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da ABHR
1º simpósio Internacional
da ABHR
Diversidades e
(in)tolerâncias religiosas
Anais
ISSN - 2318-518X
Vice-reitor
Vice-diretor da FFLCH
Hélio Nogueira da Cruz
João Roberto Gomez de Faria
Comissões
Fazendo Arte
• Andrea Gomes Santiago Tomita,
Messiânica (coordenação)
• Juliana Graciani, Messiânica
• Ricardo Vital, USP
Comissão Científica • Maria José Fontelas Rosado-Nunes,
• Adone Agnolin, USP PUC/SP
• Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, UFMA
• Andréa Gomes Santiago Tomita,
Messiânica • Sérgio Figueiredo Ferretti, UFMA
• Antonio Máspoli de Araujo Gomes, • Silas Guerriero, PUC/SP
Mackenzie • Solange Ramos de Andrade, UEM
• Airton Luis Jungblut, PUC/RS
• Sônia Weidner Maluf, UFSC
• Artur César Isaia, UFSC
• Wellington Teodoro da Silva, PUC/MG
• Edgard Leite Ferreira Neto, UERJ
• Zwinglio Motta Dias, UFJF
• Edin Sued Abumanssur, PUC/SP
• Edlaine Campos Gomes, UniRio
Comissão de Seleção de Pôsteres
• Eduardo Gusmão de Quadros, UEG
• Lauri Emílio Wirth, UMESP
• Eliane Moura da Silva, UNICAMP
• Leonildo Silveira Campos, UMESP
• Elizete da Silva, UEFS
• Lyndon de Araújo Santos, UFMA
• Elton Nunes, Messiânica
• Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, UFMA
• Émerson José Sena da Silveira, UFJF
• Sérgio Figueiredo Ferretti, UFMA
• Ênio Brito, PUC/SP
• Solange Ramos de Andrade, UEM
• Etienne Higuet, UMESP
• Fernando Torres-Londoño, PUC/SP
• Flávio Augusto Senra Ribeiro, PUC/MG
• Frank Usarski, PUC/SP
• Gedeon Freire de Alencar, ICEC
• Gisele Zanotto, UPF
• João Marcos Leitão Santos, UFCG
• José Guilherme Cantor Magnani, USP
• Paula Montero, USP
• Karina Kosicki Bellotti, UFPR
• Lauri Emilio Wirth, UMESP
• Leonildo Silveira Campos, UMESP
• Lyndon de Araújo Santos, UFMA
• Marcelo Tavares Natividade, UFC
• Magali do Nascimento Cunha, UMESP
• Maria Luisa Tucci Carneiro, USP
Realização
Associação Brasileira de História das Religiões – ABHR
Patrocínio
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Apoio
• Universidade de São Paulo – USP • PLURA, Revista de Estudos de Religião
• Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da ABHR
Humanas – FFLCH
• Casa de Cultura Japonesa –
CCJ/FFLCH/USP • Fonte Editorial
• Departamento de Antropologia –
• Editora do Mackenzie
DA/FFLCH/USP
• Departamento de Geografia – • Editora Arché
DG/FFLCH/USP • Korin
• Departamento de História –
DH/FFLCH/USP
Diagramação
Bolsas
Eduardo Meinberg de Albuquerque
Faculdade de Teologia Umbandista
Maranhão Fo, USP
Talita Sene, UFSC
CDs
Faculdade Messiânica
Design da capa
Neon Cunha
Canetas
Editora do Mackenzie
Webdesigners
Carlos Gutierrez, UNICAMP
Talita Sene, UFSC
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . 31
Minicursos . . . . . . . . . . . 34
MC 9 – Iconografia budista . . . . . . . .
82 Budismos . . . . . . . . . . 83
Fernando Carlos Chamas
Vadeia dois dois,Vadeia no mar, A casa é sua dois dois, Quero ver
dois dois vadear . . . . . . . . . 373
Francy Eide Nunes Leal
A ABHR tem realizado simpósios nacionais anualmente desde sua fundação em 1999 em
Assis, São Paulo. Em todos os simpósios há participação significativa de estudiosos/as das
religiões e religiosidades, provenientes de áreas como História, Antropologia, Sociologia,
Ciências da Religião, Teologia, Psicologia, Letras e outras. A produção científica destes
eventos é demonstrada em Anais com comunicações em GTs e em coletâneas com
conferências e palestras em Mesas. A produção acadêmica da ABHR se estende ao seu
periódico, a PLURA – Revista de Estudos de Religião, disponível gratuitamente no
endereço www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/plura/index.
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a discriminação em razão de marcadores sociais como identidades de gênero e orientações
sexuais, imbricações da religião com a política, deslocamento físico e identitário de fiéis e
instituições e teoria e metodologia dos estudos sobre religiões e religiosidades.
Eduardo Meinberg de
Wellington Teodoro da Silva Albuquerque Maranhão Fo Vagner Gonçalves da Silva
Presidente da ABHR
Organizador Geral do Evento Coordenador do evento
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Minicursos
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MC3 – Direito, Estado laico e religião noBrasil:
limites, conflitos e convergências
Coordenadores
Resumo
A afirmação de que o Brasil é um Estado laico geralmente é produzida como mero argumento
retórico divorciado da compreensão do modelo de laicidade encampado. E o sentido de tal
declaração nem sempre fica claro para o interlocutor, já que há uma enorme distância entre
afirmar que o Brasil é um Estado laico e compreender os contornos dessa laicidade. O
presente minicurso se propõe a analisar a questão relativa à liberdade de consciência e de
credo, bem como as emblemáticas relativas à influência da religiosidade judaico-cristã nos
institutos do direito pátrio, perpassando a seara de temas atuais vinculados às expressões
políticas da religiosidade brasileira, enquanto marcos no Estado e na esfera pública, com
destaque para o Direito de Família, a Liberdade de Expressão e Manifestação do Pensamento
Religioso, bem como as perspectivas de Laicidade e Confessionalidade Estatal, por meio de
exposição teórica e apresentação de estudos de casos, que subsidiarão os debates promovidos.
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Direito, Estado laico e religião no Brasil: limites, conflitos e
convergências
Carlos Augusto Lima Campos1, David Carlos Santos Sarges2
Introdução
A afirmação de que o Brasil é um Estado laico geralmente é produzida como mero argumento
retórico divorciado da compreensão do modelo de laicidade encampado. E o sentido de tal
declaração nem sempre fica claro para o interlocutor, já que há uma enorme distância entre
afirmar que o Brasil é um Estado laico e compreender os contornos dessa laicidade.
O ponto de partida sempre converge para o fato de que mesmo diante do fortalecimento dos
movimentos religiosos, e da concepção de que estes, há muito, não estão adstritos aos templos
e aos espaços litúrgicos, a ideia de se atribuir um caráter científico à religião, enquanto objeto
de investigação, ainda gera um certo desconforto e, não raro, protestos. O surpreendente é que
muitas das vozes que se opõem à compreensão dos sentidos e argumentos do fenômeno
religioso pertencem a um universo – a Academia – que, ao contrário do que se verifica,
deveria incentivar a proliferação de estudos aprofundados acerca desta que é mais que uma
simples tendência, constituindo-se em verdadeira realidade: a interrelação existente entre a
religião, a democracia e o espaço público.
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro
Universitário de Ribeirão Preto (UNISEB), bacharel em Direito pela UFPA. Contato:
prof.carloscampos@gmail.com.
2
Especialista em Ciências da Religião pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), graduação em Licenciatura
Plena em Ciências da Religião pela UEPA. Contato: davidsarges.sarges@gmail.com.
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O discurso comum aponta para o fato de que o Estado é laico e que, portanto, a religião
deveria se recolher à penumbra de igrejas, lares e congregações, isto é, ao âmbito da vida
privada, como é possível verificar em alguns países europeus, notadamente na França.
Todavia, além de vazio, tal discurso despreza de maneira pouco sábia o caráter histórico-
cultural que permeou o desenvolvimento do pensamento científico no Brasil e no mundo.
É neste contexto que nossas linhas se desenvolvem a partir dos limites “impostos” aos
homens pelo conhecimento científico da era moderna, serão problematizados, frente à
incompatibilidade com a concepção hodierna de laicidade, que se pretende confrontar.
Preambularmente, urge ressaltar a afirmação de Ivan Ap. Manoel (2008, p. 18), segundo a
qual
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A referida alegoria apenas reforça a aparente angústia, presente na circunspecção ordinária,
segundo a qual ciência e religião não podem dialogar. Entrementes, outra vez se faz
imperioso o “socorrer-se” de Ivan Ap. Manoel, de onde é possível reiterar que a religião é
fruto das vicissitudes da cognição humana, o que possibilitaria a sua inserção enquanto objeto
epistemológico do conhecimento.
O segundo conceito, aufklärung, diz respeito à saída do homem de sua menoridade, da qual
ele próprio é culpado. Em tradução livre, o referido termo significa iluminação ou mesmo
esclarecimento, que seria a característica do ser humano que, ousando se libertar dos grilhões
da menoridade, busca a própria autonomia frente àqueles que o dominam/manipulam
intelectualmente. É importante enfatizar que o ato de se insurgir contra o comodismo é a
principal característica do que Kant (1983, p. 122) denominou “emancipação das trevas”.
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investigar como deve ser o mundo para que se possa conhecê-lo, como a filosofia vinha
fazendo até então.
Talvez possa causar algum estranhamento o “valer-se” de Kant para corroborar com a
possibilidade metodológica que admite a religião como objeto de investigação científica, já
que contraria o discurso comum, segundo o qual o autor teria aberto o caminho do filosofar
da Idade Moderna, o que representaria um fenômeno de “destruição e degeneração”, que
forçosamente desaguaria no niilismo ou no ateísmo. Certamente que as reações, em princípio,
não são simpáticas. Entretanto, será mesmo que a “ideia” de que a Filosofia Moderna sofreu a
“perda de Deus” (como Nietzsche proclamou) deve ser entendida tanto para perspectivas pós-
metafísicas quanto para o pensamento “pós-cristão”?
Evidentemente que tal questionamento apresenta um caráter retórico, uma vez que a
preocupação que aqui se apresenta como central diz respeito ao caráter epistemológico da
religião a partir da concepção kantiana de aufklärung. Todavia, sou afeiçoado ao ponto de
vista sustentado por Essen & Striet (2010, p.10), segundo o qual:
A modificação crítica da tradição metafísica trazida por Kant abre a possibilidade de que
seja transposto o abismo entre teologia e filosofia, aberto desde o começo da Idade
Moderna, quando a teologia se debruça positivamente sobre o pensamento de sujeito e
liberdade engendrado por Kant.
Por oportuno, insta mencionar que a caverna de Platão e o Emílio de Rousseau, na presente
investigação, são categorias alegóricas das trevas e das luzes, em nítida referência à crise e ao
despertar da teologia, e da religião enquanto objeto epistemologicamente considerado. Daí ser
imperioso associar as trevas ao medo, ao conformismo e à condição de indigência a que a
religião fora relegada diante da então moderna compreensão de ciência. Ao seu tempo, as
luzes se referem à concepção de razão que Rousseau sustentava frente aos demais
pensamentos iluministas, onde o indivíduo passa a ser valorizado e, logo, ressignificado,
perante à concepção predominante de razão social. Objetiva-se, com tal analogia, enfatizar a
perspectiva de que o homem, enquanto sujeito cognoscente e ontológico, também é partícipe,
e pode transformar e ser transformado pela heterogeneidade da religião e, por conseguinte, da
cultura.
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A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro
Uma análise mais cautelosa de um determinado ordenamento jurídico permite visualizar que a
laicidade adotada pelos diferentes Estados comporta matizes. Tal constatação deriva,
obviamente, da tese de que o arquétipo de laicidade adotado por cada país deve ser coligido
enquanto gradação do seu ordenamento jurídico constitucional. Isto equivale a compreender
que são os preceitos constitucionais que vigoram em cada Estado que determinam os
contornos da laicidade por ele adotada.
Uma primeira distinção a ser estabelecida é a de que Estado laico não se confunde com
Estado anti-religioso. A experiência histórica tem demonstrado que tanto o Estado
confessional quanto o ateísta atentam contra os ideais democráticos, porque não permitem
ao ser humano o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. O Estado confessional,
quando entroniza determinada ideologia religiosa e reprime a exteriorização de outras
crenças (ou descrenças), asfixia a realização das mais elementares aspirações do espírito
humano. Do mesmo modo, o Estado ateísta, que substitui o conteúdo ideológico religioso
por um conteúdo supostamente anti-religioso não raramente marcado por características
fortemente religiosas (por exemplo, culto ao Estado ou ao líder político). Ambos
representam modelos que se servem do ser humano como mero instrumento para a
realização de uma ideologia política ou religiosa e não como um fim em si mesmo. Neste
sentido, um e outro são exemplos de desrespeito à dignidade humana. Algo muito
preocupante atualmente é a tendência que se observa em alguns setores da imprensa para se
opor ao direito de líderes religiosos expressarem suas opiniões a respeito de questões éticas
relacionadas com alguma política pública. A Política governamental, com certeza, não deve
ser orientada para atender os valores éticos defendidos por este ou aquele grupo religioso,
mas não se pode negar o direito que os religiosos – como os lideres de outros segmentos da
sociedade – têm de se manifestar sobre qualquer política pública, exercendo de modo pleno
a cidadania. Por exemplo, é plenamente legítima a atitude dos bispos católicos de se
insurgirem contra a distribuição de preservativos. Ao fazê-lo, estão tão somente
expressando o ponto de vista religioso sobre o assunto. Posso não concordar com tal
posicionamento, mas de modo algum me é lícito negar-lhes o direito a que o manifestem.
Qualquer pessoa pode considerá-lo retrógrado e expor os motivos para que as políticas de
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saúde pública não o acolham. Porém, o argumento que muitas vezes tem sido utilizado – o
de que eles deveriam ficar calados porque o Brasil é um país laico – nada mais é do que
uma falácia autoritária. Democracia é convivência dos contrários. A tentativa de influenciar
a política governamental é prerrogativa de qualquer grupo social, consectário inevitável da
cidadania, não consistindo, em si, afronta à laicidade estatal. (CAMPOS, 2010, p. 81-82).
Outro aspecto que deve ser visualizado, em cátedra, é o de que o Estado laico não é aquele
absolutamente refratário a influências religiosas. Os protótipos de Estados laicos que
adotaram políticas públicas que diretamente (ou não) desaguaram em movimentos
capitaneados por líderes religiosos são inúmeros, e não raro a motivação religiosa constitui
fator determinante para as lutas principiadas por determinados segmentos sociais, com o fito
de viabilizar a adoção de políticas governamentais que melhorassem a vida da sociedade,
coletivamente sopesada. Em particular, reputamos o emblemático Martin Luther King Junior,
onde ninguém, em sã consciência, poderia desconsiderar que muitas das políticas
governamentais americanas foram fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos
Civis, liderado pelo pastor batista, a despeito das latentes motivações religiosas.
41
entretanto, que grupos de pressão (religiosos ou não) postulem pela adoção de políticas
públicas neste ou naquele sentido, conquanto o critério para a decisão estatal jamais deva
ser determinado pelo pensamento religioso (TOURRANE, 1996, p. 14).
42
tradição calvinista não se dá na mesma celeridade que em países de tradição católica. Do
mesmo modo, quando a analogia se perfaz, alegoricamente, entre países tradicionalmente
muçulmanos e países tradicionalmente budistas. Outro aspecto singular, dentro de nossas
considerações, diz respeito à motivação cardinal da separação entre as organizações religiosas
e o Estado, uma vez que
43
O que cumpre salientar, entrementes, é que o princípio da separação é uma via de mão dupla:
serve tanto para apartar a interferência estatal na esfera religiosa quanto para refutar a
interferência religiosa na esfera estatal.
Considerações finais
Esperamos, com sinceridade, que nossas linhas gerais possam incentivar todos aqueles que se
debruçam na produção relativa ao delineamento dos contornos desse diálogo instaurado entre
a religião e a esfera política, independentemente da matriz religiosa tomada como objeto
epistemológico do saber.
44
Referências
ESSEN, Georg; STRIET, Magnus. Kant e a Teologia. Tradução de Werner Fuchs. 1ª edição.
São Paulo: Edições Loyola, 2010.
SMITH, Huston. Por que a religião é importante? O destino do espírito humano num tempo
de descrença. Tradução de Cleusa M. Wosgrau e Euclides L. Calloni. 1ª edição. São Paulo:
Cultrix, 2001.
45
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MC4 – Fundamentos da arquitetura islâmica
Coordenador
Resumo
Este Minicurso visa propiciar um panorama sobre a Arquitetura Islâmica, desde o seu
alvorecer, na primeira metade do século VII, até a contemporaneidade. Neste sentido, serão
abordados os fundamentos teológicos que têm influenciado a Arquitetura Islâmica e sua
evolução histórica, considerando-se os seus marcos referenciais que sirvam como balizadores
do recorte temporal em questão.
47
Introdução à Arquitetura Islâmica
Introdução
A própria Hégira (“fuga” em árabe) do Profeta em 622 de sua cidade natal, Meca, para
Medina, então o oásis de Yathrib, doravante denominada Medinat al-Nabi, “Cidade do
Profeta”, implica uma reorientação e redefinição dos espaços sagrados. O contato com os
“povos do Livro”, cristãos e judeus, desenvolvido por Muhammad o fez conhecer a veneração
dedicada por judeus e cristãos à cidade de Jerusalém que, em árabe, passou a ser denominada
al-Quds, “A Sagrada”. Desta forma, parece claro que o Profeta sabia que o estabelecimento de
uma cidade como referencial de sacralidade podia servir aos propósitos de identificação
quando uma nova religião era estabelecida.
Assim, é em sua casa, em Medina, que ele manda orientar um caramanchão ao norte na
direção de Jerusalém, enquanto que outro, ao sul, orientava-se em direção a Meca, onde se
encontrava a Kaaba, o santuário com o aerólito, cuja construção se credita, segundo a
tradição, ao Patriarca Abraão, de quem os árabes descendem. Estabelecia-se, desta forma,
1
Doutor. Professor Adjunto da FAU/UFRJ. Coordenador do GP “Todos os tempos, todos os templos”. Contato:
santosjh@uol.com.br.
2
Na tradição islâmica, não se traduz o nome do Profeta, que deve ser grafado Mohammed ou Muhammad. Desta
forma, preferi o uso tradicional ao uso comum “Maomé”.
3
As datas aqui mencionadas tomam por base o calendário cristão. O calendário islâmico inicia-se com a Hégira,
no ano 622 da era cristã.
48
uma axialidade entre três cidades – Jerusalém e Meca, com Medina ao centro – que subsiste
até hoje no mundo islâmico.
A própria planta trapezoidal da casa do Profeta inspiraria em parte a construção das primeiras
mesquitas, que divergiam das basílicas cristãs por estas apresentarem um eixo longitudinal
maior do que o horizontal, enquanto que nas mesquitas inverte-se a relação. As sucessivas
ampliações sofridas por essa primeira mesquita mantiveram sua planta trapezoidal.
A fundação da dinastia Omíada em 660, a cujo clã pertencia Othman, significou, por um lado,
a expansão do Islã e, por outro, a consolidação da separação entre xiitas e sunitas. O
estabelecimento da capital em Damasco, na Síria, e o bloqueio do acesso a Meca e Medina,
imposto em razão da rebelião na Arábia liderada pelo autoproclamado califa Ibn al-Zubair,
fez com que Jerusalém fosse valorizada pela corte omíada. Lá, o califa Abd al-Malik decidiu
pela construção de um santuário, circundando a Rocha sobre a qual o Profeta teria ascendido
ao céu e contemplado Deus, como narrado na surata XVII do Alcorão 4.
O deslocamento do eixo do poder civil para Damasco fez com que se travasse contato com os
estilos arquitetônicos paleocristão e bizantino. Este, dominante na região, é rapidamente
assumido pelos omíadas. Desta forma, sob as ordens de Abd al-Malik, é construído o
Santuário da Cúpula do Rochedo, lugar que se encontrava sobre as ruínas do Segundo Templo
de Salomão e que, visava a atrair multidões de peregrinos, dada a inacessibilidade de Meca e
Medina.
Este Santuário tem sua planta octogonal, característica da arquitetura bizantina 5, com dois
deambulatórios, a fim de que os peregrinos contornem a Rocha a partir da qual teria ocorrido
a ascensão do Profeta. Seus 85 m de diâmetro fazem dela uma construção magnífica. Uma vez
que os árabes não tinham o que se poderia chamar de uma tradição arquitetônica, sobretudo
que pudesse eclipsar a santidade da Kaaba ou o esplendor das basílicas bizantinas, como
4
Este episódio é conhecido como a “viagem noturna de Muhammad”, sendo assumido que foi um sonho, e não
um fato real.
5
O oitavo dia é o primeiro dia da criação sem a ação criadora de Deus; portanto os templos bizantinos tinham e
têm planta octogonal.
49
desejava Abd al-Malik, este recorreu a arquitetos cristãos que viviam em Jerusalém e que
construíssem esse memorial. Não uma mesquita, mas um memorial, projetado especialmente
para a deambulação e a adoração dos peregrinos.
Se este saiu com planta bizantina, a mesquita vizinha a ele, na mesma esplanada, a Mesquita
de al-Aqsa, foi construída com planta cruciforme, típica do paleocristão. Neste caso, para o
reconhecimento de elementos arquitetônicos da mesquita, faz-se necessário retomar a questão
da casa do Profeta, em Medina.
Mesquita (masjid em árabe) significa “lugar onde os homens se prostram diante de Deus”). O
espaço sagrado no Islã é organizado segundo as necessidades cultuais, determinadas pelos
pilares sobre os quais a religião se alicerça: a profissão de fé (shahada 6), a oração (salat), a
esmola (zakat e sadaqqa 7), o jejum ( Saum) e a peregrinação (hajj). Desta forma, o espaço
para a religião deveria servir igualmente para o encontro social, do qual derivariam algumas
das obrigações religiosas.
Como já dito, seu muro ao norte era orientado para Jerusalém e o muro ao sul em direção a
Meca. A expansão que foi feita já durante a dinastia Omíada, em 705, quadruplicando sua
área, manteve-lhe a planta trapezoidal, acrescentando um salão hipostilo circundando a
mesquita original.
6
A shahada consiste na recitação da frase “Somente Alá é Deus e Muhammad é seu Profeta” e sua recitação é a
única exigência para que alguém seja considerado convertido ao Islã.
7
Zakat é a obrigação anual de todo muçulmano, que deve contribuir para causas assistenciais: sadaqqa é o ato de
caridade.
50
A expansão do islamismo sob os Omíadas fez com que os Califas decidissem que a
arquitetura deveria refletir o poder e a grandeza islâmicos e adquirir características próprias,
descolando-se das influências arquitetônicas cristãs – sobretudo bizantinas – e pagãs.
Neste sentido, começa a ser estabelecido um novo cânone: cúpulas, arcos em ferradura e
abóbadas passam a constituir um padrão construtivo que se expande de Damasco, sede do
Califado, à Península Ibérica. Para além dos palácios, construções da administração civil,
novas e imponentes mesquitas e banhos são construídos pelos califas.
Um dos aspectos arquitetônicos mais notáveis das mesquitas é o minarete 8, o torreão do qual
o muezim entoa o azam 9, o chamado à oração, mandatória cinco vezes ao dia dentro do
preceito do salat. Os minaretes derivam, muito provavelmente, das torres das igrejas
paleocristãs e bizantinas da Síria, nas quais havia torreões, especialmente no Martírio de São
Simeão, que se destacavam por sua elevada altura. De diferentes estilos, são um traço comum
a todas as mesquitas, variando seu número, de um a seis, com sete somente na cidade de
Meca.
A expansão dos Omíadas até a Península Ibérica e sua sucessão pelas dinastias dos Abássidas
e Almorávidas (assim como pelos Seljúcidas, no Egito) fez com que em Córdoba se
estabelecesse novo Califado, que rivalizava com o de Damasco em opulência. A construção
da Alhambra, em Granada, é um dos mais eloquentes exemplos do esplendor da Ibéria
muçulmana.
8
Do árabe, manarah, pelo turco minare: farol.
9
O azam constitui-se da recitação do seguinte texto: “Alá é grande! Eu testifico que não existe outro Deus que
não seja Alá. Vinde à oração. Vinde à salvação!”. Sua recitação ritma a vida dos crentes, tendo sido estabelecida
inicialmente em Medina, faz-se presente não apenas em todos os países muçulmanos, mas onde quer que haja
uma mesquita.
10
As regiões islamizadas são chamadas de “mudejares”.
11
Madrassas ou madraçais: escolas religiosas islâmicas, que provêm educação fundamental e , em alguns casos,
podem funcionar como seminários.
51
Um dos cânones estabelecidos pelo Islã é derivado da prescrição corânica da
irrepresentatividade de Deus e do interdito de representações de formas vivas. Assim, a
decoração das mesquitas, madrassas e demais espaços sagrados islâmicos recorre à azulejaria,
à caligrafia e à geometrização. Jogos de imagens com estrelas de 4, 8 e 12 pontas repetem-se
recorrentemente. Algumas dessas edificações ainda apresentam estrelas de Davi, de seis
pontas, símbolo intrinsecamente associado ao Judaísmo.
A caligrafia árabe é um capítulo à parte na arte decorativa islâmica. Versos do Alcorão e dos
12
Hadith foram inscritos e escritos nas paredes internas, frisos e outras partes das mesquitas.
As mais elaboradas e requintadas caligrafias foram utilizadas para decorar as mesquitas.
Estas, do ponto de vista da planta baixa, mudaram pouco desde os tempos iniciais. Plantas
retangulares com um grande salão de preces, no qual destacam-se as presenças do minbar 13,
da qibla e do mihrab. A necessidade de que os pés não toquem diretamente o solo faz com
que haja, em todas as mesquitas, tapetes recobrindo o chão. Não se trata de acarpetar o piso,
mas de deixá-lo recoberto por tapetes, devendo ser salientada a interdição de se entrar calçado
em uma mesquita. Da mesma forma, as abluções rituais prescritas para antes das preces (lavar
as mãos, os pés, o rosto e as orelhas) levam a que todas as mesquitas tenham fontes de água
corrente, tanques ou poços para que os fiéis possam fazê-las antes das orações 14.
O surgimento do Império Otomano, após a conquista da região da atual Turquia pelos árabes
muçulmanos no inicio do século XV, com a consolidação da hegemonia da tribo dos turcos,
altera paradigmas em todos os níveis, do militar ao político, do econômico ao social, do
artístico ao arquitetônico. Havia o interesse de celebrar aquele que se erguia como o mais
12
“Ditos”. Compilação de frases, aforismos e dizeres do Profera, compilados por parentes e seguidores.
13
Cadeira em madeira, sobre degraus, com função de púlpito, da qual o líder religioso dirige-se à assembleia dos
fiéis.
14
Na impossibilidade de que seja encontrada água para as abluções, os fieis são autorizados a esfregar com areia
as partes que seriam abluídas com água. Tal solução é absolutamente lógica em uma religião que se origina e se
expande inicialmente em uma região desértica.
52
importante Império, erguido sobre os escombros do Império Bizantino e, ao fim e ao cabo, do
próprio Império Romano.
Devem-se destacar, neste aspecto, as cúpulas. Estas, em um primeiro momento, são rasas
como as de Haghia Sophia, tornada mesquita após a tomada de Constantinopla em 1453, mas
também assumem a forma de “cúpula de cebola” que, com a expansão do Império a leste e a
oeste 15, faz-se presente nessas regiões quando islamizadas
Eis um exemplo claro da circularidade de informações, com tais cúpulas sendo usadas não
apenas nos limites do Império Otomano, mas também em suas fímbrias, como nos Bálcãs e
no Império Russo, tornando-se também características do cristianismo ortodoxo.
O apogeu da arquitetura otomana ocorre com o arquiteto Koca Mimar Sinan Ağa, ou
simplesmente Mimar Sinan (c.1490-1588), arquiteto dos sultões: Selim I, Suleiman I, Selim II
e Murad III, cujas obras-primas são as Mesquitas Selimiye, em Edirne, e Süleymaniye, em
Istambul.
Este padrão permanecerá como o último estilo arquitetônico próprio do Islamismo, uma vez
que os posteriores são dele derivados sob a forma de reapropriação, releitura ou recriação.
Referências
BARAKAT, Halim. The Arab World: Society, Culture and State. Berkeley: University of
California Press, 1993.
15
Importante lembrar que os turcos chegam às portas de Viena, tendo islamizado parte da Europa Central e
Oriental – especialmente a Bósnia-Herzegóvina – e regiões do Cáucaso.
53
DEGEORGE, Gérard. Syrie: Art, Histoire, Architecture. Paris: Hermann, 1983.
HATTSTEIN, Markus e DELIUS, Peter (eds.). Islam: Art and Architecture. Cambridge:
Könemann, 2004.
HOAG, John D.. Islamic Architecture. Londres: Harris and Abrams, 1977.
HODGSON, Marshall G. S.. The Venture os Islam (3 vols.). Chicago: Chicago University
Press, 1975.
WELCH, Stuart Cary e DOVAZ, Claude. Arts de l’Islam. Paris: Gründ, 1989.
54
55
MC6 – História e religiões: teoria e
metodologia
Coordenador
Resumo
Os estudos das diversas manifestações religiosas nas áreas que compõem as ciências sociais
vêm, ao longo das décadas, transformando o entendimento de como essas manifestações
influenciaram e ainda influenciam o Brasil. Os estudos sobre temas ligados às religiões
crescem nas diversas áreas, notadamente na área de História. Por este motivo, necessário se
faz buscar o embasamento teórico metodológico para análise desses fenômenos, visto serem
transdiciplinares e tratarem de diversas matrizes importantes para os historiadores e cientistas
sociais. A proposta desse mini-curso é apresentar e discutir as linhas teórico-metodológicas
para a análise e produção de trabalhos científicos dentro do âmbito da História das Religiões.
Iniciando pelos clássicos nas áreas de Antropologia e Sociologia como Durkheim e Mauss até
os atuais teóricos das Escolas Inglesa e Francesa, em especial relevo à Escola Italiana de
História das Religiões.
56
Teoria e metodologia em História das Religiões
Introdução
O Brasil é um país de proporções continentais2 com uma rica e complexa História que o
distingue de seus vizinhos na América do Sul3. Em sua riqueza e complexidade, encontra-se a
formação de sua gente, composta de imigrantes de diversas partes do mundo em uma base
étnica que conta em sua matriz, portugueses, africanos e indígenas. A estes se somam nas
mais variadas regiões do País uma amálgama composta por espanhóis, judeus, árabes,
orientais, alemães, italianos, letos, enfim, uma miríade de povos e grupos que contribuíram
com suas culturas, olhares e visões de mundo para tornar o Brasil uma terra de toda a gente 4.
Dentre as diversas riquezas que podemos citar encontra-se a cosmovisão religiosa, com seus
rituais, demonstrações de fé e de pertença mística. De fato, uma das mais complexas heranças
e manifestações que podemos atribuir a essa babel étnico-cultural que adentrou a terra
brasilis a partir de 15005, já encontrando aqui um fluxo contínuo de povos e nações indígenas
que circulavam por este imenso território. Essa característica é notada pelo historiador da
religião Artur César Isaia6:
Pensar as transformações pelas quais passou o campo religioso brasileiro é pensar, antes de
tudo, na extrema complexidade do universo de crenças entre nós. Essa não é uma
característica atual. Historicamente já nascemos sob o signo desta complexidade, a partir
da experiência ibérica totalmente distante da uniformidade católica com que foi
identificada. Para além da idéia de uma monarquia portuguesa, cuja fidelidade à ortodoxia
católica foi a característica dominante, a experiência dos colonizadores já acenava para
uma complexidade étnica, cultural, lingüística e religiosa notáveis.
1
Pós-doutor em História das Religiões pela PUC/SP, doutor e mestre em Ciências da Religião pela UMESP,
professor da Faculdade Messiânica. Contato: eltononunes@gmail.com.
2
Para um panorama geral sobre o Brasil, ver: MADEIRA, VELOSO, 2000; VELOSO, MADEIRA, 1991.
3
Sobre as diferenças entre o Brasil e os demais países da América do Sul, ver: BETHELL, 1997; SANTOS,
2003, pp. 11-28.
4
Para um panorama sobre esta diversidade, ver: PIERUCCI, 1996; MENEZES, TEIXEIRA, 2006.
5
O Brasil é “descoberto” oficialmente em 1500, com a chegada dos portugueses conduzidos pela esquadra de
Pedro Alvarez Cabral. Para uma discussão sobre este tema, ver: MOTA, 2001; ODÁLIA, 2001; REIS, 2001.
6
ISAIA. 2009, p. 95.
57
A colonização portuguesa, a partir do padroado real7, imprimiu uma base cristã ibérica que
acompanhou até os dias atuais os desdobramentos da História do Brasil, vindo a se tornar a
maior nação católica do mundo8. Os diversos grupos escravos africanos trazidos ao Brasil em
um período de duzentos anos inseriram na matriz brasileira um componente religioso diverso,
porém ligado às tradições espirituais da África, dando origem a hibridações com o catolicismo
e as religiões indígenas, como já dizia Freyre9:
O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a
africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português,
fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de
influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Tomando em conta tais
antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles
resultantes, é que bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do
Brasil, a formação sui generis da sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus
começos e ainda hoje sobre antagonismos.
7
Para uma definição e aprofundamento do tema, ver: KUHNEN, 2005.
8
Os dados sobre esta questão podem ser encontrados em: PALMER, O’BRIEN, 2008, pp. 90-94.
9
FREYRE, 2000, p.82.
10
Desde a chegada do chamado Protestantismo de Missão, vindo dos EUA, o Brasil vem em um crescendo na
influência evangélica. Um dos exemplos mais significativos está na exportação de missionários das diversas
denominações protestantes no Brasil: Em 1996 eram 1209; em 1997 o número este número aumentou para 1449
missionários no exterior. Partiram para o exterior uma média de 5 missionários por semana, 1 missionário em
cada dia útil da semana. Em anos anteriores (1993, 1994, 1995) a média era de 3 missionários por semana.
Dados da Associação Brasileira de Missões Transculturais (ABMT). Disponível em www.infobrasil.org.
Acessado em 20/06/2005.
11
Diversos pesquisadores dividem a História do Protestantismo no Brasil em quatro grandes blocos ou
momentos: O primeiro momento ocorre nos séculos XVI e XVII, com as incursões dos viajantes europeus atrás
de terras e especiarias, interessados em estudar a fauna e a flora e os colonizadores, huguenotes da França
Antártica (1555) e os calvinistas da Igreja Evangélica Holandesa do Nordeste (1630-1645). O segundo momento
ocorre no século XIX desenvolvido por técnicos, funcionários de missões diplomáticas, marinheiros, colportores.
O terceiro momento ocorreu na imigração para o Brasil a partir do século XIX. Esse Protestantismo de
Imigração surgiu como uma consequência direta do esforço colonizatório, para cultivo e ocupação dos espaços
geográficos brasileiros. O último momento se dá com o estabelecimento Protestante no Brasil no período da
chamada República Velha, com a chegada de missionários estrangeiros. Dentro desses grandes blocos, os
historiadores levantam uma série de ações migratórias, situações de viagem, casos particulares, esporádicos de
curta e média duração, que podem ser classificados como tentativas de inserção do protestantismo no grande
território brasileiro em formação. Op. Cit. AZEVEDO, 1996, pp. 23-34.
12
Temos, nos vários períodos da história do Brasil, situações que conseguiam ultrapassar a barreira imposta pelo
catolicismo à presença de outras religiões. Um exemplo é a questão da presença de estrangeiros protestantes que
vinham realizar comércio em terras lusas, os escravos africanos ou mesmos os mulçumanos e judeus que
aportavam no Brasil. Para uma discussão sobre este tema, ver: SOUZA, 1997.
58
vinda de grupos orientais no início do século XX, trouxe religiões como a seicho noie, igreja
messiânica, o budismo, entre outras13. As chamadas missões protestantes modernas também
implantaram no Brasil, no início do século XX, diversas ramificações que, posteriormente,
seriam a base do chamado Pentecostalismo e Neo-pentecostalismo14. Os novos movimentos
religiosos e as mais variadas formas de manifestações religiosas dão uma conotação
diferenciada e própria a um país onde as religiões fazem parte integrante da multiplicidade
cultural de povo multi-étnico. Porém, ainda que sejam reconhecidas tais diversidades e
complexidades, a História das Religiões, área fundamental para o entendimento e
aprofundamento da compreensão da História do Brasil, ainda carece de referenciais teórico-
metodológicos que ajudem os pesquisadores brasileiros no entendimento de sua própria gente.
Uma das grandes dificuldades que os historiadores no Brasil enfrentam é dar conta da
multiplicidade de objetos que compõem sua área15. Ao longo das décadas, a academia
brasileira viu-se entre agendas de prioridade sobre identidade, resistência, cultura e
desvelamento do povo, das elites, do atraso econômico e social, enfim, uma multiplicidade de
temas que foram, por sua vez, tomando espaço, ditando os trabalhos e selecionando os temas
ao sabor dos eventos e dos interesses acadêmicos e políticos dominantes. Por sua vez, o
Brasil, ou melhor, a academia brasileira, recebeu influxos e influências que determinaram o
modo de pensar e escrever a história de acordo com essa agenda ou apesar dela. Diante disso,
refletir sobre o modo como as religiões foram tratadas na área de História no Brasil só pode
ser realizado de forma transversal, já que carecemos justamente de pesquisas sobre essa área e
ainda estão por serem realizados trabalhos sobre a questão das religiões como objeto de
pesquisa histórica no Brasil16. Para tentar dar conta desse tema, apresentamos em linhas gerais
quatro grandes tendências ou escolas que influenciaram de forma decisiva as pesquisas no
campo da História do Brasil Moderno.
13
Os trabalhos sobre as religiões orientais no Brasil ainda carecem de um aprofundamento maior. Para uma
exemplificação dessa situação, ver: ANDRÉ, 2008.
14
Para um aprofundamento sobre os termos e conceituações, Cf. MARIANO, 2001.
15
Para uma lista de textos que buscam apresentar a problemática da produção historiográfica brasileira, ver:
ABREU, SOIHET, 2003; CAPELATO, 1995; FICO, POLITO, 1992; FICO, POLITO, 1996; FREITAS, 2001;
LAPA, 1985; NOVAIS, 1990; SAMARA, 2002; WEHLING, 2000; BURMESTER, 1998; CARDOSO, Ciro
VAINFAS, 1997; FREITAS, 1998.
16
Um dos raros trabalhos sobre este tema encontra-se em Albuquerque, que buscou dar conta das influencias e
tratamento dos estudos de religião pelos historiadores no Brasil. Cf. ALBUQUERQUE, 2007.
59
A primeira, fruto da herança positivista e liberal que marcou a transição dos estudos históricos
e sociais desde que à República, como aponta Refkalefsky e Patriota17:
Refletindo sobre a questão positivista na academia brasileira, Fonseca indica que durante o
período de ditadura militar no Brasil intensificou-se a presença do positivismo nos
fundamentos teóricos da história18:
17
REFKALEFSKY, PATRIOTA, 2006, p. 02.
18
FONSECA, 1995, p. 31.
19
Cabe citar os estudos empreendidos Cardoso e Gorender sobre os modos de produção; das relações entre as
economias coloniais e o capitalismo em formação, como é o caso de Novais, ou os trabalhos sobre as formas de
riqueza e acumulação nas obras de Castro, Fragoso & Florentino. Cf. CARDOSO, 1979; NOVAIS, 1978;
GORENDER, 1985; FRAGOSO, FLORENTINO, 1993.
20
BELLOTTI, 2005, p.05.
60
A terceira tendência vem na influência da Escola dos Annales21, trazida para o Brasil quando
da fundação da Universidade de São Paulo (USP) e, posteriormente, a Escola Marxista
Inglesa22 e os estudos culturais, oriundos das interpretações da História realizados por Eric
Hobsbawm, Christopher Hill, Rodney Hilton, Thompson, Royden Harrison entre outros.
Todas essas influências marcaram profundamente os estudos brasileiros. A questão do
tratamento dado ao tema das religiões está diretamente ligado a essas correntes e escolas. Tal
trajetória é destacada no texto de Karina Kosicki Bellotti23, que apresenta através da análise
de três historiadoras de referência, as diversas tendências da Nova História. A partir das
pesquisas sobre religião de Anita Novinsky, que trabalha nas décadas de 70 e 80, a História
das Mentalidades, de Laura de Mello e Souza, que publica seus textos sobre religiosidades no
Brasil colonial nas décadas de 80 e 90, seguindo as teorizações de LeGoff, LeRoi, Carlo
Ginzburg, Keith Thomas e Jean Delumeau e, por fim, de Mariza Soares, que publica nas
décadas de 90 e 2000, seguindo os estudos culturais presentes nas teorizações dos marxistas
ingleses.
O que se verifica, entretanto, é que apesar dos estudos sobre a religião alcançarem no fim do
século XX uma posição crescente e mesmo privilegiada, os historiadores no Brasil não têm,
no atual aporte metodológico, centrado em algumas escolas, as condições de exploração dessa
riqueza e diversidade24. Essa dificuldade é apontada por Albuquerque25:
Seria preciso um outro lugar para examinar a produção brasileira dos historiadores voltada
para a religião. Antropólogos e sociólogos, em várias oportunidades, realizaram balanços
sobre seus estudos sobre as religiões. Os historiadores estão ausentes nestas recensões.
Ademais, ao elaborarem o mapeamento do próprio campo, os historiadores silenciam sobre
a religião, a história da Igreja e da religiosidade popular, apesar de comparecerem, nestes
levantamentos, temáticas renovadas na historiografia.
Essa situação se constata por uma série de fatores históricos e de escolhas metodológicas a
partir das influências que a Academia brasileira sofreu ao longo de sua formação e
21
Para um aprofundamento sobre a influência francesa na historiografia brasileira, ver SILVA, 2001.
22
Para um aprofundamento sobre o impacto e repercussões da Escola Inglesa na historiografia brasileira, ver:
SADER, 2000.
23
BELLOTTI, 2005.
24
Como bem constata Albuquerque no seu balanço da historiografia brasileira sobre os estudos de religião. Cf.
ALBUQUERQUE, 2007, pp. 19-52.
25
ALBUQUERQUE, 2007, p. 48.
61
consolidação. Sobre os problemas do modelo de formação dos historiadores e pesquisadores
na área de história no Brasil, Falcon comenta26:
No plano historiográfico, é sabido que Lucien Febvre sempre manifestou fascínio por esse
campo privilegiado de estudos que era a América do Sul. E, quando os próprios Annales
tinham uma presença apenas marginal no cenário historiográfico francês, desde muito cedo
começam a entabular vínculos importantes entre os Annales e alguns expoentes da
historiografia e das ciências sociais na América Latina. Exemplo notório dessa aproximação foi
a presença, entre 1935 e 1937, de Fernand Braudel como um dos primeiros professores da
26
FALCON, 1998, pp. 112-113.
27
Para Campos, “a fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, com a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, e dentro dela a Seção de História (hoje departamento de História), é o marco inicial de uma
formação eminentemente acadêmica no campo da História no Brasil”. CAMPOS, 1954, pp. 491-503.
28
MALERBA, 2009, p. 67.
62
cátedra de história das civilizações da recém fundada Faculdade de Filosofia, Ciências Sociais
e Letras da Universidade de São Paulo. A presença de Braudel deitou profundas raízes na
historiografia brasileira. O Programa de Pós Graduação da USP foi o pioneiro no Brasil, uma
verdadeira matriz que formou quase a totalidade dos historiadores brasileiros.
Para Emília Viotti da Costa, esta influência já perpassava a própria cultura brasileira desde o
século XIX29:
Na História da cultura brasileira há um momento em que ela passa direta e nitidamente a sofrer
influência da cultura francesa. Essa época é o século XIX. Durante anos e anos, inúmeros
traços foram acrescentados à vida brasileira graças aos contatos com homens, costumes, ideias
e coisas de procedência francesa. Os velhos jornais, o relato de viajantes que percorreram o
país nesse período e as memórias da época, oferecem excelente documentação que atesta a
importância dessa influência, consignando, por vezes choques com outras, sobretudo a inglesa.
A adoção do modelo francês (tanto Mesquita Filho como Duarte tinham estudado em Paris)
implicou que os professores estrangeiros eram vistos não apenas como cientistas e
especialistas, mas como intelectuais, fundadores de uma nova intelligentsia cosmopolita. De
fato, eram percebidos como tal; suas palavras e realizações estavam sempre em destaque, ao
que muito contribuiu a cobertura permanente do influente jornal de Júlio de Mesquita. Com
exceção dos franceses, porém, os professores estrangeiros nunca assumiram eles próprios esse
29
DA COSTA, 2000, pp. 142-143.
30
O Plano de fundação da USP foi redigido por Fernando de Azevedo, a pedido de Júlio de Mesquita Filho e
Armando de Salles Oliveira. O projeto de fundação da USP foi assinado por Fernando de Azevedo, Vicente Rao,
Júlio de Mesquita Filho; Fonseca Telles e Teodoro Ramos, Raul Briquet e André Dreyfus, Rocha Lima e A.
Bittencourt e Almeida Júnior. In: CARDOSO, 1982, p. 96.
31
Para um aprofundamento sobre a influência da França na formação da Universidade de São Paulo, ver:
CAPELATO, PRADO, 1989.
63
papel. Mas o mesmo não se pode dizer de seus discípulos não apenas nas ciências sociais, mas
também nas ciências naturais, e particularmente na física. O prédio da antiga Faculdade de
Filosofia na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, tornou-se o símbolo da união da
intelligentsia brasileira por cima e além das barreiras disciplinares. Entre os físicos, o grande
desafio era trazer os benefícios da energia atômica para o Brasil; veio deles o apoio intelectual
e técnico das políticas de auto-suficiência atômica de sucessivos governos brasileiros desde os
anos 1950, com todos os altos e baixos decorrentes da guerra fria. Da sua parte, os cientistas
sociais adotaram uma abordagem mais à la francesa, de orientação marxista, que parecia
fornecer respostas aos problemas socioeconômicos do país e apontar o caminho para as
soluções. Eles escreviam em jornais, publicavam para o público em geral e se envolviam em
política partidária. Muitos deles, cientistas naturais e sociais, se filiaram ao Partido Comunista
em algum momento da vida e permaneceram identificados com a esquerda tradicional.
A preocupação era a formação das elites, a pesquisa e a unidade entre ensino e investigação
científica; ênfase na formação geral e humanista, autonomia relativa da universidade diante do
Estado, concepção idealista e não-pragmática de universidade, estreita ligação entre a
formação das elites dirigentes e o projeto de nacionalidade32. Segundo Capelato, Glesser e
Ferlini33:
32
Tal ligação fica evidente no Decreto nº 6.283, de 25 de janeiro de 1934, que institui as bases da fundação da
universidade. In: FÁVERO, 1980, p. 179.
33
CAPELATO, GLESSER, FERLINI, 1994.
34
MALERBA, 2009, pp. 49-91.
35
Em 1968, foi instituído o Grupo de Trabalho encarregado de estudar a reforma da Universidade brasileira,
constituído por representantes dos Ministérios da Educação e Planejamento, do Conselho Federal de Educação e
do Congresso. Era afirmada no novo projeto político em implantação as linhas gerais confirmadas pela lei 5.540,
a forma ideal de organização do ensino superior, na sua tríplice função de ensino, pesquisa e extensão,
enfatizando-se a indissolubilidade entre essas funções, particularmente entre ensino e pesquisa. Para um
aprofundamento sobre este tema, ver: CUNHA, 2000; GUSSO, 1985; SCHARTZMAN, 1986.
64
universidades. Porém, se as reformas atingiram o campo político e estrutural, a visão sobre as
religiões permaneceram inalterados. As religiões continuavam a ser consideradas como etapas
a serem vencidas ou mesmo simples detalhes explicativos do componente econômico ou da
dominação colonizadora36. O fato é que a visão negativa sobre as religiões no Brasil é de
longa data. Desde a República, as diversas religiões eram entendidas como parte da idéia de
atraso cultural do povo brasileiro ou mesmo uma excentricidade regional, como nos relata, a
título de ilustração, a obra de Freyre37.
É assim que a noção de caiporismo, tão ligado à vida psíquica do brasileiro de hoje, deriva-se
da crença ameríndia no gênio agourento do caipora; este era um caboclinho nu, andando de
uma banda só, e que quando aparecia aos grandes era sinal certo de desgraça. Sumiu-se o
caipora, deixando em seu lugar o caiporismo, do mesmo modo que desapareceram os pajés,
deixando atrás de si primeiro as “santidades” do século XVI, depois várias formas de
terapêutica e de animismo, muitas delas hoje incorporadas, junto com sobrevivências de magia
ou de religião africana, ao baixo espiritismo, que tanta concorrência à medicina e ao exorcismo
dos padres, nas primeiras cidades e por todo o interior do Brasil.
Para tanto, a leitura teórico-metodológica dos Annales foi fundamental para a área de História na
medida em que os estudos sobre as religiões poderiam ser tratados pela via da despersonalização do
objeto. Os Annales, a partir das análises quantitativas e séries estatísticas, no seu primeiro período,
baseavam-se nos em paradigmas compartilhados pelas ciências econômicas e sociais. Mesmo com a
mudança para a História das Mentalidades, nos anos 70, com novas considerações acerca dos objetos
de estudo e aproximando-se de algumas técnicas da análise semântica e lingüística, além de alguns
modelos da Antropologia e se aproximando de uma história das crenças, metodologicamente, não
rompia com o aparato utilizado pela historiografia econômica e social: recorria às ferramentas
estatísticas da Sociologia e da Economia. Dessa forma, a religião continuava dentro de uma lógica
apoiada pelas mesmas técnicas positivistas de negação de uma autonomia ou mesmo como
possibilidade de ser entendido como um objeto histórico. Para os Annales, a temática religiosa seguia a
interpretação durkheiminiana de representação social. Um dos exemplos desse posicionamento é a obra
de Marc Bloch, “Os Reis Taumaturgos”. As propostas de Bloch para a leitura da História a partir da
análise de um tema religioso como representação política e social marcaram os Annales e foram
incorporados na metodologia de leitura da História dos temas religiosos no Brasil. Ao propor novos
36
Verdade é que algumas religiões eram tratadas de forma diferenciada dentro da academia brasileira.
Principalmente pelo viés da idéia de resistência popular, as religiões afro tiveram um tratamento diferenciado do
cristianismo. O Protestantismo e, em especial, o Pentecostalismo, parece ter o seu lugar garantido nos estudos
históricos e sociológicos sob via negativa. Para um debate sobre essa redução nos estudos sobre o Protestantismo
brasileiro, ver: GIUMBELLI, 2001, pp. 111-112.
37
FREYRE, 2000, p. 165.
65
questionamentos em “Os Reis Taumaturgos”, Bloch proporciona um referencial para se ler a religião
como uma janela para a sociedade. Claramente, na esteira da leitura durkheimiana, o sagrado é
definido como uma representação da sociedade. Portanto, a própria formação do historiador, seja ele
pesquisador ou professor, no Brasil, está eivada da influência de alguns centros de formação que foram
privilegiados. Constata isso, Silva, quando diz que38:
Assim, é possível afirmar que a escolha dos centros de influência privilegiou olhares e
objetos, e relegaram outros. Um dos objetos relegados foi a religião, ou melhor, as religiões,
como objeto histórico a ser investigado. Apesar disso, as abordagens sobre a religião no Brasil
continuam a crescer, seja pela quantidade de fontes e de acervos inéditos ou não totalmente
explorados, seja pelo crescente interesse da nova geração de historiadores que busca por
outros objetos, outras fontes, outros interesses39. Sobre esse ponto, já nos alertava Freitas,
quando dizia que40:
É necessário, portanto, ampliar o leque teórico-metodológico para dar conta dos estudos sobre
as religiões no Brasil. Em um levantamento realizado sobre os programas de pós-graduação
na área de História, se verificou que, dos cinqüenta e dois programas, apenas dois oferecem a
38
SILVA, 2006, p. 02.
39
Sobre este ponto, é importante salientar a obra Historiografia brasileira em perspectiva, organizada pela
Editora Contexto, em 2005, que procurava justamente apontar um balanço da historiografia brasileira, suas
influencias e mesmo seus limites teóricos. FREITAS, 2005.
40
FREITAS, 2005, p. 12.
66
disciplina de História das Religiões em sua matriz curricular41. Esse dado demonstra que a
religião não é tratada devidamente pela área de pesquisa histórica no Brasil. Ainda assim, os
historiadores das religiões sempre buscaram espaços institucionais para divulgação de sua
produção. Um desses espaços foi a ABHR, Associação Brasileira de História das Religiões42,
que congrega historiadores, antropólogos, cientistas da religião e sociólogos para produzir e
refletir sobre os trabalhos que estes pesquisadores realizam. Porém, especificamente em
relação aos historiadores, persistiam e persistem as dificuldades em relação às teorias de
abordagem, como bem nos demonstra Watanabe43:
41
AUTOR, 2009. Baseado em: CAPES – 2007. Disponível em www.capes.org.br. Acesso em 10/06/2009.
42
A Associação foi criada em 1991 por um grupo de professores historiadores e cientistas da religião para suprir
um espaço de diálogo e representação dos estudiosos em religião que não encontravam guarida nos meios
acadêmicos para seus objetos de pesquisa. Para um aprofundamento sobre a história da ABHR, ver:
www.abhr.org.br.
43
WATANABE, 2008.
44
Segundo o site da ANPUH, em 19 de outubro de 1961 foi fundada, na cidade de Marília, estado de São Paulo,
a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, ANPUH. A entidade trazia na sua fundação a
aspiração da profissionalização do ensino e da pesquisa na área de história, opondo-se de certa forma à tradição
de uma historiografia não acadêmica e autodidata ainda amplamente majoritária à época. Atuando desde seu
aparecimento no ambiente profissional da graduação e da pós-graduação em história, a ANPUH foi aos poucos
ampliando sua base de associados, passando a incluir professores dos ensinos fundamental e médio e, mais
recentemente, profissionais atuantes nos arquivos públicos e privados, e em instituições de patrimônio e
memória espalhadas por todo o país. O quadro atual de associados da ANPUH reflete a diversidade de espaços
de trabalho hoje ocupados pelos historiadores em nossa sociedade. A abertura da entidade ao conjunto dos
profissionais de história levou também à mudança do nome que, a partir de 1993, passou a se chamar Associação
Nacional de História, preservando-se, contudo, o acrônimo que a identifica há mais de 40 anos. Cf.
http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=1. Acesso em 10/08/2009.
67
A Escola Italiana de História das Religiões
Uma das mais fecundas escolas teóricas na área de História das Religiões na Europa é a
Escola Italiana, fundada há oitenta anos por Raffaele Pettazzoni (1883-1959)45. As discussões
de Pettazzoni, resultado de um intenso trabalho acadêmico, de um programa educacional
voltado para a pesquisa filológica, etnológica e bibliográfica, de um profícuo debate com
diversas correntes da época, engendraram uma proposta original, com uma concepção teórico-
metodológica até então não experimentada. Seu pensamento foi uma conquista do fruto de
intensos trabalhos de campo e de diálogo acadêmico e político em uma Itália refratária aos
estudos sobre religião sob a égide de uma herança do liberalismo pós-renascentista, renovada
na filosofia historicista de Benedetto Croce46. Este negava a possibilidade de uma autonomia
categorial na esfera do espírito para o fenômeno religioso, aceitando a religião apenas como
uma das manifestações da ética, da filosofia e da estética.
[...] não me foram sempre assim claros em mente como o são agora. Nem eu os apreendi
inicialmente em nenhuma escola. Aliás, eles foram se esclarecendo e se desenvolvendo
gradualmente no curso do próprio trabalho. E desse progressivo delinear-se de um pensamento
experimentado e vivido são visíveis as marcas no complexo dos meus escritos, até este último
que vê agora à luz como coroação de uma pesquisa começada há muitos anos.
45
Historiador italiano de religiões e educador, fundador e presidente (1950-59) da Associação Internacional para
o Estudo da História das Religiões. Para um aprofundamento sobre a biografia acadêmica de Pettazzoni, ver:
MIHELCIC, 2003; GANDINI, 2009.
46
Benedetto Croce (1866-1925). historiador, escritor, filósofo e político italiano. Os seus escritos giram em torno
de um largo espectro temático, sobretudo estética e teoria/filosofia da história. É considerado uma das
personalidades mais importantes do liberalismo italiano no século XX. Para um aprofundamento sobre sua
biografia e idéias, ver: REALE, 1991.
47
PETTAZZONI, 1955, pp. 10-11 [tradução pessoal].
68
Para alcançar seu intento de introduzir o ensino de História das Religiões dentro do programa
dos estudos universitários italianos, Pettazzoni teve de superar também grandes dificuldades
com os adeptos de um historicismo radical, fruto do positivismo que dominou a academia
européia a partir do iluminismo e, posteriormente, com o marxismo clássico, que
desqualificava a religião como uma das etapas a serem superadas na militância ideológica de
transformação da sociedade capitalista. Ao comentar sobre este período Agnolin, diz48:
Neste sentido, desde seu nascimento a “Escola Italiana de História das Religiões” encontrou-se
instalada, epistemológica e historicamente, no entrelaçamento entre as disciplinas da
Antropologia e da História, tendo que encarar, conseqüentemente, a polêmica aberta e crítica
com a Filologia, com a Fenomenologia e com todas as outras escolas de pensamento que, de
fato, privilegiavam abordagens não-históricas ou, quando pior, des-historicizantes.
Sua busca incessante e seu intenso debate sobre a possibilidade de uma História das Religiões
o levou a investigar diversos temas como a questão do Deus único (Urmonotheismus entre
1922; 1957; 1958; 1965); as religiões locais (como constam em suas primeiras monografias
de 1909 a 1914, que tratam da Sardenha e da Tracia); o zoroastrismo (em 1920); as religiões
de mistério (em 1924); a religião grega (em 1953); estudos sobre mitologia (inclusive sobre
mitologia japonesa, nos estudos realizados e publicados entre 1929; 1946; 1948-1959); sobre
teoria e metodologia (1954; 1954 e 1959) e diversos temas gerais (de 1929 a 1936). Ao longo
de vinte e cinco anos de pesquisas e trabalhos publicados, Pettazzoni desenvolve sua teoria na
prática e nos constantes debates acadêmicos. Sua vasta produção ainda é motivo de
investigação, contendo artigos acadêmicos e cartas inéditas49, mantidas com diversos
pesquisadores e intelectuais de sua época.
48
AGNOLIN, 2008, p.10.
49
O arquivo Pettazzoni foi inaugurado pela Universidade de Bologna na cidade de San Giovanni in Persiceto em
2009 com o maior acervo da produção pettazzoniana e contém o material inédito sobre o mestre italiano. Para
maiores informações, ver: GANDINI, 2009.
69
em um fenômeno histórico-social-civilizacional50 que tem autonomia de existência em relação
aos demais objetos históricos como a economia, a arte e a política51. Essa posição, oriunda do
positivismo conteano, e mesmo do marxismo clássico, que desqualificavam os estudos de
religião e com os posicionamentos da fenomenologia e da teologia que buscavam um
“descolamento” da religião (e das religiões) do âmbito meramente histórico52:
L’alternativa appare dunque nettamente delineata tra una fenomenologia priva di vigore
storiografico ed una storiografia senza una adeguata sensibilità religiosa. Resta da vedere se Le
due posizioni si escludano realmente a vicenda o non siamo invece complementari, trovando
l’una la sua integrazione in ciò che è proprio dell’altra, e viceversa. In sede metodologica si
tratta di vedere se la comparazione non possa essere altro che una meccanica registrazione di
somiglianze e di differenze , o se non si dia-invece-una comparazione che, superando il
momento descritivo e classificatorio, valga a stimolare il pensiero alla scoperta di nuovi
rapporti e all’approfondimento della conscienza storica.
Assim, o próprio Pettazzoni formulou seu programa manifestando o fato de que “cada
phainomenon é um genomenon”: formulação que, em polêmica com a obra de Mircea Eliade,
queria destacar como em cada fenômeno – e para longe de sua mera objetivação – é possível
re-percorrer e recuperar o momento de sua formação histórica, isto é, “des-objetizá-lo”.
Tratava-se, finalmente, de opor às indagações fenomenológicas a necessidade da interpretação
histórica. Isto significa que, para compreender um fato cultural qualquer, dever-se-ia procurar,
antes de mais nada, a reconstrução da sua gênese, da sua formação.
50
É necessário fazer um esclarecimento de fundo em relação ao pensamento pettazzoniano: ao tratar de cultura,
Pettazzoni entende tratar, sobretudo, de civilização. Este entendimento é fundamental na produção e no
aprofundamento das ideias de Pettazzoni.
51
Considerados no pensamento croceano a manifestação do espírito absoluto, na esteira do pensamento
hegeliano. Para um aprofundamento sobre o tema, ver: REALE, 1991, pp. 520-529.
52
PETTAZZONI, 1966, pp. 107-108.
53
AGNOLIN, 2008, p.10.
70
Ora, essa des-objetificação, de que trata Agnolin, em relação ao pensamento de Pettazzoni, é
uma objetificação histórica do religioso ou do reconhecimento de que a religião/religiões
pertence ao campo da análise histórica, não como algo de “segunda monta”, ou mesmo como
“algo que se refere a algo” mas, como um objeto de investigação histórica privilegiado. A
partir dessa linha teórica, Pettazzoni constrói o entendimento da manifestação do religioso
como elemento de investigação histórica, novamente apontando para premissas não
examinadas até então.
Outra linha teórica estabelecida ao longo de suas pesquisas e suas reflexões diz respeito à
relação de mútua influência entre a sociedade (local) e as religiões em um jogo de forças.
Vale ressaltar que a sociedade influência a religião e a religião influência a sociedade. Essa
premissa desvela e afirma a importância do entendimento da religião como fenômeno
objetificável histórica e localmente constituído, relevante no entendimento do processo
civilizacional de um determinado grupamento humano. Para Pettazzoni, as religiões
participam no processo de constituição civilizacional e cultural de uma determinada sociedade
mas, não apenas isso. Essa sociedade local, influência o processo religioso, transformando-o e
caracterizando-o no cotidiano em uma mútua relação e em um permanente jogo de forças e de
transformações quase imperceptíveis, como cita Pompa54:
Assim, a História das Religiões se preocupa com a relação das influências entre localidade e
religião (institucional e prática), demonstrando que a intercessão entre elas revela a
comunidade e as suas transformações civilizacionais. A partir da análise do cotidiano para o
entendimento dos processos de relacionamento e mútua influência, Pettazzoni antecipa
diversas linhas de pesquisa que entendem que a prática cotidiana retém a realidade última
para o pesquisador. Importante notar que o historiador, para Pettazzoni, é um pesquisador que
cruza as informações bibliográficas produzidas no campo com as ações cotidianas da
comunidade que produz as informações. Dessa forma, é na prática cotidiana que se manifesta
a religiosidade e transparece a religião e não apenas nas ações institucionalizadas ou nas
54
POMPA, 1998.
71
manifestações extremas, sejam elas entendidas como miraculosas ou extraordinárias, como
bem lembra Massenzio, citando Pettazzoni55:
Não é necessário erigir a exceção à norma! O dado positivo é a norma, a rotina, à vida
cotidiana do homem. À exceção são os momentos de vida mais intensos. Em primeiro lugar
aqueles nos quais a existência está em jogo: a caça, a guerra. Está aqui o mundo da religião. É
um mundo real. Também o mundo da norma é real [...]. E também aqui opera a religião
(eliminação mágica do pecado) etc. não é verdade que apenas o mundo dos arquétipos é
realidade: também a história é realidade, porque toda a vida é realidade.
Sin embargo, una metodologia válida para una reconstrucción plenamente histórica debe seguir
el camino iniciado por Brelich (1954), basado en la Historia de lãs Religiones de Pettazzoni,
que permite rastrear con método crítico procesos diacrónicos, sistema que apenas ha sido
cultivado (vid supra, § B. Método). Este campo de estudios de tanto potencial hacia el futuro
exige huir de aproximaciones antropológicas generalistas y seguir una metodología histórica
inspirada en la Historia de las Religiones, buscando documentar relaciones históricas
filogenéticas, como ocurre con el método filológico en Lingüística, para evitar falsos
paralelismos e interpretaciones errôneas.
55
MASSENZIO, 2005, p. 153.
56
O próprio percurso de pesquisa de Pettazzoni ao analisar e produzir diversas monografias sobre a religião
constata a preocupação lingüística e de sentido religioso (grosso modo, entendido como teologia).
57
ALMAGRO-GORBEA, 2007, p. 31.
72
O método comparativo de Pettazzoni58 busca a singularidade a partir da base fornecida pelas
nossas pressuposições de origem, nossa cultura, conceitos e civilização. Ao analisar outra
cultura, encontramos outros conceitos, distinguimos outra civilização. Dessa maneira, o
processo comparativo busca a diferença e a singularidade, não o igual ou o supostamente
mesmo entre culturas e civilizações diferentes. Tratando de forma resumida, Scarpi assim
apresenta a questão do método comparativo em Pettazzoni59:
Già dai primi anni Venti del secolo scorso, tuttavia, l'immenso castello costruito da padre
Schmidt, e poi l'irrazionalismo e l'ipoteca teologica della scuola fenomenologica vennero messi
in discussione da Raffaele Pettazzoni, il fondatore della scuola storico-religiosa italiana, per
quanto egli e parte dei suoi allievi abbiano cercato di conciliare la prospettiva storica con la
sistematicità del metodo fenomenologico al fine di elaborare modelli e individuare costanti
nell'universo delle religioni. In ogni caso, per la scuola storico-religiosa italiana, una storia
delle religioni fondata sulla comparazione non avrebbe mai potuto né dovuto ridurre «ad un
medesimo livello» i fatti religiosi comparati, e nemmeno spiegarli «l’un con l’altro facendo
astrazione da um reale svolgimento storico». Essa invece avrebbe dovuto rilevare «le
differenze sostanziali e di sviluppo dei fatti esaminati», una volta individuati e una volta
stabilita La possibilità di compararli, perché la vera storia non può farsi che attraverso le
differenze, che permettono di distinguere e di cogliere le specificità individuali delle diverse
religioni.
Para que tal ocorra, é necessário postular um mínimo de conceitos flexíveis para a análise de
campo. Conceitos estes que deverão, necessariamente, ser descartados, revisados,
modificados, ao longo do processo de análise entre documentação e prática cotidiana, como
explicita o próprio Pettazzoni60:
[...] um concetto così largo della religione che comprenda nella sua universalità tutte le forme
particolari, in ciò risolvendosi concretamente l’universalità stessa della indagine storico-
religiosa, anziché in una chimerica storia universale delle religioni.
Por fim, apresentamos aqui uma síntese do pensamento teórico e metodológico de Raffaele
Pettazzoni com as conseqüentes implicações que se fazem necessárias sobre seus insights que
foram desenvolvidos ao longo de gerações de estudantes e de sucessores de seu pensamento e
constituem uma teoria e uma metodologia próprias as quais denominamos de Escola Italiana
de História das Religiões:
58
Para um aprofundamento sobre o método comparativo, tal e qual proposto por Pettazzoni, ver. PETTAZZONI,
1956, pp. 1-18.
59
SCARPI, 2009-2010.
60
PETTAZZONI, 1955, p. 10.
73
1. A religião é um fenômeno privilegiado que dialoga com a cultura-civilização,
influencia e é influenciada por esta.
Esses pontos se apresentam como uma síntese de um pensamento teórico metodológico muito
mais rico e complexo do que aqui explanado, mas, tem por objetivo apresentar a essência do
pensamento pettazzoniano que se desenvolveu em diversos aspectos através das gerações que
se seguiram na Escola Italiana.
Considerações finais
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74
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80
81
MC9 – Iconografia budista
Coordenador
Resumo
82
Budismos
Introdução
Dharma, Samsara e Karma são conceitos centrais encontrados nos ensinamentos de todas as
correntes budistas, mas já eram conceitos védicos escritos em sânscrito, assim como muitos
termos usados pelo budismo. Os Vedas são as escrituras mais antigas do mundo e as mais
sagradas do hinduísmo, antes dito bramanismo. Os brâmanes fazem parte dos descendentes
arianos que há 2000 a.C. dominaram as civilizações nativas e desenvolvidas (Mohenjo Daro e
Harappa) da bacia do rio Indo e impuseram as quatro castas, entre elas, a dos guerreiros,
xátrias. Siddharta Gautama teria nascido no ano 563 a.C. em Kapilavastu (hoje Lumbini,
Nepal), norte da Índia, de um dos clãs xátrias, os Shakyas e, como príncipe herdeiro, foi
instruído com todo o conhecimento efervescente dos Vedas e tradições pré-arianas não
inteiramente sufocadas. Gautama será o shakya-muni (“O sábio silencioso dos Shakyas”).
Histórias e lendas de uma vasta literatura budista narram sua vida e são largamente
confrontadas, pois nenhuma escritura ou romance contém todos os detalhes, ensinamentos e
circunstâncias históricas necessárias como datas e atividades específicas para um enfoque
mais científico da vida de Buda, tendendo mais obras complementares para ilustrar os ideais
budistas. Os primeiros ensinamentos e biografia foram escritos cerca de 400 anos após sua
morte e muito longe do cenário histórico, no Ceilão (Sri Lanka), dos dialetos da Índia (Buda
falava no dialeto magadhi) para o pali e depois para o sânscrito, e assimilaram a mitologia
característica dos salvadores do mundo. Assim foi Asita, brâmane sábio e eremita, que viu na
criança Gautama traços de um líder, espiritual ou mundano, baseado nas tradições hindus e
iogues, entre elas a fisiognomia. Essas características seriam originalmente evidentes no corpo
de um Rei Sagrado chamado Cakravarti da mitologia hindu. Também havia a crença na
décima encarnação de Vishnu. Não obstante seu pai, o rei Suddhodana, logicamente desejasse
um herdeiro-guerreiro, Gautama, com 29 anos de idade, abandonou a confortável vida
palaciana para se tornar um asceta mendicante. Havia muitos líderes ascetas, alguns Jainas e
Ajivikas, que nas florestas competiam pelo número de discípulos, debatiam questões
1
Mestre em Língua, Literatura e Cultura Japonesa com enfoque em Cultura Budista pela USP. Contato:
fernandocarloschamas@gmail.com .
83
transcendentais e praticavam variadas mortificações corporais mais em busca da compreensão
e domínio do mundo material do que de um estado de buddha (“de consciência plena”) para
escaparem deste mundo material, livres dos renascimentos. No caso de Gautama, destacam-se
os seguintes aspectos. Primeiro, tornar-se asceta era, e ainda é, um comportamento tradicional
de um estágio de vida na sociedade hindu, os sadhus, com tendências niilistas e céticas, mas
nunca, até então, de um príncipe erudito da casta guerreira com o destino garantido de tornar-
se rei. Realizou a tonsura, renunciando não só às convenções mundanas, mas a sua família
Real, inclusive esposa e filho. Segundo, Gautama, experimentando o ascetismo por seis anos,
compreendendo seus limites e abandonando essa prática, também desafiou tanto a tradição
ascética (“sacrifícios e orações seriam inúteis”) quanto, ainda mais, o sistema de castas (“não
existe um criador supremo personificado, dito Brahma, do qual se originou as castas e,
portanto, os Vedas teriam sido manipulados pelos brâmanes”). Terceiro, pelo esforço pessoal
na meditação, “despertou” (“iluminação” se tornou a palavra mais popular) em Bodh Gaya e
decidiu ficar no nosso mundo, adiar sua “extinção” (nirvana, aqui, uma elevação espontânea e
imediata) e pregar, começando em Sarnath. Segundo o Sutra de Lótus, foi Brahma que rogou
para que Buda adiasse sua “partida” e o ensinasse para que também atingisse a liberdade do
ciclo de renascimentos sucessivos. Para Brahma, os ensinamentos de Buda eram a própria
“restauração” do Dharma, pois objetivava que a compreensão humana atingisse um nível de
libertação da dor para esta Era (yuga. Estamos na Kali Yuga, Idade do Ferro, da corrupção
desenfreada, iniciada em 3102 a.C. com a duração de 5000 anos, segundo o Manvantara.).
Para “suportar” a dor dessa Era, um dos princípios budistas de todos os budismos é a
compaixão. O primeiro discurso é conhecido como “acionamento da Roda da Lei”, que como
Buda mesmo disse, “nunca deixou de girar”. Cabe aos Budas relembrar a Lei, o Dharma, que
de um ponto de vista pode ser uma “restauração”. Ele não fala nem sobre um princípio divino
não-personificado, como Brahman do bramanismo, nem de assuntos metafísicos, como
defende a corrente mais antiga. Os budismos que serão mencionados em todas as discussões
metafísicas são correntes que defendem as conseqüências metafísicas dos ensinamentos.
Embora Buda impedisse a discussão entre os membros da sua comunidade, após a sua morte o
budismo se dividirá em budismos, numa extensa e sofrida história de difusão do budismo pela
Índia até sua extinção neste país e seu sucesso fora dele.
A Iluminação é uma experiência indescritível e Buda passou 49 dias e noites meditando sobre
o ocorrido. Segundo os ensinamentos que resultarão dessa experiência, seria um paradoxo
“desejar” o próprio fim do desejo ou o desejo de não sentir a dor. Entre ensinar métodos para
84
a iluminação (corrente tradicional) e falar sobre a iluminação (o metafísico), decidir ensinar o
caminho para a “grande experiência” é o que fez de Buda um Mestre, e por 44 anos viajou e
pregou pela Índia. Começou ensinando As Quatro Nobres Verdades e O Caminho do Meio. O
número de convertidos de todas as castas, de brâmanes a leigos, de homens e mulheres da
Índia, foi formando uma tradição e uma comunidade crescente, inclusive com parentes, reis e
outros grandes ascetas com poderes paranormais. Buda, seus discípulos e seguidores
peregrinavam pela Índia e viviam de esmolas, somente alimento, só parando na estação das
chuvas em mosteiros (vihara) ofertados. Morreu como um homem comum, aos 80 anos, 483
a.C., em Kusinagara e suas cinzas e espólio foram divididos entre os discípulos e mais tarde,
estupas (pagodes) foram construídas para guardá-las por todas as partes para onde o Budismo
se difundiu. Particularmente, os budistas podem contar o ano a partir da morte de Buda, seu
paranirvana (“extinção física neste mundo e a passagem para outra dimensão”).
A Difusão do Budismo
O príncipe Ashoka (cerca de 304–232 a.C.), após uma guerra sangrenta contra Kalinga em
259 a.C., converteu-se ao Budismo e tornou-se o terceiro imperador da dinastia Maurya. Ele
amparou o Budismo elevando-o à categoria de religião oficial, mas sem impô-la, sendo o
principal responsável pela difusão do Budismo inicial na Índia, erguendo vários marcos em
locais consagrados, por onde Buda passou e pregou. Por outro lado, acirrou a discórdia contra
o Bramanismo. Durante o seu reinado, a região de Gandhara (hoje, noroeste do Paquistão e
leste do Afeganistão), tornou-se um cenário de intensiva atividade de missionários budistas. A
dinastia Maurya entrou em declínio até perder o poder em 185 a.C. e a partir daí, várias
dinastias ocuparam a Índia. A tradição hindu retomou o seu poder a partir do séc. IV com a
dinastia Gupta (A Era Clássica ou Era de Ouro da antiga Índia), que unificou o poder e
diminuiu a influência do Budismo, hoje praticamente extinto na Índia. Quando se leva em
conta a adaptabilidade do Budismo, muitas vezes se ignora os diversos obstáculos enfrentados
e ainda pouco conhecidos dentro da Índia. Além de Ashoka, mais dois reis são considerados
Reis Budistas Indianos: Meneandro ou Milinda (125-95 a.C.) e Kanishka (78-127? d.C.). O
fim do Budismo na Índia é marcado pela destruição da Universidade de Nalanda em 1199 por
invasões.
85
Entre os séculos V e III a.C. os ensinamentos foram sendo revistos oralmente e transmitidos
em reuniões pouco formais. A partir do séc. III a.C., concílios foram realizados para a
discussão em torno da transmissão, correção dos ensinamentos, disciplinas monásticas,
organização doutrinária, dissidências e problemas internos das comunidades. Os livros
mostram datas e personagens principais quase inconciliáveis, devido também às fontes
originariamente discordantes segundo o ponto de vista das dissidências.
No início da ordem monástica budista, os monges eram errantes, e não missionários. Eles
raspavam a cabeça e vestiam-se de laranja, rompendo com coisas mundanas e se
desprendendo totalmente dos valores materiais, só recebendo esmolas em comida dadas pelos
leigos que acreditam que, com esse gesto, acumular méritos (punya).
Embora Buda não desejasse, a ordem foi se divergindo em atividades religiosas restrita aos
monges ou para o ambiente social, resultando em duas grandes correntes. Uma
exclusivamente baseada no Buda histórico (Gautama) e nos seus ensinamentos, theravada, e
outra, mahayana. A tradição theravada, “dos anciões”, foi incluída de modo preconceituoso
dentro da corrente rotulada de hinayana (“Pequeno Veículo”) e seu ideal é do arhat (“ser
perfeito”) em sabedoria (prajna) e a “extinção”, não voltado para leigos. O mahayana
interpreta isso como egoísmo, mas deve ser visto como complementar, e o pejorativo
hinayana ignorado em qualquer estudo sério.
O mahayana (“Grande Veículo”), de caráter reformador, via Gautama como mais um dos
numerosos Budas que estão presentemente ativos através do cosmos e, nos seus
ensinamentos, defendia uma miríade de verdades esotéricas.
O theravada se difundiu para Sri Lanka, Birmânia (atual Mianmar), Tailândia, Camboja e
Laos, e o mahayana foi levado para as montanhas e desertos de Ghandhara (Índia), Tibete
(subcorrente, o vajrayana) e China (subcorrente, o Zen), através de rotas comerciais
conhecidas como Rotas da Seda. Daí atingiu a Mongólia, ao Vietnã, a Coréia e o Japão. Pelo
século I d.C., uma comunidade seguidora do mahayana tinha se estabelecido na China, mas
foi somente no final do século IV que eles foram incentivados pelos governos das dinastias
chinesas. O Budismo atingiu o seu auge como religião estatal da China durante as dinastias
Sui (581-618) e Tang (618-907). O Sutra de Lótus foi traduzido para o chinês por Nagarjuna
(cerca de 150-250) fazendo surgir várias escolas. Por volta do século VI, já havia cerca de
trinta mil monastérios e dois milhões de monges na região norte da China. O monge budista
86
indiano Malananda foi da China para Paekche (reino coreano) em 384, quando seu rei
oficializou o Budismo e monges coreanos foram para a China e Índia, entre 523 e 554,
trazendo textos budistas, nos quais as escolas se baseavam. Na Coréia se tornou a principal
força cultural para unificar a península, mas como a China, ainda carecemos de maior estudos.
Enquanto isso, monges coreanos, devido às guerras, refugiavam-se no Japão, levando suas
crenças, mas só foi no séc. VI que o Budismo quando foi introduzido oficialmente no Japão
pelo reino coreano de Paekche que queria o apoio militar do Japão. Estimulado por líderes da
aristocracia japonesa, o budismo se tornou a religião oficial japonesa em 594. Monges
japoneses foram estudar em templos chineses.
Dois monges que foram estudar na China, fundaram as escolas mais influentes no Japão, a
Tendai, em 805 por Saichō (767-822) e a Shingon, em 806 por Kūkai (774-835). Saichō e
Kūkai são responsáveis pela divulgação do “sincretismo” xinto-budista que afirmava que os
kami do xintoísmo, deuses da crença nativa japonesa, haviam encarnado como Budas no
ocidente para trazer o Budismo ao Japão (teoria honji-suijaku).
Hoje há cerca de 400 milhões de budistas no mundo e maioria está na Tailândia (religião
oficial), cerca de cinquenta milhões. No Brasil chega a 3% da população, número apenas
aparente.
Os Bodhisattva
87
Zen-Budismo
A escola Chan (jap. Zen) vem do sânscrito dyhana (meditação). Mahakashyapa, discípilo de
Buda que presidiu o primeiro concílio budista, é considerado o primeiro patriarca pelo Zen
chinês. Noutra versão, o estilo de prática Zen foi levado da Índia à China pelo lendário monge
indiano Bodhidharma (jap., Daruma), por volta do ano 520 d.C., sendo também um patriarca
do Zen chinês. Na época em que surgiu e se desenvolveu, o Zen pode ser visto como uma
escola de reforma dentro do mahayana, revalorizando a importância da simplicidade do
pensamento para atingir verdades mais profundas. O Zen dá mais importância à meditação do
que outras linguagens, subprodutos da dualidade da mente e nunca a realidade. Por isso vale-
se do kōan, pequenos diálogos com o objetivo de quebrar o raciocínio lógico e levar a uma
iluminação imediata e constante, tirando o ego de sua inércia. O Zen se estabelece no Japão
(séc. XII) com as escolas Rinzai, de Eisai (1141-1215), e Soto, de Dogen (1200-1253), e lá se
desdobra como peculiar a sua tradição, como se lá tivesse nascido. Enquanto a escola Rinzai
utiliza meios mais chocantes contra a distração da mente, como bater no discípulo com uma
vara, a Soto é mais contemplativa.
O Budismo chegou ao Brasil pelos imigrantes com construção de igrejas e templos budistas e
igrejas católicas com padres imigrantes que oram em japonês nos bairros com grande número
de descendentes. Esses não deixam de ter em suas casas os altares budista e xintoísta para os
antepassados, com imagens de Buda, patriarcas e santos católicos, onde pode se oferecer
velas, incensos e flores. Mais contemporâneas são as traduções em português dos estudos
norte-americanos sobre budismo e das novas religiões japonesas com latente sincretismo entre
Budismo e Xintoísmo, mas também as assumidamente budistas, como a Sokagakkai de
Nichiren Daishonin (1222-1282), todas com sua Sede no Japão.
O Budismo Tibetano
O mahayana que foi para o Tibete no séc. VII durante o reinado do rei Srongtsen Gampo e é a
terceira grande corrente do mahayana, o vajrayana (“Veículo Diamante”) liderado pelos
Lamas, responsáveis pela transmissão direta do “conhecimento primordial sem a dualidade
própria da mente”. Escola vajrayana ou Escola dos Segredos foi fundada no século VII pelos
indianos Shuvhakarasimha (637-735), Vajrabodhi (663-723) e Amoghavajra (705-774). O
vajrayana é baseado nos ensinamentos dos tantras, textos esotéricos com doutrinas especiais
88
para a transformação da mente. Enquanto vajrayana é a corrente “esquerda” do tantrismo, a
contraparte feminina das divindades budistas, o mantrayana é a corrente “direita” e sobrevive
na escola Shingon, que enfatiza o gesto das mãos, e foi para a China e Japão. Também é
praticado no Nepal, Mongólia, Tibete e Butão. No séc. VIII, Padmasambhava é o introdutor
do vajarayana no Tibete. É comum um Lama ser procurado no mundo todo, reencarnado e
ainda criança, para ser levado ao Tibete e treinado como possível líder. No século VII, Trisog
Detsen convidou missionários da Índia e construiu um mosteiro. A partir do século XI, esse
budismo foi sendo propriamente a Escola Tibetana, ou tântrica do budismo. O tantrismo é
caracterizado pelos exercícios com mudras (gestos simbólicos das mãos que expressam
momentos da vida de Buda, estado de consciência, conceitos e ensinamentos específicos da
ioga), mandalas, mantras e dhyana (meditação). Atualmente, Tenzin Gyatso é a autoridade
espiritual, religiosa e política do Tibete, o 14º Dalai-Lama (“Mestre grande como o oceano”)
da tradição tibetana Gelugpa, e agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1989. Ele é
considerado uma emanação do bodhisattva Avalokitesvara. Porém, em 1959, Tenzin foi
forçado a fugir devido à invasão chinesa iniciada em 1951 que fez do Tibete sua província em
1965 com uma dos mais terríveis genocídios mais a depredação da sabedoria universal. (Ver
filme Kundun, de Martin Scorcese). Rinpoche é um título de respeito apenas dentro do
budismo tibetano. Entre as práticas artísticas tibetanas estão as cerimônias thangka.
Representam enormes pinturas budistas e mandalas numa complexa simbologia de cores,
posturas (do corpo e das mãos), pedestais, ornamentos, utensílios e instrumentos.
Arte Budista
Supõe que os primeiros budistas acreditavam ser aquele conhecimento religioso tão sagrado
que não poderia ser escrito ou gravado numa pedra, assim como alguns templos que, hoje, não
permitem fotografar as imagens ou são mantidas ocultas. Assim se representava apenas
imagens sugestivas de sua presença, como uma árvore bodhi ou um guarda-sol real aberto.
Após a iluminação, também significa que a personalidade Gautama não podia mais ser vista.
Pegadas de Buda esculpidos em uma placa de pedra é uma das mais velhas formas de
Budismo antes dos gregos influenciarem os hindus a fazerem imagens budistas representando
Buda. Até por volta do século I da era cristã, a arte budista estava sendo realizada em
esculturas e desenhos como elementos constitutivos de construções arquitetônicas, entre as
quais as mais importantes seriam os pagodes que entesouravam os restos mortais de Buda. Foi
89
na região de Gandhara, coração do Império Kushana, parte superior do Rio Indo sob o
domínio do rei Kanishka, que a iconografia de um homem santo em formas reconhecíveis
gradualmente foi tomando forma, fazendo surgir a imagem de Buda. Gandhara conseguiu
absorver as tradições fisiognômicas perfeccionistas da religião romana e representou Buda
com uma jovem face apolínea e vestes semelhantes àquelas das estátuas imperiais.
Por causa da proximidade geográfica, o império Kushana foi a raiz das primeiras estátuas
de Buda transmitidas à China. Os Budas e as divindades bodhisattva são encontrados em
cerâmicas, espelhos e pequenas figuras de bronze até o séc. IV. No século V, quando a
China começou a se dividir em norte e sul, a escultura budista chinesa começou a se
desenvolver em suas próprias linhas. As pinturas floresceram posteriormente, nas cavernas
e em monastérios. As cavernas, que foram iniciadas em 460, não apresentam um quadro
geral da arte do século V, mas como exemplos anteriores são raros, atestam um grande
movimento civilizatório para se construir tantos e tão grandes Budas. Os budas em baixo-
relevo dessas cavernas, de Yunkang e Lungmen, são massivos e cheios de dignidade.
Nesse caminho da arte budista, Buda ganhou os traços da etnia amarela de uma forma tão
bem sucedida que se tornou um protótipo universal a imagem budista de um monge asiático
meditando como arquétipo da serenidade.
A arte budista contemporânea tem se vulgarizado numa arte decorativa como jardins de pedra
e cabeças de Buda, em busca de uma atmosfera espiritual e exótica não completamente
desconectada de seus princípios, ainda sim evocando sua simplicidade e a prática da
meditação, e assim, pelos seus exemplos representativos, o Budismo continua a sua difusão
completamente despretensiosa, silenciosa e perene.
A Samsara
Para o Budismo, até os deuses buscam a iluminação. Eles têm que renascer no estado humano
em incontáveis reencarnações e acumular incontáveis méritos de compaixão para que enfim,
numa última encarnação como humano, atinjam a sabedoria absoluta e perfeita e escapem
(Nirvana) da Roda da Vida, essa presa nas garras de Yama, o demônio da morte da mitologia
indiana. A Roda da Vida (bhavachakra) foi criada pela extinta escola Sarvastivada,
precursora do mahayanismo. Assim como muitas pinturas e esculturas, foi um dos meios de
se difundir os ensinamentos. Ela representa simbolicamente a impermanência dos doze elos
da existência interdependente, dos seis mundos da existência cíclica e dos venenos da mente.
90
Como um todo, a Roda da Vida é mais conhecida como Samsara. Aparentemente, o conceito
de renascimento está para a mudança de mundo, no budismo, transmigração, e o de
reencarnação, para as várias vidas dentro de um mundo material incluindo concepção e
gestação. Ainda os conceitos se confundem se considerarmos os seis mundos e o
renascimento na Terra Pura. Todos os mundos dentro da Roda da Vida são materiais, não
necessariamente visíveis da dimensão humana. O conceito de “mundo”, assim como de eras,
baseiam-se na fantástica mitologia hindu sobre a existência do universo. Mundos podem
realmente ser estados do ser, outros planetas ou outras dimensões, mas nunca ignorando o
conceito de unicidade. Há a questão se um ser humano pode renascer como animal ou ao
contrário. Renascer sim, reencarnar não. Se a base da questão é a matéria, estes conceitos não
podem ser confundidos com a materialização e a manifestação de deuses, iogues e médiuns
com essa capacidade específica de manipulação da matéria.
As coisas não têm uma natureza independente, são todas interligadas casualmente e todas ao
mesmo tempo participam da mesma natureza do “vazio”. A existência do universo é um
fenômeno do vazio. O ego é vazio. O vazio da existência pode ser representado tocando um
sino e percebendo a sua evanescência. Para o Budismo, estamos todos “dormindo”, e daí o
paradoxo “despertar” para a compreensão absoluta da realidade como um sonho, ou pesadelo
da ilusão primária, a personalidade, tão manipulável que se torna um foco de interesse da
psicologia comportamental e atrações de hipnotismo. Entretanto, é leviano concluir que o
budista nega a realidade e almeja a morte. É do vazio que surgem todas as coisas, mas apenas
são projeções mentais. A realidade não é uma ilusão, é como uma ilusão, e no budismo e em
português, sendo chamado de delusão. Se a mente está distraída e não conhece o seu potencial
de gerar realidades, essas a seduzem como existências separadas da mente do observador, e
91
pelas sensações instáveis de prazer e dor, criam-se tendências psíquicas difíceis
(condicionamentos) de serem quebradas, pois elas se sedimentam nas reações mais sutis do
corpo que chamamos de mente. Como essas realidades são instáveis, a mente nunca se
satisfaz, deseja mais, e o desejo causa dor e sofrimento. Essas são as Quatro Nobres
Verdades: a vida humana é dor; a dor é causada pelo desejo; o desejo é gerado pela
personalidade. Portanto, a dor só pode ser eliminada pela extinção da personalidade. Esta
verdade é mais um processo de cura do que de salvação. Mas nem a verdade nem acura
podem ser impostos. A pessoa precisa saber que está num estado “não desperto” e se ela quer
uma cura. Não significa se auto-afirmar “doente” nem viver sem desejos nem se
automortificar, como alguns exemplos vivos na Índia usados pelos críticos do Budismo e
julgado como niilismo. Para Buda, insensatez é ignorância. Significa chegar à sensatez de que
as condições da vida humana são extremamente limitadas e frágeis, física e psiquicamente,
com altíssima probabilidade de sofrimento, por melhores que sejam as condições de conforto.
A utilização dos termos “personalidade” ou “ego” vêm, claro, do desenvolvimento da
psicologia e da psicanálise, o que mais próximo traduz o conceito de mamata, diferente de
uma consciência superior, do “não-eu” (anatta), malha do cosmos, o próprio Dharma, o Eu
Superior, a Consciência Crística ou Cósmica, transcendente. Isto é do Vedanta (“a meta de
todo conhecimento”) explicada nos Upanishads. O mamata, na prática Zen, é representado
como um touro marruá a ser domesticado, mas nunca morto e, adiante, esquecido. O nirvana,
portanto, deve ser entendido como extinção da personalidade para um estado além de
qualquer definição condicionante e efêmera, um tathagata. Mais uma vez, Buda se refere aos
Vedas ao abordar a liberação (moksha) da Samsara pela filosofia (jñana) e pela sabedoria
(vidya), mas o Budismo nasce no momento em que ele ensina outros métodos, opostos à
mortificação. Se a religião tem um papel de dar sentido à vida, o Budismo o tem bem claro,
“tornar-se consciente”, inclusive livre de qualquer religião, mas sem negar a sabedoria de
todas elas. Uma vez desperto, ganha-se a compreensão do destino enquanto “caminho
percorrido” ou “experiências vividas” para se chegar a graus maiores de consciência.
Portanto, mais uma vez, o despertar não é apenas o resultado da quantidade de experiências,
tecidas pela complexidade de forças do destino (Samsara, Karma e Dhrama), de uma única
encarnação.
92
Soteriologia
Neste paraíso, criado pela força espiritual de Buda Amida, o crente pode renascer na lagoa do
paraíso dentro de uma flor de lótus. O nascimento na Terra Pura é espontâneo, ou seja, sem a
necessidade de gestação. Por estar fora da “existência cíclica” (Samsara), os seres poderiam
permanecer lá até atingir o despertar, sem o perigo de regredir a um estado anterior.
Dependendo do seu grau de esclarecimento (nove níveis), a flor se abre e o crente passa a
desfrutar deste mundo onde não há obstáculos para o Despertar, onde Amida e seus auxiliares
estão sempre pregando e orientando, onde tudo é ornado de indescritíveis belezas. O tempo,
no Budismo, segue a contagem de tempo hinduísta, de imensas eras aparentemente eternas
93
como milhões de eras. Os infernos são inúmeros e suas representações superam qualquer
tragédia ou sofrimento das pinturas do inferno cristão, mas ninguém fica nos infernos budistas
para sempre, não há uma condenação eterna e irrevogável. Não é um purgatório, mas há uma
espécie de julgamento. A mencionada flor de lótus assim foi simbolizada como um
casulo/botão de prática e purificação até que o crente floresça no mundo, livre de qualquer
impureza e corrupção que a sociedade mundana cultiva em suas mentes. Já que não há como
escapar da Samsara, renascer na Terra Pura significa continuar todo aprendizado necessário
lá, aliviado do peso do processo carmático.
Na morte, o budista geralmente é cremado depois da recitação de mantras que agem sobre o
processo de desencarne e renascimento. No Brasil, as orações realizadas para os falecidos
pelos imigrantes japoneses foram sendo chamas de missas de sete e quarenta e nove dias.
Outras ainda podem ser realizadas. O culto aos antepassados faz parte da cultura japonesa
desde sua pré-história e relacionada aos milhões de deuses a na necessidade de manter a paz
dos falecidos. A chegada do budismo com sua teologia milenar não sufocou esta cultura, mas
trouxe uma profunda e marcante reflexão sobre os estados infernais dos espíritos
“despreparados” pelos novos ensinamentos. A forma resultante com o sincretismo budista no
Japão é o Obon, ritual aos antepassados.
94
edições, desenvolveu seu conceito de arquétipos (O Homem e seus símbolos), neste caso,
sobretudo as expectativas humanas universais em relação à morte. O Budismo Tibetano
também se tem popularizado no Brasil com a enorme presença de inúmeros centros das
tradicionais escolas do vajrayana.
Considerações finais
Acredito que Buda, como Cristo, ensinou coisas de forma muito simples e acessível, pois sem
dúvida essa foi a intenção destes sábios que sequer escreveram qualquer coisa. Porém, a
quantidade de sutras supõe que Buda tenha falado 24 hs sem parar durante 40 anos. É místico
pensar que isso pode ter acontecido mesmo em silêncio ou dormindo, e daí as possibilidades
de especulação religiosa. Não há nenhum estudo que possa resumir essa quantidade de
informação, que por ser imensa, pressupõe uma complicação mais baseada nas suas
interpretações. Nesse sentido, o Budismo está entre as coisas mais complicadas do mundo.
Portanto, o modo como aqui eu apresento os fatos seria para orientar qualquer estudo sobre o
Budismo, com essas considerações básicas acumuladas em diversas leituras e repensadas no
sentido de serem acessíveis ou, ao menos, intrigantes para outras discussões. Como um
amante de Buda, reservo-me um espaço para dizer que os ensinamentos continuam simples ou
tão puros como nasceram, e é necessário um esforço menos intelectual para compreendê-los,
senão, decididamente, será um esforço incompleto se o pesquisador não for apto ao exercício
da meditação. E não diria isso se a meditação não fosse cada vez mais cientificamente
pesquisada e aprovada como uma das necessidades humanas mais essenciais e esquecidas. O
que nos faz esquecer isso?
Referências
COOMARASWAMY, Ananda Kentish e Irmã Nivedita. Mitos hindus e budistas. São Paulo:
Landy, 2002.
95
GANERI, Anita. O que sabemos sobre o Budismo? Trad. Helena Gomes Klimes. São Paulo:
Callis, 1999.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião Oriental. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1963.
MASON, Penelope. History of Japanese Art. New York: Harry N. Abrams, inc. Publishers,
1993.
SUZUKI, Daisetsu Teitaro. Zen-Budismo e Psicanálise. São Paulo: Fromm e Martino, Editora
Cultrix, 1960.
USARSKI, Frank. O Budismo e as Outras. São Paulo: Idéias & Letras, 2009.
ZIMMER, Heinrich Robert. Filosofias da Índia. Compilado por Joseph Campbell. São Paulo:
Palas Athena, 1986.
96
97
MC10 – A Fé Bahá’í: incompreendida e
perseguida
Coordenadora
Resumo
A Fé Bahá’í é um sistema religioso que nasceu no Irã do século XIX. De acordo com dados
divulgados pela Comunidade Internacional Bahá’í, existem mais de 7 milhões de adeptos
representados em 178 países e 46 territórios do mundo, com seus textos traduzidos para mais
de 800 idiomas. No Brasil, o número de Bahá’ís chega a 57 mil residentes em
aproximadamente 1.215 cidades e municípios em todas as regiões. O objetivo é delinear os
fundamentos desta que é hoje a quarta religião mundial em número de adeptos, e sua origem
dentro do Islã Xiita. Relataremos os desafios que seus adeptos enfrentam tanto em relação à
perseguição por eles sofrida no Irã e as razões para essa perseguição, além dos desafios da
proposição de ser uma religião mundial.
98
A Fé Bahá’í: incompreendida e perseguida
Introdução
Este texto pretende apresentar a nova face do discurso religioso proposta pela Fé Bahá’í
através da interpretação da linguagem simbólica realizada por Bahá’u’lláh, seu profeta-
fundador.
A partir do conceito de Revelação Progressiva, Bahá’u’lláh afirma que, como parte do plano
de Deus para a humanidade, sucessivos Manifestantes são enviados para revelar a religião de
Deus. Todo o ensinamento trazido por cada um desses Manifestantes representa um estágio na
evolução dessa religião, e cada revelação estaria preparando o caminho para a seguinte.
A Fé Bahá’í e sua precursora, a Fé Babí, nasceram no Irã na segunda metade do século XIX.
O Irã faz parte do ramo minoritário do Islã adepto do Xiismo dos Doze Imames que nasceu a
partir da disputa de poder após a morte de Muhammad, quando Ali (656-661 d.C.), sobrinho e
genro do profeta, reivindicou para si e para seus herdeiros a liderança da umm2 a com base no
princípio da sucessão pelos laços de parentesco com Muhammad. Após a morte do Profeta,
uma assembléia com os seguidores do Profeta escolheu Abu Bakr como líder da comunidade
1
Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP. Contato: cristinamelchior@uol.com.br.
2
Umma é um termo árabe que exprime a idéia de nação, comunidade.
99
islâmica, o Califa3. O terceiro califa, Uthman ibn Affan (644-656 d.C.) foi assassinado e
sucedido por Ali. A família Umayyad, à qual pertencia o califa Uthman, nunca se conformou
com o califado de Ali e, após um período de revolta que culminou com seu assassinato
enquanto rezava em uma mesquita, iniciou-se a dinastia dos Umayyad.
O princípio das disputas pela sucessão nasceu com o que ficou conhecido mais tarde como o
partido de Ali, shi’at Ali, dando início à chamada grande discórdia. Os Xiitas (derivado de
shi’at) não reconheceram, nem reconhecem até hoje, os califas eleitos pela assembléia de
seguidores de Muhammad logo após sua morte, e consideraram que, após a morte de Ali, foi
seu filho Hasan (661-669 d.C) quem se tornou o segundo Imame (Líder Espiritual). Após a
morte de Hasan, Husayn (669-680 d.C.), o segundo filho de Ali, ficou conhecido como o
terceiro Imame.
A questão da sucessão de Muhammad, marcada pela derrota de Husayn que defendia os ideais
da shi’a, é o principal fator da divisão do Islã em duas facções que tomaram rumos diversos: o
Islã Xiita e o Islã Sunita. Xiitas e Sunitas discordaram não apenas sobre quem seria o sucessor
do Profeta, mas também sobre a natureza do papel desse sucessor. Para os Xiitas, Ali deveria
ter ocupado não apenas a posição de líder temporal (califa) da umma, mas também a de líder
espiritual (Imame), como legítimo sucessor do Profeta e guardião da verdade última encerrada
na Revelação.
O décimo segundo e último Imame designado, no ano de 873 d.C. teria se retirado para um
esconderijo para fugir de seus inimigos que pretendiam assassiná-lo pela disputa de poder.
Desta forma, ele teria desaparecido, entrando em uma fase de ocultamento (não é mais visível
aos olhos dos seres humanos) da qual por fim sairá para retornar como o Salvador-Juiz da
humanidade inteira.
A crença nos Doze Imames e no iminente retorno do último que está oculto, designa o Xiismo
dos Doze Imames. Outros movimentos Xiitas como os ismaelitas, os zaiditas e os fatimidas,
surgiram como dissidências reivindicando o Imamato, uma vez que divergiam entre si tanto
sobre a linha de sucessão de Muhammad quanto em relação ao papel do Imame. Nossa
abordagem restringe-se ao Xiismo dos Doze Imames, do qual se originaram tanto os
precursores quanto o fundador da Fé Bahá’í.
3
Literalmente, “sucessor” ou “vice-regente”. O califa surgiu na comunidade muçulmana após a morte do Profeta
Muhammad em 632 A.C., inicialmente com a função de assegurar a segurança e o bem-estar da umma, assegurar
a aplicação apropriada da Shariah e supervisionar a administração e a governança do território sob seu domínio.
100
É praticamente consenso entre os seguidores dos Doze Imames que o Décimo e o Décimo
Primeiro Imames, em função da hostilidade de seus opositores, viveram ocultos e raramente
mostravam-se em público. Esse período foi chamado de Pequena Ocultação. O contato com
os seguidores era feito através de agentes responsáveis por comunicar as mensagens dos
Imames e coletar as verbas (Zakat) ofertadas. Quatro foram os agentes do Imame Oculto, cada
um deles chamado de Báb (Porta, em árabe). Durante o período de vigência do Décimo
Segundo Imame morre o quarto Báb. A partir de então, inicia para os Xiitas o período
conhecido como Grande Ocultação, o período de tempo quando não existe na terra nenhum
agente do Imame Oculto. Desde então o Décimo Segundo Imame veio a ser identificado com
o Mahdi4 ou Qa’im.
O retorno do Imame Oculto está previsto para o período imediatamente anterior ao Dia do
Juízo Final, quando então retornará como o Mahdi, o Salvador, liderando as forças da justiça
contra as forças do mal, em uma batalha apocalíptica na qual os inimigos do Imame serão
derrotados. O início do século XIX foi um período de expectativa messiânica para o Islã Xiita.
A aproximação do ano de 1844 d.C. trazia a expectativa do retorno do Imame Oculto. Isto
porque aquele ano marcava o milésimo aniversário do desaparecimento do Duodécimo Imame
e o começo do período de Ocultação.
Foi exatamente no ano de 1844 que o Xiita Siyyid Ali-Muhammad não só afirmou ser o Báb
como também o próprio Qa’im. Entre vários aspectos de sua missão, como anunciar o fim da
Shariah5 islâmica e iniciar uma nova Shariah, profetizou o aparecimento de outra figura
messiânica que viria depois dele, ao qual ele se referia como “Aquele que Deus tornará
Manifesto”. Segundo a doutrina do Islã, Muhammad é considerado o Selo dos Profetas, o
portador da revelação final de Deus para a humanidade até o Dia do Julgamento. Os Xiitas
aguardavam o aparecimento do Imame com a certeza de que ele reafirmaria as palavras do
Alcorão. Portanto, as pretensões do Báb ao anunciar um novo código de leis proveniente de
outra fonte que não o Alcorão foi considerado ultrajante, deflagrando um período de
perseguição tanto ao Báb como a seus seguidores.
O movimento iniciado pelo Báb ficou conhecido como Fé Babí e, apesar do curto período de
seu ministério, pois ele foi executado em 1850 a mando do Xá do Irã, muitos foram os que
aderiram a seus ensinamentos. Entre eles, destaca-se Mirzá Husayn Ali Nuri (1817-1892),
4
Mahdi - O Divinamente Guiado.
5
Conjunto de leis sagradas do Islã.
101
também ele um adepto do Xiismo que, aos vinte anos tornou-se um fervoroso discípulo do
Báb. Em 1852, Mirzá Husayn e outros tantos seguidores Babís foram acusados de tentar
assassinar o Xá. Aqueles Babís que não foram executados foram aprisionados na prisão em
Teerã conhecida como Síyáh-Chál (Cova Negra). Este foi o destino de Mirzá Husayn, que
passou a ser conhecido como Bahá’u’lláh6. Mais tarde, Bahá’u’lláh escreveu que nesse
período os detalhes de sua missão foram anunciados por um espírito divino na forma de uma
Donzela Mística. No entanto, esse segredo messiânico só foi revelado a seus seguidores dez
anos depois.
Após quatro meses de prisão Bahá’u’lláh foi solto, seus bens e propriedades foram
confiscados e, junto com sua família e alguns amigos próximos, iniciou seu período de exílio,
que perduraria durante toda sua vida. Bahá’u’lláh partiu para Bagdá, atual Iraque, onde após
dez anos de permanência, em 1862 declarou-se como “o prometido de todos os profetas do
passado”, aquele que o Báb havia prenunciado como “Aquele a quem Deus tornará
Manifesto”. Logo depois foi exilado para Constantinopla, Adrianópolis e, finalmente, Acre,
Israel, onde permaneceu até sua morte em 1892.
Durante todo o período de seu ministério, a produção escrita de Bahá’u’lláh foi incessante,
com o registro de todos os princípios do que denominou como Fé Bahá’í, inclusive um livro
de leis intitulado O Livro Sacratíssimo e um testamento no qual registra que seu filho mais
velho, Abdul-Bahá, deveria ser seu sucessor após sua morte.
Fundamentos da Fé Bahá’í
De acordo com Bahá’u’lláh, Deus prometeu que enviaria uma sucessão de Manifestantes para
guiar e instruir a humanidade. Como a sucessão de Manifestantes não teve início, também não
terá fim. A revelação Bahá’í não reivindica ser o estágio final da evolução espiritual humana
sob a orientação de Deus. Segundo Bahá’u’lláh, Deus continuará a enviar seus Mensageiros
até “o fim que não tem fim”7 e os escritos Bahá’ís garantem que, ao expirarem mil anos
6
“A Glória de Deus”.
7
Bahá’u’lláh, citado em S. EFFENDI, A Ordem Mundial de Bahá’u’lláh, p.158.
102
completos8, outro Manifestante surgirá para levar adiante o processo evolucionário da
humanidade.
103
entanto, são a natureza de Deus, não a sua essência. Todos são expressão dos atributos e da
perfeição de Deus e partilham de absoluta igualdade entre Eles.
Com base nesses princípios foi possível para Bahá’u’lláh propor uma doutrina pós-islâmica e
encarar o impasse da finalidade revelatória. O Islã é fundamentado na convicção de que
Muhammad é o último Mensageiro de Deus, O Selo dos Profetas9. Nenhuma outra doutrina é
mais primordial no Islã do que a doutrina da finalidade revelatória, que nega a possibilidade
de futuras revelações de Deus, assegurando o Alcorão como a última e a mais sagrada lei de
Deus.
Bahá’u’lláh, contrariando a maioria das interpretações muçulmanas, não considera que o texto
bíblico esteja corrompido. Ele considera que corrupto é o clero que interpreta os textos
sagrados erroneamente (inclusive o Alcorão) e, portanto, ele se utiliza a todo o momento das
escrituras sagradas para explicar, exemplificar e comprovar seus propósitos proféticos. Uma
vez que ele também considera que todas as escrituras sagradas são provenientes de uma única
fonte, que é Deus, faz todo o sentido utilizar-se de uma para explicar o conteúdo de outra. A
prática inter-escritural, entre textos sagrados de diferentes tradições religiosas, é recorrente em
seus escritos.
Bahá’u’lláh considera que os textos sagrados são erroneamente interpretados por serem
interpretados literalmente. Os textos sagrados são construídos a partir de símbolos e
metáforas, sendo que o mundo natural é apenas uma metáfora do mundo espiritual. Para ele,
buscar um significado intrínseco ao texto é inútil, uma vez que o verdadeiro significado que
deve ser procurado, para não se perverter as escrituras, é o espiritual, que, por sua vez, só
pode ser compreendido a partir da interpretação da simbologia implícita no texto.
É desta forma que Bahá’u’lláh faz a interpretação inter-escritural da Sura 33:40 do Alcorão:
“Em verdade Muhammad não é o pai de nenhum de vossos homens, mas sim o Mensageiro
9
Referência ao Alcorão 33:40: “Em verdade Muhammad não é o pai de nenhum de vossos homens, mas sim o
Mensageiro de Allah e o derradeiro dos profetas“. No Livro da Certeza, escrito por Bahá’u’lláh, as palavras
desse versículo foram transcritas diferentemente: “Maomé é o Apóstolo de Deus e o Selo dos Profetas”. Apesar
da tradução do Alcorão utilizado neste trabalho não utilizar a palavra “Selo”, no índice remissivo a Sura 33:40 é
referida como “selo dos profetas”.
104
de Allah e o derradeiro dos profetas“. Para o Islã, ser o derradeiro dos profetas significa que
não poderia haver nenhum outro profeta após Muhammad, o que lhe atribui o título de Selo
dos Profetas. Ciente de que este princípio é o coração da teologia muçulmana e jamais poderia
ser revogado, Bahá’u’lláh recorre a uma tradição Ismaelita, a partir da qual Muhammad teria
afirmado “Eu sou Jesus”10, para relativizar a exclusividade reservada a Muhammad e
distribuí-la igualmente entre os outros Mensageiros de Deus.
Tanto de uma perspectiva islâmica quanto Bahá’í, a similaridade dos profetas é mais profunda
do que suas diferenças, independente da personalidade ou da era na qual cada Mensageiro
apareceu, ou o caráter de suas respectivas revelações. Partindo do princípio de que todos os
Manifestantes de Deus possuem a mesma grandeza espiritual e partilham de absoluta
igualdade entre eles, Bahá’u’lláh, utilizando-se da exegese inter-escritural, relativiza o
conceito de Selo dos Profetas, estendendo-o para além dos limites islâmicos.
Sob esta ótica, Bahá’u’lláh retoma o conceito de que se todos os profetas partilham a mesma
natureza deveriam também partilhar os mesmos atributos, inclusive o de Selo. Este argumento
permite que se conclua que Jesus é totalmente igual a Muhammad, uma vez que ambos são
considerados como Selo dos Profetas. O conceito de Selo como Último permanece intacto, no
entanto, Último passa a indicar autoridade ao invés de sucessão.
Considerações finais
10
Citado em BAHÁ’U’LLÁH, O Livro da certeza, p.17. “A tradição “Eu sou Jesus” que Bahá’u’lláh cita é
atestada principalmente nos círculos ismaelitas” (C. BUCK, Symbol and Secret, p.208).
11
C.Buck, Symbol and Secret, passim.
105
Em relação à posição de igualdade entre todos os Manifestantes de Deus, Bahá’u’lláh faz a
seguinte observação:
e se todos proclamassem “Sou o Selo dos Profetas”, realmente só diriam a verdade, sem
qualquer sombra de dúvida. Pois eles todos não são mais que uma só pessoa, uma só alma,
um só espírito, um único ser, uma única revelação. Todos manifestam o “Princípio” e o
“Fim”, o “Primeiro” e o “Último”, o “Visível” e o “Oculto” – tudo o que se refere Àquele
Que é o mais íntimo Espírito dos Espíritos e a eterna Essência das Essências.12
Desta forma, não só Jesus, mas todos os Manifestantes de Deus poderiam ser proclamados
Selo dos Profetas, pelo simples fato de que a mensagem e os ensinamentos de cada um deles
gozam da mesma autoridade dentro do plano de Deus para a humanidade.
Com toda certeza, esta inovação introduzida por Bahá’u’lláh foi um dos principais motivos
pelos quais ele foi perseguido, durante toda sua vida, pelo clero Xiita; e seus seguidores, ainda
hoje, são acusados de apóstatas pelos líderes religiosos iranianos, sendo perseguidos e jurados
de morte.
Referências
EFFENDI, Shoghi. A Ordem Mundial de Bahá’u’lláh. Mogi Mirim: Editora Bahá’í do Brasil,
2003.
EL HAYEK, Samir (trad.). O Significado dos versículos do Alcorão Sagrado. São Paulo:
MarsaM Editora Jornalística, 2004.
12
BAHÁ’U’LLÁH, O Livro da Certeza, p. 111.
106
107
Grupos de Trabalho
108
GT1 – Bruxaria à brasileira: a presença da
Wicca no Brasil
Coordenadores
Resumo
Desde sua formação na Inglaterra na década de 40 até hoje a Wicca, religião mais conhecida
dentro da miríade de religiosidades e espiritualidades presentes no moderno (neo) Paganismo,
vem cada vez mais se fazendo presente em solo brasileiro. Uma religião legitimamente
britânica que se espalhou por muitos países em um pouco mais de meio século, como afirma
o historiador Ronald Hutton. A Wicca é uma religião em constante mudança, que dialoga de
uma forma geral não só com a modernidade do qual é fruto, mas com a sociedade específica
que a acolheu. Nos Estados Unidos ganhou seus contornos de maior ênfase: a valorização do
feminino e o culto a natureza, tendo sido descrita como “Religião da Natureza”. No Brasil,
atualmente, a Wicca passa a ser mais estudada, tanto em seus aspectos históricos, de
permanência e dissidência dos adeptos, quanto em relação aos aspectos de diálogo com a
sociedade brasileira. Neste sentido este GT propõe reunir trabalhos que tratem sobre a Wicca,
sua história e seu desenvolvimento.
109
A construção da identidade masculina na Wicca
Welington Pinheiro1
Introdução
A Wicca é conhecida por ser uma religião com forte ênfase na construção de uma identidade
feminina afirmativa e crítica aos padrões estabelecidos. Em geral, segundo pesquisas
anteriores, como as realizadas por Andréa Osório (2004), as bruxas – como se auto-
denominam as praticantes – afirmam que há uma presença muito grande de mulheres e
homossexuais masculinos na religião, provavelmente por causa do modo como o feminino é
considerado, invertendo a histórica relação de poder entre gêneros da cultura judaico-cristã.
Essa consideração maior para com o feminino criaria um espaço de maior tolerância para
esses homossexuais. A própria pesquisadora, assim como também esta pesquisa, chegou
mesmo a constatar que a presença de mulheres nessa religião é massiva em relação a de
homens e mesmo entre estes, há de fato muitos homossexuais assumidos.
Tendo em vista tal ênfase no feminino, nesta pesquisa coloca-se a questão sobre o que levaria
homens que se dizem heterossexuais a se interessar pela religião. O que esperam dela e nela?
E como lidam com a construção de sua identidade, do lugar de seu gênero neste sistema de
valores que os retira preponderância?
O que é Wicca
Segundo a definição da UWB (União Wicca do Brasil), uma associação que visa representar a
religião na esfera pública, “a Wicca é uma religião neopagã, mítica, politeísta, iniciática, de
culto dualista e orientação matrifocal”2.
1
Mestrando em Ciências Sociais (PPCIS) pela UERJ. Orientadora: Cecília Mariz. Contato:
welpinsil@yahoo.com.br.
110
A religião não possui uma estrutura clerical. No caso brasileiro, há associações como a
ABRAWICCA (Associação Brasileira de Arte e Filosofia da Religião Wicca), a UWB (União
Wicca do Brasil) e a IBWB (Igreja de Bruxaria e Wicca do Brasil), de ação apenas
representativa frente à sociedade, com pouca ênfase no aspecto regulador das crenças.
Dado o caráter de sacralidade atribuído à natureza, os principais ritos e festivais estão ligados
aos ciclos naturais. Os 8 sabás estão ligados à roda das estações, enquanto os 13 esbás, aos
plenilúnios.
O bruxo wiccano pode ser um praticante solitário ou fazer parte de um coven – grupo de
bruxos com “afinidade mágica”. Por tradição, um coven não pode ter mais de 13 indivíduos,
número a partir do qual deve dar origem a outro grupo. Um conjunto de covens irmãos
compõe um groove.
2
Disponível em <http://uniaowiccadobrasil.org.br/definindo-a-wicca/a-wicca-e> Acesso em 6, ago, 2013.
3
Gerald Gardner foi um burocrata e folclorista amador inglês que escreveu o livro “Witchcraft Today”, em
1954, onde apresenta a Wicca ao mundo. Segundo ele, não estaria criando nada novo, mas apenas revelando um
conhecimento antigo que mantivera-se secreto através dos séculos para manter-se a salvo das perseguições
religiosas da Igreja. Segundo ele, teria sido iniciado na bruxaria e recebido “o conhecimento da arte” através de
um coven em New Forest, onde vivia com sua esposa.
111
O Mundo como Gênero
O Chuva Vernal
O coven existe há 11 anos na cidade de São Gonçalo e adjacências, área a que denominam
“Território Tamoio”, embora hoje em dia estenda suas atividades também para a cidade do
4
Membro efetivo, 32, professor de artes, separado, pai de 1 filha, maior articulador das atividades do coven.
112
Rio de Janeiro. Contrariando a tendência mais difundida na Wicca, ou seja, de grupos com
forte presença feminina, o Chuva Vernal começou como uma iniciativa de 5 jovens, 4 rapazes
e 1 moça, todos universitários e de classe média baixa. Tais jovens se encontravam
inicialmente num grupo de estudos sobre “cultura celta” que organizaram informalmente no
campus da UERJ em São Gonçalo.
Nos rituais do grupo, todavia, não apenas o coven e os aspirantes participam, mas também
pessoas convidadas que são estimadas e tenham algum interesse pela bruxaria. Seriam
“amigos do coven”. O sabá de Beltane -, um festival relacionado com sexualidade e
fertilidade – realizado em novembro de 2012, chegou a reunir 16 pessoas, tendo sido
convidadas mais de 20.
Conversei com estas pessoas principalmente nos sabás, mas também mantive contato com
eles pela internet, através de redes sociais. Cheguei mesmo a marcar reuniões informais em
minha casa, onde alguns vieram. Estes contatos me permitiram traçar um perfil de dados
gerais sobre o grupo e os que estão de certo modo relacionados aos seus eventos. Considerei
15 indivíduos, dentre membros permanentes do coven, aspirantes e amigos. Destes, todos têm
nível superior ou são universitários; todos estão na classe média, com o predomínio de
profissões relacionadas ao nível superior; 8 homens, 7 mulheres, sendo o grupo principal,
predominantemente masculino; nenhuma pessoa confessamente homossexual, embora uma
das amigas do coven se diga bissexual; 8 desses indivíduos têm filhos; 7 são casados ou
mantêm uniões estáveis; todos adultos, o mais jovem com 19 anos e o mais velho com 41.
Todos moram em ambiente urbano, a grande maioria de Niterói e São Gonçalo, embora o
grupo mantenha um curso numa sala alugada na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de
Janeiro.
O grupo gosta de se mobilizar por questões políticas, principalmente no que diz respeito a
bandeiras como defesa da pluralidade, Estado laico, ecologia e direito das minorias. Não há,
113
no entanto, uma unidade no que diz respeito a assumir um partido ou uma filosofia política
como dominante para o coven. Pude ver desde membros que se declaram anarquistas com
forte simpatia por alas radicais, como o Black Block, até indivíduos com certa carga de
discursos reacionários, apesar disso conseguindo conviver em aparente harmonia.
Apesar de sua trajetória como um grupo composto principalmente por homens, o Chuva
Vernal segue a tendência matrifocal do discurso central da Wicca. Quando perguntei a
Guaraucária5, se no Chuva Vernal não havia esta centralidade da mulher, mas sim uma
estrutura mais igualitária devido à própria história do coven, ele me respondeu que mesmo
entre eles, a mulher é o elemento central. Utilizou expressões como “homem no coven tem
que baixar a bola” e “nós gostamos de mulher guerreira, mulher que grita na cara, sem medo
de dizer verdades necessárias”. Inquiri-lhe então se ao afirmar estas coisas não estaria
legitimando a mesma estrutura opressora de gênero, operando apenas uma inversão de lados
do que historicamente ocorrera em nossa cultura. Seria o processo definido por Figueira
(1987) como “modernização reativa”, onde se reproduz a dominação de um sexo sobre o
outro. Guaraucária, porém, respondeu-me com a justificativa histórica de que a mulher “vem
sendo oprimida em todos esses anos de dominação judaico-cristã e que, portanto ela é o
desfavorecido da história, sua opressão nunca seria considerável frente ao que seria o
patriarcado”.
Guaraucária foi estudante de ciências sociais6 e tem uma boa leitura acadêmica nas áreas de
seu interesse. Hoje, segundo como ele próprio afirma, “tornou-se o índio”, expressão que ele
usa para dizer que prefere uma visão de mundo não-acadêmica por considerar esta algo muito
engessado, que não dá conta das diversas nuances da realidade, coisa que outros sistemas
5
Membro efetivo do coven, solteiro, 39 anos, professor da rede pública de São Gonçalo.
6
Segundo ele, fez todas as disciplinas exigidas, só não entregou a monografia, assim não concluindo o nível
superior.
114
referenciais a que tomou contato ao longo da vida, lhe possibilitaram. Declara-se
heterossexual e não apresenta nenhum dos sinais folclóricos do homossexual masculino, nem
sequer deixa dúvidas de sua heterossexualidade entre aqueles que o conhecem. Tem 39 anos e
apesar de não haver constituído família, é uma pessoa com histórico de muitos
relacionamentos. Ele se define como uma pessoa emotiva, não gosta da postura séria e sisuda
típica da representação que faz do chefe de família brasileiro tradicional. Na sua idealização
do que deveria ser o homem aparecem elementos como: espontaneidade, sensibilidade,
emotividade, engajamento. O homem ideal é representado em seu imaginário como
espontâneo, aberto aos sentimentos, dado a uma luta apaixonada por construir um mundo
mais justo, um tanto hedonista por não gostar de se prender a rigores morais e sempre
considerado no aspecto jovem. Tal aspecto estaria presente até mesmo na sua “invocação do
Deus” (o Sagrado Masculino), que é visto como “o eternamente jovem”, o “ousado”, “caçador
e caça”7, “gargalhada da floresta” (ele usa a palavra “matreiro”). Há um vídeo na internet8
onde o mesmo praticante faz uma “invocação do deus” numa performance na Quinta da Boa
Vista onde as palavras são praticamente as mesmas, com algumas adições. Estes adjetivos
parecem compor o que seria uma representação do masculino para este praticante e onde se
percebe que os atributos mais valorizados estão sempre relacionados à etapa de juventude da
vida. Segundo Trilhadovento, tais atributos são caros para todo o coven, embora não sejam os
únicos que descrevem o Deus.
Essa característica do homem wiccano já fora brevemente sugerida por Andréa Osório: “Os
homens que acompanharem as bruxas wiccanas, portanto, terão que ser homens pós-revolução
feminista” (OSÓRIO, 2004, p. 161). Quando perguntei a “Terra Molhada”9, sobre o que o
atraiu em sua religião, ele me revelou uma via menos politizada que a de Guaraucária.
Segundo ele, o “Chamado da Deusa” aconteceu na sua época de solteiro, no fim de sua
7
A expressão “caçador e caça” talvez seja um resquício de uma representação do masculino relacionada a um
elemento provedor.
8
Chuva Vernal – Mitodrama Caçada Selvagem. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=5Oi3TKuFA00>. Acesso em 8 ago. 2013.
9
Membro efetivo do Chuva Vernal, funcionário do Banco do Brasil e artista plástico, em união estável com uma
mulher há quase 10 anos e pai de um menino de 5.
115
adolescência. Ao que ele me disse, na época não era uma pessoa dada à religiosidade. Sua
mãe era protestante, seu pai não tinha religião e “nenhuma forma de espiritualidade”. Ele teve
acesso às religiões mais tradicionais do contexto brasileiro, notadamente o Cristianismo, mas
não conseguia ver nada de espiritual nelas. Conheceu a Wicca através de um amigo que por
sua vez conheceu através da internet e posteriormente de livros.
O papel da internet na difusão dessa religião não pode ser desconsiderado. Em todas as
trajetórias que analisei a grande maioria dos praticantes ganharam conhecimento sobre a
religião através da rede. E quanto mais se recua para os bruxos mais antigos, se percebe quase
sempre um indivíduo de classe média com domínio das ferramentas básicas da internet, leitor
fluente de inglês.
Este dado é relevante porque percebe-se que ele influenciou significativamente os rumos que
a religião tomou posteriormente no Brasil, à medida que compõe um elemento de classe.
Talvez em virtude de difundir-se entre classes com considerável nível de instrução, o
principal meio de difusão da bruxaria wiccana vem sendo livros escritos por praticantes mais
experientes e cujos anos de prática e capacidade de teorização e sistematização lhes confere
alguma autoridade, mas que nunca passa da ordem meramente intelectual, como um teólogo.
Argumento que este modo como se deu a difusão da religião foi fundamental para a
configuração de classe social mais presente nesta, a saber indivíduos de classe média, quase
sempre com elevado nível de instrução e com amplo uso cotidiano da informática. Este dado,
116
juntamente com a característica de pós-revolução feminista salientada por Osório, talvez
também ajude a compreender o tipo de homem que tomou contato com esta religião e o
quanto os círculos sociais freqüentados por este, influenciaram os principais conteúdos da
religião e o seu modo de difusão na sociedade brasileira. Max Weber (2009) já fazia esta
correlação entre o modo como a visão de mundo das camadas sociais responsáveis pela
difusão de uma religião influenciava os principais conteúdos da mesma e o modo como esta
se comporta.
Terra Molhada me explicou que quando conheceu a Wicca, os valores fundamentais daquela
religião não lhe eram novidade, mas que ele já era afeito àquela moral, adquirida
principalmente pelos livros e demais produções culturais que consumia – contracultura – bem
como os círculos sociais que freqüentava – Escola de Belas Artes da UFRJ. Quando tomou
contato com a Wicca o que aconteceu foi apenas “encontrar um caminho espiritual condizente
com o que ele era”. Desse modo, o que ocorreu com Terra Molhada foi um encontro com um
sistema de representações que sacralizava muitos dos seus pressupostos éticos, muitas
características de sua sensibilidade que não eram contempladas – ou talvez até marginalizadas
– pelas religiões dominantes no cenário brasileiro. A Wicca teria sido o único caminho
espiritual capaz de promover no seu caso um “encantamento do mundo”, pensando com as
categorias weberianas.
Usando a tipologia cunhada por Daniéle Hervieu-Léger (2008), o caso de Terra Molhada
parece, contudo atípico dentre a amostragem cujos dados se baseiam os argumentos dessa
pesquisa. Ele aproxima-se do tipo ideal do “convertido”, pois vivenciou uma mudança e
aderiu ao grupo de forma exclusiva. Era alguém que levava uma vida sem imersão em
nenhuma forma de religião, sem cultivo de nenhuma forma de espiritualidade, mas que em
determinado momento de sua vida, encontra uma religião e passa a limpo sua história pessoal,
recontando sua trajetória dessa vez a partir dos elementos oriundos do sistema de crenças ao
qual escolheu pertencer. A maioria dos praticantes, contudo, parece identificar-se muito mais
com o tipo ideal do “peregrino”, um indivíduo cuja religiosidade é marcada principalmente
pelo movimento, pelo trânsito entre diversas religiões e crenças que compõem o que aparece
como o elemento fundamental de sua religiosidade: a busca.
117
Champion (1990) denominou “nebulosa místico-esotérica”, com fortes influências do
universo Nova Era. As práticas identificadas por Elisete Schwade (2006a), tais como artes
divinatórias (tarô, runas e quiromancia), “cultura psi”10, holismo terapêutico, cultivo da
interioridade, construção de uma nova visão ecológica do mundo (a chamada “ecologia
profunda”), conforme identificou Colin Campbell no seu artigo “A Orientalização do
Ocidente” (1997). O Espiritismo, contudo, aparece com freqüência como religião presente na
família dos praticantes, em geral, uma mãe, um pai ou um irmão, de modo que já se tem
contato com crenças como reencarnação, carma, chakras, centros vitais, bem como um certo
apreço pela ciência como discurso legitimador de conhecimento, já no seio familiar.
O que se percebe como um elemento comum a todos os homens com os quais conversei é
uma cultura de convívio com um contexto de ampla diversidade religiosa, seja na família
como nos círculos em que freqüentam. Paralelo a isto há também uma cultura que estimula o
papel do indivíduo como elemento de agência, crítico da realidade em que está inserido e
elemento de transformação da mesma.
Esta “visão crítica” é adquirida pelos meios mais diversos ao longo da vida. Não
necessariamente através do estudo ou de algum tipo de literatura, mas também pelos grupos
de amigos na adolescência onde se cultivava determinado gosto musical – geralmente ligado
ao mundo do rock – ou mesmo através de produções ficcionais do cinema e da televisão.
Diana Paxson, ela mesma pagã, que escreve sobre o Asatru, religião pagã com características
sociais muito semelhantes as da Wicca afirma:
Quando me deparei pela primeira vez com o Asatrú, na década de 60, o seguidor típico dos
deuses nórdicos era um jovem solteiro cujas idéias sobre religião teriam sido formadas, ao
menos em parte, pela leitura de ‘Conan’ e ‘O Senhor dos Anéis’ (PAXSON, 2009, 181).
Esta afirmação de Paxon sobre o Asatrú coincide com o que Terra Molhada diz sobre a
sensibilidade estética que lhe foi fundamental para a “escolha da Wicca” como religião.
Segundo o bruxo, desde a infância fora aficcionado por literatura de fantasia, jogos de
representação (RPG), seriados e filmes com esta temática. Embora filho de pais que
10
Uma determinada linguagem psicanalítica que extrapolou o universo da clínica e passou a fazer parte da
cultura de segmentos médios urbanos. Ver Figueira (1985, apud Maluf, 1996).
118
permaneceram casados durante toda sua infância e adolescência, estes nunca foram muito
atentos a seus dilemas pessoais e seu pai não foi uma figura muito presente na construção de
seus valores morais e visão de mundo. Desse modo, Terra Molhada adquiriu boa parte de sua
sensibilidade e de seus valores morais a partir das produções culturais que consumia.
Andréa Osório havia observado este aspecto na construção da identidade feminina nas bruxas
com as quais conversou. Para a autora “é possível enxergar a identidade da bruxa tanto como
fruto da modernização quanto como um recurso à tradição” (2004, p. 166). As bruxas não
abrem mão das conquistas da mulher moderna, tais como a independência financeira, a
conquista do mercado de trabalho e a construção de sua identidade não mais vinculada
exclusivamente aos papéis tradicionais de esposa e mãe. No entanto, também recusam o que a
autora considerou como a condição da mulher pós-moderna de pautar sua identidade apenas
pelas conquistas profissionais. O que as bruxas que Osório estudou fazem é operar uma
inversão valorativa dos papéis tradicionais da mulher buscando resgatá-los e torná-los parte
da vida da mulher de hoje. Desse modo, do mesmo jeito que conquistou o mercado de
trabalho e sua independência financeira, a bruxa, enquanto mulher moderna, mas que opera
uma releitura da tradição, é também esposa, mãe, curandeira, afeita à arte culinária, à
divinação e à dedicação ao lar, sem hierarquia de valores entre o que é moderno e o que é
tradicional. É a família, a interioridade e a harmonia com o meio que são privilegiados em
detrimento do mundo do trabalho, domínio historicamente masculino. O trabalho, embora
indispensável, deixa de ser visto como a realização da mulher, para ser apenas uma das
119
facetas de sua vida, uma das inúmeras possibilidades que tem diante de si. Contudo, conforme
afirma Osório, “não há um retorno à tradição, mas uma utilização moderna desta” (2004, p.
166).
Fenômeno semelhante ocorre com os homens, no entanto não no sentido de buscar resgatar os
papéis tradicionais. O que ocorre é que o sistema de valores que mencionei acima passa a
figurar como um projeto de mundo; um ponto de partida através do qual se pode recusar uma
realidade social, que é criticada e vista como injusta, em prol da construção de uma sociedade
mais justa e igualitária fundamentada nos valores da religião em questão. Esses homens não
se sentem sendo roubados ou perdendo o papel de preponderância na sociedade, mas sim
como construtores de uma nova sociedade. Ao que pude observar no discurso sobre gênero do
Chuva Vernal, os papéis tradicionais reservados ao homem não lhes figuram como
interessantes. A vida dedicada apenas ao trabalho; a ideia de chefe da casa – que para
Guaraucária, por exemplo, é o mesmo que um homem que vê a família como sua propriedade;
a ideia de submeter a natureza, conquistá-la e explorá-la; o casamento da sociedade
tradicional, visto como hipócrita e negador das emoções; a distância para com os filhos, cujo
cuidado é sempre deixado para as mulheres, todos esses aspectos fazem parte da
representação do masculino tradicional que é visto como fundamento de um mundo de
injustiças.
Em lugar deste, ao que se pode perceber na visão desses praticantes, vem a proposta de
mundo de sua “religião matrifocal”, centrada na Terra, que concebe a felicidade do homem na
harmonia com a natureza e na vivência comunitária com a família e “com o clã” (o coven e os
que lhe são próximos). A ideia de uma felicidade como resultado apenas de conquistas
financeiras seria responsável pela crise que a humanidade enfrenta e é este modelo que a visão
de mundo do coven parece recusar.
Este modo de construção da identidade atrelado à construção de um mundo à parte que recusa
e contesta a sociedade dominante, se adéqua perfeitamente ao conceito de identidade de
projeto, apresentado por Manuel Castells em O Poder da Identidade:
120
Isto é o que faz o bruxo wiccano. Embora na Wicca o homem não ocupe o mesmo lugar de
preponderância do passado, através dela este homem pode recusar os papéis tradicionais que
não lhe são mais interessantes em prol de uma identidade que não mais vincule a
masculinidade a papéis de dominação, à violência e a conquistas materiais, o que conflita com
seus sistemas de valores previamente adquiridos à aceitação da Wicca como religião.
A Wicca também possibilita que esses homens, cujos gostos e sensibilidade bastante
diferentes dos de seus colegas de trabalho, irmãos e vizinhos, encontre outros que pensem
como ele e comunguem de uma comunidade onde encontrem pares que professam os mesmos
valores, saindo assim de uma situação de isolamento. O praticante “Coruja”11, chegou mesmo
a afirmar uma vez em conversa comigo que, embora goste de cultivar a magia a seu próprio
modo e ter adquirido a maior parte de seus conhecimentos em buscas solitárias, não abre mão
de fazer parte de um coven. Percebe-se o quanto a dimensão comunitária é importante para
este praticante. Segundo ele, sempre foi “diferente dos outros na escola e, por gostar de
estudar, sempre fora mal compreendido”; não possui um bom relacionamento com seus pais e
irmão, com os quais ainda mora junto, nem convive muito com seus vizinhos. Coruja não se
interessa por futebol, funk e pagode, segundo ele “os principais assuntos da maioria dos
rapazes da sua idade”, o que o tornaria uma pessoa sem muitos amigos. No coven, ele estaria
entre seus iguais. Ali todas as suas leituras, todo seu estudo teriam importância para alguém;
ali a pessoa que ele era seria valorizada por outros que ele considerava semelhantes.
Considerações finais
O que as conversas com os membros do Chuva Vernal e outros bruxos relacionados ao coven
permitiram concluir é que a identidade masculina na Wicca está diretamente relacionada a
uma identidade de projeto, à vinculação com um sistema de ideias que permite criticar a
realidade social e construir outro mundo baseado nos valores de sua comunidade. Está
diretamente ligada a um elemento de agência.
Como sugeriu Andréa Osório, o bruxo wiccano “é um homem pós-revolução feminista”. Para
ele o mundo do trabalho não é mais importante que a esfera doméstica, da qual é motivado a
participar ativamente junto com sua mulher. Até mesmo é convidado a ver a presença do
sagrado nestes aspectos da vida: o cuidado com os filhos, o ato de cozinhar, de preparar
11
Aspirante ao coven, 23 anos, solteiro, estudante universitário.
121
remédios e, mesmo o trabalho, é valorizado principalmente enquanto atividade provedora da
família e não apenas como sinal de distinção e poder.
O que atrai esses homens para o projeto de mundo wiccano, matrifocal e onde eles perderiam
o domínio da família e deixariam de ser o centro do universo social, é que tal projeto de
mundo é portador de outros valores morais que lhes são mais caros. Mais valiosos do que a
vida reservada pela sociedade ao modelo tradicional de homem, modelo este que não mais se
lhes figura como interessante. Poder-se-ia dizer aqui que o feminismo subjacente à Wicca não
lhes aparece como libertador apenas para a mulher, mas também para o homem, à medida que
o libera de exigências e imposições que lhes sufocavam a sensibilidade e se colocavam como
obstáculos a sua felicidade. As concepções de homem que esses bruxos veem como
antiquadas, como não cultivar sentimentos, ter as emoções endurecidas; primar pelo racional e
desprezar o emocional; banalizar o sexo como instrumento de mera diversão, fuga da
realidade ou objeto de demonização; a obrigação de dominar a mulher, tais concepções não
são atraentes para os bruxos com os quais conversei.
Em lugar disso, preferem uma vida onde não se sintam obrigados a seguir estes padrões. Onde
possam cultivar um hedonismo que não lhes seria possível na sociedade que criticam, seja por
causa da demonização dos prazeres, seja pelo uso dos prazeres como algo viciante, elemento
de fuga da realidade, todos estes aspectos que seriam negativos na visão wiccana. O
hedonismo desses homens se aproximaria mais de uma forma de epicurismo moderno, ou
seja, não se trataria de uma vida de vícios e libertinagens, mas sim de uma ressignificação do
prazer. O bruxo pode consumir bebidas alcoólicas em seus rituais e apreciá-las tanto quanto o
faz com as inúmeras iguarias de suas refeições em comum; vê o sexo com outra carga
valorativa que sacraliza não só a reprodução, mas também o desejo, podendo o sexo até ser
parte de rituais de iniciação ou de celebrações como o Festival de Beltane, relacionado ao
amor sexual e à fertilidade; pode usar a magia, uma força acima de qualquer moral, embora
seja motivado a não praticar o mal.
122
Por se difundir principalmente através do uso da internet, a Wicca oferece a pessoas
anteriormente solitárias por conta de seus valores, uma comunidade de indivíduos que
professam valores fundamentais semelhantes, inserindo-os num grupo onde podem desfrutar
do suprimento de afeto oriundo deste.
A opção desses homens pela Wicca é a escolha por um sistema simbólico que lhes permite
criticar a cultura e por uma comunidade onde seu estilo de vida, escolhas, ideologias e valores
encontram não só aceitação, mas fundamentação no sagrado. Ser bruxo seria sentir-se, de
certo modo, um revolucionário dos costumes.
Referências
CAMPBELL, Colin. A Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para
um novo milênio. Religião e Sociedade, nº 18, p. 5-23, 1997.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
OSÓRIO, Andréa. Bruxas Modernas: um estudo sobre identidade feminina entre praticantes
de wicca. Campos, 5(2), p. 157-172, 2004
PAXSON, Diana L. Asatrú: um guia essencial para o paganismo nórdico. São Paulo:
Pensamento, 2009.
123
SCHWADE, Elisete. Neo-esoterismo no Brasil: Dinâmica de um Campo de Estudos. BIB, nº
61, São Paulo, p. 5-24, 2006.
WEBER, Max. Psicologia Social das Religiões Mundiais. Ensaios de Sociologia. Rio de
Janeiro: LTC, 1982.
Internet
124
125
A Wicca no Recife: uma história
Introdução
Fizemos entrevistas com duas ex-ativistas wiccanas, e com uma ativista que começou como
Wicca e depois passou a se denominar apenas neopagã. Está última é Tara3, coordenadora do
Encontro Social Pagão4 de Pernambuco - ESP-PE, representante no Recife do Círculo
1
Graduada em História e mestre em Ciências da Religião pela UNICAP. Professora de Filosofia e Ética,
Sociologia, e Metodologia Científica na Faculdade Joaquim Nabuco. Integrante do GP "Religiões, Identidades e
Diálogos", da UNICAP. Contato: karina@cliografia.com.
2
O presente trabalho é fruto de pesquisa de mestrado desenvolvida no ano de 2011. Portanto todos os dados
referem-se até o ano de 2011.
3
Os nomes apresentados correspondem ao nome pagão das entrevistadas e não aos seus nomes civis.
4
O Encontro Social Pagão surgiu no Rio de Janeiro em 2003. O ESP é um evento gratuito, com a finalidade de
promover a união e desmistificação do paganismo, sendo aberto a qualquer um que deseje conhecer o
126
Sagrado de Visões Femininas – CSVF, e organizadora da Federação Pagã Internacional em
Pernambuco (Todos na época da entrevista). As ex-ativistas wiccanas são: Atalanta, ex-
coordenadora da Associação Brasileira da Arte e Filosofia da Religião Wicca - Abrawicca-
PE; e Khalijnka também ex- coordenadora da Abrawicca5-PE. O material colhido foi rico,
visto que os wiccanos deixaram pouquíssimos relatos escritos (antes da disseminação dos
sites na internet) sobre as atividades do movimento no Recife. E como nossas entrevistadas
também foram inquiridas com as mesmas perguntas dos questionários, suas réplicas serviram
intensamente para exemplificar as respostas dos questionários.
Neste trabalho citamos as duas mais importantes organizações neopagãs na história da Wicca
no Recife: a Abrawicca-PE e o ESP-PE. A primeira surgiu em 2001 quando Khalijkha
escreveu para os pernambucanos cadastrados no site da Abrawicca e os convidou para uma
reunião em sua casa. Ela disse que “as pessoas foram meio desconfiadas, mas, a partir daí
surgiu então o primeiro grupo”. Em 2004 a organização muda, tornando-se a organizadora
Atalanta, que deixa o cargo em 2007 devido a sobrecarga de tarefas em sua vida pessoal, tal
como trabalho, estudos e filhos. Desde então não houve mais atuação da associação no Recife.
A outra organização o ESP-PE teve início em 2003, mudou algumas vezes de organização, e
permaneceu com suas atividades até o momento de finalização de nossa pesquisa, em 2011.
Como aporte teórico para a pesquisa usamos o conceito de escolha racional, desenvolvido na
sociologia da religião de Stark e Bainbridge.
Para contarmos a pequena história da Wicca no Recife, vamos começar pelo perfil dos
adeptos, desenvolvido à partir dos questionários. Os praticantes da Wicca no Recife, em sua
maioria, possuem ou estão cursando o Ensino Superior, estão na faixa etária entre 21 e 30
anos e praticam a Wicca entre 2 e 9 anos. Para Rodney Stark (2006, p. 51).
paganismo, independente de credo, posição social, idade, cor ou orientação sexual. Possui caráter social, sem
nenhum tipo de atividade ritualística, ou pretensão de formar covens ou círculos. (O QUE É O ESP, 2011).
5
A Abrawicca surgiu em 1998, com o projeto de ser “uma associação que representasse e atendesse aos anseios
dos bruxos brasileiros, centrando sua preocupação em defesa jurídica e institucional contra o preconceito”
(CERIDWEN, 2011).
127
público. Desse modo, devem conquistar sua audiência entre indivíduos socialmente bem
estabelecidos e detentores de privilégios (STARK, 2006, p. 51).
Stark (2006, p. 55-56) ainda mostra uma tabela, com base na Pesquisa Nacional de
Identificação Religiosa de 1989-1990, feita nos EUA, e revela que os movimentos cúlticos
são os com maior percentual de membros que frequentaram faculdade. A Wicca se encontra
nessa tabela com um percentual de 83%. Essa taxa não se diferenciou muito da nossa, nossos
questionários nos mostraram, 41% com ensino superior completo e 35% estão cursando, ou seja,
76%.
Então, sob a análise de Stark, nossos pesquisados são socialmente bem estabelecidos. No
Brasil, antes da popularização da Wicca, que ocorreu em a partir de 2001, sem dúvida seus
praticantes eram do grupo dos socialmente bem estabelecidos. A leitura de livros e sites
(sendo a maioria em inglês) só era possível para essa parcela da população. No entanto, a
chegada de revistinhas em bancas de revistas com o tema Wicca, filmes de Hollywood como
Harry Potter e logo depois a crescente popularização da internet, pluralizou o perfil dos
wiccanos. Por isso, não arriscamos dizer que o perfil dos wiccanos recifenses é aquele. Apesar
do estudo e leitura terem sido fortes nas repostas, pelas nossas visitas aos encontros e grupos,
e mesmo por depoimentos como o furto de livros, não consideramos os adeptos como
detentores de privilégios econômicos.
Para confirmar nossa teoria da primeira geração da Wicca como privilegiadas, citamos os
perfis de nossas entrevistadas. Khalijnka possui 49 anos, conheceu a Wicca em seu primeiro
momento - no início da década de 1990- e é doutora em Ciências Socias. Atalanta, com idade
entre 30 e poucos anos, conheceu-a na segunda metade da década de 1990, e é psicóloga com
especialização. E nossa entrevistada mais jovem Tara, com 25 anos, conheceu-a um pouco
antes do momento de popularização, e é conciliadora jurídica.
O gráfico abaixo apresenta a porcentagem à esquerda, e o tempo de prática abaixo. Por esse
último, conclui-se que a maior parte dos recifenses conheceram a Wicca pós-ano 2002, depois
da sua popularização. E pertinentemente, os altos e baixos do gráfico coincidiu com as
atividades da Abrawicca-PE. Em 2001 foi criada, em 2004 mudou a coordenação. Em 2005
eram realizados rituais abertos, e no final de 2007, as suas atividades se encerram. Em 2010,
128
aumentam as discussões entre os membros sobre a Wicca no Brasil, por conta da criação da
IBWB6. E em 2011, o ESP-PE renova seu quadro de organizadores.
Outra análise do perfil de nossos pesquisados foi em relação a laços familiares, ou seja, estado
civil e filhos. Os resultados foram quase absolutos: os wiccanos são solteiros (87,5%) e não
possuem filhos (90%). Os sem vínculo formal somaram (7,5%). Esses dados nos mostram que
os wiccanos no Recife são pessoas, diga-se “cuidadosas” quanto à constituição familiar.
Fazendo um cruzamento das idades específicas dos que agregam a categoria 21-30 anos, e o
tempo de prática dos mesmos, descobrimos que dos 22, apenas 03 conheceram a Wicca com
21 anos, e 01 com 24. Todos os outros conheceram com menos de 20 anos. Então, somando
esses 18, mais os 08 da categoria de 11-20 anos, concluiu-se que 26 pessoas, ou seja, (65%)
conheceram a Wicca com menos de 20 anos, significando que eram adolescentes. E desses
que conheceram adolescentes, 11: (27,5%) conheceram a Wicca entre 2002-2005, na sua
popularização. Os outros 10% que completam o percentual dos ingressos nessa época, ou seja,
as outras 04 pessoas, estão nas outras idades: 03 entre 21-30 anos, e 01 com mais de 50 anos –
e todos com superior completo. Dessa forma, vemos que a popularização não só atraiu
adolescentes. E que a entrada dos adeptos se deu, na maioria, na adolescência.
6
Igreja de Bruxaria e Wicca do Brasil
7
Respostas múltiplas
129
O resultado dessa questão nos surpreendeu um pouco, pois o primeiro contato, se deu por
livros (47,5%) e amigos (42,5%). Achava-se que a internet se destacaria mais. De acordo com
RUSSEL e ALEXANDER (2008, p. 190), no século XXI, a internet é um dos principais
veículos de informação para se estabelecer o primeiro contato com a Wicca. No Recife os
livros e os amigos predominaram, corroborando a teoria de Stark (2008, p.30) “do
crescimento por intermédio de redes sociais, por meio de uma estrutura de vínculos
interpessoais e diretos”. O processo de adesão na Wicca aqui predominou do mesmo modo
que nos seus primórdios na Inglaterra.
Houve marcações com mais de uma resposta, onde o item internet foi marcado em sua
maioria junto ao item livros, no entanto, o item mais votado sozinho foi Livros (20%),
seguido de Amigos (15%). A internet só foi marcada isoladamente por duas pessoas, uma
com 06 anos, e a outra com 01 ano de pertencimento.
A praticante com 20 anos de participação na Wicca, que é nossa entrevistada, teve seu
primeiro contato exclusivamente por livros. Naqueles que têm de 10-13 anos predominaram
os livros, apareceu a internet, e não houve contato com membros ou revista. Os com 6-9 anos,
correspondendo aos anos de 2002-2005, os livros e amigos ainda são maiores, mas aparecem
os membros, revistas, e televisão. Justamente coincidindo com a venda da revista Wicca, e
com a criação da Abrawicca-PE, e de dois grupos de Wicca no Recife. Também, em 2003
evidenciou-se nas feiras de ciências das escolas no Recife, o tema Wicca. Os com 2-5 anos, os
membros ultrapassam os amigos, a internet aumentou, mas os livros continuam liderando. Os
com 01 ano ou menos, que correspondem ao ano de 2010-2011, os amigos lideraram,
seguidos pela internet.
Observamos que o suposto papel da Abrawicca-PE que delineamos no tópico perfil, pode ter
contribuído na disseminação das informações que chegaram por amigos, em seu tempo de
atuação. Mas o que predominou como revelador da Wicca foram os livros. Contudo a
amostragem do ano 2010-2011, pode revelar uma nova tendência, para nova década.
Eu conheci a Wicca através de uma amiga de escola, ela praticava a religião e ai comecei a
procurar livros, essas coisas, sozinha. A pesquisa foi feita sozinha assim, não foi por
indicação de ninguém não. [...] Achei a temática em livros, ganhei alguns livros e fui
130
pesquisando. [...] Foram os livros de Gardner acho que todo mundo já leu, e alguns livros
de Claudiney Pietro só, assim o começo foi isso mesmo.
Quando a Wicca começou a aparecer na imprensa, está a chamou de várias formas, fé das
bruxas, culto pagão da Bruxaria, menos como os próprios wiccanos a denominavam, “uma
religião nobre aplicável à vida do século XX” ou mais comumente “a Arte” ou a “Antiga
Religião” (BEZERRA, 2010, p.5).
Hoje em dia, o termo religião, na maioria das referências à Wicca, precede-a. Na prática os
resultados da nossa pesquisa evidenciaram de forma esmagadora que o ingresso e a
permanência dos adeptos são norteados pelo elemento religioso.
Quais elementos da Wicca que atraíram seus adeptos? (82,5%) dos nossos pesquisados
responderam o culto a natureza e (60%) a magia. Sobre os elementos que motivaram a
permanência no primeiro ano e hoje em dia, foram marcados os mesmos: Era (é) a religião
que mais se encaixava no meu modo de pensar (82,5 %), e Os rituais faziam- me (fazem-me)
religar com a divindade (67,5 %). Em resumo, isso significa que os wiccanos: cultuam a
natureza, que é a divindade, em ritos mágicos para a religação com os deuses. Tudo isso da
maneira que eles acreditam ser a melhor.
Na entrevista de Tara é evidente a presença das palavras paganismo e culto à natureza. Sobre
a atração inicial que ela teve pela Wicca, diz: “Primeiramente me atraiu o fato, não é que me
atraiu, sempre ouvia assim, sentia que meu caminho era pagão. [...] Foi realmente o culto a
8
Respostas múltiplas
131
natureza assim, a ideia que a natureza era sagrada e que todas as coisas são sagradas.” Sobre
sua permanência no primeiro ano ela diz:
Bom eu gostava muito dos rituais, assim, porque eu sentia, me sentia realmente, me
conectando com algo sagrado, algo divino, algo acima de mim e eu sentia que a divindade,
ela não vinha de fora para dentro, e sim de dentro pra fora, e eu me sentia mais viva, assim,
parecia que eu estava fazendo alguma coisa que realmente estava mudando o universo, e
não rezas programadas que todo mundo decora pra poder rezar entendeu? Mais ou menos
isso, bem eu gostava de fazer parte de uma religião pagã, porque foi aquilo que eu busquei,
eu estudei varias religiões, eu estudei varias coisas. Frequentei alguns lugares pra poder
tomar minha decisão, então aquela era minha decisão, basicamente isso.
Sobre a motivação de hoje, para permanecer Tara reproduz novamente o pensamento sobre a
sacralidade no paganismo.
Já Atalanta foi mais plural em suas respostas. Ela, no começo, apenas citou a divindade
feminina, e seguiu dissertando sobre o pensamento wiccano de que “as ações que você faz,
você é responsável”. Mas ao mesmo tempo em que isso apareceu como uma atração, por
admiração a esse modo de pensar, foi revelado mais na frente como uma dificuldade para pôr
em prática. Então, ela disse: “Agora tentando lembrar o porquê que eu segui, foi de cara, foi,
porque assim tudo que eu me interessava, cristais, é incensos, é leitura de áurea, leitura de
mão.” Então perguntamos: elementos do esoterismo? E ela prontamente respondeu:
Isso! tudo que era elementos do esoterismo tinha uma consonância né. Vamos lá, desde os
09 anos eu me interessava por isso e passava por um conflito muito grande porque eu tava
inserida na religião católica né, e isso era visto, muito mau visto, e mesmo assim eu não
conseguia deixar [...] Tinha uma época que eu tava tão assim, sei lá, que eu oraculava até
com dados de jogos, eu conseguia oracular sabe, era de eu pegar qualquer coisa e conseguir
oracular. Agora nem tanto, que depois passa um pouquinho, era como que o negócio tivesse
fervendo sabe.
Cara, eu não consigo imaginar sem ter isso, sem ter esse contato com a Deusa, sem ter esse
contato sabe com o divino feminino, com a ideia do pagão mesmo, do ligado a terra, poder
trabalhar isso, o trabalho com os elementais, trabalho com os dragões, trabalho com os
animais de poder. Eu não consigo me imaginar não tendo isso, é como perder um braço,
perder...um sentido mesmo.
132
Khalijnka, na sua entrevista, deixa muito clara a presença do “chamado da Deusa/uma vez
brux@, sempre brux@”, e o “contato com povos antigos”.
Eu acho que o que me atraiu na Wicca foi o resgate de um modo de vida antigo. Como
outras pessoas, muita gente chega na bruxaria com esse sentimento de voltar a casa. Eu
tenho pra mim que todas as pessoas que chegam na bruxaria, já foram bruxos sem dúvida, e
essa foi a experiência que a alma delas mais sente a necessidade. Então elas vão buscar isso
o tempo inteiro. Então, pra mim...é...pra mim é...a presença dos deuses antigos!
A maioria (63%) das pessoas não estava querendo encontrar uma religião e já tinha uma
religião antes de conhecer a Wicca (72%). A seguir com o intuito de pormenorizar a análise
trabalharemos com números cardinais.
Rodney Stark diz sobre o processo de conversão o seguinte: Algumas vezes, existe profundo
descontentamento com a fé convencional entre os mais privilegiados (2006, p. 51) ou “o
buscador religioso procura ativamente uma nova filiação religiosa, busca compensadores que
substituam as explicações específicas de sua igreja que foram desacreditadas” (2008, p. 284).
eu comecei a estudar a Wicca com 11 anos, com 13 anos eu saí da religião católica. Eu fui
excomungada mesmo da igreja. [...] eu fui excomungada, teve uma, por que assim, eu
gostava muito de metal essas coisas, me vestia toda dark, ai teve um episódio que o padre
me excomungou da igreja, porque eu fui com uma blusa de Marilyn Maison pra igreja, ai
ele realmente me expulsou da igreja. [...] disse que eu era a imagem do demônio, [risos]
133
dentro da igreja, e que eu me retirasse.[...] Ai eu fiz a pergunta a ele: eu pensei que a casa
de Deus qualquer uma pessoa poderia entrar. E ai foi quando começou toda minha
discussão interior. Eu já discutia alguns aspectos da igreja, assim, coisas que, por exemplo,
Jesus ser judeu ortodoxo e nunca ter sido casado, tipo não rola entendeu? Mas ai piorou
depois disso, ai eu comecei a rebater mais. [...] Tem pessoas que buscam, por exemplo, com
11 anos normalmente você ia querer o que? Um namoradinho né? O primeiro amor, aquelas
coisas todas. Eu, eu não tava nem aí pra isso, eu tava querendo, parecia que eu tinha que me
livrar da igreja católica assim, eu me sentia muito reprimida, me sentia muito mal, tinha
alguma coisa errada naquilo tudo, eu era muito nova pra entender, mas mesmo assim, eu
sentia aquela força me, meio que me expurgando dali sabe? Tipo sai que esse não é o teu
caminho, teu caminho é outro, vai procurar teu caminho. Mais ou menos assim [risos].
Dizer ser de uma religião, e não querer encontrar uma, também não indica o compromisso
religioso do fiel. Por exemplo, nossa entrevistada Atalanta diz que: “Fazia alguns anos que
não ia pra missa sabe. Na verdade, eu nunca me senti bem, ia quando era pequena, tinha que ir
obrigada e tal. Então, mas assim, rezava e tal aquelas coisas toda, mas meio solta.” Mas
mesmo com esse descaso para sua religião, ela diz que não estava procurando nenhuma
religião. Então foi trabalhar na Alemdalenda9, começou a ler os livros de bruxaria,
identificou-se bastante, e logo se iniciou. Essa experiência retrata a defesa de Rodney Stark
por um mercado desregulado, ou seja, pluralista, pois nele, acontece o fortalecimento da
economia religiosa, cujos níveis de compromisso religioso irão aumentar.
Serão analisados agora Sem religião. Rodney Stark propõe (2006, p.49, 50) que “o ceticismo
religioso predomina com maior intensidade entre indivíduos mais privilegiados.”. E que
aquele grupo constitui o que tem “maior probabilidade de manifestar interesse pela crença em
doutrinas místicas, mágicas e religiosas não convencionais.” Duas das explicações que ele dá
para esse fenômeno são: nas classificações de adeptos a novos movimentos religiosos,
9
Loja brasileira que oferece produtos esotéricos e ligados às tradições pagãs.
134
predominam os que se declararam antes Sem religião; E a conversão para uma nova religião,
implica o interesse e a capacidade de dominar uma nova cultura. Em nossa pesquisa, não
predominou os Sem religião, como vimos, esses foram 11 pessoas. Mas desses os que não
estavam procurando religião foram 08, ou seja, a maioria. Essa última percentagem poderia
dizer ser dos mais céticos. Então, para confirmar a teoria de Stark, de que ser cético é mais a
falta de convicção em uma marca tradicional de fé, do que ser fundamentalmente humanista
secular (2006, p. 50); e mostrar que uma pessoa não interessada mais em religião, pode se
interessar pela Wicca, será citada a experiência da nossa entrevistada Khalijnka. Ela não
estava em busca, e nem tinha uma religião quando conheceu a Wicca, mas já tinha passado
por diversas religiões. Ela diz que:
Eu já tinha passado por “N” religiões, eu fui bem católica na adolescência, depois eu
conheci uma coisa que você não conhece porque não é do seu tempo, chamado “Meninos
de Deus” [...] Fui pra Seicho-no-ie. Enfim né, houve uma aproximação, mas houve também
um.. não é. Então eu não tava mais procurando nenhuma religião, até porque eu tinha uma
chamada marxismo [risos][...]era uma curiosidade que não tinha sido satisfeita,
basicamente. Não estava em busca não.
Dificuldades10
As dificuldades iniciais mais marcadas foram: Minha família não aceitava (37,5%), Não tinha
dinheiro para comprar livro (35%) e Não conhecia ninguém da religião (32,5%). E as
dificuldades ao longo da permanência foram: Não ter um local adequado para praticar os
rituais (68,57%), Pré-conceito da família (45,71%) e Pré-conceito da sociedade em relação a
minha escolha (45,71%). Antes de examinar, destacamos que as dificuldades iniciais tiveram
frequência muito baixa, não sendo representativas.
A dificuldade inicial com relação aos pais permanece e aumenta, mas ainda é menos do que a
metade. Sobre isso, das nossas entrevistadas, Atalanta e Tara sofreram com esse problema.
Tara diz que:
aconteceu [de] minha mãe jogar todos meus livros fora, queimou meu livro das sombras, ai
já aconteceu umas coisas assim meio, jogou objetos meus do altar. [...] Ela me mandou pra
um psiquiatra, eu fiz uma seção lá com ele [risos] foi uma resenha [risos]. E depois eu fiz
terapia durante 4 anos, ela pensou que eu ia mudar, mas não adiantou [risos].[...] Meu pai
10
Respostas múltiplas.
135
não, ele é muito mente aberta, ele sempre apoiou, ele diz que não entende, mas apoia
[risos]. Mas assim, a minha mãe ela acha, ela finge que eu não sou mais isso entendeu, na
cabeça dela ela finge que já passou. E eu faço as coisas sem entrar em choque assim com
ela, sempre que tem alguma coisa eu nunca falo, se tem um ritual, eu não digo: eu vou pra
ritual. Eu falo qualquer outra coisa, que é pra não chocar entendeu.
Com relação a Atalanta, sua mãe, que é lituana, quando recebeu a noticia disse: “é então eu
tenho uma coisa pra te dar. Ai pegou o caldeirão lá dentro, o caldeirão da minha bisavó né, e
disse então isso aqui é seu e eu vou fazer sua manta”. Ou seja, Atalanta descobriu que sua
bisavó era bruxa. O problema para Atalanta foi que ela morava com tias da parte do pai, que
tinham preconceito. Ela diz que foi uma dificuldade ela própria se aceitar, por conta disso, e
explica:
Uma dificuldade que antes existia, mas que cresceu com o passar dos anos, igualando-se com
a dificuldade dos pais, foi o preconceito da sociedade. Khalijnka diz nunca ter sofrido, e
Atalanta sofreu principalmente com relação a emprego. Tara sofreu bastante nos primeiros
anos, mas conta que melhorou bastante hoje em dia. Ela diz:
Me chamavam de macumbeira, de bruxa, de sei lá, de tanta coisa, ate aquela mãe Diná que
na época tava na moda todo mundo ouvia falar mãe Diná, me chamavam de mãe Diná. Me
tacaram pedra na rua[...] Na escola todo mundo parou de falar comigo, eu fiquei sozinha
assim, o povo passava por mim ficava meio abrindo caminho pra eu passar, [risos] [...] E no
trabalho eu nunca tive problema assim, eu sempre uso meu pentagrama, ninguém nunca
pediu pra eu tirar, nem nada do tipo, porque eu já ouvir muita história disso, mas comigo
não. E todo mundo adora ter uma bruxa por perto, porque qualquer coisa me pergunta, quer
que eu leia o tarô, quer que eu leia a mão. Você é meio uma atração no local de trabalho.
136
Prática em grupo ou solitária
A questão sobre o tema acima, não foi de múltipla escolha, e foi respondida por 35 pessoas11.
Então a frequência mais marcada de uma opção, não foi interessante para análise. Decidimos
então trabalhar com número cardinal. 26 pessoas marcaram opções em que houve, em algum
momento, participação em grupos. Dessa forma, é mais uma vez corroborado que a maioria
dos praticantes não teve problemas de contato com outros membros. Desses, 10 foram
solitários, mas depois participaram de grupos e, por vezes, voltam a ser solitários, 06 foram
solitários, depois interagiram com outros membros pela internet, e em grupos, 06 sempre
tiveram grupos, e 04 foram solitários mas depois participaram de grupos e discussões na
internet e por vezes voltam a ser solitários.
Dos 09 solitários, apenas 03 não tiveram interação com outros membros, 03 interagiram com
outros membros pela internet, e 03 interagiram com outros membros pela internet e
pessoalmente. Ou seja, a maioria desses que nunca participou de grupos, interagiu com outros
membros pela internet, e um terço teve contato pessoalmente.
Sobre a iniciação
11
Pois dos 40 pesquisados, foram 35 que tiveram mais de um ano na religião, portanto aptos para responder
sobre a trajetória ou permanência na Wicca.
137
Dos nossos pesquisados, a maioria, (65,7%), fez iniciação. Dos que se iniciaram (47,8%) foi
entre 01 ano e 02 anos, e (73,9%) foi autoiniciação.
Nossa entrevistada Tara, que não se iniciou, exemplifica um dos motivos de escolher essa
opção: a busca por uma iniciação tradicional. Ela diz:
Eu ainda não me iniciei, porque [risos] eu tive alguns problemas assim, em questão de
iniciação. Quando eu entrei em um grupo, numa tradição, depois eu descobri que não era
uma tradição, era tudo mentira. E ai depois eu entrei em outra tradição, mas eu tive
incompatibilidade de pensamentos com a sacerdotisa. Ela era meio ortodoxa, eu acho que
paganismo não cabe no sistema de igreja sabe, é outra coisa, então eu sai também. Ai hoje a
gente, eu tenho um grupo de estudo, que se transformou no círculo, a gente fez a dedicação,
mas ainda não fizemos a iniciação, porque ninguém é iniciado no grupo. Então a gente vai
ter que buscar alguém pra iniciar, porque eu acredito muito na iniciação repassada, e não na
autoiniciação. Eu poderia ter feito a autoiniciação, mas eu não quis fazer. Eu acho que a
passagem de poder deve ser feita s por alguém, que seja um pouquinho mais sábia do que
eu, e possa me ajudar em alguma coisa.
Já Atalanta, revela outra visão, pois fez sua iniciação com 3 a 4 meses. Ela explica que sua
ansiedade, por se iniciar rápido, foi o seguinte: “Eu já tinha uma consonância, eu já tava na
vibração disso, então quando surgiu os livros, eu olhei, disse: é isso que eu sempre quis, é isso
que eu quero e é isso que eu vou seguir”. Ela disse que fez a iniciação no banheiro da casa da
tia super católica, que era onde ela morava. Mas admite que não estava segura, ela diz que
sentiu uma
sensação de abandono, do tipo, meio que assim: agora é você e se vire. Foi a mensagem que
eu recebi: se vire se organize e agora é contigo, não tem mais essa de rezar papai do céu me
ajude, faça o seu por onde. Então eu senti primeiro uma sensação de abandono, pra depois
eu sentir, assim a medida que eu ia sentir mais a ... mas vários momentos eu senti: será que
eu fiz certo, será que ta legal, será que não é moda.
12
Existe uma tradição que está em processo de criação, chama-se Tradição Telúrica.
138
Esse depoimento dela complementa o elemento dificultoso que ela nos declarou quando certa
vez pensou desistir, que foi o medo da responsabilidade. Dessa forma, a experiência de
Atalanta nos mostra quão plural são as experiências no universo wiccano, e que a intuição, a
vontade, e o desejo são os motores das ações no mundo wiccanos e não regras estabelecidas
por algum outro.
Considerações finais
Após essa série de dados, resultados, e analises, consideramos que no início da década de
1990, já existia praticante de Wicca no Recife. E essa mesma adepta, Khalijnka, foi a
responsável por fundar no Recife, em 2001, a primeira organização wiccana, a Abrawicca. E
esse mesmo ano também foi o marco, dos primeiros grupos de Wicca que temos
conhecimento no Recife. Ou seja, a Wicca está no Recife há mais de 20 anos.
Os wiccanos recifenses são majoritariamente jovens e com nível superior, mas não das classes
mais abastadas. A maioria conheceu a Wicca depois de 2002, ou seja, após a popularização
da religião. Tendo como primeiro contato os livros e amigos principalmente. Já no ano 2010-
2011, a internet ultrapassa o livro, mostrando uma nova tendência.
A popularização que assolou a Wicca recuou nos últimos anos, mas deixou um estereotipo
negativo para a religião. E a inatividade da Abrawicca, e de grupos wiccanos, deixou espaço
para a aderência de neófitos para outros caminhos neopagãos. No entanto, ainda, a maior
parte das pessoas que estão adentrando no universo neopagão ainda têm a Wicca como
primeiro contato. Se outras tradições neopagãs começam a avançar, ainda não chegam nem
perto da organização nacional wiccana, e da primazia que a Wicca lidera. Ma maior parte dos
casos ela é a porta de entrada para o mundo neopagão.
A busca pelo caminho que melhor lhes conectem com os deuses é sua meta. O wiccano não se
adapta a grupos, ele procura um que atenda sua necessidade espiritual. Através dos estudos e
da prática, avalia quais as formas que mais lhe fazem entrar na sintonia com o universo, com a
139
natureza. Sua permanência na Wicca é uma eterna busca de união com o divino e aprendizado
para vida na Terra. A atração pelo ideal pagão da natureza e a magia, assim como o
pensamento de escolhidos e privilegiados por fazerem parte dessa religião, são ideais que
aproximam os neófitos.
Referências
RUSSELL, Jeffrey B.; ALEXANDER, Brooks. História da bruxaria. São Paulo: Aleph,
2008.
Internet
CERIDWEN, Mavesper Cy. História da associação. Brasil, 05 de jan. 2011. Disponível em
<http://www.abrawicca.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=50&Itemid
=56> Acesso em 05 de jan. de 2011.
140
141
O Coven: múltiplas pertenças, legitimação de um discurso
histórico e as tipologias clássicas em relação à moderna bruxaria
Introdução
As pesquisas sobre Wicca tem dado pouca atenção ou quase não considerado a questão da
organização em relação às tipologias clássicas da religião. Essa falta de interesse pode se dar,
provavelmente pelo aparente sentido pejorativo que termos como, seita e culto carregam em
determinados contextos. Apesar de haver entre a literatura acadêmica e nativa uma
preocupação em distanciar a Wicca de tais categorias, essa preocupação repousa muito mais
numa dinâmica de combate a uma retórica de aniquilação do que propriamente uma
preocupação efetiva de se compreender como a Wicca pode ser entendida dentro das
tipologias clássicas.
É necessário, no entanto, colocar que nossa intenção não se esgota neste artigo, já que esta
discussão é parte de uma tese em andamento. O ponto de partida que tem me levado a pensar
1
Doutorando e mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP, especialista em Docência no Ensino Superior pela
Faculdade de Ensino e Pesquisa de Itajubá (FEPI), membro do CERAL (Centro de Estudos de Religiões
Alternativas), Secretário Geral da REVER (Revista de Estudos da Religião) e Professor de História e Sociologia
da SEESP. Contato: clterzetti@gmail.com.
142
na organização religiosa foi a forma de organização de grupos presentes na religião Wicca, já
que os grupos se organizam em uma estrutura chamada coven2. Sendo assim, meu diálogo
com os autores aqui apresentados tem como objetivo principal a compreensão dessa forma de
agrupamento e pertença.
2
Segundo Barbara Jane Davy (2007, p. 38) “A estrutura básica dos grupos pagãos é o círculo, que é chamado de
coven na Wicca e em outras tradições da Bruxaria”. Aqui vale colocar que em determinados grupos no Brasil se
utiliza também a denominação grove.
143
dentro da Moderna Bruxaria. Sua idealização pode ser explicada através de uma perspectiva
de legitimação histórica3.
Em nossa análise dos principais estudos dos autores que trabalham com o tema nos
deparamos com argumentos e descrições que analisavam lado a lado as classificações que
buscavam compreender que tipo de religião é a Wicca e a funcionalidade de tipologias
relativas à organização para compreender a mesma.
Em seu aclamado livro, Triumph of the moon, o historiador Ronald Hutton não se limitou a
perspectiva histórica do desenvolvimento da Wicca, buscando nos últimos capítulos elaborar
algumas reflexões sobre seu presente e futuro. Nessas considerações finais, nos interessa o
capítulo, Grandchildren of the shadows onde um dos temas é relativo à organização da
Wicca. Em sua análise, Hutton parte de perguntas que norteiam seus argumentos até chegar
em sua conclusão. Simples questões são lançadas ao final do capítulo: A Wicca é uma seita?
Representa um culto? É parte do movimento New Age? É um Novo Movimento Religioso?
As respostas, porém, não são simples e não podem ser fechadas na conclusão de Hutton, já
que este, apesar de não ter escrito um livro com este único objetivo, dialoga com poucos
autores e referenciais teóricos sobre organização religiosa. Além disso, sua análise transita
entre reflexões sobre formas de organizações religiosas e seus alcances em relação a Wicca
terminando em uma classificação do que é a Wicca. Devemos estar ciente de que sendo um
historiador e não um sociólogo da religião, Hutton, privilegia e tem mais domínio em sua
área, mas, nem por isso devemos deixar de dar crédito, por ser um dos poucos trabalhos que
se preocupam em discutir esta questão.
Outro autor, dentre os poucos que se preocupa com a questão das tipologias em relação ao
movimento pagão é Michael York, em seu livro The Emerging Network: A Sociology of New
Age and Neo Pagan Movements (1995) dedica dois capítulos à organização religiosa traçando
considerações importantes sobre as tipologias clássicas e as contribuições mais significativas
em relação a este campo. Em Church-Sect Typologies York apresenta as definições e os
3
Em relação à noção de legitimação histórica baseio-me em meu artigo anterior, “A Velha Religião: O discurso
histórico de legitimação na Wicca” (História Agora, 2013) Disponível em <http://www.historiagora.com/revista-
atual/dossie/343-a-velha-religiao-o-discurso-historico-de-legitimacao-na-wicca>.
144
diversos autores que trabalharam com as categorias de igreja, seita, culto e Novos
movimentos Religiosos. No capítulo oito Conclusions: Evaluating Church-Sect Theory, its
Modifications, and Replacements in Application to the New Age and Neo-Pagan Movements,
propõe o conceito de counter cult entendendo este, menos como organização do que como um
comportamento a ser observado no milieu pagão.
Para que possamos entender a conclusão deste autor em relação a Wicca vale a pena nos
guiarmos por um breve resumo de seus argumentos em relação a cada pergunta norteadora
colocada por ele no fim do referido capítulo.
A Wicca é uma seita? Para responder essa questão Hutton recorre ao sociólogo da Religião
Bryan R. Wilson. Essa escolha de Hutton recai a nosso ver, sob a importância de Wilson na
ampliação do conceito de seita desenvolvida em seu famoso artigo A typology of sects in a
dynamic and comparative perspective (1963) onde o autor fornece sete tipos de categorias de
seita. As definições e conceitualizações de Wilson diferem em relação a noção de uma
separação de um corpo religioso, no sentido de uma ruptura e formação de um grupo sectário.
Hutton entende que para este autor a definição de seita, a saber, como sendo um grupo
religioso separado que professa uma crença e/ou fé diferente dos outros corpos religiosos da
sociedade é de certa forma limitada para se entender a Wicca. Concordamos com Hutton neste
sentido, já que Wilson trabalha com uma definição claramente abrangente do ponto de vista
funcional. O que os sete tipos de seitas tem em comum dentro da tipologia construída por
Wilson, é sua definição primária que descreve a seita como “movimentos ideológicos cujo
objetivo explícito e declarado é a manutenção e a propagação de certas posições ideológicas”
(WILSON, 1980, p. 330).
A definição de Wilson torna-se abrangente, e como descreve Hutton, a definição de seita para
Wilson poderia comportar uma série de novos movimentos religiosos, que seriam definidos
como seitas. Apesar da ineficácia da funcionalidade de tal conceito em relação aos novos
movimentos religiosos, Hutton nos lembra que para Wilson, “o termo seita pode ser aplicado
a qualquer grupo religioso que seja distinto do que é considerado como uma normalidade
religiosa, pelo menos no ocidente” (HUTTON, 1999, p. 409).
145
A opção por partir de uma discussão que considere como ponto inicial as conclusões e
apontamentos sobre a definição de seita feitas por Brian Wilson, vai de encontro a sua
ampliação do conceito, já que não se limita a buscar compreender e descrever esse tipo de
agrupamento apenas como uma ruptura. Como o próprio autor descreve em seu artigo de
1963, um de seus objetivos é “empregar categorias que não dependem exclusivamente da
oposição entre igreja conservadora e seita perfeccionista” (WILSON, 1980, p. 329). Essa
dicotomia é uma referência à concepção da sociologia da religião clássica que tem como
principais artífices das categorias igreja e seita, Max Weber (1864 – 1920) Ernst Troeltsch
(1865-1923).
Para que tenhamos uma noção das concepções clássicas das tipologias organizacionais da
religião vale aqui recorrermos a uma breve descrição das categorias clássicas4.
O primeiro autor a utilizar a dicotomia entre igreja e seita foi Max Weber. Em A ética
protestante e o espírito do capitalismo (1904-1905) o autor descreve, em contraste com as
seitas, que a igreja seria como uma instituição que abrangeria necessariamente justos e
injustos, seja para aumentar a glória de Deus, seja para dispensar aos humanos os bens de
salvação. A seita, portanto, seria uma comunidade exclusivamente composta de pessoas
crentes e renegadas, ou seja, uma comunidade formada por aqueles que se consideram os
verdadeiros fiéis (WEBER, 2004, p. 131). Em seu artigo escrito na época de sua viagem aos
Estados Unidos, Sect, Church and Democracy, Weber ampliou sua perspectiva para incluir
outras religiões distintas do cristianismo, entre elas o judaísmo e o brahamanismo,
considerados também como igrejas (HILL, 1976, p. 75).
Porém foi Ernst Troeltsch que forneceu definições tipológicas que tornaram-se as principais
referências na concepção de igreja e seita. Colega e discípulo de Weber, Troeltsch foi quem
mais analisou extensivamente os diversos tipos de organização religiosa no contexto do
cristianismo (Ibid., p. 76).
146
seria um corpo menor de fiéis, que se separa do corpo maior. Este tipo de organização
“caracteriza-se por uma rejeição ao mundo por julgá-lo lugar de corrupção e pecado. Como
consequência, desenvolve um comportamento social de isolamento e de espera escatológica
do fim dos tempos” (Idem).
Além das categorias de seita e igreja, Troeltsch acrescenta um terceiro tipo, que é o do
misticismo. Este, “caracteriza-se também por formar pequenos grupos, mas em vez da ética
rigorosa das seitas, desenvolvem uma mística individual marcada pela subjetividade” (Ibid., p.
289).
Outras categorias também foram pensadas partindo-se da tipologia seita e igreja. Além destas
duas, Howard Becker acrescentou outros dois tipos: denominação e culto. Para este autor,
uma denominação seria uma seita que se acalmou e se transformou e um organismo
institucionalizado. O culto seria menos organizado, com foco nas experiências pessoais.
Em relação à ampliação dos conceitos, a seita e o culto, à medida que foram sendo discutidos,
recebiam novas definições.
Aqui vale destacar a contribuição das tipologias de Wilson em superar essa miopia ocidental
cristã das classificações da sociologia da religião clássica, já que o autor busca com sua
proposta de classificação desenvolver classificações de seitas que tenham utilidade para
análise de movimentos sectários em contextos não cristãos e também não ocidentais
(WILSON, 1980, p. 331). O ponto chave da classificação de Wilson é o elemento que ele
toma como critério de sua classificação, a resposta da seita ao mundo, ou seja, é uma
classificação que não está apoiada em concepções teológicas, mas sim preocupada com as
respostas ao mundo exterior.
Mesmo que haja de alguma forma uma tentativa de superação da categoria seita como um
agrupamento puramente cismático de caráter separatista, ainda sobra o tom pejorativo do
termo que na grande maioria das vezes é utilizado ao lado de elementos negativos, como
5
Para uma análise das implicações relacionadas a concepção das tipologias construídas a partir de um foco
cristão ver: Michael Hill, “Sociología de la religión” (Cristandad, 1973).
147
lavagem cerebral, abusos, extorsão, entre outros. Esse sentido pejorativo desta tipologia
impregnou de certa maneira, principalmente, o grande público e a mídia, que entendem e
enquadram minorias religiosas que escapam ao que é considerado um mainstream religioso
normal como seitas6.
A segunda questão colocada por Hutton refere-se à categoria de culto. Seria a Moderna
Bruxaria um culto? Para responder esta questão o historiador recorre a Colin Campbell,
Rodney Stark e William S. Bainbridge.
