outros ainda chegam a afirmar que foi o Governo Federal que, há uns dez anos,
recomendou aos líderes das Igrejas protestantes rigorosa fiscalização contra a penetração
sorrateira, nelas, de elementos comunistas, como tem acontecido na velha Europa (JP, maio
de 1975, p. 4).

Considerações finais

Os presbiterianos da IPB aprovaram o golpe militar desde o primeiro momento. O apoio


enfático foi estabelecido e consolidado através dos concílios eclesiásticos. O jornal da igreja
serviu de instrumento para a vida interna da comunidade de fieis e para a sociedade que,
assim, podia perceber a posição inequívoca desses presbiterianos. No entanto, houve um
grupo da igreja naquele período que se manteve aberto às discussões sobre questões sociais e
políticas. O pensamento de responsabilidade social da igreja, gestado no âmbito do Conselho
Mundial de Igrejas, e o conceito de missão integral, desenvolvido pelo grupo evangelical,
eram ideias que estavam circulando no ambiente teológico protestante desde os anos
cinquenta do século XX. Para a teologia com influência liberal e fundamentalista esses
pensamentos estavam muito próximos do comunismo, por isso deveriam ser combatidos. Não
se pode afirmar que se esse grupo estivesse no poder haveria disposição para criticar o
governo militar. No entanto, suas posturas teológicas deixam a possibilidade que, se
hegemônica na igreja, não haveria tanta prontidão e apego ao golpe militar.

Houve intenso combate à teologia distorcida que dava ênfase às questões sociais e deixava de
lado a responsabilidade eminentemente espiritual da igreja. Desse modo, a intolerância levou
aos expurgos de pessoas, igrejas e concílios. Pastores foram despojados, professores dos
Seminários foram afastados, um Seminário foi fechado, igrejas e concílios foram dissolvidos
ou reorganizados. A oposição procurou fazer frente ao grupo dominante e o Jornal
Presbiteriano, foi um dos principais instrumentos de luta. Durante todo o período de governo
militar o mesmo grupo se manteve no poder, não havendo qualquer sombra de mudança de
atitude no decorrer dos anos. A oposição, por sua vez, cada vez mais enfraquecida, pouco
conseguia fazer nos estreitos espaços que lhe sobravam.

1995
Referências

BARR, James. Fundamentalism. Philadelphia: Westerminster Press, 1978.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção


Sergio Miceli. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BRASIL PRESBITERIANO. Órgão Oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. Anos de 1958 a


1986. Coleção completa do Museu e Arquivo Presbiteriano Rev. Júlio Andrade Ferreira.
Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas. SP.

CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL. Cristo e o Processo Revolucionário


Brasileiro - A Conferência do Nordeste. v.1, 1962.

DIGESTO PRESBITERIANO, 1971 – 1984. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.

JORNAL PRESBITERIANO. 1974 – 1978. Coleção particular de Nelly Bolliger Lane.

NOVA CANÇÃO. Coletânea de Hinos e Cânticos brasileiros. 2ª. ed. Coord. Norah Buyers.
Campinas: CEBEP, Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais. São Bernardo do
Campo (SP): CAVE, Centro Áudio-visual Evangélico, 1987.

O PURITANO. Órgão Oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. Anos de 1910 a 1958.


Arquivo Histórico Presbiteriano da Fundação Educacional Rev. José Manoel da Conceição,
São Paulo, SP.

SOUZA, Silas Luiz de. Pensamento social e político no protestantismo brasileiro. São Paulo:
Editora Mackenzie, 2005.

1996
1997
GT18 – O Oriente e suas diversidades
religiosas

Coordenadores

Silas Guerriero Arilson Oliveira


Doutor em Ciências Sociais. Professor no Doutor em História. Professor na UFCG.
Departamento de Ciências da Religião da
PUC/SP.

Resumo

O GT “O Oriente e Suas Diversidades Religiosas” busca como objetivo principal abordar


analiticamente os contextos sociais, políticos e intelectuais das religiões orientais (antigas e
atuais), tais como: Hinduísmo, Budismo, Xintoísmo, Confucionismo, Taoísmo, Islamismo
etc. E na busca de nossos objetivos, quais sejam: discutir suas diversidades, divergências,
aproximações e possíveis sincretismos. Por conseguinte, abarcaremos vários períodos sócio-
históricos dessas religiões em comparação com a contemporaneidade e os novos movimentos
religiosos, seus imaginários, seus tabus, ecumenismos, diversidades objetivas e subjetivas,
participação no movimento Nova Era e maneiras de ser e agir. Lembrando que, para tanto,
faz-se importante também analisarmos o olhar das religiões de origem oriental, mas
ocidentalizadas, frente às orientais e das religiões orientais sobre si mesmas.

1998
A Mesquita da Luz: uma abordagem do islã sunita no Rio de
Janeiro
Janoí Joaquim Mamedes1

Introdução

A presente pesquisa apresenta uma breve história sobre o nascimento do Islamismo, seus
“pilares”, a chegada ao Brasil com o “Islã Afro” e o Islã dos imigrantes, limitando-se ao Rio
de Janeiro e a SBMRJ (Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro), procurando
identificar o nascedouro da instituição com os imigrantes árabes no ano de 1951 e o que
transformou a SBMRJ de uma entidade “sectária” que funcionava em uma sala para uma
divulgadora do Islã com objetivo de conquistar novos adeptos. Um movimento diferenciado,
se comparado com as demais instituições islâmicas do Brasil, sinalizando uma influência do
meio às suas práticas. Na SBMRJ os sermões das sextas-feiras são proferidos em português e
aos sábados encontros de lazer como futebol para os homens e ginástica para as mulheres.

O Nascimento do Islã

2
Muhammad o profeta do Islã nasceu em Meca em 570 (JOMIER, 1992, p. 18) e pertencia a
poderosa tribo dos Coraixitas. Não conheceu o pai e perdeu a mãe quando tinha 6 anos de
idade. Foi criado pelo avô até completar oito anos quando este também veio a falecer. Foi
educado então pelo tio Abu Taled e na idade adulta passou a exercer a função de comércio.
Foi então que conheceu uma viúva chamada Khadija e aos 25 anos de idade casou-se com ela,
apesar dela ter 15 de anos idade a mais que ele. Muhammad casou-se por volta de 595, e em
610 recebeu as primeiras revelações. Muhammad voltou assustado procurou Khadija, que
logo o conduziu ao seu primo Waraqa que afirmou que a visão de Muhammad era de um anjo
enviado por Deus. O profeta recebe as primeiras revelações e dois meses depois começa a
pregar (ARMSTRONG, 2001, p.11). Logo ocorrem as primeiras conversões, algumas pessoas
do círculo mais chegado a Muhammad converteram-se rapidamente à nova fé: Sua mulher
1
Mestrando em Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participante do NEMAR
(Núcleo de Estudos das Manifestações Religiosas no Brasil). Orientadora: Lídice Meyer Pinto Ribeiro. Contato:
revjanoi@hotmail.com.
2
ELIADE no livro História das crenças e das ideias religiosas destaca que o nascimento foi entre 567 e 572.

1999
Khadija, seu primo Ali e Abu Bakr, o futuro primeiro califa (JOMIER, 1992, p.21), depois
seu filho adotivo Zaid e também o futuro califa Othman. Em 612 tem outra visão a qual lhe
ordenava a tornar pública todas as revelações. A partir daí a mensagem de Muhammad o
trouxe grandes problemas, pois pregava o monoteísmo e antes do Islã, Meca era uma cidade
politeísta, nela estava a Caaba, (literalmente cubo); um edifício retangular que abrigava
diversas imagens e a pedra negra que segundo religiosos islâmicos é de origem celeste. Neste
centro religioso o serviço do santuário estava confiado aos membros das famílias influentes, e
os cargos, possivelmente bem remunerados passavam de pai para filho (ELIADE, 1978, p.85).
Mesmo sendo Allah um Deus reconhecido pelo povo de Meca como o criador, a mensagem
de que “não há senão um Deus”, não foi bem aceita pelos moradores e principalmente pelos
líderes de Meca, especialmente da própria tribo de Muhammad, os Coraixitas, que não
queriam perder o privilégio que o paganismo trazia. Em 616 começa a perseguição a
Muhammad e em 620 os árabes de Yathrib (mais tarde chamada Medina) estabelecem contato
com Muhammad e o convidam para liderar a comunidade (ARMSTRONG, 2001, p.11).

Em 622 ocorre a Hégira, o profeta acompanhado de dezenas de famílias segue para Yathrib,
os anos a seguir retratam guerras e acordos chegando a 630 quando ocorre a derrota voluntária
dos moradores de Meca. Segundo Armistrong (2011), Eliade (1978) e Jomier(1992), não há
derramamento de sangue nem conversão forçada ao Islã.

Os quatro califas

Ao retratarmos, ainda que de forma breve, a história do Islã, não podemos omitir os quatro
primeiros califas, pois além da importância para os reformistas, o conhecimento desta parte da
história nos auxiliará quando tratarmos dos principais cismas. Muhammad morre em 632 e é
eleito o novo califa Abu Bakr, pai de Aisha, uma das esposas do profeta. Abu Bakr consegue
dominar a revolta e unir todas as tribos da Arábia.

Foi nesta campanha que morreram muitos companheiros que sabiam de cor passagens inteiras
do Alcorão. Foi então que a conselho de Omar, Abu Bakr mandou que se colocasse por
escrito, pela primeira vez, a totalidade do Alcorão, com a finalidade de preservar-lhe o texto
(JOMIER, 1992, p.37).

2000
Após a morte de Abu Bakr, assume como califa Omar ibnal-Khattab, que morreu assassinado
após um reinado de dez anos. Dentre as conquistas de Omar estão: Síria e Jerusalém. O papel
de Omar pode ser comparado ao do apóstolo Paulo no cristianismo (JOMIER, 1992, p. 37),
ele deu partida ao movimento que tornou o Islã um Império Árabe.

Omar reinou de 634 a 644, após sua morte assume como califa Othman ibn Affan (644 a 656),
que deu continuidade a política de Omar, aumentando também o espólio de guerra. Riquezas
começaram a fluir para as mãos dos clãs árabes mais favorecidos. As diferenças de renda se
tornaram cada vez mais marcantes e a competição pelo controle do espólio se acirrou
(DEMANT, 2011, p.38). Othman foi assassinado, assumindo então Ali ibn Abi Taled (656 a
661). Ali era genro e primo do profeta, casado com Fátima. Algo marcante deste reinado foi a
disputa com o grupo de Aisha (a esposa do profeta, filha do primeiro califa); tiveram vários
confrontos armados, sendo Ali vencedor na batalha do monte Carmelo em 656. Mais tarde seu
grupo foi enfraquecido possivelmente pelo acordo que fez com o governador da Síria
Moawiya que era parente de Othman o terceiro califa, sendo Ali assassinado em 661.

Os xiitas

Este ramo despertou a atenção do mundo ocidental, principalmente devido a chamada


“revolução islâmica” ocorrida no Irã em 1978/793, porém, como já anunciamos, este ramo
teve início com os partidários de Ali, tio do profeta. O termo xiita vem de Shi’a (partidários).
Para eles o Califa deveria ter sido escolhido automaticamente entre os descendentes diretos de
Ali e Fátima. Conservam a lista oficial dos que deveriam ter governado o mundo muçulmano.
Segundo Demant (2011, p.51), o xiismo se mostra mais suscetível a fragmentação sectária e
mística. Isso também demonstra Jomier (1992, p.42) quando descreve sobre os imanes 4 que
determinado grupo declara serem doze e outro grupo declara que foram somente sete. Os que

3
Segundo Demant (2011, p.230), a revolução iraniana de 1978/1979 é a única revolução islâmica dos tempos
modernos que derrubou um regime secularista e estabeleceu um regime islamista, expressado pela vontade
política da grande maioria do povo. Essa foi também uma das maiores revoluções da história, que só se compara
a francesa, a russa ou a chinesa. Importante destacar que Peter Demant escreve antes dos acontecimentos da
chamada “Primavera árabe”. A expressão Primavera árabe faz referência a uma série de protestos que ainda
ocorrem no chamado “mundo árabe”, compreendendo basicamente os países que compartilham a língua árabe e
a religião islâmica, apesar de etnicamente diversos. As causas já estavam de certo modo presentes, e o
descontentamento em vários países era já latente, pela comum falta de emprego e oportunidades para as gerações
mais jovens, além da repressão política e a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. Assim, já ocorria
mobilização por parte de vários grupos, mostrando que este não era um fenômeno novo na região.
4
Autoridade suprema legítima da umma muçulmana (correspondente ao califa). Para os xiitas, Ali e seus
descendentes.

2001
reconhecem doze imanes são mais numerosos. De uma forma geral os xiitas se subdividem da
seguinte forma: Xiitas Duocedimanos (que reconhecem doze imanes) e os Ismaelitas (que
reconhecem sete imanes), dentre os Ismaelitas existem os musta’li e os Nizari. De uma forma
geral os xiitas caracterizam-se por uma grande devoção à família do Profeta, Fátima, Ali e os
diversos imanes cujos túmulos são lugares de peregrinação. Segundo, Jomier (1992, p.42), os
xiitas perfazem 10% do total de muçulmanos, para Demant (2011, p.220) este número chega a
15%.

Os Sunitas

Este é o maior grupo das divisões do Islã. Para eles o califa deveria ser escolhido dentre os
árabes coraixitas, ou seja, da tribo de Muhammad , assim escreve Jomier (1992, p.42). Já
segundo Pinto, (2010a, p. 74), eles são os que evocam a tradição (Sunna), que não incluía
regras de sucessão, sendo então seus líderes escolhidos através de eleições.Os dois grupos
(sunitas e xiitas) também seguem diferentes coleções de Hadith, as narrativas sobre atos e
palavras do Profeta. Isso porque cada lado confia em narradores diferentes. Sunitas preferem
aqueles que eram próximos de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam ao
grupo de Ali. Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante pelos sunitas e
desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali. No Brasil, assim como a média mundial, o
maior número de muçulmanos é de sunitas.Além do Sunismo e Xiismo existem em número
bem menos expressivo os chamados Caregitas que segundo Jomier (1992, p.42) entendem que
o chefe da comunidade muçulmana deve ser o muçulmano mais digno, seja qual for a sua
origem.

O Alcorão

É resultado textual da recitação da palavra divina por Muhammad entre 610 e 632 a.d.
(PINTO, 2010a, p. 45) Foi recitado oralmente antes de ser escrito. Os textos proclamados por
Muhammad são considerados pelos muçulmanos como mensagens vindas de Deus por
intermédio do anjo Gabriel, O Alcorão é composto de 114 suras (capítulos), cada uma
dividida em ayas (versus). Tem 6.432 versículos, 77.930 palavras. A maior parte do Alcorão é

2002
escrita em primeira pessoa do singular ou do plural (CHALLITA, p.27)5, e contém algumas
histórias da Bíblia e cita vários personagens como: Adão, Eva, Noé, Abraão, Ló, Ismael,
Isaque, Jacó, Moisés, Elias, Eliseu, Jonas, João Batista, Maria e Jesus. O Alcorão é a base de
fé do Islamismo e oferece normas, valores religiosos, morais e legais. De uma forma geral, os
muçulmanos não aceitam o Alcorão traduzido como a Palavra de Alah, e sim como um
comentário ao texto árabe. Para o muçulmano o Alcorão é a Revelação que deve ser seguida
por ser a última das revelações. Apesar de considerar o Alcorão como única e indispensável
palavra de divina, o Islã aceita também outros livros revelados como a Torá (formado pelos
cinco primeiros livros da Bíblia), os Salmos e os Evangelhos, entretanto a medida que a
comunidade muçulmana cresceu e evoluiu, sentiu a necessidade de referir-se não só ao
Alcorão, mas também “as palavras e atitudes dos profeta”. As palavras hadith e suas atitudes;
a sunna. Para o muçulmano ainda se torna imprescindível a prática do que chamamos os cinco
pilares do Islã.

Os 5 pilares do Islã

O Islã possui cinco pilares. São obrigações que o muçulmano deve cumprir no decorrer de sua
estadia na terra, para que assim possa ter êxito na outra vida (ISBELLE, 2011, P.14)6 São
práticas básicas; estruturaram a vida islâmica em Medina, no início e continuam a fazer até
hoje. Segundo Sonn (2011, p.49) em torno dessas práticas e desses valores fulcrais foi criada,
e prosperou, a primeira comunidade muçulmana. O Testemunho (Shahaadah) “Não existe
outra divindade exceto Deus e que Muhammad é o Seu mensageiro”. A Shahada é uma
profissão de fé. Na cerimônia para recepção de novos seguidores, o indivíduo deve recitar a
frase em Árabe7, sendo após a declaração, aceito como membro pela comunidade. As orações
diárias (Salat) Os muçulmanos oram cinco vezes ao dia: na madrugada (fajr), ao meio dia
(zuhud), no meio da tarde (‘asr), ao por do sol (maghrig) e à noite (‘isha). Como as orações
são marcadas pela posição do sol ou da lua no céu, elas não possuem hora fixa, variando de
acordo com a época do ano (PINTO, 2010a, p.56). Para a organização do trabalho no Brasil

5
O comentário de Mansour Challita na tradução que fez do Alcorão pela editora ACIGI, distribuído pela Record
distribuidora não tem data de impressão.
6
Livro: descobrindo o Islam. O autor é membro da liderança da SBMRJ e filho de imigrantes árabes.
7
La ilahila Allahwa Muhammad rasul Allah, pude presenciar tal cerimônia no dia 20 de Julho de 2012 na
Mesquita da Luz no Rio de Janeiro.

2003
entidades como a UNI8, sediada em São Paulo, elaboram calendários com os horários nas
cidades onde se encontram as instituições associadas.

Outro aspecto muito importante para o muçulmano é que as orações devem ser feitas
apontando para Meca.

As esmolas (zakat). Jomier (1992, p.109) chama de imposto social, Sonn (2011, p.48), chama
de dádiva; Pinto, (2010a, p. 109) chama de esmola ou caridade; Isbelle (2011, p.27) chama
pagamento de esmolas anuais. O texto do Alcorão destaca em 2:43, 273-277, que todo
muçulmano deve ajudar os pobres, os órfãos e as viúvas. O beneficiário do zakat deve ser um
muçulmano; desta forma tal prática incentiva a unidade destro da comunidade.

O jejum durante o Ramadan (Sawm). Todo muçulmano que atinge a puberdade deve jejuar
durante o mês Ramadan. Este é o nono mês do calendário lunar muçulmano, é especial, pois
se destaca que neste mês Muhammad recebeu a primeira revelação do Alcorão. Destaca Pinto
(2010a, p.61) que além da revelação no mês de Ramadan ocorreram outros episódios
importantes para os muçulmanos. O nascimento de Hussein, neto de Muhammad e terceiro
iman (líder) para os xixitas; a morte de Ali, quarto califa e o primeiro iman; a morte de
Kahdija, esposa de Muhammad; e a batalha de Badr, onde ocorreu a primeira vitória do
profeta sobre as forças de Meca. O jejum é obrigatório para todo muçulmano que tenha
atingido a puberdade e que goze de perfeita saúde física e mental. A gestante e a lactante, a
mulher menstruada ou em resguardo pós-parto e os enfermos ou em viagem estão isentos do
jejum, devendo repor os dias não jejuados após o término do período que o impossibilita de
jejuar. Esta reposição será feita após o mês sagrado, podendo ser em dias alternados ou
seguidamente, mas terá como prazo o último dia antes do início do próximo mês de Ramadan.
Para o idoso ou portador de uma doença incurável, o jejum deixa de ser uma obrigação,
devendo fornecer uma refeição a um necessitado (ou o valor equivalente) por cada dia não
jejuado, caso tenha condições. O jejum tem início ao amanhecer e termina ao por do sol da
hora local. Em algumas mesquitas como a mesquita da Luz no Rio de Janeiro a quebra do
Jejum é feita em conjunto para aqueles que têm acesso à mesquita todos os dias do mês.

A peregrinação à Meca (Hajj). O muçulmano que disponha de recursos para sua viagem e
para manter sua família e tenha boa saúde, deve fazer a peregrinação à Meca pelo menos uma
vez na vida. Segundo Jomier (1992, p. 118) isto vale também para as mulheres, quando

8
União Nacional das Entidades Islâmicas.

2004
podem ser acompanhadas. A peregrinação obrigatória ocorre no mês islâmico de Dhual-Hijja,
último mês do ano, e reúne, nos dias atuais, mais de 2 milhões de fiéis. Sua origem segundo
Hitti (1973, p.72) retrata um período pré islâmico, originando-se em um equinócio de outono
para fugir do rigoroso domínio do sol na região da Arábia. Na peregrinação obrigatória o
muçulmano, antes entrar no território sagrado, despoja-se de seu traje comum e veste o ihram
(um pano branco enrolado no corpo como túnica para homens e uma túnica de outra cor que
cobre o cabelo e o corpo, mas deixa o rosto descoberto, para as mulheres). Os principais
rituais de peregrinação, todos praticados em Meca são: circuncidar a Caaba no sentido anti-
horário sete vezes; Percorrer as distâncias entre os montes de Al safa e Al Maruá por sete
vezes, relembrando o ato de Agar, ao procurar água para o seu filho Ismael9; arremessar sete
pedras pequenas em três pontos distintos, na cidade de Mina, simbolizando o ato realizado
pelo profeta Abraão quando foi sacrificar o seu filho Ismael 10, seguindo a determinação de
Deus. Satanás então apareceu para ele nestes três pontos e Abraão responde atirando pedras;
depois todos vão para um grande acampamento aos pés do monte Arafat. Para que se tenha
uma ideia da importância desta cerimônia para um muçulmano registram-se as palavras de um
peregrino da mesquita da Luz na Hajj em 2011:

Primeiramente chegamos a cidade de Medina e tivemos a graça de ficarmos hospedados em


um hotel a duas quadras da mesquita do Profeta...por isso aproveitávamos todas as
oportunidades possíveis para fazermos o máximo de orações quer podíamos lá...uma vez
que uma oração feita nela equivale a mil feitas em qualquer outra...seguimos rumo a Meca
lá fomos para um hotel mais simples...pouco a pouco o conforto ia diminuindo. Após
deixarmos as malas, seguimos imediatamente para as circunvagações em torno da
Kaaba...me sentia como uma criança de 3 anos prestes a ganhar um grande presente muito
esperado...pensei que fosse “desabar” em lágrimas...a emoção era tão grande que muitas
vezes as palavras saiam desconexas (Jornal Nurul Islam- setembro a Dezembro de 2011
Ano II- nº7, p.5).

A chegada do Islã ao Brasil

A África foi caminho mais provável dos primeiros muçulmanos que alcançaram o Brasil.
Segundo Jomier (1992, p. 45) grande parte do norte da África foi submetido ao Islã entre os
anos 670 e 700. O islamismo fez sua entrada no continente a partir da África do Norte, do

9
História registrada na Bíblia no livro de Gênesis 21:8-21
10
História contada na Bíblia no livro de Gênesis capítulo 22, sendo com o filho Isaque (o alcorão não registra o
nome do filho).

2005
Egito ao Marrocos, sendo uma das primeiras regiões a ser conquistadas pela expansão inicial
árabe-islâmica (séculos VII e VIII). Dos séculos X a XVI, mercadores muçulmanos
contribuíram para o surgimento de importantes reinos na África Ocidental, que floresceram
graças ao comércio feito por caravanas que, atravessando o Saara, punham em contato o
mundo mediterrâneo ao das estepes e savanas do Sudão Ocidental e África centro-ocidental.
A conversão de certos monarcas africanos fez não só o islã avançar como criou uma
florescente cultura. Assim, cidade de Tumbuktu (no atual Máli) era, no século XIV, um
núcleo urbano conhecido pelo alto nível de suas escolas islâmicas, que atraíam muçulmanos
de várias partes do mundo. Segundo Ramos (1951, p. 316) com exceção dos sudaneses e
bantus, todas as demais populações africanas receberam em grau maior ou menor a
contribuição da cultura islâmica. Lima11 (2009, p.287 Apud Carneiro,1981, p.29), destaca que
os negros bantus, originários do sul da África (Angola, Congo, Moçambique) foram
localizados pelo tráfico no Maranhão, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de onde, em
migrações menores, se estenderam de Alagoas ao litoral do Pará, até Minas Gerais, o Rio de
Janeiro e São Paulo. Os negros sudaneses, vindos da zona do Níger, na África Ocidental,
foram introduzidos na Bahia, de onde se espalharam pelo Recôncavo, utilizados na lavoura.
Os sudaneses eram os nagôs (iorubás), os jejes (ewes), os minas (tshia e gás), os haussás, os
galinhas (grúncus), os tapas, os bornus, etc. Ainda na Bahia, entraram negros fulas e negros
mandês (mandingas), carregados de forte influência muçulmana.

Segundo Arthur Ramos (1951, p. 20,21):

A influência do Islam na África foi e é poderosíssima. Podemos afirmar que, com exceção
de alguns grupos de negros sudaneses e bantus que sempre se mantiveram imunes do
contacto do islam, todas as demais populações africanas receberam em grau maior ou
menor a contribuição da cultura maometana[...]Foi através de vários desses povos que o
Islam chegou ao Brasil. Esses negros maometanos foram chamados Muçulmi ou Malê, na
Bahia, e Alufá, no Rio de Janeiro.

Além de Arthur Ramos a presença dos muçulmanos no Brasil foi documentada por diversos
historiadores e antropólogos, como Nina Rodrigues, Etiènne Brasil, Gilberto Freyre, João do
Rio, Edson Carneiro, Abelardo Duarte e Waldemar Valente. As primeiras lutas pela liberdade
no Brasil foram lideradas por estes muçulmanos que fugiam e ajudavam a organizar os
quilombos.
11
Lima Claudia, Heranças muçulmanas no nagô de Pernambuco: Construindo mitos fundadores da religião de
matriz africana no Brasil, Revista Brasileira de História das Religiões – Dossiê Tolerância e Intolerância nas
manifestações religiosas, Ano I nº 3 283-300, Jan.2009.

2006
Além dos registros acima, estudos em ossos, datados a do século XVI, encontrados no sítio
arqueológico Pretos Novos12, no bairro da Gamboa, próximo ao centro da cidade do Rio de
Janeiro identificaram um indivíduo africano e possivelmente muçulmano; devido desgaste em
algumas partes específicas do osso. Segundo Cavalcanti13 tais desgastes demonstram posições
características de uma parte da oração islâmica, feita cinco vezes ao dia, onde os pés recebem
o peso do corpo sobre os dedos dobrados, provocando desgastes ao longo do tempo.

O Islã dos imigrantes

Apesar de todos os registros acima marcarem a história do Brasil, o Islã somente se solidifica
em solo brasileiro a partir da chegada dos imigrantes árabes. Segundo Pinto (2010b, p. 45)
“Os estudos sobre imigração árabe geralmente colocam a década de 1870 como sendo a dos
primeiros registros de pessoas provenientes do Oriente Médio no Brasil.” Destacando ainda
Pinto (2010a Apud SAFADY 1972, p. 78-79; e RADAWI 1989, p. 48):

Alguns autores afirmam que os irmãos Zacarias, originários de Belém, na palestina, teriam
sido os primeiros imigrantes árabes a se estabelecer no Brasil. Chegaram ao Rio de Janeiro
em 1874 e abriram uma loja de artigos religiosos na Rua da Alfândega. No entanto, a
relevância desta ‘data inaugural’ da imigração árabe deve ser relativizada, uma vez que
existem registros de árabes no rio de Janeiro que são muito anteriores á chegada dos
referidos irmãos. O filólogo Manuel Said Ali Ida nasceu em Petrópolis, em 186, filho de pai
árabe e mãe alemã (SAFADY 1972, p. 78-79). Outro palestino de Belém, hana Khalil
Marcus, é reportado como tendo aqui chegado em 1851 (RADAWI 1989, p. 48).

Há registros da presença de líderes muçulmanos em 1866 como também nos apresenta Pinto
(2010, p.46; apud al-Baghdadi al-dimachqi, 2007).

Em 1866, um navio da marinha otomana aportou no Rio de Janeiro trazendo, além dos
marinheiros, um religioso muçulmano (‘alim, pl. ‘ulama) chamado ‘Abd al-Rahman al-
Baghdadi al-Dimachqi, que sabemos ter nascido em Damasco de uma família originária de
Bagdá. Após desembarcar para conhecer a cidade, ‘Abd al- Rahman foi saudado por negros
muçulmanos, provavelmente ex-escravos ou seus descendentes, que depois foram ao seu
navio para fazerem as orações com os demais membros da tripulação. Ao saberem que era
uma autoridade religiosa os muçulmanos o convidaram para ficar no Rio de Janeiro e
liderar sua comunidade. Ele aceitou e permaneceu no Brasil até 1869, primeiro liderando a
12
Cemitério de escravos encontrado casualmente pela proprietária do local quando resolveu fazer uma reforma
em 1996. <http://www.pretosnovos.com.br> Acessado em 12 de fevereiro de 2013.
13
Professor de história e jornalista, escrevendo ao Nurul Islam, Ano II,- Nº 9, p.6, Abril-junho de 2012.

2007
comunidade muçulmana composta por ex-escravos no Rio de Janeiro, depois como iman
(líder religioso) das comunidades muçulmanas semelhantes ás que existiam em Salvador e
Recife.

Al’Baghdadi não foi um imigrante e sim um imã divulgador da fé islâmica que deixou um
escrito importantíssimo demonstrando que depois da conhecida Revolta Malê continuaram a
existir comunidades islâmicas organizadas no Brasil.

À medida que o Islã Afro entrava em decadência um grande fluxo de muçulmanos chegava
com a imigração de povos de origem árabe, libaneses, sírios, egípcios, que constituem hoje o
grande contingente de muçulmanos no Brasil.

Torna-se importante destacar que deste grupo de imigrantes que vieram fugidos do Império
Otomano14, a maioria era de cristãos, e as comunidades criadas pelos imigrantes árabes
possivelmente nunca se relacionaram com aquelas do “malês”, sendo duas histórias
descontínuas do Islã (PINTO, 2010a, p. 205). A Sociedade Beneficente Muçulmana em São
Paulo foi a primeira a ser fundada no Brasil, em 192915. “Embora essa sociedade fosse
marcadamente sunita, ela foi a principal referencia institucional dos muçulmanos, tanto
sunitas como xiitas, por um longo tempo.” (PINTO, 2010 a, p.205). A Sociedade Beneficente
Druziense foi fundada em Oliveira, Minas Gerais também em 1929 e a Sociedade Alauíta foi
fundada no Rio de Janeiro em 1931.

14
O império Otomano começou a nascer no século XI, quando tribos turcas nômades se fixaram na Anatólia,
região que hoje é parte da Turquia. Tais tribos ajudaram a difundir a religião muçulmana em terras que até então
estavam sob o domínio de outro império, o Bizantino. "O termo otomano deriva do nome Otman, ou, em árabe,
Uthman", diz o historiador inglês Malcolm Yapp, da Universidade de Londres. Osman, ou Otman I (1258-1324),
foi um chefe turco que transformou essas tribos nômades em uma dinastia imperial. Durante os séculos XV e
XVI, o Império Otomano tornou-se um dos estados mais fortes do mundo, englobando boa parte do Oriente
Médio, do Leste Europeu e do norte da África. Além do poderio militar, o que ajudou a garantir essa expansão
foi a tolerância dos otomanos com as tradições e as religiões dos povos conquistados. Foi abolido em 1923,
quando foi proclamada a República da Turquia.
15
Destaca Pinto que na verdade essa instituição foi fundada em 1927 como Sociedade Beneficente Muçulmana
Palestina e refundada como Sociedade Beneficente Muçulmana em 1929, de modo a incorporar o crescente
número de imigrantes muçulmanos de origem síria e libanesa (PINTO, 2005, p.237- REVISTA USP, São Paulo,
n.67, setembro/novembro)

2008
A SBMRJ

A SBMRJ surgiu em 1951, reunindo muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro; nesta época já
existia a sociedade Alauíta16, que foi a única instituição muçulmana no Rio de Janeiro até os
anos 50, porém sua visão sectária impediu a unidade dos muçulmanos no RJ17.

A sede da SBMRJ se instalava em uma sala comercial na Rua Gomes Freire onde
inicialmente dividia o espaço com a Sociedade Beneficente Palestina. Posteriormente a
Sociedade Palestina mudou de lugar e a sala foi comprada ampliando assim o espaço da
SBMRJ, que passou a ser referencia para os muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro. Em 1984
foi construída uma Mesquita em Jacarepaguá e inicialmente as atividades religiosas foram
transferidas para a nova mesquita. Com o tempo a baixa frequência fez a liderança repensar,
pois a nova mesquita estava distante dos locais de trabalho e da residência dos membros que
na maioria moravam no centro, Tijuca e Copacabana. A mesquita de Jacarepaguá foi
desativada nos meados da década de 90; retornando às atividades a mussala18. A partir de
2007, as atividades foram transferidas para a mesquita em construção 19 na Rua Gonzaga
Bastos no bairro da Tijuca. Segundo o secretário da instituição, tanto a escolha do bairro
como o nome da mesquita foi decidido em votação com os membros, incluindo as mulheres.

Figuras 1 e 2 – Mesquita de Jacarepaguá em 1984 e em 2009.

16
Sociedade Beneficente muçulmana Alauíta, fundada em 1931. Os alauítas constituem uma seita esotérica xiita
existente na Síria, Líbano e sul da Turquia. Os Alauítas não seguem os pilares rituais do Islã, como as orações
diárias nas mesquitas, sendo considerados por muitos muçulmanos sunitas como heréticos.
17
Segundo Pinto, (2010, p.115) os próprios estatutos da sociedade refletem o caráter suprassectário que possuía
neste período.
18
Sala de oração. Quando não existe uma mesquita próxima, um grupo de muçulmanos separa um lugar para
suas atividades religiosas.
19
O projeto de construção está dividido da seguinte forma: Primeiro pavimento - mesquita e banheiros
masculino e feminino; Segundo pavimento - salas administrativas, salas de aula, biblioteca, dois banheiros (um
masculino e um feminino); Terceiro pavimento - Salão de festas, cozinha industrial, pequeno estúdio
audiovisual, auditório reversível; Quarto pavimento – Residência do Iman, área de lazer com parque para as
crianças, salão de jogos e de ginástica.

2009
Figuras 3 e 4 – atual sede da SBMRJ.

Mesmo antes da mudança da sede, para o bairro da Tijuca, a SBMRJ já apontava um caminho
diferente das demais instituições islâmicas do Brasil. Pois como foi documentado por
pesquisadores20, a comunidade do Rio de Janeiro apresenta uma particularidade, a maioria de
seus membros não são árabes e/ou descendentes. Atualmente como pude registrar em uma
entrevista21 com o secretário da instituição, a maioria dos membros é de revertidos.
Possivelmente fruto de uma mudança na visão da liderança a partir da década de 90, segundo
o secretário, mais precisamente a partir de 1993 com uma renovação no quadro de líderes,
filhos de imigrantes que criaram o curso de introdução ao Islã e a língua árabe22 e facilitaram o
atendimento a imprensa, estudantes e pesquisadores, com a finalidade de divulgar o Islã à
sociedade brasileira e carioca. Com o tempo a mussala, não comportava mais o número de
pessoas que apareciam para as atividades tendo que fazer turnos diferentes. Dentro desta visão
observamos outras ações como: a ampliação da literatura sobre o Islã. Foram publicados cerca
de 10 livros sobre o Islã pela editora Qualitymark23 com o selo azam. A criação do jornal
informativo Nurul Islam24 (Luz do Islam) que é publicado trimestralmente com uma de
tiragem de 4 mil unidades. A SBMJ também esteve presente na Bienal do livro no Riocentro,
na Cúpula dos Povos na Rio + 20. Foram criadas atividades no espaço físico da mesquita

20
MONTENEGRO, Silvia, M. Dilemas identitários do Islam no Brasil – a comunidade muçulmana sunita do
Rio de Janeiro. 2000. 334 f. Tese (doutorado em Sociologia), IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2000; PINTO, Paulo
Gabriel Hilu da Rocha. “Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil” in:
revista Usp, nº 67, set/nov, São Paulo; USP, 2005, p.231; CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de
construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008; CHAGAS, Gisele Fonseca.
Identidade religiosa e fronteiras étnicas In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29(2): 152-176, 2009.
21
Entrevista concedida no dia 03 de Agosto de 2012 após a oração das 12 horas, na sede da SBMRJ.
22
A primeira turma teve somente 3 alunos e somente um foi até o final. Já obteve turma com 90 alunos.
23
Editora de um membro da SBMRJ
24
Destaca-se no exemplar de nº 07 uma declaração do Professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto de como
conheceu a SBMRJ e escreveu artigos e passou a enviar alunos de mestrado e doutorado das instituições que
leciona.

2010
como gincanas e um projeto inovador como ginástica para as mulheres. E desta forma a
SBMRJ tem divulgado o Islã e tornando-se conhecida da sociedade carioca.

Segundo o secretário da Instituição com a conclusão da obra da mesquita, incluindo a casa do


Sheik, o local será um centro islâmico, um espaço para agregar muçulmanos de todo o estado;
um local de base para coordenação das atividades sociais e estratégicas. Que incluem abertura
de mussalas em diversas regiões do estado. Além da participação de eventos como Rio + 20 e
encontros ecumênicos; palestras em escolas, universidades e associações de moradores.
Atividades sociais como: distribuição de roupas e alimentos para pessoas carentes. A SBMRJ
pretende continuar com o curso de Árabe e introdução ao Islã e criar espaços para estudo nas
cidades mais importantes do estado como já existe em Niterói25. Além disso, também faz parte
do projeto futuro da instituição, ter o seu próprio Sheik26.

Considerações finais

Com as notícias que temos hoje sobre o Islã, identificamos que esta forma religiosa é muito
mais que um movimento místico. Pois diferentemente do que presenciamos no mundo
ocidental, o islamismo não se limita a presença somente no nascimento e na morte do
indivíduo, mas controla todo o seu viver. Em sua gênese, nas atuais manifestações no Egito,
ou mesmo, com a chamada Primavera Árabe, presenciamos esta realidade.

A SBMRJ tem uma grande herança de seus antepassados, porém também demonstra uma
adaptação ao meio construindo um espaço “facilitador”, derrubando barreiras para que os
brasileiros e cariocas se aproximem. Sendo assim este espaço se torna uma unidade na
diversidade.

Referências
ARMISTRONG, Karen. O islã. Rio de Janeiro: objetiva, 2001.
ANTES, Peter. O Islã e a política. São Paulo: Paulinas, 2003.

25
Jornal Nurul Islam pag.4, Ano II n° 9, Abril/Junho de 2012.
26
Hoje a SBMRJ não possui Sheik. A liderança é exercida pela diretoria e a parte religiosa fica na
responsabilidade de líderes que cursaram em parte, teologia islâmica.

2011
CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades
Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de
Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008.
CAVALCANTI, Hassan, Evidências da presença islâmica no Brasil colonial. Jornal Nurul
Islam, nº 09 Rio de Janeiro, Abril a Junho de 2012.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
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Zahar, 1978.
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2010.
JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina; trad. de Luiz João Baraúna. Petrópolis:
Vozes, 1992.
LIMA, Claudia. Heranças muçulmanas no nagô de Pernambuco: Construindo mitos
fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Revista Brasileira de História das
Religiões, Ano I, nº 3, Jan.2009, p. 283-300.
O ALCORÃO. Tradução de Mansour Challita. Rio de Janeiro; Record [197-?]
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Árabes no Rio de Janeiro: Uma identidade plural. Rio
de Janeiro: Cidade Viva, 2010.
__________. Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. Aparecida: Editora
Santuário, 2010.
__________. Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no
Brasil, In. Revista USP, nº 67, São Paulo, CCSUSP, setembro-novembro 2005, p.228-250.
RAMOS, Arthur. Introdução à Antropologia Brasileira. 1º volume. 2ª Ed. Rio de Janeiro;
casa do Estudante do Brasil, 1951.
RIBEIRO, Lídice Meyer Pinto. Revista USP, São Paulo, n. 91, setembro/novembro 2011,
p.139-152.
SONN, Tamara. Uma breve história do islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2006.

Internet
A data da Hégira ou Hijra. Artigo disponível em:
<http://www.novomilenio.inf.br/porto/mapas/nmcalens.htm>. Acesso em 15 de outubro de
2012.
Pretos Novos. Disponível em < www.pretosnovos.com.br>. Acesso em 12 de fevereiro de
2013.
SBMRJ. Disponível em: <http://sbmrj.org.br/> Acesso em 17 de outubro de 2012.

2012
2013
A prática do dzochen e a tradição vajrayana no budismo tibetano
Igohr Brennand1, Maria Lucia Abaurre Gnerre2

Introdução

Buscaremos, no presente artigo, demonstrar a maneira na qual o budismo chega ao Tibete,


através de diversas fases de transmissão e como ele se desenvolve posteriormente, nas
diversas escolas do budismo Tibetano. Com a chegada do budismo, e sua assimilação
oficializada pelo governo local, as práticas religiosas nativas do Tibete, conhecidas como
Bön, teriam sido, de certa forma, marginalizadas, e, posteriormente, até mesmo perseguidas.
Durante todo este processo do desenvolvimento do budismo, primeiramente através da escola
Nyingma, e posteriormente, nas demais principais escolas do budismo Tibeteano,
evidenciamos uma certa prática de sincretismo entre as tradições budistas e a Bön.

O budismo Tibetano, também conhecido como Vajrayāna “o veículo do diamante”, incorpora


diversos tipos de práticas meditativas e contemplativas, que tem como base o tantra de origem
indiana, que chega ao Tibete por volta do século VIII d.C. O dzogchen, prática de meditação
que tem importância central dentro da tradição Bön, foi posteriormente assimilada pela escola
budista Nyingma, e desenvolvida com base nos principais conceitos da doutrina budista.

Iremos discorrer sobre a história da religião Bön, e também a respeito da centralidade do


dzogchen nesta tradição religiosa. Analisaremos a paralela centralidade que ele também
mantém dentro da escola mais antiga do budismo Tibetano, a escola Nyingma, ao passo que
ela se diferencia das demais escolas tido como “novas”, por ter incorporado mais elementos
das doutrinas Bön do que as demais.

1
Graduando em Ciências das Religiões pela UFPB, membro do GP Padma CNPq/UFPB. Contato:
igohr_brennand@hotmail.com
2
Doutora em História pela UNICAMP e Pós-Doutora em Ciências das Religiões pela UFJF. Professora Adjunta
do Departamento de Ciências das Religiões/UFPB e vice-coordenadora do PPGCR/UFPB. Lider do GP Padma
CNPq/UFPB. Contato: marialucia.ufpb@gmail.com.

2014
1. Vajrayāna: a tradição do veículo de diamante

1.1 As origens do budismo no Tibete

A história da chegada do budismo ao Tibete costuma ser narrada através de duas fases de
transmissão. A primeira fase, geralmente associada ao rei Songtsen Gampo (650 d.C.), foi
marcada pelos primeiros contatos do budismo com o território Tibetano, e também com a
religião nativa, denominada Bön. Esta primeira onda do budismo, segundo Peter Harvey
(Apud LAUMAKIS, 2010) foi marcada pela combinação do budismo Mahayana 3 (de bases
monásticas) trazido inicialmente pelo monge indiano Santaraksita, com as práticas místicas e
tântricas trazidas para o Tibete pelo famoso iogue Tibetano, Padmasambhava4.

Posteriormente, após a primeira fase da transmissão do dharma, o budismo Tibetano entra em


decadência devido a um período de instabilidade política, que se estende do século IX d.C. até
meados do século X. No entanto, mesmo neste período em que o budismo é considerado
decadente no Tibete, continuam florescendo práticas de caráter popular e não monásticas. Isso
se deve ao fato de que os monastérios e, consequentemente, as práticas mais oficializadas
estavam intimamente ligados ao governo, e sofreram com mais força neste período de
instabilidade política. Assim, devido à natureza destes acontecimentos, justamente a forma
tântrica de budismo teve maior difusão e aceitação durante este período, pois se assemelhava
de certa forma às práticas desenvolvidas pela antiga religião local 5. Assim, o budismo com
forte ênfase tântrica teve fundamental importância na mediação entre as duas fases da
implementação do dharma no Tibete (LAUMAKIS, 2010).

A segunda fase de transmissão ocorreu entre meados do século X d.C. e o século XI, sendo
marcada pelo grande influxo de monges e sábios indianos. Nesta fase, a figura de Atisha
(982-1054) adquire grande importância, justamente por ser ele um mestre indiano de grande
erudição, que teria reintroduzido o budismo monástico no Tibete após o período anterior de

3
O termo Mahāyāna significa literalmente “grande (maha) veículo (yāna)”. Trata-se da forma de Budismo que
se desenvolve com o segundo giro da roda do Dharma.
4
Padmasambhava significa “aquele que nasceu do lótus”. Padmasambhava é a figura responsável pela
introdução das práticas tântricas budistas em solo Tibetano. A ele teria sido creditada a incrível façanha de
transformar os antigos demônios da tradição Bön, em sagrados guardiões do dharma. A figura de
Padmasambhava permanece rodeada de mistérios e lendas. A ele seria também creditada a fundação da mais
antiga escola do budismo Tibetano, Nyingma.
5
Iremos discorrer sobre os paralelos entre as práticas da antiga religião Bön e as práticas de caráter tântrico no
item Dzogchen: Encontro do Vajrayāna e a tradição Bön

2015
instabilidade política. Sua presença foi fundamental para o posterior desenvolvimento de
diversas escolas dentro do budismo Tibetano.6

Durante todo o processo de transmissão do dharma dentro do território Tibetano, ao longo dos
séculos, formaram-se diversas escolas de pensamento. Tais escolas divergem e convergem em
alguns aspectos essenciais da filosofia budista e de praticas tântricas. E algumas destas
escolas continuaram utilizando elementos da antiga religião Bön paralelamente às suas
práticas de caráter tântrico. As principais escolas em representatividade são Nyingma, Kagyu,
Sakya e Gelug. Cada escola possui seus próprios monastérios, e suas próprias abordagens do
dharma. Mais adiante iremos analisar uma abordagem prática e característica (porém, não
exclusiva) da escola Nyingma: o dzogchen. Trata-se de um sistema avançado de práticas que
é reconhecido como sendo um destes elementos herdados da tradição Bön pelo budismo
Tibetano. No âmbito deste artigo, nos interessa justamente observar como se dá a interação
entre estas duas tradições - Bön e Vajrayāna. Afinal, é desta interação que resultam
elementos práticos e filosóficos que dão ao Budismo sua face própria no Tibete.

1.2 O veículo do diamante

A palavra Vajrayāna significa, literalmente, “veículo (yana) do diamante (vraja)”. Esta forma
de budismo deriva da associação do budismo Mahāyāna, com o tantra indiano, e
posteriormente com algumas práticas da religião Bön. O surgimento do Vajrayāna é visto por
mestres e estudiosos do budismo como sendo a terceira volta da roda do dharma. A primeira
volta da roda do dharma teria acontecido no momento em que o buda histórico, O buda
Sakyamuni, teria proferido seu primeiro sermão após a iluminação, dando origem às escolas
budistas mais antigas, das quais a Theravada é a principal representante. Posteriormente, por
volta do século IV d.C., através de estudiosos e filósofos do budismo e principalmente através
da filosofia contida no Prajnaparamitra Sutra, (atribuído a figura de Nagarjuna que teria
vivido no século II d.C), surge o chamado Budismo Mahāyāna , considerado como a segunda
volta da roda do dharma. Para os budistas que seguem as escolas Mahāyāna, que significa
“grande veículo”, as escolas mais primordiais do budismo são vistas como Hinayāna,

6
Outro mestre fundamental para o do Budismo Tibetano foi Milarepa, discípulo de Marpa, que viveu no século
X d. C. Sua trajetória é tão importante para o desenvolvimento do Dharma na região, que será analisada de forma
mais detalhada no item 2.3 do presente artigo.

2016
“pequeno veículo”. Foi o budismo Mahāyāna, também chamado de budismo do norte, a forma
que floresceu mais fortemente em solo Tibetano.

Para Lowenstein (2001, pg. 138):

O budismo do Tibete, ou Vajrayāna, é muitas vezes considerado o <<dharma completo>>,


porque absorveu as doutrinas Hinayana e Mahayana e também o tantra do norte da Índia. A
formação monástica Vajrayāna, que envolve o estudo destas doutrinas, é <<completa>>, e a
educação de um monge, a quem é ensinada toda filosofia, teologia e epistemologia do
budismo, é excepcionalmente longa e complexa.

A partir do nascimento do Vajrayāna, diz-se ter tido início a terceira volta da roda do dharma.

1.3 A via do tantra

A forma dos ensinamentos e práticas tântricas como o conhecemos hoje, é, geralmente


atribuída aos iogues indianos que viveram por volta do século V d.C. Neste ponto, há
divergência de opiniões, e alguns praticantes defendem que as origens do tantra são muito
mais antigas. De fato, ideias e práticas similares às tântricas podem ser identificadas em
conceitos e ensinamentos muito mais antigos. Porém, no presente artigo, não iremos
desenvolver nem adentrar nestas discussões, pois o que nos interessa, aqui, é a forma como o
tantra se desenvolve, e, posteriormente, chega ao Tibete, através da figura mística de
Padmasambhava.

Laumakis (2010, p. 269) nos oferece uma definição de tantra:

O termo “tantra”, que está relacionado às palavras “fio” e “tecer”, refere-se aos textos que
contém instruções rituais e práticas em si. Uma forma especialmente clara e útil de pensar a
respeito dos textos e práticas tântricas é vê-los como diversas maneiras e métodos de
“tecer” uma nova visão, uma nova experiência ou uma nova compreensão da realidade.

Este termo está relacionado também com a noção de tessitura, e, de uma forma metafórica,
com o próprio conceito de “teia”, ou de uma totalidade em que todas as partes estão
conectadas. Como nos lembra Gavin Flood (2006), o termo deriva da raiz sânscrita tan (que
que conforme dissemos acima se relaciona ao conceito de fio ou tessitura) mas que também
pode ser traduzido como estender ou esticar. E, além disso, a raiz tan se conecta ao termo
Tanu, que significa “o corpo”. Destes dois conjuntos de sentidos, advém uma noção que

2017
norteia todas as práticas tântricas: a de “tecer” ou “conectar” através do corpo, um estado de
“absoluta ausência do eu” (FLOOD, 2006, p. 149).

O budismo Tibetano, também chamado de Vajrayāna, se caracteriza justamente pela forte


presença de práticas tântricas e sincréticas, as quais tem importância central dentro da
filosofia e da epistemologia das mais variadas escolas que integram esta forma de budismo,
pois servem como aporte experiencial para as concepções filosóficas de tais escolas. Devemos
lembrar aqui, que nas tradições oriental de modo geral, as especulações filosóficas se
desenvolvem conectadas a prática, estando sempre intimamente relacionadas. Continua
Laumakis (2010, pg. 269):

As raízes do Tantra indiano parecem estar ancoradas em antigas tradições e práticas


religiosas que podem estar relacionadas com rituais esotéricos e textos de meditação que
têm por objetivo auxiliar seus praticantes a se identificarem com uma divindade ou “se
unir”- seja de modo literal ou como fruto da imaginação – a esse determinado ser.

Assim, o Tantra não se refere apenas à textos, ou conceito, mas é um sistema complexo que
envolve múltiplas partes, e inclui rituais esotéricos, práticas e acima de tudo, as revelações
feitas diretamente dos mestres aos discípulos. Porém, no âmbito deste artigo, é justamente
com a dimensão textual do tantra que poderemos trabalhar.

As coleções de textos tântricos, dentro do Vajrayāna, podem ser divididos em pelo menos três
categorias: Tantras Kriya (ação); Tantras Carya (desempenho); Tantras Yoga (união);
Tantras Anuttara Yoga (união incomparável).

Uma das ideias básicas do Tantra é proporcionar a seus praticantes, através de seus textos e
rituais, um caminho mais curto e eficaz para compreender e experimentar a natureza
fundamental da realidade. Dentro das práticas do Vajrayāna, os textos e rituais buscam
oferecer um método mais eficaz e direto para alcançar o domínio da mente, e, posteriormente,
realizar-se na natureza de buda, alcançando assim a libertação da natureza egoíca individual e
a realização do estado de “ausência de eu”, onde a experiência budica se torna efetiva.

Um clássico exemplo de tais concepções, dentro do Vajrayāna, pode ser ilustrado na figura do
famoso yogi Tibetano, Milarepa (1050-1135 d.C.). Discipulo de Marpa (1012-1097),
Milarepa é conhecido como o mais famoso e inspirador dos yogis Tibeteanos, e a sua própria
história pessoal serve como referencia para ilustrar a importância e, até mesmo, os poderes
que podem advir através das práticas tântricas. Milarepa, nascido em 1040, teria ficado órfão

2018
de pai ainda criança, e as terras de sua família teriam sido expropriadas por um tio, que deixou
sua mãe na pobreza total. Assim que atinge a maturidade, ele é incentivado pela mãe a
aprender a arte da magia com um lama Nyingma, com o objetivo de se vingar do tio e da
família. Depois de estudar com afinco, Milarepa utilizou seus feitiços para matar 35 pessoas
da sua família, provocando o deslizamento de uma casa onde estavam reunidos para um
casamento.

Algum tempo após os acontecimentos, Milarepa se veria tomado pela angústia da memória de
tais atos, e teria, então, buscado o budismo como uma via para seu crescimento espiritual, e
também para tentar purificar-se do karma negativo que ele havia sido acumulado durante o
período em que teria usado magias e feitiços para fazer mal a outros.

Ele encontra então, em Marpa, a figura do guru que seria responsável por passar-lhe tais
ensinamentos. Após uma serie de provações físicas, Milarepa começou, finalmente, a receber
os ensinamentos espirituais de seu mestre. Durante um período de longos anos (cerca de 13
anos), Milarepa se dedicou, quase que exclusivamente, à prática da meditação e do tantra,
tendo assim, segundo as lendas Tibetanas, atingido a iluminação e a libertação em apenas uma
só vida (PEACOCK, 2009).