Para Campbell, o culto tem servido como um termo Cinderela na família de termos que
constituem a taxonomia das coletividades religiosas (CAMPBELL, 2002, p. 119). Neste
sentido sua categorização teria como objetivo funcional dar conta das formas de organizações
que escapam a clássica concepção de igreja e seita. No geral, as referências mais comuns em
relação ao culto caracterizam-no como uma forma de organização semelhante às seitas, porém
com ênfases diferenciadas, sendo menos coesos e com um fluxo transitório mais evidente;
valorizando a experiência individual o que decorre daí a pertença menos formal, já que os
indivíduos não ingressam formalmente em um culto, seguindo teorias específicas ou
determinados tipos de comportamento (GIDDENS, 2005, p.434)7.
Uma contribuição significativa em relação a uma nova categorização do culto, e é a que mais
se aproxima da Moderna Bruxaria, foi a de Colin Campbell. A noção de cultic milieu proposta
por este autor mostrou-se funcional principalmente em relação a correntes esotéricas e crenças
desviantes. O cultic milieu compreenderia a ciência não ortodoxa, medicina desviante
(práticas alternativas), temas relacionados a extraterrestres etc. Inclui-se também
organizações, instituições e coletividades associadas a estes temas; sistemas mágicos,
ocultismo, espiritualismo, misticismo, civilizações perdidas crença na cura natural. Essas
crenças aparentemente diversas compõem uma unidade chamada de cultic milieu.
6
Para se ter uma ideia da abrangência dessa noção negativa, podemos dar o exemplo da religião aqui estudada.
No site da ABRAWICCA há um esclarecimento sobre o termo e a explicação de porque a Wicca não é uma
seita.
7
Para uma breve análise teórica e histórica dos usos e definições do termo culto sugerimos a leitura do artigo de
James T. Richardson, Definitions of Cult: From Sociological-Technical to popular-negative em: Review of
Religious Research, Vol. 34, No. 4 (Junho, 1993).
148
(CAMPBELL, 2002, p.122). A base que unifica essas tendências é a posição heterodoxa e
desviante em relação à cultura ortodoxa dominante. Característica esta, segundo Campbell,
compartilhada por todos estes mundos (Idem). No cultic milieu a figura central não é o
convertido, mas o seeker (buscador em tradução livre).
Hutton refuta o conceito de Campbell em relação à Moderna Bruxaria como sendo um culto.
O historiador britânico não cita a categoria de cultic milieu, já que esta foi cunhada mais tarde
por Campbell, porém sua recusa em aceitar a noção de culto relaciona-se a outro artigo de
Campbell, escrito no final da década de 70, Clarifying the Cult (1977). Neste artigo Campbell
relaciona a categoria culto à concepção de Troeltsch. Neste sentido o culto se caracteriza não
por um agrupamento social, mas sim por ser puramente pessoal. E é exatamente aqui que
Hutton não concorda. É necessário lembrarmos que este autor questiona o que a Moderna
Bruxaria é dando respostas de como ela se organiza. Aqui temos uma confusão de propostas
que elucida muito bem a falta de um aprofundamento desta categoria em relação à Moderna
Bruxaria.
Adiante, Hutton dialoga com Rodney Stark e William S. Bainbridge. Entre os trabalhos mais
recentes relativos à conceitualização das diferentes tipologias da organização religiosa, o que
mais tem contribuído para uma discussão mais abrangente é o da Teoria da Escolha Racional
(TER). Uma grande contribuição neste sentido tem sido as definições propostas por Stark e
Bainbridge. Em The future of religion (1985), os autores propõem três modelos de formação
inovação de um culto que são aprofundados em “Uma teoria da religião” (1987). Também
propõe três formas de culto, o client Cult, o audience Cult e os Cult movements (STARK e
BAINBRIDGE, 1985, p.209). A formação destas formas de culto se dá dentro de um processo
de inovação de duas fases: (1) a invenção de novas ideias religiosas; (2) a aceitação social
dessas novas ideias pelo menos a ponto de criar um grupo de devotos. Sendo assim,
diferentemente da seita e da igreja que são definidas pelos autores da seguinte forma: “Uma
igreja é uma organização religiosa convencional” e “um movimento de seita é uma
organização religiosa desviante, com crenças e práticas tradicionais”, o culto é caracterizado
como “uma organização religiosa desviante, com crenças e práticas novas” (STARK e
BAINBRIDGE, 2008, p.159).
149
A crítica de Hutton em relação ao modelo proposto por Stark e Bainbridge está muito mais
ligada a uma aproximação pejorativa do termo culto do que propriamente como ferramenta
teórico empírica para análise da organização da Moderna Bruxaria. Além disso a crítica de
Hutton está ligada ao que o autor enxerga como uma imposição acadêmica. Ele diz que nunca
encontrou um pagão britânico (e bruxo) que não considerasse a aplicação do termo culto a sua
religião como ofensivo (HUTTON, 1999, p. 410). Mais uma vez podemos perceber a
confusão de Hutton em relação à definição de religião e a compreensão da organização da
religião. As tipologias até aqui referenciadas não funcionam como legitimação e validação de
uma religião. No entanto, isto não quer dizer que tais tipologias não serviram, em alguns
contextos e épocas com tal finalidade. Porém, do ponto de vista do sociólogo da religião que
trabalha com a questão da organização religiosa, esta utilização não seria nem um pouco
desejada.
As pesquisas sobre Wicca no Brasil tem passado necessariamente pelo contexto da Nova Era
e novas espiritualidades9.
8
Outras obras trabalharam sob essa perspectiva. Ver por exemplo: New Age and Neopagans Religions in
American (2004) de Sarah Pike.
9
É o caso dos seguintes trabalhos: Karina Oliveira Bezerra. A Wicca no Brasil. 2012. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Religião) - Universidade Católica de Pernambuco, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior. Orientador: Gilbraz de Souza Aragão. Ana Carolina Chizzolini Alves. Wicca e corporeidade: a
bruxaria moderna e o imaginário do corpo. 2011. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Orientador: Silas Guerriero. Marina Silveira Lopes. Sob a sombra do carvalho: a espacialização do imaginário
neodrúidico na metrópole paulistana. 2008. 0 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, . Orientador: Silas Guerriero.
150
É a Moderna Bruxaria um Novo Movimento Religioso? Mais uma vez a resposta é negativa,
já que como outros autores tem pontuado, a definição dos NMR é complicada, na medida em
que o tempo é um fator decisivo, ou seja, quando um movimento religioso deixa de ser novo?
Segundo Silas Guerriero, “o critério de para definição de novo seria (...) o de ruptura com os
moldes tradicionais de vivenciar a religião em cada sociedade” (2006, p.97).
Hutton acredita que deva haver uma nova classificação, sendo assim, propõe o termo revived
religion. Segundo o autor, esta é a única e verdadeira forma de fazer justiça àquilo que é visto
como argumento central e característico da Moderna Bruxaria pagã, a apropriação de ideias e
imagens antigas para necessidades modernas (HUTTON, 1999, p. 415).
Agora devemos nos ater a outro autor que propõe também uma nova tipologia, Michael York.
Assim como Hutton, York perpassa uma série de autores e pesquisadores que trabalharam
com diversas tipologias, porém, sua análise das diversas categorias é mais abrangente e
aprofundada. Mas ao contrário de Hutton, York não cai na confusão de misturar definições
tipológicas com classificações do que é religião. O caminho percorrido por York é delineado
através da categoria de culto, ele sugere uma categoria que está de certa forma em
consonância com a tipologia de cultic milieu proposta por Campbell. O counter-cult descrito
pelo autor está relacionado muito mais a um comportamento do que uma forma de
organização como se tem entendido dentro das tipologias clássicas. Este comportamento, que
é compartilhado com as religiões do mainstream, tem como característica ser inconsciente,
automático e universal. Além disso, pode ser observado através da expressão devocional
(YORK, 1995, p. 324).
Considerações finais
151
a partir de conceitualizações que levam em conta definições puramente organizacionais (como
se organiza?).
Referências
CAMPBELL, Colin. The Cult, the Cultic Milieu and Secularization. In: KAPLAN, Jeffrey;
LÖÖW, Heléne (eds). The cultic milieu: oppositional subcultures in age of globalization.
USA: AltaMira, 2002.
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Religião como organização. In: PASSOS, João Décio;
USARSKI, Frank (orgs). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas e Paulus,
2013.
DAVY, Barbara Jane. Introduction to Pagan Studies. New York: AltaMira Press, 2007.
HUTTON, Ronald. The triumph of the moon: A history of a Modern Pagan Witchcraft.
Oxford: Oxford, 1999.
152
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma teoria da religião. São Paulo:
Paulinas, 2008.
WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
WILSON, Bryan R. Una tipologia de las sectas. In: ROBERTSON (org), Roland. Sociología
de la religión. México, 1980.
YORK, Michael. The emerging Network: A sociology of the NewAge and Neo-Pagan
Movements. Londres: Rowman & Littlefield, 1995.
153
154
GT2 – Catolicismo brasileiro: neocristandade
e práticas religiosas associativas (1889-1964)
Coordenador/a
Resumo
155
Aggiornamento x continuidade: o choque entre a modernidade e a
tradição nas representações e visões de mundo de três Padres
Conciliares
Alfredo Moreira da Silva Júnior 1
Introdução
Dentre o clero brasileiro, três religiosos se destacaram por sua postura firme em defesa de
suas interpretações sobre o Concílio, numa perspectiva conservadora. Dom Geraldo de
Proença Sigaud e Dom Antonio de Castro Mayer e, num viés progressista, D. Hélder Câmara.
Basearemos nossa análise na proposta hermenêutica de Ricoeur (1978), em especial sobre sua
teoria sobre o mundo do texto e o mundo do leitor, ou seja, mais que o interesse pelos textos
em si, nos dedicaremos em desvendar como as informações de seus conteúdos foram
extraídas e interpretadas. Para avançarmos neste último intento, recorreremos os
apontamentos de Chartier (1991) segundo os quais, a construção de uma realidade se dá
através das representações coletivas, pela multiplicidade de elementos simbólicos
interpretados de diferentes maneiras através de diferentes olhares.
1
Professor Assistente do Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade Estadual do Norte do Paraná
– UENP, doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP, bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Pe. João
Edênio Reis Valle. Contato: alfredo@uenp.edu.br.
156
D. Geraldo de Proença Sigaud: a contra-revolução na Igreja brasileira
Dom Geraldo de Proença Sigaud, natural de Belo Horizonte, nasceu em 1909, tendo sido o
primeiro Sacerdote da nova capital mineira, ordenado, e também, o primeiro Bispo eleito,
nascido em Belo Horizonte. Foi o quarto Arcebispo Metropolitano de Diamantina, porém,
inicialmente foi designado para a diocese de Jacarezinho, no Paraná, onde foi bispo de 1946
a 1960. Durante seu bispado em Jacarezinho, tratou de organizar melhor a diocese, na época
muito vasta, dividida, alguns anos depois, em outras seis. Incentivou a construção de mais
escolas católicas na diocese e fundou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Jacarezinho.
Os bispos tradicionalista como Sigaud, elaboravam textos que tinham uma mensagem clara: a
condenação do comunismo como um dos grandes males que assolavam a humanidade, nos
seus textos também era constante a repulsa à modernidade . Sua mensagem era direcionada a
um público especifico, ou seja, pessoas das classes mais elevadas e profissionais liberais
formadores de opinião da classe média urbana, nem podia ser diferente pois, em sua redação,
predominava muito mais a preocupação em mostrar erudição e conhecimento sobre os
documentos pontifícios e o magistério da Igreja, do que com uma mensagem voltada para a
população em geral .
157
As atitudes de D.Geraldo em Jacarezinho, lembram a Carta Pastoral de 1916 de D. Sebastião
Leme , porém num outro contexto, uma neocristandade tardia.2
Em relação aos costumes, demonstra, não sem razão, preocupação sobretudo com o
comunismo e a maçonaria, realmente, o desenvolvimento do norte pioneiro paranaense3,
impulsionado pela cultura cafeeira, trouxe também, a disseminação das lojas maçônicas por
toda a região, quanto ao comunismo, as características agrárias da economia cafeeira, com a
predominância de grandes latifúndios, dificultou sua proliferação4.
O maior temor dos católicos nessa época era de uma Revolução que acabasse com a religião
(ao menos oficialmente) como na Rússia, porém, no caso de um bispo integrista como D.
Geraldo, este temor chegava a extremos como podemos perceber em duas de suas obras: a
Pastoral contra seita comunista (1962) e o Catecismo anticomunista (1963). O primeiro
documento traz uma análise filosófica, histórica e teológica sobre as origens e o
desenvolvimento do comunismo internacional, tendo como referenciais autores europeus e a
própria Europa como palco, não faz uma análise específica das questões brasileiras, no
entanto, chama a atenção para a formação do pré-capitalismo europeu, para as corporações de
ofício e o campesinato, alguns momentos da história em que ainda não havia se formado o
proletariado urbano e as pré-condições para uma revolução, assim, fala que quando a família,
a religião, as tradições familiares e culturais ainda existem e são respeitadas, não existem
condições para a proliferação do comunismo, de certa forma, esta parte da Pastoral se
aplicaria às regiões economicamente mais atrasadas do Brasil. No catecismo anticomunista5,
existe apenas um apanhado de perguntas sobre comunismo e as respostas numa perspectiva
integrista.
2
O termo neocristandade, utilizado primeiramente por Thomaz Bruneau em Catolicismo Brasileiro em Época de
Transição ( 1974 ) e dizia respeito às estratégias de D. Leme para buscar uma reaproximação entre a Igreja e o
Estado . No caso de Jacarezinho, houve uma retomada das estratégias próprias da neocristandade num momento
em que os desafios para a Igreja católica brasileira eram outros, daí o termo neocristandade tardia, a este
respeito, ver SILVA Jr., 2006.
3
O termo Norte Pioneiro ou Norte Velho é uma alusão às terras do norte paranaense colonizadas entre 1890 e
1930.
4
Os nomes das Ruas de Jacarezinho documentam o mandonismo local das famílias dos coronéis da região,
temos como exemplo as ruas : Coronel Figueiredo, Coronel Batista, Coronel Alcântara e Coronel Cecílio Rocha
5
Publicado por Sigaud em 1961 para ser utilizados em grupos de estudo sobre a situação política brasileira no
início dos anos 1960.
158
Em sua visão conservadora6, Dom Geraldo propôs uma alternativa de reforma agrária, com
vistas às pertencentes ao estado do Paraná. As negociações com o governo do Estado se
iniciaram na década de 50, quando a Diocese de Jacarezinho que, inicialmente se estendia até
o extremo oeste do Paraná, na região de Foz do Iguaçu, é desmembrada. D. Geraldo passa,
então, a fazer articulações conjuntas com os demais bispos para conseguir concretizar seu
intento. Para tanto traçou algumas estratégias uma das quais foi a de utilizar a pressão
popular. Assim, confidencialmente7, Sigaud pede aos padres de sua diocese que incitassem os
fiéis8 a pressionar os deputados para a aprovação do projeto de doação.
Atendendo aos apelos de D. Geraldo, a Liga Eleitoral Católica cuidou de enviar aos
candidatos a Deputado uma correspondência onde são apresentados seis pontos que a Liga
considerava essenciais para constarem nos programas de ação de cada candidato e que seriam
condição indispensável para o apoio e o voto do eleitorado católico.
6
O conservadorismo de Sigaud nega a possibilidade de mudanças porém, insere-se numa perspectiva de
conservadorismo que Mercadante ( 2003) coloca que “norteia-se pela experiência do passado;parte do princípio
de que tudo que existe possui um valor nominal e positivo em razão de sua existência lenta e gradual.Trata-se
assim do aproveitamento do passado para uma experiência real, isto é, como se o passado se experimentasse
como um presente virtual.”
7
Carta Confidencial de 05 de janeiro de 1956 citada por SIMON ( 2008).
8
Nos arquivos da Diocese de Jacarezinho encontram-se circulares que atestam esta prática até corriqueira de D.
Geraldo , utilizou-se da mesma para pedir votos pra o candidato a deputado federal Plínio Correia de Oliveira ,
para combater os projetos de reforma agrária tidos por ele como de “cunho socialista” e, mais tarde , já em
Diamantina, para ajudar a organizar a “Marcha da Família por Deus pela Liberdade”.
159
daria valor, por isso, planejaram meios para dar instrumentos para o desenvolvimento e a
sustentação dos colonos.”
O projeto de colonização incluía a fundação de uma cidade, a qual foi chamada de Missal,
evidentemente, em referência a importância do catolicismo na região.
9
Embora D. Geraldo Sigaud tivesse sido um dos sócios fundadores da TFP, a partir de 1969, começou a
divergir da posição de Plínio Correia de Oliveira em não acatar a reforma litúrgica, assim, em 1970, D. Sigaud
rompe com a TFP declarando-se obediente ao Papa Paulo VI .
10
Sigaud chegou a pedir ao presidente João Figueiredo a expulsão do padre espanhol Pedro Casaldáliga,
representante da chamada Teologia da Libertação. Três dias depois, pediu aposentadoria, alegando problemas de
saúde.
160
acordado com os seus familiares que, após 05 anos de seu falecimento, os seus restos mortais
seriam transladados para a cripta da Catedral Metropolitana de Diamantina
De volta ao Brasil, é nomeado professor no Seminário de São Paulo. Durante 13 anos ensina
Filosofia, História da Filosofia e Teologia Dogmática.
Em 1940, o Arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva, nomeava-o
assistente geral da Ação Católica, então em fase de organização.
Em 1941 é nomeado cônego catedrático do Cabido Metropolitano de São Paulo, com o cargo
de primeiro Tesoureiro. Pouco depois, torna-se Vigário Geral (1942).
Em 1945 é transferido para o cargo de Vigário Ecônomo da Paróquia de São José do Belém,
ao mesmo tempo ocupa as cátedras de Religião e Doutrina Social Católica, respectivamente
na Faculdade Paulista de Direito e no Instituto Sedes Sapientiae, ambas as escolas superiores
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Na época, além das atividades desenvolvidas como Bispo, leciona também, primeiro na
Faculdade de Filosofia depois, na Faculdade de Direito de Campos.
161
Em termos de atividades pastorais, empreendeu esforços para fortalecer as enfraquecidas
ordens terceiras da diocese (Ordens Franciscana e Carmelita), bem como para fixar diversas
ordens religiosas como os Beneditinos, Salesianos, Redentoristas, Carmelitas Descalças,
Franciscanos e Crúzios.
Essa carta pastoral irá nortear suas atitudes durante toda a duração de seu bispado. Assim,
quando de sua participação no Concílio Vaticano II, renega o aggiornamento e exige,
juntamente com D. Geraldo Sigaud, condenação ao comunismo, reivindicação que não foi
acatada pelo Vaticano.
Um ano após o término do Concílio, D. Antonio já mostra sinais de que não acataria o teor de
seus documentos, assim, publica uma “Carta Pastoral com suas Considerações a propósito da
aplicação dos documentos promulgados no Concílio Ecumênico do Vaticano II”.
Mais interessante que a visão que teve do evento conciliar, é a percepção que D. Antonio fez
do andamento dos trabalhos sob a forma colegiada, discutindo-se os problemas em comissões,
para ele, tudo o que ocorreu não teria passado de uma estratégia dos inimigos da Igreja para
implantar os erros modernistas em seu interior.
Durante a década de 70, recusa-se a adotar na diocese de Campos o Novus Ordo Missae, a
Missa proposta por Paulo VI, o que causa muita polêmica e um rompimento com a Santa Sé.
Na diocese de Campos temos, a partir de então, dois Bispos, um fiel ao Vaticano e aos
desígnios do Concílio Vaticano II e outro D. Antonio seguidor do rito tridentino. Em Campos,
tivemos uma reprodução do que ocorreu em Econe (Suiça), onde D. Lefebvre11, mantém o rito
11
Em 1977 Lefebvre publica Le coup de maitre de satan – Econe face la persécution, uma obra que já seria o
prenúncio dos futuros acontecimentos em Econe ou em Campos.
162
tradicional e acaba sendo excomungado pelo Papa João Paulo II após nomear juntamente com
D. Marcel quatro bispos.
Em 1982, Dom Antonio rompe com a TFP, organização da qual era um dos fundadores, o
motivo, segundo ele, era que a TFP havia se desvirtuado em uma seita que prestava culto ao
seu próprio líder, Plínio Correia de Oliveira e à mãe deste, Dona Lucília.
Verdadeira antítese das posições conservadoras na Igreja brasileira a partir dos anos 50, D.
Hélder Câmara foi um dos maiores expoentes da chamada ala progressista da Igreja
Católica brasileira . Nascido em 07 de fevereiro de 1909, filho do guarda-livros João Eduardo
Torres Câmara Filho e da Professora Adelaide Rodrigues Pessoa Câmara, uma típica família
de classe média baixa, sem grandes bens patrimoniais, porém, de cultura acima da média para
a época. Tal característica familiar parece ter sido transferida para o filho Hélder que, aos 14
anos, ingressou no Seminário Diocesano de São José, em Fortaleza. Oito anos mais tarde,
com apenas 22 anos de idade foi ordenado padre.
12
Como neocristandade entendemos as práticas empregadas por D. Sebastião Leme enquanto líder da Igreja
Brasileira, para romanizar e ao mesmo tempo aproximar a Igreja do Estado notadamente na Era Vargas.
163
Sua militância na Liga Eleitoral Católica o aproximou do integralismo e após os candidatos
apoiados pela Liga vencerem as eleições de 1933 e 1934, o Pe. Hélder é convidado a assumir
a Diretoria de Instrução Pública do Ceará em 1935, já em 1936, desentendimentos com o
governador do Estado o levaram a demitir-se do cargo, partindo para o Rio de Janeiro onde é
acolhido pelo Cardeal Leme, que restringe suas atividades pastorais. O Pe. Hélder passa,
então, a dedicar-se aos serviços burocráticos e ao serviço público no Ministério da Educação
e Saúde, onde permaneceu de 1939 a 1946 quando, com o incentivo do novo arcebispo do
Rio, D. Jaime Câmara, reassume, em tempo integral, a vida religiosa destacando-se
rapidamente no cenário político religioso nacional. Em 1949 tornou-se conselheiro da
nunciatura, em 1955 organiza o Congresso Eucarístico Internacional (17 a 24 de julho de
1955), e ajuda a fundar o CELAM.
Participou ativamente nos bastidores do Concílio defendendo a idéia de uma Igreja voltada
para os mais necessitados, como atestam as cartas que redigiu durante as madrugadas e
destinou a poucos amigos e colaboradores do Rio de Janeiro e Recife.
Sua estratégia deu bons frutos. Através de seu permanente contato com Cardeais que
compartilhavam sua visão de uma Igreja voltada para os mais necessitados, conseguiu que
outros padres conciliares também aderissem a seu propósito. Para Comblin, “Ele sabia que
sua influência seria muito maior se permanecesse oculto. Ele queria se esconder e conseguia.
Freqüentemente, seus próprios colegas ignoravam de onde vinham as proposições que eles
votavam” (apud BROUCKER, 2008, p. 48).
O contato com bispos de outras partes do mundo e com próprio Cardeal Rufini, foi
proporcionado pelo fato de serem acomodados num mesmo ambiente, a Domus Mariae
(MACHADO, 1998, p. 32 ).
164
Como resultado de seu convívio e de sua articulação com outros bispos progressistas de
outras partes do mundo, no dia 16.11.1965, Dom Hélder assinou, juntamente com outros 39
bispos, um documento denominado Pacto das Catacumbas - foi nas catacumbas de Domitila
que este grupo se reunia. O documento era breve e dava enfoque a um novo modo de vida e
uma nova ação pastoral dos bispos, voltadas para a Igreja dos Pobres.
Pelo Pacto das Catacumbas, os Bispos se comprometiam a procurar viver “conforme o modo
de vida da maioria da população”. Abrindo mão do luxo dos palácios episcopais, abriam mão
da ostentação da riqueza e do poder hierárquico, priorizando uma ação pastoral voltada aos
mais necessitados, em detrimento das atividades administrativas que seriam relegadas a
segundo plano e ocupadas sempre que possível, por leigos. Os bispos assumiriam um papel de
engajamento político junto à comunidade internacional, no sentido de evitar a adoção pelos
governos de estruturas econômico-sociais que levassem à proliferação da pobreza e à miséria.
O reflexo do Pacto das Catacumbas, junto ao clero progressista brasileiro, foi imediato e
aprofundou ainda mais as diferenças entre aqueles e os religiosos apegados às tradições
tridentinas e incapazes de entender as exigências dos novos tempos.
Seu posicionamento em defesa dos mais pobres foi interpretado, muitas vezes, pelos
governantes na Ditadura Militar (1964-1985) como atividade subversiva, de forma que
infligiram a D. Hélder uma série de sanções e trataram de desconstruir sua imagem e sua
reputação, seja através da censura, seja através da difamação.
Se no Brasil D. Hélder teve de ficar no ostracismo por vários anos, no exterior teve um
importante papel, denunciando a tortura e os crimes da ditadura.
Morreu em 27 de agosto de 1999. Em seus últimos anos de vida mostrou-se preocupado pelos
rumos que a Igreja Popular tomava.
165
Considerações finais
O choque entre as visões tradicionalista e progressista acerca das questões sociais nos
remetem ao exemplo de GINZBURG (2001) que nos lembra Montaigne e a história de três
índios brasileiros que haviam sido levados à França, em sua inocência quanto ao
funcionamento da sociedade européia, os indígenas:
Perceberam que havia entre nós homens cheios até o pescoço de todo o tipo de riquezas e
que as metades deles estavam mendigando às suas portas, mirradas pela fome e pela
pobreza; e achavam estranho que essas metades necessitadas pudessem tolerar tal injustiça
e não agarrassem os outros pelo colarinho ou não tocassem fogo na casa deles.
(GINZBURG, Op. Cit. p. 39)
No caso nordestino, historicamente as melhores terras e a posse da água ficou nas mãos dos
latifundiários, descendentes dos senhores de engenho que exerciam e exercem de certa forma,
o mandonismo local até hoje. Alguns nomes familiares tornaram-se conhecidos
nacionalmente através da política e esta os trouxe um enriquecimento ainda maior através das
benesses do poder. A população de modo geral, precisou se submeter a estes senhores de
terras para conseguirem sobreviver e qualquer contestação a este sistema de exploração
sempre foi duramente reprimida.
O documento Eu ouvi os clamores do meu povo subscrito por trinta e seis bispos do nordeste
e publicado em 08 de maio de 1973 não apresentou nenhum conteúdo ofensivo ou radical do
ponto de vista da análise conjuntural, apenas demonstrou um panorama bastante claro das
condições de vida da população nordestina, porém, foi considerado subversivo pelos donos do
poder, pois, evidentemente, tocava na ferida, de certa forma, cobrava das autoridades ações
166
afirmativas contra aquela situação que perdurava. Apesar dos avanços econômicos pelos quais
o Brasil passava, o agravamento das condições de vida da população mais carente era latente.
Os esforços pela romanização do catolicismo nesta região do país se concentrou apenas nas
capitais e nas instituições de formação do clero, seria impossível fazer frente à séculos de um
catolicismo ainda caboclo, que misturava elementos culturais africanos e indígenas mas que,
nem por isso, fazia a fé dos fiéis menos sincera.
Por sua vez, o êxodo rural e a imigração provocaram um desequilíbrio gradual nas grandes
cidades do centro sul, mas nada que levasse aos extremos de pobreza do nordeste do país.
167
Referências
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil de João XXIII a João Paulo II de Medellín a Santo
Domingo. 2.ed. Petrópolis, Vozes, 1993.
BROUCKER, José de. As noites de um profeta Dom Hélder Câmara no Vaticano leitura das
circulares conciliares de Dom Hélder Câmara (1962-1965). São Paulo: Paulus, 2008.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre distância. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
MACHADO, Adelmo. Memória do Concílio Vaticano II. São Paulo: Loyola, 1998.
SIGAUD, Geraldo de Proença. Catecismo anticomunista. 3. ed. são Paulo: Vera Cruz, 1963.
______. Pastoral sobre a seita comunista. 2 ed. São Paulo: Vera Cruz, 1962.
168
Internet
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. av. [online]. 1991, vol.5, n.11
[cited 2010-07-21], p. 173-191. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340141991000100010&lng=en
&nrm=iso>.
169
170
A Igreja Católica e os mecanismos de atuação no meio rural
brasileiro (1955- 1964)
Bruna Marques Cabral1
Introdução
1
Mestranda em História pela UFRRJ. Orientadora: Profª Drª Vania Losada Moreira. Contato:
brunaclio@uol.com.br.
2
A Igreja Católica possui diversos veículos de comunicação, no entanto utilizei a Revista Eclesiástica
Brasileira, uma vez que tem sido uma fonte pouco analisada na compreensão das questões políticas do período
estudado.
171
Podemos dizer que a Igreja Católica sempre desempenhou um papel importante nas temáticas
políticas do país. Desta forma, ao ser afastada dos centros de decisões na sociedade moderna,
a presente instituição buscou nos grupos subalternos da população, o novo sustento para
reconstruir seu poder. Assim, ela teria que construir o seu discurso por meio de uma releitura
de sua tradição, concomitantemente à apropriação das representações dos desfavorecidos,
tendo em vista uma ampla base social.
Com efeito, a estrutura desta pesquisa pode ser dividida da seguinte forma. Na primeira parte
deste artigo, as análises se focarão nas estratégias utilizadas pela Igreja para conservar sua
influência no campo. E, também decidimos contextualizar a Igreja na conjuntura maior do seu
tempo, para isso promovemos um pequeno debate bibliográfico com alguns autores que
refletiram sobre o tema.
No momento seguinte, procuramos demonstrar como a Igreja se inseriu nos debates sobre a
reforma agrária, haja vista que diversos segmentos da sociedade apresentavam um
determinado posicionamento acerca da questão agrária brasileira.
Durante as décadas de 50 e 60, a Igreja reconstruiu seu modelo de influência e isso gerou uma
alteração nas relações entre esta, o Estado e a sociedade. Nesse sentido, Krische (1985) expõe
uma proposta dentro da lógica marxista, onde as instituições da sociedade civil (dentre as
quais a Igreja) apresentam um nível definido e conjuntural de combinação ou confrontação
entre as classes da sociedade, e que uma de suas funções seria a de servir como mediadora
dessa correlação de forças. Deste modo, o Estado deixaria de ser o mediador entre a Igreja e a
172
sociedade civil, e a Igreja é quem se colocaria como mediadora entre o aparelho de Estado e a
sociedade civil.
Por outro lado, Roberto Romano (1979) define a Igreja como um Corpo Místico, isto é,
instituição dotada de uma coerência própria – designada pelo autor como um projeto
teológico-político. Por tal razão, para Romano, a Igreja não pode ser interpretada como um
instrumento ideológico do Estado, dado o alto grau de independência em seus projetos. Logo,
ele parte da premissa que a Igreja possui uma política e uma lógica próprias, no entanto faz
alianças com o Estado para continuar exercendo influência na sociedade. Em contrapartida a
esta linha teórica, temos em Bruneau (1974) um outro olhar sobre a instituição, pois este
acredita que a Igreja não é um ator totalmente livre em suas relações sociais, ou seja, tal
instituição está presa em seu arrolamento com outros atores, inclusive o Estado, e depende
deles para sua sobrevivência.
Segundo Mainwaring (1989), a Igreja Católica não é uma instituição política, no entanto têm
um efeito político inegável, como tantas outras instituições sociais. Deste modo, o autor
argumenta que a função da Igreja é a de encorajar a mudança sem assumir, todavia, o controle
dos processos da mesma, tendo em vista a defesa de seus interesses e a expansão de sua
influência. É, portanto, um raciocínio pautado nas condições sociais condicionadoras de tais
inquietações, na medida em que estejam ameaçadas. Dentro dessa perspectiva Mainwaring
(1989) construiu o seu problema, centrado na atuação da Igreja no âmbito político e não,
como faz Bruneau (1974), procurando compreender como esta participação se realiza.
A partir desse breve debate bibliográfico observamos, sobretudo, nos trabalhos de Bruneau
(1974), Krische (1985) e Mainwaring (1989), que apesar de apresentarem perspectivas
distintas, partem do mesmo problema, isto é, a relação da Igreja Católica com a política. Eles
não procuram perceber tal Igreja como um Corpo Místico, no qual possui uma verdade
transcendente. Assim como Romano (1979) enxergamos a presente Igreja, como uma
instituição que se move no tempo histórico com profundo sentido de permanência.
173
No período de 1955 a 1965 a Igreja Católica encontrava-se na iminência de uma crise e
buscou renovar sua política através de um discurso modernizador e de uma reforma de
consciências. Deste modo, a instituição procurou fazer concessões ao operariado rural para
não perder a sua influência no campo. Assim sendo, ressaltamos a importância do conceito de
3
hegemonia para analisarmos os mecanismos e as estratégias políticas adotadas pela
instituição católica na área rural, no referido período.
Percebemos que a Igreja utilizou-se do fato de existir uma industrialização desigual no Brasil,
além de persistirem estruturas rurais obsoletas na região Nordeste do país, para incentivar a
criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) 4, que visava
modernizar a região e diminuir as diferenças sócio-econômicas do país. Nesse aspecto, foram
organizados pela Igreja dois encontros no Nordeste, o de Campina Grande, em 1956, e o de
Natal, em 1959. Ambos contaram com a presença de Juscelino Kubitschek. Evidencia-se que
este processo de libertação econômica será pautado em uma ação conjunta entre Igreja e
Estado, expressa através da SUDENE.
Dentro dessa conjuntura, em 1956, foi realizado o primeiro Encontro dos Bispos do Nordeste,
em Campina Grande, que visava debater os problemas de ordem social suscitados pelas secas
e pelo baixo nível de vida das pessoas desta região. A seguir citaremos um trecho da
R.E.B.,sobre o referido encontro:
Sem dúvida, na medida do nosso alcance, velaremos para que a experiência se inicie,
prossiga e chegue a bom termo, pois vemos, sabemos, sentimos que o povo já não suporta
ilusões [...] Poderíamos dizer, mesmo, para melhor situar a questão, que o exatamente
necessário, no domínio do bem-estar social, se torna uma exigência cristã para salvaguardar
a dignidade da pessoa humana, na sua tarefa de viver. Por isso ninguém poderá dizer que
seja estranho a uma reunião de Bispos o debate dos problemas sociais, não só na equação
doutrinária, mas ainda nas decisões para uma ação direta e imediata. (R.E.B., 1956, p. 503)
Nesse contexto, percebemos que a instituição supracitada atuava em prol das modernizações
das relações econômicas na área rural, a fim de atenuar as tensões sociais na região. Nesse
3
O conceito supracitado refere-se à liderança de uma classe social sobre as demais, no qual o sistema de poder
assenta-se não só na coerção, mas também no consentimento voluntário da classe dominada. Gramsci
desenvolveu tal conceito após analisar a ampla base social que apoiou o Estado burguês após a Revolução
Francesa em contraste com o Risorgimento italiano que contou com uma fraca base de apoio por parte dos
demais setores da população.
4
A SUDENE foi criada em 1959 durante o governo de Juscelino Kubitschek, tendo à frente o economista Celso
Furtado, como parte do programa desenvolvimentista adotado no período. Portanto, o governo usaria o novo
órgão como elemento de administração e planejamento dos recursos públicos, a fim de promover o
desenvolvimento e diminuir as desigualdades entre as regiões geoeconômicas do país.
174
sentido, a Igreja organizou, em 1959, o segundo Encontro dos Bispos do Nordeste, em Natal,
no qual firmou-se uma importante declaração, com minuciosas conclusões.Observemos um
trecho da R.E.B. que menciona o encontro supracitado:
[...] o desenvolvimento econômico do Nordeste só atingirá sua eficiência plena se, se apoiar
no esfôrço consciente e voluntário das fôrças atuantes de tôda a comunidade, para o que há
urgência, em todos os seus níveis, de líderes, especializados em modernas técnicas de
organização comunitária, tais como a promoção do corporativismo, do serviço de extensão
rural e de outros processos de educação de base. (R.E.B., 1959, p. 461-462)
As encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), promulgadas pelo Papa
João XXIII, mudaram o pensamento católico oficial da época e desenvolveram uma nova
concepção de Igreja, em conjunto com o mundo secular moderno. Tais medidas estavam
comprometidas em melhorar o destino dos seres humanos e promover a justiça social dentro
da ordem econômica capitalista, que se mostrava bastante excludente com amplos setores da
população mundial. Além disso, teve início em 1962 o Concílio Vaticano II, sob a orientação
do Papa João XXIII, no qual reuniu bispos do mundo inteiro em Roma para discutir uma
concepção mais aberta de Igreja.
175
os interesses dos grupos desfavorecidos? Neste momento, iremos expor como a Igreja se
inseriu nos debates sobre a reforma agrária, no período em que setores da sociedade brasileira
se radicalizavam e o problema agrário encontrava-se no âmago das disputas de então.
Apesar de a instituição católica ser um tanto conservadora, quando o que está em questão, são
os direitos de propriedade, havia na Igreja amplos setores que vislumbravam a necessidade de
uma mudança radical na nossa estrutura fundiária como a única forma de evitar o
agravamento dos conflitos no campo. Como exemplo, podemos citar a I Semana Ruralista da
diocese de Campanha, localizada no interior de Minas Gerais, onde o bispo Dom Inocêncio
Engelke, escreveu uma carta pastoral intitulada Conosco, sem nós ou contra nós se fará a
reforma rural (1950), no qual expressava o receio da Igreja Católica deixar de exercer a sua
influência no meio rural, nesse sentido o bispo fazia alertas, como o da necessidade de
precipitar as reformas sociais no campo para a Igreja não perder o operariado rural, após ter
perdido o urbano. Portanto, este documento expunha as preocupações que se mantiveram no
centro das inquietações de amplos setores da Igreja nas décadas seguintes, como: o êxodo
rural; os efeitos desagregadores da vida na cidade; o perigo do comunismo e a agitação
política no campo.
A luta pela cidadania política dos trabalhadores rurais também estabeleceu uma nova
realidade na história social do Brasil. Assim, as Ligas Camponesas 5 surgem no cenário
nacional como instrumento de resistência de pequenos agricultores e não-proprietários, que
lutavam contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam e posteriormente
apresentaram uma rápida expansão na região nordeste do país.
176
Na luta em prol da reforma agrária, as Ligas se associaram com outras organizações políticas
de cunho progressista, participando de passeatas, comícios e manifestações no Congresso em
defesa das reformas de base.
Dentro desse panorama, ocorreu uma modificação das forças políticas nacionais, mormente,
as que compuseram o pacto populista. Destarte, o movimento social repercutiu fortemente
dentro da lógica populista, e a Igreja Católica entrou na disputa para conquistar espaço
ideológico, político e, sobretudo, não perder sua influência sobre a classe camponesa. É
importante ressaltar que com a chegada dos meios de comunicação as idéias progressistas
ganhavam força no campo, deste modo, era desmitificada a imagem do homem rural como
um ser passivo, que não faz questionamentos a respeito das desigualdades sociais, atribuindo
a estas explicações divinas. 6
Nesse contexto, devemos ressaltar a permanente idéia de missão da Igreja, isto é, a sua
necessidade de evangelização e orientação moral, para tanto, o rádio era tido como o meio
mais eficaz para atingir as massas. Desta forma, acreditavam que uma emissora de rádio
católica facilitaria a transmissão dos valores cristãos a um maior número possível de pessoas,
e por sua vez se sobreporia aos discursos exógenos ao meio rural. Vejamos o que disse um
missionário francês a respeito do tema, na seção Assuntos Pastorais da R. E. B.:
Vejo nesta diocese, onde exerço meus ministérios, muitos sacerdotes ocupados em fazer ou
reparar igrejas. Empregam somas enormes para isso. Pergunto para mim mesmo para que
serve tudo isso sem a propaganda anticomunista; apoderando-se do país, este regime
condenará a Igreja ao silêncio das catacumbas. As igrejas se transformarão, como na China
e alhures, em salas de cinema ou de bailes. Não digo que não seja necessário construir
igrejas, mas ao mesmo tempo seria mister provocar em todo o país um movimento, a fim de
se conseguir quanto antes uma grande estação de rádio católica. E então que força
6
Para um aprofundamento a respeito do tema, recomendo ler: AZZI, Riolando; GRISP, Klaus Vander.
“Assistência rural e reforma agrária” História da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo.
Tomo II terceira época - 1930 -1964. Petrópolis: Vozes, 2008.
177
maravilhosa para atingir esses milhões de operários do Rio, São Paulo, etc., que são os mais
poderosos sustentáculos do comunismo? Não, lerão o jornal católico, mas muitos ouvirão o
rádio. (R.E.B., 1955, p. 415)
Nesse sentido, temos o surgimento do Movimento de Educação de Base (MEB)7 que foi
criado em 1961, através de um acordo entre o presidente Jânio Quadros e o bispo progressista
de Aracaju, Dom José Távora. Deste modo, o Estado iria financiar e a Igreja executar um
programa de educação básica, no qual apresentava como um dos seus principais objetivos: a
alfabetização e a mobilização social, através da conscientização. Assim sendo, ao
pesquisarmos a R.E.B. observemos a aliança entre a Igreja e o Estado expressa através do
MEB:
Percebemos que, para manter sua hegemonia, a Igreja Católica seguiu o lema de evangelizar e
orientar a população rural utilizando como instrumento o MEB, pois este movimento possuía
a finalidade de introjetar os valores cristãos no homem rural e não apenas dar-lhe uma
educação e qualificação formais que o preparasse para a vida em um país que passava por
rápidas transformações econômicas. Deste modo, os camponeses se posicionariam mais
facilmente em prol de uma reforma agrária nos moldes legais, dentro da ordem, que garantiria
o direito de propriedade e a conservação da religião católica. Nossa opinião é endossada pelo
discurso de um padre franciscano na R.E.B., no início da década de 1960: “Reiteramos nossa
confiança no MEB e estamos certos de que sem educação de base será vão o esfôrço de mera
recuperação econômica, por mais aparato técnico de que se revista o planejamento.” (R.E.B.,
1961, p. 952)
Nesse sentido, para sustentar os valores cristãos, era mister reformar as consciências das
populações campesinas. E acreditamos ser essencial a utilização de Gramsci em nosso
7
Segundo Bruneau, depois do MEB, o sindicalismo rural foi o programa mais importante a fim de promover a
mudança social.
178
referencial teórico para compreendermos as estratégias adotadas pela Igreja Católica para
continuar vivendo na mente do povo.
Em 1960 ocorreu a declaração dos arcebispos e bispos presentes à reunião das províncias
eclesiásticas de São Paulo, a fim de discutir o projeto de Revisão Agrária do governo paulista.
Nesta declaração, os bispos dirigiam-se primeiramente aos proprietários rurais fazendo um
apelo no qual, afirmavam que a paz social do país encontrava-se nas mãos de tais
proprietários, e pediam que estes examinassem com cautela o projeto em questão.
Vossa responsabilidade também é muito grave. Procurai, quanto antes, uma pessoa
esclarecida e cristã que vos dê a palavra exata sôbre o alcance da Revisão Agrária, pois
seria uma lástima desconhecê-la e seria um perigo entendê-la mal, caso ela vos fôsse
apresentada de modo tendencioso por agitadores interessados em explorá-la [...] Quando o
comunismo vos convidar para grupos e ligas de defesa dos vossos interêsses, já deveis estar
organizados em núcleos democráticos e construtivos que desejamos ajudar a criar,
independente de qualquer exigência religiosa. (R.E.B., 1961, p. 136-137)
A partir do fragmento citado acima percebemos que a Igreja Católica procurou persuadir o
operariado rural a aderir este projeto, argumentando que a Revisão Agrária visava melhorar as
condições de vida no campo e que para isso não teria necessidade de nenhuma “agitação
vermelha”, logo percebemos uma disputa de hegemonia entre um projeto de esquerda
revolucionário e um projeto legalista cristão.
179
inevitável; a escolha é entre uma reforma equilibrada e razoável e a revolução rural que o
comunismo ateará explorando a situação precária e, por vêzes explosiva, do meio rural.
(R.E.B., 1961, p. 136-137)
Desta forma, os bispos mencionavam que seria um erro imaginar que todo modelo de reforma
agrária conduziria ao socialismo, ao contrário, existiria um modelo que o evitaria. E
concluíam que neste momento existiam duas opções: a primeira seria uma reforma agrária
dentro dos moldes legais, comedida e benéfica a sociedade; e a segunda seria a revolução
agrária nos padrões comunistas, que faria ruir toda a ordem e valores até então existentes.
Fica evidente, desta forma, que existia um temor, por parte da Igreja, de que houvesse uma
revolução no campo. Assim, a mobilização da instituição católica em prol de um modelo
pacífico de reforma agrária, que promovesse a justiça social sem a alteração do status quo,
demonstra o seu empenho em considerar o projeto paulista como exemplo para todo o país.
Percebemos que a Igreja possuía uma idéia de missão, ou seja, ao pelejar contra os problemas
sociais, a referida instituição e sua doutrina permaneciam na consciência do povo e ao indicar
soluções para tais questões, ela se propunha como fazendo parte da solução. Assim, ao
pesquisarmos a Revista Eclesiástica Brasileira compreendemos que a Igreja defendia a
utilização de uma doutrina social cristã, a fim de resolver os problemas do meio rural.
Não serão as doutrinas marxistas, atéias e desumanas, que irão salvar o homem do campo e
o operário de um País Cristão e de tradições pacíficas como é o Brasil. Aí está a doutrina
social da Igreja, consubstanciada na Rerum Novarum, na Quadragesimo Anno e, agora, na
oportuníssima Mater et Magistra, de João XXIII, capaz de resolver todos os problemas que
afligem o homem do trabalho em nossa querida Pátria. (R.E.B., 1961, p.780)
Nessa conjuntura, foi aprovado em 1963 o Estatuto do Trabalhador Rural, onde se estendeu
ao campo muito dos direitos do operariado urbano, inclusive o da sindicalização. Desta forma,
a luta pela reforma agrária foi seriamente atingida, uma vez que o Estatuto resolveria o
problema de uma parte dos trabalhadores rurais, e, por conseguinte, os afastaria do combate
em prol de tal reforma.
Podemos dizer que a Igreja avançou em muitos aspectos ao defender a sindicalização rural e
uma determinada reforma agrária. No entanto, concordamos com a tese de que essas medidas
progressistas eram uma forma de garantir a hegemonia de líderes católicos nas organizações
que fariam a interposição política das demandas dos camponeses junto ao poder público.
180
Posteriormente ocorreu o golpe civil-militar de 1964, e um de seus objetivos era impedir uma
revolução agrária no Brasil, a fim de evitar que a população rural interferisse no pacto de
classes que sustentava o país. Assim, o referido golpe teve, também, a finalidade de manter
um pacto que impedia a entrada dos trabalhadores rurais no processo político, tal ingresso dos
camponeses implicaria em uma redefinição do direito de propriedade no Brasil.
Neste período conflituoso foi lançado o Estatuto da Terra, que, segundo Martins (1975), foi
uma maneira de armar o Estado de instrumentos capazes de administrar os conflitos sociais no
campo. Devemos ter em mente que o Estatuto não apresentava um caráter unilateral (a favor
das elites), ou seja, isso demonstra que em momentos mais graves, a pressão dos
trabalhadores levava o Estado a aplicar os dispositivos a favor das classes subalternas
contidos neste documento.8
Assim, o Estatuto da Terra estabeleceu que a reforma agrária fosse prioritária nas terras
ocupadas por arrendatários e posseiros. Desta forma, o Estado promoveria o apaziguamento
de tensões sociais latentes no seio da sociedade rural, tensões estas que poderiam colocar em
xeque, a qualquer momento, o status quo.
Considerações finais
Percebemos que no período estudado, a Igreja Católica ocupou um lugar significativo nos
assuntos políticos do Brasil, mormente, em relação à reforma agrária e aos mecanismos
utilizados pela referida instituição para a manutenção de sua influência no campo.
No decorrer das décadas de 1950 e 1960 ocorreram mudanças nos projetos da Igreja no
campo social. Estas transformações foram perceptíveis principalmente no Nordeste do país,
onde os bispos da região passaram a discutir programas de desenvolvimento econômico,
reforma agrária, projeto de educação para reduzir o analfabetismo e sindicalização rural.
Nesse sentido foi lançado em 1965, um manifesto elaborado pelos três arcebispos e
secretários da CNBB no Nordeste, e apresentou o intuito de elaborar estudos e solucionar os
problemas da região supracitada.
8
Devemos ter em mente que apesar de algumas concessões feitas ao operariado rural, o que prevaleceu com o
Estatuto da Terra foi os interesses dos latifundiários, enquanto que as causas dos trabalhadores foram postas em
segundo plano. Para uma maior compreensão do Estatuto da Terra ver o seguinte site:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em 06 de abr. 2013.
181
No nordeste, como nas demais regiões do país, as estruturas sociais não estão preparadas
para aceitar a promoção das massas humanas. Abrir mão de privilégios excessivos; ter
olhos abertos para a situação dos trabalhadores rurais, ir além do assistencialismo,
atingindo a integração econômica e social da maioria dos nordestinos, ainda é exceção. E
como se isso ainda fôra pouco, comentam os Bispos, devido ao despertar do homem do
campo, açulado pelos comunistas, vivemos, então, um período de pressões, de violência e
sobressaltos. A Igreja não endossa os abusos nem olha com complacência o clima de tensão
que se criou pois ela tem sua linha que é a do Evangelho e querer confundi-la com qualquer
tendência ou atividade diferente significa desconhecê-la e julgá-la fora de seu espírito
próprio. (R.E.B., 1965, p. 131)
Portanto este plano, citado na R.E.B., apresenta uma parte pastoral, mas também abrange um
lado econômico e social, que compreende o movimento de educação de base, a sindicalização
rural e o interesse pelas reformas sociais. Assim, os bispos pretendiam continuar orientando
os trabalhadores, além de intensificar uma ação de esclarecimento junto aos empresários.
Grosso modo, o projeto de reforma agrária busca uma distribuição justa das terras e também
uma descentralização da estrutura fundiária. No entanto, este é um problema recorrente em
nosso país, uma vez que os grandes proprietários dificultam a desapropriação de suas terras,
utilizando até mesmo a jurisprudência para cobrarem valores acima do preço pelas suas terras
desapropriadas.
Logo, o programa político e social do episcopado não supera, e nem poderia superar, o
horizonte capitalista, uma vez que a Igreja compreende o direito de propriedade como um
direito natural. Entretanto, amplos setores da instituição entenderam que para ocorrer um
desenvolvimento pleno do capitalismo fazia-se necessário uma redistribuição das terras e uma
modernização do campo para que a economia rural não ficasse defasada.
182
Por fim, as profundas desigualdades sociais no meio rural e a manutenção do latifúndio foram
fatores decisivos para a conservação de uma democracia política muito distinta das reais
necessidades das classes populares. O que vemos é uma democracia extremamente limitada,
por ser incapaz de superar o clientelismo, os currais eleitorais e o poder dos latifundiários.
Referências
________; GRISP, Klaus Vander. Assistência rural e reforma agrária. História da Igreja no
Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo. Tomo II terceira época - 1930 -1964.
Petrópolis: Vozes, 2008, p.92-101.
KRISCHE, Paulo José. Problemas teóricos das relações entre a Igreja e o Estado na crise de
1964 In: SOARES, Ricardo Prata et al. Estado, participação política e democracia. Brasília:
CNPq/ Coordenação Editorial; São Paulo: ANPOCS, 1985.
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989.
_________. O poder do atraso: Ensaios da sociologia da História lenta. São Paulo: Editora
Hucitec, 1994.
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979.
183
Internet
Fontes primárias
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2- 134, 01, 01.
Pregai por sobre os telhados, volume 15, fascículo 02, junho 1955, p. 415. Cód. 2-135,
01,12.
O encontro dos bispos do nordeste, em Campina Grande, volume 16, fascículo 02, junho
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Segundo encontro dos bispos do nordeste, volume 19, fascículo 02, junho 1959, p. 461-462.
Cód. 2-135, 01,25.
Líderes para a revisão agrária, volume 21, fascículo 01, março 1961, p. 136-137. Cód. 2-
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Cód. 2-136, 01,01.
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184
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952. Cód. 2-136, 01,02.
Episcopado nordestino faz estudo e lança manifesto, volume 25, fascículo 01, março 1965, p.
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Documentos da CNBB
Dom Inocêncio Engelke. Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma rural. Campanha,
Minas Gerais, 1950 In: CNBB. Pastoral da Terra (Estudos da CNBB 11). São Paulo: Edições
Paulinas, 1976.
185
186
Congadeiros e hierarquia católica na primeira metade do século
XX em Minas Gerais
Sueli do Carmo Oliveira1
Introdução
Nessas irmandades, em ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário, reis e rainhas negros
eram entronizados e celebrados ao som de músicas e bailados executados pelos irmãos do
Rosário. Novos sentidos para a existência eram buscados, no momento em que os irmanados
reagrupavam-se a partir de novos laços e identidades. Foi, então, consolidando-se uma
religiosidade e uma identidade católica negra, fruto de uma história de encontros culturais
desiguais que se iniciaram ainda em solos africanos e que se intensificaram a partir da
diáspora imposta pelo tráfico de escravos (SOUZA, 2002, p. 259-310).
Formou-se nas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, um catolicismo peculiar, fato que
provocou, não raras vezes, disputas de poder entre os irmãos negros e os párocos em
diferentes contextos históricos. Mas, apesar do jogo permitir e reprimir, esse modo de
vivência religiosa gestada, principalmente, no interior das Irmandades negras, em que Nossa
Senhora do Rosário é louvada em meio a batuques, cânticos e danças e que a comunidade
elege seus Reis Congos e Rainhas Congas, manteve-se enraizado na vida dos devotos da Mãe
do Rosário que ainda hoje a louvam de modo singular em várias partes do Brasil. Atualmente,
no estado de Minas Gerais, é grande o número de cidades que sediam o chamado Congado ou
Reinado.
1
Mestre em Ciências da Religião pela UFJF. Contato: sueliufop@yahoo.com.br.
187
Várias foram às ações proibitivas dos rituais congadeiros no contexto de implementação das
diretrizes do Ultramontanismo em solos mineiros. A Reforma Ultramontana que começou a
ser implementado no Brasil em meados do século XIX e atingiu seu ápice nas primeiras
décadas do século XX, trata-se de um movimento que preconizava a romanização das práticas
do catolicismo e o estabelecimento de vínculos mais estreitos com o Vaticano. Esse novo
modelo eclesial, ancorado na ortodoxia tridentina, mostrou-se intransigente frente às múltiplas
formas de ser católico no Brasil ao buscar uma única identidade católica.
A paróquia de Santana em Itaúna/MG ficou sob jurisdição da diocese de Mariana até 1921,
quando foi criada a diocese de Belo Horizonte.2 Esse período foi marcado por um grande
crescimento do número de dioceses no país. Era o momento de construção institucional da
Igreja Católica no Brasil, levado a cabo após a proclamação da república e o fim do regime do
padroado. Essa expansão das estruturas institucionais durante a Primeira República
correspondeu a critérios associados às novas configurações do poder no período republicano.
Belo Horizonte tornou-se capital de Minas Gerais em 1897 e não tardaria em se tornar sede de
bispado. A criação das novas dioceses efetivou-se em consonância com processo de
estadualização (MICELI, 2009, p. 161).
A dita Reforma Ultramontana estava em curso desde a segunda metade do século XIX. No
entanto, não deixemos nos enganar pela homogeneidade que o termo deixa transparecer.
Como afirmou Ivan Manoel, várias foram às mudanças ocorridas no longo período de tempo
que o termo sugere abarcar. No início do século XX, período de construção institucional, a
hierarquia católica procurou exercer um maior controle sobre as práticas religiosas que se
2
A diocese de Mariana e a diocese de Belo Horizonte foram elevadas à categoria de Arquidiocese em 1906 e
1924, respectivamente.
188
distanciavam do cânone oficial. O fortalecimento institucional pode ser que tenha sido um dos
fatores que propiciaram esse maior enrijecimento. Nesse período, vamos notar uma série de
eventos que demonstram uma maior integração do episcopado brasileiro. Entre os quais,
destacamos: a proliferação das circunscrições eclesiásticas3, a realização do Concílio Plenário
Latino Americano em 1899 e de várias assembleias episcopais das províncias do norte e do
sul do Brasil e, por conseguinte, a publicação de um número significativo de documentos
coletivos, sendo um dos mais importantes do período, a chamada Pastoral Coletiva dos Bispos
do Brasil de 1915.4 Um importante documento canônico, essa pastoral coletiva regeu a Igreja
por aproximadamente três décadas, até que fossem promulgados os decretos do Concílio
Plenário Brasileiro em 1941 (LIMA, 2001, p.154). Essas são algumas evidências do
progressivo fortalecimento do episcopado brasileiro durante a primeira metade dos
Novecentos.
A partir de sua posse, Dom Antônio dos Santos Cabral, primeiro bispo da (arqui)diocese de
Belo Horizonte, procurou exercer maior domínio sobre as práticas religiosas heterodoxas no
interior do catolicismo. Uma série de recomendações foi dada ao clero diocesano para que
tomassem providências com vistas a disciplinar tais práticas e promover novas devoções
condizentes com o espírito tridentino. Verificamos no Livro de Avisos e Mandamentos da
Cúria de Belo Horizonte, por exemplo, além de recomendações disciplinadoras das devoções
tradicionais, grande preocupação, durante o bispado de Dom Cabral, com a promoção da
Festa de Cristo Rei, do Mês do Rosário e da Novena do Espírito Santo. São recorrentes os
avisos publicados com a finalidade de lembrar os párocos de suas obrigações de promover tais
solenidades em detrimento de outras, as quais se consideravam como barreiras para o êxito do
projeto ultramontano. É nesse contexto que se inscrevem as proibições episcopais às práticas
rituais do congado.
3
Foram criadas sessenta novas dioceses e outras treze foram elevadas a arquidiocese entre 1900 e 1942.
4
Sobre o impacto da pastoral coletiva de 1915 na relação entre Igreja hierárquica e catolicismo popular, conferir:
OLIVEIRA. Op cit., 1985.
189
eclesiástica de Belo Horizonte estiveram presentes em cartas pastorais e diversos avisos ao
longo da primeira metade do século XX.
Aos Revmos srs. Vigários, lembro de ordens do Sr. Bispo Diocesano, a necessidade de
suprimir-se a festa conhecida pelo nome de reinado. Não se faz mister acrescentar aqui
nenhuma outra razão àquelas que o Exmo. Sr. D. Cabral lhes apresentou por ocasião do
Retiro Espiritual. Daquelas considerações feitas então, resulta esta afirmação: é pensamento
e desejo da autoridade diocesana que desapareçam os reinados, que os fiéis sejam bem
instruídos sobre as vantagens da utilíssima devoção do rosário. 5
No início de cada ano eram realizados os chamados Retiros Espirituais, ocasião em que
membros do clero das várias paróquias da diocese reuniam-se. Era o momento em que o bispo
assinava os Livros de Tombo das paróquias e dava orientações pastorais ao clero ali presente.
O trecho acima afirma que durante um desses Retiros Espirituais, Dom Cabral havia elencado
algumas razões para que o reinado fosse suprimido em toda a diocese. Esse aviso foi
expedido no mês de agosto, período no qual geralmente iniciam-se os festejos do Reinado.
Podemos pensar que esse era um momento oportuno para lembrar aos párocos do “desejo da
autoridade arquidiocesana que desapareçam os reinados”.
Todavia, o que vamos perceber é que a motivação seja também outra. É bem provável que a
atuação dos párocos não estava sendo condizente com o discurso episcopal no que se refere à
proibição do Reinado. Pois, vamos encontrar a repetição do mesmo texto no aviso de nº 24,
publicado em 1924, ou seja, no ano seguinte. Ora, um aviso cujo fim era reafirmar as ordens
dadas no Retiro Espiritual é republicado. Essa falta de sintonia entre as ordens episcopal e sua
efetivação no âmbito das paróquias poderá ser aferida tanto nas reiteradas alusões à proibição
do Reinado nos documentos diocesanos quanto nas declarações do clero itaunense presentes
nos Livros de Tombo da paróquia. Como veremos a ordem de supressão dos Reinados não foi
acatada de imediato, haja vista a importância social desses festejos. Havia um espaço de
compartilhamento, mesmo que imbuído de tensões, de símbolos, e as festas em honra a Nossa
5
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 5: “Proibição da Festa chamada Reinado”. 10 de
agosto de 1923.
190
Senhora do Rosário congregavam vários grupos sociais, a despeito das diferentes vivências
rituais que esse evento englobava.
Destarte S. Excia. Revma. espera, pois, que o mês do Santíssimo Rosário seja para a
Diocese de Belo Horizonte a fonte de abundantes graças. Aproveito o ensejo para
comunicar o Revmo. clero que , por ordem do Exmo Sr. D. Cabral a secretaria do Bispado
fornece tudo o que é necessário para a instalação do Apostolado da Oração como também
se encarrega de pedir a agregação canônica de centros paroquiais à sede. 6
A devoção ao Rosário foi largamente recomendada pelo Papa Leão XIII e entrava em
contradição com a estruturação do culto à Senhora do Rosário que historicamente havia sido
estruturado por aqui, principalmente nas Irmandades de Homens Pretos, tão difundidas em
Minas no período colonial, local privilegiado dos congados e das coroações de reis negros. Se
por um lado o bispo buscava combater as práticas congadeiras, via-se, ao mesmo tempo, por
outro lado, diante da necessidade de promover a devoção ao Rosário em outros moldes. Essas
orientações para a realização do Mês do Rosário foram constantemente reafirmadas. Outro
6
Livro de Avisos da (Arqui)diocese de Belo Horizonte. Aviso nº 7. 21 de setembro de 1923.
191
aviso, de nº 7, veiculado no final do mês de setembro do mesmo ano de 1923, fora publicado
especificando inclusive os artigos a serem observados da Pastoral Coletiva de 1915 para
estruturar a devoção do Rosário, de acordo com o modelo tridentino.7
De ordem do exmo Vigário Geral, Mons. João Rodrigues de Oliveira, para governo dos
Revmos párocos e conhecimento de todos, vimos pelo presente, lembrar o aviso nº4 editado
pelo “O Horizonte” de 11 de agosto de 1923, em que o Sr. Arcebispo Metropolitano
suprimiu a festa de danças, conhecidas pelo nome Reinado. Para comprovar o acerto da
autoridade espiritual eliminando as tais danças consideradas com prejuízo e erro unidas aos
atos litúrgicos, basta aqui lembrar-se o conteúdo do nº903, título IV da Pastoral Coletiva
dos Srs. Bispos das Províncias Meridionais do Brasil. ‘Procurem os Revmos Párocos dar às
festividades religiosas o seu próprio caráter, eliminando-se os abusos, como sejam as folias,
danças etc, impeçam o desvio das esmolas recolhidas, a título de festas, para profanidades,
ou qualquer emprego alheio ao seu próprio destino’. 8
A primeira menção à proibição do Reinado em uma carta pastoral acontece em 1927, quando
foi publicado um documento que promulgava as “Determinações da Conferência Episcopal”
da província eclesiástica de Belo Horizonte realizada naquele ano. Essa carta pastoral
afirmava a “necessidade de cultivar as vocações sacerdotais” e alertava o clero sobre os
perigos da “invasão protestante” e do “contágio do espiritismo”, em concordância com a
tônica dos discursos do episcopado brasileiro nas primeiras décadas dos novecentos. É com o
mesmo tom enfático com que trata o protestantismo e o espiritismo, que essa pastoral refere-
se ao Reinado. No entanto, enquanto para o combate ao espiritismo, os párocos deviam lançar
mão de meios como “a divulgação de impressos que primem pela clareza na refutação dos
erros espíritas e reprovação dos seus processos de propaganda”, a supressão do Reinado devia
ser efetivado, ao que parece, pelo simples ato proibitivo.
192
particularmente dignos de reprovação, quando tais Reinados intervêm nas procissões ou
funções da igreja, pretendendo até distinções litúrgicas. Ainda mesmo que não se
verifiquem tais abusos, essas danças são indesejáveis, porque se prolongam por tempo
excessivo, obrigando os dançantes a beber em demasia, donde se originam as
consequências de costume.9
Estamos diante de um documento, que quatro anos depois do primeiro aviso expedido
orientando a supressão do Reinado, reafirma a postura do arcebispado ante as práticas
congadeiras. Desta vez, além de lamentar o não desaparecimento do Reinado, alguns motivos
são explicitados. Das suas justificativas para a dita reprovação, podemos perceber a
importância do Reinado na organização do culto de Nossa Senhora do Rosário: era comum
que as guardas de congado participassem das procissões, inclusive com distinções litúrgicas.
Com relação aos motivos elencados para justificar a proibição do congado, vamos perceber
que a argumentação parte de razões internas ao culto religioso (“congados que põem quase
sempre uma nota humilhante nas festas religiosas”) e alcança argumentos de cunho moral e de
ordem pública (o fato dos dançantes “beber em demasia, donde se originam as consequências
de costume”). Talvez fosse essa uma estratégia para ampliar o número de adesões ao projeto
de supressão do Congado junto ao clero e a outros grupos da sociedade, em um momento em
que rituais e práticas da comunidade negra e seus convivas eram vistos, em geral, como
ameaças à ordem, segurança e moralidade públicas (SEVCENKO, 1998, p. 21).
Ao nos debruçarmos sobre a atuação pastoral frente a essas determinações episcopais, vamos
notar um descompasso nas ações pastorais. Essa irregularidade na execução de ordens da
autoridade diocesana foi o que gerou, por vezes, uma implementação tardia das diretrizes de
Dom Cabral com relação à proibição do congado. A Reforma ultramontana no âmbito das
paróquias assumira, portanto, um caráter fragmentário.
193
fundamental para mapearmos a atitude do clero frente ao Reinado nesse período.
No mesmo ano em que os párocos haviam sido orientados a tomarem medidas de supressão
do congado no Retiro do Clero e obtiveram reafirmação dos propósitos do bispo por meio de
aviso, encontramos o seguinte registro no Livro de Tombo da Paróquia de Santana em Itaúna,
datado de 1923:
Reinado. É a festa mais popular de Itaúna, parece estar na massa deste bom povo. Até esse
ano ainda o fiz, mas em vista do texto diocesano, publiquei sua abolição. Acredito que a
autoridade diocesana será instada para licenciá-la não só para aqui como para outros
lugares. É a festa a quase única fonte de renda para a igreja. Em caso de consentir
novamente a festa, tenho certeza de que a forma será completamente modificada pela
inteligente autoridade.10
Esse registro é do Pe. João Ferreira Alves que estava à frente da paróquia desde 1902 e não
via incompatibilidade entre o Reinado, “festa mais popular de Itaúna” e o “bom povo”
daquele município. O Reinado não era visto como prática que corrompia a moral e os
preceitos da fé católica. Há mais de vinte anos como pároco em Itaúna, Pe. João deixa
transparecer que bastavam impingir medidas disciplinadoras ao Reinado, tal qual era a
orientação da autoridade episcopal para as demais festividades tradicionais. Acreditava ainda
que Dom Cabral fosse examinar cuidadosamente a questão e voltar atrás em sua postura
proibitiva, licenciando o Reinado não só para Itaúna “como para outros lugares”. Pe. João
Ferreira mobiliza um bom argumento para esse licenciamento do Reinado, pois, segundo ele,
“é a festa a quase única fonte de renda para a igreja”. Em um momento em que o bispo, ao
assumir o governo da diocese, afirmava que ela estava em um estado “de carência de tudo” e
reclamava do clero empenho em contribuir para o aumento da renda, esse podia ser um bom
argumento!11 No entanto, parece que as rendas auferidas pelo Reinado não eram de tal monta
que levasse o bispo a ensejar uma orientação contrária ao ato proibitivo. Coincidência ou não,
o ano de 1923 foi o penúltimo de Pe. João Ferreira à frente da paróquia de Santana.12
10
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1923. p. 4
11
Circular n°1 – “Tributo sagrado” – Apelo ao clero e ao povo de Belo horizonte. Belo Horizonte, 1922.
Em 1929, outra circular é publicada e, por conseguinte, registrada no Livro de Tombo da paróquia de Santana,
cujo conteúdo lembrava os paroquianos do compromisso de contribuírem com a construção do novo seminário e
que para tal era sugerida a realização de festivais: “Aos 16 deste mês, D. Cabral publicou uma circular nº16
relembrando ao clero e fiéis, o sério compromiso; e mandando que faça coleta em todas as missas, em todos os
domingos, em todas as matrizes e capelas do Arcebispado, logo que se tenha conhecimento da referida circular.”
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1929. p. 20.
12
O Pe. Cornélio Pinto da Fonseca assume primeiramente o cargo de coadjutor, mas em dezembro de 1924
torna-se vigário. Pe. João Ferreira, nessa ocasião, foi nomeado capelão da Santa Casa.
194
Uma das motivações para a severa regulamentação das festas religiosas estava em estreita
relação com a alocação de recursos coletados. Grande parte das coletas era empregada em
decoração, banquetes, fogos e apenas pequena parcela era repassada para a Igreja.
Encontramos um aviso (nº 30) expedido em 1925 – cujo intuito era orientar os párocos nos
preparativos para a visita pastoral – alusões a práticas muito próximas das características das
práticas congadeiras e que explicita restrições às tais “despesas imoderadas”.
Consoante às práxis já observadas nas visitas pastorais, chama a atenção dos Revmos
Vigários o Exmo Arcebispo para que em tempo estabeleceu, não permitindo festas,
banquetes, nem outras manifestações ruidosas, que possam determinar despesas
imoderadas, sem maior proveito espiritual. Muito particularmente encarece dos Revmos
Vigários que instruam os paroquianos anunciando-lhes as inestimáveis mercês que lhe
estão reservadas pela visita pastoral convenientemente compreendida e executada. Por isso,
desde o início dos trabalhos da visita deverá inspirar nas localidades o maior recolhimento,
o espírito de oração, a assídua assistência aos piedosos exercícios não sendo tolerado, de
modo algum, folgança, dissipações e profanidades, que só poderiam ser para frustrar o êxito
da santa visita.13
O interessante é notar que o aviso começa com uma declaração de que “festas, banquetes e
outras manifestações ruidosas” faziam parte da “práxis observadas nas visitas pastorais”, o
que motivara as determinações desse documento. Fato esse que demonstra a existência de
dissonâncias entre as diretrizes episcopais e a prática do catolicismo observada nas paróquias.
É ainda curioso, que o posicionamento já citado do Pe. João Ferreira favorável à continuidade
do Reinado, não parece ter sido um fato isolado nesse contexto. No aviso nº 51, publicado em
1926, encontramos uma alusão a pedidos de párocos em favor da permanência das práticas
congadeiras que possivelmente, como o Pe. João Ferreira, não viam o Reinado com maus
olhos. E ainda, sabiam da importância social que tais práticas assumiram na formação do
catolicismo em solos brasileiros. Após renovar as determinações do arcebispo referentes à
proibição do Reinado e à promoção da devoção do Rosário, o texto desse aviso é concluído
com os seguintes dizeres: “Espera S. Exa. Revma. cessem de vez os pedidos para se
justificarem as danças que outrora abusivamente se introduziram nos atos litúrgicos da festa
de Nossa Senhora do Rosário.”
195
tempo bem mais breve, o que pode ter desfavorecido vínculos mais consistentes entre párocos
e congadeiros. Durante quatro anos, entre 1924 e 1928, em que o Pe. Cornélio Pinto fica à
frente da paróquia de Santana, nenhuma alusão ao Reinado e à festa de Nossa Senhora do
Rosário foi constatada no Livro de Tombo. Há referência apenas à realização do Mês do
Rosário, dentro dos padrões tridentinos.
Mês do Rosário. Foi celebrado conforme a Pastoral Coletiva, com muita frequência aos
sacramentos e muita animação por coincidir com a reconstrução da igreja do Rosário que se
achava em franca ruína. As solenidades tiveram no centro praticar no dia de Cristo Rei,
festejado com tríduo, procissão, sermão, benção e numerosa comunhão. 14
Apesar do registro de que foi realizada uma procissão, não há nenhuma menção à participação
do Reinado nesse Mês do Rosário. Não obstante, em 1929, o novo pároco, Pe. José Joaquim
de Queiroz, afirma ter promovido a Festa de Nossa Senhora do Rosário, com a realização de
procissão, mas desta vez, explicita que a presença do Reinado não havia sido permitida. De
forma suscinta, ele registra que no ano de 1929 “levantou-se esta festa [de Nossa Senhora do
Rosário] fazendo-se a procissão como as demais não se permitindo o chamado Reinado. Tudo
correu bem.” 15
Essa forma abreviada com que o pároco relata a Festa de Nossa Senhora do Rosário, contrasta
com o registro do ano seguinte. Se na leitura da passagem acima somos levados a acreditar
que os ritos do Reinado foram totalmente extintos das festividades em honra a Senhora do
Rosário, talvez não tenha sido bem assim. A forma suscita com qual o pároco fez o registro,
pode ter facultado-lhe a omissão de alguns detalhes desse festejo. Pois, ao registrar a
realização dessa mesma festa em 1930, aponta que teria sido feita a “coroação dos Reis” e o
“cumprimento de promessas”, apesar da procissão não ter sido acompanhada pelas guardas de
Reinado.
Esse assunto foi tratado de forma melindrosa. Desta vez, apesar de explicitar a realização de
14
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1926. p. 18
15
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1929. p. 20
16
Livro de Tombo I da Paróquia de Santana. 1930. p. 23
196
alguns ritos do Reinado (no caso, a coroação de reis e o pagamento de promessas), o registro
da Festa de Nossa Senhora do Rosário já aparece com o título indicando sua extinção. É
possível perceber que o pároco usa de recursos retóricos atenuadores em seu relato, como por
exemplo, inicia-o com uma frase minorando sua importância: “em agosto não se registrou
nada de importante. Apenas se fez uma ligeira festa de Nossa Senhora do Rosário”. Ele ainda
ameniza tal evento, ao empregar o adjetivo ligeira. Melindres empregados diante de uma
determinação episcopal que ao que parece não encontrava muita legitimidade no âmbito
paroquial em Itaúna. A estruturação da devoção do Rosário em moldes tridentinos, no
contexto local, mostrava-se mais como desejo e expectativa do episcopado do que uma
realidade pastoral. As forças contrárias podem ter sido várias: o enraizamento histórico do
Reinado nas festividades em devoção a Nossa Senhora do Rosário, o dissenso dos párocos e a
pressão social contrária à proibição exercida por parte da sociedade itaunense e,
principalmente, por aqueles que têm essa devoção como um sinal diacrítico de suas
identidades, os congadeiros.
Após o Retiro do Clero de janeiro de 1931, Pe. José Joaquim de Queiroz é afastado da
paróquia Santana. Como pudemos perceber, sua permanência em Itaúna como pároco foi por
um período inferior a três anos. O novo vigário, Pe. Inácio Fidelis Campos, ao que parece,
mantivera a proibição do Reinado em 1931, mas não deixou de registrar a insatisfação do
povo com a medida.
Celebrou-se na capela deste nome, a festividade de Nossa Senhora do Rosário este ano, sem
grande entusiasmo e animação como antigamente devido achar-se o povo mal satisfeito
com a proibição do Reinado. Houve intenso movimento espiritual nas associações. 17
A insatisfação dos fiéis itaunenses com a proibição do Reinado gerou um esvaziamento das
festividades em honra a Nossa Senhora do Rosário no município. O pároco, todavia,
contrapôs essa situação de pouco “entusiasmo e animação” ao “intenso movimento espiritual
nas associações”. Seria o fim do Reinado e o fortalecimento de uma nova forma de
organização do culto à Virgem do Rosário em conformidade com os princípios tridentinos?
197
fechada.” 18
Considerações finais
198
Os primeiros documentos episcopais que explicitavam o posicionamento contrário à
continuidade dos festejos do Reinado na diocese de Belo Horizonte datam da década de 1920.
Ao adentrarmos o universo da paróquia de Santana em Itaúna pudemos perceber que as
ordens de Dom Cabral não foram cumpridas imediatamente pelos párocos. Foi possível
apreender em nossas pesquisas que houve certa falta de sintonia entre tais ordens episcopais e
sua efetivação no âmbito das paróquias, fato que pôde ser aferido tanto nas reiteradas alusões
à proibição do Reinado nos documentos diocesanos quanto nas declarações do clero
itaunense, presentes nos Livros de Tombo da paróquia. Acreditamos que a ordem de
supressão dos Reinados não foi acatada de imediato devido à importância social alcançada por
esses festejos. As festas em honra a Nossa Senhora do Rosário, nas primeiras décadas do
século XX, congregavam vários grupos sociais, a despeito das diferentes vivências rituais que
esse evento englobava. Elemento que dificultava a efetivação da proibição episcopal no
âmbito das paróquias.
Referências
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partir do povo (terceira época 1930-1964). Petrópolis: Vozes, 2008.
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brasileira de História. vol.17, nº 34.1997.
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SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: História da festa de coroação
de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
200
201
Notas sobre a atuação da vice-província redentorista de aparecida
na revolução constitucionalista de 1932
José Tadeu de Almeida1
Introdução
Este trabalho visa analisar a orientação da Igreja brasileira durante a chamada Revolução
Constitucionalista de 1932, com especial foco sobre a região de Aparecida (SP), onde
localiza-se o Santuário da padroeira do Brasil, N.S.Aparecida, e sobre a comunidade de
sacerdotes da Congregação do Santíssimo Redentor (Redentoristas).
Mais que isso, é importante perceber o enfoque de D. Duarte sobre o Santuário de Aparecida
– que à época, além de ser um centro de peregrinação e irradiação da doutrina católica,
mantinha um parque gráfico de imprensa católica e sustentava financeiramente a
Arquidiocese com as rendas de seus cofres. Os papéis desempenhados pela comunidade
Redentorista de Aparecida – liderada à época pelo pe. Antão Jorge Hechenblaickner – na
intermediação entre as partes envolvidas e no trabalho pastoral, além da operação de retirada
da imagem de Nossa Senhora Aparecida de seu Santuário, na iminência de bombardeio sobre
1
Doutorando em História Econômica pela USP. Contato: josetadeu_almeida@yahoo.com.br.O autor agradece
calorosamente ao Centro de Documentação de Memória 'Pe. Antão Jorge', do Santuário Nacional de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, na pessoa do sr. Edson e das sras. Dorothéa, Deise e Maria Laura, pela
paciência, apoio logístico e pela cessão de documentos para a execução deste trabalho.
202
a cidade, contribuem também para a realização de um estudo que verifique parte do
desempenho da Igreja Católica em São Paulo entre Julho de Outubro de 1932.
Neste sentido, é importante definir um referencial metodológico para a análise dos temas.
Quanto a este trabalho, dividimo-lo em quatro partes. Em um primeiro momento, à guisa de
introdução ao tema, explicitamos alguns detalhes no que diz respeito ao status quo da
Arquidiocese de São Paulo no início dos anos 1930, e a posição do Santuário de Aparecida
neste contexto.
203
A reformulação do modus operandi no Santuário no início do século XX deriva de duas
fontes principais: Por um lado, pela interferência direta da Arquidiocese de São Paulo 2, que
como administradora deste templo podia atuar diretamente na administração dos bens da
Basílica; e por outro, pela Congregação Redentorista, cujos primeiros padres enviados para
Aparecida, de formação alemã, aplicaram uma catequese para as multidões impregnada da
doutrina romanista presente na Igreja européia do século XIX3.
Mais que isso, porém, é importante ressaltar que o controle do Santuário esteve reservado à
Arquidiocese de São Paulo, conforme aludimos anteriormente: Em 1908, quando da criação
de novas dioceses sufragâneas e da elevação da Sé de São Paulo à categoria de Arquidiocese,
a cidade de Aparecida pertenceria à Diocese de Taubaté. Contudo, como as rendas do
Santuário eram, em boa medida, responsáveis pela sustentação financeira da Igreja em São
Paulo, os arcebispos do Rio de Janeiro – Dom Joaquim Arcoverde, já cardeal – e São Paulo,
Dom Duarte Leopoldo e Silva, realizaram um intenso jogo diplomático no Vaticano a fim de
manter Aparecida sob o controle da Arquidiocese de São Paulo. Conseguida a permissão – e
para a provável frustração de D.Epaminondas, bispo de Taubaté – o Santuário e suas rendas
continuaram submissas à capital paulista5. (FREITAS, 2004).
2
A diocese de São Paulo foi criada em 1745 através da bula Candor Lucis Aeternae, do papa Bento XIV; seu
primeiro prelado foi Dom Bernardo Rodrigues Nogueira (1745-48). Na gestão de Dom Duarte Leopoldo e Silva
há a elevação ao status de Arquidiocese (1908).
3
Maiores informações a respeito do desenvolvimento do Santuário de Aparecida no período anterior a 1930
podem ser encontradas em BRUSTOLONI (1998) e ALMEIDA (2005).
4
Celebração realizada por D. Sebastião Leme na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, perante uma multidão
calculada em mais de um milhão de pessoas, com a presença do presidente Getúlio Vargas e todo o corpo
diplomático.
5
É importante frisar que as rendas líquidas do Santuário contribuíram para o soerguimento da Arquidiocese,
através das construções do Seminário Central do Ipiranga, do Arquivo Metropolitano, da criação de novas
paróquias e, obra gigantesca para os padrões de então, a nova Catedral da Sé.
204
Figura 01 - D. Duarte Leopoldo e Silva (segurando a Veneranda Imagem) e D. Sebastião Leme. Proclamação do
Padroado de N.S.Aparecida, Rio de Janeiro, 1931.6
6
Fonte: Centro de Documentação e Memória do Santuário Nacional.
7
Grande número de peregrinos também chegava ao Santuário por outros meios, como cavalos, automóveis –
estes mais raros – ou mesmo à pé, contudo, linhas regulares de ônibus para a cidade só começaram a surgir em
1935.
8
Os primeiros contatos em prol da construção de um novo templo em Aparecida remontam a 1926; a partir de
1935, a idéia toma vulto, contudo D.Duarte afirmava ‘estou velho, a Nova Basílica fica para meu sucessor’. Dom
José Gaspar de Afonseca e Silva, que assume a Arquidiocese em 1939, endossa o plano, mas sua morte
prematura frustra as expectativas gerais. Será apenas em 1955, na gestão do Cardeal Motta, que as obras do
Santuário novo terão início.
205
Da Revolução e as operações militares da Revolução no Setor Norte
Não pretendemos, neste tópico, delongarmo-nos a respeito das causas que engendraram a
eclosão do movimento revolucionário de 1932. De todo modo, convém enfatizar algumas
nuances específicas, a fim de situarmos nosso objeto temático ao eixo das discussões.
Apesar de ter sido conduzido ao poder através de uma proposta de modernização política e
econômica do país, Vargas a princípio acena com uma implementação destas mudanças em
um corte mais autoritário, depondo governadores, fechando o Congresso e derrubando a
Constituição de 1891. Tal situação traz intenso desagrado de algumas elites tradicionais,
notoriamente a elite paulista, que passam a trabalhar de maneira oposta ao governo Vargas.
206
e civis paulistas armados. O Quartel-General da 2a Divisão de Infantaria em Operações,
comandada pelo Cel.Euclydes Figueiredo, foi montado em Lorena, deslocando-se dias após
para Cachoeira Paulista, alguns quilômetros adiante (DONATO, 1982).
A campanha do Vale, porém, seria marcada constantemente por lances ousados – como a
conquista e manutenção, por dois meses, do Túnel Ferroviário da Mantiqueira, na divisa entre
São Paulo e Minas Gerais – e tentativas de ofensiva constantemente repelidas pelas tropas
federais. Contra os 7.049 homens em armas de São Paulo9, formados por batalhões da Força
Pública, soldados regulares do Exército, milícias M.M.D.C. e civis armados, arrojaram-se
mais de 20.000 soldados regulares do Governo Provisório, que teve de recrutar soldados de
lugares como Pará e Amazonas para assegurar um número suficiente de combatentes ao longo
dos 82 dias do conflito.
Com o avanço das tropas federais, dada a superioridade em homens, armas, artilharia
(incluindo canhões navais montados em vagões) e aviação, os paulistas foram obrigados a
recuarem constantemente, perdendo terreno: As posições no estado do Rio de Janeiro foram
abandonadas em fins de julho, tendo os paulistas montado novas trincheiras em Queluz, na
fábrica de pólvora de Piquete, e no setor do Túnel.
Esta linha de resistência foi quebrada a 8 de Setembro, sendo ordenado recuo geral: a partir de
Cachoeira Paulista, o comando das forças retraiu-se para Lorena, para Guaratinguetá e, por
fim, para Aparecida, onde passou a funcionar já nos estertores da Revolução, a 19 de
setembro. Para tentar deter novas ofensivas, monta-se uma nova linha de trincheira,
perpendicular à ferrovia Central do Brasil, junto à estação de Engenheiro Neiva. A batalha,
porém, não acontece: Em fins deste mesmo mês, um armistício celebrado em separado entre a
Força Pública de São Paulo e o comando das tropas do Governo Provisório torna
insustentável a manutenção do conflito armado, que foi oficialmente encerrado às 8 horas do
dia 2 de outubro de 1932 (DONATO, 1982).
9
FIGUEIREDO (1981), Parte II.
207
dos trens de transporte de tropas. Contudo, com o recrudescimento do conflito, e a recuada
das forças constitucionalistas, a região tornou-se paulatinamente mais sensível ao bombardeio
e á ocupação por forças do Governo Provisório. Em 19 de Setembro, o Quartel-General da
Frente Norte foi montado na estação ferroviária local: Em 2 de Outubro, importante ofensiva
seria desfechada pelas forças leais a Vargas, e a cidade entraria na linha de tiro: O término do
conflito algumas horas antes, porém, não precipitou tais acontecimentos.
No que alude ao papel da Igreja local, liderada pela Comunidade Redentorista, toda a sua
atuação foi documentada pelo padre que acumulava as funções de Superior da Comunidade e
Vigário da Basílica10, Pe. Antão Jorge Hechenblaickner. Conforme pode-se depreender em
suas anotações, a consciência da Igreja local residia em tentar eximir-se do debate político,
frisando o atendimento espiritual e a caridade através da cessão de gêneros de primeira
necessidade aos pobres e refugiados.
A narrativa de Pe. Antão é de tal modo conclusiva que é possível utilizá-la em sua plenitude,
fazendo apenas os adendos necessários para fins de localização e informação. Ela tem como
objetivo fornecer explicações públicas sobre alguns eventos ocorridos na cidade, além de
atitudes tomadas pela Congregação para a preservação da vida e da propriedade da
comunidade religiosa, e que foram interpretadas como “entreguistas” e “traidoras”. Procurou-
se manter a grafia original:
Pouco depois do levante paulista orientou S. Exa. D. Duarte, nosso chefe espiritual, as
consciências catholicas, approvando-o junto com os homens mais eminentes do estado num
manifesto publico11. Em telegrama dirigido ao vigário da Basílica pediu S.Exa. todo o
auxílio (espiritual) possível aos soldados. Os P. Andrade 12 e Alves13 seguiram logo como
cappelães militares para a linha de frente 14, e mais tarde também o p. Pires15.
10
Cargo semelhante ao hoje desempenhado pelo sacerdote reitor do Santuário.
11
O manifesto requerido, em grande possibilidade, é o intitulado ‘Ao povo brasileiro’, lançado em 14 de julho e
cujo principal signatário é D.Duarte.
12
Padre Antônio Pinto de Andrade (1894-1968), missionário redentorista, vigário e superior da casa de
Aparecida na década de 1940. Seu necrológio assim o define: “Um grande confrade, não só pela sua gordura,
mas principalmente pela sua imensa candura. Grande, generoso e compreensivo, seu coração estava em todo seu
modo de falar e de agir”.
( http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_antonio_pinto_de_andrade.)
13
Padre Francisco Braz Alves (1887-1964), superior das casas de Tietê e Sorocaba, além de mestre de noviços e
professor da casa de Aparecida. Pregador de missões e confessor junto aos romeiros no Santuário Nacional.
208
A Basílica tornou-se durante os 3 meses da luta o centro predilecto do conforto moral e
religioso para civis e militares. 3 vezes ao dia reuniram-se os fiéis para preces fervorosas
nestes tempos afflictivos, pedindo à Excelsa Padroeira paz para o Brasil. A Archiconfraria 16
chefiava este movimento levando os convites ao povo. Nas communhões gerais destes 3
meses se distribuíram 30,000 partículas.
As tropas indo para a luta ou regressando faziam questão de estar ao menos alguns
momentos ao pé da Imagem Milagrosa e levar alguma medalha benta. Consoladora foi a
freqüência aos actos religiosos e dos sacramentos pelos soldados da lei. O próprio Estado-
Maior do setor Norte, o cel. Euclydes Figueiredo na frente, carregou numa procissão
(ilegível) no largo o pallio. Diversas veses pediram chefes do movimento, sr. João Neves,
aviadores, etc, para que se abrisse a Basílica de noite, por não dispor de tempo.
209
A comissão da colecta do ouro recolheu donativos avaliados em 6 contos que, findo o
movimento paulista, foram entregues à Sta. Casa desta cidade 19. Inaugurando-se o hospital
de sangue no grupo, tomou o pe. João Baptista20 sobre si os auxílios espirituaes dos feridos.
2 imagens de N.S.Apparecida acompanharam nossos capellães em seu trabalho (frutuoso)
junto dos combatentes.
Nas ultimas semanas da luta, após insistência repetitiva do governo paulista, formou-se
aqui um corpo de voluntários que ganharam a simpathia geral, denominando-se Batalhão de
Nossa Senhora Aparecida21. Com grande enthusiasmo benzem-se o estandarte ou a
bandeira, que apresentou sobre as cores do Pavilhão nacional a Imagem da querida
Padroeira. Attendendo aos pedidos dos voluntários apparecidenses, acompanhou-os o
Vigário até S.Paulo, promettendo de lhes arranjar o pe. Macedo 22 como capellão, si
realmente tivessem de seguir para a lucta. Dando-se este caso inesperadamente, enquanto
estavam recebendo instrucções militares, lá mesmo foi nomeado o Capellão. 3 semanas
estiveram no fogo, mas com a protecção de N.S. todos voltaram illesos para seus lares.
19
Praticamente toda a arrecadação não empenhada no esforço de guerra foi doado à instituições beneficentes.
Para o caso da campanha ‘ouro para o bem de São Paulo’, o saldo, da casa de milhares de contos de réis, foi
revertido para a Santa Casa de Misericórdia da capital.
20
Padre João Batista Kiermeier (1874-1958). Nascido em Reichetsheim, Alemanha. Vice-Provincial de São
Paulo, e jornalista do ‘Santuário d’Apparecida’.
(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_joao_batista_kiermaier)
21
Com 53 voluntários enviados, o ‘Batalhão N.S.Apparecida’ mal completaria os efetivos de um pelotão, sendo
agregado a outros grupos para compor o efetivo do grupo de combate, de 700 membros. Permaneceu por alguns
dias no QG do M.M.D.C. na praça da República, na capital, seguindo depois para a zona de operações de
Campinas. Foi liderado pelo Cap. Trita, do Estado-Maior do destacamento comandado pelo Cel. Eduardo
Lejeune (CANAVÓ & MELO (1978), p.287).
22
Dom Antônio Ferreira de Macedo (1902-1989), sacerdote redentorista, Bispo auxiliar de São Paulo (1955-
1958), Administrador apostólico da Arquidiocese de Aparecida (1958-1964) e Arcebispo auxiliar (1964-1978).
Um dos grandes responsáveis pela construção da ‘Basílica Nova’ e do Seminário Santo Afonso, em Aparecida.
(http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/memorial_sp.asp)
23
Fonte: Centro de Memória do Santuário Nacional.
210
Recuando as forças paulistas das fronteiras do estado, tornou-se cada vez maior o número
dos necessitados que de perto e de longe se refugiaram à sombra de N.S.Apparecida. O
Vigário obteve da M.M.D.C. e de outras instituições caritativas mantimentos que distribuiu
auxiliado pelos vicentinos e damas de caridade. Principalmente mostraram-se assíduos e
abnegados nestas distribuições o vicentino Nico Reis e a thesoureira das Damas de
Caridade D. Mariquinha Veiga. Muitas veses, enquanto centenas de indigentes se
acotovelavam na frente da dispensa das 8-14 hs, os aereoplanos (sic) voaram em cima e
jogaram bombas na visinhança24. De 20/9 a 12/10 foram distribuídos a 9265 pessoas 3701
litros de feijão, 4150 l de arroz, 1148 litros de farinha, 1722 de fubá, 515 kg de banha, 1236
kg de assucar, 708 k de xarque, 229 kg de café, 100 kg de macarrão, 57 kg de sal e 100 l de
aseite.
O P.Andrade foi incansavel como capellão, ganhando por seu zelo, sua jovialidade e seu
espírito de sacrifício a estima de todos os soldados e dos próprios officiaes. O P. Pires
trabalhou também muito, enquanto o P. Alves demorou-se pouco na frente por ter outros
capellães no mesmo setor.
A accusação a que se refere o Sr. Cardeal foi motivada pelo seguinte: Nós tínhamos de
ceder o edifício onde funcionava o Colégio de Santo Affonso28 ás tropas paulistas. Por isso
24
As crônicas de guerra não fazem menção direta a esta constância de ataques à cidade de Aparecida, salvo no
dia 26 de Setembro de 1932, quando um bombardeio aéreo atingiu a estação ferroviária da cidade onde, como
vimos, estava instalado o QG da 2ª D.I.O., com uma morte e vários feridos. Possivelmente, nem mesmo a
artilharia de terra do Governo Provisório fosse capaz de causar os danos afirmados pelo Pe. Antão, dado que a
principal linha de frente constitucionalista era em Engenheiro Neiva, distrito de Guaratinguetá distante cerca de
10 quilômetros de Aparecida: as ‘bombas na visinhança’ poderiam constituir-se em ilustração. Contudo, a
vivacidade e precisão do Pe. Antão ao situar as áreas atingidas por bombas conferem significativa cota de
veracidade aos fatos.
25
Este telegrama visava dar à comunidade de Aparecida a mesma iniciativa do Bispo de Botucatu, D. Carlos
Duarte Costa, que formou um batalhão de combatentes com os seminaristas e jovens da sociedade local,
conhecido como o ‘Batalhão do Bispo’. Este ato, aliado à postura ‘liberal’ de D. Carlos na administração dos
bens da Diocese, engendraram o seu afastamento. Posteriormente, D. Carlos ficaria conhecido por romper com a
Igreja Católica Romana e fundar a Igreja Católica Brasileira, em 1945.
26
Padre Valentim Mooser (1892-1975). Chegou em 1922 ao Brasil, radicando-se em Aparecida. Responsável
pela edição do ‘Almanaque de N.S.Apparecida’ por mais de trinta anos, retornou após este período para a
Alemanha, onde faleceu. http://www.a12.com/redentoristas/cssrsp/padres.asp?pad=pe_valentim_mooser
27
Dom Sebastião Leme, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro.
28
Seminário menor da comunidade Redentorista, onde estudavam os jovens admitidos á Congregação antes de
serem enviados para os estudos de Filosofia e Teologia no Rio Grande do Sul, na Argentina ou na Europa. Teve
suas dependências ocupadas posteriormente pelo Hotel Recreio, que por pertencer à comunidade redentorista,
211
ficaram os alumnos no próprio convento 29. Diariamente lançaram os aereoplanos
dictatoriaes bombas sobre os arrabaldes de Apparecida. Na nossa chácara cahiram (muitas)
bombas, no Asylo ficou ferido um velho, outros cahiram na padaria de Jayme Ribeiro, perto
da Redacção da Luz30 e do Hotel Fidêncio; na estação foram incendiados vários vagões,
matando 1 homem e feridos outros. Para garantir a vida e a propriedade da Congregação
Redemptorista, não tínhamos outro recurso, que colocar, após prévia autorização do
embaixador allemão no Rio, a bandeira allemã. Além da garantia contra os aereoplanos
queríamos uma segurança contra os engenhos de alguns militares e médicos paulistas, de
obter nosso convento para allojamento de officiaes ou hospital de sangue. Como já
cedemos tudo que era possível, o collegião 31 e a chácara32, os salões da U.M.C. (União
Catholica de Moços, nota do autor)33 e dos romeiros, não podíamos sahir da nossa casa e
abandonar a Basílica. Tendo içado a bandeira allemã éramos livres de uma requisição
forçada.
Um 3º motivo ainda nos aconselhou a pôr a bandeira, o perigo de um saque numa invasão
possível de tropas contrárias a S. Paulo, casos que se deram realmente nas egrejas e casas
parochiaes de Silveiras e Cachoeira e no Collegio S. José, de Lorena34.
No dia 25 de setembro, veio o rev. Vigário Geral, Mons. (ilegível) Pinto 35, para buscar, por
ordem do Sr. Arcebispo a Imagem milagrosa que devido aos bombardeios de aereoplanos
não estava segura aqui36. Durante a sua ausência foi substituída por um fac-símile, de modo
que poucas pessoas notaram a mudança. No dia 6 de Outubro o Vigário foi procural-a na
Capela particular do Palácio S. Luiz em São Paulo.
tinha suas rendas aplicadas, conforme a propaganda do hotel, ‘em prol das vocações sacerdotais’. Hoje o Hotel
Recreio é administrado por iniciativa privada.
29
O convento da praça N.S.Aparecida (Figura 04) foi residência dos missionários até 3 de Outubro de 1982,
quando a comunidade redentorista se mudou para o convento da Basílica Nova, recém-construído.
30
Luz d’Apparecida, jornal local de duração efêmera e cujas instalações estavam situadas nas imediações da
atual igreja de São Benedito.
31
Seminário Bom Jesus, também conhecido por Colegião, propriedade da Arquidiocese de São Paulo que ali
tinha como meta instalar um seminário menor. Situado às margens da atual Rodovia Presidente Dutra, ganhou
notoriedade recente por haver hospedado os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco em suas visitas ao
Brasil.
32
A ‘chácara dos padres’ era formada por um grande terreno situado em um pequeno vale, utilizado pelos
sacerdotes para o plantio de gêneros alimentícios e uvas para a fabricação artesanal de vinhos, e pelos romeiros
para descanso e lazer. Hoje, em seu lugar existem o Seminário Santo Afonso, as oficinas da Editora Santuário e a
Via Dutra.
33
Dependências do antigo Cine Aparecida, transformado hoje em espaço cultural, atrás da ‘Basílica Velha’.
34
Em Cruzeiro, Cachoeira Paulista e Lorena, cidades ocupadas pelas tropas do Governo Provisório, os saques se
deram de forma constante, com a invasão de casas fechadas e lacradas (FIGUEIREDO,1981). Com os templos
religiosos, a situação não teria sido diferente.
35
Monsenhor Gastão Liberal Pinto, Vigário Geral da Arquidiocese de São Paulo e segundo Bispo de São Carlos
(1935-1947)
36
Efetivamente, no dia seguinte à retirada secreta da Imagem a cidade foi bombardeada pela aviação ‘ditatorial’,
visada desde o dia 19 por ali estar instalado o Q.G. da 2ª D.I.O.
212
P. Antão Jorge, C.S.S.R – Vigário.
Figura 03: Instante de uma das celebrações realizadas na ‘Basílica Velha’ em prol da paz no Brasil. 37
Diante deste cenário, Pe. Antão solicita a Benedito Barreto, prefeito afastado após o conflito,
que emita uma declaração sobre o referido sacerdote e seu papel ao longo da Revolução. O
documento resultante tem o seguinte teor:
A BEM DA VERDADE
37
Fonte: Centro de Documentação e Memória do Santuário Nacional.
213
Paulo quanto a remessa de voluntários deste município. Por isso e por iniciativa do
Delegado Techinico local, cuja delegacia funcionava anexa à Prefeitura, foi organisada a
comissão municipal do M.M.D.C., cujos objectivos principaes eram, como é publico e
notório, a formação de batalhões e a propaganda da causa abraçada por S.Paulo. Em virtude
dos trabalhos desta comissão, que foi secundada pelo delegado techinico e delegado de
policia, diversos rapazes iniciaram-se nos serviços militares e foi formado um pelotão que,
reunido a vários grupos em São Paulo, constituio o ‘Batalhão Nossa Senhora Apparecida’.
Na formação deste batalhão outros elementos, alem dos acima citados, não tomaram parte
activa.
O Revdmo. Sr. Padre Antão Jorge, DD.Vigario desta Parochia, durante os afflictivos dias
da revolução, cumprio com seus deveres de Ministro de Deus, espalhando á mancheia, não
só os socorros espirituaes aos doentes e feridos como também fartos socorros em gêneros
alimentícios e dinheiro aos inúmeros retirantes das localidades ocupadas pelas tropas e que
para aqui vinham.
Para isso aquele boníssimo sacerdote visitava diariamente o hospital provisório, que aqui
funcionava...(última linha ilegível)
Como padre, como Ministro de Deus, pois, foi que ele agio incansavelmente, para o bem
d’aquelles que sofriam as terríveis conseqüências da guerra.
Na formação do batalhão ‘N.S.Apparecida’ – que contava apenas com 53 rapazes que aqui
se alistaram – a sua atuação limitou-se apenas às cerimônias da bênção do pavilhão, que se
realisou na Basílica, bem como acompanhar os soldados até S.Paulo, afim de arranjar o
capellão para os mesmos e prestar-lhes, durante a viagem, os socorros espirituaes. Isso
mesmo só foi feito em virtude dos insistentes pedidos da comissão local do M.M.D.C., que
desejava sempre a sua assistencia espiritual, dado o espírito de religiosidade que sempre
rege todos os actos e acontecimentos desta terra essencialmente catholica.
Acostumado como estou a conviver com este illustre sacerdote, posso afirmar, por ser isto a
expressão mais pura da verdade, que elle, durante os tormentosos dias da revolução agio
desassombradamente pelo –BEM– do povo, emprestando a todos os afflictos uma palavra
de conforto e resignação, bem como chamando os seus parochianos, diariamente para a
Basílica de N.S. Apparecida, onde ele dirigia pessoalmente as orações PELA PAZ DO
BRASIL.
214
Eis como agio o DD.Vigário de Apparecida, Revdmo. Sr. Padre Antão Jorge, pelo qual é
credor de nossa estima de governador da cidade e da gratidão do povo.
A origem e repercussão destes fatos se manifestou no Rio de Janeiro, espraiando-se para São
Paulo. Da então capital federal, a autoridade mais influente da Igreja brasileira no período, o
Cardeal D.Sebastião Leme, envia missiva ao pe. Antão Jorge, em que defende as posições
assumidas pelo sacerdote e desaprova o denodo do mesmo em dar visibilidade à sua atuação
neutra durante a vigência do conflito, em uma tentativa de aplicar panos quentes ao celeuma
então latente:
Rio, 19-XI-193238
Acabo de receber sua carta. Devolvo-lhe o documento. É melhor não tocar mais no assunto.
Depois da cessação da luta armada, surgiram lendas de toda a sorte. Foi uma inundação de
accusações tendenciosas. Devo diser-lhe que ninguém escapou... Nunca, porém, chegou aos
meus ouvidos o seu nome, ou o caso dos batalhões. O que me vieram falar foi uma noticia
de bandeira allemã. Expliquei, justifiquei e defendi: Depois... não se falou mais. Por que
revolver estas coisas? Seria dar-lhes vulto que não tiveram.
Alguns dos vossos são impressionáveis demais. São elles que avolumam em perigo certas
lendas que se esboçaram apenas na cabeça de um ou dois exaltados anti-clericaes. Fique
tranqüilo. Estou alerta. Nada houve e nada haverá contra padres e bispos.
Penso em ir passar a festa de N.Senhora ahí 39. Conversaremos. Rese muito por mim.
+ Seb, C.L.
Observa-se, portanto, que Dom Leme busca não dar prosseguimento ao jogo de acusações
levantado após o cessar-fogo, visando resguardar a imagem da comunidade Redentorista de
Aparecida, em duas frentes: defendendo a postura dos padres durante o conflito (como no
caso do hasteamento da bandeira alemã), e por outro lado estimulando Pe. Antão a manter-se
38
Percebe-se que a data deste documento é anterior ao relatório de padre Antão: pode-se intuir que o relatório de
25 de Novembro é uma cópia de algum relatório anteriormente enviado ao cardeal Leme; mas este teria sido
devolvido, segundo a missiva do Cardeal. Ou por outra, seria a resposta de uma carta enviada antes pelo pe.
Antão. Em quaisquer hipóteses, onde estão estes relatos primeiros do Vigário de Aparecida?
39
Para o caso, seria a festa da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro.
215
em ‘silêncio obsequioso’ até que os murmúrios se reduzissem, sobretudo tendo-se em conta
que o número de pessoas simpáticas à causa paulista no Rio de Janeiro era significativo40.
Esteve aos pés da gloriosa Padroeira do Brasil o Exmo.Sr.Cel. Euclydes de Figueiredo, com
seu Estado-Maior. (Santuário d’Apparecida, 17/09/1.932, p.2)
40
Durante a Revolução Constitucionalista em São Paulo, ocorreram diversas passeatas e manifestações
favoráveis ao movimento paulista. Tratadas pelo governo como flagrantes perturbações da ordem, foram
dispersadas a tiros e espaldeiradas pela polícia da capital.
41
O ritual do ‘beijamento’ da Imagem remonta ao século XVIII, onde a Imagem era, basicamente, retirada de
seu nicho e dada a beijar pelos fiéis presentes: este ritual, por questões de higiene e segurança, dada a fragilidade
da Imagem, foi abandonado em meados do século XX.
42
Percebe-se que a soma dos atendidos é diferente da cifra fornecida pelo pe. Antão, denotando a possibilidade
de ocorrência de erros de cálculo ou diferença sobre o momento de coleta da amostra de população.
43
Referência à instabilidade decorrente das acusações de formação dos batalhões e da postura relacionada ao
hasteamento do pavilhão alemão.
216
Considerações finais
Pode-se, à guisa de fechamento, entabular as fontes levantadas ao longo deste trabalho a fim
de tecer algumas premissas e encaminhamentos. Em primeiro lugar, podemos verificar que o
Santuário de Aparecida consolidou e ampliou seu papel de irradiador da doutrina cristã no
cenário religioso brasileiro: atuando na pastoral dos romeiros e na imprensa escrita e falada –
a partir de 1935 pela Rádio Record de São Paulo, e a partir de 1951 pela Rádio Aparecida – a
Congregação Redentorista consolidou em Aparecida um centro importante na disseminação
da doutrina da Igreja da Neocristandade (MAINWARING,2004): O uso constante de
celebrações de vulto para a reafirmação da Igreja Católica no ideário do povo brasileiro.
Este papel, por sua vez, é reflexo direto da atuação da Arquidiocese de São Paulo em
Aparecida: ainda que as rendas do cofre do Santuário sustentassem as grandes obras da Sé
paulista, é preciso avançar na análise; D.Duarte não era necessariamente um avaro, sequioso
por fundos: sua preocupação, e que está suficientemente documentada, residia também no
atendimento aos peregrinos e no trato com as autoridades a respeito do desenvolvimento
regional44.
Um outro foco possível de ser realizado é que no Santuário denotam-se os conflitos de ordem
política que agitavam a Igreja brasileira: Ainda que segundo o Cardeal Leme estas agitações
proviessem de ‘um ou dois agitadores’, elas existiam, e forçavam a Igreja a retomar sua
presença no cenário social, seja no meio intelectual, com a formação do Centro D. Vital, ou
no campo político, com a fundação, anos mais tarde, da Liga Eleitoral Católica (LEC): as
acusações sobre os batalhões hipoteticamente formados pelo pe. Antão e as denúncias de
impatriotismo ressaltam estas diversas escaramuças enfrentadas pela instituição no início da
década de 1930.
Por fim, o exame atento da correspondência de Pe. Antão, que como líder da comunidade
Redentorista local é o mais capacitado a emitir opiniões sobre a atividade de seus confrades, e
também das notícias emitidas pelo Santuário d’Apparecida, mostram-nos que os
Redentoristas procuraram manter-se afastados do jogo político o quanto possível, em uma
postura de equidistância pragmática, concentrando-se no atendimento espiritual e no auxílio à
população. Em períodos de crise, esta postura é de certa forma insólita, dado que a Igreja
44
O diálogo entre as autoridades civis e eclesiásticas sempre se entrecruzou no Santuário, seja por conta de obras
de infra-estrutura urbana realizadas pela Igreja, ou pelo apoio político a obras de fé, como a concessão da
freqüência para a Rádio Aparecida.
217
brasileira oscilou entre o apoio incondicional à causa paulista45 e a defesa também
incondicional do Governo Provisório46.
De qualquer forma, é importante frisar, como nota final, que as hostilidades foram encerradas
com as tropas legalistas às portas de Aparecida, sendo que a cidade não foi invadida,
causando maiores derramamentos de sangue. Coincidência ou Providência? Não podemos
afirmar. Contudo, o estudo sobre o Santuário de Aparecida durante a guerra civil em São
Paulo abre possibilidade para a expansão da temática proposta, em torno de uma discussão
maior a respeito da Igreja Católica no Brasil ao longo da Revolução Constitucionalista de
1932, campo fértil para estudos futuros.
Referências
ALMEIDA, José Tadeu de. O Santuário de Nossa Senhora Aparecida no eixo das
transformações da Igreja Católica no Brasil: 1890-1931. In: Anais do Simpósio do CEHILA-
BR (Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina – Área Brasil) – As Muitas
faces do Cristianismo: Goiânia, 2005.
CANAVÓ, José; MELO, Edilberto de Oliveira. Polícia Militar: Asas e glórias de São Paulo.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1978.
DIAS, Romualdo. Imagens de Ordem: a doutrina católica sobre autoridade no Brasil (1922-
1933). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
45
O ‘batalhão do bispo’ em Botucatu, iniciativa pessoal de D. Carlos Duarte, constitui-se no mais claro exemplo
do apoio da hierarquia da Igreja ao ideário paulista.
46
“No Túnel da Mantiqueira, um padre austríaco, residente em Passa-Quatro (MG), distribuía munição aos
soldados legalistas, batendo-lhes nos ombros e dizendo ‘Coragem, rapazes, balas certeiras contra aqueles
rebeldes paulistas.’ (BARROS, Guilherme, citado por DONATO (1982), p.207)
218
DONATO, Hernani. A Revolução de 32. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
FREITAS, Nainora Maria Barbosa. A formação da Província Eclesiástica de São Paulo. In;
CehilaNET, São Paulo, N.1, Ano 1, janeiro-março de 2004.
MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
TIRAPELI, Percival. Igrejas Paulistas: barroco e rococó. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2003.
Internet
História [da Arquidiocese de São Paulo]. Arquidiocese de São Paulo. Disponível em
<http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/historia>. Acesso em 09 de jul de 2013.
219
220
Os fundadores do Centro Dom Vital
Introdução
A década de 1920 vê se consolidar um grupo de intelectuais cuja identidade nasce da
confluência de interesses em atender ao chamado do Cardeal Sebastião Leme por um novo
papel do laicato, especialmente do grupo de letrados, que deveriam assumir para si a tarefa de
atuar sobre o meio artístico e literário do país, então majoritariamente contrário aos católicos.2
É preciso compreender quem respondeu a esse chamado:quais as condições para a emergência
desse perfil de intelectual? Para esse artigo, foram escolhidos quatro representantes deste
grupo cujos textos dialogam entre si.
O principal espaço de convivência entre estes autores foi a revista A Ordem, publicada
mensalmente. Seu nome dá o tom de suas doutrinas, sobre as quais há estudos consolidados
(RODRIGUES, 2006). Foi para prover a revista de artigos e de ajuda financeira que se criou o
Centro Dom Vital, o projeto mais forte de união entre estes personagens. Embora Leonel
Franca tenha assumido o papel de diretor espiritual da instituição apenas após a morte de
Jackson, ele acompanhou de perto a iniciativa pioneira dos outros três, na qualidade de
confessor e amigo íntimo de Figueiredo. Dado que a instalação do Centro e seu
funcionamento interno já foram um texto deste mesmo autor (ARDUINI, 2012), o enfoque
aqui será mais compreender o modo como as trajetórias pessoais se cruzam dentro da
instituição e menos as maneiras pelas quais a instituição molda os indivíduos que passam por
ela.
Outro ponto de contato das trajetórias diz respeito aos temas que os motivaram a escrever
durante a década de 1920. Entre os autores escolhidos, Figueiredo foi aquele que publicou
mais obras: Afirmações e Do nacionalismo na hora presente (ambos de 1921); Pascal e a
inquietação moderna e Reação do Bom Senso (ambos de 1922) e Literatura reacionária
(1924). Existe, uma linha contínua que percorre todas as obras: a percepção de que tudo está
1
Doutorando em Sociologia pela USP, mestre em História pela Unicamp. Contato:
guilherme.arduini@gmail.com.
2
Cabe aqui apenas a menção à Carta Pastoral de Dom Leme ao assumir a Diocese de Olinda e Recife em 1916,
arquiconhecida como uma espécie de momento fundante dessa estratégia, que viria ser posta em prática durante
seu período como bispo e depois Cardeal do Rio de Janeiro.
221
em crise – o país, o mundo, as artes e a filosofia. E que a solução estaria na volta aos valores
esquecidos pela modernidade, como o catolicismo.
Para cumprir seus objetivos, este texto se dividirá em duas partes.Na primeira delas, estarão
em pauta as trajetórias sociais destes personagens ena segunda, será a vez dos livros
produzidos pelos próprios personagens citados, que nos permitem enxergar a posição destes
autores em alguns dos debates mais importantes do período. Para fechar o texto,as
considerações finais apresentam algumas interpretações mais gerais.
Na década de 1920, todos os quatro nomes eram jovens em busca de afirmação social e
profissional. Apenas Jônathas Serrano é natural do Rio de Janeiro, embora todos tenham
exercido sua carreira nessa cidade. Hamilton Nogueira nasceu no interior do estado do Rio de
3
Júlio Maria foi um promotor público que decidiu tornar-se padre ao final do Império, sendo ordenado em 1891.
Tornou-se um pregador itinerante de considerável sucesso na defesa dos valores do catolicismo em uma
sociedade que vivia a separação oficial entre Igreja e Estado.
222
Janeiroe criou-se em Niterói. Jackson de Figueiredo nasceu e cresceu no Sergipe e, por fim,
Leonel Franca nasceu no extremo sul do país, mas viveu boa parte de sua infância na Bahia
até perder a mãe e ser acolhido, graças ao auxílio de um tio religioso, no colégio dos jesuítas
em Nova Friburgo. Ele não foi o único com histórias de crise familiar: Serrano foi criado pela
mãe e pela avó materna e Figueiredo vinha de duas famílias em franco processo de
decadência financeira. Seu avô materno perdeu toda a fortuna da família e seu pai teve de
trocar a faculdade de Medicina pela de Farmácia, pois não tinha condições de arcar com as
despesas do curso. Durante a infância de Jackson, Luiz Figueiredo teve de deixar este
emprego por conta de uma doença grave e atuou como professor.
Este aspecto é importante para compreender a dificuldade deste autor se instalar no Rio de
Janeiro, de onde escrevia cartas a seus amigos nas quais frequentemente reclamava da falta de
perspectivas de melhorias por não ter contatos que pudessem ajudá-lo nem uma fortuna capaz
de lhe oferecer a tranqüilidade necessária para trabalhar seus próprios textos. (FERNANDES,
1989) Além desses traços em comum, Serrano e Figueiredo possuem o fato de que ambos são
formados em Direito, mas nunca exerceram profissão que fosse ligada ao título que
obtiveram.
Franca constitui um caso à parte porque se tornou clérigo e cursou as faculdades de Filosofia
e de Teologia em Roma, o que equivale a dizer que foi escolhido para desfrutar da melhor
formação possível. A oportunidade foi bem aproveitada, a ponto de Franca tersido convidado
a permanecer em Roma como professor do mesmo instituto onde estudara. Entretanto, obteve
a permissão de voltar ao Brasil como desejava, em grande medida por conta de sua saúde
frágil (D’ELBOUX, 1956). Sobre o período de estudos de Hamilton Nogueira, pouco se sabe,
exceto que cursou Medicina na capital federal e logo depois de formado foi trabalhar em
Muzambinho, onde conheceu Figueiredo.
223
financeiras contribuíam para diminuir seu reconhecimento, mas ele permaneceu como a
principal liderança do laicato católico até sua morte, em 1928.
Nos quatro casos, suas carreiras estiveram parcial ou totalmente ligadas ao ramo da educação.
Serrano foi professor de História eparticipou da reforma educacional empreendida por
Fernando Azevedo na capital federalem 1928. Figueiredo atuou como professor de ensino
secundário e superintendente das instituições escolares do Ministério da Agricultura;
Nogueira fez brilhante carreira no ensino de Biologia e Medicina em diversas instituições. A
partir de 1929, foi livre-docente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Leonel Franca esteve sempre ligado ao ensino no colégio de sua ordemno Rio de Janeiro. O
resultado desse envolvimento é que nas décadas seguintes eles participariam de projetos de
faculdades e universidades confessionais, especialmente Leonel Franca, a quem se deve em
grande medida a fundação da PUC-RJ, a primeira de seu gênero no país.
Em Afirmações, Figueiredo analisa a história da literatura brasileira. Dedica seu livro a Alceu
Amoroso Lima e se diz consciente de que o único critério adotado para avaliar as obras foi a
certeza de que tudo que existe de positivo na civilização ocidental é criação da Igreja
Católica. Desse modo, Machado de Assis é classificado como estéril por sua ironia cética e
materialista, em oposição a Xavier Marques, tido como exemplar. Mas o livro não trata
exclusivamente de literatura; a política aparece através da discussão sobre o papel das
revoluções na história dos países. A palavra revolução é compreendida nesse contexto como
os movimentos de independência das colônias americanas frente às metrópoles europeias.
Para Figueiredo, esta não seria uma luta inconclusa no caso do Brasil, e por isso se tornaria o
tema de seu livro seguinte: Do nacionalismo na hora presente (1921). Nele procura explicar
224
as razões de seu sentimento antilusitano. Não se trata de condenar a colônia portuguesa, mas
de exigir dos brasileiros uma postura mais firme contra os privilégios que esta colônia possuía
em nosso meio. Segundo Figueiredo, os portugueses dominavam o comércio e a imprensa no
Brasil e sufocavam as possibilidades de os brasileiros se desenvolverem de forma autônoma.
Ainda, o patriotismo seria algo natural e perfeitamente católico, e se trabalhadopor uma elite
bem preparada poderia se transformar em um movimento de ideais superiores, o
nacionalismo.
A obra seguinte de Figueiredo foi Pascal e a inquietação moderna, ensaio de filosofia no qual
seu autor desejava se estabelecer na cena intelectual ao promover a imagem de Pascal. A
aposta (para usar um termo pascaliano) de Figueiredoé de que a preocupação religiosa do
autor francês poderia interessar à cena intelectual brasileira de seu período e, dessa forma,
trazer o centro do debate para um terreno que lhe fosse favorável. Em certa medida, descreve
a si próprio ao definir a imagem de Pascal como um filósofo que pecou por alguns excessos,
como o jansenismo, mas que nunca deixou de acreditar na Igreja Católica como a realidade
última do homem. Figueiredo quer convencer seu leitor de que Pascal não foi um filósofo
individualista nem acreditou que a realidade última do mundo fosse trazida pela razão.
Depois de Franca apontar a trilha a seguir, restava a Figueiredoocupar seu espaço através de
um trabalho mais intensivo sobre uma filosofia específica. Sua escolha se deu por um filósofo
posterior a Descartes, portanto em diálogo com a filosofia moderna. Outros nomes
fundamentais da doutrina católica, como Santo Agostinho ou Santo Tomás, nãoatenderiam a
este critério, o que poderia ajudar a compreender a escolha por Pascal. Com isso ele
permanece inscrito nos cânones filosóficos já estabelecidos, mas aberto a uma interpretação
favorável ao projeto de tornar a Igreja Católica a legitimadora de todas as esferas sociais no
Brasil dos anos 1920. Também trabalha a favor dessa escolha o fato de se tratar de um autor
4
A versão que analisaremos algumas páginas abaixo será a de 1928, mas a primeira e a segunda publicações
datam respectivamente de 1918 e 1921, portanto anteriores ao livro de Figueiredo.
225
francês, país tido como modelo do pensamento filosófico no Brasil.Pela soma de todos esses
fatores, o resultado é que Pascal é considerado como o filósofo que respondia à angústia do
homem moderno:
Pascal e a angústia são o elemento que mais vivamente agita a consciência contemporânea,
sendo causa de primeira ordem, não só da reação espiritualista que vai estrangulando o
materialismo moderno, mas também da já tão notada renascença, senão católica de um a
outro extremo, pelo menos, cristã, entre as camadas intelectuais superiores, em todo o
Ocidente (FIGUEIREDO, 1922a, 159).
Em Reação do Bom Senso (1922), coletânea de artigos publicados em O Jornal.A maioria dos
artigos tem temas relacionados à eleição presidencial de 1922, durante a qual surgiu a
malfadada campanha contra Arthur Bernardes. Ele foi alvo de uma série de cartas
supostamente falsas atribuídas a ele e que desprezariam a importância do Exército. O quadro
traçado nos artigos escritos durante a campanha é de um país à beira do abismo do caos por
ação de alguns desordeiros no Exército, inspirados por teses “positivóides”.
Por este termo, Figueiredo pretende diferenciar os verdadeiros positivistas, para os quais
reservava o respeito, dos que interpretam de forma equivocada os preceitos de uma crença que
teria tudo para ser conservadora. Outros alvos da críticasão: Nilo Peçanha (opositor de Artur
Bernardes na eleição de 1922), Edmundo Bittencourt (dono do Correio da Manhã) e Oldemar
Lacerda, que foi um dos inventores das cartas atribuídas a Artur Bernardes, nas quais o
presidente em exercício teria demonstrado falta de consideração pelas forças armadas. Parte
dos militares apoiou a campanha de Nilo Peçanha, que contou também com o suporte de
oligarquias descontentes com o status quo– como era o caso da Bahia, Rio Grande do Sul e
Rio de Janeiro – e a realização de comícios populares.
É relevante destacar que Jackson não mistura a democracia popular com o regime
republicano. Este não é condenado;seuserrossão os mesmos do Império, tais como a Igreja
226
subjugada ao poder civil e a maçonaria/liberalismo contaminando a cultura nacional. Críticas
também sobravam para os principais apoiadores da Reação Republicana, como é o caso de
José Joaquim Seabra (presidente da Bahia e vice na chapa de Nilo Peçanha) e de Borges de
Medeiros (presidente do Rio Grande do Sul, apoiou Nilo Peçanha). A coletânea é resultadoda
reunião de textos publicados em O Jornal,interrompida de forma abrupta, com uma “Nota
Final” reproduzida no livro que não explica muito bem o porquê do final da colaboração no
jornal. Ela apenas afirma que a revolução estava derrotada depois do levante de julho de 1922,
rapidamente sufocado por Epitácio Pessoa.
O livro permite enxergar um Figueiredo totalmente imerso nas disputas políticas nacionais, o
que confere outra cor às suas ideias. Os nomes de Joseph de Maistre e De Bonald são
constantemente citados, além de Santo Tomás de Aquino, principal referência para
argumentar que a obrigação de todos os descontentes era resistir aos desmandos dentro da
legalidade, sem contestar a ordem estabelecida. Mas a maior parte do livro são comentários
diretos sobre a vida política partidária brasileira, produzidas sob o impacto dos
acontecimentos.
O padre Leonel Franca é, como disse, autor de uma ‘História da Filosofia’, de que a
segunda edição constituía, por assim dizer, a sua revelação ao mundo das letras brasileiras
[...] talvez só por modéstia não deu em volume à parte as últimas cem páginas que são,
realmente, a primeira tentativa séria de uma história das ideias no Brasil, de uma história e
de uma crítica dessas mesmas ideias, do ponto de vista de um sistema com direito de cidade
no mundo da filosofia, no caso, graças a Deus, o da filosofia tradicional, católica
(FIGUEIREDO, 1922a, 29).
227
Jonathas Serrano também merece comentários pela sua obra a respeito de Júlio Maria. Ela é
considerada como uma conquista para o mundo das letras católicas brasileiras, tendo em vista
a capacidade de seu autor de saber aliar seu apego ao tema com uma capacidade de análise
objetiva do pensador. Nestes e nos demais artigos, asustentação da definição do que consiste
uma obra católica – de literatura, filosofia ou história -- se dá por meio da ideia de que toda
obra possui em si um conceito de moral e de ordem. E que, portanto, nem a arte é indiferente
aos problemas concernentes a estas duas ordens de valores. Para Figueiredo, é impossível que
uma ação humana seja moralmente neutra – ou ela é boa ou é ruim – e isso vale também para
a obra de arte. E para saber se a obra é moralmente boa, o único guia confiável é a própria
Igreja Católica, cuja doutrina moral se mostra igualmente válida, hoje e sempre.A conclusão é
de que toda obra de arte precisa satisfazer igualmente os requisitos impostos por uma estética
– que Figueiredo não define qual – e pela doutrina católica.
Essa ideia se torna mais evidente ao longo da crítica ao francês Henri Massis, que vem em
auxílio à sua definição de arte. Se toda atividade humana é moral, logo ela expressa a ordem
moral presente na consciência de seus autores. Mas também é necessário que tenha senso
estético, que persiga o belo. Ora, o belo, o bom e a verdade se identificam; se a realidade mais
profunda das coisas é aquela proferida pela fé católica, logo, ela deveria estar presente nessa
realidade mais profunda. Portanto, para o crítico católico não basta que uma obra seja
esteticamente bela; é preciso que ela expresse, de algum modo, a verdade da única fé
verdadeira. Figueiredo aplica um raciocínio semelhante à sociologia, a partir das
considerações de Bureau, parâmetro para medir como deveria ser um bom sociólogo cristão,
em consonância com a ideia de que a sociologia – assim como a arte – tem seu aspecto moral
que precisa ser valorizado:
Bureau, para quem a ciência era sempre amoral, julgava que a sociologia poderia ser
organizada como outra qualquer ciência, mas ‘completada’ pela ‘arte social’, ‘a arte de
conduzir as instituições sociais’, de ‘dirigir a ação humana’, porque o espírito humano –
dizia ele – ‘jamais fica inteiramente separado das aplicações práticas’. 5
O acerto de Bureau estaria no equilíbrio deste novo conceito de sociologia, capaz de evitar
dois extremos. Entre as teses que conferiam um peso exagerado a forças impessoais e outras a
proclamar a força das grandes individualidades como formadoras de uma sociedade, Bureau
5
p. 162-3.
228
teria permanecido “no meio termo aconselhado há séculos pela Igreja Católica [...] afirmando
ainda a existência de uma lei moral transcendente.” 6
Em seu compêndio de Filosofia, Leonel Franca estabelece uma hierarquia entre os filósofos.
No Brasil, por exemplo, tudo que teria sido escrito antes deste período era digno de
reprovação, como é o caso de Sylvio Romero. Para Tobias Barreto, existe até uma cerca
condescendência tendo em vista que ele aceita a presença de um padre em seu leito de morte.
Essa ato é entendido como uma aceitação de Barreto da validade da religião. Ao contrário
destes autores, Farias Brito é visto como o modelo de intelectual a ser reproduzido, pois seu
sistema filosófico permite conceber ligações com a metafísica religiosa e transformar a
filosofia em antesala da teologia.
6
p. 162-3.
229
Cabe aos intelectuais a reação que Júlio Maria chamou a ‘revolução do pudor’, usando da
expressão de Lamartine para o movimento político francês de 1848. É oportuno reler o que,
em 1909 pregava o eloquente orador da Catedral:’Eia, homens de letras! Eia, também,
artistas! Iniciai no Brasil a revolução do pudor; que ninguém vos saia ao encontro com
fórmulas vãs, romantismo ou realismo, na prosa, parnasianismo ou simbolismo; no verso;
fórmulas vãs, repito. Só há duas literaturas: a literatura honesta e a literatura imoral. Contra
esta, quanto antes, a vossa campanha, a qual será mais do que um troféu para vossos
talentos; será um impulso à reconstrução cristão do Brasil. 7
Essa passagem possui uma afinidade com a discussão sobre a fé e as artes propiciada por
Jackson de Figueiredo em passagem já citada acima e mostra o grau de entrosamento entre
estes autores.
A influência do Centro também ocorria no modo como estes autores enxergaram Figueiredo,
sempre com vistas a considerá-lo um modelo de intelectual, com base em características
distintas. No livro de Hamilton Nogueira, ele é descrito ainda como uma figura perpassada
por dilemas morais e filosóficos que comprometiam sua saúde e se coadunavam com a
incerteza de sua vida profissional no Rio de Janeiro. Figueiredo encontra remédio para esses
problemas em suas amizades com o círculo de amigos, especialmente Farias Brito, a quem
trata com admiração e de quem esposará uma das filhas. Ou seja, ele se torna um modelo de
convertido para a causa católica, exemplo que os leitores são convidados a seguir.
7
p. 118-9.
230
Depois da conversão, sua obra conhece uma grande popularidade nesse meio, sendo inclusive
comentada por revistas católicas de outros países, como a francesa Études, a qual publica uma
resenha de seu livro sobre Pascal. Depois que as certezas essenciais da vida foram adquiridas,
Figueiredo torna-se um pensador requisitado por um vasto público, outra marca de incentivo
das novas gerações à conversão de seus escritos em benefício de fins apologéticos. Essa
imagem do Jackson que traz para dentro de si as dúvidas e as processa antes de tornar-se o
grande pensador que foi é essencialmente diferente da imagem construída pelo texto
publicado em sua homenagem póstuma pela revista A Ordem. Nessa última, não há espaços
para concessões a dúvidas e medos interiores: Figueiredo é apresentado como um bloco
monolítico, dotado de todas as características que fazem dele o líder da corrente católica.
Vários nomes são chamados a escrever textos curtos de apresentação de algum aspecto de sua
vida, tais como “O Filósofo”, “O Apologeta”, “O Sociólogo” e assim por diante.
O volume se abre com alguns textos inéditos de Figueiredo. Há dois capítulos de uma obra
que Figueiredo pretendia escrever sobre Joseph de Maistre. A obra pretendia mostrar como o
problema da revolução francesa e toda a negação da tradição católica eram na verdade
oriundos do período do humanismo, no meio da idade moderna. Ao primeiro raiar da ideia de
que as liberdades individuais deveriam ser superiores as de autoridade (da Igreja em primeiro
lugar, e em seguida do Rei), todo o arcabouço que permitia uma boa sociedade estava em
perigo. Este era um artigo que se pretendia de teoria política centrado exclusivamente em
Joseph de Maistre, mas com algumas citações de Berdiaeff e Maritain. Todos os autores são
mobilizados com o objetivo de demonstrar que toda a filosofia de Descartes em diante
constituiu uma grande decadência.
Em carta endereçada a Amoroso Lima e transcrita neste volume, os dois discutem o problema
da autoridade em um momento de aparente desordem no país. Figueiredo afirma que diante
desse quadro julgado como caótico, a única resposta possível seria refazer o senso de
autoridade, mesmo que isso representasse abrir mão de algumas características suas cristãs,
231
para não perder o essencial. O problema político era, em sua visão, a manifesta preocupação
do século XX e fora da Igreja não haveria solução possível para esse conflito.
A ideia de um santo moderno é continuada pelos artigos seguintes, como o de Perillo Gomes,
que o apresenta como um apologeta cuja força retórica era mais forte do que a força de suas
ideias. Sua conclusão é de que este seria o tipo de apologia possível na idade contemporânea.
Na apresentação de Jackson como filósofo, Alexandre Correia destaca como Pascal conseguiu
abraçar o ideal de alma moderna e faz de Jackson um defensor das ideias do filósofo de Port-
Royal. Antes disso, porém, faz uma alusão de algumas páginas ao livro de Leonel Franca
(Noções de Filosofia) em defesa da tese presente no livro de que haveria apenas dois filósofos
brasileiros: Tobias Barreto e Farias Brito. Para Correia, Brito teria sido mais filósofo, isto é,
mais autoral e teria encontrado a fé ao final de sua vida, assim como Jackson a encontrou
depois de um período nas trevas.
O ápice do volume é o texto de Félix Contreras Rodrigues, que escreve sobre o lado
sociológico de Figueiredo, o mais denso entre eles. Aponta em Figueiredo um monarquista
que aceitou a imposição de Leão XIII de se aceitar a República francesa como se valesse
também para o Brasil. (É importante lembrar que o mesmo Papa teve relações muito mais
tensas com a República italiana). Portanto, a discussão não deveria ser qual o melhor regime
político para o país e sim como recristianizá-lo, independentemente do regime.
Em primeiro lugar, significaria dar a devida importância à Igreja, centro da tradição brasileira.
Para Figueiredo, as pátrias são criadas por desejo divino; no caso do Brasil, por exemplo, a
religião esteve presente desde o início de sua formação história. A religião seria um dogma
232
nacional, cujo desprezo condenaria qualquer regime instalado no país à decadência. Desse
dogma nacional decorrem as conseqüências que voltariam a formar a pauta de reivindicações
nos anos 1930: a escola com ensino religioso, o casamento religioso com efeito civil e o
privilégio da Igreja como a religião oficial do país. O artigo não pretende indicar em
Figueiredo um intolerante das outras religiões, mas Figueiredo pensa que a Igreja deveria ser
tratada com privilégios.
A partir dos elementos empíricos apresentados até o momento nesse artigo, já é possível tecer
algumas considerações finais.
Considerações finais
Este artigo pretendeu demonstrar como é possível compreender em seu conjuntoa produção
bibliográfica de quatro autores cariocas: Jônathas Serrano, Jackson de Figueiredo, Hamilton
Nogueira e Leonel Franca. Tal comparação permite enxergar como seus textos dialogam entre
si constantemente e por diversas formas. A primeira delas é que todos defendem certos
valores em comum, apresentados como essenciais ao catolicismo e vistos como a salvação do
país. Todos os quatro se confirmam uns aos outros na iniciativa de defender uma organização
social muito distinta daquela propalada por outros grupos do mesmo período como a solução
para o Brasil. Em certos momentos, escrevem diretamente uns sobre os outros, em manifesto
apoio às teses dos colegas. Existe também uma especialização na produção entre os autores.
Leonel Franca era o responsável pela filosofia, enquanto Figueiredo assumia o papel de porta-
voz político do grupo. Nogueira e Serrano forneciam hagiografias, alimentando o panteão
católico.
A trajetória pregressa dos quatro ajuda a compreender os motivos de sua proximidade durante
os anos 1920. Com a exceção de Nogueira, sobre quem não há maiores informações
disponíveis, todos os outros viveram dramas familiares para os quais o apego à estrutura da
Igreja Católica proporcionou respostas psicológicas e financeiras. Tal auxílio veio da Ordem
dos Jesuítas ou da Arquidiocese do Rio de Janeiro, esta última impulsionada pelo comando
revigorador do Cardeal Sebastião Leme, condição primordial para o amadurecimento das
carreiras destes pensadores. Se o papel do Cardeal foi significativamente reconhecido desde
os anos 1940, resta ainda o esforço por compreender as condições sociais de emergência do
233
intelectual católico e o que ele representou em termos de produção intelectual. Este artigo
espera ter dado uma pequena contribuição neste sentido.
Referências
D’ELBOUX, Luiz Gonzaga da Silveira. O Padre Leonel Franca. Rio de Janeiro: Agir, 1953.
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SERRANO, Jonathas. Júlio Maria. Rio de janeiro: Livraria Boa Imprensa, 1941.
ZANATTA, Regina Maria. Jonathas Serrano e a escola nova no Brasil: raízes católicas na
corrente progressista. Tese (Doutorado) USP, São Paulo, 2005.
234
Verbetes de dicionário
Jônathas Serrano. In: RIBEIRO FILHO, João de Souza. Dicionário de escritores cariocas.
Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965.
235
236
Os museus de arte sacra da Arquidiocese de Mariana: projetos
eclesiásticos (1926-1964)
Riler Barbosa Scarpati1
Introdução
Nos últimos anos, a perspectiva de análise que tem como foco a memória social tem ganhado
espaço cada vez maior nos meios acadêmicos. A sedução pela memória é tal que Andreas
Huyssen chega a afirmar que vivemos num mundo cada vez mais museificado e questiona se
o objetivo final dessa centralidade da memória nas sociedades ocidentais não seria uma
espécie de recordação total (HUYSSEN, 2000, p. 12-15). Um dos vieses desse tipo de análise
é o que se debruça exatamente sobre instituições que constroem e institucionalizam
determinadas memórias sociais, como os museus, selecionando aspectos do passado e
excluindo outros.
Em 1961, novamente, a Arquidiocese de Mariana cria um novo Museu, dedicado à arte sacra.
O Museu Arquidiocesano de Mariana (MAM) teve em D. Oscar de Oliveira, arcebispo de
Mariana desde 1960, seu principal idealizador. Segundo o estatuto da instituição, o MAM foi
criado “visando salvaguardar peças de valor artístico ou histórico [...] 3”.
237
justificativas oficiais apresentam-se como insuficientes4. O historiador e jesuíta francês afirma
que a escrita, essa “prática mítica moderna”, tem como função dar sentido ao mundo.
Evidentemente, que ela não é capaz de captar toda a realidade, pois a experiência é sempre
mais ampla e complexa do que a escrita pode apanhar. Para o autor, sobretudo, devemos nesse
importante trabalho de hermenêutica identificar os rastros do Outro. O Outro é, no caso da
historiografia, o passado e, no caso da escrita, aquilo que não se diz, o silenciamento, ou seja,
o não dito (CERTEAU, 1982; CERTEAU, 1998, p.221-245; BRANDIN, 2010).
Para tanto, é necessário identificar quem são os interlocutores privilegiados nessa relação,
qual o lugar social que eles ocupam nas relações sociais; e devemos lembrar que o lugar
social possibilita o dizer e legitima o que se diz, tudo isso por que a escrita é uma prática
política, que está ligada a lugares sociais, que na prática são lugares de poder.
Desta forma, argumentamos que a criação destes dois Museus apresentou-se como um projeto
universalista de determinados grupos de eclesiásticos que intercruzou ideais iluministas de
erudição e civilidade com valores católicos de evangelização das nações. Tratava-se, em
nossa concepção, da construção de uma memória de si próprio, de grupos que tinham como
referências a si mesmos.
Este primeiro Museu criado pela Arquidiocese, e que teve em D. Helvécio Gomes de Oliveira
seu principal idealizador, foi instalado na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Mariana. Em
sua inauguração, em 29 de agosto de 1926, notamos a presença de lideranças da área política,
cultural e religiosa da época como o Presidente do Estado de Minas Gerais Fernando de Melo
Viana, o escritor e diretor do Museu Histórico Nacional (MHN) Gustavo Barroso e o
Encarregado de Negócios da Santa Sé junto ao governo brasileiro, Dom Egídio Lari, além de
membros da comunidade marianense e eclesiásticos.
4
Quando dizemos insuficiente, de forma alguma negamos que não houvesse efetivamente perda e roubo de
peças das igrejas e capelas pertencentes à Arquidiocese de Mariana. Esta era uma tônica existente entre os anos
1920 e 1960 e foi abordada por Letícia Julião. JULIÃO, Letícia. Enredos museais e intrigas da nacionalidade:
museus e identidade nacional no Brasil. Tese (doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.199-200.
238
Guerra do Paraguai. Essa Bandeira era importante marco histórico e simbólico da cidade e
extremamente ligada à sua memória.
Figura 1- Monsenhor Horta ladeando a bandeira do 17º. Batalhão dos Voluntários da Pátria (Campanha do
Paraguai), 1926. Peça hoje exposta no Museu da Inconfidência - Ouro Preto5.
A Igreja de São Pedro dos Clérigos (figuras 2 e 3) parece ter sido escolhida com propósito
específico. Trata-se de uma igreja de construção do século XVIII, mas que até aquele
momento estava inacabada e a sua escolha seria mesmo uma forma de valorizar e revitalizar
tal edifício. Como afirma D. Helvécio em carta a Lúcio dos Santos de 1938 ao recapitular os
motivos que o levaram a criar a instituição,
5
Acervo Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
239
Santa Sé, benignamente, facultou aproveitar para este fim a egreja de São Pedro, que é,
ainda inacabada, um dos mais característicos monumentos do Estado6 (grifo nosso).
Parece-nos que a criação de um Museu de Arte Sacra, nos anos 1920, com o objetivo de
proteger o patrimônio móvel ameaçado é uma atitude que atenta ao conceito de preservação e
o papel da Igreja no que tange a esse tema, pois nem mesmo o Estado brasileiro possuía uma
política de salvaguarda desses bens7.
Figura 2 - Foto de Ruínas da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Mariana. S/d. 8
6
Carta de D. Helvécio Gomes de Oliveira a Lúcio dos Santos. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 19: Museu
de Arte sacra. Mariana. 03/03/1938.
7
A atuação de Dom Helvécio no campo da cultura não se resume a criação do Museu. Ele também foi o
principal mentor da criação do Arquivo Eclesiástico, do Parque Estadual do Rio Doce e de um grande legado na
área educacional. Como afirma Mabel Pereira, a Neocristandade, da qual D. Helvécio foi um artífice, se realiza,
sobretudo, na esfera social, fora dos limites da Igreja. Sobre essas outras ações ver: PEREIRA, Mabel. In: Dom
Helvécio Gomes de Oliveira, um salesiano no episcopado: artífice da Neocristandade (1888-1952). Tese
(doutorado em História). Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2010. p.298-322.
8
Acervo Arquivo Público Mineiro. Disponível em:
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=29452>. Acesso em:
07/07/2013.
240
Figura 3- Foto da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Mariana, 2013.9
Porém, a tentativa da Igreja Católica em levar as peças para o Museu, evitando roubos,
implicava tanto numa reação à espoliação material e financeira de que estava sendo objeto,
como também demonstrava uma determinada valorização do estético, de cunho letrado (o
Museu era dedicado a um tipo de arte). Afinal, o desaparecimento físico de algumas peças,
apesar de lamentado pela Igreja, tanto por sua antiguidade como por sua beleza artística, não
chegava a ameaçar o imaginário religioso, continuamente reafirmado pela liturgia. Preservar
não implicava, aqui, apenas em não deixar sumir, mas, sobretudo em realçar algo já
conhecido, mas nunca demasiadamente festejado – ao menos, segundo a consideração da
Igreja.
É preciso que lembremos que a Arquidiocese, nos anos 1920, era a quarta mais importante do
Brasil ficando atrás apenas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo (PEREIRA, 2010).
Também por este fato, a criação da instituição adquire certo reconhecimento no cenário
artístico-cultural da época, conforme notamos em matéria publicada pelo Jornal A Noite,
9
Acervo Arquivo Público Mineiro. Disponível em
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=29450> Acesso em:
07/07/2013.
241
iniciativa de V. Excia. Com a collaboracao do alto clero de Minas, na qual estabelece
medidas de protecao as obras de Arte Sacra de Minas e bem assim a fundacao de um museu
de arte religiosa na cidade de Mariana, solicitou da assembleia fosse concedido a V. Ex. o
titulo de sócio benemerito, pelos grandes servicos que vem prestado a arte brasileira. Tenho
a honra de comunicar a V. Ex. que a proposta do nosso presidente foi immediatamente
acceita. Prevaleco-me na opportunidade para apresentar a V. Ex. os protestos da mais alta
estima e consideracao. Jose Mariano Filho –Presidente10.
Os anos 1920 são marcados por mudanças no catolicismo no Brasil. A Igreja propõe uma
reação de cunho religioso-moral, um projeto de intervenção no público, embora não de forma
partidária, sequer governamental (CALDEIRA, 2011, p. 244-245). Para fazê-lo, a atuação no
campo cultural mostrava-se imprescindível, mas era uma atuação voltada para as camadas
médias urbanas e para as elites, uma vez que a maioria da população estava excluída do
sistema educacional, através, sobretudo, da imprensa. Esse movimento, nos anos 1920,
assume novos contornos com a reaproximação da Igreja com o Estado, a chamada
Neocristandade, da qual D. Helvécio Gomes de Oliveira foi um dos seus principais artífices
(PEREIRA, 2010). Se nos primeiros anos da República Brasileira a relação entre Estado e
Igreja era vista como problemática por causa do regime do Padroado reinante durante o
período colonial e Imperial, nos anos 1920 o Império deixava de representar perigo à
República.
No que tange aos museus, os anos 1920 apresentam-se como momento de inflexão. As
coleções dos museus passaram a apresentar como foco a temática histórica. Neste sentido,
ocorreu a criação de novas instituições como o Museu Histórico Nacional (ABREU, 1996) e
outras instituições tem suas coleções modificadas de modo a privilegiar o discurso histórico
através da exposição de fragmentos do passado como o Museu do Ipiranga ou Museu Paulista
10
Arte e Religião: o Sr. Arcebispo de Mariana sócio benemérito da S.B de Bellas Artes. A Noite. Belo
Horizonte. 28/06/1926. In: AEAM. Arquivo 5, Gaveta 2, Pasta 19: Museu de arte sacra. Esta citação também é
usada por Mabel Pereira em sua tese já citada. Cf. PEREIRA, M. In: Op. Cit., p.291-292.
242
(BREFE, 1998). O cenário de fundo desta mudança são as comemorações do Centenário da
Independência do Brasil em 1922 e as mudanças no seio da intelectualidade brasileira, mais
preocupada em debater o passado nacional e a sua herança.
Acreditamos que parte da resposta se encontra na mesma lógica de composição que permitiu a
abertura da instituição em 1926, ou seja, trata-se de mais uma aproximação do universo
religioso-eclesiástico com a esfera política, nunca de maneira explícita. Tratava-se de uma
relação de troca entre pares. Dentro dessa estratégia de atuar junto ao Estado, mas não
explicitamente, e estabelecer essa relação como uma troca entre pares, em 1943 o SPHAN
escreve a D. Helvécio Gomes de Oliveira salientando que a restauração da Matriz de São
Caetano, pertencente à Arquidiocese, foi aceita “Tenho o prazer de levar ao conhecimento de
V. Excia. Revdma. que, de acordo com o estabelecido no artº 19, 3, do decreto-lei nº 25 de 30
de novembro de 1937, êste Serviço deliberou iniciar obras de reparação na Igreja Matriz de
São Caetano”11.
Por outro lado, é importante lembrar que essa composição não se faz sem vetos e disputas,
que não se tornaram públicas. D. Helvécio Gomes de Oliveira veta algumas peças,
pertencentes às Igrejas da Arquidiocese, solicitadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade:
De toda forma, e apesar dos vetos, o Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana foi
fechado em 1944 e suas peças transferidas ao Museu da Inconfidência. Entre 1944
11
Carta de Rodrigo Melo Franco de Andrade a Dom Helvécio Gomes de Oliveira. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta
2. Pasta 18: SPHAN/Patrimônios. 01/11/1943.
12
Carta (manuscrita) de Dom Helvécio Gomes de Oliveira a Rodrigo Melo Franco de Andrade. In: AEAM.
Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 18: SPHAN/Patrimônios. 28/07/1944. As peças vetadas são: um pelicano maior, com
cabeça separada; dois anjos ajoelhados; e um andor com vinte e um anjos.
243
(fechamento do Museu Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana) e 1961 (inauguração do
Museu Arquidiocesano de Mariana/MAM), as lideranças da Arquidiocese mantiveram
relativa correspondência com diversos interlocutores, eclesiásticos ou não, relativos ao tema
do patrimônio móvel pertencente à instituição católica. Entre os pontos mais importantes, os
casos de dois objetos merecem destaque: o primeiro é o da Bandeira do 17º batalhão de
Voluntários da Pátria e o segundo é o quadro intitulado “Desposório de São José”. Esses dois
objetos foram alvo de disputas com o Museu da Inconfidência/DPHAN, embate não público,
diga-se de passagem. Essas duas tensões não serão objeto de nossa análise neste trabalho, mas
mostram que a Arquidiocese não se descuidou de todo em relação ao seu patrimônio móvel,
mesmo que ela não possuísse mais um Museu neste período.
Com base no argumento de que o roubo de peças de arte sacra permanecia ininterrupto, as
lideranças eclesiásticas da Arquidiocese, tendo em D. Oscar de Oliveira o ator principal,
lançaram-se a uma tarefa: a fundação do MAM em 8 de abril 1961, que teve em D. Oscar de
13
Há importância da figura de D. Helvécio Gomes de Oliveira na vida de D. Oscar de Oliveira considerável. Foi
D. Helvécio quem permitiu que D. Oscar arrecadasse fundos que possibilitassem sua manutenção como
estudante do Seminário e fora ele quem ordenara D. Oscar padre e, posteriormente, bispo auxiliar de Pouso
Alegre entre 1954 e 1959. Em 1944, segundo Mabel Pereira, D. Helvécio nomeou o então padre Oscar como
diretor da Banda de Música São José. PEREIRA, M. In: Op. Cit., p.274.
14
Na Ata de Fundação do Museu, escrita em Setembro de 1962 por outra pessoa, que não D. Oscar, há um
trecho em que se afirma esta vontade do prelado anterior ao seu retorno a Mariana. Também em carta do Padre
Acrísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra já existe uma referência a peças a serem transportadas para o
museu vindas da localidade de Itaverava e que teriam sido escolhidas e solicitadas por D. Oscar de Oliveira em
julho de 1960. Carta de Padre Anísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6, Gaveta 2,
Pasta 20: Museus.Itaverava. 23/08/1962.
244
Oliveira seu presidente e no cônego Pedro Terra15o primeiro diretor, a quem competia “[...] a
administração ordinária do Museu e representá-lo juridicamente.16”.
Estes dois eclesiásticos assumiram uma função de liderança no que concerne ao projeto do
MAM e de todos os trâmites necessários para a sua execução. Desta forma, é preciso que
tenhamos em mente que eles se lançaram a uma tarefa de múltiplas frentes para colocar o
MAM em funcionamento, escolhendo desde o local onde seria instalado, as possíveis e até
necessárias adaptações, as peças que seriam expostas (e a complexa negociação em torno de
se consegui-las), a divulgação em meios católicos e não católicos e o apoio de entidades
públicas e privadas, tais como governos municipal, estadual e federal e empresas.
O local para se instalar o MAM foi o prédio anexo à Igreja da Sé, conhecido como Casa
Capitular (figura 4). Sobre este prédio pairava a dúvida de ter sido no passado uma prisão
(aljube), conforme vemos em carta ao diretor do Museu
Muito me alegrou saber que tal empreendimento seria entregue aos seus cuidados. Tal obra
será muito bem sucedida, sob a direção de um intelectual de seu naipe. [...] Desejaria
apenas saber se se trata sòmente de arte sacra, ou se o futuro museu a se instalar no ex-
aljube (?)abrirá suas portas, também, às outra espécie de arte17 (grifo nosso).
15
Cônego Pedro Terra era professor de arte sacra no Seminário Maior São José, em Mariana, e ocupava o cargo
de Chanceler do Arcebispado. O Chanceler do Arcebispado é um notário e secretário da Cúria.
16
Ata de fundação e dos estatutos do Museu Arquidiocesano de Mariana. In: AEAM. Arquivo 6. Gaveta 2. Pasta
20: Museus. 23/07/1962.
17
Carta de Danilo (?) a Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 19: Museus. Belo Horizonte.
22/08/1962.
245
Todo museu se constitui como sendo um acervo de peças, e o MAM não foi diferente. Suas
peças vieram de igrejas e paróquias pertencentes à Arquidiocese. Importante neste momento,
além de mostrar como se deu a constituição do acervo, é entender como o valor de erudição,
característica das práticas de colecionar, permeava as relações sociais desses líderes
eclesiásticos.
D. Oscar de Oliveira, através de suas visitas a paróquias e igrejas e Cônego Pedro Terra,
através do envio de cartas aos prelados, se articulavam para formar o acervo do MAM. Pelo
menos estas estratégias são notadas em carta do padre Acrísio de Assis Reis, da localidade de
Itaverava, ao cônego Pedro Terra:
Por intermédio do Sr. Henrique Aleixo de Paula, presidente do Conselho Vicentino e meu
sacristão, venho fazer a V. Revdma. a entrega das imagens e objetos, escolhidos pelo
Exmo. Sr. Arcebispo, por ocasião de visita pastoral em julho de 1960 e destinados por S.
Excia. ao Museu Arquidiocesano. Segue anexa, a lista das mesmas ficando as despesas do
transporte sob a responsabilidade desta paróquia. (Grifo nosso) 18
Parece ter havido boa recepção à notícia de criação do MAM, pois alguns prelados davam
preciosas indicativas às lideranças do Museu de onde poderiam conseguir peças para a
formação do acervo, conforme lemos abaixo
O MAM também contou com doações. Entre elas, destacam-se uma ermida doada pelo Sr.
Afrânio Martins da Costa, de Itabira (MG), ermida que “pertencera aos seus antepassados” e
um “esmoler da Capela de São José” doado por Augusto de Lima Júnior, intelectual e
historiador mineiro. Entretanto, é preciso que tenhamos em mente que o significado dessas
18
Carta (manuscrita) de Padre Acrísio de Assis Reis ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6, Gaveta 2,
Pasta 20: Museus. Itaverava. 23/08/1962.
19
Carta de Pe. Samuel (ilegível) a Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 5. Gaveta 2. Pasta 20: Museus. Rio
de Janeiro. 11/09/1962.
246
doações no acervo total do Museu é muito pouco. Como nos afirmou a museóloga Maria da
Conceição Brito, na constituição do acervo do Museu essa doação de particulares representa
muito pouco do total, “somando uns três ou quatro objetos apenas”20.
Agora que a estrada rodoviária para Ouro Preto começa a ser consoladora esperança, o
Museu Arquidiocesano vai ser um ponto de atração muito grande para os turistas cultos,
que nos vierem visitar. – Os senhores sabem que paízes como a Itália e a Suiça têm no
turismo suas principais fontes de renda. A cidade de Mariana, apresentando novas atrações,
20
Entrevista realizada com Maria da Conceição Brito. 14/08/2012. Entrevistador: Riler Barbosa Scarpati. UFOP.
21
Acervo Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
247
chamará a atenção dos visitantes, que aqui virão tomar um conhecimento com as fontes da
história e da arte em Minas.22 (Grifo nosso)
As empresas doadoras foram em número considerável. Mais importante do que listar o que
elas doaram é evidenciar que elas compartilhavam da mesma visão da direção do MAM,
como podemos notar na correspondência enviada pela Shell Brasil S.A à direção do Museu:
“A propósito, desejamos comunicar a V. Revdma. que esta companhia de bom grado acede à
sugestão contida na supracitada carta, de acôrdo com sua tradição de prestigiar as iniciativas
de natureza sócio-cultural.23”
O Sr. Antônio Joaquim de Almeida, diretor do Museu do Ouro de Sabará, disse que vai
indicar o nome de Dom Oscar de Oliveira para membro do Conselho Internacional de
Museus, porque êle fundou o Museu Arquidiocesano de Mariana, dando ao Brasil e
sobretudo a Minas um grande presente. (...) O Museu Arquidiocesano será inaugurado hoje,
às 15 horas, com a presença do governador e de todos os diretores de museus em Minas24.
22
O Museu Arquidiocesano de Mariana. In: O Arquidiocesano. 19/08/1962. p.3.
23
Carta a J.E. de Macedo Soares ao Cônego Pedro Terra. In: AEAM. Arquivo 6. Gaveta 2. Pasta 20: Museus. Rio
de Janeiro. 13/12/1963. Evidentemente, que não descartamos aqui a dimensão mais pragmática da ajuda das
empresas ao Museu, pois além da publicidade das mesmas, isso de alguma maneira poderia servir para algum
tipo de isenção fiscal, já que a instituição museal estava se tornando de utilidade pública.
24
Mariana abre museu barroco hoje de tarde. In: Correio de Minas. 22/09/1962. p.1.
248
Negro e Edson Mota. No caso de Ivo Porto, ele foi convidado a palestrar sobre o tema
“Manoel da Costa Ataíde, sua vida e obras”, já Carlos del Negro teve como temática de sua
apresentação “Pintura de Ataíde” e, por fim, Edson Mota “Pintura Mineira no século XVIII e
os problemas de sua restauração”. Mas quem são essas pessoas convidadas a palestrar? Em
nosso ponto de vista, mais significativo parece ser a evidência de que a direção do Museu ao
convidar pessoas para falar sobre arte e cultura do século XVIII tenha recorrido a letrados,
pessoas com as quais eles tinham identificação e compartilhavam determinados pontos de
vista sobre a cultura e a cultura civilizada. Desta forma, valemo-nos, mais uma vez, das
contribuições de Michel de Certeau ao afirmar que o lugar social possibilita aquilo que se diz,
mas também autoriza esse dizer.
A criação do MAM não pode ser deslocada das mudanças no cenário dos museus e do
catolicismo brasileiro nos anos 1960. Ocorreu um crescimento do número de museus que o
filósofo alemão Hermann Lubbe definiu desta maneira “O que são, então, os museus? Visto
desta perspectiva, os museus não são mais do que necrotérios de relíquias civilizacionais”
(LUBBE, 2009, p.161). O crescimento do número de museus é tanto em termos de quantidade
e de temáticas, quanto em termos de esferas de poder que o criaram, ou seja, passam a surgir
museus estaduais e municipais, além dos nacionais. Esse crescimento se deve a dois fatores:
nova linguagem dos museus com maior participação do público e o desenvolvimento do
turismo e das comunicações, de modo que os museus se tornassem produtos de consumo
cultural25.
As mudanças no catolicismo brasileiro surgiram nos anos 1950. Expressa pela ideia de
catolicismo militante, este novo movimento no quadro religioso pregava maior aproximação
das camadas populares e grupos ligados às transformações sociais. A Igreja não atuava apenas
no nível institucional, mas também na própria realidade social. Nem por isso, podemos
afirmar que toda a Igreja está envolvida nesse processo: são setores, grupos, alas (DELGADO
& PASSOS, 2007, P.97-98).
25
Myriam Sepúlveda dos Santos diz que mais de 80% dos museus brasileiros criados até 2004 surgiram depois
dos anos de 1960. SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Op. Cit., p.59.
26
Fazemos referência ao Concílio Vaticano II (1962-1965), mas não acreditamos que suas determinações
tenham tido importância na constituição do Museu, já que o Concílio termina apenas em 1965 e nessa parte do
trabalho exploramos apenas até o ano de 1964, por conta da já mencionada falta de documentação e também por
249
considerada conservadora e as palavras de D. Oscar sobre ela vão nessa direção “‘nimbo de
pureza e santidade’, berço que originou um povo catolicíssimo, apegado à tradição e aos
‘valores patriarcais’ e que se mantinha ligada aos princípios da moralidade e da fé”
(SILVEIRA, 2009, p.94).
Considerações finais
É possível notar, e espero ter conseguido mostrá-lo, que os projetos de criação dos Museus
dedicados à arte sacra pela Arquidiocese possuem várias similitudes. Os valores de erudição e
civilidade expressos pelo ato de colecionar e expor objetos, a tentativa de uma valorização do
próprio passado pela via de um tipo de arte e a dimensão de tentar expandir a fé católica
através dos lugares de memória. A dimensão (ou retórica) de perda (GONÇALVES, 2002)
tão aludida pelos eclesiásticos, e que estava no âmago das políticas de preservação do
patrimônio no Brasil no período, não pode ser subdimensionada27. As diferenças talvez
estejam mais no entorno da própria Arquidiocese e da temática dos museus. Esta, nos anos
1920, possuía preeminência em Minas Gerais, já nos anos 1960 havia perdido muito de sua
importância em parte pela fragmentação e criação de novas dioceses e pela importância que a
própria Arquidiocese de Belo Horizonte ganhava desde então.
Por fim, uma questão perpassou toda a exposição anterior: como, a partir das lições de Michel
de Certeau, podemos identificar o(s) Outro(s) que ele menciona? Em nossa visão, o Outro
desse processo de institucionalização de memórias sociais são os fiéis da Arquidiocese. Há, na
escrita epistolar, uma mescla entre silêncio em relação aos fiéis e a tentativa de taxá-los como
ignorantes. O povo ou os fiéis só eram consultados sobre as ações dos Museus caso
reclamassem de algo. E, quando reclamavam, eram taxados de ignorantes em termos
que em fins de 1964, Cônego Pedro Terra recebe uma bolsa de estudos para estudar Arte Sacra nos Estados
Unidos e só retorna em Março de 1966.
27
Agradeço à professora Letícia Julião por me atentar a este ponto.
250
culturais. Algo próximo do que acontecia com as políticas de preservação do patrimônio em
âmbito nacional durante todo o período aqui abordado (CALABRE, 2009, p.17).
Referências
Primárias
Periódicos
O Arquidiocesano (1961-1964)
CARPEAUX, Otto Maria. Contrastes de Mariana: Museu e não. In: Correio da Manhã. Rio
de Janeiro. 30/03/1963. 2º caderno. Sem página.
Mariana abre museu barroco hoje de tarde. In: Correio de Minas. 22/09/1962. P.1.
Secundárias
ABREU, Regina. Memória, História e Coleção. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro: volume 28, 1996, p.37-64.
BREFE, Ana Cláudia F. Um lugar de memória para a nação: O Museu Paulista reinventado
por Affonso d’Esgragnolle de Taunay (1917-1945). Tese (Doutorado em História),
UNICAMP, Campinas, 1999.
CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2009.
251
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. O catolicismo militante em Minas Gerais: aspectos do
pensamento histórico-teológico de João Camillo de Oliveira Torres. In: Revista Brasileira de
História das Religiões. ANPUH, Ano IV, nº10, maio 2011, p. 233-278.
DELGADO, L.A.N & PASSOS, M. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (1960-
1970). In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo da ditadura
militar: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, (O Brasil Republicano; v.4) p.93-132.
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 19, nº55, Junho/2004, P.53-73.
252
253
GT3 – Corpo, cultura e religião
Coordenador/a
Comentadores
Resumo
254
“Agora eu canto assim...”: impactos da afrofagia1 neopentecostal
sobre a Música Popular Brasileira.
O caso Bezerra da Silva e o CD “Caminho de Luz”
Patrício Carneiro Araújo2, Maria Célia Virgolino Pinto3
Introdução
1
Afrofagia: termo tomado de empréstimo a Ari Pedro Oro (2007), a partir do neologismo utilizado por ele
Religiofagia, ao se referir às características da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), nas suas relações com
as outras religiões. Refere-se à prática da IURD de “comer” e se alimentar de elementos e símbolos das religiões
afrobrasileiras.
2
Doutorando e mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP. Bolsista FAPESP. Membro do Núcleo de Estudos
Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, da PUC/SP. Contato: patricionisoji@hotmail.com.
3
Professora da UFPA e UEPA. Doutoranda e mestre em Ciências Sociais, PUCSP. Membro do Núcleo de
Estudos Relações Raciais: Memória, Identidade e Imaginário, da PUCSP. Contato: celiavirgo@ufpa.br.
255
história a ser negada. Trata-se de uma forma bem peculiar de violenta negação do outro e que,
portanto, pode ser vista como uma forma de intolerância religiosa.
Entre as muitas personagens que Eduardo Coutinho conseguiu trazer para seu documentário
destaca-se uma família negra que entra em cena a partir dos 35 minutos do filme. Trata-se da
família de Dona Derci da Cruz e Souza, e foi o depoimento dela que deu nome a este trabalho,
“Agora eu canto assim...”.
No diálogo entre Eduardo Coutinho e Dona Derci, religião, música, afirmação e negação de
identidades se encontram. Esposa de um neto do famoso poeta simbolista Cruz e Souza, Dona
Derci faz um emocionante relato que inclui seus sonhos de juventude (ser cantora), seu
casamento precoce (com doze anos), sua vida sofrida de mulher negra provedora da família
(vendedora de acarajé) e sua transição religiosa do candomblé para o pentecostalismo
(Assembléia de Deus). A música permeia todas essas experiências típicas de uma mulher
negra e pobre da sua época. O diálogo entre Eduardo Cotinho e Dona Derci se dá na seguinte
sequência: Dona Derci (D.D): - Esse é meu marido. Eduardo Coutinho (E.C): - Como é que
se chamava ele? D.D: - Silvio Cruz e Souza. (...).
A partir desse momento D. Derci começa o relato que nos será útil para pensar a relação da
sua história de vida com a de Bezerra da Silva:
D.D: - Eu era cantora. Depois que eu saía às seis horas, vendendo acarajé:
“Iemanjá olodô ê, wà lodô. Ê, ê Ijenã, wá lodô”. E.C: - A senhora era de
candomblé pra cantar isso, ou não? D.D: - Eu não era de candomblé. Mas
metia o nariz em candomblé. Mas eu hoje sou cristã! Sou da Assembleia!
256
E.C: - Assembleia de Deus? D.D: - É. Os cânticos agora eu canto assim:
“Jesus chorou, entrando em Jerusalém. Jesus chorou, entrando em
Jerusalém. Ele veio buscar o que era seu, eles rejeitaram Jesus agora é
meu... Ele veio buscar o que era seu, eles rejeitaram Jesus agora é meu.
Jesus agora é meu, Jesus agora é seu. Jesus, é meu é meu, Jesus, agora é
seu”.
Ora, o caso de D. Derci é emblemático no que diz respeito a pessoas egressas das religiões
afro-brasileiras que se convertem ao neopentecostalismo. Grosso modo, o que acontece é que
tais pessoas, depois que se tornam evangélicas, podem assumir três tipos básicos de
comportamento em relação a seu antigo pertencimento religioso: (i) em respeito à sua
ancestralidade (pertencimento étnico) e aos familiares e amigos que permanecem ligados aos
antigos vínculos religiosos, preferem silenciar em relação ao seu passado; (ii) passam a negar
esse passado, seja através de palavras (depoimentos, testemunhos públicos, desconstrução do
discurso feito anteriormente, etc.) ou de ações e (iii) combate aberto e assumido à religião
anterior. No caso de D. Derci a postura assumida (negação) se assemelha muito ao que
aconteceu a Bezerra da Silva. E, diga-se já no início, essa prática tem sido comum entre muita
gente, principalmente entre artistas que durante sua passagem pelas religiões afrobrasileiras
produzem uma arte fortemente ligada a esse universo religioso e depois que se tornam
evangélicos, são influenciados, tanto pelo discurso das suas igrejas quanto por um desejo
pessoal, a desconstruírem publicamente o seu passado religioso. Vejamos como esse processo
se deu com Bezerra da Silva.
José Bezerra da Silva nasceu em Recife, em uma data cercada de incertezas, 23 de fevereiro
de 1927. Se o ano pode ser indicado com segurança, o dia não é tão seguro assim. De família
pobre, antes mesmo de nascer, Bezerra foi abandonado por seu pai (Alexandrino Bezerra da
Silva) que largou sua mãe, Hercília Pereira da Silva, e foi viver no Rio de Janeiro onde se
engajou na Marinha Mercante. Tempos depois, já com dois filhos, José e Vanda, Dona
4
As principais informações sobre a vida e obra de Bezerra da Silva aqui apresentadas foram retiradas da obra de
Letícia C. R. Viana: Bezerra da Silva: produto do morro. Trajetória e obra de um sambista que não é santo
(Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998). Também se consultou o dicionário digital Cravo Albin da Música
Popular Brasileira (www.dicionariompb.com.br), além da própria discografia de Bezerra e outras fontes digitais.
257
Hercília também se muda para o Rio onde se casa novamente com aquele que seria o pai do
seu terceiro filho.
Antes mesmo da mudança da família, José já possuía inclinações para a música, o que era mal
visto pela família por ser tido como inclinação à malandragem e vagabundagem, visão
estereotipada dos artistas na época. O desejo da família era que José se dedicasse a uma
“profissão séria” como pedreiro, marceneiro, mecânico, ou alguma coisa do gênero. Porém, o
garoto insistia na música, se engajando, posteriormente, em uma banda composta por amigos.
Para se livrar dos constantes conflitos em família, José resolveu ir para a Marinha Mercante,
como já fizera seu pai. Forçado pelas circunstâncias da entrada na Marinha, Bezerra se vê
obrigado a fazer um contato com o pai que o abandonara ainda no ventre da mãe. Isso porque
seu ingresso na Marinha dependia de uma certidão de nascimento. Recusando o documento
assinado pelo padrasto, ele procurou o pai biológico que concedeu a certidão com uma data
contestada pela mãe.
Não querendo voltar para a casa da sua família foi então para o Rio de Janeiro em uma
viagem cujos relatos são cheios de elementos desencontrados, como atesta Letícia Viana, na
sua pesquisa sobre a vida do cantor (1998, p. 20).
A partir desse momento, Bezerra da Silva, resolvendo permanecer no Rio, passou a procurar
emprego até encontrar na construção civil, reduto de muitos nordestinos que acorriam para
aquela cidade em busca de emprego. Sempre na tentativa de manter seu vínculo com a
música, deu um jeito de conseguir uns “bicos” em algumas rádios e com isso foi mantendo o
emprego de pedreiro e a ocupação de músico instrumentista. Permaneceu assim por muito
tempo. Em 1954 a situação se agravou e ele perdeu os dois empregos. Bezerra passou então
por um dos momentos mais difíceis da sua vida, ao qual ele mesmo chamou de “Os sete anos
nas ruas da amargura” (idem, p. 24).
258
A mendicância e a experiência com a umbanda
É entre o período de 1954 a 1961 que José Bezerra passará pela metamorfose que o
transformará em Bezerra da Silva. Segundo a sua principal biógrafa, Letícia Viana, sem
emprego e numa crise de criatividade musical grave, José Bezerra foi rejeitado também por
seus dois irmãos que já viviam no Rio. Assim, ele caiu na mendicância total, passando a
perambular pelas ruas de Copacabana. Comendo lixo e dormindo entre os mendigos, José
viverá uma situação de total abandono, extrema miséria e crise existencial, sendo inclusive
rejeitado pelos próprios colegas de infortúnio, já que uma vez um membro do grupo entre o
qual dormia insinuou que ele era muito azarado e atraira incômodos sobre ele durante uma
noite fria no arpoador. Segundo Letícia Viana assim se deu esse fato:
Certa vez estava vagando à noite pela praia de Ipanema e acabou indo dormir no meio de
outros mendigos, num canto das pedras do Arpoador. De repente uma onda enorme
arrebentou na pedra e molhou todo mundo. O chefe dos mendigos disse que dormia ali
havia muito tempo e aquilo nunca tinha acontecido: devia ter alguém muito “carregado”.
Bezerra da Silva achou que era com ele e foi embora (ibidem, p.25).
Outro episódio que marcaria muito Bezerra foi quando ele “Voltou a vagar todo molhado pela
noite fria. Olhou para uma mulher que ia passando, talvez buscando uma centelha de calor
humano, e ela o encarou e disse: ‘Sai pra lá, Exu!’”. Assim, rejeitado por se assemelhar a
Ele, tempos depois Bezerra seria acolhido e reerguido por Exu, em um terreiro de umbanda.
Tudo aquilo era demais pra José. É então, que ele tenta o suicídio. Porém, essa tentativa de
suicídio começaria a lhe revelar um mundo que ele ainda não conhecera bem. Letícia Viana
descreve esse episódio:
Um dia resolveu se matar. Arranjou formicida e um copo. Foi para o meio da mata e
quando foi beber o veneno o copo voou de sua mão, como se alguém tivesse dado um tapa.
Mais tarde soube que o tapa fora dado por seu guia Ogum, Caboclo Rompe Mato. “Então
você acredita que quando eu fui levantar o copo assim, eu levei um tapa e o copo voou da
minha mão. Não vi ninguém, só senti o tapa. O copo saiu voando, sumiu no meio do mato,
acabou... Fiquei com aquilo na cabeça e voltei para a rua de novo. Mais tarde é que eu fui
saber, né”.
Após a tentativa frustrada de suicídio e a intervenção sobrenatural de Ogum, José volta para
as ruas. E é ali, que, através de uma senhora que às vezes lavava as suas roupas e lhe dava
pratos de comida, que ele tem seu primeiro contato com a umbanda. Depois de se lamentar
para Dona Paula, José recebe dela um papelzinho com um endereço e uma certa quantia em
259
dinheiro suficiente para a condução e o pagamento de uma consulta com uma mãe de santo.
Tratava-se do terreiro Caboclo Junco Verde, em Rocha Miranda. A mãe de santo era Dona
Iracema. Ali uma Preta Velha lhe fez grandes revelações. Segundo ela, em tempos anteriores,
José havia desafiado com arrogância um certo Exu Tranca Ruas, além de ter desprezado uma
amante que fez questão de lhe enviar feitiços. E, para que não houvesse dúvidas, a Preta
Velha fez questão de lhe mostrar, em um copo d’água, o rosto da amante preterida, vingativa
e feiticeira.
Depois de mostrar porque sua vida estava travada, a Preta Velha o encaminhou para outro
terreiro, a fim de se tratar. Dessa vez seria em um terreiro da Gávea, na Rua Embaixador
Graça Aranha, chefiado por Pai Nilo de Almeida Filho. Ali José Bezerra teria o grande
encontro com seu guia espiritual, Ogum, em um retiro espiritual de quatro anos. Ora, para
quem já havia passado três na mendicância e na miséria, quatro anos de caridade e roupa
branca não seriam tão longos assim. Seria justamente ali que José Bezerra entraria em contato
com muitos dos elementos que passariam a povoar as letras tanto dos sambas que ele viria a
compor quanto daqueles que ele passaria a cantar.
Uma vez no terreiro de umbanda, ao mesmo tempo que purgava seus vacilos com Exu Tranca
Ruas, Bezerra aprimorava seu talento musical e ainda se apropriava de muitos dos elementos
que comporiam seus sambas. Afinal, não era por ali que passavam os malandros, os manés, os
vacilões, as mulheres valentes ou maltratadas pelos companheiros, os trabalhadores, os
políticos em busca de sucessos eleitorais, os moradores dos morros, os ricardões, as piranhas,
os cachaceiros, os metidos, os espertos, e os outros tipos humanos que povoariam as letras dos
sambas interpretados por ele? É ali então que amadurece o talento de Bezerra da Silva. E, por
muito tempo, os elementos constitutivos das culturas dos terreiros serão a marca dos sambas
interpretados por ele, a ponto de muitos classificarem seu samba como sambandido. Sua
identificação com esse universo e as populações que o povoam foi tão forte que ele passou a
ser identificado como legítimo representante dos anseios desse povo. “Bom malandro”,
“Embaixador da favela”, “Porta-voz dos excluídos e marginalizados”, “Cantor bandido”,
“Artista marginal” e “Porta-voz da favela”, foram rótulos assumidos por Bezerra, sendo que
todos eles revelam como esse sambista assumiu de forma clara uma posição politizada em
260
relação às condições de vida em que viviam ele e seus interlocutores na música. É nesse
sentido que Bezerra absorve e assume os elementos e as linguagens dos povos de terreiros
como elementos dos seus sambas. Com uma discografia vasta, grande parte dos seus trabalhos
inclui elementos das culturas dos terreiros, como mostram as letras a seguir:
Quadro sinótico de sambas cantados por Silva que apresentam elementos ligados às religiões afro-brasileiras
Meu pai é general de umbanda (Regina do Bezerra, Miltinho, Jorge Garcia. 1987.)
Tudo que eu peço a vovó ela faz/Também o que eu peço a vovô ele faz./Ele é rei de Aruanda,mas vovó também
manda/Quando os dois pedem juntos ninguém me passa pra trás/O que eu quero mais, o que eu quero mais/Tenho plena
consciência e sempre andei correto./Por isso sou bem protegido por Vovó Catarina e Pai Anacleto/Eles são meus protetores
e garantem minha paz./O que eu quero mais, o que eu quero mais./Meu pai é general de umbanda e assim é seu grito de
guerra/Se Ogum perder demanda nunca mais desce na terra,/E em seguida ainda disse que filho de umbanda não cai./O que
eu quero mais, o que eu quero mais...
Zé fofinho de Ogum/Era um tremendo cento e setenta e um/Dizia que os búzios falavam/Tudo o que ele queria saber/Desde
a hora de nascer/Até a hora em que ia morrer/Amarrava mulher, amansava marido/O Zé só faltava era fazer chover/E da
esposa do delegado faz-me-rir/Ele tomou de montão/Pra dizer que o doutor andava lhe traindo/E ela pensando que ele era
bom/Uma linda imagem de São Jorge/Em suas costas, muito bem tatuado/O Zé com um papo de caô-caô/Dizia que tinha o
corpo fechado/E quando sujou geral/Ele pelo Santo não foi avisado/De repente pintou a caçapa/Era o Zé zero a zero com o
delegado/O doutor muito invocado/Gritou o coro vai comer/Tira a roupa do malandro/E bate até o cavalo correr...
Qué falá com pai véio vem agora/Porque pai véio já qué ir se embora /I mai meu fio tá todo macumbado/As piranhas estão
te devorando/Não tem um lugar nem prá dormir/E ainda meu fio mora andando/Escute o que o véio vai falá/E num papé tú
vai iscrivinhando/I mai me traga oito quilo di feijão/Deis galinha bem gorda e bem pelada/Deis quilo de arroz e macarrão/E
deis lata de doce de marmelada/Deis garrafa de vinho do bonzão/Que a tua mironga tá curada/I mai me traga também um bi
e meio/Que meu fio vai ganhá grande tesouro/Vai ser o maior dos fazendeiros/Vai vendê muita vaca e muito touro/Se meu
fio não tivé dinheiro vivo/Pode ser cheque verde ou cheque ouro/I mas meu fio tú vai na paz de Deus/Que agora meu fio tá
seguro/E vai ganhá tudo o que perdeu/Pai véio vai lhe dá grande futuro/E voltá com todo povo teu/Por favor não me traga
ninguém duro...
Ele subiu o morro sem gravata/Dizendo que gostava da raça/Foi lá na tendinha/Bebeu cachaça/E até bagulho fumou/Jantou
no meu barracão/E lá usou/Lata de goiabada como prato/Eu logo percebi/É mais um candidato/Às próximas eleições
(3x)/Fez questão de beber água da chuva/Foi lá no terreiro pediu ajuda/E bateu cabeça no congá/Mais ele não se deu
bem/Porque o guia que estava incorporado/Disse esse político é safado/Cuidado na hora de votar/Também disse:/Meu
irmão se liga/No que eu vou lhe dizer/Hoje ele pede seu voto/Amanhã manda a polícia lhe bater/Meu irmão se liga/No que
eu vou lhe dizer/Hoje ele pede seu voto/Amanhã manda os homem lhe prender/Político engana todo mundo../Menos o
caboco..ele deu azar na macumba do malandro..ah lá/O caboco /caguetou ele.
261
Bata da Vovó (E. Rodrigues e Darcy de Souza. 2000)
Vovó nunca pediu nada/Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não deu/Vovó nunca pediu nada
Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não deu/Você anda desviado, passando fome, dormindo na
rua/Vovó fez trabalho forte, sua sorte continua/Agora você tem bango, já se esqueceu da vovó/Olha que dor de/arriga
muleque, nunca dá uma vez só/Vovó nunca pediu nada/Foi você quem prometeu/Dar uma bata a vovó/E até hoje não
deu/Mas vovó nunca lhe pediu nada/Foi você mesmo quem prometeu/Você disse que dava uma bata a vovó/E até hoje não
deu/Não brinca com preta-velha por que ela faz uma boa contigo/Ela sabe que quando você tava preso entregava ouro na
mão dos bandidos/Se sexta-feira que vem você não fizer o que lhe prometeu/Vou bagunçar teu coreto moleque, você vai ver
quem sou eu...
Como se pode ver, são muitos os elementos que fazem referência ao mundo das religiões
afro-brasileiras. Acima podemos perceber termos e expressões como: Ogum, búzios, amarrar
mulher, amansar marido, imagem de São Jorge, corpo fechado, cavalo (como sinônimo de
médium), Vovó (entidade de umbanda), Vovô (idem), Aruanda (mundo mítico na umbanda),
general de umbanda, Vovó Catarina, Pai Anacleto, protetores, demanda, filho de umbanda,
trabalho forte, bango, preta-velha, sexta-feira, terreiro, bater cabeça, congá, guia, macumba,
azar, incorporado, entidade, caboco, pai véio, macumbado, mironga, entre outros. Todos
compõem um campo de sentido muito específico do universo religioso afro-brasileiro. E a
presença deles aí não é à toa. Como vimos, isso se deve tanto ao pertencimento de Bezerra à
umbanda quanto à ligação dos seus compositores a essa religião. Bezerra, então, através da
sua música, assume o discurso dos povos de terreiros, assim como também assume às vezes
de arauto dos favelados, pobres e oprimidos, como ele mesmo gostava de se afirmar.
Contudo, em 2001, com sua conversão à IURD isso vai mudar significativamente.
262
sua mudança iria lhe render, no mínimo, a pecha de maluco. E isso aparecerá em uma das
suas composições gospel (O Gente fina, faixa 4 do CD Caminho de Luz).
Como é de praxe entre artistas que se tornam evangélicos, a conversão implica em uma
mudança radical de vida. Isso também inclui a produção artística, até então associada às
coisas do mundo e que, em função do novo estilo de vida, deve se submeter à nova condição
de “crente”. Na maioria dos casos, essa mudança se materializa na adoção de um novo estilo
de arte. No caso dos cantores e cantoras o novo estilo adotado é o chamado gospel.5 A música
então, mesmo que não adote um novo ritmo, sempre adota uma nova temática. Grosso modo,
quanto mais próximo do universo mundano maior é a mudança a ser adotada. No caso de
cantores de samba a mudança exigida deve ser ainda maior, uma vez que é um estilo musical
fortemente ligado ao universo religioso afro-brasileiro, tido pela maioria dos neopentecostais
como religiões demoníacas. Não era de se esperar outra coisa de Bezerra após a sua
conversão. Contudo não se deve achar que mudanças desse tipo atingem apenas os sambistas.
Dos cantores de repente do sertão nordestino aos sambistas das grandes escolas de samba do
Rio de Janeiro, a conversão a essas igrejas tem demonstrado um forte poder deletério em
relação aos antigos pertencimentos religiosos desses artistas. Principalmente quando se trata
de conversão à IURD. Trata-se de uma verdadeira afrofagia. Essa religião, como bem lembra
Ari Pedro Oro (2007)6, possui um grande poder de “comer as outras religiões” com as quais
se choca.
Mas o pentecostalismo da IURD, não come apenas religiões. Ele também come culturas.
Também come estilos musicais. Ricardo Mariano, grande pesquisador do pentecostalismo e
neopentecostalismo brasileiros, em suas pesquisas sobre o neopentecostalismo no Brasil já
falava na década de 1990, da ação corrosiva e fágica da cultura gospel sobre o Rock, o samba
e o carnaval no Rio de Janeiro (MARIANO,1999, p. 219). No mesmo livro, ele dedica uma
descrição da influência afrofágica da cultura dos “crentes” sobre o samba carioca da
comunidade da Mangueira. Era “o samba virando crente”, segundo palavras da própria Dona
Zica, ao comentar a conversão do sambista Padeirinho da Mangueira (1927-1987). Mas esse
processo não se contenta apenas com a música afro-brasileira. Vagner Gonçalves da Silva
5
Mesmo sabendo que Gospel se refere mais a uma marca do que a um estilo musical, adotaremos o termo aqui
como sinônimo de estilo musical e não nos deteremos em uma exposição acerca dos seus sentidos. Para maiores
esclarecimentos sobre este assunto aconselhamos a leitura de MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia
do novo pentecostalismo no Brasil. Ed. Loyola, São Paulo, 1999.
6
ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In: Intolerância
religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro (Vagner Gonçalves da Silva,
org.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007, p. 29-67.
263
(2007) também demonstrou como o pentecostalismo se apropriou tanto da capoeira quanto do
acarajé, parasitando-os e dando-lhes outros sentidos ao classificarem-nos de “capoeira de
Jesus”, “bolinho de Jesus” e coisas que o valham (SILVA, 2007, p. 255). Pode-se, então,
perceber como essa pentecostalização do mundo pode chegar ao seu paroxismo, através da
afrofagia que lhe é peculiar.
Ao analisar a intolerância religiosa iurdiana e as reações afro no Rio Grande do Sul, Ari Pedro
Oro explica como se dá esse processo de “comer a cultura do outro” por parte da IURD. Ele
faz questão de ressaltar três das características da IURD: (i) “a apropriação e atribuição de
novos significados a elementos de crenças tomados de outras igrejas e religiões (igreja
religiofágica); (ii) a amplificação desses elementos e de outros já existentes no campo
religioso (igreja da exacerbação) e (iii) a metamorfose dessa igreja, sobretudo em
determinados rituais, que ao invés de distanciá-las das religiões afro-brasileiras que combate,
delas se aproxima (igreja macumbeira)” (ORO, 2007, p. 29-30). Portanto, no seu universo de
crença e nas suas práticas, a IURD é uma igreja ‘comedora de religiões’ (religiofágica),
multiplicadora de símbolos (exacerbadora) e parasitária (macumbeira). Deve-se lembrar que,
estrategicamente, na sua prática a IURD assume uma ou mais dessas posturas. Tudo depende
da conveniência. Quando é conveniente combater, ela combate. Quando convém assimilar, ela
assimila. Sendo que em cada região ou país em que ela se instala, os alvos do combate ou da
assimilação assumem roupagens locais, de acordo com as culturas existentes no seu entorno,
como comprovam os vários pesquisadores e pesquisadoras que participaram das pesquisas
que deram origem à coletânea organizada também por Ari Pedro Oro (2003).7 E, mirados nos
seus líderes, os fiéis agem da mesma forma. Foi dessa compreensão de Oro sobre o caráter
religiofágico da IURD que chegamos a perceber a IURD como, acima de tudo, afrofágica.
Até porque, no Brasil, não pode haver outro universo religioso que tenha sido mais comido
por ela do que o afro-brasileiro. Tem sido desse meio religioso que a IURD retira a seiva que
a tem nutrido nesses seus 36 anos de existência. E essa afrofagia pode ser percebida
claramente no processo de conversão de Bezerra da Silva e na total mudança pela qual o seu
samba passou depois dessa conversão. A velha história de Dona Derci se repete. Antes
Assembléia de Deus e Dona Derci, hoje IURD e Bezerra da Silva. Em 1988 era ela falando
para Eduardo Coutinho. Em 2004 foi Bezerra da Silva, através do CD Caminho de Luz,
dizendo: “hoje eu canto assim...”. Períodos e personagens diferentes. Posturas e discursos
7
ORO, Ari Pedro & CORTEN, André & DOZON, Jean-Pierre. Igreja Universal do Reino de Deus, os novos
conquistadores da fé. São Paulo, Paulinas, 2003.
264
semelhantes. Mas, como essa afrofagia aparece no CD Caminho de Luz? Vejamos a letra de
cinco das músicas constantes desse CD. Comparem com os sambas apresentados
anteriormente:
Quadro sinótico de letras de músicas cantadas por Bezerra da Silva no CD Caminho de Luz
Agora é muita responsabilidade/eu assumi a verdade/meu caminho é Jesus/andei por caminhos tortos como
bobo/mas graças a Deus com Cristo/é que eu nasci de novo/o mundo lá fora /é um grande desafio/muitos corações
vazios/das coisas que levam a Deus/mas oro muito /pelos meus irmãos lá fora/que entendam que é hora e busquem o
Senhor como eu/fé no Senhor /é sempre fazer o bem/e passar pra mais alguém /as boas novas de Jesus/é confiar /com
muita fé na palavra/de uma vida que não acaba/sempre tinha que dar luz.
Achei a vida mais bonita que eu queria/com muito amor bastante paz no coração/pois esta vida Deus me deu com
muita unção/acredite quem quiser só Jesus é salvação/meu pai é quem segura todo o mal que nos consome/aqui na
terra destruindo a mulher e o homem/no seu caminho eu aprendi a caminhar/vida em abundância sei que Jesus vai
me dar/é tão gostoso ser feliz sem agonia/pedindo a Deus para todos a sua proteção/pois quem tem fé neste Santo
abençoado/jamais vai ficar jogado como lixo pelo chão/você está no fundo do poço meu irmão/só existe Jesus Cristo
que vai lhe estender a mão.
Você tem uma casa santa pra morar o tempo inteiro/sem se preocupar com nada/se alimenta sem dinheiro/pois esta
casa tem uma porta e uma janela/é um reino abençoado com bastante oração/bem diferente da casa onde você
mora/que nela tem tudo bonito mas está faltando a salvação/eu vou morar com Jesus eu vou morar/foi ele quem me
escolheu e mandou eu te convidar/tem muita gente que já está morando lá/pois nesta casa lá eu vou morar
também/porque Jesus sempre foi um grande pastor/dá tudo para os seus filhos sem cobrar nada a ninguém/eu vou
morar com Jesus eu vou morar/foi ele quem me escolheu e mandou eu te convidar/eu vou morar com o Espírito
Santo que me conduz/foi ele quem me batizou e mandou eu ganhar alma pra Jesus.
Nasceu numa família tradicional/o nome conhecido na coluna social/era tudo aparência/orgulho no coração/empregada
sem salário/mas uísque no armário/carro velho todo enferrujado/mas ele era chamado: o gente fina/fumava três maços por
dia/acordava de noite tossia/acendia outro cigarro/e aí já não dormia/tanto cheque pré-datado/o cartão tava
bloqueado/condomínio alugue atrasado/sete dentes cariados/jornal no sapato furado/mas ele era chamado: o gente
fina/agora encontrou Jesus/na igreja universal/foi liberto de todos os vícios /aprendeu a humildade/não passa a noite
acordado/não está endividado/é dizimista fiel/e vive muito abençoado/tudo nele está mudado/mas agora ele é chamado de
maluco/e sorrindo ele responde/é verdade eu sou maluco/eu sou maluco/é verdade eu sou maluco/eu sou maluco/é verdade
eu sou maluco/sou maluco por Jesus (...).
265
Acreditar na palavra (Bezerra da Silva)
Se você acreditar na palavra/Que Jesus é a Porta, Luz, Caminho e Verdade/Sua vida se transformará/Em um rio de amor
e de felicidade/Assim como Jó suportou provações/Eu também vou suportar/Segurando na mão do meu Deus/Jamais o
mal vai me alcançar/Na hora de tribulações clamando a Jesus eu pude perceber/Que tudo na vida é força/Somente a
palavra de Deus tem poder/Se você acreditar na palavra/Que Jesus é a Porta, Luz, Caminho e Verdade/Sua vida se
transformará/Em um rio de amor e de felicidade/Eu que vivia no mundo perdido, iludido, sem direção/Clamei a meu Deus
que é fiel lá do alto do céu ele me deu a mão/Até mesmo os meus inimigos que pensaram ter vencido meu pai não deixou/É
por isso que hoje eu canto por todos os cantos pro meu Salvador.
Os nomes das músicas constantes do CD estão todos relacionados com a conversão do cantor,
como podemos ver: (Faixa 1) Muita responsabilidade; (2) Achei a vida; (3) Casa Santa; (4)
Gente fina; (5) Eu andava nas trevas; (6) Filho do dono; (7) Nossos irmãos; (8) Chave do
milagre; (9) Vendo que era bom; (10) Redenção; (11) Acreditar na palavra; (12) Me chamo
Jesus e (13) Conselho de Luz.
Como era de se esperar, apesar de manter o ritmo de samba, o conteúdo das letras de Bezerra
mudou totalmente. Sumiram todas e quaisquer referências aos personagens das periferias e às
entidades e divindades das religiões afro-brasileiras. Desaparecerem também as gírias (tema,
inclusive, do seu CD de 2002 – A Gíria é a cultura do povo) e as denúncias da pobreza ,
miséria e exploração pelas quais os pobres passam. Tudo isso deu vez à exaltação do encontro
com Jesus e à ênfase na necessidade de transmitir a nova mensagem de salvação encontrada
na IURD. Se no samba Pai Véio criticava-se a entidade de umbanda que, muito malandro,
arrancava dinheiro do consulente desavisado, agora, em O gente fina, Bezerra exorta a todos a
se tornarem dizimistas fiéis da IURD, a fim de serem abençoados, como manda a teologia da
prosperidade (MARIANO,1999). Diferentemente do que afirmara em Meu Pai é general de
umbanda, agora, em Acreditar na palavra, Bezerra adverte seus inimigos que foi seu pai
(Jesus) que frustrou suas investidas, na tentativa de o derrubar. E, como fizera em A Bata de
vovó, ao advertir um consulente ingrato que prometeu e não deu uma bata à Preta Velha,
agora Bezerra adverte a todos que nunca é tarde para encontrar Jesus. E melhor que seja na
IURD, onde ele próprio o encontrou, se batizou e renasceu, tornando-se dizimista fiel. Assim
ele teria encontrado a felicidade, depois de ter vivido e andado como bobo por caminhos
tortos, no mundo. Perdido, iludido e sem direção. Em Muita responsabilidade, suas palavras
são contundentes: “busquem o senhor como eu”. E, em Casa Santa, explica qual será seu
destino dali pra frente: “Eu vou morar com o Espírito Santo que me conduz”, já que “Foi ele
266
quem me batizou e mandou eu ganhar almas pra Jesus”. Estava findo o processo de afrofagia
da IURD sobre a música de Bezerra da Silva.
Considerações finais
Com essa análise não queremos subestimar a importância da experiência de conversão vivida
por Bezerra Silva. Queremos apenas chamar a atenção para o efeito deletério de certas
conversões religiosas quando se trata de choques com outras culturas, principalmente quando
os sujeitos em questão são religiões afrobrasileiras e neopentecostais. Lembro-me, inclusive,
de quando era criança, no sertão da Paraíba, e via pessoas idosas se converterem à Assembleia
de Deus. Como todas as pessoas do povoado eram católicas e possuíam altares, oratórios e
imagens de santos para o culto doméstico, quando os/as chefes de família se convertiam, e sob
o efeito iconoclasta do discurso dos pastores, uma das primeiras atitudes simbólicas que
funcionavam como marcadores sócio-religiosos da conversão era justamente o desfazer-se
publicamente dos objetos de culto católico. Vi muitas vezes quadros e imagens de santos
jogados no lixo ou sendo doados para famílias que continuavam “no pecado do catolicismo”.
Com isso quero dizer que sabemos que as religiões afro-brasileiras não são as únicas vitimas
da ação deletérea de algumas denominações neopentecostais. Contudo, qualquer análise
minimamente profunda das dinâmicas do campo religioso brasileiro poderá confirmar que
entre todas as religiões aqui existentes, as afrobrasileiras são as mais atingidas pela ação e
crescimento de igrejas como a IURD. E o caso de Bezerra da Silva e do CD Caminho de luz é
um bom exemplo disso.
267
Referências
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2ª edição. – Rio de
janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. E Inf. Cultural, Divisão de
Editoração, 1995.
ORO, Ari Pedro. Intolerância religiosa iurdiana e reações afro no Rio Grande do Sul. In:
Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro.
ORO, Ari Pedro.et AL.; SILVA, Vagner Gonçalves da (org.). – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007. p. 29-70.
268
269
A renovação do sacrifício de Cristo: ritual, práticas corporais e
experiências afetivas na Santa Missa do Opus Dei
Asher Grochowalski Brum Pereira1
Introdução
Entendo a Missa como um ritual que possui uma sequência estereotipada de atividades
envolvendo gestos, palavras e objetos, que são desempenhadas em um lugar “separado” e das
quais se espera algum efeito (TURNER, 1973). Tambiah (1979) também oferece uma
definição interessante para o ritual que me parece apropriada para pensar a Missa. Para ele,
ritual é um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica, constituído de
padrões e sequências ordenadas de palavras e atos, muitas vezes expressos por múltiplos
meios cujos conteúdos e arranjos são caracterizados em vários graus pela formalidade
(convencionalidade), estereótipo (rigidez), condensação (fusão de vários elementos) e
redundância (repetição). Participar do ritual da Missa implica em determinadas experiências
afetivas e em uma determinada regulação da corporalidade. O corpo, por sua vez, é onde estão
imbricados afetos, formas de agir e espiritualidade, sendo difícil separá-los analiticamente.
1
Doutorando em Ciências Sociais pela UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Ronaldo de Almeida. Bolsista
da FAPESP. Contato: asherbrum@yahoo.com.br.
270
Entendo, pensando a partir de Foucault, que o disciplinamento e performatização dos corpos
na Missa está relacionado com processos mais amplos de subjetivação, uma vez que essa
criação de sujeitos está associada ao corpo e à regulação disciplinar do comportamento. Um
dos aspectos dessa subjetividade construída são as experiências afetivas, tal como entendidos
por Favret-Saada (1977; 2005).
A Santa Missa, por conseguinte, pode ser interpretada pela chave das práticas e padronizações
corporais que configuram experiências afetivas. Essas experiências e a repetição dessas
práticas corporais organizam processos de subjetivação, criando sujeitos aptos a santificar o
mundo, deformado pelo pecado, a partir da sua atividade cotidiana. Aqui, ritual e práticas
corporais conectam-se para criar sujeitos e orientar condutas. O ritual da Santa Missa é, antes
de tudo, a repetição da vida e morte de Cristo, dramatizada por atores específicos. É entendida
como um evento “separado” do mundo secular, mas que prepara os indivíduos para voltarem
a ele.
Os membros do Opus Dei assistem à Santa Missa diariamente, pela manhã, como forma de
abastecer-se espiritualmente – ao receber o corpo de Cristo na Comunhão – para enfrentar o
labor do dia e, desse modo, buscar a santificação. Compreendo esse ritual como um eixo em
torno do qual se configuram experiências afetivas e que, certamente, não cessa com o simples
término da Missa. Durante a pesquisa etnográfica que realizo, desde 2011, em um Centro do
Opus Dei, na cidade de São Paulo, escutei muitas vezes que a Missa é (ou deveria ser) o ponto
alto do dia de todo cristão-católico, pois é quando pode ter uma experiência íntima com Deus
por meio da Comunhão. Desse modo, o indivíduo torna-se apto espiritualmente a orientar seu
dia para o grande ensinamento do Opus Dei: santificar o mundo a partir de dentro. Ora, se o
mundo é o lugar onde reina o pecado, nada mais plausível do que fortalecer-se espiritualmente
por meio do contato direto com Deus no início de todos os dias. Além de uma preparação
prévia para a missa, como não estar em pecado mortal (ou seja, não ter quebrado nenhum dos
10 mandamentos) e estar recolhido em oração, devem-se buscar na missa quatro fins
fundamentais: 1) ação de graças (dar graças a Deus e receber a Comunhão); 2) expiação
(pedir perdão dos pecados); 3) adoração (adora-se somente a Deus); 4) petição (dirigir
pedidos a Deus).
271
* * *
A Santa Missa ocorre diariamente no oratório do Centro do Opus Dei. Trata-se de uma sala
ampla, com duas fileiras de bancos de madeira. Os bancos estão voltados para o altar de
mármore, adornado com quatro candelabros altos e dourados e, entre eles, um crucifixo. A
toalha do altar é branca e adornada com o símbolo do Opus Dei nas extremidades, que caem
delicadamente pelos lados do altar. Na parte da frente desse altar de mármore também há esse
mesmo símbolo, metálico e dourado. Trata-se de um círculo perfeito, representando o mundo,
e, no seu interior, há uma cruz – a cruz de Cristo no meio do mundo. Logo atrás do altar está o
sacrário com a hóstia a ser consagrada durante a Missa. Logo acima, há uma grande imagem
de Nossa Senhora segurando, em uma mão, uma rosa e, no outro braço, o menino Jesus. À
direita, há um retrato de São Josemaria Escrivá. À esquerda, uma porta e uma mesinha, onde
costumam ficar os objetos que serão usados na Missa. O ambiente, ali, é solene. Silencioso.
Não se conversa ali dentro e, ao entrar, se faz o mínimo de ruído possível. As pessoas
começam a chegar para a missa e vão sentando nos bancos.
Após fazer uma breve oração em frente à cruz, na saleta atrás do oratório, o padre sai
lentamente, com as mãos unidas em frente ao peito, precedido pelo numerário leigo que vai
auxiliá-lo na missa. O padre enverga, sobre a batina cotidiana, uma espécie de longa camisa
de renda fina e, por sobre esta, um manto com o símbolo do Opus Dei bordado em dourado às
costas. Ainda, sobre esse manto, usa uma estola que lhe cai por sobre os ombros e vai até
pouco abaixo da cintura. A cor da estola varia de acordo com o período litúrgico. Quando o
padre entra, todos se levantam, pois, nas circunstâncias da missa, o padre empresta seu corpo
ao próprio Cristo, que fala e age através dele. O leigo auxiliar prostra-se em um canto
próximo e o padre posiciona-se diante do altar, de frente para a assembleia. O padre diz: “em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” e a assembleia responde “amém”. Esta fala é
acompanhada, concomitantemente, por toques, com a mão direita, na cabeça, no peito, no
ombro esquerdo e no ombro direito. Em seguida, o padre abre os braços e, com as palmas das
mãos voltadas para cima, proclama: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai, e
a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. A assembleia responde: “Bendito seja Deus
que nos reuniu no amor de Cristo”. A Missa começou.
272
A primeira parte da missa, o chamado ato penitencial, é dedicada a pedidos de perdão a Deus
pelos pecados cometidos. O ato penitencial começa quando o padre diz, ainda com os braços
abertos: “irmãos e irmãs, reconheçamos as nossas culpas para celebrarmos dignamente os
santos mistérios”. Faz-se uma pausa de alguns segundos onde, introspectivamente e de cabeça
baixa, cada membro da assembleia reflete rapidamente sobre os próprios pecados. O padre
continua: “Confessemos os nossos pecados”. A seguir, todos proclamam em uníssono a
seguinte oração: “confesso a Deus todo-poderoso, e a vós irmãos [só tem homens na
celebração], que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões [e batendo
no peito com a mão direita dizem] por minha culpa, minha tão grande culpa. E peço à Virgem
Maria, aos anjos e santos e a vós, irmãos, que rogueis por mim a Deus, nosso Senhor”. Ao fim
dessa proclamação, o padre diz: “Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os
nossos pecados e nos conduza à vida eterna”. Todos respondem: “Amém”.
Liturgia da palavra
A segunda parte da celebração da Missa é a liturgia da palavra, cujo intuito é dar glória e
adorar a Deus por meio da contemplação do Evangelho. O padre, após o ato penitencial,
senta-se ao fundo e, com ele, todos se sentam. A seguir, o numerário, que jazia em pé a um
273
canto, caminha até uma pequena tribuna e, abrindo a bíblia na página marcada previamente,
anuncia: “primeira leitura”. O leigo faz a breve leitura e, ao final, proclama: “Palavra do
Senhor”. Todos respondem: “graças a Deus”. Logo em seguida, o numerário abre o
Evangelho em uma segunda parte selecionada previamente. É a parte do Salmo Responsorial.
Nessa parte da Liturgia, a leitura do Salmo é intercalada pela fala da Assembleia. Para ilustrar
essa parte, recorro a uma Missa que assisti na JMJ (Jornada Mundial da Juventude Rio de
Janeiro - 2013) celebrada por um sacerdote do Opus Dei, lembrando que, apesar da leitura
variar, a fórmula é sempre a mesma. O numerário proclama: “o amor do Senhor Deus, para
todos os que o respeitam, existe desde sempre e para sempre existirá”. A assembleia repete
exatamente a mesma oração. O numerário, então, continua: “bendize, ó minha alma, ao
Senhor, e todo o seu ser, seu santo nome! Bendize, ó minha alma, ao Senhor não te esqueças
de nenhum de seus favores!”. Ao final dessa aclamação, todos repetem, novamente, a
primeira oração: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário leigo prossegue: “pois ele te
perdoa toda a culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida e te cerca
de carinho e compaixão”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário continua: “o
Senhor realiza obras de justiça e garante o direito aos oprimidos; revelou os seus caminhos a
Moisés, e aos filhos de Israel, seus grandes feitos”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. Por
fim, o numerário diz: “o Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e
compassivo. Não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas
culpas”. Todos: “o amor do Senhor Deus...”. O numerário, finalmente, fecha a Bíblia e dirige-
se novamente ao canto.
Nesse momento, o padre levanta-se ao fundo e, com ele, toda a assembleia. Então, dirige-se à
bíblia que jaz sobre a tribuna e o numerário a abre cuidadosamente na página marcada. Com
os braços abertos e sem tocar na bíblia, o padre, inclinado diante dela, reza em voz baixa: “ó
Deus todo-poderoso, purificai-me o coração e os lábios, para que eu anuncie dignamente o
vosso santo Evangelho”. Após, erigindo o corpo e ainda de braços abertos, declara: “o Senhor
esteja convosco”. Todos: “ele está no meio de nós”. O padre, então, anuncia, fazendo três
cruzes com o polegar sobre o Evangelho aberto: “proclamação do Evangelho de Jesus Cristo
segundo [nome do autor do Evangelho]”. Ao mesmo tempo em que o padre diz essas
palavras, todas as pessoas da assembleia fazem três cruzes com o polegar, uma na testa, uma
nos lábios e uma no peito e, concomitante e silenciosamente, proclamam: “pelo sinal da santa
cruz, livrai-nos Deus, nosso Senhor, dos nossos inimigos”. Ao término da fala do padre, a
assembleia responde: “Glória a vós, Senhor”. Todos ouvem em pé enquanto o sacerdote faz a
274
leitura. Terminada, ele diz: “Palavra da Salvação”. Todos: “glória a vós, Senhor”. Então, o
padre beija o Evangelho e reza em silencio: “pelas palavras do santo Evangelho sejam
perdoados os nossos pecados”. Em seguida, mandando a assembleia sentar-se, inicia a
homilia. A homilia é a parte mais espontânea da celebração. Em outras palavras, é o sermão
do padre. Geralmente constrói sua fala em cima da leitura do dia.
Profissão de fé
275
Liturgia eucarística
Após rezar o Credo, a assembleia senta-se para acompanhar a liturgia eucarística. É o início
do momento apoteótico da celebração. O numerário, tendo a mão protegida por um lenço
branco, pega o cálice de uma mesinha, sobre cuja boca há uma espécie de envelope quadrado
de tecido, e, cuidadosamente, o deposita sobre o altar. O padre abre o envelope e de dentro
dele tira um pano branco que estende sobre o altar. Entrega o envelope para o numerário, que
o guarda. Sobre essa toalha, o padre coloca uma espécie de disco, plano e dourado, chamado
patena e, sobre ele, a hóstia que será consagrada. Abrindo os braços novamente e com os
olhos voltados para o Evangelho que jaz sobre o altar, em um pequeno pedestal dourado, diz:
“bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da
terra e do trabalho humano, que agora vos apresentamos e para nós vai se tornar pão da vida”.
Todos respondem: “bendito seja Deus para sempre!”. A seguir, o numerário leva até o padre
um pequeno suporte com duas jarrinhas, uma contendo água e a outra contendo vinho. O
padre, então, derrama um pouco de vinho no cálice e, com uma minúscula concha, derrama
uma gota de água no mesmo. Enquanto realiza esse ato ritual, o padre reza em silêncio: “pelo
mistério desta água e deste vinho possamos participar da divindade do vosso Filho, que se
dignou a assumir a nossa humanidade”. Após, abre os braços e diz: “bendito sejais, Senhor
Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho
humano, que agora vos apresentamos e para nós vai se tornar vinho da salvação”. Todos:
“bendito seja Deus para sempre!”. Inclinando levemente o corpo, o padre reza em silencio:
“de coração contrito e humilde, sejamos, Senhor, acolhidos por vós; e seja o vosso sacrifício
de tal modo oferecido que vos agrade, Senhor, nosso Deus”. Em seguida, o numerário
aproxima-se segurando o suporte de vidro (que tem o formato de uma pequena bacia) em uma
mão e a jarrinha de água na outra. O sacerdote estende as mãos e o leigo derrama a água, na
qual o padre lava as pontas dos dedos das duas mãos. Em seguida, seca-se na toalha
pendurada no braço do auxiliar. O padre, então, une as mãos em oração e volta ao centro do
altar: “orai, irmãos, para que nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”. Todos:
“receba o Senhor por tuas mãos este sacrifício, para a glória do seu nome, para o nosso bem e
de toda a santa Igreja”. Abrindo os braços, o padre proclama e todos se levantam: “o Senhor
esteja convosco!”. Todos: “Ele está no meio de nós”. Olhando para cima, o padre volta a
falar: “corações ao alto”. Todos: “o nosso coração está em Deus”. O padre fala: “demos
graças ao Senhor nosso Deus”. Todos: “é nosso dever e nossa salvação”. Então, o padre
retoma a palavra: “na verdade, ó Pai, vós sois santo e fonte de toda santidade. Santificai, pois,
276
estas oferendas, derramando sobre elas o vosso Espírito a fim de que se tornem para nós o
corpo e o sangue de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor Nosso. Todos: “santificai nossa
oferenda, ó Senhor!”.
O padre continua: “celebrando agora, ó Pai, a memória do vosso Filho, da sua paixão que nos
salva, da sua gloriosa ressurreição e da sua ascensão ao céu; e enquanto esperamos a sua nova
vinda, nós vos oferecemos em ação de graças este sacrifício de vida e santidade”. Todos
respondem: “recebei, ó Senhor, a nossa oferta!”. O padre prossegue: “olhai com bondade a
oferenda da vossa Igreja, reconhecei os sacrifícios que nos reconcilia convosco e concedei
que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito
Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”. Todos: “fazei de nós um só
corpo e um só espírito!”. O padre continua: “que ele faça de nós uma oferenda perfeita para
alcançarmos a vida eterna com os vossos santos: a Virgem Maria, mãe de Deus, os vossos
Apóstolos e Mártires, São Josemaria, e todos os santos, que não cessam de interceder por nós
277
na vossa presença”. Todos: “fazei de nós uma perfeita oferenda!”. O padre prossegue: “E
agora, nós vos suplicamos, ó Pai, que este sacrifício da nossa reconciliação estenda a paz e a
salvação ao mundo inteiro. Confirmai na fé e na caridade a vossa Igreja, enquanto caminha
neste mundo: o vosso servo, o Papa Francisco, o nosso Bispo Prelado Javier, com os bispos
do mundo inteiro, o clero e todo o povo que conquistastes”. Todos: “Lembrai-vos, ó Pai, da
vossa Igreja!”. O padre continua: “atendei às preces da vossa família, que está aqui, na vossa
presença. Reuni em vós, Pai de misericórdia, todos os vossos filhos e filhas dispersos pelo
mundo inteiro”. Todos: “lembrai-vos, ó Pai, dos vossos filhos!”. O padre diz: “acolhei com
bondade no vosso reino os nossos irmãos e irmãs que partiram desta vida e todos os que
morreram na vossa amizade. Unidos a eles, esperamos também saciar-nos eternamente da
vossa glória, por Cristo, Senhor nosso”. Todos: “a todos saciai com vossa glória!”. Por fim, o
padre fala: “por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do
Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre”. Todos: “amém!”.
Rito de comunhão
O padre, então, abre os braços e proclama: “obedientes à palavra do Salvador e formados por
seu divino ensinamento, ousamos dizer [e todos rezam em uníssono]: Pai nosso que estais no
céu, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade,
assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos do mal”. Diferente do que já percebi nas paróquias, as pessoas da
assembleia nas missas do Opus Dei rezam essa oração com as mãos abaixadas. Nas paróquias,
a maioria das pessoas imita o gesto do padre ao abrir os braços. O padre continua: “livrai-nos
de todos os males, ó Pai, e dai-nos hoje a vossa paz. Ajudados pela vossa misericórdia,
sejamos sempre livres do pecado e protegidos de todos os perigos, enquanto, vivendo a
278
esperança, aguardamos a vinda de Cristo salvador”. Todos respondem: “Vosso é o Reino, o
poder e a glória para sempre!”. O padre prossegue: “Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos
apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a
fé que anima vossa Igreja; dai-lhes segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois
Deus, como Pai e Espírito Santo”. Todos: “Amém!”. O padre, por fim, fala: “a paz do Senhor
esteja sempre convosco”. Todos: “o amor de Cristo nos uniu”.
A seguir, o padre toma a hóstia consagrada e a parte sobre a patena e coloca uma pequena
fração no cálice com vinho, rezando em silêncio: “esta união do corpo e do sangue de Jesus, o
Cristo e Senhor nosso, que vamos receber, nos sirva para a vida eterna!”. Todos falam:
“Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus,
que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós. Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do
mundo, dai-nos a paz”. Então, o padre, de mãos unidas, reza em silêncio: “Senhor Jesus
Cristo, Filho do Deus vivo, que, cumprindo a vontade do Pai e agindo com o Espírito Santo,
pela vossa morte destes a vida ao mundo, livrai-me dos meus pecados e de todo mal; pelo
vosso corpo e pelo vosso sangue, dai-me cumprir sempre a vossa vontade e jamais separar-me
de vós”. Após esse momento de silêncio, o padre inclina-se, aproximando a cabeça do altar, e
come a hóstia partida sobre a patena. Após, pega a patena e, com a ajuda de um lenço, faz
com que as migalhas que jazem ali caiam dentro do cálice. A seguir, após movimentar o
cálice em círculos para misturar o conteúdo, bebe o vinho. Na sequência, declara: “felizes os
convidados para a Ceia do Senhor! Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”.
Todos: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e
serei salvo”. O padre, então, leva a hóstia sagrada, primeiro, à boca do auxiliar. Em seguida,
caminha até a frente do altar, onde já se forma uma fila para receber a comunhão. As pessoas
que, por terem perdido o estado de graça, tendo pecado mortalmente, permanecem sentadas
ou ajoelhadas. O primeiro da fila ajoelha-se diante do padre e este, dizendo “o corpo de
Cristo”, leva a hóstia consagrada à sua boca. O auxiliar, por sua vez, segura a patena abaixo
da hóstia a ser entregue, de modo que não se perca nenhuma migalha. Aqueles que recebem a
hóstia, voltam solenemente para seus lugares e ajoelham-se, em um momento extremamente
introspectivo. Assim que a fila termina, o padre volta ao altar, lava o cálice com a jarrinha de
água e bebe os resquícios do vinho. Seca o interior do cálice com um lenço, guarda o pano
que jazia sobre o altar no envelope e entrega tudo ao auxiliar, que devolve os objetos à
mesinha no canto.
279
Ao terminar, o padre fala e as pessoas levantam-se: “o Senhor esteja convosco”. Todos
respondem: “ele está no meio de nós!”. O padre continua: “abençoe-vos Deus Pai todo-
poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo”. As pessoas fazem o sinal da cruz e respondem:
“amém!”. Finalmente, o padre declara: “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”. Todos:
“graças a Deus”. O padre, precedido pelo auxiliar, volta à saleta atrás do oratório. Assim que
o padre desaparece, todos tornam a sentar-se. Segue-se um período de 13 minutos de silêncio
após o término da Missa. É a ação de graças, um tempo de oração e introspecção. Os 13
minutos referem-se ao tempo em que a hóstia permanece no estômago. Dados esse tempo, o
numerário mais antigo presente na Missa ajoelha-se e, com ele, todos os outros, e diz: “Santa
Maria, esperança nossa, sede da sabedoria”. Todos respondem: “rogai por nós”. Depois disso,
todos saem do oratório. A Missa está terminada.
O momento apoteótico estende-se até a Comunhão, quando cada pessoa em estado de graça
recebe, de joelhos, o corpo de Cristo e comunga com ele. É a metáfora do alimento do
espírito. Durante os 13 minutos seguintes, seguem-se momentos de introspecção, no qual cada
pessoa experimenta, de modo muito pessoal, a conexão direta com o sagrado.
Considerações finais
Não pretendo atribuir a este trabalho um caráter conclusivo, mas sugerir a importância da
interface entre ritual e corporalidade na criação de sujeitos e subjetividades no Opus Dei. A
Missa do Opus Dei tem por intuito alimentar espiritualmente as pessoas, de modo que estejam
aptas às práticas ascéticas no meio do mundo. Para Foucault (2006), a ascese consiste na
relação de si consigo mesmo, de voltar o olhar para si, articulando uma dupla necessidade: a
de voltar-se para si e a de conhecer o mundo, concomitantemente. Depreendo de Foucault que
a ascese configura uma modalidade de espiritualização do saber no mundo – um sujeito ético
se constitui. A Missa, por conseguinte, orienta práticas ascéticas de conversão a si mesmo,
mas que só ganham efetividade na vida mundana, no meio do mundo. Essas práticas ascéticas
configuram processos sofisticados de subjetivação. Trata-se, aqui, de modos de ser, de existir,
de estar no mundo. Durante a pesquisa de campo, não poucas vezes ouvi que a Missa é o
alimento para que o cristão enfrente santamente a vida cotidiana. Estará, dessa forma, apto a
santificar o mundo com o seu trabalho. Além disso, os atos corporais desempenhados na
280
Missa, claramente, não são performances vazias, mas atos rituais carregados de significado e
que, por sua vez, abrem portas subjetivas para experiências afetivas com o sagrado.
Referências
FAVRET-SAADA, Jeanne. Les mots, la mort, les sorts. Paris: Gallimard, 1977.
________. História da sexualidade 3: o cuidado de si. 8ª. Ed. São Paulo: Graal, 2005.
Livro Litúrgico: Jornada Mundial da Juventude Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bandeirantes,
2013.
TURNER, Victor. “Symbols in Africa Ritual”. Science, New Series, Vol. 179, No. 4078, pp.
1100-1105, 1973.
________.. “Dramas sociais e metáforas rituais”, in: Dramas, campos e metáforas. Niterói:
EdUFF, pp. 19-54, 2008.
281
282
Corpo e religiosidade: binômio indissociável na construção da
História da Enfermagem
Maria Helena Leviski Alves1, Tania Mara da Silva2
Introdução
Estudo bibliográfico, com foco qualitativo, exploratório descritivo, que tem como tema o
corpo e a religiosidade, delimitado na história da enfermagem e que busca responder a
seguinte indagação, que norteia o processo da pesquisa: De que forma o cuidado com o corpo
e a religião contribuíram para a construção da ser e do fazer na enfermagem? Tem como
objetivo principal identificar a importância e a influência do binômio corpo e religiosidade na
construção da enfermagem enquanto profissão e como objetivos específicos na busca do
objetivo maior procura reconhecer a Idade Média como marco do início da organização do
processo de cuidar fora do domicílio, a origem dos mitos que marcam a profissão, o corpo
como objeto e expressão do fazer enfermagem e a religião como base para a construção deste
fazer.
Justifica-se este desenho de pesquisa no fato de que o cuidado, atividade essencial do ser e do
fazer enfermagem sempre se constitui base para manutenção da vida do ser humano com
qualidade, bem como garantia de perpetuação da sua espécie ao longo do tempo.
1
Enfermeira. Mestre em Educação. Professora Adjunta dos cursos de Enfermagem e Medicina da PUC/PR.
Membro do GP Processos de Educação, Cuidado e Gerenciamento de Enfermagem. Contato:
mlenna.leviski@gmail.com.
2
Mestranda em Bioética. Professora Auxiliar do curso de Enfermagem da PUC/PR. Contato:
taniamasilva@ibest.com.br.
283
A Idade Média como precursora da atividade profissional na enfermagem
Desta época e seu entorno surgem três heranças que marcaram profundamente o ser e o fazer
enfermagem e ainda hoje podem ser identificados em várias atitudes e comportamentos destes
profissionais que são identificados por Ellis e Hartley (1998), como as imagens folclórica,
religiosa e servil da enfermeira. A imagem folclórica relaciona-se pelo caráter empírico de
acumulação e transmissão de conhecimento ao longo do tempo acumulado principalmente
pelas mulheres na arte de cuidar. A religiosidade imprime sua marca na Enfermagem, pois o
início da atividade de cuidar como processo contínuo e com o objetivo de assistir aos pobres,
viúvos, órfão, doentes, idosos, escravos, prisioneiros, isto é da população que se encontrava as
margens dos padrões sociais da época, deriva do estabelecimento das primeiras igrejas na era
Cristã, com a marca da caridade e do amor em Cristo pelo amor ao próximo. Este cuidado era
desenvolvido principalmente por mulheres de classe social elevada, solteiras ou viúvas e
destas mulheres era exigida uma rigorosa disciplina e hierarquia de poder. O Renascimento
que sucede a Idade Média, sucessão esta também marcada pelo movimento da Reforma
Protestante, imprime na enfermagem o estigma da servidão, pois a época deste movimento de
cisão na Igreja Católica, separando a Igreja do Estado, também a atividade de cuidar que era,
pode-se por assim dizer, atividade exclusiva das mulheres ligadas ao catolicismo e as suas
ordens religiosas, impregnada por forte estigma caritativo e doméstico, com objetivo primeiro
de salvação da alma e a segurança da conquista de um lugar no céu, passa a ser
responsabilidade do Estado. Por ser uma atividade menor, sem atrativos uma vez que
principalmente não garantia mais as benesses religiosas, que exigia grande sacrifício físico,
em decorrência de um fazer fortemente ligado aa atividades manuais, com extenuantes
jornadas de trabalho, e possibilidades frequentes de contaminação pelos doentes, levando
também a cuidadora a adoecer e morrer, não era um trabalho desejável e, portanto era
284
desenvolvido apenas pelas mulheres ditas incomuns, isto é aqueles com dívidas com a
sociedade, principalmente as prostitutas, ladras e assassinas. Esta época que ficou conhecida
como Anos Negros da Enfermagem a enfermeira era considerada a mais subalterna das
serventes.
Em que pese que nesta época o cuidado representado pelas atividades de higiene, alimentação
do doente e organização do ambiente buscando diminuir o sofrimento deste era considerado
um fazer menor e, portanto delegado às mulheres (BADINTER, 1986, In: SANTOS;
LUCHESI, 2002), possibilitou que em um futuro não tão distante, nos olhos visionários de
Florence Nightingale pudesse se transformar em uma parte do ser e do fazer profissional da
enfermagem, como uma atividade reconhecida e aceita socialmente e principalmente uma
oportunidade para aquelas mulheres que não encontravam motivação para o casamento,
significado social para as sua existências.
Para discorrer sobre a profissionalização é preciso primeiro falar sobre Florence Nightingale.
Nascida em 1820, em Florença, fato que deu origem ao seu nome, era, porém filha de
diplomata inglês, que se encontrava a época do seu nascimento em viagem pela Itália com sua
família. Portanto esta mulher pertencente a uma abonada e aristocrática família inglesa, que
possuía uma formação e uma cultura pouco vista mesmo nos homens do período vitoriano,
conhecia geografia, economia, política, falava várias línguas e desde muito cedo , segundo ela
por um chamado de Deus, tomou por propósito de vida não seguir o tradicional destino das
mulheres da época, que era o casamento, mas dedicar-se ao cuidado dos doentes, e para tanto
busca em suas viagens de férias capacitar-se em escolas tanto católicas quanto protestantes.
Têm seu marco profissional na Guerra da Criméia, em 1854, quando com um grupo de
mulheres desloca-se para Scutari, onde transforma um cenário de desolação e morte em
possibilidade de cura, recuperação e reinserção dos soldados ingleses nas frentes de batalha.
Na volta do cenário da guerra, bastante debilitada por doenças contraídas neste período, não
desanima e cria uma escola que busca formar profissionais baseados em seus ideais de ordem,
organização, disciplina e respeito hierárquico, como base para o funcionamento das
instituições destinadas ao cuidar na época, identificadas como hospitais. Sua participação no
cenário da saúde inglesa foi tão importante que após o seu sucesso na guerra, seus métodos
285
que foram tão eficientes no cuidado com o corpo dos soldados, agora era estendido ao
cuidado com os corpos dos trabalhadores, que representavam a força de trabalho que
sustentava o capitalismo inglês da época (KRUSE, 2006).
O legado de Florence esta registrado em livros, sendo que o mais famoso deles denomina-se
Notas sobre a Enfermagem publicado em 1860, e que preocupava-se principalmente com o
cuidado dos doentes no domicílio, juntamente com outros materiais escritos por ela, ajudaram
a consolidar a Sistema Nightingaleano de Ensino que propiciou que a Enfermagem agora
consolidada como profissão pudesse se disseminar por todos os países e formasse um corpo
de profissionais envolvidos com a arte e a ciência de cuidar.
Os séculos 16 e 17 na Europa são marcados por muitos autores como os tempos da trilogia
negra, isto é fome, peste e guerra. Neste sentido as atividades das cuidadoras não poderiam
ser diferentes daquelas voltadas eminentemente ao cuidado do corpo, uma vez que era
prioritária a higienização dos corpos individuais na busca da limpeza dos corpos coletivos.
Aqui mais uma vez apresenta-se a conjugação com a religião, pois não só os grupos de
cuidadores foram organizados a partir das ordens religiosas, como este cuidar nada tinha de
científico ou tecnológico e sim era embasado nos dogmas e crenças do cristianismo, tendo em
São Vicente de Paula e Luísa de Marilac da ordem das Irmãs da Caridade as suas maiores
expressões (HELLIS; HARTLEY, 1998).
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em enfermagem. Nesta obra a autora deixa explícito que cuidar do corpo é cuidar do espírito
uma vez que, um projeta-se no outro e que a doença pode representar uma negligência ou
impureza de espírito da pessoa acometida por uma enfermidade (ICN/ IAPO, 2010).
287
indivisível, quer quando nos afastamos do corpo daquele com quem cuidamos considerando
este um fazer menor, erroneamente esquecendo que o corpo é a expressividade concreta do
que somos em essência.
A religiosidade por sua vez sempre teve um destaque essencial na arte de cuidar e na
organização desta atividade como profissão. Grandes nomes ao longo da história sempre
estiveram ligados primeiramente a Igreja Católica e depois principalmente aos dissidentes
Protestantes. O cuidar principalmente aquele ligado a figura feminina sempre foi considerado
uma das formas (se não a principal) de praticar a caridade nas mais variadas denominações
das instituições religiosas. O pensar principalmente do cristianismo dos primórdios de amor e
fraternidade marcam a conformação do desenvolvimento das sociedades em geral e de modo
particular a enfermagem desenvolvida como ocupação inicialmente e depois como profissão.
O cuidar como consequência deste pensar também passa a ser desenvolvido com forte espírito
religioso tanto para com a pessoa a ser cuidado, quanto a hierarquia, disciplina e rigor dos
cuidadores, herdados do perfil e das características das ordens religiosas (HELLIS;
HARTLEY, 1998).
No século XIX a partir do regimento do novo hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio
de Janeiro (1852), por ocasião da chegada das irmãs de caridade da Congregação de São
Vicente de Paula. Elas “imprimiam sua marca na prática da enfermagem que se segue atéos
dias de hoje, principalmente nas qualidades esperadas da Enfermeira, como obediência,
288
humildade, abnegação, serviço ao próximo, disciplina, respeito à hierarquia, entre outras”. A
autora afirma em seu estudo que “este ideal de comportamento molda as ações de
enfermagem até os dias dede hoje, influenciando o pensamento e o imaginário social”
(GUSSI; DYST, 2008). Portanto não só em sua história, mas também nos dias atuais a
enfermagem encontra-se relacionada e profundamente marcada pelos ideais e postulados
religiosos.
Considerações finais
Cabe não negar estas questões, mas compreendê-las e utilizá-las para qualificar de forma
mais particular a prática do enfermeiro/ enfermagem entendendo que somos, os seres que
cuidam bem como os seres que são cuidados, multifacetados, compostos de corpo e espírito,
de massa e transcedência, de bios e energia e que precisamos igualmente satisfazer
necessidades e vontades, ressaltando e valorizando os caminhos já trilhados e aprendendo
com eles a traçar novos rumos, construir novas vivências e valores que façam com que o
binômio cuidador/ cuidado bem como corpo/ espiritualidade continuem se tangenciando na
história da humanidade, na busca da qualidade, cientificidade, autonomia e mudança para um
melhor viver para todos.
Referências
289
Internet
GUSSI, Maria Aparecida; DYTZ, Jane Lynn Garrison. Religião e espiritualidade no ensino e
assistência de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília 2008 maio-jun; 61(3):
377-84. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/reben/v61n3/a17v61n3.pdf. Acesso em: 27
mai. 2013.
PADILHA, Maria Itayra Coelho de Souza; MANCIA, Joel Rolim. Florence Nightingale e as
irmãs de caridade: revisitando a história. Revista Brasileira de Enfermagem, 2005 nov-dez;
58(6):723-6. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n6/a18v58n6.pdf. Acesso em
10 mar.2013.
SANTOS, Claudia B. dos; LUCHESI, Luciana Barizon. A imagem da enfermagem frente aos
estereótipos: uma revisão bibliográfica. An. 8. Simp. Bras. Comun. Enferm. May. 2002.
Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000052002000200009&script=sci
_arttext&tlng=pt. Acesso em: 10 mar de 2013.
WALDOW, Vera Regina. Cuidado humano o resgate necessário. 3. ed. Porto Alegre: Sagra
Luzzatto, 2001.
290
291
Crianças e psicoativos: a ingestão e a relação corpo saúde nos
rituais do Santo Daime
Theresa Jaynna de Sousa Feijão1, Francisca Verônica Cavalcante2
Introdução
O diálogo teórico com o nosso campo contempla os seguintes autores: Macrae (1992); Mauss
(2003); Le Breton (2011); Cavalcante (2009); Amaral (2002); Foucault (2007). A
metodologia utilizada: etnografia, observação participante, caderno de campo, oficinas,
imagens fotográficas e fílmicas.
Podemos afirmar que a religião do Santo Daime é marcada por uma “nova” maneira de lidar
com a saúde e a doença e se expressa na ingestão da bebida sagrada e na relação corpo-mente-
espírito, o que produzirá “uma educação” e “emoções” expressas e manifestas nos corpos dos
adeptos e das crianças participantes.
1
Bacharel em Ciências Sociais e pós graduanda em Antropologia pela UFPI. Orientadora: Prof. Dra. Francisca
Verônica Cavalcante. Contato:jay_feijao@hotmail.com.
2
Doutora em Antropologia, professora permanente do PPG em Antropologia da UFPI, professora do
Departamento de Ciências Sociais da UFPI, pesquisadora do Núcleo de Estudo sobre Crianças, Adolescentes e
Jovens – NUPEC (UFPI – CNPQ), pesquisadora externa do GP de Sociologia e Antropologia das Emoções –
GREM (UFPB – CNPQ). Contato: fv.cavalcante@uol.com.br.
292
A regulamentação da ayahuasca e a ingestão por adeptos da religião do Santo Daime,
particularmente, por mulheres grávidas e crianças
O Santo Daime é uma religião brasileira originada na floresta amazônica fundada por um
maranhense, Raimundo Irineu Serra, que atraído pela efervescência da borracha (em 1912 a
produção amazônica da borracha atinge seu auge histórico) muda-se para Rio Branco, capital
do Acre em 1910 e depois integra a Comissão de Limites e Fronteiras no ponto intitulado
“Três fronteiras” – pois ali, Peru, Bolívia e Brasil se encontram. Foi no Peru que Irineu teve o
primeiro contato com a bebida sagrada. Por volta do ano de 1930 começa a “receber” de uma
entidade feminina (identificada como Nossa Senhora da Conceição) que aparece em suas
“mirações”- estado alterado de consciência sob o efeito da ayahuasca - as primeiras lições
dessa doutrina que é também tida pelos adeptos como uma escola espiritual e, por vezes,
comparada a um exército, o Batalhão da Rainha.
A doutrina do Santo Daime tem como sacramento eucarístico o chá da Ayahuasca (preparado
da cocção do cipó jagube - banisteriopsis caapi e da folha Rainha ou chacrona- psicotria
viridis), que na língua quéchua significa “Vinho das Almas” o que nos remete a uma ligação
com o divino. Entre o debate acerca do termo mais apropriado para referir-se à bebida, a
palavra enteógena que é de origem grega e significa Deus dentro de si (LIRA, 2009),
(MACRAE, 1992), parece ser a mais apropriada, já que termos como psicoativos,
alucinógenos ou alteradores de consciência parece não contemplar a experiência vivenciada
pelos adeptos ao ingerirem a bebida (LIRA, 2009).
3
Órgão criado no âmbito das Nações Unidas
293
sua lista aparece a DMT ou Dimetiltriptamina, alcaloide presente em uma das plantas que
compõem a bebida sacramental ayahuasca. No entanto, o que se entende por drogas, é fruto
de um contexto histórico, social e cultural.
É importante pontuar que, desde o início dos anos de 1980, a regulamentação e o uso da
ayahuasca no Brasil, vem sendo estudado e discutido multidisciplinarmente por antropólogos,
psiquiatras, psicólogos, representantes da divisão de narcóticos da polícia federal, teólogos,
entre outros (LEMOS & POLARI, 2003) e é pioneiro no que diz respeito ao tema.
Em se tratando da ingestão da bebida por adeptos, dentre eles, grávidas e crianças lembramos
que o respeito à diversidade e liberdade religiosa é garantido pela Constituição Federal, bem
294
como é importante destacar que não há nenhuma prova científica ou empírica de malefícios
no uso por esses grupos, posto que o seu uso é regulamentado e só é permitido dentro de um
contexto religioso, ou seja, permeado por um conjunto de práticas e por um sistema cultural
compartilhado, muito particulares que norteiam e exercem um controle social sobre o
indivíduo e os grupos.
Tradicionalmente, existe uma maneira, imposta pela cultura, dos homens servir-se de seus
corpos, de expressarem seus sentimentos, que nada mais são do que técnicas corporais. Mauss
compreende a técnica como “um ato tradicional eficaz [...] Ele precisa ser tradicional e
eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não há tradição” (MAUSS, 2003, p. 407).
Essas técnicas expressam um sistema simbólico ao qual o indivíduo está inserido e do qual
compartilha. O corpo e as emoções, segundo Mauss (2003), são educados socialmente. Uma
“educação” que não é apenas imitação, mas antes, encontra-se fundamentada numa
autoridade.
Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano, os fatos de educação
predominavam.. A noção de educação podia sobrepor-se a noção de imitação. [...] O que se
passa é uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos bem sucedidos que ela
viu ser efetuado por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato impõem-se
de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. [...]
É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado, autorizado,
provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social. (MAUSS,
2003, p. 405)
Embora o ser social atuante não vislumbre a capacidade dos “detalhes” na educação do seu
corpo biológico para o funcionamento da vida em sociedade, é exatamente o conjunto de
técnicas disciplinadoras (capazes de, coercitivamente, educarem e garantirem resultados que
295
“obtêm êxito”) que orientam o grupo e criam, ao longo do tempo, comportamentos basilares,
que deverão ser seguidos por todos os membros.
[...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe
impõem limitações, proibições ou obrigações. [...] A escala, em primeiro lugar, do controle:
não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga,
de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica — movimentos, gestos atitude, rapidez: poder
infinitesimal sobre o corpo ativo.[...] implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela
sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma
codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos
que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar
as "disciplinas" (FOUCAULT, 2007, p. 118).
Esta educação do corpo, através das técnicas disciplinadoras que constituem um grupo social
é um campo fértil para a compreensão da própria estruturação conceitual da sociedade. Em
suma, permite vislumbrar como se dá o processo de educação desse corpo ao “corpo dócil”,
resumido por Foucault como “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2007, p. 118).
O grande mercado disputado pelas religiões é o de bens simbólicos de cura e salvação. Alguns
sistemas religiosos já têm sua tradição firmada na cura como o espiritismo, por exemplo. As
práticas religiosas afro-brasileiras também têm seus sistemas de crenças baseados na cura
através das folhas, infusões, chás, entre outros. Dessa forma, as religiões afirmam a sua
função como terapêutica.
No Brasil, antes da medicina oficial, a medicina praticada aqui era a dos indígenas juntamente
com as dos africanos escravizados.
296
A doutrina fundada por Raimundo Irineu Serra tem no seu mito de origem, íntima ligação
com a cura de malefícios espiritual, físico e mental, assim como o uso da ayahuasca por
xamãs vegetalistas da Amazônia (antecessores no uso da bebida sacramental) também está
associado a atividades de cura: “os xamãs são grandes conhecedores da floresta e das
propriedades das plantas, que usam com frequência, especialmente para as atividades de cura”
(MACRAE, 1992, p. 28).
O Santo Daime é uma religiosidade Nova Era. Para Amaral (2000) e Cavalcante (2009) a
religiosidade Nova Era é uma religiosidade produzida por uma miscelânea de diversas
culturas e tradições, que engendra uma integração holística do homem, proporcionando
experiências voltadas ao bem estar do indivíduo e da humanidade, bem como do planeta. A
questão da espiritualidade é voltada para o autoconhecimento, chave para a transformação do
ser, e, consequentemente sua cura, através da experiência mística ou extática, entre outras.
A doutrina daimista é cosmocentrista, para seus seguidores, Deus está presente em todas as
coisas, inclusive dentro de nós mesmos, é uma relação de transcendência e imanência; resgata
e valoriza intensamente os estados alterados de consciência (chamados pelos adeptos de
miração) como forma de alcançar a iluminação espiritual, não só por meio da ingestão do chá
(também conhecido como Daime, yagé, ayahuasca, Vegetal, caapi), mas também através do
canto e da dança.
O Santo Daime é uma doutrina musical. Os hinários são um conjunto de hinos, ditados
diretamente do mundo do astral e que contêm ensinamentos, poder de cura e revelação. Para
os adeptos o conjunto de hinários basilares4 compõe o Terceiro Testamento. Os hinos
assemelham-se a mantras por suas melodias repetitivas. Nos trabalhos, também são usados
diversos instrumentos musicais como violões, tambores variados, flautas, maracás, entre
outros. O bailado divide-se em três diferentes passos: marcha, no qual baila-se dando dois
passos para a esquerda, dois para a direita; valsa, um passo para esquerda, um para a direita e
a mazurca, onde dá-se três passos para cada lado, começando sempre pela esquerda. Os
maracás também são tocados de acordo com os tipos de bailado: na marcha dá-se três toques
para baixo e um para cima; na valsa inicia-se com um toque para baixo e dois toques pra
cima; as mazurcas são tocadas com três toques pra cima e três para baixo. Os maracás são
4
Mestre Irineu, fundador do Santo Daime, foi o primeiro a receber hinário, que chamou “O Cruzeiro Universal”,
seguido por seus discípulos: Germano Guilherme (Sois Baliza), Antônio Gomes (O Amor Divino), Maria
Damião (O Mensageiro) e João Pereira (Seis de Janeiro) formando assim o conjunto de hinários que
fundamentam a doutrina, tendo o do Mestre fundador maior relevância dentre eles.
297
instrumentos importantes para a marcação dos passos no bailado, tudo deve estar em
sincronia.
O calendário litúrgico daimista é composto por trabalhos de Concentração, ocorridos aos dias
15 e 30 de cada mês; Festejos (também conhecidos como bailados), que seguem algumas
datas do calendário católico como Dia de Reis, os santos juninos, Nossa Senhora da
Conceição, Finados, além de aniversários de membros importantes da doutrina, nestes
trabalhos também acontecem os ritos sociais: casamentos, batizados e as cerimônias de
fardamento – ritual de iniciação do adepto, momento em que o iniciado recebe sua estrela, e
passa a ser “um soldado da Rainha da Floresta” ou ainda um “aluno da escola da Rainha”; os
Feitios – momento em que se realiza a feitura da bebida sacramental e que têm uma duração
variando de acordo com a quantidade de daime a ser produzido (um feitio em que se prepara
600 litros, leva, em média 4 dias); as Missas – trabalhos dedicados aos mortos e realizados à
primeira segunda-feira de cada mês, além do aniversário de morte (passagem) de membros
importantes. Podem acontecer também trabalhos extraoficiais, os chamados trabalhos de cura
ou de estrela que não têm datas específicas, acontecendo de acordo com a conveniência de
cada centro. Em todos estes trabalhos espirituais se comunga a bebida sacramental e cantam-
se hinos de acordo com o trabalho a ser realizado.
As indumentárias, também chamada pelos adeptos de farda e que devem estar sempre bem
limpas e engomadas, são de dois tipos e devem ser usadas de acordo com o trabalho a ser
realizado: para os trabalhos de serviço: Concentrações, Trabalhos de Cura ou Trabalhos de
Estrela usa-se a farda azul: uma longa saia azul marinho pregueada; camisa branca de mangas
curtas com bolso localizado do lado direito onde encontram-se bordados as inscrições CRF,
que significa Centro de Regeneração e Fé; uma estrela de seis pontas, também chamada de
estrela de Salomão; com uma águia sobre a mesma; e uma gravata estilo borboleta da mesma
cor da saia formam a farda das mulheres; para os homens, a farda azul é formada por uma
calça azul marinho, do tipo alfaiataria, camisa branca de mangas compridas e uma gravata
também azul marinho, os homens também ostentam uma estrela de seis pontas, tal qual a das
mulheres, porém não bordada, mas como um broche e a localização, seja do lado esquerdo ou
direito vai depender do estado civil: casados e/ou pais usam do lado esquerdo, já os solteiros a
usam do lado direito. Para os Trabalhos de Bailados ou Festejos em que cantam-se os hinários
oficias, usa-se a farda branca. A feminina é composta de saia branca pregueada, blusa de
mangas compridas, também branca, um saiote verde bandeira, também pregueado e uma faixa
que transpassa o ombro esquerdo, de onde pendem fitas coloridas chamadas de “alegrias” e
298
termina em um laço do lado direito na altura da cintura. Para os homens, calça, terno e camisa
brancos, além de gravata azul marinho.
As disposições dos adeptos no salão de serviços obedecem a uma ordem que, segundo os
membros, visa buscar um equilíbrio de forças. O salão tem o formato de uma mandala de seis
lados e divide-se em duas tríades dispostas dos lados esquerdo e direito do salão. Ao centro
localiza-se a mesa eucarística, que também tem o formato de uma estrela de seis pontas e ao
redor da qual sentam-se doze pessoas, seis homens e seis mulheres. Do lado esquerdo da mesa
ficam as mulheres, dispostas da seguinte maneira: ao fundo, na parte mais interna do salão,
ficam as meninas, ou as crianças; no meio ficam as jovens e na parte mais próxima à porta
ficam as casadas. Do mesmo modo os homens são dispostos no lado direito do salão, no
entanto os casados localizam-se mais ao fundo do salão e na parte mais externa ficam os
meninos, ficando assim os meninos frente-a-frente com as meninas; os casados frente-a-frente
com as casadas; e os jovens frente-a-frente com as jovens.
Desde a gestação as crianças “ingerem” daime, através da ingestão feita por suas genitoras;
segundo Mauss (2003) existem técnicas do nascimento e da obstetrícia, além de técnicas da
infância. Na doutrina do Santo Daime a ingestão da bebida se configura como uma dessas
técnicas tanto de parto quanto de nascimento, pois na hora do parto algumas mães tomam a
bebida para darem a luz, sob a luz do Santo Daime sob a alegação de que a bebida dá força
para parirem, já que entre a maior parte delas há um desejo pelo parto natural; ao nascerem,
antes mesmo da primeira mamada, as crianças tomam uma gotinha ou, por vezes, lhes é dado
o sacramento embebido em algodão; além disso, na cerimônia de batismo (alguns pais
batizam seus filhos comutativamente na igreja católica e no daime, por questões muitas vezes
sociais), lhes é oferecido também embebido em algodão. Outra situação comum, percebida
nos relatos é a utilização da bebida em outros momentos que não nos rituais, associados
exatamente à cura de alguma enfermidade: uma mãe nos relatou que quando seu bebê tem
problemas de constipação ela lhe oferece uma ‘colherzinha’ de daime, em outro caso,
presenciamos a utilização da bebida em uma criança com conjuntivite, ocasião em que a
bebida não foi ingerida, mas sim, passada sobre os olhos doentes, ainda pudemos observar no
299
nosso campo um outro caso em que a bebida foi utilizada como uma espécie de bálsamo em
cima de uma queimadura, constatamos então que no universo simbólico do daimista a bebida
tem poder de cura não somente quando ingerida nos rituais, mas em diversas situações
extraordinárias, porém sempre ligadas ao processo de cura, até mesmo de casos como
depressão, cólicas menstruais, dores de garganta, entre outras. Pois o conceito de saúde e
doença também é ressignificado nesse contexto. Saúde e doença são dois lados da mesma
moeda que para os adeptos do Santo Daime pode ser um estado de espírito.
Considerações finais
Destaco a experiência de participar do Santo Daime como algo que faz com que a afirmativa
de Durkheim sobre a tarefa essencial de “manter, de uma maneira positiva, o curso normal da
vida” (DURKHEIM, 1996, p. 10) presente em toda religião seja vivenciada aqui a partir do
ritual que envolve a ingestão do “vinho das almas”. Com a ingestão, o bailado, o entoar dos
hinos queremos ser transportados para a “zona diurna da vida”, que significa saúde, ou busca
da cura, no sentido inverso atribuído ao termo “zona noturna”, para significar doença, por
Sontag (2007). O equilíbrio buscado pelo fruidor daimista é a experiência mística, a
“miração” que contempla para além de um estado alterado de consciência, ou de expansão da
consciência, mas buscam, sobretudo, uma experiência enteógena, a qual objetiva levar o
adepto ao autoconhecimento, a busca de preservação da natureza e assim viver em harmonia,
estabelecendo a conexão corpo-mente-espírito.
A disposição dos corpos dos participantes no ritual, suas fardas, homens de um lado, mulheres
do outro, o círculo se forma, são cantados os hinos, tocados os instrumentos e os corpos se
movimentam num bailado, os corpos se estendem para um lado e para o outro, em sintonia,
cadência, disciplina, harmonia. Os corpos das crianças, transitam, trafegam por entre os
corpos dos adeptos, familiares, pais ou simplesmente membros do espaço ‘Céu de Todos os
Santos’. Forma-se uma fila: toma-se a bebida sagrada, canta-se, dança-se, toma-se novamente
o vinho das almas. Observando o cotidiano dos rituais do Santo Daime que envolve o uso da
bebida sagrada, percebe-se que, às vezes, as crianças bebem várias vezes a bebida: entram na
fila e, ao chegarem sua vez tomam a bebida e, entram novamente na fila... Independe do sexo
biológico destas crianças elas têm liberdade para circular nos espaços destinados, divididos
em espaços femininos e masculinos.
300
Os corpos dos adeptos são “educados”, “disciplinados”, docilizados. São os corpos que
representam o “Homem-máquina” escrito simultaneamente em dois registros: anátomo-
metafísico e técnico-político. Como lembra Foucault:
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. [...]
ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou
cujas forças se multiplicam. [...] O objeto [...] do controle (é) [...] a economia, a eficácia dos
movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os
sinais, a única cerimônia que realmente importa é a do exercício (FOUCAULT, 2007, p.
117-118).
Assim se refere Foucault sobre a disciplina do corpo na modernidade que nos ajuda a
compreender os corpos dos adeptos no cotidiano e nos rituais do Santo Daime no espaço ‘Céu
de Todos os Santos’.
Os corpos das crianças parecem que ao fruírem desta liberdade, desta licenciosidade que lhes
permitem trafegar por espaços indistintamente são também “controlados”, “docilizados”,
“disciplinados” de maneira sutil. Certa vez, em um ritual de cura uma criança disse não gostar
de ser chamada de “fofinha” porque era “homem”. Assim, observa-se que aos olhos
desavisados ou pouco treinados do senso comum, parece que naturalmente ou
espontaneamente a criança passa gradativamente a comportar-se de acordo com o seu sexo
biológico. Ocupando lugares destinados aos homens quando o sexo biológico é um pênis e,
espaços destinados às mulheres quando o sexo biológico é uma vagina, representando desta
maneira o masculino e o feminino no espaço religioso ‘Céu de Todos os Santos’.
A respeito das microfísicas do poder engendradas por esta rede de sociabilidade presente
cotidianamente e nos rituais do espaço religioso em questão vemos as crianças
desempenharem ações de imitação dos adeptos com quem dividem o espaço da comunidade
daimista e que exercem para elas uma autoridade, um modelo a ser imitado.
Foucault afirma:
301
Mauss (2003), como já enfatizamos, afirma que o ser humano aprende com o adulto que lhe é
importante imitando seus gestos, suas ações, suas maneiras de andar, de correr, de nadar, de
fazer sexo, enfim, maneiras de ser são técnicas corporais e todas têm suas especificidades. No
caso das crianças que ingerem o vinho das almas e gradativamente passam a ocupar os lugares
demarcados por gênero dentro dos rituais daimistas elas parecem agir por imitação,
representando através de seus corpos e gestos o cuidado com a saúde e com o corpo.
Entendemos que a ação imitativa das crianças do espaço religioso daimista não está separada
ou deslocada do contexto social e cultural em que estão inseridas, portanto, as crianças
frequentadoras do espaço religioso ‘Céu de Todos os Santos’ não são como seres incompletos
a serem formados e socializados, mas, sim, sujeitos sociais. Como nos lembra Cohn:
[...] a criança não é apenas alocada em um sistema de relações que é anterior a ela e
reproduzido eternamente, mas atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas das
relações sociais dentre aquelas que o sistema lhes abre e possibilita (COHN, 2005, p. 28).
Assim, para entender a ingestão da bebida sagrada pelas crianças e a relação corpo/saúde, o
cuidado e significado corpo/saúde para elas, devemos compreender, primeiro, o seu contexto
social e cultural, isto é, os significados de corpo, saúde, ingestão do vinho das almas para os
adeptos que são “imitados” por estas crianças. Obviamente, pensando nos dizeres de Cohn:
“[...] a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança
não sabe menos, sabe outra coisa” (COHN, 2005, p. 33). Para nós antropólogas importa saber
o ponto de vista das crianças e dos adeptos deste espaço religioso estudado.
302
Como ainda estamos em uma fase incipiente da pesquisa, o método etnográfico e as técnicas
de desenho, colagens, imagens audiovisuais a serem realizadas em breve nos servirão para
refletir e poder afirmar mais sobre as nossas interpretações sempre relativas e em acordo com
o que entendemos ser o ponto de vista dos participantes do espaço ‘Céu de Todos os Santos’
no que diz respeito aos significados aqui tratados.
Referências
FOUCAULT, M. Os corpos dóceis. In: Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 117-142
303
Internet
REGINATO, A.D.A. Regulamentação de uso de substância psicoativa para uso religioso: o
caso da ayahuasca. In: TOMO, São Cristóvão – SE, V01, Nº 17, 2010. Disponível em <
http://200.17.141.110/pos/sociologia/down/Revista_TOMO-n17.pdf > Acesso em 10
jul.2013.
304
305
Êxtase religioso e sua manifestação: o corpo como um
instrumento divino
Cláudia Neves da Silva1, Fabio Lanza2
Introdução
A temática do êxtase religioso permeia parte significativa do mundo religioso, e foi a partir
desta constatação que surgiu o interesse de estudar o êxtase religioso, dando ênfase às
manifestações religiosas pentecostais.
Inicialmente é preciso destacar que os conceitos analíticos sobre a temática religiosa são
plurais e não possuem consenso entre os autores especializados. Dentro desta perspectiva,
definir o que é religião é um exercício teórico parcial, provisório e arbitrário; e para superar
esse obstáculo epistemológico do campo das Ciências Sociais e da História foi adotada a
contribuição de Otto Maduro (1983), que delimita o referido conceito como
[...] uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a algumas
forças (personificadas ou não, múltiplas ou unificadas) tidas pelos crentes como anteriores e
superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa
dependência (criados, governados, protegidos, ameaçados etc) e diante das quais se
consideram obrigados a um certo comportamento em sociedade com seus “semelhantes”
(MADURO, 1983, p. 31).
Dessa forma, os estudos sobre a temática das religiosidades e suas instituições implicam
reconhecê-las, compreendê-las e interpretá-las dentro do processo histórico-social e
permeadas pelos conflitos instituídos nas diferentes formas de organização social.
Definido o que entendemos por religião, podemos dar continuidade a este artigo, cujo objetivo
é investigar e entender a emoção individual e coletiva, ou seja, o êxtase religioso, expressão
do contato direto com o divino. Para tanto, recorremos à observação de celebrações religiosas
de natureza pentecostal e entrevistamos líderes religiosos de Igrejas Pentecostais da cidade de
Londrina/PR.
1
Professora do Departamento de Serviço Social da UEL. Doutora em História Social. Componente do
Laboratório de Estudos das Religiões e Religiosidades. Contato: claudianevess@uel.br
2
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UEL. Doutor em Sociologia. Componente do Laboratório de
Estudos das Religiões e Religiosidades. Contato: lanza1975@gmail.com.
306
Para estes líderes, documentos e discursos não são considerados importantes na relação
daquele que crê em Deus, porque pelo batismo no Espírito Santo, ele se faz presente na vida
do crente. Neste contato íntimo com Deus, não há a necessidade de intermediários, pois ele e
seu filho Jesus Cristo se tornaram presentes de forma real e ativa na vida do crente, mediante
o Espírito Santo. A Bíblia, que conteria a palavra e as determinações de Deus, é a fonte de
inspiração e modelo para a leitura do mundo; e é somente a partir dela que os dirigentes
espirituais elaboram seus discursos.
Ao falar de êxtase religioso, logo vem à mente a ideia de uma experiência religiosa
vivenciada por aqueles que se entregam, de corpo e alma, a um ritual e crença religiosa.
Homem e/ou mulher que entraria em um transe e estaria em ligação direta com o divino.
Neste sentido, algumas indagações nos saltaram à mente: qual é a natureza e o significado do
êxtase religioso? Onde, como e em quem ele se manifesta? Por que ele ocorre?
Ao buscar um significado para a experiência extática consideramos fundamental que ela deve
ser compreendida em seu próprio cenário, ou seja, analisá-la tendo em vista o momento
histórico, o contexto social, cultural, econômico onde é vivenciado, visto que, não obstante o
êxtase religioso acontecer em diferentes períodos históricos, diferentes sociedades e religiões,
há um significado social que vai além do ritual e da emoção.
Portanto, a análise será a partir de uma perspectiva sociológica, porém não deixando de
também enfocar a perspectiva histórica e antropológica, seguindo os passos de Lewis (1977),
Mendonça (2008) e Silva (2006), que em seus estudos, vêem o êxtase como um fenômeno
religioso que se associa a outras situações e definições subjacentes. Santos (2004) aprofundou
a análise deste fenômeno também na perspectiva da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
Segundo esta pesquisadora:
[...] para os estados alterados de consciência que compõem o espaço imaginário e simbólico
entre o exercício da razão e a vivência do êxtase [...] descobrimos que ele pode ser um
ponto de chegada ou de passagem para estados novos de consciência. Êxtase é um dos
estados de nossa consciência (SANTOS, 2004, p.13).
307
Para iniciar, é preciso destacar que nos limitaremos a analisar o êxtase religioso no universo
cristão, mais especificamente na sociedade brasileira contemporânea, pois esta experiência
ocorre em diferentes religiões e culturas, e não daríamos conta de analisá-la neste curto
espaço.
Se até poucos anos atrás denominações religiosas cristãs não estimulavam a vivência extática,
aqui estamos nos referindo às igrejas tradicionais – católica, protestantes históricas - observa-
se que atualmente há um incentivo, discreto, é verdade, por parte de alguns líderes religiosos
destas denominações para a prática de tal experiência em encontros e reuniões para este fim.
Situação que decorre do crescimento, diríamos vertiginoso, das igrejas que têm como atração
principal em seus cultos a prática da oração, com o reforço da espontaneidade, da
subjetividade e da emoção: o êxtase religioso.
Estamos nos referindo às igrejas que surgiram no rastro do movimento pentecostal, e cuja
teologia é construída tendo por base a bênção do Espírito Santo e o seu sinal, a glossolalia,
assim como a cura e libertação das forças malignas. De acordo com a teologia pentecostal,
Deus está presente em tudo e em todos os lugares e tempos; fatos passados, presentes e
futuros estão relacionados em uma verdadeira fusão, cabendo ao Espírito Santo levar tudo e
todos à sua plenitude, porque uniria vida corporal, sexual e psicológica (MAGALHÃES,
2000).
Deus penetra aquele que crê levando-o a uma experiência pessoal e exclusiva, assim como a
uma vivência íntima com aquele que lhe dará um novo sentido à vida. Para essa revelação e
contato íntimo com Deus, não há a necessidade de intermediários, pois Ele e seu filho Jesus
Cristo se tornaram presentes de forma real e ativa na vida do crente mediante o Espírito Santo.
A teologia pentecostal prega que o homem e a mulher são criados à imagem de Deus estando,
portanto, no centro de toda a criação e tendo por vocação explorar todas as riquezas da
natureza. Mas, ambos somente serão considerados como tais à medida que permanecerem
sujeitos a Deus: “ele só é livre na servidão ao seu Deus”. Fora dessa liberdade só há
escravidão e o seu fim.
O maligno é quem levaria, segundo essa perspectiva, a mulher e o homem a saírem dos trilhos
de Deus, ocasionando uma vida de penúria, dor, miséria. Escutamos em uma celebração
religiosa o pastor pregar: “Muitos chegaram a Jesus viciado, quebrado [...] é Jesus que cura, é
Jesus que traz a salvação. É Jesus que vence o diabo. Ele sai e vai embora [...]. Tudo o que
308
não presta, o ciúme, o vício naquela família, o diabo está lá, entronizado na família [...]”
(culto).
Para melhor entendimento da manifestação extática e para demonstrar que esta se deu em
diferentes épocas, regiões geográficas e culturais, iniciamos com Lewis (1977), que ao se
propor a entender o êxtase religioso, já de início destaca que esta experiência extática deve ser
relacionada com o contexto social onde é vivenciada, porque carrega em si a marca da cultura
e da sociedade em que aparece, necessitando ainda, investigar como este fenômeno é
entendido e utilizado nas diversas condições sociais em que é produzido: “o uso que é feito da
experiência extática varia de acordo com as várias condições sociais em que ocorre.”
(LEWIS, 1977, p. 15)
Outro aspecto que nos interessa destacar do texto de Lewis (1977, p. 35), é o fato de este
afirmar que os líderes religiosos buscam o êxtase quando visam “fortalecer e legitimar a sua
autoridade”.
309
A escolha desses autores não foi aleatória, porque também partimos da premissa que o êxtase
religioso é fruto de seu ambiente religioso, social, cultural, econômico, político e apresenta
uma intencionalidade; e é neste contexto que deve ser estudado e compreendido, afastando-
nos desta forma, de uma perspectiva exclusivamente antropológica ou psicológica.
Portanto, ir a um local onde há a valorização das emoções, onde não há censura a quem
expresse sentimentos como tristeza, dor, alegria, onde se é recebido por pessoas na porta da
igreja com sorriso nos lábios, com um abraço ou aperto de mão e palavras acolhedoras,
passou a ser uma possibilidade de encontrar respostas para situações da dura realidade da
vida, porque lá será o local onde se encontram homens e mulheres portadoras de habitus
similares (SILVA, 2008).
Tudo isso faz reconhecer um igual entre aqueles que vivenciam problemas, sentimentos e
experiências semelhantes. Sentir-se acolhido e pertencente a um grupo social ajuda a
fortalecer-se para enfrentar as dificuldades e obstáculos do dia-a-dia. Observamos em um
culto o pastor falar: “Jesus toma o corpo do crente... O Espírito Santo sabe tudo que tem em
nós. Espírito Santo sabe o número do meu CPF, da minha identidade... O crente tem que ter a
marca do crente, que todos têm que reconhecer” (Culto).
Nesse sentido, se, por um lado, os crentes vão à igreja em busca de consolo e conforto para
enfrentar a dor e os sofrimentos físicos e emocionais, por outro, segundo Bourdieu (2004,
p.48) os fiéis: “contam com ela (religião) para que lhes forneça justificações de existir em
uma posição social determinada, em suma, de existir como de fato existem, ou seja, com todas
as propriedades que lhes são socialmente inerentes.” Resumindo, vão à procura de
entenderem porque se encontram em uma posição social que lhes gera dívidas,
impossibilidade de adquirir bens de consumo ou mesmo alimentos.
310
A celebração religiosa, quando estão todos os fiéis reunidos, é o momento de fazer os
pedidos, de expor as fragilidades, é também o momento do êxtase. Como pregou o dirigente
espiritual: “dias melhores virão, porque você está servindo a Deus [...]. Nós necessitamos
invocar, porque nós somos bem-aventurados” (culto).
É o momento em que todos aplaudem e cantam, porque há a certeza de que Jesus Cristo
cura e liberta do inimigo que impede a vitória, a superação das aflições: “muitos chegaram
(ao culto) angustiados, mas já estão aliviados, em nome do Senhor!” (culto); “Jesus chega e
destrona o diabo [...]. Jesus vem...Você quer ficar na miséria, pode ficar. Eu não! Quero
prosperidade, saúde, alegria. Eu quero Deus na minha vida” (culto).
Como pudemos verificar nas visitas a algumas igrejas, o culto é a expressão coletiva de fé e
louvor, regidos por uma forte emoção, com hinos alegres e vibrantes que mexem com todo o
corpo – as mãos, os braços, as pernas, os quadris – e cujas letras simples, com refrões
repetitivos e compreensíveis, falam do poder de Jesus Cristo e da fé, conclamando todos à
entrega a um deus triunfante, preocupado e interessado em cada um em particular, porque
conhece seus problemas, suas dificuldades, suas ansiedades, e se compadece como um pai
atencioso e amoroso, que não julga e muito menos condena seus filhos, como ouvimos um
líder religioso dizer durante um culto:
O irmão foi escolhido por Deus, foi separado... Deus conhece teus problemas, você invoca
o nome do senhor e é salvo...esquece os problemas lá fora, porque o senhor se fez presente
no nosso meio (culto).
Nas igrejas pentecostais, os cultos são desprovidos de rituais complexos e ausentes de gestos
carregados de significados simbólicos (tão comuns nas celebrações das igrejas tradicionais) e,
portanto, compreensíveis aos fiéis. Há hinos, orações, pedido para a oferta e o dízimo,
testemunhos dos que encontraram Jesus Cristo e mudaram de vida, a pregação da palavra
ministrada pelo pastor, invariavelmente falando de um Deus que ouve a cada um dos seus
filhos, da necessidade da entrega total e plena a Jesus Cristo: “Se você está em Cristo, você
terá vitórias...” (culto).
A oração comandada pelo pastor e seus auxiliares, assim como a oração de cada um dos
presentes, é espontânea e guiada pelo clamor a Deus para a solução de problemas financeiros,
do desemprego, para a compra da casa ou do carro, problemas de saúde, como a cura do
câncer, diabetes e outras doenças graves e crônicas, problemas emocionais e afetivos. A
exaltação do líder espiritual que em alta voz clama, ora e louva vai aumentando a ponto de
atingir o clímax com todos os presentes respondendo e orando também em voz alta.
311
O choro, as mãos na cabeça e todos repetindo a frase que o líder religioso diz em alta voz:
“somos forte, não somos fracos”, vem corroborar o que Santos (2004) afirmou, ou seja, o
êxtase religioso é um dos estados alterados da consciência e neste estado:
As emoções são percebidas, mas a racionalidade não é abandonada. Estar em êxtase não é
atitude irracional, a razão está lado a lado com a emoção. É por meio da razão que o
julgamento das ideias religiosas se estabelece, e a emoção é o resultado do sentimento
religioso, vivenciado na experiência de sentido (SANTOS, 2004, p. 14).
Nesse sentido, podemos afirmar a partir do que observamos que os líderes religiosos
conduzem as celebrações de modo a estimular as emoções: daí as músicas serem vibrantes,
com letras de fácil compreensão e ritmos contagiantes. Mendonça (2008, p. 128-129) coloca
que:
[...] técnicas como o movimento do corpo, gestos repetidos, cânticos ritmados e orações de
intensidade crescente podem levar ao êxtase coletivo, em que o grau de alteração de
consciência, embora variável de indivíduo para indivíduo, configura o culto extático.
As orações conduzidas pelo líder também é outro recurso utilizado para atingir o êxtase, fala-
se de um deus forte que se coloca ao lado daquele que crê, daquele que quer mudar a sua vida,
que quer saúde, que quer vencer. Sua voz vai aumentando de intensidade, levando todos a
orarem.
Muitos dos presentes passam a impressão de estarem em transe – olhos fechados, falando,
gesticulando e chorando, outros oram em voz baixa, gestos e lágrimas contidas. Vários
minutos se passam e então, o dirigente vai abaixando a voz, a fala se torna mais suave, e os
presentes também vão baixando a voz, diminuindo os gestos corporais. A música fica quase
inaudível, todos se sentam.
Interpretamos esses eventos como êxtase porque são utilizados os mesmos recursos para o
aparecimento do êxtase, como descreveu Santos (2004, p. 184) “[...] a necessidade e o desejo
pela emoção, a percepção que o fiel tem de que lhe é concedido experimentar variada
sensações e a percepção do líder.”
Há também uma diferença do estado original dos participantes, isto é, a expressão facial e a
corporal transformam-se, dando lugar a uma expressão de angústia, ansiedade, dor e/ou
alegria. As mãos, os braços, todo o corpo demonstram que há uma conexão com o sagrado.
Há um êxtase, individual e coletivo.
312
Como disse Santos (2004, p. 111): “o êxtase religioso tem a mesma conotação: é pessoal, tem
a ver com a racionalidade da pessoa, independentemente da cultura ou da religião, e é uma
busca que em si promete momentos de euforia e bem-estar”.
Se, por um lado, o êxtase religioso no Antigo Oriente Próximo, como Silva (2006) nos
apresentou em seu texto historiográfico, tinha uma incidência maior entre os profetas, um
“especialista religioso”; por outro, em nossos dias ele é acessível a todos aqueles que assim o
desejam. E vamos ao encontro das observações do autor quanto a atitude extática, ou seja,
aqui também o êxtase religioso é uma forma de se colocar contra a ordem estabelecida.
Ao voltar-se para Deus, teriam a vitória e a recompensa já aqui na terra, não somente no céu,
após a morte. As pessoas vão à igreja em busca de um deus vitorioso e transbordante de
alegrias e bênçãos, não querendo mais ouvir sermões que falam de um deus inquisidor e
censurador. Disse o pastor em sua pregação: “O que Deus te prometeu, ele vai cumprir [...].
Você tem um Deus que cuida de você [...] Deus não esqueceu de você, ele tem um milagre
para você” (culto).
Sob esse ponto de vista, o homem que deseja as bênçãos de Deus deve afastar-se de toda a
maldade e mau pensamento. Se algo de bom lhe suceder, não o atribuirá a si mesmo, a sua
habilidade, diligência e boa fortuna, senão a Deus, reconhecendo-o como o autor, e a ele
agradecerá. É uma concepção de vida e fé reforçada sistematicamente pelos dirigentes
religiosos, os quais também insistem em afirmar que a falta de Deus leva o homem a cometer
erros.
Gostaríamos de concluir afirmando que nos dias de hoje, buscam-se relações fundadas no
afeto, no desejo de ser feliz, na satisfação e no prazer, tendo a liberdade individual e a
liberdade de escolha como essenciais para a conquista da felicidade no plano terreno, assim
como destaca-se a importância de viver o presente, o agora, o dia-a-dia, não cabendo a
necessidade ou a obrigação de dedicação e filiação a uma luta ou causa, seja ela social,
política ou ambiental, porque não estaria diretamente ligada ao cotidiano e os resultados se
dariam a longo prazo.
313
Uma espiritualidade reelaborada por meio do sentimento de que a sociedade, e nela as
relações sociais, comerciais e de trabalho, não poderia ser transformada, mas reconstruída a
partir de alternativas variadas de viver e pensar as quais possibilitariam ao indivíduo
compreender qual o seu lugar na família, no mundo e mesmo no universo.
Segundo esse modo de pensar e agir, cada pessoa escolheria a sua própria religião, a sua
própria crença, desde que se adequasse aos objetivos da mesma. Para os que se encontram em
situação econômica desfavorável, a busca pela religião baseia-se na promessa e esperança de
superar o caos diário, os sofrimento, as enfermidades e dar sentido à vida, enquanto que para
os que pertencem aos grupos mais privilegiados economicamente, o interesse religioso funda-
se no fato de terem uma vida correta e perfeita, mas vez por outra acometida por problemas
sem justificativas – doenças, brigas familiares, morte.
Algumas considerações
Essa situação verificamos nas igrejas que registram menos de cem anos de existência. Pelas
observações e entrevistas realizadas, concluímos que há a busca de espaços onde não haja
limites à experiência do emocional, onde é permitido e legítimo expor as emoções e angústias,
na maioria das vezes, reprimidas no dia-a-dia.
E as igrejas que atenderam a essa busca, viram o número de fiéis cresce de forma vertiginosa,
em oposição ao observado na Igreja Católica, que ao longo de centenas de anos de existência,
consolidou sua hierarquia, “estratificando” a instituição, normatizando e ritualizando a
314
manifestação da fé por meio da publicação de Encíclicas, Bulas, racionalizando, desta forma,
o encontro com o sagrado, não obstante o surgimento e o incentivo à Renovação Carismática,
por parte de membros da hierarquia. Como a Igreja Católica responderá a esse desafio, é um
bom motivo para iniciar uma nova investigação.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. O Espírito Santo como tema central da teologia:
conflitos, perspectivas, desafios. Via Teológica, Curitiba, nº 2, p. 67-102, dez. de 2000.
SANTOS, Rosileny Alves dos. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados
alterados de consciência. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.
SILVA, Cláudia Neves da. As ações assistenciais promovidas pelas igrejas pentecostais no
Município de Londrina (1970 – 1990). 181 p. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de História, Universidade Estadual Paulista. Assis, 2008.
Internet
SILVA, Fernando Cândido da. Êxtase e sociedade no Antigo Oriente Próximo. In: Caderno
de pesquisa em ciências da religião - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da
Religião/PUC-SP. Último Andar, São Paulo, (14), 55-77. Disponível em
<http://www.pucsp.br/ultimoandar/download/UA_14.pdf>. Acesso em 15 jan. de 2013.
315
316
Fala e gestos na glossolalia: observações em uma comunidade da
renovação carismática católica
Detian Machado de Almeida1, Sueli Ribeiro Mota Souza2
Introdução
Este artigo objetiva descrever a cena de uma manifestação do falar em línguas em um grupo
da Renovação Carismática Católica da Paróquia Nossa Senhora do Resgate, no Bairro Cabula,
localizado na cidade de Salvador - BA. A glossolalia, também conhecida como falar em
línguas estranhas, é um fenômeno que pode ser encontrado em diversas religiões
(NOGUEIRA, 2009). De acordo com Oliveira Junior (2000), a Bíblia refere-se à glossolalia
com diversas nomenclaturas, tais como:
Língua dos anjos (1 Coríntios, 13,1); palavras inefáveis ditas no paraíso (2 Cor. 12,4);
cantos em espírito (1 Cor. 14, 15; Efésios 5, 19); gemidos inefáveis (Rom 8, 26), linguis
loqui (1 Cor 12, 10); diversas línguas, genera liguarum (1 Cor 12, 28); palavras
ininteligíveis (1 Cor 14, 9). (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 43).
Este estudo considera a glossolalia como diferente da xenolalia. Segundo Souza e Almeida
(2012), a glossolalia refere-se ao falar em línguas não condizentes com nenhuma língua
humana, ao passo que xenolalia significa falar em língua estrangeira desconhecida pelo
falante. Para Pommerening (2008), a glossolalia, além de conferir status social “supera as
divisões da linguagem humana, na medida em que capacita os adoradores a se unirem a um
sagrado transcendental” (CAMPOS e GUTIERREZ, 1996, p.100 apud POMMERENING,
2008, p.12). Chesnut (1997) e Quadros (2005) afirmam que o falar em línguas estranhas dá
voz aos calados na sociedade, sendo uma “compensação simbólica” de quem não é valorizado
no seu meio social.
O falar em línguas estranhas tem, segundo Csordas (2008), força na sua falta de sentido
aparente, uma vez que a ausência de significado nos moldes padrão favorece a construção de
novos significados. Freire (2007) menciona que a glossolalia envolve fala e também gestos.
1
Fonoaudióloga pela UNEB. Mestranda do PPG em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC). Contato:
detian@gmail.com.
2
Cientista Social. Doutora em Ciências Sociais pela UFBA. Professora do Departamento de Educação e do PPG
em Educação e Contemporaneidade (Campus I) da UNEB. Contato: sumota@oi.com.br Orientadora da
mestranda Detian Machado de Almeida, no programa de PPGEduC, Linha 1. Título provisório: Estratégias
fonéticas e de disposições corporais: a aprendizagem nas experiências de falar em línguas entre carismáticos e
pentecostais. Início: 2012.
317
Está, portanto, experimentado no corpo da pessoa. E é nesta corporeidade que a cultura se
apresenta. Para Csordas (2008), o corpo não é algo restrito ao biológico, mas um fenômeno,
sede das relações pessoais e dos frutos dessas, incluindo a cultura.
Para Csordas (2008), a cultura realiza-se no corpo e o corpo é, portanto, sua base de existência
cultural. Assim, a cultura está imersa no corpo. Rabelo (2011) corrobora com essa afirmação
ao colocar que corporeidade é um termo utilizado para enfatizar que cultura e relações sociais
estão encarnadas, ou seja, estão numa dimensão corporificada. É na corporeidade que Csordas
(2008) tece a análise de hábito.
uma auto-regulação individual de impulsos do comportamento momentâneo, condicionado por afetos e pulsões,
ou o desvio desses impulsos de seus fins primários para fins secundários, e eventualmente também sua
reconfiguração sublimada. (NORBERT ELIAS, 2006, p.21)
Mauss (2003) esclarece que habitus é muito mais do que uma ação individual: é uma
faculdade adquirida e que variam não apenas entre indivíduos, mas entre grupos e sociedades.
Mauss (2003) opta por usar o termo em latim, pois diz que habitus ultrapassa o significado de
hábito.
O hábito é, segundo Norbert Elias (2006) e Mauss (2003), aprendido, onde o corpo é colocado
sofre um processo educativo, que ultrapassa a imitação. Rabelo (2011) menciona que o corpo
está imbuído no processo de produção de conhecimento, ou seja, de compreensão. Aqui,
Rabelo (2011) critica a dualidade corpo-mente, quando outros estudos afirmam que a mente é
a responsável pelo aprendizado. A definição de Rabelo (2011) corrobora com a concepção de
Merleau-Ponty (1999). O mesmo define corpo como algo uno, sem a dicotomia trazida por
Descartes (2005). Para Merleau-Ponty (1999). o corpo é responsável pela aprendizagem,
318
sendo instrumento ativo da mesma. Esta relação define o ser-estar-no-mundo3, uma vez que a
pessoa e o mundo não são dissociados: só é possível ser pessoa por esta desenvolver
experiências, sendo e estando no mundo.
Se o hábito, por ser aprendido e encarnado – corporificado (RABELO, 2011), está presente no
que Mauss (2003) intitulou de “técnicas corporais”. Para Mauss (2003) as técnicas corporais
consiste em rearranjos aprendidos pelo corpo que estabelece suas diferentes formas de
movimentar-se e, por consequência, relacionar-se com o mundo. Consistem em atos
tradicionais eficazes. Desse modo, da mesma forma que existem diferentes formas de nadar,
mudadas a cada geração, pode-se dizer que existem diferentes formas de falar em línguas,
mudando de acordo com o grupo. Assim, são formas que o corpo se serve que não vêm no
nascimento, mas se aprende. As técnicas corporais não estão limitadas à religião, mas neste
âmbito estão obrigatoriamente presentes.
Dessa forma, é possível afirmar que o corpo educado modifica-se. Como exemplo,
Albuquerque (2006) cita que os estados de transe, de cunho social e psicológico, geram
também mudanças no metabolismo:
Talvez o seu exemplo [MAUSS, 1974] mais eloquente, e ao mesmo tempo desafiador,
esteja no universo religioso quando relaciona algumas técnicas corporais na origem de
nossos estados místicos. Ele menciona a ioga. Particularmente, eu identifico três grandes
grupos, como as técnicas centradas na respiração, nos movimentos e nos alimentos, como
portas de entrada para estados alterados de consciência, próprios das experiências místicas.
Isoladamente ou combinados, esses grupos nos dão as iogas, as meditações, as
3
Para Heidegger (2006), o ser-estar-no-mundo é o ser que está presente e não ausentará (diferente de anjos e
Deus que são, mas não existem – não estão no mundo) Este ser da pre-sença (Dasein) só o é, porque está
vinculado ao mundo. Assim o ser representa o mundo como parte dele. Para Merleau-Ponty (1999), ninguém
pode desvencilhar-se do mundo para observá-lo, pois está imbricado nele. Olha-se um fenômeno ao mesmo
tempo que o habita.
319
peregrinações, as danças, os jejuns, a seleção de alimentos, a ingestão de ervas. E, ao lado
destes, os nossos sentidos contribuem com a emissão e audição de sons, a inalação de
aromas e o controle da visão. Tudo isso mostra como somos bioquímicos e simbólicos, ao
mesmo tempo (ALBUQUERQUE, 2006, p. 3).
Neste processo, tem-se portanto que mesmo questões de cunho biológico mostram que, para
Mauss (2003), o corpo sofre ações externas, de maneira a educar-se. Este educar-se envolve
um forma-se envolto de proteção à própria pessoa. Envolve o que Foucault (2005) chama de
cuidados de si. Consistem em práticas de si que tem como objetivo proteger a si próprio,
garantindo a integridade do self. São técnicas corporais adquiridas, ensinadas e seguidas com
o intuito de proteção. Foucault (2005) ainda menciona que os cuidados de si são realizados
pelas pessoas apesar de estes não darem garantias sobre tal proteção.
O cuidado de si passa, segundo Foucault (2005), para a conversão a si. Afinal, são estes
cuidados, incluindo as práticas e o cuidado a esses atos que fazem parte da identidade, de um
ethos. O cuidado de si acaba por formar uma pessoa. Este processo de formação é uma
aprendizagem, já que estes cuidados podem ser passados de gerações para gerações. A adesão
a estes cuidados representa a aprendizagem adquirida. O falar em línguas é constituído de
cuidados de si e estes cuidados são aprendidos.
Uma vez que as técnicas corporais são aprendidas, já que são adquiridas pela educação, é
preciso esclarecer que tipos de aprendizagem estamos falando. Trata-se de uma aprendizagem
que faz parte do “mundo da vida” (GOHN, 2006). De acordo com a autora, caracteriza-se por
educação informal “como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de
socialização – na família, bairro, clube, amigos, carregada de valores e culturas próprias, de
pertencimento e sentimentos herdados”. (GOHN, 2006, p. 2). Os agentes educadores na
educação informal são todos aqueles com que a pessoa convive e aprende algo. (GOHN,
2006). Além disso, esta tem seus espaços e aprendizagem:
demarcados por referências de nacionalidade, localidade, idade, sexo, religião, etnia [...]. A
casa onde se mora, a rua, o bairro, o condomínio, o clube que se frequenta, a igreja ou o
local de culto a que se vincula sua crença religiosa, o local onde se nasceu etc. (GOHN,
2006, p. 2).
Esta forma de conhecer o mundo envolve o que Csordas (2008) chamou de pré-objetividade
ou pré-reflexividade. Csordas (2008) ao falar de Merleau-Ponty, informa que o mesmo utiliza
o termo pré-objetivo porque considera que o final da percepção seriam os objetos ao qual
320
conhecemos. Assim, o momento pré-objetivo é o período da percepção antes de chegar na
etapa final. Dessa forma, consiste naquele “momento de transcendência no qual a percepção
começa e, em meio à arbitrariedade e à indeterminação, constitui e é constituída pela cultura”
(CSORDAS, 2008, p. 107). Importante frisar que apesar de a cultura está vinculada a pré-
objetividade, não se fala em pré-cultura, pois “a percepção sempre esteve integrada em um
mundo cultural, de modo que o pré-objetivo não implica de forma alguma um 'pré-cultural'”
(CSORDAS, 2008, p. 370). Consiste em um aprendizado realizado antes da tomada de
consciência. A pessoa não sabe explicar como aprendeu, mas sente que aprendeu.
Considerando os conceitos acima explanados, este estudo objetiva descrever a cena de uma
experiência do falar em línguas em um grupo de oração. Para tanto, o artigo consiste na
descrição de uma cena observada no grupo de oração Anunciação do Senhor, pertencente à
Igreja Nossa Senhora do Resgate, localizada no bairro do Cabula, Salvador – BA.
Teoria metodológica
Para a descrição da cena, foram observadas as disposições corporais que constituíam a cena
no momento da glossolalia, bem como a descrição fonética. Com a finalidade de alcançar o
objetivo acima exposto, utiliza-se a Fenomenologia como pano de fundo. A metodologia foi
traçada a partir de uma visão hermenêutica que foi escolhida para ser não somente um
instrumento, mas como um estudo a ser utilizado. Em Gadamer (1999), a hermenêutica está
relacionada com o “ir às coisas mesmas” e deve cuidar para que ideias sem o compromisso de
livrar-se de preconceitos influenciem na captação da compreensão do sentido. Conforme
Gadamer (1999) afirma:
321
Segundo Barros (2012), a hermenêutica em Ricoeur, ao captar o significados e sentidos,
articula o texto em questão com a própria vida. Afinal, ela permite o “ir às coisas mesmas”,
conforme menciona Husserl (1985). Portanto, ao utilizar a Fenomenologia na elaboração
deste estudo, admite-se que não será possível contemplar todas as possibilidades.
4
Logo as performances culturais são áreas primárias não apenas para representação mas também para
construções ativas de formas de vida religiosa (tradução da pesquisadora).
322
estão restritas aos mesmos. Além disso, Csordas (1997) coloca que as performances são mais
do que uma manifestação cultural individual: constituem eventos em que existe interação
entre os membros.
Tendo a percepção como princípio de seu fundamento, as paisagens sonoras são composições
subjetivas, que expressam o modo como cada pessoa percebe a sonoridade no meio. A
paisagem sonora é composta de sons, mas estes, por sua vez, estão intrinsecamente
relacionados com as percepções do sujeito e suas experiências sonoras anteriores.
A paisagem sonora é colocada, segundo Oliveira e Toffolo (2008), como constituída por som
e o que está em sua volta, entendendo que o ambiente é responsável por compor este som,
assim como a pessoa que está inserida neste ambiente percebe a sonoridade. A percepção
ocorre não porque o som está separado da pessoa, mas porque a pessoa, o som e o ambiente
são indissociáveis. Os autores seguem, portanto, a Fenomenologia de Merleau-Ponty (1999)
quando o mesmo diz que é possível perceber o mundo porque se está inserido nele. Há,
portanto, segundo Oliveira e Toffolo (2008) uma inexistência de oposição interno/ externo,
também na composição das paisagens sonoras.
Por ser constituída de percepção, a paisagem sonora não tem todos os sons enfatizados de
maneira idêntica. Alguns sons são enfatizados em detrimento a outros. Por isso é possível, por
exemplo, um grupo de oração falar em línguas estranhas e ignorar o som proveniente do lado
externo do local. Assim, Oliveira e Toffolo (2008) mencionam que, ao descrever uma
paisagem sonora, deve-se levar em conta o ouvinte, uma vez que ele é participante do
5
Maturana (1995) apud Oliveira e Toffolo (2008) afirmam que a aprendizagem, dada pela percepção, ocorre
através do corpo fazendo rearranjos com o meio. Neste sentido, Oliveira e Toffolo (2008) explicam que a pessoa
não capta informações desorganizadas do meio e as organiza internamente. Fugindo da lógica dualista, o corpo,
ligado ao mundo, faz acoplamentos do meio, criando reajustes. Ele organiza não as informações vindas do lugar,
mas a própria dinâmica eu-meio, entendendo como inseparáveis, sendo algo uno. Assim, pode-se dizer que as
paisagens sonoras são cenários de rearranjos de percepção dos sons através da pessoa com o meio.
323
processo. É ele que perceberá o som. A partir dos conceitos aqui postos, segue a descrição da
cena da glossolalia presente no grupo de oração Anunciação do Senhor.
A reunião do grupo de oração Anunciação do Senhor observada e descrita para este estudo foi
realizada como de costume, no local de celebração das missas da Paróquia Nossa Senhora do
Resgate, localizado no bairro do Cabula, Salvador - BA. O local possui uma grande porta no
centro, constituindo a entrada para o local de celebrações de missa e também de reuniões. Ao
ultrapassar a entrada, vê-se fileiras de bancos de madeiras compridos. À frente dos bancos,
pode-se observar o altar, com a imagem de Jesus à esquerda, de Nossa Senhora à direita e o
símbolo do Altíssimo no centro, coberto por um pano roxo. Abaixo, ainda no altar, em cima
da mesa, encontra-se uma caixa com a imagem de Nossa Senhora do Resgate. Nela as pessoas
depositam seus pedidos de oração, através de pequenos pedaços de papel. Entre as cadeiras e
o altar encontra-se o púlpito, com a Bíblia aberta. À direita do púlpito localizam-se os
instrumentos onde a banda executa os louvores.
A reunião inicia com a oração do terço. Duas pessoas na frente do púlpito rezam o terço com
microfone, enquanto a membresia segue. Em seguida, uma pessoa vai à frente do púlpito e
começa, junto com a banda, a entoar louvores, incluindo coreografias. Em seguida, outra
pessoa, Ester (nome fictício) é chamada por quem estava louvando e a substitui, para realizar
a pregação. Lê-se um trecho do evangelho e, em seguida começa-se a pregar. Em dado
momento, Ester narra sobre as qualidades fornecidas pelo Espírito Santo e pede para todos
cantarem louvores que falem do Espírito. Durante os louvores, Ester começa a falar em
línguas.
Durante a pregação, ela pediu para todos ficarem de pé e de olhos fechados. Começou a
pregar, pedindo para que todos “rasgassem seus corações”, pois as pessoas precisam ser
renovadas. Durante a pregação, Ester começou a falar em línguas. Em seguida, outras duas
pessoas (uma mulher e um homem) que estavam na banda, na parte instrumental, começaram
a falar em línguas. Ester começou a pregar normalmente e depois voltou a falar em línguas.
Alternava a glossolalia com a língua portuguesa. Ela foi a última que terminou a glossolalia.
324
Resultados
Pode-se notar que durante a glossolalia, Ester não apresentou o seu desvio de comunicação
característico (ceceio – projeção anterior da língua entre os dentes, que provoca distorção em
alguns fonemas). Provavelmente isso ocorreu porque os fonemas utilizados por ela não
englobavam o grupo das fricativas alveolares (/s/ e /z/) - que são comumente distorcidas por
quem apresenta o ceceio. No entanto, não foi notada a presença de fricativas alveolares nos
outros falantes, logo é descartada a ideia de que foram utilizadas manobras para evitar os
fonemas que a mesma distorce.
Em Ester, notou-se a presença predominante das líquidas laterais - /l/ (lata) e líquidas não
laterais, também conhecidas como vibrantes - /ſ/ (caro). Em menor quantidade, houve
produção da fricativa posterior surda (som de “ch” no Português Brasileiro). O falar em
línguas começou com a vogal fechada /e/. Durante a glossolalia, três ficaram de olhos
fechados e uma de olhos abertos. Todos estavam com as palmas abertas viradas para a frente e
com os dedos juntos. Apesar de, nessa performance, o foco da descrição ter ficado em Ester,
notou-se que a presença de líquidas é bastante forte na predominância dos outros três
membros (duas mulheres e um homem) que também falaram em línguas.
Durante a pregação e o falar em línguas, a membresia fica voltada para a pessoa que prega e
que começa a falar em línguas. Alguns membros estão ajoelhados no momento em que Ester
começa a pregar, outros estão de pé. Porém todos ficam voltados para Ester. A grande maioria
fica com as mãos abertas, porém com os dedos juntos, em uma posição verticalizada, com as
palmas voltadas para frente. Os demais que falaram em línguas estavam de pé.
A descrição acima posta nos mostra a presença de uma modelagem comportamental, já que há
um padrão de gestos seguidos. A imposição das mãos e o momento de iniciar e terminar e
falar em línguas ocorrem seguindo uma lógica, demostrando, portanto, que o corpo
carismático do grupo de oração observado possui técnicas corporais que o habilita a engajar-
se na performance religiosa, particularmente a glossolalia. Csordas (2008) menciona que os
gestos de imposição de mãos parecem ser universais no campo carismático. Este acompanhou
um grupo de oração norte-americano e detectou tais gestos, também encontrados no grupo do
Cabula observado neste estudo.
325
líquidas no falar glossolálico. Nas transcrições fonéticas de Freire (2007), pode-se notar que
as líquidas foram as consoantes mais presentes. Tanto na pesquisa de campo deste estudo,
quanto nos estudos acima citados mostram que não há, seja no campo assembleiano, seja no
carismático católico, fonemas que não pertençam à Língua Portuguesa.
(anotações de campo).67
Em ambos os trechos, há uma predominância forte das líquidas laterais (/l/) e líquidas
vibrantes (/ſ/). A predominância dessas consoantes parece uma constante não somente nas
comunidades pesquisadas neste estudo, mas também em outros estudos realizados no
território brasileiro. Segundo Câmara Jr (1964) as consoantes líquidas dão um aspecto de
maior fluidez e velocidade na fala (por isso o nome líquido – alusão aos fluídos). De fato, a
glossolalia, no estudo realizado, apresenta à audição do ouvinte uma sensação de fala rápida.
Assim, inferências podem ser feitas a partir destes estudos. A princípio, parece que há uma
linguagem fonética comum, ao menos no campo brasileiro. Os estudos foram feitos em
regiões do Brasil diferentes e, ainda assim, foi notado um padrão fonético importante. Além
6
O vibrato consiste em uma oscilação da frequência de uma nota feita de maneira regular. (VIEIRA, 2004).
7
Dois pontos no interior de uma transcrição indicam prolongamento da vogal que antecede (BABINI, 2002).
326
disso, o padrão da organização fonética – cv (consoante e vogal) foi encontrado em todos os
estudos citados. O padrão silábico, vv (vogal e vogal), além do cv, foi encontrado nos estudos
de Souza e Almeida (2012) e na presente pesquisa em campo.
O falar em línguas inicia por quem realiza a pregação em seguida, outras pessoas começam a
falar em línguas. Foi percebido que ninguém continua falando em línguas depois que Ester
para. Aquela que prega se encontra à frente, pela própria condição de detentor da palavra.
Todas as pessoas, que falam em línguas ou não, estão de pé neste momento, pois há
comumente uma convocação antes da glossolalia para a membresia se levantar.
Considerações finais
Pode-se ver no estudo realizado no grupo de oração Anunciação do Senhor, que o falar em
línguas é aprendido. As autoras identificaram a presença de um padrão comportamental
durante o fenômeno da glossolalia. Se há um hábito na glossolalia, então é esperada uma
modelagem de comportamento em quaisquer grupos que falem em línguas. Corroborando
com os dados acima, Goodman (1974) apud Nogueira (2009) relata que, de acordo com seus
dados, a glossolalia não é um procedimento automático. O mesmo coloca que, baseado em
327
sua pesquisa, o comportamento envolvido na glossolalia é aprendido. Nogueira (2009) afirma
que os membros que falam em línguas adequam-se a um comportamento de grupo, uma
“obrigação” que é assumida ao juntar-se a este. É o dar e receber o presente, mencionado por
Mauss (2003). A adequação de comportamento pode ser entendida dentro do conceito de
hábito de Norbert Elias (2006), uma vez que se tem a modelagem de comportamento.
Ressalta-se que a aprendizagem vista nesta pesquisa não é a da educação formal, mas a que
faz parte do “mundo da vida” (GOHN, 2006) que envolve não somente atos conscientizados,
reflexivos, mas também atos pré-reflexivos (CSORDAS, 2008). Este padrão comportamental,
que envolve gestos e fala, é aprendido no campo das relações vividas entre sujeitos.
Pode-se constatar que, de acordo com o conceito de performance de Csordas (1997), durante a
glossolalia, ainda que uma única pessoa fale em línguas, esta interage com outros membros.
Está dentro do que Csordas (1997) fala sobre performance: ela realiza-se com a interação
entre as pessoas. Na cena observada e descrita, pode-se ver claramente que, mesmo quando a
animadora – a mulher que estava louvando e que falou em línguas -e a pregadora começaram
a falar em línguas, aparentemente sozinhas, os gestos das mesmas bem como os seus
respectivos corpos estavam voltados para a membresia. Havia, portanto, uma interação
gestual entre as pessoas ali presentes.
Referências
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328
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Disponível em: <http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/def2006/artigoleila.pdf >. Acesso em 05
maio 2013.
330
331
O grito da Cruz ou o grito da Cultura?
Marcos Teixeira de Souza1
Introdução
O mosaico cultural, étnico e religioso presente no Brasil, se por um lado, permite dizer que a
diversidade constitui uma marca identitária da nação; por outro lado, enseja o desafio de
entender, neste contexto, as particularidades e os sincretismos oriundos desta dinâmica, sem
cair nas armadilhas nos moldes, por exemplo, da dicotomia região e religião predominante:
baiano candomblecista, paulista católico, nordestino devoto de padre Cícero, evangélico da
periferia, entre outros, insídia, epistemologicamente falando, perigosa.
1
Doutorando em Sociologia pelo IUPERJ. Contato: prof1marcos@hotmail.com.
332
espaço social, sendo a religião uma das engrenagens: A Religião é uma coisa eminentemente
social (DURKHEIM, 1983, p. 212).
Apesar desta imposição legal no Império, não conta muitos registros de atritos entre grupos
religiosos diversos, a não ser contra as religiões de matrizes africanas. A queda da monarquia
suscitou uma sutil mudança. Isto porque a própria ideia de República abrigava princípios, pelo
menos em tese, mais democráticos e conciliatórios com os diversos setores da sociedade,
2
Disponível em: http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24518/o-municipio-dados-gerais/. Acesso em 05 de Agosto de
2013.
3
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em 05
de Agosto de 2013. Sem alterações na grafia.
333
inclusive as organizações religiosas. Na esteira do novo regime, crescem – começam aparecer
com mais ímpeto – outras confissões como o protestantismo, o espiritismo, entre outras.
Obviamente, a República não significou plena liberdade religiosa, haja vista a perseguição às
religiões de matrizes africanas, atacadas com o braço do Estado. Entre os protestantes, os
luteranos talvez tenham sido as maiores vítimas de perseguição no Brasil republicano, de
Getúlio Vargas, em especial, a Campanha de Nacionalização formulada no governo Vargas,
que visava à integração dos migrantes à cultura brasileira, principalmente nos anos trinta. As
medidas desta campanha se concentravam em proibir o ensino de língua estrangeiras nas
escolas, coibir; eliminar nomes de estrangeiros em placas de ruas, de comércios; censurar
publicações escritas em outros idiomas; coibir as ações das associações recreativas nas
colônias, entre outras ações restritivas, amparadas sob um ideário nacionalista. Sobre esta
questão, escreve Giralda Seyferth (1997):
Entre 1937 e 1945 uma parcela significativa da população brasileira sofreu interferências na
vida cotidiana produzidas por uma “campanha de nacionalização” que visava ao
caldeamento de todos os alienígenas em nome da unidade nacional. A categoria
“alienígena” — preponderante no jargão oficial — englobava imigrantes e descendentes de
imigrantes classificados como “não-assimilados”, portadores de culturas incompatíveis com
os princípios da brasilidade (SEYFERTH, 1997, p. 95).
Embora os maiores alvo e zona de conflito tenham sido o Sul do Brasil, o Estado do Espírito
Santo, dado seu relevante percentual de descendentes alemães, italianos e pomeranos, também
abrigou tal querela, sobretudo durante a segunda guerra mundial. Municípios capixabas com
significativa presença de descendentes alemães e pomeranos abrigam relatos, trazidos pelas
memórias de seus mais idosos, quanto à invasão a propriedades, roubo de bens, ameaças de
espaçamentos e morte. Entre os pomeranos, ressalta Jorge Kuster Jacob (2011):
334
Desde sua chegada ao Espírito Santo, nos anos cinquenta do século XIX, a história do povo
pomerano neste estado fora marcada por uma série de dificuldades econômicas e sociais.
Estabelecendo-se em regiões de difícil acesso do Estado, onde inexistiam ou pouco existiam
estradas, serviços de saúde e escolas, a maioria deles se estabeleceu em colônias, que
orbitavam em torno da agricultura familiar e da igreja luterana, a qual agregavam a
comunidade. Sobre os pomeranos capixabas, teólogo Rogério Sávio Link (2004) em sua
dissertação de mestrado, destaca:
No caso dos pomeranos do Espírito Santo, viu-se acima que eles se definem culturalmente a
partir de sua etnicidade, a partir de seu etos camponês e a partir de sua religiosidade, ou
seja, para ser um pomerano, é necessário pertencer etnicamente ao grupo, compartilhar o
seu modo de vida e também a sua religiosidade. A igreja luterana, nesse sentido, constitui-
se uma das maiores fontes identitárias dos pomeranos (LINK, 2004, p. 63).
Link (2004), ao concentrar sua pesquisa nos pomeranos emigrados para o estado de Rondônia,
mostra como a igreja luterana e os pomeranos se encontram irmanados. Tal característica se
apresenta mais verídica ainda ao olhar a presença luterana em municípios com percentual
significativo de pomeranos: Vila Pavão, Laranja da Terra, etc. Em alguns momentos, a
religião luterana é confundida com a pomerana. Exemplo disso é a informação do site da
prefeitura de Santa Maria de Jetibá, no qual se vê o termo religião pomerana4, em detrimento
de religião luterana. O uso inadequado do predicativo não revela, de todo, um equívoco: ser
pomerano é, por extensão, ser um luterano. Contudo, tal associação não se constitui unívoca,
uma vez que há descendentes pomeranos pertencentes a outras filiações religiosas,
geralmente, membros de outras igrejas protestantes.
Segundo dados do Censo 20105, a Igreja Luterana no Brasil totaliza com quase um milhão de
membros (999.498), dos quais 686.349 em áreas urbanas, e 313.149 em áreas rurais, tendo,
portanto pouca representatividade no protestantismo, como um todo, com seus 42.275.440
membros. Diferentemente do que ocorre no país, no que tange à representatividade luterana
em Santa Maria de Jetibá, de acordo com o mesmo, há 22.325 pertencentes à igreja luterana, o
que representa em torno de 65% da população residente. Outro fato que, de certa forma, a
singulariza por ser um grande dos produtores de ovos do país, tendo recentemente inclusive
4
Disponível em: http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24550/cultura-religiao-pomerana/. Acesso em 05 de Agosto de
2013.
5
Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_
Religiao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf
335
sido criado uma festa para comemorar tal mérito, a FenaOvo, também conhecida como a
Festa do Ovo e da Galinha.
Em se tratando de festas, além da FenaOvo, Santa Maria de Jetibá possui mais outras três
importantes, sendo inclusive, historicamente mais relevantes para o município: a Festa do
Colono, o Festival da Diversidade Cultural e a Festa Pomerana.
Esta última perfila como o principal evento festivo da cidade, ocasião em que se comemora
também a emancipação do município, desmembrado de Santa Leopoldina, em 06 de Maio de
1988. O azul e o branco, cores da bandeira da extinta Pomerânia, enfeitam a cidade durante os
dias de festa, sendo comum o comércio local, as repartições públicas e algumas casas ornar-se
com faixas, bandeiras, adereços, dando um tom festivo na cidade. No início de maio de cada
ano, com duração geralmente de cinco dias (quarta-feira a domingo), a Festa Pomerana tem
uma programação diversificada que inclui danças realizadas por grupos folclóricos da região e
de outras cidades, atividades culturais, musicais e religiosas, em vários pontos da cidade,
convergindo no centro dela as atrações mais renomadas, em geral, cantores famosos regionais
de música sertaneja, secundarizadas no evento, além de músicas de origem germânica, o
forró.
No último dia de comemoração, Santa Maria de Jetibá parecia ter o dobro de sua
população; pessoas de toda a região compareceram à arena central para assistir às últimas
apresentações das bandas típicas, tentar a sorte no bingo e prestigiar o show de Leonardo,
com direito a muito chope e cerveja. Os pomeranos santa-marienses trazem para a festa
336
elementos que consideram típicos de sua cultura nativa, buscando reafirmar uma identidade
de origem que foi passada de geração para geração, mas também alterada ao longo dos
anos. A festa também demonstra o quanto essa comunidade se apropriou de características
brasileiras na alimentação, nos gostos musicais, na eterna busca pela sorte e nas formas de
comemorar, seja na atualização do casamento, seja na organização de um evento que em
muito lembra as festas agropecuárias país afora (MUNDURUCA, 2009, p. 119).
Na festa, mais estritamente na remissão à cultura pomerana, além de alguns shows de danças
pomeranas, os desfiles, nos quais é recontada a saga da chegada e estabelecimentos dos
imigrantes pomeranos na região, com encenações de elementos característicos da cultura
pomerana, como o casamento pomerano, notabilizando o desfile, pela avenida principal da
cidade, a Frederico Grulke, compondo um contingente de mais de mil pessoas em trajes
típicos e carros alegóricos, reconstruindo um cenário de imigração e vida comunitária dos
primeiros colonos pomeranos no Espírito Santo. Geralmente realizados no domingo pela
manhã, desfilam praticamente todas as faixas etárias, desde crianças de colo acompanhadas de
seus pais até idosos com mais de oitenta anos, o que demonstra que o ideário de valorização
da cultura pomerana se achega a várias gerações de pomeranos santa-marienses.
Assim como outros municípios com ascendência pomerana, Santa Maria de Jetibá tem feito
esforços no sentido de não só preservar, como também valorizar e divulgar a cultura
pomerana, auferindo, com a festa, capital cultural e econômico. Um dos principais empenhos
se dirige à preservação do Pomerano, língua (ou dialeto, para alguns), cujo número de falantes
na cidade não se sabe oficialmente, mas se constata, por empirismo, ao andar nas cidades
onde há descendentes pomeranos, que Santa Maria de Jetibá concentra a maior comunidade
linguística do Pomerano.
337
Na Festa Pomerana, é relevante observar que, embora esta não tenha uma proposta religiosa,
algumas situações ocorridas nela engendrariam a priori uma problemática para os pomeranos
luteranos: o limiar entre o sagrado e o profano. Partindo da tese de que o sagrado para o
pomerano luterano seja a doutrina cristã, com viés interpretativo em Lutero, um
comportamento comum durante a Festa Pomerana, proporcionaria uma característica de
profanidade: o grito, que representaria, num olhar histórico-religiosa dos pomeranos, um
artifício, revestido de características mágicas, com o objetivo de afastar espíritos ruins na
natureza, crença esta alimentada pelos antigos pomeranos, e que persiste ainda entre alguns
pomeranos até hoje. Salienta a antropóloga e pesquisadora da cultura pomerana Joana Bahia,
que:
Para os pomeranos, a narrativa do aspecto mágico está presente em todas as esferas da vida
social, especialmente na economia camponesa. Narrar o mágico constitui um dos
procedimentos que fazem parte das operações técnicas necessárias tanto para o plantio e a
colheita dos produtos como para a criação de animais (BAHIA, 2000, p.155).
Para Gladson Pereira da Cunha (2011), o pomerano exprime uma identidade, em que o
cristianismo e as antigas crenças, consideradas pagãs, permeiam a vida:
Assim, em toda a vida existem momentos, rituais, religiosos ou mágicos, que propiciam a
esse pomerano típico uma boa morte para si mesmo e para os seus. Do batismo até a última
comunhão, do cumprir suas obrigações para com a Igreja até estar atento aos enfermos,
tudo o que for possível fazer para dar uma morte tranquila ao moribundo, isso será feito. O
pavor que os espíritos perturbados voltem para atormentar os que ficaram faz parte da
crença popular desse grupo. Daí se chega a dois caminhos diferentes: o primeiro é do amor
cristão, pelo qual os mortos devam receber um tratamento digno desde o preparo do corpo
até a inumação e, posteriormente, pela conservação de seus túmulos. O segundo caminho é
o do medo; medo de que as almas voltem para atrapalhar a vida, por meio de doenças,
infortúnios no campo, na cidade, e até mesmo com a morte (CUNHA, 2011, p.80).
338
marcam cada momento do desenvolvimento do pomerano constituem parte da tradição oral
transmitida de geração em geração pelas mulheres da família. Trabalho, comércio e
cotidiano são os temas preferidos dos homens. Crianças e religião, por sua vez, são
considerados como assuntos de mulher (BAHIA, 2000, p. 156).
Em outra obra: A ida aos cultos bem como as atividades organizadas comunitariamente na
Igreja contam sempre com a presença de mulheres da comunidade, sempre acompanhadas de
seus filhos (BAHIA, 2006, p.70). A ênfase da produção e difusão de crenças se daria, para a
autora, entre outros espaços, no lar e na igreja. Estes dois espaços divergem do espaço rua. O
lar e a igreja são espaços mais íntimos, ao passo que a rua conserva uma característica menos
familiar, e mais hostil. É na rua que se dá com mais propensão à secularização, pois se trata de
um espaço em que a sociedade molda primeiramente os indivíduos. Em Santa Maria de Jetibá,
a Festa Pomerana é um exemplo oportuno deste processo. Embora se saiba que a festa, desde
seu início, não tinha uma proposta de ser um evento de cunho religioso, por ser, aliás, uma
festa com o propósito de comemorar a emancipação da cidade, em alguma medida, reproduz a
extinta land Pomerâna, onde a religião, considerada pela doutrina cristão-luterana, pagã
assume presença.
Mas é válido frisar que secularização não significa o desaparecimento, por completo, da
religião. Durkheim, em As Formas Elementares da vida religiosa, obra tardia e robusta do
autor francês, iria identificar e teorizar como os fenômenos religiosos se encontram
consorciados com os fenômenos sociais, divergindo de muitas teses até então dominantes de
que o universo espiritual se restringia à experiência particular do indivíduo com o divino.
Partindo da análise do totemismo, forma religiosa considerada por ele como a mais elementar
339
de vida religiosa e encontrada na Austrália, Durkheim acreditava que poderia compreender
como o fenômeno religioso nasce e se desenvolve nas sociedades tidas como as mais
primitivas até as consideradas mais complexas.
O totemismo é uma expressão religiosa (ou religião), em que um objeto, planta ou animal é
visto na sociedade como um deus, sendo o Totem o divisor na sociedade entre o que é sagrado
e profano. Em outras palavras, é partir do Totem que o mundo social classifica os fatos sociais
como profanos ou sagrados. Tais categorias, profano e sagrado, constituem um par
importante no olhar durkheimiano sobre os fenômenos religiosos numa sociedade. Em sua
teorização, o sagrado se expressa por meio da existência de crenças e ritos e
consequentemente da obediência a eles. Por outro lado, o profano se revela no cotidiano, no
dia-a-dia dos indivíduos, fora das práticas religiosas. Convém dizer que o profano, na
concepção de Durkheim, não se traduz por atitude de aberração ao sagrado, desviando assim
do sentido comum do termo profano.
340
O processo de secularização preceitua a retirada das instituições religiosas o domínio
coercitivo sobre os membros de uma sociedade. Obviamente, não é um processo que se
constrói de forma instantânea, mas que, pouco a pouco, em meio ao avanço tecnológico e
científico, mitiga a influência das instituições religiosas sobre uma sociedade. As igrejas
luteranas de Santa Maria de Jetibá, neste contexto, rumam para reorganizar e ressignificar sua
função espiritual e social entre os pomeranos. Num contexto mais amplo da atuação das
igrejas luteranas, não diferente do que ocorre em Santa Maria de Jetibá, Antonio Gouvêa
Mendonça entende que:
A Igreja Luterana, como já fora dito, pouco a pouco, tem-se aproximado da cultura brasileira,
o que tende a acelerar um pouco mais o processo de secularização, que não deve ser entendido
como a queda da igreja, mas a reorganização da igreja dentro do espectro social. Deve-se
lembrar também que a secularização não pressupõe essencialmente um movimento de fora
para dentro, ou seja, da sociedade para dentro das instituições religiosas, embora este seja o
vetor mais comum. O movimento de dentro para fora também ocorre, por exemplo, religiosos
que secularizam suas práticas rituais. Isto de ser explicado porque a secularização não se faz
apenas no âmbito institucional ou interinstucional, mas também nos e entre os indivíduos.
Considerações finais
341
com o global e suas demandas sociais, culturais e econômicas; a expansão da zona urbana
santa-mariense; o aumento de pomeranos com mais anos de escolaridade, entre outros fatores.
De modo geral, o pomerano atualmente rememora o grito, mas não o internaliza como crença
ou significado espiritual, apenas como manifestação cultural e identitária. A religião perde seu
campo de influência. A Festa Pomerana sintetiza um pouco desta perda, embora, acredita-se
que nos distritos rurais de Santa Maria de Jetibá, onde a igreja luterana centraliza sua presença
e enraizamento na comunidade local, tal dinâmica seja mais lenta. Como a Festa Pomerana se
localiza na sede (centro) da cidade, as diversas instituições e espaços sociais, como escolas,
estabelecimentos comerciais, praças, pulverizam a centralidade da igreja luterana. Por certo,
não é coerente afirmar que o todo grito dado por um pomerano luterano tenha intenção
deliberada e convicta de preservar a cultura pomerana, mas sinaliza o caminho do processo de
secularização, à medida que o grito deixa de ser pertencente à esfera religiosa, para adentrar à
arena da cultura. Ainda incipientes, mas problematizadoras, estas observações demandam
estudar o fenômeno com mais profundidade, razão pela qual já serem crescentes as pesquisas
sobre o universo religioso-pomerano em Santa Maria de Jetibá.
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Nova Venécia: Gráfica e Editora Cricaré, 2011.
GUERRIERO, Silas. A visibilidade das novas religiões no Brasil. In: In: SOUZA, Beatriz
Muniz de & MARTINO, Luís mauro Sá. Sociologia da Religião e Mudança Social; católicos,
protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. 2ª ed. São Paulo: ed. Paulus, 2008.
Internet
http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24518/o-municipio-dados-gerais/
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Defi
ciencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm
343
344
Renascimento iniciatório revelado nos adornos e pinturas da
muzenza
Introdução
A dissolução dos laços familiares após a travessia do Atlântico, além de desfazer as linhagens
de muitos africanos, também alterava a organização de vida do sujeito, uma vez que as
referências que orientavam a vida da pessoa eram radicalmente transformadas. Mesmo que
fosse possível refazer laços familiares, não foi possível substituir o que fora deixado e perdido
em África. Contudo, no infortúnio da vida, “durante a árdua travessia do Atlântico, amizades
eram feitas, alianças eram estabelecidas, novas redes de parentesco eram estabelecidas”
(SWEET, 2007, p. 51). A ligação com novos sujeitos conhecidos durante a travessia do
Atlântico criava novos laços sociais, aos quais dariam continuidade ao chegarem no Brasil.
Mesmo separados da Terra-Mãe, desfeitos seus laços familiares e obrigados, na maioria das
vezes, a serem batizados, essas diferentes etnias encontraram, nas palavras de Bernardo, “um
inimigo em comum: o sistema escravagista que faz com que diferentes etnias, ao entrarem em
contato, se unam, em vez de se destruírem como receava Bastide. Mais do que isto, algumas
delas constituíram aqui o Candomblé” (BERNARDO, 1997, p. 108).
O candomblé pôde se constituir por meio do intercâmbio religioso entre diferentes grupos
étnicos africanos que vieram para o Brasil, facilitado pela presença de muitos elementos
culturais em comum. Se essas similaridades culturais facilitaram a constituição do candomblé,
elas não significaram o desaparecimento da diversidade, pois, conforme Sweet, “ainda que os
africanos de diferentes grupos étnicos conseguissem encontrar pontos culturais em comum,
continuavam a agarrar-se aos seus passados étnicos particulares” (SWEET, 2007, p. 22).
1
Doutora em antropologia pela PUC/SP. Este trabalho faz parte da tese de doutorado Tradição e traduções
financiada pela Capes e CNPq, sob orientação da Professora Teresinha Bernardo. Contato:
ogunilori@hotmail.com.
345
que há uma cosmovisão introjetada na nação angola que revela suas particularidades, isto é, o
que não chegou a fundir-se. Sobre o reconhecimento do que contém de desgarre nos processos
de hibridação, Canclini afirma: “Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma
consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer ou não pode ser
hibridado” (CANCLINI, 2008, p. XXVII).
Sendo assim, penso que a nação angola pode revelar valores, costumes e mundividências,
mesmo que ressignificados remetem a uma origem africana. A África vive no candomblé
angola, na linguagem, no ritmo da música, na estrutura organizacional dos terreiros, nos
passos de dança. Essa não é somente a África sudanesa, de onde se originou o candomblé
queto, mas também a África banta, de onde vieram elementos das culturas dos povos da
África Central, que, ressignificados, estão presentes no candomblé angola.
Não proponho valorizar os africanismos que denotam maior ou menor pureza dos terreiros.
Ao contrário, é para o processo de hibridação que pretendo olhar, no sentido de que as
misturas podem ser produtivas, mas que também geram conflitos devido ao momento
histórico, no qual elas podem se tornar incompatíveis. Nas palavras de Canclini (2008), seria a
possibilidade de “entrar e sair da hibridez” (apud CORNEJO POLAR, 1997).
Pe. Placide Tempels, no seu trabalho realizado nos anos de 1940, intitulado Philosophie
bantu, admitiu a existência de uma filosofia banta, fundamentada no conceito de força vital.
Segundo esse autor, na ontologia banta a força vital está presente tanto no reino animal,
2
A pesquisa bibliográfica que embasará este artigo foi produzida sobre grupos bantos centro-africanos, e são
trabalhos datados do século XVII, outros que tratam do século XVIII , XIX e começo do século XX. Os autores
aqui estudados são: P.e João António Cavazzi de Montecúccolo, que esteve na África – Central, onde
permaneceu de 1654 a 1667 e 1672 a 1677; o etnólogo missionário Padre Carlos Estermann, que no começo do
século XX estudou etnias bantas do sudoeste de Angola – Ambós, Hereros e Nhanecas-humbes) e não-bantos -
Cuísses, Cuandos e Curocas, Khoisan, Bochimanes, Kedes e Ovi-Womu; José Redinha (1905‐1983), um
importante etnógrafo que produziu vários trabalhos e relatórios sobre diversas zonas culturais de Angola; o
antropólogo Maccgaffey, que estudou os bakongos do nordeste de Angola no século XIX. Em muitos casos, terei
que filtrar os preconceitos ocidentais, mas sem dispensar o que de interessante podemos ler nestas fontes.
346
quanto no vegetal e no mineral. Ela pode se propagar, aumentar ou diminuir, devido às forças
dos seres estarem relacionadas entre si.
A energia vital que articula todo o universo do candomblé transparece em mitos e rituais que
no candomblé angola se amalgamaram com os de origem nagô. Isso é explicável, uma vez
que, se havia muitas diferenças entre a cosmogonia banta e a ioruba, também havia muitas
similaridades, como podemos perceber com o conceito de “força vital” que era fundamental
para os dois grupos, embora receba nomes diferentes segundo a língua de cada um. Nguzu
para os congo/angola e Axé para o grupo jêje/nagô.
Uma das características principais da força vital é que ela é própria dos seres viventes,
contrapondo-se à morte ou aos seres do outro mundo, que significam a ausência de nguzu ou
axé. Encontramos, dessa forma, tanto na nação angola quanto na queto, a crença de que a vida
não acaba com a morte. A vida se transforma.
A morte é um desafio para o homem, pois ela afeta sua vida. O homem, ao perceber a morte
de seu semelhante ou ver o seu corpo inanimado, descobre que um dia ele também não “será
mais”, isto é, percebe objetivamente que seu corpo se deteriorará e que ele não estará mais
entre os vivos. Assim, face à irrupção da morte na vida humana, o homem, por meio de ritos e
da magia, reconhece-a também como um processo de transformação.
Conforme Morin:
Por conseguinte, a relação entre os dois mundos pode ser feita, segundo a cosmovisão do
candomblé, seguindo algumas regras que são estruturadas para que não haja a contaminação
do mundo dos viventes, detentor da força vital (nguzu ou axé) pelo outro mundo, o mundo da
347
morte, onde há ausência da força vital. Desta forma, são realizadas cerimônias de morte, onde
o morto, por meio de ritual específico, é encaminhado para o outro mundo.
Desta forma, os elementos mágicos, míticos, rituais e estéticos, que sobrevêm do encontro do
Homo sapiens com a morte são elementos que constituem o universo antropológico.
Essa relação e a passagem entre a vida e a morte são metaforicamente entendidas pelos
Bakongo como a troca de pele da serpente, que ao descartar sua pele antiga recebe uma nova.
Assim, nesse entendimento do universo, a primeira pele é a do homem vivo, e é negra, como
são as dos congoleses, e a segunda pele, a do outro mundo, é branca, “como o osso, ou a
mandioca depois de socada e tirada a casca ou como giz, mpemba3 o qual é também o nome
do outro mundo” (MACGAFFEY, 1986, p.52) [tradução livre].
3
Mpemba, o mesmo que pemba. Giz de cor branca.
348
Pela analogia entre o tempo do dia e da noite, a vida e a morte, a troca de pele da serpente e as
cores branca e preta, percebemos que há uma complexidade na cosmovisão dos Bakongo, na
qual nada no universo está isolado e tudo está integrado. Essa complexidade, segundo Morin,
“tem a ver com o que Pascal havia visto muito bem. Pascal disse há três séculos: todas as
coisas são ajudadas e ajudantes, todas as coisas são mediatas e imediatas, e todas estão
ligadas entre si por um laço que conecta uma às outras, inclusive as mais distanciadas.”
(MORIN, 1996, p. 274)
Também no candomblé todas as coisas estão relacionadas entre si. Assim, na nação angola, a
utilização das cores branca e preta em seus rituais também pode se referir ao mundo dos
mortos e ao mundo dos vivos, tal qual a encontramos na cosmologia bakongo. Morin escreve
que “o estudo das sociedades arcaicas mostra-nos que a decoração, o adorno, a escultura e a
pintura podem ter valor de proteção e de sorte, estando ligados a crenças mitológicas e as
operações rituais” (MORIN, 1975, p. 106). Para podermos entender essa magia, a que se
processa tanto no candomblé quanto nos ritos bakongo, devemos ter em mente a ideia do
duplo que se processa na imagem. Conforme Morin,
a imagem já não é uma simples imagem, ela tem em si a presença do duplo do ser
representado e permite, por meio desse intermediário, agir sobre esse ser; é esta ação que é
propriamente mágica: rito de evocação pela imagem, rito de invocação à imagem, rito de
possessão da imagem (encantamento) (MORIN, 1975, p. 106-107).
A utilização das cores na nação angola, nas vestimentas, nas pinturas da pele do recém
iniciado, a utilização do pó branco que é o giz sagrado pemba tem um sentido e um
significado que estão relacionados com a vida e a morte.
Pemba – o branco
4
Saída de Muzenza: é uma festa pública em que o recém-iniciado no candomblé angola é apresentado para o
público. Por sua vez, Muzenza é o recém iniciado no candomblé angola.
5
Pemba: giz de cor branca utilizada no candomblé, para pintar o neófito, soprar na sala, entre outros rituais, com
intuito de afastar maus espíritos e fazer a ligação com o mundo ancestral.
349
o neófito passou por um processo iniciático que está sendo finalizado e que ele está limpo das
influências do mundo em que vivemos.
A utilização da pemba (ralada) em pó nas quizombas pode ser identificada como um ritual
próprio do candomblé angola6. Em São Paulo, não é somente a nação angola que utiliza o pó
de pemba nas festas públicas, pois há terreiros de nação queto que a utilizam, talvez pela
herança da iniciação do pai ou mãe de santo, que se deu na nação angola. Contudo, não
encontrei a utilização da pemba em pó soprada no salão de festas, por exemplo, no terreiro
baiano de nação queto, o Axé Opo Afonjá.
Assim, sobre esse assunto, ouvi de um pai de santo de São Paulo que transitou para a nação
queto a seguinte observação: “- Ele (ao comentar sobre outro pai de santo de angola) canta
tudo aquilo no começo (da festa pública)?” Daí cantarolou um pedaço da cantiga da pemba e
continuou: “- Eu não faço mais nada disso. No queto não tem nada disso.”
O pai de santo fez esse comentário, porque no início das festas públicas da nação angola, após
cantar o pedido de licença ao inquice Inkossi7, iniciam-se as cantigas da pemba. Neste
momento, o pai ou a mãe de santo apanha um punhado de pemba em pó e o assopra no centro,
nos quatro cantos do salão, para a porta de saída. Em algumas casas, um pouco deste pó é
depositado em pequenas porções nas palmas das mãos dos participantes da roda de angola e
dos tocadores de atabaques, que se ungem com esse pó branco antes do chamado aos inquices.
Os adeptos dizem que a pemba é soprada no salão de festas para limpar o local. Entretanto,
sabendo que pemba (mpemba) é um nome quimbundo e a designação do mundo dos mortos,
portanto, de origem Congo/Angola, e conhecendo a relação da cor branca com a morte,
ousaríamos pensar que a pemba tem um significado muito mais profundo do que
simplesmente proporcionar a limpeza transcendental.
Segundo Eliade: “Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal
ordinária e a reintegração no Tempo mítico reatualizado pela própria festa.” (ELIADE, 2001,
p. 64). O tempo e o espaço religioso não são homogêneos nem contínuos, pois se constituem
no limiar entre o mundo profano e o sagrado, que se abrirá para a comunicação com os deuses
por meio de rituais.
6
Quizomba: festa pública do candomblé angola em louvor a algum inquice ou por motivo de uma iniciação ou
obrigações de filhos com sete, quatorze ou vinte e um anos de iniciado.
7
Inquice Inkossi. Divindade do candomblé angola similar ao orixá Ogum divindade da nação queto.
350
Assim, no começo da quizomba, isto é, a festa pública, quando o pai ou a mãe de santo solta a
pemba no salão de festas, a brancura deste pó, que simboliza o mundo dos inquices e dos
ancestrais, estimulará o contato com o outro mundo, tornando mais fácil a chegada dos deuses
que virão confraternizar com os vivos. Ao mesmo tempo, o pó de pemba afastará os maus
espíritos que por acaso estiverem presentes devido a alguma contaminação no mundo dos
viventes. Na maioria dos terreiros, à pemba ralada são acrescentadas sementes e folhas
maceradas que são consideradas como purificadores de ambiente.
O sacerdote, ao soprar o pó branco no salão e nos filhos de santo, proporciona uma inversão
dos mundos, pois é por meio da pemba ritualizada que será efetuada a abertura para a
comunicação com os deuses. Daí sua grande importância para o candomblé angola, pois ela
torna possível e segura a comunicação com o mundo dos deuses, que poderão descer a terra
enquanto o homem, simbolicamente, subirá para o céu. Também nos rituais de iniciação do
candomblé angola, a presença da cor branca é muito importante, e é neste rito de passagem
que a comunicação com o inquice se dará através do transe.
Redinha registrou entre os povos de Angola processos iniciáticos, que assim como no
candomblé angola e em outras nações, envolviam a tonsura e o recolhimento do neófito:
As liturgias dos diversos rituais incluem tonsuras ou tosquias praticadas com freqüência nas
diversas regiões e grupos, nomeadamente na entrada dos jovens nos retiros puberbáticos,
nos ritos de viuvez, na iniciação das raparigas desde Cabinda ao Alto-Zambeze, nos
indivíduos sujeitos a estágios expurgatórios de faltas contra a sociedade, e outros de variada
prática (REDINHA, 1974, p. 371).
351
Há uma distinção entre os ritos de puberdade e as cerimônias de iniciação para admissão de
um sujeito em uma sociedade religiosa ou secreta. Enquanto nos ritos de puberdade todos os
adolescentes têm que passar pela iniciação, as iniciações religiosas não são para todos, mas
apenas para certo número de pessoas. Como escreveu Redinha, as iniciações em África eram
de diversas modalidades, mas no Brasil restringiram-se à sociedade religiosa, isto é, ao
sacerdócio e aos filhos de santo. As iniciações em São Paulo são normalmente precedidas de
um sinal, como uma doença, ou de algum acontecimento extraordinário que perturba a
harmonia da vida de alguma pessoa, o qual será a indicação para que se inicie.
Também em África, as iniciações religiosas eram anunciadas por uma enfermidade. É sobre
isto que escreve Estermann:
Para se obter este poder estimado e sagrado é preciso uma iniciação em forma. Quase
sempre o candidato foi primeiro molestado por uma doença prolongada. Um dia, enfim, um
mestre-feiticeiro descobre a razão do mal: o doente é possesso por um espírito dum
antepassado que era feiticeiro. Não deixará este em paz a pobre criatura na qual encarnou
enquanto ela não consentir continuar a exercer este mister entre os vivos (ESTERMANN,
1983, Vol. I, p. 29).
249
O processo iniciático descrito por Estermann aconteceu no sul de Angola, e tem a ver com um culto que foi
introduzido 30 ou 40 anos antes da escrita da etnografia, que é datada de 1935. Este culto se diferencia dos cultos
tradicionais, pois ao invés de serem cultuados os espíritos dos antepassados, quer sejam do soba quer do clã, são
cultuadas novas categorias de espíritos. que são antepassados dos mbundos do planalto do Huambo. Estes
espíritos são apelidados de espíritos do Nano (Estermann, 1983, vol. I, p. 317).
352
se encontra ao nível natural da existência, não é um ser completo. Assim, “para se tornar um
homem propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para a vida
superior, que é ao mesmo tempo religiosa e cultural” (ELIADE, 2001, p. 152).
Por isso, o uso da cor branca, por ser a cor do outro mundo, é um importante requisito tanto
para as roupas na clausura quanto para a roupa e pinturas usadas pela muzenza, na sua
primeira aparição em público, que se dará em uma grande festa.
As festas de saída de muzenza são divididas em três partes principais. Embora todos os
inquices sejam homenageados com cantigas próprias, os momentos mais importantes da
festividade são aqueles em que o neófito é apresentado para a sociedade do candomblé. Na
primeira apresentação da muzenza, seu corpo vem coberto de pintas brancas e sua cabeça, que
está raspada, vem adornada com círculos brancos produzidos com pó de pemba. Além disso
um cone confeccionado com uma massa sagrada específica está assentado no centro da
cabeça e é chamada oxu.
Pensando a relação do branco da pemba com a morte, a cor da roupa e a decoração do corpo
do neófito indica que, durante a clausura, passou por uma morte iniciática, para que pudesse
transitar para o mundo espiritual e receber o nguzu de seu inquice. Uma vez do outro lado da
vida, o neófito pode, no final dos rituais, renascer para uma nova vida terrena, na qual
receberá outro nome e um novo destino.
353
no duplo o nascimento no mundo comum. Ao exibir as decorações corporais de cor branca na
pele a aparição pública do neófito revela que esteve durante o período de recolhimento no
mundo dos espíritos e dos inquices. Para a comunidade do candomblé que assiste a festa o
iniciado ainda não renasceu, pois a cor branca de suas vestes e da decoração em seu corpo
narra a trajetória da muzenza durante seu recolhimento, que se iniciou no mundo dos
ancestrais e dos deuses, onde o branco é sua principal marca. A marca daqueles que ainda não
estão no mundo dos vivos.
Assim, o neófito, ao transitar para o mundo dos vivos isto é renascer, traz não só a cor branca
do mundo dos espíritos, o outro mundo, como também apresentará em aparições subsequentes
o vermelho e o preto, cada qual com seu próprio significado, como veremos adiante.
A partir deste momento, podemos pensar que o retorno do neófito de sua jornada iniciática ao
mundo dos espíritos está inscrito nas pinturas de sua pele. Desta maneira, o vermelho, que
aparece entre o preto e o branco, simboliza o sangue do nascimento, que também pode estar
relacionado com o nascer do sol, pois é o amanhecer que representa a morte da noite para o
nascimento do novo dia. Por sua vez, o waji, que representa o preto, simboliza o surgimento
do dia, portanto o mundo dos vivos, para onde a muzenza está voltando.
251
Wáji ou Uaji é um tipo de pó azul, conhecido também por índigo extraído da árvore Indigofera (sp.
Leguminosae Papilionoideae).
252
Osun é obtido da Baphia nitida Lodd. Legumenosae, nativa do centro-oeste da África, ocorre na Serra Leoa,
Libéria, Costa do Marfim, Togo, Benin, sul da Nigéria, Republica dos Camarões, Guiné, Gabão, Gana e Zaire.
http://www.fao.org/ag/Agp/agpc/doc/GBASE/data/pf000146.htm.
José Redinha também faz referência às cores branca e vermelha nos rituais dos bantos de angola: “As argilas,
principalmente as que resultam de feldspatos, e os vermelhos oriundos de cernes de Pterocarpus, de chistos
vermelhos, de red-rock alterado, ou de argilas ferroginosas, depois de devidamente preparadas são matérias
indispensáveis no liturgismo e na pragmática social da vida dos Bantos angolanos” (REDINHA, 1973, p. 22).
354
Essa sequência reproduz a escuridão da noite que se esvanece com o amanhecer para
finalmente dar lugar à luz no nascer do dia e da vida.
Após estas duas saídas da clausura, o neófito é novamente recolhido para uma nova
apresentação. Desta vez, aparecerá sem as pinturas, sem o oxu, estará vestido com roupas
coloridas e festivas. Esta é a roupa de gala do inquice para o qual foi iniciado. A cabeça vem
ornada com uma coroa, elmo ou chapéu, decorado com contas, búzios ou penas. O rosto vem,
muitas vezes, parcialmente encoberto por uma cortina de contas ou máscara dependendo da
característica do inquice ao qual foi iniciado e que ali está presente. Nesta apresentação é o
inquice que vêm confraternizar com a sociedade do candomblé. Traz nas mãos apetrechos
simbólicos da divindade. Não é mais o mesmo homem que entrou na reclusão da camarinha,
mas é ele junto ao seu deus que viverão em permanente contato a partir daquele momento.
Esta saída é chamada de “saída do nome”, pois é nesta parte da cerimônia que o inquice
gritará o novo nome do iniciado, pelo qual será conhecido por toda a comunidade do
candomblé. Ele renasceu para um novo destino, para uma nova família, com um novo nome e
assim se reintegrará no mundo dos vivos.
Considerações finais
A estética aqui apresentada está ligada a magia e a religião. Além de seu simbolismo mágico,
ela também tem o sentido de prestígio, pois, ao ser iniciado, o adepto cresce na hierarquia do
terreiro. Ele renasce em uma nova família, com um novo nome e acrescido do nguzu de seu
inquice, pois ele “só se torna um homem completo depois de ter ultrapassado, e em certo
sentido abolido, a humanidade “natural’ de morte e ressurreição, ou de segundo nascimento”
(ELIADE, 2001, p. 152).
355
visões do homem, uma objetiva e outra subjetiva253, “há uma brecha, que a morte abre até a
dilaceração e que é preenchida com os mitos e os ritos da sobrevivência, que finalmente
integram a morte” (MORIN, 1975, p. 104). É a brecha antropológica (MORIN, 1975) que
surge no diálogo entre a razão e a desrazão, que proporciona ao Homo sapiens ir do simbólico
ao imaginário para, desta forma, descobrir, por meio da morte, o sentido da vida.
Devido à crença no ciclo contínuo da existência, a morte não será o final da vida, mas sim
uma transformação. Assim, a concepção de um universo dividido entre mundo dos vivos e
mundo dos mortos, encontrada tanto no universo Bakongo quanto no candomblé angola,
permite pela continuidade entre os dois mundos, dar sentido à existência humana.
Referências
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Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.4a edição. São Paulo, EDUSP, 2008.
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa. The BaKongo of lower Zaire.
Chicago and London, The University of Chicago Press, 1986.
MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Para uma Nova Antropologia. Tradução de Fernando
de Castro Ferro, 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
253
Morin escreve que: “a consciência da morte que emerge no sapiens é constituída pela interação de uma
consciência objetiva que reconhece a mortalidade e de uma consciência subjetiva que afirma senão a
imortalidade, pelo menos uma transmortalidade” (1975, p. 103).
356
REDINHA, José. Etnias e Culturas de Angola. Premio Banco de Angola, 1974. Luanda.
Instituto de Investigação Científica de Angola, 1974.
Internet
357
358
Um “ballet do Espírito”: breve reflexão sobre corporeidade e
pentecostalismo
Valdevino de Albuquerque Júnior1
Introdução
Dessa forma, surge uma indagação: é a força da cultura brasileira – e sua matricialidade
religiosa – a responsável pelo plasmar de uma religiosidade em que o corpo assume,
dialeticamente, a função de 1) libertar-se do pecado por via de um ascetismo intramundano
(que prescreve e estatui a repressão do corpo sob a tutela de uma herança puritana que se
estendeu do protestantismo ao pentecostalismo clássico) e ao mesmo tempo 2) libertar-se
daquele mesmo estilo repressivo do velho protestantismo de limitar o corpo à ação passiva (da
recepção de sermões), restrita ao “sentar-se (somente) para ouvir” e “levantar-se ou ajoelhar-
se (somente) para orar”?
Digo força da cultura no sentido de concebê-la como o padrão de significados que é, onde as
experiências encontram sua razão de ser na transmissão histórica da significação das coisas,
na concepção herdada, essa significação incorporada em símbolos através dos quais os
homens comunicam seus conhecimentos. Sendo essa mesma concepção o significado dos
símbolos (GEERTZ, 2008), parece legítimo sugerir (ou até mesmo afirmar) que a matriz
religiosa brasileira (BITTENCOURT, 2003) atravessa a história, fazendo do tempo e do
espaço das experiências religiosas dos sujeitos, em sua dinâmica de lugar (RABELO, 2005),
autênticas usinas semânticas, no sentido de produtoras de um novo rejunte interpretativo da
1
Mestrando em Ciência da Religião pelo PPG da UFJF, comunicólogo habilitado em Jornalismo pelo Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF, SVD/SMC). Membro dos GPS Religião, Modernidade e Ecologia
(PUC/MG) e Núcleo de Estudos em Protestantismos e Teologias (NEPROTES/UFJF). Bolsista da Capes.
Contato: jr.albuquerque@gmail.com.
359
mitologia bíblica da manifestação de pentecostes. Rejunte que promove a fusão cotidiana de
novos olhares teológicos, novas trações que fazem girar a engrenagem social dessa usina
produtora de novos sentidos de vida, de novos símbolos; ora: de novos pentecostalismos!
“Ou não sabeis que o nosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de
Deus, e que não sois de vós mesmos?” 1 Co 6.19 3
A partir de algumas pistas sensíveis que se mostram em seus cultos, tais como a coreografia
[imprevisível e diversificada] do crente que, “pentecostalmente trajado” em seu terno e
gravata, marcha (literalmente) entre as fileiras de bancos bradando línguas estranhas, pode-se
observar que a comunicação dos símbolos da crença se dá na comunhão mesmo dessas
2
Ora representados por pseudônimos, a preservar-lhes o anonimato.
3
A teologia pentecostal prescreve que “nosso corpo é o templo do Espírito Santo. Se somos cristãos, nosso
corpo é a morada pessoal do Espírito Santo (ver Rom 8.9,11, onde vemos que o Espírito Santo é o selo de Deus
em nós, mostrando que lhe pertencemos). Porque Ele habita em nós e pertencemos a Deus, nosso corpo nunca
deve ser profanado por qualquer impureza ou mal, provenientes da imoralidade, nos pensamentos, desejos, atos,
filmes, livros ou revistas. Pelo contrário, devemos viver de tal maneira que glorifiquemos e agrademos a Deus
em nosso corpo (v. 20)” (STAMPS, p. 1745).
4
O termo “bailar” é tomado de empréstimo à abordagem de Miriam Rabelo (2005) sobre a dinâmica da
experiência de “receber o Espírito Santo” no pentecostalismo.
360
crenças, além do fato de que a própria fluidez na comunicação ritual dos símbolos constitui,
de forma seminal, a plausibilidade5 do arcabouço teológico do sistema de crenças,
legitimando os mitos na expressão sensível do crente, na festa da coletividade. A participação
ativa nos atos de louvação constitui troca de informações que se processa na reatualização dos
mitos6 na ação ritual da manifestação carismática, onde aquela “sensação (mística) de ‘mover-
se na presença de Jesus’” (CORTEN, 1996, p. 123) dá o tom das reuniões, trasladando o
ambiente imagética e acusticamente para o quadro da realidade mítica reatualizada,
emoldurado pela leitura teológica pentecostal de Atos 2. É quando “o fogo desce”, celebra o
pentecostal.
“Eu vejo como que um vaso sendo compretado. Um vaso sendo completado. (“Ô Glória a
Deus”, acentua irmão Leandro). Num tem o filtro, cê num vai tirano a água dele, ele num
vai esvaziano, depois cê num pega e num enche ele novamente? É como se fosse assim 7.
Se, diz Geertz, “a cultura de um povo é um conjunto de textos” (1989, p. 212) e portanto – tal
qual assumo nesta reflexão – pode ser lida e interpretada, o culto pentecostal (enquanto
cultura particular) é um enredo, uma repetição, e transcreve, da forma mais prazerosa (festiva)
possível, a relação entre a textualidade mitológica e sua verdade, sublimada na experiência
contemporânea do mito. O corpo do crente (e o lugar onde o culto se realiza) é, nesse sentido,
o contexto onde ethos e visão de mundo se fundem ao sentimento de pertença; tal fusão
encontra sua aparência de objetividade no espaço da manifestação do Espírito Santo: a
expressão gestual (1989, p. 96).
“Eu sinto o fogo descer do céu, um arrepio, um arrepio muito gostoso, da cabeça até os pé,
vindo de cima pra baixo, e me envolveno o calor do Espírito Santo... meu olho, eu sinto
pegar fogo em meus olhos, sinto minha mão quente, pegano fogo... me dava uma alegria,
me dá... eu sinto uma alegria, uma vontade de pular, de rodar... Já aconteceu, assim, eu te
falo que, quando eu tô ‘tomado’ assim, quando eu tô recebeno, sentino ali a presença de
Deus memo, já aconteceu d’eu dançar... no louvor... falando em línguas... d’eu dançar... e
5
Plausibilidade no sentido que Peter Berger (2008) atribui ao termo, i.e., a ideia de que um indivíduo só pode
manter/conservar sua autoidentificação em um grupo que confirma tal identidade. Essas “estruturas de
plausibilidade”, acentua Faustino Teixeira, é que “conferem a base social para a conservação da realidade,
eliminando o risco dissolvedor da dúvida” (2003, p. 224).
6
O sentido dessa reatualização dos mitos à qual tento me reportar é conceitualmente descrito por Mircea Eliade
da seguinte maneira: “Em resumo, o homem religioso se quer diferente do que ele acha que é no plano de sua
existência profana” (2008, p. 88) e “Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se
sucederam os acontecimentos de que falamos (...) Em suma, supõe-se que o mito aconteça em um tempo – se nos
permitem a expressão – intemporal, em um instante sem duração, como certos místicos e filósofos concebem a
eternidade. (...) O mito reatualiza constantemente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve a um
plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona a abordagem de uma Realidade
impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana (1991, p. 53-56).
7
Irmão Paulo.
361
também d’eu impor as mãos sobre uma pessoa que estava enfermo, e el ser curada. O
Senhor me toca e me leva8.
Entre as várias e por vezes imprevisíveis maneiras pelas quais o Espírito Santo se manifesta
nos fieis, resolvi pinçar uma delas: o efluir9 da presença de Deus na experiência sensível do
crente e como tal efluir evolui para a expressão gestual, haja vista a possibilidade de comparar
as impressões com os dados obtidos pela cientista social Miriam Rabelo (2005), alimentando
um circuito de inferências, interligadas ao prisma interpretativista ora assumido, na tentativa
de uma leitura que reconheça a experiência sensível como fronteira de sentido entre o
universo simbólico da teologia pentecostal e a legitimação dessa hermenêutica na
performance ritual, admitindo o pano de fundo da matriz religiosa brasileira como rejunte
cultural que sugere, a priori, elementos de continuidade entre o engajamento corporal das
manifestações carismáticas de certos pentecostalismos e das religiões afro-brasileiras. Tal
continuum entre as expressões gestuais de ambos os credos encontra fulcro em elementos
culturais de contato, tais como a arte da música – e as ligações desta com as práticas
religiosas10 – e a influência exercida pela música no espírito da coletividade brasileira.
8
Irmão Leandro.
9
Quando o fiel fala sobre sua experiência em “receber o Espírito Santo”, a voz da crença, em sua tentativa de
verbalizar tal vivência religiosa, geralmente utiliza expressões metafóricas (quase sempre com paralelos
bíblicos), tais como “eu sinto rios de água viva a jorrar do céu”, “eu sinto as labaredas do Espírito a queimar”,
“quando o fogo desce a presença de Deus flui no meio de Seu povo”, etc. Essa concepção de um efluir é muito
presente nessas experiências.
10
Entre alguns dos textos aqui considerados, mostram-se interessantes o de Reginaldo Prandi (2005), Uéslei
Fatareli (2008), Othon Jambeiro (1975), Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Fº (2012) e Rogério
Budasz (2009).
362
Cultura e religião se entrelaçam no processo de formação de identidades, podendo-se
considerar a religião de fato como um “sistema cultural” (GEERTZ, 2008), enquanto a
cultura, propriamente dita, sendo um “sistema de significados” (Ibid, 1989), move-se
dialeticamente no sentido de ser produzida pelo povo ao mesmo tempo em que instaura na
consciência popular, via aparatos simbólicos, relações de concepções e significados do
mundo. Sendo a cultura “uma produção constante e dinâmica de significados” (NOVAES,
1998) por onde transitam os sentidos, o culto pentecostal, como instrumento de uma cultura
maior chamada pentecostalismo, promove o encontro entre a emoção que (re)alimenta a
crença e o sistema simbólico que compõe a cultura pentecostal, fazendo do espaço de culto
uma usina produtora de novos e infinitos sentidos, manifestados nos cantos, nas aplausos, nas
lágrimas, “na água viva que desce do céu”, “no fogo que cai”: manifestado no corpo. “O fiel
que assiste a um culto sai carregado de ‘um acontecimento’” (CORTEN, 1996, p. 62). De
fato.
II
De longe se faz ouvir o ressoar das palmas de louvação. Ao passo em que se encurta a
distância entre este ato observador e aquela fonte sonora, intensifica-se e se mostra mais
nítido que os aplausos intermitentes são coadjuvantes efêmeros de um fenômeno ainda mais
inusitado: a festa pentecostal. Ou melhor, um culto pentecostal. Aliás, festa e culto no
pentecostalismo são [quase] sinônimos, lembra Rivera (2005). Porém, não se trata de uma
festa caracterizada pelo conceito de “festa” propriamente dito – um espaço onde imperam
descontração e certo descompromisso com as regras e formalidades do cotidiano: pelo
contrário. A teologia pentecostal prescreve aos crentes um cotidiano menos afeito às festas
[seculares] e mais próximo da sobriedade contínua de um fiel que atravessa os dias sob o
estatuto puritano da santidade pentecostal.
Ora, falar em “santidade pentecostal” no Século 21, transcorrida quase uma década após as
“bodas de prata” do neopentecostalismo no Brasil, parece um comentário impróprio11. No
11
Interessante lembrar que as mudanças ocorridas no campo religioso brasileiro, pelo menos nos últimos 10
anos, conforme atesta o último censo, confirmam o avanço pentecostal frente às demais manifestações religiosas.
Autores já consagrados nos estudos do pentecostalismo lançam luz sobre os mais variados segmentos desta linha
teológica do cristianismo de raiz protestante, e em boa hora cabe aqui esta observação. Várias transformações
fizeram [e fazem, por serem ininterruptas] do universo pentecostal um verdadeiro ninho de teologias, e as
reflexões de Ricardo Mariano (1999), Ari Oro (1992; 2001; 2005-2006), Andre Corten (1996), entre outros,
mostram uma nova face assumida pelo ramo pentecostal à qual Mariano denomina Neopentecostalismo: nesses
cultos, o pentecostalismo toma outra feição, ora maquiado pela tinturaria de novas concepções teológicas
contrastantes às bases históricas do pentecostalismo tradicional (entre elas a teologia da prosperidade), ora pelo
363
entanto, tal impertinência/improcedência temática vê-se pulverizada pela resistência e
sobrevida, em terrenos religiosos, reveladas pelos “pentecostalismos da antiga”, comunidades
e igrejas estabelecidas que mantêm a hermenêutica primitiva do pentecostalismo que aportara
no país, em fins dos anos de 1910. Por fim, e por conta de um denso conteúdo informativo
sobre a história, estrutura, teologia e desenvolvimento do pentecostalismo (e suas formas) no
Brasil, as pesquisas até hoje realizadas sobre esta religiosidade mais que explicitam sua
importância no campo religioso brasileiro.
É fato que a supracitada “hermenêutica primitiva” não se isenta dos processos de transação
simbólica que fazem do Brasil o que ele é, um feixe de leituras e releituras de múltiplas
crenças, caleidoscópio de pluralidades cosmogônicas, alimentado por representações e
imagens embutidas em signos de crenças, a refletir tais signos em todos os sentidos e níveis
de religiosidade, dos sistemas racionalizantes da esfera litúrgica das religiões dos livros aos
rituais das religiões de tradição oral (nem por isso, menos complexas). Por vias rituais, teias
de comunicação canalizam mitos através da história das religiões e da história das
experiências religiosas dos indivíduos e seus grupos.
Eu vejo anjos... fogo! Um fogo amarelado, descer em chamas, assim... vejo uma bola rodar,
de fogo, ela roda assim, vai girando, igual uma roda. Falo diante do Espírito Santo! (...)
Quantas vezes eu tô em casa, assim, eu ‘cabo de orar, de sentir a presença de Deus, de falar
em línguas, quando eu vou deitar, que eu deito assim, essa bola ela vem rodando. Ela vem e
clareia o quarto inteiro. Um círculo de fogo, uma roda. Vejo ela clareando o quarto, desde
que eu recebi o batismo com o Espírito Santo e com fogo 12.
Um “bailar” que é também linguagem que simboliza o diálogo da crença com a legitimação
dessa crença. Deus, “O Sagrado”, diria Otto (2007), está presente, através do Espírito Santo
(WILLIAMS, 2011), e “é o próprio Deus”, através do Espírito Santo, diz o crente, que induz
verniz que cobre um novo estilo de cristianismo pentecostal diluído na influência de líderes carismáticos que se
instrumentalizam do capital simbólico adquirido na ascendência representativa no universo político brasileiro.
12
Irmão Leandro.
364
os sentimentos, emoções e o corpo a expressar a manifestação dos carismas. Aliás, os
carismas são o manifestar dos dons de Deus, preconiza a Teologia Pentecostal. É o “carimbo
da bênção”, afirma, de púlpito, num culto de meio de semana, um dos pastores da
denominação na qual realizo os trabalhos de campo254.
Começa sempre na cabeça... é da cabeça pra baixo. Eu sinto muito as mãos aquecidas, mas
começa sempre na cabeça. É uma realidade, mesmo, o fogo vem no corpo inteiro, o calor
do Espírito255!
Eu não perco o controle. Eu sou controlado pelo Espírito Santo. Quando Ele tá me encheno
de alegria, Tá encheno, vem a certeza deque, eu creio, que muitas barreiras cai. Muitas
barreiras espirituais cai. Barreiras, lutas, obstáculos do dia a dia. Isso cai tudo por terra.
Problemas, tudo cai256.
254
Trata-se da Igreja Evangélica Preparatória, igreja que pode ser classificada como deuteropentecostal
(MARIANO, 1999), fundada em Minas Gerais no final dos anos 1980 por um ex-evangelista da Assembleia de
Deus. O objeto de minha pesquisa de mestrado é justamente a análise de alguns elementos simbólicos que
estabelecem a relação entre a performance gestual e os corinhos de fogo.
255
Irmão Leandro.
256
Irmão Leandro.
257
No referido artigo há interessantes abordagens sobre as experiências de êxtase, transe e possessão, sob a
perspectiva de Marion Aubrée.
258
A teologia pentecostal reconhece, da mesma forma que o cristianismo em geral, a onisciência como um dos
atributos de Deus (SOARES, 2008, p. 69). Neste sentido, não há contradição em afirmar que o crente
“comunica” a Deus que este pode se manifestar, sendo que a divindade tem conhecimento pleno da consciência
do crente. Antes, a oração significa diálogo com o transcendente, meio através do qual se efetivam várias tipos
de informação, quer restritamente intelectivas, quer por vias mais sensitivas, na sensibilidade carismática, por
exemplo.
365
uma resposta da divindade que, suscitando no fiel a alegria da presença divina, comunica a
aceitação, o também “recebimento” daquela ação de louvar. O culto pentecostal é uma festa
porquanto o personagem central da estrutura mitológica convida aos crentes para compô-la,
alegrando-se com Ele, o anfitrião ubíquo que faz de qualquer espaço – incluindo aí o território
da experiência sensível do fiel – o templo para tal celebração.
(...) Nós somos o templo do Espírito Santo, o Espírito Santo habita em nós, tá escrito na
palavra de Deus isso (...) Ele habita em nós, entendeu? Ele habita em nós, Ele nos enche
com a glória dEle, como a presença dEle. Eu já senti vontade de pular, de gritar (dar
‘glórias’, falar em línguas estranhas) em casa mesmo, sozinho259
Uma vez fazendo parte de uma cultura, os símbolos são expressos quer pela língua,
pelas crenças, pelos costumes, quer pela arte; todavia não se limitam a tais pontos, já que
o “espírito ‘próprio’ a cada cultura influi sobre o comportamento dos indivíduos” (CUCHE,
2002, p. 45). E não é difícil observar em volta e encontrar, nas diversas modalidades de culto
– das tradicionais às alternativas, em todas as sociedades – a presença do passado no
presente, quadros em que os elementos simbólicos religiosos “objetivam” a realidade das
crenças nas ações rituais.
Em cada espaço e tempo, os ritos parecem assumir a moldura cultural de seu contexto. E
em sua heterogeneidade, cada rito particular regula o conteúdo simbólico de forma a
preservar a substância de seus efeitos, quer dizer, a manter sua característica de regulador de
ethos e de visão de mundo. Como se dá essa regulação de mecanismos simbólicos? Como
podem comportamentos, inspirações e tendências seguirem a cadência ideológica dos
símbolos religiosos organizados? Pode a estrutura simbólico-religiosa, além de atuar na
produção de sentido, estabelecer pontes entre o mundo objetivo e o universo das
representações? De fato, trata-se de perguntas que trazem consigo outros questionamentos,
imbricados nas inúmeras possibilidades de respostas. Portanto, mostra-se óbvia a necessidade
259
Irmão Paulo.
366
de limitar a presente reflexão a uma cultura em particular, a um grupo social, a uma ‘classe
simbólica individual’, no sentido de buscar uma [embora vaga] interpretação das relações
estabelecidas entre os símbolos e o sentido por eles produzido no campo confessional da
religiosidade.
O corinho e a palavra é como se fosse um vento soprano, fuuu!!!, uma fogueira pra ela
acender. Cê num abana uma fugueira pra ela ‘cender? Assim é o corinho e a palavra. Cê
num rega uma pranta pr’ela crecê? Assim é a palavra e o corinho 260.
Nos variados ‘cultos pentecostais’, pode-se observar que elementos performáticos de vários
níveis se entabulam, concatenando, ao fim das contas, uma ordem em meio à
heterogeneidade ritualística. Associadas aos sermões, testemunhos de fiéis e às demais
manifestações anárquicas do culto (CORTEN, 1996), as realizações musicais do culto
pentecostal se particularizam por conta dos agregados da produção sígnica deste grupo
religioso, a saber, a ação [e reatualização] do mito na e através da narrativa das canções,
especificamente nos chamados “corinhos de fogo”.
260
Irmão Leandro.
367
relação simbólico-dialógica com outros universos religiosos, particularmente o culto afro.
Vale lembrar Prandi (2005), ao destacar a importância conferida ao elemento ‘música’ no
candomblé. Naquela religião, a música não representa simplesmente um “consumo estético
para a fruição de sentimentos e emoções” (p. 179); antes, trata-se de um instrumento de culto
e de identidade com o mundo espiritual. Ora, as louvações, glossolalias e expressões
gestuais no culto pentecostal – inclusive durante as músicas, são, da mesma forma, bens
simbólicos instrumentalizados a serviço de Deus, signos de manifestação pública das
intenções religiosas, manifestações fortemente pronunciadas no corpo dos crentes,
deslocando-os, ritual e dialeticamente, do espaço profano ao sagrado, sacralizando o profano
na ação sagrada de ser “vaso nas mãos do oleiro”, instrumento de Deus.
Considerações finais
Ao afirmar que “sob o símbolo, é preciso atingir a realidade que representa e que lhe dá sua
significação verdadeira”, Émile Durkheim pontuava uma questão que emergiria para
todo sempre na observação dos fenômenos religiosos (2008, p. 30). Porque entre o sentido e
o símbolo ocorrem processos contínuos de articulação de códigos e informações que
conformam a realidade existencial à lógica dos mitos (GEERTZ, 2008). E para além do
interpretante individual, há o sistema de crenças que reúne e aloja em torno de si a estrutura
simbólica que funciona como norte ideológico, conferindo sentidos de vida e existência no
mundo objetivo.
Dessa forma, o universo simbólico [religioso] confere sentido aos fenômenos que
documentam os acontecimentos de um grupo; o r a , a dinâmica da própria vida é regida
pelos padrões da verdade mitológica, e o espaço onde vivem as crenças é o espaço
sagrado, onde os mitos se reatualizam (ELIADE, 2008). E se reatualizam em várias
instâncias da sensibilidade, através dos sentidos. Um exemplo está nas visões e revelações,
manifestações carismáticas ancoradas na leitura pentecostal das narrativas bíblicas.
Logo, as expressões performáticas, para além de elementos rituais, são linguagens que
transcrevem a crença. Nascida nos mitos, ela viaja na diacronia da história através da
reescrita continua da cultura. A religião é um texto na cultura, destaca Nogueira (2012). O
culto é um texto na religião. As músicas religiosas, as performances e expressões rituais são
textos no culto. Pode-se ler o texto do culto, do fenômeno. Este fenômeno acontece, é escrito
368
à nossa frente, no espaço semiótico261 por onde os signos se articulam no processo de
formação de sentido (LOTMAN, 1996). Logo as performances rituais constituem-se
materialidade do sistema de crenças, da estrutura simbólico-mitológica do grupo. É a
comunicação que torna o diálogo possível. Que torna o conhecimento possível. Que
torna a religião possível. Promover a leitura do texto cultural-religioso, por via de seus
constituintes cênicos e a análise “ interpretativa” dos veículos de linguagem e expressão do
grupo é [também] uma forma de ler tais expressões, entendendo (ou pelo menos tentando
entender) o sentido nelas encerrado.
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261
Esse espaço semiótico diz respeito à semiosfera, termo cunhado pelo semioticista estoniano Júri Lotman
(1990;1996), fundador da Semiótica da Cultura (É Segundo Lotman, é unicamente através deste espaço, a
semiosfera, que se dão as relações simbólicas entre os signos). Vide SCHNAIDERMAN, 2010 e MACHADO,
2007. Observar características semióticas das experiências carismáticas, aqui, é justamente a tentativa de “uma
etnografia dos veículos que transmitem significados” (GEERTZ, 2012, p. 122).
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373
374
Vadeia dois dois, vadeia no mar,
A casa é sua dois dois, quero ver dois dois vadear
Francy Eide Nunes Leal1
Introdução
Neste artigo considero a religiosidade como fator fundamental da realidade social que pode
desvelar as sócio-dinâmicas da comunidade quilombola Terra Dura, situada no interior do
Território Negro da Jahyba às margens do rio Verde Grande no município de São João da
Ponte. A religião vivenciada individual e coletivamente pela interação com os pares e com os
membros dos grupos sociais da circunvizinhaça, resulta da articulação entre o catolicismo
popular e a umbanda. E a religiosidade é vivida por meio de um conjunto de ritos em que há o
manuseio de símbolos sustentados por crenças que dão fundamento à cosmologia dessa
comunidade. Este conjunto, de práticas rituais, símbolos e códigos de conduta possibilitam o
ajustamento dos comportamentos nas relações sociais vividas no interior da comunidade e
com as circunvizinhanças. A gramática social desse grupo é transmitida no cerne da família
pela oralidade e pelas práticas corporais, conhecimentos, crenças e valores, que são
incorporados pelos homens, mulheres e crianças de Terra Dura em seus processos de
socialização. No ato de celebrarem seus Guias espirituais e santos protetores essa comunidade
negra se recria e se reafirma em suas relações intercomunitárias.
Terra Dura é uma comunidade quilombola situada no limite do município de São João da
Ponte com o município de Janaúba, no norte de Minas, é composta por dezoito famílias e um
total de setenta membros entre mulheres, homens e crianças. Localizada às margens do rio
Verde Grande, a comunidade é circundada pelas comunidades, também negras, Barra, Sete
Ladeira e Nativos – atualmente chamada de Bela Vista – e pela comunidade de brancos,
Manicós. Saliento que a coletividade se autorreconheceu como comunidade remanescente de
quilombo em consonância com o disposto constitucional, foi “certificada” pela Fundação
Cultural Palmares como tal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária já deu
partida para o processo de regularização fundiária.
1
Mestranda em Antropologia Social pela UFG, bolsista Capes. Contato: francyeide@hotmail.com.
375
membros e das comunidades que a circundam vivenciar ricos processos rituais que são
sustentados por um conjunto diversificado de símbolos e de códigos religiosos e de conduta
social. Este conjunto possibilita o ajustamento dos comportamentos nas relações sociais
vividas no interior da comunidade e com as circunvizinhanças. Considero com Geertz que;
Em Terra Dura, múltiplos símbolos são manuseados nos rituais religiosos e são lidos por mim
para compreender a religiosidade vivida localmente pelos indivíduos e pela coletividade, seja
no domínio propriamente religioso ou no domínio mundano porque os significados dos
símbolos deslizam para os processos sociais que afetam as relações dessa população negra
com o mundo que a cerca.
Iluminada por estes dois antropólogos procuro refletir sobre a religião como fenômeno
fundamental para entender os processos sociais vivenciados em Terra Dura, que faz da
coletividade e de cada indivíduo um sujeito quilombola.
376
Caminhos metodológicos
Neste trabalho procuro apresentar os eventos presenciados por mim quando fui a campo em
Janeiro de 2011 e setembro de 2011 e que constituem o ciclo festivo de Cosme e Damião.
Parafraseando Turner (2005), vejo o ritual como um sistema de significados composto de uma
multiplicidade de festas e eventos religiosos que ocorrem durante o ano. A vivência da
religião nessa comunidade é marcada pelo culto aos santos no qual é realizado o pagamento
de promessas.
377
O Terço a Cosme e Damião
Qualquer religião ou culto religioso para Radcliffe Brown (1989) implica um conjunto de
ideias ou crenças e obrigações. Estas podem ser positivas ou negativas e em suas
concretizações os fiéis podem realizá-las ou delas se absterem. A esse conjunto de ações e
abstenções o autor nomeia como rito.
embora não o único, em que os símbolos religiosos operam para criar e sustentar a crença é
evidentemente o ritual (...) Para a esmagadora maioria dos que aderem a religião em
qualquer população, contudo, o engajamento em alguma forma de tráfico ritualizado com
símbolos sagrados é o principal mecanismo por meio do qual eles chegam não só a
encontrar uma visão de mundo, mas, na realidade, a adotá-la, internalizá-la como parte de
sua personalidade (2004, p. 107).
Em sua teorização sobre os símbolos rituais, Turner (2005) distingue os mesmos em duas
categorias, a primeira, os “símbolos dominantes” - que tendem a ser fins em si mesmo – e a
segunda – os “símbolos instrumentais” – que são os elementos variáveis que servem de meios
para fins implícitos ou explícitos de um dado ritual.
378
Purificando o templo
A agente do Sagrado não participa do processo de purificação, dado ela ser proibida de
participar, pois no momento de incorporação dos Guias seu corpo é utilizado como aparelho
para ação dos mesmos. Nem se aproxima da igreja no momento de purificação, pois seu corpo
material não suporta tanta força, tanta energia negativa que é colocada para fora do templo e
pode adoecer se tiver contato com as mesmas.