Ou seja, justamente a via do tantra teria possibilitado esta transformação profunda e


relativamente rápida na vida de Milarepa, bem como sua libertação. No entanto, para
iniciarmos nossa compreensão das práticas tântricas e de toda sua potência de transformação,
devemos antes observar a própria amplitude de significados e contextos com os quais o tantra
está relacionado.

O termo tantra pode ser compreendido como uma manifestação filosófica, cultural, ou até
mesmo um estilo de vida, sendo fortemente enraizado na cultura indiana, tanto dentro das
diferentes formas de hinduísmo, quanto nas diferentes escolas do budismo mahayana. Os
textos e práticas tântricas influenciaram fortemente as tradições não-tântricas, embora muitos
praticantes destas tradições pensem, ou defendam o contrário.

Segundo autores como Feuerstein (1998), seria mais fácil realizar um estudo do tantra tendo
como base as tradições do Vajrayāna, devido ao fato de que seus textos e ilustrações práticas
foram compilados de forma sistemática pelos monges. No entanto, em oposição ao Vajrayāna,
o tantra dentro do hinduísmo teria sido transmitido de uma maneira mais direta, oral, sendo as
fontes escritas mais escassas.

2019
Por outro lado, podemos reconhecer muitos pontos em comum entre estas duas tradições
tântricas, como por exemplo: o estudo dos corpos sutis e de sua energia vital (Prāṇ ā), que se
manifesta nos cakra (“roda” em sânscrito), na poderosa kuṇ ḍ alinī-Śakti (o “poder da
serpente” que repousa no cakra básico), nos Nādī (canais) e bindus ( pontos de concentração).
Todos estes termos são referenciados no elaborado mapeamento dos corpos sutis
desenvolvido dentro do tantrismo (GNERRE, 2011). A geografia dos corpos sutis e de seus
canais de energia é algo absolutamente fundamental dentro desta tradição que se desenvolve
tanto na Índia quanto no Tibete. Afinal, é justamente o conhecimento da geografia destes
canais de circulação da energia (Nādī) e de seus “centros de distribuição” nos cakra, que
permite a ascensão da kundalini shakti através do canal central – o suśumṇ a-nādī. Este é o
objetivo supremo dos yogues, seja na Índia ou no Tibete: o despertar da energia que permite a
própria dissolução do ego e da mente ordinária do praticante, e que sobe ao longo da coluna
abrindo caminho para a própria experiência búdica.

Figura 1: representação artística Tibeteana dos cackras com seus respectivos elementos e da kundalini
enrodilhada na base da coluna7

7
Fonte:
http://store.shakyahandicraft.com/images/LP054%20%20Samadhi%20Chakra%20Thangka%20%203.JPG

2020
Outros importantes pontos de intersecção entre as tradições tântricas na Índia e Tibete são as
práticas de visualização, que incluem visualizações de deidades e visualizações de gurus e
meditações em Yantras (“instrumentos” de meditação, geralmente elaborados na forma de
desenhos geométricos concêntricos) e Mandalas (“circulo” em sânscrito). Estas últimas
representam um dos elementos tântricos mais fortes e característicos do tantrismo que se
desenvolve no Tibete:

No Budismo Tibetano, tais mandalas podem ter representações pictóricas complexas. Mas,
seja simples ou complicado, o mandala representa sempre um espaço consagrado e é,
supostamente o corpo da divindade (ishta-devata), escolhida pelo praticante. O mandala é
usado para adorar essa divindade e, através de complexas práticas de visualização, tornar-se
um com ela (FEUERSTEIN, 2005, p. 145).

Desta forma, o mandala serve para o praticante como um instrumento de unidade com a
divindade ali representada. E, nestas representações de deidades pode-se notar também outra
importante característica do trantrismo em geral que é a forte presença do aspecto sagrado
feminino – a shakti, que no Tibete se manifesta nas diversas representações de Tara. Além
disso, temos também no Tibete importantes práticas de entoação de mantras, sons sagrados
que no contexto meditativo funcionam também como ferramentas para a transcendência. São
geralmente entoados em associação com os mudrás – gestos com as mãos que “selam a
energia do corpo e a direcionam” (GNERRE, 2011). Assim, podemos dizer que a “leitura” de
todo este conjunto de elementos tântricos que é feita no contexto da rica cultura que já
existente no Tibete antes da chegada do budismo, será constituinte da própria identidade que o
Budismo Vajrayana adquire naquela região.

(Fig. 2: mandala Tibetana com imagem da Tara branca ao centro e mantras inscritos) 8

8
Fonte: http://www.exoticindia.com/buddha/white_tara_mandala_with_syllable_mantra_tq05.jpg

2021
2. Dzogchen: Encontro do Vajrayāna com a tradição Bom

2.1 A tradição Bön

Bön é a tradição religiosa pré budista nativa do Tibete, ainda praticada nos dias atuais por
Tibetanos e habitantes do norte da Índia. A tradição mitológica Bön conta que a religião
nativa Tibeteana teria sido fundada por Tonpa Shenrab Miwoche. Segundo Tenzin Wangyal
Rinpoche (2011, pg. 47):

De acordo com a literatura mitológica Bön, houve três ciclos de disseminação da doutrina
Bön, em três dimensões: a dimensão superior dos deuses, ou devas (lha), a dimensão média
dos seres humanos (mi) e a dimensão inferior dos nagas (klu).

Tenpa Shenrab seria o disseminador da doutrina Bön no mundo dos homens. Nasceu como
um príncipe, filho do rei Gyal Tokar e da rainha Zanga Ringum em uma terra chamada Tagzig
Olmo Lung Ring, aonde os estudiosos acreditam ser uma região nos arredores do Monte
Kailash. Quando ainda era jovem, casou-se e teve filhos, porém, por volta dos trinta anos de
idade, decidiu abandonar a vida de príncipe e dedicou-se à prática de austeridades e passou a
ensinar a doutrina Bön. Segundo os relatos míticos, Tenpa Shenrab Miwoche teria ido apenas
uma única vez ao Tibete, aonde encontrou um povo que praticava sacrifícios rituais. Tenpa
Shenrab então disseminou a doutrina Bön, ao passo que pacificou os demônios locais e deu
instruções de como proceder na vida diária de acordo com os preceitos da doutrina Bön.

A história do Bön se desenvolve linearmente até a chegada do budismo ao Tibete, até que o
primeiro monastério budista é fundado no reinado de Trisong Detsen. Justamente essa
disseminação inicial do budismo iria instigar uma grande repressão ao Bön. No entanto,
alguns mestres da época, embora tivessem oficialmente abraçado o budismo como religião
oficial, continuaram a praticar o Bön secretamente, afim de poder transmitir, preservar e
perpetuar os seus ensinamentos. Para serem salvos da repressão, e de uma possível destruição,
muitos textos da doutrina Bön foram escondidos com o propósito de serem descobertos
futuramente, em épocas mais propícias, como termas.

Durante os séculos IX e X, o Bön sofreu por muitas ondas de repressão por parte das
autoridades estatais, porém, os seguidores da doutrina conseguiram preservar as escrituras até
o século XI, época de um forte ressurgimento do Bön. Este ressurgimento foi em grande parte

2022
provocado pela redescoberta de diversos textos por Shenchen Luga, que acredita-se ter sido
descendente de Tenpa Shenrab Miwoche. Shenchen Luga teve muitos seguidores, os quais
foram responsáveis pela fundação dos primeiros monastérios Bön no Tibete. Posteriormente,
em 1405, foi fundado pelo mestre Bön, Nyamed Shenrab Gyaltsen , o monastério de Menri. O
monastério de Yundgrung Ling e o de Menri tornaram-se os monastérios Bön mais
importantes (WANGYAL RINPOCHE, 2011).

2.2 A prática do Dzogchen no Bön

O dzogchen é considerado pelos praticantes Bön como a tradição espiritual mais elevada da
sua doutrina. Nos relata Tenzin Wangyal Rinpoche (2011, pg. 55):

De acordo com o Bön, as cinco paixões – ignorância, apego, raiva, inveja e orgulho são as
principais causas de todos os problemas desta vida e da transmigração no samsara. Eles
também são chamados os cinco venenos, porque matam as pessoas. Estas são as paixões
que devemos superar através da prática. De acordo com a visão do Sutra, leva muitas
existências para purificar as paixões e alcançar a iluminação, ao passo que de acordo com a
visão tântrica e a visão Dzogchen, o praticante pode obter a iluminação nesta própria
existência.

Notamos aqui uma forte semelhança com os preceitos budistas, sobretudo com relação à
forma como a libertação do ciclo samsárico é visto pelo caminho do tantra, sendo possível,
através da prática do tantra e a visão do Dzogchen, alcançar a iluminação em uma existência.

Muito embora tenha havido praticantes do Dzogchen nas mais diversas escolas do budismo
Tibetano, como Kagyu, Sakya e Gelug, as linhas de ensinamentos mais importantes se
encontram no Bön e na escola Nyingma (a escola budista mais antiga do budismo Tibetano).
Ambas as tradições dividem os seus ensinamentos em Nove Veículos, caracterizados como
caminhos e práticas que conduzem à iluminação. Nas duas tradições o Dzogchen é
considerado como o mais elevado dos veículos.

O Dzogchen é descrito como sendo composto de três aspectos: base, caminho e fruto. Base
pois o fundamento do Dzogchen reside no estado primordial do indivíduo, caminho porque o
Dzogchen é considerado o caminho supremo pelo qual se alcança a realização, e fruto porque
ele é a consumação da iluminação. Segundo a tradição, através do Dzogchen, se faz possível a

2023
libertação do ciclo de transmigração samsárico em apenas uma vida. Conforme nos expressa
Tenzin Wangyal Rinpoche (2011, pg. 58):

De acordo com o ensinamento Dzogchen, a essência (ngobo) da base de tudo (kun gzhi) é
vazia (ston pa nyid) e primordialmente pura (ka dag); a natureza (rang bzhin) da base é
claridade (gsal ba) que é espontaneamente perfeita (lhun sgrub); a união inseparável (dbyer
med) da essência primordialmente pura e da natureza espontaneamente perfeita é o fluxo
não-obstruido (ma ‘gag pa) da energia e da compaixão (thugs rje). Na mente individual,
esta base é o estado natural (gzhi) e é a fonte do samsara para a mente deludida (ma rig pa)
e do nirvana para a mente na qual o conhecimento (rig pa) está desperto.

O caminho do Dzogchen consiste em adquirir a percepção do estado natural da base, e tornar


o fluxo de rigpa9 constante através de práticas meditativas, que tem por objetivo manter o
fluxo de rigpa mesmo no pós meditação, e então integrar este estado ao nosso
comportamento, e às atividades do dia a dia.

Dentro da tradição Bön, o Dzogchen é tido como um ensinamento muito elevado e poderoso,
e, devido à sua natureza, nos tempos passados poucos eram os mestres que conheciam e
praticavam o Dzogchen, pois eram mantidos de forma secreta e poucos mestres se
habilitavam a passar tais ensinamentos a seus estudantes. Atualmente, esta transmissão se dá
de maneira mais frequente, mais livre e aberta, pois os mestres Bön têm hoje uma visão de
que é preciso que estes ensinamentos sejam transmitidos, para que não se corra o risco de
perde-los devido à diáspora Tibetana e outro fatores.

Dentro da tradição Bonpo, os ensinamentos do dzogchen são precedidos por uma serie de
práticas preliminares, chamadas de ngondro e powa que tem por função purificar a mente do
aluno, e poder prepara-lo para o teor altamente desenvolvido dos ensinamentos. Estas práticas
preliminares se dividem em nove, e são classificadas em: gerar compaixão por todos os seres
sencientes; tomar refúgio; oferecer a mandala; meditar sobre a impermanência; confessar as
transgressões; fazer prostrações; guru yoga: fundir a mente com a mente iluminada do guru
visualizado à sua frente; oferecer preces; receber bênçãos. Estas práticas estão descritas no
Nyams rgyud rgyal ba’i phyag khrid.

9
Uma boa definição de Rigpa nos é dada pelo mestre Sogyal Rinpoche: “Rigpa é uma palavra Tibetana, o que
em geral significa 'inteligência' ou 'consciência'. No Dzogchen, no entanto, os mais altos ensinamentos da
tradição budista do Tibetee, rigpa tem uma conotação mais profunda, ‘a natureza mais profunda da mente’. Todo
o ensinamento de Buda é direcionado a perceber isso, nossa natureza última, o estado de onisciência ou
iluminação - uma verdade tão universal, tão primordial que vai além de todos os limites, e além até mesmo a
própria religião” (RINPOCHE, 2013). Tradução nossa à partir do texto original em inglês disponível em
http://www.rigpa.org/index.php/en/about-rigpa

2024
O dzogchen se divide em três correntes dentro da tradição Bön, conhecidas como Ati,
dzogchen e Zhang Zhung Nyan Gyud. As duas primeiras são tradições baseadas em termas, ou
seja, em textos que foram escondidos para serem protegidos, e foram posteriormente
redescobertos, estudados e difundidos. A tradição do Zhang Zhung Gyan Nyud é uma tradição
oral, que se baseia na transmissão contínua e direta por uma linha ininterrupta de mestres.
Apesar destas três tradições terem as suas particularidades quanto à própria prática, a essência
e a finalidade se configura como sendo a mesma, a introdução ao estado natural de dzogchen
(WANGYAL RINPOCHE, 2011).

2.3 O dzogchen na tradição Nyingma

Dentro da escola Nyingma, podemos identificar duas categorias distintas de sangha: a


comunidade de monges e monjas, e a comunidade de tântricos. Para aqueles que participam
da sangha de caráter mais monástico, são exigidos votos de celibato, pobreza, solidão e
diversos outros tipos de renúncias ao mundo material. Os tântricos, no entanto, vivem uma
vida menos regrada pelas regras monásticas, ao passo que não precisam fazer tais votos de
renúncia à vida mundana, ou até mesmo material. Porém, isso se deve ao fato de
compreenderem tais elementos como meios que podem ser usados como apoio para a prática
da realização. Dentro das escolas do budismo Tibetano, a Nyingma é a única que possui este
tipo de sangha que não parte do pressuposto das renúncias, dos votos de castidade, pobreza,
etc. Todas as demais escolas: Kagyu, Sakya, Gelup, tem como um de seus pressupostos
principais os votos acima mencionados. Como nos esclarece Tulku Thondup (1986, pg. 41):

Nyingmapas are the least interested in organizational structures, hierarchical formalities


and theoretical dialectics. They are more interested in devoting their lives to being simple
and natural; and they stress the application to their own minds of whatever they have
studied. The simplest but highest and deepest teaching and training in the Nyingma is the
Great Perfection meditation, known in Tibetean as Dzog chen, a meditation for bringing the
mind to the ultimate ease, the natural and undeluded state. It is the swiftest and most
extraordinary means to dissolve the phenomena of mental fabrication into the absolute
nature, Buddhahood. Great Perfection practitioners are remarkable for their attainment of
the result: they train themselves through natural means to achieve the ultimate natural state
in a short time. Those who are trained and perfected in this practice, in addition to being
normal, simple and easy to be with, possess clairvoyance, miraculous power, and wisdom
of united bliss and emptiness. Many who have attained the realization of this practice

2025
dissolve their mortal bodies at death without leaving behind any remains, which is a sign
that they have attained the fully enlightened state, Buddhahood .10

A escola Nyingma, assim como a tradição Bön divide os seus ensinamentos do dzogchen em
nove veículos. Estes nove estágios, estão por sua vez, divididos em três diferentes grupos. Os
nove veículos são conhecidos como: Shravakayana; Pratyekabuddhayana; Bodisattvayana;
Kriya Tantra; Charya Tantra; Yoga Tantra; Maha Yoga; Anu Yoga; Ati Yoga (Dzogchen).
Cada veículo possui sua particularidade, e, dentro da tradição do dzogchen, começa-se a
prática através do Shravakayana, tendo como objetivo chegar ao ultimo estágio, o estágio do
Ati Yoga.

Podemos evidenciar um dos aspectos mais peculiares do dzogchen através da descrição de S.S
o Dalai Lama (2006, pg. 168):

Agora poderíamos nos perguntar: se essas várias abordagens das diferentes tradições vão
enfim chegar todas na mesma experiência ou no mesmo ponto, porque se diz que o
Dzogpachenpo ou Atiyoga é o pináculo dos novo yanas ? A característica singular dessa
abordagem, conforme já mencionei, é que no sistema de meditação do Dzogchen não se
emprega os níveis grosseiros da mente, tais como pensamentos discursivos e conceituais.
Em vez disso, desde o começo, faz-se a experiência da clara luz manifesta, quase como se
fosse algo tangível – uma experiência direta, desnuda, de clara luz.

A introdução ao estado de clara luz (rigpa) é um aspecto essencial da prática dzogchen, daí a
primordial importância da transmissão dos ensinamentos, e consequente introdução ao estado
de rigpa por um mestre qualificado e realizado, capaz de induzir diretamente a mente do
discípulo ao estado primordial. A comunicação dos ensinamentos através do mestre difere
amplamente daquela realizada através de livros. Após haver ocorrido a introdução ao estado
de base da mente, o estado da clara luz extremamente sutil e absoluta, faz-se necessário a

10
“Nyingmapas são os menos interessados em estruturas organizacionais, em formalidades hierárquicas e
dialética teóricas. Eles estão mais interessados em dedicar suas vidas para serem simples e naturais, e enfatizam
a aplicação para suas próprias mentes de tudo o que eles têm estudado. O ensinamento mais simples, mas mais
alto e mais profundo praticado no Nyingma é a grande meditação da Perfeição, conhecida em tibetano como
Dzog chen, uma meditação para trazer a mente para a “facilidade final”, o estado natural e sem ilusões. É o meio
mais rápido e mais extraordinária para dissolver os fenômenos da fabricação mental sobre a natureza absoluta, o
estado de Buda. Grandes praticantes da Perfeição são notáveis por sua capacidade de alcançar este resultado: eles
são treinados através de meios naturais para alcançar o último estado natural um curto espaço de tempo. Aqueles
que são treinados e aperfeiçoados nesta prática, além de ser normal, simples e fácil de ser realizada, possuem o
do da clarividência, poderes miraculosos, e sabedoria que os leva a suprema bem aventurasse a e vacuidade.
Muitos dos que atingiram a realização desta prática dissolveram seus corpos mortais com a morte sem deixar
para trás qualquer vestígio, o que é um sinal de que atingiram o estado totalmente iluminado, o estado de Buda”
(TULKU THONDUP, 1986, pg. 41-Trad. nossa).

2026
continuidade da prática, tendo como objetivo manter este estado de rigpa nos processos de
pós meditação.

Considerações finais

Vimos através de uma perspectiva histórica, como o budismo chega ao Tibete, e se depara
com uma tradição espiritual bem estabelecida. Durante três ou quatro séculos o budismo passa
por diferentes fases de transmissão, e a peculiaridade de cada uma destas fases influencia
profundamente a maneira como o budismo viria a se desenvolver nas mais diversas escolas do
budismo Tibetano. Após analisar este percurso feito pelo dharma através das terras do Tibete,
notamos uma profunda influencia das práticas da religião Bön no progresso da doutrina
budista. Diferentes aspectos podem ser ressaltados como de fundamental importância para as
práticas do budismo Tibetano. O dzogchen é um deles. Com a assimilação do tantra indiano
pelo budismo, temos então o nascimento do Vajrayāna, o veículo diamante, que, devido à
diáspora do povo Tibetano decorrente das invasões chinesas, se faz particularmente presente
no mundo ocidental moderno.

Muitos aspectos entre a religião Bön e o budismo podem ser relacionados. Este fator suscita
importantes questões acerca da doutrina que se desenvolveu, durante muitos séculos,
paralelamente ao budismo. Segundo os relatos a que tivemos acesso da tradição Bön, muitos
preceitos ditos como budistas já se encontravam na doutrina Bön há vários séculos. Podemos,
até mesmo, perceber a figura do fundador do Bön, Tempa Shenrab Miwoche, como nos relata
os mitos fundadores, como sendo também um buda histórico, que teria vivido onde hoje se
identifica como Tibete ocidental, há cerca de dezessete mil anos. As semelhanças da narrativa
mítica do buda histórico, Siddharta Gautama, e aquela de Tenpa Shenrab Miwoche, se
mostram de maneira evidente, e levantam algumas questões. A principal questão que nos
colocamos é: Teria o Bön, através de um forte sincretismo religioso, incorporado diversos
elementos do budismo, ou, se tais elementos já estavam presentes na tradição religiosa
autóctone do Tibete antes mesmo da chegada, e consequente contato com as doutrinas
budistas?

Este é um tema que incita pesquisas posteriores, porém que permanecerá em aberto neste
artigo, onde objetivo central era justamente estabelecer estes paralelos e congruências entre as
práticas da tradição Bön e do Budismo tântrico do Tibete.

2027
Referências

DALAI LAMA, SS. Dzogchen: A essência do coração da grande perfeição. São Paulo: Gaia,
2006.

FEUERSTEIN, Georg. Tantra: path of ecstasy. Boston: Shambhala, 1998.

__________. A Tradição do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2005.

FLOOD, Gavin. The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion. New York: I.B.
Tauris & Co. Ltd., 2006

GNERRE (c), M. L. A. Religiões Orientais: uma introdução. João Pessoa: Ed. Universitária
UFPB, 2011.

LOWESTEIN, Tom. A visão do Buda: filosofia e meditação. O caminho para a Iluminação,


locais sagrados. Köln: Taschen, 2001.

LAUMAKIS, Stephen J. Uma introdução à filosofia budista. São Paulo: Madras, 2010.

PEACOCK, John. Livro tibetano da vida, da morte e do renascimento. São Paulo:


Pensamento, 2009.

RINPOCHE, Tenzin Wangyal. Maravilhas da mente natural: a essência do Dzogchen na


Tradição Bön nativa do Tibete. São Paulo: Devir, 2011.

THONDUP, Tulku. Hidden teachings of Tibet: an explanation of the Terma tradition of


Tibetan Buddhism. London: Wisdom Publications, 1986.

2028
2029
Diversidade étnica e dificuldades de integração no Catolicismo
contemporâneo japonês
Antonio Genivaldo C. de Oliveira1

Introdução

O fenômeno migratório contemporâneo trouxe profundas consequências para a Igreja Católica


no Japão, onde o número de fiéis é de aproximadamente 0.5% do total da população. Este
pequeno grupo de fiéis japoneses se viu forçado a absorver um grande número de fiéis
provenientes de vários países. Para lidar com este desafio a Igreja tenta promover uma igreja
multicultural na busca de integrar seus fiéis e de se tornar um modelo para a sociedade
japonesa.

Inicialmente, trabalharemos com dados estatísticos para mostrar como em alguns lugares o
número de fiéis estrangeiros sobre passa o número de fiéis japoneses como no o caso da
Paróquia de Toyohashi. Posteriormente, buscaremos mostrar a situação conflituosa entre as
diretrizes pastorais da Igreja e a com a realidade destas comunidades tão diversas destacando
os sinais de resistências e de intolerâncias.

A Situação imigratória no Japão

Na década de 1990, quase todas as regiões do mundo enfrentaram os efeitos da imigração


contemporânea, seja como regiões de origem ou como regiões de destino. A facilidade
crescente das viagens, a velocidade das informações e o ritmo das mudanças econômicas
levou vários países industrializados que enfrentam o desafio do envelhecimento e diminuição
da população, à revisarem suas leis de imigração. A maioria destes países considera os
imigrantes somente como trabalhadores temporários e tentam evitar o estabelecimento de
novas minorias em seu território. Este tem sido o caso do Japão.

As mudanças nas rígidas leis de imigração do Japão fizeram o número de trabalhadores


estrangeiros que era de 750.000 em 1975 chegar a 1,8 milhões em 2001. Na última década o
país apareceu entre os 10 países que mais receberam imigrantes (cf. figura 1).
1
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Mestre em Pensamento Cristão pela Universidade Nanzan
em Nagoya, Japão. Bolsista CAPES. Contato: genomijp@hotmail.com.

2030
Figura 1. Entradas anuais de população estrangeira - países que mais recebem. Fonte: OECD (Organization for Economic, Co-operation and
Development).

O Japão oficialmente não permitia a entrada de mão-de-obra não qualificada. Porém em vista
das demandas foram criadas várias possibilidades de entrada no país pelas chamadas "side-
doors" que permitiram um grande número de imigrantes entrar no país com vistos de
"entertainers"2, "estagiários" e "estudantes".

As mudanças na lei de imigração também permitiram que os Nikkeis da América do Sul e


membros de suas famílias (até a terceira geração), pudessem entrar no Japão para trabalhar. A
idéia predominante era que estes descendentes de japoneses iriam, ao entrar no Japão, se
adaptar mais facilmente à sociedade. Porém, a realidade mostra que estes trabalhadores "são
marginalizados etnicamente e socialmente segregados como estrangeiros tornando-se a mais
nova minoria étnica no país" (TSUDA, 2006, p. 15).

Tsuda argumenta ainda que o

governo japonês, que adere ao mito do Japão ser uma nação etnicamente homogênea e que
não é e nunca foi um país de imigração, [...] provavelmente fez o mínimo para integrar
socialmente seus imigrantes residentes e promover seus direitos de cidadania (TSUDA,
2006, p. 13).

2
Pela atuação destes profissionais, em português será mais bem traduzido por "acompanhantes". Em muitos
casos este tipo de visto funciona como fachada para a prostituição e tem gerado forte pressão internacional como
parte do combate ao tráfico de mulheres.

2031
Ele prossegue dizendo que as tentativas de ser mais receptivos aos estrangeiros no Japão, são
mais "para evitar prejudicar a reputação internacional do Japão" (TSUDA, 2006, p. 28). Outro
autor afirma que "desde a Segunda Guerra Mundial, a postura geral do Japão em relação aos
residentes estrangeiros tem sido de evitá-los e se possível, manter uma política de não-
integração quando a exclusão é impossível" (GWROWITZ, 2006, p. 154).

Apesar da falta de uma política de imigração coerente, e da recessão econômica de mais de


uma década, a entrada de trabalhadores estrangeiros viu apenas um pequeno declínio entre
2008 e 2009, demonstrando que a demanda por mão-de-obra estrangeira tornou-se algo
estruturalmente integrado (cf. figura 2).

Figura 2. International Press Ano XIX. Edição 981. 24 jul 2010.

Uma vez que este paper tem como foco a imigração no contexto católico nos concentraremos
nos grupos de imigrantes ligados diretamente com a Igreja Católica no Japão. A maioria
destes imigrantes é formada pelos Nikkeis brasileiros, porém há ainda os Nikkeis vindos do
Peru, Bolívia, Argentina entre outros países de maioria católica. No entanto, a aparente
proximidade linguística e cultural não é suficiente para gerar a desejada integração destes
grupos. Uma paróquia que tenha missa em espanhol, por exemplo, não será suficiente para
reunir os fiéis das proximidades que falam o mesmo idioma. Com as devidas exceções, o
caso, é mais de comunidades que se reúnem por laços nacionais em diferentes paróquias.

2032
O outro grupo de imigrantes que impactou a Igreja Católica no Japão foi o de filipinos3,
também eles vindos de país com maioria católica. O grupo é composto majoritariamente por
mulheres, muitas das quais entraram no Japão como "entertainers". Também são muitos os
que entram no Japão com visto de "estagiário" para atender a demanda das empresas de
pequeno é médio porte recebendo apenas "mesadas" (de um quarto até a metade do salário
médio de um trabalhador japonês). Outra parte entra no Japão com visto de estudante, aos
quais é permitido fazer alguns "bicos".

Na comunidade católica filipina, a diversidade vai além dos tipos de vistos. No geral este
grupo se reúne nas missas em inglês e em tagalo, porém dificilmente podemos dizer que se
trata da mesma comunidade filipina. A diversidade étnica e linguística interna das
comunidades de imigrantes acaba fragmentando ainda mais a diversidade católica no Japão.

Além destes dois grupos majoritários (latino-americanos e filipinos), também há comunidades


de fiéis coreanos e vietnamitas entre outros grupos minoritários. Atualmente, estes imigrantes
vindos de países de maioria católica representam menos de 3% da total da população
estrangeira no Japão. Este aparente pequeno número pode até ser ignorada em muitas cidades,
porém dada a particularidade da pertença religiosa destes imigrantes, tal diversidade se
sobressai em várias paróquias católicas no Japão. Para uma população que em geral se crê
homogênea étnica e linguisticamente, esta nova diversidade étnica e linguística traz sérias
implicações.

O impacto da imigração atual na Igreja Católica

Desde o começo desta nova onda de imigração no Japão na década de 1980, as igrejas foram
afetadas e tentaram responder. A solidariedade inicial foi sendo suplantada aos poucos pelas
dificuldades de acomodação das várias comunidades étnicas que iam se agregando nas
paróquias já existentes. Embora este processo já leve mais de três décadas há várias
dificuldades em considerar estes fiéis como "membros" de fato da comunidade católica no
Japão.

No Japão, as paróquias tem um sistema de registro de fiéis chamado shinjaseki, um resquício


do sistema danka seido e de certificação tera-uke. Durante o período Tokugawa todos os
3
Embora haja entre os filipinos no Japão muitos de descendência japonesa, até recentemente eles não tiveram
direito ao visto como os Nikkeis de outros países.

2033
japoneses todos tinham que se registrar e anualmente renovar o certificado em um templo
budista. Tal sistema visava assegurar a não proliferação do Cristianismo considerado uma
ameaça aos planos de unificação política do país.

Os fiéis imigrantes, em sua quase totalidade desconhecem e não estão registrados neste
sistema ficando fora do número oficial de fiéis publicado todos os anos pela Igreja Católica.
Em razão disso, os fiéis imigrantes são vistos geralmente como "irregulares", considerados
apenas como fieis "visitantes" e não como "membros" da igreja mesmo que sejam atuantes
nas suas comunidades por muitos anos. Esta ambiguidade no entendimento de pertença à
Igreja é algo difícil de ser resolvido.

Em 2005, a Comissão Católica do Japão para Migrantes, Refugiados e Itinerantes fez uma
estimativa do número total de fiéis católicos no Japão combinando o número de estrangeiros
residentes no Japão de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça e dos registros nos
governos locais (Gaikokujin Toroku), e a porcentagem de Católicos no país de origem dos
migrantes baseado nos números do Vaticano (Cf. figura 3).

Número de Fiéis Japoneses Registrados e Número Estimado de Fiéis Estrangeiros

Diocese Fiéis Japoneses Fiéis Estrangeiros Total Japoneses % Estrangeiro


%

Sapporo 18.205 2.433 20.638 88% 12%

Sendai 10.947 9.726 20.676 53% 47%

Niigata 7.707 6.540 14.247 54% 46%

Saitama 19.814 85.104 104.918 19% 81%

Tokyo 91.586 75.134 166.720 55% 45%

Yokohama 53.512 118.934 172.446 31% 69%

Nagoya 25.380 107.386 132.766 19% 81%

Kyoto 19.194 43.047 62.241 31% 69%

Osaka 55.732 39.911 95.643 58% 42%

2034
Hiroshima 21.702 18.106 39.808 55% 45%

Takamatsu 5.407 4.778 10.185 53% 47%

Fukuoka 31.600 8.905 40.505 78% 22%

Nagasaki 67.728 1.186 68.914 98% 2%

Oita 5.765 2.694 8.459 68% 32%

Kagoshima 9.527 2.880 12.407 77% 23%

Okinawa 6.119 2.688 8.807 69% 31%

Total 449.925 529.452 979.377 46% 54%

Figura 3. Fonte: 日本の教会。共に生きる教会。信徒数統計 [A Igreja do Japão. Uma Igreja que convive. Estimativas do número de

fiéis].

Estas estimativas sofreram várias refutações. Alguns bispos católicos alegaram o fato de que
muitos dos que se declaram católicos nas estatísticas oficiais com frequência são apenas
católicos "nominais", portanto, o número de fiéis estrangeiros não poderia ser tão alto.
Cremos que para além das questões técnicas, que a maior dificuldade está em admitir a
grandeza do desafio que estas estimativas representariam.

O fato é que muitos imigrantes foram se juntando nas paróquias mais receptivas, não
necessariamente as mais próximas de suas residências. A motivação inicial pode não ter sido
necessariamente religiosa. Muitos viram na Igreja, no mínimo um espaço onde pudessem falar
sua própria língua, compartilhar ideias, fazer amigos e até achar contatos para trabalho.

O crescimento destas comunidades exigiu que os padres, ao menos esporadicamente,


tentassem "ler" a missa na língua dos imigrantes. Posteriormente, a solução foi "importar"
padres. As missas em outros idiomas foram se multiplicando e em muitas paróquias com uma
participação bem mais numerosa que nas missas em japonês. Além disso, as comunidades de
fiéis estrangeiros são bem mais jovens na sua composição e consequentemente suas
celebrações e organizações diferem bastante da comunidade anfitriã. O guia da Conferência
Episcopal de 2010 da mostrava o seguinte quadro de missas em idiomas estrangeiros com
base nos dados de 2009.

2035
Paróquias com missas em língua estrangeira de acordo com a Diocese4

Diocese Línguas

Sapporo Inglês 3

Sendai Inglês 4 Espanhol 2 Coreano 1

Niigata Inglês 8 Espanhol 2 Português 1

Saitama Inglês 22 Espanhol 4 Português16 Tagalo 7 Coreano 4 Vietnamita 3 Indonesiano 1

Tokyo Inglês 31 Português 2 Coreano 1 Francês 2 Alemão 1 Indonesiano 2

Espanhol 6 Tagalo 4 Vietnamita 1 Polonês 1 Chinês 1 Birmanês 1

Yokohama Inglês 29 Espanhol 17 Português 23 Tagalo 5 Coreano 4 Vietnamita 5

Nagoya Inglês 17 Português 16 Coreano 2 Francês 1

Espanhol 10 Tagalo 9 Vietnamita 3 Língua Indonésia 1

Kyoto Inglês 17 Espanhol 10 Português 10 Coreano 1 Tagalo 1

Osaka Inglês 18 Português 7 Coreano 4 Alemão 1

Espanhol 7 Tagalo 1 Vietnamita 2 Chinês 1

Hiroshima Inglês 19 Espanhol 6 Português 9 Tagalo 1

Takamatsu Inglês 7 Espanhol 1 Tagalo 2

Fukuoka Inglês 10 Espanhol 1

Nagasaki Inglês 2 Espanhol 1

Oita Inglês 6 Espanhol 1

Kagoshima Inglês 1 Espanhol 1

Naha Inglês 2 Espanhol 1

Figura 4. Fonte: カトリック教会・情報ハンドブック2010.

4
O número de missas é maior já que muitos destes lugares têm mais de uma missa por língua todos os meses.

2036
Para as comunidades brasileiras se imaginou que padres de descendência japonesa, poderiam
responder melhor as necessidades pastorais dos fiéis. Tanto os padres como os fiéis tentaram
transplantar organizações pastorais do Brasil que passavam a funcionar no Japão como
"filiais" do Brasil. Os atritos não tardaram a surgir.

Os seguintes carimbos podem ilustrar o pensamento comum do clero e dos fiéis. Inicialmente
tentou se implantar a PANIB (Pastoral Nipo-Brasileira) como uma continuação da
organização criada no Brasil para o cuidado pastoral dos japoneses e seus descendentes. O
mesmo aconteceu com a Renovação Carismática Católica (RCC) levada pelos leigos e,
incialmente tinha uma organização no Japão "afiliada e orientada" pela coordenação do
movimento no Brasil. Em ambos os casos, esta filiação no Brasil acabou se chocando com as
diretrizes e a organização da Igreja no Japão, levando a contestação destas iniciativas.

Figura 5

O caso da Paróquia de Toyohashi: de uma "religião estrangeira" para uma "religião de


estrangeiros"

O sociólogo R. Stephen Warner desenvolveu as bases para a pesquisa sobre a identidade


religiosa dos imigrantes. Ele enfatiza que neste caso, a religião será analisada não em forma
de textos, mas na forma de comunidades. O autor ressalta ainda que uma dos grandes desafios
para a pesquisa é a dificuldade em obter dados precisos relacionados à religião. Como a
maioria das agências governamentais não pode perguntar para as pessoas sobre suas afiliações
religiosas, "estudiosos de religião têm que acreditar nos registros oficiais das próprias
organizações sociais ou no resultado de pesquisas de amostragem" (WARNER, 1998, p. 11).

2037
No Japão, o sociólogo Kyomi Morioka no livro Religion in Changing Japanese Society
apresenta um instrumental que pode ser aplicado para a obtenção de dados mais próximos da
realidade destas comunidades. Para ele, um estudo sociológico deste tipo deve lidar com o
crescimento da igreja em termos humanos utilizando-se de indicadores externos como a soma
das ofertas, os tipos e frequência de encontros, o número de crianças na catequese, o número
de membros comungantes, os números das mudanças de fiéis que chegam ou saem da
paróquia, e especialmente os números de batismos e funerais (Cf. MORIOKA, p. 1975, p.
138).

Seguindo estas bases veremos a seguir os registros de batismo da paróquia de Toyohashi na


Diocese de Nagoya, uma das tantas que se viu inundada repentinamente pela diversidade
linguística e cultural da Igreja no Japão. Os registros batismais mais recentes começam a listar
o batismo de fiéis estrangeiros a partir de 1991. No entanto, os primeiros registros nem
sempre especificam a nacionalidade do batizando, assim sendo estes batismos aparecerão
classificados na categoria "outros". Os dados coletados incluem também os batizandos que
tem cidadania japonesa, mas com pais de nacionalidade diferentes (principalmente mães
filipinas e pais japoneses). Estes foram classificados como "dual" (figuras 6, 7 e 8).

Registros Batismais Contemporâneos de Toyohashi

Japonês Filipino Brasileiro Peruano Dual* Outros

1992 10 05 01 01**

1993 03 09 03 07*

1994 10 01 12 04 03*

1995 06 01 09 02 01

1996 07 01 13

1997 12 03 32 08 07 1(Chile)

1998 13 06 17 02 04

1999 05 06 61 02 03

2038
2000 14 42 02 05 1 (Coreano)

2001 06 02 14 04 05

2002 02 01 23 01 01

2003 09 08 15 04 08

2004 06 01 32 07 06 2 (Ucrânia, Argentina)

2005 03 25 02 04 3 (Coréia)

2006 02 02 49 09

2007 02 42 03 10 1 (Sri Lanka)

2008 05 06 55 07 17 2 (Bolívia)

2009 08 08 38 04 12

Total 121 48 493 49 99 21

Figura 6

* Cidadania japonesa, mas com pais de diferentes nacionalidades. Alguns têm dupla nacionalidade.

** País desconhecido.

2039
Figura 7

Figura 8

2040
Estes dados mostram claramente como o desafio de uma paróquia como esta vai além da
diversidade étnica e linguística. Além das diferenças culturais, o tamanho das comunidades de
imigrantes acaba por se sobrepor ou sobrecarregar a comunidade local japonesa que se vê
forçada a reencontrar o seu espaço em uma paróquia que antes era exclusivamente sua. Deste
modo, muitos fiéis japoneses passaram a perceber a presença dos imigrantes como um
"problema".

Esta mudança tem uma séria implicação no contexto sócio-religioso do Japão, que ao nosso
ver tem passado despercebida. Como um todo o "Cristianismo é frequentemente considerado
como uma religião 'estrangeira' ou 'Ocidental'" (MULLINS, 1998, p. 9). Esta visão é agora
agravada pela presença de um grande número de fiéis estrangeiros que está modificando a
face católica do Cristianismo. Além de ser vista como uma "religião estrangeira", o novo
contexto migratório faz com que esta pode ser vista também como uma "religião de
estrangeiros".

Sociologicamente, cremos que é possível dizer que a percepção dos imigrantes como maioria
na Igreja, pode gerar um sentimento de ameaça à identidade dos fiéis japoneses. Certamente,
este é mais um exemplo em que a religião se torna o centro do estresse para a toda uma
sociedade (Cf. GEERTZ, 1973, p. 87-125). Isto pode apontado a partir de alguns sinais de
resistência ou até mesmo de intolerância verificados em algumas comunidades.

Sinais de resistências e de (in)tolerâncias

Akira Nakagawa em um capítulo intitulado "A changing Catholic Church" descreve as


dificuldades que os fiéis encontram ao tentar conviver nas mesmas igrejas. Dado o fato que os
imigrantes que frequentam a Igreja Católica chegam principalmente dos chamados países do
"terceiro mundo", o autor nota que eles não agradam o povo japonês (NAKAGAWA, 2003, p.
125). Ao destacar a distância cultural entre os fiéis ele descreve como o número crescente de
peruanos com sua proximidade e calor humano provocou uma "sensação de inferioridade" nos
fiéis japoneses da igreja de um pequeno vilarejo, levando a maioria deles a se mudarem para a
igreja da cidade vizinha (NAKAGAWA, 2003, p. 137).

Outro aspecto desta resistência pode ser notado na diferença de acolhida nas diferentes
paróquias. Nakagawa especifica que o fato de uma paróquia ser mais receptiva aos imigrantes

2041
não pode ser usado para generalizar toda a Igreja Católica no Japão. E, mais especificamente
diz "que a realidade multicultural na igreja não foi desejada pela Igreja Católica, ao invés
disso foi a presença extraordinária de estrangeiros, o número crescente de missas em línguas
estrangeiras e vários outros desafios que empurraram a Igreja Japonesa para algum tipo de
revitalização" (NAKAGAWA, 2003, p. 138).

O sociólogo Hiroshi Komai apontou que a importação de trabalhadores não especializados


para o Japão acabaria gerando uma classe mais baixa de pessoas. Acreditamos que esta
mentalidade pode ser encontrada também entre os fiéis católicos. A paróquia de Toyohashi,
apresentada anteriormente, viveu uma situação delicada com as cinzas de fiéis estrangeiros
falecidos no Japão. O alto custo para adquirir um túmulo familiar além do projeto de breve
retorno ao país de origem, fez com que várias famílias se vissem obrigadas a conviver com as
cinzas dos falecidos dentro de casa. Diante do incomodo que isto pode gerar, muitos
solicitavam deixá-las igreja por "algum tempo" e assim iam ocupando as prateleiras da
sacristia e do escritório paroquial, muito embora a comunidade disponha de um mausoléu
coletivo em um cemitério público da cidade. O problema é que o grupo de fiéis que
administra o mausoléu não aceitou que estas cinzas fossem deixadas lá. Depois de vários anos
de negociação o comitê administrativo foi "convencido" a aceitar ainda que de modo
"provisório" as cinzas dos fiéis imigrantes no referido mausoléu (Cf. Informativo Paroquial nº
98, 15 mai 2009 e nº 101, 15 ago 2010). Porém, para estes se reservava as gavetas da parte
inferior do mausoléu, pois em virtude da umidade estas são preteridas pelos japoneses.

Para os imigrantes que decidem permanecer na Igreja Católica, canais de resistência precisam
ser encontrados para garantir a distinção de cada grupo. Porém, é fato de que muitos não
encontrando este espaço nas paróquias católicas migram para outras igrejas. No Japão, muitos
dos que se declaravam católicos preferem ir à outra igreja cristã que mantém o caráter étnico
da comunidade.

Outra forma de resistência pode ser notada também na retomada do contato com a religião de
seus ancestrais. Este contato traz de volta alguns elementos budistas fazendo com que muitos
imigrantes passem a viver a experiência de uma identidade religiosa "dupla" ou em alguns
casos "tripla" muito comum no contexto sócio-religioso japonês.

2042
A abordagem multiculturalista da Igreja Católica

A Igreja Católica no Japão vem tentando lidar de modo oficial com estas questões por meio
da "Comissão Católica do Japão para Migrantes, Refugiados e Itinerantes". Na busca de
norteadores esta comissão incorporou o multiculturalismo como base de suas ações pastorais.

A comissão em sua homepage descreve a sociedade japonesa como "exclusivista",


homogênea e "altamente racista". Diante da qual se deseja trabalhar por "uma sociedade
multiracial, multinacional e multicultural onde todas as pessoas sejam respeitadas como filhos
e filhas de Deus, em condições de igualdade no que diz respeito aos direitos básicos".

Esta visão positiva do multiculturalismo é aplicada também no auto-entendimento de Igreja


descrita como multicultural. Isto serviu para a hierarquia católica justificar a não criação de
novas paróquias pessoais que atendessem exclusivamente os fiéis imigrantes.

Discutindo o cuidado pastoral de migrantes, a Província Eclesiástica de Tokyo que inclui as


5 dioceses (Sapporo, Sendai, Saitama, Tokyo e Yokohama) chegou a um acordo de não
eregir paróquias pessoais [...] Esta escolha foi o resultado da mudança na imagem da Igreja
como uma "Igreja Japonesa" para um entendimento de "A Igreja no Japão", que é uma
Igreja multiracial e de convivialidade multicultural, dentro da qual os japoneses têm de
aceitar ser um grupo entre os outros. Isto não significa somente "aceitar estrangeiros" mas
sim proceder juntamente com pessoas de diferentes raças e diferentes culturas. Em uma
maneira diferente de falar nós escolhemos tentar construir "uma Igreja" e "uma
comunidade” (TANI, 2008, p. 33-34).

Baseado neste entendimento, um dos bispos que coordenou a comissão por muitos anos
defendeu várias vezes que a Igreja Católica pudesse se tornar um modelo de integração para
toda a sociedade. Segundo ele, "esta realidade multicultural nos chama como igreja a interagir
com estes Católicos, para encontrar novas maneiras de integração uns com os outros. Dá-nos
a chance de liderar toda a sociedade do Japão" (Seminário Let's Walk Together, Hamamatsu,
11 de setembro de 2004). Em outro encontro defendeu como papel da Igreja "tornar-se um
modelo pioneiro de integração e convívio mútuo"
(Tani日本の移住者の受け入れはこれからどうなるのか?Comissão de Agentes de Pastoral de

Brasileiros – Encontro Anual 09 set 2009).

No Japão, as discussões sobre o multiculturalismo surgiram com a busca de respostas à nova


realidade de diversidade étnica no país. Para alguns acadêmicos, apesar da carência do uso

2043
oficial do termo, o Japão introduziu e adotou o multiculturalismo como a espinha dorsal
ideológica da política pública japonesa, da diversidade e das trocas interculturais. Porém, a
introdução do multiculturalismo no Japão não tem sido tranquila e "pode ser vista mais como
algo imposto ao invés de algo que ocorreu através de um processo de discussão e adoção.
Como resultado disso, as políticas de multiculturalismo toma uma forma diferente do que em
outras partes do mundo" (GRABURN, 2008, p. 23).

A pesquisa conduzida por Hiroshi Komai mostra que há três locais críticos que desafiam o
Japão a enfrentar o multiculturalismo: as grandes companhias industriais, as universidades e
as igrejas, mais especificamente a Igreja Católica. Para outro pesquisador "aqui também surge
um desafio crucial surge: estas comunidades conseguirão incorporar tal diversidade ou ao
invés disso irão ignorá-la ou removê-la?" (LIE, 2001, p. 23-24).

O grande problema parece ser o desconhecimento das bases do multiculturalismo e o risco


deste para a identidade católica da Igreja. O multiculturalismo promovido especialmente na
Europa quando os governos começaram a perceber que os imigrantes não eram apenas
"visitantes temporários" é, no fundo, uma reação às criticas a mentalidade eurocêntrica
culturalmente reducionista predominante no século passado. Anne Phillips define-o "como
uma agenda política desenhada para corrigir o tratamento desigual de grupos culturais e o
'racismo-cultural' no qual os membros de grupos culturais minoritários estão frequentemente
expostos" (PHILLIPS, 2007, p. 3). Porém, o multiculturalismo também apresenta riscos, pois
este "pode levar a um exagero da diferença cultural em contextos nos quais a classificação
cultural não é realmente a questão" (PHILLIPS, 2007, p. 53). Resumidamente, o
multiculturalismo visa preservar as diferenças culturais enquanto a Catolicidade da Igreja
deve visar os elementos comuns da fé.

O multiculturalismo aplicado no contexto eclesial japonês é certamente um avanço se


comparado com o processo de assimilação vivido pelos fiéis coreanos no passado. Porém,
internamente há muitas dificuldades na adoção de uma igreja multicultural como modelo. No
geral, a política pública de imigração temporária gera a ideia de que os fiéis de origem
estrangeira são apenas "visitantes". O resultado é que apesar do desejo de integração o modelo
adotado acaba não respondendo nem a necessidades dos fiéis imigrantes nem dos fiéis
japoneses que sentem a presença destes imigrantes como uma ameaça ao invés de vê-los
como correligionários.

2044
Felizmente, a Igreja Católica tem sido vista sob uma luz positiva no Japão embora tenha
certamente fracassado em se tornar o pretendido modelo multicultural que liderasse toda a
sociedade japonesa.

Considerações finais

O novo contexto de imigração tem trazido novos desafios que mostram a dificuldade dos
vários segmentos da sociedade em lidar com a questão, entre eles a Igreja Católica.
Acreditamos que ao escolher e promover uma Igreja "multicultural", a Igreja no Japão
reproduziu o mesmo cenário que tem afligido a sociedade japonesa, ao invés de tornar-se o
desejado modelo de integração social. Além disso, parece ter havido certo esquecimento da
sua "catolicidade" no sentido mais original.

A recuperação desta identidade "católica" da Igreja abriria espaço para o reconhecimento do


pluralismo interno e para a integração de todos os fiéis independente de suas nacionalidades
com base em elementos próprios de sua identidade religiosa e, portanto, mais facilmente
identificáveis. De igual maneira, reforçaria o caráter "universal" do Cristianismo, que
supostamente já rompeu com as barreiras étnicas há muitos séculos atrás. Para usar as
palavras de Paulo: "aí já não há grego nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou
bárbaro, escravo ou livre" (Cl 3, 11).

Certamente, há uma crescente conscientização da identidade católica o que se revela na


correção de alguns termos. Atualmente, busca-se falar em "Igreja Católica no Japão"
[日本にある教会] ao invés de uma "Igreja Católica do Japão" [日本の教会] ou de uma "Igreja

Católica dos Japoneses" [日本人の教会]. Os fiéis estrangeiros passaram a ser chamados de

"fiéis de cidadania estrangeira" [外国籍信徒], ao invés de simplesmente "estrangeiros" [外国人]

com a conotação pejorativa que o termo pode carregar. Porém, o desafio continua em
diferentes paróquias já que as mudanças em um nível racional não são imediatamente
assimiladas no nível prático.

Finalmente, o contexto apresentado nos coloca diante do desafio das várias religiões e suas
diferentes expressões que são confrontadas e renegociadas ao terem que dividir o mesmo
espaço. Quando vivida em contextos e lugares diferentes, a diversidade gerada por uma

2045
mesma religião é vista em seu aspecto positivo, como aponta Lindbeck: "uma e mesma
religião praticada em Constantinopla e nas catacumbas, as afirmações feitas e os sentimentos
vividos podem ser fantasticamente diferentes" (Cf. LINDBECK, 1984, p. 84). Contudo, no
novo contexto de imigração esta diversidade se revela bastante problemática e até mesmo
conflituosa. Esta situação tem se verificado com o Islã na Europa, com o Judaísmo nos
Estados Unidos e como demonstrado também está se processando em muitas paróquias
católicas no Japão atualmente, gerando atitudes de resistência e de (in)tolerâncias que
precisam ser melhor entendidas.

Referências

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Asian Antropologies. Volume 6. New York: Berghahn Books, 2008.

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Japan. In. Tsuda, Takeyuki. Local citizenship in recent countries of immigration. Lanham:
Lexigton Books, 2006, p. 153-170.

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2047
2048
Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da
tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng
Matheus Oliva da Costa1

Introdução: encontrando o caminho

O presente trabalho é o começo de uma pesquisa de amplitude maior sobre a transplantação


de uma linhagem taoísta no Brasil, institucionalizada como Sociedade Taoísta do Brasil.
Pesquisas sobre taoísmo no Brasil são escassas, e pesquisas que estudaram pessoas taoístas,
que estudaram a tradição viva, são ainda mais raras. Temos apenas o caso de José Bizerril
(2007), antropólogo pioneiro no estudo empírico sobre a tradição taoísmo em nosso país,
especificamente a linhagem do mestre Liu Pai Lin. Por essa razão, trata-se aqui de um
trabalho acadêmico inédito já que vamos abordar outra tradição taoísta, diferente do grupo
etnografado por Bizerril (2007), e com um recorte distinto deste autor, que deu ênfase a
dimensão da corporalidade taoísta.

Em uma direção diferente do grupo estudado por Bizerril (2007), há no Brasil a linhagem
taoísta do mestre e sacerdote Wu Jyh Cherng (1958-2004), fundador da Sociedade Taoísta do
Brasil em 1990. Observando o site dessa instituição e em obras deste mestre descobrimos que,
o mestre Cherng da Sociedade Taoísta do Brasil (STB) havia dado uma importância
significativa a traduções de textos sagrados taoístas e a materiais escritos em português sobre
taoísmo.

Assim, como um primeiro passo em nossa pesquisa sobre a STB, vamos analisar um dos
primeiros textos publicados por Cherng: a tradução do daodejing (Tao Te Ching). Faremos
isso não como uma exegese, até por que essa função é uma demanda interna da tradição.
Vamos ler os contornos dessa obra taoísta numa perspectiva interpretativa, objetivando
encontrar pistas sobre os modos de divulgação do taoísmo em seu processo de transplantação
ao Brasil – nosso objeto de estudo – e tecer alguns apontamentos sobre a temática. Trata-se de
uma leitura sociocultural da divulgação da tradição taoísta no Brasil, e por isso, buscamos
responder: quais foram os recursos usados por Cherng para divulgação do taoísmo? Quais
meios ele utilizou? Qual o objetivo da sua retórica? Por que ele teria traduzido essa obra?