Debulhando o rosário
A preparação para o terço começa cedo, a Dona Zefa acorda por volta de cinco horas da
manhã e prepara o café. Junto com sua família cuida dos animais e da horta para em seguida
dar faxina em sua casa, pois a noite terá muitas visitas de gente da redondeza como Sete
Ladeiras, Manicó e Nativos. Em Terra Dura, e creio que em toda comunidade negra rural, o
zelo, a higiene e o cuidado com a casa significam status e simbolizam a presença feminina na
família. Quando é dia de comemoração ou quando acontece a gira, ou batuque religioso,
algumas mulheres, principalmente Dona Zefa, fazem biscoitos, bolos, roscas, chá e café, para
oferecer às visitas. A alimentação das pessoas é importante, pois o ritual se estende até a
madrugada e não tem previsão de término.
379
afro-brasileiro se reúnem com frequência para tomar um cafezinho, comer um doce, etc,
conforme discutido por Pólvora (2001).
Vestida de branco e com o terço na mão a Mãe de Santo senta ao lado da mesa, separada das
demais pessoas. Nesse momento prepara-se tanto corporal como espiritualmente para a
incorporação, ou seja, o ápice da celebração. Quem reza todo o terço são suas médiuns,
geralmente as gêmeas Luciana e Luciamar, que possuem essa obrigação com os Guias.
Nildinha, com o incenso, purifica o ambiente, as mulheres e crianças rezam a Salve Rainha.
Mulheres e crianças se organizam nos bancos e alguns dispersos pelo chão. As mães que tem
filhos pequenos levam lençóis ou lonas, para acomodar as crianças quando adormecerem. Os
homens casados se organizam do lado de fora do templo, sentados em cadeiras ou de cócoras
e passam todo o evento em conversas diversas, adentram na igreja somente para receber a
benção dos Guias espirituais. Os rapazes e os meninos permanecem em alguns momentos no
interior da igreja. Somente o Senhor Benjamim, por ser médium e mesário, permanece todo o
tempo dentro do templo.
O terço é iniciando por um ato penitencial em que se pede a remissão dos pecados. Em
seguida reza-se o Credo quando se afirma a crença na Santíssima Trindade, um Pai Nosso e
uma Ave Maria. Após esse momento inicial são rezadas as cinco dezenas de ave-marias
intercaladas por um Pai Nosso. Ao final a Salve Rainha e a Ladainha de Nossa Senhora são
cantadas, assim como três ou cinco benditos, que são cantigas religiosas. Para rezar o terço as
mulheres manuseiam o catecismo da igreja católica, que é um livro onde se encontra a
estrutura do terço, diversas orações e cânticos, Cada uma possui o seu próprio livro que é
380
adquirido em Bom Jesus da Lapa quando, em setembro, fazem romaria a este importante
centro de peregrinação no sertão brasileiro.
Terminado os benditos Nildinha acende duas velas lado a lado, uma vermelha e outra
amarela, que simbolizam Cosme e Damião. Cada orixá possui cor própria. As velas
representam junto com o tocar do adijá , os panos e as guias2, ou seja, colares feitos de contas
com cores diferenciadas, o portal que liga as entidades ao mundo humano. Ao mesmo tempo,
a vela representa a luz necessária para dar força e sustento ao ato religioso.
Em seus estudos sobre os rituais Ndembu, Turner (2005) informa que símbolo é algo
encarado pelo consenso geral como tipicamente ou representando ou lembrando algo através
da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou pensamentos. Assim,
as velas, os panos, as guias, os incensos e o tocar do adijá possuem para os membros da
coletividade são associados aos orixás que os protegem e que são invocados durante os cultos
religiosos.
Rezamos tanto um Pai Nosso como uma Ave Maria em intenção de todos os santos do céu
e da terra, as imagens que no presente altar, os santos de nossa guarda de cada um de nós
que está aqui presente. Pedimos a Nossa Senhora Aparecida o socorro e que tende
compaixão em vossa piedade de nós. O socorro a todas as crianças nossas, livra-nos do
perigo e do castigo, do inimigo, da violência, livra-nos dos assassinos, dos males
contagiosos, das doenças ruins. Peço a vós, Nossa Senhora Aparecida, que nos cubra com
saúde com o seu manto divino, hoje, por amor e amanhã, por todos os santos dias. Que vós
há de nos abençoar, nos socorrer e nos defender. Que nunca vai chegar meu Deus, a
tempestade, vós há de nos arrebater. Nossa mãe Maria e também Nossa Senhora da Guia,
Nossa Senhora do Desterro, Nossa senhora do Perpetuo Socorro e Todos os Santos e Santas
2
Informo ao leitor que utilizo a grafia g minúscula quando me referir aos colares de contas que representam o
orixá e com g maiúsculo quando se refere ao próprio orixá ou Guia Espiritual.
381
que estão presentes em teu altar, Menino Jesus de Praga e Divino Espírito Santo (Dona
Zefa, Terra Dura em 2011).
Após o oferecimento e a reza do Pai Nosso e da Ave Maria, assembleia repete o ato e, assim,
é aberta a segunda etapa da oferenda.
Humildemente, meu Jesus, oferecemos esses dois Pai Nossos e essas Ave Marias, Santa
Marias e esse terço que nós rezamos em intenção de Nossa Senhora Aparecida, São José,
Menino Jesus de Praga, São Cosme e Damião, Senhora do Desterro, Senhora do Perpetuo
Socorro, Santo Expedito que é o santo das nossas causas urgentes, Senhor Coroado, São
Roque e Senhora dos Livramentos, Santa Joana D’Arc, Santa Terezinha, Nossa Senhora
das Cabeças, Senhora do Varre Tudo, que varre todos os males, todas as dificuldades.
Combate a mortandade, livrai–nos todos do inimigo e das tentações, conforta nossos anjos
e santas almas. Por todo santo dia que chamamos por vós, hoje, agora e amanhã, por todo
dia. Socorre as crianças e todos nós pecadores. Perdoai nossos pecados pelo amor de Deus.
Varre pela minha vida Deus [todo o mal]. Tem compaixão de nós aqui presentes, aqui no
altar, tem compaixão, perdoa-nos. Pelas famílias que estão chorando, tende compaixão,
não deixe cair [uma tempestade eminente], que nós estamos aqui com o coração doendo
pedindo a vós não deixe cair aqui pelo amor de deus. Tenha compaixão dos vossos filhos e
eu peço com o coração aberto, com minha fé viva, seja por mim, por minha família, por
essa romaria que aqui está presente, cada um de nós presentes tanto eu como minha família,
como eles também sobre todos nossos parentes que estão aqui fora, derrama a santa benção
do poder, do milagre e do sustento nesse beneficio que eu peço a vós. Perdão, todos nós
somos pecadores oh Deus, sempre nós temos que sofrer, mas nós temos que lutar. Nossa
mãe Maria valei-me, tenha compaixão de nós, nunca deixe nós sofrer meu Deus. Socorre-
nos meu Deus. Recebe esses Pai Nossos com essas Ave Marias, esse terço que nós
rezamos, esse pedido que nós estamos fazendo, se tiver bem feito, rezado e oferecido vós
aceitai, se não tiver rezado e oferecido o senhor há de perdoar , se nós não souber rezar e o
oferecer meu Deus, meu senhor Jesus cristo e a Virgem Santíssima mãe do meu senhor...
(Dona Zefa, Terra Dura, em 2011).
382
por todos em resposta à Mãe de Santo. Esta fala o nome dos santos da sua mesa e cada nome
os romeiros respondem: rogai por nós. No arrematar é o momento que a Mãe de santo pede
benção e proteção para si aos seus Guias que irá incorporar.
Dai sustento e dai firmeza, proteção! Com as forças do Santo Poder, força de milagre, eu
me entrego na mão de vós. Nos socorre! Nos defenda! Minha guia me proteja, me ajude
minha mãe Aparecida vencer minha batalha que eu sempre peço todo santo dia. Por Deus e
a Virgem Maria que cada um de nós seja protegido, varrido e defendido do mau e do
perigo, do castigo, do mal contagioso, das tragédias, das travessas, da violência, peço a vós.
Esses passos que nós damos vós estais na nossa guia, nossa companhia tanto à noite como
no dia que eu peço (Dona Zefa, Terra Dura, 2011).
Ao finalizar o arremate com a seguinte frase, esses passos que nós damos vós estais na nossa
guia, nossa companhia tanto à noite como no dia que eu peço (Dona Zefa, 2011). Ao terminar
de pronunciar as palavras grifadas o seu corpo é tomado por uma expressão forte, com
movimentos trêmulos, a face se cerra, uma voz forte e pausada toma conta dos lábios da
possuída. Neste momento ele torna-se um “aparelho” para que um Guia espiritual possa
estabelecer relações com a comunidade religiosa. Vestidos de brancos, os assistentes da Mãe
de Santo dão amparo ao seu corpo e a vestem com uma túnica, também branca, que somente é
utilizada quando o Guia se manifesta. Importante salientar que o aparelho não tem
conhecimento de como está vestido.
O Guia que abre a corrente geralmente é o Arcanjo Gabriel, mas quando presenciei a
incorporação Cosme e Damião foram eles que iniciaram a mesa. Chegam alegres, saudando
seus romeiros e cantando. Após todo o frenesi, eles começam a falar para seus adeptos, como
uma pregação em que, pelo poder de coerção e com autoridade chamam a atenção das
pessoas. Os Guias, então, relatam que as tragédias e as catástrofes que estavam ocorrendo no
mundo eram por falta de oração. Informa, cobrando, que as pessoas da comunidade andassem
com o rosário junto a eles sempre rezando para evitar catástrofes naturais que poderiam
atingir Terra Dura. Importante salientar o respeito que os membros da comunidade religiosa
383
têm para com as palavras dos seus Guias Espirituais. No dia seguinte as pessoas portavam
rosários em seus pescoços, sejam crianças, idosos e, até mesmo, um recém–nascido, todos
temendo o castigo divino. Para essa gente, há em sua memória uma historia de sofrimento
com as enchentes do rio Verde Grande em que a água levou casas, derrubou plantações,
matou animais e deixou muitos desabrigados.
Terminada a preleção de Cosme e Damião, é organizada frente a ele uma fila para que eles,
com um frasco de perfume em mão, façam o sinal da cruz com o líquido vinculado a sua
sacralidade em seus adeptos. Ao mesmo tempo eles cantam diversas canções. Como a voz dos
mesmos nesse momento é muito gutural não consegui apreender os conteúdos que são
enunciados.
O batuque religioso
Em uma das minhas idas a campo presenciei uma gira, como em Terra Dura é denominado o
batuque religioso. Na cosmologia religiosa afro-brasileira a gira é o momento onde os orixás
incorporam na Mãe de Santo e ou nos Filhos de Santo que tem permissão para incorporá-los.
As pessoas, todas vestidas de branco batem palmas e se movimentam com passos que
lembram a dança do samba, com vai e vem dos quadris evidenciando um caráter de
sensualidade das pessoas. Nesta comunidade negra às margens do rio Verde Grande, a dança
é localmente denominada Lundu.
384
ocorre, então, a incorporação e começam a haver rodopios pelo salão e o tambor começa a ser
tocado quando a agente do sagrado entra na roda e começa a cantar. As batidas do tambor são
fortes, viscerais, produzindo um frenesi em quem ouve e estimulando o corpo a se
movimentar. Musicalidade e movimentos corporais é um binômio inseparável nesse ritual.
Os Filhos de Santo entoam cânticos de invocação aos Guias. Essas canções e suas melodias
são vinculadas a cada um dos Guias, com suas especificidades. As letras exaltam as
características de cada um e o toque do tambor propicia movimentação de corpo conforme as
características do Guia incorporado.
Chegou crispim,
Crispim Crispiniano,
Chegou no terreiro
Chegou vadiando
(várias repetições)
E, então, Crispim e Crispiniano que são Guias gêmeos e crianças, incorporam trazendo suas
características que é a brincadeira excessiva e a malinesa. O toque do tambor faz com que o
passo na gira da roda seja saltitante parecendo uma criança sapeca a correr pelo terreiro, é um
saltito suave. O Crispim, então se arrasta no chão como uma criança e traz na face um sorriso
sapeca.
O corpo de Dona Zefa, que é uma senhora de cinqüenta e sete anos, se comporta como uma
criança de sete a oito anos. Essa transformação ocorre porque ela cede seu corpo como
aparelho para a incorporação do Guia espiritual. Ao ser possuído por seu orixá, o Filho de
Santo tem seu corpo alterado em sua totalidade, não, apenas, na postura corporal, mas
também e muito em sua expressão facial. É no rosto que ocorre a primeira modificação visível
quando da ocupação por um orixá em seu Filho de Santo.
385
Em seguida a Cabocla Jurema possui seu aparelho e com a guia verde e branca na mão
intercala momento curvado para baixo com as mãos encobrindo o rosto, com momentos em
que em pé e com os braços abertos ela se mostra em sua sensualidade. Seu rosto traz os olhos
fechado e com a cabeça faz movimentos de negação. Assume uma fisionomia seria mesclada
com um gingado sensual. Sua principal característica é a sedução e a exaltação da sexualidade
e canta com acompanhamento de todos os presentes, com sua voz doce e amigável:
(várias repetições)
Caboclinho da Jurema,
(várias repetições)
386
Chamei! Chamei! Chamei!
(várias repetições)
São nesses momentos de incorporação que Barros e Teixeira (1989) afirmam poder ser
compreendida a gramática corporal. Para eles, ela é marcada por uma variedade de códigos e
símbolos. [...] Crenças e sentimento básico na vida social dos Terreiros estão associados e são
remetidos ao corpo humano, constituindo-se um conjunto de representações que ultrapassam
as características biológicas inerentes ao ser humano (BARROS E TEIXEIRA, 1989, p.40).
Em Terra Dura para terminar a brincadeira Cosme e Damião são invocados. Eles sendo os
donos da corrente religiosa que ali girando ao som de palmas, toque do tambor e na
sensualidade do Lundu uniram-se seres divinos e humanos para festejarem a relação existente,
vêm para fechá-la. O ponto entoado é o seguinte:
Vadeia no mar,
387
Esse orixá é muito alegre e traz consigo a felicidade estampada no rosto, sendo uma das suas
características mais relevantes o cuidado e o carinho pelas crianças. O acessório que usa para
marcar seu traço são balas distribuídas a todos. As crianças presentes ficam eufóricas e
alegres. Eles ainda sugerem que de dois a dois as pessoas se dêem as mãos, cantem e dancem
o seu ponto. Ele adora dançar com as crianças e é perceptível em seu rosto sua satisfação ao
bailar.
Para finalizar, o dono da corrente abençoa e faz o sinal da cruz com perfume em cada
romeiro. Em seguida ele pede que cantem novamente o seu ponto enquanto vai para o centro
da roda. Ele dança alguns segundos e desincorpora.
Todos os orixás que incorporaram nesse batuque pediram perfumes e incenso o que reafirma
leitura feita por Pólvora (2001) nos batuques religiosos de Porto Alegre em que a visão, o
olfato e o paladar não são só estimulados, mas intensamente exercitados na religiosidade afro-
brasileira.
Percebi na fala de todos os Guias uma crítica aos fieis, remetendo ao tempo de antes como
melhor, como a fala do Caboclo Fita Vermelha que disse que não brinca mais porque o povo
do lugar não ajuda nós. Assim ele chama a atenção dos romeiros que ficam temerosos, com
olhos arregalados e com o corpo encolhido.
Considerações finais
Articulando seu dom espiritual e suas obrigações religiosas, Dona Zefa instaurou um
calendário de festas e rituais religiosos na comunidade em que vive. Vale ressaltar que o
processo de construção do calendário religioso em Terra Dura não rompeu o elo dessa
388
coletividade com as outras comunidades vizinhas, mas ampliou a possibilidade de usufruto
religioso.
Esse calendário é constituído por rituais religiosos, associados a obrigações com os Guias
espirituais e pagamento de promessas aos Santos protetores.
A religiosidade nessa comunidade negra rural é marcada pela articulação de crenças e ritos
vinculados ao catolicismo popular e à umbanda, sendo sustentada por um conjunto múltiplo
de crenças, de símbolos, de códigos religiosos e de formas de conduta que propiciam a cada
membro da comunidade e dos grupos que a circundam vivenciar processos rituais, que
estabelecem as regras morais tecidas interna e externamente.
No estando lá pude perceber que as hierarquias religiosas refletem a estrutura social desse
grupo, marcado pela fé e força de mulheres e homens que buscam melhores condições de vida
para seus pares e juntos resistem subalternamente aos processos de expropriação que sofreram
e sofrem.
A religião é vista por mim como o elo mais denso que articula os membros de cada uma das
comunidades articuladas pelo Centro Espiritivo entre si e com sua circunvizinhaça. A cada
rito, a comunidade religiosa constrói a si mesma e a seus membros pela atualização de seu
modo de vida, com suas regras morais, seus pactos sociais que vincula essa coletividade
religiosa e seus membros ao mundo afro-brasileiro em sua especificidade local.
389
Referências
__________. Simbolismo ritual, moralidade e estrutura social entre os Ndembu. In: Floresta
de Símbolos. Tradução de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Niterói: Editora da
Universidade Federal Fluminense,2005, pp. 83-94.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3ª. Edição. Brasília: Editora da UnB, 1994, Volu
COSTA, J. B. de A. Do Tempo da Fartura dos Crioulos ao Tempo de Penúria dos Morenos.
Identidade através de Rito em Brejo dos Crioulos (MG). Brasília: Departamento de
Antropologia/UnB, 1999. (Dissertação de Mestrado).
ANJOS, José Carlos Gomes dos. O corpo nos rituais de iniciação do batuque. In LEAL, O. F.
(Org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. 2 edição. Porto Alegre: Ed. Da
UFRGS, 2001, pp. 137-152.
390
391
GT4 – Dietrich Bonhoeffer: ética e teologia a
serviço da vida
Coordenador
Carlos Caldas
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor do IBAD.
Comentador
Ricardo Gouvea
Doutor em Teologia pelo Westminster Theological Seminary. Professor do Mackenzie.
Resumo
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), pastor luterano e teólogo alemão notabilizou-se não apenas
por sua contribuição à reflexão teológica no século XX como também por sua postura
ecumênica e sua resistência ousada e comprometida até às últimas consequências ao governo
nazista em seu país. Bonhoeffer é um dos poucos teólogos contemporâneos que é respeitado e
estudado por pessoas em todo o espectro teológico, desde círculos evangelicais conservadores
a liberais abertos, por protestantes, evangélicos, pentecostais e católicos. Bonhoeffer, sem
embargo de sua confessionalidade luterana convicta, foi ativo integrante do movimento
ecumênico protestante (que depois da guerra seria organizado como o Conselho Mundial de
Igrejas). Quanto à sua trajetória de vida, vale lembrar que se valendo de sua posição de
integrante da Abwehr, a inteligência militar alemã da época, ajudou a salvar a vida de judeus.
A radicalidade de sua atitude eventualmente o levou à morte. Daí pode-se afirmar que em
Bonhoeffer ética e teologia estão a serviço da vida. Pode-se afirmar ainda que tanto sua
reflexão teológica como sua prática de vida são exemplos de tolerância e aceitação das
diversidades religiosas.
392
Contemporaneidade e Discipulado: Interfaces entre o pensamento
do humano em Zygmunt Bauman e Dietrich Bonhoeffer
José Nilberto de Oliveira Júnior1
Introdução
A presente sociedade, com apenas um clique, pode saber o que está acontecendo nos lugares
mais remotos, mas às vezes não é capaz de perceber o que acontece a sua volta, entre elas, as
mudanças repentinas e surpreendentes de pensamento, vontades e atitudes; desvalorização de
absolutos, perda de identidade de seus integrantes; superficialidade e fragilidade dos
relacionamentos. Tudo isso em virtude da valorização excessiva do consumo, da posse de
bens e do individualismo, fatores que aumentam a distância e a afetividade entre as pessoas.
A igreja, como um organismo vivo, é afetada, direta ou indiretamente, por todo esse contexto,
uma vez que ela está situada no tempo e no espaço. Essas influências vão constantemente de
encontro aos valores cristãos que perpassam o tempo. Diante disso, é importante verificar que
valores, apesar das mudanças sociais devem ser preservados para que a igreja permaneça fiel
ao discipulado proposto por Jesus Cristo. Para isso, é importante examinar as propostas de
Dietrich Bonhoeffer para o ser humano contemporâneo, contrapondo a leitura de Zygmunt
Bauman, sociólogo polonês, faz desse contexto.
No presente estado da sociedade, os cristãos estão cada vez menos comprometidos com o a
igreja. Por motivos banais, ou mesmo sem motivos, saem de suas comunidades à procura de
outras que lhe satisfaz. Com esse cenário, o objetivo é a própria satisfação, causando cada vez
mais o desapego à instituição ou a comunidade de fé. Um dos diagnósticos que Bauman dá a
presente sociedade é que ela se encontra num estado de emancipação. Situação esta que um de
seus desejos é torna-se livres, sendo ser livre significa “não experimentar dificuldade,
obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou
concebíveis” (BAUMAN, 2001, p.22).
1
Graduando em Teologia pelo Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD). GP Dietrich Bonhoeffer: ética
e teologia a serviço da vida, tendo como orientador o Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho. Contato:
nilbertojr@gmail.com.
393
No passo em que a sociedade vive dessa forma, Bonhoeffer acreditava que o verdadeiro
cristão deve seguir e obedecer a Jesus Cristo. Afirma que no discipulado “não se trata
essencialmente de decisões a favor ou contra essa ou aquela ação; trata-se sempre da decisão
contra ou a favor de Jesus Cristo” (BONHOEFFER, 2004, p. 140). Assim, todas as decisões
passam pelo crivo da aprovação de seu discipulador.
Objetivos
O presente trabalho tem por objetivo verificar as interfaces entre o pensamento do humano em
Zygmunt Bauman e Dietrich Bonhoeffer e propor o discipulado deste, teólogo alemão, como
paradigma ao homem contemporâneo. Para isso, será apresentada uma breve biografia dos
autores mencionados e apresentado o contexto histórico comum a ambos, que tiveram rumos
diferentes. Em seguida, será apresentada a visão do humano de Zygmunt Bauman,
concentrando-se no ser humano líquido, individualizado e consumista (segundo capítulo); e a
visão do ser humano compromissado, que vive em comunhão e que vive para o outro na
perspectiva de Bonhoeffer (terceiro capítulo). Não se tem como objetivo dissecar por
completo o pensamento do humano de ambos os autores, visto que suas obras são vastas
demais para a intenção do trabalho em questão.
Justificativa
Com isso, o presente trabalho justifica-se na tentativa de aplicar as ideias de Bonhoeffer para
a vivência ao homem contemporâneo, visto que seu exemplo ficou como inspiração para seus
leitores e seus pensamentos ainda ecoam no tempo. Barcala (2010, p. 9) foi feliz quando
descreve sobre Bonhoeffer, afirma que “essa fé íntegra, que encontra expressão na vida, e sua
394
teologia, que busca respostas concretas na vida como um todo, são elementos que tornam o
legado de Bonhoeffer tão atrativo”.
Fundamentação Teórica
“Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final
do século XX” (HALL, 2005, p. 8). Neste sentido, Bauman tem uma significativa quantidade
de obras escritas sobre a contemporaneidade e o comportamento das pessoas nesse tempo.
Um mundo em contínuo movimento faz com que seus habitantes também tenham a mesma
atitude, mesmo sem saber para onde devem ir. Por consequência disso, o ser humano se sente
inseguro, os deslocamentos rápidos fazem com que se preocupe em sempre mudar, e
mudanças contínuas, de forma que “deixa qualquer pessoa na constante preocupação de
manter o ritmo das mudanças, de não ficar de fora dos acontecimentos”.2
2
CUGINI, Paolo. Identidade, Afetividade e as Mudanças Relacionadas na Modernidade Líquida na Teoria de
Zygmunt Bauman. São Paulo, SP: 2008, p. 162. Disponível em:
http://www.faculdadesocial.edu.br/dialogospossiveis/artigos/12/artigo_10.pdf > Acesso em 03 de Agosto de
2013, p. 162.
395
Segundo Cugini (2008, p. 162), “tudo flui de um jeito extremamente rápido, de uma forma
que, aquilo que era certo ontem, não é mais. Neste mundo líquido, assistimos a algumas
passagens importantes, que marcam o novo clima cultural”. Numa entrevista, Bauman afirma
que:
Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado
da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de
manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e
convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e
verdades “auto-evidentes”. É verdade que a vida moderna foi desde o início
“desenraizadora” e “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e
Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente “reenraizado”,
agora as coisas todas [...] tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. 3
A sociedade líquida foi composta a partir de derretimentos formados pela modernidade, foi
“fruto maduro do desmoronamento da modernidade”.4 Bauman (2001, p. 10) afirma que “os
primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais,
os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e
restringiam as iniciativas”.
Desse modo, de uma sociedade que tinha lealdades tradicionais, que fixavam num solo uma
oportunidade e por lá ficavam, construíam suas carreiras e firmavam sua vida com suas
famílias, a liquidez forçou a “não fixar-se muito fortemente, sobrecarregando os laços com
compromissos mutuamente vinculares, pode ser positivamente prejudicial, dadas as novas
oportunidades que surgem em outros lugares” (BAUMAN, 2001, p.21). Assim, tudo se torna
mais efêmero e como afirma Cugini (2008, p. 169), “permanecer fixo, com uma identidade
fixa, neste mundo rápido e fluido, não é aconselhável”.
Nesse contexto líquido, Bonhoeffer se comportou como indivíduo diferente. Num momento
em que a igreja alemã estava tumultuada, já que alguns líderes sentiram a necessidade de
aderir ao Parágrafo Ariano no intuito de conciliar com o regime nazista (METAXAS, 2011,
p.166-167), Bonhoeffer manteve seus ideais, comprometido por sua causa. Para ele, há uma
vontade absoluta que domina que é “fazer a vontade de Deus em conformidade com a
revelação de Jesus Cristo” (BARCALA, 2010, p.81). E a ainda afirma que a “‘vontade de
3
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A Sociedade Líquida de Zygmunt Bauman. São Paulo, 2003.
Entrevista concedida à Folha de São Paulo, 19 de Outubro de 2003.
4
Ibid, p. 163.
396
Deus’ é sempre única e consiste na concretização da vida de Jesus Cristo no ser humano e no
mundo” (BARCALA, 2010, p.81).
Para que tal concretização seja feita, Bonhoeffer afirma que é necessário seguir a Cristo, ser
seu discípulo. Pois,
O chamado concreto de Jesus e a obediência simples têm sentido irrevogável. Jesus chama
a uma situação concreta em que a fé se torna possível; chama de forma concreta, e também
quer ser compreendido concretamente, por saber que só na obediência concreta o ser
humano fica livre na fé (BONHOEFFER, 2004, p. 41).
Ser discípulo implica necessariamente em levar a cruz. O teólogo alemão ainda afirma que
“quem não quiser tomar a sobre si a cruz, quem não quiser expor sua vida ao sofrimento e à
rejeição por parte dos seres humanos, perde a comunhão com Cristo e não é seu discípulo”5
Somente carregando a cruz e sofrendo o que é imposto ao discípulo é que se torna um
seguidor, pois compartilha da comunhão do crucificado (BONHOEFFER, 2004, p. 61).
Segundo Mondin (2003, p. 206) Discipulado “não responde mais às exigências especulativas,
mas sim às exigências da vida espiritual”. Ainda afirma que Bonhoeffer se inspira numa amor
totalmente entregue a Jesus Cristo e no desejo de submissão a Ele. A vida cristã é sempre uma
opção de segui-lo e não um manual de doutrina. Mondin (2003, p. 224) afirma que “é em
Jesus Cristo que se define a relação de Deus com o mundo”. A verbalização da igreja ao
mundo deve ser a palavra de Deus ministrada. A verdadeira palavra “é a palavra da
Encarnação de Deus, do amor de Deus pelo mundo no envio do seu Filho e do Juízo de Deus
sobre a incredulidade”.6 É nesse sentido que a igreja se identifica com o discipulador, é a
comunidade de estranhos que se consola na cruz (BONHOEFFER, 2004, p. 61).
“Comunidade é, hoje, a última relíquia das utopias da boa sociedade de outrora” (BAUMAN,
2001, p.108). Parece que esse termo e seu significado vão se perdendo de forma que não será
muito difícil esquecer, pois o termo “rede” está substituindo o termo “sociedade” (BAUMAN,
2008, p.9). De encontro a isso, Bonhoeffer acredita que “facilmente esqueceu-se que a
comunhão dos irmãos cristãos é um presente gracioso procedente do reino de Deus”
(BONHOEFFER, 1997, p.12) e que “é bom derramar o coração na solidão e não engolir a
aflição. No entanto, quanto mais estou só, mais tenho desejo por comunhão com outros
5
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 8ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 48,
6
MONDIN, Battista. Os Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 224.
397
cristãos, por culto em comunidade, por oração e canto, louvor, agradecimento e celebração em
conjunto” (BONHOEFFER, 2007, p.30).
Ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura sua subjetividade se reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as
capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável (BAUMAN, 2008, p.20).
Percebe-se que a sociedade faz com que as pessoas sejam reduzidas à mercadoria. Em
contraposição a isso, o teólogo alemão tem em sua compreensão teológica que,
A Igreja é Igreja somente se estiver aí para os outros. Para começar, deve entregar tudo aos
necessitados. [...] A Igreja tem que participar das tarefas da vida comunitária, não
dominando, mas ajudando e servindo. Ela deve dizer às pessoas de todas as profissões o
que significa uma vida com Cristo, o que significa, ‘estar-aí-para-outros’ (APPEL;
CAPOZZA, apud, BONHOEFFER).
Metodologia
Realiza-se esse trabalho a partir da pesquisa bibliográfica, ou seja, está baseada em livros,
artigos e escritos acadêmicos. Não se tem como objetivo esgotar toda compreensão do ser
humano em ambos os autores em questão, visto que seus escritos são amplos e não teria como
dissecar todos eles nessa modalidade de trabalho.
Considerações finais
Este ensaio teve como objetivo verificar interfaces entre o pensamento do humano em
Zygmunt Bauman, focando nos aspectos líquido, individualista e consumista e em Dietrich
Bonhoeffer, dando atenção a outros três aspectos, o ser humano comprometido, o que vive em
comunhão e o que vive para o outro. É certo que o assunto é vasto e que demanda mais
pesquisas e considerações sobre o tema.
Referências
398
BARCALA, Martin. Cristianismo Arreligioso: uma introdução à cristologia de Dietrich
Bonhoeffer. São Paulo: Arte Editorial, 2010.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
METAXAS, Eric. Bonhoeffer. Pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão,
2011.
MONDIN, Battista, Os Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Editora Teológica,
2003.
399
400
Diálogo entre a filosofia de Friedrich Nietzsche e a teologia de
Dietrich Bonhoeffer
Manoel Ferreira da Silva1
Introdução
Friedrich Nietzsche
Nietzsche nasceu em 1844 e morreu em 1890, em Rocken dentro de um lar cristão luterano,
filho de pastor. Como filho de pastor teria o mesmo destino, o que não foi possível, pois o que
aprendeu sobre teologia se desfez quando ainda jovem deixou a sua fé nos estudos de
filosofia. O que lhe cercava eram indagações como Loren Eiseley aponta: o homem é a única
criatura no universo que pergunta: Por quê? Diferente dos animais que têm os seus instintos
para guiá-los, o homem não! Aprendeu a fazer perguntas. Quem sou eu? Por que estou aqui?
De onde vim? Durante anos estas e outras perguntas eram respondida conforme o sagrado2.
1
Graduando em Teologia pelo IBAD. Orientado pelo professor Carlos Caldas. Contato:
alexandre/ferreira88@hotmail.com.
2
CRAIG, William Lane. O absurdo da Vida sem Deus. “The Absurdity of Life without God”. Texto disponível
na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god.
401
sua A Gaia ciência o filosofo apresenta a parábola de um louco corendo pelas ruas em busca
de Deus, mas não consegue encontrá-lo. E ele afirma Deus estar morto!
Num dado momento até parece, e é o que muitos pensadores fazem, afirmar a morte real de
Deus. Nietzsche não matou Deus literalmente. O que fez foi uma leitura do seu tempo. De
fato o homem já vinha tomando atitudes radicais desde o século XVIII com o Iluminismo
onde as pessoas tomaram coragem de se expor deliberadamente como ateias. Passou-se a
travar uma luta contra tudo quanto é absolutismo ou totalitarismos ideológicos, que não são
contestados. Esse período foi marcado pela confiança no poder da razão para chegar a
essência das coisas: matéria, mente, natureza humana, sociedade e religião. Os pensadores
dessa época acreditava que o absolutismo alimentava a ignorância e a ignorância alimentava o
absolutismo (ALLEN; SPRINGSTED, 2011, p.224).
Diferente da pré-modernidade onde a teologia reinava como rainha de todas as ciências Deus
acima de tudo explicava e Nele se achava todas as respostas. Com o avança das ciências a
teologia perde o seu trono, Deus se torna desnecessário ao homem moderno que colocou o
mundo e a história sobre a razão esclarecida: o que era explicado em Deus o homem já
conseguiu explicar sozinho: por exemplo, com o advento do darwinismo, Deus deu um
grande passo para trás. A ideia teológica de uma criação especial imediata, somente pela
palavra de uma divindade caprichosa, fora descartada. Sem Deus a questão foi respondida de
forma natural.
O homem moderno se desvaleu de Deus sem deixar-lhe espaço em qualquer área da vida
publica, nem tão pouco permitir que ele se refugie na esfera pessoal e privada, no mais íntimo
do intelecto humano, por que de fato também já se encontra exposto e compreendido, à luz da
psicanálise. Com a ascensão da psicologia freudiana, Deus é lançado mais uma vez para trás.
Diante disso Nietzsche como todo bom filósofo faz uma leitura relevante do seu tempo. Na
realidade não errou quando disse que “Deus estava morto”. Muitos podem até interpretar de
maneira radical essa leitura, mas o que Nietzsche quis dizer na verdade é que Deus não serve
mais como legislador absoluto para o homem, porque ele mesmo explica seu significado.
Portanto a morte de Deus remete dizer que a crença no Deus cristão caiu em descrédito.
“Deus está morto”, o velho Deus foi desmascarado, sumiu do nada, isso é destacado nas
próprias palavras de Nietzsche (1990, p. 137):
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e
correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “procuro Deus! Procuro Deus!”? – E
402
como lá se encontravam muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso
uma grande gargalhada. Então ele estar perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como
uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num
navio? Emigrou? – gritavam e riam um para com os outros. O homem louco se lançou para
o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “ para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes
direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos assassinos! Mas como fizemos isso?
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora?
Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sois? Não caímos continuamente?
Para traz, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda “em cima” e “em
baixo”? não vagamos como que atrás de um através de um nada infinito? Não sentimos na
pela o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos
que acender lanterna de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiro a enterrar Deus? não
sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus estar morto!
Deus continua morto! E nós o matamos! (...) “o que são ainda essas igrejas, se os
mausoléus e túmulos de Deus?”
Dietrich Bonhoeffer
Dietrich Bonhoeffer nasce dezesseis anos depois da morte do filósofo Nietzsche, em 1906 na
cidade de Breslau e morre em Berlim 1945 como mártir enforcado pelo chanceler Adolf
Hitler. O pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer não apresenta nenhuma crise quanto às
palavras de Nietzsche levantadas acima. O que aconteceu, não é ato para desespero. No
crescimento da vida isso é algo normal e inevitável, segundo Bonhoeffer o mundo chegou a
maioridade:
O ser humano aprendeu a dar conta de se mesmo em todas as questões importante sem
apelar para a hipótese Deus. Nas questões cientificas, artistas e ética isto se tornou uma
obviedade que dificilmente alguém ainda ousaria questionar; mas desde cerca de 100 anos
isso vale, de modo crescente também para as questões religiosas, fica evidente que tudo
funciona também sem “Deus”, e tão bem quanto antes. Assim como no campo cientifico,
também na esfera humana em geral “Deus” estar sendo afastado cada vez mais da vida; ele
estar perdendo terreno (BONHOFFER, 2003, p. 434).
403
Segundo Stanley Grenz (2011, p.88), quando Bonhoeffer diz que o mundo chegou à
maioridade e não precisa mais de religião quer dizer que o mundo pode dispensar a
religiosidade. Crescia em Bonhoeffer uma forte preocupação sobre a forma que a igreja
deveria se relacionar com o mundo adulto. Por que de fato acreditava que “Deus”, das
lacunas, estava sendo expulso dele. Mas não era o Deus judaico-cristão, era um Deus da
religião tradicional invocado para preencher as questões do nosso entendimento sobre o
cosmos e nós mesmos. Obviamente como o avanço da ciência e o rumo em que ela tomou,
esse Deus foi banido totalmente da sociedade moderna, é tanto que Nietzsche o achou morto.
Tanto Nietzsche quanto Bonhoeffer parecem estar de acordo no mesmo pensamento de que o
homem não precisa desse “Deus”. A sua morte segundo Bonhoeffer é algo bom, ao passo que
esse “Deus” não é realmente o Deus do cristianismo genuíno. O quanto mais breve possível
nos livrarmos dele mais cedo possibilitamos para nós o Deus do cristianismo autêntico (Ibid.,
2011, p. 91). Nietzsche exclui totalmente a hipótese de Deus e não há outro. Como não admiti
a existência de Deus e com o despertar do mundo para sua fase adulta, junto com Deus
também morre a possibilidade da criação, da matéria, da vida, e da energia, por um ser
supremo.
Nietzsche entende que se o mundo não foi criado, logo já existia e que toda a realidade é
movida por uma força (MATTOZO, 2010, p.44). Craig destaca que se não há Deus, a vida em
si mesma é um absurdo, não tem significado, valor nem propósito maiores.3 A realidade e os
valores da vida em Bonhoeffer estão no Deus do cristianismo genuíno. Não é assim na ótica
nietzschiana que apresenta a vontade de poder como fundamento, e impulso que possibilita a
criação de valores e a afirmação da vida. Acredita num jogo de força que move o mundo e
envolve o homem em seus movimentos. Somos constituídos por uma vontade que é a
condição de possibilidade da existência humana, superação, de auto superação, vontade de
poder que nos dá à possibilidade de viver sempre a busca de algo, concluindo, pois a ideia do
ser humano estar sempre em movimento:
3
CRAIG, William Lane. O absurdo da Vida sem Deus. “The Absurdity of Life without God”. Texto disponível
na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god
404
E sabeis sequer o que é pra mim ―o mundo? [...] Este mundo: uma monstruosidade de
força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior
nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu
todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos,
cercado de ―nada como de seu limite, [...] mas antes como força por toda parte, como jogo
de forças e ondas de força ao mesmo tempo um e múltiplo, [...] eternamente mudando,
eternamente recorrentes, [...] partindo das mais simples às mais múltiplas, do mais quieto,
mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo,
e depois outra vez voltando da plenitude ao simples [...] esse meu mundo dionisíaco do
eternamente criar a si próprio, do eternamente destruir a si próprio, [...] sem nome para esse
mundo? [...] Esse mundo é a vontade de potência e nada, além disso! E também vós
próprios e nada, além disso! (NIETZSCHE, Apud MATTOZO 2010, p.44).
Vejamos que tanto em Nietzsche quanto em Bonhoeffer há uma aclamação a viver sem apelar
pela metafísica. Para Bonhoeffer a maioridade do mundo nos proporciona uma forma de
enxergarmos a imanência de Deus em nossas vidas, nos ajudar pela fraqueza e sofrimento no
mundo, deixar de lado a possibilidade de sermos ajudados pela sua onipotência transcendental
e sobrenatural. Bonhoeffer não acredita ter na alma do ser humano um vazio no formato de
Deus, de modo que seja uma pessoa insatisfeita até o ponto de ser preenchido:
Mas especificamente, não existe uma priori religiosa, conforme acreditava Friedrich
Schleiermacher, pensador alemão do século XVIII. A “consciência numinosa”, ou a
percepção profunda da presença divina tida como centro da religião autentica, de Rudolf
Otto, contemporâneo mais velho de Bonhoeffer, é para maior parte das pessoas uma
experiência distante e irreconhecível. Santo Agostinho estava simplesmente equivocado
quando disse que o coração continuara inquieto enquanto não repousa em Deus (GRENZ,
2011, p. 89).
O homem moderno intelectualmente, moral e religioso pode viver bem e ser feliz, de fato sem
Deus. Deus foi ultrapassado como hipótese no trabalho da moral, na política e na ciência, e o
mesmo aconteceu à filosofia e religião. Temos se locomovido para um tempo totalmente sem
religião, com isso se vai também aquele Deus todo envolvido com o sobrenatural e com a
esfera eclesiástica; sempre a mão resolvendo os nossos problemas. (GRENZ, 2011, p. 90).
405
Considerações finais
Diante disso a razão é dada pelo próprio Deus, para tanto somos responsáveis por sua
mordomia, como cristão não podemos ser racionalistas, devemos entender que a razão reflete
a imagem de Deus que é fundamental para compreendermos não só a sua palavra, mas
também o mundo por ele criado. Ao passo que, fica conosco a responsabilidade de usá-la de
maneira correta (SAYÃO, 2001, p. 51).
Referências
MATTOZO, Israel da Cunha. O problema de Deus e sua relação com os ideais ascéticos na
filosofia de Nietzsche. Belo Horizonte, 2010. Disponível em:
<www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/141112-110tsbsoum86l.pdf.>. Acesso em: 17 ago. 2013.
SAYÃO, Luiz Alberto Teixeira. Cabeças Feitas: filosofia pratica para cristãos. 3ª Ed. São
Paulo: Hagnos, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilheim. A gaia ciência. Tradução Paulo César de Souza, 1ª Ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
406
407
Nadando contra a correnteza: A ação a favor da vida na prática
pastoral de Dietrich Bonhoeffer
Sivanildo Ribeiro Martins1
Introdução
Desde seu início, no primeiro século da era cristã, a igreja sempre esteve na mira de críticas,
avaliações e julgamentos emitidos, tanto por aqueles que são participantes dela e, portanto se
considera “a Igreja” (Corpo de Cristo), quanto, pelos que estão fora e exercem o poder de
opinião. O exame que se faz da igreja (comunidade de fé/igreja local), positivo ou negativo,
por meio das críticas, não é mal em si mesmo, haja vista, serve de parâmetro para observar
qual papel tem sido exercido pela igreja no decorrer desses mais de vinte séculos.
No século XX, a partir do qual esta pesquisa pretende se situar, a igreja continuava na mira de
quem vive, nesse tempo, um período marcado por expressivas mudanças e transformações:
econômica, política, social e religiosa, resultado das guerras mundiais. A teologia,
companheira no tempo, não se ausentou, mas passou por modificações e confrontações.
Na Alemanha, o evento que chamou a atenção do mundo inteiro na primeira metade do século
passado foi o Holocausto que, conduzido pelo Chanceler Adolf Hitler, matou milhões de
judeus numa clara demonstração de racismo e intolerância. Na época a igreja poderia ter sido
uma voz em defesa dos inocentes, lutar contra a opressão, combater a injustiça e proteger os
mais fracos e desprovidos de poder. Contrário a isso, foi conivente com o governo e assistiu
“aos irmãos” morrerem, em massa, sem piedade alguma por parte do exército nazista.
Essa situação leva-nos a refletir sobre o envolvimento, a ação, e a missão da igreja no mundo,
que no pensamento do Cardeal Arns “deve consistir na ação pela qual procura conformar o
mundo segundo as exigências do Evangelho, anunciando, vivendo e explicitando estas
mesmas exigências” (CARDEAL ARNS, 1980, p. 28). Portanto, a decisão de calar-se e ser
indiferente, diante de catástrofes e mazelas que rebaixam o ser humano e toda a criação de
Deus não conforma o Evangelho.
1
Bacharel em Administração pela UNILAGO, bacharel em Ciências Contábeis pelo UNIRP, bacharelando em
Teologia pelo IBAD. Orientado pelo Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho. Contato: siva.martins@hotmail.com.
408
O pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer foi um personagem que no contexto exposto
surge, profeticamente, como uma voz que protesta e exige que a atuação da igreja seja
traduzida pelo conteúdo do Evangelho de tal modo que através da Igreja Cristo esteja presente
no mundo. A vida e o testemunho de Bonhoeffer é um desafio à igreja de nossos dias como
referencial que resiste, até a morte, os conceitos e as ações não pautados nos princípios do
Evangelho.
Poucas são as pessoas que pautam suas vidas por aquilo que pensam e, assim, na prática
vivem em discrepância, ou seja, as ações não coadunam com o discurso. Dietrich Bonhoeffer
não se encaixa nesse perfil, sua vida representa unidade no que se pensa e faz. Segundo Apeel
e Capozza (2006), “em poucos teólogos a unidade entre vida e pensamento serve de tal forma
como chave hermenêutica quanto para Dietrich Bonhoeffer. Bonhoeffer pensou o que viveu e
viveu o que pensou”. Defendia que igreja tinha de estar no mundo “participando da vida
social humana, não dominando, mas servindo” (MALSCHITZKY, 2005).
Por isso, esse trabalho tem por objetivo identificar, a partir da teologia de Bonhoeffer, a
possibilidade de uma igreja voltada para o mundo, que se envolve com o mundo servindo-o e
que, tal como Cristo, promova a justiça no mundo, entre os filhos de Sua criação. Para isso
será feita uma análise da vida e da teologia de Bonhoeffer através de uma síntese biográfica;
uma verificação da sua compreensão sobre vida cristã; e o seu pensamento sobre a igreja
como comunidade de fé.
A esperança da Igreja é um dia sair do mundo. Não há nenhuma confusão ao afirmar isso,
contudo essa esperança vindoura não pode servir de motivação para que a Igreja fuja do
mundo e isente-se das tarefas da humanidade. A igreja não pode, estando no mundo, viver
como se fora dele estivesse, pois isso a torna alienada e alienante, ficando insensível aos
problemas do mundo, ao sofrimento das pessoas, às injustiças cometidas diariamente pelos
opressores e, desta forma não atua como seguidora de Jesus, num mundo restaurado e
reconciliado por Ele.
Segundo Malschitzky (2005), “o mundo é de Deus e, portanto, para a sua criatura. Ninguém
pode usurpá-lo para interesses particulares [...] é preciso resistir para que o mundo seja
409
mundo, o mundo de Deus para a vida da criação e da criatura”. Portanto, este trabalho
justifica-se por propor que a igreja assuma compromisso com o mundo, importando-se com a
criatura e a criação; não seja conivente com poderosos que usurpam e oprimem; viva para os
outros e não para si mesma; e não busque medida no poder ou dinheiro de modo a obter
vantagens, mas em Cristo, Senhor do mundo.
O texto bíblico escrito no início do Evangelho de João cap. 1. v.14 (ACR) registra: “e o Verbo
se fez carne e habitou entre nós [...] cheio de graça e de verdade”. É importante evocar esse
texto sagrado, pois ele aponta para a forma como pensava Bonhoeffer. Segundo Milstein
(2006), Bonhoeffer afirma que “a Igreja é o Cristo que existe como comunidade; Cristo é a
palavra de Deus para mim, ele não é apenas pregado na igreja, mas a igreja, ela mesma, é este
corpo de Cristo”. Em Bonhoeffer a reflexão e a prática se unem de tal modo a levá-lo da
universidade, como professor, à comunidade para atuar como pastor.
Tal decisão demonstra que Igreja e mundo não podem separar-se, pois são elementos de uma
mesma criação, de Deus, que se converge em Cristo. “Bonhoeffer sustentava que Cristo era o
único lugar em que podem ser considerados unidos Deus e a realidade, sem que Deus tenha
que desagregar o real e sem que o real se distancie de Deus” (CUNHA SOBRINHA, 2006,
p.31). Ainda segundo Sobrinha, Igreja-Cristo-Mundo estão presentes no pensamento
teológico de Bonhoeffer como seus principais temas (2006, p. 30), Deus em Cristo se une
com o mundo, sem perder a transcendência, e, em Jesus Cristo se reconhece a “a estrutura; a
forma; o centro da realidade”.
Se reconhecermos o senhorio de Cristo, a Igreja pode viver dentro do mundo e amar o mundo
com os olhos e na companhia de Deus. Segundo Malschitzky (2005), “não precisa celebrar e
louvar a Deus desprezando o mundo e nem precisa viver no mundo marginalizando Deus”,
pois vida diária e “adoração a Deus, estão definitivamente interligadas, na pessoa de Jesus
Cristo” (2005, p. 77). Martinho Lutero, com quem Bonhoeffer muito simpatizava já dissera:
“o lugar do cristão é o mundo”. “Existem muitos hinos e textos cristãos que em nome da
esperança do reino de Deus, desprezam o mundo e o que nele há e desconsideram também o
ser humano como ele é” (MALSCHITZKY, 2005, p. 75). Não foi assim que Bonhoeffer
enfrentou a realidade, para ele os cristãos, discípulos de Jesus, que são a Igreja, tem um lugar
de atuação, o mundo de Deus, “tendo o agir do próprio Cristo como medida”
(MALSCHITZKY, 2005, p. 61).
410
Dietrich Bonhoeffer e a Igreja no mundo: a proposta
A igreja voltada para o mundo e que se envolve com o mundo2, é uma proposta que já possui
releituras e interpretações, portanto, por se tratar de uma iniciação à pesquisa, além das obras
de Dietrich Bonhoeffer as quais são: Sanctorum Communio Resistência e Submissão: cartas e
anotações escritas na prisão; Ética; Discipulado e Vida em Comunhão. Serão explorados,
também, os textos: Discípulo-Testemunha-Mártir, de Harald Malschitzky; Vida e
Pensamento, de Werner Milstein; Cristianismo e Testemunho, da Irmã Mirian Cunha
Sobrinha. Outras leituras que também serão úteis e, em algum momento serão utilizadas são:
Cristianismo Arreligioso, de Martin Barcala; Pastor-Mártir-Profeta-Espião, de Eric Metaxas;
Vítima e vencedor do Nazismo, de Georges Hourdin; O Mártir, de Craig Slane; Discutindo o
papel da Igreja, do Cardeal Arns; Fundamentos da teologia da Igreja, de Carlos Caldas;
Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo e Igreja carisma e poder, de Leonardo Boff;
e Teologia sistemática, histórica e filosófica, de Alister E. McGrath.
A proposta do presente trabalho será realizado a partir da análise bibliográfica tendo como
fontes livros, artigos, revistas e periódicos que tratem do assunto em questão. O trabalho está
organizado de modo a ser produzido em três capítulos. Sendo assim, no primeiro capítulo será
feita uma síntese sobre Dietrich Bonhoeffer e o seu contexto; no segundo será feita uma
abordagem da compreensão de Bonhoeffer do que é vida cristã; e por ultimo, a Igreja como
comunidade de fé, no pensamento do teólogo em questão, que servirá como lente para uma
leitura da atual situação da igreja, especialmente no contexto brasileiro.
Considerações finais
O trabalho, ainda que em processo de desenvolvimento, já aponta claramente o problema e
possíveis apontamentos. A igreja, segundo a perspectiva de Dietrich Bonhoeffer, só é, de fato,
igreja se estiver para o outro, e, à luz do seu Mestre, Jesus, é uma comunidade que se faz
presente no mundo se importando com os problemas e as aflições do povo, agindo como o
próprio Cristo agiu, oferecendo paz e justiça, valores intrinsecamente integrantes do Reino de
Deus.
2
Tema do trabalho de conclusão de curso do aluno Sivanildo Ribeiro Martins, em processo, do qual este texto é
parte integrante.
411
A igreja que se cala, conforma-se e, pior, se ajunta a poderosos e gente que provoca dor e
sofrimento às criaturas de Deus, não é a Igreja de Jesus, não é igreja a partir do crivo do Novo
Testamento. Porque a Igreja de Jesus, aquela formada por Ele mesmo, atuante na Nova
Aliança, é uma igreja que está no mundo a serviço de Deus servindo o mundo para a
glorificação do Cristo. É uma igreja que não se dobra diante de totalitaristas, impostores e
governantes que ao invés de servir o povo, usa-os para se beneficiar. A igreja de Jesus é
aquela que cumpre o Evangelho, vive no Evangelho e, à luz do Evangelho, promove a justiça
de Deus que beneficia os homens, Sua criatura.
Referências
BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo. São Paulo: Vozes, 1991.
CALDAS, Carlos. Fundamentos da teologia da igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
CARDEAL ARNS, Paulo Evaristo. Discutindo o papel da igreja. São Paulo: Edições Loyola,
1980.
412
MALSCHITZKY, Harald. Dietrich Bonhoeffer: discípulo, testemunha, mártir: Meditações.
São Leopoldo: Sinodal, 2005.
METAXAS, Eric. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão,
2011.
MILSTEIN, Werner. Dietrich Bonhoeffer: vida e pensamento. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
413
414
GT5 – “Edificando para Deus”: a arquitetura
do sagrado nas suas diferentes manifestações
Coordenador
Resumo
Ao longo de sua história, o homem construiu muito mais para Deus do que para si próprio. As
construções religiosas, desde os menires sagrados aos grandes templos contemporâneos, para
muito além do testemunho da fé, são marcos arquitetônicos referenciais sobre o modo de
perceber a maneira pela qual se deveria edificar a Casa do Senhor sobre a terra, muitas vezes,
espelho da morada que o homem deseja para si próprio na eternidade. Desta forma, a presente
proposta de GT visa aprofundar a troca de experiências e percepções sobre essa importante
temática na História das Religiões, buscando acolher todas as propostas de comunicações
sobre a temática da arte e arquitetura religiosas, que abranjam todas as manifestações
religiosas, da Antiguidade à contemporaneidade, de qualquer matriz religiosa. Valorizar-se-
ão, de modo especial, as comunicações sobre a Arquitetura Religiosa no Brasil.
415
A arquitetura religiosa, entre paradoxos e possibilidades
João Henrique dos Santos3
Introdução
Se a morada dos deuses era em lugar determinado ou que se imaginava e generalizava, como
o orun da tradição nagô-iorubá ou os céus da tradição judaica, por exemplo, sua área de ação
era todo o mundo conhecido, podendo os deuses agir através de elementais (sinais específicos
de sua ação por intermédio de elementos da natureza) ou em todas as áreas de necessidades
humanas.
3
Doutor. Professor Adjunto do Depto. de História e Teoria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da UFRJ. Contato: santosjh@uol.com.br.
416
Para apresentar suas súplicas ou manifestar sua gratidão, aponta Rykwert (RYKWERT, 2010,
p. 10), o homem criou a necessidade de construir moradas terrenas para seus deuses; lugares
apropriados para que se lhes prestasse culto. Esses lugares constituiriam uma tentativa de criar
algo de intermédio entre a casa do homem e o que se imaginava ser a casa dos deuses.
Como estabelecer as necessidades dos deuses? Como dimensionar sua morada? Qual o lugar
no qual ela seria construída e que lugar ela representaria na terra?
A construção de um paradoxo
4
A construção da casa do homem dá-se em topoi específicos, escolhidos de acordo com a
necessidade e a conveniência humana, a casa dos deuses entre os homens deveriam
corresponder a um lugar não existente (a utopia, o não-lugar) ou a um lugar ideal, perfeito (a
eutopia, o bom lugar; o lugar ideal).
Ao fazer isso, porém, traz-se a utopia para dentro da topia, em tentativa de fixar em um lugar
aquilo que, por definição, é um não-lugar. Para usar uma expressão que julgo feliz, seria algo
como corporificar os incorpóreos. Não há modelos físicos a se copiar nem necessidades
objetivas dos moradores a se atender. Em verdade, a construção das moradas dos deuses
reveste-se inteiramente de subjetividades, a partir daquilo que os construtores/cultuadores
definirem serem os locais ideais e as necessidades dos deuses que irão habitar aqueles espaços
sagrados.
417
É destes primeiros templos naturais que se evoluiu até a concepção da morada dos deuses,
trazendo para a longa duração – o habitar – o que ocorre esporádica ou sazonalmente – o
cultuar. O lugar para o culto não tem, em si, a necessidade de materializar a utopia, mas tão
somente assinalar o lugar de manifestação da eutopia. Contudo, o lugar para a morada dos
deuses precisa ser, de alguma forma, utópico, espelho da perfeição, somatório daquilo que se
imagina ser a melhor tradução do lugar nunca visto e, objetivamente, não existente. Trata-se,
neste caso, de trazer a utopia para dentro da topia.
Christoph Engels (ENGELS, 2010, p. 6-8) salienta que parte desses lugares escolhidos nos
primórdios da arquitetura do sagrado estavam relacionados a teofanias naturais, como
Stonehenge ou Men-an-Tol, tal como os cromeleques na Bretanha. Sobre a importância de
Stonehenge, Livio Vacchini escreve: “A arquitetura nasceu fazem cinco mil anos em
Stonehenge. Uma vez ultimada a colocação da primeira arquitrave, nasceu uma forma de
conhecimento humano cuja verdadeira natureza consistirá na construção da luz” (VACCHINI,
2009, p. 17).
418
A Antiguidade Clássica
Esta estruturação constituía em uma ruptura com o mais importante modelo preexistente, que
era o egípcio. Este traduzia a compreensão da vida e da morte pelos egípcios, como, por
exemplo, a rigorosa simetria e os estreitamentos horizontal e vertical, colocando o Santuário
(localizado no fundo do templo) exatamente no ponto focal do observador a partir da entrada
do templo.
Desta forma, os egípcios reproduziam em seus templos a imagem de si, de seu mundo e do
que seria a perfeição do mundo dos deuses.
Já os gregos utilizavam largamente os topos dos montes (as acrópoles) para construir seus
templos, que exerciam simultaneamente o papel de santuários e tesouros. Assim, esses
menires naturais também eram os lugares mais protegidos e mais bem defendidos das cidades,
quer nas ilhas, quer nos continentes.
5
A proporção áurea ou “seção áurea” consiste na aplicação do número “phi” (φ = 1,618).
419
Figura 1 – A proporção áurea na fachada do Partenon 6
De tal forma a seção áurea parece refletir a busca dessa perfeição que transformaria o utópico
em eutópico que em, pelo menos dois outros grandes monumentos de caráter religioso têm
suas fachadas com a proporção áurea: o Taj Mahal, em Acra, Índia, e a Catedral de Notre
Dame de Paris, na França.
A tradição judaico-cristã
Na teofania judaica, a revelação de Deus aos homens dá-se por vezes através de fenômenos
naturais ou em lugares específicos. Após a outorga dos Dez Mandamentos, é por ordem do
próprio Deus que foi construída uma Arca para abrigar as Tábuas da Lei, e que deveria
peregrinar com o povo de Israel pelo deserto até que ele se estabelecesse na terra que lhe tinha
sido prometida.
Destruído uma primeira vez, o Templo de Salomão foi reconstruído mantendo as mesmas
medidas do primeiro, até ser destruído pelas tropas romanas no ano 70 d.C., dele restando
atualmente somente um muro, o Kotel, considerado o mais sagrado lugar do Judaísmo, ao
qual se orientam os armários com os Rolos da Lei das sinagogas em todo o mundo.
Segundo Juan Antonio Ramirez, o Templo de Salomão foi utilizado como modelo para as
Igrejas cristãs (cf. RAMIREZ, op. cit., cap. 2), sendo esse modelo prototípico reproduzido em
6
Foto da Internet com superposição dos elementos geométricos da seção áurea pelo autor.
420
várias igrejas medievais. Desta forma, entendia-se que o Templum Salomonis corresponderia
ao ideal do Templum Domini.
Segundo Kenneth Frampton (apud BRUZZI, 2001, p.75 ss), a Igreja luterana de Bagsvaerd,
projetada por Jørn Utzon em 1968, sintetizaria a busca da universalidade e do regionalismo,
do utópico e do eutópico.
A questão do não-lugar
Deste modo, pode ser pensada, quanto à edificação religiosa, a permanência da divindade
simultaneamente à permanência dos homens no edifício religioso e deste no meio dos
homens. São edificações para a eternidade. Eis a corporificação do não-lugar, sua
transformação em lugar tangível, visível, palpável.
421
A mesma linha é seguida por Otto Friedrich Bollnow, ao pontuar que, “para o arquiteto, a
ideia do espaço infinito não pode sequer ser tomada como possível” (BOLLNOW, 2007, p.
27).
Contudo, os deuses, as divindades, por serem onipresentes, habitam todos os lugares, habitam
o infinito, o que, em uma reductio ab absurdo, significaria dizer que os deuses moram em um
lugar não arquitetônico por excelência e definição. Daí, como construir-lhes morada entre os
homens?
Faz-se necessário recordar que o islamismo, reconhecido pelo esplendor das mesquitas após o
Califado Omíada e o Império Otomano, teve, na figura do próprio Profeta, objeção à
construção de lugares de oração. Uma das esposas de Muhammad, Umm Salama, construiu
um anexo à sua casa em tijolos cozidos quando de uma das viagens do Profeta em 626.
Quando este retornou, recriminou sua mulher, dizendo-lhe “Verdadeiramente, a coisa menos
proveitosa para o bem-estar de um crente é um edifício!” (HOAG, 1979, p. 10). Tal opinião
perdurou durante o período do chamado califado ortodoxo, encerrado com a dinastia Omíada.
Eliade (op. cit., pp 22 ss) salienta que uma das questões mais importantes na construção dos
espaços sagrados é a transição que é feita entre o espaço profano e aquele que é destinado ao
sagrado.
Diversas estratégias arquitetônicas têm sido empregadas pelos arquitetos para que o fiel
transite do mundo para um espaço que, por excelência está no mundo mas não pertence a ele.
O propileu grego sucedeu os grandes salões hipostilos egípcios, e foram sucedidos pelos
átrios romanos.
Herdeiro da tradição arquitetônica romana, o cristianismo adotou também o átrio como espaço
transicional entre esses dois mundos. Tal como no mundo clássico, a estilobata das igrejas
apresentava uma escada, a indicar a ascensão que aqueles lugares sagrados deveriam
proporcionar aos fiéis.
422
No extremo Oriente, esse espaço transicional é composto por jardins e/ou corpos d’água,
podendo os jardins, na tradição zen budista, ser de areia, pedra ou grama.
Qualquer que seja o estratagema arquitetônico, a ideia é que o fiel vá se desligando das coisas
profanas e, gradualmente, conecte-se às coisas sagradas.
Considerações finais
Não se pretende, neste breve texto, responder a todas as muitas questões suscitadas pela
arquitetura religiosa e os paradoxos e possibilidades dela derivados. Não importa o quanto se
considerem os cânones da arquitetura moderna: a arquitetura religiosa está condicionada a
cânones considerados pelos fiéis muito mais elevados e, em muitas situações, imutáveis.
A questão principal que se põe aos arquitetos que se propõem construir templos e espaços
religiosos é a compreensão da linha que separa o utópico do eutópico; o desafio de trazer ao
topos algo que somente existe na utopia, como lugar mágico, mítico ou imaginado; em
essência, um lugar não existente, um não-lugar.
Neste sentido, as conexões que tornam possível a tradução da utopia na topia são, dentre
outras, a utilização de elementos naturais, como a luz e os grandes espaços a ser ocupados
pelas pessoas, representando o elemento ar. A terra, que dá sustentação e base física para a
construção do templo, é outro elemento que, naturalmente e por excelência, está associado ao
espaço sagrado.
Referências
423
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. S. Paulo: Martins Fontes, 1999.
HOAG, John D.. Islamic Architecture. London: Faber and Faber/Electa, 1979.
424
425
A Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro: uma via crúcis de
300 anos
Estela Maris de Souza1
Introdução
O tema em questão aborda um assunto pouco discutido e mesmo esquecido pela cidade do
Rio de Janeiro. Como uma cidade que já foi Sede do Governo Geral passou 300 anos com sua
Catedral itinerante. E como esse espaço sagrado foi ser construído nesse espaço mal
conformado, Esplanada de Santo Antônio, fruto de várias intervenções urbanas e projetos
incompletos.
O texto tem por objetivo mostrar a trajetória da Catedral do Rio de Janeiro desde seu princípio
no Morro do Castelo até sua construção em sede própria na Esplanada de Santo Antônio, no
centro de negócios da cidade. Do ponto inicial ao final, a catedral ocupou três igrejas de
irmandade, pleiteou duas outras igrejas e ainda iniciou a construção de uma sede própria.
Além de ter sido objeto de dois projetos de revitalização da cidade.
Essa via crúcis durou 300 anos e só teve fim em 1976, quando se comemorou o tricentenário
da criação da Diocese do Rio de Janeiro pelo Papa Inocêncio XI no Reinado de D. Pedro II
em Portugal assim como a inauguração da atual Catedral Metropolitana num espaço sagrado
próprio.
1
Doutoranda em Urbanismo pela UFRJ, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFF. Contato:
emaris711@gmail.com.
426
No Brasil, como um país de colonização portuguesa e no caso específico do Rio de Janeiro, a
definição desses espaços sagrados ficava a cargo da Coroa Portuguesa. Fazia parte do
processo de colonização, a presença do Estado como da Igreja. E assim várias ordens
religiosas se instalaram no Rio de Janeiro com o pretexto de catequizar, entende-se segundo
MENDES et al. (2007), catequizar como um processo de explorar, aculturar e fazer adotar a
estrutura de trabalho colonizador/catequizador. Além disso, também foram construídos vários
templos com características distintas.
Segundo MENDES et al. (2007) as cidades luso-mulçulmanas definiam seu centro cívico e
administrativo em local elevado. No Rio de Janeiro não foi diferente, os portugueses
ocuparam os morros por medida de segurança, no sentido de visualizar a entrada da baía, mas
também havia a dificuldade de ocupar as várzeas alagadiças. Consequentemente as primeiras
igrejas também foram construídas nos morros que compunham o centro da cidade do Rio de
Janeiro. Cada morro foi ocupado por uma ordem religiosa (Mapa 01).
2
Mapa realizado pela autora sobre mapa da metade do século XIX (ANDREATTA, 2006, Pg. 33).
427
A via crúcis...
A catedral tem seu início no Morro do Castelo ou São Januário na época, na modesta Igreja
Matriz de São Sebastião (Figura 01). Construída por Salvador Correia de Sá em 1583. Na
Igreja Matriz foram enterrados os restos mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade. Com a
criação da Diocese do Rio de Janeiro em 1676, a Igreja Matriz foi ocupada como Sé
(Catedral).
Sua localização, no entanto, nunca foi do agrado do Cabido que a considerava longe dos
acontecimentos da cidade. Quando do desmonte do Morro do Castelo, a catedral já passava
por um processo de abandono e antes mesmo da demolição do morro, já havia se mudado para
a várzea. A Igreja de São Sebastião veio abaixo junto com o desmonte do Morro do Castelo
em 1922.
3
Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/memorias-do-morro-do-castelo-o-1/next?context=user
4
Mapa realizado pela autora sobre imagem do Google Maps.
428
Mapa 02- Mapa com a localização das Igrejas que sediaram a Catedral4
Portanto, antes do desmonte do morro em 1922, já havia um pleito para que a catedral
descesse para a várzea em 1702 e ocupasse a capela de São José ou a Igreja de Santa Cruz dos
Militares. A partir desse momento começa a via crúcis da catedral (Mapa 02) que não tinha
sede própria e foi ocupando igrejas de irmandade pela cidade. Nessa mesma época, em 1703,
também cogitou um projeto para a nova Sé. Padre Francisco Tinoco chegou a projetar em
Lisboa a Sé, mas não foram atendidos e as súplicas se arrastaram até 1714 com o pleito pela
Igreja Nossa Senhora da Candelária (Figura 03). Mudança que nunca ocorreu.
5
Fonte: http://capeladomeninodeus.blogspot.com.br/2011/02/paroquia-nossa-senhora-da-candelaria.html
429
Finalmente em 1733 foi transferida para a igreja Santa Cruz dos Militares (Figura 04) onde a
irmandade não recebeu com satisfação a função de Sé e o Cabido na igreja. Tanto que o
Cabido mudou-se na calada da noite, sem solenidade no ano de 1734 juntamente com a
imagem de São Sebastião. No entanto, a fragilidade da construção e ameaça de ruína fez com
que a hospedagem fosse curta. E assim em agosto de 1737, numa solenidade, o Bispo e os
Cônegos foram recebidos com desprazer na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
(Figura 05), uma Irmandade de pretos, permanecendo aí até 1808. Curiosamente essa
Figura 05 - Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (no 3 no Mapa 01) 7
Nesse meio tempo houve a tentativa de se construir uma Sé no Largo de São Francisco
(Figura 06) no terreno da antiga Escola Politécnica da UFRJ, mas as obras iniciadas não
foram levadas a cabo. O engenheiro militar, José Fernandes Pinto Alpoim foi o responsável
por uma primeira planta que não foi aprovada em Lisboa em 1746. A planta foi alterada em
1747 e em 1749 foi lançada a pedra fundamental da tão almejada catedral (Figura 07). As
obras começaram, mas por falta de incentivo e por conta de outros interesses na época, a obra
6
Fonte: próprio autor, jan 2013.
7
Idem 5
430
foi sendo abandonada. As pedras foram inclusive utilizadas na construção do Teatro João
Caetano que segundo a crença popular teve seus dois incêndios em função do uso indevido
das pedras sagradas.
Figura 06 - Igreja São Vicente de Fora, fachada principal, Armando Serôdio, 1960 – inspiração para o projeto
(no 4 no Mapa 01) 8
8
Fonte: http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=231
431
Figura 07 - Planta Baixa e Planta de Situação projeto proposto para o
Com a chegada do Príncipe Regente em 1808 não fazia sentido que o séquito real se
misturasse aos pretos e D. João eleva a Capela Real a Igreja do Convento do Carmo (recém
reformada) (Figura 08). Na Igreja do Carmo a Catedral fincou raízes até a inauguração da
atual Catedral Metropolitana na Avenida Chile em 1976.
9
Fonte: SEPARATA DA REVISTA DE CULTURA DO PARÁ. ANO 6 – Nos 24 e 25 – JULHO/DEZEMBRO
– 1976. BELÉM – PARÁ
432
Figura 09 - Catedral Metropolitana (no 6 no Mapa01) 11
A igreja de São Sebastião foi construída logo após a construção do Forte de São Januário em
1567. A igreja tinha duas torres sineiras que eram utilizadas na observação da baía. Nessa
igreja foi instalada a Sé da cidade junto à qual estava o marco de pedra da fundação da cidade
assim como os restos mortais do fundador, Estácio de Sá.
Em 1630 foi erguida uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Candelária e quatro
anos mais tarde se tornaria a primeira matriz da várzea. Em 1710 foi reedificada e em 1775
foi completamente reconstruída. Sendo que sua inauguração só ocorreu em 1811 com a
presença do príncipe regente D. João. Segundo Oliveira (2008) sua fachada tem analogia com
a basílica da Estrela, em Lisboa.
10
Fonte: próprio autor, jan 2013
11
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=17229966
433
Figura 10 – Basílica da Estrela (Lisboa) 12 Figura 11 – Igreja Nossa Senhora da Candelária13
Originalmente no local da igreja foi construído um forte, Forte da Santa Cruz no início do
século XVII. Ficando o forte em desuso, de 1623 a 1628, construiu-se no local uma capela
para a Irmandade dos Militares. Em 1780 foi decidida a reconstrução do templo. Após cerca
de trinta anos de obras, a igreja foi consagrada em 1811, com a presença de D. João VI, então
príncipe regente. Sua fachada é semelhante à Igreja Jesuítica de Roma (Il Gésu) assim como à
Igreja de Nossa Senhora dos Mártires em Lisboa. Funcionou com Catedral de 1703 a 1733.
12
BASÍLICA DA ESTRELA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Bas%C3%ADlica_da_Estrela&oldid=35972542>.
Acesso em 10 de ago. 2013.
13
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas igrejas do Rio de Janeiro. Brasília, DF:
Iphan/Programa Monumenta, 2008. 3 t. (396 p.): il.; 13cm. (Roteiros do Patrimônio; 2) – VOL. 2, pg. 50.
434
Figura 12 – Il Gesú (Roma) 14 Figura 13 – Nossa Senhora dos Mártires (Lisboa) 15
14
BASÍLICA DA ESTRELA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Bas%C3%ADlica_da_Estrela&oldid=35972542>.
Acesso em: 10 ago. 2013.
15
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=239197&page=6
16
Foto: Luiz Antonio Doria. http://www.rdvetc.com/2011/recantos-do-rio-a-tradicional-rua-direita/
435
Igreja Nossa Senhora do Rosário e do São Benedito (1725)
A Irmandade carioca de Nossa Senhora do Rosário data do século XVIII e sua igreja começou
a ser construída em 1700 e estava terminada em 1725. A fachada de igreja foi remodelada em
meados do século XIX tendo sido conservado, no entanto, o pórtico de excelente gosto e
fatura e as torres brilhosas. Internamente, nada tem a ver com a decoração original, pois se
incendiou em 1967, restando-lhe apenas a estrutura das paredes. As dependências do
consistório da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito foram utilizadas em
períodos destacados de nossa História, ali foram realizadas diversas Seções do Senado da
Câmara às vésperas da Independência, assim como foi redigida a representação popular que
culminou no Dia do Fico. No templo repousam os restos mortais do Mestre Valentim.
A igreja surge a partir de uma capelinha dedicada a Nossa Senhora do Ó em 1590. Os frades
construíram um grande convento ao lado da capela que deu lugar à atual igreja a partir de
1761. O novo templo foi sagrado em julho de 1770.
Com a chegada da família real portuguesa e de sua corte ao Rio de Janeiro, em 1808, o
vizinho Paço dos Vice-Reis (atual Paço Imperial) foi utilizado como casa de despachos da
corte. Como D. Maria I foi instalada no Convento do Carmo, os edifícios foram ligados por
um passadiço elevado sobre a Rua Direita (atual Primeiro de Março). D. João VI designou a
17
Igreja do Rosário e São Benedito ainda com o frontão maneirista setecentista, Thomas Ender, 1817-18.
http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br/2010/11/igrejas-historicas-do-centro-do-rio.html
436
Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo como nova Capela Real Portuguesa e mais tarde
como Catedral.
Como capela real, a Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo foi palco de importantes
eventos, como a sagração de D. João VI como rei de Portugal, em 1816, após a morte de D.
Maria I. Aqui, também se casaram o príncipe D. Pedro, futuro imperador do Brasil, com D.
Leopoldina de Áustria, em 1817. Sagração de D. Pedro I na Capela Imperial em 1822. Após a
Independência do Brasil, a igreja passou a ser a Capela Imperial e sediou as cerimônias de
sagração dos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, bem como o casamento da Princesa Isabel
com Louis Phillippe Gaston d’Orléans, o Conde D’Eu, em 1864.
437
de inauguração foi em 1979. O projeto foi do arquiteto Edgar Fonceca, professor da PUC do
Rio. O engenheiro foi Newton Sotto Maior e o mestre de obras Joaquim Corrêa.
Pode-se concluir que a arquitetura religiosa no Brasil colonial ficou condicionada à presença
das ordens religiosas. O desenvolvimento urbano no Rio de Janeiro esteve intimamente ligado
à Igreja Católica assim como a tipologia arquitetônica religiosa. Isso em função da proibição
da Coroa portuguesa em professar outros credos. Os edifícios religiosos juntamente com
edifícios representativos do Estado foram muito influentes no sentido de delimitar
espacialmente assim como denominar morros e logradouros. Um exemplo são os principais
morros do centro do Rio de Janeiro sendo ocupados por ordens religiosas distintas.
19
Foto da própria autora.
438
A tipologia arquitetônica utilizada pela Igreja Católica era bem peculiar: corpo da igreja
propriamente dito e o claustro acoplado a esse corpo. Em termos ornamentais, as igrejas do
período colonial tiveram influência barroca e maneirista. A riqueza dessas ornamentações
dependia da ordem a que pertencia. Algumas das catedrais brasileiras datam do período
colonial ou são reformas de igrejas matrizes da época.
A Catedral atual traduz o período de transformações modernistas em que o antigo dava espaço
ao novo, ao moderno através da cidade espetáculo. Impõe-se pela escala e sua forma insólita,
alterando o paradigma tipológico consagrado na construção de edificações religiosas no Rio
de Janeiro colonial.
Considerações finais
Nessa via crúcis é necessário ressaltar que essas igrejas de irmandades por onde passou a
Catedral não ficavam nem um pouco felizes em receber a estrutura da Sé, pois perdiam a
liberdade e seus custos eram onerados, fora as reformas de partido arquitetônico que se era
necessário fazer para receber a função de Sé e o Cabido. Portanto, foram 300 anos de
atribulações desde que a Catedral deixou o Morro do Castelo e se instalou na Esplanada de
Santo Antônio.
(...) São trezentos anos de vida episcopal na mui heróica e leal Cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro à espera de sua muito sonhada ‘Domus Dei’. (...) Três séculos de via-sacra,
de esperança, de peregrinações e lutas. (...) Que estas páginas sejam uma recordação
modesta de um grande ideal perseguido e conquistado, onde não faltaram a fé e a
perseverança de tantos, apesar das muitas ‘pedras ‘havidas nessa via-sacra, ‘pedras que,
simbolicamente, construíram a nova mole de concreto: ‘Ad majorem Dei Gloriam’.
(JUNIOR, 1976, pg. 42).
Hoje as torres das igrejas, que outrora marcavam a paisagem da cidade, são refletidas pelas
torres envidraçadas dos edifícios de negócios. O que fora edificado para Deus e marcava a
vida da cidade dá lugar ao profano, mas isso já é outra história...
Referências
CALLIARI, Ivo Antonio. Trezentos anos depois. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977.
439
BITTAR, William; MENDES, Chico; VERISSIMO, Chico. Arquitetura no Brasil: de Cabral
a D. João VI. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2007.
JÚNIOR, Donato Mello. A Catedral que o Rio de Janeiro não chegou a ter. Revista de cultura
do Pará, ano 6, nº 24 e 25, Belém, julho/dezembro, 1976.
PILAGALLO, Oscar. Crenças e templos: devoção e fé. São Paulo: Folha de São Paulo, 2012.
Internet
catedral-de-sao-sebastiao-rio-de-janeiro&catid=93:turismo-religioso&Itemid=451> Acesso
em 22 de fev. 2013.
440
441
A presença dos anjos na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades
Fernanda Maria Trentini Carneiro1
Introdução
Este artigo propõe apresentar a imagem do anjo presente na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades, localizada na Freguesia de Santo Antonio de Lisboa, em Florianópolis. Estas
imagens se encontram talhadas em retábulos e pintadas em tábuas que cobriam o pano de
fundo do nicho do altar-mor. Pretende-se comparar a imagem destes anjos com referências da
história da arte, especialmente a influência da arte barroca, que caracterizou um ponto forte da
Igreja Católica na representação de imagens divinas, como referência e importante fator na
construção do repertório visual e artístico. A apresentação sugere a significativa aparição do
anjo, bem como a valorização destas pinturas como memória artística local.
Na arte religiosa cristã, o anjo se fez necessário como mediação entre o divino e o profano.
Muitas das imagens aladas foram construídas tendo como referência modelos artísticos
passados e de diferentes culturas, com propósito de representarem vícios, virtudes e estados
da vida utilizados como alocução em um verificado contexto. Os anjos, seres de significado
religioso, possuem a função determinante de serem os mensageiros de Deus e que “ocupariam
para Deus as funções de ministros: mensageiros, guardiões, condutores de astros, executores
de leis, protetores dos eleitos, etc., [...] e também o papel de sinais de advertência do
Sagrado”. Em sua maioria, a figura do anjo, aparece como seres do bem, aquelas que fazem
boas ações, “que formam o Exército de Deus, sua corte, sua morada. Transmitem suas ordens
e velam sobre o mundo”, como anjos da guarda e acompanhantes (CHEVALIER, 2003, p. 60-
61).
Ainda assim, nas Sagradas Escrituras, a construção figurada apresentada nas passagens serve
para demonstrar a amplitude de Deus e sua potência diante das criaturas e da natureza. Como
o ser divino incorpóreo não se faz presente, é por meio das aparições de símbolos instantâneos
e duradouros que se comete mostrar diante dos olhos mundanos. Assim, para a compreensão
do incompreensível, para ensinar e projetar mensagens confusas à visão humana, “[...] a
1
Mestre pelo PPG em Artes Visuais da UDESC. Artigo resultante do trabalho de dissertação “Sobre anjo e suas
asas na arte” (2010). Membro do GP História da Arte: imagem-movimento (UDESC).
Contato:fetrentini@gmail.com.
442
imagem impressiona mais facilmente o espírito que a palavra” (BOAVENTURA, 2004, p.
47).
A imagem do anjo teve grande predomínio na arte cristã, principalmente nas construções
decorativas cenográficas da Sagrada Escritura no interior das instituições religiosas. Dentro
das igrejas e das capelas, a inserção das imagens divinas deu-se visando à educação,
principalmente para aqueles que desconheciam as Escrituras Sagradas por não saberem ler.
Retomavam-se atitudes sagradas como referência para as atitudes humanas, pois as imagens
são mais bem compreendidas e gravadas pela memória, sendo relembradas posteriormente.
Assim, as imagens introduzidas e produzidas, principalmente nas igrejas, são para recordar as
ações divinas e as atitudes esperadas pelos homens na terra.
443
Figura 1 - Murillo, Bartolomé Esteban. The Immaculate Conception (1678).
Figura 2 – Peter Paul Rubens. Assumption of the Virgin. c. 1620. Oil on canvas, 458 x 297 cm.
Kunsthistorisches Museum, Vienna.3
2
Disponível em <http://www.wga.hu/art/m/murillo/3/311muril.jpg>, acesso em 01 ago. 2013.
3
Fonte: Disponível em <http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/r/rubens/12religi/>, acesso em 01 ago. 2013.
444
O aspecto dado no barroco religioso teria como motivo expressar e propagar características
repletas de signos, símbolos e significados, e o interior dos templos religiosos, como igrejas e
capelas, foram palco e cenário de enorme execução artística no entrecruzamento de
linguagens, como escultura, pintura e arquitetura, caracterizando um espaço que enfocasse a
suntuosidade da casa do Senhor Deus. Nessa ocasião, precisava-se apelar para as emoções
frente aos fiéis que pudessem provocar temeridade à religião e, ao mesmo tempo, o
envolvimento com ela (figura 2).
Como centro irradiador e construtor cultural e histórico da sociedade nesse período, a Igreja
esteve submissa aos domínios do poder político português. Ricamente ornamentada, a Igreja
cumpria seu papel de disseminadora das ideias persuasivas da religião, e como local
explorado pelo reinado português como difusor de normas sociais, possibilitando-nos ver em
algumas obras a presença figurada da imagem do rei. Nisso, no contexto colonial luso-
brasileiro, o Padroado português era tido como referência fundamental da vida religiosa do
período.
A relação entre a religião e a fundação de vilas não se limita, porém, aos patrimônios:
Igreja e Estado, no período colonial, formavam um só poder; tendo o rei a autoridade – a
ele concedida pelo papa, mediante um tratado denominado ‘Padroado’ – de instituir bispos,
padres e demais membros do clero secular. Ao rei de Portugal, e unicamente a ele, cabia,
445
também, desde a concessão das fundações das vilas até a salvação da alma dos vassalos
(TIRAPELI, 2005, p. 16).
A preocupação da Igreja na construção, conservação e controle por parte dos fiéis com base
nos preceitos religiosos, principalmente na relação dos fiéis com a igreja, tanto espiritual
quanto estrutural, ou seja, administrativa e arquitetônica, fez com que houvesse uma
responsabilidade ainda maior na construção arquitetônica e ornamentação das igrejas
aplicadas sob regulamentos eclesiásticos. Por meio do decoro, pressupunha-se como costume,
como constância, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados para o
desenvolvimento conveniente na construção, execução e imitação da arquitetura e artes
(BASTOS, 2009). O decoro foi responsável pela conformidade dogmática da Igreja Católica.
Essa orientação caberia para que os fiéis pudessem imitá-lo e, assim, seriam conduzidos à
moralidade e compostura religiosa católica. Dentre eles, destacamos Manoel da Costa Ataíde
(Figura 3), artista mineiro, cujas pinturas e esculturas apresentam as proposições dogmáticas
cristãs, como a representação de anjos, santos, padroeiros das igrejas e capelas e outros.
Figura 3 - Manuel da Costa Ataíde. Forro da nave da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto.
4
Fonte: ANDRADE, J. P. D.; FROTA, L. C.; MORAES, P. D. Ataíde: vida e obra de Manoel da Costa Ataíde.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira S.A., 1982.
446
Inicialmente, a arte religiosa colonial luso-brasileira deu-se no litoral em função da
colonização, principalmente Nordeste e Sudeste, em que grande parte da imponência dos
materiais preciosos era originada da extração do ouro. Assim, em meados dos Séculos XVII e
XVIII, com o ciclo do ouro, a decoração interior de igrejas e capelas, com as talhas e os
objetos, foram suportes e palcos para a suntuosidade do poder ocasionado pelo material
precioso (figura 4 – A e B).
O Sul foi pobre, e o eco das minas de ouro e diamante talvez nem tivesse chegado até lá. O
sul foi o grande enjeitado do Brasil-colônia; medrou na luta contra os castelhanos e
manteve-se em pé de guerra para se sustentar. Não teve possibilidade alguma de uma fuga
da realidade monótona, em busca de um ideal religioso. Tudo era rotina e isolamento. O
barroco que nos legou foi esporádico, frio e tranqüilo. Existiu, por certo, até mesmo belo na
sua modéstia, mas sem emoção. Frio e calculado, mas nem por isso menos barroco. A
religião e a forma de governo foram as mesmas, mas não houve condições econômicas para
qualquer tipo de exaltação coletiva. Houve um ideal no Sul, mas, por exceção, não foi
5
Fonte: Fotografia da autora (2009).
447
religioso, foi político: o ideal das pátrias, pois seus habitantes, portugueses, defenderam
para suas pátrias, e para nós, a terra que ocupavam. O élan político sobrepujou o religioso
(ETZEL, 1974, p. 56).
Uma das consequências para essa ausência de investimento cultural no Sul foram os conflitos
ocorridos entre espanhóis e portugueses. Os investimentos estavam voltados à segurança do
espaço, por meio do povoamento das terras. Dessa forma, foram pouquíssimos os recursos
investidos nas edificações e decorações, e as que foram erguidas e decoradas possuem certa
singeleza e simplicidade, mas continuaram com as características devocionais da fé do povo.
As igrejas acompanharam o homem do barroco; nelas ele deixou a marca de suas angústias,
representadas por uma arquitetura cheia de profunda fé, opulenta em ouro e arroubos
plásticos, que marcou esta época frenética da nossa história, perpetuando e como que
desmentindo a dura realidade do mundo exterior, o fim da opulência da época do ouro do
Brasil - colônia (ETZEL, 1974, p. 48).
Os carpinteiros e artesãos açorianos, movidos pela religião católica, construíram dessa forma
igrejas, capelas e retábulos. Pela falta de especialização, a execução nem sempre obedecia às
especificidades exigidas, mas a iconografia cristã permanecia na representação da iconografia
da Contra-Reforma, destacando a motivação pela fé cristã.
448
Em contraposição, temos que reconhecer que nem sempre o barroco no Brasil foi assim
representado, pois houve regiões onde as condições socioeconômicas determinaram outro
tipo de construções. Neles, teve expressão modesta, sem ouro; a talha, ambiciosa na sua
pobreza,manifesta-se em alguma coluna salomônica, em raras volutas simétricas, em linhas
curvas, numa que outra folha de acanto, em raros e grosseiros anjos. O intuito na fé foi o
mesmo, os recursos é que foram mínimos (ETZEL, 1974, p. 29).
O interior das igrejas e capelas apresenta-nos uma preciosidade de detalhes, pois sua execução
requereu destreza e qualificação na utilização dos materiais corretamente. Os elementos
alegóricos e signos encontrados tiveram como modelo reproduções ou representações de
materiais propagadores dessas imagens, como pinturas e gravuras. A partir desses exemplares,
criavam outras formas das partes de um todo, apresentando diversos jogos de composição.
Figura 5 – Retábulos laterais e Altar-mor. Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755). Florianópolis,
Santa Catarina.6
6
Fonte: Fotografia da autora (2005).
449
No entanto, apesar do imenso número de elementos compositivos em uma mesma igreja, os
anjos são executados com detalhes, harmonia e destreza. Nisso, confere uma imagem doce,
sinuosa e delicada, mesmo apresentando muitas vezes um semblante envelhecido e um corpo
desproporcional.
Nas igrejas da Ilha de Santa Catarina que possuem a imagem do anjo demonstram um caráter
singular. Mesmo estando em torno das imagens divinas, os anjos estão dispostos tão
separadamente que conferem uma posição de protagonistas dentro desse cenário sacro.
Contudo, os anjos aqui presentes mostram pouco movimento, confecção pouco rebuscada e
simplicidade das formas e figurabilidade. Isso demonstra o baixo investimento cultural,
porém não ignorado, devido à escassez de materiais e qualificação dos artesãos.
Apresentamos a Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755), localizada na Freguesia
de Santo de Lisboa, na Ilha de Santa Catarina, e que possui imagens de anjos em suas talhas e
pinturas, porém de forma simples e escassa, em comparação com as demais igrejas
observadas no Sudeste e Nordeste do País (Figura 6 A e B).
A presença dos anjos na Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755) pode ser vista em
maior número em seus dois retábulos laterais. Aqui “notável nos dois retábulos são as
numerosas cabeças de anjos que se encontram no frontão, nos coartelões e no sacrário. No
7
Fonte: Fotografia da autora (2008).
450
mais, enfeites fitomorfos com margaridas e guirlandas” (ETZEL, 1974, p. 246). No altar-mor,
a presença do anjo se dá pelo olhar minucioso, pois devido às inúmeras camadas de tinta
branca, a presença do anjo na talha torna-se de difícil identificação -. Apesar dessa
complicada assimilação, Etzel (1974) dá pistas de sua localização: “[...] o escudo do frontão
do altar-mor, a nosso ver, esclarece a disparidade apontada”, cujo apontamento explicava a
falta de figuras antropomorfas no altar-mor, diferentemente dos laterais, “ostenta o Divino,
encimado por um querubim e uma grande coroa [...]”. Etzel supõe que provavelmente esse
escudo foi inserido posteriormente. Os anjos encontrados na Capela de Nossa Senhora das
Necessidades demonstram a simplicidade de ornamentos, e suas formas são simples, com
poucos detalhes pictóricos elaborados (Figura 7 A e B).
Ainda assim, na Capela de Nossa Senhora das Necessidades, na pintura do nicho principal do
altar-mor, são encontradas figuras de anjos, especificamente cabeças aladas em seis tábuas
ordenadas e que circundam uma imagem não identificável, mas que é visível a presença de
linhas retilíneas que apresentam ao seu redor, como uma silhueta de luz resplandecente
(Figura 8). Muitas vezes, esses anjos estão ao redor de uma imagem, não identificada, mas
que podemos interpretar como uma figura de santo, Virgem, Jesus ou padroeiro da Capela,
que está sendo adorado ou acompanhado na sua ascensão pelos anjos (figuras 1 e 2). Em
8
Fonte: Fotografia da autora (2009).
451
algumas pinturas do período colonial luso-brasileiro, alguns anjos velam ou carregam a
imagem central “sobre nuvens encapeladas e querubins apinhados em torno dela, como
enxames de insetos em redor de uma vela acesa” (KITSON, 1966, p. 46) (Figura 3).
Entretanto, ao observarmos o interior das igrejas, principalmente aquelas do período colonial,
que dispõem de anjos na composição decorativa, existem repetições em seu arranjo, porém
contidas com certa singularidade.
Esses anjos observados na capela, de modo geral, possuem um semblante sóbrio e ameno. São
poucos aqueles que demonstram movimento, conferido em alguns anjos da Capela de Nossa
Senhora das Necessidades, no posicionamento de estar voltado para diagonal ou para cima,
mas, em sua maioria, os anjos estão apresentados apenas como cabeças aladas de frente e
estáticas. Seus traços são rápidos e há pouco movimento dado às asas (figura 9).
9
Fonte: Fotografia da autora (2009).
452
Figura 9 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).
453
Figura 10 - Capela de Nossa Senhora das Necessidades (1755).
Esse povo de devoção forte da fé católica ergueu suas igrejas na esperança e no conforto de
serem acolhidos e salvos dos acontecimentos em uma terra desconhecida. Mesmo com as
invasões, saques e destruições, e, ainda, pelas funções de povoamento da ilha para manter a
segurança e garantir as terras da colônia, estes não impediram de o povo aplicar seus
costumes, suas histórias e sua religião.
Considerações finais
As imagens, por meio da arte, na representação dos símbolos e pela iconografia cristã,
aproximam o mundo opaco dos símbolos de Deus às formas visíveis aos homens. Mas essa
aproximação de Deus à perfeição não caracteriza a totalidade dada à imagem, pois esta
desconhece o contexto completo que só Deus pode ter e caracteriza a obra como execução do
presente construído nas bases do passado e projeções do futuro (GROULIER, 2004). A
aparição de Deus aos homens continuamente teve relação com os objetos materiais e visíveis,
com os símbolos, “já que a Deus é mesmo impossível de se representar, porque é
incomensurável, circunscrito e invisível [...]” (DAMACENO, 2004, p. 30).
Assim, os seres alados, como os anjos, são fonte de referência e modelo ao ser humano. Os
anjos encontrados no interior de igrejas e capelas sugerem não apenas uma imagem com
caráter decorativo e aproximação do ser humano ao espaço celeste. Desta forma, as
11
Fonte: Fotografia da autora (2009)
454
características permanecem vivas quando se observa a presença de figuras carregadas de
elementos alegóricos, como os anjos, e que sua presença tornou-se um símbolo figurativo e
decorativo, como um figurante nesse cenário do teatro sacro. Tanto na arte quanto na
arquitetura colonial luso-brasileira, tendo o decoro como o cerne na execução das artes nas
igrejas, ou seja, o uso correto dos modelos reconhecidos e adequados, a representação dos
símbolos pela iconografia cristã, os seres alados, como os anjos, são fonte de referência e de
modelo como espelho humano.
Referências
DAMACENO, João. Discurso apologético contra os que rejeitam as imagens sagradas. In:
LISCHTENSTEIN, J. A teologia da imagem e o estatuto da pintura. Tradução de Magnólia
Costa. São Paulo: Ed. 34, v. 2, 2004. p. 26 – 46.
KITSON, Michael. O mundo da arte: O barroco. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1966.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O rorocó religioso no Brasil e seus antecedentes
europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
TIRAPELI, Percival. Arte sacra: barroco memória viva. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2005.
455
456
Arquitetura e religião: o caso da igreja da Irmandade do
Santíssimo Sacramento
Claudia Barbosa Teixeira1
Introdução
Uma das primeiras Irmandades a se constituir na cidade foi a do Santíssimo Sacramento, com
seu altar de devoção na igreja de São Sebastião no Morro do Castelo. Este trabalho tem como
objetivo apresentar na paisagem urbana da cidade a construção da igreja do Santíssimo
Sacramento da antiga Sé, no ano de 1816, identificando os elementos construtivos que
atendiam as disposições eclesiásticas da época. A escolha pelo templo dessa Irmandade se deu
por dois motivos. O primeiro diz respeito ao curioso fato de que essa associação foi uma das
primeiras a ser instituída na cidade e uma das últimas a erguer seu próprio local de culto. Em
1
Doutoranda em História pela UERJ, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFF. Bolsista pela CAPES.
Contato: claudiabarbosa@ibest.com.br.
457
segundo porque não há na historiografia um número significativo de trabalhos sobre as
Confrarias do Santíssimo Sacramento. Boschi (2006) chama a atenção para essa questão:
Observe-se que a absoluta preponderância, quase que exclusividade, das pesquisas sobre as
irmandades coloniais brasileiras se concentram naquelas que foram criadas e promovidas
por negros e mulatos. São raros, na atual historiografia brasileira, os estudos dedicados às
associações leigas de brancos.
Todas essas associações eram compostas apenas por fiéis de cor branca, sendo necessária a
comprovação da pureza de sangue. Traziam em seus compromissos normas para a admissão
de pessoas ilustres e honradas. Pela pesquisa realizada acredita-se que seus membros faziam
parte da elite econômica, social e política da cidade, uma vez que para ingressar era
necessário pagar altas taxas, além disso, Cavalcanti (2004) destaca que:
2
A festa do Santíssimo Sacramento, conhecida como Corpus Christi, foi instituída em 1264 pelo Papa Urbano
IV em homenagem a presença real de Cristo na Eucaristia. No período colonial e ainda hoje se comemora a data
com missas festivas e procissões. Em várias paróquias os fiéis enfeitam as ruas com um tapete de sal utilizando
desenhos que enfocam principalmente a Eucaristia.
458
Por não possuir seu próprio templo, a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé
acompanhou a peregrinação da Sé por suas sucessivas mudanças para as igrejas de São José,
Santa Cruz dos Militares e Nossa Senhora do Rosário, onde permaneceu até a construção de
sua igreja no ano de 1816, na atual avenida Passos. Em 1820, estava concluída a capela-mor,
iniciando-se o culto nessa parte do edifício. Mesmo sem estar concluída, tamanha era a sua
importância para a sociedade da época que no ano de 1826, foi instituída a freguesia do
Santíssimo Sacramento, passando a igreja a funcionar como matriz, o que lhe conferiu maior
status. De acordo com Oliveira (2008) as obras de construção prosseguiram até 1859, quando
em procissão solene, a igreja recebeu sete imagens da antiga Sé do Morro do Castelo, que
estavam em depósito na igreja do Carmo.
A cidade engalanava-se, toda ornamentada. [...] O préstito era extensíssimo porque quase
todas as irmandades faziam questão de acompanhar a procissão, muitas delas trazendo o
andor do padroeiro, para render preito ao Sacramento (COARACY, 2008, p.174).
O barroco surgiu como uma expressão arquitetônica que correspondeu aos anseios da Igreja
na era pós-tridentina. No Brasil, no período colonial, a maior parte dos templos construídos
foi concebido nesse estilo, incluindo os das Ordens Leigas que em sua maioria utilizou os
seus elementos, caracterizados pelo apelo dramático.
459
de secções curvilíneas” (OLIVEIRA, 2008, v. 1, p. 119). Internamente se verificava o
contraste de luz e sombra, o “revestimento integral das superfícies e uso de materiais nobres e
preciosos, como os mármores policromos e o bronze dourado” (ibid. p. 119). Destacam-se,
igualmente no interior das igrejas, as imagens dos anjos e santos, particularmente da Virgem
Maria, sob diversas invocações. Oliveira (ibid. p. 121-122) ressalta que essa proliferação de
imagens poderia ser vista “como uma reação direta ao iconoclasmo protestante, que varrera as
imagens do interior de seus templos para se ater apenas à leitura do texto bíblico”.
O estilo rococó se caracterizava pela leveza, com uma decoração menos opulenta, ambientes
claros e arejados pela implantação de amplas janelas. Chegou ao Rio de Janeiro em meados
do século XVIII, principalmente nos ornamentos internos das igrejas e em elementos isolados
das fachadas, influenciando pouco a arquitetura. Alvim (1999) explica essa singularidade:
Portugal não consegue filiar-se integralmente a este estilo, por sua leveza, assimetria e por
negar a clareza das estruturas arquitetônicas, tão caras ao gosto luso. O mesmo ocorre no
Rio, onde as decorações de caráter rococó são pesadas e a assimetria e leveza, próprias
desta estética, são obtidas com sucesso apenas em pequena escala (p. 318).
O ano de 1816, quando se inicia a construção da igreja da Irmandade, coincide com a chegada
da Missão Francesa à cidade que introduziu o estilo neoclássico ao gosto dos cariocas. Porém,
com relação à arquitetura religiosa o apreço dos fiéis ainda se daria pelo estilo barroco e
rococó. Portanto a igreja foi construída dentro desse estilo, seguindo a linha das construções
coloniais das igrejas da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de
Paula, ambas no centro da cidade.
Alvim (1999) chama a atenção para a questão da hierarquização dentro das Ordens Leigas,
onde os cargos ocupados pelos seus membros passam a ser meios de ascensão social. Em
planta, tal problema é parcialmente resolvido pela introdução de tribunas no programa
arquitetônico dos templos, “local nobre que evidencia, no espaço da nave e da capela-mor, a
posição do fiel na irmandade” (ALVIM, 1999, p. 95). Tal fato pode ser comprovado nas
igrejas de meados dos Setecentos como as mencionadas acima.
460
As irmandades eram órgãos vivos, com intensa atividade social e religiosa, funcionando
muitas vezes com um órgão de registro civil. Eram em seus livros onde unicamente se
registravam batizados, casamentos e óbitos. Portanto, a construção das igrejas das
irmandades, principalmente a partir de meados dos setecentos passou obedecer a um projeto
mais elaborado para corresponder à necessidade funcional das mesmas. Os espaços
secundários ou dependências3 aumentaram em número e tamanho. Alvim (1999) aponta tal
mudança como uma característica das igrejas dos Oitocentos:
A localização do terreno da igreja não era das mais nobres à época em que foi construída. A
cidade até o final do século XVIII se limitava à Rua da Vala (atual Uruguaiana), sendo a
região a partir daí considerada arrabalde. Porém, se verificou que a partir da construção dos
templos de Irmandades de pretos e pardos nessa região, a malha urbana começou a se estender
permitindo um melhor acesso às edificações religiosas onde ocorriam festas e procissões de
seus santos padroeiros. Portanto, a instalação da igreja nesse local acarretou em
melhoramentos urbanos na região de entorno. O próprio logradouro foi denominado como
Rua do Sacramento, até o seu prolongamento no governo Pereira Passos (1902-1906) que
passou a dar o nome à avenida.
3
“Entende-se por dependências ou espaços secundários a sacristia, o consistório, o coro, as tribunas, os
corredores, as galerias e as capelas fora do espaço da nave” (ALVIM, 1999, p. 72).
461
Mapa 1 - Planta de localização da igreja4
O projeto, de autoria do arquiteto português João da Silva Muniz que veio para o Brasil como
arquiteto da Casa Real em 1813 estabeleceu o partido de nave única retangular com capela-
mor e corredores laterais. Por eles se chega às dependências evitando a passagem pela capela-
mor, local considerado sagrado. Como apontado por Alvim (1999), na igreja do Santíssimo
Sacramento se verifica uma área de dependências maior do que a área destinada ao culto. Tal
fato é explicado por ter sido a igreja construída já nos Oitocentos, quando a Irmandade vivia
um período de grande movimentação social, sendo seu espaço utilizado para diversas funções
além do culto religioso.
4
Disponível em: < https://maps.google.com.br/>. Acesso em 20 jun. 2013.
462
A igreja apresenta uma fachada monumental, com um corpo centralizado e duas torres
sineiras laterais separadas por pilastras. A porta de entrada principal é em arco pleno
emoldurada pelo frontispício, sendo ladeada por duas estátuas: de São João e São Lucas.
Compõem ainda a fachada, no andar superior, cinco janelas encimadas pelo
típico frontão clássico triangular. Uma larga cornija separa o segundo piso do frontão
superior, com estátuas e pináculos. A altura das pirâmides de coroamento das torres sineiras
confere verticalidade, tendo sido inseridas no ano de 1871, pelo projeto do arquiteto Francisco
Joaquim Bittencourt da Silva. A fachada apresenta um elaborado trabalho de cantaria, que
demonstra o aprimoramento da arquitetura carioca.
Alvim (1999) afirma que a planta dessa igreja destacou-se pela importante participação de
seus vãos no projeto, que interrompeu as linhas das paredes conferindo leveza, e pela
qualidade geral de sua composição.
463
Foto 1 - Fachada da igreja5
A iluminação dessa igreja, como muitas outras do século XIX, contou com lunetas, aberturas
no alto do templo, que também foram utilizadas como elementos decorativos. Verifica-se a
introdução no projeto da claraboia, uma nova técnica de iluminação natural direcionada que
viria a ser amplamente utilizada em outras igrejas dos Oitocentos. A instalação da claraboia
valorizou a posição do altar-mor, conferindo um destaque à elevação da hóstia consagrada,
principal elemento de devoção dessa Irmandade.
5
Disponível em: < https://pt.foursquare.com/v/igreja-matriz-sant%C3%ADssimo-sacramento-da-antiga-
s%C3%A9/4e47f788d22d12b08bd577a0>. Acesso em 14 abr 2013.
464
Foto 2 – Interior da igreja6
6
Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do Sant_S%C3%ADssimo_Sacramento _ da _
Antiga_ S%C3%A9(Rio_de_Janeiro)Brasil.jpg.> Acesso em 14 abr 2013.
7
Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Igreja_do Sant_S%C3%A Dssimo_Sacramento _ da _
Antiga_ S%C3%A9(Rio_de_Janeiro)Brasil_4.jpg.> Acesso em 14 abr 2013.
465
Considerações finais
Referências
466
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro: quatro séculos de histórias.
Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2008.
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil – Primeira Época, tomo II. Petrópolis:
Vozes, 1979.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó nas Igrejas do Rio de Janeiro.
Vol.1. Brasília, DF: Iphan/Programa Monumenta, 2008.
467
468
Mística e devoção carmelita: a arquitetura religiosa dos Terceiros
em Minas Gerais
Nívea Maria Leite Mendonça1
Introdução
Durante o período Colonial, a capitania de Minas Gerais foi fortemente marcada pelos
preceitos Tridentinos, esses preceitos só foram possíveis de serem vivenciados graças à
atuação de leigos que conseguiram se unir em torno de associações religiosas como as
irmandades e Ordens Terceiras, porém em especial a Ordem Terceira do Carmo se
caracterizava como uma associação de leigos cuja existência dependia de autorização
conferida por uma Ordem Primeira, e cujo ingresso de irmãos obedeciam a critérios,
rigidamente, seletivo. Os Estatutos da Ordem Terceira previam toda a forma de organização
da Mesa Administrativa, assim como a função desempenhada por cada irmão na
Administração da Ordem; também nos estatutos verificamos as principais datas festivas e
celebrativas deste sodalício.
No que diz respeito às cerimônias, havia todo um clima de contemplação mística dentro dos
templos dos terceiros, já que como analisou Adalgisa Arantes que a religiosidade barroca era
indispensável recorrer às artes plásticas, já que o imaginário barroco levaria ao máximo a
tendência de representar com naturalismo o sofrimento de Cristo e dos Santos. Por isso,
vemos nos templos os altares laterais que relembram os últimos passos de Jesus. Logo, todo o
aparato cenográfico das igrejas desse período servia para mexer com o modo de ver e pensar
daquela população que a ali habitava. Daí também, o temor e a preocupação com a morte.
Essa preocupação ocupava constantemente o pensamento das pessoas, as iconografias
remetiam ora o bem morrer, isto é, o céu, o Paraíso; ora o mal morrer, ou seja, o Purgatório e
as chamas do inferno. Tanto as irmandades como as Ordens Terceiras apresentavam como
motivações: as pompas fúnebres da paróquia, a assistência aos pobres e a segurança para a
eternidade (ARIÈS, 198, p. 197). Dentro dessa perspectiva, muitos irmãos eram seduzidos ao
entrar em uma associação religiosa pelo fato de desfrutarem, após a morte, de uma vida
eterna, além de garantirem sepultamento digno dentro dos templos, uma vez que estes espaços
1
Mestranda em História pela UFJF. Este trabalho faz parte da pesquisa que venho desenvolvendo no mestrado,
relacionada à temática da religiosidade e às Ordens Terceiras mineiras no século XVIII, em especial a Ordem
Terceira do Carmo de Vila Rica e Mariana. Contato: niveajf@hotmail.com.
469
eram revestidos de sacralidade, assim, os confrades, além de receberem as missas especiais de
sufrágio pelas suas almas, eram lembrados durante todas as missas.
As associações de leigos se espalharam por toda a Capitania de Minas Gerais com o objetivo
de promover o culto e a devoção dos santos, um dos princípios lançados pelo Concílio
Tridentino. Os termos irmandade, confraria e Ordem Terceira apresentam importantes
diferenças organizacionais e legislativas. Como observa Caio César Boschi
Mas, em síntese, tanto as irmandades como as Ordens Terceiras funcionaram como agentes de
solidariedade grupal, congregando anseios comuns frente à religião e realidade social
(BOSCHI, 1986, p. 14).
470
Em Os leigos e o poder, Caio Boschi (1986) relaciona a quantidade de cinco (5) Ordens
Terceiras invocadas sobre a proteção de Nossa Senhora do Monte do Carmo, que existiram na
Capitania de Minas Gerais, durante o período do grande apogeu aurífero; podemos observar
que as Ordens Terceiras do Carmo se estabeleceram em Vilas de maior importância social e
econômica da época como nas vilas: Ribeirão do Carmo, Vila Rica, Sabará, São João Del Rei
e Tejuco (Diamantina). Nestas vilas, estabeleceram-se uma quantidade maior de homens
bons, ricos e brancos da capitania, já que foram eles que trouxeram e difundiram a Ordem
Terceira por essas terras.
As ações da Igreja foram limitadas durante o Brasil Colônia, devido aos interesses políticos e
materiais da Coroa, por causa do Padroado2. Com tal atitude de autonomia, a Coroa deliberou
sem precedentes banir, não só frades sem autorização, mas também o estabelecimento de
ordens religiosas em Minas Gerais (BOXER, 2000, p. 76). No entanto, mesmo diante de tal
controle, a Coroa ordenava aos bispos do Rio de Janeiro e da Bahia para que se enviassem
eclesiásticos para criar paróquias e ministrar os sacramentos (BOSCHI, 1986, p. 80).
Nosso objeto de estudo é a Ordem Terceira do Carmo que foi (e continua sendo) uma
importante associação de leigos em Minas Gerais. Dentro do contexto do grande apogeu
aurífero, percebemos a proliferação de grandiosos templos em Minas Gerais. Contudo,
2
O Padroado foi uma instituição tipicamente ibérica, e pode ser definido como um conjunto de direitos, deveres
e privilégios, concedidos pelo Papa aos reis portugueses (BOSCHI, 1986, p. 42).
471
somente na segunda fase dos setecentos foram edificados os monumentos da mais alta
significação estética, destacando-se neste cenário, além das igrejas do Carmo, as igrejas
pertencentes às Ordens Terceiras de São Francisco (SALLES, 1982, p. 51). Naturalmente, a
arquitetura encontrada neste período, possuía características européias - ibéricas. Esta
religiosidade que chegou ao território mineiro, do tipo barroco-rococó recorria nas artes
plásticas toda forma de simbolismo, já que o aparato cenográfico das igrejas servia para
mexer com o modo de ver e pensar da população, cuja principal preocupação era com a
morte.
A Capitania das Minas Gerais foi desenvolvida ao longo do século XVIII, nesta época o
conjunto artístico mais expressivo que predominava o Brasil Colônia era o chamado Barroco.
Já na metade deste século, este estilo artístico foi incrementado por outro, que era um pouco
mais suave: o chamado Rococó. Tal produção artística se sustentou em grande parte na
riqueza produtiva proporcionada pela extração do ouro e diamantes descobertos a partir de
1693 e 1727, respectivamente (SILVA, 2006).
A Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Vila Rica foi
construída entre 1766/1772, onde no local já existia uma capela dedicada a Santa Quitéria.
Porém, de acordo com o Cônego Raimundo Trindade mostra que os irmãos carmelitas já
celebravam a festa dedicada a Nossa Senhora em 1745 (1746) na capela do Senhor dos
Perdões (atual Igreja Nossa Senhora das Mercês; popularmente conhecida como Mercês de
Baixo).
Mostra-se por parte da Venerável Ordem do Carmo que os terceiros da dita Ordem
festejaram a dita Senhora na capela de Santa Quitéria no ano de 1747 como constava da
provisão a fls.68 e que também tinham feito festa a Senhora na capela do Senhor dos
Perdões no ano de 1745 e 1746 pelo que constava do documento fls.66 e legitimamente se
mostra pela certidão de fls. 70 em diante que a instituição e confirmação de fls.60 da dita
472
venerável Ordem do Carmo fora em quinze de maio de 1751 e pela certidão de fls.79 da
provisão Régia se mostra que a S. Mag.° Fid. ma concedeu licença para erigirem a dita
Irmandade e que seria obrigada a dar conta no Juízo Secular e outrossim se alega que fora a
primeira que fizera nesta Vila a sua festividade e como tal devia ter a preferência[...]
(TRINDADE,1951, p. 104) .
No que diz respeito à construção da igreja dos Terceiros Carmelitas em Vila Rica, Augusto de
Lima Junior diz que
[...] erigiram eles a belíssima sede para o seu sodalício, ricamente guizada e ornada, não só
com obras de arte escultoria, como a bela fonte da sacristia (gravada segundo os riscos
característicos das esculturas de Mafra), como no capricho com que se rematam o escudo
do frontispício, portas e janelas, magnífico mobiliário e tudo o mais concernente ao culto
divino [...] (LIMA JUNIOR, 1957, p. 199).
Ainda há outros estudos feitos por Germain Bazin, que destacam a genialidade de Aleijadinho
para com o templo dos terceiros Carmelitas de Vila Rica “igreja desenhada por seu pai em
1766 e reformada em 1770-1771 [...] o brasão do Carmelo liga-se harmoniosamente ao olho-
de-boi, mas se destaca talvez um pouco demais, do motivo da portada, que ainda é bastante
escasso [...].” O autor destaca que uma das mais perfeitas obras empreendidas por
Aleijadinho, além do templo dos terceiros franciscano de Vila Rica, é a igreja dos terceiros
Carmelitas de Sabará (BAZIN, 1971, p. 134 e 137). Também Sylvio de Vasconcellos destaca
que sobre o templo dos carmelitas de Vila Rica:
O projeto é de Manuel Francisco Lisboa, modificado por Antônio Francisco após a morte
do pai. As modificações suprimem janelas e portas, ondulam as paredes e acrescentam
decorações sobre a portada, com querubins e coroa, aprovadas na experiência feita na
capela carmelita de Sabará. Aqui o desenho se amplia e a fachada ganha monumentalidade
pela incorporação do óculo a sua parte inferior, configurado em olho de boi (LEFÈVRE &
VASCONCELLOS, 1968, p. 28-29).
Já Maria Agripina lembra que além da intervenção de Aleijadinho, quanto ao risco da igreja
do Carmo de Vila Rica, há dois altares laterais que foram feitos pelo artífice – os altares
dedicados a “São João Batista e a Nossa Senhora da Piedade, bem como os guarda-pós e
camarins dos altares de Jesus no Horto e Santa Luzia e do Senhor dos Passos e São José de
Botas” (NEVES, 2011, p. 168-170).
473
No que diz respeito à Ordem dos terceiros Carmelitas da Vila do Ribeirão do Carmo3 foi
concedido pela Santa Sé à criação desta na dita Vila em 1786, pois antes dessa concessão os
irmãos professavam na Ordem de Vila Rica. Após a deliberação a construção do templo foi
iniciada. (SALLES, 2007, p. 100). A igreja foi construída numa praça da cidade onde se
defrontam três monumentos.
um deles é a Casa de Câmara e Cadeia [...] em frente estão as capelas de São Francisco de
Assis e de Nossa Senhora do Carmo [...] ambas as igrejas incorporam o estilo inconfundível
de Antônio Francisco Lisboa, notado na ornamentação da portada, nas sineiras cilíndricas e
no desenho dos frontões (LEFÈVRE &VASCONCELLOS, 1968, p. 34).
Em Sabará, a igreja dos terceiros Carmelitas exibe uma importante arquitetura, como
observou Sylvio de Vasconcellos “é importante porque corresponde a evolução do modelo
tradicional provindo da metrópole, e que pela primeira vez se traduz em pedra na Matriz de
Caeté e o esquema nativo que no final do século, se implantaria nas Minas” (Idem, 1968, p.
18). Na sobre-porta, Aleijadinho ensaia o baixo e alto-relevo em composições que
testemunham seu gosto pessoal e que caracterizariam a arquitetura religiosa mineira. E no
interior da igreja duas obras primas completam o trabalho extraordinário do gênio: são as
imagens de São João da Cruz e de São Simão Stock (idem, p. 19).
Uma das peculiaridades dos templos das Ordens Terceiras Carmelitas espalhadas por todo o
Brasil Colônia são as distribuições espaciais dos templos, isto é, praticamente todos os
templos têm no altar-mor a imagem de Nossa Senhora do Carmo, Santa Teresa D’Ávila e
Santo Elias e na nave da igreja composta por seis altares laterais (algumas igrejas com menos
altares laterais como no caso de Mariana e Sabará4 com dois altares cada uma) dos quais se
remetem a paixão de Cristo. William Martins mostrou que também a igreja da Ordem
Terceira do Carmo no Rio de Janeiro possui seis altares laterais, dos quais, representam à cena
da Paixão de Cristo.
3
Atual cidade de Marina.
4
Em Sabará, os altares laterais remetem aos santos Carmelitas (São Simão Stock e São João da Cruz) e não a
Paixão de Cristo.
474
onde contemplava Jesus no Horto, na prisão, atado à coluna, representado no sudário, o
Senhor da Cana Verde e o dos Passos (MARTINS, 2009, p. 293-295).
A religiosidade barroca recorria nas artes plásticas toda forma de simbolismo, já que o aparato
cenográfico das igrejas servia para mexer com o modo de ver e pensar da população, como
analisou Adalgisa Arantes Campos:
De acordo ainda com Adalgisa Arantes Campos, todos os cenários que as igrejas desse
período tinham mexiam com o modo de ver e pensar daquela população que a ali habitava.
Daí também, o temor e o cuidado para com a morte. Essa preocupação ocupava
constantemente o pensamento das pessoas, as iconografias remetiam ora o bem morrer, isto é,
o céu, o Paraíso; ora o mal morrer, ou seja, o Purgatório e as chamas do inferno
(MENDONÇA, 2012).
E essa preocupação com o bem morrer foi reforçada e reavivada com o Concilio Tridentino
através da Devotio Moderna (DAVIDSON, 1991, p. 6), cujo sustentáculo era a imitação de
Cristo. Essa imitação à Cristo se baseava na solidariedade e na caridade empreendida por
aqueles irmãos que mais precisavam, quando doentes e ou quando estavam no leito de morte.
475
É costume pio, antigo e louvável na Igreja Católica enterrarem-se os corpos dos fiéis
cristãos defuntos nas Igrejas e cemitérios delas: porque como são lugares a que todos os
fiéis concorrem para ouvir, e assistir as Missas e Ofícios divinos e orações tendo à vista as
sepulturas se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor as almas dos ditos defuntos
especialmente os seus, para que mais cedo sejam livres das penas do Purgatório e
esqueceram-se da morte, antes lhes será aos vivos muitos proveitos ter memória delas nas
sepulturas.5
Tendo como sepulcro o espaço do sagrado, isso assegurava ao irmão defunto a sensação de
ser constantemente lembrado, seja durante as missas específicas, seja nas missas cotidianas.
Em “O sagrado e o profano” Mircea Eliade (2010) nos aponta que o Templo é o lugar santo
por excelência, a casa de Deus, o templo santificaria continuamente o Mundo (IDEM, p. 56).
Para este mesmo autor diz que “A basílica cristã e mais tarde a catedral retoma e prolonga
todos esses simbolismos. Por um lado, a igreja é concebida como imitação da Jerusalém
celeste e isto desde a antiguidade cristã; por outro lado, reproduz igualmente o Paraíso ou o
mundo celeste.” (Idem, p. 57). Por isso, muitos irmãos desejavam ser sepultados no interior
das igrejas, e principalmente, perto do altar-mor ou dos altares laterais, mas para ter tal
privilégio, os irmãos precisavam ter participado, durante a sua vida terrena, da Mesa
Administrativa da Ordem.
Uma vez garantida à sepultura, era necessário o cuidado com o destino da alma, por isso,
muitos irmãos, antes de morrerem, deixavam, em testamento, pagas as missas de sufrágios
pelas suas almas. Este número de missas variava de acordo com a posse de cada irmão. As
possibilidades de salvação das almas atraíam as pessoas abastadas a ingressarem nas
associações religiosas mineiras.
De acordo com o Estatuto da Ordem do Carmo de Vila Rica o Padre Reverendo era o
responsável na aplicação das missas de sufrágios “que se houverem de fazer pelas almas dos
Irmãos e Irmãs defuntos se farão com toda a brevidade possível”.6
5
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia Livro IV Tit. LIII
6
ACCOP: Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de Vila Rica de 1755. Microfilme 199. Vol. 2418
476
Considerações finais
Enfatizamos que, durante muito tempo, foi à população laica que ao ingressar em associações
religiosas, dedicaram-se, não somente com a caridade grupal, mas também, se empenharam
para a construção dos templos, além da participação nas celebrações cotidianas.
Os colonizadores, que aqui se estabeleceram, trouxeram uma forte herança cultural européia,
o barroco, que encontrou características próprias nas terras do ouro, este barroco teve terra
fértil nas Minas, já que os grandes mestres mineiros como Aleijadinho e Ataíde foram os
representantes máximos deste estilo; que se fundiu ao Rococó, um barroco-rococó até então
nunca visto, criando inovações singulares, únicas, admiradas até os dias atuais, nas igrejas das
Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco de Vila Rica (Ouro Preto).
Referências
ACCOP - Arquivo Casa dos Contos de Ouro Preto: Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de
Vila Rica de 1755. Microfilme 199. Vol. 2418.
ARIÈS, Phillipe. O homem diante da morte.. Vol. I. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves,
1981.
477
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Mecenato leigo e diocesano nas Minas Setecentistas. In:
RESENDE, Maria Efigênia Lage de & VILLATA, Luiz Carlos (Orgs.). As Minas
Setecentistas 2: História de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Autêntica; Companhia do
Tempo, 2007.
JUNIOR LIMA, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Edição
do autor, 1957.
LEFÈVRE, Renée &VASCONCELLOS, Sylvio de. Minas: Cidades Barrocas. São Paulo:
CIA Editora Nacional. Ed. USP, 1968.
NEVES, Maria Agripina. Do Monte Carmelo a Vila Rica: aspectos históricos da Ordem
Terceira e da Igreja do Carmo de Ouro Preto. Ouro Preto: Edição da autora, 2010.
SALLES, Fritz Teixeira de. Associações Religiosas no Ciclo do Ouro: introdução ao estudo
do comportamento social das Irmandades de Minas no século XVIII. São Paulo: Perspectiva,
2007.
__________. Vila Rica do Pilar. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1982.
TRINDADE, Cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro Preto: Crônicas Narradas
pelos documentos da Ordem. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951.
478
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e
ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º
arcebispo e do Conselho de sua Magestade: proposta e aceita em Sínodo Diocesano, que o
dito senhor celebrou em 12 de junho de 1707. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2007.
479
480
O patrimônio religioso e sua preservação em Nova Iguaçu (RJ)
Luiza Georgia Viana Cunha, Nathalia Borghi Tourino Marins1
Introdução
Apesar do tombamento provisório dos três templos, verificou-se com o levantamento até
agora conduzido que houve descaracterização e deterioração dessas igrejas, cuja preservação
torna-se importante quando se deseja pensar aquela microrregião como polo irradiador de
turismo religioso. Christian Oliveira (2004, p. 90), numa reflexão ideológica sobre a
sustentabilidade do turismo religioso, traz a importância da preservação das formas originais
dos templos, considerando o santuário natural (original) como um conveniente atrativo no
âmbito do turismo religioso. Face à importância histórica desses templos, também na
construção da identidade do Bispado de Nova Iguaçu (a Diocese de Nova Iguaçu foi criada
somente em 26 de março de 1960), o trabalho desenvolvido não é apenas o de resgate de
história, mas, na conceituação de Jacques Le Goff, de história e memória, pois o
levantamento documental e presencial trabalhará não apenas com o registro histórico, mas
também com o memorialístico.
1
Discentes do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Bolsistas do PIBEX (Programa Institucional de
Bolsas de Extensão). Orientadas pelo Prof. Dr. João Henrique dos Santos. Contatos: luiza.gviana@gmail.com;
nathaliabtmartins@gmail.com.
481
dão forma, conteúdo, função e sentido diversos, de acordo com as épocas e as necessidades
do instante passageiro. (COSTA; SCARLATO, 2011, p. 37).
Em certa medida, essas ações representariam uma mudança de paradigma, visto que, nas
palavras de Christian Oliveira, “os espaços religiosos, por força de uma separação
estabelecida pelos agentes católicos ou estudiosos da religião, são verbalmente
desqualificados de seu papel turístico” (OLIVEIRA, 2004, p. 27). Efetivamente, a região
abrangida pela Diocese de Nova Iguaçu não tem qualquer tradição de turismo religioso, seja
por festas de romaria e procissões devocionais, quer seja pela visitação a templos histórica e
culturalmente importantes.
Segundo o mesmo autor, a recriação do símbolo é necessária na região para que possa haver,
por parte da população, uma reapropriação e ressignificação do mesmo, podendo-se, talvez,
dar início a uma tradição de turismo religioso ainda inexistente.
A Diocese de Nova Iguaçu possui vários templos sob sua responsabilidade tombados pelo
INEPAC, dos quais três foram privilegiados para estudo e avaliação de seu estado
482
preservacional, a saber a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe (Igreja Velha), a Igreja de
Nossa Senhora da Conceição de Marapicu e a Igreja de Santo Antonio de Jacutinga, atual
Igreja da Prata.
A primeira foi construída entre 1750 e (presume-se) 1753, data inscrita em seu frontão.
Predomina o estilo barroco, de forte influência jesuítica, em sua construção, muito embora
apresente referências de outras épocas em sua composição. Localiza-se na Rua da Capela s/nº,
no bairro de Marapicu e foi tombada provisoriamente na mesma data da Igreja de Santo
Antonio de Jacutinga, através do Processo E-12/0.117/89. A Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Marapicu é, dos três bens tombados, o mais antigo, pois sua construção data de
1736, tendo sido ampliada e reformada em 1853. Seu interior foi descaracterizado no século
XX, com o desaparecimento dos altares colaterais e a venda da talha do altar-mor. Foi
tombada provisoriamente na mesma data dos outros dois templos, através do mesmo
Processo, e localiza-se no Largo do Marapicu. A Igreja de Santo Antonio de Jacutinga, ou
Igreja da Prata, como é conhecida atualmente, foi construída em 1773. Localiza-se no
município de Belfort Roxo, sob a jurisdição episcopal de Nova Iguaçu, e remonta a tempos
anteriores à criação do município de Nova Iguaçu, à época denominado Engenho da
Maxambomba. Foi tombada provisoriamente em 12/06/1989, através do mesmo Processo dos
outros dois templos, e localiza-se na Estrada Plínio Casado s/nº.
No âmbito do presente trabalho, é importante que se faça uma breve análise sobre o conceito
de turismo religioso, na esfera do turismo.
Turismo religioso é aquele empreendido por pessoas que se deslocam por motivações
religiosas e/ou para participação em eventos de caráter religioso. Compreende romarias,
peregrinações e visitação a espaços, festas, espetáculos e atividades religiosas. (DIAS;
SILVEIRA, 2003, p. 17).
483
Como se pode depreender do trecho acima, o turismo religioso compreende as atividades
religiosas de um modo geral, vivenciadas em outra localidade, que não a de habitação do
turista. Somente isso, entretanto, não responde à dúvida recorrente da relação entre turismo e
religião, ou, melhor ainda, entre o turista e o religioso, cumpridor de seus deveres espirituais.
Antes é preciso que fique clara a motivação que leva um turista ao turismo religioso. Como
bem nos traz Christian de Oliveira, “O turismo religioso – e isso é essencial – não é de
religiosos, nem de religião. É um turismo motivado pela religiosidade, pela cultura religiosa”
(OLIVEIRA, 2004, p.52). Sendo assim, deve-se compreender o turista em turismo religioso
como um indivíduo em busca de cultura religiosa, seja essa a sua própria cultura, e assim ele
estaria em busca de locais sagrados para sua crença, seja essa outra cultura, e então ele pode
estar sendo movido pela curiosidade e interesse em novos conhecimentos.
O turismo religioso sempre está muito relacionado com outras formas de turismo, e
principalmente com o cultural. Devemos ter sempre em mente que o turismo religioso
utiliza as mesmas formas de organização e infra-estrutura que qualquer outra forma de
turismo, o que caracteriza mais ainda a multifuncionalidade (DIAS; SILVEIRA, 2003, p.
18).
De acordo com os mesmos autores, ainda que se pense que as motivações religiosas não são
compatíveis com as motivações turísticas no sentido de lazer de um modo geral, não se pode
deixar de ter em mente que o turista religioso, na condição de ser humano, continua
necessitando de alimentação, descanso e relaxamento (DIAS; SILVEIRA, 2003, p. 15).
Considerando que a região abrangida pela Diocese de Nova Iguaçu não possui a tradição do
turismo religioso, como já dito, seja por festas de romaria e procissões devocionais, quer seja
pela visitação a templos histórica e culturalmente importantes, a recuperação das igrejas cujo
levantamento foi realizado e de outras também pertencentes à Diocese é uma forma de
484
explicitar para as autoridades o grande potencial turístico (e, consequentemente, econômico),
não explorado, da região.
A Igreja da Prata, construída à imagem e semelhança das igrejas e capelinhas que existiam na
região, às margens do antigo caminho que ligava o engenho de Maxambomba, atualmente a
cidade de Nova Iguaçu, à fazenda do Brejo, entre 1733 e 1791, localizada em uma elevação
que, hoje em dia, domina a paisagem urbana circundante. A igreja pode ser vista até mesmo
por quem passa pela Via Dutra (BR 116, rodovia que liga Rio e São Paulo). O terreno é
ajardinado e cercado por gradis de ferro e conta com construções recentes, para uso da
paróquia, que interferem na qualidade arquitetônica do conjunto. Os membros da comunidade
local tem um enorme apreço pela construção, o que colabora para manter a igreja em um bom
estado conservacional. Entretanto, algumas reformas feitas comprometeram a caracterização
da edificação, como as construções adjacentes e a pavimentação do acesso principal à igreja,
que, originalmente, consistia de piso pé-de-moleque, foi acimentado em placas retangulares.
O conjunto arquitetônico sofreu outras mudanças que contribuíram para sua descaraterização
ao longo dos anos, tais quais: bancos de jardim e postes de iluminação colocados junto à
fachada frontal e o antigo cruzeiro, junto à entrada, foi demolido. Em entrevistas com
autoridades da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, estas têm sugerido que o piso original seja
restaurado e que um mobiliário menos conflitante com o exterior da igreja seja adotado.
O processo de tombamento conta com fotos de Waldick Pereira, de 1968, que mostram o
exterior da igreja, ainda com poucas construções adjacentes e o altar principal que se situa a
frente da ábside que foi demolida e substituída por uma parede revestida de pedras.
Uma notícia de jornal, integrada aos processos de tombamento, cita um caso em que a Igreja
sofreu com obras que alteraram suas características originais. A noticia se refere ao terceiro
centenário da Igreja da Prata, datada de 03 de abril de 1976, publicada no Jornal de Hoje
(Nova Iguaçu), relatando uma festa comemorativa com inauguração dos novos salões, pelo Sr.
Bispo Diocesano Dom Adriano Hipólito, provavelmente as novas instalações responsáveis
pela descaracterização da igreja, e plantas baixa e de cobertura, mostrando os novos cômodos.
485
A segunda igreja citada é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Queimados, do final do
século XIX, localizada na Praça Nossa Senhora da Conceição em Queimados. De acordo com
o inventário de bens culturais, a igreja se encontra em bom estado de conservação e de
preservação, embora tenha sofrido algumas alterações. O entorno da igreja engloba a linha de
trem da antiga RFFSA (atual SuperVia) e a estação de Queimados, bem como ruas com
intenso comércio varejista com edificações de alturas iguais ou menores que a da igreja.
As obras da igreja tiveram início em 1878, nas cercanias onde Queimados teve o início de
sua povoação. A cidade surgiu após a inauguração da estação de trem, em 1858. Em 1949, foi
realizada a obra da fachada atual, após parte da antiga fachada, bem como algumas paredes,
ter desabado. A fachada antiga contava com um frontão triangular de estilo neoclássico, ao
passo que, a nova é composta por uma torre central mais alta, que domina a visão da
edificação, onde foi embutido um oratório. Também pela década de 50, foram refeitos os
altares.
O inventário dos bens culturais segue com fotos do altar-mór, altar lateral e um oratório que
abriga uma imagem de São Jorge Guerreiro. A identificação fotográfica mostra detalhes do
exterior. Na planta anexa, vê-se a simplicidade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição: em
suma, conta com a nave principal, que recepciona os visitantes e leva ao altar-mór, ladeado
por dois corredores que levam à sacristia e, além dela, a um anexo, construído recentemente.
Há, também, uma foto de 1932, publicada em Polyanthéa Comemorativa ao Primeiro
Centenário do Município de Nova Iguassú, mostrando a igreja com seu antigo frontão
neoclássico triangular.
A igreja não conta com tipo algum de proteção existente, embora tenha sido feita a proposta
de um tombamento estadual. O levantamento realizado para o INEPAC foi feito, bem como
486
os das outras igrejas por nós estudadas, por Ney Alberto Gonçalves de Barros, do grupo de
trabalho para a preservação do patrimônio natural e cultural de Nova Iguaçu.
O acesso até a entrada, no alto da colina, é feito por um caminho rusticamente calçado de
pedras. Para se chegar ao cemitério próximo (que ainda se encontra em uso), existe um
caminho por uma aleia arborizada, aos fundos da igreja. À direita da mesma, foi levantado um
coreto de concreto.
A igreja possui uma fachada simples, com uma porta de acesso principal ao centro e três
janelas horizontalmente distribuídas, encimadas por um frontão triangular. À esquerda da
fachada, há uma torre acoplada ao corpo principal, a qual possui uma pirâmide de concreto
em seu topo. Outros elementos importantes são: o coro, o sino, a pia batismal em lioz e a pia
de água benta. Apesar de sua beleza e importância, até pela localização elevada, a fachada
principal se encontra encoberta por eucaliptos plantados em uma área particular, reduzindo
assim, sua imponência, a qual é lembrança direta da ocupação pioneira de Nova Iguaçu, mas,
ainda assim, a igreja sofreu algumas alterações, como a substituição do forro da nave por uma
laje pré-moldada curva e o desaparecimento, tanto do altar-mór, quanto dos altares auxiliares.
As terras onde a igreja se encontra pertenciam, em 1736, ao capitão Manuel Pereira Ramos e
à sua mulher, Helena de Andrade Soto Maior, e foi então que, provavelmente, eles permitiram
que se iniciasse a construção dessa edificação. No ano seguinte, a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Marapicu já estava em pleno funcionamento. No ano de 1752, a igreja recebeu a
autorização do bispo do Rio de Janeiro para a construção de uma tribuna de honra, condição
que o casal impôs para realizar a doação das terras para a construção da igreja.
Em 1853, a igreja passou por reformas, contando com reparos na sacristia e no altar-mór,
reedificação da tribuna de honra e uma ampliação dos fundos, para locar a residência dos
487
párocos. Em 1968, entretanto, a igreja passou por reformas que a descaracterizaram, como,
por exemplo, a construção de um lanternim sobre o altar-mór. Mais tarde, esse lanternim foi
retirado e a volumetria original foi recomposta.
A Capela de Nossa Senhora de Guadalupe situa-se sobre uma pequena elevação, em uma
área desocupada que, atualmente, serve de pasto. De todos os templos religiosos estudados, a
capela é a que se encontra em pior estado preservacional, com um grau precário de
conservação. Ela possui uma caracterização preservada, embora tenha sofrido leves
alterações.
O acesso à capela ocorre através de uma estrada de terra, Rua da Capela, que está com um
trecho interrompido. Os outros caminhos que levam à igreja também são tão rudimentares
quando essa estrada, além de se tratarem de trilhas alagadiças. As áreas que a cercam são
limítrofes a um terreno não ocupado da prefeitura de Nova Iguaçu e são intensamente
arborizados.
A capela foi fundada pelo capitão Manuel Pereira Ramos, com uma procissão, em 4 de março
de 1750 e, apesar de não haver documentos que atestem que o início da construção se deu
nesse mesmo ano, ela provavelmente foi concluída em 1753, data inscrita em seu portal. Há
notícias de que, em 1956, a capela, ainda com diversos ornamentos que desapareceriam
posteriormente (como, por exemplo, o ornamento da portada, o altar-mór e peças do
madeiramento do coro), foi usada como um depósito de laranjas, produto que já foi
importantíssimo para o mercado agrícola da cidade. De fato, Nova Iguaçu já teve a fruta como
centro de sua economia. A cidade abrigava diversas fazendas com imensos laranjais e, até
hoje, é conhecida como cidade das laranjas.
Desde o final dos anos 50, a capela passou por um período severo de abandono, chegando até
mesmo a ser usada com um estábulo. Em 1977, a comunidade local voltou a ocupar a capela,
que recebeu reparos no revestimento e no madeiramento da cobertura, sob a chefia da irmã
Célia Tavares dos Santos.
488
laterais em beira-sobeira. Também na fachada, em uma abertura na lateral, há uma esquadria
com um vitral. Uma das mais célebres características da capela é sua integração à paisagem,
característica compartilhada com as outras igrejas estudadas de alguma forma, o que pode ser
pensado ser um tipo de padrão arquitetônico das construções dessa região, reunindo uma série
de marcas de épocas diferentes. Infelizmente, é a que possui estado mais precário atualmente.
A sacristia e a tribuna, à esquerda e à direita do altar-mór, respectivamente, parecem ter sido
demolidas, e o coro se encontra em estado deplorável.
Recentemente, a Capela de Nossa Senhora de Guadalupe passou por reformas realizadas por
membros da comunidade local, visando minimizar a ação do tempo e de vândalos. Isso mostra
o tamanho do apreço dos moradores da área pelo templo, outra característica que, felizmente,
é compartilhada por todas as igrejas estudadas.
Considerações finais
Referências
489
DIAS, Reinaldo; SILVEIRA, Emerson J. S.. Turismo religioso: ensaios e reflexões.
Campinas: Alínea, 2003.
OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro. Turismo religioso. São Paulo: Aleph, 2004.
490
491
O significado da luz em templos religiosos – uma análise da
influência da luz na arquitetura religiosa
Alfredo Damian Pacher Majul1, Camila Szczerbacki Costa2, Mariana Campos Lima Rocha3
Introdução
A luz (natural ou artificial) na arquitetura pode possuir diversas funções e significados além da iluminação em si. A
luz, segundo Paulo Marcos Mottos Barnabé é um material instável no processo de projetivo, assim como os odores, os
sons, etc. Esses materiais são caracterizados por interferir diretamente na nossa percepção de um espaço (cores e
estrutura) e dos materiais estáveis que são os elementos físicos usados para a construção. Além desses fatores não
podemos deixar de mencionar que cada indivíduo, influenciado por suas experiências e personalidade, terá uma
interpretação daquilo que vê, não totalmente diferente, mas nem totalmente igual. Fato é que a luz pode alterar o
estado de ânimo de uma pessoa.
Este trabalho se propõe a mostrar exemplos disso e tentar de forma empírica (a partir da leitura de memoriais e artigos
e pura observação) interpretar o significado ou a função da luz em cada obra.
Significados
As contribuições da luz para um espaço e os significados de seu uso podem ser divididas
primeiramente em claro e escuro. Um templo com pouca (ou nenhuma) iluminação é um
espaço solene e às vezes opressor que induz o fiel à reflexão, ou pode estar relacionado com o
medo ou a morte. Um templo bem iluminado pode significar o oposto. Os casos de presença
de luz têm um leque maior de significados para a luz. Geralmente objetiva ascender ao divino,
mas pode ter outros significados associados. A luz pode ser tema principal do edifício, sendo
um elemento decorativo; indicar trajetos; induzir o olhar para pontos importantes como altar
de uma igreja católica e definir elementos construtivos.
1
Graduando pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: pacher_alfredo27@hotmail.com.
2
Graduanda pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: camila.szczerbacki@gmail.com.
3
Graduanda pela FAU/UFRJ. Orientador: João Henrique dos Santos. Contato: marianacamposlr@gmail.com.
492
A seguir estão os exemplos analisados organizados em ordem cronológica para permitir a
observação e comparação dos usos e significados da luz através do tempo e sua evolução.
Na Catedral de Notre-Dame de Paris, construída nos séculos XII e XIII, notamos claramente a
influência do estilo gótico. Esse estilo permite a ligação da terra ao céu e no interior de uma
catedral do estilo, o crente é impelido à ascensão pela afirmação constante da verticalidade,
pela monumentalidade das paredes que parecem erguer-se segundo uma teoria contrária à da
gravidade, tornando-as leves, deixando por elas filtrar o colorido dos grandes vitrais numa
aura etérea. Vitrais esses que ao serem penetrados pela luz do Sol, reforçam o efeito de
espiritualidade do ambiente, por suas imagens religiosas que são realçadas e pelo jogo de
cores que eles conferem. A rosácea presente no interior da Igreja faz alusão a personagens
cristãos como Jesus Cristo (que é representado pelo sol) e Maria (representada pela rosa),
mais uma vez o uso da luz mesmo que não puro auxilia o arquiteto a fazer a conexão do
visitante e o mundo religioso.
4
Disponível em <http://www.bigviagem.com/wp-content/uploads/2009/06/catedral-notre-dame-de-paris.jpg>.
Acesso em: 18 de ago. 2013.
5
Disponível em <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d8/North_rose_window_of_Notre-
Dame_de_Paris,_Aug_2010.jpg>. Acesso em 18 de ago. 2013.
493
vertical atrás dos bancos. Essa abertura explora a luz como elemento palpável, aproximando o
visitante de um elemento não-palpável, retratando de forma incomum, porém eficaz, a
conexão que a igreja tenta estabelecer entre o nível material e um nível superior. A luz nesta
igreja contribui tanto para a iluminação como para a conformação do espaço. O espaço
resultante é o de um cubo formado por planos que são separados em suas arestas pelos rasgos
de luz.
6
Figuras 3 e 4 – Interior da Capela do Monastério Beneditino.
Com grande armação de vidro no teto, A Catedral de Brasília é uma das grandes obras de
Niemeyer. A catedral foi inaugurada em 1970. A estrutura, que possui 40 metros de altura,
conta com 16 arcos de concreto que apontam para cima. No interior, o que mais chama
atenção é o vitral do teto, que rodeia em 360° a estrutura da catedral. A armação de vidro
permite que a capela seja iluminada pelo céu da capital federal. Considerando o trajeto que o
visitante faz para chegar podemos identificar o mais importante significado da luz nessa
catedral. Primeiro o visitante precisa descer por uma passagem subterrânea escura, assim
experimenta a submissão, pois se curva para entrar, já dentro do espaço escuro ele avista uma
luz ao fim desse túnel, o que representa a redenção, para então adentrar a nave principal. O
visitante vem de um espaço de intensa luminosidade, passa por um espaço escuro e termina
num espaço muito claro, porém abrandado pelos vitrais.
6
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-48834/classicos-da-arquitetura-capela-do-monasterio-
beneditino-gabriel-guarda-e-martin-correa>. Acesso em 7 de out. 2012.
494
Niemeyer cria um cosmo onde a luz se expressa, revela a forma e a sombra contrastante
que enfatiza leveza. Não enfatiza em um jogo de claro-escuro, não se interessa pelos
volumes sombreados, mas apela para posição dualística da figura sobre o fundo, o forte
contraste entre áreas iluminadas e áreas sombreadas. O volume sob o sol. (YÁVAR, 2013).
Aqui vale falar sobre dois exemplos de catedrais que são contemporâneas e embora não sejam
idênticas, se desmembradas em partes, tem muitas semelhanças, na forma, na função e no
significado dos elementos. São elas: a Catedral de Santa Maria da Assunção e a Catedral
Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro. A primeira está localizada em São
Francisco, Califórnia e é um projeto realizado pelos arquitetos Pier-Luigi Nervi e Pietro
Belluschi no ano de 1971. Já a segunda é carioca, localizada no Centro, Rio de Janeiro e foi
projetada pelo arquiteto Edgar Fonseca. Primeiramente o elemento mais marcante para este
estudo; ambas catedrais possuem uma cruz na cobertura cujos braços se estendem pelo corpo
da construção. Elas parecem ser o símbolo máximo da aproximação de Cristo com seus fiéis e
a luz tem papel fundamental nessa representação já que as cruzes são feitas de elementos de
vidro. Na de Santa Maria da Assunção a cruz possui hastes esbeltas e é a própria cobertura já
na do Rio a cruz é do tipo grega (as quatro hastes são iguais) e de largas proporções e está
inserida num círculo. A forma das duas catedrais ajuda a reforçar o sentido de aproximação
com Deus, as duas indicam o céu. Em Santa Maria seu corpo é formado por hiperbolóides que
fazem a transição da base quadrada até a cobertura. Em São Sebastião o corpo é um tronco de
cone, ou seja, afunila. Quanto ao prolongamento de cada haste da cruz, que são vitrais
também; não se sabe ao certo em Santa Maria, mas em São Sebastião cada um possui uma cor
e um significado e são eles as quatro notas características da Igreja: una, santa, católica e
7
Disponível em <http://4.bp.blogspot.com/_WHXkQnHsnQw/TBjl2h_7WiI/AAAAAAAABXU/i3tAQtE-
6ds/s1600/Brasilia-Cathedral.jpg>. Acesso em: 18 de ago. 2013.
8
Disponível em <http://www.gazetadopovo.com.br/midia/tn_620_600_catedral_de_brasilia_040509.jpg>.
Acesso em 18 de ago. 2013.
495
apostólica. Os vitrais (rasgos de luz) presentes no corpo das catedrais evidenciam a
verticalidade, ou seja, a ascensão ao céu. Em Santa Maria existem ainda mais alguns vitrais
nas laterais, mas neles luz tem função apenas de ressaltar a imagem, ou seja, decorativa.
Quanto à iluminação geral; em Santa Maria não parece ser eficiente se considerarmos apenas
a luz natural proveniente da cruz e seus prolongamentos, mas a base quadrada é formada por
alguns painéis de vidro que desempenham bem a função; em São Sebastião os vitrais são
largos que facilitam a entrada de luz.
9
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-97753/classicos-da-arquitetura-catedral-de-santa-maria-da-
assuncao-pier-luigi-nervi-e-pietro-belluschi>. Acesso em 14 de ago. 2013.
10
Disponível em <http://www.catedral.com.br/fotos.php#fotos/catedral_frontal.jpg>. Acesso em: 14 de ago.
2013.
496
remeter a uma deidade específica). Para destacar este elemento e a sombra que se projeta ao
longo do dia no chão conforme a posição do sol, o arquiteto limitou as outras aberturas.
Assim podemos identificar relações de luz e movimento, cheios e vazios, e ainda escuro e
serenidade. A luz, aqui, não tem como foco a iluminação, ela é um elemento decorativo, mas
tão bem pensado é o projeto que, como já foi citado aqui, a sombra se projeta no chão e vai
formando um desenho ao longo do dia, que varia conforme a hora e também conforme a
estação do ano.
Um dos principais aspectos da arquitetura de Álvaro Siza é a relação de seus edifícios com a
luz natural, como podemos perceber na Igreja de Santa Maria em Portugal.
Este espaço está inundado por uma luz que também pode ser atravessa uma janela na torre. Os
dois grandes painéis de vidro da outra torre simbolizam a transparência da igreja, e atuam
como uma entrada adicional.
Neste exemplo concreto, a luz natural entra através de três grandes aberturas que se cortam no
nível máximo da parede curva. No altar há dois grandes espaços iluminados que admitem a
luz na capela. A abertura horizontal ao longo da parede sul-leste atua como um marco das
montanhas que rodeiam o terreno. Fazendo nesse caso não apenas uma alusão a elementos da
Igreja e sim estabelecendo uma relação com o exterior, a natureza. A Igreja tem como papel
conectar o espaço físico com o imaterial e nesse caso se alcança essa conexão sem isolá-lo.
11
Disponível em <http://www.galinsky.com/buildings/churchoflight/>. Acesso em 10 de out. 2012.
497
Figuras 13 e 14 – Exterior e interior da Igreja de Santa Maria.12
Este exemplo parte da idéia de construir o silêncio num mundo cheio de ruído. A Igreja Nossa
Senhora das Necessidades de Célia Faria e Inês Cortesão em Portugal, representa uma pausa,
seu carácter espiritual está presente, mas não intimida, protege.
A forma inclinada do teto da assembleia é repetida na capela, sem tocar na parede do altar,
permitindo que a luz entre e se espalhe, enfatizando o momento solene. A luz que se faz
presente mesmo silenciosa é usada não só como iluminação mas como uma metáfora, um
mesmo elemento quando moldado de diferentes formas pode atribuir um valor ao ambiente,
nesse caso um valor espiritual.
12
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-56992/igreja-de-santa-maria-alvaro-siza/>. Acesso em 10
de out. 2012.
498
Figuras 15 e 16 – Interior da Igreja Nossa Senhora das Necessidades.13
Nesta igreja a mensagem cultural é comunicada através do jogo de luz (facilitado pela
localização numa montanha) e sombras que se dá a partir das aberturas feitas. A Igreja de
Seed, na China, possui em sua fachada sudeste uma abertura cruciforme que permite a entrada
de luz na parte da manhã. O recorte de luz substitui um objeto comum na Igreja, a luz, mas ao
mesmo tempo o faz de forma a conectar o seu interior com o exterior. A fachada oeste é
sólida e protege do sol da tarde. Ao redor da construção estão distribuídas três aberturas com a
altura do edifício, são os acessos que também contribuem para a iluminação. Há ainda as
aberturas que juntas lembram uma escada no teto. A lembrança da escada remete ao paraíso,
um jogo de luz fazendo uma metáfora em que o visitante ali presente pode alcançar aos céus.
As aberturas somadas formam um espaço que possui iluminação eficiente durante o dia. O
jogo de luz e sombra aliado aos materiais e texturas tem como objetivo contribuir para a
conformação do espaço, bem como sua iluminação.
13
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-56243/igreja-nossa-senhora-das-necessidades-celia-faria-
ines-cortesao/>. Acesso em 11 de set. 2012.
499
Considerações finais
A partir desse estudo percebemos que a iluminação, assim como a arquitetura de uma maneira
geral, acompanha a mentalidade da sociedade de seu tempo. Na arquitetura religiosa a
tradição tem bastante peso, mas podemos perceber que mesmo de forma sutil ela também
acompanha as inovações tecnológicas. A inovação permitiu projetos mais ousados, mas que
em sua essência são como seus antepassados. Os bons projetos usam a luz com o objetivo de
reforçar a tradição, colocam significados no uso da luz, não é apenas uma iluminação geral e
puramente funcional. Outra conclusão tirada é que o uso da luz em templos não tem um certo
ou errado, não há um padrão a ser seguido. As intenções, os símbolos e significados podem
ser expressos de diversas formas (principalmente com o advento da tecnologia). Há que se ter
coerência com o que se pretende, e isso basta.
Referências
BARNABÉ, Paulo Marcos Mottos. A luz natural como diretriz de projeto para a concepção
do espaço e da forma na obra dos arquitetos modernos brasileiros – 1930/60. Tese
(Doutorado em Arquitetura). FAU-USP, São Paulo, 2005.
Internet
A importância dos vitrais na arte gótica. Disponível em
<http://noticias.vidrado.com/historia/a-importancia-dos-vitrais-na-arte-gotica/>. Acesso em
16 de ago. 2013.
14
Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-63887/igreja-de-seed-o-studio-architects/>. Acesso em 11
de out. 2012.
500
BELLUSCHI, Pietro; NERVI, Pier-Luigi. Clássicos da Arquitetura: Catedral de Santa Maria
da Assunção. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-97753/classicos-da-
arquitetura-catedral-de-santa-maria-da-assuncao-pier-luigi-nervi-e-pietro-belluschi>. Acesso
em 14 de ago. 2013.
CORTESÃO, Inês; FARIA, Célia. Igreja Nossa Senhora das Necessidades. Disponível em
<http://www.archdaily.com.br/br/01-56243/igreja-nossa-senhora-das-necessidades-celia-
faria-ines-cortesao/>. Acesso em 11 de set. 2012.
YÁVAR, Javiera. Luz natural e Arquitetura: o legado deixado por Oscar Niemeyer.
ArchDaily Artigos. Disponível em <http://www.archdaily.com.br/br/01-87960/luz-natural-e-
arquitetura-o-legado-deixado-por-oscar-niemeyer>. Acesso em 9 de ago. 2013.
501
502
Projeto moderno de globalização da Companhia de Jesus: reflexos
na arquitetura religiosa da América Portuguesa
Fernanda Santos1
Desde o século XVI, os Jesuítas construíram igrejas e colégios em regiões isoladas para
promover a conversão dos indígenas ao Cristianismo. Alguns exemplos importantes de igrejas
jesuítas dos primeiros tempos da colonização são as de São Pedro d’Aldeia (Rio de Janeiro),
Nova Almeida (Espírito Santo), Embu (São Paulo) e a Capela de São Miguel (São Miguel
Paulista, São Paulo), todas datando do século XVII ou início do XVIII.
1
Doutoranda em História pela UFSC. Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal. Contato:
fercris77@gmail.com.
503
atualmente Catedral de Salvador, datada de 1652-1672 (SMITH, 1948), com uma fachada
maneirista encimada por volutas e com duas torres, características semelhantes à igreja jesuíta
de Coimbra (atual Sé Nova de Coimbra) (TELLES, 1980, p. 75). O interior, de nave única
com capelas laterais e transepto e capela-mor pouco profundos, é baseado em São Roque de
Lisboa. A igreja jesuíta de Salvador inspiraria outras na região, como a igreja do Convento de
São Francisco, de Salvador (TELLES, 1980, p. 76).
Por volta da metade do século XVII surgiram igrejas que, apesar de não terem plantas curvas
barrocas, apresentavam fachadas principais cenográficas, fugindo das rígidas formas
anteriores. Um importante exemplo é a Igreja do Convento Franciscano de Cairu, na Bahia,
construída a partir de 1654. A entrada da igreja é precedida por uma galilé, formada por cinco
arcos, com dois andares superiores escalonados flanqueados por volutas. O frontão da igreja,
no terceiro andar, contém um nicho com a imagem de Santo Antônio, e a torre única da igreja
encontra-se recuada em relação à fachada. Esse esquema de fachada, cujo protótipo
maneirista pode ser a da igreja franciscana de Ipojuca, de fez escola no Nordeste, dando
origem, entre outras, às igrejas dos conventos franciscanos de Paraguaçu (Bahia), Olinda,
Igarassu (Pernambuco) e João Pessoa (Paraíba), este último construído já no século XVIII
com uma fachada ricamente decorada. Os conventos franciscanos nordestinos estavam
organizados ao redor de um nobre claustro de dois pisos (datando já do século XVIII), de
ordem toscana, frequentemente decorados com azulejos portugueses. Em frente aos
conventos, um amplo adro com um cruzeiro aumentava a imponência urbanística do conjunto
(TELLES, 1980, p. 25-30).
No Brasil, como na Ásia, a principal ordem missionária foi a Companhia de Jesus, com uma
organização internacional de quartel-general fixado em Roma. A atividade missionária foi
desenvolvida, maioritariamente, por clérigos portugueses e gerida no âmbito da estrutura
organizacional do Império português, como no caso asiático (DISNEY, 2010, p. 320). Desse
modo, as missões ultramarinas da Companhia de Jesus são de origem portuguesa, da
iniciativa do Dr. Diogo de Gouveia, antigo reitor da Universidade de Paris e principal do
Colégio de Santa Bárbara. Embora a Companhia só fosse aprovada oficialmente a 27 de
504
setembro de 1540, já meio ano antes tinham partido de Roma para Lisboa, a caminho das
missões portuguesas, os Padres Simão Rodrigues e Francisco Xavier (LEITE, 1965, p. 1).
A fundação canônica da nova Ordem religiosa acabaria por irradiar uma ampla evangelização
de sociedades não-europeias, uma novidade no carisma da Companhia encontrada nos
espaços ultramarinos, frequentados pelas conquistas e pelos tratos ibéricos. Subjacente a este
impulso evangélico esteve a dinâmica da conquista espiritual dirigida para a conversão à
fidelidade da Igreja de Roma de todo aquele que ignorava ou que se tinha afastado das
doutrinas católicas. O caráter universalista do Cristianismo ajudava a legitimar as atividades
político-diplomáticas expansionistas, e os próprios eclesiásticos acabaram por ganhar
interesse em aproveitar aquela oportunidade que lhes surgia e que lhes permitia espalharem-se
pelo mundo até aí conhecido pelos europeus, propagando o Evangelho. Os surtos missionários
não foram imediatos, mas perante uma revolução geográfica, atuava-se com um novo modelo
de evangelização (COSTA, 1998, p. 24).
Durante a sua permanência de duzentos e dez anos no Brasil até à sua expulsão em 1759, os
Jesuítas foram um agente importante na exploração geográfica e na colonização europeia. Por
um lado, foram os primeiros a desbravar o sertão e a floresta. Por outro lado, os colégios e
outras casas constituíram o núcleo inicial de vilas e cidades brasileiras. Este caráter pioneiro
dos Jesuítas tornou-os no corpo missionário mais numeroso e mais espalhado no Brasil, de tal
forma que em 1553 para 1556 o seu número tinha ascendido de treze para trinta e seis jesuítas
(OSSWALD, 2010, p. 135). Os Jesuítas foram, no século XVI, os únicos religiosos presentes
em muitas regiões brasileiras. Devido à escassez de clérigos seculares e regulares, mesmo em
cidades importantes como o Rio de Janeiro, os jesuítas pregavam e confessavam a maior parte
dos portugueses e restantes fiéis. Para além da Companhia de Jesus, outras Ordens
começaram a atuar no terreno, com as quais nem sempre os Jesuítas tiveram um
relacionamento fácil ou pacífico na disputa pelo domínio do monopólio das instituições
educativas. No decurso do século XVI e começo do século XVII, a ação de Franciscanos, de
Carmelitas, de Beneditinos e, principalmente, de Jesuítas, conseguiu atenuar a incompetência
dos clérigos seculares originários de Portugal. As Ordens religiosas passaram a tomar conta
da formação de religiosos. Também as referidas Ordens cumpriram a mesma tarefa educativa,
num grau menor, contudo, com vista à formação de novos sacerdotes (SERRÃO, 1991, p.
376-377).
505
Os Jesuítas do Brasil viveram em diferentes instituições, à semelhança de todas as províncias
jesuítas: casas, residências, colégios, noviciados, hospícios, recolhimentos, hospitais e
seminários. As casas (ou residências) eram a princípio escolas de ler, escrever e contar,
voltadas para os meninos índios e os filhos dos portugueses. Aos poucos começavam a
oferecer estudos mais avançados e, com a dotação real e o reconhecimento oficial, passavam a
colégios. No que se referem às residências, estas podiam ser habitações fixas ou temporárias.
Os colégios mais importantes reuniam uma série de funções e albergavam uma grande
variedade de habitantes, reunindo uma série de edifícios. Parte destes aposentos tinha uma
função distinta das funções mais comuns nos colégios europeus (OSSWALD, 2010, p. 135-
136). As prescrições internas da Companhia determinavam que todas as províncias tivessem
áreas rurais (cercas) localizadas fora dos aglomerados urbanos, e que seriam não só áreas de
lazer, mas também fontes de abastecimento para as comunidades jesuítas nas cidades
(ALDEN, 1996, p. 211).
O considerável acervo de obras de arte que os padres da Companhia de Jesus nos legaram é
uma das mais significativas. A circunstância de se ter iniciado a ação da Companhia em fins
do Renascimento, quando os primeiros sintomas do barroco já se faziam sentir, e de se
desenvolverem, depois, os dois movimentos paralelamente, levou alguns críticos a
pretenderem englobar sob a denominação comum de arte jesuítica todas as manifestações de
arte religiosa dos séculos XVII e XVIII.
A expressão arte jesuítica, que supõe um estilo próprio da Companhia de Jesus, apresenta
manifestações diversas, de acordo com as conveniências e recursos locais e com as
características de estilo próprias de cada período. Apesar dessas diferenças, o espírito
jesuítico aparece marcado na arquitetura. À medida que as obras se vão afastando dos padrões
mais definidos dos finais do século XVI e da primeira metade do século XVII, as formas, os
materiais e as técnicas vão mudando. As marcas do seu estilo existentes nas composições em
conjunto ou nas particularidades constituem o verdadeiro estilo dos padres da Companhia.
Tratando-se de uma ordem nova e diferente, livre de compromissos com as tradições
monásticas medievais, e, por conseguinte, em situação particularmente favorável para se
deixar impregnar, logo de início, do espírito moderno, pós-renascentista e barroco, é natural
506
que tenha sido mesmo assim. As obras arquiteturais da Companhia mostram a globalização
deste estilo.
Todavia, no Brasil, a expressão estilo jesuítico tem um sentido mais limitado e preciso. Na
Europa, estilo jesuítico lembra as manifestações mais desenvoltas do barroco; enquanto para
os hispano-americanos, onde a ação da Companhia prosseguiu ininterruptamente durante todo
o século XVIII, a ideia da arte jesuítica abrange o ciclo barroco completo. No Brasil, onde a
atividade dos padres, já atenuada na primeira metade do século, foi definitivamente
interrompida em 1759, as obras dos Jesuítas, ou pelo menos grande parte delas, representam o
que há de mais antigo. Consequentemente, quando se fala aqui em estilo jesuítico, o que se
quer significar, de preferência, são as composições mais renascentistas, mais moderadas,
regulares e frias, ainda imbuídas do espírito severo da Contra-Reforma.
O programa das construções jesuíticas era relativamente simples, podendo ser dividido em
três partes, correspondendo cada uma destas a uma determinada utilização: para o culto, a
igreja com o coro e a sacristia; para o trabalho, as aulas e oficinas; para residência, os
cubículos, a enfermaria e trabalho, as aulas e oficinas; a enfermaria e mais dependências de
serviço, além da cerca, com horta e pomar. Sendo o objetivo da Companhia a doutrina e a
catequese, a igreja devia ser ampla, a fim de abrigar número sempre crescente de convertidos,
e localizada, de preferência, em frente a um espaço aberto – um terreiro – onde o povo se
pudesse reunir e andar livremente, não se prevendo, na maior parte das vezes, a construção
ordenada de casas em volta dessa praça.
Ao contrário do que se observa nas missões do sul, onde cada núcleo jesuítico constituía por
si mesmo o povo, isto é, a cidade, os principais colégios do Brasil faziam parte de
organizações urbanas distintas, ou então, quando sucedia a algum dos numerosos aldeamentos
formados pelos padres, tomar corpo – como foi o caso de São Paulo de Piratininga, por
exemplo – ele era logo repartido com as demais ordens religiosas e as autoridades civis.
Assim, mais modesto e menos independente, o programa jesuítico brasileiro não comportava
os traçados urbanísticos integrais tão característicos das missões da Província do Paraguai, das
quais ficaram os chamados Sete Povos das Missões.
507
Note-se a importância atribuída pelos Jesuítas à localização espacial dos seus colégios.
Fatores como o clima, o meio, o ambiente, eram para ser tidos em conta, e por isso os
colégios deveriam estar em pontos mais salubres e elevados das capitais. Contavam ainda os
arvoredos e a luminosidade do local, condições que julgavam indispensáveis ao meio em que
o aluno deveria viver, crescer e ser formado. Estes princípios eram universais, na ótica dos
Jesuítas, e aparecem discriminados nas Constituições da Companhia de Jesus.
Por esse motivo, é notável a semelhança das linhas principais de todos os colégios, sendo
estas instituições educativas ramificações de um mesmo tronco. Outra explicação plausível é
o fato de todos os desenhos e projetos dos colégios serem sujeitos à revisão do Padre Geral,
justificando-se assim a analogia do critério de uniformidade dos planos das novas edificações
com os de outros colégios anteriormente construídos, se aproveitando de igual modo a
experiência acumulada, na construção de um novo edifício, aperfeiçoando as instalações
(MADUREIRA, 1929, p. 614-616). Outro aspecto a ter em conta é que a organização de um
colégio jesuíta era exímia, lembrando “uma cidade dentro de outra cidade” (BUTEL, 1990, p.
446).
A Igreja do Colégio da Bahia, orientada em direção norte sul, foi, a princípio, edifício
autônomo. Em 1552, a primeira igreja de taipa ameaçada por arruinamento foi reconstruída
com o mesmo material. Em 1561, a terceira igreja, já com utilização de materiais mais
resistentes, pedra e cal, é iniciada (LEMOS, 1999, p. 10).
508
colégio já se encontrava em pleno funcionamento com todos os seus compartimentos
construídos (LEMOS, 1999, p. 11).
Quanto às construções ditas de pedra e barro, como, por exemplo, a igreja do Colégio de São
Paulo, representavam, de certo modo, um compromisso entre essa técnica e a de pedra e cal.
As edificações em alvenaria de pedra - tanto religiosas como civis - já eram bastante comuns
na segunda metade do primeiro século. Foram várias as construções jesuíticas, igrejas e
colégios, feitas com essa técnica.
Ainda hoje a igreja do colégio de São Vicente - atual matriz - conserva, tanto externa como
internamente, as proporções e o aspecto geral das igrejas mais antigas, embora os vãos e o
frontão datem do século XVIII, e o revestimento, a cobertura, o coro etc. tenham sido
recentemente desfigurados.
A igreja de N. Sra. da Graça, do Colégio de Olinda, cuja construção foi iniciada, em pedra e
cal, em 1597, com semelhanças à de S. Roque, tem sido dada como reduzida a cinzas pelos
holandeses, considerando-se o edifício atual uma reconstrução de fins do século XVII,
destituída de maior interesse. Os estudos efetuados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional mostram, entretanto, de forma inequívoca, que essa igreja é, de fato, a
primitiva.2
2
1°) os altares colaterais são contemporâneos da construção de fins do século XVI, conforme se poderá constatar
adiante, quando tratarmos com mais vagar da arquitetura interna das igrejas jesuíticas; 2°) o risco da igreja, tanto
pelo seu interior como pela fachada, baseia-se, efetivamente, na "traça" da igreja de São Roque, da Casa Professa
dos Jesuítas, em Lisboa, cujo frontispício - a única parte do prédio que sofreu com o terremoto - foi, ao que
parece, reconstruído com aproveitamento do material primitivo; 3°) no panorama de Olinda, de Franz Post, aqui
reproduzido, observa-se muito claramente que os danos causados pelo incêndio - da mesma forma que em
Lisboa com o terremoto - não foram de molde a desmantelar o edifício. O fogo, ateado, é de presumir-se, no
altar-mor, que, este sim, desapareceu, teria passado ao forro e ao madeiramento da cobertura; daí ao coro e às
janelas da fachada principal, janelas cujos vãos foram recompostos já em desacordo com o estilo da construção
quinhentista.
509
Esta igreja de Olinda, projetada pelo arquiteto jesuíta Francisco Dias, um dos colaboradores
de Filipe Tersi - o arquiteto levado de Roma para Lisboa pelos Jesuítas, especialmente para
construir a igreja de São Roque - é, pois, a única igreja jesuítica quinhentista ainda existente
no Brasil.
Além do antigo Colégio da Bahia, e do de Belém do Pará, são também dispostos em quadra,
entre outros, o Colégio de Olinda, os do Espírito Santo e do Estado do Rio, o de Embu - este
com pátio bem modesto - e, ainda, diferente de todos os demais pelo seu aspecto sombrio e
pesado de praça-forte, o de Paranaguá (COSTA, 1941, p. 138-139).
Um dos quartos da quadra era sempre ocupado pela igreja, cujo frontispício, mantido no
alinhamento do quarto contíguo, formava com este, em elevação, um plano só,
correspondendo ao colégio uma linha horizontal contínua e ao corpo da igreja um frontão de
empena, com a torre servindo de remate à composição. Essa disposição, clara e coerente, era
geralmente adotada quando, de início, não fazia parte do programa a construção de uma
segunda torre.
No que se refere à planta baixa das igrejas, o partido aqui adotado pelos Jesuítas foi, quase
exclusivamente, o de uma só nave. Apenas em dois casos se mostra solução diferente. Na
igreja de São Pedro d'Aldeia, construção pura, tanto do ponto de vista técnico como plástico,
onde se vê, na sua forma mais rudimentar, o partido de três naves tão apropriado às igrejas
missioneiras (os esteios centrais, aliviando o peso da cobertura, permitem maior amplitude e
daí a possibilidade de abrigar um maior número de fiéis) - e na da antiga Reritiba. O partido
geral de uma só nave inclui, no caso das igrejas jesuíticas brasileiras, plantas de diversos tipos
diferentes.
Primeiro o tipo mais singelo, que teria sido o das capelas rudimentares dos primeiros tempos e
no qual a capela-mor e a nave constituem um mesmo corpo de construção dividido
convencionalmente em duas partes por um arco cruzeiro. Essa forma primária, hoje muito
510
rara, é a que vamos encontrar na já referida capela de Santo Antônio, do segundo século, que,
apesar da invocação e do fato de ser uma capela particular, não deixa contudo de ser, também,
uma capela de inspiração jesuítica.
Outro grupo reúne as igrejas cujo traçado corresponde a uma acomodação entre essa forma
singela mais geral e o partido já o seu tanto complexo das igrejas maiores do século XVII.
Nessas igrejas, mantêm-se ainda os três altares usuais do modelo anterior, com a
particularidade, porém, de se criarem, também para os colaterais, pequenas capelas
apropriadas, de maior ou menor profundidade, como no caso da igreja de Olinda, onde tais
capelas formam conjunto com a capela-mor. Nesta igreja, os dois nichos localizados acima
dos arcos dessas capelas parecem acréscimos ao traçado primitivo, contemporâneos da
reforma do segundo século. Vamos encontrá-lo na importante igreja do Seminário de Belém
de Cachoeira, onde os nichos são em número de quatro, dois de cada lado do altar-mor, e
também em igrejinhas modestas, como a de Vinhais, no Maranhão. Na igreja de Socorro, em
Sergipe, os padres adotaram o partido, bem mais frequente, de dispor as duas capelas no
sentido transversal, repetindo-se, assim, a velha norma de planta em cruz latina. O arco de
uma dessas capelas, em cantaria e ricamente ornamentado, parece único, no seu estilo, em
todo o país.
511
ainda classicista da primeira fase da Contra-Reforma, quando, fora da Itália, as formas
ornadas do primeiro Renascimento ainda prevaleciam, bem como depois, na época de maior
eloquência do estilo barroco, com as inovações de alguns artistas.
Aliás, a própria igreja seiscentista atual do Colégio da Bahia, cuja planta obedece igualmente
à de São Roque, deve ser baseada em risco de autoria dele, já que viera ao Brasil
especialmente para projetar e dirigir a construção daquele colégio. Encontrando uma igreja
relativamente modesta, que ficou formando um dos corpos da quadra desse colégio, por certo
terá incluído no seu plano de conjunto, como não podia deixar de o fazer, o risco da nova
igreja, aquela que deveria ser, juntamente com o colégio, definitiva. Tanto assim que em 1604
já se estava providenciando a obtenção de material para a construção dessa nova igreja que
ainda não havia sido iniciada. Conforme refere Lúcio Costa sobre a fachada da igreja baiana
3
Francesco Lana Terzi (n. Bréscia, 13/12/1631, m. 22/02/1687), foi um jesuíta matemático, e naturalista italiano
que ficou conhecido por ser o precursor da aeronáutica, concebendo uma aeronave. Em 1670 Terzi
publicou Prodromo ovvero saggio di invenzioni nuove all’Arte Maestra, livro em que apresentava diversas
invenções, dentre as quais uma barca aérea suspensa por quatro globos de cobre, grandes, finos e vazios em seu
interior. A elevação da aeronave seria propiciada pelo empuxo do ar.
512
denota ter havido, da parte do arquiteto que a projetou - ou dos que o sucederam durante o
andamento das obras - uma certa hesitação na escolha do partido definitivo. Hesitação
resultante do desejo, aliás mal sucedido, de conciliar a solução tradicional de duas torres, com
o traçado erudito em voga desde que Vignola e Giacomo della Porta, e depois Maderna, nas
igrejas de Jesus e de Santa Susana, respectivamente, fixaram o novo padrão de frontispício
sem torre, geralmente conhecido por jesuítico (COSTA, 1941, p. 147-148).
Apesar dos exemplos importantes de Salvador, de Belém do Pará, de São Luís do Maranhão,
e mais alguns outros, de igrejas já da primeira metade do século XVIII, o frontão reto é o que
melhor caracteriza as igrejas jesuíticas brasileiras, pois que elas não alcançaram o pleno
desenvolvimento do barroco em meados e na segunda metade de setecentos. O tipo de
transição entre essa forma regular e a forma livre barroca é o que apresenta volutas rampantes
sobrepostas ao frontão clássico primitivo, mantendo-se assim, apesar da nova silhueta, a
rigidez da empena retilínea, como nos mostra a igreja de São Pedro d'Aldeia.
Quanto às portadas, tanto se encontram frontispícios de uma porta só, como conjuntos
formados por cinco vãos, partido que, depois da construção da igreja nova do Salvador,
repetiu-se no Recife, em Belém do Pará e em numerosas igrejas de menor interesse, já de
meados do século XVIII, inclusive na grande igreja inacabada do Castelo, com portais de
mármore de Lioz, enquanto a igreja velha tinha apenas a porta central, com uma cercadura de
granito do país, de risco severo, ainda com frontão inteiro, de fins do século XVI.
Convém observar, entretanto, que no desenho de todas essas portadas, com exceção talvez das
de Santo Alexandre, prevalece a linha elegante e o pormenor apurado e que são muitas vezes
delicadamente ornamentadas, como ocorre com as da igreja do Espírito Santo, no Recife.
Decoração classicista que vamos encontrar em outras portadas jesuíticas, como, por exemplo,
na cercadura de pedra do chamado Engenho Retiro, em Sergipe, ou ainda, aberta na madeira,
com boa técnica e muito gosto, no portal da capelinha do Município de São Roque, em São
Paulo (COSTA, 1941, p. 150-151).
513
Considerações finais
A Companhia de Jesus teve uma ação decisiva na arquitetura do Brasil ao longo de duzentos
anos voltados para a moralização dos costumes, educação dos colonos e catequese dos índios
até a expulsão pelo Marquês de Pombal. Aqui deixaram um rico patrimônio não só de
arquitetura como cultural.
Os Jesuítas apostaram não na criação de uma nova técnica ou de soluções novas, mas na
divulgação pelo interior do país, através dos seus colégios e aldeias, das soluções e das
técnicas de uso corrente, apreendidas primeiro por eles do próprio elemento civil e ajustadas,
depois, às necessidades particulares do seu programa, também em grande parte residencial.
Vê-se pelo exposto que a arquitetura da Companhia, no Brasil foi quase sempre
despretensiosa, muitas vezes pobre, obedecendo, em suas linhas gerais, a uns tantos padrões
uniformes. A sobriedade foi um conceito chave na sua arquitetura. Sobriedade presente
também nos retábulos, mesmo os mais ricos. Sobriedade que se impõe, e que ainda souberam
manter no mais pretensioso de seus templos, a atual Sé da Bahia. O partido arquitetônico
tradicionalmente empregado pelas ordens religiosas nos seus mosteiros e conventos, ou seja, o
de dispor os vários corpos da construção em quadra, como então se dizia, formando-se assim
um ou mais pátios, foi mantido também pelos Jesuítas. Convém, entretanto, desde logo notar
que, em consequência talvez da vida ativa dos padres, atividade esta decorrente do espírito da
Companhia e da sua Regra, faltam quase sempre nesses pátios - nos colégios brasileiros, pelo
menos - aquela atmosfera de sossego e de recolhimento, peculiar aos claustros dos conventos
das demais ordens religiosas.
Referências
ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus, its Empire, and Beyond
(1540-1750). California: Stanford University Press, 1996.
514
COSTA, João Paulo A. Oliveira. O Cristianismo no Japão e o Episcopado de D. Luís
Cerqueira. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e da Expansão), Universidade
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LEMOS, Ubirajara Dantas. Colégio dos Jesuítas – 450 anos de História. In: MENEZES, Jacy
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Salvador: Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação do Campus I. Projeto
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OSSWALD, Cristina. Jesuítas no Brasil: Séc. XVI. Revista Brotéria, Cristianismo e Cultura,
vol. 170, Lisboa, p. 135-146, fevereiro de 2010.
SMITH, Richard C. Jesuit buildings in Brazil. The Art Bulletin, v.30 n.3, New York, 1948.
515
516
GT6 – Escolas das religiões afro-brasileiras e
diálogos
Coordenador/a
Comentadora
Resumo
517
A dinâmica religiosa do Candomblé em Goiânia a partir da
hermenêutica da ação humana
Rodolfo Ferreira Alves Pena1
Introdução
1
Mestrando em Geografia pela UFPR. Pesquisador vinculado ao Centro Interdisciplinar de Estudos África-
Américas (CieAA-UEG) e ao Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER). Contato:
pena.geografia@gmail.com.
518
conceitual, isto é, utilizando-se de conceitos e definições para explicitar questões referentes ao
ser.Nesse contexto, é possível sublinhar que a grande preocupação de Ricoeur foi a de buscar
o entendimento de questõesacerca de três pressuposições principais: “a filosofia como
reflexão, a filosofia como fenomenologia e depois a hermenêutica, ou seja, as mediações
sucessivas pelos sinais, pelos símbolos e pelos textos” (MOGIN, 1997, p.36).
Além do mais, ele propõe a superação, pela via hermenêutica, do método descritivo
husserliano que, em tese, circunscreve-se a uma lógica idealista. Ricoeur (1978) conceberá,
então, a hermenêutica como um enxerto da fenomenologia. Primeiramente, tal fundamento
parte do princípio de que a hermenêutica é mais antiga que a fenomenologia; em segundo
lugar, pelo fato de o filósofo considerar que não há a possibilidade de a fenomenologia
ultrapassar a hermenêutica, ou seja, de ir além dela sem lhe fazer o devido uso.
A partir disso, podemos elencar a influência decisiva que Heidegger exerceu em seu itinerário
filosófico –leitura essa que Ricoeur realiza a partir de um avanço que vem deSchleiermacher,
passando por Dilthey e se estendendo a Gadamer. O autor pondera a respeito do processo da
interpretação filosófica heideggeriana, idealizada a partir do que Ricoeur denomina por "via
curta" da compreensão humana e pautada sobre os fundamentos da ontologia. Nesse percurso,
Ricoeur (1978, p.09) alega que o modo de pensar heideggeriano se refere “ao plano de uma
ontologia do ser finito, para aí encontrar o compreender, não mais como um modo de
conhecimento, mas como um modo de ser” (RICOEUR, 1978, p.09, grifos no original). Dessa
forma, não se chega gradativamente à compreensão, uma vez que essa é o próprio ser em si,
que já existe compreendendo.
519
Em contrapartida, Ricoeur considera que a liberdade humana em interpretar diretamente a sua
realidade é limitada, momento em que rompe parcialmente com sua filiação existencialista.
No entanto, ele não advoga a desconstrução da via curta, mas a sua extensão por uma “via
longa” do entendimento, no sentido de ampliar as etapas de compreensão do ser-no-mundo.
Tal posição evoca a necessidade da fenomenologia em ultrapassar a problemática do sujeito x
objeto e se interrogar sobre o sentido do ser.
Assim, seu projeto hermenêutico é o de construir uma via interpretativa que conceba a
compreensão a partir de uma mediação.Considera, então, que o significado das coisas não é
produto da reflexão de um sujeito, mas do encontro entre esse mesmo sujeito com
determinados símbolos que os leve a pensar, conferindo aos elementos simbólicos uma
significação que lhe é própria. Em uma importante reflexão, ele considera que:
‘o símbolo dá a pensar’: essa sentença que me encanta, diz duas coisas. O símbolo dá. Não
ponho o sentido, é ele que dá o sentido. Mas o que ele dá é ‘a pensar’, do que pensar. A
partir da doação, a posição. A sentença sugere, pois, ao mesmo tempo, que tudo já está dito
em enigma e que, contudo, é preciso sempre tudo começar e recomeçar na dimensão do
pensar (RICOEUR, 1978, p.243).