1
Graduado em Ciências da Religião pela Unimontes. Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP.
Pesquisador bolsista do CNPq. Orientador: Frank Usarski. Contato: matheusskt@hotmail.com.

2049
Observando o caminho – contextualizando a pesquisa e a tradição

Isabelle Robinet (1997) em Taoism: Growth a religion estudou a tradição taoísta por fontes
empíricas e documentais. Sob esta perspectiva, ela buscou a historia e a definição do taoísmo,
e em sua proposta ela nos atinou para uma importante pista que inspirou essa comunicação:
“Um caminho para definir os seus limites é por meio do Canon Taoísta (Daozang)”2
(ROBINET, 1997, p. 2). A autora alerta que os textos sagrados taoistas são somente uma
parte dessa tradição. Entretanto, ela mostra em seu livro como o canon taoísta expressa de
forma significativa, ao mesmo tempo, a rica complexidade cultural dessa tradição e também
como o taoísmo é um todo coerente, um sistema.

Na esteira de Robinet (1997), escolhemos trilhar nossa pesquisa inicialmente pela


interpretação sociocultural do Canon Taoísta em português presente no Brasil. O motivo dessa
escolha é pautado também por uma observação empírica do grupo com quem fazemos nossa
pesquisa: a linhagem trazida de Taiwan pelo mestre Wu Jyh Cherng ao Brasil, ligada a
tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa Unitária) e institucionalizada como Sociedade Taoísta do
Brasil em 1990, foi o primeiro grupo a investir na publicação de diversos textos taoístas.
Dessa forma, assim como Robinet (1997), temos o Canon Taoista como um primeiro critério
para delimitar nosso objeto de pesquisa. Mas neste paper a análise interpretativa desse Canon
também será uma ferramenta para nos ajudar a compreender o processo de acomodação do
universo taoísta da Sociedade Taoísta do Brasil.

O pioneiro na pesquisa do taoísmo como tradição viva no Brasil, José Bizerril (2007, p. 187),
chama a atenção também para a forma como essa tradição é transmitida ao público brasileiro:
“para compreender como práticas baseadas em conceitos tão estranhos [...] às formas
hegemônicas de cultura brasileira, é preciso prestar atenção à maneira como é feito o
aprendizado”. Ou seja, dentro do processo de transplantação ou transnacionalização, como as
pessoas que difundiram a tradição o fizeram? Antes de responder a indagação, esclarecemos
aqui o que entendemos com o termo transplantação: em poucas palavras, trata-se de um
processo de difusão e divulgação de uma tradição a um local geograficamente distinto.

2
Na versão traduzida para o inglês: “One way to define its boundaries is by means of the Taoist Canon
(Daozang)” (ROBINET, 1997, p.2).

2050
O mestre Cherng tem uma lista relativamente extensa de publicações sobre teorias e artes
taoizantes. Ainda vivo publicou três livros de sua autoria, Tai Chi Chuan – Alquimia do
movimento (1989), I Ching – A Alquimia dos Números (1993. Ambos pela editora Objetiva) e
Iniciação ao Taoismo (2000, pela editora Mauad, que posteriormente editou também os dois
primeiros). Também traduziu diretamente do mandarim (chinês) uma das mais importantes e
mais conhecidas obras do taoísmo: o daodejing (grafado como Tao Te Ching, em 1998 pela
editora Mauad), além de outras publicações escritas (jornal Tao do Taoismo ou entrevistas,
por exemplo). Houveram também cinco livros publicados após seu falecimento em 2004,
compilados e editados por discípulos e discípulas3. No momento, nos interessa especialmente
a versão comentada pelo mestre Cherng do daodejing, publicada em 2011 também pela
Mauad. Na apresentação dessa versão, sua discípula Marcia Coelho de Souza (Em: CHERNG,
2011, p. 15) comenta:

Na juventude, quando abraçou o Caminho Espiritual Taoista, Wu Jyh Cherng fez um Voto
de difundir o Taoismo no Brasil. Para iniciar sua trajetória se vida devocional aplicada à
doação do conhecimento que se preparava para fazer ao mundo, escolheu, por orientação
dos seus mestres chineses que viviam em Taiwan, o Dáo Dè Jing, o Livro do Caminho e da
Virtude, como o texto base de divulgação daqueles ensinamentos.

Podemos perguntar: a citação acima já não deixa explicito que havia um projeto de
divulgação do taoísmo no Brasil? Há pouco tempo tentamos mostrar4 como a situação
econômica internacional é propicia a esse intercâmbio cultural entre o Brasil, a República
Popular da China (China comunista) e a República da China (Taiwan), devido a aproximações
econômicas e políticas entre estes países nas ultimas décadas. Mas pensar sobre como se dá
esse projeto de divulgação dentro de todo este quadro sociocultural cria ainda mais
indagações. Como um exemplo empírico de uma ferramenta usada para a divulgação da
tradição, vamos agora interpretar a tradução do daodejing feita por Cherng (1998).

Trilhando o caminho – tradução como divulgação e ensinamentos da tradição

3
Estes títulos podem ser vistos em uma pagina no site da STB: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-
taoista/livros-e-publicacoes/.
4
Ao dia 7/06/2013 apresentamos uma comunicação intitulada Taoísmo no Brasil: presença e modalidades de
sua transplantação no século XX no II Encontro de Pesquisa em História da UFMG - EPHIS, realizado entre os
dias 04 e 07 de junho de 2013 UFMG (Belo Horizonte-MG). Os anais do evento ainda não estão disponíveis.

2051
O daodejing, ou Tao Te Ching como é normalmente grafado no Brasil, já é conhecido pelos
leitores brasileiros a um bom tempo. Um dos seus primeiros tradutores, Humberto Rohden
(2003, p. 12), afirma que “essa obra imortal recebeu várias traduções” no Brasil, tendo início
já nos anos 1970. Seus primeiros tradutores foram: um monge budista (!), tradutores
anônimos de grupos macrobióticos, e o próprio Rohden, que traduziu acrescentando
comentários filosóficos e ilustrações. Existiram outras traduções, algumas bilíngues na década
de 1980, e várias que traduziam somente trechos. Rohden ainda afirma que “todas estas
edições [...] se encontram à disposição dos leitores nas livrarias brasileiras” (ROHDEN, 2003,
p.13), fato que pode ser facilmente comprovado em uma busca na internet.

Interessante perceber que foi exatamente nos anos de 1970 que dois mestres taoístas chineses
chegaram ao Brasil: Liu Pai Lin que veio visitar uma filha em 1975 e acabou morando em
São Paulo (BIZERRIL, 2007). Wu Jyh Cherng nasceu em Taiwan em 1958, e em 1973
mudou-se com seus pais para o Brasil, onde foi viver no Rio de Janeiro. É filho do também
mestre de taijiquan Wu Chao Hsiang, este último vindo da China continental mudou-se para
Taiwan na metade do século XX. Posteriormente, em 1987 Cherng tornou-se sacerdote
Taoísta em Taiwan, voltando ao Brasil logo em seguida, onde fundou a organização
denominada Sociedade Taoísta do Brasil ligada à tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa
Unitária). Assim, se já existiam traduções do daodejing no Brasil antes mesmo da chegada de
Cherng, porque ele desejou realizar esta tradução? Vamos ao próprio Cherng para descobrir.

Na sua versão do daodejing, Cherng (1998) já na contracapa afirma que se trata de uma
tradução “diretamente do chinês para o português”. Esta qualidade parece ser um motivo
especial para que este autor não só a use como recuso de marketing, mas também como
autopromoção da própria tradição, pois acredita que assim “resgata a tradição taoísta e oferece
a decifração necessária de conceitos fundamentais, respeitando a estrutura original do texto
em chinês clássico em detrimento de frases mais convencionais em língua portuguesa”.
Notem que a expressão resgata a tradição parece, justamente, querer contrapor a outras
traduções que, talvez, não fizeram jus à tradição tal como deveria ter sido.

2052
No que concerne à capa (imagem à esquerda5) temos considerações que valem para todo o
texto: 1) o “chinês clássico”, como disse Cherng, usa de ideogramas, e não letras. Dessa
forma, o tradutor escolheu o sistema chamado de Wade-Giles para transcrição fonética.
Acreditamos que possivelmente isso ocorreu por Cherng e sua família serem de Taiwan.
Neste país o sistema pinyin de transliteração criado da China continental ainda não era muito
usado, pelo menos até a época desta tradução. O próprio nome “Cherng” é uma forma de
grafia “livre”, em pinyin seria Chéng;

Além disso, 2) tanto o uso do sistema Wade-Giles, que fez o título道德经 (chinês

simplificado) ser transliterado como “Tao Te Ching”, como a tradução “O Livro do Caminho
e da Virtude” não se difere de outras tentativas de tradução presentes no Brasil, com exceção
de traduções um tanto distantes do sentido original. Por outro lado, como veremos, existem
características singulares a esta edição do daodejing. Ainda sobre a capa, acreditamos que o
uso de ideogramas já na capa é também uma forma de legitimação, no sentido de mostrar um
elemento tradicional chinês para o(a) leitor(a).

Na dedicatória do livro observamos um agradecimento ao seu mestre “Maa Ho Yang”.


Novamente, aparece um elemento legitimador: a menção a um mestre espiritual. Sem duvidar
da sua sinceridade, acrescentamos também que uma possível motivação para a existência
desse agradecimento ao mestre é deixar claro ao leitor ou leitora que essa tradução (assim
como outros títulos publicados por Cherng) faz parte de uma linhagem espiritual, de uma
tradição. Nesse momento nos vem imediatamente à mente a noção de religião alicerçada pela
socióloga Danièle Hervieu-Léger (2008). Essa autora diz
que a religião busca sua “legitimidade na invocação à
autoridade de uma tradição. [...]” e assim, “a crença se
designa como ‘religiosa’ quando o crente coloca diante de si
a lógica de desenvolvimento que hoje o leva a crer naquilo
que crê” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.26).

Seguindo essa lógica Hervieu-Léger (2008, p.27) afirma que


“a linhagem dos que creem funciona como referência
legitimadora de crença. Ela é, igualmente, um princípio de
identificação social”. A religião é uma forma de

5
Imagem retirada no site: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-taoista/livros-e-publicacoes/.

2053
pertencimento a um grupo, e é uma forma de tradição, e a tradição, por sua vez é uma
memória autorizada. Conectando esta perspectiva teórica com a tradução que estamos
estudando, após a dedicatória ao mestre aparece nos agradecimentos a brasileiros que
revisaram o texto. Se a tradição segue uma linhagem, além de raízes, existem também seus
ramos, a continuação da linhagem. Então já na dedicatória e agradecimentos encontramos o
registro da linhagem transplantada ao Brasil por Wu Jyh Cherng com suas transformações e
inovações do taoísmo longe da sua terra natal.

Observamos após os agradecimentos a imagem de Laozi, o personagem que historicamente é


atribuída a autoria do daodejing. Repetindo a lógica presente na capa, há ideogramas
chineses, um desenho tradicional que lembra a lenda de Laozi saindo do Reino do Meio
(China) montado em um búfalo, e a transliteração está em Wade-Giles: Lao Tse. Temos
novamente a expressão iconográfica da tradição, sendo também um atrativo ao leitor tanto
como elemento étnico como elemento artístico. Interessante notar que os ideogramas da

imagem (老君) não são os ideogramas exatos de Laozi (老子), não sabemos o motivo, mas

especulamos que possivelmente seja um título religioso.

A partir de agora, pontuamos algumas questões relevantes à divulgação e construção da


identidade taoísta presentes na Introdução. Para tanto invocamos Peter Burke (2003), com seu
debate sobre as múltiplas possibilidades presentes nas trocas culturais numa perspectiva da
historia cultural. Em sua obra intitulada Hibridismo cultural este historiador da cultura
apresenta diversas formas de objetos, terminologias, situações, reações e resultados das trocas
culturais. Servimo-nos aqui de alguns dos seus conceitos e reflexões para lançar luz a nossa
leitura da tradução do daodejing do mestre Cherng.

Na primeira pagina da introdução, Cherng (1998, p.9, grifo nosso) usa um termo no mínimo
curioso para descrever a profundidade o daodejing: “a profundidade é o próprio caminho do
mistério, a experiência do sagrado que corresponde à vivencia espiritual”. Acreditamos que
qualquer cientista da religião que acompanha os últimos debates dessa área deve-se perguntar
o porquê do uso dos termos experiência e sagrado. Como esclarecimento para o leitor e
leitora: em uma das principais palestras do XII Simpósio Nacional da ABHR em Juiz de Fora
- MG, com o cientista da religião canadense Steven Engler, este teórico fez duras criticas ao
conceito de experiência nos estudos das religiões, inclusive convidando os ouvintes a não usa-
lo. Interessante é que experiência religiosa era justamente o tema desde evento; Sobre o termo

2054
sagrado, Frank Usarski (2006, p.32) em seu livro Constituintes da Ciência da Religião
também tece criticas ao que ele afirmou ser “o uso inflacionário ou mesmo aleatório da
palavra sagrado” para designar algo que “tem (mais ou menos) a ver com religião”.

Essas são críticas acadêmicas, mas, de certa forma, também são registros históricos do uso
desses termos para se falar em religião no Brasil. Curiosamente, o “uso inflacionário” do
termo sagrado foi confirmado no trecho mostrado acima. Mas aplicado ao nosso objeto de
estudo, o mestre Cherng usou de termos próprios dos meios cristãos (e, por que não, dos
meios esotéricos) para se referir à religiosidade taoísta. Para quem vive no Brasil ou em outro
país de maioria cristã, certamente os termos santo, santíssimo, sacro ou sagrado já foi ouvido
alguma vez, todos em um mesmo parentesco semântico. Sendo assim, podemos dizer que
Cherng realizou um processo de acomodação religiosa, ou seja, há uma utilização de termos
nativos para abordar uma mensagem estrangeira (BURKE, 2003, p. 46). Nesse processo tanto
o emissor como o receptor da mensagem são influenciados, de forma que a mudança cultural
acontece “por acréscimo e não por substituição” (BURKE, 2003, p. 47).

O processo de acomodação que com certeza está acontecendo em outros locais de expansão
taoísta, é talvez inédito para o taoísmo. Segundo Robinet (1997) a tradição taoísta se
desenvolveu tomando de empréstimo elementos de outras tradições, como o budismo,
adaptando-os aos próprios eixos e conectando-os em seu sistema de sentido. Mas o que
estamos observando aqui é exatamente o movimento contrário: não se trata de adaptar
elementos estrangeiros ao próprio sistema dentro da cultura de origem, trata-se sim da
mudança de discurso para que o outro possa compreender em seus próprios termos o meu
sistema cultural religioso.

O próximo ponto a ser destacado usa de uma retórica relativamente famosa do taoísmo.
Cherng (1998, p.9, grifado no original) escreveu que “a leitura do Tao Te Ching implica um
desafio: esvaziar-se e ser natural como a água que flui no vale”. Logo após usar termos
próprios do ambiente brasileiro e cristão (experiência religiosa), Cherng retorna aos recursos
retóricos taoistas e convida o leitor a vivenciar uma leitura sem julgamentos prévios. Isso,
obviamente, também está fazendo menção à carga cultural que o leitor traz consigo e que
poderia talvez bloquear a leitura dessa obra. Poderíamos arriscar aqui que se trata de esforço
por proselitismo taoísta? Talvez sim.

2055
Mas voltemos à questão do “esvaziar-se”. Na passagem de página Cherng (1998, p. 9-10)
chega a afirmar que se o texto não parecer claro por quem o lê, deve ser pelo fato de que a
sociedade atual excessivamente pensante dificulta a “ampliação da consciência”. Na mesma
página escreve: “Nesse contexto, a contemplação já é em si um ato transgressor”. Seria isso
um convite a cultura taoizante? Afinal, transgredir uma sociedade dominada pelo excesso de
racionalidade parece ter uma conotação positiva, e como ele mesmo disse, o taoísmo possui
ferramentas para isso (a contemplação, por exemplo).

Novamente Cherng afirma as vantagens de uma tradução direta do chinês, com um texto
idêntico ao da contracapa. E continua afirmando que o daodejing é uma “escritura sagrada”
que revela mistérios, expressando “uma tradição que íntegra filosofia, ciência e religião à
experiência” (CHERNG, 1998, p.10 e 11). Essa última sentença reafirma o que Robinet
(1997) havia dito sobre o Canon Taoísta enquanto expressão da riqueza e integralidade da
tradição taoísta. Cherng (1998, p.11, grifo no original) segue explicando a etimologia do
termo taoismo (daojiao ou tao diao): literalmente significa ensinamento (jiao) sobre a origem
(dao), e “por isso, o Caminho da Imortalidade, objetivo dos taoístas, é denominado Via do
Retorno”.

Em continuação, este mestre alega que a escola taoísta segue três obras, sendo o daodejing
uma delas e a estrutura central dessa tradição. A seguir aborda uma pouco da historia de Laozi
segundo a tradição taoizante. Deste trecho, que pouco se difere da lenda de Laozi encontrada
em outras fontes, a não ser por datas mais antigas e riqueza de detalhes, chamamos a atenção
para um termo usado por Cherng (1998, p.12) durante a história, que chegou a merecer uma
nota explicativa: “transparência sublime”. A nota dois (2) afirma que este termo (em chinês:
Tai Chin) é um “conceito teológico de Absoluto taoísta” juntos com Yü Chin e Sao Chin. Até
onde sabemos a ideia de uma teologia taoísta ainda não é algo desconhecido por
brasileiros(as). Vemos aqui outra forma de proselitismo: através de termos esotéricos que
eventualmente chamam a atenção do leitor curioso – mesmo que ele seja um pesquisador.
Mas, também, ao mesmo tempo, evocam-se termos da tradição autorizada (HERVIEU-
LÉGER, 2008), sendo um elemento singular dessa tradução.

Na tradução dos versos do daodejing propriamente dito pode ser vista essa estruturação de
notas explicativas de termos herméticos, variando entre explicações teológicas, intertextuais
(com o Yi jing) e ainda explicações etimológicas. São no total 44 notas explicativas, sendo
que 27 dos 81 poemas dessa tradução do daodejing contêm notas. Nessa tradução, ao invés de

2056
explicações filosóficas presente em outras traduções brasileiras optou-se apenas por notas
explicativas. Sendo um empreendimento inicial da transplantação da tradição taoista dessa
linhagem ao Brasil, percebemos novamente o uso da acomodação (BURKE, 2003) como
modelo retórico, menos pelos termos, e mais pela forma sutil de proselitismo. Essa forma
sutil, acreditamos, será a forma predominante de divulgação dessa tradição, a menos que
mude a linha de raciocínio do daojiao.

Ao final do livro pode-se encontrar um convite: “Se você estiver interessado em conhecer
mais sobre taoísmo ou conhecimentos afins, entre em contato com a Sociedade Taoísta do
Brasil” seguido de endereço no Rio de Janeiro e telefone (CHERNG, 1998, p. 141). Se por
um lado, o convite explícito para visitar a STB parece ser mais direto, os termos
“conhecimentos afins” e “se você estiver interessado” reafirmam o caráter sutil do
proselitismo taoísta frente o público brasileiro. Também observamos mais uma vez a
autoqualificação de tradição autorizada, já que a STB se apresenta como fonte de
ensinamentos taoístas ao leitor(a). Depois, ainda temos a indicação de obras do mesmo autor
publicadas pela editora, novamente fazendo propaganda aos livros do mestre Cherng.

Conclusão: revisitando o caminho

Buscamos tecer alguns apontamentos sobre os modos de divulgação do taoísmo dentro do


contexto de sua transplantação ao Brasil pelo mestre Wu Jyh Cherng. De maneira geral
pontuamos duas questões, uma como revisão, outra como meta para próximos trabalhos sobre
este tema no Brasil. Primeiramente, pudemos perceber que mesmo nos contornos de um texto
sagrado traduzido – capa, contracapa, dedicatória, agradecimentos, iconografia, introdução,
convite – uma religião pode encontrar meios de divulgação da tradição. No caso estudado,
observamos uma primeira experiência de proselitismo taoísta pela linhagem do mestre
Cherng, mas sempre de forma sutil, evitando confrontos e convidando constantemente a
entrar na lógica taoizante. Assim afirma-se como tradição autorizada (HERVIEU-LÉGER,
2008) através de um método de acomodação (BURKE, 2003).

Em segundo lugar, gostaríamos de expor nossa consciência dos limites deste ensaio, e já
apontar para outros horizontes: “Textos sagrados são mais importantes para sacerdotes do que
para leigos, mas nem estes, nem aqueles contentam-se com eles. Sua vida religiosa é mais
abrangente do que apenas a doutrina e sua interpretação” (GRESCHAT, 2005, p. 63). Ou seja,

2057
resta-nos agora saber: como o proselitismo contido numa tradução e apresentado neste ensaio
é recebido por adeptos da Sociedade Taoista do Brasil? Quais são os elementos da vida
religiosa taoísta que não são encontrados em suas escrituras sagradas?

Referências

BIZERRIL, José. Retorno à raiz: tradição e experiência de uma linhagem taoísta no Brasil.
São Paulo: Attar, 2007.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

CHERNG, Wu Jyh. Iniciação ao Taoísmo: volume 1. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é a ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005.

HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido – a religião em movimento.


Petrópolis: Vozes, 2008.

LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

__________. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude. Tradução direta do chinês e


comentários Wu Jyh Cherng; coautoria e transcrição, edição e adaptação dos textos Marcia
Coelho de Souza. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.

ROBINET, Isabelle. Taoism: growth of a religion. Stanford: Stanford University Press, 1997.

USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de uma


disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.

2058
2059
GT19 – Pentecostalismos brasileiros: novas
perspectivas

Coordenadores

Gedeon Freire de Alencar Marina Aparecida Oliveira dos Santos


Doutor em Ciências da Religião pela Correa
PUC/SP. Professor no ICEC. Doutora em Ciências da Religião pela
PUC/SP.

Resumo

Em 2010, o fenômeno pentecostal fez cem anos no Brasil. Em 1910, eram apenas 40 pessoas,
atualmente são mais de 25 milhões de brasileiros. Surgiu na região sudeste a partir de uma
igreja étnica e calvinista a Congregação Cristã no Brasil, mas também na região norte com
um grupo miscigenado e arminianista as Assembleias de Deus, ambas fundadas por migrantes
europeus vindos dos EUA, mas sem vínculos institucionais com os pentecostalismos
norteamericanos. Os grupos se fracionaram acompanhando os processos migratórios internos
e externos do país, estando atualmente pulverizados em milhares de grupos diversos e
divergentes numa polissemia religiosa nas mais diferentes configurações. Qual conceito,
taxonomia ou hipótese é capaz de dar conta de tão imensa complexidade? Esse GT pretende
promover o diálogo com pesquisas em desenvolvimento sobre o fenômeno dentro de uma
problematização ampla que evita leituras exclusivistas a partir de um único marco teórico e
hipótese generalizante e se abre para novas etnografias e abordagens. Os pentecostalismos
(sim, no plural), em diálogo com a cultura brasileira, ainda estão se inventando e sendo
reinventados em suas práticas.

2060
A confissão positiva: o movimento de cura no Brasil e suas
fundamentações teológicas
Emmanuel Roberto Leal de Athayde1331

Introdução

Basta ligar a televisão em certas emissoras brasileiras em qualquer horário, para se deparar
com programas diários de pregadores, que professam uma fé cristã de vertente que
convencionou-se por inúmeros pesquisadores classificar de neopentecostal (MARIANO,
2005, p.33), onde proclamam seus ensinamentos através de seus discursos característicos e
específicos, que os diferem de outros grupos cristãos evangélicos.

Sob esse contato diário com esses pregadores midiáticos nasceu o interesse em abordar sobre
uma de suas marcas características, a saber, a ênfase dada à cura divina, no que diz respeito as
manifestações de milagres relacionados aos males físicos, desde uma simples dor de cabeça
até casos complicados, como câncer, paralisias entre outras.

Claro que o discurso desses não se limita apenas a tratar de curas, pois além deste tema, os
pregadores também enfatizam a prosperidade financeira, o que rendeu a alcunha de teologia
da prosperidade, como é mais conhecida popularmente, porém nesse trabalho, buscaremos
focar nas manifestações de curas que esse movimento defende como um fator legitimador de
seu discurso, embora, esses assuntos se entrelacem nas suas pregações.

O trabalho visa contemplar as seguintes questões: a origem, o histórico desse movimento,


destacando alguns dos seus principais expoentes; tratar acerca de sua crença nas curas divinas
através da fundamentação teológica e por fim, refletir sobre possíveis causas da aceitação e
proliferação da crença na doutrina de cura divina no Brasil.

1. A origem do movimento

A Confissão Positiva representa um fenômeno religioso que surge a partir das igrejas
pentecostais em meados da década de 40 nos EUA sob os nomes de Health and Wealth

1331
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Orientado pelo professor Dr. João Décio Passos. Capes –
Prosup. Contato: emmanuel.junior@gmail.com.

2061
Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines, Positive Confession, se constituindo
efetivamente a partir da década de 1970 (MARIANO, 2005, p.151). Diante dessas inúmeras
nomenclaturas, nesse trabalho adotar-se-á o termo Confissão Positiva.

Esse movimento proporcionou algumas rupturas com o pentecostalismo, além do legalismo


muito comum caracterizado pelas vestimentas e certos padrões de contuda que se exige de
seus fieis, gerou mudanças ainda em diversas outras abordagens teológicas.

Estudos realizados por D. R. McConnell,1332 demonstram que Essek William Kenyon, tido
como o “pai” da Confissão Positiva, teve forte influência dos ensinos de Mary Baker Eddy,
fundadora da Ciência Cristã, através de sua obra Ciência e Saúde com a Chave das
Escrituras, assim, pode-se entender a origem da grande ênfase dada por esse movimento as
curas divinas.

Um outro nome que aparece como um dos fundadores é o de Kenneth Hagin que acabou se
tornando o porta-voz do movimento, sendo mais comumente reconhecido como o seu
idealizador. Percebe-se que utilizou-se das ideias e escritos de Kenyon, e de acordo com
Romeiro (2005, p.92) “Hagin plagiou boa parte dos escritos de Kenyon”, declarando em um
dos seus livros, que recebera a “licença” para o plágio da filha de Kenyon, Ruth.

Kenneth Hagin nasceu em 20 de agosto de 1917, no Texas, EUA, com graves problemas
cardíacos. Antes de completar dezesseis anos, a saúde física de Hagin piorou, confinando-o
em sua cama por vários meses. No seu livro A respeito dos dons espirituais ele narra como
obteve a cura para a sua enfermidade:

Quando recebi a cura para meu corpo, ninguém impôs as mãos em mim. [...] Mas como
menino batista no leito da enfermidade, fiquei lendo a Bíblia metodista da minha avó, e fui
curado – não simplesmente porque acreditava necessariamente na cura divina; mas, sim, fui
curado ao pôr em prática Marcos 11.24 firmando-me nisso: ‘[...] tudo quanto em oração
pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco’. Orei, portanto, e comecei a dizer:
‘Creio que recebo a cura para meu coração deformado [...]’. E, então, o poder de Deus para
curar foi manifestado no meu corpo (HAGIN, 2012, p.105).

De origem batista, passou a se afeiçoar aos pentecostais, onde em 1937 teve a sua experiência
com a glossolalia, marca característica das crenças pentecostais que testifica a experiência da

1332
Como se vê em sua obra A different gospel: a historical and biblical analysis of the Modern Faith Moviment,
Massachusetts, EUA. Hendrickson Publishers, 1988.

2062
conversão do fiel. Anos mais tarde, associou-se a diversos pregadores independentes de cura
divina (a chave de seu ministério, embora apregoasse também a libertação da pobreza), como
Oral Roberts, Tommy Lee Osborn, William Branham, entre outros. O ministério de Hagin,
mesmo depois de sua morte em setembro de 2003, continua crescendo e se espelhando ao
redor do mundo.

Além desses nomes, diversos outros surgem como propagadores dos preceitos de Hagin,
como: Marilyn Hickey, Kenneth Copeland, Robert Schüller, Benny Hinn, Joyce Meyers,
Jorge Tadeu, Peter Wagner, entre outros. Esses têm como lema a vitória sobre todo e qualquer
sofrimento, já que o diabo, principal opositor que busca atrapalhar a vida dos crentes,
encontra-se sob as determinações dos fieis, como um inimigo já vencido, e dentro das
principais conquistas adquiridas pelos crentes encontra-se: a cura de todos os males físicos e a
prosperidade financeira.

Através das pregações desses pastores, nos inúmeros Congressos e Conferências promovidos
frequentemente em diversas partes do mundo, além da vasta utilização dos principais meios
de comunicação, rádio e televisão, meios esses que os religiosos se utilizam bastante para
expandir suas crenças, assim, suas mensagens foram se popularizando e ganhando de milhares
de novos adeptos e outras novas frentes, em diversos outros países, como no Brasil por
exemplo, que acabou se tornando um dos principais centros de suas doutrinas.

2. A Confissão Positiva no Brasil

Segundo dados históricos, no país “a primeira concentração de cura divina, (se deu) em
Curitiba em outubro de 1967” (LEITE FILHO, 1994, p. 138), mas a partir da década de 70,
começa a se consolidar no Brasil efetivamente tais manifestações, trazendo consigo uma nova
abordagem sobre a fé cristã. Para se obter prosperidade física, financeira e espiritual, bastava
crer, ter fé, pois os crentes detém poder devido ao sacrifício de Jesus na cruz, e todos aqueles
que creem, basta apenas declarar, com fé, determinar em voz audível no nome de Jesus para
mudar qualquer realidade má em bem, pois, segundo Osborn (2004, p.38): “sua linguagem
passa a ser como a de um super-homem, Você fala como alguém de outra raça ou de outro
reino, como de fato somos – geração eleita, sacerdócio real”, contudo, além desse poder nas
palavras, o adepto deve expressar seu amor a Jesus, primordialmente, sendo fiel ofertante e
dizimista a igreja.

2063
No Brasil, podemos encontrar como os principais expoentes dessa crença: Walter Robert
McAlister, fundador da Igreja Nova Vida no Rio de Janeiro, de onde saíram o Bispo Edir
Macedo: Da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e da Editora Universal Produções e o
Missionário R.R Soares: Da Igreja Internacional da Graça (uma divisão da Igreja Universal do
Reino de Deus) e também da Graça Editorial (a maior publicadora dos livros dos Movimentos
da Fé no Brasil) que publica os livros de Kenneth Hagin, T.L. Osborn e outros. Pode-se
destacar também: Valnice Milhomes que estudou na Escola de Hagin, do Ministério Palavra
da Fé e da Igreja Internacional do Senhor Jesus Cristo; Cássio Colombo: Do Ministério Maná
Cristo Salva ligado as Igrejas Maná de Portugal do Ap. Jorge Tadeu; Gerônimo Onofre da
Silveira: Pastor do Templo dos Anjos, entre outros.

A Confissão Positiva surge através de pessoas que vieram de outras igrejas evangélicas tanto
de tradição histórica (Batistas, Presbiterianas, Metodistas, etc) como também de igrejas
pentecostais (Assembléia de Deus e outras). Além desses nomes citados acima, que fazem
parte do surgimento histórico da Confissão Positiva no Brasil, há outros nomes que se
destacam mais recentemente como: o casal Hernandes, fundadores da Igreja Renascer em
Cristo e o Apóstolo Valdemiro Santiago, dissidente da IURD, fundador da Igreja Mundial do
Poder de Deus (IMPD), além de inúmeras outras igrejas que surgiram e nascem quase que
diariamente no país a partir das crenças da Confissão Positiva.

Não há uma sistematização em seus dogmas, como se encontra na Confissão Reformada por
exemplo, que tem seus catecismos e diversas obras teológicas sistemáticas escritas a respeito,
há obras que falam de suas bases, porém, não na forma de compêndio teológico.

Além das diferentes abordagens dadas pelas igrejas que propagam tal crença, como se percebe
ao comparar a IURD e a IMPD, pois observa-se que ambas trabalham com enfoques
semelhantes em alguns aspectos, como, a utilização de pregações voltadas à cura física e
prosperidade, uma forma de manifestação de poder por parte dos pastores, como também com
aspectos diferentes, por exemplo, no que diz respeito à ênfase à exorcismos e prosperidade,
mais presentes na IURD.

Assim se constituiu e se desenvolve a Confissão Positiva no Brasil, sob a investidas de


diversos personagens, com suas abordagens específicas, ora semelhantes, ora diferentes, sem
haver concenso entre os agentes envolvidos, e em alguns casos, acabam se tornando ferrenhos

2064
opositores, como se observa no relacionamento entre líderes da IURD e IMPD,
especificamente, onde há uma relação tensa entre eles e tem se agravado mais recentemente.

Esses embates estão presentes desde os discursos proferidos nos cultos religiosos, como se
observa no caso da entrevista que o bispo Edir Macedo fizera com uma pessoa supostamente
“possessa com um espírito maligno”, onde revela a sua relação direta com o apóstolo
Valdemiro através de seu trabalho realizado em sua igreja.1333

Em outros programas da IURD aparecem diversos depoimentos de “pessoas possessas”


confirmando a mesma história, como no caso de uma outra pessoa “possessa pelo diabo” que
diz para um dos bispos da igreja que ele havia livrado Valdemiro do naufrágio e usava-o
como seu servo.1334 Além de entrevistas com supostos ex-obreiros que relevam o uso de
drogas, perversões sexuais e outros comportamentos praticados por pastores da IMPD.1335

Em contrapartida o apóstolo Valdemiro Santiago em seu programa de televisão rebate as


críticas, fazendo algumas outras também a IURD e ao bispo Edir Macedo1336, utilizando-se
dos cultos religiosos da IMPD para se defender.1337

3. As principais crenças da Confissão Positiva

A Confissão Positiva tem por bases fundamentais as seguintes doutrinas: o direito a saúde e a
prosperidade financeira a todos os crentes, entre outras crenças. Contudo, como dito antes,
não vou me ater a prosperidade financeira, que é uma marca característica da crença desse
movimento, mas as curas.

Segundo Osborn (1999, p.14): “os cristãos não precisam ficar doentes nunca [...] sempre é da
vontade de Deus curá-los”. Essa é a crença fundamental desse movimento, de que as doenças
não devem fazer parte da vida daqueles que creem em Jesus, pois, segundo a interpretação
dada pelo movimento, remetendo a algumas passagens bíblicas, dos quais comumente é citada

1333
A entrevista encontra-se disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=eHuBrDcjcvc>. Acesso em 06
de jun. 2013.
1334
Tal depoimento encontra-se disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=5st1i-vm6BM&feature=
related>. Acesso em 06 de jun. de 2013.
1335
A entrevista encontra-se no site <http://www.youtube.com/watch?v=GyDJg8ZMjMs&feature=related>.
Acesso em 06 de jun. 2013.
1336
Ver <http://www.youtube.com/watch?v=iB1LWJ35azo>. Acesso em 06 de jun. 2013.
1337
Ver <http://www.youtube.com/watch?v=kLexHrGQ5Zo&feature=related>. Acesso em 06 jun. 2013.

2065
a profecia de Isaías (53.4).1338 A partir desse texto que remete a vinda do Messias, na
perspectiva cristã na grande maioria das confissões, segundo a Confissão Positiva, todo
aquele que crer em Jesus, tem a garantia de não sofrer mal físico, e caso não obtenha a cura, o
problema jaz na fé do indivíduo que é débil, que ainda é dependente da fé de outras pessoas
para obter vitórias no âmbito da cura, assim, ou o adepto não tem fé suficiente ou vive em
pecado, algo que atrapalha um relacionamento íntimo com Deus.

A obsessão em relação à fé, como veículo para obtenção dos milagres, é tão grande, que,
quando o cristão orar para pedir algo a Deus deve-se tomar cuidado com suas palavras, pois
não basta simplesmente orar pedindo a cura, mas antes, não se pode orar, dando a entender
que a cura depende da vontade de Deus, dizendo: “Se o Senhor quiser, me cure”, conforme
afirma Hagin (1987, p.78), pois nestas orações: “não se pode colocar o ‘se’ no meio e ainda
esperar se obter uma resposta. Neste tipo de oração, o ‘se’ indica descrença – ‘se’ é distintivo
de dúvida”, algo que é inadimissível, sendo assim, a dúvida, é a causa dessa falta de fé tão
combatida no movimento. Na verdade, os adeptos são orientados a orarem não para pedir,
mas determinar aquilo que eles têm direito por serem filhos do Altíssimo.

No que diz respeito à crença em Jesus, ela chega a ultrapassar a pessoa do próprio messias,
pois crêem que os crentes é que têm autoridade para obterem agora as benesses da sua fé ao
vencerem seu opositor, fruto da autoridade que eles gozam, refletindo na operação dos
milagres. Utilizam alguns versículos, como Efésios 1.20 “fazendo-o sentar à sua direita em
lugares celestiais”1339 para explicarem que, uma vez que Cristo está sentado, seus atos estão
limitados, cabendo aos crentes pelejarem contra o diabo em busca de suas vitórias, derrotando
suas obras na terra, o que Jesus não pode fazer, segundo afirma Hagin (2002, p.25):

O ato de Cristo estar sentado implica em que, por enquanto, certos aspectos de sua obra
estão suspensos. Toda a autoridade que foi dada a Cristo pertence a nós, por meio dEle, e
podemos exercitá-la. Nós o ajudamos realizando a sua obra na face da terra. E um aspecto
de sua obra que a Palavra de Deus nos fala que façamos é derrotar o diabo! De fato, Cristo
não pode fazer sua obra na terra sem nós! (HAGIN, 2002, p. 25).

Por causa de sua condição atual, de encontrar-se sentado, Jesus carece da ajuda das pessoas
para realizar suas obras. Utilizando o texto de Efésios 4.15-16, onde o apóstolo Paulo afirma

1338
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
1339
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

2066
que Cristo é a cabeça e os cristãos o corpo da Igreja, tal pregador alega que a cabeça não
realiza ações, ou “possui qualquer autoridade, seja onde for, a não ser através de seu corpo”
(HAGIN, 2002, p.40), e continua Hagin (2002, p.41) no seu pensamento, “você não ora para
que Jesus imponha as mãos sobre o enfermo; você o faz. Observe também, que as mãos não
estão localizadas na Cabeça; as mãos estão no corpo”. Jesus então, depende necessariamente
dos fieis para atuar na terra, algo contrário a Confissão reformada, por exemplo, que diz ser
Jesus soberano, onde necessariamente é a criação que depende Dele, e não o contrário.

Para Kenneth Hagin (1992), a raiz das doenças que sobrevém a todos os seres humanos é de
origem satânica:

Deus não é o autor da doença. Os homens só ficaram doentes depois que deram ouvidos ao
Diabo. [...] A doença e a enfermidade são do Diabo. Deixe que a verdade desta afirmação
entre profundamente em seu espírito. Então siga os passos de Jesus e trate com a doença da
forma que Jesus tratou. Trate a doença e a enfermidade como um inimigo, e nunca as tolere
em sua vida (HAGIN, 1992, p. 225).

Chegando a afirmar ainda:

Não é da vontade de Deus que fiquemos doentes. Nos dias do Antigo Testamento, não era
da vontade de Deus que os filhos de Israel ficassem doentes, e eles eram servos de Deus.
Hoje, somos filhos de Deus. Se sua vontade era que nem sequer seus servos ficassem
doentes, não pode ser sua vontade que seus filhos fiquem doentes! As doenças e as
enfermidades não provêm do amor. Deus é amor (HAGIN, 1990, p.19).

E para justificar seu discurso, utiliza-se de versos da Bíblia, como: João 10.10 que diz: “o
ladrão (Satanás) vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a
tenham em abundância”.1340 Assim, para a Confissão Positiva, todos os males da vida são
oriundos de espíritos malígnos, que devem ser expulsos, para que o indivíduo tenha a vida
perfeita, ou seja, o céu, não simplesmente num sentido transcendente, mas a partir da vida
aqui na terra. Logo, o autor conclui que, as doenças são enviadas pelos demônios e não por
Deus, pois Ele não quer ver ninguém doente, mas com vida abundante.

Os pregadores da Confissão Positiva fazem distinção da palavra grega “oração”, pois dizem
que em alguns momentos na Bíblia, ela significaria “pedir”, mas em outros, seu significado
seria “exigir”, como apresenta Hagin (2013):

1340
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

2067
Pedro na Porta Formosa não orou pelo aleijado, ele ordenou que este fosse curado (Atos
3.6). Você não está exigindo de Deus quando cobra seus direitos está fazendo-o ao diabo.
Jesus fez esta afirmação em João 14: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei [...]
Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei” (versos 13 e 14). Aqui ele não está
se referindo à oração. A palavra grega aqui é “exigência” e não “pedido”. [...] De fato o
texto grego diz: “Tudo o que você exigir como seus direitos e privilégios...”. Você precisa
saber quais são os seus direitos (HAGIN, 2013, , pp.30-31).

Desta forma, os crentes não precisam pedir para serem curados, pois não são “pedintes”,
como afirma Osborn (1999, p.35), mas podem dizer que, como isto foi uma promessa de
Deus, seria ignorância não reclamá-la para si, com confiança, exigindo o que é seu, por
direito. Hagin (2002, p.30) afirma que ele havia descoberto o modo eficaz de orar: quando
requer seus direitos, exigindo-os.

A Confissão Positiva chega a ser contra seus adeptos tomarem remédio para se tratarem,
como afirma Hagin (1990):

Fico perplexo quando as pessoas tomam remédios e fazem tudo quanto é possível para
sararem, mas se sugerimos que peçam que alguém ore pela sua cura, dizem: “Talvez não
seja da vontade de Deus curar-me”. Por que não levantaram a questão da vontade de Deus
logo de início? Se não for da vontade de Deus que sarem, não devem tomar remédios nm
receber tratamentos. A tentativa de sarar seria contra a vontade de Deus! (HAGIN, 1990,
p.23)

Essa portanto é a crença da Confissão Positiva em relação as doenças, por isso entende-se a
ênfase que é dada aos milagres por seus pregadores, como uma forma de salientar a situação
da pessoa em relação a sua fé, por isso, quando uma pessoa crente encontra-se enferma é visto
como algo inaceitável, por ser fruto de uma obra satânica. Porém, isso pode acontecer devido
a algum pecado, pois assim, o crente daria “legalidade” para que o diabo se aproveite e atue
em sua vida. Portanto, pelo fato do crente se encontrar livre do poder do pecado,
consequentemente do diabo, deve reivindicar todas as promessas de Deus para a vida, das
quais destaca-se uma vida livre completamente das doenças.

2068
4. A obtenção da cura

Os pregadores estabelecem algumas premissas básicas para receber a cura divina, vale notar
que o milagre da cura, primordialmente, parte daqueles que possuem um dom específico
recebido por Deus, “ungidos” por Ele, para efetuarem tais manifestações.

A pessoa ao se converter a fé, se torna um bebê na fé e Deus, então, permite que outras
pessoas orem por eles e os carreguem na fé, sendo assim sempre curados. Hagin (2002)
explica como ocorre o crescimento na fé do fiel:

Deus espera que esse nenê cresça, ande e comece a fazer as coisas por si mesmo [...] Há um
grande número de pessoas que ainda querem continuar como bebês e pedem a uma outra
pessoa que ore por elas o tempo todo. Queremos ajudar os que necessitam, mas precisamos
ensinar às pessoas que elas podem crescer e exercer sua autoridade, porque o tempo virá
quando terão que usa de sua própria autoridade, se quiserem ter suas orações respondidas
(HAGIN, 2002, p. 43).

Caso não se torne maduro na fé, o cristão não conseguirá receber a cura, pois a maturidade
virá quando o cristão conhecer, ou melhor, “tomar posse”, termo comumente usado pelos
adeptos, da promessa de Deus em curar a todos, estando firmemente convencido de que esta
promessa foi feita para cada um dos crentes de forma pessoal, como se observa no comentário
de T.L. Osborn (1999):

As promessas que você lê na Bíblia são Deus falando pessoalmente com você. Elas são tão
suas quanto um cheque preenchido em seu nome. Você pode descontar esse cheque no
banco porque é seu, e você pode exigir, na oração, o cumprimento daquelas promessas
porque são suas, do mesmo modo (OSBORN, 1999, P. 11).

Para fundamentar biblicamente essa crença, se utilizam, para tal argumento, algumas
passagens bíblicas, como Êxodo 15.26: “Eu sou o Senhor que te cura”; 1ª Pedro 2.24: “Por
suas chagas vós fostes sarados”,1341 entre outras.

Além disso, os pregadores explicam que as doenças não vem senão do diabo e que são
espíritos malignos, como visto acima. Assim as doenças não fazem parte da vontade de Deus,
uma vez que Ele quer que os cristãos sintam-se sempre bem. Osborn (1999), revela que

1341
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

2069
Enquanto você pensar que Deus possa ter um propósito na sua moléstia, você não a
resistirá. Mas quando você entender que as Escrituras ensinam de modo tão claro que a
enfermidade é de Satanás, você então a resistirá, a repreenderá, a recusará ela será
destruída mediante as suas orações. Os médicos podm chamar de artrite ou de reumatismo a
moléstia que tira a mobilidade das juntas, mas a causa real é um espírito encarcerador do
diabo (OSBORN, 1999, p.20).

Satanás coloca nas pessoas os seus “espíritos de enfermidades” (OSBORN, 1999, p. 20) e os
cristãos, por possuírem toda a autoridade de Cristo sobre a terra, tem o direito de repreender
as doenças, para que elas sumam. E a pessoa, imediatamente, pode se sentir curada, mesmo
que os sintomas ainda demorem para desaparecer, como se vê no comentário de Osborn
(1999, p.21), “Talvez os sintomas [...] não desapareçam imediatamente, mas se orarmos com
fé e repreendermos a doença, sabemos que a moléstia foi destruída pela raiz e que os sintomas
tem que desaparecer”.

Assim, o cristão precisa determinar em oração a cura de suas doenças e crer, enquanto ora,
que recebeu aquilo que foi pedido. Chamam isto de fé. Em outras palavras, Osborn explica
que, mesmo depois da oração, se os sintomas da enfermidade ainda permanecerem, o cristão
deve ignorá-los e apenas crer na Palavra de Deus, ou seja, “não deve dar atenção ao que vê e
sente, mas atentar unicamente para o que Deus diz na sua Palavra” (OSBORN, 1999, p.39). O
texto bíblico que utilizam para esta premissa encontra-se em Provérbios 4.20-221342.

Depois disso, o cristão deve colocar a sua saúde “em ação”, ou seja, viver como se já
estivesse curado, pois, “a verdadeira fé significa que você está tão convencido de que as
promessas de Deus são cumpridas que você o louva, pelo seu cumprimento, e age de acordo
com elas, mesmo antes de vê-las cumpridas. Isso faz com que Deus aja, cumprindo-as”
(OSBORN, 1999, p.51).

Portanto, percebe-se que T. L. Osborn, diz que quando o cristão põe em prática a sua fé,
apesar de todos os sintomas apresentarem-se contrários, Deus cumpre a sua palavra. Desta
forma, se o indivíduo não é curado, a culpa reside exclusivamente na sua falta de
manifestação da fé, pois Deus já decretou a cura. Assim, quando não há fé, não há cura, pois,
“mesmo que você já tenha sido curado, é muito provável que a doença volte, se você deixar
de aprender o segredo de agir segundo a Palavra de Deus” (OSBORN, 1999, p.61).

1342
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

2070
Por fim, segundo a crença da Confissão Positiva, o fiel deve-se colocar acima das suas
próprias dúvidas e temores, buscando provar a sua fé por suas ações, fazendo coisas que
antes, devido a enfermidade, não conseguia. Dessa forma, Deus cumpre sua promessa e o
cura.

5. Motivos do crescimento da crença na doutrina de cura divina no Brasil

Inicialmente vale destacar o fato do Brasil ser um país com bastante carências sociais, que
aparece na má qualidade nos hospitais no que diz respeito ao atendimento à classe baixa, além
da falta de emprego, e inúmeras outras necessidades assistenciais que carecem o povo
brasileiro. Por isso, o movimento de cura divina acaba sendo visto como algo que gera
“esperança para os desenganados e pobres que não possuem recursos para resolver seus
problemas de saúde: desnutrição, falta de assistência básica sanitária e médica” (LEITE
FILHO, 1994, p. 54). Diante disso, entende-se que o viéis social, as carências de um povo
acaba sendo uma porta de entrada para a Confissão Positiva, pois ao observar os países mais
ricos e até mesmo nas regiões mais nobres do Brasil, percebe-se que há poucas igrejas, como
também a não realização das concentrações de milagres, como acontece nos lugares mais
pobres.

Além disso, percebe-se que sob as forças de mercado, através das tecnologias atuais que
fomentam o consumismo e imediatismo, condicionam esta geração a conseguir o que lhe
interessa através do dinheiro e de forma instantânea, assim, esses conceitos acabaram
influenciando a fé, gerando uma confissão religiosa com características de mercado, que visa
resultados imediatistas de acordo com as suas crenças e numa terra onde há carência de
dignidade, de bom atendimento médico, de empregos, enfim de justas condições de vida, tal
abordagem acerca da fé cristã acaba encontrando aceitação certamente.

Além desse problema social que contribui para o aumento dessa crença doutrinária, há uma
concepção mágico-religiosa do povo brasileiro, fruto do sincretismo religioso do país. Por ser
um povo que abraça o misticismo facilmente graças a pluralidade sincrética de suas crenças,
valoriza as manifestações sobrenaturais, o que é comum nas igrejas que pregam tais doutrinas.

Há ainda a necessidade dos líderes manterem seus status de homens ungidos, usados por
Deus, o que legitima o seu discurso e garante a perpetuação e crescimento de suas igrejas,

2071
pois o pastor detém o poder “mágico” da operação dos sinais de Deus e para que não haja
uma debandada dos fieis, pois grande é a concorrência, o líder dessas igrejas têm que mostrar
o seu valor aos ouvintes, tomar a centralidade nesse processo, como agente fundamental para
o alcance da graça buscada, assim, enquanto Hagin, como vimos antes, enfatizava a
autoridade fiel do crente, nas novas resignificações que vem passando a Confissão Positiva,
prende-se cada vez mais o fiel à igreja local e ao pastor, como o ungido de Deus capaz de
dispensar as bençãos de curas para o povo, pois, com a perda de fieis, cai-se necessariamente
as receitas, o que seria muito prejudicial as igrejas que se utilizam bastante de mídias para
propagarem a sua fé. Com isso, os líderes dessas igrejas midiáticas que professam a Confissão
Positiva, investem pesado em eventos e aberturas de novas igrejas, valendo-se de discursos
manipulatórios, que legitimam suas pregações com as manifestações de milagres, como
resultado de todo o investimento empregado pelo fiel e a exposição de seu status de homem
usado por Deus, pois as curas é uma forma de mostrar que a mão de Deus está com eles.

Assim, devido aa crescimento de concorrentes, pois tais igrejas se veem assim, refiro-me as
de maiores expressão, como a IURD, a IMPD, a Internacional da Graça, principalmente, esses
pastores se aproveitam para manterem sua hegemonia através da televisão, rádio, internet,
sendo cada vez comum a participação desses religiosos nesses ambientes e sempre com uma
palavra, um discurso visando preencher o vazio do homem moderno, que busca
desesperadamente resolver-se interiormente, obtendo aquilo que gera bem estar. E quando
esses sinais não acontecem, eles procedem da forma como comentou o pastor Josué Alves de
Oliveira: “Contudo, esta é a válvula de escape dos charlatães de hoje. Quando se sentem
frustrados nas suas operações inescrupulosas, anunciam: “O milagre não se deu porque o
doente não tinha fé” (OLIVEIRA, 1984, p.121).

Esses portanto, são alguns fatores observados que podem explicar a multiplicação dessas
igrejas que tem no movimento de curas divina seu fundamento principal em suas pregações.

Considerações finais

Considero a observação de Leite Filho pertinente e coerente com a realidade atual no que diz
respeito aos discursos religiosos:

2072
Temos observado em nossos dias que grande variedade de experiências pode ser adquirida
pelo dinheiro (não somente a cura divina): compra-se tranqüilidade de espírito
(tranquilizantes); compra-se a cura de angústia (terapia); compra-se o exótico (turismo);
compra-se experiências místicas (parapsicologia); compra-se a cura de doenças
(neopentecostalismo). Ao cliente pouco importante compreender o que está acontecendo; o
importante é que funciona. A cura divina é mais um produto natural da sociedade
empresarial, capitalista (LEITE FILHO, 1994, p.92).

Por conta desses resultados imediatos, isso diz respeito não apenas a cura, mas também a
prosperidade, prestígio e muitos outros bens, procura-se negociar com o divino através dos
dízimos e ofertas as bênçãos e o que se vê é um “curandeirismo” mercadológico. Para que
isso aconteça utilizam-se de diversas técnicas psicológicas, através da persuasão, do
emocionalismo, sensacionalismo, tudo graças a credulidade de um povo sofrido e carente.

Estamos diante de um fenômeno religioso que surgiu a pouco tempo e ainda requer bastante
reflexão, um movimento que tem ganho novas vertentes e resignificados constantemente,
através dos seus agentes que se proliferam com tamanha rapidez. É um grupo complexo que
envolve técnicas de mercado, discursos com apelos psicológicos, além de apresentar um
poder midiático expressivo. Mas para que tudo isso aconteça, se torna importante, por que não
fundamental, conhecer suas bases teológicas que alicerçam seus discursos capazes de
influenciar a grande massa.