Para o autor, o símbolo é doador de um sentido primeiro de interpretação, o que nos faz ter
uma compreensão sobre o sentido simbólico dos fenômenos, sem que necessariamente
tenhamos adquirido consciência desse processo. Por isso ele é doador, porque é uma
intencionalidade que designa um segundo sentido. A partir de então, Ricoeur amplia o seu
foco de preocupação interpretativa dos símbolos aos textos.
Para explicar a lógica da mediação da compreensão, Ricoeur recorre àqueles que denomina
por “mestres da suspeita”, a saber: Freud, Nietzsche e Marx. Tal adjetivação se refere ao fato
de que cada um desses pensadores encontrou uma forma própria de duvidar dos fatos
conforme eles se expressam, de modo que o conhecimento imediato é sempre um
conhecimento aparente, que pode ser superado.
Para Ricoeur (1978, p.128-129), esses autores não obliteram a consciência, mas promovem
uma extensão dela. Sobre Marx, afirma que ele pretendia “liberar a práxis pelo conhecimento
da necessidade; mas essa liberação é inseparável de uma ‘tomada de consciência’ que retruca
vitoriosamente às mistificações da consciência falsa”. Já Nietzsche, na visão do
autor,obstinava o “aumento do poder do homem [...]; mas aquilo que a Vontade de poder quer
dizer deve ser recoberto pela meditação das cifrações do ‘super-homem’, do ‘retorno-eterno’ e
520
de ‘Dionísio’, sem as quais esse poder seria apenas a violência de um aquém”. Freud, por sua
vez, objetaria fazer com que “o analisado, ao fazer o seu sentido que lhe era estranho, amplie
seu campo de consciência [...], com a condição de dizer que a análise quer substituir uma
consciência imediata e dissimuladora por uma consciência mediata e instruída pelo princípio
de realidade”.
Nesse entendimento, Ricoeurafirma que não há uma compreensão imediata e intuitiva de si. O
filósofo então propõe a instauração de uma hermenêutica pluritópica, que mediante o sentido
falso, busque o duplo sentido, o significado oculto, que revele a plurivocidade dos
acontecimentos, sejam eles no campo do texto, sejam no campo da ação.Além disso, a própria
ação consciente é, por si própria, produtora de um discurso e, assim, pode ser lida e
interpretada como um texto, uma manifestação de linguagem. Ricoeur (1990b) considera que
essa questão se estabelece pelo fato de que todo ato de agir ocorre a partir de um contexto, o
que nos remete a importância da textualidade.
Com isso, chegamos à conclusão de que é possível fazer uma leitura interpretativa
textualidade da religião do Candomblé. Para realizar essa leitura, torna-se necessário
compreender a rede de significados que integram as suas espacialidades e temporalidades.
As reminiscências referentes aos diferentes povos da África, entre as quais se inclui os ritos
do Candomblé, difundiram-se no Brasil com a ocasião histórica da escravidão, em que os
habitantes desse continente foram sistematicamente aprisionados e forçados a migrar para as
terras ameríndias para servir de mão-de-obra. Assim, os mais diversos grupos étnicos
oriundos de diferentes regiões do continente africano vieram ao Brasil e aqui permaneceram,
521
com a tentativa de resguardar, ao menos parcialmente, seus costumes originais (SILVA,
1994).
Para fins metodológicos, assumimos no presente artigo apenas a leitura e análise das
configurações religiosas dos Candomblé de nação Ketu, sem desconsiderar a importância das
demais denominações. Essa elevada gama de variações forma-se sobre contextos muito
plurais, de difícil apreensão quando vistos em conjunto.
2
“Olorum” é apenas um dos vários nomes designados para tratar da deidade suprema dos Yorubás, porém o
mais popular dentre eles. Seu nome vem da união das expressões Ol, que significa “posse” ou “comando”, e
Orum, que significa “céu” (BENISTE, 2006).
3
Orum corresponde os noves céus aos quais habitam as divindades sagradas da religião do Candomblé.
522
sistema direto de intervenção sobre o Ayê4, sua figura não é cultuada pela religião, que, por
isso, é circunscrita como a religião dos Orixás5.
Abaixo de Olorum, estão os Orixás, que são os entes que realizam a conexão do Orum com o
Aiyê por meio da incorporação. Porém, um deles possui uma relação e uma forma de culto
diferenciada dos demais: Orumilá, também conhecido como Ifá6. É o ser da intuição, das
adivinhações e do conhecimento sobre o futuro. Apesar de haver um culto específico a ele em
algumas ramificações, no Candomblé de Ketu ele é representado apenas pelos jogos de
búzios, que nada mais são do que consultas a Orumilá.
Segundo o seu itan, desde de que abandonou o Aiyê pela primeira vez e passou a habitar o
orum, ele decidiu que jamais retornaria e, portanto, não incorpora em nenhum filho de santo.
Os homens ofereceram diversas oferendas para que ele retornasse à Terra, porém ele apenas
deixou um conjunto de dezesseis nozes de dendê e afirmou: “quando tiverem problemas e
precisarem falar comigo, consultem este Ifá” (PRANDI, 2001b, p.443).Dessa forma, Orumilá
tornou-se a própria forma da comunicação dos Orixás para com os homens.
Seu sistema de adivinhação perpassa pela constituição dos seus odus, de forma que cada um
deles domina uma área de entendimento. No total, existem 16 tipos de odus diferentes que
representam “os mitos da criação e o complexo relacionamento dos seres divinos entre si e
com os homens e a Natureza” (PÓVOAS, 1989, p.180). Eles apontam, assim, conhecimentos
sobre o nascimento, a morte, os negócios, a fartura, as guerras, as perdas, a amizade, a traição,
a família, o destino e a sorte (PRANDI, 2001b).
Orumilá é, assim, um dos principais demonstrativos da maneira com que o espaço e o tempo
do mundo das tradições míticas transformam o mundo da religião. As expressões simbólicas
agem diretamente sobre as demais expressões. As inferências de Ifá, por meio do jogo de
búzio, conduzem às ações práticas do líder de santo e de seus filhos, adeptos e,
principalmente, de seus clientes, que enxergam nesse rito uma forma de contato com o
Candomblé.
4
Em oposição ao Orum, o Ayê é o mundo terreno, não necessariamente visto como profano, em que habitam os
homens e, por ventura, os Orixás.
5
Segundo Beniste (2006, p.38), Olorum não é cultuado no Brasil, de acordo com a via explicativa mitológica,
porque “ele é o Rei e Juiz, o Criador e o Senhor da Vida, o Invisível e o Sempre-Presente; com tais atributos é
impossível conceber de que forma a Divindade poderia ser representada. Nem pensar em poder confina-lo dentro
de um espaço, da forma como é feita com os orixás”.
6
“Orixá da adivinhação; o oráculo do Candomblé. Conjunto de 16 búzios ou meia nozes do fruto do dendezeiro,
para o jogo divinatório onde se lê a fala do orixá” (PÓVOAS, 1989, p.172).
523
Temos, depois, os 16 orixás que compõem o panteão ketu/nagô. Segundo demonstra Verger
(2002), cada um deles possui um comportamento arquetípico específico, definido em
personalidades previamente demarcadas. É interessante observar que os filhos, quase sempre,
irão reproduzir os comportamentos ou o caráter do Orixá que rege a sua cabeça, ou seja, o seu
ori. Rocha (2000, p.55) ressalta que “ao falar de um Orixá, automaticamente associamos suas
características à personalidade de seus filhos [...]. Portanto, falar dos Orixás é também falar de
nós mesmos”. São espaço-temporalidades contextuais do mundo transcendente se
entrecruzando com as do mundo das ações humanas.
524
Xangô Trovão e fogo Justiça Guerreiro, justiceiro e
vaidoso
Obá Encontro do rio com o mar Poder sobre os rios Feminismo, poder da
mulher
Logun-Edé Rios que correm nas florestas Caçador e rei das Ora é doce e calmo como
águas Oxum, ora é solitário como
Oxóssi, seus pais.
525
humanas, uma vez que cada orixá possui um domínio sobre a natureza, bem como uma forma
pré-determinada de comportamento.
Outra forma de ação no mundo mítico sobre o mundo das ações são as narrativas envolvendo
as deidades candomblecistas, os itans. Com base neles, explica-se muito das práticas
cotidianas realizadas em um terreiro. Por exemplo: sacrifícios e oferendas destinados aos
orixás Obaluaiê e Nanã não utilizam metais durante o corte e preparo de suas comidas, pois
eles são rivais de Ogum, a deidade que rege o ferro e os instrumentos de corte. Assim, em
seus cultos utiliza-se, geralmente, instrumentos de madeira afiados para o corte ou outras
técnicas. Aparentemente banal, essa forma de agir é regida por uma lógica contextual, que se
posiciona em um sentido transcendental específico da religião, formando uma rede interna de
significados que não pode ser compreendida por um olhar externo, desprovido de alteridade.
O líder de uma casa costuma ser uma figura muito conhecida no âmbito da religião e
respeitada em função de sua vasta sabedoria e do carisma que possui. Por isso, constrói em
torno de si umaespaço-temporalidade específica, particularizada e que atende a uma
correspondência própria. Essa se estrutura, principalmente, com base em seus valores e em
sua filiação tradicional.
Desde as fundações iniciais do Candomblé no Brasil é possível notar essa questão. Silva
(1994, p.93) afirma que, ao longo do processo de reconfiguração territorial das tradições
religiosas africanas no Brasil, “a organização social dos terreiros estruturou-se a partir de uma
hierarquia de cargos e funções”. Essa conformação de poderes se reordenou em diversos
aspectos, acumulando sobre a figura do pai e da mãe de santo, atribuições que antes não lhes
eram circunscritas. Oautor supracitado comenta que “o pai-de-santo, por exemplo, tornou-se a
figura central assumindo várias funções, como a de babalaô7”.
Forma-se uma hierarquia que “nasce” na centralidade do pai de santo e se estende ao demais,
perpassando pelo tempo de vivência de cada indivíduo na religião. Carneiro (1967) realizou
7
Babalaô é o responsável por realizar as adivinhações por intermédio dos búzios. É o adivinho. Na África, essa
função era dada a um sacerdote específico, ao contrário do que ocorre no Brasil, quando é designada ao pai ou à
mãe de santo.
526
alguns relatos e apontamentos referentes a esse tema. Para ele, os chamados “mais velhos de
santo”, aqueles que realizaram um número maior de obrigações8, possuem maior poder e
prestígio. Observa-se assim o princípio da sabedoria e da senioridade. A figura do líder de um
terreiro será sempre o ponto chave dessa estrutura e, por isso, construirá em torno de si uma
textualidade própria, que, em alguns casos, pode-se sobrepor a outros contextos.
Dessa hierarquia,emana então uma outra textualidade, a dos filhos de santo mais novos e
situados na porção inferior da hierarquia interna do terreiro. Esses filhos, juntamente com
abiãs9 e clientes, são de importante função para a religião: em primeiro lugar, garante a ela a
sua continuidade, cabendo a eles a reinterpretação dos mitos que serão realizados no futuro;
em segundo, eles são o elo entre a religião e o mundo que a ela lhe é externo, função essa
garantida principalmente por aqueles que se consultam em busca dos mais diversos serviços.
São esses últimos que, de certo modo, garantem a sobrevivência da casa, através do
pagamentos desses serviços (PRANDI, 2005). Além disso, conforme ressalta Opipari (2009),
esses clientes estabelecem-se conforme uma rede, que se estrutura por um viés informal, do
“boca a boca” e que é responsável por articular uma demanda de serviços rituais os mais
diversos. Estes, de certa forma, estabelecem uma espaço-temporalidade religiosa específica,
pois cria uma linguagem diferenciada no âmbito da religião.
No entanto, é importante reconsiderar aqui uma das assertivas oferecidas pelo pensamento de
Paul Ricoeur: a de que o símbolo nos leva a pensar. Nessa perspectiva, torna-se impossível
conceber a religião do Candomblé sem considerar a sua materialidade simbólica, que se
expressa por uma série de adornos, acessórios e adereços, que também possuem uma
espacialidade contextual própria: a dos signos e dos símbolos.
8
A expressão “obrigação” é muito utilizada no Candomblé e remete a “qualquer solenidade religiosa para servir
aos orixás. Execução de uma tarefa religiosa que o filho-de-santo é obrigado a cumprir” (PÓVOAS, 1989,
p.180).
9
Abiãs são pessoas que, de certo modo, vivem a religião mas ainda não são consideradas membros efetivos.
Segundo Póvoas (1989, p.154), trata-se de um “fiel ao candomblé ainda não-iniciado”.
527
Esse mundo objetivo é o espaço do terreiro e a distribuição dos ornamentos e símbolos nele
dispersos. Nesse contexto existem algumas formas gerais que costumam se repetir entre as
diferentes casas. Tais formas se expressam, por exemplo, na distribuição dos assentamentos
do terreiro, em que, de um lado, ficam os orixás brancos e de outro, os orixás eboras 10. Além
disso, o uso dos mais variados tipos de ferramentas e instrumentos possuem um significado
específico, sendo representativo de uma cosmovisão, a própria expressão de sua
materialidade.
Sabe-se, de acordo com a mitologia yorubana, que Exú é aquele que guarda os caminhos.
Rocha (2000, p.56) assinala que “ele é tão importante que sempre é servido na frente: a
primeira oferenda é sempre dele”. Por isso, exu guarda as encruzilhadas e também as
entradas. Dessa forma, durante o ordenamento espaço-temporal material do terreiro, essa
relação deve estar bem expressa, como podemos verificar nas figuras 01 e 02.
Figura 01 – Assentamento de Exu na entrada do Barracão do Ilê Axé Oya Igbem Bale, Aparecida de Goiânia
(GO). Fonte: Acervo CieAA (2010)11
10
Os orixás brancos – também chamados de orixás funfuns – são aqueles que compõem o mais alto escalão
dentre as deidades candomblecistas; a eles foi dada a missão de construir o mundo dos homens, o Ayê,
exemplos: Oxalá e Iemanjá. Os Orixás Eboras fazem parte de uma espécie de segundo escalão dentre os orixás,
e são aqueles que surgiram das figuras de importantes reis e heróis que viveram em algumas regiões da África, a
exemplo de Xangô, Iansã, Ogum, Oxum e outros.
11
Essas fotografias foram registradas durante a execução dos projetos História do Candomblé em Goiás e Mães
de Santo, ambos vinculados ao Centro Interdisciplinar de Estudos África Américas e coordenados,
respectivamente, por Eliesse Scaramal e Mary Anne Vieira Silva, os quais estive vinculado como pesquisador
integrante.
528
Figura 02 – Assentamento de Exu na entrada do Ilê Axé Onilewá Azanadô, Aparecida de Goiânia (GO). Fonte:
Acervo CieAA (2010).
Assim, podemos concluir que, nesse caso, a posição de um assentamento de Exú nas entradas
dos salões onde realizam-se as festas e boa parte dos rituais religiosos do Candomblé é uma
expressão contextual da religião. O seu sentido não pode ser lido fora do contexto em que se
insere e os seus signos, que só podem ser compreendidos à luz da teia de significações da qual
eles são partes integrantes.
Com bases em uma abordagem que considere a expressão dessas múltiplas espaço-
temporalidades, apresentaremos, a seguir, uma interpretação do Xirê e suas expressões
contextuais. A escolha desse ritual em detrimento de outros tanto é por conta da textualidade
que nele se manifesta, expressa pelas formas, pelos gestos e pelas corporeidades, que se
constituem como uma forma de linguagem. Assim, será possível observar a confluência
contingencial entre elementos textuais transcendentes, humanos e materiais.
529
que se liga ao conjunto de experiências do praticante com sua religião, que o torna
candomblecista, além de evidenciar papéis exercidos por ele em funções designadas à prática
do Candomblé”.
Figura 03 – Xirê no Ilê Axé Oya Igbem Balé. Fonte: Acerco CieAA (2010).
530
Figura 04 – Olubajé no Ilê Axé Onilewa Figura 05 – Xirê no Ilê Axé Canto de Oxum,
Azanadô. Fonte: Acervo CieAA (2011). em Goiânia (GO). Fonte: Acervo CieAA (2011)
Torna-se flagrante o fato de que o Candomblé e o Xirê não são expressões distintas e
interligadas por um contexto, mas o próprio contexto em si, dotado de uma expressão de
linguagem que é concebida pelo tempo e pelo espaço. Portanto, o tempo do Candomblé
durante a festa é a própria festa e, por sua vez, o espaço do Candomblé, nesse contexto, é a
sua própria manifestação textual Muitas vezes o contínuo processo de reafirmações
identitárias da religião se expressa pela ininterrupta transposição de temporalidades e
espacialidades, tornando o Xirê a própria expressão religiosa. Dessa forma, fazendo uso das
palavras de Amaral (2005, p.60) “a religião passa a se confundir com a própria festa”.
Assim, o Xirê, mais do que uma festa é um evento e, como tal, porta-se na forma de um
discurso religioso propriamente dito. Segundo Ricoeur (1987, p. 24), “podemos conectar a
referência do discurso ao seu falantecom o lado eventual da dialética. O evento é alguém
falando”. Portanto, fazendo uso dessa expressão, o Xirê é a fala dos Orixás, é o dizer dos pais
e filhos de santo que ecoa em seus hábitos, ritmos e ações.
531
Considerações finais
Nesse artigo, fizemos uma tentativa de construir uma abordagem sobre a religião do
Candomblé com base na seguinte proposição: a de conceber as suas manifestações como uma
expressão textual, onde o espaço e o tempo seriam a própria cadeia de significados sobre a
qual o sentido da religião de sustenta.
Por isso, além dos mitos, todas as ações, todas os comportamentos, as falas, os gestos, os
sons, os símbolos e todos os demais elementos são expressões e, como tal, podem ser lidas.
Essa leitura, entretanto, deve ser realizada sob uma hermenêutica da suspeita, que seria a
forma com que argumentamos em procurar estender o sentido literal dos fenômenos em busca
de seu sentido oculto.
Os Orixás, para a religião do Candomblé, são elementos da natureza. Por sua vez, nas
palavras de Ricoeur (1987, p.75), “o caráter sagrado da natureza revela-se no seu dizer-se
simbólico”. Portanto, falar de sua significações é falar da sua própria disposição de sentido.
Com isso, torna-se possível a elaboração de métodos e abordagens que permitam realizar uma
leitura sobre o hábito religioso concebendo-o em sua textualidade.
Referências
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BENISTE, J.Òrun-Àiyé: o encontro de dois mundos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2006.
532
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ROCHA, A. M. As Nações Kêtu: origens, tradições, ritos e crenças. 2ª ed. Mauad, 2000.
533
534
A diversidade das Religiões Afro-Brasileiras em Curitiba/PR: o
“mito do embranquecimento” revisitado
Camila B. C. Martins1, Renata Issa Gomes2, Ana Paula Farias3
Introdução
Porém, essa crença na limpeza ou pureza étnica-social dos Terreiros decorre da mera
camuflagem que torna socialmente invisíveis as Escolas e Terreiros em que as influências
negras e indígenas não são renegadas ou atenuadas, que são em muito maior número do que o
indicado pelos dados oficiais e pelo senso comum.
Apesar de a colonização europeia ter sido a mais evidente no estado do Paraná, outras culturas
também contribuíram para a formação cultural do estado, como por exemplo, a indígena, a
asiática e a africana. Segundo dados do IBGE em 1950, cerca de 245 mil pessoas se
declararam negras ou pardas, ou seja, cerca de 11% da população paranaense.4
1
Doutora em Entomologia pela UFPR. Contato: camilabcmartins@gmail.com.
2
Pós-graduada em Design pela PUC/RJ. Contato: issarenata@gmail.com.
3
Graduada em Publicidade e Propaganda pela PUC/PR. Contato: anafarias@anafarias.com.
4
Biblioteca do IBGE - Censo Demográfico dos Estados Unidos do Brasil (1950). Tabela 39. População presente
por sexo e cor, segundo as regiões fisiográficas e as unidades da federação. Disponível em <
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/67/cd_1950_v1_br.pdf>. Acesso em 30 de jul. 2013.
535
Apesar disso, o orgulho da população do estado e, particularmente, a de Curitiba (nome
originário do guarani: kur yt yba)5, é ter ascendência europeia. Na página da internet da
prefeitura dessa cidade6 fica claro esse orgulho, apesar de existirem influências de outras
culturas na cidade. Lá, lê-se que “[...] Com a emancipação política do Paraná (1854) e o
incentivo governamental à colonização na segunda metade do século 19, Curitiba foi
transformada pela intensa imigração de europeus”, ou ainda que “[...] o traço fundamental que
definiu o perfil de Curitiba foi a chegada de imigrantes das mais variadas procedências”.
Não podemos negar que os imigrantes europeus (poloneses, italianos, ucranianos, alemães,
franceses e suíços) tiveram grande influência sobre a cidade de Curitiba e que de fato houve
uma transformação que se deu através da sua cultura, calcada principalmente nas tradições
das Igrejas Católica Apostólica Romana, Ortodoxa e Luterana, o que implicou e implica até
hoje na desconfiança inicial frente a outras crenças que tem estrutura diferente da sua, ou seja,
sem um profeta, sem dogmas e sem um livro sagrado codificador.
Como o próprio termo já diz, as religiões afro-brasileiras têm no nome uma pressuposta
diversidade ao se tratar não só de uma religião, mas de religiões. Nisso, está implícita a
inclusão de diferentes métodos e doutrinas rito-litúrgicas que representam a pluralidade na
interpretação e na manifestação do sagrado. Todas elas possuem pontos em comum, como a
oralidade da sua tradição, a presença dos rituais, o transe ou o culto aos deuses (Orixás), a
música e o estado superior de consciência (RIVAS NETO, 2013, p. 48). É a unidade
manifesta na diversidade.
5
Prefeitura de Curitiba. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/historia-fundacao-e-nome-da-
cidade/207>. Acesso em: 31 de julho de 2013.
6
Prefeitura de Curitiba. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/historia-imigracao/208>.
Acesso em: 31 de julho de 2013.
536
Escolas possui um método rito-litúrgico, uma doutrina e uma ética própria. No entanto, esta
diversidade, que é vista como ponto fraco pela sociedade, conforme a errônea impressão de
que não passa de desunião e confusão ritual e doutrinária, é o que permite a inclusão de todas
as formas de se dialogar com o sagrado, sem práticas específicas e regras rígidas a serem
seguidas.
Por conta dessa impressão preconceituosa e excludente, para serem aceitos pela sociedade,
muitos terreiros de Curitiba reforçaram aspectos da doutrina católica e do espiritismo
kardecista em seus rituais e camuflaram ou até mesmo excluíram completamente aspectos
mais polêmicos da tradição africana, como o sacrifício animal e a cobrança de salva,
geralmente condenados pela sociedade moralista, incapaz de tolerar até mesmo os elementos
mais inofensivos. Pudemos observar, por exemplo, em visitas realizadas com outro objetivo
no ano passado, a prece do Pai Nosso e da Ave Maria antes do início da gira, a presença de
santos católicos no altar em sincretismo aos Orixás, a proibição de bebidas alcoólicas e a
inclusão de centro espírita ou tenda espírita no nome do templo, ao invés de Terreiro de
Umbanda. Obviamente, nada há de errado na presença de elementos religiosos
católicos/kardecistas, pois esses constituem influências legítimas e até inevitáveis na
Umbanda. A questão que aqui se coloca é a sua intensificação paralela à atenuação/exclusão
de elementos africanos e ameríndios, em um evidente desequilíbrio das três matrizes
formadoras da Umbanda, o que gera um embranquecimento indevido de sua estrutura.
Ademais, tais terreiros geralmente sustentam que a Umbanda foi fundada no plano material
pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, em 1908, já que a Tenda Nossa Senhora da
Piedade, fundada por ele, foi o primeiro templo de Umbanda registrado no Brasil. Isso implica
um momento supostamente fundante e um fundador, que permitiria a adoção de um marco
histórico faltante que daria certa legitimidade à Umbanda perante às religiões ocidentais, já
que antes de ser pai de santo, Zélio era praticante do espiritismo kardecista. Tudo isso para
poderem ser mais bem aceitos e se diferenciarem de pessoas que se dizem umbandistas e
fazem magia negra, amarrações e separação de casais. Porém, nada disso se justifica, pois os
verdadeiros umbandistas não realizam tais práticas nefastas e o médium Zélio de Moraes não
se considerava fundador da Umbanda, nomeação que lhe foi conferida posteriormente à sua
morte.
O preconceito às religiões afro-brasileiras no Paraná é tão grande, velado ou não, que muitos
praticantes, para evitarem discriminação, se dizem espíritas e não umbandistas, informação
537
que se refletiu no número destes no Censo do IBGE/20107 no Paraná, o qual contrasta
intensamente com a realidade. Comprovar esse desfalque constitui tarefa bastante singela,
pois, em 2010, apenas 8.949 pessoas afirmaram ser praticantes das religiões afro-brasileiras e,
no entanto, dois anos antes, em 2008, havia o registro de mais de 15.000 terreiros no estado8.
Por lógica, pelo menos 15 mil praticantes deveriam ter sido contabilizados, considerando
apenas a presença dos seus dirigentes. Esse desfalque comprova sem dúvidas que o
preconceito existe e influencia a doutrina e os adeptos dessas religiões no Paraná.
É importante ressaltar que sempre existiram grupos de umbandistas que tentaram criar um
código doutrinário, rito-litúrgico e de conduta moral, com a intenção, declarada ou não, de
não serem tachados de primitivos - pela utilização do sacrifício animal, do tambor ou da
bebida alcoólica - e de mercantilistas - por cobrarem para a realização de algum trabalho
específico. É uma tentativa mal disfarçada de adaptar a Umbanda às regras morais falidas da
sociedade ocidental moderna.
Um exemplo desta aparente superioridade foi observado durante a coleta de dados para a
presente comunicação, em 26 de julho deste ano. Nesta data, nosso grupo foi a um
determinado terreiro, cujo dirigente manifestou abertamente o seu apoio a um movimento que
se destinava a definir o que é e o que não é Umbanda, posicionando-se contrariamente à
diversidade.
O viés codificador da proposta, embora não seja assumido, é evidente, pois tem como meta a
exclusão seletiva de fundamentos rito-litúrgicos mais diretamente relacionados às influências
africanas, concorrendo, mesmo que inconscientemente, para o embranquecimento da
Umbanda. Porém, a maioria absoluta dos adeptos das religiões afro-brasileiras, inclusive no
plano sacerdotal, é contrária à codificação. Nesse sentido:
7
Censo do IBGE em 2010. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 30 de jul. 2013.
8
Essa informação sobre o número de terreiros no estado do Paraná foi referenciada por Jayro Pereira Jesus,
presidente do Conselho Mediúnico do Brasil, na reportagem do Jornal Gazeta do Povo, na coluna do Caderno G,
escrita por Antonio Costa, com o título: Umbanda – Curitiba afro-brasileira, em 20 de setembro de 2008.
Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=809885&tit=Curitiba-afro-
brasileira>. Acesso em: 30 de julho de 2013.
538
É óbvio que qualquer proposta codificadora das religiões afro-brasileiras, por mais
camuflada que seja, não é outra coisa senão isto: EPISTEMICÍDIO (aniquilação de
conhecimentos doutrinários com os quais o codificador autoritário ‘não concorda’ - e, aliás,
não compreende de maneira alguma!), ETICÍDIO (aniquilação dos valores morais mais
óbvios, como respeito às diferenças e apego a valores convencionais anti-espiritualistas) e
RITICÍDIO (aniquilação de ritos considerados, pela vaidade narcísica e infernal de uns e
outros, como ‘primitivos’ ou ‘esteticamente agressivos’ à sua moral tão limpa, pura e
inviolável). 9
O conteúdo das propostas, anexadas ao final deste documento, tocam mesmo que
veladamente em questões polêmicas para a sociedade como o sacrifício animal e a cobrança
de salva, embora, contraditoriamente, seja garantido que questões de cunho litúrgico não
serão abordadas. Além destas questões rito-litúrgicas, há uma tentativa de determinar padrões
éticos de conduta que seriam aceitáveis para o umbandista, aos moldes de um código
canônico simplificado de matriz católica. Essa tentativa de dizer o que é e não é Umbanda
está evidentemente fadada ao fracasso, pois quem acha que é umbandista não vai deixar de
achar, mesmo contrariando as novas regras da tal carta.
Abaixo, seguem quatro objeções que o dirigente espiritual do Templo de Umbanda Xangô
Sete Pedreiras de Curitiba, Pai Thomé de Xangô (Itarayara), fez contra a criação da tal carta.
As perguntas foram realizadas para os representantes deste movimento numa reunião onde foi
exposta a proposta da “carta magna de Umbanda” em 03 de agosto de 2013, no auditório
Chico Xavier, da Faculdade Espírita do Paraná:
1. Mesmo que seja possível discutir se Zélio de Moraes efetivamente fundou a Umbanda ou
apenas a anunciou (o que, aliás, é feito na academia), quero partir aqui da premissa de que,
de fato, ele a fundou. Partindo dessa premissa, das duas uma: a) ou ele estabeleceu pontos
fixos de doutrina e de rito-liturgia; b) ou ele não os estabeleceu. Se estabeleceu, é
desnecessário fazê-lo agora. Se não estabeleceu, é ilegítimo fazê-lo, pois se nem mesmo o
fundador da religião o fez, como poderíamos nós fazê-lo? Portanto, gostaria de ouvir dos
ilustres representantes da mesa a sua opinião a respeito desse argumento, ou seja, de que a
fixação de ‘princípios fundadores’ é desnecessária ou ilegítima.
2. Embora, no site desse movimento, os senhores digam que todas as vertentes serão
respeitadas e que não haverá intromissão em pontos de doutrina e de rito-liturgia, é óbvio
que vários pontos dos chamados ‘princípios fundadores’ são sim de ordem doutrinária e
rito-litúrgica. A crença de que Oxalá é Jesus Cristo é um ponto de doutrina, obviamente. O
sacrifício animal é um processo rito-litúrgico com toda evidência. Gostaria de ouvir da
9
Comunicação pessoal de Pai Thomé de Xangô (Itarayara), dirigente espiritual do Templo de Umbanda Xangô
Sete Pedreiras, em Curitiba-PR.
539
mesa se esses temas, tais como sacrifício animal e cobrança de salva são ou não de cunho
rito-litúrgico. Se são, eles serão abordados na Carta Magna mesmo assim?
3. Se forem excluídos da Umbanda o sacrifício animal e a cobrança de salva, por que não
excluir também outros procedimentos não adotados pela Escola de Zélio de Moraes, como
o ‘Obi’ – utilizado em muitos Terreiros, inclusive de muitos sacerdotes aqui presentes – ou
o próprio ‘Atabaque’ – utilizado em praticamente TODOS os Terreiros do Brasil? Isso não
se trata de exclusão seletiva e arbitrária de fundamentos rito-litúrgicos?
4. Por fim, qual é a legitimidade desse espaço para ‘normatizar’ os tais ‘princípios
fundadores’ da Umbanda? Como pode a parte pretender falar em nome do todo e impor a
ele a sua visão específica das coisas, mesmo que seja somente a respeito de ‘princípios
fundadores’? Será que esse Congresso terá legitimidade para ‘legislar’ sobre Umbanda?
Nas visitas aos terreiros de Umbanda de Curitiba encontramos o que procurávamos, ou seja, a
diversidade. Esta foi expressa principalmente através das diferenças rito-litúrgicas e de
doutrina. As perguntas formuladas para os pais e mães de santo foram as seguintes:
3. Na sua visão, é acertada a ideia, consagrada pelo senso comum, de que Curitiba e o Estado
do Paraná são regiões que, ao contrário das demais regiões brasileiras, não contemplam a
religiosidade afro-brasileira em sua vasta diversidade, mas apenas no estrito espectro de
Religiões e Escolas mais diretamente influenciadas pelas religiões do “homem branco” e
integrante das classes sociais mais abastadas?
4. Por sua experiência sacerdotal e ainda na linha da pergunta anterior, o senhor/a senhora
conhece Terreiros das mais variadas tradições espirituais afro-brasileiras em Curitiba?
Abaixo, seguem as respostas dos pais de santo às perguntas indicadas e as imagens dos
terreiros e pais/mães de santo:
Ilê Asé Iba Omi. Sacerdotisa dirigente: Mãe Isabel Cristina da Osun
1. Umbanda e Candomblé. Na Umbanda recebi minha coroação como mãe de santo pelas mãos de Pai Luiz
Gulin de Ogun no Omolokô, no Candomblé nasci em raiz de kêto com Pai João de Odé e hoje tomei minhas
águas no nagô vodun pelas mãos do Babalorixá Ilson de Odé.
2. As religiões de Umbanda e Candomblé são religiões que tem em seus ritos matriz afro e tanto uma como a
outra são transferidas oralmente. Isto propicia a gama de diversidade existente hoje, pois além do conhecimento
adquirido na família de santo, contamos com a experiência de vida pessoal de cada mãe ou pai.
540
3. Discordo de pronto, pois buscando a história das religiões de Umbanda e Candomblé foram construídas
iniciadas por homens e mulheres negras, o fato de um único terreiro constituir-se de uma linhagem mais branca
não representa a dominação de seu todo. Ao contrário temos no Paraná uma ampla participação dos negros na
religião.
4. Sim, conheço. Kêto, Nagô Vodun, Omolokô, Jeje, Jeje Mani, Jeje Ijexá, Umbanda, Umbandomblé, Umbanda
Esotérica, Candomblé de Caboclo, Angola, Umbanda Zélio de Morais, Batuque oriundo do Rio Grande do Sul,
Umbanda de Nação, Umbanda das Almas e Quimbanda.
Figuras 1 e 2 – Terreiro Ilê Asé Iba Omi da Mãe Isabel Cristina da Osun
Ilê Asé Ewe Gbe mi Ijo Orunmila ati Ogboni. Sacerdote dirigente: Babalawo Ifayemi Obe Tolamise
1. Culto tradicional africano de Orunmila Ifá, Orixá, Ancestral, Das Yamis e Ogboni.
2. Todo culto é válido porque resulta da busca interna de transformação. Desde que a pessoa coloque em prática
os ensinamentos que aprendeu em sua religião.
3. Não concorda por saber que o número é maior do que indica o senso comum. Inclusive na cidade de Araucária
(região metropolitana de Curitiba) há informação de mais de 100 casas registradas.
4. Conhecemos um grande número de casas, mas não tem costume de visitar. Gostaria de visitar para troca de
conhecimento religiosos.
541
Ilê de Omolu. Sacerdotisa dirigente: Mãe Orminda de Omolu
1. O meu barracão Ilê de Omolu, nação nagô vodun (já extinta). A mão da Yalorixá que plantou o meu Axé é de
Angola. Então, o meu Candomblé bate Nagô e Angola.
2. A diversificação das religiões no Brasil são muitas devido a influência de povos que aqui se afirmaram.
3. Em Curitiba, a influência maior é branca devido as etnias polonesas e italianas que aqui vivem. Mas os negros
também deixaram raízes e por isso existem muitos centros espirituais de Umbanda também Candomblé.
4. Sim, com certeza porque fui batizada, fiz 1ª comunhão na Igreja Católica, frequentei Centro Espírita Dr.
Leocádio, participei da corrente da Tenda Esp. Estrela Guia. Como Mãe de Santo – Yalorixá tenho 38 de
raspada.
1. Umbanda e Candomblé. Ilê Axé Onigbo. Também existe nesta casa o toque de Angola (caboclos de Angola).
A origem da casa é de Umbanda Branca.
2. A diversidade é encontrada dentro de todas as casas, para poder agregar de forma culta e clara nas religiões
afro-brasileiras.
4. Não costuma fazer visitas em casas que não conhece, a não ser de filhos de santo e do seu próprio zelador.
542
Terreiro de Umbanda Tio Antonio. Sacerdote dirigente: Pai Andre de Xangô
1. Umbanda, agora querer definir uma escola de Umbanda partindo de uma linhagem sacerdotal me parece meio
temerário uma vez que a Umbanda como qualquer religião absorve valores e fundamentos com o passar do
tempo e o termo uma Escola para mim não se aplica na Umbanda, pois engessa O CONHECIMENTO. Cada
terreiro é uma escola, pois é lá que se aprende a Umbanda daquele terreiro, é claro que os terreiros sofrem
influencias de outros especialmente se esses outros forem casas ancestrais da raiz de umbanda que cada pai de
santo pertence. Exemplificando melhor, sou filho de santo de Fernando de Ogum do terreiro Pai Maneco, mas
minha iniciação foi juntamente com Fernando de Ogum no terreiro do já falecido Edmundo Ferro, onde também
se iniciou Nancy de Xangô que vem a ser a fundadora do terreiro da Vovó Cambinda e iniciadora da Mãe
Rosangela além de sua mãe carnal, que por sua vez foi a iniciadora do pai Thomé e também sua Mãe carnal, que
por sua vez é filho de santo do pai Rivas, que já pertence à outra raiz de Umbanda bem diferente da geradora de
todos estes eventos. Assim falar de escola de Umbanda é arriscado, vejam só Pai Fernando Guimarães batizou a
Umbanda praticada no terreiro do Pai Maneco de Umbanda Pés no Chão, mas ele mesmo ao começar não a
praticava dentro do próprio terreiro, e sim a Umbanda praticada no terreiro do pai Edmundo Ferro, o próprio pai
Rivas fez alterações na umbanda que ele aprendeu com pai Matta e Silva de quem é nacionalmente considerado
seu principal discípulo, é claro que estas casas assim como muitas outras foram influenciadas pelas casas que as
antecederam e influenciaram as casas descendentes delas, mas não dá para chamar isto de escola.
2. Acho que a diversidade existe e deve ser respeitada e mantida, afinal ao menos no papel o estado brasileiro é
laico. Assim todos por direito constitucional devem ter seus ritos e cultos mantidos e preservados, só lamento o
fato da falta de informação á sociedade do que é um ou outro culto, por exemplo, tomemos por base a Umbanda,
muitas casas se autodenominam de Umbanda, mas sacrificam animais em seus ritos, cobram, e em alguns casos
bem caro, por atendimentos, não reconhecem sua doutrina como cristã, e nem que a Umbanda é brasileira,
respeito os seus ritos e acho que também devem ser preservados, mas não podem ser chamados de Umbanda,
essas casas não devem se envergonhar do que são e assumir suas identidades verdadeiras.
3. Essa ideia não corresponde a realidade, o Brasil é um país de dimensões continentais, assim a religiosidade
afro-brasileira quando se formou comtemplou também a diversidade ritualística com aspectos culturais da cada
região, assim é natural que no sul do País tenham terreiros de batuque ao invés de casas de tambor de mina, ou
que no nordeste tenham mais casas de Xangô do Nordeste ou Candomblés de Caboclo do que casas de Omolokô,
embora estas já estejam rareando aqui no sul também. Agora, se esta pergunta trás embutida a ideia de que na
Umbanda há influencia kardecista, disfarçada na pergunta de r’eligiões do homem branco integrante de classes
mais abastadas”, é claro que há, e desde a sua fundação pelo caboclo das sete encruzilhadas na pessoa de Zélio
de Moraes. Mas esta influencia não ocorre somente em Curitiba e no estado do Paraná, ocorre no Brasil todo
inclusive no Estado de São Paulo de forma mais intensa ainda.
4. Sim, muitos, obedecendo aos aspectos da regionalidade brasileira, ou será que no estado de São Paulo, por
exemplo, existem casas de Xangô do Nordeste ou de Tambor de Mina, ou de Terekô?
543
Figura 6 a 8 - Ilê Axé Onigbo de Mãe Zanete
1. Batuque Jeje-Ijexá (da bacia da Mãe Lourdes de Iansã filha de Tereza de Xângo (falecida) - Uruguaina/RS,
Umbanda Branca (Exus não são incorporados) e Quimbanda (Kiumba).
Algumas pessoas ficam em dúvida e desconfiadas do porque cultuamos 3 linhas separadamente, um dia louvam
ao senhor no outro louvam ao diabo. É simples, são linhas complementares. Na Umbanda precisamos dos Exus
para levar as energias maléficas, na Quimbanda os Exus são os que nos dão os caminhos e são eles os enviados e
mensageiros dos Orixás.
2. Entendo que o Brasil foi formado pela miscigenação de povos, logo a religião não poderia ser diferente.
Entendo os valores culturais de cada uma das raízes africanas e a mistura de crenças e formas de cultos não
desvalorizam sua matriz e sim forma um novo conceito. Por mais pura em sua raiz que possa se tentar cultuar
uma linha, ela não será da mesma forma como na África nem hoje nem antigamente, primeiro porque a cultura
africana também mudou conforme os anos se passaram e porque itens usados nos cultos como alimentos e
vestimentas são diferentes na América latina, no Brasil e até mesmo há diferenças entre regiões brasileiras como
norte e sul do País, então o que se faz é substituir certos alimentos que fazem parte de frentes ou ebós por outros
parecidos. Isso não faz perder a fé, o culto ou a linha de crença. Em falando em diversidade e valorização da
religião afro-brasileira o Batuque no Rio Grande do Sul assim como o Candomblé da Bahia ainda na época de
Mãe Menininha os cultos eram clãs familiares e fechados a qualquer tipo de visitante, ao perceber que com o
passar dos anos as Casas iam se tornando cada vez menores até desaparecerem muitas resolveram abrir suas
544
portas para os visitantes e passar a frente sua cultura e é dessa forma que o Batuque e também a Quimbanda está
sobrevivendo aos tempos.
3. Nesses anos que estou ainda conhecendo Curitiba desde 2009 tenho visto muito que as religiões afro-
brasileiras se escondem. O preconceito aqui é muito forte contra a Umbanda e o Candomblé. Aqui vejo muito a
religião dita afro-brasileira, mas é muito mais um conceito espírita e católico do que afro. As pessoas vão aos
terreiros, são médiuns mas dizem são católicos ou espíritas. Vejo apenas os maiores terreiros que se tornaram
símbolo de status serem poupados do rótulo de macumbeiros ou coisa de nível inferior.
4. Conhecemos alguns terreiros e pais de santo de outras linhas como de Umbanda de Omoloko, como a dona
Mariquinha já com 50 anos de trabalhos, do Sr. Silveira (já falecido) que fazia uma mistura de Umbanda e
Candomblé, fomos em suas giras, conversamos sobre suas doutrinas e respeitamos todas. A mistura ou a
mudança das doutrinas conforme o tempo o um novo conceito é valoroso, mas ao mesmo tempo é perigoso,
creio que o sacerdote, Babalorixa, Chefe de Terreiro precisa ter muito cuidado com linha que separa a religião
afro-brasileira da seita e do que desrespeita os valores humanos e morais da sociedade. Não se deve jamais
perder a conexão com sua linha matriz, sua origem.
Terreiro: Tenda Lar de Ogun. Sacerdote dirigente: Togun bara (Pai Luiz)
2. A diversidade é importantíssima e em momento algum deve ser deixada de lado, pois é através dela que
se acha a clareza e o aprendizado. Não existe um só caminho.
3. Não concordo, existe muita diversidade. São raríssimos os terreiros que seguem a linha ortodoxa de
Zélio de Moraes. A maioria tem traços de diferentes tradições, como por exemplo, de angola e
omolokô.
545
Figuras 14 a 16 – Tenda Lar de Ogun de Togun bara (Pai Luiz)
Considerações finais
Diante do que se expôs acima e do teor das entrevistas anexadas ao presente trabalho,
concluímos que, diferente do que pode ser considerado pelo senso comum, temos do ponto de
vista qualitativo representantes de diversas, senão todas as escolas das religiões afro-
brasileiras em Curitiba. Do ponto de vista quantitativo é bastante provável, se não certo, que a
diversidade religiosa em Curitiba também apresenta índices bastante elevados, embora isso
deva ser investigado de forma autônoma com critérios estatísticos rigorosos. Outro sinal que
546
parece confirmar esta conclusão é o fato de que o movimento paulista a favor da promulgação
da “Carta Magna Umbandista” foi recepcionada com muita reserva e até mesmo com
desconfiança por parte da comunidade de santo curitibana no 3° seminário realizado pela
FUEP (Federação Umbandista do Estado do Paraná) com a intenção de apoiar o referido
movimento.
Referência
RIVAS NETO, Francisco. Assimetria do Sagrado nas Religiões Afro-Brasileiras. In: Escolas
das Religiões Afro-Brasileiras. São Paulo: Arché Editora, 2012.
547
548
A presença de valores culturais africanos iorubás nas religiões
afro-brasileiras
Fernanda Leandro Ribeiro1
Introdução
Este trabalho tem como objetivo delinear a influência de elementos culturais dos iorubás na
cultura brasileira, em especial, nas religiões afro-brasileiras.
Os termos iorubá e nagô são utilizados para se referir a grupos que vivem em cidades
localizadas no Daomé (Atual Benin) e da Nigéria, no ocidente da África, em uma vasta região
chamada de Yoru baland. Eles têm em comum a língua iorubá e a crença em uma mesma
origem mítica: crêem que sua descendência espiritual está ligada ao orixá Oduduwa. Dentre
os grupos iorubás existem os Ketu, Egbado, Egba, Sàbé, Ijesa, Ijebu, Abeokutá e outros. Os
Ketu foram os que mais influenciaram a cultura brasileira, especialmente na Bahia (SANTOS,
2002, p. 28-29). No Brasil, também é utilizado o termo nagô para se referir aos iorubás,
independente da sua origem geográfica. E em Cuba, eles são chamados de lucumi (SANTOS,
2002, p.29; 31). Os iorubás (nagôs) e os jejes, denominados sudaneses, possuíam muita
semelhança e eram vizinhos no Daomé. No Brasil, fixaram-se principalmente no norte e
nordeste. Enquanto isso, outros grupos da África equatorial e oriental se espalharam pelas
regiões sudeste e centro-oeste.
Estudos apontam que já na África, eles eram um grupo forte e possuíam uma capacidade de
preservação da cultura maior, se comparada com outras regiões africanas. Mantinham
relações com várias regiões vizinhas, mantendo certa influência política sobre elas. E
quando os europeus chegaram na África para colonizar e capturar escravos, eles
conseguiram se proteger e se preservar por mais tempo em relação a outras regiões
africanas. Isto pode explicar a preservação de valores e mesmo de estruturas sociais e
políticas até os dias de hoje em países como a Nigéria. Bem como sua preservação em
países como Brasil e Cuba.
1
Teóloga umbandista com ênfase nas religiões afro-brasileiras pela FTU. Mestranda em Ciências da Religião
pela PUC/SP. Bolsista Capes. Membro do grupo de Estudos sobre Religiões Afro-brasileiras do Programa de
Ciências da Religião da PUC/SP. Contato: fernandal_10@yahoo.com.br.
549
Um outro fator para a prevalência da influência iorubá se deve ao fato de que mesmo na
África, já havia um constante intercâmbio cultural com outras regiões. Isto acontecia em
relação aos jeje, que apresentavam uma estrutura muito semelhante a dos iorubás e com os
bantos (congo, angola), da região central (LWANGA-LUNYIIGO E VANSINA, 2010,
p.180-182). Como veremos adiante, a estrutura social nos reinos iorubás na África não se
reconstituiu completamente no Brasil. Mas, eles conseguiram preservar alguns de seus
valores e elementos de sua estrutura dentro dos terreiros das religiões afro-brasileiras.
África ocidental
Oralidade
A cultura africana, de modo geral, e dentro dela a cultura iorubá é oral. A princípio, o que
distingue uma sociedade oral de uma sociedade baseada na escrita é a forma de transmissão
do conhecimento. As sociedades orais utilizam a palavra falada, enquanto as sociedades
baseadas na escrita utilizam também a palavra escrita.
A palavra é tão importante nas sociedades orais, que a memória é fundamental, pois é o único
meio de perpetuação do conhecimento. Por isso, a maior parte dos textos sagrados e mesmo
textos culturais são declamados em forma de música, o que facilita a memorização
(WALTER ONG, 1986, p. 41). Além da palavra falada, nas sociedades orais, valorizam-se
também os gestuais e os movimentos corporais, considerados formas genuínas de expressão
de sentimentos e idéias. Por isso, a música e a dança são consideradas muito importantes
nestas sociedades (ZUMTHOR, 1997, p. 203-217).
No entanto, o que caracteriza as sociedades orais é mais do que uma forma específica de
comunicação e transmissão de conhecimento. Elas possuem como traços principais um modo
de viver baseado na experiência e no coletivo e uma visão de mundo que concebe a existência
de um mundo sobranatural, com suas forças mágicas, intimamente relacionado com o mundo
natural. É ali “entre” estas duas realidades, que se constitui a subjetividade e que se desenrola
a vida humana. O mundo dos homens é considerado um continuum do mundo dos deuses e
dos ancestrais.
Claude Lévi-Strauss (1989, p. 25) afirmou que o modo de pensar das sociedades orais implica
em uma noção de totalidade dentro da qual todas as coisas possam encontrar o seu lugar. Ele
550
notou que nestas sociedades (ditas primitivas) todos os detalhes devem ser observados, pois
tudo tem que ser incluído. O que torna uma coisa sagrada é ela estar em seu lugar. Hernandez
(2008, p 28-29) também se refere a esta noção de totalidade presente nestas sociedades.
Aponta que a tradição oral está ligada ao comportamento de uma pessoa e de uma
comunidade a partir de um certo tipo de visão de mundo considerado como um todo integrado
no qual todos os elementos interagem entre si. A tradição oral apresenta uma concepção de
homem e de seu lugar no mundo mineral, vegetal, animal e social. Essa afirmação se refere
àquele aspecto mencionado anteriormente de que as tradições orais se baseiam na experiência.
Isso implica em uma série de particularidades na vida religiosa.
Como aponta Jack Goody (1995, p.37-38), comparadas com as religiões abrâmicas como o
cristianismo, judaismo e islamismo, as tradições orais são mais regionalizadas: as práticas
religiosas estão intimamente relacionadas aos aspectos culturais locais. Por isso, as sociedades
orais são muito diversificadas, diferentemente das religiões abrâmicas, que podem ser
reproduzidas em diferentes contextos culturais, sendo, assim, mais universais.
Tradição oral, portanto, é um modo de viver no qual todas as coisas estão intimamente
relacionadas e se influenciam mutuamente. Mas não de um modo linear e unidirecional como
no pensamento científico. Baseia-se na concomitância de vários acontecimentos, que se
relacionam entre si, de maneira difusa.
Leite (1992) apud Salami (1999, p. 30) alerta para o fato de que a ausência de escrita nas
sociedades negro-africanas não deve ser confundida com analfabetismo. Segundo ele, este
tipo de perspectiva progressista não compreende a importância da palavra como elemento
vital, componente da cultura e da história destas sociedades.
Deste modo, os babalawôs (sacerdotes de Ifá) são considerados os intelectuais dentro das
sociedades iorubás. São eles que fazem as consultas oraculares por meio dos métodos Opele
Ifá e Opon Ifá.
O Ifá é o pilar central da vida iorubá, uma vez que ele veicula não somente valores religiosos
e espirituais. Ele compreende todo o conjunto de conhecimentos históricos, religiosos e
filosóficos destas sociedades, mesmo sem utilizar a escrita (ABIMBOLA, 1973, p.2).
551
Aspectos históricos e geográficos
Segundo Leila Leite Hernandez (2008, p. 20), a divisão entre África branca ao norte e a
África negra ao sul tinha como pano de fundo ideológico a intenção de justificar a África
subsaariana (negra) como um povo bárbaro, selvagem e instintivo, no qual predomina a
natureza, isto é, não se produzem cultura e história.
Esta discussão é importante para este trabalho, uma vez que a Nigéria, onde existe uma
grande concentração de iorubás (um quarto da população é iorubá) é o país mais populoso do
continente africano e maior país em população negra no mundo, segundo Salami (1999, p.
15). Os estados africanos, dentre eles, os estados iorubás, por exemplo, já existiam ou estavam
em processo de formação, mesmo antes da chegada dos mulçumanos (entre os séculos II e
VIII).
Hernandez (2008, p 164) defende que, perante a influência islâmica, os sudaneses (jejes,
nagôs e minas, grifo meu) conseguirem se preservar politicamente, sem abrir mão de seus
valores originais. Chegaram até a se converter ao Islã, sem, contudo abandonar suas próprias
tradições religiosas. E sem obrigá-los a adotar costumes africanos. Os sudaneses tinham
estados organizados, o que só foi possível em decorrência do crescimento do comércio.
Naquelas regiões da África ocidental onde não havia muito comércio, permaneceram as
sociedades sem estado (THUSTAN SHAW, p.547-548). Estas organizações sociais e
políticas na África, também chamadas reinos ou impérios, eram sistemas de governo e, ao
mesmo tempo, modos de centralização ou descentralização administrativos. Segundo
Hernandez (2008, p.35), eles foram se extinguindo a partir de 1800, momento que iniciou a
colonização européia.
552
Aspectos políticos, sociais e culturais
Antes da chegada dos mulçumanos (século II ao século VIII) e dos europeus no século XV, a
terra era apenas uma fonte de ganho voltada para a sobrevivência. Não existia a noção de
posse. Esta noção só passou a existir na África com a chegada do direito islâmico e do
sistema político-econômico feudal europeu (DIAGNE, 2000 p.29).
A propriedade do tipo europeu, fosse o direito de usar e de dispor dos bens e mesmo das
pessoas (ou seja, escravos), praticamente não existia. Os que se apropriavam ou
transmitiam uma parcela de terra ou área de caça, de pesca ou de colheita valiam-se apenas
de um direito de usufruto que excluía a especulação lucrativa ou o direito de venda. As
sociedades agrárias do sul do Saara criaram então o lamana – sistema de ocupação das
terras que não previa nem a locação destas, nem o arrendamento ou a meação, ainda que
taxas impostas pelo Estado e pelas autoridades como pelos chefes fossem recebidas em
cima da produção agrícola e pastoral. A economia da África negra era centrada, antes de
tudo, na produção destinada ao consumo. O homem produzia aquilo que precisava, mas não
possuía os meios de produção (DIAGNE, 2000, p.31).
Assim, a maior mudança ocorrida com a introdução do modelo feudal, foi a possibilidade de
tirar proveito dos meios de produção.
As comunidades que não possuíam uma organização estatal foram as primeiras a serem
exploradas e se constituíram como reservas de escravos. Mas, de modo geral, todas as
comunidades foram impactadas com o tráfico de escravos (ALAGOA, p. 521). Os iorubás
parecem ter conseguido se manter a salvo da influência direta dos europeus por mais tempo,
ficaram fora, inclusive, do esquema de escravidão europeu até o século XIX. De fato, eles
eram reconhecidos por terem um reino forte e isso era atribuído em grande parte aos seus reis
(oba, também chamados oni) (ALAGOA, 2010, p. 530).
553
Os grupos africanos (não somente os iorubás) possuíam fortes laços de amizade e de
solidariedade (Idem, p. 524). O trabalho era organizado em corporações familiares, que
funcionavam de um modo cooperativo. E profissões que envolvem trabalho braçal ou manual
como forjador, camponês, pescador e pastor nômade eram muito valorizadas. (DIAGNE,
2000, p 34-35).
Com a chegada dos europeus essas corporações de trabalho são substituídas por sistemas de
castas. E as divisões de classe, raciais, étnicas e religiosas cristalizam-se cada vez mais. O
sistema feudal se sobrepõe ao lamana (Ibid). Além disso, os europeus incentivam a rivalidade
entre as diversas sociedades africanas com o objetivo de enfraquecê-las. Com a colonização
no século XVIII isto se intensifica, uma vez que as linhas de demarcação dos novos estados
não respeitaram os contornos dos grupos étnicos.
O caráter coletivo no modo de viver dos iorubás era observado também nas relações
familiares. As sociedades iorubás são patriarcais. E é comum um homem ter várias mulheres.
Moram todos numa mesma casa. Cada uma das mulheres vive com os filhos em um quarto. O
marido tem o seu próprio quarto. Existe uma área de convívio familiar, onde as pessoas se
juntam para fazer as refeições, receber visitas e realizar festivais. Quando um filho se casa,
ele traz a esposa para morar junto com a família dele (SALAMI, 1999, p. 18).
554
A influência dos iorubás nas religiões afro-brasileiras
Segundo Verger (1964, 1968) e Viana Filho (1964) apud Santos (2002, p. 28), dentre os
africanos que vieram para o Brasil como escravos, os iorubás foram um dos últimos grupos a
chegarem, durante o final do século XVIII e início do século XIX. Silva (1994, p. 65) também
afirma que os sudaneses foram os grupos que predominaram no século XIX, quando as
condições urbanas, históricas e sociais de perseguição religiosa já estavam diminuindo.
Segundo ele, isto contribuiu dentre outros motivos, para que a estrutura religiosa iorubá
fornecesse ao candomblé seu alicerce.
Já Mattos (2011, p. 72) afirma que os escravos oriundos da África ocidental teriam vindo
entre os séculos XVI e XVIII. Dentre eles, os sudaneses (iorubás, jejes, minas) vieram entre
os séculos XVII e XVIII. A explicação para este fato é que a primeira região ocupada para a
captura de escravos foi o ocidente africano, em virtude das características geográficas, pois
os navios europeus que saíam da Europa pelo oceano Atlântico chegavam primeiro ali.
Parés (2006, p.74) afirma que os jejes chegaram há mais tempo no Brasil e teriam
constituído uma ampla rede de solidariedade. Uniram-se coletivamente para conseguirem
comprar a alforria de cada um deles. Tanto que, entre os africanos libertos em Salvador, no
início do século XIX, a maioria era jeje. Segundo o autor, este grupo influenciou
decisivamente na formação do candomblé.
555
Religiões afro-brasileiras
Elas concebem a existência de uma realidade sobrenatural que influencia o mundo natural.
O mundo invisível das divindades e dos ancestrais está intimamente ligado a vida dos
homens. E, apesar de estarem inseridas em uma sociedade baseada na escrita, como é a
sociedade brasileira, nestas religiões, valoriza-se mais a experiência do que textos sagrados
escritos. Neste sentido, elas se aproximam do que Paul Zumthor denomina oralidade mista
(1997, p. 37), para se referir a sociedades nas quais coexistem elementos culturais da
oralidade e da escrita. A presença da escrita se refere não somente a escrita em si, mas ao
que ela representa. A escrita foi inerente ao desenvolvimento de sistemas de governo mais
amplos e abrangentes, que de certa forma, são também mais despersonalizados e abstratos.
(GOODY, 2012, p. 28).
Cada religião afro-brasileira possui uma influência maior ou menor de cada uma das
matrizes formadoras (ameríndia, africana e européia) e dentro de cada uma destas matrizes,
a influência acentuada de um determinado grupo específico, por exemplo, dentro na matriz
africana, uma influência nagô (iorubá), jeje ou angola (RIVAS NETO, 2012, p. 97-98).
Rivas Neto (Idem, p.25) utiliza o termo escolas para se referir a esta pluralidade de
expressões religiosas afro-brasileiras. Ele propõe que cada escola possui uma determinada
visão de mundo, uma forma específica de transmissão de conhecimento, bem como rituais
específicos.
556
A relação entre as diferentes matrizes na formação destas religiões nunca foi imparcial. Em
virtude de questões políticas, sociais e econômicas, sempre houve no Brasil uma imposição
de valores europeus em detrimento de valores indígenas e africanos, o que necessariamente
permeou as religiões (Idem, p. 76).
Silva (1994, p.34) explica que durante o período da colonização, a Igreja ao mesmo tempo
que tentava coptar os negros para o catolicismo por meio da catequese, muitas vezes fazia
vistas grossas às suas rezas, danças e cânticos. Os negros disfarçavam, dizendo que seus
batuques eram uma forma de homenagear os deuses católicos.
Mas mesmo nos espaços sociais, durante este período, com o todo o controle que a Igreja e o
governo exercessem, os mestiços e os negros levavam a alegria, a música, a dança,
imprimindo sua marca na cultura brasileira, mesmo que a elite conservadora se chocasse com
seus costumes (SILVA, 1994, p. 38). As irmandades, associações católicas de leigos, eram
organizadas por cor de pele. Elas acabaram tornando-se espaços de ajuda mutua. Os filiados
de uma mesma irmandade juntavam as contribuições para comprar a alforria de um de seus
membros e também para a realização de enterros (Idem, p. 41-42).
O mesmo acontecia com os quilombos, que se formaram por todo o país. Estas comunidades,
que abrigavam escravos fugidos, tinham uma estrutura social muito organizada. Elas
produziam alimentos e comercializavam fora dos quilombos, com indígenas, comerciantes e
pequenos agricultores (MATTOS, 2011, p. 137).
557
e o que é negro com o baixo espiritismo. Ao primeiro se relaciona ainda a noção de religião-
ciência e ao segundo a noção de magia-superstição. O primeiro protegido pelo Estado o
segundo não (Ibid). Deste modo, todo esforço empreendido para a separação entre brancos e
negros não impediu que os negros influenciassem a cultura brasileira. A cristianização dos
negros, bem como dos índios não significou o abandono de suas crenças e tradições. Eles
continuaram acreditando em seus deuses.
Este nome advém do fato de que vieram para o Brasil algumas das divindades africanas,
bem como outros aspectos religiosos africanos. O termo orixá para se referir às divindades é
utilizado apenas pelos iorubás na África, outros grupos utilizam outras nomenclaturas. No
Brasil, ele passou a ser utilizado de forma generalizada dentro das religiões afro-brasileiras.
Os negros escravizados que pertenciam a uma mesma sociedade de origem na África, foram
se agrupando e reproduzindo aqui seus rituais e sua visão de mundo. Assim, surgiram os
candomblés de nação (relativo a uma determinada cidade ou estado africano). O candomblé
Xangô em Pernambuco possui a influência da nação egbá, um seguimento dos iorubás. O
Batuque no Rio Grande do Sul apresenta influência maior da nação iorubá oió-ijexá. No
Maranhão, o Tambor de Mina tem influência nagô e também jeje (PRANDI, 2005, p 21).
558
África. No início, elas eram compostas por africanos de um mesmo grupo. Mas com o
passar do tempo, ingressavam africanos de outros grupos, crioulos, mulatos e finalmente
brancos. A família-de-santo ia assim perdendo sua característica étnica e incluindo pessoas
de contextos sociais diversos (SILVA, 1994, p. 56-57).
A família-de-santo cria relações do tipo familiares dentro do terreiro. Tem a mãe e o pai-de-
santo, os irmãos, as tias, as avós. Além disso, ela estabelece relações de parentesco com
outros terreiros parentes, fundados por pessoas que pertencem à família (Idem, p. 57; 59).
Em relação ao culto às divindades, enquanto na África cada cidade cultuava uma única
divindade, considerada sua genitora mítica, no Brasil, com a mistura de pessoas de
diferentes cidades africanas, tem-se em um mesmo terreiro o culto a várias divindades e não
apenas uma (BENISTE, 2010, p. 20). Além disso, sendo a sociedade brasileira bastante
diversa e a adesão ao candomblé minoritária em relação ao que se tinha na África, aqui não
se cultuam antepassados coletivos, como acontecia lá. (PRANDI, 2005, p. 39). Segundo
Silva (194, p. 120), no candomblé “os deuses africanos transformaram-se de deuses
tutelares de um clã, linhagem ou cidade, em deuses pessoais, que cada pessoa recebe em seu
corpo e cultua como protetor individual”.
O culto aos caboclos, tão presentes na religiosidade dos bantos, deu origem ao candomblé
de caboclo, considerado por muitos adeptos uma variação do candomblé de angola, no qual
os deuses indígenas assumiram o papel central, com o mesmo status dos orixás. Os
caboclos são os espíritos “donos da terra” e representam os índios que aqui viviam antes da
chegada dos brancos e dos negros. Quando baixam nos terreiros, vestem-se com cocar de
pena, dançam com arco e flecha, fumam charutos e bebem vinhos (SILVA, 1994, P. 87).
O culto aos ancestrais era comum em muitos grupos africanos que vieram para o Brasil, não
somente os bantos, e isso inclui os iorubás. Assim, pode-se afirmar que esta foi uma
contribuição de todos os grupos, mesmo porque na própria África eles estavam em constante
intercâmbio cultural e religioso. Apesar de alguns terreiros no Brasil terem mantido suas
origens iorubás mais intactas, em muitas partes do país, a tradição iorubá se misturou com
559
outras tradições. Foi o caso do Batuque no sul, o Tambor de Mina no Maranhão, o Xangô em
Pernambuco e a própria Umbanda no Rio de Janeiro e São Paulo (PRANDI, 2005, p. 21- 22).
Prandi (2005, p.65) afirma que os eguns, que são para os iorubás ancestrais de uma
comunidade específica, tornaram-se entidades genéricas que baixam nos diferentes terreiros
para trabalhar. A capacidade de cultuar um ancestral, que não seja de sua terra natal, pode ser
entendida como uma demonstração do caráter regionalizador das tradições orais, sugerido por
Goody, citado anteriormente. Além disso, parece refletir também a noção de terra que os
africanos tinham. Para eles, a terra era coletiva e impessoal, conforme vimos.
Na Umbanda, as entidades são seres espirituais que se manifestam nos terreiros por meio da
mediunidade e dão suas consultas. São os conhecidos caboclos, crianças, pretos-velhos, exus,
pomba-giras, baianos, boiadeiros, marinheiros, ciganos, mestres da jurema.
Elas se organizam em falanges (linhas), compostas por várias entidades que trabalham juntas,
ou seja, atuam de forma semelhante. Além disso, cada falange possui um orixá patrono.
Assim, por exemplo, os caboclos podem ser de Ogum, Oxossi, Xangô, Oxalá. As caboclas de
Yemanjá, Oxum. As crianças relacionadas a Ibeji (BIRMAN, 1985, p. 20; RIVAS NETO,
2002, p. 174; 231; SILVA, 1994, p. 120). E cada uma destas falanges juntamente com o orixá
patrono, se relaciona com um domínio da natureza ou uma atividade da cultura humana. Os
caboclos de Xangô são responsáveis pela execução da justiça e são representados pela pedra,
os caboclos de Ogum representam força e seu símbolo é o ferro, as caboclas de Yemanjá
atuam nas emoções e seu elemento é a água (RIVAS NETO, 2002, p.165).
Entre os Exús, existem aqueles que são guardiões e que cuidam da porteira, os que
trabalham com as almas nos processos de desencarne. Tem ainda, os Exus que trabalham
com o fogo nos processos de neutralização de energias deletérias e as pomba-giras, que
atuam nas questões amorosas das pessoas (RIVAS NETO, 2011, p. 111-119). Na Jurema,
também tem as entidades que dão consultas por meio da mediunidade. São os caboclos,
índios, boiadeiros, vaqueiros, baianos, pretos-velhos, erês, povo do Maranhão e os mestres
do catimbó (ASSUNÇÃO, 2010, p. 201-202).
560
Codó. As entidades da linha da jurema são classificadas em caboclos, índios e mestres
(Idem, p. 158).
Considerações finais
Nos aspectos referentes a crenças e rituais destaca-se a continuidade do culto a alguns dos
orixás cultuados na África, com a diferença que no Brasil, um mesmo grupo (terreiro)
cultua vários orixás e não apenas um, como acontecia nas cidades africanas. O próprio
termo orixá utilizado no Brasil para se referir às divindades é de origem iorubá. Os iorubás
influenciaram também no culto aos ancestrais, com a diferença de que no Brasil, os
ancestrais também não são específicos de cada linhagem. No caso, as entidades atuam nos
terreiros de forma generalizada.
Em relação aos processos sociais, o modo de viver iorubá na África estava baseado em
relações de cooperação, seja no trabalho, na família ou na relação com a terra (que não se
tornava propriedade particular). No Brasil, este modo de relação se reproduz apenas dentro
dos próprios terreiros, bem como nas irmandades cristãs e nos quilombos. A estrutura
política e social mais ampla da sociedade não sofreu o impacto da cultura iorubá e das
outras culturas africanas e mesmo dos indígenas brasileiros.
Pode-se afirmar que a mistura entre diferentes tradições presentes nas religiões afro-
brasileiras possibilitou amenizar os impactos da separação social que existia entre brancos,
561
negros e indígenas. Isto foi possível, principalmente, por meio das relações de parentesco
estabelecidas nas famílias-de-santo. Elas conseguiram irmanar grupos cada vez mais
abrangentes, pois se no início entravam apenas pessoas de um mesmo grupo africano, com
o passar do tempo foram entrando africanos de outros grupos (africanos) e depois pessoas
de outras procedências.
O termo família-de-santo surgiu no candomblé, mas pode-se observar que outras religiões
afro-brasileiras possuem um tipo de estrutura similar. Em todas elas, existe uma cosmovisão
que fundamenta as relações entre as pessoas e os lugares sagrados, as atividades humanas,
os ancestrais e as divindades. Na Umbanda, por exemplo, esta cosmovisão é expressa pelas
linhagens, além da mitologia e das relações familiares do santo. Esta é uma demonstração
de que as religiões podem influenciar na sociedade produzindo não somente rupturas, mas
também laços. As religiões afro-brasileiras, em especial, têm desempenhado este papel, à
medida que acolhem pessoas das mais diversas condições sociais, econômicas e raciais.
Referências
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África. Volume V. São Paulo: Coleção Unesco, 2000.
ASSMANN, JAN. Religión y memoria cultural - Diez estudios. Buenos Ayres: Lilmod,
Libros de la Araucária, 2008.
ASSUNÇÃO, Luiz. O reino dos mestres - a tradição da jurema na umbanda nordestina. Rio
de Janeiro: Pallas, 2010.
BENISTE, José. Mitos yorubás - o outro lado do conhecimento. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2010.
562
GOODY, Jack (Org.). Introdução. In: Cultura escrita en sociedades tradicionales (Org. Jack
Goody). Barcelona: Genesa, 1995.
__________; WATT, Ian. Las consecuencias de la cultura escrita. In: Cultura escrita en
sociedades tradicionales. GOODY, Jack (Org.). Barcelona: Genesa, 1995.
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileiras. São Paulo: Contexto,
2007.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé - história e ritual da nação jeje na Bahia.
Campinas: Editora Unicamp, 2006.
PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
RIVAS NETO, Francisco. Exú - O Grande Arcano. 4ª edição. São Paulo: Ayom, 2011.
__________. Umbanda - A Proto - Síntese Cósmica. 3ª edição. São Paulo: Pensamento, 2002.
SALAMI, Sikiru. Poemas de Ifá e valores de conduta social entre os yorubá da Nigéria
(África do Oeste). Tese (Doutorado em Sociologia), FFLCH-USP, São Paulo, 1999.
SHAW. Thurstan. A zona guineana: situação geral. In: História Geral da África. Volume III.
São Paulo: Coleção Unesco, 2000.
SILVA. Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. São
Paulo: Ática, 1994.
563
564
Aprendendo yorubá no Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá
Marta Ferreira1, Stela Caputo2
Introdução
Omolocun ajeun bó, omolocun/Omolocun ajeun bó, omolocum. A cantiga é entoada nos
terreiros de candomblé para as rodas do Òrìşà Logun Edé. São apenas duas frases em yorubá
e precisamos desdobrá-la em muitas outras. Òrìşà3, por exemplo. Para Santos (1975), alguns
autores sustentam que os Òrìşà são ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou de clãs
africanos que, através de atos excepcionais durante suas vidas, transcenderam os limites de
sua família ou de sua dinastia passando a ser cultuados por outros clãs até se tornarem
entidades de culto nacional. Nos terreiros, acredita-se que alguns filhos ou filhas de santo
incorporam essas entidades, ou a energia dessas entidades. De Logun Edé, digamos, para
resumir absurdamente, que é um Òrìşà caçador e pescador. É filho dos Òrìşà e
assumindo características de ambos. Justamente por isso, suas lendas ensinam que ele vive
metade do ano nas matas (domínio do pai) e a outra metade nas águas doces (domínio da
1
Mestranda em Educação pela UERJ/PROPED. Membro do GP Ilè Obá Òyó. Orientadora: Stela Guedes
Caputo. Contato: ferreira-martasilva@hotmail.com.
2
PhD em Educação, docente UERJ/PROPED. Coordenadora do GP Ilè Oba Oyó. Contato:
stelaguedescaputo@hotmail.com.
3
Nesse texto, sempre que for possível, utilizaremos (em itálico) as palavras em yorubá na forma como se
escrevem. Para facilitar a compreensão vale o que ensina o professor Beniste. O sistema tonal é marcado por
acentos em cima das vogais, que servem para dar um tom certo às palavras: o acento agudo indica uma
entonação alta; o grave, uma queda de voz e, sem acento, um tom médio ou a voz natural. Em algumas letras se
usa um ponto embaixo. O e E dão um som aberto; sem ele o som será fechado. adquire o som de X ou CH, sem o
ponto terá o som original da letra S. (BENISTE, 2006, pág.13). Também não há plural. Fazemos essa opção
reconhecendo a importância da oralidade na manutenção desta língua, mas acreditando também na importância
da divulgação de sua forma escrita, como mais um elemento do rico conhecimento que circula nos terreiros.
565
mãe). A cantiga que abre esse trabalho diz que Logun Edé “come todo omolocum”. Já
omolocum é uma comida também sagrada, comida de Oşun, mãe de Logun.
Para fazer o omolocun a Ìyá Bassé (responsável pela comida), reúne delicadamente erèé
(feijão fradinho), edé (camarão), àlùbósà (cebola), èpò funfun ou pupá (azeite doce ou de
dendê), cocorodi da iná (ovos cozidos). E utiliza, entre outras coisas, oberó (alguidar), obé
(faca), ianijé (prato). Esta língua também nomeia os cargos adquiridos pelos iniciados e iniciadas como: ogan
(responsável pelo toque dos atabaques) e outros. Nomeia os ritos sagrados, como o Ebòorí que, literalmente, quer dizer
dar de comer à cabeça e que tem por objetivo fortalecer a cabeça de quem o faz. Já Àşèşè, é o ritual fúnebre no
candomblé. Mitos, cantigas, rezas, comidas, artefatos, cargos, rituais. Todas essas coisas são
faladas em yorubá, uma língua africana viva, que circula cotidianamente nos terreiros de
candomblé no Brasil e que crianças, jovens e adultos conhecem.
Figura 01- Àkárá (bola de fogo) Je (comer) – Àkáráje – comer a bola de fogo (bolinho feito de massa de feijão
fradinho, camarão seco, cebola, sal, frito em azeite de dendê). Aqui, os Àkáráje estão arrumados em uma
oferenda com frutas para os Òrìşà.
Aprendemos com Beniste (2001) que o idioma yorubá pertence à família de línguas do Sudão
e é falado nas diferentes regiões da atual Nigéria. A língua, assim como outras, chega até nós
no período da escravidão e se torna a mais comum nas comunidades negras.
Seu último refúgio foi nas comunidades de Candomblé, nas modalidades Kétu, Èfòn, Ìjèsà
e demais que se utilizam de elementos culturais nagôs. Tem sido mantida através de
cânticos, rezas e expressões diversas, estando aí um dos fortes motivos para a manutenção
de tradições seculares (2001, p.317).
566
Interessa-nos aqui partilhar um pouco essa cultura preservada e recriada nos terreiros de
candomblé. Para Raymond Williams (2007), a noção de cultura está impregnada da produção
histórica, material e simbólica da sociedade e suas lutas. Cultura, na concepção de Williams é
modos de vida. As comunidades de terreiros abrigam modos de vida singulares, complexos,
constituídos de saberes específicos. São saberes que percebem, sentem, intuem, interpretam e
narram o mundo. Ou seja, há uma epistemologia, uma maneira de conhecer própria nesses
lugares de saberes que difere dos modelos epistemológicos dominantes.
A pesquisadora Nilda Alves, há muito vem reafirmando suas preocupações com a importância
dos múltiplos espaçostempos4 nos aprendizados tanto de estudantes como de professores e
professoras. A ideia principal é de que a formação se dá em múltiplos contextos. Para ela, é
preciso compreender que os muros das escolas são criações imaginárias e que vivemos todos
e aprendemos todos dentrofora das escolas. Em suas palavras: “O que é aprendidoensinado
nas tantas redes de conhecimentos e significações em que vivemos entra em todos os
contextos, porque encarnado em nós.” (2010, p.1197).
Acreditamos que os terreiros de candomblé com todo seu modo de vida singular, portanto,
com suas culturas, estão nessas redes educativas. Redes tecidas por danças, cantos, comidas,
rezas, folhas, mitos, artefatos, gestos, segredos. O yorubá5 perpassa todos esses saberes, como
um fio de linguagem que acende, organiza e mantém a comunicação dos praticantes do culto.
Há maneiras distintas de relação com esta língua nos terreiros e entre seus membros. Alguns
compreendem mais e outros menos o significado daquilo que cantam ou falam. Alguns não
acham importante entender completamente a tradução das cantigas e acreditam na
importância do ritual mesmo sem a compreensão de todo o seu conteúdo. Já outros julgam
que é cada vez mais necessário entender o idioma. O modo como se ensina e se aprende
também se diferencia de casa para casa. A oralidade manteve entre nós o candomblé e suas
línguas. Ritos, cantigas, rezas, receitas, mitos, foram passados de praticante para praticante
através de gerações trazendo essa cultura desde a escravidão até nossos dias. Ela é preservada
nas casas de aşé (os terreiros), mas também vive além de seus muros. Na grande maioria
desses terreiros, o mais comum é a repetição das palavras, rezas e cantos, até que todos ou
quase todos se expressem de forma semelhante. Mesmo em casas que se dedicam a uma
4
A autora sempre explica que usa esses termos juntos para indicar que as pesquisas nos/dos/com os cotidianos
pretende ir além do que vê como limites herdados das ciências modernas.
5
O termo aparece grafado de modos diferentes pelos autores. Em nosso texto, optamos pela grafia yorubá como
escreve o professor José Beniste (2011). Castro (2001) prefere iorubá. Quando citarmos os autores manteremos
suas opções.
567
compreensão mais aprofundada do yorubá, a prática da escrita não é tão utilizada como
instrumento de aprendizado e de manutenção da tradição. O interesse de nossas pesquisas é
pelas redes de saberes no Candomblé, seja qual for o caminho percorrido na relação com a
língua. Contudo, para este capítulo, optamos por apresentar nossas reflexões desenvolvidas no
Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá, localizado em Santa Cruz da Serra, município de Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nesse terreiro, todos os filhos e filhas da
casa possuem um caderno/diário que começa a ser usado e experenciado a partir da sua
iniciação, onde registram os rituais, mitos, trocas. Mesmo os sonhos são estimulados a
ganharem um corpo de escrita. O vocabulário e rezas em yorubá também são registrados.
Simultaneamente a fala, a oralidade, continuam sendo praticadas em yorubá.
Para escrever o que entregamos aqui, além de consultar bibliografia sobre o tema,
conversamos com o Babálórìşà6 Daniel ty Yemòjá, responsável dessa casa e principal
incentivador da partilha dos saberes e de sua escrita. Entrevistamos praticantes do terreiro,
entre crianças e jovens, numa faixa etária de oito a vinte oito anos. Gravamos conversas e
registramos imagens do cotidiano tão citado nas respostas sobre a forma como se aprende
yorubá neste espaço que não é escolar, mas é impregnado de saberes e processos educativos
que tecem sentidos para os que participam de sua cultura. É sobre a seleção e reflexões que
fizemos durante esses processos que seguiremos falando.
Figura 2 - Ogan Patrick, Dofoninho Antônio Marcos e Omorobá João Vitor procurando ewè (folha).
6
Mais conhecido como “Pai de santo”.
568
Patrick ty Ògún, tem 9 anos e é Olóyè, uma pessoa que possui um título na religião, um chefe.
Oyè significa inteligência, sabedoria, compreensão. O menino foi iniciado aos 07 anos e tem o
cargo de Ogan. Ele toca os atabaques nos rituais, além de desempenhar outras funções
extremamente importantes no terreiro. É chamado por todos de Ogan Patrick e ninguém se
refere a ele sem chamá-lo de senhor. No terreiro, a idade iniciática e/ou o cargo que possui o
iniciado é muito importante. Ou seja, o tempo que a pessoa tem de santo é mais importante
que a idade civil e inverte a lógica adultocêntrica da sociedade, de forma geral, e das escolas
mais particularmente. Não significa dizer que os mais velhos não são importantes, pelo
contrário, mas significa compreender que crianças e jovens são tão respeitados quanto em seu
tempo-cargo de santo.
Ogan Patrick fala muitas coisas em yorubá, “principalmente no barracão, quando temos
função”, explica. O barracão é o espaço do terreiro onde acontecem as festas, os rituais
consagrados aos Òrìsà. E ter função, significa ter algum ritual. Perguntamos: “como o senhor
aprende?” “Escrevendo no caderno, lendo, estudando”. “Mas o senhor aprende sozinho?”-
queremos saber. “Sozinho não. As pessoas vão cantando e a gente aprende”, responde. Ogan
Patrick também explica que durante os rituais ele repete as palavras em yorubá e só depois
anota no caderno procurando saber com os mais velhos de santo, principalmente com Babá
Daniel, a forma correta da grafia das palavras em yorubá. Sobre os momentos em que mais
fala a língua africana, o menino diz: “Em geral falamos normal, porque as pessoas mais novas
na casa não entendem. Usamos mais o yorubá quando falamos com um Òrìsà e nas cantigas”.
569
O processo de aprendizado é narrado de forma semelhante por João Vitor, de 8 anos, iniciado
no Candomblé, desde os quatro anos. No terreiro, ele é Omorobá Aşé João Vitor ty Ayrá. Ou
seja, filho do rei de Aşé João Vitor de Ayrá (Şàngó). Şàngó (resumindo, outra vez
absurdamente) é o Òrìsà, do trovão, relacionado à justiça. Como seu irmão de santo, ele
aprende a língua cantando e rezando e, sobretudo, afirma, com o Babá Daniel. Sempre
chamado de Omorobá, João Vitor evidencia o mais importante elemento de aprendizado nos
terreiros. “Eu olho para as pessoas e aprendo, mas ensinei cantigas e ensinei a tocar”. As
trocas de saberes espalhadas nas redes educativas dos terreiros distribuem os conhecimentos.
Destas, participam em iguais condições, crianças, jovens e adultos respeitando-se sempre as
hierarquias dos cargos e o tempo de iniciado.
Lincoln Ferreira de Mattos tem 16 anos, foi iniciado aos 13 e é chamado de Dofonitinho de
Oşalá. O termo Dofonitinho significa que ele foi a segunda pessoa de seu barco de iniciação.
A primeira pessoa do barco é Dofono. E barco é o nome dado quando mais de uma pessoa é
iniciada ao mesmo tempo no Candomblé. A convivência cotidiana também é destacada por
ele como fundamental para o aprendizado da língua. “As pessoas pedem algumas coisas em
yorubá, então a gente vai aprendendo; as pessoas explicam e assim a gente vai aprendendo as
palavras”. Um exemplo comum pode ser quando se pede um obé (faca) ou um ianijé (prato).
Os artefatos nomeados em yorubá promovem a circulação da língua no terreiro, repetida,
praticada, memorizada e aprendida. Mas o Dofonitinho de Oşalá lembra que existe um
período dedicado especialmente ao aprendizado das práticas, das danças, das rezas, das
cantigas e da língua.
570
Figura 5 - Dofonitinho de Oşalá em fogueira ty Ayrá (ritual da fogueira de Şàngó)
“No hunko a gente aprende as rezas, depois as cantigas. A gente vai aprendendo com o tempo
as danças africanas também. Depois o Babalorişá ensina ou traduz para gente e a gente
entende mais”. Perguntamos se só o Babá ensina e o Dofonitinho responde: “ah, depois,
quando alguns dos irmãos não escutam, aí os outros falam para a gente: oh, o significado é
isso, isso e isso. A gente vai aprendendo”. Perguntamos também se é parecido com aprender
na escola e Dofonitinho responde: “não, porque na escola é um jeito mais formal de se falar.
Ah, é diferente. No barracão a pessoa ri, brinca, vai falando alguns assuntos, não é só uma
pessoa que fala. Aqui, uma pessoa tem conhecimento e passa e os outros podem passar para
os mais novos, para os novos irmãos. Na escola, só professor é o líder que passa para todo
mundo. E os alunos não passam para os outros que perderam. Aqui todo mundo passa para
todo mundo”. Mais uma vez, uma rede de aprendizagens tão coletiva quanto horizontal é
destacada pelos praticantes do culto.
Perguntamos também ao Dofonitinho o que ele mais gosta nesse espaço de aprendizagens do
terreiro. “Gosto dos itãns, as histórias, porque o Babá parece que vive a história quando ele
conta e fica mais legal de aprender. Gosto das cantigas também que falam o que os Òrìşà
faziam, tudo em yorubá, aí a gente aprende”.
O Dofono Nicholas ty Oşalá, de 18 anos, fala sobre as primeiras palavras que, em geral, todos
aprendem quando começam a vivenciar o espaço dos terreiros. E não é à toa que sejam
justamente essas, já que estão relacionadas a um comportamento de humildade e fraternidade
esperado de cada filho ou filha de santo.“Àgò, quer dizer pedir licença, mo túnbá, é pedir e dar
a benção, mo dúpé é agradecer e ajeum é perguntar se a pessoa quer comer. Aprendemos na
571
prática, na vivência de todos os dias. Mas às vezes o Babá, o Pai de Santo, senta e começa a
explicar para todos, geralmente na cozinha, mas na maioria das vezes é na prática”, revela o
Dofono, que também nos diz o que ele considera como o mais importante do aprendizado da
língua. “É como se a gente pegasse uma parte da África e trouxesse aqui para o Brasil. Não
teria como ter um curso de yorubá na escola, por exemplo, porque o que a gente aprende,
aprende mesmo na prática. Na escola é muita teoria. O professor explica, a gente pega muita
coisa, mas não praticamos. Anota no caderno e não praticamos no cotidiano. Aqui não. Aqui,
aprendemos e praticamos ao mesmo tempo. É como se nós nascêssemos para fazer um pouco
mais devagar, um pouco mais lento”, afirma o Dofono Nicholas.
No prefácio do livro As nações Ketu, de Agenor Miranda Rocha (2000), Muniz Sodré lembra
a frase que usamos nesse subtítulo. A máxima, diz ele, é sudanesa, mas representa toda uma
atitude generalizada na África e em sua diáspora quanto à comunicação. De acordo com o
pesquisador, há uma valorização ética do silêncio como espaço do esclarecimento e da
seriedade, enquanto à fala se atribui o perigo da leviandade e da confusão.
Apenas o ‘perigo’, fique bem claro. O homem que vive a arkhé, a tradição, não é mudo,
nem silêncio deve ser entendido como mera ausência de verbo. Pelo contrário, silêncio é a
572
realidade que engendra o verbo, que dá à luz a palavra, por ser a força que conduz o
indivíduo à sua própria interioridade e à eclosão de uma verdade. Silêncio é coisa de
‘dentro’, palavra é coisa de ‘fora’ – no jogo ponderado dos dois espaços se faz a
comunicação equilibrada do mundo (SODRÉ apud MIRANDA, 2000, p.9).
Mas o que significa viver a arkhé? a que Sodré se refere? Sodré em outro livro (1988) diz que
Arkhé, em grego, é princípio sendo que esse princípio não significa início dos tempos, começo
histórico, e sim eterno impulso inaugural da força de continuidade do grupo. Este pesquisador
explica que Arkhé também traduz-se por tradição, por transmissão da matriz simbólica do
grupo. O verbo tradere (de onde se deriva traditio), significa, diz ele, transmitir ou entregar.
Mas a tradição, acrescenta, não implica obrigatoriamente a ideia de um passado imobilizado,
a passagem de conteúdos inalterados de uma geração para outra. Esta é, explica, a tradição
negativa e não positiva, que se dá quando a ação humana é plena, isto é, quando se abre para
o estranho, o mistério, para todas as temporalidades e lugares possíveis, não obstruindo as
transformações ou passagens. “Na verdade, toda mudança transformadora, toda revolução
ocorre no interior de uma tradição, seja para recusar o negativo, seja para retomar o livre
fluxo das forças necessárias à continuidade do grupo” (SODRÉ, 1988, pág. 154).
Coutinho (2002) também distingue tradição de duas maneiras, uma dialética, outra metafísica.
Para este autor, tais concepções possuem implicações políticas, já que correspondem a
diferentes práticas de reelaboração do passado e de interpretação da história. Enquanto prática
conservadora, a reiteração da tradição morta e fixa – prolongação de um passado no presente
– aparece como restauração das relações sociais existentes. Por outro lado, diz ele, na prática
e nos discursos libertários, a tradição – tida como ação criadora do sujeito sobre as formas do
passado – é um operador político capaz de refazer a história como patrimônio das camadas
populares. Utilizando a distinção realizada pelo peruano José Carlos Mariátegui (1927), a
ação criadora, afirma Coutinho, será designada como tradição, e aquela, relativa ao
conservadorismo dominante, será chamada de tradicionalismo. De acordo com este autor, o
que predomina no pensamento hegemônico é a concepção metafísica da tradição que, “tendo
como objetivo conservar as relações sociais vigentes, pensa a cultura como objeto, peça de
coleção ou mercadoria, desconsiderando o processo pelo qual o homem, por meio de sua
práxis criadora, transforma ativamente a realidade cultural” (COUTINHO, p.16).
É no jogo de silêncios e falas que os integrantes do Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá vivenciam
não o tradicionalismo imobilizado e morto, mas uma tradição, recriada e viva em suas práticas
cotidianas, incluindo nestas, o aprendizado de yorubá.
573
Beniste, pesquisador e professor de yorubá, acentua que, como os demais idiomas, o yorubá é
um instrumento para a comunicação entre as pessoas numa sociedade em que tudo o que se
faz tem o apoio de rezas, cânticos, e declamações neste idioma. Preocupado com a
transmissão e manutenção da tradição, este autor destaca que dependendo do cuidado com
que se fale, pode-se usar a língua correta ou incorretamente. Quando usada corretamente,
assegura, consagram as normas do culto, mas, se usada incorretamente, origina vícios de
linguagem e desfiguram o idioma.
Como confirmação, basta verificar como são diferentes as formas de expressar as palavras
de muitos cânticos, rezas e conversações simples, de terreiro para terreiro. Esta é uma das
razões da dificuldade encontrada na tradução para se saber o que se canta e o que se reza. A
perda do som original de muitas palavras e os vícios já creditados como corretos impedem
a interpretação de certas palavras, que, ao serem traduzidas, não conferem com o desejo do
momento. Esta situação vem dando margem a que pessoas, no afã de traduzir, substituam
essas palavras por outras que mais lhe convenham, provocando mudança total no sentido
daquilo que se deseja naquele momento. (idem, p. 318).
O mesmo autor reforça que a linguagem é a chave cultural de um povo e que, sem rever seus
aspectos, origem e formas não há como constituir religião já que, muitas vezes, não se sabe o
que se canta e o que se reza.
O seu aprendizado será a resposta para muitas dúvidas que existem na religião. Mas não
somente em interpretar os cânticos e rezas como forma de curiosidade, mas sim pelo fato de
poder sentir mais intimamente, através do seu conhecimento o alto grau de religiosidade
que existe nas mensagens. E a sua utilização terá uma extensão maior ao ser empregada
também na literatura humana e de uso corrente. (ibidem).
Há muito o Bàbálórişà Daniel ty Yemòjá concorda com esse pensamento. Por isso, associa
uma íntima relação entre a oralidade e a escrita no aprendizado da língua em seu terreiro. “Se
não soubermos cantar, rezar e falar direito, perdemos o sentido de nossa língua e os rituais
também perdem em significado porque todos precisam compreender o que estão fazendo.
Aqui, o mais importante é distribuir o conhecimento porque assim distribuímos o Aşé que nos
une e movimenta”, afirma o Bàbálórişà.
574
Òrìşà nló ẹwá kébá
Muitos elementos constituem as culturas (os modos de vidas) nos candomblés. A língua é um
elemento fundamental. Na introdução desse trabalho, dissemos com Beniste (2001) que o
idioma yorubá pertence à família de línguas do Sudão, é falado nas diferentes regiões da atual
Nigéria, chega até nós no período da escravidão e se torna a mais comum nas comunidades
negras. Então existem outras línguas africanas, períodos distintos de sua penetração no Brasil
e fatores diferentes que influenciaram suas propagação e preservação não só nos terreiros,
como no próprio português falado em nosso país. No terreiro pesquisado, o vocabulário usado
é da língua yorubá e, por isso, este é o idioma que nos move na pesquisa. Não podemos tratar
profundamente de todos os grupos lingüísticos do continente africano (por impossibilidade
completa e por não ser nosso objetivo aqui). O livro Falares Africanos na Bahia – um
vocabulário Afro-Brasileiro, de Yeda Pessoa de Castro (2001), é um importante estudo sobre
as línguas de África e deve ser consultado para um aprofundamento maior sobre o assunto.
Não o yorubá, mas o grupo banto, diz Castro, dentre todos os grupos lingüísticos sub-
saarianos (região do continente africano ao sul do Deserto do Saara), foi o primeiro a
despertar a curiosidade dos pesquisadores estrangeiros e a ser estudado relativamente cedo.
O termo banto (bantu: os homens, plural de mantu) foi proposto por W.Bleek, em 1862, na
primeira gramática comparativa do banto, para nomear a família lingüística que descobrira,
composta de várias línguas oriundas de um tronco comum, o protobanto, falado há três ou
quatro milênios atrás. Só mais tarde é que o termo passou a ser usado pelos estudiosos de
outras áreas para denominar 190.000.000 de indivíduos que habitam territórios
compreendidos em toda a extensão abaixo da linha do Equador, correspondente a uma área
de 9.000.000 Km2. Sus territórios englobam países da África, Camarões, Guiné Equatorial,
Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo (Congo Brazzaville), República
Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Zâmbia, Burundi, Ruanda, Uganda,
Quênia, Malaui, Zimbábue, Botsuana, Lezoto, Moçambique, África do Sul (CASTRO,
2001, p.25).
No Brasil, explica Castro, o povo banto ficou conhecido por denominações muito amplas,
principalmente congos e angolas, que encerram um sem número de etnias e línguas
distribuídas entre os atuais territórios dos Congos e de Angola.
575
A antropóloga Juana Elbein dos Santos lembra que os africanos de origem Bantu7, do Congo
e de Angola foram trazidos para o Brasil durante o período da conquista e espalhados em
pequenos grupos por imensos territórios nos Estados do Rio, São Paulo, Espírito Santo e
Minas Gerais, numa época de comunicações difíceis e com centros urbanos começando a
nascer (1986, p. 31). Já os Nagôs, diz Santos, foram trazidos durante o último período da
escravidão e concentrados em zonas urbanas em pleno apogeu dos estados do Norte e do
Nordeste, Bahia e Pernambuco, particularmente nas capitais desses estados, Salvador e
Recife. Segundo esta pesquisadora, o comércio intenso entre Bahia e a Costa africana
manteve os Nagôs do Brasil em contato permanente com suas terras de origem. Explica a
autora que todos os diversos grupos provenientes do Sul, e do Centro do Daomé e do Sudeste
da Nigéria, de uma vasta região que se convenciona chamar de Yoru baland, são conhecidos
no Brasil sob o nome genérico de Nagô, originados de diferentes reinos como os Ketu, Sabe,
Òyó, Ègbá, Ègbado, Ijesa, Ijebu. Já o idioma desses povos é o yorubá, este sobre o qual
refletimos até agora, praticado no terreiro de Babá Daniel, de nação Ketu.
No entanto, Nei Lopes (2003) pontua que dentro do quadro da presença afro-negra no Brasil,
verifica-se uma predominância das culturas bantas, que colaboraram, diz ele, para a formação
da cultura brasileira, principalmente através de suas línguas, entre elas, o Quicongo, o
Umbundo e o Quimbundo. Este pesquisador contesta o que chama de suposta ascendência de
línguas sudanesas, como o nagô (yorubá) no panorama das línguas africanas faladas no Brasil
à época da escravidão e que teriam modificado o falar português em nosso país e cita outro
pesquisador, Renato Mendonça, concordando que o “quimbundo, pelo seu uso mais extenso e
7
Os autores também grafam de diferentes formas várias palavras sobre as quais nos referimos. Aqui, por
exemplo, Santos (1986) grafa Bantu. Castro (2001) usa Banto. E Lopes (2003) escreve também Banto. Este
último explica que concorda com Mário Antônio Fernandes de Oliveira (1973) quando explica que, ao grafarem
pela primeira vez as línguas bantas, os estudiosos europeus viram-se forçados a fazê-lo, naturalmente através de
caracteres românicos, usando quando necessário, alguns sinais diacríticos. Foi assim que, ao ouvirem dos
africanos a pronúncia “bântu” [bãtu], os cientistas de fala inglesa a grafaram como se fala; os franceses usaram a
forma bantou; e os portugueses preferiram banto, já que, em nosso idioma, o “o” final átono tem som
equivalente a “u”. Foi também assim que os gauleses, depois de a afrancesarem, flexionaram a palavra: bantou,
bantoue, bantous, bantoues. E os portugueses, no mesmo caminho, fizeram banto, banta, bantos, bantas. Para
Lopes, embora atualmente, uma orientação científica, inclusive do Centre International dês Civilisations Bantu
(CICIBA) condene esse recurso, propugnando pela utilização da forma Bantu, em todas as línguas, sem
nacionalizações ou flexões, sua opção, por motivos práticos e por melhor compreensão, é pela utilização da
grafia Banto. Utilizaremos a forma escolhida por cada autor, respeitando suas preferências.
576
mais antigo, exerceu no português uma influência maior do que o nagô” (p. 18). Nas palavras
de Lopes:
De fato, no vocabulário do português falado no Brasil, os termos de origem nagô estão mais
restritos às práticas e utensílios ligados à tradição dos orixás, como a música, a descrição
dos trajes e a culinária afro-baiana. [...] Tanto na fonética, quanto na morfologia e na
sintaxe, as línguas bantas influenciaram decisivamente a língua que se fala hoje no Brasil.
Mas é no vocabulário que elas se fazem, de fato, mais presentes. Com efeito, em 1938, no
seu livro ‘Africanos no Brasil’, Nelson de Senna chamava a atenção para a insuficiência
dos dicionários então existentes em relação à riqueza vocabular do português falado em
nossa terra. E atribuía essa carência à ignorância em que ‘até muita gente culta, lá na
Europa e cá na América demonstrava em relação à vultosa contribuição emprestada por
índios e africanos ao idioma de Camões’. (LOPES, 2003. p.18).
Lopes reforça que a ignorância apontada por Senna é, no seu entender, fruto de uma visão
eurocêntrica que, durante muito tempo, norteou os estudos acadêmicos no Brasil e destaca:
De maneira alguma queremos reforçar uma disputa a respeito de qual é o melhor ou o mais
importante legado africano entre nós, principalmente entre os praticantes de candomblés. Isso,
em nada beneficia as religiões de matriz africanas. Pelo contrário. Acreditamos na
importância de todas essas culturas e reforçamos a necessidade de novos e cada vez maiores
estudos sobre o aprendizado de crianças e jovens de terreiros. Tudo é candomblé, sejam as
casas de Angola, Congo, Jeje ou Ketu. A nós, por exemplo, agradaria muito conhecer terreiros
de Angola (que existem muitos no Brasil) e perceber como se aprende o bantu (kibundo e
kikongo, por exemplo). Provavelmente são práticas tão ricas quanto parecidas de
aprendizagens.
577
Dissemos, no início desse nosso texto, que a língua é preservada nas casas de aşé (os
terreiros), mas também não se restringe a seus muros. Sim, há muito tempo e cotidianamente,
usamos diversas palavras de origem banta, fora dos terreiros, sem sequer atentar para esta sua
origem. Palavras como: quitanda, corcunda, carimbo, cachimbo, dengo, cachaça, são todas
bantas e totalmente incorporadas ao nosso português diário. Caçula (o único termo com o qual
chamamos nosso irmão mais novo) é uma palavra banta. Já do yorubá também usamos, por
exemplo, gogó, que veio de gògòngò (pomo de adão), ou jabá, que veio de jàbàjábá (pedaços
de um corte de carne, carne-seca) ou goiaba, que é uma palavra linda e uma fruta deliciosa,
vem de gòba. A história das palavras nos fala da história das sociedades, de suas belezas e
também de seus conflitos.
Há, contudo, uma palavra de origem yorubá, muito importante para nós que achamos
fundamental o combate sistemático contra a discriminação de praticantes de candomblé (seja
qual for sua nação), principalmente contra a discriminação de crianças e jovens nas escolas. A
palavra Fé que designa tantas diferentes formas de sentir-acreditar-explicar-agir e
desencadeia, muitas vezes, tanto ódio contra os candomblecistas (de qualquer origem), vem
de Fé, que em yorubá, significa querer, desejar. Lembremos outra vez da máxima sudanesa a
que já nos referimos aqui: “Se a fala constrói a cidade, o silêncio edifica o mundo”.
Aprendendo com esse ditado africano, dizemos que já falamos muito. Sugerimos um pouco
de silêncio agora.
Referências
ALVES, Nilda. A compreensão de políticas nas pesquisas com os cotidianos: para além dos
processos de regulação. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1195-
1212, out.-dez. 2010
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares Africanos da Bahia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001
COUTINHO, Eduardo Granja, Velhas histórias, memórias futuras. Rio de Janeiro: Eduerj,
2002.
578
SANTOS, ELBEIN, J. dos. Os Nagôs e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1986.
Imagens
579
580
Ciclo do Marabaixo: uma das expressões da religiosidade
afrodescendente no Amapá
Alysson Brabo Antero1
Introdução
O presente artigo versa sobre uma das mais expressivas manifestações culturais e religiosas
do Amapá: o Ciclo do Marabaixo. A despeito de todo imaginário do senso comum que
enxerga o Amapá dentro de um cenário majoritariamente indígena Amazônico, o negro faz
parte da composição étnica desse Estado e sua contribuição está para além da simples
ocupação desse território e servir como mão de obra em trabalhos árduos e pesados. Sua
influência é sentida na formação social, na demografia, na economia, na cultura e na religião
Nilson Montoril (2004).
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA. Membro do GP Religiões de Matriz Africana na Amazônia –
GERMAA. Contato: alysson.edu@gmail.com.
581
Acredita-se que a elaboração de estudos a cerca do Ciclo do Marabaixo, além de ampliar o
conhecimento disponível sobre esse movimento afro-amapaense, contribuirá para uma maior
valorização da herança da população negra e afrodescendente na formação histórica e cultural
da sociedade amapaense e, representará um passo a mais em direção ao respeito e à
diversidade religiosa no Amapá.
Segundo Fernando dos Santos (1994) as terras que hoje compõem o Amapá foram extremante
disputadas por várias nações europeias e a presença de africanos em solo amapaense se deu
inicialmente por ingleses, franceses e holandeses. Pereira (2008) citando Vicente Salles,
afirma que a presença negra nas terras do Cabo Norte data do século XVII, introduzidos por
holandeses e ingleses. Já sobre a liderança de Portugal a inserção do negro ocorreu a partir do
século XVIII.
Fernando Canto (1998) expõe que até o ano de 1738 havia nesse território apenas um
destacamento militar português. Em 1751 inicia-se um processo de colonização, coordenado
pelo então governador do Grão-Pará: Francisco Xavier, a mando do governo de Portugal que
determina a criação de vilas e povoamentos em suas colônias. Em 1758 é fundado a Vila de
São José de Macapá.
Para Verônica Luna (2011) a lógica de fundação de vilas e povoamentos a partir do governo
Português visava dentre outros objetivos conter o avanço de outras nações sobre o território e
ao mesmo tempo manter o controle dos de dentro a partir das decisões dos que estão fora
(Portugal), esse raciocínio invisibilizou a presença de nativos e negros como indivíduos que
construíram o lugar.
582
Conforme a região do Cabo Norte ia sendo povoada pelos europeus, sobretudo pelos
portugueses, levas de negros provenientes de diversas etnias trazidos de províncias brasileiras
e de colônias portuguesas estabelecidas na África iam construindo esse território, o contato de
negros de diferentes etnias e nações foi inevitável. Para Luna (2011) o trânsito e
possivelmente as troca de informações entre negros fugitivos (até de outras nações, chamados
por ela de trânsfugas, provenientes da Guiana Francesa e Holandesa, principalmente) era
comum.
Luna (2011) argumenta como os nativos rejeitavam aceitar a condição de submissão que o
projeto de povoamento previa e com a construção da Fortaleza de Macapá (maior fortificação
portuguesa na Amazônia), a vinda de africanos para as terras do Cabo Norte foi intensificada.
Uma das explicações diz que o termo Marabaixo tem origem árabe (marabit) que significa
sacerdote dos malês2. Argumenta-se que das 160 famílias que se estabeleceram em Nova
Mazagão (o termo faz referência a Mazagão na África, colônia portuguesa conquistada pelos
Mouros no século XVIII), vieram negros provenientes de nações circunvizinhas de Mazagão
(África) especificamente do Império Sudanês que desde o século XVI já vinha sofrendo as
influências do Islamismo, Canto (1998).
2
Malê, forma de culto que surge na África Ocidental do entrechoque do islamismo com as religiões nativas, a
partir do século XVI (CANTO, 1998, p. 19).
583
Outra argumentação faz referência aos porões dos navios que atravessavam o Atlântico cheios
de negros, mar a baixo, Pereira (1951). Por fim, há quem defenda que o termo alude aos
negros que desciam os rios da Amazônia em canoas a cantar, R. Negrão (1990).
Pereira (1951) destaca que por conta da escassez regional e nacional de literatura informativa
sobre o Marabaixo é impossível datar a origem exata dessa manifestação. Entretanto, expõe
que o Marabaixo chegou até nós proveniente de três fontes de emoção e religiosidade: o
conquistador luso, o escravo negro e o índio, mas em Macapá, o elemento africano passou a
dominar o Marabaixo.
Lima (2011) defende que a origem do Marabaixo está associada à festa do Divino Espírito
Santo. Essa festa chegou ao Brasil introduzida pelas ordens religiosas na época da
colonização e ainda hoje é realizada em vários Estados brasileiros. A festa em solo brasileiro
se mesclou com elementos de outras culturas não europeia. Diante disso, segundo a autora, o
modelo festivo ao Divino trazidos pelas ordens religiosas para a América vai se consolidando
em terras brasileiras celebrando as concepções da religião cristã, representadas pela igreja
católica e, ao mesmo tempo, sendo influenciada por outros elementos não europeus.
Por outro lado, Lima (2011) expõe também a possibilidade da Festa do Divino ter sido
introduzida nas terras do Cabo Norte pelas famílias transportadas de Mazagão (África) e Ilhas
dos Açores para povoarem a Vila de Mazagão na segunda metade do século XVIII. Se esta
hipótese se confirmar, o Marabaixo teria surgido primeiro em Mazagão? Ou Macapá, como
primeiro núcleo populacional implementou a prática do Marabaixo? Infelizmente devido as
raras fontes documentais não há como registrar com exatidão onde teria primeiro se
manifestado essa tradição.
584
Entretanto, outra questão surge ainda com relação a origem dessa manifestação: a Festa do
Divino Espírito Santo foi transformada em Marabaixo por acréscimo de valores populares,
especificamente de tradição africana, que com o tempo se sobrepôs? ou o Marabaixo, com
características preponderantes afro-brasileiras, foi inserido na liturgia da Festa do Divino
Espírito Santo, por ação dos padres? Pereira (1951) deixa transparecer que os religiosos
aproveitaram o Marabaixo para o serviço da fé cristã, ou seja, os padres acrescentaram à
liturgia católica valores afro-brasileiros como: dança, tambor, alegria.
Houve então, para Pereira (1951) uma inserção de elementos negros na liturgia da Festa do
Divino Espírito Santo, por iniciativa dos próprios padres. Não podemos esquecer, todavia, que
esse acréscimo irá trazer implicações posteriores: perseguição e conflito das lideranças
religiosas católicas que desejarão expurgar da Festa do Divino valores não europeus e uma
certa autonomia da população afrodescendente em continuar realizando a Festa do Divino,
doravante denominada Marabaixo segundo Lima (2011), com todos os acrescimentos
populares independente do aval e do controle da igreja.
Sendo assim, essa abordagem interpretativa de Pereira (1951) que os padres inseriram na
Festa do Divino elementos da tradição indígena e africana, remonta a origem primária do
Marabaixo à tradição da liturgia católica, tal como argumenta Lima (2011), mas com o tempo,
especificamente em Macapá, essa festa vai se reinventando se ressignificando. Essa hipótese
dialoga com as idéias de Carlos Alberto Steil (2001) sobre o catolicismo popular:
[...] as tradições culturais não são simplesmente transportadas de um contexto para outro, e
que toda transposição é sempre uma reinvenção. O catolicismo que se enraíza no Brasil está
marcado por sua origem europeia, mas também pelo encontro que essa tradição teve aqui
com as tradições africanas e indígenas (p. 14).
Fundado nessa ideia, poderíamos dizer ainda que o Marabaixo realizado no Estado do Amapá
representa uma espécie de Catolicismo de Preto, Henrique Cunha Jr (2001), ou seja, uma
religiosidade com característica de matriz africana, mas que mantém ao mesmo tempo,
585
práticas da liturgia católica, sem que isso traga sentimento de culpa ou desconforto aos
participantes, antes, reza e festejos acontecem harmonicamente.
Segundo Pereira (1951), a desocupação ocorreu de maneira pacífica por meio do intermédio
do mestre e líder Julião Ramos, que convenceu os moradores que a desocupação pacífica e
aceitar as terras ofertadas como forma de indenização era o melhor para comunidade.
As famílias foram então remanejadas na sua maioria para as terras do Laguinho (atualmente,
bairro do Laguinho), porém, algumas preferiram seguir para as terras que se resolveu chamar
Favela por conta das montanhas que existiam nessa área (hoje, bairro do Santa Rita).
Lima (2001) expõe, porém, que esta questão do conflito da igreja católica com o Marabaixo
na verdade foi apenas remanejado do centro para as igrejas dos bairros onde essa
manifestação passou a acontecer.
586
Após alguns anos, o Ciclo que acontecia em um único local (Centro de Macapá) começou a
ser praticado nos bairros e localidades para onde os moradores foram remanejados, a saber
Laguinho e Favela. Contemporaneamente o Ciclo do Marabaixo acontece em cinco pontos
diferentes de Macapá e mais na comunidade rural de Campina Grande. Para Egídio Gonçalves
e Carlos Piru (2012) o que era para representar o fim da manifestação serviu para expandir.
Esta atitude (deslocamento dos moradores da área central de Macapá para lugares mais
distantes) dividiu famílias, mas fortaleceu ainda mais os laços culturais, pois naquele
momento, o tocar das caixas de marabaixo, não ecoavam mais em um só lugar, ecoavam,
agora, em dois, no Laguinho e na Favela (p. 9).
Inicia-se esse tópico partindo do pressuposto que nas terras do Cabo Norte se desenvolveram
inúmeros movimentos culturais e religiosos de origem africana, como: o Batuque – dança
afro-religiosa praticado principalmente nas comunidades rurais do Estado. Geralmente é
realizado para homenagear algum santo da tradição católica, padroeiro da localidade. O
Zimba – dança de matriz africana parecida com o batuque e praticado principalmente no
município de Calçoene. O Sahiré – manifestação ligada a liturgia católica com movimento e
colorido das procissões. Teve influência preponderante de elementos indígenas. Na atualidade
é realizado apenas no Município de Mazagão, sem forte expressão popular. E o Marabaixo,
considerado pela maioria dos estudiosos a mais autêntica manifestação negra do Amapá.
O Ciclo do Marabaixo é um evento anual que ocorre paralelo ao calendário pascal da igreja
católica, no entanto, a ele não se restringe. Considera-se que o Ciclo, praticado na Capital do
Estado do Amapá, numa espécie de bricolagem amálgama elementos e símbolos que hora se
aproxima das religiões de matriz africana noutro ao catolicismo. Diante disso, a partir do
trabalho de Videira (2009), buscou-se identificar princípios e componentes presentes nessa
manifestação que, de alguma maneira, expressa traços da matriz religiosa africana no Amapá.
Comecemos então pela ancestralidade, fato evidenciado por Videira (2009) no Ciclo do
Marabaixo de Macapá
A ‘Nação Negra’, como é intitulado o bairro do Laguinho por seus moradores, recebeu a
Dança do Marabaixo como herança de seus pais, avós e familiares em geral, que, por sua
vez receberam de seus ancestrais africanos, como enfatizam os mantenedores e brincantes
587
para o fazerem com alegria, orgulho e respeito e ainda reverenciar a história, seus santos,
seus antepassados, sua crença, seus símbolos e legar toda essa riqueza cultural e históricas
às futuras gerações (p. 99).
Noutro momento a autora destaca outro princípio, ligado a ancestralidade, a saber, a oralidade
O Marabaixo é uma dança afrodescendente em que dançam adultos, jovens e crianças entre
homens e mulheres. Não há limites de participantes e se aprende a dançar e a tocar
dançando e tocando na comunidade luguinense. Em alguns casos as pessoas mais antigas
sentam com as crianças para ensinar-lhes sobre a tradição, seus princípios e sentidos. O
conhecimento sobre a dança e a história do Marabaixo é transmitido por meio da oralidade
pelos mais antigos aos mais jovens (p. 101).
As expressões religiosas de matriz africana não possuem um texto base como as religiões do
livro (judaísmo, cristianismo e islamismo). O conhecimento, a tradição, a história é repassada
oralmente de geração para geração. A oralidade então é outro princípio presente no
Marabaixo conforme pode ser depreendido do texto citado. As gerações mais velhas através
da voz, da memória, da dança, da música ensinam as mais novas. Esse ensinamento ocorre na
vivência da tradição, isto é, nos momentos ritualísticos que compõem o Ciclo do Marabaixo.
À medida que crianças e jovens se envolvem, eles aprendem a valorizar cada momento do
Ciclo como parte integrante de suas histórias de vida. Diante disso, a oralidade no Marabaixo
além de mostrar uma identidade étnica, relembra o passado, dá sentido ao presente e abre
perspectiva para o futuro.
O cooperativismo é mais um princípio citado por Videira (2009) como elemento intrínseco ao
Marabaixo
Por isso, os festeiros quase sempre são membros da família de ‘Tia Biló’, muito embora,
ela mesma até desejasse que outras pessoas se apresentassem como interassadas em ser o
festeiro/a, porque a festa exigia muito esforço para ser realizada, conforme manda a
tradição. Seu Pavão me disse que quando ele é o festeiro do ciclo do Marabaixo recebe
588
bastante ajuda da comunidade com alimentos, fogos, cachaça, condimentos e o que for
preciso para realizar a festa. Considera importantíssimo o apoio da comunidade por causa
do alto custo da brincadeira (p. 129).
A roda tem um significado muito grande, nela não há hierarquia, todas as pessoas podem se
ver e transmitir energias positivas. A roda está presente em várias manifestações afro-
brasileiras: na capoeira, no samba, no tambor de crioula, na umbanda, no Candomblé e
também no Marabaixo do Estado do Amapá. Tendo os tocadores de caixa e as cantadeiras ao
centro, em volta forma-se um grande círculo onde crianças, adultos e anciões põem-se a
3
VIDEIRA, 2009, p. 106).
589
dançar e cantar num clima de muita alegria por está perpetuando uma tradição deixada pelos
nossos antepassados.
O rufar dos tambores é outro elemento que concorre para definir o Marabaixo como símbolo
de expressão da religiosidade afrodescendente. Videira (2009) expõe
Tocadas por homens e mulheres o som da caixa de Marabaixo é um dos principais elementos
que faz esta manifestação ser associada às matrizes africanas, incluindo as religiões de
terreiro. Muito embora, segundo Pereira (2008), alguns participantes rejeitem essa associação.
Esta autora, valendo-se do depoimento de uma marabaixista adepta de religiões de terreiro,
explica que os atabaques e tambores nas religiões de terreiro têm fundamento, ou seja, são
tocados com um propósito: intermediar, atrair os orixás. Esse fundamento, não existe no
Marabaixo, em que as caixas são tocadas com o fim de louvar e agradecer ao santo
homenageado e ao mesmo tempo animar os participantes. Videira (2009), entretanto, não
desassocia o tambor de Marabaixo com princípios semelhantes às religiões de terreiro: “Os
tambores africanos são vivos e servem para chamar os espíritos dos antepassados” (p. 99).
Discordância a parte, o fato é que o toque de tambores presentes no Ciclo do Marabaixo
expressa traços da religiosidade afrodescendente.
Por fim, queremos destacar outro elemento presente no Marabaixo que o identifica com a
religiosidade afro-brasileira, a ludicidade. Vejamos o que Videira (2009) traz sobre isso
Apesar da divisão proposta pela autora, sabe-se que para os participantes, o momento lúdico
não ocorre como elemento a parte do Ciclo, ou seja, não há uma dicotomia religioso-profano,
antes, a presença de elementos religiosos com lúdicos fazem parte do mesmo ritual, reza e
festejos acontecem harmonicamente. Diríamos então que a ludicidade é parte intrínseca ao
Ciclo do Marabaixo, e o caracteriza como expressão da religiosidade de raiz africana.
590
Por todo o exposto, considera-se que o Ciclo do Marabaixo realizado em Macapá, em
detrimento a toda uma exterioridade católico-romana, muito visível por sinal, traz na sua
essência princípios e elementos que o identificam com a matriz religiosa africana.
Concomitantemente, acreditamos, conforme Geertz (1978) que todos esses componentes
imbricados atuam como sistemas simbólicos que modelam o comportamento de seus
participantes (re)criando seus ethos e (re)definindo suas visões de mundo, alterando o
panorama do senso e comum e como última consequência lançando luz sobre sua existência.
Considerações finais
Julgamos que Ciclo de Marabaixo realizado em Macapá-AP, pode ser considerado uma
tradição secular, que vem se mantendo vivo entre os macapaenses, por empenho de certas
famílias que se autoimpõem a tarefa de dar continuidade a tradição. Nesse processo a tradição
vem se recriando e se ressignificando de acordo com os momentos históricos, mesclando em
seus rituais elementos católicos e da cultura popular de raiz africana.
Mesmo com toda exterioridade católico-romana foi possível perceber que no Ciclo do
Marabaixo, há inúmeros princípios e elementos (ancestralidade, oralidade, cooperativismo,
circularidade, toque dos tambores, ludicidade) que o associam às matrizes religiosas africana,
o que o torna um legítimo representante da religiosidade afrodescendente no Amapá.
Todos esses componentes por si só já representaria o Marabaixo como uma das expressões
religiosas afrodescendentes no Amapá, todavia, é possível acrescentar ainda a favor dessa
idéia: o tratamento discriminatório que o Marabaixo recebeu e ainda recebe de certos setores
da sociedade e da igreja católica (e na atualidade das igrejas evangélicas); o caráter de
resistência da manifestação e; as origens provenientes da diáspora negra africana.
591
Referências
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STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e Cultura. In: VALLA, Victor Vincent (org.) Religião e
Cultura Popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
Internet
592
593
Corpo e saúde: uma perspectiva comparada entre religiões afro-
brasileiras e neopentecostais
Érica Ferreira da Cunha Jorge1
Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar em perspectiva comparada as noções de pessoa, corpo
e saúde para as religiões afro-brasileiras e religiões neopentecostais. Sabe-se que atualmente
essas duas grandes vertentes religiosas, que antes de serem blocos monolíticos, são bastante
diversas em seu interior, configuram-se praticamente em campos opostos, ainda que muitas de
suas práticas rituais se semelhem.
O declínio do catolicismo no Brasil abre espaço para uma janela de novas oportunidades neste
cenário de ofertas religiosas. As duas vertentes religiosas que são foco do presente artigo
acabam ganhando força, principalmente as neopentecostais, cujo discurso se apoia na negação
a todas as crenças afro-brasileiras. Trata-se de religiões em que o contra-discurso, que se faz a
partir dos próprios elementos afro-brasileiros, passa a ser o próprio motivo de sua existência.
Cabe ressaltar que o neopentecostalismo é resultado de um processo de desenvolvimento
histórico da teologia e doutrina do pentecostalismo, diferenciado-o deste último pela ênfase
no dom da cura e pelas estratégias de conversão para atingir maior número de fiéis
(MARIANO, 1999).
Uma das grandes interrogações sobre esse combate entre religiões afro-brasileiras e
neopentecostalismo, porém, põe em dúvida o motivo pelo qual as religiões neopentecostais
1
Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Professora-pesquisadora da Universidade Aberta do
Brasil (CAPES) e da Faculdade de Teologia Umbandista. Contato: ericafcj@gmail.com.
594
não tenham enfrentado o catolicismo2 diretamente e optado por outro embate. A explicação
mais plausível é de que “o ataque às religiões afro-brasileiras [...] é consequência do papel
que as mediações mágicas e a experiência do transe religioso ocupam na própria dinâmica do
sistema neopentecostal em contato com o repertório afro-brasileiro” (SILVA, 2007). Será
justamente os dois itens supracitados, a saber, as mediações mágicas e o transe, que norteiam
os conceitos de pessoa, corpo e saúde para as religiões afro-brasileiras, as quais serão
analisadas no item a seguir.
Antes de iniciarmos nossa abordagem faz-se necessário pontuar que falar com religiões afro-
brasileiras é abarcar um vasto conjunto de crenças e práticas que se espalham pelo território
nacional e são cultuadas sob diferentes formas, as quais se adaptam ao contexto histórico-
cultural de cada região. Esse fenômeno foi conceitualizado por multirreferencialismo das
religiões afro-brasileiras (CARNEIRO E RIVAS, 2012). Não seremos capazes, pois, de
enfrentar uma pluralidade de maneiras de se entender e manifestar os conceitos de pessoa,
corpo e saúde neste universo, optando por selecionar apenas o candomblé (especificamente o
jeje-nagô) pelo amplo referencial bibliográfico que nos facilita estabelecer marcos teóricos
entre esta vertente e a neopentecostal.
595
sujeitos que praticavam macumbas, cabulas, feitiçarias, encantarias, culto de nação africano
foram vistos como perigosos pois iam contra a ordem religiosa estabelecida como padrão.
Para o presente trabalho não nos cabe o aprofundamento da discussão teórica sobre magia e
religião. Apenas recuperamo-la, pois sabe-se que as religiões afro-brasileiras se configuram
pelo imbricamento dessas categorias e o pensamento mágico-religioso existente estabelece
formas particulares de se pensar as noções de pessoa, corpo e saúde.
4
A iniciação, segundo Sansi (2009) é o processo pelo qual a mãe-de-santo ou pai-de-santo “põe a mão na
cabeça”, mostra os segredos do culto, e dá os elementos necessários para que a pessoa “assente” os santos.
596
O candomblé é uma religião estruturada a partir dos vários rituais que funcionam em uma
lógica de resgate da relação perdida ou cortada entre o orun e o aiyê. Todos os processos
iniciáticos são estabelecidos nestes rituais, cada qual com sua função na dependência da fase
em que o iniciante se encontra. Todos os rituais trabalham com a noção de axé e é esta, em
última instância, que ampara os conceitos de saúde e doença para os adeptos do candomblé.
Axé pode ser compreendido como princípio e poder de realização. Possui um papel
fundamental nas religiões afro-brasileiras, pois está atrelado à condição de vida e felicidade
terrena (RIVAS NETO, 2012).
Elbein dos Santos (2007) percebe a importância do conceito do axé. Para a autora, axé seria a
força vital que sustenta o mundo e direciona a cosmovisão das religiões de influência africana.
O axé e a ciência, no sentido de capacidade, em manipulá-lo são determinantes na existência
de um terreiro e sua linhagem de filhos de santo. Prandi apresenta um panorama do conceito
de axé bastante elucidativo:
Axé é força vital, energia, princípio de vida, força sagradas dos orixás. Axé é o nome que se
dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que também estão nas
folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de boa-sorte e
sinônimo de amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os
deuses quando estes são assentados, fixados nos seus altares particulares para serem
cultuados. São as pedras (os otás) e os ferros dos orixás, sua representações materiais. Axé
é carisma; é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta, se
repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados (1991, p. 103).
Para que esta ciência do axé se desenvolva e perpetue, mas do que o manuseio mágico
religioso, é necessário transmiti-lo a quem de direito na ótica do sacerdote ou sacerdotisa que
está a frente do terreiro, pois eles são a própria tradição viva. Aí entra a oralidade. Aos
poucos, a tradição vai sendo transmitida ao adepto que passa a criar uma outra persona. No
candomblé, o indivíduo constrói sua pessoa aos poucos, a cada ritual, a cada feitura, a cada
elemento que vai sendo posto em seu ori, em seu bara, de acordo com suas particularidades e
com seus pais genitores (orixás).
597
para uma boa qualidade de vida. Muitos dos mitos enfatizam a importância da fartura
espiritual, como os de Ossaim, orixá das ervas medicinais e rituais (BARROS; NAPOLEÃO,
2009).
Religiões neopentecostais
O IBGE divulgou em 2010 o último censo, o qual apresenta vários elementos para
analisarmos a face da sociedade brasileira. Dentre eles, destacamos os dados sobre as
religiões, cujos resultados indicam que a profecia de Pierucci (2004) estava certa, o país está
se destradicionalizando, isto é, o Brasil está ficando menos católico. Como reforço desta
assertiva, fizemos uma breve busca nos títulos dos artigos e reportagens de acadêmicos sobre
religiões e o censo, publicados após 2010. Grande parte deles enfatiza os dados a varejo5,
ressaltando os números absolutos do decréscimo do catolicismo e do crescimento das igrejas
evangélicas. Vejamos alguns deles: Os Pentecostais Serão Maioria no Brasil?, “A demanda
por deuses”: religião, globalização e culturas locais, Devagar e sempre, com fé em Deus:
evangélicos cearenses nos censos demográficos, Rebanho não tão unânime, A avalanche
evangélica, A relevante queda do crescimento evangélico, Censo 2010 é uma boa
oportunidade para a Igreja Católica.
Outra busca foi em reportagens veiculadas por grandes meios de comunicação, alguns dos
títulos foram Censo: Igreja católica tem queda recorde no percentual de fiéis, Igreja
Universal perde adeptos, o Poder de Deus ganha, Pela primeira vez o número de católicos
cai, Universal perdeu 10% de fiéis em dez anos, A avalanche evangélica. Os nomes são
bastante emblemáticos e falam por si só.
Ressaltamos que o crescimento das igrejas evangélicas (com a devida compreensão de que
este termo engloba protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais) ocorre em uma
5
ALTMANN, Walter. Censo IBGE 2010 e religião. Horizonte, v.10. n.28, Belo Horizonte, 2012.
598
sociedade em transformação, vide a inserção do Brasil em plano internacional. Porém, ainda
que o país tenha modificado sua atuação, há muitas taxas elevadas de desemprego, falta de
segurança, problemas com a saúde pública, educação, moradia. Todos estes itens listados
anteriormente são prezados por todos os brasileiros e muitos destes não fazem uso, pela
vertiginosa desigualdade social. As religiões evangélicas e, especialmente, as neopentecostais
apresentam-se, então, como um bom caminho já que grande parte de sua estrutura reveste-se
de um aura de misticismo, apresentando em seus cultos, por exemplo, um apelo forte à evasão
de sentimentos.
Seria necessário um trabalho mais aprofundado que demonstrasse a relação direta entre
classes socioeconômicas e religiões neopentecostais. Para o presente trabalho interessa-nos a
reflexão sobre a forma de interpretação do corpo e da saúde, a qual só é possível de
compreender a partir de seus rituais.
Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua
insistência na repetição da experiência do Pentecostes que o protestantismo recusa. O
pentecostalismo posterior, cuja explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura
divina, o que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores movimentos, que têm
recebido o nome genérico de neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o
protestantismo. Qualquer observador atento e conhecedor do protestantismo sabe que
nesses movimentos a Bíblia foi relegada a espaço secundário, o ‘livre exame’ cedeu lugar
ao uso mágico da mesma e assim por diante. Surgiram práticas mágicas, objetos com
poderes especializados, correntes espirituais e mesmo alguns deuses estranhos ao
cristianismo como, por exemplo, o ‘deus da corda’, ou do ‘nó’, especializado em amarrar
ou neutralizar os poderes malignos (os demônios) (MENDONÇA, 2000, p. 96).
599
A explanação de Mendonça sintetiza alguns elementos fundamentais como o reduzido uso da
bília (livro sagrado) e o acentuado uso de recursos mágico-religiosos. Para os neopentecostais
a questão central não é a representação que se faz em torno do corpo, do homem e da mulher.
Das vestimentas, das posturas, do andar. O essencial para esse segmento religioso é a batalha
espiritual e, claro, as exatas colocações de quem pertence a qual lado. Há lados bem
marcados e definidos: o bem, que sintetizamos por aqueles que seguem à risca os preceitos, as
louvações, os rituais. E os do mal, classicamente associados aos demônios, e onde
encontramos o embate com as religiões afro-brasileiras.
Outra prática muito utilizada nos rituais é o uso da ação religiosa intitulada transe, a qual é
bastante conhecida no universo afro-brasileiro e, de certa forma, reatualizada nos rituais
neopentencostais a fim de exorcizar as mesmas entidades que se apresentam na umbanda,
candomblé.
[...] como receptáculo da alma, deve ser cuidado; mas é temporário e, por isso, deve-se dar
maior atenção à alma, que guarda um caráter de eternidade. A corporeidade, entre o grupo
presbiteriano, possui um valor relativizado somente pela presença da alma e, no caso dos
conversos, do Espírito Santo. Cuidar do corpo significa, para os presbiterianos, respeitá-lo
como templo do Espírito Santo. O corpo está relacionado ao futuro celestial, e não ao
presente aqui na Terra. Esse futuro, para os neopentecostais, é visto como distante e a sua
representação é incapaz de produzir completamente um alento para o sofrimento dos fiéis
no tempo presente. Enquanto suportar a dor e o sofrimento, para os presbiterianos, significa
saber aceitar a vontade de Deus, compreender os seus desígnios e fortalecer a alma, para o
grupo da Igreja da Graça, o estado de sofrimento e dor guarda relação direta com os ataques
do mundo dos espíritos malignos. Portanto, vencer esse estado significa ganhar a guerra
espiritual entre o Bem e o Mal (...)Ainda outra representação sobre o corpo pode ser
analisada. Entre os presbiterianos, o corpo, desvalorizado pelo seu caráter mortal em
contraposição à alma imortal, é também o meio pelo qual o pecado se manifesta. Por
definição, o corpo ou a carne consiste, para os protestantes históricos, em algo ruim e
sujeito ao pecado. Somente uma alma purificada mostra-se capaz de tornar o corpo bom,
600
produtor de atos que agradem a divindade. Não por acaso há regras tácitas, e mesmo
explícitas, de como o fiel deve lidar, por exemplo, com a sua sexualidade. Já para os
neopentecostais, por meio do corpo é que se experimentam os prazeres. Claro que há
padrões acerca deles, mas que parecem bem mais flexíveis do que os dos protestantes
históricos. Depois da purificação ritual feita pelo exorcismo, ‘O corpo então se torna um
lugar privilegiado, o ponto de encontro entre o homem e o transcendente, seja esse sagrado
‘bom’ ou ‘mau’’. Assim, o repúdio ao corpo não está presente entre os neopentecostais. No
entanto, o prazer que pode ser vivenciado pelo corpo sujeita-se a restrições claras, que
proíbem o homossexualismo, a prostituição, a utilização de drogas, inclusive o uso de
cigarro, e o excesso de bebidas alcoólicas. Aliás, para esse grupo, é pelo corpo que a alma
experimenta os prazeres. É aqui, na Terra, que o que incomoda o corpo deve ser ‘expulso’,
a fim de o fiel usufruir o que é prazeroso (PINEZI E ROMANELLI, 2003, p. 71-72).
O conceito de saúde ou a forma com que a mesma é vista pelos neopentecostais possui íntima
vinculação com o afastamento ou aproximação dos espíritos malévolos. Ter saúde, na vida e,
inclusive, no próprio organismo biológico depende, também, desta limpeza espiritual.
Guardando as devidas diferenças rituais, os dois setores estudados no artigo fazem uso desta
ação – transe – como norteadora de suas práticas: Geralmente, o pastor dirige-se a eles como
demônios de enfermidade, mas
[...] sempre faz alusão às figuras do repertório dos cultos afro-brasileiros, como Exu
Tranca-Rua, Pombagira, Maria Padilha e Exu Caveira.27 Dessa forma, o grupo
neopentecostal demarca a fronteira com as religiões afro-brasileiras, estabelecendo, no
plano simbólico, o seu inimigo no mercado religioso e colocando-se como capaz de liquidar
o mal. O pastor “conversa” com os demônios e manda, com veemência, eles saírem da vida
daquelas pessoas. Ao mesmo tempo, obreiros e obreiras as seguram. Quando tocados pelos
obreiros, os fiéis, em geral, começam a se retorcer, gritar e cair ao chão, demonstrando que
realmente estão possessos. Água abençoada é borrifada pelo pastor sobre aqueles que se
mostram possuídos (PINEZI E ROMANELLI, 2003, p. 70).
Entre os primeiros, não pode haver ninguém com dom especial de cura intermediando a
relação dos homens com Deus, com exceção de Jesus Cristo, mas todos os fiéis podem
601
pedir a cura a Deus. Porém, a idéia de que a vontade de Deus está acima de qualquer desejo
humano acaba por enfraquecer a esperança de cura por meio da intervenção divina. Assim,
entre o grupo presbiteriano, não há um ritual relacionado especificamente à cura e a liturgia
é meramente formal e, na prática individual da visitação aos enfermos, a oração nunca
significa um pedido de cura, mas expressa consolo e, às vezes, até introduz boa preparação
para a morte (MENDONÇA, 1992, p. 50).
As ramificações neopentecostais são muitas e cada uma delas apresenta suas especificidades.
Esperamos ter anunciado algumas delas a fim de que seja possível entender, ainda que em
uma primeira análise, as visões sobre o corpo e saúde e as maneiras pelas quais os rituais
concretizam estes pensamentos teológicos.
Considerações finais
Por impossibilidade metodológica, a nossa proposta foi discutir as formas pelas quais as
religiões afro-brasileiras, especificamente o candomblé, e as neopentecostais lidam com o
corpo e a saúde. Sabe-se que, a literatura antropológica está, cada vez mais, recebendo
contribuições sobre a forma com que cada teologia lida com o corpo e, consequentemente, as
resoluções disto em torno da saúde. No caso deste artigo a ideia foi apresentar rapidamente
como esses segmentos trabalham essas questões em suas teologias e como as mesmas são
sentidas e representadas por seus fiéis. Para outros estudos pretende-se alargar o olhar
discutindo, inclusive as várias estratégias de disputa no mercado religioso, muitas das quais
são reelaboradas a partir das inovações do ciberespaço.
Referências
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603
604
Entre Dois Mundos: entre o pragmatismo da umbanda e o
salvacionismo espírita
Ana Maria Valias Andrade Silveira1
Introdução
Esta pesquisa esta sendo realizada desde o ano de 2012, por meio de uma analise
antropológica aplicada ao método etnográfico seguido de observação participante. Tendo em
vista que observações e experiências de campo já estão sendo desenvolvidas, pretende-se aqui
demonstrar as primeiras impressões surgidas a partir de dados colhidos no campo etnográfico,
propondo uma aliança entre a apresentação do campo empírico e reflexões teóricas de autores
que oferecem subsídios de análise epistemológica.
Esta exposição textual esta dividida em três partes. Em primeiro lugar pretende-se situar o
campo empírico analítico, apresentando os caminhos reflexivos que foram percorridos para a
formação desta analise que se pretende antropológica. Contextualizar a situação proposta por
1
Mestranda em Antropologia pela UFGD. Agência de Fomento: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Mario Teixeira
de Sá Júnior. Contato: ana_vallias@hotmail.com.
605
esta pesquisa em andamento. No segundo instante, alguns autores são trazidos para
fundamentar a discussão pertinente ao campo empírico, propondo um diálogo entre teoria e
prática. Em seguida a descrição etnográfica será apresentada de modo bastante objetivo, para
que o leitor possa se debruçar sobre a estrutura e o contexto o qual as casas religiosas se
apresentam. Esta demonstração pode trazer maiores esclarecimentos para concluir as
discussões propostas no primeiro e segundo momento do texto.
Restringindo esta idéia para a análise que esta sendo desenvolvida nesta pesquisa, é possível
observar empiricamente nas vivências de campo que, muitos freqüentadores de Terreiros, vão
á Centros Espíritas em dias alternados. Em contrapartida, muitos adeptos de orientação
Espírita, freqüentam Terreiros de Umbanda dentro de uma perspectiva discursiva e pratica
extremamente lógica. Esta realidade esta sendo verificada a partir de uma conviviabilidade
constante com as pessoas que participam ativamente de duas modalidades religiosas
extremamente objetivas, são elas: o Espiritismo e a Umbanda.
Indo além, esta pesquisa propõe um estudo de caso que pode contribuir de modo pratico e
exemplar de que, no campo religioso afro-descendente há existência de um dinamismo
extremamente complexo, colaborando com o entendimento de que existem contradições entre
o que é dito e o que é efetivamente vivido dentro destes espaços que compõem matrizes
religiosas Africanas. Por isso, dá-se nesta pesquisa muita importância ao que se expressa no
campo do discurso, e ao que se vivi na pratica ritualística que compõe a configuração da
Religião, como subsídio para construção de uma etnologia de Religiões.
Estão situadas no município de Dourados – Mato Grosso do Sul (MS), em bairros periféricos,
duas casas religiosas que possuem fato importante para uma análise que se pretenda
Antropológica. A Casa (1) é denominada Movimento Espírita Francisco de Assim – (MEFA),
606
é identificada pelo grupo como Espiritualista, por não possuir vínculos com a Federação
Espírita Brasileira – FEB, e também por adotar algumas práticas elementares que vão de
encontro com os preceitos normativos institucionalizados pela política federativa. A Casa (2)
é denominada Reino de Ogum Beira Mar, sendo identificada pelo grupo como Terreiro de
Umbanda, com especialidade de ser classificada como Umbanda Branca.2
Assim como a casa (1) recebe influências e adota algumas práticas características da
Umbanda, mesmo legitimando a presença do Espiritismo, há um convívio entre Umbanda e
Espiritismo dentro da casa, mas cada prática ocupa lugares completamente diferentes. Já na
Casa (2), há práticas Espíritas muito presentes em alternância com a prática Umbandista
presente e decisiva nas atividades desenvolvidas na casa. O que ocorre é que há três anos, as
pessoas do MEFA passaram a freqüentar o Terreiro de Umbanda, e as pessoas do Terreiro de
Umbanda passaram a freqüentar o MEFA.
Desde então, isso continua ocorrendo, sendo impossível dizer o que é um e o que é outro, pois
as pessoas se movimentam em um trânsito continuo entre as duas casas. Em decorrência
disso, alguns sinais e elementos diacríticos pertencentes à Umbanda, em específico, migraram
de uma casa para outra promovendo inúmeras mudanças. Um exemplo disso é que os pontos
que eram entoados na casa (2) passaram a ser entoados na casa (1) ao passo que as pessoas
começam a transitar de uma casa para outra. Isto demonstra mobilidade, instabilidade,
mudança, complementaridade. Os conflitos que ocorrem é devido a estas mudanças que
envolvem pessoas que transitam e pessoas que não transitam.
2
A identificação do panteão Umbandista pode ser apresentada sob diversas tipologias. A Umbanda pode ser
Espiritismo de Umbanda, Umbanda de Mesa, Umbanda Branca, Macumba, dentre outras. Estas variáveis de
Umbanda que ora se apresentam, são identificadas por seus adeptos e contrapostas com outros modelos de casas
religiosas. Assim, uma casa de umbanda branca busca se diferenciar de outra casa, onde os adeptos da primeira
reconhecem a outra como sendo, por exemplo, de macumba ou quimbanda. Para além do universo umbandista
ocorrem diálogos de outras matrizes religiosas como a Umbanda e o Espiritismo. Apesar das buscas por
separações ocorrem também aproximações, diálogos entre elas formando o continuum religioso. (CAMARGO,
1961)
607
a existência de complementaridade, onde a presença da ortodoxia Espírita não deve ser
pensada dissociada do pragmatismo da umbanda, tendo em vista a existência de relações
dialógicas constituindo novas configurações e reconfigurações em espaços religiosos
analisados.
O continuum religioso é o eixo central desta análise, pois é ele quem expressa a plasticidade e
a complexidade móvel do campo religioso afro-descendente e religiões de possessão de um
modo geral. Assim, este estudo de caso vai contribuir com uma vírgula como prova do quanto
se deve privilegiar e contemplar em pesquisas o entre lugar que é vivenciado como forma de
manutenção visando o crescimento e a sobrevivência dos grupos contidos nestes espaços de
religião.
Delimitação do tema
608
Na primeira metade do século XX, Arthur Ramos apresenta variedades de cultos religiosos de
matriz africana tendo como ponto inicial um princípio de culto considerado puro, legitimando
a origem Africana instalada no Brasil. (RAMOS, 1934). Segundo essa organização as
religiões se apresentam organizadas a partir de uma pureza, percebida nas religiões de
matrizes Iorubanas (candomblés nagô e jeje) a um crescente sincretismo.
Arthur Ramos (1934), mesmo não se utilizando do termo continuum religioso, já explicitava
em seus escritos a presença de continuidades entre os cultos afro-brasileiros, que, a partir de
uma referencia de matriz africana caracterizada pelos povos Sudaneses (Jeje-Nagô),
enfatizava a alteração devido ao processo de assimilação de cultos que foram se perdendo da
referencia e encarnação Africana no Brasil (CAPONE, 2004).
O conceito de pureza é levado muito a sério até então por determinar a mistura, partindo da
idéia da existência de um continuum religioso do mais puro até o mais misturado ou mais
sincrético.
1º. Jeje-nagô
2º. Jeje-nago-muçulmi
3º. Jeje-nagô-banto
4º. Jeje-nagô-muçulmi-banto
5º. Jeje-nagô-muçulmi-banto-caboclo
6º. Jeje-nagô-muçulmi-banto-caboclo-espírita
Deve-se considerar que este conceito apresentado pelo autor caminha para um pensamento em
que formas rituais praticadas por negros eram vistas com inferioridade no que se refere á
classe de raça. (RODRIGUES, 1935).
609
Outro autor de fundamental importância para os estudos sobre continuum religioso é Procópio
Camargo (1961). Sua abordagem Sociológica buscava o entendimento das continuidades
mediúnicas entre Umbanda e Kardecismo, nos espaços religiosos da Região de São Paulo –
SP. A presença contínua existente entre estas duas modalidades de culto ocorre, a partir de
uma referência mais africanizada de culto até a mais ortodoxa preconizada pelo Espiritismo.
Sua analise apresenta o continuum religioso apenas entre estas duas modalidades expostas a
cima.
3
A idéia de Campo Religioso é utilizada por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2011a) e está restrita ao campo das
religiosidades, que se dá de forma dialógica. O campo se faz à medida que há interligações e interconexões entre
ambos. Por meio da relação com outras religiões forma-se, ao passo que inclui e exclui práticas e abordagens
rituais. Este campo das religiões pode ser compreendido como um vasto mercado de bens e serviços que são
oferecidos e funcionam por trocas simbólicas de bens de consumo material, imaterial, simbólico e não simbólico.
610
cultos puros e impuros gera uma disputa que só se faz presente no momento em que se
encontram. Legitimar a pureza significa negar a impureza. O continuum só existe se for
negado. O que procede a mistura é a presença de purezas para misturar. Se não há mistura, a
continuidade dos cultos em Religiões de Possessão torna-se inexistente.
Indo a campo é possível compreender que o trânsito entre as casas religiosas não ocorre
estritamente entre MEFA e Terreiro Reino de Ogum, Beira Mar, mas está empiricamente
comprovado que muitos freqüentadores do MEFA (Movimento Espírita Francisco de Assis)
vêm de outros Centros Espíritas e/ou Terreiros de Umbanda, da mesma forma que, no
O objetivo aqui é se utilizar deste conceito para abarcar um conjunto mais amplo de diferentes cultos religiosos
que compõem o mesmo universo das Religiões Afro descendentes de modo mais específico.
611
Terreiro Reino de Ogum Beira Mar, existem freqüentadores de outras Casas Espíritas. Desta
forma, o conceito de Continuum Religioso apresentado por Stefânia Capone não fornece
subsídios epistemológicos para pensar tamanha complexidade de mobilização, por ainda
apresentar uma demonstração linear de continuum religioso, impossibilitando a aplicabilidade
empírica das situações atuais apresentadas pela dinâmica do campo religioso afro-
descendente.
A oferta teórica da pós-modernidade aponta respostas e indicativos que podem ser utilizados
para explicar fatos correspondentes à contemporaneidade. Alguns conceitos se propõem a dar
conta e visibilidade a novos paradigmas do campo pragmático. Assim, através dos estudos de
Glissant surge um conceito teórico chamado Rizoma como um sistema aberto, em que se
apresenta um entendimento de redes interligadas, superando, desse modo, o conceito do
continuum representado pelos autores do século XX como um quadro linear ainda muito
ligado ao entendimento evolucionista (NOGUEIRA, 2009).
Neste momento serão apresentadas as duas casas religiosas que serão contempladas nesta
pesquisa. O objetivo é fazer uma descrição etnográfica parcial, para fornecer maior
esclarecimento da estrutura ritualística e organizacional das atividades que são desenvolvidas
nas duas Casas, para compor o entendimento das discussões que foram feitas anteriormente.
A casa Reino de Ogum Beira Mar fica situada à Rua Cuiabá. O espaço destinado para casa
fica nos fundos da residência da Mãe de Santo, e é composta por um quarto de
aproximadamente 3x4 (demonstrando sua pequenez física), o qual comporta cerca de 15
pessoas. Em seu interior, possui três bancos de concreto para cinco pessoas em cada um, e
logo de frente está o altar, chamado pelos adeptos de conga. No alto do congá estão contidos
612
os orixás4, que sincreticamente são interpretados por imagens de santos católicos. No alto está
Oxalá que faz sincretismo com Jesus Cristo; nos dois extremos, logo abaixo, vêm Iemanjá e
Ogum Beira Mar; abaixo está outro ogum representado na cor vermelha e Oxossi com
imagem de São Sebastião. Logo depois, entre um extremo e outro está o Preto-Velho e os
Erês.
No peji (a base do altar) está uma imagem barroca em meio às misturas dos santos do
catolicismo com as imagens dos personagens da Umbanda. Isso é visto tanto na base do altar
como no chão do congá onde há um amalgama entre as imagens de diferentes matizes
religiosas. Outro sinal diacrítico são os desenhos riscados nas paredes do terreiro,
representando os pontos riscados de todos os personagens que ganham vida através da Mãe de
Santo. Do lado de fora, ao lado do terreiro, tem-se a Casa do Exu, reconhecido como a
tronqueira dos guardiões.
Depois que todos os médiuns já estão com seus personagens, é dado o espaço para que os
adeptos possam se dirigir ao seu guia de preferência, buscando um atendimento espiritual, que
pode ser um passe (uma energização), um conselho etc.
4
Entidades do panteão da Religião de origem Iorubana Culto aos Orixás (Ver: PRANDI, 2000).
5
A Umbanda é uma religião de possessão em que os seus adeptos incorporam entidades de um mundo espiritual.
Historicamente essas entidades são compostas por tipos sociais excluídos, como índios (caboclos), pretos-velho
(escravos), pomba-gira (prostitutas), etc. Com o passar das décadas do século XX e devido à plasticidade da
Umbanda, surgiram novos tipos de entidades, como baianos, malandros, marujos, boiadeiros dentre outros. No
entanto, todos possuem em comum o caráter marginal. (Ver SÁ JUNIOR, 2004).
6
Pontos são músicas entoadas pelos adeptos para encaminhar finalidades específicas dos rituais.
613
Os pontos são cantados pelo Dirigente dos trabalhos, o marido da mãe de santo. Cabe aqui
lembrar que essa casa não possui atabaque7 e os pontos são cantados por todas as pessoas que
estão dentro da casa. Quem detém o controle sobre o que vai ser cantado é o dirigente que
estabelece qual ponto será cantado naquele momento. Às vezes, alguma entidade pede para
cantar tal ponto, mas raramente isso acontece.
Neste momento, tão raro e curto, é quando se manifestam importantes acontecimentos. Todos
os seis médiuns incorporam seus personagens. Mas, há uma padronização de algumas práticas
para manter o controle do ritual. Sendo assim, os exus não bebem, não fumam, exceto um
novo médium que chegou sem plena noção de como se conduziam as práticas da casa e
resolveu quebrar as regras. Contudo, com o passar do tempo, esse médium está se adaptando
aos moldes da casa. Entretanto, não há liberdade de manifestação dessas entidades, no caso a
utilização da cachaça é realizada para descarregar os adeptos, sem se utilizar desse material
como bebida.
7
Instrumento de percussão utilizado em algumas casas religiosas de Umbanda.
8
Em muitas casas religiosas, os adeptos se utilizam de roupas que se caracterizaram na cultura nordestina,
principalmente a da Bahia em que esses trajes são apresentados como um dos cartões postais dessa sociedade.
614
maneira de se relacionar com o vivido individualista das práticas ritualísticas nesse campo da
religiosidade umbandista.
Outro ponto a ser destacado é a presença das crianças ou Erês. Esse personagem ganha vida
todo dia 27 de setembro. Nesse dia, todos os médiuns e os adeptos da casa combinam para
que cada um leve um prato e doces, de toda espécie, a fim de viabilizar uma comunhão
conjunta, propiciando a chegada desses personagens na Umbanda. Trata-se de um dia
dedicado à confraternização entre todos. Os trabalhos são iniciados normalmente e, logo após,
com a chegada das entidades, há uma completa interação, o que proporciona às pessoas
saírem satisfeitas e felizes. Todos os médiuns recebem suas crianças e ficam até o final. Com
exceção do Chefe do Terreiro, pai ogum beira mar, que permanece e não cede espaço para a
chegada de crianças em volta da mãe-de-santo. Isso acontece, pois, o responsável pelo terreiro
deve sempre estar presente.
As três salas onde acontecem as atividades espirituais são divididas e cada sala possui uma
função específica. A primeira é destinada ao tratamento de Cura e de problemas de Saúde.
Nessa sala, encontram-se duas macas, uma mesa com alguns utensílios ritualísticos, como
flor, descarrego11 (utilizado na Umbanda), jarro com água, e sacos de balas. Cerca de sete
médiuns, que ministram passes magnéticos, participam e também dois médiuns de
incorporação. A segunda sala corresponde à consulta espiritual, para onde são conduzidas as
pessoas para verificar o tipo de tratamento que será ministrado. A sala possui
aproximadamente vinte médiuns. Dentre esses médiuns, estão os de passe e os de
9
Para a burocracia entre os adeptos da Religião Espírita, conhecida como Kardecismo, uma casa somente pode
ser nomenclatura de Espírita se possuir a certificação da Federação Espírita Brasileira – FEB.
10
Evangelização é uma reunião na qual se aprende as bases doutrinárias do Espiritismo Kardecista.
11
Um composto de álcool com ervas que, ao ser passado no corpo dos freqüentadores, possui a finalidade de
retirar energias negativas.
615
incorporação. Eles se posicionam em círculo, e no centro da sala colocam-se seis cadeiras
enfileiradas para que os pacientes possam ser atendidos.
Essa sala dispõe ainda de dois médiuns conhecidos como dirigentes dos trabalhos espirituais.
Existe também uma espécie de Peji (altar). Contudo, os adeptos preferem chamá-lo de mesa.
Nela estão alguns santos do catolicismo, uma vasilha com água e algumas ervas,
“descarrego”, como ainda águas para distribuir para os freqüentadores, pacotes de balas, que
são distribuídos para os adeptos, e incenso, que é queimado do início ao final das atividades.
O MEFA possui atividades de segunda a sábado. Na segunda-feira, acontece, das 19h às 21h,
o atendimento espiritual, momento em que as pessoas passam por uma entrevista para
posteriormente serem encaminhadas à sala de consultas para, assim, dar início ao tratamento.
Dependendo do tratamento, a pessoa pode ser encaminhada à sala de cura na mesma hora. Na
terça-feira, acontece um projeto para as mães. Muitas pessoas também levam roupas para
doação e ali as mães são amparadas e recebem ajuda quanto à confecção de agasalhos. Na
quarta-feira acontece o estudo da Doutrina Espírita. Essa aula acontece na sala de consultas.
São estudados livros de base Espírita. Muitas são as pessoas que freqüentam os estudos toda
semana.
Toda primeira quinta-feira do mês é realizado o trabalho de desobsessão. Nesse dia, todas as
pessoas que passaram pela consulta espiritual na segunda-feira, e estão em tratamento
espiritual, obrigatoriamente passam por esta atividade. Os personagens mais solicitados para
os trabalhos e dão mais ênfase a este trabalho são os Exus ou os chamados Guardiões.
Na sexta-feira, são exercidas atividades na sala de cura, as quais são realizadas duas vezes na
semana, na segunda e na sexta, e a corrente mento-eletromagnético.
616
Aos sábados, na parte da tarde, acontece uma atividade muito similar às da segunda-feira. As
pessoas que não podem comparecer na segunda-feira à noite têm a oportunidade de participar
no sábado à tarde. Às 15h30 há ainda outro grupo de estudo no qual o conteúdo programático
também é de cunho Espírita. Quando não é a primeira quinta-feira do mês, há um grupo de
trabalhadores da casa que se reúnem para desenvolver e se aproximar dos fenômenos da
psicografia.
Cabe aqui considerar que essa casa possui similaridades e afinidades com a ritualística da
Umbanda. Alguns sinais diacríticos devem ser considerados: primeiramente, na segunda-feira,
na primeira quinta-feira do mês e aos sábados a abertura das atividades se faz com uma
oração e logo após são cantados pontos da Umbanda para o início das atividades. No decorrer
dos trabalhos, esses pontos também são cantados. Nas segundas, há manifestação de Pretos-
Velhos, índios, caboclos, exus, pomba-gira, Zé Pilintra e baianos. O descarrego é utilizado
durante toda a atividade. Outro sinal, não menos importante, é que a cada três meses é
realizada uma atividade somente para os médiuns da casa e não é aberta ao público. Descrevo
essa atividade como muito próxima de um modelo similar a Casa Ogum Beira Mar.
Os personagens que vivem essa prática são índios, exus, pomba-gira, Zé-Pilíntra, crianças,
Pretos-Velhos. Todos os adeptos levam para o ritual: ervas, pipocas, balas, doces, sal grosso,
velas e descarrego. Há, inicialmente, um ritual de defumação. Nesse momento, os pontos são
cantados e riscados. Todos os médiuns conversam com os adeptos, assim como
rotineiramente acontece num terreiro de Umbanda.
Considerações finais
As duas casas que ora se apresenta como objeto de análise desta pesquisa são analisadas
dentro de uma lógica de continuum, pois estão constantemente se movendo entre Umbanda e
Espiritismo. Estas religiões se fazem presentes nas duas casas de forma interna, e
externamente são marcadas a partir deste trânsito existente.
É importante compreender qual a posição que estas pessoas estão dentro deste continuum,
para entender a lógica das mobilidades e continuidades que arvora em um contexto
extremamente complexo.
617
O posicionamento destes personagens da luz ao entendimento de como as praticas religiosas
são pensadas através de mobilidades, plasticidade e dinamismo. Indo além, esta análise, em
uma vírgula pode demonstrar a pluralidade da Umbanda apresentada a partir de
especificidades interpretativas dos grupos sociais do campo religioso.
Jaz o entendimento de que a Umbanda compõe caráter versátil, no entanto é necessário ouvir
o que as pessoas têm a dizer sobre suas Umbandas com especificidades ímpares a cada grupo
que a pratica. Quanto maiores interpretações se obter deste culto pragmático, maiores
instrumentos para sustentar discussões em um campo religioso aberto, sem inicio, sem fim.
Um campo contínuo.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
SÁ JÚNIOR, Mario Teixeira de. 2004. A invenção da alva nação umbandista – a relação
entre a produção historiográfica brasileira e a sua influência na produção dos intelectuais da
Umbanda (1840-1960). Orientação de Prof.º Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos. Dissertação
(Mestrado em História), UFMS, Dourados, 2004.
618
619
Entre linhas e falanges: A diversidade da umbanda na
contemporaneidade
Saulo Conde Fernandes1
Introdução
1
Licenciado em História pela UFMS. Mestrando em Antropologia Sócio-cultural pela UFGD. Bolsista CNPq.
Orientador: prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior. Contato: saulo_microphonia@yahoo.com.br.
620
pai, Zélio foi levado à Federação Espírita de Niterói. Lá chegando, foi convidado a sentar-
se na mesa. Logo em seguida, contrariando as normas do culto realizado, Zélio levantou-se
e disse que ali faltava uma flor. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a no
centro da mesa na qual se realizava o trabalho. Iniciou-se, então, uma estranha confusão no
local, ele e outros médiuns começaram a apresentar incorporações de caboclos e preto-
velhos. Ao ser advertido, a entidade incorporada no rapaz perguntou por qual motivo as
mensagens de pretos e índios eram repelidas.O médium vidente perguntou por que a
entidade falava como um índio, de cultura claramente atrasada, já que estava enxergando
vestes jesuítas e uma aura de luz. Ele responde: ‘ Se julgam atrasados espíritos de pretos e
índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho, para dar início a um culto em
que estes pretos e índios poderão dar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o
Plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a
igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem
saber meu nome que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá
caminhos fechados para mim’. Afirmou também que tinha sido um padre jesuíta em
Portugal, por isto o vidente enxergava as vestes jesuítas, mas na última encarnação este
tinha vivido com um caboclo brasileiro. No outro dia, na casa de Zélio, sob os olhares de
membros da Federação Espírita de Niterói, parentes, amigos, e uma multidão de curiosos, o
Caboclo das Sete Encruzilhadas ‘desceu’ e usou as seguintes palavras: ‘Aqui inicia-se um
novo culto em que os espíritos de pretos africanos, que haviam sido escravos e que ao
desencarnar não encontram campo de ação nos remanescentes das seitas negras, já
deturpadas e dirigidas quase que exclusivamente para os trabalhos de feitiçaria, e os índios
nativos da nossa terra, poderão trabalhar em benefício dos seus irmãos encarnados,
qualquer que seja a cor, raça, credo ou posição social. A prática da caridade no sentido do
amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de
Jesus e como mestre supremo Cristo’. A entidade também disse que os participantes
deveriam estar vestidos de branco e o atendimento a todos seria gratuito. Disse também que
estava nascendo uma nova religião e que se chamaria Umbanda. Neste mesmo dia, Zélio
incorporou um preto-velho chamado Pai Antônio, que em poucas palavras, mostrou
sabedoria e humildade. Foi também Pai Antônio que solicitou os primeiros elementos de
trabalho da religião: o tabaco e uma guia. No outro dia formou verdadeira romaria em
frente a casa da família Moraes. Cegos, paralíticos e médiuns que eram dados como loucos
foram curados. A partir destes fatos redescobriu-se a Corrente Astral de Umbanda, na
atualidade.2
Esse mito, bem analisado por Sá Junior (2012), é atribuído ao nascimento da umbanda, uma
religião tida como genuinamente brasileira.3 No entanto, esse mito não abarca a umbanda em
2
Busquei no anexo da dissertação de José Henrique Motta de Oliveira (2007) a base para a exposição do Mito
Fundador Umbandista. O historiador buscou a narrativa do mito num site de cunho doutrinário.
3
A tese de doutorado da antropóloga Maria Helena Concone, obtida em 1973 e posteriormente transformada em
livro (CONCONE, 1987), é bem significativa nesse sentido, como o próprio título demonstra: “Umbanda, uma
621
sua totalidade. Uma grande parcela de adeptos de terreiros de umbanda pelo Brasil
desconhece a existência da história de Zélio de Moraes e praticam cultos demasiadamente
diferentes daquele por ele praticado. Muitas são as controvérsias, entre pesquisadores
acadêmicos ou mesmo entre os intelectuais umbandistas, quando se tentam buscar uma
origem para a religião umbandista. Como já foi colocado em alguns trabalhos
(CAVALCANTI, 1986; ROHDE, 2009; entre outros), a umbanda não possui uma origem, ou,
ao menos, não possui apenas uma origem. O mito aqui apresentado marca a origem de uma
religião conhecida no campo religioso afro-brasileiro como umbanda linha branca (ou apenas
umbanda branca) ou umbanda esotérica. Mas esta não é, com certeza, a única modalidade de
umbanda...
A teoria do continuum mediúnico, cunhada por Cândido Procópio Camargo em seu trabalho
pioneiro (1961), foi um grande avanço na literatura acadêmica para se compreender o
complexo campo religioso afro-brasileiro, de São Paulo, no caso por ele estudado, mas que se
aplica de forma mais genérica para outras cidades brasileiras. “Pode-se afirmar que há
inúmeras modalidades combinatórias em que se expressa o ‘continuum’ – algumas mais
religião brasileira”. Mas os próprios umbandistas consideram sua própria religião como tipicamente brasileira,
como pode-se ver em um trecho presente no prólogo à apresentação das resoluções do I Congresso Nacional de
Umbanda de 1941: “Os adeptos deste culto consideram-no genuinamente brasileiro, de vez que ele representa
essa simbiose característica de nossa própria formação étnica: o sincretismo resultante dos cultos afro-aborígene-
cristão.” (Apud NEGRÃO, 1996, p. 147)
622
ligadas à Umbanda, outras mais próximas ao Kardecismo, formando um elo entre os
extremos” (1961, p. 15).
Renato Ortiz e Lísias Negrão continuaram neste raciocínio e entendem que os extremos de
que Camargo falava eram pólos culturais. Negrão entende que os terreiros de umbanda variam
em se aproximar do que ele chama de pólo negro-mágico, que compreende o candomblé e a
macumba, ou do pólo ocidentalizado, que ele resume no kardecismo, como se fossem dois
pólos antagônicos, e as características de cada casa de culto flutuam dentro deste campo de
influência (1996, p 28-29). Ortiz também faz uma divisão em dois pólos: o mais
ocidentalizado e o menos ocidentalizado. O pólo menos ocidentalizado estaria mais próximo
das práticas afro-brasileiras enquanto que o pólo mais ocidentalizado estaria mais afastado de
tais; porém, nos dois pólos, se verifica uma ruptura em relação ao candomblé (1999, p. 97).
O conceito foi melhor elaborado pela antropóloga italiana Stefania Capone. Ela apresenta
(2004, p. 99) um interessante quadro no qual aglutina as mais diversas modalidades de cultos
afro-brasileiros, em uma linha horizontal na seguinte ordem: kardecismo, umbanda branca,
umbanda africana, omolocô, umbandomblé, candomblé banto, candomblé nagô, candomblé
reafricanizado; a macumba e a quimbanda aparecem em uma categoria denominada
construção das identidades religiosas por contraste, enquanto que a Igreja Católica e as
Igrejas Pentecostais aparecem nas categorias relações de inclusão e relação de exclusão.
623
entrelaçam, podendo dar origem a inúmeras combinações diferentes, dependendo da matriz
religiosa que se utiliza, mas mantendo as características principais que a definem” (Idem, p.
42). Nogueira se utilizou da teoria do rizoma pra forjar a teoria do rizoma umbandista:
624
diferentes em trabalhos acadêmicos seria também uma opção, mas considero válido utilizar o
material etnográfico de que disponho.
Desde o ano de 2009 venho freqüentando terreiros de Umbanda na cidade de Campo Grande
– MS, na condição de consulente, e com o passar do tempo, pesquisador amigo da casa. No
total, visitei algo em torno de 14 terreiros, alguns apenas uma visita, outros com contato
pouco mais intenso, e outros ainda, com uma observação mais sistemática aliado a algumas
entrevistas.5 No presente trabalho, exponho – de forma tanto quanto resumida, devido à
dimensão deste texto – alguns exemplos diferenciados de tendas e terreiros que se auto-
intitulam como que “de umbanda”, mas que são muito diferenciados.
Inicio pela casa de culto que mais se aproxima daquela umbanda presente no mito fundador.
O Templo de Umbanda Pai Oxalá (a partir deste momento apenas Pai Oxalá) é o maior e mais
antigo terreiro da cidade de Campo Grande. Foi fundado no início da década de 1970 por
Elzira Conceição Rudias Jatobá, pioneira da umbanda na cidade, hoje uma graciosa senhora
centenária (em 2013 completa 100 anos), em compania de seus primeiros iniciados, entre eles
Orlando Mongelli, que tem atualmente 84 anos. Mãe Elzira já tinha outro terreiro antes da
fundação do Pai Oxalá; e depois de alguns anos de funcionamento, Mãe Elzira entregou a Pai
Mongelli a direção do Pai Oxalá e foi fundar outro. Mãe Elzira se iniciou no candomblé
angola e ajudou a fundar outro terreiro que será aqui também descrito. Mas por ora é válido
afirmar que Pai Mongelli afirma já ter dançado pra santo, mas que nunca se iniciou no
candomblé.
Nas entrevistas que realizei com Pai Mongelli, em momento algum ele me afirmou ser de
alguma linha de umbanda em específico (nem citou a expressão linha branca). Mas se
analisando os indícios (GINZBURG, 1990), e levando em consideração entrevistas e
conversas com alguns médiuns do terreiro, creio que o Pai Oxalá é um exemplo de umbanda
linha branca. Há proximidade com os estudos kardecistas. A caridade é o lema principal do
local. Durante as giras, pede-se silêncio.
Neste terreiro, não há ritual algum que a indumentária não seja a roupa toda branca. Os exus e
pombagiras não vestem nenhum tipo de adorno diferenciado e nem mesmo bebem! Os
trabalhos com a esquerda acontece uma vez a cada dois meses. Sacrifício de animal é,
5
Em trabalho anterior (FERNANDES, 2011) realizei uma etnografia comparativa de dois terreiros, um de
umbanda “linha branca” e outro que “tocava” candomblé ketu, mas que também fazia trabalhos semanais de
umbanda. Citarei estes exemplos no presente trabalho.
625
segundo um médium em entrevista, “uma prática que o pai da casa abomina”. O mito de Zélio
se reproduz, como pode-se ver na fala do mesmo médium:
Acredito que a Umbanda do Pai Oxalá seja aquela do Zélio sim. Mas a gente entende a
Umbanda como uma só, sem ter essa de linha branca, vermelha ou o que for, sabe? A
Umbanda é Umbanda, os outros que se dizem Umbanda e fazem coisa nada a ver, como
cobrar a consulência, pode ser tudo, menos Umbanda.
Outro terreiro fundado por Mãe Elzira, que posteriormente passou ao comando de sua filha,
biológica e de santo, é também exemplo pertinente. O local, que se chama Tenda de umbanda
Cacique Sete Flechas e Vovó Maria Conga (a partir deste momento utilizo o nome mais
utilizado pelos adeptos: terreiro da mãe Cleide), faz giras de umbanda semanalmente com os
caboclos, sendo que uma das giras do mês é dedicada aos exus e pombagiras. Ao correr do
ano faz-se também festas dedicadas aos preto-velhos e outras ao erês. Mas a particularidade
deste terreiro se encontra na importância dada ao candomblé. Mãe Elzira, durante sua jornada
como mãe-de-santo de umbanda, fez o santo no candomblé depois de muitos anos, na nação
angola. Sua filha Cleide também fez o santo, e o neto de mãe Cleide e bisneto de Mãe Elzira,
Pai Diego, hoje com 27 anos, nasceu dentro deste universo, e acabou se tornando um vigoroso
pai-de-santo de candomblé ainda muito jovem. Mãe Cleide afirma “gostar” mais da umbanda,
mas seu neto não, a história dele seria o candomblé.
Como bem observaram Prandi (1991), Silva (1995) e Capone (2004), há uma tendência de os
adeptos conhecerem primeiramente a umbanda, se familiarizarem neste universo religioso que
é o afro-brasileiro, para posteriormente se iniciarem no candomblé. Este terreiro confirma esta
premissa. Muitos dos que freqüentam esta casa de culto começam pelas giras semanais de
caboclos, depois conhecem a esquerda, e com o tempo começam a participar dos trabalhos
mais fechados da ritualística do candomblé.6 O curioso deste terreiro é que, mesmo se
chamando tenda de umbanda, este é um terreiro muito mais de candomblé; na porta de
entrada há um monumento de ferro, bem característico, com tridentes e lanças, para Ogum-
Xoroquê (orixá que seria o cruzamento de Ogum com Exu). Nas paredes encontram-se vários
quadros com pinturas dos orixás.
6
Nas festas públicas para os orixás, muitos da vizinhança comparecem, mas nos trabalhos fechados, somente os
iniciados e semi-iniciados (e às vezes seus cônjuges) tem permissão para estar presente. Pai Diego escolhe e
convida (ou convoca como disse um ogã que diz ter mais “paixão” pela umbanda) quem estará presente em tais
trabalhos.
626
O terreiro da mãe Cleide conta também com intensos trabalhos com exus e pombagiras.
Nestes trabalhos, cortinas fecham o acesso ao altar e bem a frente é posta uma mesa contendo
apenas um castiçal e as garrafas de bebidas – uísque e outras bebidas mais chiques, diga-se de
passagem – que o Exu Tranca Rua (entidade que incorpora em Pai Diego) bebe durante os
rituais. Seu Tranca Rua traja sobretudo e chapéu preto, enquanto as pombagiras, com seus
vestidos característicos, dão poderosas gargalhadas durante as consultas, enquanto bebem
champanhe e fumam cigarros finos e longos. Uma casa de culto, que apesar de também ser de
umbanda, totalmente diferenciada do primeiro exemplo (o templo Pai Oxalá).
Outro terreiro que se encaixa nos propósitos deste trabalho, e que é por certo um dos mais
intrigantes a que tive contato até então, é a Tenda Espírita de Umbanda Cacique Tupinambá e
Tio Antônio. Contraditoriamente, o local se utiliza da expressão Espírita em seu nome oficial,
mas em nada se aproxima da doutrina kardecista. Esta casa de culto funciona todos os dias da
semana, com exceção do domingo. De segunda à sexta, a mãe-de-santo do local, Mãe Dora,
faz benzimentos em seus clientes e filhos-de-santo. No terreiro da mãe Dora, nome que mais
observei entre os adeptos para se referir ao local, somente aos sábados são realizados
trabalhos nos quais comparecem a maioria dos filhos-de-santo; durante os dias da semana, vez
por outra algum médium recebe alguma entidade aleatoriamente, geralmente um exu. O pai-
de-santo e esposo de mãe Dora, seu Rubens, e o pai-pequeno7 e filho de mãe Dora, Dinei,
permanecem, durante os benzimentos de segunda a sexta, incorporados com seus guias: pai
Rubens com o cangaceiro alagoano Seu Curisco, e Dinei com o Zé Pelintra, ou com algum
de seus exus.
No cotidiano do terreiro, é extremamente difícil conversar com pai Rubens, haja vista que na
maioria do tempo quem ali está é Seu Curisco. Esta entidade é por demais carismática, e está
sempre sorridente proseando com qualquer pessoa que frequente o local. Seu Curisco, em
uma série de conversas informais, elucidou-me intensamente acerca da ritualística do terreiro,
mas se interessava mesmo em mostrar sua coleção de facas, em contar sua origem mítica 8 ou
mostrar os pontos cantados que sempre está a compor. A entidade passa a maior parte do
tempo fumando cigarros e bebendo batidinha de côco, mas faz questão de ressaltar, aos risos:
7
Cargo hierárquico logo abaixo do pai e mãe-de-santo. Na ausência destes, o pai-pequeno é quem assume a
direção dos trabalhos. Esta convenção de graduações é comum na maioria dos terreiros umbandistas.
8
Segundo suas próprias palavras, ele pertenceu ao bando de lampíão. Me mostrou uma foto do bando apontando
quem seria ele. Disse que hoje vem em Terra para evoluir e fazer o bem (mas que se for preciso também dá umas
cacetadas).
627
“meu cavalo num bebe nem fuma, só eu!” Seu Curisco comanda também alguns dos rituais
que descreverei a seguir.
Cada sábado no mês é feito um trabalho específico. No primeiro sábado o ritual se divide em
dois: a primeira parte é dedicada aos caboclos, onde pai Rubens recebe o Cacique Tupinambá
e se adorna com seu cocar enquanto mãe Dora trabalha na linha de Jurema. Nisto o terreiro
não se diferencia dos demais; mas a segunda parte, a dança dos orixás, se apresenta de uma
forma um tanto quanto peculiar. Forma-se uma roda, com todos os médiuns da casa, e o seu
Zé Pelintra, de Dinei, comanda o rituais ao puxar os cânticos para cada orixá. E os filhos-de-
santo vão entrando em conexão com a vibração dos orixás e as manifestações acontecem na
forma de danças, gestos e brados (gritos). Cantou-se para apenas alguns orixás, que são os
que a religião umbandista se apropriou mais genericamente: Ogum, Oxossi, Oxum, Iemanjá,
Nanã, Xangô, Iansã e Omulu. Não se canta pra Oxalá nem pra Exu, e minhas interpretações
para esta questão em especial decorre de uma condição que a casa já expressou logo nas
minhas primeiras visitas: este grupo adotou uma perspectiva de que a vida está pautada numa
relação entre magia e demanda, ou seja, que sempre há alguém em potencial fazendo-lhes
alguma espécie de magia-negra, ou trabalho pro mal, amarração, sempre realizado pelos
exus em troca de oferendas (cigarro, bebidas, animais).
Se digo que o grupo adotou é porque todas as pessoas, sem exceção, com quem pude
conversar, apresentam aspectos deste pensamento. E o principal motivo alegado pelos
mesmos que leva as pessoas a entrarem em demanda é a inveja. Ou seja, a inveja faz com que
alguém, um feiticeiro naquele sentido dado em Marginália sagrada (1991) ou alguém que
contrata algum feiticeiro, se utilize das práticas mágicas visando prejudicá-los, e eles, em
contrapartida, também se utilizam de práticas mágicas para anular a mandinga ou trabalho-
feito. Esse é o discurso mais genérico. O grande problema que decorre disso é que nem
sempre o demandeiro pertence a outro terreiro: muitas vezes as demandas acontecem ali
mesmo, entre os adeptos desta casa de culto, o que faz com que a situação de conflito seja
comum no cotidiano dos mesmos.
9
O mal, enquanto categoria êmica, é relacionada sempre à demanda e à magia-negra. Observei um terreiro,
durante uma festa de exus e pombagiras (festa da esquerda), no dia 23 de dezembro de 2011, na qual os pontos
cantados apresentavam frases como tem sete facas sobre a mesa, eu sou da magia-negra, ou valei-me sete
diabos. O intrigante é que quem me levou ao local disse se tratar de um terreiro de Candomblé. Esta casa de
628
conversei neste ritual, havia uma estrutura discursiva: “tome cuidado, já tem gente com inveja
do que você está querendo fazer” (no caso, uma pesquisa sobre esta casa). Além dos exus e
das pombagiras, há também os bruxos, classe de espíritos mais pesados, ou seja, com
vibrações mais densas, que tem como função limpar o ambiente, incorporados nos filhos-de-
santo, ao final do ritual. No segundo e quarto sábado do mês, o trabalho é dedicado aos
baianos, que mesmo se diferenciando em demasiado dos exus, no que toca ao estereótipo, no
fim acaba que os serviços tratados pelos baianos são os mesmos que os tratados pelos exus:
demandas, amarrações, abertura de caminhos para empregos ou amores, etc. Os trabalhos no
terreiro da mãe Dora, como pode-se perceber com esta breve descrição, em nada se assemelha
ao ideal da caridade da umbanda branca.
Considerações finais
As origens históricas e o devir das religiões de matriz africana podem, talvez, explicar a
inexistência de algo como uma doutrina, bem como seu caráter institucionalmente
descentralizado, espaço de uma variabilidade e de uma criatividade que só podem
embelezar o culto, afastando-o dos códigos monótonos das grandes religiões. De toda
forma, o fato é que cada terreiro é autônomo e de que não há poder que sobrecodifique o
conjunto por eles formado – o que, evidentemente, limita o poder de cada chefe de terreiro
– nos faz sonhar, mais uma vez, com as hipóteses clastrianas. Claro que também existe uma
‘tendência federalizante’, como a batizou Michel Agier [...], mas, além do fato de que ela
parece operar sobretudo na esfera das relações com o Estado, as próprias federações tem o
costume de se subdividirem continuamente (2009, p. 5).
culto, da qual não possuo quase nenhuma informação, seria um interessante exemplo para este trabalho, mas isto
não foi possível justamente pelo fato de que meu contato com tal terreiro foi somente nesta ocasião.
10
Um das casas por mim pesquisadas mescla o ritual da umbanda com aspectos do kardecismo, como a
psicografia. Este terreiro pouco fala de Zélio de Moraes (mas fala-se de sua existência), no entanto, realizam
diversos estudos do espiritismo kardecista.
629
Mostrando a umbanda como uma religião híbrida e rizomática, diversa em sua constituição,
pretendo advogar a premissa de que a origem da umbanda não está no kardecismo, e sim na
macumba, uma forma de religiosidade tão antiga quanto o candomblé, que remonta ao séculos
XIX e também ao XVIII.11 Não diminuindo o valor dos trabalhos de toda uma leva de
pesquisadores – Bastide (1985), Brown (1985), Ortiz (1999), Negrão (1996), Oliveira (2007)
– que crêem que a umbanda nasceu do kardecismo, trago ao debate uma outra visão: a
umbanda branca, essa sim, nasceu do kardecismo, mas como vimos, esta é apenas uma das
modalidades; várias outras umbandas dialogam muito mais com o candomblé e a macumba, e
não deixam de ser umbanda. Para estes terreiros de umbanda africana, omolocô, umbanda-
quimbanda, umbanda-macumba, umbanda cruzada, umbanda traçada, etc, com certeza a
origem não se encontra no dia 15 de novembro de 1908.
Referências
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brasileira. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS; Fundação Cultural Palmares, 2006.
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Política. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1985.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Origens, para que as quero? Questões para
uma investigação sobre a umbanda. Religião e Sociedade, CER/ISER, 12/2, Rio de Janeiro, p.
84-101, 1986.
11
Luiz Mott descreve o ritual de Luzia Pinta, uma negra que foi presa pela Inquisição na primeira metade do
século XVIII, que seria de calundu-angola (Apud ROHDE, 2009). A descrição é muito próxima de um ritual de
umbanda-macumba da atualidade.
630
CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda, uma religião brasileira. São Paulo:
FFLCH/USP; CER, 1987.
DELEUZE, Giles; GUATARRI, Félix. Mil platôs. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
FERNANDES, Saulo Conde. Salvos por Cacique Tartaruga: umbanda, mito e cura em
Campo Grande – MS. Monografia (Graduação em História), UFMS, Campo Grande, 2011.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
OLIVEIRA, José Henrique Motta de Oliveira. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma análise
comparativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o Estado Novo. Dissertação
(Mestrado em História), UFRJ, Rio de Janeiro, 2007.
ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
PRANDI, Reginaldo. As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma
bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. São Paulo,
BIP-ANPOCS, 2007.
ROHDE, Bruno Faria. Umbanda, uma religião que não nasceu: breves considerações sobre
uma tendência dominante na interpretação do universo umbandista. Anais do III Simpósio
Internacional de Religiosidades, Hibridações e Diálogos Culturais. Campo Grande: UFMS,
2009.
SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. A invenção do Brasil no mito fundador da umbanda. Revista
Eletrônica História em Reflexão. v. 6, nº 11, Dourados, 2012.