Claro que nessa reflexão não é possível esgotar o assunto, mas tentou-se apresentar algumas
das bases doutrinais de uma das vertentes da Confissão Positiva, que acredito ser um dos
carros chefes de tal crença, o movimento de curas divinas. E diante de uma massa passiva,
que simplesmente acolhe os discursos manipulatórios de um grupo que apelam à fé e da
fragilidade de um povo carente, que são estorquidos financeiramente através de tais artifícios,
cabe perguntar: será que esses princípios pregados por esses religiosos para a obtenção de
curas, onde responsabiliza totalmente o fiel e quando não alcançadas, logo são acusados de
lhes faltar fé, e ainda, a obrigatoriedade de ofertarem altas quantias de dinheiro as igrejas
também lhe são exigidas? Será que os esses e os seus tomam remédios e são tratados em
hospitais de algum mau? São perguntas que nos levariam a uma investigação e acredito que as
respostas decepcionariam muitos fieis.

2073
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SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e


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2074
2075
A estrutura ritualística do culto adventista realizado na
comunidade quilombola Dezidério Felippe de Oliveira em
Dourados/MS
Gabrielly Kashiwaguti Saruwatari1

Introdução

As informações contidas neste trabalho foram obtidas através do método etnográfico, cuja
observação participante se fez fundamental para a compreensão de alguns elementos que
permeiam a vida religiosa do grupo estudado. A pesquisa iniciou-se no ano de 2012, mas foi
no início do ano de 2013 que o trabalho de campo começou efetivamente a ser feito.

Minhas idas à comunidade aconteceram, principalmente, nos dias de sábado, pois o grupo
familiar em que venho desenvolvendo minha pesquisa dentro da comunidade pertence à Igreja
Adventista do Sétimo Dia e, uma das particularidades desta igreja é a guarda do sábado, mais
especificamente do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado.

Procuro mostrar no decorrer do texto como são realizados os cultos da Igreja Adventistas do
Sétimo Dia dentro da comunidade. Além disso, cumpre observar que a realização do culto
tem implicações diretas na organização social e política do grupo familiar que aderiu a esta
religião.

Dentro da comunidade os adventistas são maioria e a coesão deste grupo familiar é


expressiva, pois dentre todos os núcleos familiares que continuam no território original esta, a
família adventista, foi à única que não se fragmentou para outros lugares, como aconteceu
com a maior parte dos membros desta comunidade – devido a precárias condições de vida e
pelo esbulho territorial ocorrido.

É comum em comunidades tradicionais, como as quilombolas, a vivência das tradições


religiosas e, estas, por sua vez, aparecem como um dos elementos mais importantes para
manutenção das práticas culturais e sociais desses grupos. Esta comunidade, porém, passou
pela transição do catolicismo tradicional para as igrejas ditas evangélicas, entre as quais

1
Graduada em Ciências Sociais pela UFGD. Mestranda em Antropologia pela mesma universidade. Orientada
pelo Prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior. Bolsista CAPES. Contato: gabbi_ks@yahoo.com.br .

2076
protestantes, pentecostais e neopentecostais. Diante dessa mudança nas práticas religiosas a
pesquisa também buscou entender como atuam essas igrejas para conquista de novos fiéis.

Conquistando fiéis: a atuação das igrejas evangélicas

Atualmente, vivem nesta comunidade quilombola 40 pessoas. Em geral, elas possuem baixa
escolaridade e, os que trabalham, a maior parte se mantém economicamente realizando
trabalhos como lavradores e pequenos serviços na universidade próxima à comunidade. Entre
os membros dessa comunidade 25 se tornaram evangélicos e os outros 15 continuam na
religião católica. Entretanto, 8 dos católicos são considerados “não praticantes”, enquanto no
grupo evangélico, de fato, há uma vivência religiosa e compromisso com as suas igrejas.

Dentre os evangélicos que vivem na comunidade encontramos igrejas com denominação


protestante, pentecostal e neopentecostal, mas é o grupo protestante o maior de todos,
representados pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. Esta igreja, considerada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística como uma igreja evangélica de missão ou tradicional,
portanto, inclusa dentro do protestantismo histórico, sobre ela, na verdade, sempre pairou uma
incerteza quanto a sua classificação religiosa2.

Nesse sentido, ressalta Ricardo Mariano (2001, p. 22), possui doutrinas e interpretações
bíblicas que a difere das demais igrejas protestantes. A exemplo disso “observa tabus
alimentares, enfatiza a guarda do Sábado em obediência ao quarto mandamento do Velho
Testamento, adota perspectiva exclusivista, age como uma igreja cristã à parte das demais e é
por elas tratada como tal”. Acrescenta-se ainda, segundo Oliveira Filho (2004), a tríplice
mensagem, a doutrina do santuário, a mortalidade da alma, o Espírito de profecia (as
mensagens recebidas por Ellen White) e a reforma da saúde.

Entretanto, devemos lembrar também que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é considerada
protestante, pois possui elementos que podem ajudar a classificá-la como tal, isto é, comunga
de algumas doutrinas fundamentais do protestantismo. A respeito disso, ela possui a Bíblia,
que é, de acordo com Mariano (2001), a mesma versão adotada pelos protestantes, como

2
Por muito tempo as igrejas oriundas do movimento adventista foram tratadas não como igrejas, mas como
seitas, para conhecer mais detalhes consultar o artigo de Oliveira Filho (2004), intitulado “Formação Histórica
do Movimento Adventista”.

2077
“única regra de fé e prática, crê na Trindade, na salvação por meio da expiação de Jesus Cristo
e pratica o batismo por imersão” (MARIANO, 2001, p. 22).

Entretanto, no tocante ao referencial teórico, utilizarei no texto aos que correspondem ao


pentecostalismo clássico, aquele descrito por Freston (1994) como primeira e segunda onda
pentecostal no Brasil. Levo em conta, para tanto, que as perspectivas de atuação social e
maneiras de conversão foram similares, tanto para os membros da igreja adventista, assim
como para os pentecostais analisados por Freston e que posteriormente seguiu-se a mesma
linha de raciocínio em pesquisadores mais recentes.

Nas estudos elaborados por Antoniazzi (1994, p. 20) em meados da década de 1980, mesma
época em que as igrejas pentecostais começam a ter destaque no cenário religioso brasileiro e
também mesmo período em que chegam à comunidade quilombola, o autor salienta que os
principais católicos a se afastarem do catolicismo são exatamente aqueles católicos
tradicionais, isto é, aqueles cuja cultura está atrelada a devoção aos santos, mas pouco
“envolvida nas comunidades católicas dirigidas pelo clero e com escassa formação
doutrinária”. Tal como percebi na fala daqueles se converteram a Igreja Adventista do Sétimo
Dia, eles mesmos observam que na religião católica sempre foram “não praticantes”, mas
gostavam de participar da Festa em homenagem a São Sebastião3, o então padroeiro da
comunidade.

Além disso, o pentecostalismo, segundo Antoniazzi, no início de sua expansão acolhia


principalmente indivíduos da zona rural ou imigrantes pobres que seguiam para as cidades.
Foi nesse cenário que a igreja pentecostal, Congregação Cristã do Brasil (e posteriormente a
adventista), conheceu esse grupo quilombola. Devemos observar, que os católicos que ainda
residem na comunidade são em sua maioria “não-praticantes”, o que de certa forma confirma
que a Igreja Católica tem “dificuldade de estabelecer relações humanas mais próximas e
diretas” (ANTONIAZZI, 1994, p. 20-21).

Nesse sentido, uma consideração feita por Antoniazzi (1994) sobre a Igreja Católica é muito
interessante, porque elucida bem o catolicismo no Brasil ainda hoje. Segundo o autor, se
analisarmos a Igreja Católica num sentido macro, ou seja, olhando ela como uma grande e

3
Os dois trabalhos de Santos (2007, 2010) elucidam bem a trajetória desta comunidade quilombola e também
trazem ricas referências sobre essa festa, que há pelo menos 13 anos não acontece mais devido à saída
compulsória dos membros, morte dos foliões da festa e falta de recursos. Em nenhum momento foi citada as
novas religiões como um impeditivo para a realização dos festejas, aliás, observa-se um sincretismo, que não
será aprofundado neste momento.

2078
importante parte da estrutura da sociedade brasileira chegar-se-á conclusão de que ela possui
uma atuação significativa, “um status” e é considerada uma das instituições mais confiáveis
do país. Entretanto, ao voltarmos nossos olhos para sua atuação em nível micro, que diz
respeito às experiências individuais de seus fiéis, nesse quesito ela deixa a desejar, pois “no
plano dos problemas imediatos que a população sofre na carne – fome, falta de saúde,
desorientação espiritual, desavenças familiares ... – a Igreja Católica parece menos ágil e
menos atenta”. E é sob essa fragilidade que pentecostalismo vai ganhando seu espaço
(ANTONIAZZI, 1994, p. 21).

Segundo Freston (1994), que foi o primeiro a sistematizar a expansão pentecostal no Brasil
por ondas, classificando-as histórico-institucionalmente, há segundo ele, três fases distintas
dentro do próprio pentecostalismo. A terceira onda, nomeada posteriormente como
neopentecostal por autores como Ricardo Mariano (2012) e Antônio Gouvêa Mendonça
(2008), possuem as igrejas que mais se afastam e se diferem das doutrinas da Igreja
Adventista, a começar por sua pregação, cujo foco está voltado para as grandes massas. Além
disso, utilizam-se intensamente dos meios de comunicação como a televisão e o rádio como
instrumentos de evangelização. Os cultos são menos comedidos assim como as manifestações
espirituais de seus fiéis. Combatem o diabo com sessões de exorcismo e todos demais males
do mundo são atribuídos a ele.

Quando Freston (1994) descreve as características marcantes das duas primeiras ondas ele
chama atenção para o perfil socioeconômico de seus adeptos, isto é, geralmente, são
frequentadas por pessoas de baixa renda e com pouca escolaridade, características igualmente
encontradas na comunidade quilombola em questão quando a Igreja Adventista chegou em
seu território. Essas igrejas presentes na primeira e segunda onda tem como alvo grupos
menores como comunidades e bairros periféricos (característica comum as igrejas adventistas
também). Além disso, as igrejas dessas ondas também possuem um perfil mais conservador,
assim como ainda atua a igreja adventista em certos aspectos.

Para compreender a proximidade ou escolhas que as Igrejas Adventistas e pentecostais


clássicos fazem por grupos menores, nos estudos feitos por Ronaldo de Almeida (2009;
2011), constatou-se, e é assim que também se procedeu na comunidade, que grande parte das
igrejas pentecostais clássicas, geralmente, estão localizadas longe dos grandes centros
urbanos, mas se encontram, principalmente, em bairros periféricos.

2079
Dessa forma, essas igrejas são voltadas para as camadas mais pobres, pois estes tendem a se
tornar um público mais fiel. Priorizam, portanto, “circuitos de relações com um perfil mais
comunitário construídos em torno dos templos e redes familiares e de vizinhança”, sendo
atrativas para esses pequenos grupos, pois “estabelece vínculos sociais que atenuam a
situação de vulnerabilidade social” (ALMEIDA, 2011, p. 121).

Partindo dessa vulnerabilidade social, algumas constatações feitas a partir do trabalho de


campo indicaram que, a Igreja Adventista do Sétimo e as demais Igrejas pentecostais
frequentadas pelos outros membros da comunidade, trabalharam e vêm trabalhando com
aspectos voltados para melhoria da socialização, saúde e educação dessa comunidade
quilombola. Nesse contexto, precisamos nos atentar, como salienta Abumanssur (2011),
“quem, nessas comunidades, tem atendido ao apelo dessa religião e, não menos importante,
em que contexto socioeconômico têm acontecido essas conversões” (ABUMANSSUR, 2011,
p. 408).

A Igreja Adventista do Sétimo Dia chegou até a comunidade em questão no início dos anos de
1980, por intermédio de um dos anciões dessa igreja. Quando essa igreja chega à comunidade,
esse grupo ainda não é reconhecido como remanescentes dos quilombos, aliás, nessa época
nenhum deles sabia o que era ser quilombola, também pudera, nessa época pouco ou quase
nada se falava sobre isso. Tanto que, só em 1988 as comunidades quilombolas conquistaram
seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos específicos na constituição federal, que se
deu a partir do Artigo 68 do ADCT que designava “aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

A comunidade só foi oficialmente reconhecida pela Fundação Cultural Palmares em 2005.


Obviamente que a situação da comunidade obteve melhoras econômicas, sociais e incentivos
culturais proporcionados por órgãos encarregados de verificar a condição das comunidades
quilombolas reconhecidas, no caso, um deles é o INCRA. Cumpre observar que, ao serem
reconhecidos oficialmente e se encaixarem no artigo 68 do ADCT, eles se tornam sujeitos de
direitos especiais e passam a ser acompanhados por diversas entidades. Porém se pararmos
para pensar na situação da comunidade antes do reconhecimento, chegaremos a conclusão de
que eles passaram por tempos de muita dificuldade, quando não podiam contar com apoio
externos.

2080
Em tempos de incertezas, de golpes dados por pessoas “letradas” interessadas na terra, de
esvaziamento da comunidade, de dificuldades socioeconômicas a igreja adventista ofereceu
ajuda espiritual, mas acima de tudo, mostrou-se interessada por essa família. Devemos
ressaltar que, se hoje ainda é difícil chegar até as casas da comunidade, porque cerca da
metade do caminho ainda não é asfaltado. Há mais de vinte anos atrás essa situação era ainda
pior, pois não havia asfalto nenhum até o trajeto que nos leva ao distrito da Picadinha, onde
fica a comunidade. A Igreja Adventista pisou pela primeira vez na comunidade através da
figura de um colportador, que até hoje, mesmo com a idade avançada, visita com frequência
seus “irmãos da Picadinha”.

Quando a varanda se torna o templo: considerações sobre o culto adventista na


comunidade

Acompanhei ao longo desses últimos meses a rotina da família adventista da comunidade,


participando, principalmente, dos seus cultos realizados nas manhãs de sábado. A princípio eu
já sabia que o culto era algo muito importante para esta família, mas foi a convivência e a
partição contínua nos cultos que me fizeram enxergar aspectos que outrora eu não teria acesso
senão pelo método etnográfico.

Foi através do trabalho etnográfico que eu me deparei com a certeza da importância do culto
realizado nas varandas das casas. Este ritual, que é repetido todos os sábados, se mostrou o
elemento central da vida religiosa do grupo adventista desta comunidade quilombola. Todas
as demais ações e visões de mundo são uma extensão dessa vivência religiosa. O culto é um
ritual comunicativo e ao mesmo tempo coletivo, portanto, como salienta Peirano (2002, p.9),
“focalizar rituais é tratar da ação social”.

Obviamente que, quando Peirano (cf. 2002, 2003) dialoga sobre rituais, ela não está fazendo
referência exclusivamente aos de cunho religiosos, mas sim a toda sorte de eventos sociais4
considerados especiais dentro de uma sociedade ou grupo. A autora nos lembra que não há
definição rígida para “rituais”, pois a compreensão de um ritual em si deve ser apreendida por
meio do trabalho etnográfico e em parceria com o grupo pesquisado, isto é, “sua definição só
pode ser relativa – nunca absoluta ou a priori; ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de
detectar o que são, e quais são, os eventos especiais para os nativos” (PEIRANO, 2002, p. 9).
4
De acordo com Peirano (2003, p. 9) estes eventos podem ser “profanos, festivos, formais, informais, simples ou
elaborados”.

2081
Saliento que trago a concepção de ritual para este trabalho exatamente porque considero o
culto realizado na comunidade como um ritual extremamente importante para a produção e
reprodução sociocultural desse grupo adventista. E localizo nesta atividade semanal uma
organização singular, “uma ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo
propósito é coletivo, e uma percepção de que eles são diferentes” – em dois sentidos para este
grupo: doutrinários por serem adventistas e étnicos por serem quilombolas (PEIRANO, 2002,
p.8).

Um ritual, qualquer que o seja, quando realizado, pressupõe a existência de um grupo e este
mesmo grupo também faz parte de uma sociedade maior que possui lá suas regras, valores e
formas de classificar as coisas do mundo. Por isso, deve-se levar em conta que os elementos
presentes num ritual podem ser localizados também no cotidiano das pessoas. Assim,
“consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela
representações e valores de uma sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é
comum a um determinado grupo”. E ao acompanhar os cultos realizados pelo grupo familiar
de seu Desidério e dona Efigênia, pude constatar, como escreveu Peirano, que eles “são bons
para transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver conflitos e
reproduzir as relações sociais” (PEIRANO, 2003, p. 10).

A estrutura do culto adventista realizado dentro da comunidade pela família de seu Desidério
e dona Efigênia é muito singular. Não há nenhuma Igreja Adventista no distrito da Picadinha
e nem mesmo dentro da comunidade. Não há um púlpito, onde os pastores possam fazer suas
pregações, aliás, não há pastores para presidirem o culto. São os próprios adventistas da
comunidade que o fazem. A igreja deles é imaterial, mas as varandas das casas se tornam
verdadeiros templos de oração e reflexão nos dias de sábado. Não há uma hierarquia entre
pastores e fiéis, cujo primeiro fala e os demais o escutam. No culto realizado por eles, todos
falam, quando querem, todos escutam, atenciosamente.

A vivência do grupo no dia de sábado é intensa, pois ao mesmo tempo em que cuidam do lado
espiritual, também socializam problemas e acontecimentos diários, plenamente terrenos. O
culto, dessa forma, atua como um revigorante da vida social deste grupo, pois é através dele e
de sua realização, há tantos anos, que se estreitam os laços entre a família e onde são
reforçados os elementos que a comunidade considera boas para ela. Aliás, ressalta Peirano
(2003, p. 19). “para sua sobrevivência [do culto], é necessário um grupo de pessoas, uma
comunidade moral relativamente unida em torno de determinados valores”, assim como

2082
visualizamos nesta família, cujo ritual semanal colabora para a manutenção de laços sociais
duradouros.

Essa família encontrou nos cultos realizados em casa, uma alternativa para viverem a sua fé,
unidos, sem a necessidade de ir até uma igreja física. E nesse caso, eles tiveram o apoio da
Igreja Adventista, que foi e continua ir até eles com freqüência, oferecendo suporte espiritual
e até mesmo social para o grupo. Portanto, é muito provável que essa seja umas das razões
pelas quais o catolicismo não prosperou dentro desta comunidade, ao contrário das igrejas
evangélicas, que se mostraram muito mais próximas e acolhedoras.

Embora os cultos aconteçam dentro da comunidade, no núcleo familiar de seu Desidério e


dona Efigênia, eles seguem uma organização rigorosa de revezamento das casas. A cada
semana, um dos filhos fica responsável por ceder a casa para a realização dos cultos aos
sábados. Assim, os encontros vão sendo realizados, a cada sábado, em um lar diferente, até
que tenha passado por todas as casas e o circuito comece novamente.

Outro aspecto interessante é que o dono da casa, onde o culto está sendo realizado, fica
encarregado de oferecer o almoço para aqueles que estão presentes. Ele compartilha sua casa
e seus alimentos, independente do número de participantes do culto no dia. Nota-se que essa
organização não se dá por acaso e está baseada em seus preceitos religiosos, principalmente
no que diz respeito à guarda do dia de sábado. Com o revezamento, é possível que se trabalhe
sem que se esteja contrariando a bíblia, pois suas atividades, limpar a casa e cozinhar,
estariam voltadas para a realização do culto e não em prol de si mesmo.

O culto possui dois momentos, o primeiro é realizado pela Ramona, filha de seu Desidério e
dona Efigênia e; o segundo momento é ministrado por Ramão, filho mais velho do casal.
Cada um deles prega a palavra bíblica por aproximadamente 1 hora, podendo estender esse
tempo conforme o desenvolver dos diálogos com o grupo. Ambos possuem a missão de
estudar anteriormente o que vai ser discutido a cada sábado e também elaboram questões para
serem refletidas em conjunto. Nem ele é pastor, nem ela pastora, mas durante o culto fica a
cargo deles organizar e guiar as discussões. Como não há pastor, o empenho dos fiéis tem que
ser maior, pois não basta apenas ouvir, o importante é participar.

Na comunidade, o grupo faz questão que suas reflexões estejam conectadas aos estudos da
Escola Sabatina, por isso, todos os sábados eles não deixam de realizar esta atividade. Os
estudos feitos durante a Escola Sabatina também tentam ser incorporados o máximo possível

2083
para a atualidade dos acontecimentos que ocorrem no Brasil e no restando do mundo. Nesse
momento, todo o grupo é convidado a expor suas opiniões, a dar exemplos vividos, enfim,
participar de fato da conversa.

Quando o grupo começa a conversar sobre o que foi estudado no dia, os assuntos não seguem
uma ordem fixa, até porque os diálogos vão se relacionando com outros temas e, assim,
sucessivamente. Nos cultos em que estive presente notei a diversidade de diálogos que
acontecem entre eles. Alguns assuntos se concentram bastante na bíblia como amor ao
próximo, bondade, família, casamento, filhos, adultério, perdão, devoção, espiritualidade,
pecados (de maneira geral) entre outros tópicos.

Entretanto, eles sempre buscam atualizar o contexto bíblico tanto para a realidade deles,
quanto para a sociedade de uma forma em geral. Nesse sentido, vi-os fazendo discussão sobre
reforma agrária, sobre educação, sobre hábitos alimentares, sobre fome, sobre violência (dos
mais variados tipos), sobre aborto, sobre eutanásia, sobre programas televisivos, entre muitos
outros assuntos. Percebi que as manhãs de sábado são utilizadas para uma intensa troca de
ideias e valores entre essa família - tal como explicitou Peirano (2003) ao falar dos rituais de
uma forma geral.

Outro ponto interessante que torna o culto deles ainda mais significativo, enquanto um ritual
extremamente bem organizado é a preocupação que eles têm com suas crianças. Elas
participam dos primeiros cânticos e orações, mas logo em seguida são levadas para a
“escolinha”, geralmente, o local é a casa de Lurdes, filha de seu Desidério e dona Efigênia. As
crianças possuem suas próprias bíblias, que são especialmente elaboradas para o público
infantil. Ali, elas aprendem sobre a bíblia pintando desenhos, assistindo vídeos e ouvindo
histórias.

Vemos que essa escolinha possui uma função social muito importante, pois antes mesmo das
crianças ingressarem nas escolas, elas mantêm um intenso convívio com os primos, o que
resulta em uma maior socialização dessa criança, além de exercitar sua coordenação motora, a
criatividade e o interesse pela leitura.

Antes de finalizar o culto, novamente eles cantam e oram de mãos dadas. E este só termina
quando todos desejam “um restante de sábado feliz!”. Depois que o culto é finalizado, todos
almoçam juntos.

2084
Percebe-se que o almoço e a tarde em que eles passam juntos é, na verdade, uma extensão do
culto, porém, com mais liberdade para todos os tipos assuntos. A hora do almoço se torna
uma verdadeira confraternização aos sábados, pois, se durante o culto temos, em média, 15
participantes, quando o almoço é servido esse número sobe para, pelo menos, 21 pessoas. Isso
ocorre porque alguns homens que não freqüentam os cultos e os jovens que o freqüentam
esporadicamente aparecem para almoçar junto com a família. Apesar de ser um grupo
extremamente religioso, eles não mantém uma cobrança sobre os demais que não participam
ou participam pouco da vida religiosa. O culto é feito para todos, mas participa dele apenas
quem quer e sente vontade de estar lá.

Esse é o dia em que a família se reúne e conversa sobre os acontecimentos da semana. Como
qualquer outra família eles se divertem, brincam com seus filhos, contam as novidades para os
irmãos, discutem os problemas no trabalho, desabafam quando estão passando por alguma
dificuldade pessoal, enfim, esse é o dia em que os laços familiares são reforçados. Nesse
aspecto observamos o quanto à relação entre os membros dessa família é harmoniosa,
obviamente, que há entre eles alguns desentendimentos, mas estes não perduram por mais de
um dia.

Presença da igreja adventista: suas imbricações na vida social e política do grupo

Depois que se converteram é consenso entre o grupo familiar que a vida veio a se tornar
melhor. Em nome da nova religião muitos vícios como cigarro e álcool foram abandonados, já
que na doutrina adventista estes só servem para prejudicar o corpo e a alma de quem os
consome. É interessante notar que, como na comunidade muitos professam uma fé cristã não-
católica, quando há algum evento ou outras festividades, ninguém leva bebida alcoólica em
respeito aos parentes evangélicos que ali vivem.

Eles relatam que também obtiveram melhoras em relação à saúde, haja vista que esta é uma
das grandes preocupações da doutrina adventista, a atenção dada a saúde do corpo e da alma.
A partir dos conselhos de Ellen White, que são considerados mensagens enviadas por Deus,
eles passaram a seguir uma alimentação mais saudável. Passaram a consumir mais legumes e
frutas e diminuíram carnes gordurosas e não comem, por exemplo, carne de porco.

2085
Através da igreja o grupo também aumentou sua rede de relações sociais por meio da
interação social com outros grupos de fora da comunidade, pois em determinadas datas eles
recebem pessoas da igreja da cidade para realizarem vigílias estreitando os laços com os
“irmãos de fé”. Esse sentimento de acolhimento e pertença não era sentido quando os mesmos
ainda eram católicos. De certa forma, a aproximação da igreja evita que eles se afastem, pelo
contrário, os motiva mais a continuarem nesta religião.

Quando entrevistei alguns membros adventistas da comunidade também os questionei se a


igreja tinha influenciado ou participado do processo de reconhecimento da comunidade
enquanto remanescente dos quilombos, a resposta que obtive foi a mesma a do ancião, a
igreja participou com orações, mas em nenhum momento influenciou a comunidade ou deu
“palpites” sobre o que acontecia nas esferas “políticas” da comunidade, pois a própria igreja
se intitula apolítica.

Durante um dos cultos o grupo tentou me explicar de que forma eles viam conexão entre a
religião que professam e as questões políticas em torno da retomada das terras da
comunidade. Para eles, a religião é algo fundamental para o grupo, pois mantém-os unidos
nessa luta e também os ajuda a viver em harmonia. Além disso, a religião também os ajuda a
viver pacificamente com os demais proprietários rurais, que hoje são donos das terras que o
grupo reivindica, já que um dos principais mandamentos é amar ao próximo, independente de
quem o seja.

O fato de a religião proporcionar harmonia, paciência, confiança, sabedoria, bondade e paz


entre os membros da comunidade já eram elementos suficientes para entender a importância
das igrejas nesses processos que podem perdurar por anos nas esferas judiciais. Ainda mais
em um estado com sérios problemas de conflitos agrários, cujas comunidades tradicionais
vivem em constantes ataques de grandes produtores e pessoas politicamente influentes ligadas
à produção agrícola/agropecuária.

Entretanto, acompanhando os cultos realizados nas manhãs de sábado, observando sua


organização, sua ritualística e o conteúdo das reflexões realizadas, algo foi se tornando muito
nítido para mim. A religião, a forma sistemática com que eles estudam a Bíblia toda semana,
o exercício de trazer discussões atuais para o culto, tudo isso tem influência na vida individual
e social do grupo, como vimos através das mudanças que ocorreram depois da entrada da
igreja.

2086
No entanto, uma das grandes contribuições da igreja para vida deste grupo se deu no âmbito
da educação, que nada tem haver com a escolar ou com a forma “culta” de se portar. A
vivência religiosa e a realização dos cultos toda semana fizeram com que o grupo tomasse
gosto pelo hábito da leitura, que não fica restrita apenas aos conteúdos bíblicos, mas que se
estendem conforme o interesse e a curiosidade de cada um.

É importante ressaltar isso, pois o grupo adventista da comunidade, assim como a


comunidade em geral, possuem um grau de escolaridade muito baixo. No grupo familiar de
seu Desidério vemos através dos cultos que, as pessoas se interessam em adquirir novos
conhecimentos e buscam também estarem sempre informadas; interessadas em aprender e
transmitir algo novo.

E é nesse sentido, da leitura sistemática da Bíblia e do interesse em aprender, que


conseguimos visualizar em que momento religião e política se encontram. Sem imaginar ou
prever o futuro dessa comunidade, a igreja, de alguma forma, instrumentalizou esses
indivíduos em relação à luta pela terra. Em primeiro lugar por fazê-los desejar um mundo
mais justo e; em segundo lugar, por incentivá-los a buscarem conhecimento mesmo que
baseados na Bíblia. O exemplo mais proeminente dessa extensão da religião para a política se
dá na figura de Ramão, um homem extremamente simples, mas com uma liderança política
inquestionável.

Durante os cultos algo me chamou atenção, quando Ramão5 pregava sobre alguma passagem
bíblica e se deparava com alguma palavra cujo sentido ele desconhecia, sua primeira ação
sempre foi recorrer ao dicionário de língua portuguesa para apresentar ao grupo um sinônimo.
A Bíblia não é um livro fácil de ser lido, exige dedicação e paciência daqueles que a estudam.

Depois de algumas visitas à comunidade algo se tornou evidente. A desenvoltura de Ramão


enquanto uma liderança política estava diretamente ligada à sua dedicação a vida religiosa.
Quando perguntei sobre essa ligação, ele foi enfático, me disse que deve todo seu aprendizado
aos estudos praticados na Escola Sabatina e, posteriormente, seus discursos foram
aperfeiçoados porque também fora diversas vezes convidado a pregar no culto realizado na
igreja da cidade. Se hoje ele possui uma boa oratória, uma boa argumentação e uma excelente
desenvoltura com as atividades políticas relacionadas à comunidade, isso se deve ao incentivo
5
Ramão é o presidente da Associação Rural Quilombola Dezidério Felippe de Oliveira (ARQDEZ) desde a sua
criação no ano de 2005. Atualmente ele também ocupa o cargo de coordenador geral da Coordenação das
Comunidades Negra Rural Quilombolas de Mato Grosso do Sul (Conerq/MS). Ramão só estudou até a 3ª série
do ensino fundamental.

2087
que ele obteve da própria igreja em seu aperfeiçoamento enquanto fiel. A ocupação dele em
cargos de importância não foram feitas aleatoriamente, mas ele foi escolhido exatamente
porque os indivíduos enxergam nele um homem preparado para lidar com uma sorte de
situações e, mesmo em meio as dificuldades, não desiste de lutar pelo o que considera justo.

Logo, entendemos que essa igreja, de várias maneiras, colaborou para a manutenção do estado
grupal e para formação da liderança política. Desse modo, uma igreja que os ensina a ter o
interesse por conhecimento, desenvolve um papel que é capaz de mudar a vida desses
indivíduos, que perpassa desde a saúde até a luta pela terra enquanto remanescentes dos
quilombos.

Considerações finais

Quando relatamos que uma comunidade tradicional seja ela indígena, quilombola ou caiçara
se converte a outra religião, deixando de lado sua religiosidade tradicional, logo surgem
questionamentos sobre percas culturais. Obviamente, como constatou Abumanssur (2011),
com a entrada de uma nova religião, principalmente se for do ramo pentecostal, podem haver
rupturas com antigas tradições como festas em devoção aos santos e até mesmo a negação e a
abominação com relação às praticas religiosas dos antepassados em se tratando,
especialmente, de cultos de matrizes africanas.

Entretanto, cumpre observar que as comunidades tradicionais não são e nem podem
permanecer estáticas, assim como a sociedade ao seu redor passa por transformações, nelas
também ocorrem mudanças. E dentro dessas mudanças as escolhas individuais devem ser
levadas em conta, pois ninguém escolhe mudar de religião se esta não lhe oferece nada de
melhor ou não responde a nenhum de seus anseios.

A comunidade quilombola Dezidério Felippe de Oliveira é um exemplo de que uma nova


religião pode gerar muito mais benefícios do que perdas na vida social, política e cultural de
uma comunidade. Aliás, não podemos falar em perdas ou ganhos, mas de mudanças, e são
essas transformações que devem ser analisadas e compreendidas na vida desses grupos que
possuem modos de vida singulares.

Acompanhar a rotina da família de seu Desidério e dona Efigênia, durante vários encontros
aos sábados, me possibilitou perceber que, a realização do culto dentro da própria

2088
comunidade, é uma peça essencial para compreender alguns elementos fundamentais na vida
social e política destes indivíduos que frequentam a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ao
elencar durante o texto o papel social e a influência, mesmo que indireta na vida política, que
essa igreja teve e tem na existência deste grupo, serve também para elucidar os caminhos que
várias igrejas ditas evangélicas utilizaram para conquista de seus fiéis, principalmente no que
diz respeito às comunidades tradicionais.

Referências

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2090
2091
A Igreja Presbiteriana Renovada e a sua inserção no campo
religioso brasileiro
José Rômulo de Magalhães Filho1

Introdução

A Igreja Presbiteriana Renovada é uma igreja evangélica de origem brasileira que surge da
união de grupos dissidentes de duas igrejas protestantes históricas: A Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil e a Igreja Presbiteriana do Brasil. Sua origem é do início da década de
1970 do Século XX, e está envolta em uma atmosfera de busca por um modelo de
espiritualidade bastante difundida no meio das comunidades protestantes entre as décadas de
1960 e 1970 que foi o chamado movimento pentecostal que atingiu as igrejas históricas.

Com base na documentação histórica disponível, em documentos publicados, bibliografia


específica e em entrevistas realizadas com a liderança e membros da Igreja Presbiteriana
Renovada (IPR), este texto se propõe a descrever o cenário sócio-religioso em que a IPR
surge. E também em buscar na origem do presbiterianismo brasileiro os elementos
fundamentais de sua existência. Além de apontar como ela se estabelece no campo religioso
brasileiro e especificamente na cidade de Aracaju - SE, tornando-se referência de igreja
evangélica à população aracajuana. A partir deste resgate histórico, entender a construção de
um projeto ético-político com base em um estilo de vida renovado, denominado de vida
renovada.

A Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil (IPRB) é um dos ramos presbiterianos presentes


em terras brasileiras. São seis as igrejas presbiterianas, herdeiras da tradição calvinista no
Brasil. A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) - 1859, a Igreja-Mãe de todos os ramos do
presbiterianismo brasileiro. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB) – 1903; a
Igreja Presbiteriana Conservadora (IPC) – 1940; a Igreja Presbiteriana Fundamentalista (IPF)
– 1956; a Igreja Presbiteriana Renovada (IPRB) – 1975, e a Igreja Presbiteriana Unida (IPU)
fundada em 1978.

1
Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN. Bolsista da CAPES. Contato: jrmf.pro@gmail.com.

2092
As Origens do Presbiterianismo Brasileiro

O presbiterianismo brasileiro chega ao Brasil em agosto de 1859 junto com o missionário


presbiteriano vindo dos Estados Unidos da América, Ashbel Green Simonton, que viveu no
Brasil até 1867, ano de sua morte. Ele organizou a primeira Igreja Presbiteriana no Rio de
Janeiro em 1862. Como estratégia de ação missionária, procurou agir com parcimônia no que
se refere à Igreja oficial do Império. Mendonça (1995, p. 83) afirma que em seus sermões
Simonton “[...] nunca se refere explicitamente à Igreja Católica, mas ‘à religião de nossa
sociedade’ ou aos ‘costumes religiosos deste país’[...]”.

O Presbiterianismo brasileiro recebeu desde sua implantação forte influência das questões
sociopolíticas norte-americana. A Igreja Presbiteriana Americana em 1857 passou por uma
divisão devido aos conflitos (questão escravagista) que culminaram na Guerra da Secessão
(1861-1865). A Igreja Americana foi dividida em Igreja do Norte e Igreja do Sul. Simonton
foi enviado ao Brasil pela Igreja do Norte, o chamado Board de Nova Iorque.

A crise vivida pelo presbiterianismo americano foi ideológica, e transitou pela chamada Nova
Escola Teológica, mais liberal, com a defesa por igualdade racial e um envolvimento com os
problemas da sociedade. E uma Velha Escola, ligada à chamada Teologia da Igreja Espiritual.
Segundo Mendonça (1995), Simonton humanamente tendia para a Nova Escola corroborando
com a tendência da missão que o enviou ao Brasil, sendo contra uma sociedade escravocrata.
Entretanto sua prática pastoral tendia para a outra escola.

O protestantismo que se estabelece de forma plena no Brasil tem como característica básica o
conservadorismo e o proselitismo, no dizer de Santos (1999, p.22): “portava uma teologia
conservadora e alienante”. O que reflete o individualismo teológico difundido pela igreja
norte-americana. O presbiterianismo no Brasil vai seguir esta tendência, dando mais ênfase a
Teologia da Igreja Espiritual. Os missionários americanos apresentavam um discurso
conversionista, com base na emoção e na experiência religiosa, levando o prosélito a adotar
um estilo de vida pautado na moral rígida e numa ética calvinista além de influenciados “pela
doutrina da Igreja Espiritual, que buscava distinguir a fé dos negócios humanos”
(MENDONÇA, 2007, 171).

No final do Século XIX, o presbiterianismo brasileiro, já com a presença de pastores


brasileiros enfrenta algumas crises internas como reflexo da crise vivida nos Estados Unidos.

2093
O Presbiterianismo no Século XX – da independência a renovação carismática.

Léonard (2002) descreve o momento da independência do presbiterianismo a partir da


dificuldade de relacionamento entre os pastores nacionais e os missionários. No fim do
Império, já com vinte cinco anos de fundação, a igreja alcançara a maturidade eclesiástica
para caminhar sozinha. O presbiterianismo brasileiro alcança esta maioridade eclesiástica em
um período de furor patriótico, com os ventos republicanos soprando em terras tropicais.
Seria natural que em um país e republicano, as igrejas também desejassem esta liberdade em
relação às igrejas-mães. Pensar uma igreja de nativos, feita para nativos era o caminho natural
de uma sociedade que respirava estes ideais. Isso gerava algum tipo de discórdia.

Houve uma queda na qualidade dos missionários americanos, não de ordem religiosa, mas no
que se refere às perspectivas teológicas e intelectuais. Com um ensino religioso rígido, o
ensinamento se limitava aos sermões e à vida prática, cheia de moralismos. A igreja tornou-se
pragmática. (MENDONÇA, 2007). Os pastores nacionais passaram a confrontar esta fraqueza
intelectual dos missionários, com sermões, textos escritos em jornais e debates em reuniões
oficiais das igrejas. Neste momento histórico, o presbiterianismo nacional já tinha seus
próprios líderes.

Entre eles Eduardo Carlos Pereira (1855-1923), que foi ordenado ministro presbiteriano em
1881. Desde cedo no seu ministério, mostrou-se preocupado com o evangelho em terras
brasileiras. Cada vez mais alcançando espaço nas reuniões conciliares passou a questionar a
liderança norte-americana no que se referia ao redirecionamento de verbas para a educação
secular, e não no investimento na formação de pastores brasileiros e da evangelização.

Pereira tinha forte posição proselitista, buscava em seus sermões e textos publicados a
conversão de católicos à fé protestante. Fundou em 1883, a Sociedade Brasileira de Tratados
Evangélicos “com o objetivo de produzir literatura evangélica em linguagem bem trabalhada
e acessível ao povo dentro do contexto nacional” (MENDONÇA, 1995, p. 87).

Com a visão de uma autonomia para a Igreja Presbiteriana Brasileira, Pereira concebe o que
foi chamado de Plano de Missões Nacionais, que tinha como objetivo acelerar o processo de
independência financeira para sustentar pastores, missionários e professores brasileiros.

Aliado a questão da evangelização do território nacional, mais duas grandes questões foram
levantadas por Pereira e que serviram de estopim para o cisma presbiteriano que veio a

2094
ocorrer em julho de 1903: as questões dos seminários e maçônica. O referido cisma gerou a
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB). No começo a Igreja Independente,
impulsionada pelo discurso nacionalista e antimaçônico desenvolveu-se bem, superando as
expectativas.

No final da década de trinta do Século XX a IPIB sofre uma crise, não de nacionalismos, mas
doutrinária. Algumas comunidades e pastores mais conservadores alegaram que a escola de
formação de pastores (o seminário) havia sido invadido por ideais liberais, e deixaram a
denominação fundando a Igreja Presbiteriana Conservadora em fevereiro de 1940.
Semelhantemente, na década de 1950 a Primeira Igreja Presbiteriana de Recife instituiu uma
empreitada contrária ao Seminário Presbiteriano do Norte, acusando também de influência
liberal. Esta crise fez nascer a Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil.

As Igrejas Fundamentalista e Conservadora não alcançaram grande desenvolvimento, como


suas igrejas de origem, mas causaram forte impacto nas suas comunidades, levando o
Presbiterianismo brasileiro a um novo momento.

A partir da segunda metade do Século XX, uma nova preocupação passa a ser real às igrejas
históricas. A chamada renovação espiritual. A expressão renovada está diretamente ligada a
um novo modo de ver a espiritualidade cristã. A Igreja protestante a partir do Século XIX
atravessou um momento chamado de Avivamento Espiritual, que culminou em experiências
de renovação espiritual. Esta renovação trouxe para a Igreja Protestante um impulso
missionário, uma prática de vida mais piedosa, e consequentemente um alinhamento com a
política ocidental de obediência ao Estado. Havia um desejo de se viver experiência
semelhante no Brasil.

O pentecostalismo não surge no Brasil, é um movimento que se manifesta entre as igrejas


protestantes dos Estados Unidos no século XIX. E chegou ao Brasil no início do século XX,
entre os anos de 1910 e 1911. O pentecostalismo encontra no Brasil um terreno fértil para seu
crescimento. O sincretismo religioso, a grande massa de imigrantes europeus e migrantes
nordestinos, que distantes de seu universo religioso, sentiram-se atraídos pelo mágico, pelo
extraordinário e pela nova perspectiva que a nova religião propunha. O pentecostalismo
nascente brasileiro foca numa espiritualidade mágica, com ênfase na glossolalia e na profecia.

Mas é o pentecostalismo mais tardio, chamado de segunda onda (FRESTON, 1996) ou de


cura (MENDONÇA, 2008) que se fortalece e se expande no Brasil. Dentre os modelos de

2095
pentecostalismo que chegam ao Brasil em meados do século XX, encontra-se um grupo vindo
campanhas evangelísticas no hemisfério norte principalmente dos Estados Unidos da América
(FRESTON, 1996) que se apresentam como proselitistas e de fácil adaptação às mudanças
que a sociedade norte-americana vinha enfrentando. Há um crescimento deste segmento,
devido ao uso do rádio, como meio de divulgação da fé. A influência deste novo ramo do
pentecostalismo fez com que segmentos das igrejas protestantes históricas aderissem ao
movimento, o que levou a cismas em algumas delas.

Um pentecostalismo com forte presença na mídia, com ênfase em uma moral pietista, mas
com tolerância aos usos e costumes que iria servir de estratégia na aproximação das camadas
com maior poder aquisitivo e de maior formação escolar. Nesta nova onda pentecostal, as
Igrejas Presbiterianas sofreram forte influência. Segundo Lima (1996), a Igreja Presbiteriana
Independente, foi a mais atingida pelo pentecostalismo, sendo o primeiro conflito ainda nos
primeiros anos da Igreja.

O primeiro contato dos independentes com o pentecostalismo deixou um saldo negativo, não
em números, mas na relação entre a igreja e o movimento pentecostal. O Pastor da IPI de
Belém – PA, na época o Rev. Manoel Machado, sem conhecer o que seria o movimento
pentecostal, percebeu o interesse do movimento em levar toda a IPI esta prática. Isso
impulsionou o Rev. Machado escrever uma série de artigos no jornal da denominação (O
Estandarte) sobre a Invasão Pentecostista (LIMA 1996), onde condena e aponta para os
perigos de tal prática.

Já na segunda onda pentecostal, a IPIB tem outra experiência marcante com o movimento. A
Igreja do Evangelho Quadrangular chega ao Brasil em 1949. No mesmo ano, membros da IPI
do Cambuci, na capital paulista, tiveram contato com a missão recém-chegada. Houve por
parte da liderança e da membresia em geral, um encanto com a mensagem de renovação e
práticas de cura divina. A igreja tornou-se muito próxima da Missão Quadrangular. Esta
presença de missionários americanos ligados à missão levou na década de 1950 a divisão da
IPI do Cambuci. Saindo o pastor e a maioria da liderança, permanecendo fiel ao
presbiterianismo apenas treze membros. Mais uma vez a IPIB sofre com a presença
pentecostal, e passa a tratar o pentecostalismo como um inimigo, e “sua doutrina, como uma
heresia. Aqueles que se ligassem deveriam abandonar a IPI ou dela serem desligados”
(LIMA, 1996, p. 247).

2096
O duro golpe no presbiterianismo brasileiro se deu de fato nos fins da década 1960 e início
dos anos 70, quando, tanto a IPB quanto a IPIB passaram por divisões ligadas diretamente a
renovação carismática. É a partir da experiência de renovação espiritual em igrejas locais (no
Paraná e em São Paulo) destas denominações que surge a Igreja Presbiteriana Renovada do
Brasil em 1975.

A Igreja Presbiteriana Renovada: uma esperança para o presbiterianismo brasileiro?

Simonton mesmo ligado ao Board de Nova Iorque trazia consigo uma forte influência da
teologia conservadora presente na Igreja do Sul. Seu discurso era polido em relação à Igreja
Católica Romana, entretanto carregado de um pietismo fruto do avivamento que ocorrera nos
Estados Unidos no Século XVIII, ele chega a escrever no seu diário: “O mundo apela para o
que é sensual... Para viver é necessário elevar-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder
de um mundo desconhecido da vista, e de Jesus, o Salvador invisível”. (SIMONTON, apud
MENDONÇA 1995, p. 180).

Este legado espiritual sempre foi de alguma forma reivindicado pelos membros das igrejas
presbiterianas. Estava presente em Pereira, e esteve na expansão da IPIB. E se percebe nos
crentes do Cambuci, ao se deixarem influenciar pelo discurso pentecostal. O presbiteriano
brasileiro, mesmo com ares de intelectualidade (baseado na formação dos seus pastores),
sempre esteve desejoso de uma vida espiritual mais piedosa, marcada pela reflexão bíblica e
vida de oração. Com o passar do tempo a racionalidade afasta sua liderança destas práticas
religiosas.

A chegada de ventos renovados no Brasil a partir da segunda metade do Século XX foi


suficiente para animar os protestantes históricos, em especial os presbiterianos. Lima (1996)
ao se referir ao cisma renovado na IPIB, diz que o movimento não sofreu um assédio externo,
de algum grupo pentecostal, mas havia um “crescimento da população simpática ao
pentecostalismo dentro da própria IPI” (LIMA, 1996, p. 247). Ele justifica este crescimento a
formação dos pastores, que devido a sucessivas crises institucionais, o seminário da
denominação não possibilitou o devido preparo a sua liderança. O que não possibilitou uma
compreensão do fenômeno pentecostal que ganhara força no Brasil a partir de 1950.

2097
Além deste despreparo, Lima (1996, p. 248) diz que “a própria linguagem pietista e avivalista
corrente na Igreja favorecia uma aproximação com a pregação pentecostal, especialmente no
que toca a santidade cristã”. O pentecostalismo foi confundido com avivamento. Como na
prática diária, os pentecostais tinham comportamento e mensagem que condizia com o
discurso avivalista, a confusão entre avivamento e prática pentecostal foi inevitável.

Mesmo com as orientações da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, através de seus


concílios (Supremo Concílio e Sínodos), que buscaram alertar a liderança da igreja para os
perigos do ideal pentecostal, a igreja em alguns lugares do Brasil, deixou-se levar pelo anseio
de uma vida avivada. (CARVALHO, 1985).

Alguns pastores e leigos, procuraram se organizar para ocuparem cargos de destaque na Igreja
Presbiteriana Independente, com o objetivo de direcionar as decisões conciliares favoráveis ao
movimento avivalista. Gerou uma divisão interna entre os tradicionais (defensores da ordem
da Igreja) e os avivados (desejosos de mudanças).

Os defensores de uma renovação espiritual propunham uma nova prática no dia-a-dia da


igreja. Práticas que influenciavam na vida pessoal dos cristãos das comunidades locais.
Carvalho (1985, p. 82-83), diz que esta influencia

[...] se caracterizava pelo controle e combate a algumas condutas externas, que eram
consideradas como influenciadas pelos “modismos” da época, tais como, cabelos curtos
para as mulheres, pinturas pronunciadas nos olhos, lábios e unhas das mãos, vestidos
decotados e curtos, “que tiram a naturalidade e os movimentos comuns e naturais à mulher,
bem como o uso de calças compridas no recinto do templo”. Quanto aos homens, combatia-
se o uso de cabelos compridos e “roupas não condizentes com a sobriedade própria do
cristão”, controle e combate ao uso de bebidas alcoólicas, do cigarro e “outros vícios
condenados pela moral cristã”.

As celebrações passaram a ter um caráter mais informal, com a introdução na prática litúrgica
de cânticos de fácil assimilação, e que traziam letras que apontavam para elementos
doutrinários do movimento pentecostal. Introduziram-se as palmas durante as celebrações, e a
os testemunhos de vida, intercalados com expressões como: aleluia, glória a Deus, amém,
típicos das igrejas pentecostais.

Era a busca por uma prática cristã realmente renovada, não só no sentido de renovação
espiritual, considerando a doutrina pentecostal do Batismo com o Espírito Santo e a evidência
de falar em línguas estranhas, mas acima de tudo de uma vida cristã renovada. “Os crentes,

2098
através de uma diligente e diária busca de “renovação” de suas atitudes, procuravam atingir o
modelo perfeito, Jesus Cristo, configurando-se assim uma das únicas formas que a
comunidade poderia se apropriar de uma posição no todo da sociedade” (CARVALHO, 1985,
p. 95). Desta forma os crentes se sentiam verdadeiramente cristãos, no entanto separados para
uma ação específica, e para isso não poderiam medir esforços.

Entretanto esta, que na visão dos renovados deveria ser o verdadeiro caminho da igreja, sofreu
por parte da instituição maior, retaliação e censura. A confusão entre avivamento e
pentecostalismo, e a busca dos renovados de levar a renovação pelo viés político foram os
vilões de sua derrota institucional. Na reunião do Supremo Concílio da IPIB em 1972, o
grupo não alcançou êxito. “Além de não conseguir fazer o presidente, [...] foram tolhidos
oficialmente por decisões do próprio Supremo Concílio, que resolveu agir duramente para
coibir o avanço pentecostal na Igreja” (LIMA, 1996, p. 248).

Até junho de 1972, pelo menos 10 pastores haviam deixado a Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil (GINI, 2010) na cidade de Assis – SP, e no dia 8 de julho organizaram
a Igreja Presbiteriana Independente Renovada – IPIR. Que em 08 de janeiro de 1975 é
oficialmente organizada a Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil (IPRB), com 34 pastores
oriundos da IPIB e 25 da Igreja Cristã Presbiteriana (ramo pentecostal oriundo da Igreja
Presbiteriana do Brasil). A IPRB na atualidade é a segunda maior denominação presbiteriana
do Brasil, com 131.972, segundo dados de 2011.2

O ramo presbiteriano brasileiro sofre mais uma divisão. Dos dois ramos do início do século
XX, o presbiterianismo independente foi o que mais sofreu com a influência do
pentecostalismo. A ponto de institucionalmente se fechar, impedindo inclusive a discussão da
temática nos seus encontros oficiais. A Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil surgia então
como uma retomada de ideais pietistas, presentes no fundador do presbiterianismo brasileiro.
Mas com um novo elemento, a doutrina pentecostal como fonte inspiradora da renovação
espiritual proposta pelos membros fundadores da denominação.

O que se percebe em toda a discussão sobre o avivamento e as práticas pentecostais na IPIB, é


a busca pela manutenção ou pela ascensão ao poder. Líderes que desejosos de verem suas
ideias sobressaírem, constroem em volta de si mesmos todo um aparato que justifica o

2
Disponível em <http://www.iprb.org.br/estatistica/2011/estat_geral2011.htm>.

2099
surgimento de novos grupos, em nome da verdade por eles defendida. Foi assim com os
independentes em 1903, com os conservadores em 1940 e com os renovados em 1972.

A Igreja Presbiteriana Renovada de Aracaju – a construção de um projeto ético-


político.

Após o nascimento do novo ramo presbiteriano, e o fim das adesões em 1975, a IPRB
procurou desenvolver seu próprio projeto de crescimento. Em outubro de 1975 é fundada a
Missão Priscila e Aquila, sendo em 1979 transformada em Junta Missionária da denominação.
O trabalho em Aracaju iniciou-se entre 1979 e 1980 com o Pastor Darci da Silva Lima. Por
motivos de saúde, o pastor Darci não pode continuar, e a Missão Priscila e Aquila encaminha
um jovem casal de missionários (ele pastor e sua esposa missionária), são enviados para
reforçar o trabalho, Dez anos depois do início da denominação. Na época ele tinha 22 anos e
ela 19 anos. Em entrevista o referido pastor afirma que necessitou exercer além do trabalho
religioso, outras funções que possibilitasse o sustento do casal. Após 28 anos de atividades
ininterruptas do casal, a Igreja Presbiteriana Renovada de Aracaju conta hoje com 04 igrejas
na cidade de Aracaju, e duas no interior do Estado de Sergipe.

A Igreja Presbiteriana Renovada em Aracaju (IPRA) – SE tem um perfil socioeconômico


interessante. Não é uma igreja de famílias tradicionais da cidade. Tem alguns membros com
certa projeção, mas a grande maioria é composta de trabalhadores. Entretanto trabalhadores
que tem emergido socialmente, e adquirido um padrão de comportamento e consumo típico
dos segmentos médios urbanos. Há assistentes sociais, enfermeiros, professores, advogados,
comerciários, dentre outros profissionais.

Este comportamento aliado ao crescimento da igreja foi um dos fatores motivadores para a
recente mudança de endereço. Há aproximadamente três anos saiu de um pequeno templo no
centro da cidade, para um espaço maior, numa região de expansão da cidade, ao lado de um
Shopping Center. O que revela o espaço midiático que a mesma tem alcançado.

O Espaço de aproximadamente 1500 m² foi denominado de Espaço Família Renovada. A


ideia de um local com características de um centro de convenções, confortável e sem as
marcas de um templo religioso clássico tem sido uma prática constante entre os evangélicos, e
usado como estratégia de marketing religioso. A estratégia adotada deu mais notoriedade a

2100
igreja, que conta com um grande número de jovens, muitas famílias e mulheres
desacompanhadas.

Ao chegar ao Espaço Família Renovada, o visitante é recepcionado de modo alegre, informal.


Esta recepção alegre e aconchegante é relatada por alguns membros em vídeos que são
constantemente passados em alguns momentos do culto.

Uma das visitas realizadas se deu em um culto de batismo, onde novos membros seriam
recebidos na Igreja. Durante 10 minutos foi mostrado um vídeo com entrevistas de alguns
destes novos membros, e um dos destaques era a receptividade da igreja logo que se chega
pela primeira vez.

Em entrevista realizada com um dos membros da IPRA, o mesmo afirma que a igreja através
das palestras, das celebrações (chamada pelo entrevistado de liturgia do culto) apresenta uma
proposta de vida que leva a pessoa a “buscar Deus” (Entrevistado). Na fala é revelado que
para ser membro da igreja é preciso participar dos estudos específicos. Isto, segundo ele,
revela organização. Um dos detalhes que apontam já para um projeto ético-político é a
presença de uma liderança específica. Esta liderança é salientada pelo entrevistado como algo
bom, são “pessoas disponíveis e comprometidas”. Está sob a liderança de alguém é
importante para uma sociedade organizada. O que revela como a igreja se preocupa em
ensinar seus membros, pois os mesmos precisam se adequar ao estilo de vida renovado. Esta
perspectiva hierárquica aponta para um princípio claro dentro do projeto ético-politico: a
obediência.

Entende-se aqui projeto ético-político renovado, como a construção uma sociedade que tem
princípios em uma interpretação das escrituras sagradas do cristianismo, onde a família é vista
como centro da sociedade, e na centralidade da família está o homem. Segundo um dos
entrevistados o tema família é tratado com seriedade pelos pastores da igreja, não aceitando
como membros efetivos da igreja pessoas que não tenham sua vida conjugal regularizada,
com o estabelecimento do casamento civil formal.

Nas palavras deste entrevistado, “eles são muito fieis, ele [o pastor] não dá vazão para casais
que vivem juntos, mas no papel não são casados. Não participa de nenhum grupo, não
participa da ceia. [...] ele coloca isso, o homem é o chefe da família [...] o homem tem que
viver para a mulher e a mulher para o homem. [...] como a Bíblia fala”.

2101
Esta ideia de vida renovada relacionada com um projeto familiar maior é percebida na fala
dos seus membros. No mural de recados da igreja, disponibilizado no sítio da igreja na
internet encontra-se postado:3

É maravilhoso pertencer a esta Família. Lugar onde aprendemos a viver na dimensão


daquilo que Deus sonhou para nossas vidas, nossa família e nossa igreja - uma verdadeira
família: A Família Renovada. Abraços aos nossos pastores e todos aqueles que juntos a nós
fazem a Família Renovada. Todos vocês são muito importante para nós! Em Cristo Vida
Renovada!

A família do pastor é vista como um exemplo por algumas pessoas. O pastor se coloca a
disposição para orientar os casais, é o que revela os entrevistados. Na igreja há duas
atividades voltadas para a orientação da vida conjugal. Semanalmente a pastora (como é
chamada a esposa do pastor) reúne-se com as mulheres e uma vez por mês à noite o pastor
com os homens.

O que se nota é a necessidade de certo controle sobre os integrantes da igreja através do


estabelecimento do estilo de vida renovado. Este estilo de vida é colocado como padrão a ser
seguido, e tem na família do pastor um modelo. No sítio da igreja na Internet, um das
chamadas expostas durante o ano de 2011, foi uma foto contendo o casal de pastores e seus
filhos. Todos vestidos de modo formal, representando a Excelência, um dos motes para o ano
de 2011 na igreja foi: “2011, ano da excelência”.

Considerações finais

As falas, a observação e o material analisado apontam para a ideia do estabelecimento de um


estilo de vida renovado, fundado no conceito de uma família renovada. Onde se faz presente
uma organização baseada na liderança firme e hierárquica determinada, 4 vislumbra-se uma
sociedade que se firmará em um projeto ético-político pentecostal.

No ordenamento religioso da IPRB (2002, p. 51) encontram-se algumas regras referentes ao


testemunho dos membros da igreja:

3
Disponível em: http://www.vidarenovada.com.br/ em 24 de abr. de 2012. Manteve-se a grafia original da
postagem no sítio da igreja.
4
Nas normas da IPRB (IGREJA PRESBITERIANA RENOVADA DO BRASIL, 2002),

2102
Art. 72. No ato de admissão, o novo membro deverá afirmar que: I. obedece a Deus e
sujeita-se à Igreja, enquanto esta for fiel à Bíblia; II. mantém sua vida em estado de
santificação, conforme os ensinos bíblicos [...]; III. busca com interesse o batismo com o
Espírito Santo e os dons espirituais, conforme [...]; IV. acha-se liberto de todos os vícios e
de tudo que provoque sensualismo [...]; V. abstém-se de todos os negócios inconvenientes
especialmente os relacionados a vícios, a loterias, a rifas, etc. [...]; VI. abstém-se das coisas
sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne sufocada e da fornicação [...]; VII. acata as
deliberações da IPRB, tomadas por seus órgãos administrativos.

No modelo de obediência proposto, a presença da pastora (esposa do pastor titular) se dá


sempre de modo coadjuvante. Ela só se pronuncia quando solicitada por ele. Para orar, ou dar
alguma palavra específica. O pastor bem vestido, com uma oratória fluente, de fácil
compreensão, mas sem linguajar vulgar, dita comandos que são seguidos pela plateia. A
pastora, vestida a de modo formal, sem exageros, aparece como a anfitriã da cerimônia, a
dona da casa que cuida para que tudo esteja pronto para receber as visitas.

Há necessidade de identificação com o público alvo, tanto por parte da pastora, quanto do
pastor. O público deve perceber que há na liderança um comportamento semelhante ao dele,
comportamento de alegria e satisfação, pois isso também é doutrinador. É como se esta fosse
uma mensagem silenciosa, mas enfaticamente comunicada neste momento.

As homilias (sermões) não trazem nenhuma profundidade no que se referem às questões


religiosas, sociais, políticas. Não seguem o padrão de uma reflexão sobre um determinado
assunto. São discursos informativos, com chamadas à obediência, a estabelecimento de um
estilo de vida renovado. Este estilo de vida é caracterizado pelo padrão que a igreja (os
pastores) estabelece, justificando ser orientação bíblica.

Além dos discursos, as outras falas (cânticos, gestos, orações, avisos etc.) mantêm a mesma
perspectiva. Sem uma reflexão, sem levar a questionamentos que possibilitem uma interação
com a sociedade. Os discursos são personificados, pessoais. Tratam da relação individual com
o divino, com a igreja e com a família. Não há uma preocupação com a sociedade como um
todo.

É um discurso individualizante, como se espera dos discursos aos segmentos médios urbanos,
que mantém a intersubjetividade distante, expondo um individualismo, que se apresenta a
partir de um discurso que valoriza apenas a relação com a divindade e a necessidade de uma

2103
vigilância constante para não cair em pecado. Qualquer expressão de coletividade é exposta
dentro de um projeto maior de individualização.

Em nenhum momento desta observação, houve um discurso que mostrasse uma relação de
igualdade entre homens e mulheres, ou que estabelecesse uma superioridade masculina de
forma explícita. Entretanto pude perceber mesmo não havendo uma exposição específica,
gestos, atitudes, comportamentos revelam uma mulher submissa, recatada, que espera ser
chamada à cena para desempenhar seu papel.

Como já foi dito, a presença feminina durante os cultos é marcante. Tanto na recepção dos
visitantes, como na própria plateia. Ao ouvir os depoimentos de pessoas que iriam se batizar
no telão, e depois em vídeos postados na internet, percebe não só a presença feminina, como a
influência delas no processo de captação de novos membros. Dois dos depoimentos
observados mostraram que os maridos foram levados para a igreja pelas suas esposas, durante
uma crise no casamento. É o foco na reestruturação familiar.

E esta é uma tônica muito forte no discurso da pastora da Igreja. Em entrevista cedida a um
programa de televisão local5 em março de 2010, ela fala da sabedoria da mulher em “construir
sua casa”, colocando nas mãos da própria mulher a responsabilidade de manutenção do
casamento. Ela afirma falando diretamente a mulheres: “Busque em Deus o seu bem estar,
você está completa, por que aí você vai fazer do seu casamento não uma rotina, mas uma
novidade diária” (ANDRADE, 2010).

A presença nos cultos como auxiliar, revela um lado genuinamente maternal. A atitude de
companheira presente que está sempre disposta a servir seu marido. Durante um dos cultos a
pastora se aproximou do seu marido para arrumar a sua roupa (gravata). Como a própria
pastora havia dito na entrevista dada a um programa local de televisão (entrevista citada
anteriormente), há uma necessidade de a mulher cuidar da sua casa, o que a faz sábia, e cuidar
da aparência do marido faz parte desta sabedoria. Foi uma manifestação de carinho e cuidado
com o esposo em público que revela a “sabedoria da mulher”. Este modelo construído de
mulher líder (ideia de chefia) passa a ser observado pela comunidade, e de alguma forma é
reproduzido por outras mulheres.

Algumas pistas se apresentam neste estudo que merecem atenção mais específica. A crença
de uma natureza feminina presente no discurso e na prática da Igreja Presbiteriana Renovada,
5
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=kYnbZRUuv9s&feature=related

2104
o que demonstra claramente que dentro do projeto ético-político não há espaço para igualdade
de gênero. Outro ponto que merece destaque é a centralidade na figura masculina que reforça
o discurso e a prática de uma dominação masculina, fazendo da mulher uma protagonista por
aproximação, neste processo de estabelecimento de uma sociedade renovada.

O papel da mulher é o de auxiliadora, de assistente, mas de extrema importância no processo


de implantação do projeto ético-político. Sua importância no projeto supracitado é o de servir
de exemplo para o modelo baseado na obediência. Daí seu protagonismo por aproximação.

No projeto ético-político deste modelo de pentecostalismo há espaço para a família, para uma
família que vive um estilo de vida específico. Estabelecido a partir de um discurso
individualizante que aponta para uma sociedade melhor de se viver. Uma grande família,
liderada por pessoas sábias e preparadas para tal ação. Esta liderança, escolhida por Deus é
quem podem orientar todos no caminho da felicidade.

Um projeto arriscado, mas que vem ganhando muitos adeptos. Não só de pessoas não
oriundas de igrejas evangélicas, mas também a presença maciça de cristãos evangélicos que
tem migrado para a Igreja Presbiteriana Renovada, em busca de uma vida renovada.

Referências

ANDRADE, Cláudia Helena Josepetti. Família. Programa Você em Dia. Aracaju, Março de
2010. Entrevista concedida a Tamires Franci. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=kYnbZRUuv9s&feature=related>. Acesso em 05 de mai.
2013.

CARVALHO, Maria Delma. A Primeira Igreja Presbiteriana Independente de Assis – suas


origens históricas, o movimento divisionista (1962-1972) e a criação da Igreja Presbiteriana
Renovada. Orientação de Antonio Carlos Bernardo. Dissertação (Mestrado em História),
UMESP, Assis, 1985.

FRESTON, Paul. Entre o pentecostalismo e o declínio do denominacionalismo: o futuro das


igrejas históricas no Brasil. In GUTIERREZ, Benjamim; CAMPOS, Leonildo Silveira. Na
força do Espírito: os pentecostais na Américas Latina. São Paulo: Pendão Real, 1996. p. 257-
276.

GINI, Sérgio. Conflitos no campo protestante: o movimento carismático e o surgimento da


Igreja Presbiteriana Renovada (1965-1975). In: Revista Brasileira de História das Religiões.

2105
ANPUH, Ano III, n. 8, Set. 2010, p. 121-164. Disponível em:
<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf7/08.pdf> . Aceso em: 20 de dez. 2012.

IGREJA PRESBITERIANA RENOVADA DO BRASIL. Normas da IPRB - Advanir Alves


Ferreira (coord.). Arapongas, PR: Aleluia, 2002.

LÉONARD, Émile G. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. 3.


ed. rev. São Paulo: ASTE, 2002.

LIMA, Eber Ferreira Silveira. A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil e o


pentecostalismo: um estudo de caso e pistas pastorais. In: GUTIERREZ, Benjamim;
CAMPOS, Leonildo Silveira. Na força do Espírito: os pentecostais na Américas Latina. São
Paulo: Pendão Real, 1996. p. 245-256.

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste povir: a inserção do protestantismo no Brasil. São


Paulo: ASTE; Pendão Real, 1995.

________. Protestantismo no Brasil: um caso de religião e cultura. Revista USP, n.74, São
Paulo, p. 160-173, 2007. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/74/12-
antoniogouvea.pdf>. Acesso em 23 de mai. 2013.

________. Protestantes, pentecostais & ecumênicos. 2. ed. São Bernardo do Campo:


UMESP, 2008.

SANTOS, Leontino Farias. Educação: libertação ou submissão. São Paulo: Simpósio, 1999.

2106
2107
A religião, a racionalidade protestante e a sociedade de Fausto
Carlos Antonio Carneiro Barbosa1

Introdução

Prenhe de simbolismo, o pentecostalismo contemporâneo coleciona grande número de


práticas rituais executado unicamente com a finalidade de provocar deliberadamente o efeito
do numinoso em que, mediante certos artifícios mágicos, a opulência passa a ser um dos
principais motivos de culto e celebração. Diante do jogo de imagens e performances
envolvendo sinais, o fiel não sabe para onde deve direcionar o seu olhar: se para o céu e as
catedrais e templos majestosos que se propõe a intermediá-lo; se para a terra remota em que é
chamado à aventura ritualística. Diante dos conteúdos instintivos da libido despertos nessa
viagem discursiva, resolve resolutamente atender ao chamado das terras remotas e oferecer o
seu sacrifício, não se apercebendo da transformação energética pela qual passou a sua libido.

Delimitando-se à interpretação dada ao mito de Fausto, conforme contribuição da escola


junguiana e às suas interfaces fenomenológica e sociodiscursiva em Ciências da Religião, o
presente texto objetiva comparar o mito de Fausto com o modelo weberiano de racionalidade
protestante; em suas relações com a religião contemporânea de opulência e com a ética do
consumo na sociedade tal qual expresso no discurso de lançamento da pedra fundamental e
construção do Novo Templo de Salomão da IURD, Igreja Universal do Reino de Deus, na
cidade de São Paulo, com inauguração prevista para junho de 2014.

O mito de Fausto e as raízes psicológicas da religião de mercado

O mito do Doutor Fausto urde como constructo da representação do homem moderno e, ao


mesmo tempo, da racionalidade própria de nossa sociedade contemporânea. Suas origens são
perfeitamente sondáveis, pois trata-se de um mito moderno e, mais, um mito vivo e pulsante.

1
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Mestre em Ciências da Religião pelo Mackenzie. Membro
do GEstudos do Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP) da PUC/SP. Orientado pelo Prof. Dr. Edin Sued
Abumanssur. Contato: carlosantoniobarbosa.doutorado@aol.com.

2108
À figura histórica de Johann Georg Faust agregam-se, na Alemanha do século XVI,
características bastante peculiares de homens como Agrippa von Nettesheim e Paracelso,
ambos alquimistas e seus contemporâneos, gerando o substrato lendário do mito. Após a
publicação em 1587 do Faustbuch2 (SPIES; SCHWENGBERG, 1885), registro não
totalmente verídico acerca das façanhas e profanidades de Georg Faust, o mito incipiente
chega à Inglaterra agregando desta vez traços personais do mago elisabetano Doutor John
Dee. Dessa mescla entre o mito alemão e o mago inglês nasce o Fausto literário por meio da
peça escrita entre 1588 e 1589 por Christopher Marlowe, A história trágica do Doutor Fausto
(MARLOWE, 2006). Popularizada, a história ganha as feiras europeias adaptada para o teatro
de marionetes. E foi assim nesse formato que o mito chegou ao conhecimento de Johann
Wolfgang von Goethe, poeta, dramaturgo e filósofo alemão. Autor de Fausto: uma tragédia –
primeira parte (GOETHE, 2004) e Fausto: uma tragédia – segunda parte (GOETHE, 2011)
— 1808 e 1832 —, foi o responsável pela consolidação e universalização do mito, sendo
considerado seu principal expoente. Trabalho de toda uma vida, o Fausto goethiano foi
amplamente explorado por Carl Gustav Jung, fazendo parte considerável de seus estudos
sobre a psicologia arquetípica do inconsciente.

Dentro deste escopo, pode-se pensar na seguinte evolução da imagem do Dr. Fausto: (1)
personagem histórico que viveu na época da Reforma; (2) personagem lendário; (3)
personagem literário e, finalmente, (4) adquire o status de símbolo do homem contemporâneo,
passando a gerir ideologicamente o seu discurso. Este sentido acerca do Fausto adquirido
através da história fala ao homem contemporâneo enquanto sujeito e o interpela, “mostrando
que se encarnou na criatura humana, com todas as consequências decorrentes de uma tal
dominação” (JUNG, 2011d, p. 69).

Avançando um pouco além, procuramos, durante o período de realização de nossa dissertação


de mestrado, relacionar o mito de Fausto com a religião de mercado, para se compreenderem
dentre outros aspectos as raízes psicológicas da sociedade de consumo e da própria teologia
da libertação oferecendo, em nossa concepção original, o principal embasamento ao tema do
Fausto perante a psicologia do inconsciente, a psicologia arquetípica de Carl Gustav Jung.
Apontando inequivocamente para o substrato avançado presente nas conceptualizações da

2
O Faustbuch — Das Volksbuch von Doktor Faust —, impresso originalmente em Frankfurt, contém o relato
acerca das origens do Doutor Fausto. Advindo sobretudo da tradição oral, o mito nasce fruto da ampla polêmica
surgida em torno da figura do mago e alquimista Johann Georg Faust, o Fausto Histórico, suscitando as mais
imprevisíveis associações no imaginário popular as quais, amalgamadas, dão corpo ao Fausto Lendário,
perpetrado na obra editada e impressa em formato popular — Volksbuch — por Johann Spies.

2109
psicologia profunda junguiana no que tange, sobretudo, à dominação pela sombra e às demais
categorias relacionadas à fenomenologia arquetípica faustiana, em suas relações com o
fenômeno religioso contemporâneo — os resultados de nossa pesquisa encontram-se também
publicados no livro O Deus sensual – psicologia simbólica e religião: o mito de fausto e a
representação do sagrado na religião de mercado (BARBOSA, 2013) e na obra Religião e
psique – psicologia social: estudos de religião e protestantismo (GOMES; BARBOSA,
2012), no capítulo intitulado Fausto e a Noite de Walpurgis: o mito do Fausto, a sombra e a
psicologia junguiana.

Dinastias hereditárias de mistagogos

Ao primeiro alvor da Igreja Cristã, a rejeição do status quo foi motivo fulcral para que a ética
religiosa racional viesse a fincar suas raízes positivas e primárias no solo das camadas sociais
de menor evidência atraídas por promessas proféticas a um movimento religioso de caráter
ético, no caso, o cristianismo matricial, portador da ética do Sermão da Montanha, pois,
conforme descreve Max Weber, é neste sermão que se encontra a mais pura expressão da
ética absoluta do Evangelho:

Tudo aquilo que se disse a propósito de causalidade em ciência aplica-se


também à ética: não se trata de um veículo que se possa deter à vontade,
para descer ou subir. A não ser que ali se enxergue apenas um repositório de
trivialidades, a ética do Evangelho é uma ética do “tudo ou nada”. A
parábola do jovem rico, por exemplo: “E ele se foi de coração triste, porque
possuía muitos bens” (WEBER, 2009, p. 113).

O cristianismo, assim, surge como uma compensação à religião romana, frente à degradação
do império e assim o arquétipo cristão constela-se e permanece praticamente incólume como
ordenador do Ocidente até o advento da modernidade. Com o surgimento dos alquimistas por
volta do século X, os quais exaltam a natureza e por meio da gnose buscam meios de
desvendar os seus mistérios, a matéria ganha o status alquímico que a nivela com o espírito,
extinguindo conceitualmente a separação entre as coisas terrenas e as celestiais, conforme
propunha o dogma cristão. Entretanto, tal proposta só colheria seus primeiros frutos durante a
Renascença que marca o início do heliocentrismo moderno que, a despeito dos antigos mitos

2110
solares, fundamenta-se na racionalidade não fugindo, entretanto, do retrocesso ao arquétipo
pré-cristão presente nos mistérios de mitra da religião romana.

Essa psicologização do novo culto ao Sol leva o homem de volta à terra, após um longo
período em que só tinha olhos para o céu, para o porvir. A natureza e toda a sua exuberância é
redescoberta, a primeira viagem de circum-navegação do globo vem provar que os abismos e
os monstros das extremidades da terra eram meramente ficcionais; os fundamentos da ciência
são lançados e até a arte substitui a temática religiosa e passa a retratar o mundo visível;
quebrando tabus em típicos retratos pré-freudianos: eros e thanatos, na expressão de toda a
nudez não mais castigada e na dissecação de cadáveres em nome da ainda incipiente medicina
moderna: “a arte [...] foi dominada pela multiplicidade de aspectos da terra, por seus
esplendores e horrores, e tornou-se o que fora a arte gótica: um verdadeiro símbolo do espírito
da época” (JUNG, 2008, p. 329).

Ainda segundo Jung (2011i), apesar de todas as inovações renascentistas, ocorridas nos
campos das artes, filosofia e ciências, é bastante significativo que a representação artística do
símbolo cristão, a cruz, não foi alterada, demonstrando a desvalia não sofrida pelo homem
religioso frente ao homem da terra: permanecem os dois modelos, entretanto, ciência e fé
prosseguem nessa rota de crescente distanciamento chegando ao presente século na expressão
de um Zeitgeist caracterizado pela cisão psicológica coletiva e a um passo da total
desagregação da dominante cristã.

Consonantemente a isso, o rompimento místico e estético da Reforma Protestante acaba por


deixar um enorme vazio na sociedade da época. Esse vazio no sentir e no olhar da
representação do sagrado destituído, apresentado como substituto num mundo onde as
catedrais e os paramentos sacerdotais representavam o céu, em contraposição com a terra
infernalis, ocupada por feiticeiras, demônios, monstros e criaturas das sombras; não é de
pronto assimilado pela população que assim vê no mago e na magia por ele praticada o único
meio de organizar o caos.

Os magos, do alto clero, de pronto atendem às classes mais abastadas, pois em sua grande
maioria, têm sua origem na nobreza ou são detentores de grande cultura e erudição — nobres,
clérigos, filhos de comerciantes —, ou enquadram-se em ambos os casos. A presença dos
magos do alto clero na corte real era fato: consultorias sobre questões científicas envolvendo
agricultura, geometria, cosmografia náutica, sucessão real, guerra ou aliança entre reinos ou

2111
questões hermético-alquímicas — menos nobres, mas não menos importantes à época —
como as artes divinatórias, as chamadas mancias, prognósticos, horóscopos, poções e venenos
poderosos. Nos palácios — mas também nos tugúrios, na atuação dos magos do baixo clero
—: o caos é organizado!

Afiançando-nos em nossas pesquisas (BARBOSA, 2013), Johann Georg Faust, o Fausto


histórico, pertenceu — ou ao menos buscou por todos os meios cabíveis pertencer — a esse
seleto grupo de astrólogos e alquimistas dos quais se acercavam os soberanos em busca de
orientações às questões da Corte e do Estado: eram homens a serviço da humanidade. Para
Weber (2008), a origem desses homens a serviço da humanidade, remonta os tempos em que
se atribuía aos deuses tribais e locais — os deuses da cidade e do império — os interesses da
coletividade. Questões climáticas (chuva, Sol), a guerra, proteção dos vilarejos e cidades eram
o alvo dos cultos de fertilidade, das cerimônias de canibalismo — o comer da força e valentia
dos adversários —, e dos sacrifícios de donzelas virgens para aplacar a ira dos deuses dos
mares embravecidos e a fúria dos vulcões deificados. Tudo isso relacionado com o coletivo,
com a comunidade como um todo. A teodiceia do indivíduo, porém continuava sem
explicação — leia-se, aqui, explicação, como solução haja vista a visão pragmática e não
especulativa ou filosófica do homem arcaico.

Como única opção para evitar ou eliminar suas mazelas, sobretudo a enfermidade, o
indivíduo, enquanto indivíduo e não no escopo da coletividade, começou a buscar no
feiticeiro seu conselheiro pessoal e espiritual. Alcançando prestígio e contando com a
proteção de agrupamentos humanos e tribos, em virtude da prática milagrosa realizada
mediante a invocação dos seus espíritos e divindades particulares, os magos passaram a
formar, em condições favoráveis, comunidades religiosas, expandindo-se além dos limites
regionais e associações puramente étnicas, às dinastias hereditárias de mistagogos como as
dos mistérios, gnose e sociedades secretas. Tais mágicos particulares prometiam livrar o
indivíduo, solo, das enfermidades, da pobreza e doutras formas de sofrimento e infortúnio.

Desde sua origem, os mistagogos sempre estiveram presentes na história da humanidade —


como, diga-se de passagem, o estão até os dias de hoje — e resguardados sob os auspícios da
Reforma Protestante, em sua máxima da liberdade do individuo, ganham preeminência e
tornam-se cada vez mais influentes na maneira de pensar e de enxergar o mundo durante e
após o Iluminismo.

2112
A concentração da energia dos arquétipos e as ações coletivas

Por mais incisivas que as influências sociais, determinadas econômica e


politicamente, possam ter sido sobre uma ética religiosa num determinado
caso, ela recebe sua marca principalmente das fontes religiosas e, em
primeiro lugar, do conteúdo de sua anunciação e promessa (WEBER, 2008a,
p. 191).

Na Londres pós-Segunda Guerra — novembro de 1946 —, em seu terceiro programa junto à


British Broadcasting Corporation (BBC), Jung descreve com base no inconsciente coletivo a
plausibilidade de se obter a concentração da energia dos arquétipos “através de ritos e outros
apelos à emoção das massas com o objetivo de levar as pessoas a ações coletivas” (JUNG,
2008, p. 99), como ocorrido no conhecido método empregado pelo Partido Nacional
Socialista na Alemanha, como meio de mobilizar as massas.

Naquela época, o povo alemão vivia o caos e a desorganização do seu mundo há anos; é
quando o reflexo dessa crise insolúvel passa a incidir sobre as pessoas desorientando-as
psiquicamente. Para compensar o fato, emergem do inconsciente coletivo os arquétipos da
ordem que encontram na consciência alienada do povo o solo fértil de onde irromperiam os
instintos de massa: “o ataque tempestuoso das forcas arcaicas foi quase universal [...] a
principal diferença residia na própria mentalidade alemã que, em razão de sua extraordinária
tendência para a massificação, mostrou-se mais propícia” (JUNG, 2011a, p. 53).

Por meio da adoção de todo um aparato cênico-religioso firmado nos mitos teutônicos
redivivos com o fim de arregimentar o povo para a sua causa e pelo emprego de ritos e outras
técnicas de psicologização das massas, sabiam como a energia dos arquétipos poderia ser
concentrada levando o exército, as tropas e multidões inteiras a ações coletivas, na adoção dos
mitos ancestrais adormecidos como símbolos do partido dos trabalhadores e na consequente
constelação dos arquétipos do panteão nórdico no inconsciente coletivo: “este fenômeno
acontece no indivíduo como revolução psicológica, mas pode também manifestar-se sobre a
forma de fenômeno social” (JUNG, 2011c, p. 21).

Procedendo desse ponto o trespassing, temos que Max Weber em seu ensaio A Psicologia
Social das Religiões Mundiais (WEBER, 2008, 189-211), explica o momento psicológico-

2113
histórico, no qual os feiticeiros e magos passaram a ser valorizados e consultados por
indivíduos em busca de soluções para seu sofrimento pessoal. Paralelamente para Jung
(2011g), o Fausto alude a uma imagem originária correspondente à figura do médico,
professor que, por outro lado, é o bruxo, um feiticeiro tenebroso. Dois arquétipos aqui são
levados em conta: o arquétipo do sábio — portador de auxílio e salvação — e o do mágico,
ilusionista, sedutor, enganador, diabolos. Tal imagem dormita no inconsciente coletivo até ser
despertada em um dado momento crítico em que a humanidade costuma buscar por
menestréis de uma nova história da realidade humana, os Führers, os mestres, os médicos-
monstros, os quais representam o médico mítico e a força dos opostos do doutor cura-feridas,
o qual, portador de uma grande ferida, costuma transferi-la de pronto aos seus seguidores: “as
palavras substituem coisas, são palavras de força. Surge simplesmente um mágico da palavra,
pelo qual nos deixamos impressionar demais, porque aquilo que nos é estranho é tomado
como algo particularmente profundo e importante” (JUNG, 2011h, p. 111).

O culto ao objeto de desejo

[A] libido de uma atividade espiritual passa a um interesse essencialmente material, sendo
que o indivíduo acredita erroneamente que a forma nova seja de natureza espiritual. Em
princípio, tal conclusão é falsa, pois leva em conta somente a relativa semelhança das duas
formas, mas ignora a sua diferença tão essencial quanto a semelhança (JUNG, 2011b, p.
31).

A construção do Novo Templo de Salomão da IURD, na capital paulistana, encontra-se no


momento em sua fase final e remete-nos, mais uma vez, à questão do objeto de desejo,
expresso naquilo que chamaríamos de culto ao objeto de desejo, e vamos procurar entender
agora o porquê.

Podemos falar aqui de categorias, em uma análise do discurso que leva em conta a
metalinguagem, tomando o proposto Templo de Salomão como duas palavras containers:
templo e Salomão. Em uma análise ainda inicial, incipiente, abordaremos a palavra templo.

Templo é uma palavra container cujo conteúdo exprime toda uma gama ideológica, um leque
de referenciais e de representações objetivas e subjetivas, contemporâneas e do passado.
Como o enigma é decifrado nas camadas do inconsciente? Como é entendido o signo pela
pessoa simples, culta, religiosa, ateia, pelo moço, pelo idoso, pelo homem, pela mulher, pela

2114
criança? Templo expande-se psicofilologicamente em contemplo (minha atitude diante de
Deus). Psicoauditivamente em Tempo (para Deus) e Tempo (é dinheiro) ou; também: Tento —
de tentativa — o templo é o lugar da tentativa da fé, da mudança, de encontrar a Deus; é onde
“eu tento isto” ou “tento aquilo”. Psicoauditivamente por aproximação silábica,
desconhecimento do significado em Tem pró (s) (e contras). Psico-historiograficamente em
Templários, os cavaleiros que defendiam o templo:

É fato comprovado que as associações não estão ligadas entre si apenas por meio do
sentido, ou respectivamente pelas leis fundamentais da associação — contiguidade e
semelhança — mas também por certos princípios puramente externos e acústico-motores
[por exemplo] ressemblance phonétique, ressemblance graphique, ressemblance syllabique
(JUNG, 2011f, p. 47).

Somando-se a isso, em resumo, à palavra container Salomão; a liderança primaz da IURD,


constela em si mesma, dentro da configuração parcial do corpus3 discursivo analisado, a
figura arquetípica do rei Salomão — não evocando conscientemente ao rei Herodes, figura
nababesca, de luxo e ostentação, pois não se reporta nunca ao templo de Herodes: o templo de
Herodes foi destruído! — mas, sim, a Salomão, o homem que recebeu de Deus a ordem
expressa acerca da construção do Templo. Assim como Salomão, a IURD teria recebido “a
aprovação divina para a realização do projeto do Novo Templo de Salomão” (BARBOSA,
2013, p. 180).

O dote desse legado, dessa palavra container, Salomão; é, segundo nos informa a tradição
judaico-cristã, o dom de se tornar o homem mais rico de todos os tempos e,
consequentemente, de ser o homem mais poderoso. O dom da riqueza, nesses termos, “pode
ser transmitido aos fiéis por profecia“ (BARBOSA, 2013, p. 181) que, assim, são convidados
à aventura da luta, da revolta contra a miséria, do esforço e do sacrifício, pois dessa forma
atrairão para si as riquezas de Salomão.

Tal chamado à aventura, não esboça psicologicamente uma jornada da fé, senão um mergulho
aos palcos do inconsciente coletivo, nascedouro de uma religiosidade não originada da Imago
Dei, mas sim da sombra (BARBOSA, 2013), daquele lado mais obscuro da personalidade
humana, cenário propício para o surgimento de forças inconscientes incontroláveis, na
emergência de um sistema de culto que, inconscientemente, privilegia a sombra como ponto

3
O corpus inicial da pesquisa reúne sermões e pronunciamentos proferidos entre julho de 2010 a fevereiro de
2011, transmitidos originalmente ao vivo e disponibilizados no site IURDTube pela própria Igreja Universal do
Reino de Deus. IURDTube. Disponível em: <www.iurdtube.com.br>. Acesso em: 19 fev. 2011.

2115
de referência para o seu desenvolvimento e adoração, na mais tácita expressão de formas
elementares de vida religiosa, como a própria religião de mercado e seus derivados.

Considerações finais

Assim, a análise empreendida ao corpus discursivo em questão, relacionado à construção do


Novo Templo de Salomão, revelou em nossas pesquisas de mestrado um possível, mas ainda
passível de ulteriores verificações, distanciamento do modelo conceitual proposto de
racionalidade protestante e uma provável aproximação daquilo que convencionamos por
categorias próprias da Sociedade de Fausto (BARBOSA, 2007), em que a ética da prática
religiosa dita de confessionalidade cristã não se utiliza propriamente do dogma cristão
gerando, hipoteticamente, a exposição de todo um corpo de fiéis à Noite de Walpurgis4 do
Espírito (BARBOSA, 2012), ou dominação pela sombra:

“A solução que Goethe deu ao problema ainda era medieval. No entanto correspondia a
uma atitude anímica, que dispensava a proteção da Igreja. Goethe era moderno e
imprudente. Nunca entendera bem o que o dogma cristão protegia na Noite de Walpurgis do
Espírito” (JUNG, 2011e, p. 119).

Referências
BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro. Faust’s Society. Os Três Pilares. 1ª edição. São Paulo:
MHW, 2007.
__________. Fausto e a Noite de Walpurgis: o mito do Fausto, a sombra e a psicologia
Junguiana. In: GOMES, Antonio Maspoli de Araujo; BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro
(orgs.). Religião e psique – psicologia social. Estudos de religião e protestantismo. 1ª edição.
São Paulo: Reflexão, 2012, p. 143-180.
________. O Deus sensual – psicologia simbólica & religião. O mito de Fausto e a
representação social do sagrado na religião de mercado. 1ª edição. São Paulo: Reflexão, 2013.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia – primeira parte. Tradução de Jenny
Klabin Segall, 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2004.
________. Fausto. Uma tragédia – segunda parte. Tradução de Jenny Klabin Segall, 3ª edição.
São Paulo: Editora 34, 2011.

4
A Noite de Walpurgis, na concepção de Goethe, equivale de certa maneira às saturnais ou bacanais da
antiguidade e tem seu respaldo nas descrições obtidas pela vasta pesquisa empreendida pelo poeta acerca das
missas satânicas na Idade Média. É na Noite de Walpurgis que se dá o descensus ad inferis de Fausto, pois a sua
busca orgiástica não finda e termina por absorvê-lo.

2116
GOMES, Antonio Maspoli de Araujo; BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro (orgs.). Religião
e psique – psicologia social. Estudos de religião e protestantismo. 1ª edição. São Paulo:
Reflexão, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo. Tradução de Márcia C. da Sá
Cavalcante, 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011a.
________. A energia psíquica. Tradução de Maria Luiza Appy, 11ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011b.
________. Civilização em Transição. Tradução de Lúcia Orth, 4ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011c.
JUNG, Carl Gustav. Escritos diversos. Tradução de Mateus Ramalho Rocha e Lúcia Orth, 2ª
edição. Petrópolis: Vozes, 2011d.
________. Estudos alquímicos. Tradução de Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva e Maria
Luiza Appy, 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011e.
________. Estudos experimentais. Tradução de Lúcia Orth, 2ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011f.
________. O espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros, 6ª edição.
Petrópolis: Vozes, 2011g.
________. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho, 2ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
________. O Símbolo da transformação na missa. Tradução de Mateus Ramalho Rocha, 6ª
edição. Petrópolis: Vozes, 2011h.
________. Psicologia e alquimia. Tradução de Maria Luiza Appy, Margaret Makray e Dora
Mariana Ribeiro Ferreira da Silva, 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011i.
MARLOWE, Christopher. A história trágica do Doutor Fausto. Tradução de Adolfo de
Oliveira Cabral, 1ª edição. São Paulo: Hedra, 2006.
SPIES, Johann; SCHWENGBERG; Maximilian. Das Spies'sche Faustbuch und seine quelle.
1ª edição. Berlin: O. Parrisius, 1885.
WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo, 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
________. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra, 5ª edição. Rio de Janeiro:
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________. Ciência e política. Duas vocações. Tradução de Jean Melville, 2ª edição. São
Paulo: Martin Claret, 2009.

Internet
IURDTube. Disponível em: <www.iurdtube.com.br>. Acesso em: 19 fev. 2011.

2117
2118
A teologia da prosperidade e Igreja Universal do Reino de Deus
Fernanda Vendramini Gallo1357

Introdução

Formadas a partir de 1970, as igrejas neopentecostais realizaram uma verdadeira renovação


no significado do que é ser igreja. Caracterizadas pelo abandono dos hábitos e costumes,
deixam os antigos estereótipos e inovam na criação de novos ritos, práticas e costumes
(MARIANO, 1999) .

A utilização da Teologia da Prosperidade é elemento fundamental a todas as igrejas


neopentecostais. Essa Teologia marca a busca por felicidade, saúde e dinheiro, a partir da
relação contratual estabelecida com Deus. Realizando uma inversão de valores, a Teologia da
Prosperidade rompe com a ideia de que o sofrimento glorifica o homem e sua recompensa é
além mundo, para exigir o Paraíso na Terra. Seus cultos são vistos como hospitais espirituais,
onde são evidenciadas a cura física e emocional, a solução dos problemas afetivos e
familiares, a libertação do Diabo e a prosperidade material. Acusada de charlatanismo,
superficialidade teológica e outros adjetivos não tão prestigiosos por segmentos da sociedade
e da mídia, em contrapartida a uma grande adesão popular, as igrejas neopentecostais,
sobretudo a Igreja Universal do Reino de Deus, conquistaram espaço, poder e reconhecimento
social, tanto na sociedade brasileira quanto no exterior.

Questões metodológicas

A ciência, no estudo da religião, para Oliveira (1998), é a responsável por traduzir em códigos
científicos a linguagem, as metáforas, analogias e as experiências emocionais, sem cair, como
muitas vezes acontece, em um reducionismo empobrecedor. É fundamental entender o
discurso do crente de maneira a traduzi-lo corretamente, sem pré-conceitos.

A metodologia da Análise de Discurso (AD), que ao mesmo tempo se faz teoria, desenvolvida
por Pêcheux é constituída por uma reflexão feita a partir da linguagem, sujeito, ideologia e a

1357
Mestranda em Sociologia pela UEL. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela mesma universidade.
Bolsista Cnpq. Orientado pelo Prof. Dr. Fabio Lanza. Contato: nanda-gallo@hotmail.com.

2119
história, colocando em evidência o papel da interpretação. De acordo com Eni Orlandi (1999,
p. 09), “não temos como não interpretar”, ou seja, sempre estamos sujeitos a interpretar o que
está à nossa volta, seja uma imagem, uma música, um texto e tudo o mais que nos é
apresentado, de maneira que os sentidos nunca estão soltos. Na AD, a linguagem não é
entendida como um sistema abstrato, mas enquanto discurso, como maneira de dar
significado, de produzir sentidos.

A palavra é um signo social. Sua análise permite compreender seu funcionamento como
instrumento da consciência, pois ela acompanha todo ato ideológico. “A palavra está presente
em todos os atos de compreensão e em todos os atos da interpretação” (BAKHTIN, 1986, p.
38).Toda esfera ideológica reage às transformações da realidade. A palavra é o elemento que
permite registrar as mudanças sociais e suas fases transitórias, pois “são tecidas a partir de
uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios” (BAKHTIN, 1986, p. 41).

A comunicação verbal é determinada pelas relações de produção e pela estrutura


sociopolítica. Marcado por uma época, todo signo ideológico, e consequentemente linguístico,
se afirma por meio das relações sociais de um grupo social determinado (BAKHTIN, 1986).

Diante do quadro metodológico apresentado, o objetivo do presente artigo é destacar a


palavra como prática, cuja atividade é interferir no real a partir da produção de sentidos. O
homem se significa na história, como destacam Bakhtin (1986) e Orlandi (1999), dependendo
de sua relação com a ideologia. Esta permite que a relação de sentidos entre
palavras/acontecimentos/objetos se efetive por meio da língua, na prática do discurso. “Desse
modo, o sujeito se constitui e o mundo se significa” (ORLANDI, 1999, p. 96).

A Teologia da Prosperidade e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)

A concretização deste trabalho foi possível a partir da coleta de informações, por meio da
pesquisa participativa e da realização de uma entrevista com o bispo e pastor (sob o
pseudônimo de) João Silva1358 da Igreja Universal na Rádio Atalaia na cidade de Londrina.
Antes vinculado a Igreja Católica e ao espiritismo, o bispo Silva em busca de solucionar
problemas familiares recorreu à IURD aos dezenove anos e converteu-se. Após exerce doze
1358
João Silva nasceu em vinte e sete de junho de 1960, na cidade do Rio de Janeiro, formado em teologia e
membro da Igreja Universal do Reino de Deus desde 1979.

2120
anos como pastor, foi consagrado bispo em 1985, correspondendo a vinte e quatro anos com
este título até 2009, ano em que foi realizada a gravação1359. A pesquisa participativa
acompanhada da elaboração de um caderno de campo foi realizada ao longo dos anos 2009,
2010 e 2011 nos cultos, com maior atenção às segundas-feiras, dia destinado pela IURD
exclusivamente à prosperidade financeira.

A partir da década de 1990, a sociedade brasileira passou a difundir com mais ênfase pelos
meios audiovisuais e impresso os valores capitalistas do empreendedorismo neoliberal. No
período, merece destaque o papel do desempenho individual nas conquistas materiais (LIMA,
2009).

A aceitação da Teologia da Prosperidade pela sociedade brasileira, concomitantemente o


surgimento de igrejas, como a Igreja Universal, e sua rápida expansão. Estabelece-se, assim, a
relação entre a realidade econômica brasileira e os ensinamentos da citada Teologia.

A Teologia da Prosperidade pode ser entendida a partir da busca pelo sucesso pessoal como
vontade do fiel e compromisso de Deus. Não mais movidos apenas pelas suas necessidades,
os indivíduos da sociedade contemporânea guiam suas ações em busca da satisfação de seus
desejos. Constitui-se assim uma nova identidade, construída a partir do consumo dos bens que
possuem e que podem possuir.

A gente usa a prosperidade como dom de Deus. Nós vemos vários versículos em Isaias em
outros livros da Bíblia, Deus dizendo que é dom dele que nós comamos, que nós bebamos,
que nós tenhamos o melhor. Como eu disse para você a pouco, Deus é pai e um pai que tem
prazer. Ele tem prazer em nos dar o melhor. Então, por isso, nós somos muito enfáticos
quando falamos isso para as pessoas em nossas reuniões (SILVA, 2009).

Este ideal de vida contemporâneo - caracterizado pela busca da felicidade por meio do
dinheiro, saúde e bem-estar - é notado em todo discurso iurdiano. Diz um pastor em Londrina

1359
Esta entrevista será doada ao Centro de documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) na Universidade
Estadual de Londrina- PR.

2121
É inadmissível eu seguir esse Deus e viver uma vida de miséria, ser pisado pelos outros.
Deus quer que você tenha um bom testemunho. Eu sei que o Senhor tem mais que me dar
do que esse meu salário aqui no altar (Informação verbal). 1360

A Teologia da Prosperidade moraliza o querer (MESQUITA, 2007). A pobreza samaritana,


sinônimo de desapego material e busca pela elevação espiritual, é rejeitada por este segmento
religioso como uma recusa à riqueza que o próprio Deus nos deu como herança.

A Igreja Universal usa os bens de consumo e bem-estar físico e emocional como requisitos
para demarcar as distinções sociais. Ela determina, de forma paradigmática, o que é ser rico
ou pobre na sociedade atual.

No que consiste uma vida abundante? É você comer o melhor, é você ter o seu carro zero
quilômetro... já pensou você ter um carro velho quebrando todo dia na rua... Poxa, que vida
é essa? Poxa... Meu carro me dá problema todo o dia. É você olhar para sua família e lá em
casa ta tudo doente. É você olhar pra sua casa, sua casa como se costuma dizer chove mais
dentro do que fora. Quer dizer, o meu Pai é rico, é dono de tudo. Ele diz minha prata, meu
ouro. E eu, no entanto, vivo uma vida miserável, meu carro quebrando, o meu salário mal
dá para pagar minhas despesas básicas, eu não tenho um lazer com minha família, eu não
tenho uma vida próspera (SILVA, 2009).

Longe de seguirem uma orientação utilitarista, as escolhas por certos bens e serviços são
eticamente justificadas pela Teologia da Prosperidade (MESQUITA, 2007). O consumo passa
a ter sentido religioso.

[...] eu considero uma pessoa próspera, aquela pessoa que ela olha pro seu cônjuge, marido
ou esposa e diz assim: você é feliz comigo?. Eu sou feliz com você, eu te amo, você me
ama?Eu te amo. Olha pros filhos e diz, olha assim pros filhos e todos saudáveis. Tudo bem.
Olha pra conta bancária, nunca no vermelho. Pros bens, eu tenho meu carro importado,
minha esposa tem o carro dela importado. Ah... nas férias eu viajo pra Disneylândia, vou
conhecer a Europa, Paris, etc., etc... eu olho pra dentro de mim tenho paz interior. Então a
pessoa próspera consiste... a prosperidade, eu, eu, eu abro esse leque, eu abranjo tanto a
vida financeira, como a vida familiar, física e a espiritual (SILVA, 2009).

Essa vida dada por Deus é conquistada no renascer no Espírito Santo. A experiência do
Pentecostes que acontece diariamente na IURD motiva o fiel a abandonar sua antiga vida e
hábitos, considerados do Diabo e adotar esse novo modo de viver a fé. A partir da Teologia da

1360
A expressão Informação verbal será usada ao longo do texto para referenciar os discursos proferidos em
cultos que aconteceram nas segundas-feiras do outubro de 2011 na Igreja Universal na cidade de Londrina, dia
destinado à prosperidade financeira.

2122
Prosperidade, o contrato com Deus passa a ser permitido. Ao ofertar um bem material
cobrando a resposta, os fiéis transformam-se em consumidores do poder de Deus. A eles são
disponibilizados nos cultos uma gama de bens simbólicos de salvação, que prometem livrar
sua casa, seu negócio, ou até mesmo sua vida, de toda influência e presença do Diabo, que o
impede de prosperar.

[...] nós procuramos mostrar ao povo que Deus quer que nós tenhamos essa vida abundante,
tanto é que Jesus... Ele diz lá em João 10,10 eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância, quer dizer, ele vem nos trazer vida (SILVA, 2009).

Esse método racional de se relacionar com Deus por meio das ofertas e compra de bens
simbólicos, estabelece um novo paradigma de salvação. O Reino dos Céus está agora na Terra
ao alcance de todos. A vida sofrida que tinha como esperança o gozo do Paraíso prometido é
desprezada e considerada obra do Diabo.

Igrejas como a IURD são verdadeiros hospitais espirituais, centros de ajuda para ajudar a
quem sofre. A Teologia da Prosperidade é o antídoto desenvolvido para combater o mal.
Problemas de saúde, brigas familiares, vícios, falta de dinheiro, são solucionados a partir do
sacrifício ofertado a Deus.

A IURD utiliza do sobrenatural para solucionar problemas terrenos e enfatiza a esfera


individual de conquista. O pastor tem a função de orientar, mas não o poder de conceder a
graça. A prosperidade só se faz presente na vida do fiel se este assim merecer.

Então por isso que hoje, nós temos na igreja ex-mendigos, que chegaram na igreja
mendigos, maltrapilhos, fétidos. Como a Igreja Universal está de portas abertas tanto para o
milionário, quanto o mendigo. Então a pessoa sentou lá no cantinho dela e começou a ouvir
o pastor ou bispo, tanto faz pastor ou bispo pregar, que Deus é rico, que Deus quer que nós
tenhamos o melhor, que Deus quer que nós tenhamos uma vida farta, abundante. Aí então
essas pessoas assim... poxa, quer dizer que eu sou mendigo e Deus não quer que eu viva
assim, Deus é um pai que quer que os filhos sejam ricos. Ah não, eu vou me tornar um
dizimista. Dos papelões que eu vendo eu vou tirar o dízimo. Que é a décima parte do que a
pessoa recebe que a Bíblia ensina, não é a igreja Universal, não são as igrejas evangélicas
que ensinam, mas a Bíblia ensina isso... Vou começar a tirar o dízimo e vou fazer isso e vou
fazer aquilo. Então essas pessoas começaram a se revoltar com a situação e não com Deus.
Muitas pessoas infelizmente veem a situação dificílima e se revoltam com Deus, Deus me
deixa nessa vida, Deus não quer... Deus não me ama. Não! A culpa é da pessoa, a pessoa
que procurou de uma maneira ou de outra essa vida (SILVA, 2009).

2123
Deus quer distribuir sua herança, a igreja ensina os métodos para conquistá-la e a seleção e
interpretação de trechos da bíblia legitima as falas do pastor. Seguindo essa lógica, a culpa
daquele que não prospera é sempre individual.

Eu estava em São Paulo em 90, e aí passou um mendigo na porta da Igreja, e eu fui


evangelizá-lo, falar pra ele que Deus não queria aquela vida pra ele e tal. E ele disse, não,
já sei já, eu conheço a Bíblia. Então por que está nessa vida? A... porque eu trai minha
esposa e não me arrependi, então depois com vergonha daquilo que eu fiz me fiz, eu sai de
casa, ai me tornei um alcoólatra, me tornei um mendigo, abandonei tudo. E eu disse, mas
Deus quer isso para o senhor? Não eu sei que Deus não quer isso pra mim, mas não tem
volta, não sei o que. Ele (mendigo) já colocou na mente dele que a vida dele a partir de
então a vida dele teria que ser assim. Mas quando a pessoa diz não, se Deus quer que eu
seja próspero, Deus quer que eu tenha o melhor nessa terra, então eu quero. Se Deus quer,
eu também quero! Então vai se encaixar a minha vontade com a de Deus, se eu quero o
melhor e ele quer o melhor pra mim, então pronto, então, juntou a fome com a vontade de
comer (SILVA, 2009).

Na procura por melhores condições econômicas, como afirma Lima (2010), os fiéis são
motivados a acreditarem no seu potencial para o comércio, para o negócio próprio. A Igreja
Universal incentiva o empreendedorismo individual. Livrando-se da figura do patrão e do
risco do desemprego, o indivíduo passa a depositar toda sua confiança em sua fé e orientações
da igreja.

Para que a prosperidade possa ser efetivada, o fiel deve ser pontual com seu dízimo e realizar
os sacrifícios, ou seja, o contrato com Deus.

Quando a pessoa se submete ao sacrifício, ela se submete a Deus. Quando a pessoa é


avarenta, se apega ao dinheiro, ela não consegue realizar o sacrifício. Quando ela ouve o
mundo, a Rede Globo. Quando ela em uma fé pura, ela ouve Deus chamar. Seja o salário,
ou um dinheiro guardado. Ela tem a fé pura e genuína (Informação verbal).

Segundo os iurdianos, muitos são os que tentam impedir a pessoa de prosperar. Em diversos
cultos e durante a entrevista foi possível colher acusações dos pastores de que a mídia, os
familiares, ou até mesmo as universidades, são inimigas da prosperidade. Os que sofrem mais
acusações, contudo, são as religiões espíritas, católicas e, principalmente, as de origem
africanas. Para a Igreja Universal, o Mal está presente nesses segmentos religiosos.

2124
No início a igreja era muito perseguida por pessoas religiosas que cultuavam os espíritos, as
entidade, e por nós combatermos não a religião em si, mas os espíritos enganadores que
atuavam naquelas pessoas de uma forma direta ou indireta que destruindo vidas. Se você
me perguntar, vou ficar aqui até amanhã dizendo com quantas pessoas eu já conversei e
estavam com espíritos em suas vidas, fazendo-as é... pensar em morte, em tirar a vida de
alguém, coisas desse gênero. Então, quantas pessoas nós já vimos nesses 30 anos na Igreja
Universal? Muitas, mas por quê? Por que essas pessoas usadas pelas forças do mal, queriam
fazer coisas negativas. Quando uma vez expulsa esses espíritos, quando eu dizia em nome
do Jesus, sai! Eles saiam, obedeciam o nome de Jesus, saíam, e as pessoas se libertavam e
passavam a ter outra mente... Quer dizer, a cabeça da pessoa mudava completamente,
porque o que fazia ela pensar negativamente era o espírito. E aquele espírito uma vez
expulso de dentro dela, pronto. Ela ficava livre dele e usava do pensamento dela, que era
bom. Então por essa razão que a gente vê essa perseguição até hoje. Os espíritos usam as
pessoas contra a gente, pra tentar impedir o crescimento da Igreja (SILVA, 2009).

As outras religiões são usadas pelo Demônio, de maneira direta ou indireta. As divindades são
consideradas como mais uma designação do Mal, que enganam o crente e o impede de possuir
a vida prometida por Deus. Vários são os testemunhos, inclusive do líder Edir Macedo, de
participar de outras religiões e as consequências disto. Na entrevista, o bispo João afirma:

Até os meus 20 anos, aos 19 anos eu fui católico-macumbeiro... Enfim, muitos problemas
de ordem familiar que me levaram a procurar a Igreja Universal. Alias, antes disso, então
nós mesmos católicos, nós procurávamos os centros espíritas lá no Rio de Janeiro, na
Baixada Fluminense, procurando solução pros nossos problemas, e a cada dia mais a
situação se agravando dentro de casa... E a minha mãe então, procurando depois de fazer
promessas e tanto as missas não via resultado. Disseram pra ela: procura um centro
espírita, isso deve ser trabalho, e ela foi fazer os trabalhos que eram mandados fazer e
esses trabalhos não adiantavam de nada, muito pelo contrário, parecia que ela estava cada
dia pior (SILVA, 2009).