631
632
Inclassificáveis: arcaísmos nos estudos das religiões afro-
brasileiras
Antonio José Vieira da Luz1
Introdução
Tanto uma quanto outra, além da imprecisão quanto as verdadeiras origens das matrizes
formadoras destas religiões, carregam também uma forte herança colonial, de caráter
homogeneizante. Afro, por exemplo, faz referência a um continente e não as etnias dos povos
especificamente desembarcados no Brasil e que pertenciam a uma área bastante particular e
restrita daquele continente chamado África. Este, além de generalista é etnocêntrico, pois é
produto de uma heteronomia do pensamento eurocêntrico colonizador: adjetivo genérico para
todos os diferentes povos daquele continente. Os escravos trazidos para o Brasil vieram de
diversas etnias e grupos linguísticos, pertencentes aos ramos classificados genericamente de
bantos (das regiões do Gabão, Congo-Brazzaville, Congo-Kinshasa, Angola, Moçambique),
nagôs (subgrupo iorubá Ifo-nyin), irorubáse jêjes (das regiões de Gana, Togo, Benim e
Nigéria) e fulas (principalmente da Guiné), que ainda assim são também classificações
generalistas e arbitrárias. Termos criados pelo tráfico de escravos onde cada termo se
compunha por uma diversidade de tribos escravizadas naquelas diferentes regiões. Portanto,
1
Teólogo umbandista pela FTU e especialista em Ciências da Religião pela PUC/SP. Contato:
aratish@uol.com.br.
633
uma pretensão de rigor absoluto nos termos parece esbarrar numa impossibilidade e um meio
termo ficaria por conta da classificação usada pelo tráfico, substituindo o genérico afro.
Continuando o exercício, ficaríamos, então, com a seguinte locução: banto-iorubá-fula-
indígena-indo-européia-brasileira.
Em síntese, este tipo de caminho parece seguir a proposta de Arthur Ramos, para a
classificação étnica dos grupos africanos, reduzindo-as a dois grupos: os sudaneses
2
Existem alguns registros que apontam para a palavra “Pindorama”, segundo Teodoro Sampaio, do tupi pindó-
rama ou pindó-retama, “a região ou o país das palmeiras”) que teria sido a forma como os povos ando-peruanos
e as populações indígenas pampianas davam ao território que passou a ser chamado de Brasil.
3
A figura do “bandeirante” ou do “capitão do mata”, predador destes povos e culturas, passou para a nossa
história como ícone destemido, desbravador e pioneiro na ocupação da território brasileiro. Muitas vezes
enaltecido como auxiliar no empreedimento civilizatório e religoso cristão de salvar almas.
634
(basicamente iorubas ou nagôs e jêjes) e os bantos (angolas, congos, cambindas, benguelas
etc.). Embora, um pouco mais ampliada e mais específica, no entanto, sempre aquém de uma
precisa representação deste universo religioso. Seguindo tal caminho terminológico, em busca
de rigor, poderiamos chegar a conclusão de que, diante de tantas dificuldades, estas religiões
seriam, ao fim e ao cabo, inclassificáveis. Se, entretanto, recusarmos este último adjetivo,
poderíamos ser tentados a adotar a posição conformista de manter a atual nomenclatura,
mesmo que arcaica, imprecisa e insuficiente. Vamos agora investigar como teria surgido
aquela locução.
635
interesses êmicos e éticos em busca de prestígio e poder, tais estudos se contaminaram com
pseudo-categorias de superioridade e inferioridade associadas, respectivamente, a uma
suposta pureza africana e a uma suposta degeneração das religiões mestiças (interpretadas
como brasileiras).
Bastide, neste quesito, foi pródigo em adjetivos. Sua obra elegeu o rito nagô como modelo,
seguindo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, procurou defendê-lo como puro, assim o
candomblé passou a ser descrito como um sistema harmonioso de participações, muito
próximas das suas origens africanas, de valores tradicionais e comunitários pré-capitalistas.
Do lado oposto, seguindo ainda Arthur Ramos, classificou de cultos degenerados, misturados
ou sincretizados, notadamente a macumba carioca de origem banto e a umbanda, sua
sucessora. Para ele, estes cultos misturados resultavam da degradação da ordem social das
grandes cidades, e claro, o Rio de Janeiro e São Paulo eram exemplos deste fato. Para ele,
Por outro lado, para fazer frente à perseguição policial e religiosa católica, Mãe Aninha do
Axé Opó Afonjá criou, em 1937, os doze Obás de Xangô, título honorífico concedido aos
amigos e protetores do terreiro. Assim, arregimentou simpatias e adesões, tanto de intelectuais
como de personalidades influentes da sociedade, articulados em defesa destes candomblés. A
conjugação destes fatos, somados à defesa de intelectuais diretamente ligados à fundação da
antropologia e sociologia brasileira, levaram uma concentração dos estudos acadêmicos dos
candomblés nagôs. Esta preferência foi chamado posteriormente de nagocentrismo4 dos
estudos afro-brasileiros. Suas repercussões seriam sérias o suficiente para Dantas alertar que,
4
Este processo foi objeto de análise de Beatriz Dantas na obra Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da
África no Brasil de 1982. Trouxe à tona o tema dos limites éticos da relação entre pesquisador e comunidade
nativa, como também o debate sobre a neutralidade da produção científica ou os limites entre posições êmicas e
éticas, tão cara à metodologia das Ciências Humanas, principalmente, da Ciência das Religiões. Tais estudos se
concentraram principalmente no Ilé Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca-Engenho Velho), Ilé Iyá Omi Axé Iyámase
do Gantois (Terreiro do Gantois) e Ilé Axé Opó Afonjá (Opó Afonjá).
636
nas linhas seguidas pela repressão policial que, ao menos temporariamente, ajustará o eixo
de legal/ilegal ao eixo da Religião/Magia (DANTAS, 1982, p.192).
Nas análises acadêmicas sobre este campo religioso, um desvio metodológico frequente, é
extrapolar conclusões de um caso particular para a totalidade das religiões ou para um dos
seus segmentos. Alguns estudos sobre a Umbanda mostram que este tipo de construção,
5
viciosa, sancionou um mito de fundação produzido por um pequeno grupo do Rio de
Janeiro, ligado a Zélio Fernandino de Moraes. O trabalho da brasilianista Diana Brown,
Umbanda - Politics of an urban moviment de 1974, publicado parcialmente no Brasil sob o
título de Uma história da Umbanda no Rio, fez essa função. Apesar de no capítulo intitulado
“A Fundação da Umbanda”, dizer:
Não posso estar totalmente certa de que Zélio de Moraes, foi o fundador da Umbanda, ou
mesmo que a Umbanda tenha tido um único fundador […] A historiografia da Umbanda é
extremamente imprecisa sobre este aspecto,e, fora deste contexto, a história de Zélio não é
amplamente conhecida nem tampouco ganhou uma aceitação geral[...] (BROWN, 1985,
p.10)
5
Segundo Rivas Neto, a palavra Umbanda é uma palavra de origem angola, não descende de quimbanda e não é
brasileira. Vide Rivas Neto. Disponível em <http://sacerdotemedico.blogspot.com.br/2013/08/umbanda-de-
todos-nos-umbanda-e-africana.html>. Acesso em 16 de ago. 2013.
6
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3003200805.htm>. Acesso em 17 de ago. 2013.
637
FOLHA - Qual o papel do Zélio de Moraes na construção da umbanda? BROWN -
Ele e seu grupo conseguiram promover a imagem dessa umbanda que foi chamada de
umbanda branca. Foi um esforço para embranquecer e modernizá-la. O papel dele é
simbólico, foi o porta-voz dessa ‘nova’ umbanda.
FOLHA - O fato de ele ter recebido em 1908 o Caboclo das Sete Encruzilhadas
significou uma ruptura com o kardecismo? BROWN - Eu não diria isso. Para ele [Zélio
de Moraes] foi uma ruptura, mas era mais uma expressão do ecletismo que já existia. Foi
esse caboclo quem falou para o Zélio que ele seria o fundador, mas antes já existiam
caboclos e a prática de religiões africanas. Era uma grande mistura.
638
De modo geral, as teses apresentadas a este congresso revelam o mesmo objetivo: provar
que a Umbanda era uma religião oriental, de feição mágico iniciática que florira em época
remotíssima, mas sofrera uma síncope prolongada, de muitos séculos, ao atravessar as
regiões negras da África, durante a qual teve a pureza de seus princípios maculada pela
ignorância do selvagem […] (D´ALCANTARA,1949 Apud BROWN, 1985, p.89).
A posição diante do sincretismo parece ter sido uma das razões da divisão no terreiro de
onde provém o casal Santos. De fato, Mãe Stella, ialorixá do Axé Opô Afonjá de Salvador,
foi a primeira a se opor ao sincretismo, condenando o culto do caboclo, que era
extremamente difundido, mesmo em terreiors ‘tradicionais’, como culto não-africano. Sua
posição foi contestada por outros terreiros e pela INTECAB, que defende o culto ao
caboclo, pois ele representa o ‘dono da terra de nosso Brasil’ (Siwaju, 1991, p. 2). Segundo
Ordep Trindade Serra (1995, p. 63-64), que visivelmente toma partido de Mãe Stella, se
esta não está de acordo com a linha política do INTECAB, é porque seus ‘irmãos de fé’ (o
casal Santos) propõem uma organização dos cultos de origem africanas sob a autoridade
dos iorubás. O autor conclui afirmando que ‘a produção ideológica’ do casal Santos não
unanimidade entre os nagôs da Bahia, nem mesmo nos terreiros que eles consideram os
mais representativos da ‘tradição pura’ (63-64). Evidentemente, está em jogo aqui a
linderança sobre os cultos afro-brasileiros (CAPONE, 2004, p.320).
Para fechar este capítulo, não seria demais lembrar, as terríveis tragédias produzidas por
conflitos étnicos ao longo da história da humanidade. A distância entre étnico e etnocentrismo
parece-nos perigosamente pequena. Entendo que grupos etnocêntricos são exacerbações de
uma identidade étnica particular que radicalizam suas fronteiras, tendem a produzir ortodoxias
e a produzir enquistamentos culturais e religiosos. Inclinam-se ao extremismo, construindo
em seu repertório retórico um arsenal de rancor, amargura e intolerância, justificando-o como
necessário para alguma finalidade de pureza, de resgate de alguma tradição. Neste último
aspecto, Carneiro da Cunha é incisiva ao afirmar, “[...] grupos étnicos são formas de
organização que respondem às condições políticas e econômicas contemporâneas e não
vestígios de organizações passadas” (CARNEIRO DA CUNHA, 2009, p. 230).
O povo brasileiro é mestiço, uma composição indissociável de etnias que não pode ser
reduzida ou representada por qualquer uma das singularidade que a compõem. Portanto, falar
639
no povo ou na cultura brasileira, implica necessariamente compreender estas raízes em que
foram produzidas diferentes hibridações e sínteses que emprestam os sinais mais específicos
de nossa identidade, não homegênea, mas diversa. Não somos monocromáticos ou bicolores,
somos policromáticos, na tez, nas culturas e nas religiões. Sim, a dimensão religiosa brasileira
espelha as nossas raízes étnicas, suas hibridações e sínteses.
Entedemos, por outro lado, que tais assimetrias espelham também os diferentes contextos
históricos em seus aspectos sociais, culturais, econômicos e geográficos (população, clima,
topografia, vegetação, disponibilidade de alimentos e condições de isolamento) das diferentes
regiões brasileiras em seus diferentes ciclos migratórios e imigratórios além dos econômicos:
extrativismo, cana-de-açúcar, pecuária, da mineração, do café, da borracha, da
industrialização e na urbanização brasileira. Sem esquecer da diversidade de destinos das
diferentes etnias africanas nos diferentes momentos do tráfico de escravos. Assim, a
diversidade religiosa do Norte e Nordeste brasileiros, onde foi marcante a presença de
elementos de tradições indígenas e africanas banto e mina-jeje, que produziram as diversas
Pajelanças, Catimbós, Tambor de Mina, Terecôs, ou das diversas Encantarias na região do
Maranhão, reunindo elementos miscigenados de diferentes tradições africanas, indígenas e do
catolicismo popular, por exemplo, não têm as mesmas características do encontro destas
mesmas três matrizes na região Sul ou Sudeste com maior presença de povos bantos e
7
Importante frisar que toda a tipologia é antes de tudo um modelo teórico, um recurso didático para a
compreensão da complexidade da realidade. Portanto, este modelo não nega a possibilidade de diferentes
hibridações, aproximações e mesmo convivência entre diferentes ritos em uma mesma casa espiritual.
Nossavivência neste campo religioso, de mais de vinte anos, mostraram-nos que, em muitos terreiros, seus
condutores têm dupla pertença: tocam para o Candomblé e para a Umbanda, por exemplo.
640
sudaneses embora os Batuques podem ter mistura de várias nações: oyó, ijexá, jeje, cabinda,
nagô, por exemplo . A Macumba, Kimbanda e Umbanda, com fortes influências banto, angola
e nagô, além do catolicismo popular. Claro que os fluxos migratórios entre as diversas regiões
deste país continental foram e são ainda, também, deslocamentos culturais e religiosos. A
título de exercício podemos imaginar que o Tambor de Mina, surgido no Maranhão, ao migrar
para São Paulo irá ganhar outras cores e novos sentidos com o passar do tempo e termine
provavelmente influenciando outras escolas espirituais, como também, sua escola de origem
no Maranhão.
Considerações finais
641
diversidades e pluralidades em construção? Essa era a minha pergunta inicial, dada as
insuficiências do termo afro-brasileiro, que tem uma carga e um caráter muito localizado no
tempo e espaço. É fato que este campo religioso em sua formação e desenvolvimento segue a
formação do nosso povo e de nossa cultura, que não é monocultura, portanto, não pode negar
as suas raízes ameríndias, africanas e indo-européias. Não podemos negar a língua
portuguesa, mas a nossa língua, o falar brasileiro, segundo Yeda Castro (2012), é um
português colonizado por africanos e ameríndeos, mas não é nenhum deles ao mesmo tempo,
é brasileiro. Tal qual a língua ritualistíca deste campo, que não é iorubá, quicongo,
umbundo,quimbundo, fon, gun, ewe-fon, etc. , mas uma líguagem mestiça. Por exemplo, em
África não existiu candomblé, que aliás vem de uma palavra banto - povos que cultuavam os
inquices e não os orixás (nagôs e iorubás). Julio Braga, doutor em antropologia e sacerdote
Mogbá Sàngó e diretor geral do Instituto Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) de Salvador,
com lucidez impar, esclarece esta questão:
Certo é que diferentes variantes do candomblé, quaisquer que sejam os distanciamentos das
matrizes de origem, estão estruturalmente comprometidas com complexos e complexos
valores religiosos africanos. Contudo, em nenhum caso, até mesmo para os chamados
candomblés tradicionais ou mais tradicionais, verifica-se uma reprodução de uma
determinada organização religiosa africana. O que parece ter acontecido, ao considerar a
grande diversificação do continuum religioso afro-brasileiro, foi um processo de
redefinição da herança religiosa fazendo surgir uma estrutura de base, já nacional, ou
nacionalizada, capaz de, preservando elementos de origem, redefiní-los em muitos casos, e
permitindo que outros valores não-africanos se incorporassem e, no encontro entre eles,
emanasse um sistema de crenças que motiva e anima as comunidades religiosas afro-
brasileiras. Assim é que os candomblés sintetizam diferentes valores culturais ao formar
uma complexa organização socioreligiosa, que não encontra paralelo em nenhuma das
sociedades africanas comprometidas com o tráfico de escravos para o Brasil. Muitos dos
sacerdotes que foram à África em busca de novas informações para enriquecer seus
conhecimentos litúrgicos, por curiosidade ou simples desejo de uma aproximação com as
origens dos cultos, voltaram com alguma decepção. Acontece que não encontram nenhuma
estrutura religiosa que se aproxime ou pudesse ser tomada como modelo para as suas
próprias casas de culto para as diferentes divindades de origem africana. (BRAGA, 2006, p.
123).
No Santo não há nada puro, mas alguns discursos étnicos de pureza. Então, como tudo isto se
formou aqui no Brasil e aqui pisa, vive e respira. Parece-nos melhor chamar de religiões
brasileiras ou do Brasil, porque todas elas merecem a cidadania brasileira, por que forjaram a
nossa cultura e o nosso espírito.
642
Referências
BROWN, Diana. Uma História da Umbanda no Rio. In: BROWN, Diana; NEGRÃO,
Lísias et al (orgs). Umbanda e política. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
RIVAS NETO, F. . Escolas das Religiões Afro-brasileiras: tradição oral e diversidade. São
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RIVAS, Maria Elise. O mito de origem: Uma revisão do ethos umbandista no discurso
histórico. Disponível em <http://ftu.edu.br/producoes-
academicas/monografias/monografias.html> Acesso em 16 de ago. 2013.
643
644
O catimbó de ontem não é apenas a Jurema de hoje:
(in)visibilidade da tradição em um culto das Religiões Afro-
brasileiras
João Luiz Carneiro1
Introdução
O Catimbó vem sendo pesquisado desde meados do século XX como uma tradição afro-
brasileira marcadamente nordestina. Inicialmente, sua prática ritual influenciou a Jurema e,
com o passar do tempo, a segunda praticamente incorporou a primeira.
Sendo assim, na primeira parte deste artigo, abordarei as características principais do Catimbó
e seu estabelecimento no culto de Jurema. Tal associação é tão intensa que um e outro são
considerados como a mesma expressão religiosa.
1
Doutorando em CRE pela PUC/SP, mestre em Filosofia pela UGF-RJ. Docente da FTU. Pesquisa de doutorado
financiada pela CAPES. Contato: joaocarneiro@ftu.edu.br.
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mestres invisíveis, sua ciência, simbolizando ao mesmo tempo, morte e renascimento
(SALLES, 2012, p. 192-193).
Um importante ponto de partida para compreensão dessa escola umbandista está em Roger
Bastide.
[...] da Amazônia às fronteiras de Pernambuco será domínio do índio. Foi ele quem marcou,
com profunda influência, a religião popular, pajelança no Pará e na Amazônia,
encantamento no Piauí, catimbó ou cachimbo nas demais regiões. O negro importado
integrou-se nesta religião [...] O primeiro esboço do catimbó aparece nas próprias origens
da colonização, onde toma o nome de santidade2. [...] Centralizava-se esse culto num ídolo
de pedra, chamado Maria, e dirigido por um ‘papa’ e uma ‘Mãe-de-Deus’; entrava-se para
esse culto por uma espécie de inciação, simples cópia do batismo católico, e todo o
cerimonial constituía um sincretismo bastante desenvolvido de elementos cristãos
(construção de uma igreja para adoração do ídolo, porte de rosários e de pequenas cruzes,
procissões de fiéis, os homens na frente e as mulheres com seus filhos atrás) e de elementos
indígenas (poligamias, cantos e danças, uso do tabaco, ‘a erva sagrada’, à moda dos
feiticeiros indígenas: tragava-se a fumaça até a produção do transe místico, que se chamava
precisamente o espírito da santidade) (BASTIDE, 1971, p. 243-244).
No caso da santidade, fazendo alusão ao triângulo sugerido por Rivas Neto (cf. Rivas Neto,
2012) para explicar a formação das escolas afro-brasileiras, penderia para o lado indo-
europeu e indígena. Ainda sim o culto do espírito da santidade tem muita proximidade da
prática umbandista, tal como Maria Elise Rivas (2008) apresentou as relações com Juca Rosa
e João de Camargo. Naturalmente, que a mesma descrição está igualmente próxima da prática
da jurema.
2
Sobre a santidade, Bastide (1971, p. 243) evoca a fontede tal culto na Bahia. Contudo, reconhece que a
santidade acontecerá em vários locais do Brasil. No caso de São Paulo, como exemplo, cita Alcântara Machado
com o livro “Vida e Morte do Bandeirante”, quando na página 212 a santidade é conhecida pelo nome de
“caramoinhaga”.
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Roger Bastide (1971, p. 244) vai colocar o culto indígena dos caboclos como o mediador da
extinta santidade para o catimbó. Na festa da jurema ou ajuá, influência clara dos ameríndios,
os elementos católicos começam a influenciar e ofertarão os contornos mais presentes nos
cultos umbandistas nordestinos atuais. Por exemplo, os cânticos sagrados de abertura: “Abre-
te, mesa. Abre-te, ajucá. Abri-vos, portais. E balcão reais. Abri-vos, portais, balcões e
pavilhões reais3” (BASTIDE, 1971, p. 247).
O elemento negro também está muito presente. Roger Bastide (1971, p. 250-253) cita as
figuras de Pai João, Pai Joaquim, Pai Ignácio4 como um dos principais mestres negros que
estão presentes no catimbó. Interessante na descrição do Pai Joaquim é que na linha desses
mestres negros a palavra asquimbama, termo de influência africana, está sempre presente.
Sobre esta palavra “penso que é uma corruptela de ‘t’chinbanba’ em ambundo, feiticeiro,
médico, pajé” (BASTIDE, 1971, p. 251). Se a relação de Bastide estiver correta, pelo menos é
bem lógica, essa palavra está na mesma raiz de mbanda com igual significado de feiticeiro
(CHATELAIN, 1894).
Luiz Assunção muda um pouco a lógica de Bastide ao analisar aquilo que o primeiro iria
tratar como umbanda do sertão nordestino. “Inicialmente, apontamos para a necessidade de
compreender o culto da ‘jurema’ em um espaço definido como de umbanda, uma religião com
princípios organizacionais buscando legitimidade social” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 208).
3
Luiz Assunção (2010, p. 87) encontrou na pesquisa de Gonçalves Fernandes um cântico sagrado de abertura
muito parecido: “Abre-te mesa, Abre-te ajucá, Abre-te cortina, Cortina Reá! Vem vê o mestre De Espirauá! De
Espirauá! De Espirauá!” (FERNANDES, 1938, p. 90-91)
4
Esses termos e suas características estão muito próximos ao arquétipo de “preto-velho” da umbanda popular.
Nas umbandas cariocas era muito comum a existência de pretos-velhos “quimbandeiros” que possuíam uma
postura e ação ritual parecida com a descrição ofertada por Bastide (1971, p. 251).
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Sua abordagem dá mais voz (e atenção) ao insider.
Para reforçar essa percepção no campo de pesquisa, Luiz Assunção (2010, p. 113) evoca a
fala de Seu Antônio Cau (Sousa-PB), localizado no interior da Paraíba onde afirma
explicitamente sua pertença umbandista.
A jurema, no discurso do insider pesquisado por Assunção (2010, p. 113-122)5, vai ocupar no
espaço umbandista várias funções: fundamento religioso, lugar da natureza natural e
sobrenatural, entidades espirituais (mestres e caboclos), magia para o bem ou mal, linha de
umbanda.
A mesa de jurema, mais tradicional, se desenrola como uma sessão de consulta, atendendo os
necessitados de forma mais restrita, normalmente envolvendo a salva 6 que normalmente visa
fazer ou desfazer uma macumba no sentido de trabalhos mágicos (ASSUNÇÃO, 2010, p.
190). No relato de Seu Joaquim Matias (Juazeiro do Norte-CE), atuavam grandes mestres:
“Mestre Arranca Toco, Carlos, Benvenuto, Antônio, Joaquina, Pereira, Paulo, Bernadina,
Tertuliano, Zé Pilintra”; e depois: “Era muita força. Tinha vela branca, copo com água, as
princesas, santos, Santa Bárbara, São Jorge. A mesa era bem preparada. (...) Os mestre
5
Além do Sr, Antônio Cau, Luiz Assunção utiliza o conhecimento religioso de: Seu José Júlio Laurindo
(Salgueiro – PE), Dona Cícera dos Santos (Juazeiro do Norte – CE), Zezé Homem de Oxóssi (Juazeiro do Norte
– CE), Mãe Quinha (Sousa – PB), Dona Francisca Alves (Picos – PI), Dona Inácia Gabriel Carrido (Sousa – PB),
Pai Levino (Patos – PB), Maria do Carmo Ferreira dos Santos (Patos – PB), Seu Alberto (Patos – PB).
6
Pagamento pelos serviços mágico-religiosos.
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baixavam e ia um por um consultar aquelas pessoas necessitadas” (ASSUNÇÃO, 2010, p.
191).
Concluindo sua pesquisa, “[...] fizemos um caminho à procura do culto da jurema no sertão
nordestino, mas à medida que o procurávamos, íamos descobrindo a umbanda em suas formas
diversas e surpreendentes” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 267). Nas páginas seguintes arremata:
Não há uma ‘absorção’ dos cultos populares por parte da umbanda, como que eliminando a
religiosidade; pelo contrário, apesar de se apresentar com a cara da umbanda, por trás
encontram-se os elementos principais do culto da jurema, fazendo-o continuar de alguma
forma. É no contexto da umbanda, que as práticas religiosas populares, como o culto da
jurema, por serem marginalizadas, estereotipadas e ideologicamente perseguidas,
encontram respaldo e espaço para afirmação de suas práticas (ASSUNÇÃO, 2010, p. 269).
A umbanda esotérica
O termo umbanda esotérica pode ser encontrado desde o século passado em registros escritos.
No livro, com cunho religioso, de Oliveira Magno (1962), por exemplo, recebeu o título
Umbanda esotérica e iniciática8, no que pese não entrar em questões internas da doutrina
umbandista, parecendo muito mais uma escolha estética do que preocupado com o conteúdo.
Outro exemplo de uso vem de Osório Cruz que 1954 publicou o texto O esoterismo de
umbanda.
Aspectos que evocam questões da umbanda esotérica foram discutidos em 1941 por
Diamantino Coelho durante o Primeiro Congresso Nacional de Umbanda (ANON, 1942). Na
ocasião, Coelho era delegado da Tenda Espírita Mirim, fundada na década de 20. Outros
7
Cf. Carneiro, 2012.
8
Provavelmente a primeira a edição foi publicada em 1950. Contudo, não foi possível localizar em nenhum
acadêmico de referência essa citação, bem como na biblioteca nacional. Na rede mundial de computadores a data
atrelada à primeira edição é esta, porém fora extraída de sítios eletrônicos com referências duvidosas.
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autores no referido congresso fazem uma ou outra alusão às origens da Umbanda em
primevos tempos.
Matta e Silva (2004), na primeira parte da obra, apresenta uma definição de umbanda como
uma religião primeva. O termo se originaria de antigos alfabetos primitivos, notadamente o
alfabeto adâmico ou vatan.
No que diz respeito ao mito da umbanda ser uma tradição primeva, outros contemporâneos
também abordaram o assunto (ANON, 1942). Contudo, Matta e Silva faz uma pesquisa
detalhada em linguistas e esoteristas, por exemplo, Sant-Yves d’ Alveydre, e suas conclusões
apresentam ângulos novos sobre esse mito.
Ainda na primeira parte, o segundo capítulo apresentará uma abordagem sobre as sete linhas
de umbanda relacionando-as com os sete orixás principais dessa escola. A capacidade de
sistematizar essa abordagem das sete linhas fora reconhecido por alguns acadêmicos 10. Sua
teologia propõe sete linhas: “Vibração de Orixalá (ou Oxalá), Vibração de Yemanjá, Vibração
de Xangô, Vibração de Ogum, Vibração de Oxossi, Vibração de Yori11, Vibração de
Yorimá12” (MATTA E SILVA, 2004, p. 93).
Cada linha comporta sete legiões. Cada legião possuiria quarenta e nova “Orixás Chefes de
Falanges” e, esses últimos, trezentos e quarenta e três “Orixás Chefes de Subfalanges”. Por
sua vez coordenam os “Guias” e “Chefes de Agrupamentos”, estando no último nível os
9
Seu nome sacerdotal é Mestre Yapacany.
10
ORTIZ, 1991, p. 78.
11
Nas umbandas populares, Yori se relacionaria com o orixá Ibeji.
12
Nas umbandas populares, Yorimá se relacionaria com o orixá Obaluayê.
650
“Protetores” (MATTA E SILVA, 2004, p. 106-107). Essa hierarquia das entidades que atuam
na umbanda funciona como um complexo sistema totalmente interligado.
Matta e Silva, ao usar seu mediunismo, trabalhava com Pai Guiné, entidade reconhecidacomo
preto-velho. Também trabalha com o Caboclo Juremá. Além de outros guias espirituais.
Avançando nos conhecimentos religiosos apresentados no livro, Matta e Silva (2004, p. 155-
302) vai apresentar na segunda parte do livro métodos de aplicação desse conhecimento
exposto na primeira parte.
A começar pela forma e apresentação dos espíritos na umbanda com cada uma das sete linhas.
Também se preocupa com a mediunidade na Lei de Umbanda associando aos aspectos
inconscientes e semi-conscientes. Faz uso de autores do kardecismo, especificamente dois
muito conhecidos na religião: Chico Xavier e Edgar Armond. Também evoca os
conhecimentos do oriente, lançando mão de conceitos como prana e chakras.
Os banhos de ervas e as conhecidas defumações também são descritas com detalhes (MATTA
E SILVA, 2004, p. 207-230). Um ponto interessante é a sua discussão sobre a escrita sagrada,
conhecida nos terreiros de umbanda com o nome de Lei de Pemba, pontos de pemba ou
pontos riscados (MATTA E SILVA, 2004, p. 238).
O interessante da lei de pemba é a sua relação com a escrita primeva das antigas civilizações.
Isso demonstra uma maior interação das religiões afro-brasileiras não só com a escrita, mas
também com a escrita ao longo da história.
A questão da iniciação, fator tão importante para as várias escolas das religiões afro-
brasileiras, ganho um capítulo inteiro para a argumentação de Matta e Silva (2004, p. 253-
302). A função do sacerdote na transmissão do conhecimento e preparação do neófito
(iniciando) é destacada. A mediunidade também ocupa um lócus importante nessa
transformação que o adepto da escola de umbanda esotérica passará.
651
Tudo é calcado na magia, no mito, na experiência ritual. O que naturalmente mostra a
preocupação do autor em apresentar um argumento coerente sobre umbanda para o público
geral, sem desmerecer a vivência templária. Pelo contrário, a valoriza.
A questão mágico-religiosa ganha força na terceira parte da obra. Seja falando de espíritos da
natureza, seja sobre a força criativa da mente humana. Finalmente apresenta Os Sete Planos
Opostos da Lei de Umbanda (MATTA E SILVA, 2004, p. 317-336). Ao contrário da
umbanda branca que localizou o exu de forma marginal, quando não excluída dos seus ritos
no início do século XX, Matta e Silva vai alça-lo à condição de significativa importância.
Chama esse conjunto de planos opostos como Quimbanda13. Assim como existem os sete
planos onde atuam os orixás, a quimbanda “é composta de Sete Planos Opostos ou Negativos
da Lei, geradores do equilíbrio entre o que está em cima e o que está embaixo, ou, em sentido
esotérico, ‘uma paralela atuante’” (MATTA E SILVA, 2004, p. 318).
Daí a distinção da umbanda para quimbanda, segundo Matta e Silva. Se nas umbandas cristãs
coloca-se o bem para a primeira e o mal para a segunda, na umbanda esotérica as duas estão
em equilíbrio. Após discorrer sobre a epistemologia e método da umbanda esotérica, essas
considerações do autor permitem concluir que, no campo da ética, a categoria que pode ser
utilizada com maior proximidade do seu pensamento é a justiça destituída da noção
maniqueísta.
Esse estilo de vida (ética) da umbanda esotérica não pode ser confundido como a inexistência
de processos mais contundentes14 ou o contato constante com consulentes que sofrem
problemas de ordem mágica. Durante as várias obras de Matta e Silva, a questão é trazida e
tratada com veemência.
Se a obra fala muito do pensamento do autor, seus discípulos demonstram como essas ideias
se concretizaram e perduraram, ou não. Ainda existem alguns discípulos que foram iniciados
por Matta e Silva e que servem de fonte fidedigna da parte prática dessa escola.
13
A utilização do termo “quimbanda” para os rituais de exu não é diferente da maneira como a maioria das
umbandas denomina.
14
Sobre médiuns que não cumprem com seus compromissos espirituais e sociais no que diz respeito à sua
comunidade de santo, é comum a retaliação dos exus ou aquilo que o senso religioso convencionou de “força de
pemba”.
652
A escolha de pesquisa foi Francisco Rivas Neto. A mesma se dá por dois motivos. O primeiro
por ser seu sucessor, após a realização de um rito específico no final da década de 80 com
essa finalidade. Além disso, Matta e Silva deixou registrado em cartório tal transmissão.
Assim como seu mestre, Rivas Neto produziu uma extensa literatura que penetrou
profundamente o senso religioso umbandista15. Até o final de 2012 publicou as seguintes
obras, incluindo as já citadas: Umbanda a Proto-Síntese Cósmica, Umbanda – o elo perdido,
Lições Básicas de umbanda, O Arcano dos Sete Orixás, Exu – o grande arcano, Fundamentos
Herméticos de Umbanda, Cura e auto cura umbandista – terapia da alma, Sacerdote, Mago e
Médico – cura e auto cura umbandista, Escolas das Religiões Afro-brasileiras: Tradição
Oral e Diversidade.
Sobre o contato com a T.U.O. emItacurussá (RJ), Rivas Neto afirma categoricamente:“A
Tenda de Umbanda Oriental (T.U.O) era um humilde prédio de 50 metros quadrados. Sua
construção, simples e pobre, era limpra – e rica em Assistência Astral. Era a verdadeira Tenda
dos Orixás”(grifo do autor ) (MATTA E SILVA, 2004, p. 19)16.
Não obstante suas obras serem lidas não só por adepto, mas também por simpatizantes e
mesmo estudiosos das ditas Ciências Ocultas, seu Santuário, em Itacurussá, era frequentado
pelos simples, pelos humildes, que sequer desconfiavam ser o velho Matta um escritor
conceituado no meio umbandista. Em seu Santuário, Pai Matta guardou o anonimato, vários
e vários anos, em contato com a natureza e com a pureza de sentimentos dos simples e
humildes. [...] Embora atendesse a milhares de casos, como em geral são atendidos em
tantos e tantos terreiros por este Brasil afora, havia em seu atendimento uma diferença
fundamental: as dores e mazelas que as humanas criaturas carregam eram retiradas, seus
dramas equacionados à luz da Razão e da Caridade, fazendo com que a Choupana do Velho
Guiné quase todos os dias estivesse lotada... Atendia também aos oriundos de Itacurussá –
na ocasião uma cidade sem recursos que, ao necessitarem de um médico, e não havendo
nenhum na cidade, recorriam ao Velho Matta. Ficou conhecido como curandeiro (...) (grifo
do autor) (MATTA E SILVA, 2004, p. 15-16).
15
Em uma rápida busca pela rede mundial de computadores, é fácil comprovar como os terreiros e religiosos
fazem largo uso dos fundamentos explicitados nas obras de Rivas Neto.
16
Rivas Neto fora convidado pela família de Matta e Silva para escrever uma introdução que seria veiculada, a
partir de então, em todas as edições das obras. Por esse motivo que as citações dele foram encontradas em livros
de Matta e Silva.
653
Rivas Neto (1981, p. 46) também faz uma importante constatação quando comenta sobre os
jogos oraculares na umbanda. Foi Matta e Silva, seu mestre, oprimeiro a introduzir os
conhecimentos do Orixá OrunmiláIfá, responsável pelo destino dos homens, como um
método oracular umbandista próprio.
Atualmente, Rivas Neto é o responsável por tal escola de umbanda, fato que ocorreu no
referido rito de transmissão. Os rituais de umbanda esotérica não são mais realizados em
Itacurussá (RJ), tendo em vista que a Tenda de Umbanda Oriental encerrou as suas atividades
com a morte de Matta e Silva, mas a raiz esotérica continuou viva na Ordem Iniciática do
Cruzeiro Divino (OICD) localizada em São Paulo (SP). O terreiro em questão foi fundado por
Pai Rivas em 1969 e até hoje realiza giras de atendimento público. A OICD, no âmbito
administrativo do terreiro, em 2003, tornou-se a instituição mantenedora da Faculdade de
Teologia Umbandista.
A OICD, sob orientação da entidade Pai Guiné, ficou por sete anos após o falecimento de
Matta e Silva realizando os ritos nos moldes em que Rivas Neto aprendera com seu mestre.
Depois disso, são iniciadas mudanças gradativas no culto. Toda tradição é dinâmica e, nas
palavras de Pai Rivas, “a constante da tradição é a contínua mudança, logo a umbanda é uma
unidade aberta em construção” 17.
Talvez as mudanças mais significativas tenham sido as novas práticas mediúnicas que
passaram a se processar na OICD. A partir de vinte e oito de agosto de dois mil, tomando
como base sua passagem por várias escolas das religiões afro-brasileiras, Rivas Neto passa a
realizar os seguintes ritos quinzenalmente nas dependências do seu terreiro:
17
Comunicação pessoal.
654
Rivas Neto). TOQUE DO TRÍPLICE CAMINHO (presença das entidades denominadas
Crianças, Caboclos e Preto Velho, representando a pureza, fortaleza e sabedoria,
respectivamente) (RIVAS NETO, 2012, p. 67-68).
Ao construir tal escola, Matta e Silva, não negou as demais umbandas. Pelo contrário, faz uso
do conhecimento de várias linguagens religiosas e acadêmicas para estruturar outra forma de
se pensar e fazer tal religião. Sua forma de culto é até os dias de hoje praticada. Rivas Neto,
por sua vez, parte dessa construção de Matta e Silva e volta de novo para o complexo
religioso afro-brasileiro. Nesse teórico retorno, exemplifica na prática a existência de pontos
comuns na grande teia que são essas religiões.
Considerações finais
Existe uma capacidade de mudança da tradição afro-brasileira entre escolas próximas18, mas
também com escolas bem diferentes. Um caso interessante que merece destaque é o processo
de umbandização e suas consequências entre a jurema e a umbanda esotérica.
Ambas as escolas já não estão mais fechadas ao reduto de onde nasceram. Muitos terreiros na
região sul e sudeste praticam a jurema e existem terreiros, por exemplo, na capital federal, que
adotam o ritual da umbanda esotérica. Mesmo assim, o contexto histórico, geográfico e social
de suas origens geraram duas práticas rituais bem específicas. Por onde passaria, então, a
umbandização entre essas duas escolas?
Um ponto de ancoragem importante está em suas respectivas teologias. A Jurema admite uma
divisão inicial ternária de reinos: Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Josafá e o Fundo
do Mar (BASTIDE, 1971, p. 249). Na umbanda esotérica a divisão é setenária também, só
que de linhas: Orixalá (ou Oxalá), Yemanjá, Xangô, Ogum, Oxóssi, Yori e Yorimá (MATTA
E SILVA, 2004, p. 93). Considerando o senso religioso, Rivas Neto19 que fora iniciado na
encantaria do Pai Ernesto de Xangô (Babalorixá Obá Omolokan AdêOjubá) e Pai Matta e
Silva (Mestre Yapacany) afirma sobre a correspondência que pode ser feita entre ambas as
cosmovisões: Oxalá – Urubá; Yemanjá – Fundo do Mar; Xangô – Tigre; Ogum – Canindé;
Oxóssi – Juremal; Yori – Vajucá e Yorimá – Josafá.
18
Por exemplo, como já discorrido sobre a escola de síntese e a escola de umbanda esotérica.
19
Comunicação pessoal.
655
Ainda sobre a relação de reinos, orixás e entidades, vale lembrar que o caboclo responsável
pela linha de oxalá é o Caboclo Urubatão da Guia, nome que na raiz da palavra possui a
mesma origem de Urubá. Matta e Silva trabalhava com o caboclo Juremá de oxóssi,
exatamente o nome do reino da encantaria de igual correspondência com o orixá da entidade.
Tanto a umbanda esotérica quanto a jurema em seus primeiros rituais não utilizavam os
tambores. Seus pontos cantados possuem uma entonação e letra muito próximas também. Na
questão da música sacra, a umbanda esotérica estava mais próxima da jurema nordestina do
que de outras escolas, por exemplo, a umbanda branca, nascedoura na mesma região.
A relação de Matta e Silva com a comunidade local também lembrava muito a maneira como
os catimbozeiros e juremeiros do nordeste lidavam com o público geral como já exposto.
Nesses atendimentos, Matta e Silva fazia largo uso do cachimbo, lembrando a marca, como
instrumento mágico de cura, atração e repulsão de espíritos.
Essas aproximações entre catimbó e umbanda esotérica não são aleatórias. Matta e Silva
nasceu na cidade de Garanhuns-PE e, até mesmo por questões regionais, ao buscar as
religiões afro-brasileiras em sua terra natal foi influenciado pelo catimbó da região. Ao
mesmo tempo, em visita pessoal ao terreiro de jurema da Cabocla Jupiara da Mestra Natercia
de Araújo em Natal-RN, é possível ver uma clara distinção entre a umbanda esotérica e
jurema que, paradoxalmente, apresenta igual afinidade de alguns elementos mágico-
religiosos.
Talvez seja pela assimilação de cultos, na invisibilidade de quem acorre o terreiro, que o
Catimbó ganha forças e permanece firme nas tradições afro-brasileiras. Dentro e fora da
região nordeste do Brasil.
656
Referências
ASSUNÇÃO, Luiz.O reino dos mestres: a tradição da jurema na umbanda nordestina. Rio de
Janeiro: Pallas, 2010.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. v.1 e 2. São Paulo: Pioneira, 1971.
CHATELAIN, Heli. Folk-tales of Angola: memoirs of the American folk-lore Society. New
York : The American Folk-LoreSociety, 1894.
MAGNO, Oliveira. Umbanda Esotérica e Iniciática. Rio de Janeiro: Gráfica editora Aurora,
1962.
MATTA E SILVA, Woodrow Wilson. Umbanda de Todos Nós. São Paulo: Ícone, 2004.
__________. Jogo de Ifá: A vida através de búzios e dendês. In: Revista Planeta: Candomblé
e Umbanda. São Paulo: Editora Três, 1981.
SALLES, Sandro Guimarães de. O Clã do Acais. In: ASSUNÇÃO, Luiz. Da minha folha:
Múltiplos Olhares sobre as Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Arché, 2012.
657
658
O conceito de Escolas como garantidor da diversidade sem
prejuízo do fundamento: esoterismo e exoterismos nas tradições
espirituais afro-brasileiras
Thomé Sabbag Neto1, Rafael Gapski Moreira2
O conceito de escolas, proposto por Rivas Neto3, será o fundamento principal para a
abordagem crítica que se pretende fazer da diversidade religiosa, justamente porque, como se
demonstrará, oferece as notas essenciais mínimas do conceito de religião (escola em sentido
amplo) e de suas possíveis subdivisões autônomas (escola em sentido estrito), permitindo a
máxima diversificação de suas formas doutrinárias, éticas e método-vivenciais, mas ao
mesmo tempo exigindo a presença mínima de seus respectivos conteúdos: a verdade, o bem e
a eficaz realização e ritualização de ambos.
Válido tanto para as religiões em si mesmas quanto para todas as ramificações autônomas de
cada uma delas, o conceito estabelece os três pressupostos sem os quais não há religião em
sentido próprio: (a) doutrina, enquanto o conjunto de conhecimentos transmitidos através de
símbolos e conceitos, geralmente de índole metafísica, que perfazem uma determinada
cosmovisão, isto é, uma forma específica de o homem compreender a realidade; (b) ética,
enquanto o conjunto de valores aptos a orientar a vontade do homem para o cumprimento do
sentido de sua existência, promovendo um verdadeiro referenciamento existencial e um
efetivo aprimoramento das virtudes humanas; e (c) método, enquanto o conjunto de vivências
templárias, ritualísticas ou não, destinadas à realização espiritual do homem através da
verdade (doutrina) e do bem (ética) 4.
1
Graduado em Direito pela UFPR. Contato: tsabbagneto@yahoo.com.br.
2
Graduando em Engenharia Civil pela UFPR. Contato: rgapskim@gmail.com.
3
Nesse sentido: “nas Religiões afro-brasileiras ou afro-americanas, pela diversidade de seus adeptos, há também
uma diversidade de ritos e formas de transmissão do conhecimento. Essas várias formas do entendimento e
vivências das Religiões afro-brasileiras denominamos Escolas. As várias Escolas correspondem a alguns tipos de
visões, alguns deles voltados mais aos aspectos míticos e outros à ‘essência’ espiritual, abstrata. As várias formas
de interpretar e manifestar a doutrina são diferentes, mas a ‘essência’ de todas é a mesma, e, no caso da
Umbanda por exemplo, todas são legitimamente denominadas umbandistas” (RIVAS NETO, F., 2012, p. 25).
4
Em outros termos, toda religião/escola deve propor Métodos para a realização efetiva da Verdade e do Bem,
através de seus veículos idôneos: respectivamente, o Conhecimento e a Virtude. Nesse sentido: “Na constituição
natural do homem, o elemento Verdade é representado pelo Conhecimento e o elemento Presença, pela virtude;
o Conhecimento é a saúde da inteligência e a virtude, a saúde da vontade. O Conhecimento não é perfeito senão
659
Os três elementos constitutivos da religião/escola mantém evidente relação analógica com as
três dimensões fundamentais da personalidade humana (doutrina/mente, ética/volição e
método/ação) e nem poderia ser diferente, já que a religião, tanto quanto a filosofia, a ciência
e a arte, tem como finalidade a restauração da unidade espiritual do homem. A doutrina é o
domínio religioso em que predominam as atividades mentais (intelecção, razão, imaginação),
ao passo que a ética se destina à retificação da vontade e da afetividade (sentimento, emoção,
volição) e os métodos religiosos consistem invariavelmente em atividades que englobam a
corporeidade (ação, sensação, reação). É evidente, porém, que nos três domínios todas as
atividades da personalidade humana estão – e devem estar necessariamente – sempre
presentes.
Em termos mais simples, a religião, por sua própria natureza e finalidade, pretende realizar a
verdade e o bem ao nível do homem e isso já evidencia as três dimensões da religiosidade:
enquanto a verdade está associada à doutrina e o bem à ética, a realização de ambos
corresponde precisamente ao seu método.
Porém, assim como o homem é uma unidade anterior à tripartição de sua manifestação, os três
elementos constitutivos da religião têm como denominador comum – e ao mesmo tempo
como meta e razão de ser – a espiritualidade. Desse modo, assim como, no homem, deve
haver coerência integrativa entre a mente, a vontade e a ação, por todas estarem subordinadas
ao espírito, o mesmo se deve exigir da religião: doutrina, ética e método não podem ser
mutuamente contraditórias, devendo concorrer, coerente e solidariamente, para a realização
espiritual do homem.
graças a um certo concurso da virtude, e inversamente; é evidente que a inteligência bem aplicada pode produzir
ou reforçar a virtude, porque nos explica a natureza e a necessidade desta. É igualmente evidente que a virtude,
de seu lado, pode favorecer o Conhecimento, porque determina alguns modos deste” (SCHUON, F., 2010, p.
31).
660
A diversidade como justo meio entre o dogmatismo sectário e o relativismo complacente
com o erro
Com base no que se expôs acima, percebe-se claramente que o conceito de escolas promove
um equilíbrio razoável entre exigência (de conteúdos) e permissão (de formas): se, de um
lado, estabelece como obrigatório que haja um mínimo de realização substancial de verdades
e valores espirituais, de outro, é amplamente liberal no que diz respeito aos vários modos de
exteriorização formal de tais verdades e valores.
Além de todas as razões jurídicas, políticas e sociais que justificam a existência de uma
pluralidade de formas religiosas, há razões de natureza intelectual que a exigem
necessariamente. A importância da abordagem dessas últimas reside no fato de que os
arranjos jurídico-político-sociais são altamente instáveis e cambiantes, por estarem sempre
sujeitos a investidas autoritárias e a supressões de direitos, ao passo que, ao contrário, os
imperativos lógicos da razão gozam de estabilidade máxima e, por isso, não podem ser
revogados jamais.
Tais razões são basicamente duas: (a) do ponto de vista lógico-metafísico, é absolutamente
impossível que haja apenas uma forma idônea de veicular a mesma verdade (doutrina), o
mesmo valor (ética) e a mesma eficácia vivencial (método), pois toda forma é, por definição,
necessariamente limitada e portanto relativa; e (b) do ponto de vista metodológico-
teleológico, é inverossímil – caso não seja inteiramente impossível – que todos os homens e
grupos humanos sejam igualmente afins a apenas uma forma religiosa, isto é, a um arranjo
661
único entre doutrina, ética e método vivencial; então, para que a finalidade da religião seja
alcançada para todos os homens e não apenas para alguns, é imprescindível que esta se adapte
otimamente às peculiaridades específicas da mentalidade, das disposições comportamentais e
até das afinidades estéticas de cada grupo humano considerado.
Em outros temos, é logicamente necessário que haja diversidade formal (isto é, de meios de
expressão e de realização de ideias, valores e métodos), pois a própria definição de forma
exige que ela sempre possa ser substituída por outra equivalente, já que tal definição é
necessariamente destituída dos atributos de exclusividade ou absolutez. Por isso, é
absolutamente vedado a uma determinada forma linguístico-doutrinal reivindicar só para si a
verdade que ela veicula6, assim como, também, um determinado arranjo ético-formal não
pode avocar somente a si mesmo a dignidade dos valores materiais por ele traduzidos e
garantidos: primeiro, porque tais formas são meros instrumentos e, ademais, porque não são
os únicos instrumentos possíveis e idôneos para se alcançar o mesmo fim.
Sendo assim, nenhuma forma religiosa específica pode legitimamente pretender conter com
exclusividade determinado conteúdo religioso (doutrinal, ético ou vivencial, não importa).
Além disso, todo meio de expressão (forma) sempre implica alguma perda ou insuficiência
em relação à totalidade e absolutez daquilo que se expressa (conteúdo), pois toda expressão é,
no fundo, uma tradução; porém, diferentes expressões podem ter limitações diferentes, isto é,
em aspectos distintos, já que a mesma coisa pode ser contemplada a partir de várias
perspectivas (já que ela mesma é diversa e complexa), dando-se mais ou menos ênfase a esse
5
O termo forma não tem, aqui, o sentido aristotélico de logos (quando se opõe dialeticamente a matéria), isto é,
do conjunto de características essenciais que conferem identidade a determinada coisa e que a faz pertencer à sua
espécie, mas sim o de aparência exterior (que se opõe conceitualmente ao termo conteúdo). Há, por exemplo,
muitas formas diferentes de dizer que o livro está sobre a mesa: O livro está sobre a mesa, O livro está em cima
da mesa, Há um livro sobre a mesa, The book is on the table etc.
6
Nesse sentido: “A pretensão exotérica de detenção exclusiva de uma verdade única, ou da Verdade sem epíteto,
é assim um erro puro e simples; na realidade, toda verdade exprimida reveste-se necessariamente de uma forma,
a da sua expressão, e é metafisicamente impossível que uma forma tenha um valor único à exclusão de todas as
outras formas; pois uma forma, por definição, não pode ser única e exclusiva, ou seja, uma forma não pode ser a
única possibilidade de expressão daquilo que ela exprime; quem diz forma, diz especificidade ou distinção, e o
específico só é concebível como modalidade de uma espécie, portanto de uma ordem que engloba um conjunto
de modalidades análogas” (SCHUON, F., 2010, pp. 33-34).
662
ou àquele aspecto seu. Isso também justifica a diversidade religiosa, por demonstrar
cabalmente a vantagem de que existam múltiplos arranjos de tradução, cada qual enfatizando
aspectos distintos da realidade traduzida.
Todas essas diferenças, que estão muito longe de poderem ser consideradas desprezíveis ou
insignificantes, acabam por estabelecer tipos ou perfis humanos, conforme as predominâncias
acima referidas. Cada perfil, evidentemente, terá maior afinidade com a religião/escola que
esteja melhor adaptada às suas peculiaridades, individuais e culturais.
7
Ora, se há diversidade intrínseca a cada um dos conteúdos relevantes à religião, se há diversidade nos
mecanismos de tradução e expressão formal desses mesmos conteúdos e se, finalmente, há diversidade entre os
homens e grupos humanos aos quais a religião se destina, é evidente e inquestionável que nada, absolutamente
nada, pode justificar o simplismo audacioso do dogmatismo sectário e exclusivista.
8
Tais predominâncias é que estão na base da setorização do Yoga hindu em três escolas ou métodos principais: o
Jnana-Yoga (Yoga do Conhecimento ou da Contemplação), o Bhakti-Yoga (Yoga da Devoção) e o Karma-Yoga
(Yoga da Ação ou da Realização).
663
Os mitos da superioridade e da pureza
O dogmatismo sectário, por seu caráter exclusivista e excludente, é a causa de dois mitos
muito fortemente arraigados nos setores religiosos ortodoxos e fundamentalistas: (a) o mito da
superioridade de uma forma religiosa sobre as demais, consistente na ideia de que a forma
superior reúne eficácia e vantagens doutrinais, éticas e método-vivenciais supostamente
ausentes em todas as outras; e (b) o mito da pureza, consistente na ideia de que qualquer
síntese entre formas religiosas distintas, mesmo quando feita de forma criteriosa e razoável,
implica necessariamente uma suposta redução de sua aptidão e eficácia em promover a
espiritualidade.
664
A diversidade como prevenção e solução ao dogmatismo sectário
Se, por um lado, o conceito de “escolas” é maximamente permissivo no que diz respeito às
formas doutrinárias, éticas e método-vivenciais, por outro, ele exige: (a) a observância de
conteúdos mínimos, precisamente aqueles que se referem às notas essenciais que definem a
religiosidade: a verdade doutrinal, o bem ético e a eficácia metodológico-vivencial
(ritualística e não-ritualística); e (b) a conformidade harmônica de tais conteúdos aos demais
pilares da cultura humana (Filosofia, Ciência e Arte), haja vista que o conceito de “escolas”
propõe o método dos diálogos (intrarreligiosos, interreligiosos, mas também
interdisciplinares).
Ora, se a religiosidade tem como finalidade específica a realização, ao nível do homem, das
verdades metafísicas e dos valores espirituais, é evidente que (i) a inexistência de doutrina, de
ética e de métodos vivenciais de realização espiritual e (ii) a existência de doutrinas sem
verdade, de éticas sem valor e de ritos ineficazes, por inviabilizarem a condução do homem
àquela finalidade, não podem perfazer uma religião/escola de forma autêntica.
No que se refere ao primeiro quesito, não há discussão: sem doutrina, sem ética e/ou sem
método, não há religião de maneira alguma. Já no que diz respeito ao segundo quesito, é
preciso frisar que a exigência é mínima. O caráter mínimo de tal exigência se justifica pelo
seguinte: sob pena de desvirtuamento da finalidade e da própria natureza da religião enquanto
pilar da cultura, doutrinas religiosas não podem professar erros crassos, de ordem lógica ou
científica, éticas religiosas não podem defender o mal evidente, tácito ou declarado, e métodos
religiosos não podem se valer exclusivamente de ritos inócuos. A seguir exemplificaremos
possíveis erros em cada um dos três planos:
665
A) Doutrina. Uma determinada doutrina religiosa estará descumprindo a exigência atinente à
verdade caso seja autocontraditória ou contraditória com algum fato. Um exemplo de
autocontradição é a afirmação de existência de penas de sofrimento eterno e de existência de
um deus absolutamente bom, uma vez que um deus bom não pode, por definição, causar
qualquer mal, quanto mais eterno, a quem quer que seja.
Dois exemplos de contradição a fatos conhecidos são as afirmações de que o Planeta Terra
tem seis mil anos e de que o Big Bang é fruto do choque entre dois átomos, na medida em que
tais erros são manifestamente contrários ao conhecimento científico (aliás, de nível escolar).
Os erros dessa espécie costumam advir do tratamento doutrinário de questões não
propriamente religiosas ou filosóficas, mas científicas, ou da confusão entre verdades literais
(linguagem filosófico-científica) e verdades simbólicas (linguagem artístico-religiosa) 9.
B) Ética. Uma determinada ética religiosa descumprirá a exigência relativa ao bem sempre
que defender o mal, quer seja de maneira evidente e declarada (caso em que o erro será grave
e prejudicará seriamente a ética), quer seja de maneira sutil ou indireta (caso em que o erro
será brando e não afetará o restante da ética). Exemplos, em ordem respectiva: (i) a incitação
ao extermínio de infiéis e ao apenamento severo e desumano de fiéis que transgridem normas
de direito canônico; e (ii) as proibições – que são males em virtude de cercearem a liberdade
humana, que é um bem – de condutas inócuas do ponto de vista ético-moral (como nos casos
de interdições gastronômicas ou sexuais, por exemplo).
9
Aliás, a própria existência de uma linguagem conceitual e de uma linguagem simbólica já evidencia, por si só,
a existência do que se poderia chamar de diversidade interna a cada um dos planos constitutivos da
religião/escola (no caso, plano doutrinário).
666
inclusive ampla e recíproca interpenetração, mas jamais se deixa de exigir que haja
fundamento em tudo que se ensina, diz e faz.
Eis, portanto, o que a diversidade, interpretada pelo conceito de escolas, exige: além da
existência de doutrina, ética e método, também a verdade, o bem e a realização gradual de
ambos para seus adeptos. Seria possível pensar tais exigências de forma negativa, hipótese em
que se exigiria a inexistência de erros crassos (especialmente no que concerne à filosofia e à
ciência), de males ético-morais evidentes e de ineficácia de métodos voltados à realização da
verdade e do bem.
As exigências parecem ser muitas e severas, mas não o são: doutrina, ética e método devem
estar presentes, mas realmente presentes e não só aparentemente. Se alguma delas for formada
exclusiva ou predominantemente de erros, então ela na realidade não existe, tratando-se de
mero simulacro. Por isso, a exigência é de um mínimo de verdade, de bem e da realização de
ambos.
As exigências referidas acima são – ou podem ser – entendidas pelo senso comum sobre a
diversidade religiosa como arbitrárias, injustificáveis, elitistas e como incompatíveis e
contraditórias com a diversidade. Porém, tais impressões são de todo injustificáveis, como o
provam os seguintes fundamentos:
A) Os diversos entes de uma espécie podem ser diversos entre si, mas não a ponto de
exorbitarem os limites mínimos que definem a espécie (gênero comum). Em primeiro lugar,
do ponto de vista lógico-conceitual, toda espécie (e religiões/escolas são espécies) tem
necessariamente contornos mínimos definidos e intransponíveis, fora dos quais não se pode
reivindicar o direito de nela inserir-se determinado ente.
Uma espécie, portanto, não é um conjunto de seres idênticos, mas também não é um conjunto
de seres totalmente díspares e dessemelhantes; há, entre os integrantes de uma espécie, uma
afinidade ontológica determinada pela comunhão de determinadas características essenciais.
Por exemplo: a espécie humana congrega, em seus limites, um sem-número de indivíduos
que, apesar de todas as inevitáveis dessemelhanças e diferenças que ostentam em relação a
diversas características secundárias e acessórias, têm entre si as mesmas características
667
essenciais. Portanto, a exigência da satisfação de tais características essenciais mínimas não é
um rigor injustificável e autoritário, mas decorre da própria natureza das coisas: um homem
pode ser muito diferente de outro, mas não pode deixar de ser homem; inversamente, um
macaco pode se assemelhar a um homem sob vários pontos de vista – todos secundários –
mas não tem, por isso, o direito de se inserir na espécie humana.
B) As exigências de conteúdo não são contraditórias com a permissão de várias formas para
sua expressão, diante da diferença de natureza que há entre forma e conteúdo. O conteúdo
corresponde ao núcleo ontológico que determina que algo é de uma espécie por ser o que é
(no caso da diversidade religiosa, uma escola religiosa). Sem esse núcleo não há, como foi
dito, um ente daquela espécie. A forma corresponde a todo o contorno que manifesta esse
núcleo (tal como, respectivamente, segundo o simbolismo geométrico, a circunferência e o
centro).
A diferença de natureza entre conteúdo e forma pode ser comparada à diferença entre o DNA
(conteúdo) de uma célula (espécie), por exemplo, e a estrutura (forma) dessa célula. O fato de
o DNA de todas as células do corpo ser o mesmo não prejudica em nada a possibilidade e até
a necessidade de existirem muitos tipos de células diferentes (células nervosa, musculares,
cartilaginosas, epiteliais etc.). Isso porque o DNA é de natureza diferente da estrutura celular.
Desse modo, fica comprovado não haver contradição alguma entre, de um lado, permitir e até
incentivar formas especiais distintas de religiões/escolas (como ocorre, vantajosamente, no
processo de diferenciação celular) e, de outro, exigir os conteúdos mínimos de verdade
doutrinal, bem ético e eficácia método-ritualística, pois são justamente eles que definem
religião/escola em sentido próprio e estrito.
Essa questão pode ser analisada sob dois pontos de vista: (a) primeiro, o da possibilidade de
que os mesmos conteúdos religiosos sejam também expressos e trabalhados pelos demais
setores da cultura (Filosofia, Ciência e Arte, além, obviamente, da Religião); e (b) segundo, a
necessidade de que os conteúdos expressos na religião/escola estejam em conformidade, isto
668
é, sejam coerentes, com os resultados genuínos das atividades filosóficas, científicas e
artísticas, diante do já mencionado imperativo da unidade da cultura e do homem.
669
conduzam o homem a contradições insanáveis. É, portanto, a própria diversidade, bem
entendida, que nos leva ao imperativo da unidade, tanto da cultura (gnosis), quanto do homem
(psique).
O relativismo entendido como permissão pura e absoluta anula quase todas, se não todas, as
vantagens da diversidade com fundamento. Ao abandonar a exigência de conteúdo e permitir
inclusive formas sem conteúdo ou contrárias a qualquer conteúdo, ele arranca das escolas
religiosas o seu núcleo ontológico, tornando-as vazias de verdade e bem. Sem isso se
corrompem a doutrina em dogmatismo rígido, a ética em moralismo proibitivo e o método em
ritualismo mecânico.
Desse modo, a diversidade não é compatível com o relativismo complacente com o erro,
combatendo-o e evitando-o de forma eficaz de modo a garantir a unidade da cultura e,
também, o cumprimento satisfatório das finalidades reservadas à religião.
Diante de tudo o que se expôs, pode-se concluir com facilidade que os círculos esotéricos que
há em todas as religiões, por estarem preocupados mais com os conteúdos de verdade e de
bem presentes nos exoterismos (formas religiosas) do que com os seus modos de expressão
670
formal, são naturalmente inclinados à ampla aceitação da diversidade exotérica, sem prejuízo
da unidade esotérica e transcendente que sempre demonstram existir entre todas as religiões.
Referências
MATTA E SILVA, Woodrow Wilson. Umbanda de todos nós. 14. ed. São Paulo: Ícone,
2011.
__________. Macumbas e Candomblés na Umbanda. São Paulo: Editora Freitas Bastos, [s/d].
RIVAS NETO, Francisco. Escolas das religiões afro-brasileiras: tradição oral e diversidade.
São Paulo: Arché Editora, 2012.
SCHUON, Frithjof. Forma e substância nas religiões. São Paulo: Editora Sapientia, 2010.
__________. A unidade transcendente das religiões. São Paulo: Editora IRGET, 2011.
10
No contexto das Religiões Afro-brasileiras, ganha destaque a Escola da Umbanda Esotérica, fundada por W.
W. da Matta e Silva (Mestre Yapacani), que evidenciou a procedência e a síntese possível que há entre os
fundamentos de todas as matrizes religiosas que estão na base da Umbanda: a ameríndia, a africana e a euro-
asiática, transitando com facilidade entre as Kabalas (Indoarianda, Hebraica etc.), Lei de Pemba, Oráculo de Ifá,
Mediunidade e muitos outros fundamentos ancestrais. Como todo bom esoterista, atento ao polo exigente da
diversidade, W. W. da Matta e Silva denunciou as insuficiências e os erros crassos que pode observar em vida, o
que fez com que muitos o considerassem elitista e ortodoxo. Porém, o seu universalismo é óbvio e
inquestionável, pois todo esoterismo é necessariamente universalista. Ele é, portanto, o precursor da diversidade
nas Religiões Afro-brasileiras, sendo simbolicamente significativo que sua primeira obra escrita tenha levado o
título “Umbanda de Todos Nós” e sua última, “Macumbas e Candomblés na Umbanda”.
671
672
Panorama histórico da formação do campo religioso e
estabelecimento das religiões afro-brasileiras na sociedade
Silvino Paixão da Silva1
Introdução
Um pouco de história
1
Graduando pela FTU. Contato: silvino.silva1@gmail.com.
673
O negro que aqui se estabeleceu como escravo não perdeu sua religiosidade, porém como o
catolicismo era religião oficial2, o mesmo era obrigado a ser católico. Nesse momento começa
haver uma interpenetração de culturas e crenças. Segundo Holanda (1995, p. 40), a
experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora, em geral os
traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus
quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas europeias
transportadas ao Novo Mundo.
A vida na sociedade brasileira era basicamente rural. Com a abolição dos escravos houve um
maior desenvolvimento urbano, especificamente entre 1851 e 1855, em função da construção
de estradas de ferro, visto a supressão do tráfico negreiro. No crescente processo da
industrialização, e no chamado progresso, o homem brasileiro começa a surgir com uma
característica que Holanda (1995, p. 146) descreveu como o homem cordial. Este homem é
fruto de mestiçagem étnica. É um homem que sucumbe ao imperialismo monárquico, fruto de
uma cultura cooptada e que se submete às regras européias, de etiquetas, de vestimentas, usos
e costumes. Essas regras mandatórias de conduta e comportamento trazem para o Brasil a
cultura da doutrina católica romana, como religião oficial sendo que mais tarde admite-se o
kardecismo, originário da França que é quem socialmente ditava as normas do bom viver.
Para Darcy Ribeiro (2006, p.17), a sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como
variantes da versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental, diferenciadas por
coloridos dos índios americanos e dos negros africanos. Tanto o colonizador quanto o
colonizado perderam sua identidade tendo que criar uma nova, pela força da convivência.
Isto ocorreu nos planos: associativo, enquanto estrutura sócia política marcada pela
escravatura; no adaptativo: pelas tecnologias trazidas pelos colonos e no ideológico, trazido
pela língua imposta aos colonizados .
Os negros, por terem sido desgarrados de seus iguais – raramente ficavam na mesma tribo
juntos – aprenderem a falar o português pelo convívio com os capatazes e tiveram papel
importante na miscigenação, na cultura, pois ao recepcionarem os recem-chegados de outras
tribos, aprendiam a cultura destes, os transformavam e os unificavam e, posteriormente, ainda
sofreram influência de imigrantes principalmente italianos, japoneses e alemães, que
adquiriram terras e estabeleceram-se como colônias cabendo aos negros alforriados
2
Arthur Ramos, O negro brasileiro, p. 122.
674
marginalizaram-se nas sociedades estabelecendo-se nas chamadas favelas, mas ainda
trabalhando servindo a esta sociedade branca, como uma mão-de-obra barata.
Ribeiro (2006, p.19) enfatiza que por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos
rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje como sertanejos do Nordeste,
caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das
companhas sulinas, além dos ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Nossa
sociedade, a princípio, foi formada pelas três matrizes, indígenas, africanos e europeus,
contudo, na sociedade atual qual a identidade do povo brasileiro?
Para Ribeiro (2006, p. 119), o surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa
envolver e acolher a gente variada que aqui se juntou, passa também pela anulação das
identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela indiferenciação entre as
varias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos com
índios) ou curibocas (negros com índios).
Campo religioso
Nina Rodrigues, que pesquisava o negro baiano, acreditava que a degenerescência da raça
levava os negros e mestiços ao fetichismo e, somente num processo evolutivo eles se
tornariam monoteístas. Essas eram idéias de um grupo social que detinha o poder de expressar
opiniões e legitimá-las, preocupadas em definir a identidade nacional, enquanto Estado,
firmando-se como nação.
Para esclarecer a não conversão dos africanos ao catolicismo, Nina define o conceito da ilusão
da catequese, que é a equivalência das divindades que dá a ilusão da conversão católica, pois,
“[...] sem renunciar a seus deuses ou orixás, o negro bahiano tem pelos santos católicos
profunda devoção.” (FERRETTI,1995, p.182).
675
O processo de sincretismo entre religiões africanas e o catolicismo, não é, porém, uma rua de
mão-única. O cristianismo católico no Brasil também recebeu influência de elementos
advindos de religiões africanas. Claro que estas influências são mais sutis que na direção
inversa e ocorreram mais a nível pessoal que institucional (BERKENBROCK J, 2007 p.117).
Dentro dessa disputa de espaço e poder, o sincretismo surge como uma nova linguagem.
Orixás africanos passam a ter relação com Santos católicos. Por outro lado o culto ao Orixá
tem a influência do culto indígena, muitos terreiros do candomblé de Orixás das nações
iorubanas (queto, alaqueto, efã, egbá), senão sua maioria, também acabaram por incluir o
caboclo do rito banto no panteão3. Na Macumba carioca a entidade Caboclo representa o
Orixá, assim como a entidade Preto-Velho está ligada a Angola e Congo. Nessa análise, ao
mesmo tempo em que há essa disputa por espaço, há também uma relação de elementos que
coexistem com características similares.
Dentro das religiões afro-brasileiras, há também essa busca pelo espaço, tendo em vista a
diversidade de ritos existentes por todo o país. Não há, portanto, uma supremacia ou o sentido
de purismo. Desde o início, as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas, estabelecendo
paralelismos entre divindades africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do
catolicismo, valorizando a frequência aos ritos e sacramentos da Igreja Católica. Assim
aconteceu com o candomblé da Bahia, o xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do
Maranhão, o batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações4.
A macumba carioca, que teve seu surgimento, de certa forma, pelo fator político e econômico
no processo da industrialização, abarcou povos de várias regiões do Brasil. Foi
importantíssima para o ressurgimento de um movimento na região Sudeste como Rio e São
Paulo. Ainda nesse aspecto da crescente industrialização e centralização do poder econômico
nessa região, a Umbanda começa a manifestar.
3
PRANDI, 2005, p. 122.
4
Disponível em <www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a15v1852.pdf>.
676
É difícil seguir historicamente os primeiros movimentos de Umbanda, e igualmente difícil
descrevê-los. Eis o momento de uma religião fazer-se, multiplicando numa infinidade de
subseitas, cada uma em seu ritual e mitologia próprios. Algumas mais próximas da macumba,
outras mais próximas do espiritismo5.
Importante citar que, ao surgir uma nova religião, não significa que as outras deixem de
existir. O que observamos é a condição de adaptação, seja no processo social, seja no
regional. Entretanto, os cultos dentro das religiões afro-brasileiras, continuam como princípio
a crença no Orixá ou Ancestral. A Umbanda acaba abarcando todos esses movimentos. Do
ponto de vista social, a macumba é a expressão daquilo em que se tornam as religiões
africanas no período da perda dos valores tradicionais. A Umbanda, ao contrário, reflete o
momento da reorganização em novas bases, de acordo com os novos sentimentos dos negros
proletarizados6.
Pode-se pensar que esse movimento que acabou abarcando todas as crenças que vimos até
agora, poderia ser o instrumento da legitimidade das religiões afro-brasileiras no campo
religioso e social. Contudo, em se tratando de religião, a cúpula da Igreja Católica ainda
detém sua predominância e subtende-se que ainda é a religião oficial, ainda tem um controle
na sociedade brasileira.
Segundo Berkenbrock (2007, p.27), a existência destas religiões africanas e sua presença na
sociedade brasileira, foram por muito tempo ignoradas pela Igreja e pela Teologia, e somente
no documento final da IV Assembleia Geral do Episcopado Latino-americano em Santo
Domingo (1992) elas são, pela primeira vez num documento eclesial de âmbito latino-
americano, classificadas como religiões. Quando do descobrimento do Brasil, tivemos um
grande embate no encontro de culturas – branco, negros, índios – e um embate teológico, já
que todos estes povos tinham suas formas específicas de se relacionarem com o sagrado.
A teologia que veio com os brancos europeus, de tradição escrita, traz um conhecimento
ordenado, racional, há controle do conhecimento. Este conhecimento foi utilizado como
forma de negação da identidade do índio e do negro, de início impingindo a eles, e
consequentemente à nova sociedade que surgia, datas comemorativas de um calendário
cristão, com modelos teológicos cristãos de forma tão intensa, a ponto de fazer com que os
dominados negassem sua origem passando a assumir este novo modelo imposto.
5
BASTIDE, As Religiões Africanas no Brasil, p. 440.
6
Idem, p. 407.
677
Considerações finais
A história do povo brasileiro é marcada por valores de várias culturas como vimos da matriz
indígena, africana e europeia. Não há uma identidade, uma crença, uma cultura, como
descreve Ribeiro (2006, p. 411), o Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude
populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural.
Nas religiões afro-brasileiras não há nenhum livro sagrado; a tradição baseia-se na oralidade;
composta por um conjunto complexo de símbolos e signos. Sagrado é toda a existência. É
toda valência da força desse complexo sistema de oralidade.
O rito implica num movimento de dentro para fora para novamente voltar para dentro. O rito é
uma ação. A ação ritual é irracional no sentido de não ser compreensível, pois lida com
valores subjetivos, só entendidos pelo crente, por quem o vivencia.
678
Referências
BASTIDE. Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Editora Pioneira, 1971.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Editôra Universidade de
Brasília, 1963.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.
Internet
PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso.
Disponível em <htttp://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a15v1852.pdf>. Acesso em 20 de jul.
2013.
679
680
Símbolos e sinais sagrados da Umbanda: o ponto riscado
Osvaldo Olavo Ortiz Solera1
Introdução
A Umbanda é uma religião brasileira, formada pelo congraçamento das três etnias matrizes do
povo brasileiro, o índio, o branco e o negro. Toda essa riqueza cultural contribuiu para a
formação de inúmeras escolas2 dentro das religiões afro-brasileiras, cada uma com sua
interpretação do Sagrado. A Umbanda é uma dessas escolas, e dentro da Umbanda há uma
diversidade ritualista importante.
A tradição oral de cada etnia foi responsável pela propagação e sincretismo dos sinais e
símbolos religiosos. E neste caso, na Umbanda foram denominados de Sinais de Pemba ou
Pontos Riscados.
Este artigo objetiva analisar de onde surgiram os símbolos utilizados nos pontos riscados e
seus significados práticos para a ritualística umbandista.
Para a compilação deste artigo, foram utilizados livros de acesso popular, encontrados em
qualquer livraria ou loja de artigos religiosos, que descrevem e representam os símbolos
riscados utilizados pelos terreiros da Umbanda Traçada. Nas pesquisas bibliográficas foram
também utilizados os autores W. W. da Mata e Silva e Francisco Rivas Neto representantes da
Umbanda Esotérica ou de Síntese, ambos escritores conceituados no meio umbandista.
Segundo Ribeiro (2010), o Brasil teve sua formação por meio dos índios que aqui habitavam,
pelos brancos colonizadores e pelos negros advindos da escravatura:
A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada por inumeráveis povos
indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos, eles se alojavam, desalojavam e
realojavam, incessantemente. Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons
1
Mestrando em Ciência das Religiões pela PUC/SP, especialista em Ciência das Religiões pela PUC/SP, teólogo
umbandista, professor da FTU, bolsista do CAPES. Contato: olavosolera@uol.com.br.
2
Conceito defendido por Francisco Rivas Neto na obra Escolas das Religiões Afro-Brasileiras, 2012, p. 23.
681
guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo
de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como
o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes [...]eram, tão-só, uma miríade de
povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um
dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e
logo se desconheciam e se hostilizavam (p. 9).
[...] e mudou total e radicalmente seu destino, foi a introdução no seu mundo de um
protagonista novo, o europeu. Embora minúsculo, o grupelho recém-chegado de além-mar
era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. Principalmente
como uma infecção mortal sobre a população preexistente, debilitando-a até a morte [...]
[...] no plano étnico-cultural, essa transfiguração se dá pela gestação de uma etnia nova, que
foi unificando, na língua e nos costumes, os índios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia,
construído com os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas (p. 10-11).
Priore (2004) fala do homem ameríndio, adaptado ao meio, capaz de garantir a sobrevivência
individual e coletiva, muito antes da chegada do homem europeu:
682
O conflito básico entre os europeus e os ameríndios ocorreu devido ao fato de não possuírem
Lei, Rei e Fé (MAGALHÃES, 2004, p. 133-134). As diferenças entre as culturas foram de tal
modo insuportáveis que uma subjugou a outra, chegando quase ao total extermínio.
Pesquisadores como De Bry, Hans Staden e Pe. Simão relataram a profunda espiritualidade
dos Tupis. Padre Manuel da Nóbrega (1549), um dos renomados nomes da Companhia de
Jesus, foi o primeiro a relatar a riqueza da religiosidade indígena e, principalmente, de seus
pajés. E citava detalhadamente uma cerimônia na qual os feiticeiros traziam a Santidade. Na
ocasião:
[...] ele escolhia uma maloca, pegava um maracá, e falando em voz de menino, começava a
pregar. Para adquirir o espírito da santidade, todos deveriam se deixar defumar e assoprar.
O pajé bebia, fumava tabaco, baforava os aspirantes, e estes começavam a tremer e
transpirar, as mulheres rolavam por terra em convulsões (PRIORE, 2004, p. 52).
Com a etnia negra (africana) conheceu-se a escravidão na sua forma mais cruel, o
mercantilismo hediondo. As guerras tribais, a islamização, os interesses europeus e o silêncio
vergonhoso da Igreja foram os responsáveis por esta mácula na história do povo brasileiro.
O escravo tinha direitos cívicos, e mais ainda, direitos de propriedade, e até mesmo seus
próprios escravos. O pai chama o escravo pelo vocábulo nvana (filho), e a ambigüidade é
tal que para designar com precisão um verdadeiro filho se emprega a expressão filho do
ventre e pega nas partes genitais dele para confirmar. [...] o estádio patriarcal e comunitário
impedia que o escravo negro fosse um bem no sentido romano e catoniano do termo. (KI-
ZERBO, 1972, p. 265-266).
Além disso, tivemos na cultura grega, base do ocidente, desde Aristóteles em sua Política, a
sustentação de que os negros só poderiam ser úteis por meio da eterna escravidão (SANTOS,
2002, p. 275-289).
683
donné peuvres de la superioridade de as intelligence’) que tinham como missão retirar os
negros da ‘ignorância’ e ‘maus hábitos’ (FERRETI, 1995, p. 13-26).
E foi com Frobenius (2007, p. 13) que se pode compreender o requinte, a complexidade e a
grandeza da religiosidade iorubana, podendo ser comparada à religiosidade grega. Iorubás,
Jejes, Haussás, Minas, Cambindas, Angolas, Sudaneses e Bantos, todos chegaram ao Brasil
por meio da escravidão. E foi em terras brasileiras que essas etnias, envolvidas há tanto tempo
em guerras e disputas tribais, agora equiparadas pela escravidão que a todos tornava iguais,
encontraram o silêncio e a reflexão. Diante da necessidade de sobreviverem e preservarem sua
cultura, fé e tradição, foram sincretizando-se com a religiosidade indígena (pajelança) e
principalmente com a branca (cristã).
Todo o conhecimento destes povos foi mantido por meio da tradição oral (KI-ZERBO, 1972,
p. 19-20). E o que resistiu à aculturação foram as características religiosas, sincretizadas com
o catolicismo, e a pajelança.
A etnia branca chegou ao Brasil representada pelos Indo-europeus (Arianos) e pelos Judaico-
cristãos (Heleno-semítico). A bacia do mediterrâneo foi influenciada pela cultura e
religiosidade do Egito (p. e., a introdução da matemática, geometria, medicina, alquimia e
astrologia). Gregos, persas, árabes e judeus foram povos que trouxeram para a Europa o
conhecimento iniciático dos templos do Vale do Nilo. Heranças trazidas pelos islâmicos e
judeus como a Cabala e a Alquimia, causaram abalos profundos na formação do povo
brasileiro. Assim, com as contribuições destas três etnias, com o caldeamento de culturas e
crenças, surgiu o povo brasileiro.
Mitos e símbolos
684
Para Mielietinski (1987, p. 69), certas estruturas das imagens primordiais da fantasia coletiva
e categorias do pensamento simbólico, que organizam as representações originadas de fora,
são os elementos estruturais da psique inconsciente. Para Jung (2008, p. 17), os mitos
conduzem às fontes originárias, presentes no inconsciente coletivo. E os arquétipos
representam imagens, papéis a serem desempenhados, e também o processo de
individualização, o consciente individual.
Surge assim o símbolo como modo de significar o ente ou algo enquanto finito. O símbolo
está em lugar de algo. (SANTOS, 2007, p. 8). O termo símbolo tem sua origem no grego
(sýmbolon), e serve para designar um tipo de signo em que o significante (realidade concreta)
representa algo abstrato por força de convenção, semelhança ou contiguidade semântica. Os
símbolos têm a função de atar ou juntar elementos mantenedores e ressignificadores do mito.
Eliade (1978, p. 13) propõe que “o sagrado não é um momento histórico da consciência
humana e sim um elemento estrutural desta mesma consciência”. Logo, ao ler atentamente
esses sinais, pudemos constatar que os mesmos possuem formas da construção cósmica
(Cosmogênese).
685
conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou
reprimidos (JUNG, 2002, p. 53-54).
O povo brasileiro, que recebeu estas cargas de informação ancestral das três etnias da sua
constituição psicofísica, acabou funcionando como um elemento de convergência, facilitando
nele os processos de abstração espiritual e mística.
O símbolo surge na Arte, por meio das harmonias, cores e sons que os artistas, ao observarem
a natureza, sentem e expressam em suas criações. A Filosofia interpreta seus códigos e abstrai
da forma para chegar à essência. A Ciência simboliza todos estes processos,
compartimentando-os para interpretá-los e demonstrar as leis que regem os acontecimentos
cósmicos. Na religião, encontram-se os símbolos nos ritos e liturgias, por meio das palavras
que determinam, nos gestos que atraem, e nos sinais que fixam. Pode-se ainda observá-los nas
vestimentas, nos objetos, nas danças, nos cânticos e nos espaços destinados ao sagrado.
[...] entre outras funções, os símbolos são utilizados para representar as etapas do processo
de individuação como se fossem marcos de um caminho. Eles se baseiam em determinados
arquétipos que se apresentam no inconsciente e que chamam o indivíduo para uma
discussão consigo mesmo, através da produção de sonhos, fantasias e imagens mitológicas.
E como a psique é a primeira experiência direta que temos, ou percebemos da realidade, é
notório que ela funcione baseada em símbolos que transformam e redirecionam a energia
instintiva dos arquétipos do inconsciente.
686
preexistentes, arquétipos, que secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma
forma definida aos conteúdos da consciência”.
3
Foram utilizados o livro de Jung - O homem e seus símbolos e o livro de Mircéia Eliade - O Sagrado e o
Profano.
687
Árvore Cósmica: A capacidade infinita do Cosmos em se regenerar é comparável à
Árvore gigante. Simboliza também a Vida, a Juventude, a Imortalidade, e a Sabedoria.
Este símbolo está presente na cultura germânica (Yggdrasil), na Ásia (Bhoudhi), no
Antigo Testamento (sarça ardente), na Mesopotâmia, na Índia (arbusto ashvatha) e no
Irã. Na cultura africana, a árvore representada pelo Iroko, significa o centro do mundo,
onde as divindades faziam o giro em torno dele; era ao pé de uma árvore que se
enterrava o cordão umbilical (a sua individualidade), passando aí a simbolizar a força
física e espiritual daquele indivíduo. No contexto geral, a árvore simboliza o Axis
Mundi, conexão entre a Terra e o Céu (mundo espiritual).
Eis alguns símbolos que aparecem nas culturas e crenças que deram formação ao povo
brasileiro:
688
Aves: O pássaro sempre esteve presente em todos os cultos religiosos primitivos e
ainda hoje permanece como símbolo do Espírito Santo para os cristãos, está presente
no sincretismo como a Congada e a Folia de Reis, nos estandartes e fitas usadas. Na
África, a pomba é o símbolo do Espírito, ligado aos cultos das Yamis; a galinha
d’angola simboliza a criação e a iniciação. Entre os Xamãs, o pássaro é símbolo do
Espírito.
Animais: Cavernas e rochas com desenhos de animais sempre tiveram uma conotação
religiosa, sendo investido de grande temor e respeito pela população local.
Certamente serviam de local para ritos mágicos de caça, e fertilidade. O totem animal
simboliza o próprio animal, sua força, sua agilidade e seu poder.
Cruz: está presente na história de muitos povos, entre eles egípcio, celta, persa,
romanos, etc. É a união de dois eixos opostos, vertical e horizontal, em 90º, separando
o mundo em quatro quadrantes, determinando os pontos cardinais (norte, sul, leste e
oeste). Os eixos também simbolizam o sol (vertical) e lua (horizontal)
Círculo: É o símbolo da Psique. Platão descreveu a psique como uma esfera. Está
presente nos cultos da Lua, do Sol, nas mandalas, mitos e sonhos. Representa a
unidade, a perfeição humana. As mandalas estão presentes no Oriente e também no
Cristianismo (Rosáceas das catedrais). O círculo também aparece nas pinturas
rupestres, no período neolítico.
689
Triângulos: Dois triângulos que se interpenetram, um apontando para cima, o outro
para baixo, simbolizam a união de Shiva e Shakti, as divindades masculina e feminina.
Simbolizam a união dos opostos, a união do mundo temporal (ego) e atemporal (não-
ego). É a união da alma com Deus.
Etnia Branca
Símbolos Cristãos: Cruz, Terço, Pão e Vinho, Pomba, Pedra, Hábito de cobrir a
cabeça: véus e indumentária sacerdotal, Báculo, Velas, Oferendas/Sacrifícios.
Etnia Ameríndia
Símbolos rupestres, Sol, Lua, Estrela, Arco e Flecha, Pedra, Penas e Plumagens,
Cocares, Árvore, Bebidas, Fumo e defumações, Comidas (mandioca), Sementes,
colares, Hábito de pintar o corpo.
Etnia Africana
Africanos não Islamizados: trouxeram as coisas relativas aos Orixás. São eles: Odus
do Ifá, Ferramentas e indumentárias dos Orixás, Pomba (Elewye) e galinha d’angola,
690
Ponto riscado
Os pontos riscados são sinais ideográficos feitos no chão, paredes, ou tábuas de madeira, com
um bastão de giz mineral (pemba) no intuito de atrair ou repulsar forças positivas ou
negativas. São riscados apenas por sacerdotes (iniciados) com finalidade magística ou para
identificar e qualificar a entidade espiritual incorporada presente no rito. Embora a pemba
tenha sido trazida pelos yorubás, muito se perdeu dos sinais sagrados devido à islamização,
visto que os altos sacerdotes de Ifá eram perseguidos e mortos, e alguns poucos sobreviventes
foram vendidos para o Brasil como escravos (PRIORE, 2004, p. 24).
Os pontos riscados são ordens escritas (grafia celeste), de um a vários setores com a
identidade de quem pode e está ordenado para isso. É pelo ponto riscado que as Entidades
se identificam por completo nos aparelhos de incorporação, principalmente nos semi-
inconscientes, pois seus subconscientes, nesses fundamentos, não influem, simplesmente
porque não conhecem seus valores (SILVA, 1969, p. 274).
Segundo Rivas Neto4 e Mata e Silva5 o ponto riscado de Umbanda é constituído por três
etapas básicas:
Flecha: Identifica a sua Banda (Criança, Caboclo ou Preto Velho) ou Agrupamento afim.
Raiz: É o que controla e situa as afinidades entre os Espíritos que se apresentam como Pretos
Velhos, porque no Grau de Protetores, conservam como soma de seus carmas, os caracteres
raciais no corpo astral (Congo, Angola, Cambinda, etc.), bem como os espíritos que se
apresentam como caboclos que também, dentro de suas afinidades, identificam-se por um
4
RIVAS NETO, 1999, p. 137.
5
SILVA, 1969, p. 186.
691
sistema igual. O sinal da Raiz tem três características em seu traçado, em cada uma das sete
linhas que identificam ainda a Entidade, como Chefe de Falange, Subfalange ou simples
integrante.
Para uma identificação total, traçam-se outros sinais, conforme o objetivo e forma-se um
conjunto, surgindo então ponto em sua totalidade.
A Escrita Sagrada baseava-se em uma série de sinais de remota origem, que os ancestrais
iorubas haviam trazido de sua migração original para a África, tirando-os de um Alfabeto
Ideográfico que fora o primeiro Alfabeto Cursivo empregado para fins sagrados pelo
Homem (SILVA, 1969, p. 373-374).
Os sinais sagrados usados nos mistérios de Ifá Orixá eram segredos dos sacerdotes Yorubás,
não sendo conhecidos pelo povo. E somente chegaram até nós porque foram utilizados na arte
sacra, e algumas destas obras sobreviveram ao tempo e chegaram até aos dias atuais. Esses
caracteres somente eram vistos pelo povo em cerimônias específicas, quando o sacerdote
traçava sinais e figuras com um giz mineral. Com a queda do Império Yorubá, muito se
perdeu. É bom lembrar que neste período, a Islamização atingia a África, dilapidando sua
cultura e suas raízes. Perseguidos, pouco a pouco os altos sacerdotes de Ifé foram dizimados.
Alguns sacerdotes subalternos foram capturados e vendidos para o tráfico negreiro, tão
lucrativo na época. Após as guerras e a perseguição islâmica, o que sobrou desta escrita
sagrada foi a lembrança de que era traçada com um bastão de giz mineral. Portanto, um
simples pedaço de giz mineral passou a simbolizar todo o poder da cultura yorubá,
perpetuando a certeza de comunicação com seus Ancestrais. Da Escrita Sagrada de Ifá restou
apenas a Pemba, simples reflexo da esperança de comunicação com os Ancestrais, não mais
refletindo a Magia de que era revestida, mas ainda assim, fonte da fé e esperança de um povo
simples.
692
datação deste alfabeto, colocando-o há milhares de anos atrás, sob a Constelação de Áries.
Este alfabeto está diretamente relacionado com a Grafia Sagrada dos Orixás, segundo a
Escola de Umbanda Esotérica. Seus símbolos e grafia são bastante próximos à visualizada nos
sinais grafados atualmente nesta escola. Veremos mais adiante o ponto riscado do Caboclo
Itingussu, e notaremos importantes diferenças.
Segundo esta escola, a grafia celeste ou escrita dos orixás pode ser didaticamente classificada
nos seguintes sistemas (RIVAS NETO, 2002, p. 302):
6
Acervo digital da FTU – Faculdade de Teologia Umbandista, autorizada.
693
Ainda cabe uma observação: todos os sinais ou signos, mnemônicos, ideográficos ou
fonéticos, podem ser figurativos ou pictóricos (pictografia). Podem representar a figura, a
imagem, a pintura de um ser, objeto ou fenômeno.
A pesquisa
Foram estudados 588 sinais riscados, que foram divididos em 249 pontos de caboclos e
caboclas, 93 pontos de pretos e pretas velhas, 246 pontos de Exu e Pomba Giras, e somente 1
ponto de Criança. O ponto encontrado para Criança não pode ser mensurável, por ser apenas
um, não havendo ponto de comparação. A maioria dos pontos de Caboclos e Caboclas
possuíam flechas. Havia uma maior incidência de símbolos e sinais da raça vermelha, tais
como sol, lua, penas, cocares, arcos e flechas, mar e raios. Nos pontos de Pretos e Pretas
Velhas, na sua maioria havia cruzes. Havia uma incidência maior dos símbolos da raça
branca, através de símbolos e sinais judaico-cristãos, como cruzes, estrelas, candelabros, velas
e terços. Nos pontos de Exu e Pomba Giras, na sua maioria havia tridentes. Há aqui uma
maior mistura de raças, sendo utilizados estrelas, cruzes, flechas, tridentes, crânios, ossos, e
sinais do Ocultismo Europeu.
Considerações finais
Ao chegar ao final deste artigo, pode-se compreender a longa viagem que o povo brasileiro
fez em busca de sua identidade espiritual, cultural, social e econômica. Ficou claro que os
processos sincréticos aos quais ele foi submetido configuraram em sua psique a atuação
maciça de três etnias - a vermelha, a negra e a branca. Este caldeamento étnico culminou, por
meio do amalgamento destas culturas, em um mestiço, o homo brasilienses. Sua capacidade
de suportar culturas diferentes fez do homo brasilienses um ser diferenciado.
Todo o povo brasileiro é naturalmente místico, em todos os rincões deste país sobejam as
crendices e a fé no sobrenatural. Estando inserido constantemente no mito, vive ele sempre
em um momento atemporal. Sua maneira de ver ou conceber teorias passa sempre por
processos intuitivos, valorizando o sujeito (essência), em detrimento do objeto (forma).
694
Jung (2002, p. 53) define a estrutura do inconsciente coletivo por algo que adquirimos por
meio da hereditariedade, e o inconsciente individual por meio de arquétipos que estão
esquecidos momentaneamente. A Umbanda, ao utilizar todos esses símbolos e sinais, evoca
esta herança, fazendo com que o indivíduo-adepto traga à tona os arquétipos esquecidos
constituidores da inconsciência individual.
O povo brasileiro, que recebeu estas cargas de informação ancestral das três etnias citadas,
funciona como um elemento de convergência, facilitando nele os processos de abstração
espiritual e mística que o remete assim, à Síntese.
Na Umbanda, pela diversidade dos seus adeptos, há também uma diversidade de ritos e de
formas de transmissão do conhecimento. A essas várias formas de entendimento e vivência
da Umbanda denominamos escolas ou segmentos. As várias escolas correspondem a visões,
umas voltadas mais aos aspectos míticos e outras mais voltadas à essência espiritual,
abstrata. Embora não haja consenso quanto à ritualística, que são várias formas de
interpretar e manifestar a doutrina, a essência de todos é a mesma e todos são
legitimamente denominados umbandistas.
É por isso que podemos ver, na diversidade da Umbanda, uma amostragem fidedigna destas
atuações sincréticas. O adepto desta corrente Filo-Religiosa utiliza os símbolos e sinais como
ponte para o sobrenatural.
Ao traçar um sinal que denomina de Lei de Pemba, estabelece um Espaço Sagrado que ora vai
habitar, é neste momento que, ao fazer o círculo, inserindo nele os símbolos arquetípicos,
aproxima o céu da terra, fazendo com que não exista mais o sujeito e o objeto e, acaba assim,
imergindo no mundo Sagrado.
Vemos ainda que esses mesmos sinais podem ser analisados e situados dentro das inúmeras
escolas umbandistas, notando que em algumas escolas os sinais obedecem a um momento
histórico, demonstrando que estas ainda estão polarizadas em um aspecto sincrético de uma
determinada etnia.
695
Referências
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Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988.
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Editores, 1978.
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Editora, 2007.
GORDON, Brotherston; MEDEIROS, Sérgio. Popol Vuh. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1997.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2008.
MAGALHÃES, Pero Gândavo. A Primeira História do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Jorge
Zahar, 2004.
OLIVET, Fabre A. História Filosófica do Gênero Humano. São Paulo: Ed. Ícone, 1997.
PALLAS. 3333 Pontos Riscados e Cantados. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2008.
PRIORE, Mary Del. Religião e Religiosidade no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. Ática, 2004.
RAMOS, Artur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1934.
RIVAS NETO, Francisco Rivas. Sacerdote, Mago e Médico – Cura e Autocura Umbandista.
São Paulo: Ícone Editora, 2003.
__________. Umbanda – O Arcano dos 7 Orixás. São Paulo: Ícone Editora, 1999.
696
__________. Umbanda – A Proto-Síntese Cósmica. São Paulo: Ed. Pensamento, 2002.
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SANTOS, Mario Ferreira. Tratado de Simbólica. São Paulo: Ed. E. Realizações, 2007.
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Bastos, 1979.
Internet
697
698
Tambor de Mina: uma abordagem a partir de seus elementos
visuais
Wgercilene Machado Martins1
Introdução
Como ocorre geralmente com as religiões de origem africana, a mina é uma religião
extática e iniciática, que tem na incorporação uma forma sensível de comunicação com o
sobrenaturale, no contato direto entre o filho e pai ou mãe-de-santo, intensificando em
períodos de reclusão, a principal forma de transmissão de conhecimento (FERRETTI, 1985,
p.37).
Minha intenção é observar os elementos visuais que compõe o tambor de mina, reconhecendo
que tais elementos não são isolados de influências sonoras e performáticas. Dessa maneira,
1
Graduanda em Artes Visuais pela UFMA, bolsista do PIBID-UFMA. Contato: wgercilene@hotmail.com.
699
levarei em consideração o significado decores nos adornos usados pelos adeptos dessa
religião.Este trabalho se origina da minha intenção de aprofundar meus conhecimentossobre a
cultura afro-brasileira, dando destaque ao tambor de mina, que éa expressão religiosa de
origem africana mais difundida no Maranhão.
Marco teórico
Para pensar a respeito das significações dos elementos visuais do tambor de mina, levei em
consideração outros estudos que já foram e estão sendo feitos, na minha pesquisa estou
considerando trabalhos relacionados ao tambor de mina, tal como Ferretti(1995) que discute a
questão do sincretismo como um meio de adaptação do negro na sociedade católica
dominante, considerei também as observações deFerretti (1996) que propõe um levantamento
histório da Casa das Minas, fala sobre a estrutura de seu panteão (voduns), considera
elementos que compõem os rituais e a importância desses elementos para os adeptos,
menciona como é organizado o ciclo de festas. Ainda será importante para meu trabalho as
observações de Ferretti (1985) que faz uma descriçãosobre as origens do tambor de mina no
Maranhão, faz um relato sobre o comportamento de adeptos e entidades nos momentos dos
rituais. Além dos trabalhos de autores locais, considerei como referencial trabalhos
relacionados ao candomblé na Bahia, podendo assim fazer relações com a religião
local(tambor de mina) assim como estar percebendo suas distintinções, nesse sentido foi de
extrema relevância para o meu trabalho, o trabalho de Moura (2011), onde o autor faz uma
análise do panteão nagô, falando de seus tipos psicológicos, de suas representações, a
importancia dos critérios classificatórios e os fatores que contribuem para dar um significado
aos diversos objetos e características atribuídos aos orixás tais como cor , sabor, cheiro e
sensações.
700
que pertecem a vários estratos do real: Substâncias, cores, ritmos,animais,plantas[...]” (2011,
p. 30).
Nessa pesquisa, irei considerar, sobretudo, os aspectos como as cores, os materiais utilizados
na confecção dos rosários,a vestimenta utilizada nos ritos,assim como os objetos atribuídos a
cada entidade que por sua vez, estão também relacionados diretamente a variação dos itãs
(histórias que dão fundamentação a estrutura mitológica utilizada no tambor de mina).
Nesse sentido ,cada filho de santo tem uma maneira específica de usarseus rosários (de lado,
para frente ou para trás), essa maneira depende do gênero de cada entidade, assim como do
nível hierárquico do elegun (individuo que incorpora entidades).Ainda segundoMoura; 2011
p. 34,“O colar do iniciado é um objeto carregado de significações, e revela toda identidade da
pessoa, seu Odu,seus Santos”.Então através do rosáriopode-se descobrir para quem é feita2a
cabeça do adepto, considerando, o material, a tonalidade, o número de contas e de firmas
(contas cilíndricas ou arredondas que formam os rosários).
Em relação às entidades,acredita-se que cada ser humano é protegido por uma Tríade
(divindades). Então usa-se um rosário, para cada uma dessas entidades. Assim como no
candomblé, no tambor de minanormalmente usa-se um colar em homenagem à entidade
patrona do terreiro. No caso do tambor de mina, onde além dos Orixás, manifestam-
se;voduns, caboclos e fidalgos, além dos rosáriosreferentes aos orixás também usam-
serosários referentes a estas outras entidades, as cores desses rosários são estabelecidas por
elementos relacionados ahistórias destas entidades assim como a suas regiões de origem.
Como mencionado, o uso do rosário varia segundo o sexo da entidade e nível hierárquico do
elegun. Podendo ser utilizados;caindo para o lado direito, para o lado esquerdo, para trás, e
ainda caindo para frente, preso peloamurê(pano de algodão preso à cintura em forma de
cinto)mas a forma de uso desses rosários pode variar de acordo com o desejo de cada
entidade. Onúmero de fios ou de firmastambém varia de acordo com o grau hierárquico do
elegun.Outro ponto relevante em relação ao rosário é que esse permite, ainda, graças á cor e à
tonalidade, identificar a naçãodo Orixá; se são nagô oujeje. Pois essas cores além das
2
Cabeça feita é a expressão usada pelos adebtos pra classificar as pessoas que já passaram por rituais iniciáticos.
701
qualidadescomo já mencionei, varia de nação para nação.(Nação é o termo usado para
distinguir voduns e orixásconstuma-se dizer que a entidade ou filho de santo é da naçãojejeou
nagô). Portanto através das observações dos rosários como destacamos, é permitido descobrir
a nação do orixá e suas características, se vive na áqua doce, salgada, se vive nas florestas, se
é ligado à terra, se é jovem, adulto, se é bélico ou não, entre outras de suas características.
Segundo Ferretti;
Na Mina cada filho-de santo tem, além do colar ritual que marca sua vinculação com as
entidades africanas, um para cada caboclo que vem na sua cabeça mais
frequentemente.Este, quando não trazido ao pescoço no início do toque, é dado a ele após a
incorporação ( além da toalha de renda usada pelas entidades espirituais). Os turcos
geralmente usam seu rosário (colar) atravessado. E preferem enrolar a toalha na mão,
coloca-la sobre os ombros ou substtuí-la por uma pana (lenço de seda muito usado por
caboclo), em vez de amarrá-la na cintura.As entidades mais importantes da casa ou do pai
ou mãe- de-santo usam também outros distintivos como: chicote, bengala, lenço no ombro
etc. Independente destes sinais cada caboclo tem sua ‘marca registrada’ ( doutrina própria,
modo de falar e dançar etc.), que facilita sua identificação quando chega na guma.(
FERRETTI, 1992, p.57)
As cores também se aplicam nas vestimentas, considerando que cada divindade possui uma
cor específica. Oxalá: Branco, Nanã usa lilás,podendo usar;azul escuro, rosa, e raramente
branco.Iemanjá: azul claro, verde claro e raramente branco. Oxum: Pode usar amarelo que se
mescla com azul claro, rosa e branco.Logunedé: pode usar amarelo e azul claro. Ossãim:
Branco e verde claro. Ewá: branco, azul claro e rosa. Oxumarê: amarelo, que pode ser
mesclado com preto ou verde. Obaluayê: vermelho, amarelo, ou branco e preto. Loco: branco
e vermelho. Ogum: azul escuro, vermelho, pode usar branco e raramente verde escuro.Oxóssi:
azul turquesa e verde mata.Xangô: Usa branco, usa vermelho e marrom. Obá: vermelho, rosa
e laranja. Exu: vermelho e preto. É importante enfatizarque assim como as cores dos rosários,
as cores das vestimentas tambémestão relacionadas com as qualidades de cada orixá, de
acordo com suas variações mitológicas. Porexemplo; se são ligados à riqueza (o amarelo de
Oxum) se são ligado ao fogo (o vermelho de Exu) se são Orixás Funfuns, ou seja, se fizeram
parte do processo da criação, utilizam normalmente só o branco.
702
orixás se homenagearem entre si, e essa homenagem está diretamente ligada no acréscimo de
cores nas vestimentas e rosários, fazendo referência a entidade homenageada.
Metodologia
A pesquisa em questãoestá sendo realizada no terreiro Ilê Ashê Obá Izô, (casa do rei do fogo)
localizado no bairro da Liberdade, São Luís- Maranhão. A pesquisa está sendo feita
primeiramente através de pesquisas bibliográficas sobre as religiões afro- brasileiras,
principalmente com estudos relacionados ao tambor de mina como por exemplo: Sérgio
Ferretti(1995) e Mundicarmo Ferretti (1985), assim como outros autores como: Carlos
Eugênio de Moura (2011); entre outros. Além disso tenho realizado visitas de campo a fim de
observar os rituais realizados no terreiro, também de conversas informais com sacerdotes e
outros adeptos do tambor de mina. As informações são colhidas através de registros feitos
principalmente em câmaras fotográficas e anotações.
Resultados
Comojá mencionei, a pesquisa está sendo feita através de visitas ao terreiro, Ilê Ashê Obá Izô,
localizadono bairro da Liberdade em São Luís, onde já foram feitas algumas observações. É
importante ressaltar que a pesquisa está focalizada em um aspecto mais visual do tambor de
mina, especificamente na composição dos adornos de seus adeptos, considerando que cada
entidade que que se manifestapossui elementos específicos que as identificam.
Minha primeira visitano terreiro,foi no dia 23 de Abril,data que se homenageia o Orixá Ogun,
(orixá sincretizado com São Jorge) ao chegar ao terreiro fui recepcionada pela entidade
cabocla seu Cravinho, e percebi a presença de outras entidades, em sua maioria codoesesque
estavam sobre algumas filhas de santos apesar do comportamento discreto demonstrado.
Como já mencionado, cada entidade possuem um comportamento específico; pude observar
703
que os caboclos até mesmo por possuírem um tipo psicológico mais irreverente, normalmente
possuem um jeito mais despojado de utilização das chamadas panas, estas normalmente são
usadas por eles, ou na cintura, ou no ombro. Então observei a diferenciação na forma de
utilização das roupas, das cores utilizadas tanto nas roupas quanto nos rosários, e espessuras
das guias, dependendo da entidade e também da posição de hierarquia do iniciado. As
imagens abaixo (1,2 e 3)mostram exemplos de utilização de rosários.
Figura 1 - Da esquerda para a direita; Pai e filhos de santo do terreiro Ilê Ashê Obá Izô, São Luí- MA.3
Como também já mencionado, noterreiro acredita-se que cada pessoa é protegida por uma
tríade de orixás, então cada pessoa usa rosários direcionados aos seus orixás, Isso depende
também do grau de hierarquia do iniado, no terreiroque observei, os filhos que não possuem
uma alta posição de hierarquia só usam dois rosários de orixás protetores, o terceiro rosário é
em homenagem ao orixá de seu pai. As cores desses rosários também são determinada por
esses orixás. É importantefrisarque a quantidade e a cor dos rosários além de serem
determinados pelo direcionamento das entidades variam de acordo com o costume de um
terreiro para o outro. Cada filho de santo apesar de ter a cabeça feita para determinados
orixás (tríade de orixás; no caso do terreiro), a questão das cores são bem visíveis também nas
vestimentas; pois apesar de que cada divindade possua uma cor específica, cada filho de santo
3
Fonte: Wgercilene Martins
704
tem uma cor de roupa que representa cada entidade; no terreiroIlê Ashê Obá Izô, normalmente
usam-se sete cores: Branco, rosa, amarelo, azul bebê, azul roial, vermelho, verde mata, uma
saia estampada e uma saia de três cores (verde, vermelho e amarelo, específica para as
entidades turcas). Enfatizo que a utilização dessas cores nas vestimentas, assim como
dosrosários , depende muito do grau hierárquico de cada filho de santo.Por exemplo; cada
pessoa ainda não iniciada passa um ano utilizando somente a cor branca, também que
dependendo do grau de hierarquia as entidades podem utilizar outros acessórios ou objetos,
por exemplo, se forem de alto grau de hierárquico normalmente usam; rosários com
espessuras bem mais grossas com maior número de firmas, bengalas, lenços a mais. Assim
como da utilização de objetos no ritual, dependendo da entidade envolvida. Muitas das vezes
o orixá é que determina o comportamento dos seus adeptos cavalos. Portanto o grau de
hierarquia não só do iniciado, como também da divindade; se é orixá, vodun ou caboclo vai
influenciar diretamente no aspecto visual.As imagens abaixo ( 4 e 5) exemplificam a
utilização de vestimentas e acessórios por caboclos e orixás.
Figura 2 - Pai Wendel à esquerda com a entidade cabocla seu Cravinho e à direita com o Orixá Xangô. 4
Em visitas econversas com alguns filhos de santo pude perceber que eles guardam com toda
sacralização os acessórios utilizados palas entidades. Exemplo; espelhos- leques, coroas,
4
Fonte: Wgercilene Martins
705
pulseiras, braceletes. Pude perceber também o não uso dos rosários após relações sexuais, ou
período de menstruação, assim como outras pessoas não poderem tocar em nenhum desses
adereços, para não suja- los pudeperceber também que gestos e penteados muitas vezes estão
de acordo com os donos de suas cabeças.
Conclusão
Referências
FERRETTI, Sérgio Figueredo. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das minas. São
Luís: EDUFMA, 1996.
__________. Repensando o Sincretismo: Estudo sobre a Casa das Minas. São Luís: Editora
da Universidade de São Paulo, FAPEMA, 1995.
FERRETI, Mundicarmo Maria Rocha. Mina, uma religião de origem africana. São Luís:
SIOGE, 1985.
706
LÉPINE, C. Ánalise formal do panteão nagô. IN: MOURA, C, E, M, (org). Culto aos orixás,
voduns e ancestrais nas religiões afro- brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Internet
______. Tambor-de-mina em São luís: dos registros da missão de pesquisas folclóricas aos
nossos dias. Revista pós ciências sociais - (UFMA), v. 3, nº 6, São Luís, jul/dez. 2006.
Disponível em <http://www.periodicoseletronicos.ufma.br.> Acesso em 20 de jan. 2013.
707
708
Tem arruda? Tem guiné e espada? Tem magia e poder!
Abordagem etnobotânica de três espécies vegetais na rito liturgia
das religiões afro brasileiras
Wandir Vieira Leal Santos1
Introdução
Os processos de cura pelas plantas usadas nos rituais de Umbanda se mostraram como um
campo de pesquisa de grande interesse por sua eficácia, e que também se justifica por manter-
se fortemente no imaginário popular durante décadas, resistindo fortemente aos embates
criados por outros seguimentos religiosos. Ao adentrarmos, mesmo que muito
superficialmente, no tema que nos coloca diante de uma antropologia da religião e uma
antropologia médica, os processos de cura a que nos referimos serão explicados à luz de uma
religião específica.
Nossa pesquisa, sob uma perspectiva Etnobotânica explicita os valores culturais de nosso
país, com suas singularidades, unindo saberes da religiosidade popular e os saberes
científicos, no que diz respeito à análise botânica das plantas: Ruta graveolens L.. Petiveria
alliaceae L. e Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain.arruda,guiné e espada, respectivamente.
O encontro entre a ciência e a religião ganha, ao nosso olhar, uma nova dimensão quando aqui
procuramos estabelecer os atributos da planta na Umbanda, uma religião brasileira que abarca
procedimentos míticos religiosos de três culturas (indígena, européia e africana) que se
uniram nos primórdios da colonização.
1
Especialista em Ciências da Religião pela PUC/SP, especialista em Biologia pela FUSVE/RJ, complementação
em Botânica pela UFJF. Contato: wavileal@yahoo.com.br.
709
Com a anuência de sete líderes espirituais de localidades próximas e do município de São
Paulo, realizamos uma pesquisa onde tais lideranças nos responderam sobre a utilização das
três espécies vegetais em suas casas de trabalhos espirituais. Associamos os resultados
obtidos aos conceitos botânicos do diagrama floral, à numerologia e geometria sagrada, estas
tomando como referencia as obras dos autores W.W. da Mata e Silva e Francisco Rivas Neto,
ambos pertencentes a mesma escola ou linha de transmissão de conhecimentos.
À luz desta ciência, podemos pousar o nosso olhar nos fenômenos que envolvem saberes
humanos que se relacionam com a vida vegetal, de duas formas estruturais de pesquisa. Uma
destas formas é a analise do nível de relacionamento de uma cultura com suas plantas,
procurando interpretar e esclarecer a respeito das diferentes formas de comportamento. Este
tipo de análise é denominado de Etnobotânica descritiva ou qualitativa. Já a Etnobotânica
quantitativa, nos possibilita comparações e avaliações do significado das plantas para os
grupos pesquisados. No presente artigo utilizamos os dois procedimentos.
As plantas sempre estiveram presentes na vida dos seres humanos, surgindo a partir de três
aspectos que se inter-relacionam: o simbólico, o natural (botânico) e o cultural.
(ALBUQUERQUE,2005, p.7a)
O conhecimento botânico alia mitos, divindades, espíritos, cantos, danças, ritos nos quais
verificamos uma perfeita relação dos três elementos mencionados anteriormente, onde o
natural e o sobrenatural fazem parte de uma única realidade. Exemplificam isso os ritos de
coleta de plantas para as aplicações medicinais ou mágicas; a designação e atribuição de
espíritos ou divindades às árvores; as práticas divinatórias, os cantos propiciatórios para,
entre outras coisas, liberar a energia curativa ou mágica do vegetal que se emprega para
determinado fim (ALBUQUERQUE,2005, p7b)
710
Um legado de grande importância foi deixado à humanidade: a forma de traduzir o
conhecimento intuitivo para que este seja compartilhado com os demais em seu grupo familiar
ou étnico. Os povos, em que a sabedoria era transmitida pela força da oralidade e que
preconizavam a precisão da comunicação unida à sacralidade do Verbo, traziam a ciência
vinculada a tais princípios essencialmente éticos. Temos nos povos africanos e ameríndios o
traço cultural alicerçado nos saberes adquiridos por fontes inspiradas na natureza que nela
buscaram as respostas para seus questionamentos.
A Etnobotânica permite-nos tomar contato com a diversidade de olhares sobre o reino vegetal
que o homem procura ter para usufruir valores estéticos e nutricionais, assim como os efeitos
médicomagísticos proporcionados pelas plantas.As espécies descritas neste estudo encontram-
se historicamente vinculadas a processos de grande relevância histórica.
711
descrita por Shakespeare, nas obras, Ricardo II e em Hamlet(JUNIOR,1981, p. 64), onde a
arruda aparece com forte apelo simbólico.
Planta de vasta denominação popular dentre elas: arruda-doméstica, arruda de jardim, arruda
de cheiro. O nome Ruta vem da palavra latina rus que significa fluxo sanguíneo e graveolens
significa cheiro forte.Suas propriedades terapêuticas com o decorrer do tempo têm conseguido
aprovação no meio científico e encontram-se descritas em inúmeras publicações. A planta é
uma representante da família das rutáceas, aromática e estimulante. É uma planta subarbustiva
ou herbácea, lenhosa, que apresenta caule ramificado, pequenas folhas verde-acinzentadas ou
verde-azuladas e alternadas. As flores também são pequenas e de coloração amarelo-
esverdeada.
.O gênero Sansevieria encontra-se espalhado por diversos países, em Cuba ela é conhecida
como Cocuira, na República Dominicana ela é chamada de espada de Santa Tereza
(CORREA, 1987 p.389). Nesta descrição sucinta sobre três vegetais que se intercambiaram
no período colonial e encontram-se unidos nas religiões afrobrasileiras, vemos a sua força
mítica e magística ao incorporarem á vida cotidiana dos brasileiros.
A espada de Ogum por sua beleza ornamental pode confundir-se com o seu propósito
magistico, embora na maioria das vezes ocupem locais públicos onde demarcam a passagem
de pessoas (BARROS, 1998, p.168). Em algumas regiões do país não raro encontrarmos as
712
três espécies vegetais unidas no já citado vasos das sete ervas, ocupando espaços onde
segundo informantes, estas atuariam como protetoras de influencias malfazejas .Temos neste
gesto simbólico a religiosidade expressa no poder mágico conferido às plantas, dentro e fora
dos terreiros de Umbanda e Candomblé. As religiões afrobrasileiras abarcam princípios rito
litúrgicos de três matrizes e com elas diferentes conceitos de magia e de quem e como as
executa.
Demos o nome de mágico ao agente dos ritos mágicos profissional ou não.Constatamos ,de
fato,que há ritos mágicos que podem ser cumpridos por não-especialistas. Entre estes estão
as receitas das benzedeiras na medicina mágica, e todas aquelas práticas do campo que
podem ser executadas no curso da vida agrícola;igualmente,os ritos de caça ou de pesca,de
modo geral, parecem estar ao alcance de qualquer pessoa (MAUSS, 1974, p.55).
A observação minuciosa dos aspectos anatômicos e fisiológicos, tais com: coloração, textura
foliar, aroma e outras possíveis características sensoriais captadas do vegetal, é prática
milenar de várias culturas. Tal procedimento baseia-se na similaridade que ocorre entre a
forma apresentada com a função desempenhada, pois a forma justificaria a função e, por
analogia, dá-se a nomenclatura sugerida. Alguns povos, a exemplo dos Yorubá, utilizam um
713
importante componente para o processo fitoterápico: as palavras de poder, os Ofós, que, ao
serem verbalizadas junto ao vegetal, agem produzindo o efeito mágicocurativo. Para eles há
uma relação entre o nome das plantas e suas virtudes. Exemplificaremos com a nomenclatura
utilizada para a guiné, cuja denominação yorubana é ojúùsàjú, que significa respeito ou
favoritismo por uma pessoa. O Ofó proferido é ìsàjú que corresponde à palavra
“favor”(VERGER, 1995, p.41). Os povos indígenas têm no líder espiritual, o pajé, em seu
instante medicomagístico, um procedimento ritual com a utilização da planta relacionada à
sua função curativa, associada aos cânticos, para que o processo fitoterápico transcorra
eficazmente. A uma mesma planta são atribuídas várias propriedades e quando preparadas
juntas ganham novas composições curativas. No século XVI, o médico europeu Teofrasto,
conhecido como Paracelso disse: “Tudo que a natureza cria, recebe a imagem da virtude que
ela pretende esconder ali” (ALMEIDA, 2003, p.180). Cada planta medicinal leva o sinal que
indica suas propriedades. E esta prática taxionômica foi denominada Teoria das Assinaturas,
que se baseia na fisionomia do vegetal, revelando a sua função e por correlação semântica o
nome vulgar e o latino, geralmente apresentam o mesmo significado. Ao investigarmos um
pouco mais a natureza anatômica das plantas: Ruta graveolens L.. Petiveria alliaceae L. e
Sansevieria trifasceata Hort.ex Prain.,particularmente as suas flores,vimos a possibilidade de
algumas analogias associadas ao componente numérico de seus verticilos florais.Na
conceituação Botânica temos para as partes que constituintes deste órgão vegetal um
conjunto de símbolos graficamente representados em um desenho plano,sintetizado por uma
formula floral.(AGARES,1994, pp..43 e 44)Escolhemos para este artigo a planta Sansevieria
trifasceata Hort.ex Prain. para demonstrarmos a possível relação dos valores qualitativos e
quantitativos de seu diagrama floral,tendo como símbolos literais K(cálice)C
(corola)A(androceu)G(gineceu).Encontramos na representação das suas peças florais a
seguinte sequência numérica:K=3C=3A=6G=3,como podemos observar na ilustração abaixo.
714
2
2
Realizado em pesquisa por Lorena Guevara e Carmem B. de Rojas-Instituto de Botânica Agricola,Universidade
Central da Venezuela.
715
A arruda e o guiné foram da mesma forma analisadas, ambas pentâmeras, diferenciando-se
apenas quanto em numero de estames, dez e quatro respectivamente, o que nos permitiu
leituras numerológicas peculiares.Após a aplicação da numerologia sagrada sob a ótica de
uma Escola de Umbanda ao diagrama floral das três plantas,partimos para elaboração de
uma pesquisa de campo.Lideres espirituais e seus representantes de quatro terreiros de
Umbanda e de três casas de Candomblé responderam em forma de questionário os usos e
representação simbólica da arruda,guiné e espada em seus trabalhos junto á Comunidade do
Santo.
Resultados da pesquisa
Para este artigo levamos em consideração apenas o local onde estas plantas são colocas em
seus Terreiros,as Entidades espirituais que ao se manifestarem as utilizem e a representação
simbólica das mesmas.Nos gráficos abaixo encontram-se os resultados obtidos.
716
Para 57% dos entrevistados a Ruta graveolens L. ocupa lugar específico do Terreiro. São
usadas por entidades espirituais que se manifestam com Caboclo e Preto velhos.Simbolizam
para a maioria defesa contra negatividades.
717
Para 43% o guiné simboliza limpeza de cargas negativas.Usadas em geral por entidades
denominadas Pretos velhos e Caboclos . Não ocupam lugar específico no Terreiro.
718
É considerada planta de proteção para 43%.Ganha lugar de destaque para 43% dos
entrevistados que a coloca nafrente do barracão,na frente da porteira,na Casa de Ogum e na
Casa de Exu.Mais usada pelos caboclos da linha de Ogum.
3
Foto:Wandir Vieira Leal Santos
719
Considerações finais
Povos do continente africano nos ensinam, com sua grandiosa sabedoria que toda planta tem
poder de curar e assim o dizem:”Ewè bobi ni xe gun”.
Homem e planta exercem uma relação histórica, antropológica, sobretudo metafísica e sob
esta óptica obtivemos pontos de conexão que nos possibilitou conhecer os princípios divinos
nelas simbolizados.A arruda com seus poderes de curas sejam doenças de ordem espiritual
ou orgânica,nas mãos de rezadores e de rezadeiras, de entidades que se manifestam na
Umbanda sempre demonstraram efeitos benéficos confirmados pelos informantes É erva
utilizada em vários rituais como catimbó e pajelanças. Nos banhos, está presente para afastar
olho gordo e má sorte, e faz parte dos banhos de cheiro usados para purificação e defesa.
Porém, em algumas casas de Candomblé é considerada como um interdito para seus filhos,‘’ é
um ewó de nação’’.(BARROS,1986,p.103).
Referências
ALMEIDA, Maria Zélia de. Plantas Medicinais. 2ª ed. Salvador: Ed. EDUFBA, 2003.
BARROS, José Flávio Pessoa de & Eduardo Napoleão. Ewé Òrìsà: Uso Litúrgico e
Terapêutico dos Vegetais nas Casas de Candomblé Jêje-Nagô. Rio de Janeiro: Ed.Bertrand
Brasil, 19.
720
CORRÊA, M. Pio. Dicionário das Plantas Úteis do Brasil. v. VI. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, 1984.
DEBRET, Jean Baptista. Viagem histórica e pitoresca ao Brasil. São Paulo: Ed. Martins,
1949.
NASSER, Maria Celina de Q.Cabrera. O que dizem os símbolos? São Paulo: Ed.Paulus, 2003.
NETO, F.Rivas. Umbanda- A Proto-Síntese Cósmica. São Paulo: Ed. Pensamento, 2002.
VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé, o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Cia.das
Letras, 1996.
721
722
Transe, possessão e êxtase religioso nas religiões afro-brasileiras
Jociane Neves Negrão1
Introdução
[...] o transe é um fenômeno que acontece no mundo inteiro, e não está restrito somente a
um contexto cristão, mas em todas as religiões aparecem alguns aspectos do transe
espiritual. Às vezes esses aspectos são tidos como uma manifestação mais demoníaca, em
outros, são vistos como divino. Mas estão no mundo inteiro, em diferentes religiões e
culturas. Eu acho que esse, no fundo, é o ponto central de algumas experiências religiosas.
(Dra. Betina Schimidt in PECORA, 2011, p. 186)
Aqueles que buscam contato com o sagrado por meio dos estados alterados de consciência2
(EACs) ou estados superiores de consciência3 (ESCs), sempre causaram curiosidade, respeito
e temor. Chamados de médiuns por serem considerados os intermediários entre o plano
material e espiritual, usufruíram em todas as épocas da história humana de grande influência e
poder. Fonte direta para o Sagrado, ocupavam posição de destaque, ou até mesmo a posição
mais importante de seus povos. O Pajé em sua tribo, o Sacerdote no clã, o Curandeiro para o
povo4.
Por mais primitivo que fosse o povo, sempre existiu uma forma de contato com a divindade,
que emoldurava o comportamento do grupo, e que unificava e fortalecia o coletivo. A maioria
destes povos chamados primitivos, caracterizava-se pelo politeísmo, pelo transe e pela magia.
Com o advento do monoteísmo (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), o politeísmo perdeu
força, e com ele, o mediunismo/transe5 foi perseguido, combatido e reprimido como
manifestação maléfica, ignóbil e impura. A Inquisição foi apenas o ápice de um processo de
mudança de paradigma: do Pajé para o Padre, do Politeísmo para o Monoteísmo. O poder
1
Graduanda em Teologia Umbandista pela FTU. Contato: jn.negrao@uol.com.br.
2
Incluem uma variedade de fenômenos, tais como transe, êxtase, possessao, e mediunidade, também podem ser
incluídos os “estados de graça”, dissocição, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento,
etc. (DALGALARRONDO, 2008, p. 173)
3
RIVAS NETO, F. Escolas das Religiões Afro-brasileiras. São Paulo: Editora Arché, 2012, p. 48.
4
O médium sempre exerceu fundamental papel por canalizar as curas e as mensagens de entidades para a
comunidade, desempenhando o papel de terapeutas na Grécia, Roma, nos templos de Asclépio, no Egito,
Fenícia, Cartago, etc. Estes médiuns de cura logram muitas vezes mais êxitos com os seus dogmatismos e tabus
do que os psicoterapeutas oficiais, reticentes em suas afirmações e atitudes e, particularmente, sem os
proclamados poderes espirituais. (Câmara, 2005, p. 18)
5
Deuteronômio 18, 9-14.
723
religioso deslocou-se das muitas e inumeráveis mãos, para poucas e rígidas mãos, as da Igreja.
Por mil anos (Idade das Trevas) toda a religiosidade ocidental girou em torno dos mosteiros.
Toda esta realidade da etnia indígena somou-se à realidade da etnia africana, que chegou
trazida pelo português colonizador como escrava ao Brasil. A riqueza de suas culturas e
religiosidades foram determinantes para a formação do povo brasileiro. Em suas
religiosidades, o transe e possessão eram fundamentais.
E, embora esteja bastante claro que os EACs8 ou ESCs existiram e se mantiveram na cultura
popular durante todos estes séculos, antes e depois da colonização portuguesa, foi apenas no
6
GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo: Editora Contexto, 2012, p. 32.
7
Priore (2004, p. 52) cita que Padre Nóbrega foi quem primeiro registrou o fenômeno da intensa atividade
religiosa dos profetas indígenas no litoral brasileiro. Foi o primeiro a usar a palavra santidade para designá-lo,
escrevendo da Bahia em 1549. Observou o jesuíta que, com intervalo de alguns anos, feiticeiros percorriam as
aldeias dizendo trazer santidade, sendo recebidos com grandes festas e danças. Ao anúncio da visita, os
moradores limpavam os caminhos e preparavam-se para a festa. Entre as mulheres, a aproximação do pajé
produzia efeito singular: a correr, “de duas em duas desandavam pelas casas, dizendo publicamente as faltas que
fizeram a seus maridos umas às outras, pedindo perdão delas”. Recebido com choro ritual e danças, o recém-
chegado escolhia para a celebração das cerimônias uma maloca especial, que Nóbrega chamou de casa escura, e
se instalava na parte mais conveniente, segurando um maracá. Falando com voz de menino, convencia os que o
rodeavam de que era a cabaça que falava e começava a pregar. Dizia que se aproximava o tempo em que os
mantimentos brotariam naturalmente da terra e as flechas iriam por si mesmas em perseguição da caça. As
velhas encarquilhadas voltariam a ser moças e belas. Os guerreiros alcançariam vitória fácil na guerra fazendo
muitos cativos. Que não tivessem receio dos brancos: todos eles estavam prestes a transformar-se em animais de
pena e pelo, para alimento da tribo. Para adquirir o espírito da santidade, a assistência tinha de se deixar defumar
e assoprar. O pajé punha-se a fumar tabaco (chamado também petum e erva-santa), atirando baforadas de fumo
ao rosto dos aspirantes. Devidamente assoprados e defumados, os homens começavam a suar e tremer, enquanto
as mulheres mais sensíveis rolavam por terra em convulsões. Estas práticas estiveram presentes na Colônia ao
longo de todo o século XVI e XVII em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
8
“Há um considerável consenso de que esses estados são amplamente generalizados nas sociedades humanas,
tanto ancestrais como contemporâneas. De modo geral, nos dias atuais não se interpretam esses fenômenos como
centralmente psicopatológicos; são estados culturalmente constituídos e sancionados com diferentes
repercussões (psicopatógicas ou não) sobre os indivíduos. As EACs incluem uma variedade de fenômenos, tais
como transe, êxtase, possessão e mediunidade, também podendo ser incluídos os fenômenos denominados
estados de graça, dissociação, experiência mística, iluminação, consciência cósmica, renascimento, etc.
(DALGALARRONGO, 2008, p. 173). Para maiores informações: Bourguignon (1977) e Peters-Price-Williams (
1983, p. 5-39).
724
século XIX com o advento do Espiritismo, que o transe voltou a ser discutido na Europa e no
Brasil. Portanto, justificado pela elite europeia, o transe começou a ser tratado como algo
merecedor de estudo e pesquisa.
Para a compilação deste artigo serão utilizados revisão bibliográfica e artigos científicos. Ao
abordar a Umbanda, serão utilizados os autores renomados no meio umbandista, W. W. da
Mata e Silva e Francisco Rivas Neto.
Posturas mais rígidas e medicalizantes foram adotadas pelos médicos do eixo Rio de Janeiro-
São Paulo, tendo como grande incentivador Belford Roxo9 (1938, p. 59-72). Roxo também
exigia maior atuação do poder público na repressão às “práticas tão deletérias”, dizendo que o
combate às práticas mediúnicas seria uma medida de promoção da higiene mental.
(ALMEIDA, 2007, p. 3).
9
Psiquiatra renomado e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ele criou a classe diagnóstica
intitulada Delírio Espírita Episódico. Esta nova doença foi apresentada na França em um Congresso de
Psiquiatria, mas parece não ter sido valorizada, pois não foi utilizada pela Associação Americana de Psiquiatria
na compilação do Primeiro Manual de Diagnóstico de Saúde Mental (DSM) em 1952.
725
socioculturais do fenômeno e a necessidade de entendimento do comportamento humano.
Defendiam um maior respeito às práticas consideradas religiosas, étnicas ou culturais. Nina
Rodrigues10 (1935, p. 109) considerava que o estado de santo estava relacionado ao
sonambulismo provocado por sugestão (música, ritmada, monótona, que impelia à dança, e
esta ao estado de possessão)11. Sobre o Candomblé, Rodrigues (1935, p. 109) atribuía ao
transe e possessão a um mecanismo mental patológico, mas considerava que esses fenômenos
poderiam ter valor psicológico positivo, por seus efeitos catárticos, e por se apresentarem de
forma ritualizada e altamente controlada pelo grupo religioso, em especial pelos pais-de-
terreiro. Além disso, pensava que tais manifestações religiosas satisfariam as necessidades
emocionais primitivas dos seus adeptos, e não deveriam ser reprimidas. Franco da Rocha12 já
falava das práticas mediúnicas desde 1896.
De uma forma geral, as práticas mediúnicas eram acusadas pelo meio médico de desencadear
a loucura, de induzir ao suicídio (CALDAS, 1929, p. 159-159), ao estupro (PEIXOTO, 1909,
p. 78-94), ao homicídio e à desagregação familiar (RIBEIRO e CAMPOS, 1931, p. 12;
OLIVEIRA, 1931, p. 27)13.
Um bom exemplo disto foi o médico Carlos Eduardo Fernandes (1939 a, d, g; 1939 b, c, e, f;
1939) que solicitou ao governo punição para os espíritas que praticassem medicina
ilegalmente e intervenção policial nos centros, para enquadrar os médiuns receitistas14.
Portanto, há também uma rejeição quanto às atividades de curas promovidas pelos espíritas,
sendo chamado de charlatanismo e curandeirismo desde 1830 (SCHWARCZ, 2001, p. 222).
10
Médico (Maranhão, 1896-1897) e pesquisador que dedicou-se como cientista convicto ao estudo dos
fenômenos de possessão nos cultos afro-brasileiros em terreiros de Candomblé de Salvador/BA.
11
Entre suas conclusões, o estado de possessão é resultado de alteração qualitativa de consciência causada por
sugestão e manifestada por estado sonambúlico, modificações nesse estado por meio de respostas verbais e
físicas dadas às injunções sugestivas feitas por uma figura de autoridade, assunção temporária de outras
identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande desgaste físico e amnésia ao sair do processo. Além
dessa forma clássica do estado de santo, notou que as manifestações poderiam ser frustras ou incompletas, mas
também se prolongarem em “delírio furioso e duradouro”, o que ele considerou “desvios, aberrações do
verdadeiro estado de santo”.
12
Fundador do Hospital do Juquery/SP, e da primeira sociedade de psicanálise da América do Sul, primeiro
professor da cadeira de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP).
13
Segundo Almeida (2008, p. 7), as teorias de dissociação mental histérica e dos automatismos psicológicos de
Pierre Janet (1859-1947) foram as mais adotadas pelos psiquiatras da época para explicar o mediunismo. Janet
considerava que na atividade mental normal haveria uma função de síntese que integrava as percepções
sensoriais vivenciadas e transformadas em ideias conscientes. Nos histéricos, ocorreria uma fraqueza psíquica
constitucional dessa função integradora, de maneira que eles eram mais sensíveis a se dissociarem por meio de
sugestão ou em situações traumáticas; a teoria dos automatismos psicológicos explicaria os comportamentos nas
crises dissociativas, quando “ideias fixas subconscientes” seriam reproduzidas (RODRIGUES, 1935, p. 78;
MOREL, 1997, p. 130).
14
O “médium receitista” era o indivíduo que inspirado por um espírito, diagnosticava doenças e prescrevia
tratamento, geralmente fitoterápicos.
726
Convém lembrar o caso de Juca Rosa (Rio de Janeiro, 1860)15 que foi preso e desapareceu.
Conhecido como feiticeiro, serviu como exemplo para que se criasse uma legislação (Código
Penal de 189016) específica contra os curandeiros e os feiticeiros. As práticas mediúnicas
passaram a ser consideradas crimes contra a saúde pública e muitas casas de culto foram
fechadas e médiuns presos ou internados em manicômios. Outro caso foi João de Camargo
(São Paulo, final século XIX) que foi preso inúmeras vezes, desprezado, considerado
alcóolatra e louco, tentativas de destruir sua reputação e respeitabilidade. Por fim, João de
Camargo registrou-se como espírita em 1921, sendo então deixado em paz. Tanto Juca Rosa,
quanto João de Camargo17 tinham características em seus cultos daquilo que viria a ser
chamada Umbanda18.
Artur Ramos publicou sua tese de doutoramento intitulada Primitivo e Loucura (1926) onde
defendia uma visão evolucionista e racista do transe. Já em A cultura negra no mundo
(RAMOS, 1937) enfatizou fatores culturais, deixando para trás a perspectiva racista.
“Manteve, como Nina Rodrigues, o referencial teórico em que aproximou possessão à histeria
vista na época segundo uma perspectiva psicodinâmica, influenciada por autores como Freud
e Jung” (ALMEIDA, 2007, p. 9).
Ulisses Pernambuco19 “defendia uma visão tolerante em relação aos cultos afro-brasileiros,
pois não via neles a origem de transtornos mentais, mas a manifestação cultural das camadas
pobres da população” (PERNAMBUCO in ALMEIDA, 2007, p. 10). Ulisses Pernambuco e
Artur Ramos defendiam um controle médico sobre as religiões com fundamentos no transe,
mas sem apoio policial, pois acreditavam que a educação era o único meio para afastar a
população deste comportamento primitivo. (ALMEIDA, 2007, p. 10)
René Ribeiro dizia que as dissociações produzidas pela experiência religiosa tinham, entre
outras, a finalidade de operar como um mecanismo de escape perante uma situação de forte
pressão externa. Portanto, concluiu ser a possessão um fenômeno normal, compreendido
15
Rivas Neto (2012, p. 49 e 83)
16
Artigo 156 – pune a prática de medicina por indivíduos desprovidos de título acadêmico. Artigo 157- condena
práticas de “magia e seus sortilégios” e o uso de “talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e
amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”.
Artigo 158- punia o exercício de curandeirismo.
17
Rivas Neto (2012, p. 49 e 83).
18
Brown (1985, p. 10): Segundo Brown, não se pode afirmar com certeza absoluta que Zélio tenha fundado a
Umbanda. A data da primeira manifestação do caboclo das Sete Encruzilhadas passou a ser aceita pela maioria
dos umbandistas, como marco inicial. Ver também: CHATELAIN, H. Folk Tales of Angola. London: The
American Folk Lore Society, 1894, p. 268. Chatelain já dava uma definição para o termo Umbanda.
19
psiquiatra de Recife incentivou Gilberto Freyre a organizar o 1º Congresso Afro-Brasileiro em 1934, em
Recife.
727
mediante a identificação de padrões culturais dos participantes e dos condicionamentos que as
normas grupais impunham (RIBEIRO, 1937; 1952; 1956; 1957).
Segundo Câmara (1995, p. 624), foi Jacques Mongruel que primeiro reconheceu a função
terapêutica do transe e possessão, no I Congresso Interamericano de Medicina, ocorrido em
1946, no Rio de Janeiro, a isto ele chamou Transe Psicoautônomo, ou seja, uma manifestação
psíquica espontânea de natureza autônoma.
Pinho reconhece também que místicos não psicóticos, frutos quase exclusivos de fatores
socioculturais existiram individualmente ou agrupados, em todas as seitas e todas as eras.
Faz críticas à visão medicalizante e estreita da psiquiatria em relação a fenômenos como
possessão, demonopatia, transes mediúnicos, e os estados de santo. Segundo ele, a
psiquiatria sempre identificou esses estados como dissociação histérica. Diz que se os
histéricos utilizam mecanismos dissociativos, de alteração da consciência, nada impede,
entretanto, que pessoas psiquicamente sadias, quando acionadas por fatores culturais e
religiosos, desenvolvam estados alterados de consciência sem significação patológica. [...]
populações dos centros espíritas e candomblés incluem imensa maioria de pessoas normais,
simultaneamente com a minoria de anormais, estes em parte levados pela expectativa das
curas (PINHO, 1975, p. 211-224).20
Portanto, após toda essa revisão histórica, podemos concluir que, para a Psiquiatria do final
do século XIX ao início do século XX, o transe foi considerado patológico, merecedor de
intervenção medicamentosa, internação e repressão policial21.
Após inúmeros embates entre os religiosos e psiquiatras, o conceito psiquiátrico sobre transe e
possessão sofreu imenso progresso e hoje, no conceito médico atual (DSM IVR e CID 10), o
transe e possessão, se adequados à realidade e cultura local, não são considerados
20
No artigo Tratamentos religiosos das doenças mentais (1975), Pinho estudou 60 pacientes psiquiátricos. O
autor coletou 11 categorias diferentes de etiologia: 23% encosto, 15% feitiço, 12% esgotamento, 7%
mediunidade não resolvida. Quanto ao tratamento, 1/3 buscou ajuda com tratamento médico, 2/3 inicialmente
buscaram tratamentos populares, principalmente no candomblé de caboclo 47% e “centros espíritas kardecistas”
42%. (ALMEIDA, 2007, p. 11)
21
ALMEIDA, 2007; RAMOS, 1937; CALDAS, 1929; MOREL, 1997; RODRIGUES,1935; OLIVEIRA, 1931;
RIBEIRO,1937, 1952, 1956, 1957; RIBIERO e CAMPOS, 1931.
728
patológicos22, mas se desprovidos de significação cultural, deslocados da realidade daquele
povo, devem ser tratados como patologia psiquiátrica. (NEGRAO, 2008, p. 18)
Dra. Bettina E. Schmidt (in PECORA, 2011, p.185-192) deixa bem claro que possessão
espiritual não está relacionada à saúde mental. Portanto, a Ciência Médica e a Antropologia já
concordam que transe e possessão não estão relacionados à doença mental.
A etnia branca trouxe ao Brasil basicamente o monoteísmo, representado pela Bíblia e pelo
Torah, e também a herança da magia europeia, com toda a sua simbologia. A etnia africana,
representada por muitos povos diferentes, trouxe uma cultura islamizada pelo Alcorão, mas
alguns povos africanos trouxeram seus conceitos politeístas, sem livro sagrado, transmitidos
pela tradição oral, contados em seus mitos e ritos. A etnia indígena, assim como alguns povos
africanos, não possuíam livro sagrado, e também se mantinham por meio da tradição oral,
seus mitos e ritos.
As práticas religiosas africanas e indígenas causaram repúdio por suas diferenças marcantes
quando comparadas às culturas europeias. Por não possuírem um livro sagrado e não
utilizarem a escrita tradicional, as culturas africanas e indígenas foram denominadas
primitivas23. Nestas culturas de tradição oral24, o conhecimento é passado de geração em
geração, de mestre a discípulo, por meio de um processo iniciático.
22
“No Brasil, realizou-se um dos estudos provavelmente mais cuidadosos relativos à avaliação da saúde mental
de pessoas classificdas como médiuns espiritas. Alexander Moreira de Almeida (2004) entrevistou
cuidadosamente um grupo de 115 médiuns espíritas na cidade de São Paulo, aplicando a eles o Self-Report
Psychiatric Screening Questionnaire(SQR-20) e a Escala de Adequação Social (EAS). Identificou 12 sujeitos
(7,8%) com provável psicopatologia e comparou-os com 12 sujeitos normais. O autor verificou que o grupo de
115 médiuns apresentava baixa prevalência de transtornos mentais e boa adequação social. Os médiuns não
apresentavam, também, o transtorno de identidade dissociative. Assim, pode concluir que a mediunidade, pelo
menos no context espírita brasileiro, não se associa nem a transtornos mentais (incluindo os transtornos
dissociativos da personalidade), nem a dificuldades de adaptação social”. (DALGALARRONDO, 2008, p. 175)
23
“A memória oral dos povos africanos não valia tanto quanto aquela que permitiu aos gregos conceber a Ilíada
e a Odisséia”. (PRIORE, 2004, p. 1)
24
Segundo Rivas Neto (2012, p. 48) as religiões de tradição oral são politeístas, multirreferenciais,
polissistemáticas e, portanto, policêntricas. Politeístas porque não utilizam uma única divindade, mas um
panteão, cada um com sua importância, daí a multirreferencialidade. São polissistemáticas porque não há uma
única forma de realizar um rito, mesmo que ele seja destinado à mesma divindade. E policêntrico porque não há
um único modelo a ser seguido, exemplo disso são as religiões afro-brasileiras, com suas inúmeras escolas24
(Culto da Jurema, Candomblé de Caboclo, Toré, Xambá, Babassuê, Xangô, Tambor de Mina, Umbanda,
Candomblé, Catimbó, Batuque, Omolocô, Umbanda, etc.).
729
Nas religiões de tradição oral, o tempo é o tempo mítico, ou seja, o tempo vivenciado pelo
mito. Não há marco inicial, o mito é revivido em cada rito. E o rito reatualiza o mito. É
comum ouvir a expressão no início dos tempos como referência nas historietas desta tradição
como exemplificam os Itans do Ifá. A ideia de tempo era bastante diferente, própria de cada
povo25. Normalmente, o tempo era determinado pelas colheitas, pelas estações do ano ou pela
necessidade de comercialização dos produtos26. Portanto, se a ideia de tempo era algo pouco
importante na tradição oral, como se deu a passagem do atemporal para o temporal? Do
tempo circular para o sequencial/linear?
Na tradição oral, o conhecimento está livre para ser interpretado, modificado e ritualizado
conforme a compreensão de cada época e de cada povo. Não há rigidez conceitual, permitindo
a mobilidade que inclui todas as formas de compreender o sagrado. Na tradição oral o
Homem é visto como sagrado.
25
GOODY, 2012, p. 24-25.
26
“O tempo nas culturas orais era contado de acordo com fenômenos naturais: a progressão diária do sol, sua
posição na esfera especial, as fases da lua, o transcorrer das quatro estações.” (GOODY, 2012, p. 24)
730
Outra característica importante das culturas orais é a valorização do contato direto com a
divindade/natureza, e seus intermediários (médiuns, sacerdotes, pitonisas, pajés e afins). Se o
contato se dava assim, o transe, a possessão e o êxtase religioso tinham caráter primordial e
determinante na religiosidade e na experiência religiosa dos povos não cristãos.
Apesar de todos os esforços empreendidos pela Igreja, com perseguição, violência, repressão,
e mortes, o transe seguiu firme na religiosidade brasileira, sincretizada e disfarçada,
sobrevivendo ao longo dos séculos e mostrando sua força enraizada no povo brasileiro. E
mesmo hoje, quando o movimento religioso neopentecostal se fundamenta na perseguição ao
transe, ele se mantém.
Segundo Gadamer (2000, p. 227) estudar, refletir e escrever sobre religião é trabalhar sobre o
mesmo material de que ela é feita, da experiência humana nos seus limites, assim como de
símbolos culturais, que constituem, alimentam, constrangem, enriquecem e viabilizam nossos
espíritos e nossa existência neste mundo. Todos, crédulos e incrédulos, de uma forma ou de
outra, somos tocados pelo espírito da religião e dele dificilmente escapamos.28
27
O termo superstitio tem origem no latim, e significava prática incorreta de um rito, antítese portanto, do termo
religio. A superstição não estava ligada à crença, mas à prática. Durante a Reforma, religio foi ligada à fé crista
comum e à confissão, e o termo superstitio foi alterado para magia, prática malefica e ignorante. (HOCK, 2010)
28
Mircea Eliade fala do Homo religious, para quem tudo é dotado de significado religioso, o Cosmos vive e fala.
Este homem busca a transcendência na imanência, experimentando o Sagrado. (ELIADE, 1996, p. 17).
731
Diante disso, pode-se concluir que a religiosidade é uma característica da espécie,
independente da religião, inerente, mas variável de indivíduo para indivíduo29.
Mas, como seria definido o transe por estudiosos das religiões afro-brasileiras?
Se o textos sagrados têm para as diversas tradições cristãs um status ímpar de referência,
para as tradições das religiões afro-brasileiras, este status é ocupado pela experiência
religiosa. A experiência religiosa não é apenas uma possibilidade, como nas tradições
cristãs. Ela é um fator estruturante para a religião. Assim, por exemplo, tanto na Umbanda
quanto no Candomblé, a experiência do transe com a entidade espiritual estrutura o ritual, a
hierarquia da comunidade, a ética (ou moral) dos fiéis, a compreensão do lugar de cada fiel
no mundo religioso, o sistema simbólico da religião, etc. Todo o sistema religioso tem a
experiência religiosa como referência, como ponto de culminância e ponto de partida.
Berkenbrock (2011, p. 23) ressalta como a experiência religiosa foi desprezada após a
Teologia Escolástica, por ser um processo individual e subjetivo, valorizando-se a partir daí
uma Teologia baseada nos textos escritos e na racionalidade. Veja:
Humberto Eco fala da religiosidade laica como a crença em formas de religiosidade, e logo, sentido do sagrado,
do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma
divindade pessoal e providente (ECO in DALGALARRONDO, 2008, p. 17). Max Weber fala do ouvido
religioso que, assim como o ouvido musical, tem uma sensibilidade especial para perceber de forma
discriminada e intuir de forma aprofundada. (WILLAIME; HERVIEU-LERGER in DALGALARRONDO,
2008, p. 17) Segundo Dalgalarrondo, a experiência religiosa remontaria a dois aspectos, um racional, ligado ao
pensamento filosófico, que possibilitaria a formação ideológica e teológica, como comumente conhecemos nos
púlpitos tradicionais. E um irracional, que remontaria a um aspecto irredutível e intraduzível, de natureza
misteriosa e individual. Foi a este aspecto que Rudolf Otto (2007) classificou como terrível e fascinante, que
geraria e sustentaria a religião.
29
Estaria aqui o conceito de nível consciencial?
30
Coordenador de pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.
732
[...] a experiência religiosa individual recebeu – principalmente após a estruturação da
Teologia Escolástica – muito pouco espaço ou importância como elemento da reflexão
teológica. A experiência religiosa foi relegada ao campo da piedade ou devoção pessoal, ao
campo da vivência da espiritualidade e não da reflexão; por outro, a experiência religiosa
era entendida como algo tão subjetivo que não poderia contribuir para a objetividade (e
certa neutralidade cientifica) exigida por uma determinada ciência, como a teologia. Há
também um componente político nesta compreensão, pois a teologia cultivada pela
instituição não dava espaço ao sentimento subjetivo, entendo a compreensão teológica
como uma reflexão sobre a verdade instituída. Esta situação tem se modificado desde fins
do século XX, quando aos poucos, a experiência religiosa tem ganho paulatinamente
cidadania [...] Independente de quão valorado é hoje a experiência religiosa, uma coisa é
certa: ela não mais pode ser desprezada na reflexão teológica como um dos elementos para
se pensar a lógica religiosa.
De fato, segundo Gonçalves e Jorge (2012, p. 5-10) o transe é elemento fundamentante para a
cosmovisão das religiões afro-brasileiras. É uma prática ritual complexa, mas não é acessível
a todos, pois requer características individuais31.
Segundo as autoras32, “o transe pode ser facilitado pelos sacerdotes e magos, por seus
cânticos, encantamentos ou mesmo por bebidas rituais, como é o caso da bebida jurema,
33
álcool e tabaco.” De acordo com suas pesquisas, há coisas que são de cunho coletivo
(aprendizagem)34, como por exemplo, as danças. Esses atos não são reproduzidos
mecanicamente, mas são observados, apropriados e vivenciados. Segundo a sacerdotisa
entrevistada por essas pesquisadoras, o corpo é expressão da espiritualidade. A música, o
canto, a dança, o transe e a possessão são vistos como expressão da espiritualidade. O corpo é
conexão do homem com o mundo dos Orixás. É o corpo que promove o encontro entre essas
duas dimensões, a material (hominal) e a espiritual (Orixás).
Você tem durante o transe uma redução do seu estado de consciência pleno, então você não
tem o controle absoluto do seu corpo. É importante frisar que há diferença entre a
incorporação e o transe em si, são coisas distintas. Mas é impossível ensinar algum filho de
31
“nem todos os seres humanos são veículos de espíritos” (RIVAS NETO, 1994, p. 109)
32
Consultar também: FERRETI, 1985; CASCUDO, 1988; ASSUNÇÃO, 2010)
33
Mauss (2003, p. 422) diz “[...] Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em comunicação com
Deus.”
34
Mauss (2203, p. 404) afirma que o “indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato
executado diante dele ou com ele pelos outros.” O habitus é de natureza social.
733
santo a entrar em transe, a ter uma incorporação porque o transe possibilita o encontro de
dois planos de existência e a liberação do inconsciente individual e coletivo, o que torna
impossível você ter controle, cada pessoa tem uma expressão particular e cada Orixá ou
entidade vai se manifestar também segundo as particularidades das pessoas. Aprender a
dançar é uma coisa, aprender o transe é impossível. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 8)
Portanto, o transe depende de características que não são adquiridas nos terreiros, e não pode
ser ensinado. “O corpo no momento do transe é um veículo para manifestação do transcendente
e este irá guiar o indivíduo, a entidade espiritual é quem ensina e domina seu cavalo de santo
ou médium”. (GONÇALVES; JORGE, 2012, p. 10). E mais, os parâmetros norteadores do
médium e de sua atuação mediúnica são os aspectos espirituais e a entidade espiritual atuante.
Não há aprendizado nisso.
[...] ser um médium de Umbanda, isto é, um veículo dos espíritos de caboclos, preto-velhos
e outros de dentro da faixa é uma condição excepcional, por ser, por sua vez, consequência
de uma escolha especial, feita no plano astral antes mesmo do espírito encarnar [...] [...]
função mediúnica exclusiva militar na Corrente de Umbanda e sobre aparelhos pré-
escolhidos, desde quando desencarnados [...]
Considerações finais
734
Se analisarmos tão e exclusivamente as diferenças existentes entre as duas formas de se tratar
o transe pela ciência e pelas religiões afro-brasileiras, já podemos notar o quanto é difícil
chegar a um consenso. O transe é definido pela ciência como estado alterado de consciência
(EACs), algo que altera o estado consciente, vigil. As religiões afro-brasileiras definem o
transe como estado superior de consciência (ESCs), considerando que o transe eleva o nível
de consciência. Enquanto um o rebaixa, o outro o eleva.
Também foi fácil notar que o transe, quando ocorre em religiões afro-brasileiras ou culturas
ditas politeístas, é visto com algo primitivo e negativo. Contudo, se o transe ocorrer entre as
culturas monoteístas, ele será considerado divino, superior, místico.
Também foi fácil perceber como os médiuns foram tratados de diferentes formas ao longo da
história. A princípio, enquanto predominavam as culturas politeístas, desfrutaram de prestígio
e poder. Na medida em que as culturas politeístas foram sendo dominadas, e o monoteísmo
implantado, eles foram desprezados, desacreditados, difamados, e posteriormente
perseguidos, presos e até mesmo mortos. E ainda hoje sofrem perseguições de alguns
segmentos religiosos e preconceito social.
Nas religiões afro-brasileiras, o adepto é considerado importante fonte e meio para o contato
com o sagrado, confrontando com as religiões monoteístas que apresentam um vínculo de
dependência à vontade de Deus e seus representantes. O conhecimento, ao ser transmitido
oralmente, permite uma maior mobilidade e uma ressignificação contínuas.
Quando se analisa o transe, possessão e êxtase religioso nas Tradições Orais e Escritas,
observa-se o desmonte da Tradição Oral pela Tradição Escrita. Repudia-se o transe, porque
ele possibilita o contato direto com a divindade, dispensando intermediário. Esse contato
direto com o sagrado passa a ser demonizado pelo monoteísmo, que passou a ensinar que
somente se chega à divindade por meio do exercício das leis e das práticas religiosas e morais.
Convém também considerar que o transe só foi estudado com a chegada do Espiritismo no
Brasil, visto que foi trazido pela alta estirpe brasileira, culta e rica, representando a cultura
europeia, com entidades normalmente respeitáveis, educadas e nobres, que destoavam
sobremaneira dos modos simples das entidades dos cultos afro-brasileiros, representados por
sua vez, pelos caboclos, pretos velhos, crianças, boiadeiros, marinheiros, baianos, e o que
dizer de Exu?
735
Há evidências de que este repúdio ao transe das religiões afro-brasileiras, que expressa a
religiosidade popular, é mais uma forma de exclusão, que ultrapassando a barreira social,
atinge neste momento, também a religiosa.
Transe cheirando a perfume francês é mais aceitável que cheirando a arruda e guiné.
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740
741
GT7 – Escolas públicas e (in)tolerância
religiosa
Coordenador/a
Resumo
As relações entre escolas públicas e religiões podem ser entendidas a partir de dois modelos.
Primeiro, a laicidade é entendida como a prática da ausência de símbolos e rituais religiosos
na administração pública. Segundo, pela prática dos grupos religiosos se expressarem
livremente no espaço público. A escola pública tornou-se uma importante arena de disputa
entre os diferentes atores sociais, resultando em tensões que evidenciam diferentes visões de
mundo, na qual estão mobilizadas as agendas pedagógicas, dos Movimentos Sociais e dos
grupos religiosos. Nossa proposta é reunir trabalhos que tenham como objetivo analisar as
relações entre as religiões e escolas públicas buscando investigar se estas relações interferem
no processo de ensino-aprendizado e metodológico, na construção ou desconstrução da
tolerância e intolerância religiosa e na possibilidade ou impedimento de novos desenhos tanto
da estrutura pedagógica como das relações de tolerância/intolerância religiosa.
742
A (in)diferença e (in)tolerância em escolas públicas
Sueli Martins1
Introdução
Entre os professores das escolas públicas municipais da cidade de Juiz de Fora podemos
encontrar uma diversidade de pertencimentos e, consequentemente, uma variedade de
opiniões sobre a questão da inclusão da religião no espaço público. As percepções nesse
ambiente são heterogêneas, assim como as posturas adotadas. Observamos que as ações nem
sempre provêm de uma discussão interdisciplinar, ficando a cargo de cada profissional a
decisão de como lidar com conflitos que possam, eventualmente, surgir, pois estes sempre
aparecem na “sala ao lado”. O silêncio, muitas vezes, tido como aliado, significa, para a
maioria, que vivemos em uma sociedade tolerante com as crenças do outro. Mas as
controvérsias ali estão, à espreita, esperando o momento propício para explodir e se, e quando
isso acontece, como um copo que transborda, apenas com a gota d’água, o choque é
inevitável; alega-se que o “causador” é o intolerante, pois se recusa a participar de um pacto,
um acordo implícito que fornece aos gestores escolares um argumento quase sempre infalível:
“mas ninguém nunca reclamou...”. E assim, num consenso inconcebível e incompreensível, os
anos vão se passando, e as discussões vão sendo adiadas – ao negar as identidades do crer,
nega-se também a possibilidade de questionamentos: “sempre foi assim...”.
Em entrevistas com professores, foi possível vislumbrar que essa “comunhão” de ideias não é
tão forte assim, que a corda que mantém o malabarista está por um fio e o acordo não
assinado pode ser um acordo falso, feito sem o consentimento de uma parcela que está prestes
a se rebelar...
Neste artigo vamos nos ater a um episódio, ocorrido em uma das escolas pesquisadas no ano
de 2010, e que é muito revelador: como lidar com um conflito quando este ocorre e qual a
matriz que se defende ao tentar contornar o conflito. A partir desse episódio tentaremos
identificar o que os atores entendem por laicidade e se existe tolerância no ambiente escolar.
1
Mestranda em Ciência da Religião pela UFJF. Bolsista da CAPES. Orientador: Marcelo Ayres Camurça.
Contato: suelimartins2009@gmail.com.
743
A escola
A Escola Municipal, objeto deste artigo, situa-se na cidade de Juiz de Fora, estado de Minas
Gerais, tem mais de 100 anos de funcionamento, e foi, até 1986, considerada escola de zona
rural. A história do bairro, fundado por imigrantes alemães, traz consigo a marca da Igreja
Católica e da Igreja Luterana, denominações que conviveram “pacificamente”, mantendo suas
diferenças, dividindo espaços, inclusive o cemitério do bairro.
A escola, construída ao lado de uma Igreja Católica, por muito tempo manteve uma ligação
mais do que física, como podemos constatar em depoimento concedido por uma professora,
católica, que sempre morou nas proximidades da escola, tendo nela estudado quando criança:
Porque quando criança né, para mim era tudo uma coisa só. A escola e a Igreja era assim,
era a comunidade que eu conhecia. As pessoas que frequentavam a Igreja eram as pessoas,
os meninos da minha sala. A gente saía da escola para o ensaio de coroação. (...) Então a
gente sempre marcava os ensaios para depois da aula. Depois das cinco. (...) Porque eram
alunos da mesma turma... (Ivone 2)
Na saída das aulas os alunos se encaminhavam para a igreja e, muitas vezes, crianças de
outras denominações, sofriam discriminação, mas estavam “acostumados” a isso. Como só se
oferecia o ensino até a quarta série primária, quem desejasse continuar os estudos, procurava
as escolas do centro da cidade, ou em bairros próximos, e os que se diziam católicos tinham
mais chance de estudar, o que fez alguns luteranos se declararem católicos, por vezes. O
depoimento a seguir também é de uma professora que sempre morou nas proximidades da
escola, tendo também nela estudado quando criança, porém, luterana:
Atualmente, a escola funciona em dois horários, manhã e tarde, apenas com as séries do
ensino fundamental, com diretor e vice, e um coordenador pedagógico para cada turno. Em
2007, em reuniões pedagógicas realizadas na escola, rezava-se, antes de seu início, a oração
do Pai-Nosso. Esta foi retirada das reuniões, quando questionamentos sobre o fato da escola
ser laica começaram a ocorrer. No turno vespertino, no horário de entrada, que acolhe as
2
Todos os nomes dos entrevistados foram modificados a pedidos.
744
crianças do 2º ao 5º Ano, a oração do Pai Nosso, continua sendo feita todos os dias e, mesmo
questionada, a coordenação diz que a oração tem caráter universal.
As pessoas que trabalham lá costumam organizar a missa do domingo né? Eu vejo assim,
algumas meninas que trabalham ali sempre estão na Igreja de São Pedro. Então talvez seja
isso. Lá eu não sei se ainda reza o Pai Nosso. Rezava o Pai Nosso. Todo dia. E ninguém
questionava. (Ivone)
Evidencia-se, por toda a escola, o domínio simbólico e cultural das práticas e crenças
católicas, disseminadas em atos cívicos e pedagógicos. A escola mantém, em suas instalações,
símbolos religiosos cristãos católicos, como imagens e cartazes, folders e mensagens, em
locais visíveis e de acesso ao público. Visitas de padres que “moram ao lado” não são tão
esporádicas: às vezes são convidados a benzer a escola, rezar uma missa de formatura, ou
simplesmente ministrar uma palestra em algum evento. No depoimento de uma professora
sobre o dia da família, realizado em 2012, podemos observar com nitidez:
Após a leitura, o Padre fez um discurso, quase uma homilia, sobre a relação da família com
a igreja, escola, e comunidade, enfatizando sempre que a presença de Deus na família deve
ser constante, que este tem um projeto para cada pessoa. Que os pais não devem ter
vergonha de falar d’Ele com seus filhos e que os educadores tem sempre que ter uma
palavra d’Ele em mãos. Que tudo vem de Deus, disciplina, reflexão, família, amizades etc...
Fiquei pensando que se fosse para rezar uma missa teria ido à Igreja. (Júlia)
As festas, como na maioria das escolas, são realizadas de acordo com o calendário religioso
cristão/católico: Quaresma, Páscoa, Natal, eventos divulgados por cartazes afixados nos
murais, assim como as festas de cunho mais cultural, como festa junina e dia da família.
Interessante observar que, também no ano de 2012, a Quaresma teve um destaque maior, pois,
durante todo o período, cartazes e folders da Igreja Católica ficaram afixados em locais bem
visíveis, a ponto de um professor comentar que “a escola estava parecendo uma extensão da
Igreja” (Maurício). Na semana que antecede o Domingo de Páscoa, quando os católicos
praticam, de acordo com o ritual, jejum e abstinência, não foi servida carne aos alunos,
somente arroz e batata. Indagando a uma funcionária porque não havia carne, esta
confidenciou que sim, havia carne, a geladeira estava repleta.
Depois de analisar a íntima ligação da escola com a religião católica, podendo-se observar a
evidência de algumas práticas, legitimas em uma escola confessional, mas estranhas em um
745
ambiente público, descreveremos um episódio específico que servirá de base para uma
pequena discussão sobre a laicidade.
O episódio
Algumas observações devem ser feitas quanto ao fato. Os Testemunhas de Jeová não
comemoram o Natal e a Páscoa, não fazem transfusão de sangue e não participam de guerras e
serviço militar, porém obedecem aos governantes3. Também não saúdam a bandeira ou
cantam o hino nacional, porque, para eles, essa atitude seria adoração e este ato pertence a
Deus, como visto em Mateus 4:10 “Respondeu-lhes Jesus: Para trás, Satanás, pois está
3
Informações disponíveis em http://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/perguntas-frequentes/. Acesso em 17
jul. 2013.
746
escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás”, também em Atos dos Apóstolos 5:29
“Pedro e os apóstolos replicaram: Importa obedecer antes a Deus do que aos homens”4A
atitude do aluno, no momento cívico, foi um ato religioso; obrigá-lo a participar seria uma
afronta aos ensinamentos que recebe em sua formação religiosa. O hino nacional contém a
seguinte estrofe: “Ó Pátria amada, idolatrada. Salve! Salve!”.
Diante do exposto, ficam as perguntas: até que ponto a escola respeita as diferentes crenças?
Até que ponto é laica? E o mais importante: a laicidade é realmente um ponto de pauta da
escola pública? Esse é o nosso próximo ponto de discussão.
Breves discussões
Para tentarmos compreender o episódio ocorrido na escola, fizemos uma breve retrospectiva
de como a escola se porta diante da questão religiosa e descrevemos um episódio que foge aos
parâmetros de avaliação de seus gestores. Com isso, torna-se interessante uma discussão sobre
a laicidade, a fim de que, aparados pela teoria, possamos analisar o ocorrido.
Para a discussão da laicidade, trazemos à pauta Portier (2011) que, analisando a França, nos
diz que lá há uma consciência de um entendimento mais “diferencialista da existência”
(PORTIER, 2011, p. 22); isso porque “hoje, admite-se que a identidade de cada um possa
estar ligada a uma memória, depender de um enraizamento prévio, que deve necessariamente
ser considerado” (PORTIER, 2011, p. 22) e o Estado é visto “a serviço das singularidades que
emergem da sociedade” (PORTIER, 2011, p. 22). Para isso, segundo o autor, foi necessário o
entendimento de três princípios: igualdade, positividade e razoabilidade. O primeiro “admite
cada vez menos que os cultos não possam ser tratados de modo igual pelas instituições
políticas” (PORTIER, 2011, p. 22); o segundo que a “igualdade não deve ser vivenciada na
indiferença do Estado” (PORTIER, 2011, p. 22), ou seja, não existe uma “neutralidade”; e o
terceiro indica que deve existir certas condições que respeitem uma superior, a dos direitos
humanos. Ressalta “que cada um possa manifestar sua pertença a coletivos particulares
(étnicos, regionais, religiosos) e atestar, ao mesmo tempo, sua pertença ao universal de uma
comunidade política” (PORTIER, 2011, p. 23).
4
Disponível em http://www.bibliacatolica.com.br/. Acesso em 17 jul. 2013.
747
Interessante anexar a esse entendimento Giumbelli (2004), que nos reporta ao debate da
liberdade religiosa no Brasil. Para o autor, a “religião se tornou incontornável na atualidade”
(GIUMBELLI, 2004, p. 48) e na escola a religião tende a entrar como signo e como fato:
“Sugere-se, ao mesmo tempo, que a religião esteja fora (como “signo”) e dentro (como “fato”
a ser estudado) da escola.” (GIUMBELLI, 2004, p. 52). O autor afirma que, no Brasil, não
houve definição de espaços; um Estado ‘moderno’ e uma sociedade ‘tradicional’ continuam a
conviver numa tênue linha entre a organização jurídica e a organização de espaços com
limites próprios e específicos (GIUMBELLI, 2004, p. 57).
Essa preocupação com o viver em conjunto e civilização pode ser encontrada na obra de
Asad, pois, segundo ele, esses temas agregam dimensões de “moral”, “ética”, “valores”,
“tolerância” e “cidadania” (GIUMBELLI, 2004, p. 58). Para Asad, todavia, um Estado laico
não garante a tolerância entre grupos religiosos, porque coloca em jogo diferentes estruturas
de ambição e medo (ASAD, 1999, p. 08).
Tomemos, neste momento, a teoria de Peter L. Berger e Thomas Luckmann (apud USARSKI,
2001, P. 91), qual seja a retórica da aniquilação.
Tal elemento retórico surge tipicamente numa situação de competição entre 'realidades
sociais' contraditórias, ou seja, quando diferentes 'concepções do mundo' se encontram e
pelo menos um dos partidos sente a necessidade de defender o próprio 'universo simbólico'
diante de dada alternativa.
748
primórdios como nação, tanto é que padres cantores tem, hoje em dia, em seu repertório, o
próprio hino nacional5.
Para Giumbelli (2004, p. 48), no Brasil, pode-se averiguar a presença da religião católica
como fonte de moralidade, que foi “um apoio e um sustento para uma ordem cujos
fundamentos estavam em outro lugar”. Miranda (2011, p. 15) observa que o predomínio
cristão nos espaços públicos revela uma característica da sociedade brasileira, cujos grupos
dominantes se apropriam desses espaços. Atualmente se observa que católicos e evangélicos
são maioria absoluta dos professores das escolas da rede pública, e a concorrência entre eles,
desigual, faz com que se apropriem e façam uso desse espaço “da forma que lhes convém”.
No Brasil laico, inexistiu um “princípio universalista e de tratamento igual e uniforme que
abrangesse todos os sistemas religiosos”, fazendo com que determinadas religiões não fossem
reconhecidas, ou que pelo menos “um sistema religioso fosse mais legítimo que o outro”
(MIRANDA, 2009/2010, p. 130). Essa “legitimidade” faz parte de uma cultura democrática
que elimina a ideia de racismo e intolerância, devido à miscigenação e sincretismo, uma
mentalidade cordial da sociedade brasileira. Os símbolos religiosos, devidos à matriz católica,
são apresentados e ostentados no mundo público como prova da não existência de conflitos e
divergências entre os diversos grupos religiosos.
O ocorrido revela uma tentativa de aniquilação que, segundo Usarski (2001, p. 91) apela “à
consciência coletiva do maior conjunto social”, no caso, o catolicismo. A atitude demonstrada
pela coordenadora tem a “finalidade de manter a plausibilidade interna de seu grupo”,
desvalorizando “retoricamente a qualidade de uma ideologia adversa”. Por isso a crença do
aluno sequer foi levada em consideração, o possível conflito não foi discutido e a intolerância
se evidenciou dentro de um ambiente que se diz plural.
Importante observar que essa intolerância e indiferença com que os conflitos são vistos não
são pensadas a priori, ou seja, a presença da religião majoritária é tão naturalizada que quem
age com preconceito não tem ideia de estar assim fazendo e quem sofre não tem ideia de que
está sendo vítima; tudo permanece inalterado, é o que percebemos nos depoimentos de
diversos educadores como veremos a seguir.
5
Padre Marcelo canta em seu álbum “Um presente para Jesus” o Hino Nacional como visto em
http://www.radio.uol.com.br/#/letras-e-musicas/padre-marcelo-rossi/hino-nacional/2060912, acesso em 13, jul,
2013.
749
Alguns depoimentos
Uma fala constante entre a maioria dos professores da escola pública é a não existência de
conflitos. Para eles, o conflito até já existiu, houve sim, discriminação e intolerância, porém,
em suas aulas, conseguiram suavizá-los ou mesmo anular as controvérsias, mas, ao não serem
discutidos, a indiferença permanece, sem alterações efetivas na vida da comunidade.
Já tive aluno que a mãe é da umbanda e o menino sofria discriminação, mas não na época
que eu trabalhei com ele o ano retrasado, mais na época que ele entrou na escola, quando
ele era menor, sabe. Aí teve que fazer um trabalho né. (Abigail)
Eu peço para eles entrevistarem uma pessoa, que seja da mesma religião que ele, e que ele
fale para mim coisas que ele considere importante na religião dele. Mas as perguntas são
básicas. Eu sempre coloco quem que seria o líder máximo daquela religião, eu sei que ele
vai falar que é Jesus Cristo; tem determinadas coisas que eu meio que direciono, porque eu
quero que no final das contas eles me mostrem que todas as religiões pensam uma mesma
coisa. Ou seja, você tem que praticar a caridade, você tem que fazer o bem, você tem que
ser bom. (Ivanice)
Abigail não fala qual trabalho foi desenvolvido e como foi desenvolvido. Fala apenas que a
mãe do aluno esteve na escola e conversaram com ela. Soubemos pela mãe do aluno que ele
ainda sofre discriminação, mas aprendeu a lidar com ela.
Ivanice diz que todas as religiões pensam uma mesma coisa e, por conseguinte, aderem à
prática da caridade. Questionada quanto ao fato de existir religiões fora da matriz cristã, nos
disse apenas que esse tipo de ocorrência é rara na escola pública.
Outros professores, aqueles que observam a existência dos conflitos, uma minoria, passam
por um desconforto em relação à maioria. Estes não têm um embasamento teórico para a
discussão e alguns se dizem “perdidos” quanto ao que fazer, não têm o apoio da direção, e a
direção, por sua vez, também não tem condições de discutir o que se tornou “legalizado” pela
maioria.
É que os próprios professores, eles não têm consciência da laicidade do Estado, da escola
pública. Está tão introjetada a religião, e principalmente a religião majoritária, católica, que
eles não têm noção dos outros espaços, porque ele já introjetou aquilo e ele não percebe,
constitucionalmente, que essa escola é livre. (Fernanda)
750
A Secretaria de Educação, apesar dos diversos cursos oferecidos durante décadas aos
professores e gestores, nunca disponibilizou discussões acerca da intolerância religiosa na
escola pública, nem sequer, no caso de Juiz de Fora, adotou uma política para implementação
do ensino religioso. Uma antiga gestora de uma das escolas pesquisadas me confidenciou que
não sabia como se portar diante dos conflitos, tentava de todas as maneiras contorná-los, mas
que não tinha embasamento para tal, e que tais assuntos, sobre laicidade e religião no espaço
escolar, nunca foram colocados como ponto de pauta nas reuniões de diretores das quais
participou, e que a discussão, nessas reuniões, eram voltadas para o funcionamento
administrativo das escolas. Duas observações importantes: essas reuniões são, até hoje,
realizadas mensalmente, e a própria Secretaria de Educação mantém uma equipe que faz um
trabalho sobre diversidade, mas não discute religião.
O que acontece, a gente tem toda uma teoria, um estudo, formação, e aí quando a gente
chega na prática nada disso serve, e aí eu estou em crise, neste momento eu não sei o que
fazer, porque no cotidiano é tudo muito difícil. E aí eu já não sei mais o que é religioso, o
que é cultura, o que é tradição, e eu não sei o que fazer com isso tudo. Então quando eu te
procurei de novo foi nesse sentido assim de saber o que é que você tá vendo nas suas
pesquisas que pudesse me ajudar. Estou procurando com todo mundo, tô correndo atrás.
Marquei com o Alberto, quarta-feira vou conversar com ele, porque ele tem um olhar de
cultura. E converso com pessoal todo lá da Secretaria de Educação que trabalha com a
questão da diversidade, de novo, porque não sei o que fazer com isso tudo. (Eva)
Outros depoimentos poderiam aqui ser explorados, mas os que aqui estão são significativos
para demonstrar que professores e gestores estão sozinhos nessa árdua tarefa. Um trabalho a
ser realizado junto às escolas deve ser realizado, antes que o “caldeirão venha ferver e entorne
o caldo”. Episódios, antes esporádicos, começam a se tornar cada vez mais comuns no
ambiente escolar, principalmente com a entrada de novos atores, que passam a reivindicar
uma participação em condição de igualdade. Os dois últimos Censos do IBGE demonstram
que a diversidade invade a sociedade, e na escola algumas atitudes devem ser tomadas.
Segundo Camurça, que analisa dados do IBGE-2000, houve um crescimento de novas
dinâmicas religiosas. Existe, segundo ele, uma tendência crescente ao pluralismo e
diversidade religiosa no país, e o declínio do catolicismo estaria associado “à crise das
religiões de tradição majoritárias em qualquer parte do globo (...) face ao advento da liberdade
751
religiosa no espaço público moderno.” (CAMURÇA, 2006, p. 39). Sobre os dados do IBGE-
2010, Teixeira6 avalia, em entrevista:
Sem dúvida, um mapa marcado por uma diversidade religiosa que se anuncia. Com respeito
ao censo de 2010, algumas tendências se evidenciaram, como a diminuição dos católicos
romanos, que caíram de 73,6% para 64,6% e o crescimento dos evangélicos, sobretudo
pentecostais, que passaram de 15,4% para 22,2%. Numa população de 190,7 milhões de
pessoas, os católico-romanos somam 123,2 milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos
quais 25,3 milhões de origem pentecostal. Verificou-se ainda na última década um aumento
percentual dos sem religião, mas um pouco abaixo do esperado, de 7,4% para 8,0% (15,3
milhões).
Não existe mais uma hegemonia católica no país, e sim uma maioria católica. E isso também
é evidenciado in loco, bastando uma rápida observação no entorno escolar para encontrarmos
diversas manifestações e diversos templos religiosos: Igreja Católica, Luterana, Presbiteriana,
Batista, Metodista, IURD, Quadrangular, Testemunha de Jeová, Mórmons, Budistas e
diversas denominações evangélicas de menor porte, além de Centros de Umbanda,
Candomblé e Espíritas. Além das religiões, temos também a presença de agnósticos e ateus no
ambiente escolar. A indiferença com que se tratava a minoria começa a ser questionada, não
se pode, atualmente, não levar em consideração a reivindicação das diversas crenças ou não
crenças no ambiente escolar. A intolerância não é mais tolerada, a diferença faz coro e suas
reivindicações começam a perturbar o sono de quem esteve “deitado eternamente em berço
esplêndido”.
Considerações finais
A escolha do episódio relativo ao aluno Testemunha de Jeová é uma opção entre tantas outras
ocorridas no cotidiano escolar. Nesse ambiente, que é nosso projeto de pesquisa, podemos,
sem muito esforço, depararmo-nos com o silêncio sobre a questão religiosa e este leva-nos,
muitas vezes, pelos caminhos da indiferença e, como sabemos, esta última não é nada
tolerante: evitar uma discussão não resolverá os problemas oriundos da religião no espaço
público. Torna-se necessário e premente incluir a questão religiosa na pauta escolar, porque já
existe como signo e como fato, como nos diz Giumbelli (2004).
6
Sobre a entrevista ver http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/512819-o-campo-religioso-brasileiro-na-ciranda-
dos-dados. Acesso em 07 maio 2013.
752
Outra via de compreensão seria, além da discussão sobre indiferença e intolerância no
ambiente escolar, a laicidade, seus significados e seu desenvolvimento no campo religioso
brasileiro. Esse entendimento poderá nos ajudar a revelar que os conflitos atuais existentes em
nosso país não são tão novos assim, são devidos à nossa formação histórica, à grande ligação
entre religião e Estado, de uma religião hegemônica, que vem, de acordo com o Censo atual,
deixando de ser hegemônica, mas mantendo uma maioria. Por fim, cada frequentador do
ambiente escolar carrega consigo sua cultura, sua formação, sua etnia e sua religião. A escola
congrega em seu interior uma pluralidade e deve ser um espaço privilegiado para discutir
valores e conceitos. Colocar em pauta tais discussões é o desafio que se impõe.
Referências
ASAD, Talal. Introduction. In: Thinking about Secularism. Princeton, New Jersey: Princeton
University Press, 1999, pp. 01-17.
CAMURÇA, Marcelo Ayres. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In:
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). As Religiões no Brasil: continuidades e
rupturas. Petrópolis: Vozes: 2006, p. 35-48.
PORTIER, Philippe. “A regulação estatal da crença nos países da Europa Ocidental”. In:
Religião e Sociedade. 31/2, 2011, p. 11-28.
753
754
A escola e suas devoções
Nilton Rodrigues Junior1
As ações de combate à intolerância religiosa veem ganhando densidade social nos últimos
anos. Em 2008 no Rio de Janeiro, foi fundada a Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa – CCIR que promove desde este ano a Caminhada pela Liberdade Religiosa na orla
da praia de Copacabana. Esta Comissão, formada a principio pelos integrantes das religiões
afro-brasileiras, ao longo dos anos agregou integrantes de outras religiões, principalmente, da
Igreja Católica, do Judaísmo e de setores do Protestantismo.
O argumento principal defendido pela CCIR é o de que a intolerância religiosa é uma ação
social danosa à Democracia e que os principais promotores são os neopentecostais. Desta
maneira, o discurso da CCIR constrói a ideia de que existem dois grupos antagônicos: as
vítimas, quase sempre as religiões afro-brasileiras, e os algozes, sempre os neopentecostais
(RODRIGUES JUNIOR, 2012).
1
Pós-doutor em Antropologia pela UFRJ. Professor adjunto da Faculdade Cenecista da Ilha do Governador.
Contato: niltonjunior@globo.com.
755
sentido, a escola passou a ser um espaço privilegiado tanto para a construção como para a
desconstrução dos comportamentos intolerantes.
Neste sentido, as reivindicações são para que o Estado garanta a igualdade de manifestação
religiosa nas escolas, atuando no sentido de preservar, principalmente, as manifestações afro-
brasileiras.
Uma forte resistência tem partido de diversos setores dos movimentos sociais e da sociedade
civil contra a Lei 5301 de 19 de outubro de 2011 que criou “a categoria funcional de professor
de ensino religioso, para atuação exclusiva no âmbito da Secretaria Municipal de Educação”.
Este professor além da titulação de licenciatura necessita a indicação pela autoridade
religiosa. No concurso foram distribuídas 100 vagas da seguinte maneira: 45 para os
católicos; 35 para os protestantes/evangélicos; 10 para os espíritas; 10 para os afro-brasileiros.
Minha questão pode ser colocada nos seguintes termos: de quais formas as novas narrativas
concernentes ao combate à intolerância religiosa e a promoção da liberdade religiosa tem
consequências, se é que tem, na escola?
Meu artigo está apoiado em alguns conceitos teóricos e, por isso, acho importante,
inicialmente, defini-los.
A definição de Emerson Giumbelli sobre a laicidade do Estado satisfaz meus objetivos. Para o
autor a laicidade pode ser definida como a “desvinculação entre o aparato estatal e instituições
religiosas [...] de maneira mais extensa, num ideal de eliminação de toda referência a valores e
a conteúdos religiosos nas áreas reguladas por leis civis, e, por conseguinte, do próprio espaço
público” (2004b, p. 48).