Da mesma forma que não encontramos referências sobre um Paraíso além mundo, nos cultos
da Igreja Universal, a relação com o Diabo também não está ligada à ideia de inferno ou a
condenação após a morte, mas sim aos problemas enfrentados no cotidiano. Essas afirmações
resultam em um sentimento dúbio de conforto e culpa ao fiel. Ao mesmo tempo, ele passa a
possuir uma força contra o Mal que outrora não possuía, podendo resolver seus problemas,
por meio de instrumentos que estão ao alcance de suas mãos. Por outro lado, a não superação
é carregada da ideia de culpa e fracasso pessoal.

2125
Em um culto na Igreja Universal de Londrina, o pastor revela como superar o Mal. “Deus te
dá autoridade sobre o Devorador. Você que é dizimista têm a autoridade sobre o Diabo”
(Informação verbal). Seguindo o raciocínio de que o sacrifício (material) perfeito corresponde
à materialização da fé, o pastor evidencia que ao “colocar a vida nas mãos de Deus” o fiel
consegue “convencer o Diabo que todas as áreas de sua vida não pertencem à Ele”
(Informação verbal).1361

É no sacrifício, caracterizado pelo contrato estabelecido com Deus pelo qual é necessário dar
para receber, onde encontramos a maior evidência da Teologia da Prosperidade na valorização
do individualismo. “A sua vida será o seu sacrifício” (Informação verbal), diz o pastor.
Quanto maior o sacrifício, melhor sua vida, pois o “sacrifício é o caminho mais curto entre o
querer e o sonho realizado”. E ele acrescenta. “Vejo o apartamento que eu sonho, vejo o carro
que eu sonho. Seu sacrifício vai ter que realizar seu sonho” (Informação verbal). A riqueza,
portanto, é fruto da conquista individual.

Então você vê que há pessoas baixas, altas, magras, gordas, assim como na Igreja
Universal. Há pessoas que dizem assim, não... eu me contento, olha eu cheguei na igreja
desempregado e tal. To usando como se uma pessoa tivesse falando. Cheguei
desempregado na Igreja Universal, doente, perturbado. Poxa hoje eu ganho um salário de
um mil e 500 reais onde eu trabalho hoje, eu tenho saúde, não me falta nada, eu to bem.
Graças a Deus eu to bem sim. Outros já diz não, eu quero mais, eu não aceito essa
situação, se eu posso ter uma vida arregalada, seu eu posso comer do bom e do melhor, se
eu posso conhecer o mundo, conhecer o Brasil do Oiapoque ao Chuí, pois se eu posso ter
esse privilégio de levar minha família, eu com mil e quinhentos reais vou fazer isso nunca,
mas se eu ganhar 50 mil reais por mês, eu farei (SILVA, 2009).

A superação dos problemas cotidianos é o elemento-chave de todo o culto. O mundo profano


é levado ao espaço sagrado por meio das falas do pastor. O discurso encorajador motiva aos
que estão com problemas a revelarem suas angústias e esperanças, resultando em um
reconhecimento por parte do grupo.

Considerações finais

Utilizando de um discurso ambíguo, no qual é preciso não se apegar às suas economias


financeiras ou bens materiais para doar e, assim, conquistar mais sucesso financeiro. A Igreja
1361
Frases de um culto assistido na cidade de Londrina no mês de outubro de 2011.

2126
Universal torna aceitável aos seus fiéis suas práticas de arrecadação e com isso, financia seu
projeto de expansão.

A partir da dupla via de pregação, caracterizada pelo recebimento da benção por meio da
doação à Igreja, a Teologia da Prosperidade torna-se elemento fundamental para a
compreensão do sucesso desta instituição. Na busca por legitimidade, a IURD organizou-se
de tal maneira que suas influências estenderam-se para além do campo religioso e hoje
atingem a esfera política, assistencial e até mesmo comercial no Brasil e em outros países que
foram incorporados em sua estratégia de expansão.

Referências

SILVA, João. A Teologia da Prosperidade na Igreja Universal. 2009. Entrevista concedida a


Fernanda Vendramini Gallo.

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo:


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LIMA, Diana Nogueira de Oliveira. Anticalvinismo brasileiro. Folha de São Paulo, São
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__________. Alguns fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. Mana. [online] v. 16, Ano.
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MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Edições Loyola, 1999.

MESQUITA, Wania Amélia Belchior Mesquita. Um pé no Reino e outro no mundo: consumo


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OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Estudos da Religião no Brasil: um dilema entre academia e
instituições religiosas. In: SOUZA, Beatriz Muniz; GOUVEIA, Eliane Hojaij Gouveia;
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

2127
2128
Estevam Ângelo de Souza: Pastor, escritor e liderança carismática
no Maranhão (1957-1996)
Elba Fernanda Marques Mota1

Introdução

Pretende-se, nesta pesquisa, apresentar um esboço biográfico da trajetória de vida de Estevam


Ângelo de Souza. Buscamos entender a sua formação enquanto pastor, escritor e,
posteriormente, figura carismática. Pensamos ser necessário este aspecto, a fim de entender o
contexto histórico vivenciado por este e que contribuiu para a sua legitimação enquanto
liderança da Assembleia de Deus no estado do Maranhão.

Nossa metodologia consiste na análise das obras e dos artigos escritos por Estevam Ângelo de
Souza, pastor da Igreja Assembleia de Deus, no Estado do Maranhão. O recorte temporal data
do ano de 1957 ao ano de 1996, período em que o mesmo esteve à frente da Convenção Geral
desta denominação, ocupando o cargo de pastor presidente por 39 anos. Por ser um sujeito
histórico com grande participação na estrutura interna e externa assembleiana maranhense,
Estevam é considerado o mais importante líder da igreja durante o século XX. O que
contribuiu para isto foi a sua marcante atuação religiosa, carismática e política, resultando em
uma liderança centralizadora.

Todas estas características articularam-se á sua vivência como estudioso, principalmente,


escritor, tendo em vista a publicação de doze obras ao longo de sua vida. Partindo-se destas
fontes, temos como objetivo analisar o território maranhense enquanto espaço de implantação
e expansão do pentecostalismo assembleiano, na perspectiva de uma análise das ações e
discursos de Estevam Ângelo de Souza. Entendemos a construção deste enquanto estratégia
social, com a produção do discurso religioso e moral a ser seguido pelos fiéis e que contribuiu
para sua legitimação como principal liderança da igreja ao longo do século XX no estado do
Maranhão.

A liderança carismática no Maranhão

1
Mestra em História Social pela UERJ e doutoranda em História pela UNIRIO. Bolsista da CAPES. Contato:
elbamota22@yahoo.com.br.

2129
Estevam assumiu a liderança da Igreja Assembleia de Deus no período final do vitorinismo2
no Maranhão e da ascensão da liderança política de José Sarney. Quando chegou a São Luís, a
Igreja contava somente com três congregações, alguns obreiros e um número pequeno de
seguidores. Esse número foi multiplicado para o total de 167 congregações e 23 mil membros
congregados, só na capital do Estado, em 1996, ano de seu falecimento. Em 2010, a Igreja

Assembleia de Deus no Brasil contava com 12.314.410 membros, segundo o censo


demográfico do IBGE, publicado em 2012. Nas regiões metropolitanas de São Luis, as
religiões evangélicas pentecostais atingiam o índice de 16,1% da população total, sendo os
assembleianos a maioria desse percentual.

O pastor foi a liderança que mais tempo permaneceu à frente dos principais cargos da Igreja.
Ele personificou e colocou em prática as características de um líder pentecostal, dentre as
quais está o carisma e o poder, caracterizados na direção centralizada com acúmulos de cargos
e funções e a proximidade no trato com os fiéis.

Ao longo dos seus 41 anos de atuação, ocupou os cargos de presidente da Convenção


Estadual das Assembleias de Deus no Estado do Maranhão por 38 anos; integrou o Diretório
Regional da Sociedade Bíblica do Brasil, sendo seu presidente; presidiu a Sociedade
Filantrópica Evangélica do Maranhão que era mantenedora do Colégio Evangélico “Bueno
Aza” por 33 anos; e atuou como tesoureiro e secretário.

Em São Luis, a Igreja era autônoma em relação à Convenção Estadual, mas uma tradição
estabelecida era a de que o pastor da Igreja da capital seria o presidente da Convenção
Estadual. Por isso, embora reiterasse nas assembleias a disposição de deixar a presidência,
Estevam era reconduzido automaticamente. A perpetuação na presidência se dava pelo pacto
já previamente firmado por parte de outras lideranças e fiéis, pela negociação consentida de
sua liderança e pela força do seu carisma pessoal. O estilo pessoal de realização das tarefas
está claro neste depoimento (SILVA, 2001, p.89-90):

De janeiro de 1954 a abril de 1965, para todo e qualquer trabalho, dependia dos poucos
ônibus precários e dos velhos bondes, num período em que energia elétrica em São Luís
deixava muito a desejar. Em abril de 1965, habilitado para dirigir veículo passei a trabalhar

2
Período político que caracteriza os anos de liderança política do pernambucano Vitorino Freire (1908-1977),
eleito inicialmente deputado federal em 1946, e posteriormente senador por três mandatos consecutivos de 1947
a 1971 pelo Estado do Maranhão.

2130
num jipe de segunda mão que a igreja comprara. Durante 25 anos fui o motorista da igreja,
para todo e qualquer serviço, inclusive nas viagens em evangelização no interior do Estado.
Em uma Rural verde, 0 km, do ano de 72, fiz várias dessas viagens a partes mais
longínquas e até ao extremo Sul do Maranhão, viagens de semanas inteiras nos lameiros ou
sob nuvens de poeira, quando não tínhamos um só quilômetro de estrada asfaltada, exceto a
BR São Luís – Teresina. Dezoito anos depois que a Rural foi vendida, frequentemente as
pessoas me dizem: “eu lhe conheci dirigindo uma Rural verde.

A vocação pela itinerância permaneceu no seu modelo ministerial, agora contando com
veículos da própria Igreja. Neste período, foi prática constante sua ausência prolongada em
missões pelo estado, lidando pessoalmente com as questões eclesiásticas, administrativas e
missionárias. As condições precárias dos transportes e dos deslocamentos não impediam as
viagens que serviam para inaugurar igrejas e templos, ordenar pastores e nomear obreiros,
batizar, casar, tratar de problemas, conciliar tensões e conflitos, participar de campanhas
missionárias e construir uma rede de contatos pessoais. Esta rede era também de solidariedade
nas hospedagens nas casas dos crentes do interior, um sistema de ajuda informal estabelecido
entre as comunidades pobres.

Ao mesmo tempo, conforme depoimento da esposa Gizeuda, a casa da família em São Luis
servia como posto de prestação de ajuda de todo tipo a pessoas que vinham do interior do
estado. Vinham para tratamento de saúde (tuberculosos, leprosos, sifilíticos e portadores de
outras doenças), em busca de emprego ou para auxílios de outras formas, utilizando a casa
pastoral como lugar de hospedagem, alimentação e cuidados da saúde, estadias que duravam
às vezes semanas. Parte do trabalho da esposa e da família era o de cuidar deste contingente
migrante em busca de lugar na cidade.

O pentecostalismo se construiu no Maranhão e no Brasil nesta rede de solidariedade e de


confiança informal como contraponto à miséria e à pobreza da população, num período de
transição de uma sociedade rural para urbana. Gizeuda foi uma missionária dos pobres,
prestando assistência a uma população que não contava com o poder do estado em suas
necessidades.3 Esta realidade cotidiana e familiar levou à idealização de um centro de
assistência social, também como resposta à crítica de que a Igreja não fazia ação social.

Estevam vivenciou a transição da urbanização da população no Maranhão. Este processo foi


responsável por profundas mudanças na sociedade, afetando diretamente o campo religioso. A

3
Em entrevista concedida em 2008, Giseuda Souza nos relatou que um de seus arrependimentos, foi não poder
ter viajado mais em campanhas missionárias, tendo em vista o cuidado com os filhos em São Luís.

2131
Igreja precisava se organizar e estruturar-se a partir da criação de instituições que
expressassem a vida da Igreja e respondessem a uma demanda de serviços e necessidades. As
esferas de atuação da Igreja se ampliaram para a assistência social, a educação, o ensino
teológico e a comunicação.

O pastor ocupou a presidência ou a coordenação destas ramificações, centralizando a


administração, embora contasse com uma rede de auxiliares fiéis. No entanto, não surgiam
lideranças alternativas ou concorrentes, diante da força do seu carisma e controle.

Como pastor presidente da Convenção das Assembleias de Deus, Estevam alcançou projeção
nacional e chegou a participar de eventos internacionais pela igreja. Foi à Conferência
Mundial Pentecostal em Londres, Inglaterra, em1976, e em Jerusalém, em Israel, em 1995.
Visitou países da Europa e da Ásia e também os EUA. Segundo relatos de fiéis e familiares, o
mesmo era incansável no seu trabalho pastoral, a respeito disto, o mesmo pensava da seguinte
forma (SOUZA, 1994, p.33):

Iniciei as atividades ministeriais em 1946, com 24 anos de idade e de lá saí para São Luís
com 31 anos, em pleno vigor juvenil. Podia pregar cinco vezes aos domingos, ou 4 horas
em estudos bíblicos. Creio que a divina saúde tem preservado a resistência. Hoje, com
setenta e dois anos sinto-me bastante forte para os muitos trabalhos que Deus tem posto sob
a minha responsabilidade nesta fase da vida. Entretanto, de duas coisas estou certo. O que
fazia naqueles anos no Piauí, não poderia fazer hoje, e, o que pela graça de Deus, faço hoje,
em São Luís, no Maranhão e no Brasil não faria naquele tempo.

Ele observa isto através das mudanças por que passou a cidade, com melhoramentos da
urbanização, mas principalmente, com a chegada da idade, alcançados seus setenta e dois
anos. Estevam deixou claro, como justificativa para suas ações, que “Nos meus quarenta anos
em São Luís, as atividades ministeriais, tanto mudaram, como se multiplicaram, requerendo
cada uma delas, nova maneira de servir. Para mim, nenhum serviço da igreja é pesado demais,
nem humilhante” (SOUZA, 1994, p.34).

Aqui um aspecto deve ser analisado, o sentido do verbo servir. Este termo é constantemente
usado por Estevam em sua autobiografia e nos seus artigos publicados, no sentido de explicar
o porquê do acúmulo de cargos, e especialmente, a quantidade de trabalhos manuais, como
pedreiro nos mutirões da igreja. Na linguagem pentecostal a palavra servir assumiu o sentido
de executar tarefas eclesiásticas e mobilizar-se para cumprir deveres religiosos considerados
pela comunidade como necessários para a salvação da alma e da “aprovação de Deus”.

2132
Neste sentido, (SILVA, 2006, p.6) defende que “o pastor Estevam fundou, para a
configuração do pentecostalismo assembleiano maranhense, de um ponto de vista filológico e
da representação à qual se encerra; a era do servir”. Visto saber-se que a elaboração dos
sentidos na linguagem, numa dada cultura, obedece a fatores históricos aí concorrentes, faz-se
necessário entender os efeitos e a aplicação ideológica desse artifício na composição do poder
religioso. De acordo com esse princípio, não há hierarquia entre serviços religiosos: entre
cargos, funções ou papéis. Todos são convidados a servir.

No entanto, basta observar com um olhar mais atento a estrutura da Assembleia de Deus
maranhense e perceber uma contradição na fala do pastor Estevam, posto que na prática esta
hierarquia seja visível no cotidiano da Igreja, iniciando-se pela própria administração. A
centralização burocrática e administrativa que conseguiu reter em suas mãos foi resultado de
uma construção representacional de sua imagem, baseada principalmente no paternalismo,
respaldado por suas ações carismáticas, legitimadas no espaço do sagrado.

Desta forma, cabe ressaltar que utilizamos a concepção de carisma conforme a formulada por
(WEBER, 1994, p.159):

Uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (...) e em virtude da qual se atribuem a


uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos,
extracotidianos específicos ou então se torna como enviada por Deus como exemplar e,
portanto, como líder.

Características que notamos, foram atribuídas a Estevam Ângelo de Souza ainda em vida,
através da sua liderança construída, mas, principalmente por sua imagem no sentido de ser
extraordinário, que vivia o que pregava e era tido como exemplar pelos demais. Figura
carismática que fazia questão de justificar suas ações através das ações de Deus e Jesus
Cristo, muitas vezes se autodenominando como enviado, e especialmente, eleito para todas as
suas ações realizadas.

Concordamos que os fiéis da Assembleia de Deus o transformaram em um ‘mito’. Entretanto,


esta imagem foi construída com o consentimento e por meio de ações formuladas pelo pastor,
especialmente como mediador das relações no espaço assembleiano. Como administrador
destas relações, o mérito do pastor foi saber como ceder e identificar em que sentido estas
modificações terminariam por beneficiá-lo. Um bom exemplo é a mudança das regras quanto

2133
à eleição de pastores na Assembleia de Deus maranhense, como pontuado pelo mesmo
(SOUZA, 1994, p.36):

Não julgo falta de modéstia afirmar ter tendência conservadora, mas tão logo assumi a
presidência da Convenção das Assembleias de Deus no Maranhão, à luz da doutrina e com
o apoio unânime de todos os convencionais, alteramos um sistema antigo no Maranhão. A
regra era esta: o obreiro era autorizado a exercer atividades ministeriais, como batizar e
celebrar a santa ceia, etc. Algum tempo depois era consagrado evangelista, e daí, há cinco
ou dez ou doze anos depois, era então, “consagrado a pastor” (ordenado ao ministério). (...)
Exposto o assunto com a devida clareza, todos os convencionais concordaram em mudar o
sistema, tendo em vista, à luz da Bíblia, que os dons ministeriais são dados por Cristo, nada
dependendo de uma decisão convencional. A nós, segundo concluímos, cabe-nos
reconhecer, a presença do dom divino naquele a quem o Senhor chama para a sua obra.
Assim decidimos e à partir de então, à título de experiência, o elemento é autorizado e,
evidenciada a sua chamada e vocação divina é ordenado definitivamente ao santo
ministério.

Este trecho é especialmente contundente pelo reconhecimento por parte de Estevam em


possuir tendência conservadora, entendida aqui no sentido de avesso a mudanças, e defensor
da ordem instituída. E por percebermos nas eleições realizadas em 1959, no interior do
Estado, na Convenção da cidade de Pedreiras, a eleição de dez novos pastores, dos quais a
maioria era evangelista por mais de doze anos. Cabe ressaltar, todos declarando publicamente,
seu apoio ao pastor presidente da convenção estadual. Práticas como esta, nos ajudam a
perceber o porquê do crescimento da igreja e, especialmente, o apoio irrestrito à sua liderança
pastoral.

Sua atuação também foi marcada pela construção de templos, quando pessoalmente
participava das obras em mutirões, dando exemplo para os demais seguidores. A construção
de templos foi um dos traços típicos do pentecostalismo assembleiano, utilizando a mão de
obra espontânea e numerosa dos próprios membros, alguns notáveis mestres de obras.

O voluntarismo dos fiéis servia como combustível para a construção de templos que seguiram
um padrão estético nas fachadas com a cor azul, as faixas brancas e o nome da igreja. Na
parte interna, a divisão entre os bancos para os fiéis e a área ao fundo com o púlpito
centralizado, onde atrás seguiam cadeiras para que os obreiros sentassem segundo a ordem de
importância de cada um. Rapidamente um novo templo se erguia e com pouco custo, as áreas

2134
escolhidas eram bairros próximos ao centro como João Paulo, Anil; ou mesmo vilas e
invasões4 distantes da área central da cidade.

A filantropia foi um dos principais campos de atuação do pastor Estevam, com a constituição
de um trabalho educacional, primeiramente com a alfabetização de adultos, a fim de que
pudessem ler a Bíblia, finalizando com a construção das escolas de nível fundamental. A
fundação da Sociedade Filantrópica do Maranhão (SOFEMAR), em 1959, serviu a este
propósito. Ela foi responsável pelos colégios Bueno Aza e Nels Nelson (homenagem a
missionários pentecostais pioneiros no Maranhão), dando-se a unificação em 1978, tornando-
se o Colégio Evangélico Bueno Aza.5 Posteriormente, o colégio foi fechado, mas o interesse
pela educação continuou através dos seminários evangélicos, criados pela Igreja Assembleia
de Deus, como a FATEAD (Faculdade de Teologia da Assembleia de Deus), oriunda do
IBPM (Instituto Bíblico Pentecostal do Maranhão), fundado em 1991.

O seu último projeto foi a construção do Centro Social e do Centro de Convenções da


Assembleia de Deus no bairro do Vinhais, em São Luís. A construção teve a sua direta
participação como mão de obra em meio a mutirões e auxiliado por mestres de obras da
própria Igreja. Um destes mestres foi Faustino Venâncio Pereira, que acompanhou Estevam
em muitas frentes de trabalho. O projeto do prédio era colocar 10 mil pessoas sentadas ao
assistir ao culto. Sendo também um espaço de assistência social para toda cidade. Neste
período, se fixou a imagem do pastor como trabalhador e operário de chapéu a serviço da
igreja. Com sua morte, a construção do edifício que leva o seu nome ficou inacabada (SILVA,
2001, p.91):

Ele [Estevam] e cerca de 10 mil crentes arregaçaram as mangas e trabalhando como


verdadeiros operários realizaram quatro mutirões, o que causou admiração e contentamento
não somente entre a comunidade evangélica, como a população local.

As cenas dos mutirões causaram impacto nos moradores. Aquelas cenas despertavam espanto
para as pessoas daquele bairro, considerado de classe média, com estas ações a Igreja teria a
oportunidade de demonstrar sua força de mobilização. O conceito de crente é assim,
ressignificado (SILVA, 2006, p.8). No sentido de ainda que a imagem de desconfiança
perdure, agrega-se a esta a de um grupo com grande poder de evangelização, ou seja, no

4
Invasão na cidade de São Luís é o equivalente a favela na região Sudeste. Caracterizada pela pobreza, tem esse
nome por ter sido invadida pelos moradores que construíram bairros em amplos espaços territoriais.
5
As escolas totalizaram um total de 450 alunos. Cabe ressaltar que a maioria do copo docente era formada por
evangélicos (as).

2135
sentido de arregimentação de um grande contingente populacional para a realização de um
objetivo, especificamente, de cunho religioso. Há um novo significado para a reunião de
crentes, agregando-se uma postura positiva desta ação.

Este aspecto vale ser pontuado pela escolha do bairro do Vinhais, e por ser perceptível o
desconforto por parte da Assembleia de Deus, passados os anos iniciais de expansão, com a
não evangelização da classe média brasileira. O próprio Estevam, entrevistado pela revista A
Seara, em 1980, atesta, em sua opinião, os motivos para isto, segundo ele: “Faltou penetração
do Evangelho, nesta classe, pela pregação. Penso que os crentes de mais influência social não
pregam por questões de respeito humano enquanto os mais humildes ficam acanhados” (A
SEARA, 1980, p.8).

Para ele, a questão se resumia ao respeito humano que o público com melhor nível intelectual
possuía. No entanto, pensamos ser o acanhamento que ele atesta aos mais humildes, a
possível causa. É de conhecimento que geralmente quem faz este trabalho de visitação nos
bairros, são os membros mais humildes da Igreja, especialmente, as mulheres do grupo
Círculo de Oração (MOTA, 2009). Notamos assim, mas um exemplo da hierarquia de
atividades no âmbito da Assembleia de Deus.

Outra área de atuação do pastor Estevam, foi o esforço de evangelização pela conversão de
indígenas. Visitas missionárias foram realizadas às aldeias dos índios Grajaú, Guajajaras e
Canelas, localizadas em Barra do Corda, no interior do Estado. O resultado foi a construção
de um pequeno templo da Assembleia de Deus e o batismo de cerca de 600 índios que
aprenderam a ler a Bíblia em português; alguns trabalharam como missionários (SILVA,
2006, p. 54). Como ressaltado pela viúva do pastor, Gizeuda Souza (A SEARA, 1998, p.35):

Pastor Estevam tinha um amor especial por missões entre as selvas indígenas – até
costumava dizer que, quando estava na aldeia, se sentia mais crente. Não foi por acaso que
tomou o jovem Edilson, da aldeia Guajajara, e resolveu educá-lo para obra missionária
entre os próprios nativos.

Concordamos com a sua viúva, definitivamente, não foi por acaso, tendo em vista, notarmos
aqui, a estratégia do pastor em preparar um indivíduo da própria aldeia para agir como
missionário. Alguém que já era do grupo, conhecido dos demais e, especialmente, detentor de
confiança por parte dos membros. Notamos aqui, ainda que em novas formas, e com outro

2136
contexto histórico e temporalidade específica, final do século XX, o fenômeno da
aculturação.6 Com o contraponto que este se deu de forma pacífica, por este motivo, com
maior poder de eficácia. Resumindo-se o processo com viagens iniciais para entrega de
bíblias e orações. Com o aumento constante desta prática, após a morte do pastor, sua esposa
continuou as visitas, com inauguração de novos templos. Hoje, existem 4 Igrejas da AD nas
imediações da tribo.

Além destas ações, enquanto presidente da convenção estadual da Assembleia de Deus


maranhense, no âmbito nacional, Estevam:

Exerceu ainda importantes funções junto à CGADB (Convenção Geral das Assembleias
de Deus no Brasil) e EETAD (Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus),
além de ter trabalhado, durante vários anos, como Conselheiro da CPAD (Casa Publicadora
das Assembleias de Deus), tendo contribuído como articulista de seus periódicos e
comentador das Lições Bíblicas da Escola Dominical.7

Quatro foram os sonhos de Estevam em sua vida voltados para a Igreja: uma rádio, um centro
de convenções, um instituto bíblico e o envio de missionários para áreas distantes. Nem todos
foram realizados em sua totalidade. No entanto, ele foi um semeador de outros sonhos em
meio aos dramas de sua existência e trajetória de vida, suas ligações políticas e outras
realizações.

Sua relação próxima com a política foi avaliada em vários momentos, inclusive, quando em
1968, José Sarney subiu ao púlpito da igreja Assembleia de Deus, o que levantou a hipótese
de um possível apoio ao então governador do Maranhão.

Este conjunto de ações possibilitou a maior organização da Igreja Assembleia de Deus no


estado e a ampliação do número de templos e de fiéis. A visibilidade institucional, somada à
força simbólica de sua liderança e à capacidade de mobilização de uma massa votante,
projetou a Igreja como esfera de negociação no campo político. Por sua vez, a década de 1980
marcou uma mudança de postura das igrejas evangélicas na relação com a política, e as
Assembleias de Deus protagonizaram esta transformação ao lado da Igreja Universal do
Reino de Deus (BAPTISTA, 2009).

6
Ação de mudança na cultura de um grupo social sob a influência externa de outra pessoa, ou grupo com quem
entra em contato.
7
Disponível em <http://www.assembleiadedeus100.org.br/htm/pioneiros/6.htm>. Acesso em 28 de maio de
2012.

2137
A eleição constituinte de 1986 possibilitou a constituição de uma bancada evangélica
composta de 33 deputados, a maioria era porta-voz dos interesses de suas igrejas e
denominações e de postura conservadora na política e na religiosidade. A Igreja Assembleia
de Deus teve entre 1987 e 1990 13 deputados no Congresso Nacional (BAPTISTA, 2009:21),
instituindo um novo patamar de negociação política e projetando a Igreja como força política
e eleitoral no país. Um dos deputados federais eleitos foi o maranhense Costa Ferreira, ligado
à AD e à oligarquia Sarney.8

Naqueles tempos de Sarney na presidência da República e de sua disputa pelo quinto ano de
mandato, ganharam força as práticas clientelistas no Congresso Nacional. Um deputado
ligado à AD, Matheus Iensen propôs a emenda da prorrogação do mandato de quatro para
cinco anos e 76% dos deputados evangélicos contribuíram para sua permanência. O governo
Sarney utilizou concessões de meios de comunicação como “moedas de troca” para os
constituintes e uma porcentagem de evangélicos foi beneficiada com elas. (BAPTISTA, 2009,
p.175-176).

Esta era a conjuntura política formada para a concessão de um canal para a transmissão de
programa de rádio, juntamente com a atuação de políticos ligados à Igreja. A fim de alcançar
esta massa crescente e de modernizar a comunicação, Estevam foi o idealizador e fundador da
Rádio FM Esperança. O projeto de uma rádio correspondia ao momento em que as grandes
igrejas evangélicas do país se lançavam na utilização mais intensiva da mídia, sobretudo a
televisiva, seguindo o modelo até então importado dos tele-evangelistas norte-americanos.

A emissora de rádio atendia às necessidades de uma igreja em expansão e criou um padrão de


programação evangélica no Estado, alcançando significativa audiência. Em virtude de “Além
do mais, o rádio permite uma perfeita sintonia entre a mensagem oralmente pregada e a
existência de uma civilização pré-letrada” (CAMPOS, 1997, p.126). O que no caso do
Maranhão, veio sedimentar a expansão da Igreja Assembleia de Deus, com muitos ouvintes
sendo convertidos, através de programas radiofônicos, por se utilizar de uma mensagem oral e
de simples compreensão.

Em 1988, foi criada a Fundação Cultural Pastor José Romão de Souza que, a partir de 1990,
passou a ser a controladora da Rádio FM Esperança, inaugurada em 11 de abril daquele ano,
8
Oligarquia é um termo que tem origem na palavra grega "oligarkhía" cujo significado literal é “governo de
poucos”. Oligarquia é um sistema político no qual o poder está concentrado num pequeno grupo pertencente a
uma mesma família, um mesmo partido político ou grupo econômico. Este controla as políticas sociais e
econômicas em benefício de interesses próprios.

2138
depois de mutirões para a construção de sua sede e pedido de muitas doações aos fiéis por
parte de Estevam Ângelo de Souza. Ainda no mesmo ano, o presidente Fernando Collor de
Melo assinou a concessão da Rede de Televisão Record à Igreja Universal do Reino de Deus
(MOTA; SANTOS, 2011). Graças á ameaça de Impeachment, o até então presidente, se
utilizou de “moedas de troca” com a “bancada evangélica” o que possibilitou concessões de
muitas rádios evangélicas. O que não foi o caso da FM Esperança, que conseguiu a concessão
para funcionamento, com a intercessão direta do então deputado federal Costa Ferreira, junto
ao presidente José Sarney, o que foi outorgado nos últimos momentos de seu mandato
presidencial (FRESTON,1993).

Com instalações no bairro Pindorama, tornou-se a primeira rádio evangélica em São Luís. A
rádio sempre entrava no ar entre 6 horas da manhã até meia-noite, pois a emissora só tinha
equipamentos que a mantinham menos tempo (até 18 horas), por correr o risco de dar defeito
se ultrapassasse o tempo determinado do que era estipulado. Cabe ressaltar que ela aceitava
programas de outras denominações em sua programação, como Igreja Batista, Igreja do
Evangelho Quadrângular e Presbiteriana.

Na época da entrada no ar, através do sinal da rádio, alcançava os três municípios da ilha de
São Luis: São José de Ribamar, Rosário e Paço do Lumiar e 20 municípios maranhenses.
Hoje o sinal alcança quatro municípios da ilha, que foi transformada em Grande São Luís e 32
municípios, devido à criação de novos municípios, ocorrida entre 1994 a 1995. Em 2000,
quando ocorreram as comemorações de 10 anos no ar, foi anunciada a compra de modernos
equipamentos, que praticamente substituíram os antigos desde a época em que a emissora
iniciou suas transmissões. Entre estes estão os que mantêm a emissora em atividade por 24
horas sem interrupção. Em 2005 se afiliou à Rede Transmundial9, transmitindo a programação
por seis horas (meia-noite até 6 da manhã) e o restante da programação (das 6 horas da manhã
até meia-noite) sendo apenas local.

Em 2010, a emissora completou vinte anos de fundação. E este ano, refente ao seu aniversário
de 22 anos, houve uma solenidade na Câmara Federal, com o pronunciamento do deputado
Costa Ferreira e municipal, presidida pela deputada estadual, Elisiane Gama, também

9
A rede Transmundial, pertence à um projeto mundial, a Trans World Radio que reúne mais de 225 línguas e
dialetos, com 2700 estações locais e transmite o sinal de rádio através de 14 antenas ao redor do globo, com um
conteúdo cristão. A representante nacional possui três antenas, em Santa Maria - RS; mais de 30 afiliadas e 7200
horas mensais de programação ininterrupta. O objetivo é levar através do rádio, a mensagem evangélica ao maior
número de ouvintes possíveis, corroborando, assim, para o processo de conversão e consequente, expansão, das
distintas denominações que fazem parte do grupo.

2139
assembleiana e antiga locutora da rádio em que a viúva do fundador da rádio, Giseulda Lima
de Souza recebeu uma placa comemorativa pelos 22 anos da Rádio FM Esperança, ofertada
pela Assembleia Legislativa do Maranhão.10

A postura política de Estevam foi a de manter a devida equidistância entre a política oficial e
a Igreja. Ele não permitia a utilização do espaço do templo para propaganda política eleitoral
e não indicava candidatos oficiais da Igreja. Entretanto, a perspectiva teológica conservadora
de submissão ao Estado e de respeito às autoridades instituídas por Deus era parte da sua
visão de mundo. Sobre esta participação de políticos no púlpito, sua esposa Gizeuda afirmou
que políticos o (MOTA, 2009, p.89):

Procuravam, mas ele não deixava vir pra dentro da Igreja, falava-se fora. João Castelo
[candidato á prefeito na época] mesmo foi uma vez querer tirar uma foto com ele, aí [...] ele
[perguntou]: o senhor vai querer botar essa foto no jornal? Ele não ia deixar, não tinha esse
negócio que tinha hoje, ele não determinava em quem votar. Hoje não, os políticos vão pro
templo e falam o que querem.

A amizade de Sarney com o pastor Estevam, entretanto, remonta à década de 1960, quando
aquele ainda era deputado em início de carreira. Entre os dias 4 a 8 de setembro de 1968, a
Igreja Assembleia de Deus em São Luis hospedou a Convenção Estadual dos obreiros
(missionários, evangelistas e pastores) maranhenses assembleianos. O encerramento contou
com a presença do então governador José Sarney, que destacou a inauguração do segundo
monumento à Bíblia no Brasil realizado na cidade de Caxias, interior do estado. Monumentos
à Bíblia foram espalhados pelo país como símbolos da presença evangélica na sociedade e de
sua emergente capacidade de negociação política.

No ano seguinte, 1969, Sarney assinou a Lei de Terras no Maranhão, redefinindo o estatuto de
propriedade da terra, favorecendo os latifundiários, leiloando terras públicas do estado. Desde
a década de 1950, o interior do estado vivia crescentes tensões em torno das questões de
terras. De alguma forma, as comunidades evangélicas e pentecostais compostas de lavradores
estavam inseridas nestes conflitos, à semelhança de outros estados como Pernambuco, onde
foram organizadas as ligas camponesas. Lideranças pentecostais despontaram na condução de
organizações sindicais e populares.

10
Disponível em: <http://folhamaranhao.com/noticias/politica/sessao-solene-faz-homenagem-aos-22-anos-da-
radio-fm-esperanca-13788.html>. Acesso em: 25 nov. 2012.

2140
Considerações finais

Estudar o centenário da AD é uma boa síntese da história do Brasil. As mudanças ocorridas na


Igreja ou no país, apesar da correlação, não são simultâneas, mas estão imbricadas umas nas
outras. Nas Igrejas, as mudanças demoram um pouco mais, sendo por vezes necessário o
espaço de duas gerações para que elas apareçam, mas não há dúvida que Igreja-sociedade,
querendo ou não, se alteram mutuamente.

No caso assembleiano, este atrelamento se fez presente ao longo da história inicialmente com
o coronelismo, que influenciou a ação dos primeiros pastores suecos através de ações
centralizadoras e personalistas. Em seus primeiros anos no país se configurou uma de suas
principais características, construída em cima de personalidades e não da instituição; toda a
sua organização girava em torno de nomes.

Principalmente, “grandes nomes”, sejam dos pioneiros, Gunnar Vingren e Daniel Berg; ou de
grandes líderes estaduais que conseguiram visibilidade nacional, como foi o caso do pastor
Estevam Ângelo de Souza. Todos estes homens foram pastores, que na Assembleia de Deus,
muito além de ter e exercer poder representa o próprio poder!

Esta capacidade em desempenhar domínio político, cultural, carismático e, sobretudo,


religioso, através do ensinamento da doutrina, para que os fiéis estejam dentro do padrão
correto e esperado pela Assembleia de Deus. Seguir as normas instituídas pelo pastor é aceitar
suas deliberações, na maior parte das vezes, seja para apoiar um regime de ditadura civil
militar, uma vez que foi manifesto apoio público através dos principais periódicos da Igreja.
Ou no mesmo sentido do entrelaçamento com a história do país, a partir do pleito eleitoral de
1988, entrar definitivamente como representatividade e poder de atuação na política brasileira.
Particularidades apresentadas ao longo de nossa pesquisa, que fazem da Assembleia de Deus
um objeto de estudo rico e complexo, com amplas possibilidades de abordagem, que nos
permitiu optar por problematizar um dos seus grandes “nomes”, pastor Estevam Ângelo de
Souza. Pastor presidente da Igreja Assembleia de Deus de São Luís no período de 1957 a
1996, recorte temporal de nosso estudo, que foi escolhido no sentido de podermos abranger
toda a riqueza e amplas probabilidades de análise de nosso objeto de estudo.

Homem religioso, pastor, marido, pai, autor, líder carismático, estas são algumas das nuances
deste objeto de estudo, que deve ser compreendido dentro do lugar do qual ele fez parte, a

2141
Igreja Assembleia de Deus. O seu objetivo principal, pelo que podemos constatar em nossa
pesquisa foi o fortalecimento da Igreja, com sua posterior expansão pelo Estado do Maranhão.

Fato conseguido, ao deixar no ano de seu falecimento em 1996, a Igreja com 167 templos
somente em São Luís, capital do Estado do Maranhão. Episódio considerado de grande
representatividade, em virtude de assumir apenas com 3 templos em 1957. Temos consciência
das estratégias instituídas por este pastor, e especialmente, acordos e associações com
representantes do poder público do Estado, como, o exemplo demonstrado em nossa pesquisa,
com o então recém eleito governador José Sarney.

Entendemos em nosso estudo, Estevam Ângelo de Souza enquanto homem público e político
atrelado à sua vivência enquanto pastor e religioso. Que percorreu caminhos por vezes
destoantes, mas justificados, em sua concepção, para alcançar o seu objetivo, uma melhor
propagação da mensagem pentecostal no Maranhão, e no Brasil, com a publicação de seus
livros.

Referências

A SEARA, 1980.

BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre


cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume; São
Bernardo do Campo: Instituto Metodista Izabela Hendrix, 2009.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um


empreendimento neopentecostal. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1997. p.126.

FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. 1993.


Orientação de Sérgio Miceli Pessoa de Barros. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Estadual de Campinas, São
Paulo, SP, 1993.

MOTA, Elba Fernanda Marques. Poder, subjetividade e condição feminina no


pentecostalismo maranhense: o caso da Igreja Assembleia de Deus (1940-1990). Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História), UFMA, 2009.

__________. Representações de si e prática da escrita na religião: a produção de Estevam


Ângelo de Souza na Assembleia de Deus do Maranhão (1957-1996). Orientação de Márcia de
Almeida Gonçalves. Dissertação (Mestrado em História), UERJ, Rio de Janeiro, 2013.

2142
__________; SANTOS, . O apóstolo da simplicidade evangélica: Estevam Ângelo de Souza e
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2143
2144
Pentecostalismos e questão social: novas formas de
enfrentamento?1
Edson Elias de Morais2, Luiz Ernesto Guimarães3

Introdução

Ao se discutir o tema religião, sobressai a ideia de sagrado, sobrenatural, união e comunhão.


Em uma perspectiva gramsciana, as religiões podem ser analisadas como algo concreto na
sociedade, que desenvolvem uma diversidade de relações sociais nos mais diferentes
contextos. Portanto, o estudo de qualquer religião não permite relegar o entendimento do
contexto sócio histórico, já que as mesmas constituem seus templos e Igrejas a partir da
situação social, política, econômica e cultural na qual estão inseridas.

A complexidade das sociedades contemporâneas, com a intensa industrialização, a ocupação


desordenada dos centros urbanos, a desigualdade social, a pobreza presente para a maioria da
população, a exclusão de homens, mulheres, crianças, adolescentes e idosos do acesso a bens
e serviços sociais, como saúde, educação, habitação, transporte coletivo de qualidade, entre
outros, provocou mudanças nas práticas litúrgicas das igrejas, que se viram impelidas a
reformularem suas doutrinas e concepções teológicas diante dessa realidade que se
descortinava fora de suas paredes.

Antes de continuar, é importante destacar, como o fez Ianni (1991), que a questão social é um
tema e um desafio permanente na sociedade brasileira, tanto para os governantes como para
os estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, determinando práticas e pensamentos com
o propósito de controlar, equacionar, minimizar ou erradicar a origem desta questão ou ao
menos as suas conseqüências.

Conforme Iamamoto (1990, p. 78), a questão social refere-se a uma “sociedade dividida em
classes sociais e a luta pela apropriação da riqueza socialmente produzida”; uma sociedade
que produz um conjunto de desigualdades e profundos antagonismos “fruto do

1
O trabalho a seguir foi elaborado de forma coletiva, a partir dos estudos e pesquisas do Laboratório de Estudos
sobre Religiões e Religiosidades da UEL, com os professores Dr. Fabio Lanza e Dra.Cláudia Neves da Silva.
2
Mestrando em Ciências Sociais pela UEL. Pesquisador do LE sobre as Religiões e as Religiosidades (LERR).
Bolsista CAPES. Contato:edson_londrina@hotmail.com.
3
Prof. Colaborador do Dep. de Ciências Sociais da UEL. Doutorando em Ciências Sociais pela Unesp/ Marília.
Pesquisador do LE sobre as Religiões e as Religiosidades (LERR). Contato: pr.ernesto@gmail.com.

2145
desenvolvimento das forças produtivas, da divisão do trabalho e a sua consequente
potenciação” no sistema capitalista. São problemas e situações que foram constituídas em
decorrência das modernas condições de trabalho, nos meios urbano e rural, e que não podem
mais ser ignoradas ou tratadas apenas como disfuncional pela burguesia e pelo Estado, já que
com o crescimento, organização e luta dos trabalhadores na defesa de seus interesses e
necessidades imediatas, as respostas à questão social não podem mais se reduzir à repressão
as organizações sindicais e aos movimentos populares, mas se expressam na garantia de
alguns direitos sociais, como saúde, educação, habitação, assistência social, os quais, não
obstante, sofrem alterações em momentos de crise econômica.

A privação dos meios de subsistência a enormes parcelas da população ocasiona dependência


de ações emergenciais, de programas assistenciais governamentais, e da filantropia privada. É
verdade que as ações socioassistenciais promovidas por diferentes segmentos não se dão
somente na atualidade, mas foi fato presente em diferentes momentos históricos, pelo fato de
a pobreza e os pobres serem invariavelmente tratados como inimigos da ordem pública e
precisarem ser combatidos e controlados, ora pela coerção, ora pela coação. Tais ações,
principalmente a assistência social, tornaram-se um importante instrumento de controle social
dessa população numerosa e relegada a segundo plano. Como instituição inserida na
realidade, as igrejas se incumbiram de atender a esse numeroso segmento carente de bens
materiais e de apoio espiritual.

Diante do exposto, acreditamos que as precárias condições econômicas e sociais de seus fiéis
obrigaram as Igrejas latino-americanas de diferentes denominações a voltarem sua atenção
para a questão social, promovendo a readequação de sua teologia e de seus discursos, que
passaram a enfatizar aspectos como pobreza, crise moral, direitos sociais, organização política
e social.

Nesse processo, a atividade assistencial das Igrejas representou a continuidade, sob novas
bases e motivações, de uma prática que possibilitou aproximar-se daqueles que se encontram
abaixo do mínimo indispensável para a sobrevivência, não limitando suas atividades ao
interior do templo – ao culto – e ao rigor ético comportamental, mas adotaram ações
diversificadas, como por exemplo, a assistência social.

Assim, por meio da realização de uma pesquisa bibliográfica e de observação de campo em


eventos religiosos contemporâneos do campo pentecostal e neopentecostal (IURD-Londrina e

2146
ExpoCristo-Curitiba), procuramos entender como elas responderam à questão social que se
apresentou no interior de seus templos, gerando em seus líderes religiosos a adoção de
diferentes discursos.

O movimento pentecostal e sua mensagem inovadora

O segmento religioso selecionado que também respondeu aos problemas que emergiam
cotidianamente da realidade de seus fiéis, foi o das Igrejas Evangélicas Pentecostais, que
conheceu significativo crescimento no período em questão, revelando-se uma concorrente
importante no mercado de bens simbólicos, porque arregimentava fiéis junto às fileiras das
Igrejas tradicionais. Tais Igrejas foram frutos de movimentos de cunho espiritual, cujas
origens remontam ao final do século XIX, nos Estados Unidos.

Como a narrativa do surgimento e da evolução do movimento pentecostal, tanto nos EUA


como no Brasil, apresenta poucas variações, sugerimos a leitura de alguns pesquisadores da
religião para maior compreensão deste fenômeno religioso4.

Foi em contextos de mudanças econômicas, sociais e culturais ocorridos no Brasil ao longo


dos anos, que novas Igrejas nasceram, trazendo importantes mudanças no subcampo
protestante, como uma nova forma de produzir e reproduzir a mensagem religiosa e uma nova
maneira de se portar e de se apresentar de seus dirigentes e membros. Reproduzimos as
palavras de Oro (1996, p. 56) para explicar essas mudanças:

Enquanto o tradicional crente pentecostal, da primeira e segunda ondas, assume uma


postura de afastamento e de repúdio ao “mundo”, especialmente seus prazeres, diversões,
paixões, vícios... Percebe-se que as Igrejas neopentecostais, e entre elas a Universal,
Renascer em Cristo e Nova Vida, rompem com a tradicional identidade estética pentecostal,
pois seus membros vestem-se como bem entendem, as mulheres usam adereços e produtos
de beleza, aos fiéis não é vedado o lazer e a diversão.

O avanço pentecostal na sociedade brasileira, primeiro em 1910 e posteriormente em 1950,


4
BITTENCOURT FILHO, J. Remédio Amargo. In: ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem demônios:
interpretações sociológicas do pentecostalismo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 24-33; CAMPOS, L.S.
Protestantismo histórico e pentecostalismo no Brasil: aproximações e conflitos. In: Na força do espírito: os
pentecostais na América Latina: um desafio às igrejas históricas. AIPPRAL: São Paulo, 1996. p. 77-118;
CORTEN, A. Os pobres e o Espírito Santo: o pentecostalismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1996. FRESTON, P.
Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do
pentecostalismo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 67 – 159; MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do
novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Ed. Loyola, 1999.

2147
guarda características comuns, como a sua teologia fundamentada na bênção do Espírito
Santo e a ênfase nos dons da cura e da libertação. Quanto à ênfase na teologia da prosperidade
e à guerra espiritual, são marcas distintivas do neopentecostalismo, porque renova e reforma
características do chamado pentecostalismo clássico. Como relata Campos (1996, p. 55): “O
‘neopentecostalismo’, dos anos de 1980, colocou em primeiro lugar a saúde do corpo, a
prosperidade e a solução dos problemas psíquicos, colocando-as como resultado imediato à
busca do sagrado”.

Todavia, essa teologia, que se centraliza na felicidade, prosperidade e abundância já no


mundo terreno, não foi bem recebida pelas Igrejas do Pentecostalismo Clássico (1ª e 2ª
ondas). É bem verdade que algumas expressões religiosas são incorporadas por estas Igrejas -
por conta do avanço das Igrejas do neopentecostalismo em sua seara. Afinal, a Igreja não se
encontra isolada do que ocorre fora de suas paredes, ao contrário, em seu interior reflete-se a
realidade terrena.

Possíveis causas do sucesso do pentecostalismo entre os grupos sociais mais empobrecidos


devem-se também a uma sociedade que se urbanizou desordenadamente em decorrência do
êxodo de milhares de homens e mulheres que, expulsos do campo, deslocaram-se para as
cidades em busca de melhores condições de sobrevivência, mas que pouco ou quase nada
conseguiram ofereceu para seus novos moradores. Fazemos nossas as palavras de Campos
(1996, p. 93-94):

O pentecostalismo tem respondido de forma positiva às necessidades sócio-psíquicas das


pessoas excluídas da modernidade capitalista. [...] Essa força surge exatamente da
identificação do pentecostalismo com aquela cultura popular gerada numa tradição pré-
capitalista, portadora de resíduos milenaristas, de um dinamismo capaz de dar aos pobres e
excluídos a força de conviver com tantas desigualdades, vazio e miséria.

As novas Igrejas Evangélicas Pentecostais brasileiras, com novas práticas religiosas, também
apresentaram uma nova teologia, aqui entendida como uma formulação conceitual (de
questões relativas ao conhecimento de Deus) e sistemática de uma doutrina (um conjunto de
normas e princípios que regem o pensamento e o modo de agir do fiel).

2148
Fé e emoção: a base da teologia pentecostal

Essa teologia tem por base a bênção do Espírito Santo e o seu sinal, a glossolalia (falar em
línguas estranhas), assim como a cura e a libertação das forças malignas. Uma teologia que
deve ser compreendida nos testemunhos daqueles que compartilharam o encontro com o
Espírito Santo.

Na visão de mundo pentecostal, a força do mal é uma realidade concreta, porque habita no
mundo, manifestando-se no dia-a-dia daqueles que não crêem e também daqueles que crêem,
como a falta de emprego, as enfermidades físicas e mentais, a violência doméstica. Na guerra
contra o mal, as armas são as vigílias, a oração e o jejum. Não combater o mal, isto é, o
demônio, representa a vitória do caos e da desordem na vida pessoal, trazendo doenças,
desemprego, brigas e separações, bem como caos e desordem na coletividade. (ORTEGA,
1996).

E é no culto que se dá a expressão coletiva de fé e louvor, o qual é regido por forte emoção,
com hinos alegres e vibrantes que mexem com todo o corpo – as mãos, os braços, as pernas,
os quadris – e cujas letras simples, com refrões repetitivos e compreensíveis, falam do poder
de Jesus Cristo e da fé, conclamando todos à entrega a um Deus triunfante, preocupado e
interessado em cada um em particular, porque conhece seus problemas, suas dificuldades,
suas ansiedades, e se compadece como um pai atencioso e amoroso, que não julga e muito
menos condena seus filhos.

Os fiéis esperam que a religião lhes forneça as respostas de como enfrentar as constantes
dificuldades materiais e financeiras. Se a busca para enfrentar as agruras cotidianas se dá no
plano espiritual, porque depende da fé de cada um em um Deus poderoso e onipotente, as
razões para existirem homens e mulheres em situação de extrema pobreza também não
estariam fora deles, mas em uma esfera interna que somente cada indivíduo poderia superar.
A pobreza material poderia ser decorrência da pouca fé em Deus, da desobediência às suas
determinações.

A pobreza para aqueles que compartilham essa concepção de mundo, decorre de uma situação
individual, tanto do que tem mais, porque movido pelo egoísmo, pelo anseio do ganho fácil,
que o leva a explorar seus empregados, pagando-lhes salários injustos e a não ajudar os mais
necessitados, quanto do que nada tem, porque uma força fora deste mundo, maligna, o estaria
impedindo de prosperar, de ter um emprego e, a casa própria. Somente pela fé em Deus e

2149
Jesus seria possível superar esta força que estaria dominando a vida do crente.

Teologia da Prosperidade: devoção e riqueza material

A partir da década de 1980 consolidam-se as igrejas neopentecostais, e com este segmento


surge uma série de novas organizações religiosas, ou seja, novas denominações de caráter
conservador carismático, resultado de rompimentos das igrejas tradicionais, fundamentados
na crença de ministério próprio. A partir de da década de 1990 a “onda” gospel invadiu o
Brasil e trouxe novas teologias que estimulam cada vez mais esse rompimento, pois incita os
fieis a uma postura diferenciada a que estava sendo proposta pelas instituições tradicionais e
percebe-se um grande “trânsito religioso” (ALMEIDA; MONTEIRO, 2001).

A postura reencantada tem maior aceitação popular que a Teologia da Libertação, e outras
teologias progressistas. Então percebemos um declínio dessas propostas a partir da década de
1990 e ascensão de uma religiosidade mais descaracterizada de uma identidade histórica e
doutrinária se configurando uma religiosidade híbrida5 e, ao mesmo tempo, no campo político
econômico houve o declínio das propostas socialista-comunistas, principalmente após o fim
da Guerra Fria em 1989, concomitante a ascensão do neoliberalismo. Essa mudança no campo
religioso pode ser entendida como resultado do processo iniciado pelo pentecostalismo
clássico durante o século XX, e sobre esse período Maria Lucia Montes nos informa que

Num período de transformação social, com a aceleração do processo de industrialização e a


consequente migração para os grandes centros urbanos de significativos contingentes
populacionais vindos de um Brasil rural pobre em busca de melhores condições de vida na
cidade, a emergência dessas igrejas viria ao encontro dos valores tradicionais da cultura
desses migrantes, em especial aqueles ligados a uma terapêutica mágica de benzimentos e
simpatias ou à medicina tradicional de ervas e plantas curativas sobejamente conhecidas no
meio rural de onde provinham (MONTES, 2006, p. 83).

Temos, portanto, uma globalização do capitalismo que influenciou as relações sociais por
meio do consumismo global, e que por sua vez, influencia as ações individuais em seu
cotidiano, fragmentando, assim, toda e qualquer identidade, seja cultural, religiosa ou
individual, ou até mesmo institucional.

5
Conforme a argumentação de Stuart Hall acerca das “culturas híbridas” (HALL, 2003, p.89). Segundo Hall, a
modernidade tardia tem proporcionado as migrações e, além disso, maior contato cultural, forçando os
indivíduos a “negociar com novas culturas”.

2150
É diante dessa conjuntura religiosa e social que percebemos a relação existente entre a
ascensão do neoliberalismo com toda modificação político-social-cultural, e o
desenvolvimento de uma religiosidade que tem no neopentecostalismo seu modelo tácito,
portanto uma relação contínua entre valores sociais, mudanças político-econômicas e
religiosidade como vetores da ideologia hegemônica. É possível perceber, também, uma
mudança significativa no campo religioso brasileiro, mudança que tem proporcionado o
crescimento numérico de fiéis evangélicos dos mais distintos segmentos, porém com
características peculiares, que representam a “matriz religiosa brasileira” (BITTENCOURT
FILHO, 2003).

Religiosidade neopentecostal

Na atualidade, muitas organizações religiosas em Londrina, entre outras, aderiram a uma


mensagem menos doutrinária, se abrem a chamada “Teologia da Batalha Espiritual”
organizando seminários com expoentes desta vertente, e “campanhas de cura e libertação (de
demônios)”, além de sermões de cunho estritamente moral e individual, em síntese com
elementos da Teologia da Prosperidade.

Tais igrejas são influenciadas à mudança a partir do desenvolvimento neopentecostal que


passou a concorrer com as igrejas históricas. Estas deixaram a rigidez doutrinária e tradicional
e entraram em um processo de reformulação, flexibilizando a postura eclesial e doutrinária, do
qual o neopentecostalismo tornou-se um modelo contemporâneo.6 No contexto do surgimento
do neopentecostalismo, meados de 1970, a classe trabalhadora urbana sofreu o processo
denominado de reestruturação produtiva, processo onde muitos dos direitos conquistados
pelos trabalhadores são modificados, níveis dos salários são reduzidos, leis de proteção ao
trabalhador são remodeladas, fazendo surgir empregos de tempo parcial, terceirizações,
temporários e informais, ou seja, ampliação da precarização do trabalho, além da alta taxa de
desemprego. O neopentecostalismo se apresenta como resposta funcional à massa de
trabalhadores que ficaram “à deriva”7 nos centros urbanos e com isso foi adquirindo
seguidores dos mais variados segmentos religiosos e estratos sociais.

6
Sobre esse processo de esvaziamento das igrejas tradicionais ver: VELASQUES FILHO, Prócoro. Declínio do
cristianismo tradicional e ascensão das religiões do espírito. In: VELASQUES FILHO, P.; MENDONÇA, A. G.
Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 249-263.
7
Conforme conceito desenvolvido por Richard Sennett em “A Corrosão do Caráter”.

2151
Diante desses fatos percebemos uma concorrência entre as instituições religiosas sendo cada
vez mais acirrada, diante de grande demanda, onde a oferta deve ser satisfatória aos interesses
dos clientes, sendo essa a lógica do mercado. E testemunhamos entre as igrejas de matriz
protestante as principais transformações nas últimas décadas, primeiramente com a
emergência do movimento pentecostal por volta de 1910 e sua institucionalização a partir da
década de 1950, posteriormente o neopentecostalismo a partir da década de 1970 e depois da
década de 80/90 do mesmo século, acontece uma multiplicação de novas igrejas com
eclesiologias que se distanciam cada vez mais das igrejas históricas, denominadas de
Comunidades.

As igrejas neopentecostais encontram na cidade de Londrina ambiente propício, e tem sido o


segmento que mais cresce na cidade, tanto que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a
Internacional da Graça, e a Mundial do Poder de Deus alugaram e reformaram enormes salões
no centro da cidade, onde oferecem várias reuniões.

Para captar a ideologia dos valores contemporâneos proposto pela liderança religiosa
neopentecostal, apresentaremos objetivamente fragmentos de um sermão do pastor Marcos da
IURD de Londrina, e também de um pastor da Assembleia de Deus Tempo de Avivamento
que assume a Teologia da Prosperidade, o pastor, e também Deputado Federal, Marco
Feliciano, que encerrou a ExpoCristo em Curitiba-PR.

Na IURD,8 a tônica do pastor Marcos foi elencar inúmeros problemas da vida quotidiana e
relacioná-los como sendo ações do Diabo se seus demônios, e em sua primeira lista estavam:
miséria, vírus, bactérias, dores. E para libertá-los seria necessário “participar da campanha” e
“ser fiel”, “porque Deus não gosta de crente melindroso, e fraco na fé”. O pastor Marcos
instruiu, por meio de alguns versículos bíblicos que “o crente deve ficar revoltado com a
injustiça e com a má situação”, e em alta voz continuou: “vocês sabem qual é a maior
injustiça? sabem? pois eu vou falar... a maior injustiça é a igualdade!” e perguntou para o
povo “E Deus, tem seus preferidos? sim, Deus tem seus preferidos, por que Deus não
participa de injustiça, por que a intimidade do Senhor é para os que temem, ou vocês não
acham uma injustiça esse monte de endemoninhado ter riquezas, tranquilidade, ter o melhor, e
você filho de Deus, servo do Senhor, ficar padecendo, ter um monte de problemas? Então se
você está revoltado venha no culto de domingo, eu já falei, vou vir de preto dos pés a cabeça!
8
A observação foi feita na Igreja Universal do Reino de Deus, localizada na rua Benjamim Constant, n°1488,
Londrina-PR. nos cultos de terças e quintas-feiras, denominados: Sessão do Descarrego. A observação aconteceu
no dia 21 de junho de 2011, ás 19:30 horas.

2152
você também venha nem que seja com uma peça de roupa preta para simbolizar sua revolta,
porque estou até o pescoço de revolta! E por que usar o preto? Por que o juiz se veste de
preto, e devemos reivindicar justiça”.

Depois das orações e exorcismos coletivos o referido pastor disse: “é errado pedir dinheiro na
igreja?” o povo respondia que não! “tem muitas pessoas que fazem bico quando peço
dinheiro, mas eu não ligo, porque é Deus quem honra, ninguém é obrigado a dar, dá quem
quer, e quem tem! É ou não é?” o povo respondia: “é!”.

O pastor Marcos chamou um dos obreiros para dar um testemunho, e o mesmo disse que na
semana anterior, foi por volta da meia noite na igreja para o pastor orar por uma dívida que
tinha que receber. No dia seguinte ele ofertou “na casa de Deus”, e no final da semana ele
recebeu a dívida, que era de R$ 22.000,00. O Pr. Marcos disse que Deus tinha escolhido
alguns naquela noite para ofertar R$ 100,00, orou, e levantaram-se oito pessoas, depois mais
sete para ofertar R$ 20,00, e mais vinte e seis pessoas ofertaram R$ 10,00. Ele afirmou que a
hora da maior benção é a hora das ofertas, e disse que aquelas pessoas que não tinham nada
para ofertar estavam também abençoadas, e que no final do mês teriam muito dinheiro para
ofertar na casa do Senhor. No momento das ofertas, foi posto a porta em desenho de chave
para as pessoas serem abençoadas financeiramente, ele sempre dizia: “o pastor pode pedir
dinheiro ou não pode?!” as pessoas diziam: “é claro que pode”, “ninguém é obrigado a dar!”,
mas todos davam!

O pastor e Deputado Federal Marco Feliciano foi convidado para encerrar a feira de
exposição de produtos evangélicos denominada ExpoCristo9 em Curitiba-PR. O conteúdo do
sermão foi, segundo ele, “tipicamente pentecostal”, relacionado à intimidade com Deus,
adoração, e compromisso cristão de obedecer aos chamados de Deus. O mais significativo de
sua performance foi após o sermão ao contar seu próprio testemunho de “obediência e
renuncia”.

Ele conta que logo que se casou, batalhou muito para juntar um determinado valor financeiro
e comprar um pequeno apartamento, mas logo em seguida “Deus me mandou dar o
apartamento para uma pessoa necessitada. E o que você faria numa situação dessas? Você
daria? Daria nada!!! Mas EU dei!!!”. Segundo o pastor, dias depois ele foi presenteado com
uma casa e a medida que o tempo foi passando Deus honrou a sua obediência a ponto de hoje

9
A feira ocorreu nos dias 14 à 17 de julho de 2011, nas instalações da FIEP-SESI em Curitiba-PR.

2153
ter uma casa de 1.100 M2 de área construída, com um “pequeno castelo” no fundo para as
suas duas “princesas” e um lago no jardim. Segundo o pastor Marco Feliciano as famílias
mais ricas de sua cidade pedem para entrar em sua casa e admirar, pois é referencia de luxo e
conforto da cidade.

Toda essa história foi contada para ele “dar a oportunidade de todos serem abençoadas por
meio da oferta”, porque “dando que se recebe”. E disse: “quero ver se tem algum crente
corajoso que está com sua conta no vermelho, mas com fé vai dar um cheque pré-datado e
esperar até o final da próxima semana e ver o milagre de Deus”, e apareceram dois homens
que levantaram suas folhas de cheque e ofertaram. Ao lado do palco estavam duas moças com
máquinas de débito/crédito da Cielo, para aqueles que estavam sem dinheiro, mas possuíam
Cartão de Crédito, e naquela noite de domingo, a grande maioria ofertou com seu dinheiro,
cheque pré-datado ou Cartão, no intuito de serem obedientes e receber a benção de Deus, ou
seja, uma qualidade de vida, semelhante a que o Marco Feliciano narrou, com muita
prosperidade.

Considerações finais

Em uma sociedade em que os direitos essenciais, como acesso à saúde, educação de


qualidade, moradia em bairros com infra-estrutura básica (esgoto sanitário, água encanada e
coleta de lixo), transporte eficiente, lazer (afinal, também é um direito!), não são assegurados,
para muitos resta apelar para o sagrado, porque lá existiria um Deus Onipotente que a todos
ouviria e, de acordo com o tamanho da fé, atenderia.

No Brasil, o acelerado processo de urbanização no último quartel do século XX atingiu


profundamente as condições objetivas e subjetivas de indivíduos e grupos, levando-os a se
readequarem à nova realidade que se viram submetidos. Se nas décadas de 1970 e 1980 os
movimentos sociais e as organizações populares nasceram e cresceram, nas décadas
subseqüentes constatou-se que estes não eliminaram as desigualdades sociais, a miséria, a
indigência e a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de acesso aos direitos sociais
garantidos na Constituição promulgada em 1988. Ao contrário, o que se verificou foi o
aumento dos problemas sociais, como o agravante da violência urbana apresentar-se
cotidianamente na porta de casa – roubos, assassinatos, tráfico de entorpecentes,
arbitrariedades cometidas por policiais – seja nas metrópoles, seja nas cidades de médio e

2154
pequeno porte.

A religião seria o meio e a igreja o local onde se poderia reviver, em parte, os sentimentos tão
presentes nos tempos que morava em pequenas cidades ou vilas e as relações que se
estabeleciam com os vizinhos eram baseadas no respeito, na solidariedade, na amizade, na
empatia.

Os problemas que porventura surgiam, usualmente eram atenuados com a ajuda de vizinhos
ou parentes. Porém, com a industrialização, o crescimento das cidades, as relações sociais
passaram a ser mediadas por comportamentos e atitudes baseadas no imediato e na
superficialidade das emoções e sentimentos, insensíveis e indiferentes às crianças, idosos,
homens e mulheres que vivem em condições inferiores ao seu mínimo necessário para a
sobrevivência, porque seriam considerados “efeitos colaterais” ou sacrifícios inevitáveis do
desenvolvimento econômico.

Diante dessa nova realidade que se descortinava, as igrejas tiveram que se readequar, já que
seus fiéis traziam para o interior dos templos novas situações e novas demandas, exigindo,
portanto, novas respostas. Como não era mais possível ficar indiferente ao que se passava no
plano terreno, as igrejas se viram compelidas a reformular e ampliar seu papel em uma
sociedade industrial, urbana, centralizada na modernidade, na tecnologia e no consumo. E as
estratégias adotadas foram definidas de acordo com a doutrina e a teologia de seus líderes
religiosos.

Nesse contexto sócio-econômico, as Igrejas Pentecostais surgiram para atender a demanda de


um segmento em vertiginoso crescimento, e que iam em busca de respostas que as
denominações religiosas tradicionais não conseguiam mais atender.

E o que vemos atualmente são Igrejas Pentecostais, promovendo o reforço de uma


espiritualidade na qual a experiência da fé e da emoção são centrais, regulando
comportamentos e valores morais frente à questão social e seus reflexos na sociedade
brasileira. E, como resultado final dessa investigação, compreendemos que o
neopentecostalismo está associado às ideologias neoliberais que mercadorizam todos os
processos da vida, até mesmo as relações com o sagrado, transformando a religião em meio de
negócio, onde o objetivo é lucrar e lucrar financeiramente. As formas de religiosidade
neopentecostal associadas ao neoliberalismo tende a influenciar as organizações religiosas e a
religiosidade popular em suas concepções com o sagrado e com o mercado de bens

2155
simbólicos, sacralizando o secular e secularizando o sagrado.

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ORTEGA, Ofélia. Ecumenismo do Espírito Santo. In: Na força do Espírito: os pentecostais


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do espírito. In: VELASQUES FILHO, P.; MENDONÇA, Antônio G. Introdução ao
Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 249-263.

2156
2157
Neopentecostalismo e as mudanças na concepção escatológica das
Assembleias de Deus
Ismael de Vasconcelos Ferreira1

Introdução

Esta comunicação é fruto de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ela objetiva
analisar e discutir as mudanças que vêm ocorrendo nas Assembleias de Deus, notadamente
em suas doutrinas escatológicas. Para tanto, utilizou-se como fonte primária os periódicos e
livros que são publicados pela denominação. A título de comparação, foram observadas as
pregações proferidas durante o Congresso dos Gideões Missionários da Última Hora
(GMUH) de 2012, buscando encontrar pontos que ressaltassem a adequação ou não às
convicções já consolidadas pela denominação.

A utilização do referido evento como parâmetro para as Assembleias de Deus deveu-se ao


fato de ele ser considerado atualmente o maior evento pentecostal do país, reunir
representantes de todos os estados brasileiros em sua programação e ter como foco principal a
pregação, algo que é muito relevante ao pentecostalismo, já que constitui o ponto crucial da
sua liturgia.

Outro aspecto a ser ressaltado é a comparação que é feita entre a ênfase escrita e oral.
Acredita-se, baseado nos teóricos que afirmam que a oralidade tende a ser mais evidente que a
escrita em certas culturas (ONG, 1998; GOODY, 2012), que o pentecostalismo, por ser um
misto das duas, vem sendo bem mais influenciado pela oralidade, deixando a escrita para
segundo plano ou mesmo reinterpretando-a, a partir dos novos conceitos que são emanados
pelas pregações.

Esta dinâmica acaba por beneficiar um movimento que vem crescendo no Brasil e que
prescinde de manuais teológicos ou regras doutrinárias preestabelecidas, embasando-se
essencialmente no pragmatismo e na afirmação do tempo presente: o neopentecostalismo.

1
Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF. Membro do NE em Protestantismos e Teologias (NEPROTES).
Bolsista CAPES. Contato: ismaelvasconcelos@yahoo.com.br

2158
E assim, as Assembleias de Deus, considerada a representante por excelência do
pentecostalismo clássico brasileiro, ao adequar-se a essas novas convicções emanadas pelo
neopentecostalismo, deixaria de ser caracterizada como clássica (ou mesmo pentecostal) e
passaria a compor esta nova caracterização, neopentecostal.

Através de breves relatos e discussões, pretende-se analisar e discutir esse fenômeno nesta
comunicação, sendo que os apontamentos aqui trazidos constituem apenas uma amostra do
que vem sendo desenvolvido na pesquisa outrora referida. Outrossim, este texto caracteriza-se
por um aspecto experimental, devendo ser aprimorado a partir de novas leituras ou mesmo de
contribuições dos pares que já vêm desenvolvendo pesquisas na área.

Pentecostalismo clássico e escatologia

As relações entre o pentecostalismo clássico e sua identificação com o mundo passam por
concepções que foram elaboradas a partir da doutrina escatológica que lhe legou um notório
desinteresse por valores e vivências do/no mundo. Essas concepções foram sendo mantidas e
fortalecidas a partir de meios de formação que buscavam a consolidação de doutrinas que
serviriam para caracterizar um modelo ascético e sectário que era embasado numa esperança
transcendente em detrimento de uma realizável materialmente.

As Assembleias de Deus, maior denominação pentecostal do Brasil e ainda podendo ser


considerada uma representante do pentecostalismo clássico, aquele que manteve
características do pentecostalismo fundante no Brasil, guarda em seu código de doutrinas
convicções que as identificam como uma denominação “genuinamente” pentecostal. Nelas, os
fiéis eram instigados a adotarem um estilo de vida pautado exclusivamente no transcendente,
sempre ressaltando o cuidado (o “zelo”) com o corpo a fim de apresentá-lo santificado a Deus
no grande dia em que Jesus Cristo haveria de buscá-los, no arrebatamento da igreja.

Teve (e ainda têm) importante papel na transmissão desse código de doutrinas a Escola
Bíblica Dominical (EBD). Esta Escola, que adota uma programação específica, sendo
realizada normalmente aos domingos pela manhã em todas as Assembleias de Deus no Brasil,
utiliza um material próprio (comumente chamado de “revista da EBD”), que contém o teor
das doutrinas da denominação em forma de comentários que são repassados por um professor

2159
aos alunos. Cada aluno dispõe de uma revista que normalmente é menos detalhada, se
comparada a do professor. Porém, o teor da mensagem principal é sempre o mesmo.

São nessas “revistas” ou periódicos que constam os ensinamentos necessários à manutenção


de um ethos que identifica os pentecostais, e principalmente os fiéis das Assembleias de Deus,
como um povo “peregrino”, que “está neste mundo, mas não é deste mundo” e que vive na
iminência de um grande acontecimento que marcará o resto de suas vidas: o arrebatamento da
igreja, que se espera acontecer a partir da volta invisível e iminente de Jesus Cristo,
teologicamente chamada de parusia.

Em uma análise feita nas “revistas” publicadas no período de 1970 a 2012, priorizando
aquelas que abordavam o tema aqui delimitado que é escatologia, foi possível constatar que o
ideal defendido ainda na década de 1970 continua sendo o mesmo na época atual. Não se
observou, por exemplo, um arrefecimento na repetição desse tema. Pelo contrário, pelo menos
em cada edição desses periódicos há uma referência às últimas coisas que, acreditam os
pentecostais, deverão acontecer a si próprios e ao mundo.

Aspectos como a valorização do tempo futuro a partir de uma esperança transcendental, o


entendimento do tempo presente (cronos) a partir de uma hermenêutica que o condiciona a
um tempo regido pela soberania divina (kairós), a desvalorização de convicções peculiares ao
mundo secular em prol de uma ética que valoriza essencialmente a santificação e a exaltação
do sofrimento que ao invés de ser evitada ou postergada é valorizada e incentivada, continuam
evidentes nesses escritos, sendo responsáveis pela manutenção e afirmação da denominação
como pertencente ao pentecostalismo clássico. E, conforme já se comentou anteriormente,
essas convicções continuariam sendo repassadas “dominicalmente” aos membros desta
denominação.

Aqui se ressalta o papel formador e “doutrinador” que as Assembleias de Deus ainda mantêm,
tendo como ferramenta principal a EBD, seus voluntários (professores) que agem como
repetidores desses dogmas e os alunos que ouvem tais ensinos e fortalecem as convicções já
conhecidas por eles.

Esta EBD atuaria, portanto, como mantenedora dos mitos que identificariam as Assembleias
de Deus como uma denominação que ainda mantém um discurso escatológico, defensor de
concepções que apontariam para uma esperança futura e transcendente que denotaria um

2160
cuidado com a vida eterna em detrimento de uma vida terrena efêmera e sujeita a males e
perdas condizentes à sua temporalidade.

Contudo, apesar desse discurso consolidado, até cristalizado, através dos registros escritos,
surge um fenômeno que tende a alterá-lo, ou mesmo invalidá-lo. Trata-se do que será
discutido no item seguinte que é pregação e sua prevalência na formação doutrinária do fiel
pentecostal das Assembleias de Deus, sendo esta bem mais eficaz e pragmática em suas
aplicabilidades.

Pregação e afirmação do tempo presente

A partir da observação de algumas pregações proferidas no Congresso dos GMUH de 2012,


um evento pentecostal que é promovido anualmente pelas Assembleias de Deus em
Camboriú-SC, foi possível constatar que boa parte daquelas convicções relatadas no item
anterior tem sido deixadas de lado a fim de priorizar outras que ressaltariam exatamente o
contrário do que vem sendo defendido nos periódicos da EBD.

Sendo um congresso em que seu próprio nome traz à memória uma herança do
pentecostalismo clássico, que era essencialmente preocupado com a pregação proselitista,
haja vista acreditarem que Jesus Cristo estaria às portas e quanto mais cedo os fiéis
evangelizassem aqueles que não conheciam a salvação, menos pessoas estariam condenadas e
mais pessoas teriam acesso aos céus, agora parece haver um interesse não mais por esse
aspecto futuro da pregação pentecostal, mas sim por uma realização ainda hoje, palpável a
ponto de ser usufruída, de benesses que poderiam ser recebidas em uma vida futura, mas que,
de acordo com as pregações analisadas, teriam data e hora marcadas para acontecer.

Dentre as convicções que vêm sendo apregoadas nesse Congresso estariam aquelas que
buscam remediar situações já bem definidas no pentecostalismo clássico, como a questão do
sofrimento. Enquanto este pentecostalismo acreditava que tal situação acarretaria em uma
maior aproximação do fiel ao seu Deus, inclusive ressaltando sua permissão a fim de torná-lo
mais forte e convicto de sua fé, esse sofrimento é praticamente rechaçado durante as
pregações, sendo substituído por apelos de uma vida triunfante e próspera, associando esta
condição a uma aprovação divina, enquanto que a outra estaria mais próxima de uma

2161
influência inimiga, ocasionada pela atuação maligna do diabo, personagem muito mencionado
nas pregações do referido Congresso.

Levando-se em consideração que no pentecostalismo a pregação tem um caráter doutrinador


muito forte, dada a relevância da oralidade nesta tradição religiosa, e que o Congresso dos
GMUH tem uma ampla aceitação dos pentecostais no Brasil, principalmente das Assembleias
de Deus, pode-se inferir que essa denominação vem passando por consideráveis mudanças
que indicariam não só mudanças sociais, a princípio perceptíveis a “olho nu” ou por
observadores menos afeitos à referida denominação, mas também, e principalmente,
mudanças teológicas que afetariam definitivamente sua constituição enquanto denominação
ainda pertencente ao pentecostalismo clássico.

O caso do Congresso dos GMUH seria relevante para esta comparação, pois ele representaria
uma porção de fiéis pertencente às Assembleias de Deus que colaboram com o evento, já que
há a participação de pregadores procedentes das mais diversas regiões do País e de pessoas
também procedentes dessas regiões. Uma análise feita a partir das caravanas cadastradas no
evento deste ano (2013) permitiu constatar que existia pelo menos uma representação de cada
Estado do Brasil e que cada representação estava responsável por um ônibus com uma média
de 40 pessoas. Em Estados como Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo houve uma
maior participação, contabilizando-se mais de uma dezena de ônibus em cada um desses
Estados.

Novamente reiterando a importante influência da oralidade no pentecostalismo, seria


adequado afirmar que cada um desses participantes, ao retornar às suas cidades ou igrejas de
origem, sempre leva algo aprendido a partir das pregações proferidas durante o Congresso. E
essa contribuição é apresentada de maneira completa, através das próprias pregações que são
gravadas em DVD e vendidas ainda durante o evento, ou por meio de breves relatos utilizados
principalmente durante as pregações locais. Já que a hora da pregação constitui um momento
considerado sagrado pelos fiéis pentecostais, pois seria “a hora em que Deus haveria de falar”,
não se busca saber se realmente aquelas falas estariam de acordo com um padrão teológico já
preestabelecido pela denominação. E assim, tratam de repassar esses novos ensinamentos,
configurando o que se supôs no título desse item: a afirmação do tempo presente.

2162
Neopentecostalismo

O termo por si só denota um aspecto diferenciado do seu radical, que é o pentecostalismo, e


este clássico. Grosso modo, trata-se de uma variação que ocorreu a partir do final da década
de 1970 com o implemento de novas denominações evangélicas que trouxeram em seu bojo
novas concepções que enfatizavam principalmente a teologia da prosperidade, corrente
teológica proveniente dos Estados Unidos, conhecida por lá como confissão positiva. Os
defensores dessa doutrina afirmam, basicamente, que o fiel não pode sofrer injúrias,
dificuldades, provações ou quaisquer problemas que possam entristecê-lo e abatê-lo. Para
tanto, é comum nas denominações que defendem essa crença a prática de serviços que visam
a libertação daqueles que estejam passando por alguma dessas “tormentas”. E esses serviços
vão desde o estímulo a “decretar a derrota do inimigo que o aflige”, através da fé, até a
cobrança financeira por parte da instituição promotora.

Não se tem conhecimento, até agora, de um documento que indique uma sistematização
teológica das crenças do neopentecostalismo, estando ele amparado exclusivamente nas
convicções que são emanadas em momentos cruciais dos cultos como as pregações. Pode-se
afirmar que se trata de uma convicção basicamente oral e que ganha aceitação a partir do
momento em que é transmitida (ou repetida).

Pode-se associar também o neopentecostalismo ao crescimento considerável apontado pelos


últimos censos que tornou o pentecostalismo uma das tradições religiosas mais
representativas no Brasil. Haja vista ter um discurso bem mais pragmático e individualizado,
tornou-se aprazível àqueles que ansiavam por respostas mais rápidas às suas necessidades.

Ainda como um movimento periférico, peculiar somente a algumas denominações, o


neopentecostalismo ganhou força e despertou o interesse de outras denominações. Por meio
das observações aqui já referidas, feitas a partir das pregações do Congresso dos GMUH,
realizado em 2012, nota-se um claro interesse das Assembleias de Deus na adoção de novas
convicções que visivelmente distorcem de sua teologia já consolidada.

Uma vez que o neopentecostalismo ressalta uma forte afirmação do tempo presente,
concretizada através de discursos que trazem um apelo embasado na teologia da prosperidade,
esses discursos vêm sendo cada vez mais repetidos nas pregações em pequenas porções destas
ou mesmo integralmente. Ressalte-se que a aceitação do público a referidas falas é bem mais

2163
significativa do que quando se faz menção de outros aspectos do pentecostalismo clássico, já
consagradamente aceitos pela denominação.

Comparando o teor dessas mensagens ao que é de fato defendido doutrinariamente pelas


Assembleias de Deus, observa-se uma valorização do tempo presente, em detrimento da
esperança escatológica que ainda é mantida nos escritos da denominação, e um pragmatismo
que contrasta com um ideal outrora embasado exclusivamente na espera pela soberania divina
que agiria a partir da fé do fiel. Nesta espera, o fiel poderia ou não ter acesso ao que desejava
ou lhe havia sido prometido. Já nesta nova convicção, a divindade estaria a serviço do fiel a
fim de proporcionar-lhe todas as bênçãos que ele já “conquistou pela fé”.

Tais convicções, apesar de terem sido constatadas somente no Congresso dos GMUH, podem
ser facilmente encontradas nas Assembleias de Deus espalhadas pelo Brasil. A princípio,
essas convicções não representariam o discurso oficial da denominação, já que ainda é
relevante a doutrinação escrita, sendo inclusive criticada e combatida qualquer ação que se
assemelhe às convicções neopentecostais. Contudo, em uma observação mais acurada, é
possível identificar essas convicções tanto nas pregações que ritualmente são ministradas,
quanto em outros momentos que compõem a liturgia dos cultos, como nas músicas e nas falas
dos ministrantes que presidem as reuniões.

Considerações finais

Se o pentecostalismo clássico, que além da ênfase nos dons espirituais e no rigor com que
doutrina seus membros quanto aos usos e costumes, ansiava pelo retorno iminente de Jesus
Cristo, as duas primeiras ênfases ainda podem ser constatadas nas Assembleias de Deus,
sendo inclusive defendidas pela liderança e pelos membros. Já a última, apesar da sua
consolidação doutrinária, por meio da escrita, vem perdendo espaço para uma esperança
realizável ainda e definitivamente neste mundo.

A ênfase na oralidade, nessas denominações, vem sucumbindo a cultura escrita ainda mantida
oficialmente, mas sem tanta proeminência quanto o discurso oral, a pregação. E por ser uma
oportunidade considerada máxima no culto, esta pregação vem acarretando novas convicções
dentro do pentecostalismo das Assembleias de Deus. E essas convicções, conforme é
discutido neste trabalho, implicariam em uma neopentecostalização, ou afirmação do tempo

2164
presente, ou valorização do pragmatismo, ou mesmo anulação da “viva esperança” que nutria
os primeiros cristãos, que era a parusia.

Com isto, é possível compreender, por exemplo, a incursão dos pentecostais na política
partidária e nos movimentos de apelo ao retorno de uma moral baseada em preceitos
considerados bíblicos. Seria uma forma de tornar o mundo mais parecido com o céu que os
pentecostais acreditam que um dia irão viver ou, de um modo mais pragmático (e
neopentecostalizado), tornar o mundo o próprio céu dos pentecostais.

Referências

GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral. Tradução de Vera Joscelyne. Petrópolis: Vozes,
2012.

ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra. Campinas: Papirus,


1998.

2165
2166
O diálogo inter-religioso nas Assembleias de Deus: desafios e
possibilidades
Adriano Sousa Lima1

Introdução

Na cidade de Belém, capital do Estado do Pará, dois pregadores pentecostais suecos, de


origem batista, em 1911, fundaram a Missão da Fé Apostólica, que, em 1918, adotou o nome
de Igreja Evangélica Assembleia de Deus. A IEAD é, há algumas décadas, a maior
denominação evangélica do Brasil. Representa, segundo o Censo 2010, 35,6% dos 34.588.671
pentecostais, 29,1% dos 42.275.440 evangélicos brasileiros e 6,4% dos 190.755.799 de
brasileiros.

O crescimento da Assembleia de Deus aconteceu (e ainda acontece) num contexto de


pluralismo religioso e cultural, o que constitui um grande desafio para essa denominação. O
ambiente atual é diferente do de 1910, quando praticamente não existia nenhuma expressão de
religiosidade popular. O espiritismo não é mais caso de polícia e os cultos afros são
reconhecidos como referencial religioso. Naquela época, a Igreja Católica celebrava missas
em latim, a Igreja Luterana, cultos em alemão, a Igreja Anglicana, em inglês e a única igreja
pentecostal da época, a Congregação Cristã do Brasil, celebrava seus cultos em italiano.2

A mudança no contexto religioso brasileiro exige mudança de paradigma na teologia


assembleiana. O relacionamento com as outras tradições religiosas deverá passar do
sectarismo, fundamentalismo e fechamento, para uma busca de aproximação, diálogo e
cooperação.

Para alguns, só um “milagre” tornaria possível a superação do desafio supramencionado. Esse


“pessimismo” é justificado na medida em que as AD não aderiram ainda se quer ao
ecumenismo.3 Porém, a mudança no contexto social e cultural também exige uma nova

1
Mestrando em Teologia pela PUC/RS. Membro do GP Teologia e Libertação Bolsista. PROBOLSAS -
Programa de Bolsas mestrado e doutorado PUC/RS. Orientado pelo Prof. Dr. Luis Carlos Susin.
Contato:adriano.lima.66@hotmail.com
2
ALENCAR, 2010.
3
Tendência entre igrejas cristãs em desenvolverem atividades conjuntas no sentido de formar uma
universalidade.

2167
postura dessa denominação. Os traços que caracterizam as outras tradições religiosas devem
ser respeitados e reconhecidos.

O presente trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, apresenta-se o contexto


histórico das AD. No segundo, são elencados os desafios para o diálogo inter-religioso nessa
denominação e, no terceiro capítulo, é apresentada a pneumatologia como fundamento para a
abertura das AD ao diálogo inter-religioso. Afinal, a Igreja impulsionada pelo Espírito Santo
testemunha o reino de Deus que ultrapassa, em muito, suas fronteiras e exige que todos sejam
um.

1. O contexto histórico das Assembleias de Deus

A história das Assembleias de Deus inicia através do impulso de experiências místicas,


ocorridas nos EUA, envolvendo os jovens suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, e um crente
por nome de Adolfo Uldine. A historiografia oficial registra que em uma reunião de oração
em South Bend, Uldine profetizou a vinda de Vingren ao Pará, muito embora, sabemos agora
da existência de pastores da Suécia naquele Estado.4 A crise da borracha contribuiu para que
os milhares de migrantes desempregados retornassem para seus lugares de origem, o que foi
fundamental para o desenvolvimento da igreja. Por um lado, os acontecimentos históricos
estão em correlação indisfarçável com os fenômenos religiosos.5 Por outro lado, ambos se
tornam zonas de encontro e mediação.6

Nas primeiras décadas do século XX, aportam no Brasil os primeiros missionários oriundos
dos Estados Unidos. Com a sensação de terem sido chamados, Daniel Berg e Gunnar Vingren
chegam à capital paraense em 1910. Os missionários encontram um Brasil “tropical e
abençoando por Deus”. Belém, no início do século 20, exportava borracha para várias partes
do mundo. As diferentes religiões estavam instaladas na cidade. Na época, o catolicismo, os
indígenas e os cultos afros já estavam vivenciando suas práticas religiosas por aqui. Os suecos
encontraram não apenas um país sincreticamente religioso, mas também de com a presença
consolidada de igrejas protestantes (batistas, metodistas, presbiterianas e luteranas). O
momento era de efervescência na economia e na religião. E é nesse ambiente que Berg e
Vingren começam a fazer reuniões de oração.
4
ARAUJO, 2007, p. 900.
5
ALENCAR, 2012.
6
BITTENCOURT FILHO, 2003.

2168
A diversidade religiosa presente no Brasil, especialmente na capital paraense, apresentou-se
como um grande desafio para o pentecostalismo. As igrejas protestantes e também católicas
― antes inimigas ― perseguiram de forma veemente a “nova seita”. Esse fato é fundamental
para compreender a postura atual dessa igreja, rejeitando até ser incluída no movimento
ecumênico (algo já superado pelo catolicismo e pelo protestantismo).

Nos seus momentos iniciais, a AD teve um discurso de aversão (aversão à educação teológica
formal, aversão à organização, aversão às práticas sociais etc.), o que influenciou
negativamente sua postura ao longo dos seus 100 anos. As marcas do pentecostalismo eram
glossolalia (falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo), cura
divina e forte escatologia pré-milenista. A moral individual puritana predominava (e ainda
predomina) no discurso assembleiano. Dessa forma, foi difundindo-se um pequeno grupo, que
mais tarde seria considerado como o mais importante fenômeno religioso do século 20.

1.1 A questão socioeconômica

Conforme Alencar,7 conhecer um pouco do que era a Suécia antigamente nos ajuda a
compreender as AD.

A Suécia em 1910 tinha 5.522.403 habitantes, dos quais 75% eram de zona rural. Era um país
agrícola e falido, um país estagnado com pouca diferenciação social. Esse era o ambiente
onde, antes, viviam os missionários. Os suecos de 1910 eram pobres. Não tinham dinheiro
para investir em terrenos, livros, cursos, professores etc.

Já no Brasil, por exemplo, Berg trabalhava durante o dia para pagar o curso de português para
Vingren. Esse contexto ajuda a compreender que a aversão ao intelectualismo não era gratuita
(embora também não se justificasse). A situação socioeconômica era desfavorável, o que não
acontecia, por exemplo, com os missionários protestantes que eram enviados com dinheiro
para investimento.
1.2 A questão sociopolítica

7
ALENCAR, 2012, p. 82.

2169
Um pouco de conhecimento do contexto político em que a AD nasceu e se desenvolveu é
fundamental para entender um pouco do seu conservadorismo. Para Alencar,8 o estilo de
liderança do então presidente, Getúlio Vargas (1882-1945), definitivamente influenciou a AD.
O conservadorismo assembleiano espelhou-se na centralização personalística da figura de
Getúlio. Durante seus primeiros anos, a AD apresentou um estilo moderno na sua
comunicação. Mas, no final de 1950, ela era uma igreja conservadora e resistente a mudanças.
O cientista da religião assembleiano (Alencar) com perspicácia percebe certo “getulismo” no
modelo de liderança das AD. Nesse caso, percebe-se como se formaram alguns traços
característicos dessa igreja, como, por exemplo, seu fechamento, principalmente no que diz
respeito às outras tradições religiosas.

1.3 A questão teológica

As AD nasceram no espaço entre a primeira e a segunda guerras mundiais. Daí o motivo de


uma forte escatologia. O outro tema que sempre se estabeleceu nos meandros assembleianos
foi o da pneumatologia. Esses dois temas, unidos à cura divina, eram as marcas do
pentecostalismo nos seus primeiros anos. Ao lado desses, segue-se uma interpretação
literalista da Bíblia. Esse fator também foi (e ainda é) preponderante para o fechamento
assembleiano frente aos temas ligados à política, ecumenismo e diálogo inter-religioso, bem
como para a manutenção de seu conservadorismo.

2. Desafios para abertura ao diálogo inter-religioso

Após uma brevíssima síntese do contexto histórico em que nasceu e cresceu o


pentecostalismo brasileiro, propõe-se elencar alguns desafios que a AD deverá enfrentar para
uma abertura ao diálogo inter-religioso.9

O Brasil, após o primeiro centenário das AD, exige uma nova postura de sua maior igreja
evangélica. Os assembleianos, por sua vez, precisam afirmar a identidade pentecostal num

8
Ibidem, p. 85.
9
Essa proposta certamente é vista como heresia nos meandros assembleianos e somente quem acredita em
“milagres” pode imaginar que um dia a AD se disponha a ser uma igreja aberta ao diálogo inter-religioso.

2170
país cultural e religiosamente multifacetado. Isso pressupõe um novo olhar em direção ao
outro. Se a maior igreja evangélica brasileira deseja uma identidade profunda, ela necessita
urgentemente encarar os desafios que lhe são postos pela “modernidade líquida”.10

2.1 A interpretação das Escrituras

A Bíblia é lida e interpretada de forma literal no meio pentecostal. Uma nova interpretação
das Escrituras é o primeiro grande desafio que a AD precisa enfrentar para a abertura ao
diálogo inter-religioso. A mensagem bíblica deve ser traduzida para uma linguagem
atualizada e compreensiva ao homem pós-moderno. Se a afirmativa do teólogo Mário de
França Miranda ―11 de que a crise do cristianismo em grande parte é uma crise de linguagem
―, estiver correta, eis aí uma tarefa missionária! Evidentemente, a interpretação literal
(muitas vezes praticada de forma inocente) pode ter trazido benefícios para a denominação em
determinado momento histórico, mas é necessária uma atualização na interpretação das
Escrituras. A compreensão profunda da mensagem bíblica é pressuposto indispensável para
uma identidade pentecostal forte.

Num país multicultural e plurirreligioso como o Brasil, não é mais suficiente dizer que a
Bíblia é “a inerrante, infalível e completa palavra de Deus”. Niebuhr12 disse que “doutrinas e
práticas mudam com as transformações da estrutura social e não vice-versa”. É necessária
uma interpretação atualizada das Escrituras. A compreensão adequada, por sua vez, amplia os
horizontes e nos faz olhar a realidade de forma diferente, possibilitando abertura ao outro.
Parafraseando o teólogo Paul Knitter,13 a primeira razão pela qual os assembleianos devem
estar abertos ao diálogo inter-religioso é bastante evangélica: porque é o que diz a Bíblia. Na
concepção de Knitter, “a imagem do verbo de Deus encontrando voz ativa antes e depois do
Jesus histórico foi percebida nos primeiros séculos da Igreja pelos primeiros teólogos,
chamados pais da Igreja; eles claramente reconheceram que a capacidade e o desejo de Deus
de exprimir-se não podem limitar-se aos círculos cristãos”.14

10
BAUMAN, 2001.
11
MIRANDA, 2004.
12
Citado por Alencar em “Protestantismo tupuniquim”.
13
KNITTER, 2008.
14
Ibidem, p.63

2171
2.2 Engajamento no mundo

O teólogo (assembleiano) brasileiro David Mesquiate15 afirmou a necessidade de uma igreja


realmente engajada nas questões sociais. Ainda hoje se ouve em alguns templos das AD
pregações afirmando que “esse mundo jaz no maligno”. A ênfase na escatologia puramente
triunfalista e milenarista tem sido o fundamento da pregação pentecostal e a causa da
despreocupação com as questões desse mundo. Concordamos com César Moisés Carvalho16
que o movimento pentecostal se esqueceu de dizer que os cristãos têm uma responsabilidade
muito grande em relação à Comissão Cultural, que nada mais é do que nossa obrigação no
cuidado com o planeta.

A igreja Assembleia de Deus tem uma dívida alta com a sociedade brasileira no que diz
respeito ao seu comprometimento com as questões sociais. A AD já é a maior Igreja
evangélica brasileira há algumas décadas, mas tem feito pouco ou quase nada pelo país em
termos concretos. A igreja será verdadeiramente seguidora de Jesus no momento em que se
comprometer com a sociedade. A AD precisa rever e atualizar seus conceitos. O verdadeiro
pentecostes é aquele que está engajado e comprometido com a transformação da sociedade
atual. Esse é o verdadeiro e urgente avivamento de que essa igreja precisa.

A violência religiosa, popularizada em forma de exclusivismo radical, egocentrismo,


superioridade e opressão têm feito muitas vítimas nesse país. A certeza de que o diálogo é o
caminho para superação do preconceito com as outras religiões é o motivo da intuição deste
trabalho. O diálogo é a missão que a igreja precisa praticar. Esse é o desafio que o novo
contexto apresenta à AD. Um desafio missionário.

A pessoa de Jesus de Nazaré é exemplo de comprometimento por uma sociedade mais justa.
A vida de Jesus foi caracterizada pelo serviço, diálogo e respeito ao diferente. No homem de
Nazaré, não encontramos arrogância, prepotência, superioridade ou opressão. O estudo
aprofundado da Cristologia abre caminhos mais fecundos que respeitam as exigências de um
diálogo profundo com o diferente, sem abrir mão da nossa própria identidade.

15
MESQUIATE, 2011.
16
CARVALHO, 2010.

2172
O engajamento da Igreja com o mundo reacende o compromisso com a transformação social e
uma continuidade desafiadora e esperançosa entre o mundo e o reinado de Deus. 17 Ser
pentecostal é ser interpelado e comprometido com esse mundo.

3. O Espírito Santo como fundamento para o diálogo inter-religioso

A principal doutrina das AD é a pneumatologia. Essa igreja nasceu através de uma ação do
Espírito Santo. O traço característico de um pentecostal é, sem dúvida, a glossolalia. 18
Conforme Alencar,19 com exceção da doutrina da contemporaneidade dos dons do Espírito
Santo, a AD não carrega mais elementos que lembram a antiga igreja. A
atualização/contextualização da mensagem pneumatológica é o desafio posto às ADs no
Brasil hodierno.

Nesta terceira parte do artigo, o objetivo é relacionar a principal doutrina assembleiana com o
paradigma emergente do diálogo inter-religioso e mostrar que, embora os assembleianos
desconheçam, ambos estão em harmonia.

3.1 A vitalidade espiritual das AD

Ao longo dos anos, as AD não ficaram conhecidas pelo rigor intelectual de seus líderes e
menos ainda por superioridade teológica.20 Alencar21 lembra que a AD nunca teve um teólogo
erudito, mas foi a igreja que mais cresceu. A valorização à pneumatologia é o fio condutor
dessa Igreja. A manifestação dos dons espirituais é tida como prioridade na comunidade
assembleiana. Mesquiati22 chama atenção para o fato de que o Espírito Santo produz união e
não provoca dissensão. Nesse sentido, concordamos com William e Robert Menzies na
opinião de que o pentecostalismo está diante de oportunidades ímpares de reflexão
teológica.23

17
MESQUIATI, 2010.
18
Ato de falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo.
19
2010, p.39.
20
MENZIES, 2002.
21
ALENCAR, 2010, p.20.
22
MESQUIATI, 2011 p. 7
23
MENZIES, 2002.

2173
Como uma igreja que sempre valorizou a pneumatologia, a AD precisa buscar a cada dia uma
melhor compreensão do papel do Espírito Santo. A atuação permanente do Espírito na vida de
Jesus é uma chave hermenêutica fundamental para ampliar os horizontes pentecostais no que
diz respeito ao diálogo inter-religioso. A cristologia pneumatológica possibilita a
compreensão de que existe revelação de Deus fora da esfera religiosa e cristã. O teólogo
alemão Paul Tillich lembra que existe muita coisa na religião que não é revelação.24

A teologia tillichiana está em sintonia com a cristologia pneumatológica. O teólogo alemão


(que afirmou que gostaria de reescrever sua Teologia Sistemática na perspectiva da história
das religiões) chama a atenção para que as religiões não esqueçam que as palavras que elas
empregam, que todos os seus rituais e todas as suas instituições são símbolos do Divino e não
o Divino em si mesmo. Os símbolos existem para mediar a comunicação, mas nunca
conseguem captar tudo o que Deus é e deseja revelar.25

O Espírito Santo, cuja doutrina é fundamental para as AD, é, para Comblin, o promotor da
unidade. É “a busca da unidade para além da maior multiplicidade”. E, de forma clara e
concisa, Comblin afirma: “não existe nenhum caminho já traçado antecipadamente. O único
caminho é o que o Espírito dispõe a cada instante, como que uma nova criação para cada um
dentre nós. Não existe um caminho único; existem milhões de caminhos e o Espírito Santo é a
unidade de todos eles”.26

A concepção de Tillich clareia a compreensão sobre “os milhões de caminhos” dos quais
falou José Comblin.

Dessa forma, a AD deve ser, a cada dia, uma Igreja com mais vitalidade espiritual, deixando
que o Espírito Santo lhe conduza pelos caminhos do diálogo com o outro, do respeito às
outras tradições religiosas e de uma missão transformadora e não proselitista.

3.2 O Espírito Santo e o diálogo inter-religioso

24
TILLICH, 2005.
25
Citado por Paul Knitter, 2008 p. 71
26
COMBLIN, 1982.

2174
Não é muito insistir que o Espírito Santo é a força motivadora das AD. Por essa razão, o
presente trabalho toma a pneumatologia como ponto de partida para fundamentar o diálogo
inter-religioso nas AD. A revelação que é dada pela Bíblia mostra que Deus é Espírito e este
não é dado somente à Igreja, mas à humanidade e a toda criação.27

O Espírito que agiu de forma mística no início das AD em Belém do Pará não ficou restrito
àquele espaço religioso, sendo o mesmo Espírito que produz vida sobre toda a criação.
Conforme Bingemmer28 a vida é o ponto comum de onde o Espírito pode conduzir um
diálogo entre diferentes religiões. O Espírito que produziu o avivamento da rua Azuza, 312,
em Los Angeles, no início do século 20, batizou a irmã Celina de Albuquerque na capital
paraense nos primeiros cultos da nova denominação (AD), é o mesmo que deseja conduzir a
AD pelos caminhos do diálogo inter-religioso nos dias atuais.

O Espírito Santo que impulsionou os missionários suecos, americanos e brasileiros para sair
anunciando o evangelho por esse Brasil deseja agora, no início do século 21, que os
assembleianos saiam de si mesmos e movam-se em direção aos outros. Saiam de seus
interesses proselitistas e se tornem uma igreja aberta, comprometida com o bem comum.

O Espírito Santo que conduziu os assembleianos em momentos místicos (batismos no Espírito


Santo, tendo como evidência o falar em línguas) quer, no momento presente, levar os mesmos
assembleianos para fora de suas categorias doutrinárias, de seus conceitos e preconceitos mais
profundos, para fora de seus “castelos de verdades”, a fim de conduzi-los para experiências
mais profundas com os outros (“os hereges”).

O Espírito Santo que usou Berg e Vingren para pregar o evangelho na bela capital paraense,
agora quer usar a nova safra de assembleianos para anunciar, e fazer acontecer, a crença mais
fundamental e comum a todos o seres humanos: a fé na vida, o maior de todos os dons, o bem
mais precioso.

27
MOLTMANN, 2010.
28
TEIXEIRA, 1993.

2175
Dessa forma, o Espírito Santo convida a maior igreja evangélica brasileira para repensar seus
conceitos de missão e salvação. A missão integral e transformadora29 que pelo Espírito produz
vida com abundância a todos os seres humanos é o novo paradigma da teologia da missão. E,
nesse novo paradigma, o Espírito Santo (que é Deus) não está preso a nenhuma igreja em
particular, mas está em missão, atuando nos membros de outras tradições religiosas e
influenciando-os de maneira misteriosa. Deus não pertence a nenhuma tradição religiosa, mas
se doa ao máximo em todas elas.30

A igreja evangélica Assembleia de Deus é convidada pelo Espírito Santo a contribuir para o
desenvolvimento e transformação da sociedade brasileira através do testemunho e do serviço,
da coerência e da convicção da proclamação do Evangelho, da humildade para unir-se às
outras tradições religiosas nesse país, em diálogo profundo, para que juntas possam fazer o
que Jesus mandou: edificar a paz.

Considerações finais

A tese do teólogo alemão Hans Küng31 de que não haverá paz no mundo se não houver paz
entre as religiões ― e só haverá paz entre as religiões se estas dialogarem entre si ―,
constitui um grande paradigma nos dias atuais. A AD, que nasceu em um contexto de muita
espiritualidade, deverá ampliar seu horizonte de compreensão e pensar numa nova categoria
espiritual: o diálogo inter-religioso.
A AD, que sempre anunciou com muito entusiasmo o Deus da vida, deverá se unir com as
demais tradições religiosas e assumir conjuntamente desafios maiores, as causas humanas
que, para Edward Schillebeeckx, são também as causas de Deus.32 A verdadeira
espiritualidade exige esse comprometimento rumo a uma melhor convivência humana.

O intuito do presente artigo é mostrar que não é mais possível pensar a espiritualidade fora do
imenso desafio significado pelo diálogo inter-religioso, que é também o desafio inelutável da
nossa fé. Conforme assinalado anteriormente, a compreensão do pentecostalismo e mesmo a
construção da identidade assembleiana, não serão possíveis prescindindo das demais religiões.

29
BOSCH, 2002.
30
TORRES QUEIRUGA, 2007.
31
KÜNG, 2004
32
SCHILLEBEECKX, 1994.

2176
A identidade assembleiana se afirma na relação de diálogo, cooperação e mútuo
enriquecimento com os outros.

A AD deverá viver a fé em tempo de diálogo inter-religioso e, por isso mesmo, precisa se


abrir para a compreensão de um Deus relacional e não exclusivo. A AD não poderá se fechar
em certezas definitivas, mas compreender que a Verdade última é patrimônio de Deus.
Portanto, o diálogo inter-religioso é uma questão de sobrevivência, de espiritualidade, de vida,
de avivamento e de salvação. Fora desse diálogo, não há salvação possível, não há
avivamento genuíno. “Aviva ó Senhor a tua obra!”.

Referências

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Orientada por Edin Sued Abumanssur. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) PUC/SP,
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Arte Editorial, 2010.

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social.


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BOSCH, David. Missão transformadora: mudança de paradigma na teologia da missão.


Tradução de Geraldo Korndörfer. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

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Assembleias de Deus: identidade e relevância por ocasião do 6º Congresso Nacional de
Escola Dominical, Maceió, 2010.

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Gonçalves. 1ªed. São Paulo: Paulinas, 2008.

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MESQUIATI, David. Missão, cultura e transformação: desafios para a prática missionária


comunicativa. Orientada por Roberto Ervino Zwetsch. Dissertação (Mestrado em Teologia),
EST, São Leopoldo, 2010.

__________. Repensando a identidade pentecostal. Conferência ministrada por ocasião do


Congresso Latino Americano de estudos pentecostais de 6 – 8 dezembro de 2011.

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MIRANDA, Mário de França. A Salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça de Deus. São
Paulo: Loyola, 2004.

MOLTMAN, Jürgen. O Espírito da vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes,


2010.

SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994.

TEIXEIRA, Faustino (org). Diálogo de pássaros. Petrópolis: Vozes, 1993.

TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. Tradução de Getúlio Bertelli e Geraldo Korndörfer.


São Leopoldo: Sinodal, 2005.

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo:
Paulinas, 2007.

MENZIES, William; MENZIES, Robert. No poder do Espírito: fundamentos da experiência


pentecostal, um chamado ao diálogo. São Paulo: Vida, 2002.

2178
2179
Os protestantes da Amazônia: uma análise da onda evangélica na
cidade de Juína no noroeste do estado do Mato Grosso
Renato da Silva1414, Marina Silveira Lopes1415

Introdução

A colonização do NO do Mato Grosso começou em meados da década de 1970, no furor dos


discursos nacionalistas, como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “Integrar para não entregar” ou
mesmo “Terras sem homens para homens sem-terra”. A onda de ocupação propagada pelo
governo militar levou milhares de migrantes nessa direção do país. Região que integrante da
Amazônia Legal, era habitada por inúmeras etnias, algumas ainda até sem contato com o não
índio, como os Enawenê-Nawê., na época.