O conceito de identidade vem sendo debatido por diversos autores e escolas das Ciências
Humanas. Uma definição razoável se encontra no livro Identidade de Zygmunt Bauman. Para
esse autor as identidades “flutuam no ar, algumas de nossas próprias escolhas, mas outras
infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constantemente
756
para defender as primeiras em relação às últimas” (2005, p. 19). A questão, como veremos, é
saber quando as identidades são de “nossa própria escolha” e quando elas nos são “infladas e
lançadas pelas pessoas em nossa volta”, sabendo que podemos substituir “pessoas” por
movimentos sociais, mídia, organizações não governamentais entre outras.
Ainda sobre identidade, Bauman afirma que “é uma ideia inescapavelmente ambígua [...] é
um conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo que
está havendo uma batalha” (2005, p. 82,83).
Para falar de religião gosto muito do conceito foucaultiano de formação discursiva. Para
Foucault a formação discursiva
Ainda sobre religião acho válidos alguns postulados durkheimianos, ainda que não a
totalidade de sua argumentação. Para Durkheim não há religião falsa (1989, p. 31), todas as
religiões são comparáveis (1989, p. 33) e “na base de todos os sistemas de crença e de todos
os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais” (1989,
p. 33). Para o autor, os fenômenos religiosos “ordenam-se naturalmente em duas categorias
fundamentais: as crenças e os ritos [e] supõem uma classificação das coisas reais e ideais”
(1989, p. 62,68).
uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando ou lembrando
algo através da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou
pensamentos [...] a estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade
dinâmica (2005, p. 49,50).
757
No decorrer de minha pesquisa pude perceber que a relação entre as religiões e as escolas
públicas se dá de diferentes maneiras. Sendo, o ensino religioso a forma mais visível.
Entretanto, outros aspectos, por vezes sutis, estreitam os laços entre as religiões e as escolas,
comprometendo, algumas vezes, a estrutura da laicidade do Estado.
Uma proposta inicial para pensarmos estas relações pode ser traçada a partir de cinco
elementos:
Primeiro, o das escolas confessionais, nas quais não há impedimento nem para o ensino
religioso confessional, nem para a presença da religião nas orações diárias, leituras religiosas
e nem para professores explicitamente religiosos. Nesse caso a presença da religião na escola
não só não é impeditiva, como é estimulada.
Quarto, a religião não se mistura com a escola, estando, no entanto, presente no cotidiano
escolar. A religião mantém suas fronteiras identitárias no interior do espaço escolar. São os
grupos de oração de alunos e/ou professores, cultos por ocasião de datas comemorativas e a
presença, não proibida no Brasil4, de símbolos religiosos ostentados pelos indivíduos, como,
2
Artigo 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental.
3
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 20 de dezembro de 1996: Art. 33. O ensino religioso, de
matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do
Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso
e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso.
4
Em 10 de fevereiro de 2003 a Assembleia Francesa votou uma lei que proibiu o uso do véu muçulmano, dos
758
por exemplo, o véu muçulmano, o crucifixo pendurado no pescoço, as guias de Candomblé ou
Umbanda, as bíblias nas mochilas ou nas mãos entre outros.
Nos últimos anos, assistimos às reivindicações de setores dos movimentos sociais no sentido
de exigir a ação do Estado para a erradicação da “intolerância religiosa” e para a promoção da
“liberdade religiosa”. Tais ações visam à eliminação da intolerância religiosa afirmando-a
como responsável pela desigualdade de manifestação religiosa no espaço público. Haveria,
portanto, grupos intolerantes que impedem com que outros grupos, as vítimas, possam exercer
livremente seu direito de crença e culto. Tal situação configura-se, por conseguinte, como um
ataque à Democracia.
Portanto, observar a variabilidade das relações entre as religiões e a escola a partir do modelo
proposto acima nos permitirá compreender as maneiras com que as religiões interferem ou
não no processo pedagógico e na gestão.
As relações entre a escola pública e as religiões como um fenômeno social importante têm
sido pouco estudadas. A literatura especializada tem se dedicado mais ao estudo do ensino
religioso: Junqueira, 2002; Werebe, 2004; Cunha, 2006; Giumbelli, 2004; Giumbelli e
Carneiro, 2006; Magri, 2009; Diniz, 2010; Miranda, 2011. Além disso, as maiores
contribuições para a compreensão do fenômeno da presença da religião nas escolas têm sido
dadas pela mídia.
759
as religiões e a gestão, nem entre as religiões e as ações pedagógicas. Alguns estudiosos têm
apontado para esta questão, sem, contudo, enfrentá-la, e assim sendo, nosso esforço será no
sentido de realizar uma aproximação do tema, mapeando seus aspectos e analisando seus
possíveis desdobramentos.
Quem mais nos tem fornecido dados a respeito da relação entre a escola e a religião é a mídia,
que, entretanto, centra suas atenções nos casos de intolerância religiosa acontecidos no
ambiente escolar.
No entanto, como dissemos mais acima, a relação entre religiões e escola, quase sempre, é
tratada por meio do víeis do ensino religioso, carecendo, quase que completamente, de
estudos que se proponham a analisar outras formas de gerencia e de interferência das religiões
nas práticas pedagógicas e na gestão escolar.
O que parece que nos casos de relacionamento entre escolas públicas e religiões a maioria dos
atores sociais parece defender não a eliminação dos símbolos ou das doutrinações religiosos
do espaço escolar, mas uma tentativa de reordenamento e redefinição do lugar da religião na
escola.
Entretanto, nas Constituições que se seguiram o ensino religioso passou a ser alvo da
legislação constitucional: CF 1934 Art. 153; CF 1937 Art. 133; CF 1946 Art. 168, v; CF 1967
Art. 168, iv. Em geral em todas essas Constituições o ensino religioso apesar de facultativo,
passou a ser oferecido pelo Estado para as escolas públicas.
760
A Constituição francesa de 1958 manteve a crença numa República laica: “a França é uma
República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade diante da lei de
todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça e de religião. Ela respeita todas as
crenças” (Art. 1).
Recentemente, em 15/03/2004, foi aprovada a Lei 228 que proibiu o uso de símbolos
religiosos nas escolas públicas do nível fundamental e médio: véus muçulmanos; solidéus
judaicos e crucifixos cristãos. Tal legislação atingiu 8.000 liceus e 2.000 escolas primárias.
Mesmo nesse contexto de laicização, há espaço para algumas manifestações religiosas na
escola: “os sinais discretos podem ser mantidos, o que deixa a flexibilidade da norma nas
mãos das escolas e dos próprios alunos” (Folha online 17/05/2004).
a insistência na proteção das escolas vai de encontro ao fato de que a República reconhecia
indivíduos, e não grupos: um cidadão francês é leal à Nação e não tem uma identidades
étnica ou religiosa oficialmente reconhecida (BBC Brasil 17/12/2003).
No Brasil, tanto a legislação constitucional como a ordinária traz elementos antinômicos, pois
se há a crença numa Nação laica, há também concessões aos elementos religiosos, muitas
vezes com o propósito de garantir o pluralismo religioso, entendido como fundamental para a
eliminação das desigualdades no campo religioso.
Exemplificando. Em uma das escolas que realizei pesquisa de campo além do crucifixo na
sala da diretoria, quase que uma regra, uma normalidade, nos estabelecimentos públicos,
havia um nicho com a imagem, de mais ou menos 80 centímetros, de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil, no corredor principal. Há, entretanto, várias outras situações
da presença da religião no espaço escolar foram verificados: imagens de santos e santas;
bíblias abertas; frases religiosas nos murais; oração em eventos entre outros.
Em Sorocaba, São Paulo, foram incluídos trechos da Bíblia no material didático de 2002,
além de ser lançada a Cartilha Deus na Escola pela Secretaria Municipal de Educação
(Revista Época n. 537, 01/09/2008).
761
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9.394 de 20/12/1996, no Art. 30 trata
sobre o ensino religioso nas escolas:
O caso do Rio de Janeiro, no entanto, é impar nessa discussão, pois foi um dos estados da
federação que adotou o ensino religioso confessional. Em outras palavras, o ensino religioso
oferecido nas escolas públicas estaduais segue “conteúdos [...] adequados a cada credo. Ou
seja, os alunos que se dispuserem a frequentar a disciplina serão separados de acordo com a
sua declaração de credo” (GIUMBELLI, 2008, p. 5).
Essa disciplina foi instituída pela Lei Estadual 3.459, de 14/09/2000, que “dispõe sobre ensino
religioso confessional nas escolas da rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro”.
Gostaria de destacar o Art. 3: “fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é
atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-
lo integralmente”.
Neste sentido, pode-se dizer que na escola estão presentes, construindo e sendo construídos,
diferentes projetos civilizatórios que se materializam ora numa relação direta da religião com
a escola, ora de forma indireta.
Referências
DINIZ, Débora et all. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: EdUNB, 2010.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
762
__________; CARNEIRO, Sandra de Sá. Religião nas escolas públicas: questões nacionais e
a situação no Rio de Janeiro. Revista Contemporânea de Educação, n. 2, Rio de Janeiro,
2006.
MAGRI, Vanessa. O ensino religioso na escola pública estadual de Belo Horizonte – MG:
avanço ou retrocesso?. Revista Brasileira de História das Religiões. v. 1, n. 3, Maringá, 2009.
TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.
763
764
Articulando religião, história e transformação social em escola
pública mineira
Sônia Aparecida Rodrigues1
Introdução
Esta comunicação visa discutir as contribuições trazidas pela inclusão do debate sobre o
religioso na Escola Municipal Wilson Pimenta, sediada na cidade de Mariana, estado de
Minas Gerais, bem como indicar as resistências e mesmo intolerâncias que tal inclusão
enfrentou. Esta escola insere-se num bairro considerado de alto risco social, em que os níveis
bem diminutos de renda são acrescidos pela atuação do tráfico de drogas, prostituição de
adolescentes e outras graves contradições sociais.
Nossa hipótese de trabalho é que a inclusão do debate sobre o sentido religioso da existência e
da vida social, de forma articulada à contextualização histórica do bairro, da cidade e dos
moradores, favoreceu uma maior valorização da subjetividade dos alunos e educadores – ou
seja, uma maior credibilidade em suas próprias escolhas existenciais -, contribuindo para uma
atuação mais alargada no plano social (incentivo à continuação dos estudos ou para uma
recusa à criminalidade). Todavia, tais critérios não deixam de ser ironizados e
desclassificados tanto por parte dos estudantes como por segmentos da intelectualidade, que
consideram moralista e tendenciosa tal motivação.
1
Graduada em História e Geografia. Professora da Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira, Mariana – MG.
Contato: virginiacastrobuarque@gmail.com.
765
Suas dependências são amplas, contando inclusive com um salão para reuniões e
congraçamentos, além de uma sala de apoio à aprendizagem, com variados recursos e
materiais pedagógicos, muitos dos quais elaborados pelos próprios alunos. Entretanto, no
decorrer do primeiro semestre de 2013,
[...] toda a escola apresentava-se bastante degradada, com muitas pichações nas paredes e
nos móveis, com mesas e cadeiras velhas, com portas e espelhos quebrados, com muito
mato nos arredores [...] Contudo, sem sombra de dúvida, o que mais chocou o grupo foi à
presença de duas famílias que residem na escola. Na verdade, são duas famílias de
desabrigados do bairro que a prefeitura de Mariana alojou em duas casas anexas à escola.
Segundo os relatos de alguns alunos e funcionários, os moradores das casas queixam-se
inúmeras vezes à direção da escola devido ao barulho produzido pelas crianças durante o
recreio e, mesmo devido ao barulho produzido pelas sirenes da escola. A então diretora da
escola confidenciou ao grupo que as famílias ligam o seus aparelhos de som em um volume
tão alto que chega a atrapalhar a aula de professores nas salas de aula que ficam próximas
às duas casas (REIS; MELO, 2013).
Ademais, existe um agravante que confere à Escola uma percepção pejorativa por parte dos
moradores de Mariana: ela situa-se no bairro Santo Antônio, mais conhecido como Prainha,
de grande pobreza e risco social. De acordo com o licenciando de História Rodrigo
Benevenuto,
O colégio Wilson Pimenta está localizado em uma zona periférica da cidade de Mariana, o
local é denominado pelos habitantes da cidade como bairro da Prainha. Bairro de singular
importância histórica para Mariana e para Minas Gerais, a Prainha apesar do valor histórico
sofre com graves estruturais. Isto conjugado com problemas sócio-econômicos faz com que
a Prainha seja considerada uma das regiões mais carentes de Mariana. Por ser um bairro
humilde, os estigmas sociais que sobre ele pesam são muitos, um deles é justamente o da
violência. Não é incomum ouvir dos habitantes de Mariana que a Prainha é um bairro
‘’violento’’, ‘’dominado pelo tráfico de drogas’’ e pelo ‘’banditismo’’ (2013).
766
que pode ter acarretado isso) é o descaso do poder público com a região. Parece que no
bairro não a coleta de lixo; que a água e a eletricidade não chegam a todos. Que é um lugar
esquecido. Largado a própria sorte. Ao passar pelo bairro não nos sentimos ameaçados mas
o peso do estigma carregado pelo bairro (de ser violento) pesou sobre nós; e o pior de tudo
isso, pesa na vida de seus habitantes de uma forma tão significativa que afeta a vida escolar
de suas crianças, adolescentes e adultos. Sem contar esse fator o bairro ainda sofre com
desastres ambientais. Por ser localizado entre a encosta de um morro e o Ribeirão do
Carmo, com as chuvas, as inúmeras famílias residentes sofrem perdas e destruição. Isso
agrava mais o descaso e o abandono do bairro (2013).
Dessa maneira, maioria dos alunos que estuda na Escola Wilson Pimenta é proveniente de
famílias de baixa renda, cujos pais não completaram o ensino básico. Vivendo numa
comunidade com tantas demandas sociais, os estudantes têm contato diário com a violência,
seja por parte de traficantes e/ou bandidos do bairro, seja pela omissão do poder público, ou
ainda pela intimidação sofrida por parte dos próprios familiares.
Mas além da exposição a essa violência explícita, causada pela miséria e pela atuação de
grupos criminosos na localidade, uma outra forma de violência, mais sutil, mas não menos
sofrida, atinge os alunos da Escola Wilson Pimenta: as experiência de evasão e de repetência
escolar. São diversos os motivos incitam os estudantes, sobretudo aqueles inscritos na
modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), a abandonar a escola, dentre os quais: a
necessidade de trabalhar para auxiliar em casa, as dificuldades de aprendizagem e sensação de
incapacidade, o sentir-se exposto à humilhação e determinados constrangimentos dentro do
ambiente escolar (CASTRO, FERRAZ e FERNANDES, 2013). Portanto, a experiência da
violência entremeia o cotidiano escolar, abarcando uma miríade de situações
Logo, evidencia-se que a violência não abarca somente o campo físico, como também o
psíquico e o moral com uma intencionalidade de negação do outro. Todas essas características
costumam ser agravadas pelo desinteresse e apatia em relação à escola. A maioria dos jovens
mobiliza-se para estudar com o único intuito de obtenção de diploma, visando obter um
melhor salário e uma vida mais estável no futuro. Com a percepção de um ensino esvaziado
de sentido, há desestímulo e desistência (MATOS, NETO, MAIA, 2013).
767
Segundo as autoras Alba Zaluar e Mariana Cristina Legal, essa exposição diuturna à violência
social, imbricada à falta de motivação para estudar, geralmente desdobra-se no abandono da
formação escolar:
A existência de opções de tralhado informal no mercado ilegal das drogas, assim como
outros tipos de crimes contra a pessoa e o patrimônio, também contribuem para diminuir,
aos olhos dos alunos pobres, a importância da escolarização e das oportunidades de
profissionalização que oferece. [...] O tiroteio cada vez mais comum nos bairros populares e
nas favelas, o uso de armas de fogo dentro dos prédios escolares, e a presença de traficantes
nessas comunidades tem prejudicado o rendimento escolar dos jovens, levando-os muitas
vezes ao afastamento ou mesmo ao abandono dos bancos escolares (ZALUAR e LEGAL,
2001, p. 159).
Assim, embora no Brasil os índices de acesso à educação tenham melhorado nos últimos
trinta anos (97,6% das crianças e adolescentes encontram-se matriculados na escola), os
índices de permanência não acompanham essa primeira etapa de inclusão social: para cada
100 estudantes que ingressam no ensino fundamental, apenas 36 concluem o ensino médio
(RATIER, 2013).
Mostra-se possível associar, por sua vez, a baixa autoestima dos alunos e a intensa
experiência de violência na escola. De acordo com os dados apresentados pela pedagoga
Lucimar Marriel,
[...] os alunos com baixa autoestima relacionam-se de forma pior com os colegas e
professores que os pares de elevada baixo-estima, além de se colocarem mis
frequentemente na posição de vítimas de violência na escola e terem mais de se sentir bem
no espaço escolar (2006, p. 35).
768
No primeiro semestre de 2013, os licenciandos do Curso de História da Universidade Federal
de Ouro Preto, sob a supervisão da professora Virgínia Buarque, desenvolveram vários
projetos de história local com as turmas do segundo segmento do ensino fundamental. Dentre
estas propostas, destacou-se o debate suscitado sobre o papel da religiosidade na constituição
dos sujeitos, em particular dos alunos da Escola Wilson Pimenta, em seu contexto de
convivência cotidiana com a violência social e autodescrédito.
A hipótese que defendi, como professora da disciplina História, contém um duplo aspecto.
Por um lado, ela afirma que o religioso é uma dimensão da vida social que possibilita o
sujeito compreender o real a partir não somente da experiência diretamente percebida e
mensurada (inclusive com todos os elementos de violência que os alunos tão bem conheciam),
mas lança a pessoa numa realidade mais alargada, na qual a utopia, o projeto de uma vida
diferente e possível mostra-se um elemento imprescindível. Dessa maneira, como indica o
historiador e teólogo jesuíta Michel de Certeau,
Sem retirar nada que seja àquilo que se diz cotidianamente, os relatos de milagres
respondem a isso ‘de lado’, de viés, por um discurso diferente no qual só se pode ‘crer’ – da
mesma forma que uma reação ética deve acreditar que a vida não se reduz àquilo que se vê
(CERTEAU, 1994, p. 77).
Por outro lado, eu postulo que a consideração do religioso, justamente por lançar o indivíduo
numa dinâmica da crença e não da prova, favorece – de forma bem diferente do que apregoam
os fundamentalismos – a escuta do outro, o diálogo com a alteridade, a descoberta do novo.
Afinal, a experiência religiosa não é algo que se possa suscitar por vontade própria, e muito
menos possuir ou controlar: ela é vivenciada num movimento de busca, entrega e relação. É
neste sentido que Michel de Certeau, ao invés de considerar o religioso como um repertório
de crenças, articuladas em sistemas sócio-históricos, o considerava como um ato de crer, ou
seja, “[...] investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la considerando-a
verdadeira – noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não seu conteúdo”
(CERTEAU, 1994, p. 278).
Foram esses os aspectos que ressaltei quando os estagiários propuseram uma sequência de
visitas guiadas com os alunos a espaços religiosos e culturais da cidade de Mariana.
Reconhecer a amplitude do mundo (alargado pela crença) e perceber-se capaz de entender e
até deslumbrar-se com essa dimensão foi a proposta trazida pelos licenciandos. Um dos
769
lugares mais visitados foi a Catedral Nossa Senhora da Assunção, no centro histórico de
Mariana. Segundo os licenciandos,
A visita à Catedral foi o momento mais especial e gratificante da visita. Pode ser observado
um grande interesse por parte dos alunos sobre o conhecimento histórico, foram inúmeras
as perguntas feitas pelas turmas, entre elas as que mais despertaram a atenção eram as
respectivas ao Órgão Arp Schnitger, construído na Alemanha na primeira década do século
XVIII, e presenteado por D. José I à recém-criada Diocese de Mariana. Outra questão que
foi frequente entre os alunos se referia ao Ouro nos altares e as pinturas do teto da Igreja.
Diante de singular espanto e curiosidade entre os alunos, observou-se que a grande maioria
nunca havia estado ali, assim a visita acabou gerando uma relação "sujeito e comunidade"
entre os alunos (OLIVEIRA, SOUZA, PRATES, 2013).
Os alunos [do 6º ano] entraram com os estagiários e com duas professoras da escola na
Catedral da Sé e ficaram encantados com a decoração de ouro e, principalmente com o
órgão Arp Schnitger. Alguns deles duvidaram da decoração de ouro, o que causou uma
discussão bastante fértil entre os estagiários, os professores e os alunos dentro da igreja [...]
(REIS, MELO, 2013).
Considerações finais
770
Não pressupõe que o aluno se identifique com algum credo ou religião, mas se baseia nas
categorias antropológicas de transcendência e alteridade. Essa abordagem dialoga
Referências
CASTRO, Fhabiene Carvalho de; FERRAZ, Letícia Almeida e FERNANDES Valéria Dal
Cim. Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana:
Universidade Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.
DANTAS, Douglas Cabral. O ensino religioso escolar: modelos teóricos e sua contribuição à
formação ética e cidadã. Horizonte, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 112-124, 1º sem. 2004.
LEAL, Maria Cristina. ZALUAR, Alba. Violência Extra e Intramuros. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. v. 16. n. 45, 2001.
LOPES, Claudivan Sanches; GASPARIN, João Luiz. Violência e Conflito na Escola: desafios
à prática docente. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 25, n. 2, p. 295-
304, 2003.
771
OLIVEIRA, Fabiano Lopes de; SOUZA, Paula Miranda Oliveira Alves de; PRATES, Lucas.
Relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de História I. Mariana: Universidade
Federal de Ouro Preto, 1º semestre de 2013.
REIS, Maria Isabel; MELO, Pedro Henrique. Relatório final da disciplina Estágio
Supervisionado de História I. Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto, 1º semestre de
2013.
Internet
772
773
Em travessia de [des]lugares:
o corpo que dança o diferente incorpora-si e faz poesia
Pedro Vitor Guimarães Rodrigues Vieira1
Introdução
O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas mas elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade
maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão
O poeta Guimarães Rosa é o poeta da travessia e do travessão. Como aquele que estabelece ou
inventa o espaço do diálogo com sua obra e com seus interlocutores. E dessa forma nos alerta
que as pessoas não permanecem iguais, mas que transitam, que mudam o tempo todo. Se
mudam é por não caberem num texto acabado, numa coreografia dançada, num corpo
pesquisado e ponto. Não existe o ponto. Na verdade, o que há são a vírgula e o travessão:
constante diálogo. Os poetas transitam pelos elementos do caos, enquanto nós enveredamos
pelas falas dos poetas, para tentar encontrar nossas próprias falas, nossas danças, nossos
enlaces. Os poetas transitam. Precisamos atravessar, sempre...
1
Mestre em Ciências da Arte pela UFF, especialista em Educação e Trabalho pelo Programa de Institutos
Politécnicos da UFRJ, licenciado em Educação Artística pela Universidade Cândido Mendes/AVM e bacharel
em Dança pela UFRJ. Professor dos cursos de graduação em Dança da UFRJ (bacharelado em Dança, Teoria da
Dança e Licenciatura em Dança), Artes Cênicas da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Vinculado ao Projeto Artístico-Cultural Companhia Folclórica do Rio-UFRJ e do Projeto de Extensão PADE
(Pesquisa em Africanidades e Dança-Educação). Contato: pedraoufrj@yahoo.com.br.
774
diálogos, aos aspectos que tocam o corpo daquele que experimenta e, em alguma medida,
permanecem atrelados a ele. Permanecem como uma tatuagem, como uma experiência
incorporada, no sentido da percepção sensível e da apropriação experimental.
Essa narrativa-reflexiva se constitui em três lugares: 1) O Projeto Cia Arte in cena – núcleo de
artes, desenvolvido em duas Instutições de Ensino, como locos das pesquisas e das discussões
centrais; 2) O espaço cênico, como lugar poético e área de apresentação/mediação de
conflitos; 3) O [des]lugar como o lugar da própria travessia, dos atravessamentos e das
incorporações: lugar de percepção sensível do outro e de Si.
Nesse sentido, este trabalho vem apresentar algumas reflexões e considerações sobre o papel
da arte como mediadora de relações entre os indivíduos da experiência na partilha do sensível,
aproximando-os de diferentes situações, no espaço cênico. Lá, eles adentram, habitam e
atravessam. Adentram a cena, habitam os lugares de experiência com o diferente de Si e do
outro e, em seguida, atravessam: fenômeno dado em travessia de [des]lugares...
Eu tinha antes querido ser os outros para conhecer o que não era. Entendi então que eu já tinha sido os
outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu
Clarice Lispector
O des, aqui, não apenas como prefixo de negação, ou de dizer o contrário do que se supõe,
mas como impulso para uma ação outra: descontruir, desfazer [ou seria melhor refazer?] o
que se faz com equivocalidades. Uma espécie de metáfora. Figura da própria linguagem para
repensar sobre os textos por detrás das falas – histórias de si, sobre si e sobre os outros –,
sobre as entrelinhas não descritas, impregnadas de pré-conceituações e de distanciamento do
outro; de fragmentação, de separatismo e demais movimentos – do próprio pensamento, da
própria história – que apartam os homens uns dos outros e os refundam num sentido unilateral
da própria ação de Ser. Acontecer uno. Um acontecer para uma direção. O [des]lugar, assim,
775
é como uma ponte entre dois mundos, que precisa ser instaurada para que haja o diálogo, as
aproximações, a mediação entre aspectos conflitantes... a dança. A dança e, para além dela, a
cena como [des]lugar, como o lugar mediador, onde o diferente habita, onde o [des]conhecido
provoca, convida e permite-nos espaços de esquecimento. Esquecer-se de si, para se ver – a si
próprio – no outro. Eis, pois, Travessia de [des]lugares.
Eu sou o corpo e a alma, assim fala a criança e por que se não há de falar como as crianças?
Por detrás dos teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um senhor mais poderoso,
um guia desconhecido. Chama-se Si mesmo. Habita o teu corpo; é o teu corpo. há mais
razões no teu corpo do que na tua melhor sabedoria (NIETZSCHE, 1999, p. 44).
O conceito de Si mesmo envolve uma consciência que está: é o próprio corpo. Essa
consciência que nos permite escutar e agir segundo as inteligências do próprio corpo. E é essa
consciência de si, despertada e percebida no espaço cênico, nos jogos e nos fazeres da dança,
do teatro e da música é que nos movemos, transladamos, atravessamos. Constituímos o
[des]lugar.
776
Lugar da narrativa número 1: O Projeto Cia Arte in Cena – núcleo de artes
Este trabalho é fruto das pesquisas e atividades artísticas realizadas ao longo de quatro anos,
em duas instituições públicas de ensino: o Colégio Municipal de Pescadores de Macaé e o
Instituto Politécnico da UFRJ em Cabo Frio. Apresenta algumas considerações teóricas e
poéticas imbricadas na iniciativa de implantação de núcleos de artes como atividade
extracurricular dentro dessas Instituições, visando incentivar experiências para formação
artística de alunos e professores, a partir dos conceitos de politecnia, interdisciplinaridade e
multisserialismo, perpassando as questões da arte e a própria arte como mediadora de
conflitos e aproximadora de diferenças culturais entre os indivíduos participantes.
Trata-se de um projeto arte-educativo, cujas atividades são norteadas, justamente, pela noção
do [des]lugar, como uma ação de se deslocar para os espaços onde o que há de diferente,
diverso, plural compõe a própria cena de trabalho.
Através deste projeto pudemos discutir e articular as diversas problemáticas enraizadas nos
processos culturais às experiências dos processos criativos, apropriando o espaço cênico, o
espaço das artes como lugar de mediação de conflitos, envoltos nas questões sociais, políticas
e, sobretudo, religiosas.
Por conseguinte, a partir das demandas do próprio Simpósio, que destacam questões de
tolerância e intolerância religiosa nas diversas práticas e atividades cotidianas da sociedade
contemporânea, este artigo vem propor algumas reflexões sobre como a Escola, enquanto
recorte situacional, e as artividades arte-educativas, enquanto metodologia de trabalho, podem
oferecer contribuiçães/caminhos para compreender os possíveis espaços dialógicos tolerantes!
Para Vygotsky (1998) a mediação é uma idéia central para compreensão singular do
desenvolvimento humano. Assim, concebe a mediação como o meio de acesso ao
conhecimento, entendido como tudo que o rodeia (objetos, organização do ambiente) e a
relação do sujeito com outros. O autor compreende que a linguagem é um sistema simbólico
dos grupos humanos, que fornece os conceitos, as formas de organização do real e, possibilita
a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Assim o sujeito é mobilizado por
diferentes necessidades de atingir novos saberes (construído entre o homem e o mundo), de se
comunicar, de participar como ente social, de atuar eticamente com diretrizes políticas que
estão presentes na sua vida.
777
Para os educadores, a experiência com projetos permite que haja discussão sobre novas
perspectivas para o fazer arte-educativo, repensando suas intervenções e práticas pedagógicas
a partir dos diálogos com os alunos. E para os alunos, as trocas de experiências e a construção
do conhecimento ligada às suas práticas escolares ou cotidianas, fazem-nos enxergar na arte
um caminho possível para intervir socialmente, modificando os espaços em que atuam.
Certo dia um aluno me questionou sobre um tal professor Mario Sérgio Cortella. Fiquei
bastante interessado na pergunta, pois tratava-se de uma das maiores referências nos assuntos
ligados a processos educativos e de ensino e aprendizagem nos dias de hoje, discutindo
conceitos como o de Inteligências Múltiplas, por exemplo. Porém, mais intrigado eu fiquei,
quando meu aluno fez menção à fala de Cortella, parafraseando que “os seres humanos não
nascem prontos, mas sim, nascem sem forma nenhuma e vão se formando com o tempo.” E
que por isso seríamos todos os dias uma versão mais nova de nós mesmos.
Assim, a partir de sua fala, entrevi o início desta segunda narrativa, que vai tratar das questões
pertinentes ao espaço cênico como espaço de diálogo e de formação: espaço poético-político-
artístico-pedagógico em constante transformação. Para isso, convidamos para a cena a fala de
alguns teóricos das artes cênicas, dentre eles Artaud, Huizinga e Peter Brook.
A encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser consideradas
senão como os signos visíveis de uma linguagem invisível ou secreta. Não haverá um só
gesto de teatro que não carregará atrás de si toda a fatalidade da vida e os misteriosos
encontros dos sonhos. (ARTAUD, 2005, p. 38)
778
Se por um lado Artaud é o poeta da encenação, Huizinga é o poeta do Jogo. Segundo o autor,
o conceito de jogo é forjado no seio da sociedade, na observância dos aspectos que a
configuram como o próprio lugar onde os diferentes habitam.
O jogo se caracteriza por ser uma atividade livre, conscientemente tomada como não-séria e
exterior a vida habitual, mas, ao mesmo tempo, capaz de absorver o jogador de maneira
intensa e total. O jogo é mais antigo que a cultura. Os animais já jogavam e jogam; é mais
que uma função biológica ou fisiológica. O jogo é um atributo da vida. (HUIZINGA, 1995,
p. 16)
Para Huizinga, o jogo é, em si, um meio social. É um espaço que deflagra as divergências e as
afinidades vistas na sociedade a qual pertencemos. Vemos deflagrados, por exemplo, nossos
medos, nossos anseios, nossas diferentes percepções de mundo, nossos preconceitos e nossas
ideias sobre os objetos e os indivíduos que nos cercam.
E é nesse entremeio que o poeta do espaço da cena vai emergir. Em O teatro e seu espaço e A
porta aberta, Peter Brook vai nos apresentar algumas questões sobre o espaço da cena e sobre
o fazer tearal. Mais do que isso, o autor nos coloca diante de questões emblemáticas, como o
que é próprio teatro. Nesse sentido, encontramos questões sobre o vazio, que são apropriadas
de forma a inaugurar e fundamentar o pensamento de Brook sobre tema. E dessa forma, ele
afirma: “Eu posso pegar qualquer espaço vazio e denominá-lo palco. Alguém atravessa este
espaço vazio enquanto outra pessoa o observa, e isto é suficiente para que esteja configurado
o ato teatral”. (BROOK, 1970, p.1). É a partir dessa epígrafe, considerada uma das falas mais
proeminentes desse autor, que vamos conseiderar o espaço da sala de aula como cênico;
professor e aluno como atores, agentes2 do fazer teatral. E procurando compreender o que é
esse teatro, o autor vai se deparar com a questão do vazio, no sentido da ação de esvaziar, de
criar espaços de possibilidades criativas.
2
Leia-se a palavra agentes como referência àqueles indivíduos responsáveis pelas ações, pelo próprio fazer
teatral.
779
deve considerar ao menos dois atores, além de um terceiro indivíduo a quem caberá a
observação.
Esse é um processo que envolve respiração, imaginação e por vir, que deverá [des]considerar
o quê se sente, o quê se pensa sobre este ou aquele indivíduo, situação, ideia ou pré-conceitos.
Deverá considerar, no entanto, a experiência com o estado instaurado do vazio para entrever,
a partir daí, o lugar do possível, do diálogo, da criação a partir das tolerâncias.
Nesse lugar de esvaziamento e através dessa ideia sobre o vazio de Si e da cena, encontramos
a primeira brecha para trabalhar com as intolerâncias uns dos outros. É nesse lugar onde o
outro dos outros se insere, onde as diferenças ou os diferentes se encontram, se chocam e se
esvaziam para atravessar. Se esvaziam para adentrar o processo criativo e não há escapatória!
Para chegar à construção dos personagens, para chegar a compreender os movimentos da
dança, para sentir os artifícios do próprio drama – no sentido da ação teatral – faz-se
imprescindível esvaziar-se de Si e mirar-se nas transformações do outro.
Percebi que nunca teriam conseguido tal intensidade se estivessem concentrados em algo
como “O que estou sentindo” ou se tivessem preenchido o vazio com ideias. É algo difícil
de aceitar para a mentalidade ocidental, que durante tantos séculos consagrou as “ideias” e
a mente como divindades supremas. A única resposta está na experiência direta, e no teatro
é possível experimentar a realidade absoluta da presença do vazio, em contraste com uma
confusão estéril de uma cabeça entulhada de pensamentos. (BROOK, 2010, p.19)
O espaço vazio é como uma caixa de surpresas. Suas paredes laterais pendem sobre o tempo,
como reticências sobre o final de uma página toda em branco. São como uma grande
inspiração que vem de um passado remoto, construído à luz de experiências que tornaram-se
memórias, e que, paulatinamente, desaparecem; são como uma escolha roubada do próprio
corpo imerso no instante da transformação, para que o por vir seja a própria válvula do tempo.
O vazio de Si recria as paredes da imaginação, à luz de uma memória que arquiteta seu
desaparecimento: desaparece algo pré-concebido para inaugurar algo impensado, antes,
780
talvez, intolerado. Essa arquitetura do desaparecer persiste para que o estado de esvaziamento
permita ao aluno-artista criar um próximo movimento, para que possa dançar o diferente. Para
que possa fazer novas poesias. A memória não se apaga. Não se trata de um autoflagelo
poético. A memória é presença no corpo em estado de vazio para a criação. Portanto, é uma
ação da própria memória, uma atitude de desmemorar-Si (atitude de não considerar a
memória que está em si, pelo conceito nietzschiano do Si mesmo).
Assim, há um instante vazio, um estado instaurado que não mostra o antes e nem projeta
algum depois. Apenas um instante vazio que ecoa, que vibra na possibilidade do por vir. Ele
convida o corpo a desgarrar-se, desprender-se de qualquer preconcepção de seus atos, de suas
formas, para que se permita lançar-se ao imaginário e à transformação, num gesto indubitável
de conhecer suas naturezas mais ocultas e de revelá-las na intenção de ser [sempre] mais do
que é.
781
Esta presentificação de memórias, disposta no “casco de tartaruga dos homens”, é um registro
configurado com os pedaços entranhados de experiências, cujas mesmas permitem-se à
revificação. Ou, como numa imagem de colcha de retalhos, carregada de fiapos de
lembranças, as que ficam da experiência do vivido. Esta é a imagem que fica deste passado
latente, destas nossas certezas adiquiridas, desses caminhos percorridos. São cicatrizes das
travessias arraigadas no corpo e no consciente do indivíduo. O “casco de tartaruga dos
homens” são suas lembranças, não seus corpos, por assim dizer.
E quanto a esses homens com seus cascos de tartarugas – no caso, meus alunos – eles
carregam consigo todas as memórias de suas experiências vividas. E tais memórias são
forjadas nos processos culturais. Somos seres que produzem cultura e somos produzidos por
ela. Somos indivíduos coletivos [coletivizados]. Preservamos nossas singularidades no espaço
social. E dessa forma, carregamos em nossos cascos de tartaruga os pensamentos, as
ambiguidades, os conflitos, os medos e os equívocos todos.
As intolerâncias aparecem e gritam quando não colocamos aquilo que carregamos dentro dos
nossos cascos, nossas memórias, nossos aprendizados para fora. Temos de apresentar as
nossas visões de mundo para que seja na partilha do diferente que haja a sensibilidade e a
poesia dos diálogos. As ações dialógicas são, por outro lado, esse compartilhamento de
memórias em cascos de tartaruga. Mais do que memórias, um compartilhamento de visões de
mundo, de preceitos, de liturgias, de opiniões, de culturas, de sociabilidades.
A cena, como espaço poético e como lugar de processos criativos, deflagra os encontros com
o que há de diferente em Si mesmo e nos outros. E nas margens de tais encontros, destacamos
as potências das situações graves, para enxergá-las como grávidas. De graves à grávidas, as
situações se deslocam de um lugar de impossibilidade [de diálogo, de mediação] para um
lugar de potência, de possibilidade de criação, através da partilha das percepções e
experimentações do sensível. O corpo criativo, envolvido com a partilha do sensível, nos
convida a habitar esse lugar ambivalente, entre a gravidade e a gravidez de qualquer situação.
782
Entre o que se tolera e o que se desconhece. Entre o já sabido do outro e o que se sabe por
equivocalidade. Encenação. Fazer teatral. Experiência do drama, da ação, da essência do
fazer, com poesia.
Nesse ponto, podemos perceber mais uma aproximação com o pensamento de Bergson, o qual
vai defender o corpo como um lugar de passagem (2001, p.92), esse corpo em trânsito que
não tem paragem, que não cessa de transformar-se.
Naquilo que subescreve Calfa, compreendemos que a própria corporeidade pode ser um ponto
de fuga, sendo um refúgio, um escapatório desse corpo que transcende a linearidade de suas
narrativas em busca de deixar ecos de memória no espaço e no tempo da criação. Segundo a
autora a corporeidade nos remete a esse corpo que se faz, se descobre, se vela e se desvela na
passagem. Travessia. E esse corpo assim o faz na tentativa de se encontrar nesses “mundos
desconhecidos e misteriosos que nos pertencem”.
Quando pensada como travessia, a corporeidade traz como questão a reflexão sobre a
realidade a partir da imagem da teia, vista em seu processo transitório, que emerge do corpo
na necessidade permanente da manifestação do real, ao se dar e retrair nessa labiríntica teia,
passagem, resultado de novas transformações. É nesta correnteza da linguagem que vige a
corporeidade, como abrigo do pensamento poético; que ao mostrar-se na dança vai criando
em seu movimento a trama nas tessituras da realidade, no entrelaçamento do corpo – vida,
poiesis, linguagem (CALFA, 2009, p. 92).
É nesse enlace dos diferentes pontos da teia que a dança se tece, que a vida se tece, que a cena
e os conflitos se tecem. Tecem e se retorcem. Misturam-se pra se confundir e fruir, no corpo,
em Si e no do outro. Dessa forma, podemos nos deparar com a revelação do lugar por onde o
corpo, a memória e as artes – a dança, a música e o teatro – transitam juntos. Eles estão
unidos nesse encontro entre as diferentes passagens do corpo, que na verdade são as
transformações pelas quais ele passa, para germinar sempre algo novo.
783
pensamento sobre o quê é ou como é a dança acontecendo no seu corpo-próprio, que é
diferente em cada um3.
Ao deixar nascer a cada instante novas percepções damos seguimento às tramas e tessituras
poéticas que menciona Calfa e ao corpo como lugar de passagens de que fala Bergson, para
que o corpo poético não cesse de agir no espaço e tempo de suas percepções. A cada instante
podemos provocar em cena, percepções diferentes sobre o que há de diferente de nós mesmos.
Os alunos se enxergam como resultantes de seus processos “institucionalizados”, constituídos
pela família, pela igreja, pela escola e pelas relações interpessoais, com os amigos, familiares,
e colegas de classe. Nesses instantes de aproximação com o que há de diferente entre si, eles
se descobrem na smais variadas facetas, a exemplo das religiosas: protestantes, católicos,
umbandistas, kardecistas e budistas. Todos enredados na experiência do fazer teatral, da
criação da dança e das outras dinâmicas da cena.
Em sua essência o corpo imerso nessa constante travessia vai lembrar algumas imagens que
revelam no seu fazer o caminho de suas narrativas. De acordo com as proposições de Calfa
compreendemos que “a linguagem e a vida se tecem no mesmo fio”, trazendo a linguagem
como uma aventura, uma experiência que permite a apropriação do tempo e do espaço tendo o
corpo como o tecelão.
A experiência tem o valor de uma vida, onde o corpo tem seus sentidos vozificados enquanto
a dança se revela através de tensões dele próprio: uma experiência humana através da
corporeidade. O corpo acumula informações através das percepções viventes, assim interpreta
suas próprias sensações. “Se ainda se pode falar, na percepção do corpo próprio, de uma
interpretação, seria preciso dizer que ele se interpreta a si mesmo”. (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 208)
O que significa que faz suas leituras e interpretações do mundo de acordo com suas pequenas
e próprias percepções, a partir de como se organiza e se percebe como parte desse mundo.
A corporeidade nos leva à raiz, à essência do que é, como é esse corpo que dança, que se
enreda nos conflitos. Ele não é sua fisicalidade, não é fixidez, não é lugar de paragem, mas de
3
Aqui uma menção especial a dança, pois o projeto Cia Arte in Cena tinha como uma de suas atividades mais
fortes, no que tange esse aspecto da mediação de conflitos a partir da experiência cênica, a dança. Sobretudo as
danças de matrizes africanas e indígenas, que eram constantemente defrontadas como lugar proibido, maculado,
do qual não se podia aproximar. Um exemplo disso foram os estudos corporais a partir da mitologia dos orixás –
deidades africanas – cujos arquétipos simbolizam elementos da natureza.
784
travessia. Seus atravessamentos permitem os diálogos com o diferente, e, novamente, faz
poesia. A corporeidade é raiz na medida em que nos faz olhar para a linguagem no corpo,
quando identificamos que, em sua essência, ele, o corpo, não é – no sentido de Ser – mas está
sendo. O corpo é um constante “sendo” , deixando surgir no lugar poético, na essência da
ação, na poiesis, o descobrimento de Si mesmo. A essência de uma ação que chama o corpo a
ser ele mesmo próprio.
A corporeidade nos revela como seres em um limiar, um corpo próprio como presença, que
articula-se em teias, em tramas conflitantes, paradoxais, dialógicas e sempre ambivalente,
tornando situações graves em grávidas de possibilidades de mediação. Tramas que o
permitem emaranhar-se na terra, e nela agir com sentido, pois é na terra onde somos
chamados por tudo que esse corpo é e como é, para o enraizamento de Si mesmo. Essas teias,
essas tramas criam aquilo que Calfa nomeia de “tessitura poética”, uma espécie de dimensão,
de materialidade possível para dizer sobre essa fusão do corpo no poético, que o prediz como
lugar de linguagem. “A tessitura poética é o lugar onde somos chamados pela linguagem à
vigência da corporeidade, ao aprender e ensinar do corpo: chão, terra, árvore, germinação; é o
corpo em um tecer permanente, ação e transformação que se dá na tensão de terra e mundo.”
(CALFA, 2009, p. 92)
O mundo é a terra, aquilo que podemos perceber, que se dá na experiência humana, que se
exige na criação como vontade. É quando nos damos conta de que percebemos o mundo
quando as coisas ganham sentido. e elas ganham sentido quando a terra nos convoca ao
enraizamento de nós mesmos.
A exemplo disso, quando optamos por pesquisar as danças de matrizes africanas, os alunos
envolvidos no projeto Cia Arte in Cena prontamente se furtaram a dialogar. Não houve
qualquer indício de que a relação entre a “cultura diferente” e a “cultura deles próprios” fosse
acontecer. As pré-concepções dos alunos a cerca do próprio tema eram todas forjadas nos
espaços religiosos, sempre – ou quase sempre – em detrimento, em diminuição da
africanidade em si.
Esse conflito foi mediado pelas relações com a dança, incentivando os alunos a pesquisarem
os princípios básicos que estavam enredados naquelas danças circulares, cujos elementos
centrais falavam das forças da natureza, em última análise.
785
Compreendemos então que nesse corpo do movimento, nesse corpo que é em si travessia,
existe o espaço possível para discutir sobre as questões do mundo, percebendo a importância
da linguagem nas artes, especialmente nas artes cênicas. “A linguagem faz despertar na
corporeidade o diálogo, buscando no corpo o que está além da aparência” (CALFA, ano, p.
94), para que se torne, em si, presença, pois ao ser atravessado por questões, esse corpo se
torna, para a corporeidade enquanto linguagem, o lugar onde toda a sua essência habita,
produz os fenômenos que o garantem nesse estado de constante mudança. E ao se tornar
presente e dizendo através da corporeidade, então, o fundamentamos como travessia, como
processo, guiado por sua poiesis, pela essência de suas ações.
Considerações finais
Não se trata de estudar mais do mesmo sobre a cultura popular, a dança, o teatro ou outros
aspectos socioculturais compreendidos como marginais ou negligenciados, nem tampouco de
traçar perspectivas autobiográficas sobre alunos e educadores para conceber suas criações. O
que o estudo e desenvolvimento das artes fazem, nesse sentido, é trazer as memórias, as
vivências e as experiências dos indivíduos para sublimá-las através da cena, através da
apresentação/mediação de conflitos nos processos criativos.
Logo, a identidade cultural é alvo de constantes provocações nos trabalhos da Cia. Arte in
Cena, numa tentativa de desvelar a relação de seus integrantes com aquilo que conhecem
sobre Si mesmos e sobre o ambiente em que vivem. Trata-se da tentativa de trazer as questões
socioculturais desse Ser social e histórico, que se pesquisa e se [re]cria na cena.
786
Sobre esse aspecto, a partir dos estudos de Deluiz (1995) podemos verificar que “(...) o
processo de formação só pode ser entendido como um processo historicamente determinado,
cujas mudanças estão intimamente relacionadas com as transformações do modo de
organização da produção (DELUIZ, p.174). Ou seja, se colocarmos os conflitos, as
desigualdades, as divergências de pensamento, as diversidades culturais como parte do
processo criativo, como parte dos processos que intermediam a cena, podemos vislumbrar as
transformações dos agentes, dos educadores, dos alunos, de todos os engajados no processo
de construção e ressignificação simbólica e social do que há de diferente existente entre si
mesmos.
Em uma de suas últimas criações, a Cia. Arte in Cena pesquisou e produziu o espetáculo
musical Agreste – alvo de boas repercussões críticas e que continua em circuito de
apresentações. Este trabalho foi criado a partir do projeto Novos musicais brasileiros, que
dentre outras questões trouxe a pesquisa sobre as influencias socioculturais dos movimentos
musicais no Brasil, da década de 60 aos dias atuais; também trouxe os paradigmas entre o
saber local e o saber global; a tradição clássica em contraposição às danças populares. Agreste
foi concebido com intenção de mediar certas zonas de conflito, através da aproximação das
pesquisas e das experiências de cada integrante do projeto com as questões religiosas, sociais,
históricas e culturais desveladas.
Referências
BERGSON, Henri. Memória e Vida. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2011.
BROOK, Peter, A porta aberta. 6ªed., Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010.
CALFA, Maria Ignês de Souza. Tessituras Poéticas do Corpo. In: Arte: Corpo, Mundo e
Terra. Org. Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: ed. 7 Letras, 2009.
CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados, São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998.
787
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: ed.
Perspectiva, 1995.
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: ed. Martin Claret, 1999.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.
VYGOTSKI, LS. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
788
789
Ensino Religioso: assertivas e incertezas nas escolas públicas
Jacirema Maria Thimoteo dos Santos1
Introdução
O ser humano precisa ser compreendido como um ser integral enquanto possuidor de corpo,
mente e espírito. Alguns cientistas já estão trabalhando e comprovando de que no cérebro
existe uma parte que proporciona a dimensão religiosa, ou seja, o ser humano já nasce com a
sensação da presença de um ser divino. Dessa forma, a sociedade e a educação precisam
desenvolver uma consciência coletiva acerca da dimensão religiosa como constituinte do
indivíduo. E na escola encontramos uma disciplina que proporciona a reflexão dessa
dimensão, o Ensino Religioso. A mesma precisa ser percebida como um dos espaços na
escola que, também, proporciona aprendizagem e não o espaço de “evangelização” como
ocorre em muitas escolas estaduais do Rio de Janeiro.
Dessa forma, este trabalho tem como objetivo apresentar a disciplina de Ensino Religioso
como relevante para a escola e, consequentemente, para a sociedade ao pontuá-la como um
instrumento para perceber e trabalhar o aluno no sentido antropológico, como uma pessoa
possuidora de uma dimensão religiosa e não de uma religião.
O termo religião vem do latim religio e sua etimologia indica a noção de atar, estar junto, em
contato com algo (re-ligare) e diz respeito ao conjunto de dogmas e crenças de uma
determinada religião, cujo objetivo principal é unir e reunir os seus seguidores num
1
Doutoranda em Teologia pela PUC/RJ. Orientador: Professor Doutor Joel Portella Amado. Contato:
jacirema@igeo.ufrj.br.
790
determinado espaço físico que pode ser denominado por igreja, templo, centro para cultuarem
e aprenderem sobre a mesma. Como afirmou Durkheim (1996, p.4) “(...), todas as religiões
são instrutivas, sem exceção, pois todas exprimem o homem a sua maneira, e podem assim
ajudar a compreender melhor esse aspecto de nossa natureza”.
No decorrer da história, a mesma vem sendo estudada pelas ciências humanas e sociais,
autores como Tylor, Muller, Strauss, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, Weber e Durkheim
deram as suas contribuições. E vários tipos de religião foram registradas como as monoteístas
que crêem na existência de um único deus (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo), as
politeístas que crêem na existência de muitos deuses (Hinduísmo e antigas religiões do Egito
e de Roma) e as panteístas que crêem que deus está em todo o Universo, devido a tal fato
tendem a divinizar a natureza (Budismo, Jainismo, Taoísmo e Confucionismo).
É fato que a religião é uma criação do homem (alguém já falou que o homem é um fazedor de
religião), em algumas situações é por meio dela que este homem se apresenta ao mundo, por
isso podemos afirmar que a religião é um fator de integração social. É ela que dá sentido a
sua vida e respostas para alguns temas como morte, sofrimento, doença, cura, porém este
mesmo homem precisa entender que nenhuma religião tem o status de ser a melhor, a
verdadeira. Todas devem ser ouvidas e respeitadas, a experiência da diversidade religiosa é a
experiência da democracia, reconhecer o papel salutar da mesma é condição sine qua non para
a esta experiência da democracia. Sendo assim, defendemos a tese de que ela pode legitimar
ou criticar a ordem social instaurada.
E dimensão religiosa, o que seria? Uma condição inata do homem que o impele para algo ou
alguém, é atemporal, individual e não tem nenhuma relação com interesses materiais e
corporativos. Ela pode ser percebida no decorrer do tempo, em todas as culturas, quando o
homem busca o relacionamento com o Transcendente, podendo levá-lo ou não a prática de
uma determinada religião.
Neste momento, fazemos uso de uma citação da nossa dissertação de Mestrado que corrobora
para o entendimento desta dimensão:
791
Um outro autor, Meslin, afirma que “(...) o religioso pertence, portanto, ao mais íntimo do
humano. (...) constitui, como a libido, um dos fundamentos essenciais da natureza humana”
(1992, p. 37).
Sendo compreendida dessa forma, podemos pensá-la como um elemento presente no humano,
não como um elemento exclusivo das religiões, mas como um nível da Antropologia.
Tal dimensão já vem sendo estudada pela Ciência, mas precisamente pela Neuroteologia que
tem como objetivo estudar a base neural da espiritualidade. Desde o século XIX, em 1892
textos que versavam sobre a ligação entre experiência religiosa e epilepsia foram publicados.
Da mesma forma nas décadas de 50, 60, 70, 80, 90 e no século presente foram registradas
pesquisas nesta área.
Atualmente, alguns autores, como Boff, preferem chamar tal dimensão como espiritual. Em
seu livro “Espiritualidade: um caminho de transformação” cita a definição de espiritualidade
dada certa vez por Dalai-Lama: “(...) espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma
mudança interior” (2006, p.13). Todavia, independente da nomenclatura utilizada, o que
acreditamos e defendemos é que todos os homens têm esta dimensão e que a mesma, além da
dimensão cognitiva, afetiva e social, pode e precisa ser trabalhada na escola através da
disciplina de Ensino Religioso.
792
Conceito de homem na Antropologia
A partir destas questões podemos afirmar que o professor de Ensino Religioso pode trabalhar
em suas aulas esta visão de homem singular numa pluralidade, possuidor de uma dimensão
793
religiosa que pode se desdobrar em uma religião, mas sabedor de que a sua religião não é a
Religião, é apenas mais uma em um universo de milhares.
O Ensino Religioso é um componente curricular com amparo legal na Carta Magna do Brasil,
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Art. 210 parágrafo 1º), na Lei nº
9394/1996 (Art. 33 que recebeu nova redação na Lei nº 9475/1997) e a Resolução nº 7/2010
que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos. Ele está
inserido na escola como uma disciplina a ser oferecida na mesma, porém com algumas
particularidades que acaba culminando em seu descrétito: durante séculos foi utilizada como o
ensino da religião oficial do Brasil; é a única disciplina citada na Constituição Brasileira; é
facultativa aos alunos e no caso do Estado do Rio de Janeiro é confessional, ou seja, a turma é
dividada pelos diferentes credos.
Devido a tais fatos que a escola tem uma concepção errônea da disciplina, concordamos com
Cunha quando afirma que “antes de ser uma questão propriamente religiosa ou mesmo
pedagógica, a presença da religião na escola pública é uma questão política, com antigas e
profundas raízes históricas” (2006, p.1250). Porém, tais fatos não podem impedir que essa
escola que tem como prática pedagógica inferir na sociedade uma transformação, libertando-a
da opressão imposta pela hegemonia dominante, não insira no seu Projeto Político
Pedagógico o Ensino Religioso enquanto disciplina que colabora, também, na visão holística
do ser humano, ou seja, que o percebe como ser integral, compreendendo que a dimensão
religiosa, além das dimensões cognitivas, afetivas e sociais, está intrínseca no mesmo.
O que percebemos é que a escola privilegia apenas o conhecimento cognitivo, prepará-lo para
a “competição” chamada vida, esquecendo que nessa “competição” ele, com certeza, terá
contato com o outro, crises existenciais aparecerão e será que os professores que lecionam as
disciplinas de Matemática, História, Português, Física, Química e outras trabalharão em seus
currículos tais questões?
794
vou?) e as relações humanas, mostrando que a diversidade religiosa do nosso país não pode
ser ensinada em sala de aula e sim respeitada.
A importância do Ensino Religioso pode ser destacada sob três principais ângulos: pelo
ângulo da formação (desenvolvimento de uma harmonia do ser humano consigo mesmo,
com os outros, com a natureza, com o mundo e com o transcendente), pelo ângulo da
prevenção e correção dos desvios da atitude religiosa (evitando fanatismos
fundamentalistas e exclusivismos sectários), pelo ângulo do diálogo (desenvolvimento em
grau máximo o respeito à alteridade) (2000, p. 13-14).
E que a mesma tem a possibilidade de estabelecer diálogo para a construção de uma sociedade
que escape da ideologia dominante do atual sistema em que vivemos, que inclua mais ao
invés de excluir.
Sendo assim, o Ensino Religioso precisa ser separado da religião, correspondendo assim a
liberdade religiosa do nosso país, citada no artigo 5º parágrafo VI, para poder proporcionar
uma educação para a autenticidade do próprio ser humano, pensar esse humano na sua
795
totalidade (proposta da Antropologia) e no relacionamento consigo mesmo e com o outro.
Uma educação para a maturidade pessoal e social, para a convivência na comunidade humana,
com abertura para o diferente. Uma educação para a tolerância:
A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário; por isso é
necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância
centrados nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância,
que expressam as causas profundas da violência e da exclusão. As políticas e programas de
educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e
da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos,
linguísticos e as nações (UNESCO, 1995).
Considerações finais
Através do exposto pudemos constatar que o ser humano é, por natureza, um homo religiosus.
Dessa forma, inicio as nossas considerações finais com uma pergunta: A disciplina de Ensino
Religioso pode ser percebida na escola/sociedade como um instrumento potencializador para
trabalhar todas as dimensões do ser humano e, em especial, a dimensão religiosa de uma
forma ética, não se opondo a diversidade religiosa do povo brasileiro?
Com certeza! O Ensino Religioso enquanto disciplina da Educação Básica está pautado nos
ideais da cidadania que procura equalizar as desigualdades existentes na nossa sociedade e
utilizando-se do projeto antropológico de perceber o homem e a sociedade como seres
singulares e plurais, o professor poderá em suas aulas acolher a diversidade religiosa.
796
Referências
BACHA F. Teófilo. Ensino Religioso na Escola Pública de São Paulo. Curitiba: IESDE,
2000.
Artigo em revista
NEWBERG, Andrew. Deus é coisa da sua cabeça. Superinteressante (Grupo Abril), nº 223,
São Paulo, p. 20-21, 2006.
__________. Ter fé é coisa da sua cabeça. Galileu (Editora Globo), nº 213, Rio de Janeiro, p.
15-17, 2009.
Tese e dissertação
797
Artigo na Internet
CUNHA, Luis Antonio. Ensino Religioso nas escolas públicas: A propósito de um seminário
internacional. In: Educação e sociedade, Campinas, V. 27, n. 97, set./dez. 2006. Disponível
em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 10 de jun. 2013.
Lei
RIO DE JANEIRO. Lei nº 3459. Câmara dos Deputados Estaduais. Diário Oficial de 14
de setembro de 2000.
798
799
Ensino religioso: ciência e religião na atuação de professores
Introdução
A proposta para o Ensino Religioso para as séries iniciais do Ensino Fundamental, como está
estruturada atualmente, tem suas raízes na alteração do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, LDB nº 9394/96, por meio da Lei nº 9475/97. Desde então o Ensino
Religioso passou a configurar como disciplina dos horários normais das escolas públicas,
sendo assegurado o ensino laico, livre de proselitismos, pautado no respeito a diversidade
cultural religiosa dos povos3 (GARUTTI, 2006; DERISSO, 2009; JUNQUEIRA, 2012).
Em resposta aos princípios e fins para organização da educação nacional, instituídos pela
atual LDB, um conjunto de regulamentações foram desencadeadas, em específico o Conselho
Nacional de Educação (CNE), por meio da Resolução n.º 2/98-CEB, organizou as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, integrando o Ensino Religioso entre as
dez áreas de conhecimento que compõem o Currículo Escolar do Ensino Fundamental.
1
Aluna do 4ª ano de Pedagogia e do PPG em Educação/UNIOESTE. Bolsista CAPES/DS. Integrante do GP
FoPeCiM. Contato: gildone@hotmail.it
2
Doutor em Educação. Docente do PPG em Educação/Mestrado/CECA da UNIOESTE. Pesquisador do GP
FoPeCiM. Contato: vilmar.malacarne@unioeste.br.
3
A Lei nº 9475/97 também removeu a expressão “sem ônus para os cofres públicos” que desobrigou o Estado da
responsabilidade pela contratação de professores. Essa ação pressupõe o tratamento pedagógico da disciplina,
invalidando as práticas confessionais.
800
abordar temas polêmicos e de difícil aceitação por parte de muitos, tratando de questões de
natureza e objetivos ainda não suficientemente demarcados”? (GARUTTI, 2006, p. 136).
Para compreensão de alguns dos elementos apontados acima este texto se volta para a
investigação da história do Ensino Religioso no Brasil e de sua normatização com o intuito de
adquirir instrumentos capazes de contextualizar e interpretar as transformações no cenário
nacional, considerando a multireligiosidade e a oficialização de uma prática pedagógica laica
e representativa de todos os grupos sociais, religiosos ou não. Num segundo momento serão
pontuadas algumas pistas de como a formação científica dos cursos de licenciatura podem
limitar as possibilidades de entendimento de conhecimentos diferentes da realidade
acadêmica, mas presente nos corredores escolares, como é o caso das crenças religiosas de
alunos e, porque não dizer, de muitos dos professores.
4
As aulas régias integram a Reforma Educacional realizada pelo Marquês de Pombal, primeiro ministro de
Portugal de 1750-1777. As aulas régias apresentavam conteúdos de Latim, Grego, Filosofia e Retórica.
(XAVIER, 1980, p. 22).
5
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 26 de fevereiro de 1891. Parágrafo 5º, Art. 72: “Os
cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre todos os cultos
religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e
as leis”.
801
país. Isso significou que o período da Primeira República (1889-1930) desfrutou de muitas
reformas, mas de mínima democratização do ensino.
Com a Constituição de 1934 a aliança entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica foi
reafirmada, garantindo na legislação espaço privilegiado, que pode ser conferido na Lei de
Diretrizes e Bases para Educação Nacional – LDB nº. 4024/61. Esta LDB sustentava as aulas
de religião na doutrina católica apostólica romana, sendo a matrícula facultativa, pois havia a
ideia de que com este posicionamento os alunos que decidissem não frequentar essas aulas
teriam a oportunidade de desenvolver outras atividades paralelas.
No processo Constituinte de 1988 o Ensino Religioso tem mantido seu caráter facultativo,
mas passa a ter os pressupostos de ensino norteado não mais por uma ou outra religião e, por
isso foi adotado o ensino confessional e interconfessional. Contudo, somente em 1997 a
garantia do respeito a diversidade religiosa ocorreu, afastando da escola o caráter confessional
da disciplina, com a Lei nº 9475/97, e uma nova redação registrou-se no artigo 33 da LDB nº
9394/96, sendo resignificada a concepção de ensino e disciplina:
A diversidade religiosa desta maneira é, ou pelo menos deveria ser, ensinada livre de
condicionantes e passa a ter assegurada na letra da lei a proibição de propagandas em defesa
de ideias ou crenças religiosas pessoais no ambiente escolar. Com isso, inaugura-se um novo
período para o Ensino Religioso e seus reflexos são sentidos até o momento atual.
802
Outra alteração esta relacionada a contratação dos professores da disciplina. No Estado do
Paraná o Ensino Religioso era ministrado, até meados da década de 1990, nas escolas públicas
por agentes de várias áreas ligados a instituições religiosas que deveriam requerer o horário
para oferta de ensino confessional.
Essas preocupações passam a ser um ponto positivo para a criação de um espaço de diálogo,
sendo preciso, agora, efetivá-lo a partir de um ensino que cultive o respeito às diversas
manifestações religiosas, mas para isso algumas mudanças precisam acontecer na formação
dos professores.
Aqui, apresentamos alguns questionamentos que merecem um olhar criterioso sob a pena de
permanecerem arraigados a princípios que pouco contribuem para a superação de elementos
segregadores ou demasiadamente desvinculados do diálogo com a cultura e sua história. E,
nesse caso, as consequências seguem por via de mão dupla, como ressalta Fonseca (2006, p.
12) “a educação científica é prejudicada, não pela entrada da discussão religiosa, mas pela
803
ausência de um processo dialógico que possa contribuir para a reflexão e reconstrução
contínua de conhecimentos [...]”.
Um olhar detalhado sobre a história da humanidade demonstra que na rotina social, religião e
vida se confundiam. A lei e as regras morais eram regidas pela vontade dos deuses e na arte
ou nos rituais fúnebres, por exemplo, revelava-se parte da linguagem do homem com o
sagrado. Quase todos os grupos humanos que se tem registro elaboraram teorias para
responder seus anseios e expectativas quanto ao binômio: vida e morte. Nos estudos
vinculados as ciências sociais, da pré-história até a vida contemporânea o homem expressou
momentos significativos da dimensão religiosa.
A escola constitui uma parte da sociedade e as relações entre os indivíduos explicitam seus
desejos, sonhos, crenças, sentimentos e a forma com que usam essas valorações para
responder as situações a que estão expostas na materialidade e no mundo. Conforme Teves
(1992, p. 6) há séculos o ideário racional procura eliminar “... as crenças, as fantasias, os
fantasmas que possam povoar e iludir a razão humana”, entretanto essa ação na concepção da
autora implica a falsa visão de que a realidade se esgota em uma única vertente de
conhecimento, desta forma:
O que se perde com esse tipo de raciocínio é a visão da riqueza da função reflexiva da
inteligência humana: constituir-se por uma gama de modalidades de conhecimento:
sensível, intelectual, imaginário, judicativo, intuitivo. [...] conhecer uma realidade é,
804
portanto, reconhecê-la como historicamente determinada, constituída por sujeitos que a
representam, a simbolizam (TEVES, 1992, p. 7).
805
Ciência e Religião são construções sociais, a primeira evoca o dado empírico, a
experimentação, a rigidez e a segunda o transcendente, o invisível, o sentimento, a
existencialidade dos sujeitos. Nos últimos vinte anos em várias áreas de formação acadêmica
a preocupação com questões que envolvem ciência e religião tem exigido esforços para
encontrar respostas ou variáveis que satisfaçam professores e alunos, em consonância com a
diversidade cultural e religiosa dos povos.
Na Califórnia, em 1981, o Center for Theology and the Natural Sciences com a missão de
“apoiar a interação mútua e criativa entre teologia contemporânea e as ciências naturais”
investiu no Programa de Cursos de Ciência e Religião em que o compromisso é “[...] instaurar
o diálogo sobre questões de interesse mútuo entre teólogos, filósofos, historiadores,
acadêmicos de estudos religiosos, éticos e de humanidades com cientistas” (BENNETT, 2003,
p. 29).
806
[...] a relação entre ciência e religião tem influência na vida, nas preocupações e no bem-
estar de todas as pessoas e instituições ao redor do mundo. Os que, porém, tentam isolar a
ciência, protegendo-a contra as corrupções percebidas da religião, e os que tentam rejeitar a
ciência, como imposição do secularismo à religião, vivem uma vida ingênua. (p. 31).
Para Malacarne (2011) um processo formativo fragmentado, que não considere a produção de
conhecimentos em seu conjunto ou ignore “[...] o papel da religiosidade na formação do
indivíduo e na constituição da sociedade” (p. 238) resulta em dificuldades por parte do
professor em abordar temas tanto em aspectos científicos quanto religiosos. Numa espécie de
corrente e, não necessariamente (porque essas questões podem simplesmente serem deixadas
de lado), mas sim “[...] a dificuldade do professor se transforma em dificuldade para o
aprendizado do aluno e, por consequência, em falta de clareza para o trato das questões que
envolvem estes segmentos no conjunto da vida e na própria produção de conhecimentos”
(MALACARNE, 2011, p. 238).
Por outro lado, um professor que defende as conquistas científicas acima de outras formas de
conhecimento, também interfere sobre a crença dos seus alunos. Nenhuma das condições
mencionadas são prudentes, pois se chocam e, fazem do ensino uma relação conflituosa entre
ciência e religião. Cabe ao professor empreender um diálogo baseado no respeito à
diversidade religiosa do aluno, consciente de que para isso não precisa excluí-los das
explicações científicas sobre determinado assunto.
Considerações finais
A existência de uma relação estreita entre o profissional que ensina e a disciplina ensinada,
sem que isso gere conflitos de interesse entre o professor e a pessoa deste professor – e que
807
poderá ter alguma predileção por uma determinada crença – resulta na exploração de
conceitos claros, métodos revisados periodicamente e os saberes são compartilhados para
contribuir e ampliar a formação do indivíduo. Conforme Greschat (2005),
[...] a religião e a ciência podem ter aspectos convergentes e não apenas divergentes.
Embora a ciência trate de realidades empíricas, físicas e visivelmente comprováveis através
de seus métodos, não se pode descartar a importância da religião, não apenas na formação
da cosmovisão de um povo e de uma sociedade, mas também no fato de que a religião tem
contribuído e há de contribuir para a ciência, não apenas pela forma e pela metodologia de
refletir, mas no tipo de diálogo que pode existir e ser implementado entre ambas as espécies
de ciência (p. 161).
O autor sugere o estímulo da “prática científica” e sua relação com a religião para identificar
problemas e encontrar resultados que contribuam para o diálogo entre os dois saberes que
compõem o ser humano. Segundo Guimarães e Oliveira (2011, p.77) a necessidade de relevar
os saberes construídos pela ciência e tecnologia “... como meios para o desenvolvimento
econômico, político e social de uma população é inegável, porém, é preciso ter um olhar
crítico para não divulgar a ideia de que tanto uma quanto a outra trazem apenas benefícios
para humanidade”.
A superação dos limites que envolvem o discurso de superioridade benéfica daquelas formas
de conhecimento é atribuída a escola e pode ser desenvolvida na disciplina de Ensino
Religioso. Por isso, a necessária qualificação de profissionais que contribuam para
compreensão das diferentes concepções, incluídas as questões de ciência, tecnologia e
identidades religiosas dos seus alunos. Quando a formação inicial não contempla tais
exigências a conseqüência é a polarização dos saberes, podendo o professor se expressar com
demasiada visão reacionária ou sendo liberal demais (GARUTTI, 2006).
A superação de uma visão fragmentada torna possível o encontro coletivo entre as diferentes
concepções de mundo e vida em sociedade. Talvez essas afirmações não se constituam
novidades, mas sim necessidades imediatas para o avanço na formação inicial dos professores
e na afirmação da disciplina no currículo com a devida importância que esta tem para
consciência e o conhecimento dos valores humanos em cada tradição religiosa, expressão da
cultura plural do nosso país e da nossa história.
808
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810
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XAVIER, Maria Eliabete S. P. Poder Político e Educação de Elite. São Paulo: Cortez,
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811
812
Identidades religiosas na escola pública: uma análise etnográfica
do cotidiano escolar
Bóris Maia6, Patrícia Marys7
1. Introdução
A regulação da religião por parte do Estado, assim como os efeitos que tal regulação
desencadeia na própria organização e estruturação do campo religioso – e mesmo nas práticas
e crenças que ganham ou não o status de “religião”, como mostram Maggie (1992) e
Giumbelli (1997) –, evidencia como as instituições estatais tem desempenhado, no Brasil, um
papel ativo na conformação de uma gramática pública que define quando e quais
pertencimentos religiosos são legitimamente acionados por diferentes atores sociais no espaço
público.
No Rio de Janeiro, o debate sobre a laicidade do Estado ganhou uma nova impulsão a partir
da criação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), em 2008, que vem
construindo uma agenda de enfrentamento à intolerância e de reconhecimento de direitos à
liberdade religiosa a partir de demandas ao poder público, em especial, à Polícia e ao Poder
Judiciário (MIRANDA, 2010; 2012).
Dentre as muitas instituições estatais que suscitam controvérsias quanto ao lugar que a
religião pode ou não ocupar, ganha destaque a escola pública. Com a ascensão das ideias
iluministas na Europa do século XVIII, a instituição escolar torna-se progressivamente o lugar
6
Mestrando do PPG em Antropologia pela UFF. Bolsista CNPq. Pesquisador do Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC), e do Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP). Contato: borismaias@gmail.com.
7
Graduanda em Ciências Sociais pela UFF. Bolsista PIBITI/UFF. Pesquisadora do Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC), e do Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP). Contato: patriciamaarys@gmail.com.
8
Para uma concisa apresentação e defesa dessa abordagem, ver Birman (2003).
813
dedicado a socializar as crianças com os valores cívicos e laicos, ganhando uma vital
importância para a implementação da cidadania como instituto garantidor dos direitos
fundamentais do projeto político moderno de sociedade (RESENDE, 2008).
Deve-se ressaltar que as escolas de que trataremos neste trabalho possuem perfis bastante
diferenciados. Em primeiro lugar porque estão situadas em cidades que apresentam contextos
sociais e econômicos distintos. Uma das escolas se localiza em uma área rural e a outra em
uma área urbana. Além disso, o público das escolas é diferente no que concerne à idade dos
alunos, pois contemplam níveis de ensino diferentes da Educação Básica. Portanto, o público
de uma das escolas é constituído sobretudo por crianças, enquanto o de outra é formado
majoritariamente por adolescentes11.
Considerando todas essas diferenças, ainda assim é possível identificar dinâmicas semelhantes
na maneira pela qual as instituições lidam com os pertencimentos religiosos que são
acionados pelos diversos atores que compõem o ambiente escolar, como buscaremos mostrar
na descrição etnográfica de duas escolas públicas onde realizamos nosso trabalho de campo.
9
A esfera pública é entendida como o universo discursivo no qual ideias e normas são difundidas e submetidas
ao debate público, já o conceito de espaço público equivale ao campo de relações, fora do espaço doméstico,
onde ocorrem as interações sociais (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002).
10
Esse era o escopo geral dos dois projetos sobre escola que participamos, desenvolvidos no NUFEP, a saber:
Identidades e Intolerâncias no espaço escolar: repensando as formas de administração de conflitos, aprovado
no Edital FAPERJ n. 21/2010 – Programa de Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas, coordenado pela
professora Ana Paula Mendes de Miranda; e A administração institucional de conflitos no espaço escolar:
alteridade e (in)diferença no espaço público fluminense, aprovado no Edital FAPERJ n. 16/2011 – Programa de
Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas, coordenado pelo professor Fábio Reis Mota.
11
No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), são considerados crianças todos
aqueles entre 0 e 12 anos de idade incompletos; e adolescentes todos aqueles entre 12 e 18 anos de idade.
814
2. Etnografia nas escolas
A primeira escola de que trataremos neste artigo é o Colégio Estadual CS (CECS)12, que está
localizado em um bairro próximo à região central de um dos municípios pertencentes à
Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Nosso contato com tal escola deu-se em função do
trabalho de campo realizado por Maia (2011), cujo objetivo então era perceber como os
conflitos de natureza étnico-racial-religiosa seriam administrados nas escolas públicas do Rio
de Janeiro, tomando as aulas de ensino religioso como lócus privilegiado de análise.
O CECS é uma das escolas públicas mais tradicionais e concorridas da cidade, sendo a
primeira opção de muitas famílias, entre as escolas públicas, para matricularem seus filhos. A
escola possui cerca de 2900 alunos, 156 professores e 37 funcionários, funcionando nos
turnos da manhã, da tarde e da noite. O turno da manhã é exclusivo para o ensino médio e o
turno da tarde para o ensino fundamental. O turno da noite também tem aulas do ensino médio
regular, mas é voltado sobretudo para o EJA (Educação de Jovens e Adultos) e para cursos
profissionalizantes.
O Colégio Estadual CS contou, durante a pesquisa, com três professoras de ensino religioso:
Lourdes, Angélica e Paula. As três são católicas – informação que nos foi dada pelas mesmas
e pela diretora - e “dão aula” para diversas turmas, desde o ensino fundamental até o ensino
12
Tanto o nome da escola como o de todos os personagens que aparecem durante a etnografia dessa escola são
fictícios.
13
Categoria usada para se referir às áreas de habitação localizadas em favelas e morros do Estado.
815
médio. Cada turma tinha um tempo de cinquenta minutos de aula de ensino religioso por
semana.
No início do ano, a “recepção de boas-vindas” aos alunos foi inteiramente planejada pelas
professoras de ensino religioso. Tratou-se de um evento onde foram convidados um padre e
um pastor para darem as boas-vindas aos alunos. Os alunos foram colocados no pátio situado
a frente da sala dos professores. A diretora-adjunta foi a primeira a falar, ressaltando a
importância dos alunos para a escola e a importância dos “valores corretos” para uma “boa
escola”; depois falou Lourdes, que tratou de apresentar o pastor e o padre, que falaram em
seguida; o padre fez uma reza, pedindo que os alunos o acompanhassem; o pastor fez uma
oração, em tom mais descontraído, tentando ganhar, pela simpatia, a atenção dos alunos, que
pouco davam importância para os convidados; Angélica falou depois, mostrando a
importância da harmonia para o fim da intolerância que vinha se tornando mais freqüente, e
chamou uma aluna para fazer uma oração no microfone; por fim, Paula agradeceu a presença
de todos e desejou um “ótimo ano letivo para todos”. Para terminar, Lourdes pediu que todos
dessem as mãos e foi rezado um “Pai Nosso” coletivamente.
Por ocasião do aniversário da escola foi organizada uma missa para comemorá-lo. Mais uma
vez, foram as professoras de ensino religioso que se incumbiram da tarefa de organização do
evento. Foram até a igreja mais próxima conversar com o padre, providenciaram as músicas
para cantar na missa e elaboraram um convite para os demais professores que foi enviado pelo
e-mail, também divulgando na sala dos professores no horário do recreio. A missa teve a
presença das diretoras (geral e adjunta), de alguns professores, funcionários, alunos e seus
pais. Em determinado momento da missa, realizada em uma igreja próxima da escola, a
diretora foi chamada no altar pelo padre, onde agradeceu a oportunidade de estar realizando a
homenagem ao colégio e pediu que todos cantassem um “parabéns pra você”, dedicado ao
CECS. Depois do “parabéns”, uma ex-aluna do colégio ainda foi chamada para fazer a
“coroação de Maria” no altar.
816
Logo que chegamos à escola, fomos conversar com as professoras de ensino religioso, a quem
pediríamos autorização para acompanhar as suas aulas. Uma delas, após ouvir brevemente a
explicação, perguntou sobre a nossa religião, recomendando que fôssemos procurar algum
grupo de jovens católicos “próximo de casa”.
Em relação aos conteúdos apresentados durante as aulas de ensino religioso, podemos dizer
que o mesmo foi veiculado a partir do ponto de vista católico, com as professoras se
utilizando de valores que expressam um vocabulário e uma gramática católica, ou seja,
situações que permitem ou não o uso de determinadas atitudes de acordo com uma moralidade
católica, e de materiais pedagógicos que são trabalhados durante as aulas, enfatizando a
compaixão, o amor ao próximo, os dons de Deus, entre outros. Assim, durante as aulas
acompanhadas, as professoras ao falarem de temas como drogas, aborto, família, passam
filmes, por exemplo, que tratam de tais temas de uma maneira claramente comprometida com
a moralidade cristã. O aborto é sempre condenável, a família é a fonte da moral e dos bons
costumes, e as drogas levam inevitavelmente a tragédias pessoais14.
Também observou-se uma preocupação nessas aulas com a superação da dicotomia entre
católicos e evangélicos por parte das professoras, buscada através da tentativa de difundir a
identidade de cristão, ao invés da de católico ou evangélico.
Um dos textos usados em sala pelas professoras, por exemplo, é claramente direcionado para
essas duas tradições religiosas cristãs: católicos e protestantes. Logo de início, chama a
atenção para a influência do catolicismo na história do Brasil, onde a presença de Maria se faz
presente em diversas esferas da vida social, seja na literatura ou nas canções populares, seja
na burocracia ou na geografia. A relação entre católicos e evangélicos ganha destaque a partir
do terceiro parágrafo, inicialmente com a explicitação de suas diferenças teológicas. É ainda
nesse parágrafo que se apresenta o objetivo central do texto: uma busca pelas semelhanças
entre as duas tradições para que a relação entre os seus respectivos fiéis possa ser mais
pacífica. A Bíblia, que é utilizada por ambas as tradições, serviria como ponto de partida para
esse início de “conversa”, assim como a figura e os ensinamentos de Maria.
14
O aborto, as drogas e a família são temas que estão constantemente envolvidos em controvérsias públicas no
Brasil, onde as posições defendidas pela Igreja Católica têm obtido vitórias majoritárias nos âmbitos político e
jurídico. Para uma discussão sobre tais controvérsias ver Duarte et al. (2009).
817
esteja explicitada ao longo do texto. As professoras, católicas, sentem que o recente
crescimento de neopentecostais nas escolas, sobretudo alunos (e indiretamente os pais) é uma
situação que demanda um novo tipo de conteúdo a ser transmitido durante as aulas.
Conteúdos que busquem contemplar os interesses católicos, sem ignorar os alunos
evangélicos. Assim, as professoras elegem elementos comuns entre as duas tradições
religiosas – no caso do texto analisado, a Bíblia, Deus e Maria – e os tratam como meios de
produzir uma identidade entre ambas, o que levaria a uma relação pacífica. A ideia do cristão,
nesse sentido, surge como uma identidade encompassadora, que engloba católicos e
evangélicos, fazendo com que ambos se sintam contemplados com os ensinamentos
difundidos durante as aulas.
As demais religiões, no entanto, não vinculadas à matriz cristã, têm uma reduzida atenção
durante essas aulas. Em geral, aliás, os alunos que pertencem a religiões de matriz afro-
brasileira não costumam se identificar como tal. Uma das alunas, quando perguntada se
conhecia algum aluno adepto de tais religiões, disse que sabia de uma menina, Karla, mas que
poderia ter outros “escondidos”:
Marcele – Se tem, fica escondido. Porque minha mãe também é assim. Ela sabe que as
pessoas vão criticá-la e vão ficar com certo preconceito. Minha mãe é espírita kardecista,
mas mesmo assim ela não demonstra muito. Porque ela é malandra. Eu já não sou muito de
me esconder. Assim, eu falo na cara e foda-se se quem...se está ligando ou não. Aí eu
simplesmente frequento sem ligar. Agora, eu realmente, graças a Deus...tem gente que anda
junto e sofre preconceito. Eu realmente nunca sofri preconceito.
Além de Karla, citada por Marcele, conhecemos também outra menina no CECS que dizia ser
adepta da Umbanda. Nas primeiras vezes em que conversamos, ela logo mencionou o fato de
sofrer bullying por conta de seu pertencimento religioso. Os alunos da escola a chamavam por
alguns apelidos, como “preta velha da macumba”, “brigadeirão” e “macaca”, o que a deixava
visivelmente incomodada. A aluna se queixou na Direção da escola e com alguns professores,
que não interviram na situação. A menina disse que agora costuma ignorar as agressões
verbais que sofre, pois sabe que ninguém na escola “faz nada” em relação a isso.
A percepção do preconceito não é apenas por parte daqueles que são adeptos de religiões afro-
brasileiras. Os alunos que se identificam como sem religião e ateus também dizem sofrer
preconceito por parte de seus colegas e também dos professores.
818
Thayla – Dentro da escola já rolou de eu perder ponto já. Cinco pontos. Ano passado teve
uma aula de religião. Aí a professora me tirou dois pontos e meio, porque eu falei que o
nome Lúcifer era bonito, por causa do significado. Aquele que veio da luz. É, tipo, não é
uma coisa feia. E também perdi dois e meio porque eu não acredito em Deus. Ela [a
professora] foi perguntando para cada um da turma qual era a religião. Aí ela chegou pra
mim e perguntou qual a minha religião. Eu disse: “ah, eu sou ateia”.
A segunda instituição escolar que será objeto de análise, Escola Municipal Pastor Alcebíades
Ferreira de Mendonça, está localizada numa comunidade quilombola no município de
Araruama/Distrito São Vicente, na Região dos Lagos15 do Rio de Janeiro. Esta comunidade –
intitulada Sobara, e que se localiza em uma zona rural – é certificada pela Fundação Palmares,
órgão federal responsável pela identificação das denominadas comunidades quilombolas.
Nosso primeiro contato com tal escola teve início em março de 2012, por ocasião do trabalho
de campo realizado por Marys (2012).
Com o nome do colégio em mãos, fomos até o distrito de São Vicente tentar obter mais
informações. Seguimos as informações dadas por um taxista, além de pedirmos informações
às pessoas locais que encontrávamos pelo caminho. Quando perguntávamos pela “escola
Pastor Alcebíades” conseguíamos as informações mais facilmente; por outro lado, quando
indagávamos sobre o “quilombo”, as pessoas diziam não saber informar, ou mesmo
desconhecer sua existência.
Em São Vicente esbarramos com o mesmo taxista, que perguntou sobre nossa ida para
Sobara. Ao contarmos o que havia ocorrido, ele nos disse que conhecia uma funcionária do
colégio, levando-nos em seguida até ela. Esta pessoa era a diretora da referida escola, que
15
Apesar de ser popularmente conhecida como Região do Lagos, o nome oficial para designar tal região
é Região das Baixadas Litorâneas.
819
nos disse que provavelmente os moradores não falaram a respeito do quilombo por algumas
razões, como o medo de sofrer retaliações, já que a maior parte da terra é ocupada pela
fábrica de álcool localizada na região – Agrisa –, na qual uma parte da comunidade trabalha
tanto nos canaviais como na fábrica, por isso tem receio em ter problemas com essa
empresa.
A partir de documentos do colégio que tivemos acesso, conseguimos informações sobre sua
história. Esta teve início na casa do Sr. Gabriel, um dos moradores da comunidade, com
poucos alunos. No entanto, o número de alunos aumentou, e assim já não havia mais
capacidade para comportar um número maior de estudantes. Por conta disso, a escola passou a
funcionar na Igreja Assembleia de Deus. Posteriormente, outro morador de Sobara cedeu para
a prefeitura o terreno onde foi construído o espaço atual do colégio. Tal unidade ganhou o
nome Escola Municipal Pastor Alcebíades Ferreira de Mendonça, por ser o nome do pastor
presidente da Igreja onde a instituição funcionou durante um período.
Para iniciar o dia no colégio as crianças formam filas separadas por suas respectivas turmas e
depois por sexo. A diretora fala “firme crianças”, elas abaixam os braços e após isso é tocado
o hino nacional, o hino de Araruama e por último o hino de Sobara (este hino foi feito pelos
alunos junto com o professor de música do colégio e é o único hino que os alunos participam
cantando). Após o canto dos hinos, a diretora começa dando “bom dia” para os alunos, os
recados do dia quando necessários e faz uma oração agradecendo. Num dos dias, por
exemplo, a ex-diretora disse: “Essa escola não faz nada sem Jesus” e seguiu falando sobre
sensibilidade, amor, simplicidade e que “podem conquistar os melhores trabalhos, dinheiro,
16
Trata-se de uma oficina de instrumento de percussão, cujos instrumentos são feitos de material reciclado.
820
mas deve sempre prevalecer a simplicidade, pois Jesus deve ser sempre alegrado com nossas
boas ações, alegrar as pessoas é alegrar Jesus”.
A partir do ano de 2013, a proposta da nova diretora, segunda ela, consistia em levar os
alunos para lugares na comunidade onde ainda há resquícios de estrutura física que remetem
aos quilombos e que iria buscar o “resgate” da cultura negra de modo a mostrar os pontos
positivos da África. Ressaltou ainda que os alunos precisavam valorizar sua cultura, dizendo
que lá “é quilombo mesmo, só tem escurinho”.
Ao conversarmos sobre a matéria de ensino religioso, a professora do 1º ano disse que não
teve nenhum preparo para dar essa aula e que não fala sobre religiões em sala, mas busca falar
sobre valores, como amor a Deus, respeito, caridade e que isso é trabalhado no dia a dia e nas
outras matérias também. Do mesmo modo, não obteve acesso a uma preparação para tratar da
temática do ensino da África, sendo que no início teve muito receio de trabalhar esse
conteúdo, pois, segundo ela, o material da secretaria é muito “aprofundado”, o que o tornava
de difícil entendimento para aquelas crianças, e assim ela tinha que buscar conteúdo em outras
fontes para aproximar da realidade das mesmas.
Já a professora do 4º ano diz que não gosta de se ocupar do ensino religioso, pois os alunos
não gostam da aula, reclamam quando tem que copiar ou fazer atividades e que há
dificuldades em passar o conteúdo de uma forma mais dinâmica, pois a sala onde pode-se
passar um filme está sempre ocupada. Por essa razão, ela costuma apenas fazer uma breve
leitura da Bíblia.
As professoras dizem que estes “valores” são trabalhados no dia a dia e também nas outras
disciplinas, mas que não se fala sobre religiões em sala, embora a nossa observação mostre
que a dimensão religiosa esteja presente diariamente, seja no discurso de abertura do dia
821
letivo, nas conversas ou nas aulas como foi exposto. Dizem ainda que a finalidade é difundir
determinados “bons valores”, fazendo daqueles alunos “boas pessoas”.
Neste colégio há algumas comemorações, como o Projeto Valores, que ocorreu no final do
ano de 2012, onde houve apresentações de poesias, danças e textos escritos pelos alunos. A
apresentação mais marcante para a ex-diretora neste projeto foi a do Pré17, em que cada aluno
carregava uma placa onde estava escrita a palavra “respeito” junto com um funcionário
representando uma ocupação diferente, com o intuito de passar a mensagem de que todas as
ocupações deveriam ser respeitadas. Por último, enquanto tocava uma música evangélica,
entrou um aluno que, usando uma espécie de túnica e uma coroa representando Jesus, abraçou
os funcionários, o que os comoveu. Após o término das apresentações a ex-diretora pediu que
todos fossem para a quadra e fizessem uma roda dando as mãos. Nesse momento a ex-diretora
disse que estava muito orgulhosa do trabalho de sua equipe e que o menino vestido de Jesus
havia emocionado muito a ela, pois esse menino estava ali representando um "Jesus negro e
quilombola". Questionou a existência do Jesus branco e que tal símbolo era feito pelos
homens brancos. E por isso as crianças deviam ter orgulho da sua cor, das suas raízes e
deviam lutar pelos seus direitos. Após isso agradeceu a Deus e a todos por aquele momento.
No final dessa mesma comemoração tocou um forró e os alunos ficaram dançando. Teve um
momento que a ex-diretora também dançou com um dos meninos. E depois disso falou que
esse gesto era uma forma de integrá-los e desinibi-los, pois ela era da “Assembleia” e festejar
não era contra a religiosidade ou a fé. Essa era uma forma das crianças dançarem, se
divertirem e os pais não questionarem.
No inicio do ano de 2013 também realizamos um grupo focal no colégio com o intuito de
reunir mais dados para a pesquisa. A turma escolhida foi a do 1º ano devido a um contato
mais estreito com a professora que sempre se mostrou a vontade com nossa presença desde o
início – diferente de algumas professoras de outras séries que se mostravam um pouco
incomodadas.
Uma das dinâmicas do grupo focal18 consistia na brincadeira “a galinha pintadinha”, em que
os alunos ficavam sentados no chão em círculos, e quando era cantada a música os alunos
fechavam os olhos, enquanto um colega passava atrás com uma peteca. Quando a música
17
Refere-se ao 1º ano do Ensino Fundamental, com estudantes de idade média de 6 anos.
18
Em função da pouca idade dos alunos, o grupo focal foi realizado por meio de brincadeiras divididas em seis
momentos, onde buscamos dialogar com os alunos ao invés de fazermos apenas perguntas e respostas.
822
acabava, o aluno deixava a peteca atrás de algum colega. Este iria escolher um objeto que
estava na caixa ou uma das figuras que estavam espalhadas pelo chão no centro da roda. Em
seguida falaria o que era o objeto/foto, o que representava para ele, e o que o lembrava. A
dinâmica funcionou com o aluno escolhido falando, mas também com a interação dos outros
alunos. Muitas vezes eles formulavam juntos uma concepção do objeto/foto escolhido.
Uma das figuras que foram escolhidas foi uma imagem de casais dançando. A aluna que
escolheu a foto disse que eram pessoas dançando forró e lembraram-se do forró que acontece
na comunidade. Perguntamos quem ia e muitos alunos levantaram a mão dizendo que iam e
ficavam dançando. Uma das alunas levantou para mostrar como era e dançou com dois
colegas da sala. Havia um aluno que se divertia implicando com os demais e chegou a
apontar para um deles o acusando de ser um “crente falso”, já que este ia ao forró e na Igreja.
Neste momento alguns alunos falaram que preferiam dançar funk a forró. O mesmo aluno que
chama a colega de "crente falsa" passa a aula toda cantando músicas que não são da igreja e
quando o perguntamos o porquê dele chamar a colega de crente falsa ele fingia não ouvir, ria
e continuava cantando.
As músicas de funk, por sua vez, têm sido cantadas e dançadas com frequência por alguns
alunos em sala de aula. No entanto, a professora sempre intervém em tal situação com uma
“bronca” dizendo: “pára de cantar essas músicas, vou contar para sua avó!”. E, algumas
vezes, até os próprios colegas de sala reprovam as músicas cantadas dizendo frases do tipo
“isso é musica do bicho ruim”, ou chamando o colega de “crente falso”, que no caso é aquele
que vai à igreja, mas canta funk.
3. Considerações finais
Uma das questões que nos interessava saber, durante a realização da pesquisa, era que tipo de
apropriação era feita pelos atores da escola, em especial os professores, com a ideia de
laicidade, tendo em vista que ela é constantemente mobilizada para se condenar ou defender
diversas práticas que envolvem a dimensão religiosa dentro do ambiente escolar.
Assim, durante este trabalho, propomos também discutir como se dá a relação entre o que os
professores entendem como a difusão de “bons valores” e seus credos religiosos,
823
considerando a relação entre as questões raciais e religiosas no cotidiano do espaço escolar.
Ainda, damos especial atenção à percepção dos próprios alunos sobre tais iniciativas.
Nesse sentido, é interessante notar que os professores justifiquem seus discursos quanto à
formação de “boas pessoas” através de valores morais vinculados ao cristianismo, e, ao
mesmo tempo, dizem que não falam de religião, menos ainda que se utilizam de proselitismo.
Tudo se passa como se os valores de que falam fossem considerados como estando para além
de qualquer religião particular.
A forte presença da religião no ambiente escolar pode ser constatada nas duas escolas aqui
tratadas. Em ambas, a própria constituição da escola é atravessada por elementos religiosos
em diferentes circunstâncias. No que concerne ao espaço físico, o CECS abriga dentro de si
uma capela, que fica disponível para os alunos, professores e funcionários da escola que
queiram utilizá-la para fins espirituais. A escola Pastor Alcebíades, por sua vez, funcionou por
um tempo dentro de uma Igreja, sendo nomeada, depois de ganhar um terreno próprio para
sua nova sede, pelo nome do Pastor da Igreja onde a escola funcionava.
Também nos parece claro que o pertencimento religioso dos atores é um elemento importante
na dinâmica das escolas estudadas. Os próprios pesquisadores foram inquiridos em seus
respectivos loci etnográficos quanto à religião que pertenciam, seja por alunos, seja por
professores ou diretores. Isso mostra como o pertencimento religioso é um critério de
avaliação, classificação e, portanto, de hierarquização das pessoas naquele universo. Assim, a
definição dos atores em função de seus pertencimentos religiosos serve, em diferentes
contextos, no interior do espaço escolar, como importantes marcadores sociais de diferença.
Essa diversidade provoca alguns conflitos na dinâmica escolar, quando esses pertencimentos
religiosos entram em choque com crenças que contrariam a cosmologia desses grupos, ou
com práticas associadas à macumba, termo que exprime um sentido negativo para tais grupos
Assim, certos gêneros musicais, como o funk e o forró, aparecem inicialmente como
elementos perturbadores da ordem simbólica que orienta o mundo dos evangélicos. O mesmo
pode ser dito sobre o aborto e as drogas, no caso das professoras do CECS, pois são práticas
que contrariam a moralidade católica.
O incômodo que é provocado pelo fato dos alunos dançarem forró dá origem a categorias de
acusação que são acionadas pelos estudantes em relação aos seus próprios colegas, como
ficou evidenciado durante a realização do grupo focal, onde a categoria de “crente falso”
824
surgiu por conta de um dos alunos dançar forró e ir à igreja. Na tentativa de superar essa
tensão, a diretora dançou forró com um dos alunos sob a justificativa de que o forró não
contrariava seu pertencimento religioso, já que a mesma era pastora. Ou seja, o fato de deter
uma autoridade espiritual e dançar forró conferiu a essa prática uma nova conotação
simbólica, ressignificando-a positivamente junto à comunidade escolar.
O ensino religioso – disciplina escolar encontrada nas duas escolas – parece atuar no sentido
de reforçar as crenças dentro das quais os alunos são socializados no ambiente familiar.
Embora fique evidente que a rotina escolar comporte a dimensão religiosa em diversos
momentos, as aulas de ensino religioso são o lugar onde os valores são explicitamente
difundidos e enfatizados, ao contrário de outros momentos da escola, onde eles estão
presentes de forma implícita, sem que sejam objeto de elaboração por parte dos professores.
Por fim, mesmo considerando as diferenças existentes entre as instituições escolares que
foram objeto de análise, cabe ressaltar como a dimensão religiosa atua de maneira evidente na
dinâmica pela qual a escola lida com o processo de construção de identidades e subjetividades
dos alunos que tem lugar em seu interior. A fala da diretora de uma das escolas talvez indique
o grau de importância que o pertencimento religioso tem para a dinâmica escolar: “Essa
escola não faz nada sem Jesus”.
Referências
BIRMAN, Patrícia. Introdução. In: BIRMAN, Patrícia. (Org.). Religião e espaço público. São
Paulo: Attar/PRONEX, 2003.
825
DUARTE, Luiz Fernando Dias; et al. Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação
de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
MAIA, Bóris. “Matéria de caderno”: uma etnografia das aulas de ensino religioso.
Monografia de conclusão do curso de bacharelado em Ciências Sociais da Universidade
Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2011.
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional,1992.
MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Entre o privado e o público: considerações sobre a (in)
criminação da intolerância religiosa no Rio de Janeiro. Anuário Antropológico, v. 2009-2, p.
125-152, 2010.
RESENDE, José Manuel. A sociedade contra a escola? A socialização política escolar num
contexto de incerteza. Lisboa: Instituto Piaget, 2008.
826
827
Interfaces entre educação escolar e saberes religiosos na
Amazônia
Maria Betânia Barbosa Albuquerque1
Introdução
Este texto analisa os saberes que perpassam a vida religiosa do município de Colares e as
formas como tais saberes são vivenciados em uma escola formal de ensino.
Colares é uma ilha localizada no litoral da baía do Marajó, no Pará, com uma área de 609.776
km² e uma população de 11.433 habitantes. Região constituida, historicamente, por uma
diversidade de grupos étnicos, com destaque para os índios tupinambá, primeiros habitantes.
Segundo, Brandão (2007, p. 20) “qualquer pesquisador da formas populares de cultura e dos
modos subalternos de vida sabe que ali quase não há esferas de uma e de outra que não
estejam envolvidas e significadas pelos valores do sagrado”. Em Colares, praticamente todas
as esferas da vida são perpassadas por valores sagrados, a começar pelo imaginário que
1
Doutora em Educação pela PUC/SP com Pós-Doutoramento pela Universidade de Coimbra. Professora do PPG
em Educação da UEPA. Contato: mbetaniaalbuquerque@uol.com.br.
2
É fictício no texto o nome de todos os entrevistados.
828
circula a respeito da ilha referida como lugar mágico, sagrado, diferente e com muita energia.
Os motivos que explicam esse imaginário estão relacionados a diversos fatores, entre eles
despontam as belezas naturais do lugar. Segundo seu Carlos,
Colares é um dos poucos lugares que você tá tomando banho de praia e vendo o igarapé,
tomando banho de igarapé e vendo a praia. Apesar de se saber que todo rio, todo igarapé a
tendência é descarregar para o mar, mas só aqui agente tem esse monitoramento, agente tá
no igarapé monitorando quem tá na praia (entrevista).
Pouco acima deste lugar, está a Vila da Cabi, hoje chamada a Vila de Colares, situada
pouco acima do furo, que divide o seu terreno do terreno de Tabapará. Está situada sobre
uma ribanceira eminente a uma muito larga baía, que já dissemos; e com todas as regalias
de boa vista, bem lavada dos ventos, e bastante populosa, por cuja razão também na geral
promoção foi exaltada, e batizada com o nobre título de Vila de Colares (DANIEL, 2004, p.
114).
Em função das maravilhas que encontrou na ilha, João Daniel (2004, p. 114), conjectura que
“se for povoando de portugueses, pode brevemente chegar a ser uma grande cidade”.. Colares,
então, foi objeto de interesse dos portugueses que viam nesta localidade o lugar ideal para a
localização da nova província. Nos anos de 1970, em provável sintonia com o movimento
contracultural existente no mundo, o imaginário em torno da ilha foi motivo de atração de
diversas pessoas. Reportando-se a esse cenário, Villacorta recorre à voz de uma de suas
narradoras:
Nós íamos para Colares nos finais de semana, nos feriados, passávamos férias. Muitas
pessoas faziam isso, a gente tava em busca de algo. Havia uma necessidade… Nós
buscávamos um lugrar sagrado, o contato com a natureza. Mais que isso, a gente buscava
harmonia com a natureza porque a natureza não está separada de nós, mulheres e homens,
do ser humano. Essa era nossa filosofia de vida (apud VILLACORTA, 2011, p. 39).
Nos anos de 1990, Villacorta registra o modo de vida das diversas pessoas que frequentavam
a ilha: “Durante o trabalho de campo, pude observar, além dos ‘roqueiros’ e ‘alternativos’,
grupos de ufologistas, esotéricos, adeptos do Santo Daime, assim como pessoas que queriam
simplemesmente conhecer este ‘portal da Amazônia’” (VILLACORTA, 2000, p. 2-3). A
presença desses “alternativos” em Colares também parece relacionada à figura de uma
829
importante xamã, conhecida como Tia Rose que, nos anos de 1973, passou a habitar a ilha. De
acordo com a autora:
Entretanto, um motivo forte que contribuiu para o imaginário místico sobre Colares foi um
acontecimento inusitado, ocorrido nos idos de 1970, quando a mídia local passou a emitir
notícias acerca do aparecimento de ovnis ou disco-voadores no céu da ilha. Nos anos de 1977
e 1978 a Força Aérea Brasileira (FAB) realizou uma operação para verificar a ocorrência
desses estranhos fenômenos. Observe-se, a propósito, descrição de uma moradora local cujo
marido presenciou pessoalmente a experiência:
Aqui nos anos setenta passou um disco voador que deram o apelido de ‘chupa-chupa’. Esse
chupa-chupa alarmou aqui e muita gente entrou em pânico não só em Colares como no
município todo. As pessoas que foram atingidas pelo chupa-chupa - uns já até faleceram -
muita gente não acreditava, não sabiam o que era, ficaram desesperados (Entrevista, D.
Ester).
De modo geral, D. Ester assim descreve a experiência vivida por seu Paulo:
Ele disse que aquilo veio de cima, veio aquele foco certo no pescoço dele. Aí pronto, ele
ficou paralisado, não pôde mais se mexer. Aquilo foi no pescoço dele. Quando a mamãe
gritou...ele saiu, largou ele e foi embora! E o pessoal que estava lá na outra rua, sentado no
canto, disseram que viram uma luz verde sair de cima de casa quando nós gritamos. Aí
então eles dizem que foi o ‘chupa-chupa’.
Diante do ocorrido, existem relatos de que, nesse período, o posto médico de Colares realizou
atendimentos a diversas pessoas vítimas de queimaduras cujos responsáveis, segundo a
população, eram estranhas luzes vindas do céu identificadas por diversos nomes: ovnis, ufos,
extra-terrestres. O fenômeno ficou popularmente conhecido como “chupa-chupa” (GIESE,
1991) impactando a vida na ilha sob diversos ângulos: turístico, econômico e cultural, além da
perspectiva místico-religiosa que margeia o fato.
830
Expressões da vida religiosa local
Segundo informa seu João, na ilha de Colares “nós temos Santo Daime, Quadrangular,
Assembleia de Deus, Adventista do Sétimo Dia, Testemunha de Jeová e Espiritismo”. Seu
João afirma, porém, que “a maior religião é a católica, a segunda a Assembléia de Deus.”
Para D. Tereza, havia apenas duas religiões em Colares, a católica e a protestante. Mas,
“depois foi surgindo outras religiões” de modo que, atualmente, “em cada rua tem uma
igrejinha evangélica”. No que se refere à pajelança, embora os estudos de Villacorta (2000;
2011) apontem a presença dessa prática em Colares, isto não aparece de imediato na fala dos
narradores. Todos dizem-se católicos, até mesmo aquele que se autodenomina como
“macumbeiro nas horas vagas” (seu José). Também encontramos quatro, dos oito narradores,
como participantes ativos da igreja católica. São membros da diretoria da igreja, guarda da
Santa ou pertencente à pastoral do dízimo. A relação de pertencimento estabelecida com a
igreja local é fator de reconhecimento, sociabilidade e capital social.
As Festas de Santo
Existe vários círios. Em todas as localidades por aí eles fazem o círio, fazem procissão.
Aqui no Ariri, nós começa o ano em janeiro com uma festa tradicional de São Sebastião. Aí
vem mês de maio, mês de Maria, sempre se faz as novenas de Santa Maria. Quando chega
em junho, eles festejam aqui São Pedro que é do pescador, onde fazem o mastro do São
Pedro e uma procissão. Aí vem novembro em que se festeja Nossa Senhora das graças, eles
fazem um ciriozinho, uma romaria e um arraial (entrevista).
Diversos santos preenchem o calendário das festas colarenses espalhadas entre as várias
localidades que conformam a ilha. Dentre eles, cabe destacar a de Nossa Senhora do Rosário,
a santa padroeira da munípio de Colares, uma das mais festejadas. Mas todas estas festas
mencionadas são, segundo seu Antônio, “festas da igreja”. Segundo ele, “tirando de ser da
831
igreja, nós temos em dezembro uma família que sempre festeja, manda rezar ladaínha pra São
Benedito”. Mas isso aí, ressalta o narrador, “é fora da igreja, é uma festa de família, tradição”.
A compreensão dessa prática como sendo “de fora da Igreja” pode estar relacionada ao fato de
ser considerada como uma “coisa dos pretos”, já que São Benedito é um santo negro. Segundo
Maués (2005, p. 3), São Benedito é considerado um santo “muito milagroso – e também
muito perigoso, com quem não se pode brincar”. A devoção a ele deve-se aos seus poderes
relacionados à obtenção de “curas das doenças, encontrar objetos perdidos e outras graças”.
Um aspecto que importa ressaltar sobre os santos é sua natureza ambígua. Em sua pesquisa
sobre o catolicismo popular, Brandão (2007, p. 373), constata essa ambiguidade a partir de
“casos que atestam a misericórdia de São Benedito em atender a todos os seus devotos, mas
também as suas manias humanas, como a de ser sempre convidado para festas de outros
santos, como na Dança de São Gonçalo, ou a de não admitir outra posição de seu andor na
procissão, a não ser a última”. No caso de Colares, os santos parecem tão enredados no
cotidiano que, como os humanos, também se envolvem em querelas diversas, até mesmo em
brigas:
Aqui tem a igrejinha do São Pedro, mas eles tiveram uma briga aí entre São Pedro e São
Raimundo por causa de uma canoa. A canoa é do São Pedro e o São Raimundo queria dar
uma saída nela aí pra fora, aí trançaram a porrada. Eu sei que se bateram tudo, ficaram tudo
sem pescoço (Seu Antônio).
Como partícipes da vida cotidiana, os santos também são invocados para apaziguar os
fenômenos da natureza, como tempestades e trovões. Neste caso, não adianta lembrar de
Deus, pois só mesmo Nossa Senhora do Ó pode ajudar.
Os santos também são invocados em situações que põem por terra a clássica dicotomia entre
sagrado e profano, como é o caso da prática dos sortilégios. Os sortilégios como artimanhas
da feitiçaria, constituem-se em práticas bastante antigas, estando registrados em clássicos da
história do Brasil como O Diabo na Terra de Santa Cruz (2005) de Laura de Melo e Souza.
Segundo a historiadora, “no Grão-Pará se falava de sortilégios indefinidos”. Ao estudar as
denúncias de “orações”, sobretudo, para fins amorosos, Souza (2005, p. 235) afirma que, no
Grão-Pará, quatro indivíduos foram acusados de lançar mão desse recurso, sendo a de São
832
Marcos a oração mais invocada. Tais orações constituiam-se como prática “universalmente
conhecida”. Tratava-se de “um ramo da magia ritual em que era irresistível o poder de
determinadas palavras divinas e, sobretudo, do nome de Deus” (SOUZA, 2005, p. 230).
Em Colares, entretanto, ressalta-se o apelo aos santos. Dentre o panteão dos que são
invocados, Santa Catarina destaca-se na voz de seu Antônio posto que “foi dessa santa que eu
arrumei uma mulher”, além do tradicional santo casamenteiro: Santo Antônio. A fim de ver
“se dá certo o negócio” com uma certa mulher, seu Antônio não mediu esforços na conquista:
Porque eu tinha uma mulher, e eu não gostava dela, eu gostava de uma outra, mas essa
mulher vivia me perseguindo. Me perseguiu até que eu disse: vou ve se dá certo o negócio.
Aí eu passei na casa de um cidadão, se é pecado isso eu ainda tenho, eu roubei um Santo
Antônio pequenino, eu roubei do santuário. Eu coloquei no bolso, aquilo dava uma sorte. E
essa mulher me perseguiu e eu não tinha pra onde correr. Aí, seis horas da tarde eu fui,
cavei um buraco no tronco do esteio e enterrei o Santo Antônio de cabeça pra baixo. ‘Oh
meu glorioso Santo Antônio de Paula, amigo do nosso Sr. Jesus Cristo faça que com a
oração que eu vou rezar agora essa mulher vir aqui’.
A oração mais poderosa, contudo era dirigida a Santa Catarina “por que com a oração de
Santa Catarina o cara vem chorando no punho da rede dela, aí eu rezei”:
Minha beata Santa Catarina, sois beata como o sol, formosa como a lua, linda como as
estrelas, entrastes na casa do santo padroeiro encontraste cinquenta mil homens, vistes
todos, vós abrandastes. Assim peço a Sra. que abrande o coração de fulana para mim.
Fulana, quando tu me veres, tu te interessarás por mim, chorarás assim como a virgem
santíssima chorou por seu bendito filho. Fulana debaixo do meu pé esquerdo eu te remato,
seja com dor, seja com quatro, que te passa no coração. Se tiver comendo, não comerás, se
tiver conversando não conversarás, se estiver dormindo não dormirás, enquanto comigo não
vier falar. Conta-me o que sabe, dar-me o que tiveres e me amarás entre todas as mulheres
do mundo. Eu para ti serei uma rosa fresca e bela. Rezei dez Ave Maria ofereci pra Santa,
cinco horas da manhã a mulher bateu lá em casa. O resultado é que eu tenho uma filha com
ela e mora em Mosqueiro. Essa mulher que eu num gostava, então eu fiz essa experiência
por eu aprendi de um livro meu camarada, o livro de São Cipriano (Seu Antônio).
833
elementos da religiosidade indígena, afro-brasileira e católica, assumindo características
particulares dependendo do contexto histórico e social onde está inserida.
O pajé refere-se à pessoa que tem o dom de curar todo tipo de doenças, sejam elas naturais ou
não. Considera-se como doenças naturais aquelas “mandadas por Deus” ou ainda as relativas
“ao domínio do que é normal”. Tais doenças “nada tem a ver com a maldade dos homens ou
de Satanás” (MAUÉS, 1990, p. 42). Entretanto, quando a doença “resiste ao tratamento
considerado normal” vem à tona a suspeita de se tratar de uma doença não natural. Desse
modo, as doenças não naturais são aquelas que “fogem ao domínio de Deus, sendo muitas
vezes chamadas de malineza (isto é que resulta do mal ou está associado ao Demônio) embora
esse termo não se aplique a todos os casos” (MAUÉS, 1990, p. 42). Maués explica que, em
geral, os sintomas das doenças não naturais tendem a ser os mesmos de certas doenças
naturais. Entretanto, “o que antes se havia diagnosticado dentro desta segunda categoria passa
agora a receber um outro nome (como feitiço, quebranto, mau-olhado, etc) (MAUÉS, 1990,
p. 42). Nestas situações torna imprescíndível o recurso ao pajé.
Diversas pessoas procuram os seus serviços: pedido de proteção, pedido para lar desfeito
porque “às vezes a mulher não quer mais nada com o marido ou o marido não quer mais nada
com a mulher, é para unir de novo” (seu José). Há também os pedidos para o mal, mas, estes,
“há cinco anos” que não são mais praticados por ele. Outros motivos são elencados pelos
narradores para se recorrer ao pajé, entre eles os problemas de saúde, em especial aqueles em
que a medicina oficial encontra limites em sua resolução. Neste caso, a cura das doenças se dá
com o auxílio dos encantados. Os encantados ou caruanas correspondem a seres mágicos que
vivem no fundo dos rios, florestas, sendo, portando, detentores de poder e sabedoria
(VILLACORTA, 2011, p. 50).
834
Em localidades mais afastadas de Colares seu Antônio explica que: “As vezes a situação não
permite ir pra médico. O médico as vezes desengana. Aí diz: olha, vai com fulano [o pajé],
pois Médico só em Colares”. D. Joana também confirma que em Colares “tem uns pajés,
rezadeiras, senhoras que fazem remédio, puxam barriga, puxam dismintidura, [curam]
quebranto”. Segunda ela, os pajés são mais procurados por motivos de saúde, sobretudo
quando o remédio da farmácia não faz efeito: “geralmente tem uma enxaqueca, toma um
remédio e não passa, então vai lá com ele pra benzer e a gente se sente aliviada com aquela
reza que ele faz, benze a cabeça da gente e é bom”.
Há também uma outra situação em que apenas o pajé parece resolver. Seu Antônio, católico
convicto, membro da Guarda de Nossa Senhora da Conceição, explica: “eu procurei por ele
quando o negócio tava pegando aqui no barracão. Aí ele preparou uns banhos e melhorou o
astral”. Seu Antônio acredita em Deus, mas quando “o negócio pega” não foi à água benta da
igreja que recorreu, mas aos banhos do pajé. Contudo, ele tem lá suas desconfianças e não
acredita em qualquer pajé: “pajé, eu acredito naquele que sabe. Naquele que só conta mentira,
só sabe beber cachaça, não”. As desconfianças acerca da prática da pajelança são históricas.
Desde o período colonial essas práticas tem sido combatidas na Amazônia interpretadas, em
geral, pela ótica do preconceito e da demonização (MAUÉS, 2005, p. 13):
Entretanto, se frequentar o pajé é visto com reticência ou preconceito o mesmo não se aplica
ao rezador ou o puxador. “Ah, benzedor, puxador, essas coisas, eu já fui. Dor nas juntas...
Tem um senhor ali que é bom pra isso”. A interdição se restringe, portanto, apenas à
pajelança:“Pajé não! eu não sei a sabedoria popular dele, a ciência dele. Pra quem é católico
não é bom freqüentar essas coisas” (Dona Joana).
D. Joana é bastante ativa na Igreja local como membro do “apostolado de oração” e Guarda
de Nossa Senhora do Rosário. Mas, em seu apostolado convicto reconhece que os remédios
ministrados pelo pajé, envoltos em fé, tem uma ação certeira e seus prognósticos, de vida ou
de morte, são inquestionáveis.
Através do remédio dele eu ficava curada, sabe? Tinha aquela fé no remédio que ia tomar.
Sabia muitos remédios, muito remédio caseiro, e ainda dizia: olha, pode levar, façam esse
remédio que ela não vai morrer, e não morria mesmo! Agora, quando ele dizia: ah! não tem
mais jeito! Podia esperar que a pessoa não ia ter jeito mesmo!
835
Também D. Ester, que faz parte da igreja e pertence à “pastoral do dízimo”, nos conta que
tem um compadre que é evangélico e “pegou um sofrimento e procurou macumba”. Cansado
de lutar conta a doença “que ja era incurável ele foi e procurou macumba”. De fato, em estudo
sobre mulheres pajés em Soure, Marajó-Pará, foi observado a existência de uma diferença
entre curandeiro(a) e pajé, em que o(a) primeiro(a), utilizando-se da intuição, não incorpora
ou não é possuído(a) por forças mágicas para curar, apenas receita banhos, garrafadas, chás,
defumações e utiliza-se, sobretudo, de orações e rezas. O(a) pajé, por sua vez, pode tanto
curar por meio de rezas, ervas e banhos, quanto por meio de rituais mais sofisticados que
envolvem o transe e a incorporação de entidades. Dessa forma, considera-se o pajé mais
poderoso do que o(a) benzedeiro(a) ou curandeiro(a) e acredita-se que ele seja detentor de
maior poder de cura para diversas doenças (naturais e não-naturais) (ALBUQUERQUE &
FARO, 2012). Em Colares, entretanto, encontramos D. Marilda que reúne os atributos de
rezadeira e, ao mesmo tempo, de pajé, a despeito de se identificar apenas como “parteira”.
Dentre suas competências está o afastamento de espírito: “Pra negócio de espírito eu mesmo
rezo, eu afasto os espírito, aliás era o meu trabalho mesmo, afastar espírito dos outros”.
Natureza e religiosidade
quando a pessoa subia numa árvore para olhar para ele, tinha um dor de cabeça que não
resistia! Porque era encantado aquele lugar! Antigamente eles diziam, ah ficou mundiado!
Mundiado de tal coisa assim que viu. Por exemplo, dá um mau olhado na pessoa, fica
perturbado ou fora do sentido.
D. Joana afirma, também, a existência em Colares de locais assombrados, como é o caso, por
exemplo, da praia do Machadinho, provavelmente, devido aos episódios envolvendo o
avistamento de ovnis na praia. Todavia, diante dos mistérios que recobrem a natureza, apenas
ela mesma pode servir de proteção. Na Amazônia, afirma Fares (2003, p. 94), “é comum usar-
se como amuleto de proteção e sorte objetos do mundo da cultura e do mundo da natureza:
dentes de animais ou de alho, determinados tipos de plantas, partes do sexo da bota, água de
jibóia, muiraquitãs, rezas, benzeduras”.
836
Em Colares, diversos elementos extraídos da natureza são empregados como forma de
proteção e sorte, elementos esses que expressam o hibridismo religioso local. Desse modo, a
fim de obter proteção seu Antônio afirma: “Eu uso alho, o alho macho. Porque na cabeça do
alho sempre tem um alho magrinho, aquele é o alho macho. Eu uso no bolso. Além disso, seu
Paulo afirma que “para trazer sorte pra mim é o rabo da cobra. Eu como crua. Eu tenho uma
imagem de Nossa Senhora de Fátima e tenho da Santa Catarina”.
Da natureza, D. Joana lança mão da arruda para sua proteção, além da sua “comunicação com
Deus”. Segundo ela, essas arrudas são boas, são da natureza e você sabe que recebem energia
de Deus”. D. Ester, por sua vez, utiliza “só água benta e vela”. Em relação às plantas, utiliza
“os tajás que eu coloco aí, pois dizem que protege. Planto aí pela frente: Comigo ninguém
pode, Espada de São Jorge… Agora eu não sei se é verdade ou não, eu só sei que eu planto”.
Para curar a panema D. Ester afirma utilizar-se dos banhos. A panema é definida no clássico
estudo de Galvão (1955) como uma crença intimamente relacionada à vida cotidiana do
caboclo na Amazônia
Dentre os “processos apropriados” está a prática dos banhos. Os saberes que envolvem esta
prática são multiplos e bastante antigos. No Folclore do Brasil (1976) de Câmara Cascudo,
está registrado uma diversidade de motivos, dentre os quais destaca-se o “banho para lavar a
porta de dentro para fora”, feito de diversos ingredientes entre os quais o “cabi”, cipó típico
da Amazônia e que constituiu, no passado colonial um dos nomes pelos quais Colares foi
conhecida (DANIEL, 2004 ). Se são muitos os ingredientes próprios para os banhos, também
são muitos os seus motivos: cura de doenças físicas e espirituais; para defesa “quando querem
jogar as coisas pra gente”; para trazer a pessoa amada de volta; para atrair dinheiro. Para cada
uma dessas questões existe uma receita própria de banho. A produção dos banhos está
intimamente ligada ao espaço dos quintais, onde se constatam verdadeiras farmácias
populares.
837
Famosa na ilha de Colares pelo seu vasto conhecimento acerca dos remédios do quintal, D.
Marilda é bastante procurada. Em um passeio por seu quintal, ela nos ensina a receita do
banho capaz de trazer a pessoa amada de volta:
Para fazer uma coisa dessa só com negócio de atraente: “abre caminho”, “disciplina”,
“chega-te a mim”. Esses banhos a gente ferve as folhas e a água de “chama”, incenso de
“uirapuru”. Tem aquele “incenso da bota” a gente só põem uma gota porque aquilo catinga.
Também uso o perfume pra ajudar, todo aqueles perfume que a gente usa, um pouquinho
só.
Num exemplo típico de hibridismo cultural D. Marilda diz-se “católica graças a Deus”, além
de pertencer ao grupo do Apostolado do Sagrado Coração de Jesus em cujas práticas tem
participação ativa, como é o caso, por exemplo, das novenas. Entretanto, seus “guias de
proteção” são seu José Tupinambá, o Rei Sebastião, os dois últimos pertencentes ao repertório
da Umbanda e do Tambor de Mina.
Com base nos pressupostos de uma educação multicultural o PPP advoga que “o currículo
deve ser uma construção relacionada com o contexto social, histórico e cultural do
conhecimento que se quer e se deve ensinar e aprender” (PPP, 2012, p. 17). No sentido de
verificar como esta multiculturalidade se manifesta no Ensino Religioso escolar, foi
entrevistada duas professoras desta disciplina. Como evidenciado, Colares tem uma vida
religiosa plural, com destaque para o catolicismo, as religiões evangélicas e a prática da
pajelança cabocla. Nesse sentido, perguntamos a uma das professoras de Ensino Religioso
como suas aulas traduzem essa diversidade:
838
O que eu gosto muito nas minhas aulas é a questão do Círio, chama mais atenção deles.
Agora existe um problema, eu não posso ressaltar tanto uma religiosidade, embora seja
grande aqui porque tem muito protestante. Ai o aluno vai dizer que você ta ressaltando
porque você é de tal religião. Eu sou católica, eu falo coisas da igreja Católica, mas não
chamando atenção. Eu falo das outras igrejas também para que eles tenham mais
conhecimento e saibam diferenciar (Profª. Marize).
Observamos que mesmo dizendo falar “das outras igrejas”, o que a professora gosta de falar
em suas aulas é sobre a “questão do Círio”, a principal festa católica local. Sobre a existência
de outras práticas religiosas a exemplo da pajelança, ela afirma:
Existe. Existe a questão dos terreiros, não sei se é a mesma coisa. Os terreiros que contém
essas práticas. Mas não conheço, nunca fui. Também não me interessa conhecer. Eu não
acredito, também não acho importante colocar [em sala de aula] (Profª. Marize).
A pajelança cabocla na ilha constitui-se como provável herança dos antigos tupinambá, seus
primeiros habitantes, conhecidos como exímios construtores de canoas, como portadores de
múltiplos conhecimentos sobre plantas e remédios da mata, além das práticas de pajelança
características de sua religiosidade. Contudo, a memória desses e de outros grupos, como os
quilombolas locais, não é ressaltada no programa de ensino da professora e nem em sua
prática docente:
Eu sei, deveria ser colocado {nos programas], mas na minha opinião eu coloco assim,
superficial. Por exemplo, tem um livro que eu uso, ele trata de todos os assuntos, dos
africanos, do católico, fala de umbanda, fala de tudo isso, mas eu coloco nas aulas
conceitos. Não que eu vá querer conhecer, entendeu? Eu tenho livros que tratam desse
assunto só que eu não dou muita importância. Não sei te explicar. Porque sou católica
também, então, não posso colocar porque não tenho muito conhecimento. Não vou tratar
com eles uma coisa que eu desconheço (Profª. Marize).
Fica claro em seu depoimento que o fato de ser católica e desconhecer práticas como a
pajelança limitam a inserção desses saberes pela professora em sala de aula que prioriza em
suas aulas a religião que mais conhece e professa: o catolicismo e sua principal manifestação:
o Círio. Ao referir-se ao calendário escolar e as principais festas da escola, a professora
lamenta que o ano de 2012 tenha se iniciado com a festa das Mães e tenha ficado de fora a
festa da Páscoa
Iniciou pela festa das mães porque geralmente na época da páscoa as aulas ainda não
iniciaram. Tem esse problema, elas iniciam bem em meados de abril, esse ano aconteceu
839
isso. Isso não é normal. Ano passado começou em março mesmo, aí teve toda a
programação da Páscoa, fizemos [a festa] das mães, agora festa junina, encerramento e toda
a escola se envolve (Profª. Marize).
Bom, eu não coloquei [no programa]. Eu acho polêmico discutir religião. Quando eu falo,
eu procuro falar só pelo alto, as religiões africanas, hinduísmo, islamismo… aí eu procuro
olhar os conceitos da religião, de cada uma delas. Não procuro me aprofundar muito, que a
gente sabe que tem a diversidade de questões. Então, para não haver conflito, até mesmo
dentro de sala de aula que a gente sabe que a diversidade é grande de religiões, então eu
trabalho assim (Profª. Angelina).
Considerações finais
A análise dos saberes religiosos na ilha de Colares a partir das narrativas de moradores locais
evidenciou um cotidiano plural e híbrido. Nele se destacam as práticas religiosas católicas,
evangélicas e da pajelança. Tais práticas, contudo, meclam-se entre si pois quando a cura não
vem do médico ou quando a “coisa está pegando” é ao pajé e às benzedeiras que a população
recorre. Entra então em ação a força das plantas, dos banhos e toda sorte de sortilégios que,
por sua vez, envolvem o poder dos Santos, configurando uma religiosidade híbrida e
multifacetada.
840
em seu cotidiano: o catolicismo. Desse modo, a diversidade religiosa citada no PPP com base
nos textos legais que apregoam uma educação multicultural não se efetiva na escola, no
âmbito do ensino religioso.
Da mesma forma, todo o imaginário sobre a ilha de Colares como lugar sagrado e mágico
permeado por seres encantados e extra-terrestres não constituem objeto de reflexão no Ensino
Religioso escolar. Tem-se, portanto, uma realidade sócio-cultural marcada pela diversidade
religiosa e pelo hibridismo cultural e uma escola fechada a essa mesma realidade,
contradizendo-se, portanto, em seus pressupostos filosóficos e educacionais.
O Estado do Pará, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância, é o Estado
brasileiro que tem os mais baixos índices de educação entre jovens.3 O PPP da escola Dr. José
Malcher ressalta, por sua vez, o desinteresse dos alunos pelo ensino, a frequencia irregular nas
aulas, a defasagem na aprendizagem, fatores que culminam em evasão da escola. O PPP,
contudo, não indagada sobre os motivos pelos quais os alunos não tem interesse na escola e
no ensino. Nesse sentido, o esforço atual da pesquisa é transformar-se em prática de extensão
de modo a suscitar entre os professores a reflexão crítica sobre a importância da educação
escolar como espaço de construção de subjetividades; de formação de identidades
sintonizadas tanto com os saberes globais quanto com a história, a memória e os saberes
locais, em particular, com a diversidade da vida religiosa local.
Referências
ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa; FARO, Mayra Cristina Silva. Saberes de Cura:
Um estudo sobre pajelança cabocla e mulheres pajés na Amazônia. Revista Brasileira de
História das Religiões, ANPUH, ano V, nº 13, Maringá, p. 57-72, maio 2012. Disponível em
<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf12/03.pdf>. Acesso em 15 jun. 2013.
FARES, Josebel Akel. Cartografia poética. In: OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno. Cartografias
Ribeirinhas: Saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos
amazônidas. Belém: EDUEPA, 2003, p. 83-96.
3
Cai Educação entre jovens. Jornal Amazônia, Belém, 1º de dezembro de 2011, p.5
841
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.
SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
842
843
O Sagrado como objeto de estudo no ensino religioso: a
experiência do Paraná
José Antonio Lages1
Introdução
Como afirma Domênico Costella (2004), a religião é uma realidade humana e institucional,
aberta ao universo da cultura. Para ele, a experiência religiosa faz parte do acontecimento
humano, com os fatos e os sinais que a expressam. Ela pertence ao universo da cultura e,
assim, possui uma relevância cultural, tem grande importância para o conhecimento.
A partir da realidade que temos hoje, a alternativa cidadã de toda a controvérsia sobre o
Ensino Religioso na escola pública não é simplesmente eliminá-lo do currículo, mas saber
exatamente de que Ensino Religioso se trata, já que ele tem uma previsão constitucional e já
faz parte da história e da tradição escolar no Brasil. Mas, no mundo em que vivemos, só terá
sentido sua inclusão no projeto político-pedagógico da escola pública e no seu currículo se for
adequado ao ideal republicano do Estado Laico e com respeito á pluralidade e diversidade
cultural e religiosa da sociedade brasileira.
1
Mestre em História pela UNESP e doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Membro do GP Memória
religiosa e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias, coordenado pelo Prof. Dr. Lauri
Emilio Wirth. Contato: professorlages@gmail.com.
844
Então, uma nova abordagem se faz necessária, superando toda e qualquer forma de apologia
ou imposição de preceitos e doutrinas, pois, na medida em que uma doutrinação religiosa ou
moral impõe um modo adequado de agir e pensar, de forma heterônoma e excludente, ela
impede o exercício da autonomia de escolha, de contestação e do contraditório e até mesmo
de criação de novos valores.
Nesse sentido, toda e qualquer religião pode ser objeto de estudo no currículo escolar. O
projeto de Ensino Religioso adotado no estado do Paraná parte de uma premissa comum a
todas as religiões, ou seja, a concepção do Sagrado, do transcendente/imanente como parte do
universo cultural humano fazendo parte do modelo de organização de diferentes sociedades.
Entendemos que a disciplina de Ensino Religioso pode propiciar a compreensão, a
comparação e a análise das diferentes manifestações deste Sagrado, com vistas à interpretação
dos seus múltiplos significados e desdobramentos, inclusive suas relações com os sistemas de
poder que prevalecem nas diversas sociedades.
Não há como falar do Ensino Religioso na escola pública sem falar no papel da(s)
religião(ões) no mundo contemporâneo. Não há como falar de Ensino Religioso na escola
pública sem falar que papel a(s) religião(ões) poderá(ão) exercer na construção de uma
sociedade mais solidária, inclusiva e aberta ao outro. Trata-se de uma realidade presente e
palpável, em franco crescimento na América Latina, África e Ásia ou em importantes
deslocamentos, como na Europa e América do Norte. Não é possível desconhecê-la.
845
Para podermos analisar o fenômeno religioso, concordamos que seja prioritário tocar na
essência da experiência religiosa, ou seja, o Sagrado. Neste sentido, o estabelecimento do
Sagrado enquanto categoria de análise passaria a ser uma premissa de base, uma categoria de
avaliação e classificação que nos permitiria reconhecer a objetividade do fenômeno religioso.
Assim, o Sagrado é um conjunto de formas do sujeito, do homo religiosus, e não do objeto. O
fenômeno religioso deve como adverte Eliade:
[...] ser apreendido dentro da sua própria realidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa.
Querer delimitar este fenômeno pela antropologia, pela psicologia, pela sociologia e pela
ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente
aquilo que nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter Sagrado. (ELIADE,
1992, p. 17).
[...] aquilo que para as igrejas é objeto de fé, para a escola é objeto de estudo. Isto supõe a
distinção entre fé/crença e religião, entre o ato subjetivo de crer e o fato objetivo que o
expressa. Essa condição implica a superação da identificação entre religião e igreja,
salientando sua função social e o seu potencial de humanização das culturas. (COSTELLA,
2004, p. 105-106).
846
matriz judaico-cristã se encaixam perfeitamente na concepção do religare a partir da
necessidade de um retorno do ser humano ao seu criador/libertador, após a queda/pecado
(desobediência ou ruptura da aliança). Já nas religiões de matriz africana e indígena, a
imanência da divindade rompe totalmente com a ideia de uma divindade deslocada do ser
humano e da natureza. Já as religiões orientais, como o budismo, se deslocam da própria
concepção da divindade e do Sagrado, se constituindo uma vertente mais próxima de uma
“filosofia de vida”, se assim podemos dizer.
Os modelos de Ensino Religioso adotados pelos diversos sistemas de ensino ainda refletem
também uma duplicidade etimológica. Alguns buscam um aprendizado baseado na
confessionalidade ou interconfessionalidade, como permite a própria LDBEN (Lei 9394/96),
e aí não se têm como fugir das confessionalidades cristãs (religare), restringindo-se o âmbito
de uma verdadeira diversidade religiosa. Outros se baseiam num aprendizado focado em
valores, princípios e deveres ético-sociais (religens) que, por sua vez, muito provavelmente
também não deixam de estar imunes a alguma referência confessional.
Tomando uma abordagem sociológica da cultura, sem nos render a uma visão reducionista,
como já foi denunciado por Eliade (1992), para retornarmos depois novamente ao Sagrado,
podemos iniciar por Pierre Bourdieu (2009). Seguindo Durkheim que vê a religião como um
conjunto de práticas e representações revestidas de caráter sagrado, Bourdieu a compreende
como uma verdadeira linguagem, ou seja, um sistema simbólico de comunicação e de
pensamento, ordenando logicamente o mundo natural e social em cada sociedade dentro de
uma determinada ordem cósmica. Bourdieu (2009) enfatiza aqui a produção de sentido da
religião, na mesma linha de Weber.
A religião é, pois, para ele, uma totalidade estruturada, pois seus elementos internos se
relacionam entre si e formam uma totalidade coerente e capaz de construir a experiência
humana vivida baseada em alicerces revestidos de caráter sagrado (não se pode colocar em
discussão categorias de Sagrado e profano), assegurando o consenso lógico e moral de todas
as sociedades.
847
Segundo ele, os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação,
só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. A Religião, como estrutura
estruturante, exerce um poder sobre as pessoas porque comporta símbolos estruturados e,
segundo Bourdieu, “os símbolos são instrumentos por excelência da integração social”
(BOURDIEU apud OLIVEIRA, 2010, p. 180). Portanto, a religião, enquanto conjunto de
símbolos estruturados tem poder de integração social, ou seja, tem a função de integrar,
incluir o indivíduo num determinado grupo social ou na sociedade de uma maneira geral.
Na mesma linha de Bourdieu, Clifford Geertz (1989), na sua obra A Interpretação das
Culturas, afirma que o fenômeno religioso revela a síntese do ethos de uma comunidade,
através dos símbolos sagrados. Toda visão de mundo é plasmada pela religião na sua origem e
no seu desenvolvimento. Sabemos que a religião ajusta as atitudes humanas em uma ordem
cósmica e projeta esta mesma ordem na sua experiência.
Geertz inova ao sugerir uma definição de religião que seja reorientadora e estimuladora de
uma nova abordagem sobre o tema:
[...] (a religião é) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes
e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de
uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que
as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 1989, p. 104-
105).
Assim, para Geertz (1989) a religião aparece como um sistema simbólico que será
responsável por um determinado tipo de comportamento social, admitindo o quadro de
referência que ela representa e a ordem existencial que ela configura. Exatamente, então, por
auxiliar na construção da identidade humana, a pluralidade das organizações religiosas
constitui um campo de interesse dos estudiosos das religiões e do Sagrado, elemento este
universal que perpassa as diversas e distintas tradições religiosas, em contraposição ao
profano, nas palavras de Eliade:
848
[...] a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”,
possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo”, o
viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e, portanto, a
relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o ponto
fixo já não goza de um estatuto ontológico único, aparece e desaparece segundo as
necessidades diárias. (ELIADE, 1992, p. 27).
Mas sabemos que não é atributo exclusivo do Sagrado a busca de um ponto fixo para a
ordenação da fundação do mundo real. O próprio Eliade (1992) o admite. Este ponto fixo pode
ser reivindicado também numa dimensão profana – a política. Esta outra dimensão tem de
ficar bastante clara nos estudos de religião, e também nos currículos escolares, incluindo
assim as vertentes agnósticas e arreligiosas.
O tratamento da religião como objeto de estudo e não de fé, quase sempre foi matéria
controversa e contribuiu para a desconstrução do paradigma da religião enquanto sistema de
poder. Espinosa, Feuerbach e Marx, por exemplo, por caminhos diferentes, realizaram a
desmistificação do caráter alienante da religião e da sua vinculação a esquemas de dominação
contrários à emancipação humana. Este foi e ainda permanece um longo debate. Mas aqui é
bom alertar que a crítica marxiana da religião escapa ao simplismo de tantas interpretações
marxistas correntes; é fácil descobrir que não tem sido Marx, mas a interpretação engelsiana
(mais metafísica e mais dogmática) a que tem mais influído neste campo na posterior crítica à
religião.
849
Citemos Rosa de Luxemburgo e principalmente Antonio Gramsci. Este vê a religião como
ideologia das classes subalternas situada historicamente, ou seja, ora assumindo até um papel
revolucionário de transformação social, ora se restringindo a um papel conservador das
estruturas sociais. Outros, a partir da Teologia da Libertação, como Franz Hinkelammert,
Henrique Dussel e Michael Lowy seguiram esta perspectiva, dando uma enorme contribuição
a este debate. O conhecimento e o estudo da(s) religião(ões) não podem prescindir de todo
este feixe de leituras e possibilidades do fenômeno religioso na história humana.
Max Weber (1981), por outro lado, analisou as influências das concepções religiosas no
comportamento e na formação das sociedades. Este autor busca demonstrar a relação de
mútua influência existente entre o sistema de crença e o sistema econômico, com
desdobramentos no âmbito da estratificação social. Weber trabalha com a possibilidade de
que a conduta religiosa influencia na transformação econômica das diversas sociedades, pois a
atitude dos seres humanos nas diversas formas de organização social pode ser entendida por
meio das concepções que a mulher e o homem possuem da sua própria existência.
Já Michel Foucault (1979) fornece um interessante aparato teórico perfeitamente cabível para
o estudo das religiões. Desde sua noção de discurso e de uma implementação das relações de
saber/poder pelos regimes de verdade, ao qual as religiões geralmente não escapam, até nas
reflexões sobre as possibilidades de resistências quando estas se enquadram como contra-
discursos à corrente hegemônica. Além disso, pensando na constituição dos sujeitos, é
possível que a temática religiosa possa estar presente tanto no processo de sujeição, como o
próprio Foucault (1988) nos demonstra em A vontade de saber, como também no processo de
subjetivação. Apesar da preocupação central de Foucault não ser a religião, é possível
executar uma reflexão inspirada neste autor para se compreender aspectos do fenômeno
religioso e suas práticas, seja nas relações de saber/poder ou nas questões de constituição dos
sujeitos religiosos.
850
saber: Paisagem Religiosa, Universo Simbólico Religioso e Texto Sagrado. Segundo Gil &
Alves (2005: 51-83) esses conteúdos estruturantes referem-se, respectivamente:
b) à apreensão conceitual através da razão, pela qual se concebe o Sagrado pelos seus
predicados e reconhece-se a sua lógica simbólica. É entendido como sistema simbólico e
projeção cultural: o universo simbólico religioso. Um universo simbólico pode ser visto como
o conjunto de linguagem que expressa sentidos, comunica e exerce papel relevante para o
imaginário e para a constituição das diferentes religiões.
Para os conteúdos estruturantes, referidos acima, vê-se uma gama enorme de possibilidades
de se tratar o poder religioso, nas suas formas simbólicas e mesmo em outras formas, numa
dimensão de transversalidade entre eles a partir do Sagrado. Para isso, acreditamos que tanto
Bourdieu quanto Foucault sejam referenciais teóricos privilegiados, mas também outros na
linha de interpretação marxista não-ortodoxa, a exemplo de Gramsci, ou outros ainda bastante
inovadores, na linha dos estudos subalternos ou pós-coloniais, como Jorg Rieger, ou ainda na
área do diálogo inter-religioso, como sugere Danilo R. Streck.
Não é possível desconhecer o poder que a religião continua tendo na sociedade no início do
século XXI, apesar das previsões desde a morte de Deus colocada por Nietzsche e do
desencantamento do mundo de Max Weber há um século. Especialmente no contexto da
América Latina, verifica-se que a realidade religiosa passa muito longe daquelas previsões e
851
até um reencantamento seria bastante discutível, como disseram outros.3 O fato é que a
religião nunca deixou o seu lugar, por mais que tenham avançado os processos de
secularização e laicização da sociedade latino-americana.
Este poder religioso não só se manifesta no nível individual das pessoas, no seu
comportamento, nas suas escolhas, na inserção dos sujeitos na realidade concreta, mas
também no nível coletivo perpassando as mais diversas esferas da sociedade. Como dizia
Foucault (1979), poder invisível, indizível, molecular, disciplinar, poder como prática social,
como relações de poder construídas historicamente para tornar as mulheres e os homens úteis
e dóceis. A religião se faz presente como nunca.
Mas como levar estes referenciais teóricos para dentro da sala de aula? Em primeiro lugar, se
os professores de Ensino Religioso já tiverem consciência deles e souberem fazer uma leitura
da realidade religiosa que os cerca na perspectiva destes autores já seria um grande avanço.
Em segundo lugar, a leitura pedagógica destes referenciais seria possível, dependendo do grau
de maturidade dos alunos e da abertura da comunidade escolar a essas novas leituras do
religioso (gestores, corpo docente, mães e pais). No sistema estadual de ensino do Paraná,
onde o Ensino Religioso só é oferecido aos alunos de 6º e 7º anos do Ensino Fundamental,
torna-se bem mais difícil trabalhar os conteúdos previstos com estas novas propostas de
referenciais.
3
Antônio Flávio Pierucci é um deles. Ele faz severas críticas a certos sociólogos da religião que vêm celebrando
a fatualidade empírica da revanche do sagrado e da volta de Deus aplaudindo o fim do processo de secularização.
Como se dados empíricos pudessem provar que o desencantamento do mundo não se deu. Ele critica os que
continuam a falar do declínio persistente da religião nos dias de hoje sem levar em conta a contradição entre a
secularização da sociedade e a continuidade das crenças.
4
Já é oferecida em algumas instituições de ensino superior a disciplina Geografia da Religião dentro do
Departamento de Geografia, como na Universidade Federal do Paraná, ministrada pelo Prof. Dr. Sylvio Fausto
Gil Filho, a quem agradecemos por importantes informações e esclarecimentos que utilizamos neste trabalho.
852
De qualquer forma, a abordagem daqueles conteúdos seria enormemente enriquecida com a
utilização, pelos professores de Ensino Religioso e de outras disciplinas, de instrumentais
teóricos vindos de Gramsci, Foucault, Bourdieu, Jorg Rieger e Danilo Streck. Vejamos no
caso de Bourdieu.
O campo religioso é um modelo teórico sugerido por Pierre Bourdieu (2009) muito
interessante para analisarmos as relações de poder a partir do Sagrado. Este modelo se
desdobra a partir da noção de trabalho religioso que ele entende como a produção e
objetivação de práticas e discursos revestidos do Sagrado que atendam à demanda de sentido
por parte dos demais grupos de leigos no campo religioso. Assim, o campo religioso é o
“conjunto de relações internas entre os agentes religiosos ou especialistas religiosos no
atendimento às demandas dos leigos por bens religiosos.” (BOURDIEU, 2009, p. 54).
Mas essas relações são também relações de força á medida que os especialistas religiosos
(sacerdotes, profetas, magos ou feiticeiros) travam entre si uma luta pelo monopólio da
produção desses bens religiosos e, ao mesmo tempo, tentam monopolizar essa produção em
relação aos consumidores (leigos) desses bens (relações de transação), destituídos e
impedidos de qualquer produção própria (BOURDIEU, 2009). Os cismas e heresias religiosas
da cristandade medieval, bem como a própria Reforma Protestante no século XVI, podem ser
estudadas, nesta perspectiva, a partir da disputa teológica, entre os especialistas religiosos
cristãos daquela época, de um bem religioso por excelência, qual seja, a salvação da alma.
Numa sociedade de classes com produção de excedentes e com a divisão social do trabalho,
os agentes religiosos são sustentados pelos consumidores (teoria do trabalho religioso). Tanto
a distância cada vez maior entre produtores e consumidores, quanto a elaboração pelos
primeiros de doutrinas e crenças que desqualificam seus concorrentes no campo religioso e
anatematizam (como transgressão) qualquer coisa fora da ordem cósmica admitida, dão
maior autonomia ao campo religioso (BOURDIEU, 2009).
853
estabelecem. A elaboração de crenças que desqualificam qualquer doutrina diferente da
oficial como transgressão nos leva à compreensão das noções de dogma, pecado, heresia,
salvação, condenação, castigo divino, etc.
Assim,
a eficácia simbólica deste esquema está justamente na capacidade dos agentes religiosos
inculcarem aquelas doutrinas e crenças na consciência dos crentes de modo a se
reproduzirem como comportamentos naturais, como habitus. Mas esta não é apenas uma
eficácia simbólica, mas também uma eficácia política, na medida em que este campo
religioso é responsável em perenizar relações de classe, hierarquias e dominação política.
(BOURDIEU, 2009, p. 98).
Assim, o habitus religioso explica, até certo ponto, a conformidade, por exemplo, dos servos
da Europa feudal à sociedade das três ordens (verdadeiro dogma religioso). É possível
atualizar este habitus medieval para os nossos dias na análise dos comportamentos dos leigos
nas suas comunidades. Recorrendo agora a Michel de Certeau (1998), é possível estudar as
estratégias das instituições religiosas para manter este habitus e as táticas dos leigos
(astúcias) para o burlarem sem romper com a pertença.
Bourdieu (2009) nos traz ainda a noção de transfiguração, a partir da consagração das
relações sociais numa dada ordem cósmica. O monopólio do trabalho religioso pelos
especialistas no campo religioso os capacita a justificar, por exemplo, a posição de uma classe
dominante e seu bem-estar material e, ao mesmo tempo, explicar a opressão de uma classe
dominada e sua compensação futura. A consagração das relações sociais não explica apenas a
sociedade cristã medieval, mas ainda hoje pode explicar também a sociedade de castas do
Bramanismo.
Acredito que este conjunto conceitual de Bourdieu (2009) é válido na sociologia da religião
como tentativa de superação do dilema entre uma visão idealista e outra materialista sobre a
religião, bem como uma saída interessante para uma nova visão da autonomia da religião a
partir da noção de campo religioso. Ele elabora uma síntese interessante de Weber e
Durkheim e os ultrapassa de certa forma com as noções de trabalho e campo religiosos.
Mas, por outro lado, percebemos que Bourdieu continua muito dependente de uma sociologia
cujos conceitos ainda estão muito ligados a um cristianismo esgotado da Europa, se podemos
dizer assim, e desconhece o dinâmico cristianismo latino-americano. Ele dá uma contribuição
854
ímpar à compreensão da religião no seu viés sociológico, mas ainda muito ligada à matriz
religiosa judaico-cristã (ao utilizar, por exemplo, categorias como sacerdotes, profetas,
carisma, etc.). Por conta disso, vemos que sua contribuição para o estudo dos fenômenos
religiosos contemporâneos é limitada5, até por que passa ao largo das novas religiosidades da
América Latina, África e Ásia e dos novos transcursos religiosos como os descritos por
Hervieu-Léger (2008) principalmente para a Europa.
Considerações finais
Muitos dos acontecimentos que marcam a vida em sociedade são atribuídos às manifestações
do Sagrado. Tais manifestações intervêm no andamento natural das coisas e são aceitas na
5
Mesmo para o estudo das religiões da(s) divindade(s) imanente(s) ao homem e à natureza, o instrumental
teórico de Bourdieu apresenta sérios problemas de aplicação. Para as religiões de matriz africana e indígena, os
conceitos de Clifford Geertz e Pierre Clastres são mais pertinentes.
855
medida em que trazem explicações que superam a realidade material ou que servem para
responder a assuntos não explicados ou aceitos com facilidade, como por exemplo, a morte. O
entendimento do Sagrado ajuda a compreender as explicações sociais que ignoram as leis da
natureza e atribuem a um transcendente ou imanente a intervenção no andamento natural das
coisas. Sagrado é, pois, o olhar que se tem sobre algo ou a forma como se vê determinado
fenômeno. Aquilo que para alguns é natural, normal, para outros é encantamento, sublime,
extraordinário e merecedor de um tratamento diferenciado, portanto, separado.
Acreditamos que, a partir disso, além do que prevêem as Diretrizes Curriculares de Ensino
Religioso para a Educação Básica no Paraná, as manifestações políticas do Sagrado na
sociedade também deverão necessariamente ser abordadas. Não se pode fugir da realidade da
religião enquanto sistema de poder sobre as mulheres e os homens, sobre as cidadãs e os
cidadãos.
De qualquer forma, é imprescindível que nas aulas de um Ensino do Religioso, como queria
Debray (2002), os desdobramentos do Sagrado sejam tratados de modo a serem percebidos
pelos educandos não apenas como simples conteúdos que fazem parte de um programa de
ensino, mas, sobretudo, relações de poder dentro de um campo religioso, na concepção de
Bourdieu. Somente assim ficaria garantido um papel fundamental desta disciplina para o
reconhecimento da diversidade e da aceitação do outro, frente ao crescimento dos mais
diversos fundamentalismos, religiosos ou não.
Assim, faz-se necessário definir os conteúdos da disciplina de Ensino Religioso, de modo que
variados aspectos das mais diversas tradições religiosas possam ser estudados como saberes
escolares e o aluno possa compreender a maneira pela qual se dá a manifestação religiosa com
todas as suas implicações para a sociedade, inclusive nas suas relações de poder.
856
Referências
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
DEBRAY, Régis. L'enseignement du fait religieux dans l'école laïque. Paris: Odile Jacob,
2002.
DINIZ, Debora et al. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: UNESCO, LetrasLivres
e EdUnb, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade (vol. I). A vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
GIL FILHO, S. F. & ALVES, L. A. S. O Sagrado como foco do Fenômeno Religioso. In:
JUNQUEIRA, S. R. A.; OLIVEIRA, L. B. O. (org.). Ensino Religioso. Memórias e
perspectivas. 1ª ed. Curitiba: Champagnat, 2005, v. 01, p. 51-83.
857
RIEGER, Joerg. Libertando o discurso sobre Deus. Estudos de Religião (UMESP), Ano XXII,
jan/jul 2008, n. 34, pp. 84-104.
STRECK, Danilo Romeu. Uma Educação Ecumênica. Oito proposições sobre um tema
controvertido. Estudos de Religião (UMESP), Ano XII, julho/1998, n. 14, pp. 35-48.
WEBER, Max A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira; Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, s/d.
858
859
Uma história de combate ao racismo no Marajó
Introdução
Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a
seguinte redação:
6
Professora responsável da EMEIF Tito Leão de Paula e professora na EMEF Prof. Oscarina Santos em
Salvaterra e Bahá’í, ilha de Marajó. Contato: carminhaprofessoa@yahoo.com.
7
Mestrando em Educação (PPGED/UFPA) na LP Educação: Currículo, Epistemologia e História. Bolsista da
CAPES. Líder do GP Educação e Religião na Amazônia (GPERA). Bolsista da CAPES. Membro do GP
Filosofia, Ética e Educação (GPFEE/UFPA) e Hermenêutica, Antropologia e Educação (GPHAE/UFPA).
Professor na rede estadual e municipal (Belém) de ensino. Contato: naumamos@yahoo.com.br.
860
Nesses termos, não temos como negar o compromisso assumido pelo Estado brasileiro, no
sentido de assegurar conhecimentos inerentes e fundamentais da sua própria população,
outrora, para não dizer quase sempre deixados em segundo plano, mesmo que isso tenha sido
objeto de leis, demonstra o desvalor diante do reconhecimento da participação de outros
povos, no processo de formação e construção deste país com o caráter da obrigatoriedade.
Sabemos que várias questões estão envolvidas nesse processo e que não temos como aqui
encerrá-las, apenas questionamos que esse “despertar” demorou em acontecer no bojo do
Estado laico.
Nesse sentido, partimos dos pressupostos legais para abordar a temática na escola pública
laica, contando com o protagonismo dos alunos, que de posse desses conhecimentos não
hesitaram em proclamar a laicidade do Estado, mesmo quando este se mostra indiferente e, às
vezes, agressor, não permitindo o valor e reconhecimento de outros povos que hoje compõem
esta população.
Isso demonstra que o Estado nada mais é do que pessoas que sempre foram mergulhadas nas
águas da negação, em detrimento de outras águas que aqui já jorravam e que se entrecruzaram
com a chegada dos africanos e outros povos, mesmo que seja impossível não se misturar, uma
vez que a composição química é a mesma. Trata-se de seres humanos com outros seres
humanos que negam outros com sua história e cultura, mesmo que isso não caiba mais em
nosso tempo, achamos que damos conta de esclarecer isso em casa, com o pretexto de tratar-
se de questões de foro íntimo, acabamos por negar aspectos fundamentais de todo e qualquer
povo com sua cultura, que tem nas suas crenças mais do que uma referência, pois, para
algumas, elas são indissociáveis da vida pública, logo, porque não assegurá-las pelo
conhecimento dessa diversidade.
Dessa maneira, percorremos vários tempos e espaços dessa história, iniciada em 2008, numa
cidade da ilha de Marajó, marcada por várias nações indígenas e populações remanescentes
dos antigos quilombos, outrora, negadas no contexto escolar, mas que passaram, em diversos
eventos pedagógicos, a serem conhecidos, marcando para sempre uma história de combate ao
racismo no Marajó.
861
A laicidade do Estado e o estudo da religião na escola
Nesse ponto, para que esse direito não seja violado, é preciso esclarecer os fundamentos que
orientam cada povo participante na formação e construção da sociedade e da cultura
brasileira, sabendo que, um dos aspectos centrais dessa produção humana que vem orientando
em todos os tempos o fazer e ser humanos, com padrões de civilidade, valores e cosmovisões,
quase sempre toma como referência a religião, uma amálgama de conhecimentos
indispensáveis para a compreensão de bilhões de seres humanos por todo mundo.
Esses esforços na Educação Básica vêm sendo empreendido pelo Ensino Religioso, que centra
sua abordagem no conhecimento da diversidade cultural religiosa do Brasil, sem proselitismo,
para desenvolver o estudo da religião a partir da fenomenologia religiosa.
Segundo Oliveira et al. (2007, p. 102) “O objeto do Ensino Religioso é o fenômeno religioso,
assumindo a conceituação de religião dada pelo latim religio, na forma de sua derivação:
relegere, que em português significa “reler””, ou seja, na escola,
862
Essa forma de compreender os fenômenos religiosos, já que são múltiplos e variados, permite
perceber que os atos religiosos possuem uma estrutura, não só sentido, mas nas ações, como
destaca o autor.
Essas formas de entender o sentido dos fenômenos e o que eles significam, segundo Croatto,
são melhores compreendidas quando situados no contexto histórico, pois o estudioso pode
localizar esses fenômenos em seu contexto vivencial.
Ressaltar a vivência do outro implica numa redução do próprio juízo de valor do estudioso;
é o que Husserl chama de “redução eidética” (=suspensão do juízo próprio em favor da
intenção do ser humano religioso) ou uma epoché. É uma atitude fundamental quando se
quer partir dos fatos religiosos em sua função existencial e não da interpretação de quem o
estuda.
É evidente, contudo, que é impossível não interpretar; mas é preciso ter consciência de que
o primordial é a experiência de quem se expressa religiosamente e não a leitura do
estudioso.
Sobre esses aspectos, Croatto, a partir dos estudos de Husserl reforça o caráter central da
fenomenologia, em favor da intenção do homem religioso “homo religiosus”, que só pode ser
compreendida se o fenomenólogo entrar em sintonia com a intenção originária, capturando o
núcleo dessa experiência não para ele, mas para o homo religiosus.
863
Esses aportes são provenientes das Ciências da Religião, área acadêmica que vem se
consolidando no país desde a década de 70 do século passado. Nesse sentido,
A escola Oscarina Santos há alguns anos apresenta temas importantes nos desfiles de 7 de
setembro. O tema sugerido para 2008 foi a diversidade cultural religiosa, mas não foi
aprovado pela maioria, ficando restrito às turmas do 7º ano, que representaram o Ensino
8
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos (álbum pessoal).
864
Religioso, demonstrando o máximo empenho em conscientizar a comunidade para o respeito,
diálogo e tolerância religiosa no município de Salvaterra, favorecendo o conhecimento das
tradições religiosas e possibilitando o contato e o sentimento de respeito ao novo e
desconhecido. Nesses termos, foi enviada uma carta convite para uma reunião com as
lideranças religiosas, comparecendo o sacerdote católico, um pastor, dois babalorixás e uma
ialorixá. Ao virmos, parecíamos sonhar, pois sabíamos que a tolerância religiosa deveria
iniciar por eles, para assim chegar à comunidade. Na despedida da reunião houve apertos de
mãos e abraços.
Seria um aluno negro, quebrando assim um estereótipo. Trajado por uma túnica de várias
cores, representativas das diversas religiões, teria uma grande simplicidade e seriedade, capaz
de transmitir fé, força e segurança, valores comuns a todas as tradições religiosas.
Durante a marcha, os segmentos religiosos personificados por alunos vestidos a caráter foram
ligados por faixas coloridas à personagem sagrado, representando os vários modos de se
relacionar com o transcendente e de conhecer e explicar a verdade. Dessa forma, o respeito, o
diálogo e a tolerância religiosa aconteceram, de fato, no decorrer da marcha.
Fotografias 3 e 4 – Desfile do dia 7 de setembro: diálogo, respeito e tolerância pelos líderes religiosos (2008).9
9
Idem.
865
O fato de não ter sido aceita a diversidade cultural religiosa como tema geral da escola foi
motivo de renovação de nossas forças. Sabíamos que para muitas pessoas a iniciativa de
apresentar o sagrado e a diversidade não ficaria clara, pois eles ainda não admitiam a
harmonia entre os segmentos religiosos da cidade. Mas isso não nos impediu de reservar o
tema para os alunos que representariam a disciplina Ensino Religioso.
Em frente ao palco, ante as autoridades municipais, foi lido objetivo de nossa iniciativa. E o
ápice da apresentação foi o momento em que ao som da música Por amor de ti oh Brasil10, os
alunos soltaram as ligaduras que os uniam à personagem sagrado a abraçaram os líderes
religiosos, entregando-lhes uma fita onde se liam os valores comuns às religiões: amor,
solidariedade, fraternidade, fé, verdade, humildade, bondade.
O momento foi muito significativo e emocionante para os alunos que testemunharam uma
educação pautada no respeito à diversidade cultural religiosa. Após o ritual da troca de fitas,
os líderes religiosos deram-se as mãos e ergueram s braços, de frente para as autoridades
municipais e a comunidade que assistia em um ato público e solene de respeito, diálogo e
convivência religiosa. O gesto causou lágrimas aplausos da maioria.
10
CD do mesmo nome, Ministério Diante do Trono.
866
Da resistência e consciência
Fotografias 5 e 6 – Semana da consciência negra: escola Oscarina Santos e comunidade quilombola de Mangueira (2008).11
A escravidão do negro na criação de gado da ilha de Marajó começou no século 18 e com ela,
os quilombos. Hoje, o município de Salvaterra tem o maior número de comunidades
quilombolas de toda ilha: Bacabal, Mangueira, Pau Furado, Santa Luzia, São Benedito,
Rosário, Barro Alto, Providência, Salvá, Siricari, Deus Ajude, Caldeirão, Vila União ou
Campina, Paixão e Boa Vista, já conquistaram o reconhecimento, ainda que continuem a
enfrentar lutas contra a discriminação racial e pela posse da terra e o direito de ter sua história
e cultura reconhecida nas escolas.
11
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).
867
escola. Houve solenidade de abertura, na câmara municipal da cidade, com exposição
fotográfica dos quilombos e apresentação de capoeira e outras danças afro-brasileiras pelos
alunos da escola quilombola de Bacabal. O ponto culminante do dia foi a “Roda dos Orixás”,
formada por alunos caracterizados pelas vestes sagradas.
A abolição da educação
Após as atividades, os alunos estavam mudados, mas também perplexos pelas críticas e
pressões que sofreram e pela falta de envolvimento e apoio de pessoas significativas na cidade
e na educação, inclusive professores. Sentiram na pele e que o negro enfrenta ainda hoje. O
contato real com conteúdos reafirmou o que aprenderam durante o projeto. Embora sobrasse a
12
Idem.
868
alegria de terem encarado tudo isso juntos, viram que de todos os temas estudados e religião
afro-indígena continua sendo a mais perseguida.
Em poucos dias, os alunos organizam-se e decidem pela greve, onde mais de 300 alunos
protestaram pelas ruas da cidade, caminhando juntos ao fórum, a câmara municipal e a
secretaria de educação municipal, mesmo sem alguma solução política, eles passaram a
reescrever a história educacional em seu município.
Percebemos com isso que o mito da democracia racial ainda impede a abolição da educação.
Salvaterra é apenas um exemplo de que o racismo continua ferindo a autoestima de milhões
de alunos brasileiros, como relata uma aluna ao descrever o que mais foi significativo para
ela:
Aprender sobre o modo de viver a religião, porque nós, que moramos no centro, não temos
ideia da vida dele (Zumbi) e depois desse trabalho nós tivemos oportunidades de ver e
aprender. Até então eu não sabia quem era Zumbi dos Palmares.
A cultura, o modo de conviver, sem diferenças. Mas o mais difícil foi passar pelo
preconceito dos outros e ver antes desse trabalho nos éramos assim, preconceituosos. Para
termos consciência disso foi preciso perceber que nem tudo é um mar de rosas.
Os quilombolas sofrem com a invasão das cercas. Algumas pessoas dão apoio, mas outras
nos desestimulam. Na hora da fama, dizem que o trabalho foi maravilhoso, mas quando é
para jogar a primeira pedra, são os primeiros. Fico revoltada porque sabem que nós não
somos mais aqueles alunos calados (SANTOS, 2010, p. 63).
Nesse sentido, a escola e a educação brasileira não podem ficar indiferentes à leitura do
fenômeno religioso na sociedade, pois “A escola apresenta a diversidade, nasce na
diversidade e continuará na diversidade. Durante muito tempo, porém, a educação na ótica
europeia omitiu a religião, os valores, a ética e a moral das diversas culturas do povo
brasileiro” (MACIEL; SANTOS, 2009, p. 33).
869
Dessa forma, as referidas experiências, ressaltam a importância e a necessidade da abordagem
da diversidade cultural religiosa brasileira, reconhecendo e valorizando as diversas matrizes
que a formam, assegurando, nesses termos, a formação integral do cidadão.
A história continua
Após os fatos ocorridos, com a demissão dos referidos professores, o professor Rodrigo se
fixou em Belém, enquanto a professa Maria do Carmo ampliou a oferta das aulas particulares
em Salvaterra desenvolvendo, dessa forma, a sua docência que tanto estima.
No ano seguinte (2009), o referido professor foi admitido na rede estadual de ensino junto a
Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA), sem hesitar na continuidade do
projeto, em parceria com o professor de História na Escola Estadual de Ensino Médio
(EEEM) Professor Ademar Nunes de Vasconcelos.
13
Intolerância religiosa preocupa. In: O liberal. Disponível em:
http://www.orm.com.br/projetos/oliberal/interna/default.asp?codigo=433984&modulo=247, acesso em
30/07/2013. Liberdade de credo é debatida durante audiência promovida pelo MP. In: Amazônia Jornal.
Disponível: http://www.orm.com.br/amazoniajornal/interna/default.asp?modulo=222&codigo=434040, acesso
em 30/07/2013. Audiência pública debate intolerância religiosa. In: Diário do Pará. Disponível em:
http://www.diariodopara.com.br/noticiafullv2.php?idnot=60586, acesso em 30/07/2013.
870
1ª Semana de combate ao racismo: dia nacional de denúncia contra o racismo 14
Dessa forma, foram desenvolvidos vários estudos introdutórios sobre a questão étnico-racial
junto aos alunos, destacando a trajetória e a contribuição dos povos escravizados nos diversos
setores da sociedade brasileira, assim como as sutilezas da exclusão, decorrentes do processo
político-econômico e sociocultural, esclarecendo alguns conceitos/categorias como
preconceito e discriminação racial, intolerância, racismo, estereótipo, dentre outros, tomando
a recente experiência sofrida por alunos e professores na rede municipal de Salvaterra.
14
Para mais informações sobre a 1ª semana de combate ao racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/vasconcelos-coloca-o-racismo-em-debate/, http://dariopedrosa.com/racismo-foi-tema-
de-evento-no-vasconcelos/, acesso em 30/07/2013.
15
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).
871
Nesse sentido, a programação contou com apoio da Coordenação de Promoção de Igualdade
Racial (COPIR), da SEDUC/PA, além da Livraria Paulinas, trazendo a mais nova edição da
Revista de Ensino Religioso Diálogo com a experiência do projeto da semana da consciência
negra.
Após o primeiro ano de atividades na rede estadual, no segundo foi proposto o seguinte tema
A escola como espaço multicultural, tendo em vista que este espaço resguarda essa
diversidade como algo que lhe é inerente.
A expectativa e a adesão pelos alunos era algo muito estimulador, pois eles mesmos
chegavam a propor diversas contribuições para a 2ª semana, sentindo-se participantes dessa
luta, proclamando na escola a multiculturalidade.
16
Para mais informações sobre a 2ª semana de combate ao racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/combate-ao-racismo-mobiliza-estudantes-do-vasconcelos/,
http://dariopedrosa.com/vasconcelianos-no-13-de-maio/, acesso em 05/08/2013.
17
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. (álbum pessoal).
872
exclusão de outros povos, com destaque para índios e africanos, o legado da marginalização e
preconceito ainda existente contra seus descendentes.
Nesses termos, de posse do conhecimento desse processo na escola vai-se construindo novas
mentalidades que reconhecem o multiculturalismo como um dos dados que a identificam na
sociedade brasileira, construída e formada por mãos de diversas etnias.
3ª Semana integrada de combate ao racismo: por uma educação das relações étnico-
raciais18
Em 2012, o projeto estendeu-se para o município vizinho de Soure, dividido apenas pelo rio
Paracauari e visava ampliar vários aspectos de uma educação das relações étnico-raciais, por
isso recebeu o tema Por uma educação das relações étnico-raciais.
Os esforços foram duplicados, pois o professor Vinícius teve que coordená-lo sozinho, haja
vista a saída do professor Rodrigo da escola, em função do seu distrato.
873
4ª Semana integrada de combate ao racismo: a luta pelos direitos humanos20
Este ano, o projeto centrou sua discursão nos direitos humanos, com o seguinte tema A luta
pelos direitos humanos, pressupondo a ênfase maior nos direitos humanos.
As atividades se mantiveram e sempre marcada por outras, onde a identificação com os laços
ancestrais eram retomados, assim como o reconhecimento da estética, do comportamento e de
outros traços no fazer e ser afro-marajoara.
As referidas atividades foram apresentadas durante três dias, com muita ousadia,
envolvimento e alegria por todos os envolvidos que sem se intimidarem em mostrar vários
aspectos da contribuição dos povos africanos na cultura brasileira, em cooperação com o fazer
e ser marajoara, integrando elementos da cultura local, como destaca as fotos abaixo.
20
Para mais informações sobre a III Semana Integrada de Combate ao Racismo. Disponível em:
http://dariopedrosa.com/2013/05/07/, http://dariopedrosa.com/10646/, acesso em 05/08/2013.
21
Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=111900109014406&set=a.111898672347883.1073741829.1000058
32523070&type=1&theater, acesso em 05/08/2013.
22
Para saber mais sobre a Associação. Disponível em: http://www.coletivocasapreta.com.br/, acesso em
05/05/2013.
874
espaço de luta e de igualdades em prol do civismo e da cidadania da população local,
independente de quaisquer diferenças, como previsto na legislação nacional e internacional.
Isso é uma prova de que a história é movida por aqueles que a ela se filiam e acreditam é
possível construir fatos positivos, a exemplo de uma história de combate ao racismo no
Marajó, a fim de que haja na sociedade brasileira o respeito mútuo e a convivência fraterna e
solidária, pautada nas liberdades individuais e coletivas de forma igualitária.
Considerações finais
Faltam-nos palavras diante dos avanços e das ações que estiveram como centro o
protagonismo dos alunos, principais mentores da construção e formação da educação para as
relações étnico-raciais, onde as diferenças passaram a ser (re)conhecidas e respeitadas, num
diálogo permanente para o exercício da tolerância.
O fato é, que sem eles não teríamos ido tão longe e permitido a continuação do projeto hoje,
sob a coordenação do professor Vinícius, que não mede esforços e disposição para gerir o
mesmo em dois municípios, com tamanha qualidade e dedicação.
Durante esses anos vimos, ouvimos e conhecemos muitos casos resolvidos, nas quais residiam
dificuldades emocionais e afetivas por conta dessa negação, sendo logo dissipadas na vida de
muitos alunos, não somente, sendo incontáveis as contribuições daqueles que sentiram e ainda
sentem o peso dessa responsabilidade que em tese seria oportunizar nas escolas experiências
dessa magnitude, um direito dos alunos e responsabilidade do Estado laico.
875
O Ensino Religioso pode muito bem contribuir nesse aspecto, desde que seja referenciado no
modelo das Ciências da Religião.
Referências
OLIVEIRA, Lilian Blanck de et al. Ensino religioso no ensino fundamental. São Paulo:
Cortez, 2007. (Coleção docência em formação. Série ensino fundamental)
PASSOS, João Décio. Ensino religioso: construção de uma proposta. São Paulo: Paulinas,
2007.
SANTOS, Rodrigo Oliveira dos. Da resistência a consciência. In: Diálogo. Revista de Ensino
Religioso. Ano XV – n. 58 – maio/julho, São Paulo, 2010, p. 60-63.
876
877
GT8 – Estados Unidos: religião e sociedade
Coordenador
Daniel Rocha
Doutorando em História pela UFMG. Bolsista CAPES.
Resumo
878
A Jeremiad fundamentalista: política, identidade nacional e
escatologia no fundamentalismo norte-americano (1970-1980)
Daniel Rocha1
Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te
ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e
os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te
abençoará na terra à qual passas para possuí-la.
Porém, se o teu coração se desviar, e não quiseres dar ouvidos, e fores seduzido, e te inclinares a
outros deuses, e os servires, então, hoje, te declaro que, certamente, perecerás; não permanecerás
longo tempo na terra à qual vais, passando o Jordão, para a possuíres.
Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a
maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando o SENHOR, teu
Deus, dando ouvidos à sua voz e apegando-te a ele; pois disto depende a tua vida e a tua longevidade
(...)
Deuteronômio 30:15-20
Introdução
Em 1630, dez anos após a chegada dos peregrinos do Mayflower ao Novo Mundo, um outro
grupo de puritanos ingleses rumava para a América crendo que sua viagem poderia ser
comparada à saída dos hebreus do Egito rumo à terra prometida. Essa leva de peregrinos tinha
à sua frente John Winthrop, que seria, posteriormente, o primeiro governador da colônia de
Massachussetts Bay. A bordo do navio Arbella, Winthrop escreveu um texto chamado A
Model of Christian Charity no qual expôs sua perspectiva do que seria o sentido e a missão
histórica desses viajantes em sua nova terra. Dizia Winthrop (1999, p. 42):
Devemos ter em mente que seremos como uma cidade sobre uma colina. Os olhos de todos
estão voltados para nós. De maneira que, se lidarmos com falsidade com nosso Deus, nessa
tarefa que empreendemos (...) abriremos a boca dos inimigos para falar mal dos caminhos
de Deus (...). Cobriremos de vergonha os caminhos de muitos dos valorosos servidores de
Deus, fazendo com que suas orações se transformem em maldições contra nós, até sermos
expulsos da boa terra para a qual nos dirigimos 2.
1
Doutorando em História pela UFMG. Bolsista da CAPES. Orientadora: Profª Drª Kátia Gerab Baggio. Contato:
danielrochabh@yahoo.com.br.
2
For we must consider that we shall be as a city upon a hill. The eyes of all people are upon us. So that if we
shall deal falsely with our God in this work we have undertaken (…) we shall open the mouths of enemies to
speak evil of the ways of God(…). We shall shame the faces of many of God's worthy servants, and cause their
prayers to be turned into curses upon us till we be consumed out of the good land whither we are going.
879
exemplos da Bíblia” (BERCOVITCH, 1988, p. 145), eles também reiteravam a possibilidade
do castigo iminente caso os valores cristãos, concebidos por eles como fundamentos dessa
nova sociedade a ser estabelecida em uma nova terra, fossem ignorados e/ou desrespeitados.
Nos púlpitos da Nova Inglaterra era recorrente um tipo de retórica conhecido como Jeremiad,
caracterizado pela condenação da degradação moral e da apostasia do povo, anunciando o
castigo iminente e, por outro lado, convocando as pessoas para um retorno aos valores sobre
os quais o sonho de uma nação cristã dos pioneiros puritanos havia sido erigido. Nas
incertezas e desafios do Novo Mundo, o sonho da construção de uma sociedade exemplar e
santificada, em termos escatológicos, um reino de mil anos de felicidade, sempre era
assombrado pelo juízo divino e pelos terríveis males que virão sobre a terra conforme os
relatos apocalípticos.
A presente comunicação tem o objetivo de fazer uma breve análise do que acreditamos ser
uma apropriação da Jeremiad que marcou os trabalhos de vários autores fundamentalistas que
fizeram sucesso durante o “boom da literatura escatológica” de tendência dispensacionalista
que ocorreu nos EUA nas décadas de 1970 e 1980, movimento que teve como seu principal
representante Hal Lindsey. Inicialmente, trataremos da permanência, ao longo da história
norte-americana, da crença de que os Estados Unidos seriam um povo eleito por Deus, uma
nação excepcional, fundada em determinados valores e virtudes, que possui uma missão a
desempenhar no mundo e um compromisso com seus valores “fundacionais”. Em seguida,
abordaremos como tal discurso foi apropriado pelo conservadorismo protestante norte-
americano no início da década de 1970 numa espécie de condenação e alerta quanto ao
castigo iminente que a “depravação” dos anos 1960 anunciava. Nesse contexto, faremos uma
breve avaliação do sucesso das perspectivas dispensacionalistas e das reflexões sobre os EUA
presentes no best-seller de Hal Lindsey lançado em 1970: The Late Great Planet Earth. Por
fim, e em comparação com sua obra de 1970, analisaremos a “politização” e
“americanização” do pensamento de Hal Lindsey em seu segundo maior sucesso editorial:
The 1980s: Countdown to Armageddon. Também buscaremos refletir como essa “virada
conservadora” na política norte-americana da passagem dos anos 1970 para os anos 1980
abriu espaço para um discurso menos pessimista e mais aberto à possibilidade do retorno dos
EUA aos seus valores fundacionais.
880
A ideia da cidade no alto da colina, o sentido de missão, o exemplo dos Pais Fundadores, que
buscavam construir uma nação alicerçada sobre os valores bíblicos que seria um exemplo e
um farol moral e, também, político (reino da liberdade e da democracia) são elementos
constantemente acionados na história norte-americana. Segundo Pocock (2004) os Estados
Unidos possuem uma cultura política marcada pelo momento “fundacional”. Nesse tipo de
cultura, que busca seus valores e sua identidade no momento fundante, há uma alternância
entre um “período litúrgico”, em que os princípios são observados e cultuados e, em
momentos de apostasia nacional, períodos marcados por um tipo de retórica, herdada dos
puritanos, conhecida como Jeremiad, “que tem como referência as admoestações do profeta
Jeremias aos hebreus, alertando para o desregramento moral em que viviam e a iminência da
vingança divina” (AZEVEDO, 2007, p. 28-29).
Sacvan Bercovitch, em diversas obras3, busca analisar a influência dos pioneiros puritanos da
Nova Inglaterra no fornecimento da “base bíblica para aquilo que viemos a chamar de mito da
América” (BERCOVITCH, 1988, p. 142). E entre os elementos desse inventário de heranças
puritanas, Bercovitch examina mais minuciosamente em sua obra a formação e
desenvolvimento do que ele chama de Jeremiad americana. Como dito, a tradição da pregação
jeremiad, especialmente nos púlpitos ingleses do século XVII, mantinha sua estrutura de
alerta quanto ao pecado do povo e anúncio da castigo divino caso o povo não se arrependesse
de seu pecado. Entretanto, talvez influenciada pela experiência e oportunidade de criar uma
nova sociedade em um Novo Mundo - e todos os sonhos milenaristas que isso despertou nos
Pilgrim Fathers - a Jeremiad americana apresentava uma ênfase diferenciada: se, por um
lado, alertava para as conseqüências terríveis que sofreriam aqueles que se desviassem dos
desígnios divinos, por outro conclamava o povo a relembrar sua missão e papel históricos.
Com Deus ao seu lado, eles eram um povo diferenciado que tinha as chaves do futuro nas
mãos. Segundo Cecília Azevedo (2007, p. 28-29): “reconfigurado, o Jeremiad teria adquirido,
ao lado do sentido de lição moral, um caráter de celebração. De destinados à queda, os norte-
americanos poderiam se autoproclamar peculiares, escolhidos não só para ganhar a vida
eterna, mas para uma missão na terra”. Para Bercovitch (1978, p. xi), essa Jeremiad
3
Entre outras podemos citar: BERCOVITCH, Sacvan. The puritan origins of the American self. New Haven;
London: Yale University Press, 1975; BERCOVITCH, Sacvan. The American jeremiad. Madison: The
University of Wisconsin press, 1978; BERCOVITCH, Sacvan. A retórica como autoridade: puritanismo, a Bíblia
e o mito da América. In: SACHS, Viola [et al.]. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p. 141-158.
881
transformada é uma das bases da persistência do “sonho americano”, ou do “mito da
América”, sobrevivendo a mais de 200 anos de crises e transformações daquela sociedade.
Se, num primeiro momento, Winthrop, dentro dos padrões de sua pertença puritana, falava da
criação de uma comunidade comprometida com os valores expressos nas Sagradas Escrituras
e com uma conduta moral irrepreensível, que seria um exemplo para o mundo de virtuosidade
e fé, a cidade sobre uma colina ganhou outros contornos ao longo do tempo, muitos deles com
um viés notadamente político e secular. O significado e o sentido da missão dos norte-
americanos no mundo, com suas diferentes “jeremiads”, tornou-se objeto de diferentes
apropriações por diferentes grupos ao longo da história norte-americana. Os exemplos são
vários e, devido às limitações deste texto, não vem ao caso uma análise mais extensa de casos.
Martin Luther King Jr., para citar apenas um exemplo, falava de seu sonho que estava
“profundamente enraizado no sonho americano” e de que “esta nação se levantará e viverá o
verdadeiro significado de sua crença”, mas, também chegou a proclamar que “o juízo de Deus
está sobre a América agora” (MOLTMANN, 2004, p. 179). Se a nação eleita se afastar de
seus fundamentos, eis que o juízo divino está às portas.
4
Para não alongar uma discussão que já realizamos em texto anterior - ROCHA, Daniel. Combatendo pela alma
da nação: alguns apontamentos sobre a subcultura política fundamentalista nos Estados Unidos. História Agora,
v. 13, p. 108-123, 2013 –, quando falamos em fundamentalismo pensamos em um movimento teológico/religioso
surgido na virada do século XIX para o XX, fruto de um processo histórico ocorrido dentro do protestantismo
norte-americano em reação ao liberalismo teológico e, também, ao processo de secularização e que se
desenvolveu ao longo do século XX, assumindo novas formas de atuação na esfera pública, em especial sobre
questões políticas e legais.