Com interesses díspares, os imigrantes que, aqui chegaram, travaram lutas com esses grupos
étnicos, assim, nos anos 1980 a Superintendência do Desenvolvimento do Centro Oeste
(SUDECO) criou o Projeto Polonoroeste com intuito de amenizar esse impacto. E trazer
progresso para a região. Isso trouxe um incentivo ainda maior para vinda de migrantes. O
noroeste do estado atraiu várias pessoas para os lugares mais inóspitos e de difícil acesso.
Juína tornou-se a cidade polo desse zoneamento. Nessa época chegar à cidade, levava em
média uma semana de viagem, no período das chuvas. Ela dista 720 km de Cuiabá.

A onda migratória para Juína exigiu a demarcação de um território sagrado, assim, em 1976,
tivemos o embrião da paróquia Sagrado Coração de Jesus de Juína. Inicialmente, dois padres
vinham de outras cidades distantes para a evangelização e conforto espiritual do colonos.
Somente em 1981, um ano antes dela se tornar município, o padre Duílio Liburti assumiu a
paróquia.

Esses migrantes, em sua maioria, sulistas, trouxeram além de mais católicos pela ascendência
italiana, as igrejas protestantes, como a luterana de ascendência alemã.
Procuramos aqui, mostrar como se deu o processo histórico da chegadas das igrejas
evangélicas na região Noroeste 1 do Mato Grosso, principalmente na cidade polo de Juína. A
pesquisa de campo foi feita nos bairros: Módulo I, II, III, IV, V e VI, Centro, Padre Duílio,
São José Operário, Setor Industrial, Setor Chácaras e Palmitera. Pretendeu-se, assim,
1414
Graduando do I Termo de Direito da AJES – Faculdades do Vale do Juruena. Contato:
renato.r.1@hotmail.com
1415
Profa. de Antropologia e História do Direito da AJES. Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP.
Agência de Fomento: FAPEMAT – Projeto Atlas. Contato: marinaslopes@terra.com.br.

2180
conhecer a divisão da territorialidade da igreja católica com as igrejas evangélicas, entender a
espacialidade decorrente disso e comparar os dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) após três anos, para averiguação do trânsito religioso.
Notamos durante a pesquisa, que a região e a cidade é carente de documentação histórica,
além do desencontro nas informações daquelas que conseguimos levantar.

Para dar suporte à pesquisa buscamos os aspectos histórico no estado do Mato Grosso, do
zoneamento Noroeste 1 e a cidade polo de Juína e as suas consequentes territorialidades
religiosas.

2. Processo de (re) colonização do Mato Grosso: celeiro para o campo religioso

Pelo tratado de Tordesilhas cerca de 70% do atual território do Mato Grosso pertencia à
Espanha. As primeiras incursões, nessa região, ocorreram por volta de 1525, com a tentativa
de Pedro Aleixo Garcia chegar até ao território atual da Bolívia. Durante 200 anos tivemos
conflitos entre Portugal e Espanha por causa dessa divisão territorial. O tratado de
Tordesilhas só foi revogado pelos de Madrid (1750) e Santo Idelfonso (1777) que
estabeleceram e ratificaram uma nova demarcação, acordos esses impulsionados por vários
episódios históricos que ocorreram nas colônias.

O Mato Grosso, passou a ser uma região interessante para a coroa portuguesa com a
descoberta de ouro, em 1719, pelo paulista Pascoal Moreira Cabral Leme, que fazia uma
bandeira para o aprisionamento de indígenas locais para trabalho escravo. A descoberta do
veio aurífero no Rio Coxipó, na confluência com o Rio Cuiabá, redimensionou as investidas
das bandeiras nesse território. Foi, fundado, assim, o arraial de Forquilha abençoado com a
missa do padre Jerônimo Botelho, na primeira igreja, consagrada à Nossa Senhora da Penha
de França. (IBGE, 2013).

O arraial de Forquilha passou a se o arraial de Cuiabá. Com o fluxo migratório intenso, nesse
período, Cuiabá foi elevado à categoria de vila em 1727, pelo capitão general de São Paulo,
Dom Rodrigo César de Menezes, que estava no local para impor medidas pesadas de
arrecadação dos quintos de ouro para a metrópole portuguesa. As terras de Mato Grosso eram
administradas pela capitania de São Paulo (COSTA E SILVA, 2013).

2181
As altas taxas tributárias fizeram com que os garimpeiros se embrenhassem cada vez mais
para o interior, em direção à bacia do Guaporé, deixando praticamente despovoada a Vila
Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Com essa demanda Mato Grosso e Cuiabá ficaram
difíceis de ser administrados pela capitânia de São Paulo, sendo, desanexados, e em 1748. A
nova capitania ganha a Vila Bela da Santíssima Trindade, como capital em 1752. Entretanto,
mesmo destituída de foro de capital, a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá pela sua
localização geográfica manteve sua hegemonia sendo elevada à categoria de cidade em 1818 e
foi oficialmente declarada Cuiabá, que passou à capital em 1835. (IBGE, 2013).

Esta capitania foi criada por uma questão de segurança devido a relação de divergência na
fixação dos limites da região, por isso a capital da Capitania foi Vila Bela da Santíssima
Trindade, que ficava nas margens do rio Guaporé e não em Cuiabá como queria o primeiro
Governador Antônio Rolim de Moura Tavares (LOBATO, A. da S, et ali, 2013,p.4).

Segundo LOBATO et ali (2013) em meados do século XVIII a fronteira na zona ribeirinha do
Guaporé foi ameaçada pelos castelhanos incentivados pelo vice-rei do Rio da Prata (atual
Paraguai) subordinados ao reino da Espanha. Com essas disputas percebemos que o processo
histórico de consolidação de fronteiras do estado brasileiro, na porção ocidental foi muito
conflituoso, onde o Mato Grosso ocupou uma posição estratégica.

As mudanças territoriais do estado passaram por guerras e mais conflitos. Assim, no início da
república o território matogrossense abrangia os atuais estados do Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Rondônia. Na divisão de 1943 surgiu o Território de Guaporé (atual RO) e a última
divisão territorial, em 1990, já eram fronteiriços os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, cuja separação ocorreu em 1977.

Segundo o censo de 2010 do IBGE, o Estado do Mato Grosso ocupa uma área de 903.366,192
km2 dividido em 141 municípios, com uma densidade demográfica de 3,36 hab/km2. Esse
território foi divido em 22 microrregiões.

Dentro dessas microrregiões foram criados projetos de desenvolvimentos subdivididos em 12


zoneamentos, conforme tabela 1:

No. Região Cidade Polo


1 Noroeste 1 Juína
2 Norte Alta Floresta

2182
3 Nordeste Vila Rica
4 Leste Barra do Garça
5 Sudeste Rondonópolis
6 Sul Cuiabá e Várzea Grande
7 Sudoeste Cáceres
8 Oeste Tangará da Serra
9 Centro-Oeste Diamantino
10 Centro Sorriso
11 Noroeste 2 Juara
12 Centro-Norte Sinop

Tabela 01: Mato Grosso e suas Regiões de Planejamento1416

No zoneamento Noroeste 1 foram incluídos seguintes municípios: Aripuanã, Castanheira,


Colniza, Cotriguaçu, Juína e Rondolândia. Segundo OLIVEIRA (2010) já na década de 1970
foi uma das pontas de lanças para integração com o restante do Brasil, promovendo um
intenso fluxo migratório. Região de difícil acesso, inserida nos limites da Amazônia Legal,
com mais de 63% as áreas ocupadas por povos indígenas entre eles: Cinta Larga, Rikbaktsas
e Enawenê – Nawê; além das terras destinadas às Reservas Ecológicas.

Essa proposta de integração foi intensificada na década de 1980. De acordo com MORENO
(2005) o Polonoroeste – Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil teve
um período de 8 anos (1980-1988), criado para financiar obras de infraestrutura e implantar
projetos colonizadores ao longo da BR 364 - Cuiabá-Porto Velho. Previa reconstruir e
pavimentar a rodovia, aumentar a malha viária e colonizar o Mato Grosso e Rondônia, bem
como a regularização das terras indígenas, com vista às melhoraria da qualidade desses povos,
promovendo à atenção especial ao meio ambiente.

Contudo, com essa promoção e incentivo, por parte do governo federal, acelerou a vinda de
grupos empresariais interessados na exploração da terra e da madeira. Foi um período
extremamente lucrativo com a exploração de madeira e desastroso para o meio ambiente e
para as populações indígenas. Junto com a chegada desses empresários o fluxo migratório foi
intensificado, principalmente, os sulistas. Isso fez com que os projetos já existentes na década
de 1970 fossem viabilizados, entre eles o Projeto Juína.

1416
Fonte: MORENO, G. et. ali (2005)

2183
OLIVEIRA (2010) coloca que o Projeto Juína foi idealizado pela SUDECO
(Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro Oeste) entretanto o projeto de
colonização, foi dirigido pela CODEMAT (Companhia de Desenvolvimento de Mato
Grosso). Juína nasceu legalmente 09.05.1982, amparada pela lei Estadual 4.456 com área de
26.350 Km2.

O povoamento de Juína já vinha ocorrendo desde 1978, com a chegada dos primeiros colonos
oriundos de diversos estados brasileiros, que compraram suas terras da própria empresa
colonizadora em prestações anuais, facilitando assim, o acesso dos colonos e a compra de
suas terras. Entretanto a população maior veio do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
nesse ordem.

No site oficial da CATEDRALJUINA (2013) coloca que o Projeto Juína encorajou o


Arcebispo de Porto Velho, Dom João Batista Costa a erguer a paróquia de Juína em 1976
nessa ocasião praticamente desabitada, havia cerca de 15 casas de madeiras
(TOPONEWS,2013) envoltas pela floresta amazônica.

Nessa época coube ao Padre Angelo Spadari e ao Padre Pio, ambos salesianos e residentes
fora do município, a orientação religiosa do grupo que se fixava. Os párocos vinham com uma
certa frequência para a evangelização dos colonos, quando em fevereiro de 1981 assumiu o
Padre Duílio Liburdi, da Congregação dos Oblatos de São José, como padre da Paróquia do
Sagrado Coração de Jesus em Juína. (CATEDRALJUINA, 2013). Com a consolidação da
Paróquia de Juína ocorreram os desdobramentos para as demais paróquias das cidades que
formavam a região noroeste do Mato Grosso. Entretanto, ao longo desse processo vários
párocos foram mortos em conflitos por posse de terra e outros interesses de grupos
específicos. (REOCITIES,2013).

Atualmente, a paróquia está organizada em comunidades em 33 comunidades sendo, 9


urbanas e 24 rurais, 10 pastorais, 08 subgrupos de evangelização e 04 movimentos. Dessa
maneira o catolicismo definiu seu território no zoneamento Noroeste 1, ratificando a sua
presença desde o século XVIII em terras mato-grossenses (CATEDRALJUINA, 2013).

A delimitação desse território religioso, possibilitou a territorialidade católica. HAESBAERT


(2009, p.121) define território como produto de uma “relação desigual de forças, envolvendo
o domínio ou controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora
conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e contraditoriamente articulados”.

2184
Ou seja, a dinâmica das desigualdades sociais, poderes ideológicos, ou influenciadores
políticos, econômicos e sociais, como execução de uma territorialidade ou um poder sobre
determinado espaço físico determinado.

A territorialidade no campo religioso está relacionada com o sagrado e com o controle do


território. O sagrado é fator determinante para a manutenção da ordem e do controle numa
territorialidade religiosa, que por sua vez significa [...] o conjunto de práticas desenvolvido
por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território, onde o efeito do poder
do sagrado reflete uma identidade de fé e um sentimento de propriedade mútuo.
(ROSENDAHL, 2005, p.3).

As territorialidades sagradas são demarcadas em territórios e, para os grupos que formam os


territórios, elas exercem um poder simbólico, que termina por ser o próprio geossímbolo1417.
Assim, a hegemonia do poder simbólico emanado pela territorialidade religiosa católica vai
ser quebrada pela igreja protestante em meados da década de 1970 em toda a região noroeste
1 do estado, com a vinda dos migrantes sulistas.

A primeira igreja protestante a se estabelecer no município de Juína foi a Evangélica de


Confissão Luterana no Brasil (1979), em seguida outras como a presbiteriana, a batista
concomitante às pentecostais e às neopentecostais. Nos últimos anos há uma profusão de
igrejas pentecostais e neo-pentecostais incrustadas nos bairros de difícil acesso em Juína e,
com poucos fiéis.

Entretanto, essa territorialidade evangélica ficou muito bem demarcada no município e região,
tanto nas questões econômicas quanto na vida social, por exemplo, na celebração de feriado
evangélico em seis municípios da região, em datas diversas. Essas datas variam desde a
homenagem à chegada do primeiro presbítero ao Brasil (12.08) até 31.10, data na qual
Martinho Lutero, em 1517 pregou suas 95 teses na porta da Igreja de Wittemberg
(Alemanha). Aripuanã (31.10), Castanheira (12.08), Colniza (30.09), Cotriguaçu (29.05),
Juína e Juruena (31.10) e Rondolândia não celebra feriado evangélico.

A territorialidade pode apresentar-se como um material concreto ou real de apoio para as


ações realizadas dentro do território, que de acordo com HAESBAERT (2007, p.7) “todo

1417
O geossímbolo pode ser definido com “um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas,
políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que
fortalece em sua identidade”. (BONNEMAISON, 2002, p.109).

2185
território corresponde uma territorialidade, mas nem toda territorialidade implica existência de
um território”, ou melhor, “pode ser a dimensão simbólica, o referencial (simbólica) para a
construção de um território, que não obrigatoriamente existe de forma concreta”.
(HAESBAERT, 2007, p.7), sendo a territorialidade dinâmica e diversa em cada território.

Assim, as territorialidades impressas no território Noroeste 1 viabilizou uma reconfiguração


espacial nas cidades desde suas fundações. Essa reconfiguração é mais significativa em Juína,
por ser a cidade polo com maior número de habitantes o que proporcionou uma espacialidade
peculiar ao município, que escreveu a sua história

3. A espacialidade evangélica: articuladora da história de Juína

Em 1979, três anos depois da instalação da paróquia juinenese, a onda protestante chegou
com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. A partir daí, iniciou-se a entrada de
outras igrejas protestantes, impulsionada fluxo migratório. As características sulistas
propiciou uma história de ocupação, cuja espacialidade atrelou-se aos tipos de moradia, aos
costumes e as religiões. É dentro dessa espacialidade, que procuramos entender a história
religiosa do município, contribuindo para a dinâmica da construção e reconstrução do espaço.
Esse processo é nítido junto às igrejas evangélicas que distribuídas nos 10 bairros1418
ergueram-se em cerca de 53 templos1419 das mais variadas arquiteturas, desde casas de
madeiras às construções faraônicas. Vide tabela 02.

IGREJA Nº de Bairro
Fiéis
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO BELÉM 2000 Centro
CONGREGAÇÃO CRISTÃ DO BRASIL 1173 Centro
PRESBITERIANA DO BRASIL 1147 Módulo 2
DE ORIGEM PETENCOSTAL – OUTRAS 1010 Todos
PRIMEIRA IGREJA BATISTA DE JUINA 358 Módulo 1
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ 284 Módulo 3
ASSEMBLEIA DE DEUS NOVA ALIANÇA 250 Módulo 2
UNIVERSAL DO REINO DE DEUS 250 Centro
EVANGELICA LUTERANA DO BRASIL 221 Módulo 4
PENTESCOSTAL DEUS É AMOR 166 Módulo 4
ADVENTISTA SÉTIMO DIA 164 Módulo 2
1418
Excluíndo os bairros: Industrial e Setor Chácara
1419
Não foram mencionadas todas as igrejas, as menores mantém seus cultos nas casas dos fiéis

2186
ADVENTISTA DA PROMESSA 163 Módulo 5
SEGUNDA IGREJA PRESBITERIANA DO 130 Módulo VI
BRASIL RENOVADA
INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS 100 Centro
EVANGELICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO 75 Módulo 2
BRASIL
BATISTA NACIONAL DE JUINA 70 Módulo 5
DO EVANGELHO QUADRANGULAR 60 Módulo 4
PRESBITERIANA DO BRASIL RENOVADA 50 Padre
Duílio
CRISTÃ EVANGÉLICA CASA DE ORAÇÃO 50 Centro
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO PERUS 40 Bairro
Palmiteira
O BRASIL PARA CRISTO 31 Módulo 5
SEGUNDA IGREJA PRESBITERIANA DO 30 Vila São
BRASIL RENOVADA José
Operário
METODISTA 30 Módulo 3
CASA DA BENÇÃO 7 Centro
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO 80 Módulo 4
MADUREIRA
PENTECOSTAL VOZ DA VERDADE 30 Módulo 5
PENTESCOSTAL JESUS CRISTO É O 20 Centro
SALVADOR
TOTAL 7939
Tabela 02: igrejas evangélicas em Juína/MT1420

SANTOS (1997) define espacialidade como um processos geográficos que por meio dos
movimentos das propriedades espaciais e das relações sociais viabilizam a produção contínua
do espaço geográfico. A espacialidade implica num movimento contínuo e estrutural, no qual
há uma ação direta do ser humano que constrói e altera um determinado espaço. Trata-se da
“incidência da sociedade sobre um determinado arranjo espacial” (SANTOS, 1997, p.74).

As dificuldades no início da imigração foram inúmeras. Elas não foram apenas por causa do
isolamento geográfico, do transporte, da alimentação, da escola, da comunicação mas
também no campo religioso. Já tinham os fiéis, na região, mas os sacerdotes precisavam viajar
dias para atendê-los, viam para a pregação de tempos em tempos atravessando as barreiras
naturais impostas pela floresta. Como, por exemplo, o pastor da Igreja Luterana, a pioneira,
que em 1979, precisava vir da cidade de Cacoal (RO) a 880km de distância para a celebração

1420
Fonte: SILVA, R. da, 2103 adaptada do IBGE (2010)

2187
do culto. Esses, ainda, realizados nas casas dos fiéis, nesse período. Três décadas se passaram
e, ainda existem problemas de locomoção entre as cidades do Noroeste 1.

Gráfico 1: Campo religioso na região Noroeste 1 de Mato Grosso1421

Segundo o censo de 2010 do IBGE a população de Juína era de 39.255 habitantes. Ao


analisarmos o gráfico 1, percebemos que 26,189 que representam 66,7% da população
professam a fé católica, 8.221 que representam 20,9% são evangélicos de várias igrejas.
Entretanto, um dado a ser salientado é com relação ao número de ateus, ninguém se declarou
ateu na cidade mais populosa da região. Somente uma pesquisa mais apurada poderá nos
responder se essa abstenção é por não existir ateus mesmo na cidade ou pela pressão e
preconceito exacerbados por parte da população religiosa.

Percebemos que de maneira geral a região Noroeste 1 do Mato Grosso traz em sua maioria
católicos e evangélicos. Tabulação curiosa se dá com o município de Colniza, pois tendo
praticamente o número de católicos e evangélicos é o município que apresenta o maior
número de ateus e de pessoas sem religião. Esse município está cerca de 500 km ao norte da

1421
IBGE – Censo de 2010.

2188
cidade de Juína, considerado o mais violento da região e com migração praticamente de
gaúchos.

Rondolândia também nos chama atenção, por ser o município mais isolado da região ter
praticamente o mesmo número de católicos e evangélicos, e celebrar somente os feriados
católicos.

Cabe uma pesquisa de campo mais efetiva na região e no município de Juína, para
verificarmos quais as religiosidade essas pessoas sem religião são praticantes.

Nossa pesquisa de campo nos mostrou a aversão e o preconceito às religiões afro-brasileiras.


E, é impossível, dentro dessa espacialidade religiosa identificarmos um terreiro de umbanda e
candomblé na cidade.

Considerações finais

A história do Mato Grosso foi embasada nas tradições católicas desde o período da
colonização. No século XX estudiosos e missionários adentraram nesse território, uns com o
objetivo de estudo da fauna, flora e das etnias indígenas e outros com a missão de
evangelização. Já na década de 1940 foi instituído o Posto Missionário de Utiariti em
Diamantino-MT com a função de internato para as crianças órfãs indígenas sob os cuidados
da ordem jesuíta, outros missionários se fizeram presente em território mato-grossense,
delimitando suas territorialidades.

Todavia na 1970 e 1980, a hegemonia da igreja católica vai em direção à região Noroeste 1
desse estado, colocando toda sua fé à disposição dos imigrantes que lá chegavam para integrar
a área com as demais regiões do Brasil. Mas, esses imigrantes também trouxeram sua fé
protestante, dividindo assim as territorialidades. O processo histórico de Juína e região foi
conflituoso, pois além das religiões cristãs que dividiram suas territorialidades existiam as
religiões nativas.

Durante mais de 30 anos elas imprimiram uma espacialidade na cidade. Seus maiores templos
se localizam nos bairros mais ricos da cidade como Módulo I,II,III e IV. No início da
imigração as igrejas protestantes ordenavam os fiéis foram os históricos e para o final da
década de 1980 os pentecostais angariaram mais fiéis. Podemos verificar que a Assembleia de

2189
Deus é detentora do maior número de membros participantes e pagantes. A neopentecostal
Universal do Reino de Deus ou mesmo outras não abarcaram muitos fiéis.

A cidade pelo seu isolamento, por alguns anos, pareceu preferir a confissão evangélica mais
tradicional e rigorosa, o que gerou um preconceito generalizado mediante outras religiões. A
tentativa de redimensionarmos os evangélicos com os dados do censo de 2010 serviu para
mostrar-nos o quanto é difícil pesquisar sobre o campo religiosa da cidade. Os números
coletados no campo foram diferentes aos do censo de 2010, isso não nos mostrou um trânsito
religioso, mas sim, que as pessoas e até mesmo as igrejas, não gostam de manisfetarem-se e
carecem de dados históricos.

Referências

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ROSENDAHL (orgs). Geografia Cultural: Um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002.

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transformações e impactos decorrentes da expansão da soja. Disponível em<
www.agb.org.br/evento/download.php?idTrabalho=1705>. Acesso em 05 ago. 2013.

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neodruídico na metrópole paulistana. Orientação de Silas Guerriero. Dissertação ( Mestrado
em Ciências da Religião), PUC/SP, São Paulo. 2008.

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1980 a 1990. Trabalho de Conclusão de Curso. Licenciatura me Geografia. AJES, Juína/MT,
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ROSENDAHL,Z. Território e territorialidade: Uma perspectiva geográfica para o estudo da


religião. Disponível em <www.comciencia.br/reportagens/2005/05/12.shtml>. Acesso em 16
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2190
SACK, Robert D. Human Territoriality: Its Theory an History. Cambridge: Cambridge
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preconceito homofóbico. Trabalho de Conclusão de Curso. Licenciatura em Geografia. AJES,
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Disponível em <http://www.estatisticasmt.com.br/index.php?option=com_content&view=
article&id=282:microrregioes&catid=49:microrregioes-de-mato-grosso&Itemid=130>.
Acesso em 03 ago. 2013.

Disponível em <www.topnewsjuina.com.br>. Acesso em 04 ago. 2103.

2191
Terceira Face do Pentecostalismo no Brasil
Samuel Pereira Valério1422

Introdução

Após pouco mais de cem anos no Brasil o Pentecostalismo continua sendo fonte de muitas
pesquisas. Quando chegou ao Brasil encontrou um campo religioso muito homogêneo, o
catolicismo predominava amplamente. Mesmo diante deste quadro adquiriu forças e cresceu
demasiadamente em seus primeiros anos. A chegada da Congregação Cristã1423 no Brasil,
através de Louis Francescon, em 1910, nasceu em meio a imigrantes italianos, no Brás, São
Paulo. Já em Belém – PA surgiu a Missão da Fé Apostólica em 1911, através de Daniel Berg
e Gunnar Vingren, e, em 1918 passa a chamar-se Assembleia da Deus.1424 Em 1912 chegou
ao Brasil, em Guarani – RS a Igreja Batista Sueca1425 trazida por Erik Jansson missionário
sueco enviado pela Örebromissionen – ÖM.1426 Esta terceira igreja é objeto de nossa pesquisa
no mestrado, e este artigo representa alguns elementos da mesma.

Imigração aos Estados Unidos

Durante o período de 1880-1893 cerca de 7,3 milhões de pessoas imigraram para os EUA
entre eles estavam grupos como os irlandeses, ingleses, escoceses, alemães e escandinavos
(LJUNGMARK, 1969, p. 6-7). A imigração foi motivada pela fome, desemprego, doenças, e
falta de liberdade religiosa. Além dos EUA, alguns milhares de suecos tiveram como destino
o Brasil. Em São Paulo, Belém e Guarani havia representação sueca.

1422
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Bacharel em Teologia pelo Mackenzie. Membro do
GEPP – Grupo de Estudos de Protestantismos e Pentecostalismos. Orientado pelo Prof. Dr. Edin Sued
Abumanssur. Bolsista CAPES. Contato: samuelpv@ig.com.br
1423
Chamaremos de CCB para simplificar a nomenclatura utilizada.
1424
Chamaremos de AD para simplificar a nomenclatura utilizada.
1425
Chamaremos de IBS para simplificar a nomenclatura utilizada.
1426
Missão de Örebro, uma agência missionária paraeclesiástica subordinada a Igreja Filadélfia de Örebro.
Atualmente Interact, com sede em Örebro, não está subordinada a Filadélfia de Örebro. Esta denominação é
interdonominacional, pois abarca como membros da organização várias igrejas livres suecas.

2192
John Ongman

Entre os imigrantes para os EUA gostaríamos de destacar o sueco John Ongman (1944-1933),
não só por seus ideais, mas também por sua aparência. Ongman era alto e usava uma longa
barba. Em 4 de março de 1864 ele é batizado nas águas 1427 pelo pastor batista Sven Jonsson
em Kovra, Suécia, em um buraco aberto no lago congelado, o que para um sueco não é
obstáculo. Foi marcado por uma experiência no batismo, como ele descreve: “o Espírito
Santo desceu sobre mim e encheu toda a minha vida com amor de Deus e paz e
contentamento em Deus” (MAGNUSSON, 1932, p. 22), e isto fica evidenciado em seu
ministério. Viveu nos EUA entre 1868 a 1889, e lá foi consagrado pastor em 1868. Em 1870
foi convidado para pastorear os colonos suecos, e entre eles trabalhou até 1873 quando fundou
a igreja Batista de St. Paul. Suas ideias foram importantes, pois iam além da visão e teologia
dos batistas da época. Na Suécia Ongman desenvolveu um grande trabalho, tendo sido
responsável pela fundação da Örebromissionen – ÖM em 1892 e da Örebro Missionsskola1428
em 1892, que posteriormente tornou-se o Örebro Teologiska Högskola1429 em 1908. Enquanto
os pastores seguiam o que a convenção Batista sueca propunha, Ongman trazia inovações, e
acabou tornando-se conhecido na Suécia.

Andew Johnsson (1878-1965), fundador do Pentecostalismo sueco

Natural de Skövde, Suécia, viveu nos EUA, e em 1904 se converteu a fé evangélica em Los
Angeles, em 1905 foi batizado nas aguas em San Pedro, Califórnia. Até 1906 trabalhava como
colportor e viajava para pregar, testemunhar, entregando folhetos, vendendo livros e jornais.
No mesmo ano encontrou William J. Seymour em um culto. Seymour havia testemunhado1430
e pregado, e Johnson ficou cativado por sua devoção.

Seymour e Johnsson esperavam um novo dia de Pentecostes,1431 e em 9 de abril de 1906, o


Espírito Santo veio da forma que se pregava e orava. Às seis horas Seymour e Farrow 1432

1427
nas águas. É importante ressaltar que o batismo Batista é por imersão, diferentemente do batismo Luterano e
Católico que são por aspersão.
1428
Escola de Missões de Örebro.
1429
Seminário Teológico de Örebro.
1430
Testemunhado ou dar um testemunho é uma participação especial de um pregador ou outro membro da igreja
Pentecostal contando suas respectivas experiências espirituais como: cura, exorcismos e manifestações de dons
espirituais, por exemplo.
1431
Conforme o relato bíblico de Atos 2, seria o dia em que o Espírito Santo desceu sobre os discípulos.
1432
Lucy Farrow(1851-1911) mulher que participou do Movimento Pentecostal em Azusa Street.

2193
foram chamados à casa de Ed Närkerd Lee, que se sentia doente e queria que orassem por ele.
E assim o fizeram. Seymour o ungiu com óleo, de acordo com a instrução bíblica de Tiago
5:14.1433 Após a oração, ele teria sido imediatamente curado. Alegre pela cura ele pediu para
que orassem para que ele fosse batizado no Espírito Santo.1434 Desejava ser batizado como
Seymour ensinava, de maneira como ninguém na cidade ainda tinha experimentado. Farrow
impôs suas mãos orou por ele, ele caiu da cadeira que estava sentado e teria começado a falar
algumas palavras em línguas. (STÄVARE; WASSERMAN, 2008. p. 23-24).

Perto dali, em 214, North Bonnie Brae Street, o culto já havia começado. Seis pessoas
estavam ajoelhadas e oravam. Lee entrou, levantou suas mãos e compartilhou o que havia
acontecido. Ele tinha sido batizado no Espírito Santo! Uma grande alegria e emoção se
espalharam entre eles. Cantaram uma música e Seymour começou a falar sobre Atos 2:4.1435
Ele não conseguiu terminar seu sermão; o Espírito Santo teria começado a se manifestar sobre
os que estavam reunidos. Muitos teriam começado louvar a Deus em línguas. Passado algum
tempo, o grupo cresceu e alugaram uma Igreja Metodista, um dos endereços mais famosos na
história da Igreja: 312, Azusa Street.

No mesmo ano Johnsson, Lucy Leatherman e Louise Condit viajaram para Jerusalém, mas
quando chegam a Nápoles, se separam, e sem dinheiro, não chegaram ao destino. Johnsson
conseguiu passar por Nápoles, Genova, Inglaterra e chegar a Suécia em 16 de novembro de
1906 (STÄVARE; WASSERMAN, 2008. p. 32).

Proto Pentecostalismo sueco

As igrejas livres1436 na Suécia passavam por um avivamento. Em muitas partes da Suécia


havia noticias de igrejas realizando cultos com um grande contingente de pessoas. Chegavam
notícias que a Noruega passava por um período parecido. O campo religioso favorável para
estas manifestações caracterizam um Proto Pentecostalismo sueco. Posteriormente o
Pentecostalismo encontra subsídios para a sua instalação e propagação.

1433
“Entre vocês há alguém que está doente? Que ele mande chamar os presbíteros da igreja, para que estes
orem sobre ele e o unjam com óleo, em nome do Senhor”. (Nova Versão Internacional – NVI).
1434
batismo no Espírito Santo é o termo usado para manifestações espirituais no culto pentecostal.
1435
“Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os
capacitava”. (NVI).
1436
Igrejas livres significa não pertencer a igreja oficial do Estado, no caso, a Luterana. Desde ano 2000 a Suécia
tornou-se um país laico.

2194
Na cidade de Örebro houve manifestações semelhantes. Nas últimas décadas do século XIX a
Igreja Filadélfia esteve à frente deste movimento, e a Örebro Missionsskola era um centro de
reuniões e discussões sobre o tema.

A experiência abaixo citada é de uma pessoa que supostamente estava vivendo o mover do
Espírito Santo em Örebro, no final da década de 1880: (Magnusson, 1932. p. 170 a 184).

“(...) Os cultos têm ficado cheios de pessoas e o Espírito Santo tem estado presente
poderosamente. O Senhor tem falado conosco como nunca antes – especialmente aos
crentes. (...) cremos que é o Espírito Santo que tem trabalhado nos cultos. (...)”

A chegada do Pentecostalismo a Suécia

Chegando a Suécia, Johnsson hospedou-se na casa de sua mãe em Skövde e buscou contato
com os fiéis na Igreja Batista Elim, procurando se aproximar do movimento cristão que teve
mais afinidade. Trabalhou para divulgar as novas descobertas sobre o batismo no Espírito.
Após um mês como missionário pentecostal na Suécia, dia 15 de dezembro ele enviou seu
primeiro relatório de trabalho à base em Azusa Street:

Tenho testemunhado nas casas e as pessoas estão com fome da Palavra de


Deus. (...). Acredito que Deus vai derramar do Espírito em breve na Suécia
(...). Oro para que o Senhor abençoe Los Angeles e penso em vocês.
Gostaria de estar na Califórnia, mas o Espírito está dizendo que tenho algo
a fazer além mar. Peço que orem por mim. Isso não é missão de Azusa
Street, mas oro ao Senhor mande fogo do céu e dê vida aos cristãos
semimortos. (The Apostolic Faith, no 5, ano 1, p. 3)

Isso é de Deus ou não?

Em 1906 o novo movimento como veio a ser chamado era um fenômeno relativamente local
na Igreja Batista de Skövde, mas a notícia dos fatos se espalhou rapidamente. A pergunta
óbvia era: Isto é de Deus ou não? Alguns optaram por dizer como Gamaliel.1437 Entre eles o
pastor da Igreja Elim em Skövde, Carl Victor Hugo, que se aproximou de Ongman para

1437
“Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará”.

2195
receber ajuda e analisar os novos fatos que estavam ocorrendo na igreja. Em janeiro de 1907,
Ongman foi à Skövde e observou o culto, especialmente Johnsson, que não teve nenhum
contato anterior com a igreja sueca livre, não conhecia Ongman e muitos dos presentes àquela
reunião. Em sua visita a Skövde Ongman viu “como o Espírito Santo caía e como eles
falavam em línguas, cantavam e jubilavam” por isto “percebeu imediatamente ser um
trabalho de avivamento que emergia. Ongman não precisava mais estar hesitante sobre o que
acontecia naquela igreja” (SUNDSTED, 1969, p. 197).

Ongman convidou Johnson para ir à Filadélfia em Örebro, pois ficou satisfeito com o que viu
e experimentou. Ongman partilhou as experiências com diferentes colegas batistas, direta ou
indiretamente, até mesmo através do Jornal Batista Wecko-Posten.

Este jornal foi o primeiro veículo que oficialmente confirmou que o avivamento pentecostal
havia chegado à Suécia. Em 24 de janeiro de 1907, há uma notícia não assinada afirmando:

Em Sköfde (Skövde) acontece um avivamento semelhante ao de Kristiania.1438 Há um


pregador sueco-americano realizando reuniões em uma igreja batista (Stävare, &
Wasserman (red), 2008. p. 38, 39).1439

Örebro é a Los Angeles da Suécia

O novo movimento se espalhou por muitos lugares, e através de Ongman e Johnsson chegou a
Örebro. Johnsson nunca foi um grande orador público, era bom em testemunhar e orar por
pessoas para terem experiências espirituais. Havia aprendido a orar pelas pessoas com Farrow
em Azusa Street, e este método e habilidade é chamada teologia prática.

Os artigos publicados no Wecko-Posten e Dagens Nyheter perceberam que as notícias


estavam quase em cima deles. Em janeiro de 1907, escreveram:

O irmão A. G. Jansson de Sköfde está atualmente visitando Örebro. Ele tem participado em
algumas reuniões na Igreja Filadélfia e falado e cantado em uma variedade de línguas que

1438
Atual Oslo, Noruega.
1439
O artigo no Wecko Posten não está assinado. Mas no Dagens Nyheter também há uma nota, alguns dias
antes, dizendo que um pastor Hellström de Gotemburgo visitou Kristiania e Skövde para ouvir Jansson.

2196
Deus lhe deu. Dá a impressão de estar cheio de paz e alegria. Em seu testemunho sempre
fala sobre a beleza da salvação.1440

Um centro do Pentecostalismo sueco

A Örebro Missionsskola é um centro missionário na Suécia no início do século XX


responsável pelo apoio necessário ao início do Movimento Pentecostal sueco. Janzon (2008)
salienta que a nova escola tornou-se um novo e crescente canal para o ambiente do
avivamento pentecostal, e muitas das primeiras gerações de pastores pentecostais suecos
foram educadas teologicamente ali.

Em 1907 surgiu um novo elemento no relatório dos evangelistas: “o fogo de Deus começou a
queimar” mais que antes, e “alguns receberam o dom de falar em línguas estranhas”. Os
novos fenômenos eram experimentados em muitos lugares e difundidos por meio dos
evangelistas da ÖM (KAPPAUN, 2012. p. 25).

Após janeiro de 1907, Örebro era o centro emergente do avivamento pentecostal na Suécia.
Ongman compreendeu que este novo fenômeno deixaria uma boa herança para sua igreja. O
avivamento encontra boa acolhida, não por acaso, pois para a Igreja Filadélfia e a Örebro
Missionsskola a busca pelo transcendente era natural, e este suporte foi importante para o
estabelecimento do Pentecostalismo na Suécia.

A primeira tentativa: Adolf Larsson

O sueco Johan Åsblom emigrou para o estado de São Paulo em 1885. O trabalho e as
dificuldades nos primeiros anos suprimiram as suas forças, mas o pior sentimento era o de
isolamento referente aos seus irmãos de fé. Em 1892 ele escreveu uma carta para
Evangeliskafosterlandsstiftelsen,1441 pedindo que enviassem um pastor missionário para
cuidar das necessidades espirituais dos colonos. (JANSSON, 1941. p. 25).

Dentro do contexto do proto Pentecostalismo sueco havia um jovem chamado Adolf Larsson
que cursava a Örebro Missionsskola em 1892, que se candidatou para ser missionário no
1440
A primeira notícia foi publicada no Närkesbladet dia 29 de Janeiro de 1907. Mais entrevistas foram
publicadas no Närkesbladet dia 1 de fevereiro e no Svenska Tribunen dia 7 de fevereiro.
1441
Fundação Evangélica em prol da Terra Natal, organização missionária sueca.

2197
Brasil. Sua oferta foi aceita pela Örebro Missionförening e, no mesmo ano, ele partiu rumo a
São Paulo. Contudo sua missão foi interrompida pela febre amarela que o atingiu fatalmente
logo após sua chegada ao Brasil. (JANSSON, 1941, p.25-26).

Um Clamor Macedônio

Andersson, colono em Guarani, escreveu ao Svenska Tribunen, argumentando que apesar do


aparente fracasso de Adolf Larsson, a ÖM continuava a enviar pastores para outros países, e
pediu que enviassem outro missionário ao Brasil. Sua carta foi publicada com a manchete:
Um Clamor Macedônio:1442

“Brasil, 10 de fevereiro de 1911.

Querido irmão Esbelberg!

(...) Muitos suecos chegaram esses dias aqui. São mais de 300, todos com saúde e felizes
pela chegada. Contam que muitos outros virão. Eles são de Kiruna e tomarão posse de
terras aqui no Brasil. Aqui tem isso, que é suficiente para milhares de pessoas, e os
colonos recebem ajuda até a colheita e podem trabalhar independentes...

Agora outra coisa. Vários suecos saúdam e perguntam se vocês aí em Örebro não
poderiam mandar um missionário até nós. Nós não temos nenhum líder que fale do
Evangelho. Quando viajamos ao Brasil, muitos eram crentes, mas agora não são nada.
Com isso as crianças aqui são criadas numa grande escuridão e paganismo. Nós cremos
que se viesse alguém aqui e começasse um movimento espiritual, o Senhor levantaria o
povo que voltaria a si novamente. Nós vimos no jornal que vocês mandam missionários
para lugares muito mais selvagens do que o Brasil, como a Índia e a África... Queridos
amigos, quando forem mandar pregadores do Evangelho, não esqueçam do Brasil”. (...)

Anders Gustaf Andersson” (Svenska Tribunen 29/03/1911)

Erik Jansson

Em maio de 1912, Jansson iniciou sua viagem ao Brasil chegando ao Porto de Santos em 8 de
junho, e continuou para Porto Alegre, onde chegou em 15 de junho. Sem dinheiro para

1442
Esta frase faz menção à visão do Apóstolo Paulo em Atos 16.9: “Durante à noite Paulo teve uma visão, na
qual um homem da Macedônia estava em pé e lhe suplicava: ‘Passe à Macedônia e ajude-nos’“.

2198
prosseguir até Guarani, permaneceu ali por dois meses e meio, na casa de um missionário
batista dos EUA, reverendo Albert L. Dunstan. Neste período, manteve contato por
correspondência com os irmãos em Guarani. Chegou a casa de Andersson, autor da carta que
deu origem à sua chamada para o Brasil em 12 de setembro de 1912. Muitos esperavam ajuda
da Suécia, mas tinham perdido a esperança de que alguém viesse de tão longe para aquele
lugar.

Em 1911, a enchente do rio Uruguai destruiu a maior parte do que havia sido plantado e
tiveram de recomeçar o trabalho. Os emigrantes suecos dependiam dos empréstimos
governamentais para estabelecer uma lavoura que os pudesse sustentar (KAPPAUN, 2012. p.
37-38).

Jansson narra sua experiência da seguinte forma: “Meu primeiro culto para os suecos em
Guarani aconteceu em 15 de setembro sob a sombra de uma árvore de mate no quintal dos
Andersson” (JANSSON, 1941. p. 48). O objetivo era dar aos suecos uma base cristã para a
vida.

Jansson se tornou a força aglutinadora que a comunidade em Guarani precisava. Ele não só
realizava cultos, mas também promovia festas e comemorações. O Natal de 1912 foi
comemorado pela primeira vez em comunidade e a bandeira sueca foi hasteada na Colônia.
Relatos da época dizem que o sentimento de comunidade e até de valor humano foi
restabelecido com a sua chegada (KAPPAUN, 2012. p. 38).

As primeiras igrejas

Alguns recorriam a Jansson nas necessidades. Mas como pastor batista entendia que o
batismo deve ser precedido da fé em Cristo Jesus. Por isso, pregava a necessidade de
arrependimento e batismo nas águas. A resistência dos colonos suecos era grande e o
resultado demorou a aparecer. Em 17 de janeiro de 1914, no entanto, Jansson realizou o
primeiro batismo em Guarani. Os novos convertidos eram Oscar e Emma Beckman. Um mês
depois, outro batismo: Johana Persson.

Em junho de 1914 chegou da Suécia Anna Malm, noiva de Jansson, juntamente com Carl
Svensson. Este último, em pouco tempo, decidiu se mudar para Ijuí. Naquele mesmo ano a
primeira a Igreja Batista sueca (JANSSON, 1941. p. 74; EKSTROM, 2008. p. 49-51). A

2199
segunda Igreja foi fundada por Svensson em Ijuí em 3 de janeiro de 1915, marcada pelo
batismo de sete suecos (JANSSON, 1941. p. 75). Em 1919 haviam 6 igrejas as quais
constituíram a Convenção Evangélica Batista Sul Rio-Grandense (KAPPAUN, 2012. p. 39).

Pentecostalismo de migração – Terceira Face do Pentecostalismo no Brasil

O Pentecostalismo brasileiro nunca foi homogêneo. Desde o início conteve diferenças


internas (MARIANO, 1999. p. 23). Pensando no início do Pentecostalismo em terras
brasileiras e olhando para as fundadoras do movimento, vemos que já nasceram muito
diferentes. Apesar das diferenças, existem convergências. Surgem de imigrantes europeus e
vindos dos EUA. A mensagem e a forma de evangelização eram bem semelhantes. A CCB no
Brasil é quem traz é quem traz a mensagem Pentecostal a terras brasileiras. Francescon viveu
em Los Angeles e ali teria vivido a experiência Pentecostal, instalou-se no Brás, São Paulo,
onde está a sede da CCB. No bairro de predominância italiana iniciou seu trabalho de
evangelização entre outros imigrantes, mas logo a sua mensagem atingiu outras pessoas do
bairro, sobretudo trabalhadores, e assim se inicia a CCB. A CCB, após grande êxito inicial,
permanece mais acanhada (FRESTON, 1994. p. 70), mas representa ainda hoje, uma grande
denominação Pentecostal, e é, de forma geral, hegemônica.

Daniel Berg e Gunnar Vingren vieram de Chicago, EUA, onde teriam recebido o batismo no
Espírito Santo. Chegaram a Belém – PA, e logo procuraram uma igreja Batista para se
tornarem membros, mas após algumas reuniões de oração onde teria havido a manifestação
dos dons espirituais, foram convidados a se retirarem, e acabaram fundando a Missão Fé
Apostólica, em 1911. Em 1918 deram um novo nome: Igreja Assembleia de Deus. Nos
primeiros anos de trabalho eram menores numericamente que a CCB, mas já na década de
1920 ultrapassaram e se tornaram a maior denominação Pentecostal brasileira, e até hoje
detém esta posição (FRESTON, 1994. p. 70-71).

Constituição do Pentecostalismo de Migração

Os suecos trouxeram ao Brasil consigo seus costumes, hábitos, e o mais relevante para nós,
suas crenças. Suas práticas religiosas ficaram comprometidas, pois os luteranos precisam de
um sacerdote para a prática dos sacramentos, e como nenhum sacerdote fora enviado com
aquele grupo, ficaram muito tempo sem realizar celebrações religiosas. Apesar do

2200
distanciamento, muitos deles tinham desejo de reatar os laços espirituais que haviam sido
aprendidos na Suécia. A IBS instala-se no Brasil com o propósito de tira-los dessa escuridão
espiritual. Ser luterano na Suécia da virada do século XIX para o século XX representava
fazer parte da igreja estatal, ser subsidiado por ela, e ainda, fazer parte do clérigo luterano
certamente abria algumas portas. Ser Batista neste mesmo período representava um
separatismo espiritual, dependência financeira da igreja local, e no inicio as igrejas livres na
Suécia eram vistas com desconfiança. Este foi um dos motivos, entre outros, que trouxeram
suecos ao Brasil, pois encontram fora do país maior liberdade de expressão e crença. As
igrejas livres na Suécia haviam alcançado alguns progressos, mas ainda existia pressão da
igreja estatal, e de certa forma, sufocava parte da população que divergia desse pensamento.
Os imigrantes suecos permaneceram bem fechados durante algum tempo, mas a chegada de
Jansson, e com a implantação da IBS, se iniciou um novo período, onde puderam retomar as
práticas religiosas e, posteriormente, expandir aquilo que agora passaram a viver.

O conceito de Pentecostalismo de Migração parece ser adequado para definir este tipo de
Pentecostalismo na medida em que ressalta uma característica interna desses grupos
religiosos: sua homogeneidade étnica. Contudo, parece ser difícil demonstrar essa
homogeneidade em termos históricos, a não ser em grupos muito pequenos e específicos. A
IBS se insere no contexto deste Pentecostalismo étnico e permanece assim durante anos.
Fazer uso de conceitos genéricos e abrangentes para descrever a relação entre religião e etnia
nos parece muito mais complexo. Antes é preciso explicitar essa relação em cada caso
específico. “A importância e a significação que tem a dimensão religiosa na definição da
identidade étnica varia consideravelmente de um grupo para outro e dentro de um mesmo
grupo, e de um momento para outro” (WIRTH, 1998, p. 156-172). Este movimento se
assemelha muito ao que o protestantismo de migração propôs como uma forma de
evangelização dentro do campo religioso brasileiro. O Pentecostalismo de migração traz como
cerne da mensagem o Avivamento Pentecostal, ainda que seus primeiros passos já haviam
sido difundidos pela CBB e pela AD, a IBS manteve seus traços étnicos por um período muito
mais longo, talvez o maior entre as três citadas acima. A ÖM foi responsável pela fundação de
uma escola onde filhos de colonos suecos aprendiam português e o sueco. Isto foi muito
importante para a preservação da identidade cultural, e ao mesmo tempo restringia a adesão
de pessoas de outras etnias, talvez este tenha sido o principal obstáculo no início da IBS no
Brasil. O isolamento em si mesmo na tentativa da preservação da cultura sueca pode ter sido
um dos fatores para o pequeno crescimento, comparando o mesmo período da CBB e da AD.

2201
A Construção do Mito Fundante

Possuir poucos documentos, ou nenhum, é, em certa medida, historicamente grave


(ALENCAR, 2012. p. 25). A IBS no Brasil não teve o cuidado de registrar quantas igrejas
exatamente haviam sido abertas até a organização da convenção em 1919, e nem tão pouco
quantos membros havia, tais dados poderiam nos ajudar a compreender o crescimento da
recém-inaugurada, e hoje centenária, igreja em seus primeiros anos. O mito conta uma
história sagrada, ou seja, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo
(ELIADE, 2010. p. 84). O que nos é deixado como informação principal é o fato da carta
enviada por Andersson ao Svenska Tribunen, pedindo para que fosse enviado um missionário.
Sem dados mais profundos, parte daqui o mito fundante da IBS no Brasil. A historiografia
oficial da denominação descreve de forma muito romantizada os desafios encontrados e
vencidos, o envio de missionários no início dos trabalhos em nosso território. Em sua
biografia Jansson relata as dificuldades enfrentadas para chegar ao destino, mas estas
informações nos são omitidas em nossas literaturas em português. A decisão de Jansson de vir
ao Brasil como missionário da ÖM inicia-se um período de concretização do mito fundante.

Iluminação do carisma – dominação carismática

A iluminação do carisma tem relação direta com o que aconteceu com Ongman em Örebro.
Era um homem sério, mas carismático, o que se torna evidente nos EUA, é consagrado pastor
e eleito presidente da Convenção Batista Sueca nos EUA. Após seu retorno a Suécia, assume
a Igreja Filadélfia de Örebro. Seu carisma fazia com que ele ganhasse cada vez mais espaço
entre os batistas suecos. Influenciado pela teologia holiness, traduziu músicas do inglês para
sueco, o que facilitou sua aceitação do novo movimento. É considerado um personagem
fundamental para o desenvolvimento do movimento Pentecostal sueco, pois sua influência
serviu como plataforma para o fortalecimento do movimento, legitimando assim seu carisma.
Johnsson, outro importante personagem no Pentecostalismo sueco, apoiado por Ongman
conseguiu desenvolver sua mensagem e conceitos teológicos, através da legitimidade
reconhecida em Ongman, destacou-se por ter seu carisma reconhecido. A historiografia da

2202
CIBI1443 reconhece a importância de Ongman e Jansson, mas não faz menção de Johnsson,
talvez este último não tenha a importância institucional dos outros quanto à implantação
missionária. Nossa pesquisa leva em consideração a influência Pentecostal sobre a Igreja
Filadélfia, e neste enfoque o nome de Johnsson ganha força.

A dominação carismática e dominação racional

O Pentecostalismo na Suécia se depara com igrejas que Weber vai chamar de dominação
racional. Está evidenciada no preparo teológico dos missionários da ÖM, pastores e
missionários que recebiam salários, a participação de mulheres que eram enviadas como
evangelistas dentro da Suécia e outros para outros países, são alguns exemplos. É uma das
peculiaridades desse movimento, ele encontra resistência a sua anarquia, e tem de se adequar
a essa dominação racional. Em contrapartida, desponta dentro dessas mesmas igrejas a
dominação carismática, que trás consigo a nova mensagem estabelecendo novos rumos para
as igrejas que se engajaram no movimento chegado dos EUA, encontra uma igreja que tem
desejo por uma experiência espiritual mais profunda, desejo oriundo do avivamento do País
de Gales e da Convenção de Keswick. Isto fica evidenciado nos cultos lotados que ocorreram
logo após a chegada de Johnsson com a mensagem Pentecostal e com a multiplicação do
movimento naquele país. A rotinização do carisma (ALENCAR, 2012. p. 61) já se dá quase
que imediatamente, pois o movimento se adequou as igrejas que aderiram a ele.

Legalidade do poder

A legalidade do poder é dada pelos fiéis e pela própria instituição religiosa quando reconhece
no líder características que possam nortear suas vidas. Pensando no Pentecostalismo trata-se
de se legitimar alguma liderança para dirigir o povo e leva-los a ter contato com o novo
movimento e a nova doutrina. Fica muito evidenciado no movimento Pentecostal de migração
que este aspecto é tratado de forma bem peculiar. Esta legalidade foi entregue pela própria
instituição, e não apenas pelos fiéis, mas influenciou e deu legitimidade ao reconhecimento
conquistado em todo território sueco e posteriormente no Brasil.

1443
CIBI – Convenção das Igrejas Batistas Independentes. Esta denominação é um cisma da Convenção Batista
Rio-Grandense do Sul, ocorrido em 1952, e herda a história da Igreja Batista Sueca no Brasil.

2203
Características específicas

De forma geral a IBS tem as mesmas características do Pentecostalismo americano no sentido


doutrinário, mas o que fomos observando durante nossa pesquisa é que eles tinham algumas
diferenças na prática diária. Enquanto o Pentecostalismo se destaca como uma força de
evangelização e pregação a outros povos, o Pentecostalismo de migração deteve-se a princípio
a pregar aos cidadãos da mesma pátria. Tinham como um dos objetivos a pregação a outros
povos, mas os problemas, e as necessidades, que eram muitas, os ocuparam e passaram muito
tempo entre eles mesmos, não conseguindo transpor o olhar para fora. Abriram algumas
igrejas na região das missões no RS, mas o crescimento foi vagaroso e se comparado a CCB e
AD era inexpressível. Portanto, é um Pentecostalismo diferente, com força bem menor de
alcance e com crescimento incomparavelmente menor.

Ethos sueco

Weber trata de igreja e seitas, a primeira neste momento histórico é estatal, a segunda não
estatal, e, portanto, representa a contestação do Estado e subversão de um Estado político
(ALENCAR, 2012. p.121). A representação da Igreja Batista em território sueco no século
XIX representa uma ameaça a hegemonia luterana. Ao mesmo tempo, a fragmentação entre
os Batistas diminuía o trabalho da igreja estatal. Com a chegada do Pentecostalismo, muitas
igrejas livres, entre elas, muitas igrejas Batistas aderiram ao novo movimento, tornando as
lutas políticas mais constantes. Ser Batista representa trabalhar de forma autônoma, portanto a
convenção Batista não pode interferir nas decisões das igrejas locais em aderirem ou não ao
movimento. Em certo sentido isto deu uma maior coesão aos que não aderiram, mas, ao
mesmo tempo, os que aderiram acabaram se distanciando da convenção Batista, como é o
caso da Igreja Batista de Estocolmo, do pastor Lewi Petrus, o qual foi pastor de Berg e
Vrigren. Alencar nos afirma que já havia presença sueca (Alencar, 2012. p. 26) no Brasil
antes da chegada dos missionários citados acima. No RS

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