882
II
A história dos Estados Unidos é marcada por períodos de intenso fervor religioso e por outros
em que a religião ficou relegada a um segundo plano, confinada ao ambiente eclesiástico
eclesiástica e à esfera privada da vida daqueles que mantêm sua fé pessoal. Outro pesquisador
da Nova Inglaterra puritana, Emory Elliot, sugere uma interessante ideia quanto aos “ciclos de
fé” na história norte-americana. Explicando sua proposta, colocada originalmente em sua tese
de doutoramento de 1975, Elliot (1988, p. 114) diz:
Eu sugeria atrevidamente que o quadro que traçara das quatro primeiras gerações de
puritanos poderia ser encarado como um paradigma bíblico, repetido nos Estados Unidos
sucessivamente na Guerra da Independência, na Guerra Civil e na Segunda Guerra
Mundial: uma condição social na qual uma geração patriarcal de fundadores ou heróis
militares estabelece um establishment político reforçado pela religião que, depois, é
liberalizado – considerado pelos fundadores como enfraquecido ou corroído – pela segunda
geração e abandonado – visto como traído – pela terceira geração. Segue-se então,
freqüentemente, uma revivificação religiosa na quarta geração, como ocorrera com o
Primeiro Grande Despertar na década de 30 (1730) e o Segundo Grande Despertar nos
outros anos 30 (1830). Eu sugeria que nós talvez estivéssemos presenciando, a partir de
1970, uma outra revivificação, que se seguia à confusão e à angústia da década anterior.
O início da década de 1970 cheirava à crise. E uma crise sem precedentes, especialmente nos
discursos de várias lideranças politicamente conservadoras e religiosamente fundamentalistas.
Internamente, segundo Bellah (1986), a década de 1960 abalou as estruturas do modo de vida
americano e instituições tradicionais como o governo, os negócios, a família e as igrejas não
saíram ilesas. Era uma América assombrada pelos fracassos militares (especialmente no
Vietnã), pelos conflitos raciais, pelo avanço do comunismo e a real ameaça de um ataque
nuclear, pela contestação dos valores familiares, sociais, econômicos e mesmo sexuais por
parte dos movimentos de contracultura, etc. Em termos de religião, “os anos 60 presenciaram
uma queda contínua na frequência às igrejas e uma crença cada vez menor na importância da
religião, medidas por pesquisas de opinião de âmbito nacional” (BELLAH, 1986, p. 25). A
religiosidade que floresceu, especialmente entre os jovens, se distanciava muito do
protestantismo tradicional, considerado parte de um sistema materialista e opressor destinado
à extinção – ou mesmo culpado pela possibilidade de extinção iminente de toda a raça
humana -, e buscava sua inspiração na religiosidade oriental e numa espécie de relação
primitiva entre homem e natureza. Externamente, o contexto da Guerra Fria e episódio como
883
a Crise dos Mísseis em Cuba de 1962 colocavam toda a nação em um estado de permanente
apreensão e, em alguns casos, de pânico.
Antes de prosseguir, façamos uma pequena parada para entender o que seria o
dispensacionalismo, do qual Lindsey era o mais importante representante na época. O
dispensacionalismo é um método de interpretar a Bíblia atribuído a John Nelson Darby (1800-
1882), um pastor anglicano que deixou a Igreja da Irlanda, tornando-se um dos líderes do
movimento “a-denominacional” conhecido como Irmãos de Plymouth. Segundo os
dispensacionalistas, a Bíblia anuncia uma perspectiva de história dividida em sete eras ou
“dispensações” e, em cada uma delas, Deus apresentaria um diferente plano de salvação e, em
todas elas, o homem falharia, havendo nova crise e nova intervenção divina na história
humana. Na perspectiva de Darby e seus seguidores, “a Bíblia é o testemunho divino de uma
história sucessiva da salvação. Consequentemente, a última revelação de Deus é a revelação
do fim da história no Apocalipse de João. A Bíblia é essencialmente predição e a história
universal, essencialmente cumprimento dos prenúncios divinos” (MOLTMANN, 2003, p.
177). As dispensações seriam as seguintes: 1) a “Inocência”, que terminaria com a Queda e a
expulsão de Adão e Eva do Paraíso; 2) a “Consciência”, que findaria com o Dilúvio; 3) “O
5
No pré-milenarismo o reinado de mil anos de justiça e felicidade de Jesus Cristo na Terra, anunciado no livro
do Apocalipse, só ocorreria após o retorno visível de Cristo para reinar com os seus. Portanto, o reino de Deus
seria implantado na Terra somente após uma intervenção sobrenatural divina, que daria um fim à história dos
homens e seus governos. A ele se oporia a perspectiva pós-milenarista, na qual o reino milenar precederia o
retorno de Jesus, cuja vinda marcaria o final do milênio e o início da eternidade na Jerusalém eterna e sem
mácula. É uma perspectiva mais próxima daquela que Eusébio de Cesareia e alguns cristãos do período
constantiniano tinham quanto ao reino milenar. Seria uma expectativa de que “a vinda do Reino se daria após a
implantação da civilização cristã; por isso, a cristianização da sociedade seria uma preparação para a vinda do
Reino de Deus” (MENDONÇA, 1984, p. 55).
884
Governo Humano” que seria encerrado em Babel; 4) a Promessa” que acabaria na escravidão
no Egito; 5) a “Lei”, que terminaria com a crucificação de Cristo; 6) a “Graça” ou “Período da
Igreja”, que terminaria no que os dispensacionalistas chamam de “A Grande Tribulação”, a
Batalha do Armageddom e a Segunda volta de Cristo; por fim 7) o “Milênio” onde Cristo
reinaria pessoalmente na Terra junto aos seus santos. Após os mil anos Satanás iniciará uma
última rebelião que será aniquilada pela intervenção divina. Com a derrota de Satanás entrar-
se-á na eternidade da Jerusalém Celeste.
A interpretação dispensacionalista das profecias bíblicas tornou-se popular nos EUA após a
Guerra Civil em contraposição ao otimismo pós-milenarista que marcava a maioria das igrejas
protestantes tradicionais norte-americanas. Em contraposição à crença nas virtudes humanas e
no progresso contínuo, o dispensacionalismo advogava o total controle de Deus sobre a
história e a iminência do fim dos tempos. O dispensacionalismo difundiu-se rapidamente
através de encontros e conferências bíblicas, sendo abraçado por várias lideranças,
especialmente conservadoras, do protestantismo americano como Reuben A. Torrey e James
Hall Brookes, figuras importantes no movimento que depois veio a ser conhecido como
fundamentalismo. Mas, talvez o mais importante discípulo do sistema de Darby tenha sido
Cyrus Ingerson Scofield que organizou a conhecida Bíblia de Estudos Scofield, lançada
originalmente em 1909 – no mesmo período em que começaram a circular os famosos The
Fundamentals -, que se tornou um enorme sucesso de vendas e o grande texto de referência
dos dispensacionalistas.
6
Na confecção deste trabalho utilizamos a versão em inglês – LINDSEY, Hal; CARLSON, C.C. The late great
planet earth. Grand Rapids: Zondervan, 1970 – e a primeira edição da tradução para o português – LINDSEY,
Hal; CARLSON, C.C. A agonia do grande planeta Terra. São Paulo: Mundo Cristão, 1973.
885
Late Great Planet Earth foi o livro de não ficção mais vendido nos Estados Unidos na década
de 1970. Suas obras posteriores também tiverem enorme sucesso, com vendas na casa dos
milhões de cópias. Lindsey é um dos poucos autores a ter, simultaneamente, três livros na
lista dos mais vendidos elaborada pelo New York Times. The Late Great Planet Earth
também recebeu uma “versão documentário” (1979) para os cinemas, que contava, além dos
comentários de Lindsey, com a narração do renomado ator/diretor Orson Welles. As ideias de
Lindsey, especialmente a de que haverá um arrebatamento7 dos crentes antes do retorno de
Cristo, também influenciaram o filme cristão A Thief In The Night de 1972, que alcançou
grande sucesso no público religioso norte-americano e teve outras três sequências.
E, dentro da linha de raciocínio que nos interessa diretamente aqui, além de olhar para os
sinais vindos do exterior, Lindsey aponta também para sintomas do fim que podiam ser
observados nos EUA da virada da década de 1960 para 1970: aumento do uso de drogas
aliado a novas formas de religiosidade não cristãs – inclusive o satanismo explícito - que
7
Crença bastante popular entre os adeptos do pré-milenarismo dispesacionalista que afirma que os crentes serão
literalmente arrebatados da Terra (desaparecerão repentinamente) para junto de Deus nos céus antes do período
do governo do Anticristo (chamado de A Grande Tribulação). Estes arrebatados retornarão à Terra com Cristo
para reinar com Ele durante mil anos.
8
Em um certo momento ele até ousa colocar uma data limite para o advento da Segunda Vinda de Cristo: “Que
geração? Obviamente, pelo contexto, a geração que veria os sinais – o principal deles o renascimento de Israel.
Uma geração, na Bíblia, é algo como quarenta anos. Se esta dedução é correta, então dentro de quarenta anos
mais ou menos, a partir de 1948, todas estas coisas poderão acontecer. Muitas pessoas eruditas, que têm estudado
as profecias da Bíblia toda a sua vida, creem assim” (LINDSEY; CARLSON, 1973, p. 50).
886
emergiram no rastro dos movimentos de contracultura; o afastamento de muitas igrejas cristãs
das verdades fundamentais do cristianismo; o movimento ecumênico; o declínio do poderio
bélico e econômico dos EUA; a decadência dos family values, etc. E, em 1970, a perspectiva
de Lindsey quanto ao futuro de seu país era bastante sombria. Compartilhando da perspectiva
de vários fundamentalistas e pré-milenaristas da época, Lindsey via a cultura norte-americana
do final da década de 1960 como irremediavelmente corrupta (WOLJCIK, 1997, p. 45). A
denúncia da fraqueza norte-americana em deter o avanço comunista e a futura passagem do
“bastão” da liderança do ocidente para o reino do Anticristo na Europa (que terá por base o
Comunidade Econômica Européia) são preditos várias vezes no livro. Os últimos dias seriam
sombrios para a nação que um dia foi sonhada como um prenúncio da implantação do reino
de Deus na Terra:
9
Lindsey é bem explícito na condenação de qualquer perspectiva escatológica de cunho otimista – que anuncie a
possibilidade de um reino de felicidade e justiça que preceda a parousia - ou que postergue a iminência do fim:
“Nenhuma pessoa entendida, que tenha respeito próprio e que veja as condições do mundo, bem como o declínio
acelerado da influência cristã atualmente, nenhuma delas é mais ‘pós-milenista’. Somos ‘premilenistas’”
(LINDSEY; CARLSON, 1973, p. 163).
887
III
Dez anos após o lançamento de The Late Great Planet Earth, Hal Lindsey lança The 1980s:
Countdown to Armageddon, publicado no Brasil em 1981 com o título Os anos 80: contagem
regressiva para o Juízo Final. Embora não tenha tido a mesma repercussão do primeiro livro,
sua obra de 1980 permaneceu por mais de 20 semanas na lista do New York Times de livros
mais vendidos (BOYER, 1992, p. 5). Entre o lançamento dos dois livros ocorreu uma grande
mudança nas relações entre religião e política nos EUA. E os reflexos e influência de tais
mudanças podem ser sentidos no texto de Lindsey.
888
Com essa organização como grupo de pressão e com o enorme espaço na mídia que várias
lideranças do movimento possuía, especialmente Falwell e Pat Robertson, essa nova Direita
Cristã ganhou cada vez mais espaço na arena política norte-americana, tanto na oposição a
políticos que não abraçavam suas bandeiras quanto no apoio àqueles que simpatizavam com
sua luta. Sua força foi fundamental na eleição e durante o governo Reagan, tornado-se um
elemento importantíssimo para a virada conservadora na política norte-americana. O discurso
perdeu o tom predominantemente pessimista, e a possibilidade de uma reconciliação com seu
Deus, com seus valores fundacionais e com seu papel redentor da humanidade começaram a
fazer parte da retórica político-religiosa de algumas lideranças fundamentalistas.
Em The 1980s: Countdown to Armageddon, Hal Lindsey repete várias de suas previsões e
busca mostrar a realização de algumas profecias. Nesse sentido não há grandes mudanças em
relação ao seu livro de 1970. O que surge como novidade é o grande espaço dado à discussão
de questões concernentes ao futuro dos EUA e, também, à defesa de várias bandeiras da
Direita Cristã. A crítica à fraqueza do governo norte-americano no combate ao avanço do
comunismo no mundo aparece em várias partes do livro. Lembremo-nos de que o livro foi
lançado no final do governo Jimmy Carter, nessa altura dos acontecimentos já muito criticado,
especialmente pelos grupos mais conservadores que viriam a abraçar a candidatura de Ronald
Reagan na eleição seguinte. Nesse quadro, Lindsey diz que, para um futuro próximo, “existem
várias possibilidades para os Estados Unidos, por exemplo: tomada pelos comunistas;
destruição através de um ataque nuclear soviético inesperado (...); passar a depender da
confederação das 10 nações; um destino bem mais agradável do que qualquer um dos acima”
(LINDSEY, 1981, p. 112). O Lindsey de 1980 é muito mais programático e busca indicar de
maneira mais efetiva as medidas a serem tomadas e os caminhos a serem seguidos para que os
EUA desempenhem um papel relevante nos últimos dias. E o caminho não se restringe apenas
a orar por um reavivamento espiritual.
“Embora nenhum método seja perfeito, o sistema democrático, capitalista, de livre empresa,
produziu maior liberdade, prosperidade e independência financeira para um maior número de
pessoas do que qualquer outro sistema na História” (LINDSEY, 1981, p. 121). O modo de
vida americano e o próprio capitalismo devem ser defendidos contra os inimigos internos e
externos. Lindsey não adverte apenas contra o perigo da expansão soviética – que deve ser
freada por uma política externa mais agressiva e através do incremento do poderio bélico
889
norte-americano10. Uma série de políticas internas equivocadas, que iam na contramão dos
“santos” valores capitalistas e da livre empresa: as principais críticas de Lindsey direcionam-
se ao que ele chama de políticas assistencialistas herdadas do New Deal – que estavam
fazendo os americanos desvalorizarem sua tradição de trabalho duro e empreendedorismo – e
o inchamento da máquina estatal. Essas políticas – expansão do aparato estatal e aumento da
dependência de recursos do Estado para a sobrevivência dos indivíduos – “cheiravam” a
socialismo e estavam muito distantes dos reais valores americanos. Os governantes “devem
estar dispostos a cortar as ostentações do governo, a impedir a exploração do sistema de bem-
estar social, a manter nossos compromissos com os nossos aliados e a lutar contra a expansão
comunista” (LINDSEY, 1981, p. 137)11.
No Hal Lindsey da década de 1980 já encontramos ecos de uma Jeremiad que, sem deixar de
alertar quanto aos perigos da apostasia espiritual e da falta de compromisso com seus valores
fundacionais, apresenta a inviolabilidade da missão e do caráter excepcional do povo
americano. Um povo que tinha, desde os Pais Peregrinos, “como missão construir uma
sociedade moralmente virtuosa e que serviria de exemplo para outros povos. Tinham,
10
Em certo momento Lindsey afirma: “Num mundo decaído, a paz, a segurança e a liberdade só podem ser
mantidas por um poder suficientemente forte para desestimular os que se inclinam à conquista. Quanto mais
poderosas as forças armadas de um país, tanto menores as possibilidades de que jamais venham a lutar. Essa é a
razão pela qual a Bíblia apóia a manutenção de uma poderosa força militar. E a Bíblia está dizendo aos Estados
Unidos que se fortaleçam de novo. Um exército fraco irá encorajar a União Soviética a começar uma guerra
total” (LINDSEY, 1981, p. 129).
11
Em vários momentos Lindsey parece espelhar o discurso de engajamento político-eleitoral da Maioria Moral
em passagens como: “Precisamos fazer uma limpeza em Washington e eleger um Congresso e um Presidente
que acreditem no sistema capitalista. Nosso Congresso foi dominado e controlado desde 1955 por homens e
mulheres que não crêem realmente no capitalismo” (LINDSEY, 1981, p. 125); e: “Precisamos colocar no
governo indivíduos atuantes que não só irão refletir a moral bíblica em suas funções, mas também moldarão a
política interna e externa de modo a proteger nosso país e nossa maneira de viver” (LINDSEY, 1981, p. 137).
12
Ver em Genesis 12:3.
890
portanto, um destino a cumprir” (JUNQUEIRA, 2003, p. 169). E, mesmo nos momentos
finais da história humana, tal papel de luzeiro para o mundo deveria ser assumido.
Considerações finais
Referências
AZEVEDO, Cecília. Em nome da América: os Corpos de Paz no Brasil. São Paulo: Alameda,
2007.
891
BELLAH, Robert N. A nova consciência religiosa e a crise na modernidade. Religião e
sociedade, n. 13/2, 1986. p. 18-37.
BERCOVITCH, Sacvan. The puritan origins of the American self. New Haven; London: Yale
University Press, 1975.
__________. The American jeremiad. Madison: The University of Wisconsin press, 1978.
BOYER, Paul S. When time shall be no more: prophecy belief in modern american culture.
Cambridge: Harvard University Press, 1992.
LINDSEY, Hal; CARLSON, C.C. The late great planet earth. Grand Rapids: Zondervan,
1970.
__________; __________. A agonia do grande planeta Terra. São Paulo: Mundo Cristão,
1973.
LINDSEY, Hal. Os anos 80: contagem regressiva para o Juízo Final. São Paulo: Mundo
Cristão, 1981.
MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
ROCHA, Daniel. Combatendo pela alma da nação: alguns apontamentos sobre a subcultura
política fundamentalista nos Estados Unidos. História Agora, v. 13, 2013. p. 108-123.
WHINTROP, John. A Modell of Christian charity. In. WARNER, Michael (Ed.). American
sermons: the Pilgrims to Martin Luther King Jr. The Library of America, 1999. p. 28-43.
892
WOLJCIK, Daniel. The end of the world as we know it: faith, fatalism and Apocalypse in
America. New York: New York University Press, 1997.
893
894
A religiosidade e o direito norte-americano à luz das contribuições
de Ronald Dworkin
Carlos Augusto Lima Campos1
Introdução
A circunspecção popular, de maneira ágrafa, perpetuou a máxima de que, se alguém quer ser
imortal, esse alguém deve ter filhos, plantar uma árvore e/ou escrever um livro. E é
exatamente no âmbito da imortalidade que Ronald Dworkin se nos apresenta como um dos
maiores nomes da Filosofia e do Direito contemporâneos, já que o reverberar de suas ideias
há muito transcende os limites do ambiente jurídico universitário anglo-saxônico,
perpassando pela Filosofia da Linguagem, e desaguando no relevante âmbito da
Hermenêutica Filosófica.
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro
Universitário de Ribeirão Preto (UNISEB), bacharel em Direito pela UFPA. Contato:
prof.carloscampos@gmail.com.
895
Dworkin foi um intelectual que participou ativa e regularmente do debate público, por meio
de sua produção científica e, também, de polêmicas, já que expunha os seus pontos de vista
para plateias menos afeitas aos desafios técnicos das argumentações filosóficas, digamos,
mais sofisticadas, o que viabilizava – de certo modo – a difícil tarefa de fomentar um diálogo
público acerca de temáticas de alta complexidade teórico-ideológicas.
Tal virtude, entretanto, não é capaz de tornar simples o complexo, ainda que sejam grandes as
tentativas de combater a erudição retórica, frequentemente verificada junto a excertos
jurídicos e filosóficos. O curioso, como bem salienta Kläus Gunther, é que:
Esses fatos fazem com que o pensamento de Dworkin seja frequentemente criticado por ser
excessivamente hermético e complicado. O aparente paradoxo reside no desafio – em que
Dworkin foi bem sucedido – de escrever, de maneira direta, econômica e analítica, sobre
temas altamente complexos que muitas das vezes deixam os leitores insatisfeitos. O
resultado é um autor que, mesmo escrevendo ‘da maneira mais fácil possível’, parecerá a
seus leitores um autor difícil. Esse resultado é ainda mais frequente entre os leitores que
buscam nas ideias de outros, antes, as confirmações de suas próprias convicções, em vez de
desafios. Outro resultado possível, e frequentemente identificável nas leituras nacionais, é a
interpretação inadequadamente simplificadora de um sistema de ideias complexo. Em boa
medida, tal fato decorre de que muitos de seus leitores, muito ao estilo bacharelístico,
resumem seu estudo de um autor à leitura rápida de um ou dois artigos, de forma
descontextualizada e sem visão de conjunto. Acima de tudo, este tipo de leitura retira o
autor de suas premissas e pressupostos metodológicos, prejudicando uma leitura correta de
seu pensamento (GUNTHER, 2004, p. 204).
Algumas das leituras apressadas da produção de Ronald Dworkin, não raro, creditam uma
suposta originalidade de seu pensamento à incorporação da discussão dos princípios ou à
dimensão moral do Direito em seus trabalhos. Certamente, se este fosse o seu “baricentro
896
científico”, sua fama seria indevida, visto que, muito antes dele, outros autores já chamavam a
atenção com uma abordagem semelhante.2 A mera apresentação de uma leitura moral do
Direito e da constituição instituiria ensejo suficiente para inseri-lo em uma difusa e
consolidada tradição do pensamento jusnaturalista – algoritmo, contudo, problemático para
defini-lo. Se há pioneirismo no tratamento principiológico vislumbrado na obra de Dworkin,
está relacionado, antes, ao papel que a moral desempenha em sua teoria do direito e da
política, bem como ao seu método de abordagem.
Pessoalmente, reputo que a melhor leitura da obra de Dworkin nos obriga a reconhecer a
imensa importância dos pressupostos metodológicos e epistemológicos que subjazem a sua
crítica à acepção de objetividade jurídica acolhida pelas teorias jurídicas rivais, notadamente
o pragmatismo e o positivismo jurídico. Num certo sentido, a correta compreensão do
significado e originalidade de sua obra pressupõe entender o valor atribuído por Dworkin ao
seu enfoque e método interpretativista.3 Novamente, aqui, poder-se-ia objetar que a ideia de
que o sentido do Direito deve ser interpretado não representa ineditismo. Afinal, poucas
teorias negam que o Direito é um fenômeno normativo que demanda interpretação. A
emblemática, contudo, reside no significado que se deve atribuir à ideia de interpretação no
pensamento de Dworkin.
Stephen Guest, em tempo hábil, compreende bem essa questão, razão pela qual dedica quase
metade de sua obra, Ronald Dworkin, à apresentação da teoria do significado e da
interpretação desenvolvida por Dworkin, no interregno de seus trabalhos, desde meados da
década de 1960:
Para Dworkin, a interpretação do direito significa ver o direito como um corpo coerente,
integrado e articulado a uma intencionalidade (que não se confunde com a intenção dos
legisladores). Para ele, a descrição da dimensão da normatividade do direito pressupõe e
requer a incorporação de uma dimensão interpretativa. Num certo sentido, é possível
afirmar que Dworkin aprofunda (e modifica) uma vertente interpretativa cuja senda fora
aberta por H. L. A. Hart. Ao radicalizá-la, contudo, transforma-a numa das mais afiadas
armas contra o próprio positivismo de Hart (GUEST, 2010, p. 13).
2
Cfr., dentre outros, nos Estados Unidos: Eskridge Jr., William N.; Frickey, Philip P. (Ed.). Hart & Sacks’ The
legal Process: Basic Problems in the Making and Application of Law. West Publishing Company, 2001; e
Wechsler, Herbert. Principles, politics, and fundamental law. University Microfilm, 1977. Na tradição europeia,
também, dentre outros: Esser, Josef. Principio y norma em La elaboración jurisprudencial Del derecho privado.
Tradução de Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961.
3
Acerca da temática, ver: Stavropoulos, Nicos. “Interpretivist Theories of Law”, in Stanford Encyclopaedia of
Philosophy.
897
Ronald Dworkin entre o Direito e a Moralidade
Ao seu turno, urge traçar uma relação entre os aludidos princípios morais fundamentais e uma
teoria geral da distribuição, o que nos conduz à inexorável conclusão de que tal “exigência” se
verifica em qualquer sistema jurídico, e notadamente no estadunidense, onde Dworkin insiste
que deve ser extraído um sentido interpretativo capaz de possibilitar eficácia à argumentação
jurídica, para que esta alcance pleno sentido justificativo, sendo possível identificar traços,
ainda que embrionários, das perspectivas de justiça. E por traços embrionários, refiro-me à
aderência suficiente a princípios de justiça em uma dada comunidade, viabilizando a essência
e o arbítrio, o que possibilitaria o paulatino aperfeiçoamento das diretrizes insculpidas.
Para ambas as temáticas (Direito e Moralidade), Ronald Dworkin traçou teorias coesas, e que
encontram no cidadão, no Estado e no Direito um retrato holístico raro na cultura política,
jurídica e acadêmica anglo-americana, sobremodo marcada pelo relativismo, pelo ceticismo e
pela desconstrução. O ideal de integridade condiz com as requisições racionais da moral, cuja
coerência se traduz no fato de que “todas as decisões que afetem outros seres humanos devem
ser compatíveis com esse motivo (moral). Do contrário, na visão de Dworkin, elas são
decisões injustificáveis” (CADEMARTORI; DUARTE, 2007, p. 213).
898
um atrativo de sua teoria da igualdade distributiva é o peso central que ele dá à ideia de
custos impostos a outras pessoas, igualmente humanas, pelo exercício da liberdade
individual, e seu evidente impacto prático por meio de mecanismos de mercado. Contudo, o
sucesso no desenvolvimento dos aspectos mais técnicos de definir o padrão de mercado
pode revelar-se fugidio. Se for esse o caso, o fracasso sugeriria que as fortes intenções, que
muitos de nós têm, de que a igualdade de bem-estar é impossível e de que o mercado tem
uma base ética são, na verdade, falsas (EAGLETON, 2005, p. 204).
corresponde à da justiça, nos seguintes termos: quando duas concepções diferentes sobre a
melhor interpretação de certo dispositivo constitucional passarem no teste de adequação,
(...), deve-se dar preferência àqueles cujos princípios parecem refletir melhor os direitos e
deveres morais das pessoas (ou seja, as convicções de direito e justiça compartilhadas pela
comunidade política), pois a Constituição é uma afirmação de ideais morais abstratos, os
quais cada geração deve interpretar por si mesma, independentemente da vontade originária
4
Como é o caso da Constituição da República Federativa Brasileira, de 1988 (CRFB/88), no atinente aos direitos
individuais, coletivos, difusos, políticos, culturais e econômicos, exemplificativamente.
899
e descontextualizada de cada legislador constituinte. Em outros termos, pode-se dizer que
cada cláusula constitucional revela-se abstrata ao seu modo, posto que cada uma delas
desenvolve um uso de conceitos alheios à linguagem jurídica, bem como aos demais ramos
das ciências sociais, tais como economia, ou qualquer outro. O uso efetivo é o moral e
político, correntes no meio social. Por essa razão, expressões tais como liberdade,
autodeterminação, crueldade ou igualdade, consideradas em abstrato, tornam-se por
demais amplas. Quando estas expressões se consideram no seu sentido literal, segundo
Dworkin, elas assumem o sentido de que o governo trate a todos os que se encontram sob o
seu domínio, com igual consideração e respeito, o que equivale a não infringir as suas
liberdades mais básicas. Esta linguagem principiológica está estruturada de forma
abrangente em duas das principais fontes de reivindicação dos direitos fundamentais da
cultura ocidental, quais sejam: igual consideração e liberdades básicas, ou, nos termos do
juiz Cardozo no caso Palko vs Connecticut, de 1937, à ideia mesma de liberdade com
ordem. Em linhas gerais, pode-se dizer que a teoria da interpretação de Dworkin não se
desenvolve exclusivamente nos planos da sintaxe e semântica dos termos da lei e isto se
revela crucial nos casos que envolvem os chamados conceitos indeterminados, os quais
predominam nos direitos fundamentais, tais como liberdade, dignidade ou igualdade, por
exemplo. O sentido de tais expressões não se resolve, na visão do autor, através de
operações lógicas no seu interior e sim sob um modelo pragmático, o qual se remete
diretamente ao uso social e contextual de cada expressão. Em resumo, o problema a ser
tratado pela interpretação da lei não diz respeito tanto a conceitos da linguagem e sim às
concepções sociais sobre eles. É por essa razão que nenhuma técnica interpretativa sobre o
uso correto do idioma é capaz de explicar a suposta diferenciação entre direitos
constitucionais explícitos, ou taxativamente enumerados, e os chamados direitos implícitos.
Isto porque os direitos fundamentais se baseiam em princípios amplos e abstratos de moral
política cuja correta interpretação e aplicação dependem de percepções morais e não de
usos linguísticos.Também por essa razão é que a distinção entre direitos específicos,
explicitamente enumerados, e os que não o são torna-se, então, irrelevante. Apesar da
aparente simplicidade desta explicação, Dworkin reconhece que, em muitos casos
constitucionais, torna-se difícil decidir se alguma interpretação proposta pode atender o
critério da adequação, correspondente à primeira dimensão interpretativa, proposta por ele,
ou seja, em termos de adequação da correspondência do caso em questão, com a prática e a
história jurídica visando a aprovação no teste desta dimensão (CADEMARTORI;
DUARTE, 2009, p. 170) .
900
Dworkin muito se empenhou no sentido de extrair um posicionamento mais clarividente no
atinente à prática do aborto – e sempre com fulcro na Constituição norte-americana –, uma
vez que desde o caso Roe v. Wade5 (1973), os Estados Unidos da América (E. U. A.)
reconhecem tal prática enquanto manifestação do direito à privacidade, podendo ser realizada
nos dois primeiros trimestres da gestação. Entretanto, tal direito foi abordado de modo muito
distinto, e não foram poucos os casos em que o livre convencimento, em um determinado
caso, era sobremodo destoante do verificado em outro, ainda que se tratasse de situações
semelhantes. Um exemplo muito claro fica por conta do escólio do juiz Blackmun, que
julgava se tratar de um direito rígido, e que, portanto, seriam necessárias razões muito
extremas para flexibilizá-lo. Ao seu turno, o juiz Rehnquist interpretou por um viés distinto,
acreditando se tratar de um direito absolutamente flexível, podendo sofrer intervenções de
terceiros, inclusive do Estado, bastando que as motivações alegadas fossem consideradas
“razoáveis”.
Dworkin acredita que a interpretação mais “flexível” não condiz com as atuais estruturas da
sociedade estadunidense, uma vez que o direito à contracepção, sedimentado no caso
Griswold v. Connecticut6 não dá margem para distinções principiológicas entre o direito de
não gestar (bear) e o direito de não procriar (beget). Outrossim, Dworkin questiona se
realmente haveria uma justificativa plausível para cercear a prática do aborto, em relação ao
que considera uma liberdade individual. Considera como positiva, a resposta, em se tratando
da tutela à vida.
Dworkin faz, talvez, o questionamento mais difícil de se encontrar uma resposta: um feto deve
ser considerado uma pessoa? Em caso negativo, não há que se falar em crime. Tampouco em
polêmica. O que encerraria quaisquer discussões acerca da temática (inclusive o presente
artigo). Se, ao contrário, a resposta for positiva, o ato de abortar, ainda que nos primeiros
meses de gestação, seria análogo ao cometimento de um homicídio, o que atribuiria à prática a
inexorável categoria de crime.
5
Onde a Suprema Corte estadunidense se posicionou no sentido de que o aborto era um direito das mulheres, e
que se tratava de uma consequência lógica do direito à privacidade, protegido pela Emenda Constitucional
Norte-Americana nº 14. Tal postura acabou por declarar inconstitucional a lei estadual do Texas, conferindo às
mulheres total autonomia para interromper a gravidez durante o 1º trimestre de gestação. Ademais, também
foram admitidos alguns critérios que possibilitavam a interrupção da gestação nos 2º e 3º trimestres, o que
reverberou em boa parte das leis estaduais que disciplinavam a prática do aborto nos Estados Unidos.
6
O caso envolveu a prisão da então Diretora Executiva da Liga de Planejamento Familiar do Estado de
Connecticut, Estelle Griswold, sendo que o mais peculiar é que a decisão não se ateve às questões relacionadas
ao direito de evitar (ou não) filhos, e sim à garantia constitucional de que os cidadãos têm direito à intimidade, e
que a polícia (ou quem quer que represente o Estado) não pode invadir o quarto de alguém, sob a égide do
“protecionismo estatal”.
901
Pessoa é parte da constituição porque a décima emenda estabelece que nenhum dos estados
negará a qualquer pessoa igual proteção legal. Mas se o feto fosse uma pessoa
constitucional, então os estados teriam o dever de protegê-lo, de forma que qualquer pessoa
que diga que os estados têm o direito de escolher proibir o aborto já aceitou que os fetos
não são pessoas constitucionais. Este é um argumento poderoso, mas, é claro, a constituição
está sempre aberta a interpretações que podem mostrar o erro desta interpretação. Dworkin
também considera se estados podem, isoladamente, fazer do feto uma pessoa
constitucional, talvez sob o fundamento de que permitir abortos encorajaria uma cultura da
matança. Mas ele duvida que a proteção do feto esteja no âmbito dos arranjos
constitucionais nacionais (que os estados não podem desrespeitar) e, de toda forma, não há
evidência de relação entre culturas de matanças, que se poderia dizer que os EUA já tem, e
leis liberais sobre o aborto. Em países europeus, onde há leis mais liberais sobre o aborto,
não há uma cultura de matança. De qualquer forma, a questão persiste. Do fato de o feto
não ser uma pessoa, seguir-se-ia que a mulher teria um direito, a ser defendido, de controlar
seu próprio papel na procriação? E teriam os estados uma razão motivadora independente
para proibir o aborto? Os adversários de Roe v. Wade argumentam que a constituição não
menciona o direito e, em qualquer caso, não foi esta a intenção dos criadores da
constituição. (...) Dworkin opõe a esta visão da constituição a visão da constituição de
princípio e diz que a concepção estreita e detalhada da Constituição Norte-Americana não é
sequer uma opção para a América contemporânea, e pretender adotá-la não daria qualquer
verificação verdadeira dos poderes dos juízes de impor suas próprias convicções sobre o
direito, mas apenas a perigosa ilusão de uma tal verificação (GUEST, 2010, p. 186).
Ainda que a concepção de interesse apresentasse a mesma carga axiológica que os direitos
constitucionais do cidadão estadunidense, é nítida a centralidade do fator responsabilidade no
pensamento de Dworkin, e tal emblemática não se atém ao debate acerca da inclusão (ou não)
do feto enquanto pessoa constitucional. Nos termos de Oliveira (2007, p. 261), “as escolhas
que as pessoas fazem sobre trabalho, lazer e investimento têm impacto sobre os recursos da
comunidade como um todo”. Dessa forma, seria apropriado mitigar pelas perspectivas de
responsabilidade, bem como as circunstâncias nas quais o aborto poderia ser possibilitado ou
consentido. Este, aliás, é o prisma sustentado Stephen Guest, segundo o qual:
com uma concepção mais rica de constituição em mente, Dworkin considera duas tradições
adversárias: a da liberdade pessoal e da responsabilidade governamental por ‘guardar
espaço público moral em que vivem todos os cidadãos’. Ele diz que essa segunda ideia é
ambígua entre as ideias antagônicas de pretender fazer os cidadãos responsáveis, ou
pretender fazer com que se conformem àquilo que a maioria quer. São ideias antagônicas
porque a responsabilidade exige que as pessoas ajam de acordo com suas convicções, ao
passo que a conformidade pode significar fazer pessoas agirem contrariamente as suas
902
convicções. Se não há razão para proibir o aborto que derive da ideia de que o feto é uma
pessoa (e o estado, portanto, tem apenas o interesse independente na manutenção da
santidade do feto), então a razão para proibir o aborto só pode ser que a mãe está agindo
irresponsavelmente. Esta questão depende da questão altamente controvertida de saber o
que vale como sacralidade da vida e, portanto, as convicções da maioria não deveriam, ao
visar a cidadãos moralmente responsáveis, subjugar a convicção da mãe. Em outras
palavras, o estado não pode permitir, ao mesmo tempo, responsabilidade e conformidade.
Evidentemente, os estados devem objetivar fazer com que os cidadãos tratem questões
sobre vida e morte de maneira responsável, mas (...) os tribunais não podem simplesmente
autorizar um estado a disfarçar uma regra de fato coercitiva como se fosse uma regra
meramente estimuladora de responsabilidade. Em Casey (que confirmou Roe v. Wade), a
Suprema Corte sustentou que os estados podiam encorajar responsabilidade na decisão de
uma mulher quanto ao aborto, desde que as exigências não colocassem um ônus indevido
sobre ela. A corte adotou o entendimento de que exigir que a mulher informe o seu marido
sobre o aborto proposto colocaria tal ônus excessivo sobre ela, mas que seria permitido
exigir um período de 24 horas para deliberação, como uma espécie de período de
esfriamento de ânimos (GUEST, 2010, p. 187).
Stephen Guest, aliás, acredita que qualquer decisão relacionada à prática do aborto está
intimamente vinculada à constituição moral de quem o faz. E que tal ponto de vista
constituiria uma autonomia procriadora, enquanto direito de personalidade. Dworkin, ao seu
turno, acredita que o caso Casey esteja aberto a contestações, já que um período de 24 horas
poderia ser sensato para deliberar acerca da compra de uma arma de fogo (por exemplo), mas
não para o ato de abortar, já que existiriam métodos mais eficazes de se incitar a
responsabilidade.
Dworkin tenta uma outra argumentação, segundo a qual existe o que convencionou denominar
lar textual para a ideia de proteção ao direito de uma mulher à autonomia procriadora, na
Primeira Emenda à Constituição Norte-Americana7 (que protege a liberdade religiosa). O
7
Em livre tradução, extraída da obra Life’s dominion: an argument about abortion, euthanasia & individual
freedom, de Ronald Dworkin (1993, p. 13): “O congresso não deve fazer leis a respeito de se estabelecer uma
903
autor afirma que se trata de uma defesa viável do instituto em comento, uma vez que sustenta
que a crença em um Deus não pode ser exigida para que alguém obtenha a proteção da
mencionada Primeira Emenda, já que no famigerado caso Seeger v. United States, um homem
que se opôs à guerra com fulcro em princípios éticos gerais – e que era ateu – teve
reconhecido o direito de dispensa em relação ao serviço militar, sob o amparo de uma
legislação que restringia as hipóteses de dispensa a motivos religiosos. Assim, restou claro
que, para Dworkin, a Primeira Emenda exige tão somente que o Estado não interfira no
arbítrio dos cidadãos. Em livre tradução:
Não consigo pensar em qualquer compreensão plausível do conteúdo que uma crença deve
ter para que seja considerada religiosa, ao ponto de excluir convicções acerca de como a
vida humana tem importância intrínseca objetiva, exceto a noção abandonada de que uma
crença religiosa deve pressupor Deus (DWORKIN, 1993, p. 163).
Considerações finais
Dworkin, que faleceu em fevereiro do corrente ano, dedicou grande parcela de seus esforços
intelectuais no desenvolvimento de sua teoria substantiva de justiça, deixando como legado
uma sofisticada concepção descritiva de pressupostos políticos. Em diversos manuscritos
reunidos em sua obra, Virtude Soberana, Dworkin apresenta a sua teoria política do
liberalismo igualitário, onde demonstra como as instituições norte-americanas podem ser
mais bem avaliadas do ponto de vista da igualdade de recursos, e não do bem-estar. Adiante,
enfatizou como a liberdade e a igualdade são conceitos metafisicamente incomensuráveis, de
maneira a sustentar que ambos os conceitos permitem, recomendam e autorizam uma
hermenêutica reconciliadora e integradora dos institutos jurídico-sociais.
religião, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito
das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações por
ofensas”.
904
Dworkin não mediu esforços no sentido de reconstruir uma filosofia política integradora,
ressaltando que este não era o único “passo” que deveria ser dado rumo à sua sedimentação,
bem como da Moral, do Direito e da Ética. Aliás, deixou-nos a grande missão de perpetuar (e
aprimorar) tal empreitada, em franca ressignificação da metáfora da filosofia de porco-
espinho, imortalizada por Arquíloco8 (2011, p. 28), segundo o qual “a raposa conhece muitas
coisas, mas o porco-espinho conhece uma só e muito importante”. Dworkin, como bem
sugeriu Isaiah Berlin (2010, p.72), “é o porco-espinho que enfrenta as objeções da raposa (...)
em Virtude Soberana e também em Justiça para porcos-espinhos”.
Referências
DWORKIN, Ronald. Life’s dominion: an argument about abortion, euthanasia & individual
freedom. 1ª edição. Nova Iorque: Knopf, 1993.
__________. Virtude soberana. Tradução de Luís Carlos Borges. 1ª edição. São Paulo: Wmf
Martins Fontes, 2008.
8
Poeta lírico e soldado grego que viveu na primeira metade do século VII a.C.
905
EAGLETON, Terry. Depois da teoria. Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-
modernismo. Tradução de Silvana Vieira. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Tradução de Luís Carlos Borges. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010.
906
907
Fundamentalismo X Neo-Ateísmo: eixos da guerra de culturas nos
Estados Unidos
Roney de Seixas Andrade1, Ivan Dias da Silva2
Introdução
Em seu livro Culture War: the struggle to define America, publicado em 1991, o norte-
americano James Hunter, sociólogo da cultura, desenvolveu o argumento segundo o qual “os
EUA estão em meio a uma guerra de cultura que tem e continuará tendo reverberações não
apenas em relação às políticas públicas, mas sobre a vida ordinária dos americanos, estejam
onde estiverem” (HUNTER, 1991, p. 34). Hunter nos faz saber que ele mesmo define guerra
ou “conflito cultural muito simplesmente como hostilidade social e política enraizada em
diferentes sistemas de entendimento moral. A finalidade às quais tendem estas hostilidades é a
dominação de um ethos cultural e moral sobre todos os outros” (HUNTER, 1991, p. 42).
De acordo com a opinião desse sociólogo, esta guerra ou conflito de cultura em curso traz
consigo um novo realinhamento dos antigos conflitos culturais próprios da história norte-
americana e que envolveram protestantes, católicos, judeus e mórmons ao longo do século
XIX e início do séc. XX. Segundo Hunter, esses antigos conflitos, que tinham um caráter
teológico ou eclesiástico, foram em grande medida removidos da experiência americana
contemporânea, devido justamente à expansão da tolerância cultural, do pluralismo religioso e
das orientações seculares. Entretanto, vale destacar que os princípios e ideais que fundavam as
opções dos diferentes atores desses conflitos, possuíam um caráter de ultimatum. Por isso
mesmo, não eram considerados simples disposição do espírito que poderia ser modificada ou
revogada. Eram considerados verdades reveladas e irrevogáveis, exigências últimas que
constituíam fonte de identidade, propósito e comunhão para as pessoas que viviam em
consonância com eles (HUNTER, 1991, p. 42).
A novidade agora, neste novo realinhamento de conflitos, é que as divisões não refletem mais
desacordos teológicos ou eclesiásticos, ou seja, questões de doutrina, de observância dos
rituais e organização religiosa. Segundo Hunter, os desacordos tradicionais entre as referidas
1
Doutorando e mestre em Ciência da Religião no PPG em Ciência da Religião da UFJF. Bolsista da CAPES.
Orientador: Wilmar do Valle Barbosa. Contato: roneyseixas@yahoo.com.br.
2
Doutorando e mestre em Ciência da Religião no PPG em Ciência da Religião da UFJF. Bolsista da CAPES.
Orientador: Wilmar do Valle Barbosa. Contato: privandias@hotmail.com.
908
denominações religiosas foram basicamente resolvidos, no início do século XX, através de
acordos forjados com base nos simbolismos e no imaginário do teísmo bíblico. Todavia, esses
acordos tornaram-se inócuos, paulatinamente.
Neste novo contexto ao qual estamos nos referindo, os conflitos e divisões, bem como suas
expressões culturais e políticas, não decorrem mais das diferenças de caráter teológico e
eclesiástico, como já dissemos. São agora resultantes de diferentes visões de mundo e
concepções acerca do fundamento da autoridade moral.3 De acordo com Hunter, tais divisões
e conflitos não se dão mais, basicamente, em torno de questões específicas de doutrinas ou de
estilos de práticas e organizações religiosas, mas “em torno de nossa mais fundamental e
estimada compreensão acerca do como ordenar nossas próprias vidas e nosso vida conjunta
nesta sociedade. Nossas ideias mais fundamentais acerca de quem somos como americanos
estão agora em desacordo” (HUNTER, 1991, p. 42).
São justamente as diferentes e opostas visões de mundo, bem como as diferentes e também
opostas razões que fundam os juízos, as escolhas e as verdades morais que se encontram na
base da clivagem entre os diferentes segmentos que atuam nesta contemporânea guerra de
cultura. Segundo Hunter, esta clivagem é tão profunda que atravessa as antigas linhas de
conflito, fazendo com que a distinção que durante tanto tempo dividiu os americanos – entre
protestantes, católicos e judeus – seja hoje em dia praticamente irrelevante. As clivagens que
atualmente demarcam os territórios (simbólicos) nesta guerra de cultura são definidas e
analisadas por este sociólogo da cultura a partir de dois movimentos polares que ele qualifica
3
Com o termo “autoridade moral”, Hunter designa “as bases pelas quais as pessoas determinam se algo é bom
ou mau, certo ou errado, aceitável ou não aceitável, e assim por diante” (HUNTER, 1991, p. 42).
909
como impulse toward orthodoxy (impulso em direção à ortodoxia) e impulse toward
progressivism (impulso em direção à progressividade). De acordo com Hunter, o sistema de
crenças ou a visão de mundo em direção à ortodoxia define-se “pelo compromisso por parte
de seus adeptos com uma autoridade externa, definível e transcendente, uma autoridade que é
suficiente para todos os tempos”. Por outro lado, no âmbito de uma postura progressista,
A autoridade moral tende a ser definida pelo o espírito da era moderna, um espírito do
racionalismo e do subjetivismo. Deste ponto de vista, a verdade tende a ser vista como um
processo, como uma realidade que está sempre se desdobrando. O que toda visão de mundo
progressista tem em comum é a tendência a resimbolizar as crenças históricas de acordo
com os pressupostos predominantes da vida contemporânea (HUNTER, 1991, p. 44).
Todavia, essas qualificações não nos devem levar ao erro de interpretar a guerra de cultura em
curso apenas como uma expressão de diferentes opiniões ou atitudes, sobre esta ou aquela
questão. Como destaca Hunter, esta guerra articula-se a partir de “concepções
fundamentalmente diferentes de autoridade moral, sobre diferentes ideias e crenças sobre a
verdade, o bem, as obrigações com o outro, a natureza da comunidade, e assim por diante”.
Além disso, ela se configura, em última instância, como “uma luta acerca da identidade
nacional – sobre o significado da América, o que fomos no passado, o que somos agora e,
talvez o mais importante, o que nós, como uma nação, aspiramos nos tornar no novo
milênio”, conclui o sociólogo (HUNTER, 1991, pp. 49-50).
Com base nos conceitos propostos por James D. Hunter passamos a analisar dois movimentos
antagônicos que tipificam perfeitamente a guerra de cultura em curso no âmbito da esfera
pública norte-americana. De um lado, analisaremos a vertente fundamentalista através do
estudo de caso Jerry Falwell e a Maioria Moral. Do outro, o atual movimento dos novos
ateístas. Em nosso entendimento, ambos os movimentos se configuram como atores deste
novo realinhamento do conflito ou guerra de cultura que podem ser respectivamente incluído
no rol dos grupos e instituições políticas e culturais que se pautam por “impulsos em direção à
ortodoxia” e por “impulsos em direção à progressividade”.4 Nesta perspectiva, podemos
afirmar que presença do neo-ateísmo neste cenário constitui uma contrapartida ao discurso
4
Muito embora os atores neo-ateístas sejam incluídos aqui numa posição contrária à ortodoxia devido a suas
posturas secularistas e, como a maioria dos secularistas, sua tendência seja mesmo “progressista”, Hunter
observa que nos EUA existem secularistas que eventualmente se deixam orientar por uma perspectiva ortodoxa
ou conservadora. Isto ocorre, por exemplo, quando há um compromisso com a lei natural ou quando há uma
“concepção elevada da natureza que serve como um equivalente funcional da autoridade moral externa e
transcendente, reverenciada por sua contraparte religiosamente ortodoxa” (HUNTER, 1991, p. 45-46).
910
moral fundado numa perspectiva bíblico-religiosa e às suas emulações políticas, tal como
expresso pela Maioria Moral.
O caso para o qual se volta nossa olhar é o chamado movimento da Nova Direita Religiosa
fundamentalista norte-americana, em curso no cenário político dos EUA, e que, entre os anos
de 1979 e 1989, foi conduzido pela organização de lobby político denominada Moral Majority
(“Maioria Moral”), com a destacada liderança de Jerry Falwell, seu co-fundador. Em sua
tentativa de impor uma agenda teológico-política à sociedade civil e à esfera pública norte-
americana, a referida organização interdenominacional utilizava-se de argumentos morais e
ações políticas baseados em pressupostos teológicos.
5
The Nation. Disponível em: < http://www.thenation.com/article/agent-intolerance > . Acesso em: 29 de outubro
de 2011.
6
Christopher Hitchens with Anderson Cooper on Death of Falwell (2007). Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=umVp2L82nPY> Acesso em 01 de agosto de 2013. Mathew BALAN.
Disponível em: <"CNN's Memoriam to Falwell: The Hateful Rhetoric of Christopher Hitchens"
http://newsbusters.org/node/12792>. Acesso em 29 de outubro de 2011.
911
As origens da Maioria Moral podem ser reconduzidas a 1976, quando Falwell iniciou uma
série de conferências por todos os EUA sob a rubrica de “Eu Amo a América”. Seu objetivo
nesta ocasião foi tentar despertar a consciência da população norte-americana para questões
que ele considerava importantes a partir de seu próprio ponto de vista fundamentalista
(LIEBMAN & WUTHNOW, 1983, p. 58). Estas conferências foram, na realidade, uma
consequência da decisão de Falwell de posicionar-se contra o princípio tradicional batista da
separação entre igreja e estado. De acordo com Allitt, Falwell teria mudado sua opinião em
relação a este princípio ao constatar o que considerou ser a decadência da moralidade em sua
própria nação (ALLITT, 2003, p. 152). Por meio de suas conferências, Falwell conseguiu
alcançar apoio nacional para criar uma organização formal, ao mesmo tempo em que ganhava
prestígio como alguém dotado de forte perfil de liderança. Por já ter experiência na
administração bem-sucedida de entidades para-eclesiásticas, em poucos anos ele encontrou-se
numa situação favorável para organizar a Maioria Moral (MARTIN, 1996, pp. 201-202).
Outro fator que contribuiu para o surgimento formal desta entidade foi o conflito que teve
lugar em 1978 pelo controle do Christian Voice, o grupo considerado o primeiro agente
organizador da Nova Direita Religiosa norte-americana. Durante uma conferência jornalística,
Robert Grant, fundador desta entidade, afirmou que a Nova Direita Religiosa era “uma farsa
... controlada por três católicos e um judeu.” Por razões próprias, Paul Weyrich, Terry Dolan,
Richard Viguerie (os católicos) e Howard Phillips (o judeu) deixaram o Christian Voice. Em
seguida, e durante um encontro em 1979, na cidade de Lynchburg, Weyrich, Phillips
juntamente com Ed Mcateer e Robert Billings, encorajaram Falwell a fundar a Moral
Majority (expressão cunhada por Weyrich). Martin descreve a conversação entre estes atores
religiosos com as palavras mesmas de Paul Weyrich, tal como segue:
Eu disse [a Falwell], ‘Lá fora há o que alguém pode chamar de uma maioria moral –
pessoas que concordariam com princípios baseados no Decálogo [os Dez Mandamentos],
por exemplo – mas eles estão separados por diferenças geográficas e denominacionais o
que os levou a votar de forma desunida. A chave para qualquer tipo de impacto político é
unir essas pessoas de alguma maneira, para que elas possam ver que estão lutando pela
mesma coisa e precisam estar juntas’. Falwell me interrompeu e disse, ‘Volte ao que você
mencionou antes.’ Eu o entendi mal e comecei a dizer algo, e ele interpelou-me, ‘Não, não!
Você estava dizendo que há algo lá fora ... Como você o chamou? Eu tentei lembrar o que
havia dito, e finalmente afirmei, ‘Ah, eu disse que há uma maioria moral. ’ E ele declarou:
‘É isso!’ (...) ‘Esse é o nome da organização’. E foi desta forma que a Maioria Moral
recebeu o seu nome (MARTIN, 1996, p. 200).
912
A Nova Direita Religiosa objetivava reagir à ameaça do pluralismo de crenças e de estilos de
vida vistos, então, como ameaçadores e como vetores da descristianização de uma América
organicamente judaico-cristã. No final da década de 1970 e nos dez anos que se seguiram,
diferentes segmentos estavam cada vez mais publicamente preocupados com o fato da nação
norte-americana ter se afastado muito rapidamente de suas raízes e valores culturais e
religiosos tradicionais em torno dos quais gravitavam a família, o lar e a igreja. Segundo
Donaldson estes segmentos “concebiam que sua nação estava sendo destruída por crimes,
conflitos raciais, pornografia, ateísmo e uma queda geral em imoralidade” (DONALDSON, p.
289).
É nesse contexto que emerge a Maioria Moral, guiada por um ideal teológico-político e uma
orientação eminentemente ativista. Martin e Appleby afirmam que
A primeira onda desse novo ativismo teológico-político visou a ‘recuperação’ dos tribunais,
escolas e Congresso, então em posse dos ‘humanistas secularizados’ (e, presumidamente,
desejava vencê-los ou ao menos diminuir seu papel na vida pública), e foi extremamente
ativa durante a presidência de Reagan seguindo uma estratégia pautada pelo uso de pressão
a nível nacional (MARTY & APPLEBY, 2004, p. 452).
Apesar de ter uma orientação religiosa e cultural característica do Sul dos EUA, a Maioria
Moral desenvolveu sua atividade política como uma organização nacionalmente estruturada,
através de divisões estaduais. Estas divisões desenvolveram-se rapidamente e, um ano após o
estabelecimento da entidade, o movimento já contava com representações em dezoito estados.
Na década de 1980, Jerry Falwell tornou-se o porta-voz mais conhecido da organização, que
tinha católicos e judeus em seu staff (apesar da discordância de alguns cristãos integrantes do
grupo). A sede da Maioria Moral era em Lynchburg, na Virgínia, a mesma cidade onde
Falwell foi o pastor-presidente da Thomas Road Baptist Church, a maior igreja batista
independente dos EUA. O auge da influência da Maioria Moral se deu durante meados da
referida década, quando afirmava possuir mais de quatro milhões de membros e cerca de dois
milhões de doadores (WILCOX & ROBINSON, 1992, p. 96).
913
Para mobilizar os cristãos (e outros religiosos) que compartilhavam dos pontos de vista da
Maioria Moral, Falwell estimulou-os a se familiarizarem com a forma e com os processos de
trabalho do governo, desde suas esferas mais simples e locais até à presidência da República.
Por sua vez, os integrantes desse grupo foram incentivados a participar de encontros distritais,
municipais e estaduais de partidos políticos, e a considerar a possibilidade de tornarem-se eles
mesmos delegados em convenções partidárias. Falwell reconhecia que participar da arena
política de modo tão explícito constituía um desafio direto ao pietismo evangélico, que
tradicionalmente orientava-se não apenas por práticas devocionais disciplinadas e rigorosos
padrões de moralidade pessoal, mas também por uma postura geral de “separação do mundo”
teologicamente justificada. Uma grande conquista da Maioria Moral foi o fato de que, em um
curto espaço de meses, toda essa orientação religiosa anterior foi desfeita e os
fundamentalistas começaram a se envolver ativa e intensamente na política dos EUA
(MARTIN, 1996, p. 201-202).
Sendo assim, não deve ser motivo de surpresa esse envolvimento promovido pela Maioria
Moral. Contudo, o estudo do referido caso revela, igualmente, um ineditismo no âmbito da
vida democrática norte-americana, a saber: um novo tipo de clivagem que assinala profundas
modificações no espaço público e na própria democracia enquanto expressão política do
Estado-Nação. Segundo Laura Olson,
914
permanentes – clivagens políticas. Mais significante, os indivíduos que participam
frequentemente de uma religião organizada apresentam notoriamente mais pontos de vista
conservadores do que os cidadãos mais secularizados. A emergência dessas diferenças
políticas estimulou o pensamento acerca do papel que o governo deve desempenhar no
apoio a pontos de vista morais competitivos, especialmente quando eles estão fortemente
ligados a perspectivas religiosas particulares (OLSON, 2007, p. 148).7
Essa nova realidade surge à medida que a democracia deixa de ser um atrator metafísico, uma
reserva supra-ordenada de sentido ético-político para a construção da cidadania, e a religião
transforma-se paulatinamente em um substitutivo dessa mesma reserva (GAUCHET, 1998).
No entanto, nesse renovado contexto, a religião não se reconstitui apenas como mais um
substitutivo. Ela está em processo de se recompor também pela via político-partidária. Dessa
feita, a religião confronta-se com o problema da democracia através dos instrumentos da
própria democracia, que são os partidos políticos, e, dentro deles, os atores principais
posicionam-se com um objetivo claro: levar os ensinamentos bíblicos para dentro do
Congresso e da Casa Branca, ou seja, fazer com que orientações religiosas ultrapassem o
ambiente intra ou interconfessional e passem a fundamentar as normas eletivas e prescritivas
da sociedade civil e a sociedade política como um todo.
Tendo em vista esse cenário, somos do parecer que essa clivagem traduz um profundo
conflito entre diferentes sistemas de entendimento moral e religioso, agora levado a cabo no
âmbito mesmo do espaço público e das instituições político-partidárias e culturais norte-
americanas. Para Hunter, a Maioria Moral é um claro exemplo do conflito cultural nos EUA,
que é resultado de uma “hostilidade política e social enraizada em diferentes sistemas de
entendimento moral em que cada ponto-de-vista deseja dominar os demais” (HUNTER, 1991,
p. 42).
7
O itálico é nosso.
915
fundamental é sobre como iremos ordenar nossa convivência; é, em essência, uma ‘luta para
definir o sentido da América’” (DJUPE & OLSON, 2003, p. 130).
Mas isto não é tudo. Mais uma vez Djupe e Olson afirmam que,
outra razão pela qual o conflito é significante é por se desenvolver entre ativistas políticos e
elites culturais e, portanto, tal conflito domina o diálogo e debate públicos. (...) A maior
parte da população ‘ocupa um amplo ponto intermediário entre os impulsos extremos e,
então, não é participante ativa na guerra cultural. O conflito é significante para a cultura
norte-americana não por sua amplitude, mas, antes, por causa de seu destaque – é um
conflito entre elites culturais e ativistas políticos defendendo compreensões do sentido de
nossa existência, e são elas que dominam o debate público. Com a fundação do conflito tão
profunda, com tanto em jogo, e com as elites culturais ocupando posições amplamente
diferentes, o conflito domina o discurso público, um discurso ‘mais polarizado que o
próprio público’ (DJUPE & OLSON, 2003, p. 130).8
8
O itálico é nosso.
916
O Contra-discurso Neo-ateísta
Muito embora os principais livros dos autores denominados de neo-ateístas tenham sido
publicados após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e, mesmo considerando
esse evento como um marco geral para o desenvolvimento e notoriedade do discurso neo-
ateísta, sobretudo nos EUA, entendemos, que o movimento neo-ateísta tem raízes mais
profundas. Somos do parecer que ele emerge como resposta a um momento político e cultural
mais geral, ou seja, ao assim chamado retorno do religioso no espaço público de sociedades
seculares ocidentais. Mais pontualmente, como uma resposta ao ressurgimento político-
cultural do fundamentalismo cristão e sua reinserção no espaço público nos EUA a partir de
1970 anos, quando se assiste à emergência de importantes movimentos e organizações
políticas cristãs tais como a Coalizão Cristã e a Maioria Moral. Tais movimentos
representaram os primeiros passos dados a nível nacional, em direção a atual presença cultural
e político-partidária da nova direita cristã nos EUA, após o processo Scopes, ocorrido em
1925.9
Como indicam Arthur Bradley e Andrew Tate, o neo-ateísmo pode ser visto como uma
resposta político-cultural ao ressurgimento do fundamentalismo protestante norte-americano,
neste cenário de novo realinhamento de velhos antagonismos. Esses autores consideram ser o
fundamentalismo cristão o principal antagonista do neo-ateísmo. Assim sendo, na avaliação
deles,
9
O processo Scopes, ou caso Scopes, foi um julgamento ocorrido em julho de 1925 no Estado norte-americano
do Tennessee – onde o ensino da teoria evolucionista da origem do homem fora proibido pelo Butler Act
aprovado em 21/03/1925 – no qual um professor de biologia chamado John Scopes teve que se defender, em
juízo, da acusação por parte de fundamentalistas de que ensinara a seus alunos a teoria da evolução das espécies
de Charles Darwin. Sobre o processo Scopes, cf. EUVÉ, François. Darwin et le christianisme, vrais et faux
débats. Paris: Buchet Chastel, 2009, p. 95. Ver também: JOHNSON, Phillip E. Darwin no banco dos réus. São
Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 16ss. Sobre o Butler Act, disponível em: <http://creationwiki.org/Butler_Act>.
Acesso em: 12 de novembro de 2012.
917
Harris, por exemplo, afirma no prefácio de sua obra Letter to a Christian Nation que “o
propósito primário do livro é armar os secularistas de nossa sociedade, os quais acreditam que
a religião deve ser mantida fora da política pública, contra os seus oponentes na direita cristã”
(HARRIS, 2006, p. viii). Enquanto Dawkins, ao afirmar que todas as religiões são igualmente
“erradas”, “estúpidas” e “perigosas”, deixa claro que seu principal alvo é quase sempre o
fundamentalismo. Assim sendo, em The God Delusion, ele afirma, por exemplo, que
enquanto cientista ele é “hostil à religião fundamentalista porque ele debocha ativamente do
empreendimento científico. [...] Ela subverte a ciência e mina o intelecto” (DAWKINS, 2006,
p. 321). Mas as diferenças não se limitam a tais questões. Os neo-ateístas criticam e recusam a
legitimidade de toda e qualquer proposta de política pública fundamentada em postulados
contidos em livros sagrados que, como sabemos, são a fonte da verdadeira autoridade moral
para muitos segmentos religiosamente orientados. Consequentemente, só admitem a
legitimidade de políticas consoantes com suas próprias bases de entendimento moral.
Portanto, com base numa visão de mundo que seria objetiva e universal, isto é, com base
também em uma verdadeira autoridade moral, o movimento neo-ateísta propõe cursos de
ação que, no entendimento de seus articuladores, seriam os únicos capazes de recompor as
instituições sociopolíticas em uma perspectiva secularista renovada.10
Além disso, em seus textos, os autores neo-ateístas afirmam reiteradamente que religião
estaria novamente exercendo uma enorme influência na esfera pública, sobretudo no âmbito
da sociedade norte-americana. Segundo o argumento dos neo-ateístas, estaria em curso uma
retomada, um retorno da influência da religião na definição das políticas públicas relacionada
a diferentes agendas, tais como educação, pesquisa científica, entretenimento, família, dentre
outras, que colocaria em risco os ideais democráticos desta sociedade. Sam Harris, por
exemplo, é incisivo em sua crítica à influência da religião na política. Segundo esse autor, “o
grau em que as ideias religiosas ainda determinam as políticas governamentais –
especialmente nos Estados Unidos – representam um grave perigo a todos”. Assim sendo,
continua este neo-ateista, “estas intromissões da escatologia no âmbito das políticas modernas
sugerem que os perigos que a fé religiosa oferece dificilmente podem ser exagerados”. A
conclusão de Harris, portanto, é que a política externa norte-americana como um todo vem
10
Dentre as ações adotas pelo movimento neo-ateísta em relação à influência sociopolítica do cristianismo nos
EUA, encontra-se, por exemplo, a oposição massiva à inclusão da Teoria do Design Inteligente no currículo
escolar das escolas daquele país. Ver: FORREST, Barbara. Understanding the Intelligent Design Creationism
Movement Washington D.C.:Centre for Inquiry, 2007. Ver também: SHANKS, Niall. God, the Devil and
Darwin A Critique of Intelligent Design Theory. Oxford University Press, 2004.
918
sendo fortemente influenciada pela agenda política da christian right (HARRIS, 2004, p. 153-
154).
Considerações finais
Essas críticas neo-ateístas sobre a influência da religião no âmbito das sociedades seculares,
leva-nos a considerar uma questão importante, em nosso entendimento: a aparente
contradição entre dois discursos conflitantes. De um lado, o discurso do fundamentalismo
protestante norte-americano, no qual é reforçada sistematicamente a constatação da perda da
influência do cristianismo no âmbito da esfera pública daquele país. Por outro lado, o discurso
neo-ateísta – que se configura como um contra-discurso ao fundamentalismo – no qual é
expresso o sentimento da perda da relevância dos ideais secularistas diante do suposto retorno
da influência religiosa no espaço público das sociedades seculares. Diante dessas diferentes
percepções sobre o lugar e o papel da religião no espaço público podemos nos perguntar:
estamos vivendo um momento pós-cristão, momento de perda de eficácia organizadora da
religião sobre a vida da sociedade, como parecem sugerir os fundamentalistas, ou estamos em
um momento pós-secular, momento de potencialização desta mesma eficácia, como sugerem
os atores ligados ao movimento neo-ateísta? Mas, quem sabe, estamos vivenciando a
coexistência desses dois momentos?
Segundo o filósofo francês Marcel Gauchet, o mundo contemporâneo assiste a duas dinâmicas
simultâneas e co-constitutivas: um processo em andamento de “saída da religião,
compreendida como saída da capacidade do religioso em estruturar a política e a sociedade”
como um todo, e a um processo de “permanência do religioso na ordem da convicção última
dos indivíduos, observando nesse terreno um amplo espectro de variações, segundo as
experiências históricas e nacionais muito amplas” (FERRY & GAUCHET, p. 2008, p. 41).
919
devido a motivos históricos”, como na Irlanda, Polônia ou Grécia (GAUCHET, 2004, pp. 11-
13). Por outro lado, a saída da religião “não significa desaparição de qualquer experiência do
tipo religioso”. Muito ao contrário, “significa desprendimento da organização da realidade
coletiva segundo o ponto de vista do outro, porém desprendimento que faz aparecer a
experiência subjetiva do outro como um resto antropológico talvez irredutível” (GAUCHET,
1985, p. 233).
A levar em consideração as análises de Marcel Gauchet, podemos perceber que os EUA estão
presenciando a coexistência de dois momentos que operam simultaneamente. De um lado, um
momento pós-cristão, que pode ser visto como uma etapa de saída da religião, ou seja,
momento de grande inflexão da capacidade organizadora do cristianismo sobre a totalidade da
vida social norte-americana. Por outro, uma permanência e até mesmo uma intensificação das
crenças religiosas, as quais muito embora possuam um papel social importante como acontece
neste país, não constituem mais a única reserva de sentido e de fundamentos para os
indivíduos e para o estar–junto coletivo. Desde o momento em que a religião deixa
efetivamente de constituir a fonte das fontes organizadoras das instituições sociopolíticas e
culturais e de operar como matriz da lei e como fundamento exclusivo da autoridade moral,
passamos a vivenciar um definitivo deslocamento do ponto de aplicação da religião em nossas
sociedades, não obstante o atual retorno do religioso, como afirmam uns, ou o
reencantamento do mundo, como desejam outros. Assim sendo, ela se torna apenas mais uma
reserva de sentido dentre outras a fundamentar as convicções últimas dos indivíduos.
Finalmente, é importante ressaltar que processo de clivagem no âmbito das elites político-
culturais e religiosas norte-americanas que estamos a presenciar decorre justamente deste
deslocamento do ponto de aplicação histórico da religião. Como vimos, este processo tem
gerado um novo tipo de conflito no espaço público dos EUA, o qual, por sua vez, tem dado às
controvérsias entre neo-ateístas e fundamentalistas cristãos a dimensão de uma guerra de
cultura.
920
Referências
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WILCOX, Clyde. God’s warriors. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992.
922
923
O legado fundamentalista do Seminário Teológico de
Westminster: reformistas x reconstrucionistas
Andréa Silveira de Souza1
Introdução
HUNTER, 1990, p. 60
No contexto deste conflito, que é novo, pelo menos na história norte-americana, interessam-
nos grupos religiosos evangélicos fundamentalistas que se antagonizam no espaço público-
político. Eles representam não apenas denominações religiosas que defendem internamente
seus princípios teológicos e eclesiásticos, mas, sobretudo, correntes que disputam
1
Doutoranda em Ciência da Religião pela UFJF. Mestre em Filosofia pela UFG e graduada em Filosofia pela
UFU. Bolsista da CAPES. Orientador: Prof. Dr. Wilmar do Valle Barbosa. Contato:
andrea_silveira@yahoo.com.
924
publicamente tendências ideológico-políticas, a partir de visões de mundo fundadas numa
ética e numa moral religiosa e bíblica.
Entre estes grupos atuantes na arena política norte-americana, interessam-nos duas correntes
evangélicas fundamentalistas, a reformista e a reconstrucionista que, embora originadas no
contexto do Seminário Teológico de Westminster, e fundamentadas teológica e
filosoficamente no pensamento do teólogo reformado Cornelius Van Til, assumem posições
antagônicas na esfera pública. A análise do discurso dessas correntes fundamentalistas é
objeto de estudo de uma das pesquisas que vem sendo desenvolvidas no grupo de pesquisas
em fundamentalismo evangélico norte-americano no Programa de Pós-graduação em Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O objetivo de nossa pesquisa é a análise dos elementos teológicos e políticos que dão vida e
que marcam o antagonismo entre as correntes fundamentalistas reformista e reconstrucionista.
Neste sentido, buscamos verificar como estas duas perspectivas, que se alimentam da mesma
fonte teológico-filosófica, o pensamento vantiliano, com vieses em seu antecessor Abraham
Kuyper, interpretam este pensamento de maneira tão distinta e concebem duas formas opostas
de abordagem e inserção religiosa, sociopolítica e cultural. O intuito de nossa pesquisa é
verificar, por meio da análise do discurso, como essas duas correntes fundamentalistas
interpretam, porque assim interpretam, e também como e porque estabelecem suas ações
sociais e políticas de maneiras opostas, tendo como base uma mesma perspectiva teológica.
Destacamos que a pesquisa encontra-se em andamento, portanto, apresentamos aqui
apontamentos que não se pretendem conclusivos, são resultados parciais e, sobretudo,
hipóteses de uma pesquisa em curso.
O fundamentalismo, enquanto corrente teológica, tem sua origem nos Estados Unidos, no
final do século XIX e início do século XX, o que o caracteriza como um fenômeno
originalmente cristão, protestante e norte-americano2. Segundo Marsden (1991, p. 1),
2
“Embora o termo ´fundamentalista` tenha sido inventado nos Estados Unidos em 1920 aplicado aos militantes
evangélicos, nos últimos anos tem sido aplicado por analogia a qualquer religião militante tradicionalista, assim
como o fundamentalismo islâmico” (MARSDEN, 1991, p.1).
925
[...] um fundamentalista americano é um evangélico militante em oposição à teologia
liberal nas igrejas ou às mudanças nos valores culturais ou morais, tal como aqueles
associados com o “humanismo secular”. Seja nas definições longas ou curtas,
fundamentalistas são um subtipo de evangélicos e a militância é crucial para sua
perspectiva. Fundamentalistas não são apenas religiosos conservadores, eles são
conversadores dispostos a assumir uma bancada e lutar. [grifos meus]
3
“O caráter teológico fundamental dos modernos fundamentalismos religiosos — sem esquecer que também há
outros — é o oposicionismo. Em todo e qualquer contexto, o fundamentalismo começa a tomar forma quando os
membros de movimentos já conservadores ou tradicionais se sentem ameaçados” (MARTY, 1992, p. 333).
4
“Protestantes americanos tem geralmente mantido uma das três visões do final dos tempos — pós-milenarista,
pré-milenarista ou amilenarista. Pós-milenaristas geralmente acreditam que Deus está trabalhando através da
história, preparando a terra para o Milênio, que é o reinado de 1000 anos de Cristo na terra. Pré-milenarismo […]
é a crença que a terra se tornará cada vez pior até o retorno de Cristo. Só então, com o Seu Retorno sobrenatural,
será a aurora do milênio. Amilenarismo é a crença que as passagens apocalípticas da escritura discutindo um
reinado milenar de Cristo na terra não são para ser tomadas literalmente. Amilenaristas, portanto, não são dados
à especulação tampouco se interessam pelo fim dos tempos” (HANKINS, 2009, p. 84).
926
resultam do legado de um dos importantes expoentes no cenário religioso norte-americano, o
Seminário Teológico de Westminster, bem como do pensamento de um mesmo teólogo. Mas
no que reside a importância de Westminster?
O seminário foi fundado em 1929, na Filadélfia, por alguns teólogos dissidentes do Seminário
Teológico de Princeton. Westminster foi criado com a incumbência de ser o berço, por
excelência, da ortodoxia protestante de denominação presbiteriana nos Estados Unidos, bem
como de salvaguardar o impulso à ortodoxia no campo do conflito cultural e garantir uma
perspectiva fundamentalista para o ensino e para a própria igreja presbiteriana. Neste sentido,
Westminster formou várias gerações de intelectuais e ministros religiosos que, seja pela
pregação, pela docência e produção intelectual ou pela militância pública em favor do
conservadorismo religioso, tiveram grande influência na cultura política e religiosa norte-
americana.
Van Til teve seu pensamento significativamente influenciado pelo neo-calvinista holandês
Abraham Kuyper. A concepção teomórfica de homem elaborada por este teólogo, baseada na
oposição entre regenerado e não-regenerado como condição de conhecimento de Deus e da
verdade, na aceitação da noção de graça comum e na centralidade do pressuposto em oposição
ao fato, foram definitivas para a apologética vantiliana e para a construção da identidade
teológica do seminário. Abordaremos agora alguns aspectos relevantes da teologia de Van Til,
uma vez que são essenciais para compreendermos de que maneira eles podem ser norteadores
dos princípios e práticas adotados pelas correntes fundamentalistas em estudo.
927
2. O pensamento de Cornelius Van Til: as bases teológico-filosóficas dos reformistas e
reconstrucionistas
O método que orienta, e a partir do qual se desenvolve toda a teologia de Van Til, é a
apologética pressuposicionalista. Para Van Til, a existência de Deus é um pressuposto, de
maneira que não compete ao homem buscar provas empíricas desta existência, pois essa busca
equivale a ir contra a própria condição humana de conhecimento. No seu entendimento, para
comprovar a existência de Deus, seja pelos fatos, seja pela ciência, os indivíduos colocam em
primeiro plano a razão, relacionando por meio do raciocínio a existência de Deus e as
demonstrações materiais. Van Til refuta esta tese, ponderando que ao colocar a razão e a
autonomia humana como fim último para provar a existência de Deus e a verdade do texto
sagrado, a criatura coloca-se em condição superior ao próprio criador. A autonomia coloca o
ser humano em condições de estabelecer a verdade ou falsidade do que quer que seja. Isto
significa que, para Van Til, tentar provar (ou não) a existência de Deus, e a verdade da
Escritura pela por argumentos e princípios da razão humana, nada mais é que colocar a
criatura como o fundamento último e universal, daquilo que, na verdade, tem por princípio
inquestionável e irrefutável, Deus.
Para Van Til, a compreensão que o homem tem de si e do mundo está condicionada à
interpretação que ele tem de Deus6. Somente pela fé aquele que crê tem a possibilidade de
conhecer o Absoluto e de compreender a verdade da Escritura e do mundo, pois tem a
divindade como fundamento para a sua interpretação. Neste sentido, os incrédulos têm a sua
5
“Esta visão de Van Til da Escritura corresponde a, é derivada de, e está implícita em sua concepção teísta
particular de Deus, e é evidente também em sua teoria da inspiração autográfica e infalível” (STELT, 1978, p.
248).
6
“O que torna o método de raciocínio por pressuposição possível é precisamente essa estrutura analógica da
realidade, do sistema de conhecimento do homem dever ser ‘uma réplica analógica do sistema de conhecimento
que pertence a Deus’. A consistência do crente deve, portanto, refletir ou corresponder à consistência (interna) de
Deus” (STELT, 1978, p. 237).
928
compreensão de mundo distorcida, pois colocam como fim último desta compreensão a
própria subjetividade, baseada na autonomia e na liberdade da criatura em relação ao criador,
realizando assim, uma interpretação da Escritura a partir do conjunto de valores mundanos e
não dos valores cristãos. Para Van Til, todo e qualquer conhecimento que tenha como
fundamento e princípio o indivíduo e não a divindade, não é um conhecimento verdadeiro.
Van Til acredita que o livre-arbítrio, enquanto possibilidade de escolha entre crer e não crer,
não constitui um fundamento, posto que a descrença compromete, além da salvação do
indivíduo, as suas condições de conhecimento. Desta feita, o conhecimento de Deus, como
pressuposto da crença na sua palavra contida na Bíblia, e do agir segundo as regras do livro,
constitui a verdadeira condição de possibilidade do conhecimento7. Deste modo, é a partir de
um teísmo pressuposicionalista que a teologia vantiliana atrela a infalibilidade da Escritura e
as condições humanas de conhecimento à pressuposição da existência de Deus, colocando
este último como fundamento da verdade universal8 e, por conseguinte, desqualificando e
combatendo a perspectiva cientificista moderna.
A implicação imediata destes princípios é que toda e qualquer forma de conhecimento seja
possível somente pela graça de Deus, que tendo criado o homem à sua imagem e semelhança,
dotou-o da capacidade de conhecer, entretanto, dentro dos limites da sua condição humana de
criatura. Van Til é taxativo ao dizer que, enquanto criatura, o ser humano não possui
autonomia para questionar a existência do criador, a sua palavra ou a sua criação, buscando
respostas fora da palavra de Deus por meio da ciência, e que esta nada mais é do que uma
mera criação humana cujos fundamentos são valores mundanos, falsos e desprovidos de
verdade. Para ele, a própria condição humana não admite que a criatura coloque a si mesma
como fundamento último. Segundo Stelt (1978, p. 255), “Van Til afirma que a sua visão da
realidade e da Escritura é cristocentrada [...]”, isto quer dizer que toda condição que o homem
possui para obter conhecimento verdadeiro passa, necessariamente, pela sua condição de
criatura e de crença no cristianismo evangélico.
929
pecado para o conhecimento da verdade9. Segundo Kuyper, a presença do pecado compromete
a condição de conhecimento da verdade, mas não somente no que concerne à teologia ou à
escritura, mas a todo e qualquer tipo de conhecimento, inclusive o científico. O pecador, isto
é, aquele que age contra os princípios e valores cristãos e as normas da escritura, possui uma
visão de mundo corrompida. Ele acredita na existência de dois sistemas de vida, antagônicos
entre si e que determinam toda a visão de mundo do indivíduo. Para Kuyper, um sistema de
vida é um princípio abrangente e que permeia todas as esferas da vida.
Kuyper acredita que o sistema de vida secularizado, aquele representado pelo modernismo
humanista, é permeado pelo pecado. O efeito do pecado no homem é tal e qual a um
“escurecimento da nossa consciência” (HARRIS, 1998, p. 210), fazendo com que em virtude
de sua concepção de vida e de mundo, o pecador possua apenas condições limitadas de
conhecimento. Conclui-se então que, para Kuyper, o pecador não possui as qualidades
ontológicas para um conhecimento verdadeiro, seja de Deus, da natureza ou dos próprios
seres humanos.
Diante desta antítese, que coloca duas visões de mundo opostas em consequência da
influência do pecado, a epistemologia de Kuyper apoia-se em uma noção dicotomizada do
homem, da vida, da consciência humana e da ciência. Mas estas duas visões de mundo não
são apenas visões, mas dois sistemas de vida “que estão em combate mortal” (KUYPER,
2004, p. 19), isto porque, cada visão de mundo corresponde a um sistema de vida que, por sua
vez, caracteriza certo tipo de ser humano. Por conseguinte, de dois sistemas de vida equivale a
dois tipos de ser humano “constitutivamente diferentes um do outro” (KUYPER Apud
HARRIS, 1998, p. 211).
930
importantes da teologia de Van Til, a noção kuyperiana de graça comum. A partir desta
noção, ele assevera que o Criador concede a todos os homens a graça da regeneração. Assim
sendo, os ímpios, tal como os regenerados, também são redimidos do pecado pela graça
divina, tornando-se a partir de então capacitados para o conhecimento e ação orientada pela
verdade da fé cristã.
Segundo Harris (1998, p. 262), “atualmente os evangélicos estão tentando dar uma
perspectiva cristã a áreas da vida que, no início deste século, tinham deixado à própria sorte.
Eles efetuaram um ‘deslocamento natural’ em seu pensamento”. Utilizando-se das próprias
palavras de Dean e Porter (1984:10 Apud HARRIS, 1998, p. 262), Harris complementa sua
argumentação afirmando ser
931
[...] ligeiramente simplista (mas ainda válido) ver no período a partir da Segunda Guerra
Mundial ao final dos anos 60, uma ênfase particular no cristianismo e ciência; de meados
dos anos 60 a meados dos 70, uma ênfase no cristianismo e nas artes; [sic] e de meados dos
anos 70 até o presente, uma ênfase no cristianismo e questões sociais e políticas.
Nos Estados Unidos, um dos mais proeminentes expoentes da corrente reformista foi Francis
Schaeffer10, que teve seu trabalho influenciado pelo pensamento de Kuyper11 e Van Til12.
Schaeffer teve uma presença marcante no âmbito cultural, tendo atuado no sentido de
promover certa “contra-cultura” de cunho evangélico por meio de proposições visando a
renovação da cultura humanista. No seu entendimento esta cultura encontrava-se em
decadência nas artes, nas ciências, na vida acadêmica e na política. Dentro desta perspectiva,
10
“A despeito de endossar uma epistemologia que era mais neutra que pressuposicional, Schaeffer estava
preocupado em combater o espírito da era com as pressuposições cristãs. Seus esforços foram principalmente
pré-evangelísticos: ele advertiu que a nossa cultura estava em crise, e que em nosso afastamento de Deus e da
verdade perdemos a habilidade de entender nosso dilema. Esta mensagem estava de acordo com a teologia pré-
milenarista de Schaeffer” (HARRIS, 1998, p. 260).
11
“Um dos mais bem sucedidos evangélicos a inspirar uma preocupação com a cultura foi Francis Schaeffer
(1912 – 1984). Seu trabalho foi indiretamente afetado pelo pensamento kuyperiano”. (HARRIS, 1998, p. 260)
12
“Sua influência tem sido popular e evangelística ao invés de erudita. Ele estudou no Seminário Teológico de
Westminster sob a tutela de Van Til, mas ele nunca se refere a seu professor. Ele deixou Westminster para o
Seminário Teológico da Fé em 1937. Schaeffer parece ter adotado muito a terminologia de Van Til. [...] Edith
Schaeffer descreveu a influência de Van Til em seu marido como a abertura de uma outra porta, ‘não muito em
detalhes, mas em varreduras mais amplas de seu pensamento’” (HARRIS, 1998, p. 255).
932
Schaeffer foi um crítico tanto das transformações culturais da modernidade quanto do
movimento hippie — do qual foi contemporâneo — que, por sua vez, também foi um
movimento contra cultural de oposição ao moderno (e capitalista) american way of life.
Atentos a todas as esferas da vida, assim como preconizou a apologética de Van Til, os
fundamentalistas de cunho reformista tem procurado modificar a sociedade através da
transformação da “visão de mundo” mesma dos indivíduos, provendo-lhes uma visão de
mundo cristã pela aceitação e conversão à palavra de Deus por meio do evangelismo. Alguns
teóricos tem qualificado tendências como a representada por esses reformistas como neo-
fundamentalistas.
Por outra via temos a corrente dita reconstrucionista que, em oposição aos reformistas, tem
um acentuado caráter separatista, cismático, que está implícito na doutrina dos “dois sistemas
de vida” que Van Til herda de Kuyper e reinterpreta. Segundo Harris (1998, p. 267), “os
reconstrucionistas constituem um grupo altamente polêmico, política e economicamente de
direita, leais a Kuyper [e] Van Til (...). Eles são cismáticos e neste sentido podem ser
considerados como fundamentalistas de militância separatista”.
A partir dos anos de 1990, eles tem se filiado à Nova Direita Cristã a fim de exercer uma
influência política de cunho religioso em âmbito local. Uma das importantes estratégias de
ação teológico-política dos reconstrucionistas está na educação. Dado seu caráter separatista e
conservador, eles procuram colocar seus filhos em escolas confessionais ou dar-lhes uma
educação formal em casa, através do sistema chamado home schooling, uma prática comum
entre os adeptos desta corrente fundamentalista. Para eles, esta é uma estratégia de longo
prazo visando a transformação social na base da sociedade pela educação dos cristãos 13,
acreditam que esta seja a forma mais eficaz de garantir que a moral cristã permeie todas as
instituições da vida secular. Segundo Barr (Apud HARRIS, 1998, p. 268), “[...]
reconstrucionistas são otimistas sobre sua habilidade em transformar o futuro” o que também
evidencia o caráter pós-milenarista dos adeptos desta corrente.
933
morais e dois sistemas ético-político antagônicos. Segundo Hunter (1990, p. 31), “as
consequências das divisões políticas hoje não são de caráter teológico e eclesiástico, mas
resultam de diferentes visões de mundo”.
Diferentemente da clivagem que caracterizou o fundamentalismo dos anos 1920 e 1930 14,
sobretudo dos anos 20, a clivagem atual revela uma orientação político-partidária dos grupos
fundamentalistas evangélicos norte-americanos. Segundo Olson (2007, p.148),
Bush, ainda sob o efeito de sua conversão, de fato começou sua carreira política
assessorando a campanha do pai, em 1988, como responsável pelos contatos com as
lideranças religiosas do então emergente movimento evangélico que entrara na vida política
havia alguns anos. A maioria desses líderes hoje se encontra no centro do poder
republicano, sendo os principais apoiadores da administração Bush. Um deles, Karl Rove,
foi nomeado seu assessor político e incumbido de aumentar ainda mais o número de “fiéis
em Cristo” no Poder Judiciário para dar suporte às iniciativas do governo que se baseiam
em premissas religiosas, como a da proibição definitiva do aborto em todo o país.
14
“Certamente um dos acontecimentos mais notáveis na religião americana desde 1930 tem sido o ressurgimento
do evangelicalismo como uma força na cultura americana” (MARSDEN, 1991, p. 63).
934
também do confronto dos próprios grupos evangélicos fundamentalistas entre si, dada a
dicotomia entre os dois “sistemas de vida” que se antagonizam, cada um sendo defendido por
uma das tendências fundamentalistas contemporâneas acima descritas.
Porque esta é uma guerra cultural, a essência da divergência política de hoje sobre a gama
de questões debatidas — seja aborto, creches, financiamento para as artes, ação afirmativa e
quotas, direitos gays, valores na educação pública, ou multiculturalismo — podem ser
traçados em última análise e finalmente ao problema da autoridade moral. Por autoridade
moral quero dizer as bases pelas quais as pessoas determinam se alguma coisa é boa ou
ruim, certa ou errada, aceitável ou não aceitável, e assim por diante.
Em vista disso, a pesquisa que desenvolvemos consiste numa análise do discurso de Francis
Schaeffer e Gary North, expoentes mais representativos das tendências reformista e
reconstrucionista, respectivamente, a fim de identificarmos a ideologia que subjaz a estes
textos. Interessa-nos saber em que medida as apropriações antagônicas que ambos fazem do
discurso de Van Til estão implícitas na teologia vantiliana e, até que ponto são oriundas da
inserção social, política e teológica de cada um dos deles.
Somos da hipótese, a ser devidamente comprovada no decorrer da pesquisa, que a cisão entre
regenerado e não-regenerado (crente / incrédulo), que se expressa em dois sistemas de
entendimento moral e ético-político e a teoria da graça comum para todos os homens —
contida na teologia de Kuyper — (re)elaborada por Cornelius Van Til, é o que permite a
existência de interpretações distintas do seu pensamento. Acreditamos que cada uma das
tendências fundamentalistas evangélicas em pauta adota para si uma destas perspectivas como
eixo central de sua interpretação do estar-junto coletivo, da ação sociopolítica e cultural.
Adotando-se a primeira, tem-se uma concepção mais separatista ou cismática, que se orienta
por uma prática que visa a reconstrução social e do indivíduo, tal como concebida pela
corrente reconstrucionista. Adotando-se a segunda, abre-se possibilidade para alianças com
denominações religiosas cristãs não-evangélicas e uma ação política mais de curto prazo na
luta para garantia das agendas morais, o que caracteriza a corrente reformista. No momento, a
pesquisa caminha a fim de que a hipótese seja cuidadosamente verificada.
935
Considerações finais
Como fizemos questão de ressaltar, esta pesquisa está em desenvolvimento. Portanto, não
temos ainda resultados concluídos, apenas um panorama vasto e complexo em processo de
análise, que busca identificar, em ambas as teorias, reformista e reconstrucionista, como e
porque uma e outra interpretam tão diferentemente a herança teológica do Seminário de
Westminster, constituindo-se como duas perspectivas antagônicas de abordagem
fundamentalista. Compreender porque ambas se fundam em uma mesma base, porém, adotam
caminhos de defesa cultural, social e política dos valores evangélicos fundamentalistas
eminentemente distintas é um dos pontos centrais da pesquisa. Pela análise do discurso das
principais obras de Cornelius Van Til, Francis Schaeffer e Gary North, buscamos verificar
qual o discurso que permeia estes textos e que direciona estratégias de ação social e política,
bem como compreender os elementos que animam este complexo cenário sociopolítico, laico
por excelência, mas profundamente imbricado pela cultura religiosa, que é o espaço público
norte-americano.
Referências
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Cardoso. O governo George W. Bush e fundamentalismo protestante. In: PEREIRA, Mabel
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Revista Internacional de Teologia. Petrópolis, v. 28, fas 241, p. 333 - 346, 1992.
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__________. The defense of the faith. 4. ed. Phillipsburg: P & R Publishing, 2008.
937
938
“Religião e Progresso”: a presença da religião em Brazil and The
Brazilians – portrayed in historical and descriptive sketches de
Daniel P. Kidder e James C. Fletcher, 1857
Débora Villela de Oliveira1
Introdução
Minha comunicação consiste numa reflexão sobre a presença secundária da religião no livro
Brazil and The Brazilians – portrayed in historical and descriptive sketches, dos pastores
Daniel Parish Kidder, metodista, e James Cooley Fletcher, presbiteriano (KIDDER &
FLETCHER, 1857)2.
O livro foi publicado na Filadélfia, Estados Unidos em 1857, às vésperas da Guerra Civil
norte-americana. Entender sobre a presença secundárias da religião no livro foi um
desdobramento de minha pesquisa de mestrado, cujo principal objetivo era apresentar as
imagens a respeito do Brasil que os autores traziam na publicação (OLIVEIRA, 2013).
Mas para melhor compreender o objetivo da minha fala, é importante explicitar o que chamei
de “presença secundária” da religião no livro, explicada a partir do conteúdo do livro e alguns
dados da trajetória de seus autores.
Como já dissemos, tanto Kidder como Fletcher eram pastores protestantes e nalguma medida
haviam se envolvido com incursões missionárias3. Todavia, tais envolvimentos pouco
dividiram espaço com as condições sociais, econômicas, culturais e políticas brasileiras
descritas pelos autores no livro4.
1
Mestra pela FFLCH/USP. A pesquisa de mestrado que amparou o artigo a seguir recebeu financiamento da
FAPESP. Contato: deboravilleladeoliveira@yahoo.com.br.
2
A título de facilitar a escrita, passarei a chamar o livro apenas por Brazil and The Brazilians.
3
Daniel Parish Kidder foi um importante pastor norte americanos, conhecido tanto por seu trabalho de
disseminação das publicações metodistas quanto por suas viagens à Europa e América do Sul. Esse pastor esteve
no Brasil entre 1839 e 1842, auxiliando o também metodista Justus Spaulding numa das primeiras divulgações
do protestantismo no Brasil de acordo com LEONARD (1952) e STROBRIDGE(1894). Já James Cooley
Fletcher era filho do banqueiro abolicionista de Indiana Calvin Fletcher. Conhecedor de língua francesa e
bastante viajado, o pastor aportou pela primeira vez no Rio de Janeiro no ano de 1851 junto com esposa e filhos,
permanecendo no país ininterruptamente até 1853. Após essa estadia longa, ele ainda fez pelo menos mais seis
viagem ao Brasil até 1866, portando consigo amplas responsabilidades políticas, conforme apresentou VIEIRA
(1980) e JAMES (1952).
4
A título de exemplo, dentre os 27 capítulos que compõem Brazil and The Brazilians, sete trataram
especificamente da história e da política brasileira, um tratou sobre a instrução pública, treze sobre as viagens
939
Ainda, por serem protestantes, seria presumível a existência de fortes críticas à Igreja Católica
no texto. Todavia, é interessante notar que outros autores, como o inglês radicado nos Estados
Unidos Thomas Ewbank, embora menos envolvido com a religião, foi mais incisivo em suas
críticas a essa instituição em seu livro, Sketches of Travel and Residence in Brazil, publicado
nos Estados Unidos um ano antes, em 1856 (EWBANK, 1856; PAULINO, 2011). De fato,
Kidder e Fletcher nas poucas partes onde mencionaram os aspectos religiosos, apresentaram a
condição brasileira como preocupante, porém, sem incorrem em escárnio quanto ao que
consideravam seus primitivismos, ou que gerou uma apresentação mais sóbria e abrandada
daquela realizada por Ewbank5.
Retomando esses particulares apresentados no conteúdo do livro, é visível que esse espaço
menor destinado à religião parece não combinar com a origem missionária dos autores, que
inclusive utilizaram essa credencial para atestar a fidedignidade daquilo que transmitiam a
seus leitores6.
Um dos mecanismos utilizados para entender melhor esse diferencial foi observar com
cuidado a trajetória estabelecida pelos autores, sobretudo no Brasil, para assim pensar nas
motivações pelas quais as críticas mais pesadas acerca da religião foram suprimidas.
A princípio, um dado importante acerca da construção de Brazil and The Brazilians diria
respeito à autoria do livro. Existiram evidências que apontaram que a autoria principal do
livro é de James Cooley Fletcher, ao invés do livro ter sido escrito à “quatro mãos”
(MINDLIM, 1991, p. 50). Isso faz com que centremos nossas atenções nas relações
estabelecidas principalmente por esse autor no Brasil.
realizadas no território, pelo menos três sobre as condições econômicas do território e apenas um tratou com
mais abrangência a condição religiosa no Brasil.
5
Na verdade, a proposta de Kidder e Fletcher ao escreverem Brazil and The Brazilians não era detratar o país
comprovando seu atraso e primitivismo. Os autores consideravam essa imagem errônea, justamente por ela
inviabilizar trocas e novos contatos entre Brasil e Estados Unidos. Nesse propósito, era registrado no final do
livro o objetivo de se “fornecer um retrato justo e geral sobre o Brasil” (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 584).
6
Nas resenhas que diversos periódicos norte-americanos publicaram, que serviram para divulgar o livro a
público norte-americano, muitas vezes o fato dos autores serem pastores serviu para corroborar a fidedignidade
de seu conteúdo, bem como a pesquisa realizada pelos autores em documentação oficial e o contato com as
diferentes classes sociais brasileiras (Harper´s New Monthly Magazine, “Brazil and The Brazilians”. New
York,v. 15, n. 866, out. 1857, pp.690-691.)
940
Nesse país, desde sua chegada, em 1851, Fletcher estabeleceu contatos importantes, sobretudo
com políticos liberais, participou de reuniões com membros de sociedades científicas
formadas durante o Império no Brasil, caso da Sociedade de Auxiliadora da Indústria
Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual inclusive se tornaria
membro honorário, em 1862 (Revista do IHGB, n. 25, 1862, p. 292-293; VIEIRA, 1980, p.
80). Essa relativa amplitude de contatos com a elite política brasileira é significativa, Mas o
contato mais destacado do autor era com o próprio Imperador do Brasil, D. Pedro II, iniciado
em 1853, e mantido até 1879 (idem, p. 112-150; JAMES, 1952, p. 158)7.
Além desses contatos, cujos objetivos aparentes eram aumentar as trocas científicas e
intelectuais entre Brasil e Estados Unidos, sobretudo após 1860, é possível observar Fletcher
como um articulador das relações econômicas e comerciais entre Brasil e Estados Unidos,
auxiliando os ministros plenipotenciários brasileiros nos Estados Unidos, a obterem acordos
entre os dois países8.
Em vista dessas conexões, estabelecidas antes, durante, e depois da publicação de Brazil and
The Brazilians, é impossível não vincularmos as preferências do autor em sua escrita a
pretensões políticas e diplomáticas do mesmo. Embora esse tipo de pretensão fosse
questionada dentro dos cânones protestantes da época, e mesmo Fletcher fosse criticado por
isso, por meio dessa ação é possível justificar a abordagem apresentada em Brazil and The
Brazilians (VIEIRA, 1980, p. 149-151). Ao responder a essas críticas, Fletcher expõe sua
opinião sobre a relação entre religião e política:
Sei que alguns podem dizer que não é do papel de um clérigo missionário estar
envolvendo-se com negócios. Mas creio que tenho uma visão mais alta do que o mero
interesse mercantil do meu país, pois sou dos tais que crêem que a religião e o comércio são
servos que, unidos com a bênção de Deus, servem para a promoção dos interesses mais
nobres e mais altos da humanidade (JOURNAL OF COMMERCE OF NEW YORK,
09.06.1852, Apud VIEIRA, 1980, p. 65).
7
Além do contato com o Imperador cabe-nos aqui destacar o contato que James Cooley Fletcher teve com o
deputado alagoano Aureliano Tavares Bastos, que se tornou um grande incentivador das negociações entre Brasil
e Estados Unidos, assim como o político Manoel Pacheco da Silva, incentivador da instrução pública no império
e, também, o plenipotenciários do Brasil nos Estados Unidos, durante a década de 1860, Joaquim Maria
D´Azambuja, como elucida VIEIRA (1980, p. 90-112).
8
Exemplos dessa interação de James Cooley Fletcher com os ministros plenipotenciários brasileiros foram
noticiado no New York Times, em 1863 (The New York Times, “Steam communication with Brazil; Interesting
address by Rev. J. C. Flecher, before the Boston Board of Trade”, 14.08.1863), assim como o periódico The
Anglo Brazilian Times também publicou sobre a sagacidade do autor nas negociações entre os dois países (The
Anglo Brazilian Times, Rio de Janeiro, 09.mai.1865, p.1.).
941
De acordo com seu modo de pensar, Fletcher se enxergava como alguém que deveria cuidar
sim de assuntos políticos, justamente pelo fato de sua condição missionária não depender
exclusivamente desses assuntos. Nesse ponto, o autor se considerava mais “puro” que outros
no desejo de bem fazer a política. Mesmo assim, no trecho é possível verificar que há um
questionamento dentro do cânone sobre qual seria a verdadeira conduta de um religioso em
terras distantes. Fletcher se apresenta aqui com um dos casos que David Kling expôs,
criticado pelo fato de muitos acharem que o serviço missionário era apenas um cabide de
emprego que servia de trampolim à diplomacia na época (KLING, 2004, p. 18).
Ainda, a fala de Fletcher nos aproxima de um ponto a ser discutido, relacionado aos objetivos
pelos quais a missionação e a diplomacia se complementavam para o autor.
O que pode ser observado no texto de Brazil and The Brazilians sobre o tema da religião é
que o mesmo estava ali para atender a uma finalidade menos vinculada à salvação de almas e
mais aproximada do progresso.
Os autores construíram ao longo da narrativa uma série de hierarquias que não eram não
apenas de cunho racial, mas continham aspectos culturais, dentre os quais a religião também
está inserida9. Um ponto a ser lembrado é que no livro, não foram apenas o catolicismo e o
protestantismo que apareceram. O islamismo aparece quando da apresentação dos costumes
9
Esse tipo de formulação, hierarquizante, está relacionado ao que HORSMAN (1981) e FRIEDRICKSON(1987)
apontaram acerca do pensamento intelectual norte-americano da metade do século XIX. Esse era profundamente
cingido pela questão racial, que procurava estabelecer hierarquias procurando justificar a superioridade da
condição dos brancos norte-americanos em relação aos negros do país, consolidando assim, um discurso de não-
mistura racial no país do Pré Guerra Civil. PAULINO (2011), MACHADO (2006) e OLIVEIRA (2013) trazem a
dimensão do quanto esse pensamento racial ecoava, inclusive no pensamento de viajantes do período, que,
mesmo considerando-se politicamente contrários à escravidão, ou ainda que se opusessem ao tratamento social
diferenciado a brancos e negros, ainda reproduziam hierarquias que contribuíam à continuidade da segregação
racial.
942
pagãos dos negros, mas, não só nesse momento, também quando Fletcher viaja à Colônia
Dona Francisca e se depara com um professor muçulmano:
Eu convidei o clérigo e o professor para tomarem chá comigo, durante a refeição, o último
nos deixou por alguns momentos e então retornou; mas enquanto ele estava ausente, o
clérigo me disse: ‘Como você foi se dar bem com o professor? Ele é um vira-casaca!’
Depois eu entendi a reserva dele (...) O professor era nascido na Bulgária – e era
muçulmano: ele foi à Alemanha e depois disso veio ao Brasil com alguns viajantes belgas
cujo objetivo era a exploração científica. Embora eu tivesse recebido o mais bondoso
tratamento do professor, devo dizer que entre as pessoas da vila ele tinha a reputação de ser
um católico apenas na teoria, na prática era um turco que residira no coração do Império
Otomano (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 336)
É visível que o tratamento oferecido ao professor era ostracista dentro da colônia por mais que
o mesmo demonstrasse erudição e simpatia. O repúdio a ele, devido às suas práticas religiosas
vinha tanto da parte dos católicos quanto dos protestantes locais. Ambos os grupos evitavam a
convivência com o mesmo, tratando-o como repulsivo, degenerado e infiel.
O catolicismo era identificado por Fletcher como uma religião desvirtuada, perdida em meio a
um clero desmoralizado, rituais considerados blasfêmicos, aquilo que Fletcher considerou
como um casamento entre cristianismo e paganismo:
Dentre os vários particulares [sobre a religião], no qual podemos traçar certo casamento
entre o cristianismo e o paganismo, nenhum deles é tão curioso quanto o sistema de ex-voto
(...). Os piedosos pagãos (...) penduram em seus templos os trabalhos manuais de seus
artesãos e artistas (...). Na Igreja da Glória podem ser vistas quantidades de modelos de cera
de braços, pés, olhos (...). No segundo volume de Mountfaucon (...) existe uma longa
explanação sobre exvotos ‘alguns oferecidos a Netuno, pelo bom sucesso de viagens
marítimas, a Serapis pela saúde, a Juno Lucina pelas crianças e por um bom parto
(KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 95-97).
943
colonização portuguesa ele não estivesse imbuído de reais e firmes propósitos cristãos. Pelo
contrário o trabalho dos missionários jesuítas em território brasileiro era enaltecido no livro,
como imbuído de mais propósitos salvíficos que, inclusive, as primeiras incursões
protestantes teriam, quando Fletcher se remete às disputas entre huguenotes franceses e
católicos portugueses:
Southey afirma com justiça que nunca houve uma guerra de tão pequena extensão e tão
poucos força empregada de ambos os lados que gerasse consequências tão importantes. A
corte francesa estava muito ocupada em queimar e massacrar huguenotes para pensar no
Brasil e Coligny, após seus generosos planos para com o Brasil terem sido arruinados pela
traição de Villegagnon, não mais se interessou pela colônia: os dias de emigração
protestante para esse país,e aqueles que deveriam ter colonizado o Rio de Janeiro
enfrentaram armas contra um sanguinário e implacável inimigo na defesa daquilo desejável
a todo homem. Portugal estava quase desatento ao Brasil,portanto, poucos como os
habitantes da França Antártica, fosse Mem de Sá menos leal ao seu dever, ou Nóbrega
menos hábil e menos infatigável a seus opositores, esses últimos teriam permanecido em
seus lugares e talvez o país todo teria sido francês (KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 57).
É interessante perceber que quando os autores tratam sobre as guerras de religião que
aconteceram no Rio de Janeiro durante o século XVI e XVII, parece que a derrota protestante
veio em razão dos seus próprios erros, e, em certa medida, na falta de fé desses protestantes,
derrotados pela intolerância e pela cobiça, assim como o espírito jesuíta do Padre Manuel da
Nóbrega mostrava-se “hábil e infatigável”, com características de um bom missionário em
terras distantes. Sendo assim, por exclusão, é transparecido que, naquele momento, aqueles
cujos espíritos estavam em concordância aos propósitos divinos eram os jesuítas.
Ao contrastarem a condição colonial com a condição vivida pelo Império, no que tocava à
religião, os autores conseguem construir uma condição de decadência do catolicismo,
geradora de preocupações, dado que, para os autores, a idéia de povo ateu, sem religião
aparecia como um risco ao desenvolvimento da nação. Essa, de fato, era uma concepção
iluminista de fé que entendia que os elementos mais prejudiciais à fé não eram a ciência ou a
evolução, mas sim, a crendice e superstição, que desvirtuava e conduzia a charlatanismos
(CASSIRER, 1970, p. 115-125).
944
Se admitirmos que essa Igreja corrupta uma vez teve a única luz e conhecimento, não há
necessidade de permanecermos modificando na escuridão, ou usar o brilho da lamparina,
quando temos o brilho claro do sol do meio-dia. Deixe que a Luz venha sobre o Brasil!
(KIDDER & FLETCHER, 1857, p. 144).
Isso pode ser corroborado ao longo do texto, pelo fato de não existir nele um projeto de
viabilidade de introdução do protestantismo no Brasil: esse projeto encontra-se bastante
diluído no texto de Brazil and The Brazilians, no qual são muito melhor apresentados seus
fracassos, bem como suas dispersões pontuais, que alguma política que, de fato, viesse a ser
implantada no Brasil.
Como apresentamos, na narrativa de Brazil and The Brazilians a religião tomava papel
secundário em relação ao progresso, objetivo pelo qual ela deveria ser entronizada no
Império. Ao mesmo tempo, a partir dela eram desdobradas hierarquias culturais entre os
povos do mundo: o paganismo completo e islamismo pertenciam aos negro e mouros, o
catolicismo se relacionava aos latinos, e o protestantismo, mais puro e evoluído dessas três,
era característico dos povos anglo-saxões.
Mas devemos dar atenção ao fato de Fletcher sugerir a entrada do protestantismo no Brasil:
isso também significava que os brasileiros já tinham um passo à frente na “escala evolutiva”
em relação aos demais latinos do mundo, afinal, a religião dos latinos já não mais dava conta
de contemplá-los. Isso também pode ser corroborado, na visão de Fletcher pelo nível de
desenvolvimento político, intelectual e econômico que ele testemunhava existir no Império:
945
Não existe futuro para o Brasil para aquele que observa apenas os vazios e os faustosos
ritos da Igreja Católica Romana no Brasil. Mas quando consideramos os sentimentos
liberais e de tolerância que prevalecem [no Brasil] — quando refletimos sobre a sua
liberdade de imprensa, a difusão do ensino e o funcionamento da sua admirável
Constituição — não podemos acreditar que as futuras gerações de brasileiros irão
retroceder. Faculdades intelectuais sem moralidade, como sabemos, é uma mola de
tremendo impacto, precisando de equilíbrio; mas temos fé que Deus, que abençoou o Brasil
tão grandemente em outros aspectos, não o deixará sem o seu maior bem (KIDDER &
FLETCHER, 1857, p. 143-144).
Pelo exemplo de Fletcher também é possível notar que a missionação protestante, mesmo que
criticada em seus moldes pelo caráter majoritariamente político que carregava, também
procurava, dentro da perspectiva de uma cultura imperial, estabelecer suas influências noutras
partes do mundo10. Mesmo sem tomar posturas exacerbadamente anti-católicas, como no caso
de Brazil and The Brazilians, ela tomava uma postura de superioridade em relação aos outros
povos, especialmente em relação às outras nações americanas, que segundo esse pensar ainda
encontravam-se em desenvolvimento.
946
estrangeiro, um anglo-saxão, pudesse certificar-se sobre as reais necessidades brasileiras rumo
ao progresso.
Além disso, há de se perceber que o protestantismo a ser incorporado pelo brasileiro deveria
vir de uma matriz norte-americana, e sem dúvida nenhuma, ligava-se às possíveis influências,
tanto culturais quanto políticas, que o país do norte poderia obter junto aos países latino-
americanos.
Conclusão
A partir da trajetória de James Cooley Fletcher, o principal autor de Brazil and The
Brazilians, e da forma como a religião aparecia no livro, foi possível observar que, para ele, o
tema ganhara uma finalidade bastante específica, vinculada a questões políticas e de exercício
de influência dos Estados Unidos em outras regiões da América.
Referências
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Brasil e dos brasileiros no livro Brazil and The Brazilians – portrayed in historical and
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo,
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948
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STROBRIDGE, G. E. The Biography of the Reverend Daniel Parish Kidder. New York: Hunt
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The New York Times “Brazil and The Brazilians, Portrayed in Historical and Descriptive
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The New York Times, “Steam communication with Brazil; Interesting address by Rev. J. C.
Fletcher, before the Boston Board of Trade”, New York, 14.08.1863.
949
950
Religião, política e a ‘guerra cultural’ pelos jovens e entre os
jovens nos EUA
Ariel Finguerut1 e Marco Aurélio Dias de Souza2
Introdução
O artigo discute a relação dos três grandes pastores do pós-Guerra Fria (Billy Graham, Jerry
Falwell e Pat Robertson) com os jovens, mostrando que no caso de Billy Graham “salvar os
jovens” foi seu foco inicial e nos casos de Jerry Falwell e de Pat Robertson o envolvimento
com os jovens se revelou a partir dos desdobramentos de suas respectivas iniciativas de
mobilização política mais amplas, que culminaram na fundação de suas universidades,
respectivamente a Liberty University (1971) e a Regent University (1978).
Outro ponto importante que levam religiosos a se preocuparem e lutarem também no campo
da educação é a ameaça que sentem diante do avanço do humanismo e do secularismo,
principalmente, a partir das primeiras décadas do século XX. A ideia de uma ciência moderna
(que se afirmou como “científica” e portanto goza de uma legitimidade social e política) soa
como uma afronta e ameaça aos grupos religiosos cuja fé projeta na Bíblia toda veracidade de
todas as coisas. Para John Gresham Machen3, importante teólogo da virada do século XIX
para o XX, a modernidade avançava trazendo um “novo gospel” e conjuntamente com o
triunfo do discurso científico do secularismo se afirmava.
1
Doutorando em Ciência Política pela UNICAMP. Bolsista Fapesp. Contato: arielfing@gmail.com.
2
Doutorando em Sociologia pela UNESP. Bolsista Capes. Contato: dias_dias_@hotmail.com .
3
Machen (1881 – 1937) em 1929 rompeu com o tradicional Seminário de Princeton e fundando na Filadélfia seu
próprio seminário o Westminster Theological Seminary sendo um marco para o movimento fundamentalista que
se opunha a teologia liberal que prosperava com a modernidade.
951
Hunter (1983) concluiu que, como resposta à modernidade, aos grupos religiosos restava
acomodar-se ou resistir à ela. Por isso, desenvolveu-se um crescente sentimento
“antimoderno” que percebia que a modernidade era marcada por um individualismo
desacertado, com altos índices de violência, corrupção, crimes hediondos e relativismos
morais inaceitáveis. Como resultado desse sentimento ocorreu o surgimento das primeiras
escolas e institutos bíblicos pautadas na reclusão e isolamento do mundo exterior, protegendo
os estudantes dessa visão de mundo que vinha se tornando dominante.
Em consequência a essa resistência ocorreu, já nas últimas décadas do século XX, uma
mudança na postura dessas correntes religiosas fundamentalistas e conservadoras que, após
um período de retração do mundo secular, moderno e humanista, reagiram ao avanço dos
governos “liberais e progressistas” como por exemplo os de JFK (1961 -1963), Lyndon
Johnson (1963-1969) mas sobretudo Jimmy Carter (1977 -1981) através de uma postura mais
ativa na política. Assim, a postura mais ativista destes governantes levaram os grupos
religiosos a buscarem mais visibilidade e a vitória em uma autodeclarada “Guerra Cultural 4”.
Um momento central deste contexto ocorreu quando o governo Carter buscou alterar as regras
de cobrança de impostos das escolas particulares, afetando diretamente escolas religiosas que
não mais poderiam reclamar status de isenção. A iniciativa de Carter foi respondida por uma
grande mobilização de religiosos e desembocando em momento crucial para o
desenvolvimento do movimento conhecido como “homeschooling5” como também para os
nascentes projetos da Liberty University e da Regent University que conheceremos melhor a
partir de agora.
4
A ideia da existência de uma Guerra Cultural se popularizou nos EUA após a publicação do livro de Hunter
(1991), ao qual, o sociólogo apontava que a sociedade estadunidense estaria radicalmente dividida, devido a
influência de dois conjuntos opostos de valores culturais (que seriam frutos de uma autoridade moral Ortodoxa e
uma progressista), o que faria com que a sociedade se radicalizasse em batalhas pela defesa desses valores
5
Homeschoolling é um movimento que reivindica o direito dos pais de educarem seus filhos sem a
obrigatoriedade de matriculá-los numa escola (seja pública ou privada). Não necessariamente homeschoolling
está associado a movimentos religiosos ou fundamentalistas. Houve momentos como no final dos anos 80 que
pais preocupados com a “opressão” que seus filhos sofreriam na escola buscavam uma alternativa mais
“libertária”. No final dos anos 90 grupos de extrema direita com forte preocupação racial também flertavam com
esta bandeira política. Mas segundo dados que apontam que até 2% da população em idade escolar nos EUA de
hoje estaria em homoeschooling (cf. NORQUIST, 2006) a imensa maioria deste universo se insere um casos de
preocupação e foco religioso.
952
Youth for Christ, Liberty University e a Regent University
O sucesso da YFC com os jovens mesclava um elemento tradicional e até certo ponto bem
conservador, que era a mensagem religiosa mas entregue num formato novo e moderno,
agradável e acolhedor aos jovens da época. Os jovens poderiam não gostar de frequentar
igrejas, templos ou escolas religiosas, certamente não gostavam de acordar cedo num
domingo para participar do culto dominical e tão pouco tinham interesse ou paciência para
atender “códigos de vestimenta” ou gostavam de prestar atenção no que diziam e como
diziam os pastores tradicionais. Billy Graham, por sua vez, era extremamente carismático e a
YFC (organização pensada para levar a evangelização aos jovens) souberam de forma
pioneira resolver estes problemas. Pois, eles iam onde os jovens estavam, e os encontravam
tal como eles estavam (sem preocupação com a roupa ou com horário). Como bem sintetiza
Martin (2005), Graham9 e a YFC tinham a estratégia mais ampla de serem modernos sem ser
6
No original: “Saturday-night rallies”.
7
Ideia que se insere no contexto do terceiro despertar
8
Talvez a grande inspiração tenha sido E. Howard Cadle (1884 – 1942), de Indianápolis, fundador da Cadle
Tabernacle, pioneiro no uso do radio para evangelização. Cadle no auge de suas atividades como pastor tinha
seu próprio avião e costumava fazer viagens para atender encontros e pregar. Esta pratica ele manteve até o final
da vida.
9
Segundo Aikman (2007, p.67-68) Graham tinha uma maneira peculiar de pregar que se pautava na exaustiva
preparação dos sermões, na repetição de citações e na utilização de temas do cotidianos nacionais e
internacionais que eram inseridos na maneira energética de pregar. Em nossa leitura, essa maneira de pregar
atingia diretamente os anseios dos jovens que recebiam a mensagem bíblica distante das pregações tradicionais.
953
modernistas, entendendo que a ideia de modernidade era visto como uma força que afastaria
os jovens de Deus, da bíblia e do cristianismo.
Reforçando esta estratégia de aproximação com a cultura jovem dos anos 40 propondo uma
mensagem evangélica, a YFC e as cruzadas de Billy Graham – que passou a ganhar status
mais independente na medida em que seu sucesso aumentava – buscam retratar seus pastores
e lideranças com “roupas modernas”, “carros esportivos“ além de aproxima incentivar que
celebridades e pessoas socialmente reconhecidas (como heróis de guerra, empresários de
sucesso, atletas populares, artistas etc.) a darem seus testemunhos e participarem ativamente
dos encontros com os jovens.
A mensagem passada aos jovens tinha algumas grandes preocupações. Um foco patriótico,
valorizando as forças armadas, os heróis de guerra a supremacia militar dos EUA, um
segundo foco diretamente relacionado ao teor patriótico que era o discurso anticomunista.
Graham e os pastores da YFC apresentam o comunismo como uma ideologia materialista que
rejeitava e combatia toda e qualquer espiritualidade. O embate da Guerra Fria era apresentado
em termos do cristianismo frente ao comunismo no qual a vitória do segundo representaria o
fim da família a vitoria do ateísmo, em síntese, deste embate só poderia surgir um vitorioso, o
derrotado estaria condenado a morte. A ideia de fim do “sonho americano” e do “modo de
vida americano” reverberava com força e ganhava popularidade nos EUA do final dos anos
40 e inicio dos anos 50. Foi neste contexto que as cruzadas do senador de Wisconsin Joseph
McCarthy cresceram e ganharam dimensão nacional.
954
Se Billy Graham alertava que da Guerra Fria só poderia surgir um vencedor e que o
cristianismo estava sob risco e que portanto era importante que os jovens apoiassem as forças
americanas se engajando na luta contra o comunismo, McCarthy, que era católico, acreditava
que era preciso uma guerra interna contra o comunismo infiltrado nos EUA, defendia que
“simpatizantes” deveriam ser coibidos e que a busca por “inimigos” não poderia ter fronteiras
(isso quer dizer que o senador buscava “vermelhos” nos departamentos governamentais, na
indústria cinematográfica, entre empresários, em fim, em todo e qualquer lugar). Billy
Graham se referia a McCarthy como um “cão de guarda” que geralmente tem “poucos
amigos” mas que é fundamental para proporcionar um “sono tranquilo” . Na medida em que
as cruzadas do senador de Wisconsin foram se isolando politicamente e se cercando de teorias
conspiratórias chegando a comportamentos paranóicos, muito em decorrência do crescimento
do grupo John Birch Society em 1958, que alimentava e propagava teorias conspiratórias em
torno da infiltração ou cooperação secreta entre o governo dos EUA e os soviéticos10.
A partir dos anos sessenta, Billy Graham afastou-se tanto do discurso mais militante e
agressivo anticomunista como dos fundamentalistas, devido a fama já conquistada se mostrou
muito maior que a YFC. Graham percebeu que seu discurso evangelizador e fortemente
marcado por princípios morais e pela valorização da bíblia e da fé cristã também reverberava
no meio político e suas palavras e presença poderiam ter grande influência política. Em parte,
Billy Graham passou a chamar atenção da classe política por ter conseguido entre as décadas
de 40 e 50 se estabelecer como “o líder inquestionável” do movimento evangélico/cristão nos
EUA. Neste processo Graham expandiu seu foco de interesse para além dos jovens e
sobretudo se separar dos fundamentalistas11.
10
A influência anticomunista entre pentecostais, neopentecostais e evangélicos em geral seguiu por outros
caminhos. O reverendo Billy James Hargis fundador da Church of the Christian Crusade seguiu por mais tempo
o apoio as cruzadas de McCarthy, no auge as cruzadas de Hargis tinham eram transmitidas por até 500 estações
de radio e 250 de televisão. Outro religioso muito importante quando discutimos o anticomunismo nos EUA é
Carl McIntire (1906 – 2002), fundador da Presbyterian Church of America, uma ruptura/separatismo com a
Igreja Presbiteriana no contexto da onda fundamentalista das primeiras décadas do século XX. McIntire também
liderou o American Council of Christian Churches que se manteve fortemente embasado num postura
anticomunista. Para uma discussão mais ampla sobre este tema conf. American Christianities: A History of
Dominance and Diversity. De Catherine A. Brekus e W. Clark Gilpin, ed. UNC Press, 2011.
11
Segundo Aikman (2007), a relação de Graham com os fundamentalistas vinha desde os tempos de sua
formação universitária na Universidade (fundamentalista) Bob Jones, contudo, ao propor uma nova maneira de
pregar e a aceitação de figuras liberais e de outras denominações no palco durante suas cruzadas, o pastor passou
a sofrer ataques de Bob Jones e outros pastores ligados a instituição que defendiam o isolamento do movimento.
Esse conflito em torno da melhor maneira de pregar fez com que Graham rompesse com o movimento
fundamentalista em 1957, sendo visto por eles, até os dias atuais, como um papista e liberal.
955
Em síntese, nos termos de Martin (2005), Billy Graham representava e propagava um “novo
evangelismo” que se opunha as correntes fundamentalistas e que atingia diferentes
denominações, sem discriminar entre seitas protestantes tradicionais, pentecostais ou
neopentecostais ou mesmo renascidos cristãos que prosperaram nos anos de 1960. Nos termos
de Martin (2005, p. 40): “para o novo evangelismo era mais importante proclamar, anunciar o
evangelho do que defende-lo12”. A luta de apelo político a partir de Billy Graham pode ser
entendida como favorável a reformas socias, o que produzia grande apelo entre liberais e
progressistas, mas também investia na ideia de uma hegemonia cultural cristã e via a
revitalização da fé de uma escala mais local até as dimensões mais globais. Neste ponto o
apelo atingia muito mais republicanos conservadores do que democratas liberais.
Billy Graham de certa forma se sentia neutro13 entre democratas e republicanos o que facilitou
a boa interlocução com candidatos e presidentes de ambos os lados14. Apesar do perfil pouco
religioso, Dwight D. Eisenhower (presidente entre 1953 e 1961) foi o primeiro ocupante da
Casa Branca e mostra-se próximo de um movimento religioso. Ele foi o primeiro a participar
como presidente do National Prayer Breakfast15. E também segundo biógrafos de Billy
Graham16, cartas e visitas trocadas entre ambos é que foram o mais decisivo na decisão de
Eisenhower então um general, herói de guerra, decidir entrar na política. Após Eisenhower a
relação de Billy Graham com o presidente ocupando a Casa Branca se manteve estável e
constante com poucas oscilações até o governo de Bill Clinton (1993 - 2001)17.
12
No original: To the new evangelicals, it was more important to proclaim the gospel than to defend it”.
13
Essa neutralidade de Graham é, sem dúvida, o foco de maior contradição na vida de Graham, visto que, apesar
de publicamente colocar como neutro, o pastor participou da mobilização para que evangélicos não votassem em
Kennedy por ele ser católico, coletou informações sobre o Vietnã para Nixon, influenciou Ford para que Nixon
recebesse um perdão público após sua renuncia devido ao escândalo Watergate e tentou influenciar nos
bastidores os evangélicos para não votar em Carter.
14
Vale apontar que ele era um democrata registrado, mas que teve mais proximidade com os presidentes
republicanos.
15
Iniciativa criada por Abraham Vereide (1889 – 1969), um empresário de Seattle, que em 1942 criou o
International Christian Leadership que de Chicago organizada o National Prayer Breakfast, que eram encontros
anuais em D.C nos quais participavam não só lideranças religiosas e empresarias mas sobretudo políticos.
16
Cf. por exemplo The Preacher and the Presidents: Billy Graham in the White House de Nancy Gibbs e
Michael Duffy (ed. Center Street, 2008).
17
Após isso devido a sua idade e problemas de saúde Graham se isolou contudo ainda manteve contato com
George W. Bush e mesmo com Barack Obama que visitou o pastor em sua residência.
956
Liberty University x Regent University
As trajetórias de Jerry Falwell (1933 - 2007) e Pat Robertson (1930-) são marcadas por
algumas semelhanças e por muitas diferenças. Muitas vezes numa abordagem mais
jornalística os dois são retratados ou com “fundamentalistas” ou como “evangélicos” ou
também como religiosos que buscaram êxito na política, mas há grandes e importantes
diferenças tanto em suas propostas teológicas como pastores, quanto pelas suas estratégias
políticas, combinando nas diferenças entre as Universidades que cada um fundou em seus
respectivos” quartéis generais”, Falwell em torno na Thomas Road Baptist Church (TRBC)
em Lynchburg e Pat Robertson em torno da Christian Broadcast Network (CBN) em Virginia
Beach ambas cidades do estado da Virginia.
Falwell seguiu uma linha que autores como Diamond (1989) classificam como
“neofundamentalista” ou “fundamentalismo reformado”, nos termos de Martin (2011). Para
Tilly (2008) Falwell seguiria a trilha aberta por Howard Cadle (1884 – 2007), que em 1921
tinha seu próprio templo com capacidade para dez mil pessoas, fez sucesso pela rádio com seu
programa The Nation’s Family Prayer Period que chegou a ter audiência semanal de 30
milhões de ouvintes. Falwell por sua vez fundou sua TRBC foi fundada em 1956, crescendo
rapidamente chegou e desde do principio preocupada em também ter seus programas de radio
e TV, Falwell nos anos setenta atingia milhares de famílias com seu Old-Time Gospel Hour.
Segundo Kepel (1991) também devemos estar atentos a um segundo recorte temporal para
compreendermos a trajetória da universidade, pois, ela seguiria um perfil entre 1971 e 1985
focando-se na formação de pastores e na expansão nacional da TRBC e outro (de 1985 até o
presente) que, nos termos de Falwell, se concentraria na formação de “campeões para Jesus18”.
Nesse contexto, ser um “campeão para Jesus” significa ter passado por uma universidade que
18
No original “champions for Christ”.
957
pode oferecer uma formação de excelência com especialização capaz de garantir ao formando
uma empregabilidade num mundo “secular”, contudo, assegurando também valores morais e
cristãos. Em outras palavras, a proposta da Liberty está em espalhar seus valores e sua visão
de mundo inserindo seus alunos e formandos no “campo de batalha”, como entendem a
sociedade liberal, secular dos EUA contemporâneo.
Outro ponto central do projeto desta universidade é formar famílias a partir dos valores
defendidos pela instituição. Para isso, existem normas consideradas rígidas para os padrões
culturais atuais, ao qual, os alunos da Liberty são incentivados a canalizar toda sexualidade
para a vida pós-casamento19, via de regra, eles moram no campus, em dormitórios que
separam homens e mulheres e com horários definidos para entrada e saída, além de, eventuais
vistorias e monitoramentos de controle. A vida no campus, como descreve Roose (2008), é
regida pelas normas chamadas de “Liberty Way20” que não só estipula o que é proibido (como
consumo de álcool, ter relações sexuais, assistir filmes que não as considerados apropriados
ou até mesmo xingar ou usar palavras baixas), como também, estipula punições que podem
ser multas, pagamentos em orações, ou, até mesmo, a expulsão da universidade. Os alunos
também devem atender aos serviços religiosos três vezes por semana e todos ingressantes,
independententemente da carreira a seguir, são obrigados a cursar algumas disciplinas que
basicamente ensinam os valores da universidade e asseguram a base religiosa21.
A Liberty como constatamos em visita guiada em abril de 2013 é uma universidade moderna
que oferece muito conforto e bem estar a seus alunos. Como Kepel (1991) também descreve
em sua visita realizada a mais de vinte anos, é forte a sensação de estarmos experimentando
uma “utopia cristã22”. Atualmente, são mais de doze mil alunos (sendo 52% composto por
19
Neste sentido, Kevin Roose (2008) – que escreveu um livro contando sua experiência como aluno da Liberty
por um semestre ainda durante sua formação em Letras pela Brown Universty, uma instituição considerada
totalmente Liberal – nos conta que em média 80% dos alunos da Liberty fizeram ou vivem com “anéis de
promessa” que indicam o compromisso em se manterem “puros” até o casamento. Roose também descreve o
clima da Universidade como fortemente marcado por encontros que tendem a ser os primeiros passos para um
casamento.
20
Uma cópia do texto comentada está disponível em <http://www.dailykos.com/story/2012/05/11/1090946/-
Liberty-University-s-The-Liberty-Way-exposed>
21
Segundo Roose (2008) o perfil destas disciplinas é a base da mensagem institucional que pode ser sintetizado
em três pontos, negar a teoria da evolução e as consequências de uma ciência com base no evolucionismo,
reforçar a necessidade de um discurso “pró-vida” que condena veementemente o aborto e por fim a necessidade
de restaurar e afirmar a bíblia como detentora de “ verdades absolutas” negando assim uma linha teológica
liberal que fala em interpretações , relativismos e adaptações a cada momento histórico.
22
Neste ponto Kevin Roose (2008) também reforça esta ideia e descreve que o “Liberty Way” entre os alunos é
entendido como “a way to liberty” ou seja, uma vez dentro das normas e mantendo o código em vigor os alunos
se sentem livres e felizes como “campeões para cristo” e vivendo intensamente suas experiências acadêmicas e
religiosas. A ideia de utopia nasce da constatação de que a vida no campus da Liberty seria o “melhor dos
mundos” para os cristãos. É totalmente seguro, a vida religiosa é intensa (com grupos de orações e de estudos
958
mulheres e 48% por homens) numa área superior a 2600 hectares. Entre eles, 75% dos alunos
moram no campus e 74% recebem algum tipo de auxílio ou bolsa para suas despesas23.
Como o ponto central da proposta da Liberty University é formar “campeões para Cristo” que
saibam “pensar e responder há um mundo liberal e secular” e com sorte inserido numa família
formada a partir dos encontros24 que começaram na Liberty existe um sentido de constante de
valorização da família. Como aponta Roose (2008), os alunos aprendem que homens e
mulheres não são “iguais” mas complementares e que o casamento e as relações sexuais entre
pessoas do mesmo sexo são erradas justamente por não aceitarem a complementação criada
por Deus entre homens e mulheres. Neste sentido, Roose (2008) nos mostra que a instituição
oferece aconselhamento e sessões com um terapeuta evangélico para aqueles que, por algum
motivo ou de alguma forma, sintam atração por pessoas do mesmo sexo ou que estejam
“tentados” a “pecar” ou a romper seus votos de pureza.
Outro ponto importante para a universidade é a busca pela salvação, tanto pessoal, como de
outras pessoas. Neste tema, Roose (2008) relata ser comum alunos rezarem e pedirem a Deus
uns pelos outros e em grandes cerimonias que reúnem todos o alunos é também comum
alguns “confessarem seus pecados” e buscarem a salvação em momentos de êxtase religioso.
Estes alunos recebem atenção especial e ganham um momento de “fama” entre colegas após
seu momento de “salvação”.
bíblicos) líderes religiosos, pastores e conselheiros estão facilmente disponíveis para orientação e ajuda
espiritual, há palestras e testemunhos de cunho religioso com frequência semanal além da proximidade com a
TRBC e do fato de que se está cercado por pessoas que compartilham a fé crista de forma viva e intensa e que
buscam a “salvação“ de si mesmo e dos outros.
23
Dados fornecidos pelo site < http://colleges.findthebest.com/> Acessado em 23/07/2013.
24
Nos EUA “os encontros” (dating) são parte decisiva da cultura jovem, tanto entre liberais como evangélicos
ou conservadores. No caso da Liberty, Roose (2008) descreve os encontros como alegres, com conversas
sinceras e com fortes papeis de gênero. Ao homem cabe conduzir o encontro, desde buscar mulher e depois
deixa-la na porta de seu dormitório até conduzir a conversa, conduzir a reza antes da refeição e cabe também ao
homem arcar com todas as despesas do encontro. Em contrapartida, Roose descreve que é nítida a sensibilidades
das mulheres buscando “ possíveis candidatos a marido” e a frequência de “ encontros” determinaria entre
muitas mulheres do Campus a expectava por possível casamento pós graduação.
959
movimento gay (e sua busca por direitos e ameaça a” família”), a pornografia, o humanismo e
a destruição da família (tanto pelo avanço dos gays mas também pelo aumento no número de
divórcios, fácil acesso a pornografia etc.).
Junto a essa mensagem, notamos na Liberty uma forte influência das visões de Falwell que
colocam a Bíblia como texto sagrado, infalível que pode e deve ser interpretado o mais
literalmente possível. Historicamente, Jerry Falwell cercado dessas certezas bíblicas em
diferentes momentos pregou a desobediência civil contra leis que supostamente estariam
contra as leis divinas. Neste sentido, a Liberty University tem como proposta combater a
influência do secularismo na sociedade americana buscando em estratégia de longo prazo re-
evangelizar os EUA (não de baixo para cima como muitos pastores em revivais tentaram
fazer, mas do alto para baixo), inserindo seus “campeões para cristo” nos mais variados
postos sociais e fortalecendo e multiplicando os lações entre famílias evangélicas
majoritariamente de classe média e, cada vez mais, residentes em grandes cidades ou em
estados fora do sul25.
Diante da grandiosidade e das pretensões elevadas de Jerry Falwell para sua Liberty
University, a relação entre Pat Robertson e sua Regent Univerity são bem mais modestas e
revelam uma tendência maior a acomodação do que a expansão de seus projetos e ideias.
Pat Roberston vem de uma família política tradicional da Virginia, ao qual, seu pai foi
deputado e senador por mais de trinta anos em Washington D.C. Sua educação foi secular e
elitista, em Yale. Religiosamente, Robertson destacou-se ao criar em 1961 a Christian
Broadcast Network (CBN), em 1977 e uma universidade para formar quadros para CBN que
em 1978 virou a Regent University. Segundo nosso guia em visitada a instituição que fizemos
em abril de 2013, o nome Regent remete a ideia de regência, os estudantes e formandos dali
fariam a regência até a volta de Jesus e um novo reinado sob a Terra. Apesar dessa forte
conotação religiosa que nos foi apresentada formalmente, a universidade não afirma-se como
pertencente a uma denominação26 (como a Liberty que se afirmar como batista).
O campus é menor, são pouco mais de 28 hectares com pouco mais de dois mil alunos, sendo
37% composto por homens e 62,5% por mulheres, dados fornecidos por <
25
Região tradicionalmente mais religiosa e mais conservadora do país.
26
O que vem do fato do próprio Robertson ter dificuldade de se definir, sendo um pastor batista do sul ordenado,
mas que durante sua vida fez pregações mais próximas a movimentos carismáticos e pentecostais, defendendo
curas milagrosas e a habilidade de falar línguas.
960
http://colleges.findthebest.com/27 >. Deste universo de alunos, apenas 16% optam por viver no
Campus e segundo nosso guia, a Regent também tem seu código de conduta mas notamos ser
bem mais flexível sem por exemplo ter controle quanto a horário de entrada ou saída dos
dormitórios. Outro ponto a destacar é que, por se tratar de um universo estudantil, é reduzido
para os matriculados alguns benefícios difíceis de serem encontrados em outras universidades
como seguro de saúde, patrulhamento policial permanente no campus e instalações luxuosas
como podemos contatar em nossa visita ao teatro da universidade uma réplica luxuosa do
Ford's Theatre além de terem a disposição uma central de professores para auxílio acadêmico
(revisão de textos, auxilio em pesquisa etc) e tal como nos mostra o site
<http://colleges.findthebest.com/28>, 69% das aulas na Regent são com menos de 20 alunos.
Tal como acontece na Liberty, a Regent carrega temas que refletem as principais
preocupações de seus respectivos mentores e – ao mesmo tempo – “líderes espirituais”.
Robertson ao contrário de Falwell dialoga com um movimento evangélico que tende ao
pentecostalismo e com forte milenarismo. Falwell tinha referencias moderadas ao
milenarismo e vinha de uma forte tradição batista e fundamentalista.
Outra marca forte de Robertson é a herança e a importância da CBN, que se manifesta de duas
formas na universidade, a primeira pela valorização dos cursos de jornalismo e de
comunicação em geral, mas, sobretudo, com a valorização do curso de direito, na medida em
que, para o fundador da Regent Universty, desde o final dos anos 80 demostra grande
preocupação com as discussões em torno dos direitos constitucionais, especialmente com foco
na primeira emenda, que responde ao direito de expressão. Dono de inúmeras declarações
polêmicas, muitas consideradas ofensivas, Robertson desde 1990 é o patrono do escritório de
direito American Center for Law & Justice, cuja principal preocupação tem sido em torno de
casos que envolvem a primeira emenda. Da mesma forma, o curso de direito da Regent é
apresentado como “entre os melhores do país”. Segundo informações disponíveis do site do
curso da instituição o curso de direito conta com professores em tempo integral oriundos das
melhores universidades e consegue mesclar profundidade na discussão jurídica sem perder de
vista a comunidade e os interesses dos cristãos.
27
Acessado em 30/07/2013.
28
Acessado em 30/07/2013.
961
Conclusão
Ao comparar Jerry Falwell com Pat Robertson Kepel (1991) argumenta que a luta de Falwell
sempre esteve em torno da cultura, com o foco de transforma-la. Robertson, por sua vez, seria
muito mais messiânico e até certo ponto egocêntrico. Esta dicotomia também se manifesta
quando comparamos a Regent com a Liberty. A Regent é extremamente centrada em torno de
Pat Robertson, a ponto dele residir no campus e em visita guiada podermos encontrar seus
retratos espalhados pelo campus. A influência pessoal de Jerry Falwell sob a Liberty sempre
foi também muito alta, a por exemplo um museu dedicado a vida e trajetória de Falwell e seus
retratados também são encontrados pelos campus, porém, é nítido que o projeto da Liberty são
maiores do que a promoção de Falwell. Já o projeto da Regent demostra e sinaliza para um
certo acolhimento e tentativa de deixar um último legado conjuntamente com a CBN o grande
projeto de Robertson, ao qual ele pretende que siga existindo após sua morte.
962
comportamento (como no caso da Bob Jones) ou centradas nas habilidades especificas de um
pastor (como no caso da Oral Roberts), tanto a Regent como a Liberty buscam um impacto
muito maior, buscam formar e transformar a sociedade como um todo, formando para isso sua
própria elite.
Referências
AIKMAN, David. Billy Graham. His life and influence. Nashville: Thomas Nelson, 2007.
DIAMOND, Sara. Spiritual Warfare: the politics of the Christian Right. Boston: Ed. South
End Press, 1989.
HUNTER, James Davison. American Evangelicalism. Conservative religion and the quandary
of modernity. New Jersey: Rugters University, 1983.
__________. Culture Wars. The struggle to define America. New York: BasicBooks, 1991.
MARTIN, William. With God on our side: the rise of the religious right in America. New
York: Broadway Books, 2005.
ROOSE, Kevin. The unlikely disciple: a sinner's semester at America's holiest university.
New York: Grand Central, 2008.
VERISSIMO, Luis Fernando. Sobre o humanismo. Jornal Estado de São Paulo, São Paulo,
21 set., 2013.
963
964
Teologia da Libertação na terra do dólar
Introdução
A Teologia da Libertação (TdL), tendência que une religião e luta por justiça social, surgiu na
América Latina, a partir da década de 1960, no âmbito do catolicismo, mas atualmente
apresenta forte impulso nos Estados Unidos, nos campos protestante e católico e das lutas
sociais.
A importância do estudo da Teologia da Libertação (TdL) nos EUA se deve a vários motivos.
Primeiro, e surpreendentemente pouco conhecida, há nesse país intensa elaboração teológica
e inovadoras práticas religiosas que seguem a linha da libertação. É importante resgatar essas
experiências, pois mostram uma face mais madura e solidária da religião nessa sociedade. A
vertente mainstream é mais conhecida, devido a seu estilo midiático e emocional, e a um viés
fundamentalista, também presentes nas manifestações mais ruidosas do pentecostalismo
brasileiro – cujo crescimento tem sido fulminante no Brasil a partir da década de 1970, sendo
um fator decisivo na atual revolução do cenário religioso em nosso país.
Terceiro motivo, é que se celebra atualmente o 50º aniversário do Concílio Vaticano II (1962-
65). Nesse evento de extraordinária magnitude, a Igreja Católica se dispôs a rever sua
estrutura e procedimentos, pretendeu dialogar com a Modernidade e com as questões
contemporâneas (aggiornamento) e reatar laços com outras religiões (ecumenismo). Um dos
efeitos do Concílio foi abrir espaço para a ascensão da Teologia da Libertação na América
Latina, assumida oficialmente na II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em
Medellín no ano de 1968. No entanto, essa perspectiva progressista foi seguidamente
1
Doutor em Ciências Sociais/Antropologia pela PUC/SP. Professor titular e livre-docente em Ciência da
Religião pela mesma universidade. Professor-pesquisador visitante na Columbia University em Nova York pela
Capes/Fulbright e Bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 pelo CNPq. Contato: jorgeclaudio@pucsp.br.
965
desconstruída pela alta hierarquia e por grupos católicos conservadores em evidência antes do
papa Francisco. Por isso, a retomada do Concílio tem uma intenção política dentro do âmbito
religioso.
Teologias, no plural
A TdL estadunidense tem filiação atribuída ao pensamento e ação de figuras notáveis, tais
como Charles A. Briggs, os irmãos Reinhold e Richard Niebuhr, Dietrich Bonhoeffer, Paul
Tillich, Martin Luther King, Malcolm X, James H. Cone, Richard Horsley e Alice Walker
(2009). Esses intelectuais, artistas e ativistas tiveram ou têm estreitos laços com comunidades
religiosas e/ou instituições acadêmicas dos EUA, com destaque para o Union Theological
Seminary (UTS), afiliado à Columbia University de Nova York.
A Teologia da Libertação nos EUA se contrapõe à prática religiosa mainstream que ocupa
posição central na cultura estadunidense e mantém numerosas interrelações com a política e
economia dessa sociedade. Grosso modo, a vertente religiosa hegemônica se restringe à
subjetividade e à moral individual, apoia-se na emoção e na leitura fundamentalista do texto
bíblico, desconsidera questões de gênero, raça e ecologia, e assume posições conservadoras
do ponto de vista político e social.
Nascida no século XVIII, importante manifestação da TdL, foi gestada nas Black Churches
que se opunham à escravidão e à segregação dos africano-americanos. Por volta de 1870,
consolidou-se uma experiência precursora, quando protestantes progressistas criaram o
movimento denominado Evangelho Social, que defendia a reforma social-religiosa em
resposta aos problemas sociais criados a partir da Guerra Civil, pela rápida industrialização,
urbanização e imigração crescente. Esse movimento defendia a aplicação de princípios morais
966
na melhoria da sociedade industrial e a implantação de reformas como a abolição do trabalho
infantil, a redução da jornada de trabalho e a regulação das fábricas. Os militantes do
Evangelho Social priorizavam a salvação social e se baseavam nas nascentes ciências sociais
e na teologia liberal. Esse movimento atingiu o ápice no início do século XX.
A luta contra as leis segregacionistas, reunidas sob o rótulo de “Jim Crow”, culminou nas
décadas de 1950-60 com o movimento pelos Direitos Civis, liderado pela NAACP (National
Association for the Advancement of Colored People) e por figuras como o pastor Martin
Luther King, tendo-se consolidado teoricamente através da Teologia da Libertação Negra, ou
Black Theology. Mais recentemente, a eleição de Barack Obama, em 4/11/2008, mobilizou
aspirações e conquistas de igualdade social. A oposição inquiriu sobre as raízes religiosas do
presidente e “denunciou” seu mentor, o incendiário pastor Jeremiah Wright, da Trinity
Church em Chicago, que se inspira nessa teologia.
Nesse contexto, merece destaque o pensamento de James Hal Cone que, em 1970, começou a
lecionar no Union Theological Seminary (UTS). Cone foi um dos principais formuladores da
Teologia da Libertação Negra, através de seus livros Black Theology and Black Power (1969)
e A Black Theology of Liberation (1970). O pensamento de Cone vem inspirando gerações de
teólogos(as) e ativistas, como a teóloga Jacquelyn Grant e o filósofo e ensaísta Cornel West.
Apoiando-se na reflexão do filósofo e teólogo Paul Tillich (1886-1965), também professor do
UTS, Cone enfatiza a ideia de que a teologia está enraizada em determinadas razões históricas
e sociais; assim ele critica a teologia abstrata de tradição europeia. As bases da TdL de Cone
são o contexto de opressão sobre os negros e identificação de Jesus com os pobres e
oprimidos. A Teologia da Libertação Negra denuncia os Estados Unidos como uma nação
branca e racista, e acusa as igrejas brancas de serem o Anticristo.
967
do mundo”. Horsley reconhece a influência, em sua trajetória intelectual, da Teologia da
Libertação brasileira e latino-americana.
Ativismo, bandeiras
A TdL tem inspirado muitas ações concretas na sociedade estadunidense. Nos anos 1970, o
teólogo chileno Sérgio Torres organizou uma conferência ecumênica “Theology in the
Americas”, que ficou referencial. Ocorrida em Detroit, ela reuniu as tendências emergentes
envolvidas com a solidariedade à luta contra as ditaduras na América Latina, à gigantesca
população de encarcerados e às mulheres. Nos anos 1980 aos poucos ela foi se confinando à
Academia e se afastando dos movimentos sociais. Era algo feito a modo de TdL, mas sem a
ligação social.
Há pessoas, grupos e publicações que mantêm viva essa tendência. Por exemplo, o jornal
“Sojourners”, editado em Washington pelo evangélico Jim Wallace, líder de comunidade vive
entre os pobres e adota um enfoque pacifista. Também os anabatistas do Radical Discipleship,
liderados por Ched Myers, com maioria branca, voltados para a promoção dos imigrantes sem
documentos e identificados com temas como reconciliação e estudos bíblicos.
Atualmente a perspectiva da libertação está disseminada nas bandeiras liberais presentes na
cultura e mentalidade estadunidenses. Por exemplo, nos direitos dos gays, na recepção às falas
e ideias de Cornell West, na luta contra o imperialismo e militarismo, contra o
encarceramento e pela desativação da prisão de Guantánamo, nas pautas ecológicas lideradas
por Bill McKibben, contra a avareza corporativa.
Referência obrigatória, a Orbis Books (pertencente aos irmãos Maryknoll) desde os anos 1970
até o início da década de 1990 publicou todos os teólogos da libertação – Gustavo Gutierrez,
James H. Cone, Jon Sobrino, Leonardo Boff, Pablo Richard, Elza Tamez, José Míguez
Bonino, Pedro Casaldáliga, Carlos Mesters, Joseph Comblin, Ignacio Ellacuría. Atualmente,
no entanto, o mercado para essa temática vem apresentando queda acentuada.
No campo católico, hoje a não violência é uma tendência central, embora apresente
movimento pendular. Até a guerra do Vietnã, os pacifistas eram uma minoria; a partir daí,
ganhou força e desembocou na forte reação anti-nuclear. Ao final da Guerra Fria, o pacifismo
se dissipou; quando ocorreram as Guerras do Golfo, houve intensos protestos; após os
atentados de 11/9, não houve grande reação às invasões do Iraque e Afeganistão, graças à
manipulação do medo pelo governo Bush.
968
Nesse mesmo campo ocorreu um episódio paradigmático, pouco conhecido: o “St. Patrick’s
Day Four”. Ele ocorreu em 17 de março de 2003, no dia de São Patrício, padroeiro da Irlanda
e de seus descendentes nos EUA. Na ocasião, quatro pacifistas católicos de origem irlandesa
jogaram o próprio sangue nas paredes, cartazes e na bandeira dos Estados Unidos de um
centro de recrutamento militar, na cidade de Ithaca. Eles pertenciam a movimentos como o
Catholic Worker (criado por Dorothy Day), o Christian Peacemaker Teams e o Magnificat
Catholic Worker. Os quatro protestavam contra a ameaça de invasão do Iraque (que
começaria dali a três dias). Em seguida, ajoelharam-se e aguardaram ser presos.
Nos julgamentos que se seguiram, os quatro argumentaram que a invasão do Iraque era ilegal
perante o direito internacional, por não ser aprovada pela ONU, e que os Princípios de
Nurenberg os autorizam a agir em caso de crimes contra a humanidade. Diziam-se inspirados
pela Boston Tea Party, por Rosa Parks e Martin Luther King. Segundo análises, o grande
sacrilégio foi jogar sangue na bandeira americana. Esse episódio reúne dimensões que o
tornam um capítulo típico da Teologia da Libertação ao estilo estadunidense.
Referências latino-americanas
Uma das mais importantes influências da TdL latino-americana ocorreu em 1952, com a
chegada ao Brasil do missionário norte-americano Richard Shaull, presbiteriano. Ele trouxe a
969
experiência do Evangelho Social e teve estreita relação com os pastores presbiterianos
brasileiros, o mineiro Rubem Alves e o curitibano Jaime Nelson Wright.
Rubem Alves é considerado precursor da TdL, por sua tese de doutorado “Towards a theology
of liberation: an exploration of the encounter between the languages of humanistic
messianism and messianic humanism”, defendida em 1968 no Princeton Theological
Seminary e publicada com o título A theology of human hope. Nessa obra, Alves critica a
teologia baseada na metafísica e propõe a formação de novas comunidades de cristãos
animados pela paixão da libertação humana.
A TdL se concretizou sobretudo nas Comunidades Eclesiais de Base, que haviam surgido por
volta dos anos 1960. As CEBs eram grupos de aproximadamente 20 a 80 pessoas oriundas das
classes populares que cultivam laços comunitários. Uma comunidade de base se caracteriza
por: proximidade geográfica, o que possibilita a reivindicação por melhorias; reflexão sobre a
vida cotidiana à luz da Bíblia; ampla participação nas discussões. Aos poucos, as CEBs se
abriram para a transformação da sociedade através de movimentos sociais e do movimento
operário.
A ação das CEBs se inspirava no método Paulo Freire de alfabetização de adultos e pretendia
levar à conscientização e à ação. Movidas pelo tema “Igreja povo de Deus”, proposto na
constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, as CEBs tornaram-se participantes
ativas. As conferências do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em Medellín
(1968) e em Puebla (1979) consolidaram as propostas da libertação e da opção preferencial
pelos pobres.
A partir dos anos 70, a experiência das comunidades se expandiu pelo continente latino-
americano, extrapolando os limites do catolicismo e atuando em parceria com as igrejas
metodista, luterana e presbiteriana. Atualmente, graças à repressão dos dois papas anteriores,
970
a TdL e as CEBs foram obrigadas a adotar um low profile, mas com o papa Francisco,
provavelmente o panorama apresentará alterações significativas.
Considerações finais
Ultimamente, a TdL estadunidense começou a mudar seu estilo e temática, voltando-se para a
crítica das estruturas econômicas e sociais, do Império e das injustiças. Um dos sinais disso é
a presença de religiosos da libertação no movimento Occupy Wall Street. Dentre os grupos
mais prolíficos está a Teologia Latina/o e a Womanist. A TdL ainda mantém o estilo
acadêmico, embora seja mais radical em suas colocações teóricas. Também realiza estudos
bíblicos com enfoque na libertação.
A TdL no campo católico estadunidense tem como pautas específicas a reação às atitudes dos
bispos, abuso sexual e falta de transparência. Observa-se grande otimismo com o papa
Francisco, a começar pela mudança de tom, de solidariedade, gestos simbólicos (área
principal do catolicismo) em direção à opção pelos pobres, atenuando a auto-referência e ao
encontro dos companheiros do mundo. Espera-se maior colegialidade nas decisões, que seja
suspensa a intervenção sobre a Leadership Conference of Women Religious e que sejam
promovidas mudanças paulatinas com a nomeação de bispos mais progressistas. Essas seriam
medidas de a Igreja Católica enfrentar a atual crise de vocações, as largas saídas de fiéis tanto
para o pentecostalismo como para o secularismo urbano.
Referências
971
COMBLIN, José. Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007
CONE, James H. The Cross and the Lynching Tree. New York: Orbis Books, 2011
__________. Black Theology and Black Power. New York: Orbis Books, 1969
SOBRINO Jon. Fora dos pobres não há salvação. São Paulo: Paulinas, 2008
972
973
GT9 – Fundamentalismos religiosos
Coordenadores
Resumo
974
Fundamentalismo ou fundamentalismos? Uma análise da
problemática conceitual e sociocultural que transcendeu o seu
sentido e razão local
José Honório das Flores Filho1
Introdução
Antes de qualquer outro tempo anterior que se tenha registro, a modernidade, ainda mais a
atual, é extremamente dinâmica e cheia de adaptações, ressignificações, elasticidade,
flexibilidade, liquidez, hibridismos, sincretismos, transitividade, reflexividade etc. Onde os
conceitos pulam do seu sentido original e se adaptam, transformam-se, interagem-se,
fragmentam-se em várias outras concepções e noções de acordo com seu ambiente
sociocultural. Assim pode ocorrer com os termos conceituais, como por exemplo,
“fundamentalismo”.
1
Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB, doutorando em Ciências da Religião pela UMESP, bolsista do
CNPq, pesquisador do REPAL (GP Religião e Periferia na América Latina). Contato:
honoriomagister.floresfilho@yahoo.com.br.
975
modernidade que a sociedade norte-americana passava naquele momento. Não apenas a
modernização tecnológica, mas também contra a modernização dos espíritos da sociedade, do
liberalismo e liberdade de opiniões. O tratado sustentava a tese de que só a bíblia é que
poderia dar ao individuo a seguridade e a verdade da fé cristã. De algo que era a inspiração do
próprio Deus (BOFF, 2002).
Para o fundamentalista a criação se realizou mesmo em sete dias. O ser humano foi feito
literalmente de barro. Eva é tirada da costela física de Adão. O preceito “crescei e
multiplicai-vos, e subjugai a terra, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu,
sobre tudo o que vive e se move sobre a terra” (Gêneses I, 29-29) deve ser tomado
estritamente ao pé da letra, pouco importando se essa dominação antropocêntrica venha por
em risco a biosfera. Mais ainda: só Jesus é o caminho, a verdade e a vida, o único e
suficiente salvador. Fora dele há somente perdição.
Ao ler esta passagem de Boff podemos vislumbrar nitidamente, talvez, por conhecimento
através de nossa própria experiência, ao encontrar com um individuo crente protestante que
grita em uma praça pública “Arrependa-se e aceite Jesus. Salve-se da condenação eterna. Só
Jesus salva. Só ele é o caminho, a verdade e a vida e ninguém chega ao pai se não for só
através dele” etc. E nisso o fundamentalista não tolera outra forma de religiosidade que não
seja o cristianismo protestante. E seus fundamentos são convicções profundas na crença de
uma verdade expressa somente através da letra da bíblia. Esta é vista como o verdadeiro livro
sagrado de todas as eras. Assim como Jesus é visto como o único mestre, messias, salvador do
mundo entre todos de todas as eras e tempos da história da humanidade.
976
Não existe Sidarta Gautama, nem Krishina, Maomé ou quaisquer outros anteriores ou
posteriores que possa se comparar a ele, Jesus. Destarte, os fundamentalistas originais criaram
não apenas uma convicção de reação efetiva aos pensamentos modernizantes das ciências e
tecnologias. Mais também uma convicção profunda de orgulho próprio ao usar o termo “sou
fundamentalista”.
Neste interim, com o passar do tempo o significado que foi criado de forma literal no seu
fundamentalismo pulou de um significado preso no tempo histórico e local, para um termo
genérico aplicado a outros campos da sociedade de pessoas e grupos que adotassem
semelhantemente aos fundamentalistas originais, convicções intolerantes e militantes
contrárias e diferentes as suas. Como por exemplo, o campo político. Para Faustino Teixeira
(2002) “Na raiz do fundamentalismo há o sentimento de insegurança, desorientação ou
anomia resultantes de uma dinâmica modernizadora”. Mas o termo se popularizou a tal ponto
que fundamentalista pode ser qualquer individuo religioso ou não, que aja com intolerância e
até com agressividade aos seus contrários ou opositores. E nisso o termo se tornou pejorativo,
desqualificante e ofensivo a quem for dirigido.
Nessa popularização do termo o mass media possui uma importante atuação e propagação do
uso do termo “fundamentalista ou fundamentalismo”. Inúmeras vezes pode-se escutar do
ancora do telejornal, ou até mesmo estampado numa página de algum site de noticias,
Manchetes, por exemplo, do tipo “Nigéria condena grupos fundamentalistas Boko Haram e
Ansaru - O governo da Nigéria condenou os grupos fundamentalistas islâmicos Boko Haram
e Ansaru, ambos atuantes no norte do país, e ditou severas penas de prisão para seus membros
e simpatizantes2”. Neste caso o termo fundamentalismo foi utilizado para nomear grupos de
islâmicos, ou seja, de outra religião.
977
nos escritos do tal livro para poder haver uma discussão sempre com base no sentido literal
das escrituras. Destarte, religiões afro-brasileiras, como por exemplo, a Umbanda, não poderia
gerar entre seus adeptos um fundamentalista, porque não teriam um fundamento textual
sagrado para o qual se remeter em seus argumentos. Pierucci delimita ainda mais o sentido de
fundamentalismo ao dizer que só as religiões monoteístas podem suscitar fundamentalistas.
Porque não haveria sentido, segundo ele, ser fundamentalista em religiões que possuam vários
deuses e com isso várias verdades.
Então temos a partir destas premissas argumentadas por Pierucci a noção de que só pode
haver fundamentalismo no âmbito religioso, que a religião tenha um livro sagrado e que esta
seja monoteísta. Nessa interação do conceito de fundamentalista os argumentos de Pierucci
vão de encontro a dizeres populares que utilizam o termo geralmente taxativo e ofensivo em
outros campos. Pierucci (2006, p.7) argumenta que:
Dizer então que fulano é um petista fundamentalista, ou que sicrana é uma feminista
fundamentalista, pode ser uma ofensa pessoal, válida no calor de uma discussão, mas ela
esvazia o conceito daquilo que ele realmente pode nos dizer de específico e próprio.
Podemos usar fundamentalismo como sinônimo de fanatismo ou radicalismo, assim como
uma série de outros termos com que descrevemos determinadas atitudes políticas. Acho,
porém, que isso não ajuda na hora de uma discussão mais refinada, sobretudo quando não
queremos perder de vista que aquilo que está realmente em jogo e que realmente pesa é o
apego religioso a um texto tido como sagrado e definitivo. Noutras palavras, não ajuda
muito ficar “laicizando” o conceito de fundamentalismo.
Nessa definição e vertente defendida por Pierucci, ficam de fora até grupos sociais
comumente, algumas vezes, tidos como fundamentalistas, como por exemplo, grupos
políticos, feministas, GLBTTs etc. Dentro dessa mesma lógica de pensamento e argumento se
encontra Verônica Melander (2000) apesar de seus argumentos encontrarem um ponto de
consonância com o de Pierucci no sentido em que se deve limitar o uso do termo ao campo
religioso, que no caso de Melander seu foco é o protestantismo americano que usa como
modelo de definição para o fenômeno apresentado em outras culturas e países em especial na
América Latina.
978
evangelicalismo político. Nome este devido a sua observação dos protestantes na Guatemala
em que se baseou sua pesquisa. Segundo a autora a decisão de usar evangelicalismo político
ao invés de fundamentalismo seria para diferenciar-se do que ela chama de “confusão” da
acepção do termo tanto do lado acadêmico quanto do lado popular.
Zygmund Bauman usa o termo fundamentalismo como uma nova forma de religião que nasce
das contradições internas da vida pós-moderna. Esse entendimento se aplica, genericamente
falando, a todos os movimentos religiosos como frutos de uma pós-modernidade. E ousa ao
afirmar que:
Os pobres de hoje são, antes e acima de tudo, consumidores falhos, incapazes de tirar
vantagem dos tesouros tantalizantemente exibidos a seu alcance, frustrados antes do ato,
inabilitados mesmo antes de experimentar; enquanto eles são irrealizados produtores, ou
979
pessoas fraudadas na divisão da mais-valia, mas a um segundo de distância. É essa
característica que os torna, potencialmente, uma clientela de que os movimentos
fundamentalistas [...] podem tirar suas reservas.
Nessa justificativa de Bauman para o advento do fundamentalismo ele justifica não apenas o
seu uso alargado, flexível a outras religiões na modernidade como também, o legitima
afirmando sua “normalidade autêntica” numa sociedade cheia de males. Legitimidades e
opiniões a parte, os usos do termo fundamentalismo segue ainda com suas problemáticas de
significações, ressignificações, delimitações e restrições acadêmicas. Mas se observarmos
bem as próprias restrições ou tentativas de normatizar, o uso do termo deixa brechas por onde
pode passar os “vermes” das ressignificações.
Pierucci (2006, p.6) deixa uma brecha na sua argumentação ao fazer-se uma crítica ao dizer
que:
980
O popular e o midiático nos usos e supostos abusos do termo “fundamentalismo
3
Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (versão 1.0.5) Instituto Antônio Houaiss. Editora: Objetiva,
Agosto de 2002.
4
Fundamentalismo. Infopédia. Disponível em: http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/fundamentalismo
Acesso em 12 ago. 2013.
981
No Dicionário Michaelis5 deparamos com a definição de fundamentalismo: “Crença na
interpretação literal da bíblia. Crença na forma estritamente ortodoxa de uma religião, não
admitindo ideias reformistas etc.; adesão a quaisquer doutrinas estritamente ortodoxas”. No
dicionário Aurélio6 encontramos: “Observância rigorosa à ortodoxia de doutrinas religiosas
antigas, esp. do islamismo; observância rigorosa às crenças religiosas tradicionais, esp. em
grupos protestantes dos Estados Unidos [...]”. No Dicionário Sacconi achamos o seguinte:
“Movimentos organizados de evangélicos militantes, originários dos Estados Unidos, em
1920, que se opunham ao liberalismo e ao secularismo; fidelidade à teologia desse
movimento; comportamento ou ponto de vista caracterizado por rígida fidelidade aos
princípios básicos ou fundamentais de determinado movimento religioso, político, etc.”.
[...] paralelo a todo esse desenvolvimento tecnológico, ocorreu uma grande concentração de
poder nas mãos de alguns conglomerados de mídia, que determinam ao leitor o que é ou
não notícia, e se for, como esta será transmitida ao leitor ou telespectador [...]. A mídia cria
diariamente a sua própria narrativa sobre o mundo e a apresenta aos telespectadores - ou
aos leitores de jornais – como se essa narrativa fosse a própria história do mundo. Os fatos,
transformados em notícia, são descritos como eventos autônomos, completos em si
5
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2000.
6
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3ª.
edição. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1999.
982
mesmos. Os telespectadores, passivamente embalados pelo “estado hipnótico” diante da
tela de TV, acreditam que aquilo que veem é o mundo em estado “natural”, é “o” próprio
mundo.
Neste mesmo sentido que aponta Arbex, os telespectadores e indivíduos possuindo apenas
uma visão unilateral, que foi propagada de certa forma pelos que detém a hegemonia e o
poder midiático, dada situação, tais indivíduos podem aceita-la como realidade incontestável,
desconhecendo as causas históricas e a problemática envolvida numa situação como um todo.
Concebendo no dado momento uma visão corrompida pela parcialidade midiática exacerbada.
Um exemplo adequado disso está no conflito árabe – israelense. Segundo Carlos Dornelles
(2002, p. 240):
Cabe aqui lembrar o tipo de linguagem ideológica utilizado pela imprensa para descrever os
conflitos. Todo ataque de Israel é considerado “retaliação” ou “resposta” ou “reação”. Para
os palestinos, a definição oficial é “atentado”, como se não houvesse o menor motivo para
uma retaliação contra a ocupação ou contra os ataques israelenses.
As ações violentas de árabes são repassadas geralmente na mídia de forma parcial sem
mostrar as problemáticas que o conflito encerra. No livro reportagem “Memórias de Suez” de
José Honório Flores Filho, que relata o cotidiano de ex-integrantes da UNEF – I na faixa de
gaza para intermediar a paz no conflito árabe-israelense, encontramos:
7
Silvia M. Montenegro (2002) no seu artigo “Discurso e contra discursos: olhar da mídia
sobre o islã no Brasil” relata que: “Evidentemente, Islã e fundamentalismo mostram-se
intimamente associados, a ponto de parecer impossível falar de um sem fazer referência ao
outro. As palavras "islâmico", "Islã" e "muçulmano" funcionam como adjetivos para o
fundamentalismo”. Em publicação de 19 de setembro de 20018, logo após os choques dos
7
MONTENEGRO, Silvia M. Discurso e contra discursos: olhar da mídia sobre o islã no Brasil. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132002000100003&script=sci_arttext Acesso em 13 ago. 2013.
8
Veja on-line. Especial. Disponível em: http://veja.abril.com.br/190901/p_048a.html Acesso em 17 set. 2013.
983
aviões contra as torres gêmeas, símbolo do orgulho capitalista dos Estados Unidos, a revista
Veja, mostrou o quanto uma mídia, seja ela impressa, radiofônica ou televisiva pode ser
personificada de forma explícita nos preconceitos unilaterais, opiniões forçada e formatizada
nos preceitos elitista aos moldes dos Estados Unidos:
Claro que posteriormente esse artigo da revista rendeu muitas críticas de desaprovação e até
em tons de denúncia contra a posição explícita da revista em querer forçar a opinião pública.
Muitos trabalhos acadêmicos também foram escritos. Citando apenas alguns como exemplos,
temos ‘Onze de setembro de 2001 e a representação do islã na revista veja’ de Carolina Vera
Cruz Mazzaro (TCC - UniCEUB -Universidade de Brasília); ‘Orientalismo revisado- a
cobertura da Veja ao islamismo e ao mundo árabe no pós- 11 de setembro’ de Felipe Vagner
Silva de Farias (Dissertação de mestrado - Universidade Federal Fluminense); ‘o mundo
islâmico no discurso da Veja: diversidade e uniformidade9’de Wellington dos Santos
Figueiredo (artigo da revista Intellector); ‘Veja e a cobertura do “11 de setembro”: a
legitimação da guerra imperialista10’ de Carla Luciana Silva (artigo da revista Projeto
História- PUC-SP); ‘O que incomoda na revista Veja’ (artigo do observatório de imprensa);
além de várias outras citações incluídas em vários trabalhos acadêmicos, como este que agora
apresento ao leitor.
9
Disponível em: http://www.revistaintellector.cenegri.org.br/ed2008-08/wellingtonfigueiredo.pdf Acesso em 13
ago. 2013.
10
Disponível em: file:///H:/Artigos%202013/Fundamentalismo/Observatorio%20da%20Imprensa%20-
%20Materias%20-%2019%209%202001.htm Acesso em 13 ago. 2013.
984
A reorganização de tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade da
modernidade supõem propriedades universalizantes que explicam a natureza fulgurante e
expansionista da vida social moderna em seus encontros com práticas tradicionalmente
estabelecidas (GUIDDENS, 2002, p. 27)
Antony Guiddens escreve sobre mecanismos de desencaixe como sendo aquilo que separa a
intenção das particularidades do lugar. Ou, os deslocamentos das relações da sociedade dos
contextos locais e sua combinação através de distancias indeterminadas do espaço/tempo.
Nessa perspectiva aquilo que antes era um fenômeno local como o fundamentalismo, por
exemplo, se desloca do seu sentido literal contextual histórico se distancia, e é reconfigurado
em outros campos de entendimento e até mudado seu significado sempre em tendências
expansionistas, globalizantes.
A imagem que me vem à mente quando falam em monge budista é a de um asceta sentado no
chão com as pernas cruzadas, ao estilo lótus (com as palmas dos pés para cima), meditando de
olhos fechados e totalmente, ou pelo menos aparentando, paz e serenidade. Mas de repente,
estampada na tela do computador surge à notícia de que grupos budistas se juntam para
agredir, destruir, atear fogo e até matar pessoas. Estas foram às manchetes que estamparam as
agências e redes de noticias no mundo: “Fundamentalistas Budistas Desatan Genocidio de
985
Musulmanes en Birmania ”; “Grupos radicais budistas atacam muçulmanos no Sri Lanka ”;
“Birmânia declara lei marcial para controlar violência entre budistas e muçulmanos ”. Monges
budistas que geralmente são pacifistas e altamente reservados se tornam reacionários e
violentos. Esse seria um Fundamentalismo do tipo 1 ou 2 segundo Melander (2000)? Ou os
dois ao mesmo tempo? Seria um entrechoque de realidades no palco de uma modernidade
sedenta por inovações, mas ao mesmo tempo carente e nostálgica pela volta ao idílico mundo
divino, nunca concretizado, mas sempre buscado? Uma compensação de compensadores
artificiais, pela impossibilidade de realizar ou se alcançar uma recompensa (STARK;
BAINBRIGDE, 2008)?
A modernidade neste viés de forças que convergem, mas ao mesmo tempo divergem-se numa
complexidade de envolvimento entre a razão e o sujeito, a racionalização e a subjetivação do
divino que Alain Touraine (2009, p.46-47) escreve:
Muitos pensaram que a ruptura do mundo sagrado e mágico devia deixar o lugar livre a um
mundo moderno governado pela razão e pelo interesse, que seria acima de tudo um único
mundo sem sombras e sem mistérios, o mundo da ciência e da ação instrumental. Este
modernismo [...] pareceu triunfar por muito tempo e é somente na segunda metade do
século XIX, com Nietzsche e Freud, que ele será criticado e entrará em decomposição. [...]
a modernidade não substituiu um universo dividido entre o humano e o divino por um
mundo racionalizado; de maneira diretamente inversa, ela quebrou o mundo encantado da
magia dos sacramentos substituindo-o por duas forças cujos relacionamentos tempestuosos
desenham a história dramática da modernidade: a razão e o sujeito, a racionalização e a
subjetivação.
986
Conclusão
987
Referências
ARBEX Jr., José. Telejornovelismo: Mídia e História no Contexto da Guerra do Golfo. Tese
de Doutorado apresentada no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, em 2000.
DORNELLES, Carlos. Deus é inocente: a imprensa não. 1a. edição.São Paulo: Editora
Globo, 2002.
STARK, Rodney; BAINBRIGDE, William Sims. Uma teoria da religião. São Paulo:
Paulinas, 2008.
Veja on-line. Especial. O império vulnerável. Ed. 1718. 19 set. 2001. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/190901/p_048a.html Acesso em 17 set. 2013.
988
989
Fundamentalismo protestante e pentecostalismo: distanciamento e
proximidade
Osiel Lourenço de Carvalho1
Introdução
Precursores do Fundamentalismo
Depois da primeira geração de reformadores surgiu uma teologia caracterizada pela chamada
ortodoxia, na qual a inspiração verbal das Escrituras bem como sua infabilidade e inerrância
eram centrais. Um dos representantes dessa teologia protestante ortodoxa foi o teólogo ítalo-
suíço Francis Turretin (1623-1687), o qual escreveu uma obra em três volumes chamada
Instituitiones thelogiae elenchiticae. Nela, Turretin faz um tratado sistemático das doutrinas
cristãs e, pois acreditava na inspiração verbal de toda Escritura, pois segundo ele as palavras
da Bíblia foram transcritas diretamente pela direção do Espírito Santo. Portanto, as Escrituras
1
Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Bolsista CAPES e membro do GP Teologia no Plural.
Contato: osiel_carvalho@yahoo.com.br.
990
seriam uma produção predominantemente divina e não humana, pois seus escritores foram
diretamente usados por Deus para escreverem cada palavra do texto bíblico; com efeito, para
entendermos o fundamentalismo, precisamos conhecer Turretin e sua obra.
Para Turretin mesmo até os pontos vocálicos do texto hebraico do Antigo Testamento eram
divinamente inspirados e, consequentemente infalíveis. No entanto, nessa época de Turretin
já se sabia que os pontos vocálicos do Antigo Testamento foram acrescentados posteriormente
pelos massoretas no século VI d. C. Turretin argumentou e disse que o texto massorético era
inerrante e não precisava ser corrigido por manuscritos hebraicos mais antigos. Portanto, de
acordo com Turretin o texto bíblico que ele tinha em mãos era plenamente inspirado por
Deus.
Uma dinastia de erudição teológica conhecida como “escola de Princeton” cresceu a partir
dos ensinos de Turretin. Ela era exemplificada por Archibald Alexander, pela equipe de
teólogos presbiterianos conservadores formada por pai e filho, Charles Hodge e Archibald
Alexander Hodge, e por seu sucessor Benjamim Breckinridge Warfield. Durante o reinado
teológico em Princeton de 1812 a 1921, a dinastia Alexander-Hodge-Warfield de teologia
de Princeton traduziu o escolasticismo e a ortodoxia protestante do tipo Turretin para o
contexto norte-americano do século XIX e criou os alicerces teológicos e doutrinários que
deram origem ao fundamentalismo no século seguinte.
O mais destacado dos teólogos em Princeton foi Charles Hodge; nascido em 1797, numa
família presbiteriana conservadora, foi também aluno em Princeton onde seu principal objeto
de estudo era a teologia sistemática de Turretin. Recém formado, foi estudar em outras
universidades europeias e assistiu palestras de Shleiermacher e Hegel. Todavia, já nessa época
não se simpatizava com a teologia liberal, pois segundo ele essa forma de fazer teologia
descaracterizava o cristianismo. Hodge procurou um fundamento filosófico para sua teologia
e teve acesso ao realismo de Thomas Reid (1710-1796).
991
Com base na filosofia de Thomas Reid, Hodge afirmava que a ciência racional era uma das
bases da teologia protestante. Na sua obra Teologia Sistemática ele organizou os dados da
revelação divina, pois segundo ele as Escrituras eram inerrantes e infalíveis, sendo assim, não
havia incoerências na Bíblia; tudo estaria de acordo com a racionalidade. Hodge também
defendia que a inspiração das Escrituras não se deu apenas no campo das ideias, mas as
palavras do texto bíblico também foram inspiradas pelo Espirito Santo. Com efeito, as
Escrituras conteriam a verdade. Esses conceitos de Hodge fizeram dele o precursor do
fundamentalismo do século XX. Ele considerava a teologia liberal de Schleiermacher apenas
uma intuição mística pelo fato de ser subjetiva e não valorizar o conteúdo doutrinário do
cristianismo.
2
É o estudo e a investigação das escrituras bíblicas que procura discernir e discriminar julgamentos sobre essas
escrituras. Ela pergunta quando e onde um particular se originou. Como, por quais razões, por quem, para quem,
e em que circunstâncias ele foi produzido; que influências se expressam em sua produção; que fontes foram
usadas em sua composição e a mensagem que o texto deveria passar. Ela também se interessa pela natureza do
texto, incluindo o significado das palavras e a forma como são usadas, sua preservação, história e integridade. A
crítica bíblica se vale de uma ampla gama de disciplinas acadêmicas, incluindo a arqueologia, antropologia,
linguística, etc.
992
Acreditava-se que Jesus voltaria ao mundo antes de inaugurar o milênio3; esse evento ficou
conhecido como o Arrebatamento da igreja. Em contrapartida, os teólogos liberais eram
alinhados com a concepção pós-milenarista do Iluminismo, de que o mundo iria melhorar
mediante a atuação dos homens para o estabelecimento do Reino de Deus. Esse Reino, para os
liberais esta dentro da história e não no além-mundo, como pensavam os pré-milenaristas.
Temos aqui, duas visões opostas da história, pois para os fundamentalistas o mundo iria piorar
cada vez mais, ao contrário dos liberais que acreditavam na melhoria social mediante o
esforço humano.
O responsável por difundir o pré-milenarismo nos Estados Unidos foi o inglês Nelson Darby
(1800-1882), que teve suas doutrinas rejeitadas em seu próprio país. Entre 1859 e 1877 Darby
realizou uma série de viagens aos Estados Unidos a fim de pregar os ensinos pré-milenaristas.
Para ele o mundo caminhava para a ruína e, em breve Deus derrotaria o diabo e colocaria um
fim na história, tendo e vista que a maldade humana, desastres naturais seriam um sinal do
fim do mundo. Mas antes do fim, Jesus voltaria ao mundo para levar os cristãos convertidos
para os céus, tendo em vista que o sofrimento no mundo seria apenas para os ímpios. O
destino dos cristãos era o Reino e a vida eterna com Deus, ao contrário dos demais homens e
mulheres cujo destino final era o sofrimento e a condenação eterna. Segundo Armstrong
(2009, p. 195):
Darby lia e interpretava o livro de apocalipse de maneira literal e não simbólica. Para ele, o
capítulo vinte de Apocalipse, que fala a respeito do milênio, deve ser entendido como um
3
No cristianismo, deve-se chamar de milenarismo a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus
eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio
foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos mortos - e de uma
segunda- a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o
tempo da história e a descida da “Jerusalém Celeste”. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro
verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este triunfarão das forças do mal e
estabelecerão o reino de paz e felicidade. O segundo, mas breve, verá uma nova liberação das forças demoníacas,
que serão vencidas num último combate ( DELUMEAU, 1997, p. 19 ).
993
evento literal. Após estudar a Bíblia, ele concluiu que Deus dividira a história da salvação em
sete dispensações: inocência, consciência, governo humano, abraâmica, lei, graça e milênica.
A grande maioria desses teólogos acreditava que o pensamento moderno era necessário à
interpretação das Escrituras; de maneira geral eles também desprezavam o sobrenatural e,
reinterpretaram dogmas clássicos do cristianismo como a divindade de Jesus e a Trindade.
Embora os teólogos liberais não concordassem em tudo, todos eram unanimes na ideia de que
era preciso construir uma nova teologia cristã compatível com a modernidade, a filosofia, a
ciência e a erudição bíblica. Os principais ensinos dos liberais eram:
A aceitação das teorias das ciências da natureza como a teoria da evolução de Charles
Darwin.
O uso da alta e baixa crítica na interpretação da Bíblia.
O reconhecimento da influência de povos vizinhos de Israel na constituição da religião
judaica.
A ênfase em Deus como amor, em lugar de sua figura de juiz da humanidade.
A presença, em cada pessoa, de uma centelha divina, proporcionando uma visão
otimista quanto à sua identidade e futuro.
A teoria da revelação progressiva, com a influência dos fatores naturais, econômicos e
políticos.
Jesus mais que um salvador da humanidade, é exemplo de plenitude das
potencialidades humanas.
A Bíblia é um testemunho da experiência religiosa de Israel e da igreja em seus
primeiros anos.
As doutrinas e dogmas das igrejas devem ser substituídos pela experiência religiosa de
cada indivíduo.
Essas doutrinas dos teólogos liberais gerou espanto entre as igrejas conservadoras em todos os
Estados Unidos, o que gerou uma onda de reações por parte dos fundamentalistas. Para esses
994
protestantes conservadores a teologia liberal estaria pondo em risco não apenas a
sobrevivência do cristianismo, mas também a da própria civilização humana.
A reação fundamentalista
Como resposta, os presbiterianos de Princeton, publicaram em 1910 uma lista com os dogmas
centrais da religião cristã:
O nascimento virginal de Cristo – Tal como narra os Evangelhos Jesus foi gerado pela
virgem Maria, de modo que esse relato não é mítico como afirmavam os teólogos liberais.
995
Textos do fundamentalismo
O autor dessas notas foi o pastor Cyrus I. Scofield, nascido em 19 de agosto de 1843, em
Michigan, mas foi criado no Tennessee. Scofield foi muito amigo do evangelista Moody, de
modo que realizaram uma série de conferências evangelísticas juntos. Além disso, a pedido do
próprio Moody, Scofield se tornou pastor da Igreja Congregacional Moody em 1895. Scofield
começou o projeto da edição da Bíblia em 1907, de modo que o texto final foi publicado pela
Oxford University Press em 1909.
Outro texto que foi um dos pilares do movimento fundamentalista foi The Fundamentals os
quais “exploraram uma fonte de apreensão protestante conservadora e ajudaram a galvanizar a
resposta conservadora à teologia liberal e ao evangelho social, que estavam conquistando
popularidade e influência” (OLSON, 2001, p. 576). Dois magnatas do ramo petrolífero
Lyman e Milton Stewart, criaram em 1908 o Bible College de Los Angeles, a fim de fazer um
contraponto à alta critica. Entre 1910 e 1915 eles financiaram a publicação de The
Fundamentals, uma série de doze panfletos, os quais apresentavam as doutrinas fundamentais
da fé cristã; foram impressos três milhões de exemplares de cada panfleto, os quais foram
distribuídos gratuitamente para pastores, professores e estudantes de teologia.
996
Apesar de ter despertado pouco interesse na época, esses panfletos foram considerados
posteriormente um dos marcos do fundamentalismo nos Estados Unidos. Diversos temas são
abordados em The Fundamentals: A autoria mosaica do Pentateuco; O valor doutrinário dos
primeiros capítulos do Gênesis; As Sagradas Escrituras e as negações modernas; O recente
testemunho da Arqueologia em favor das Escrituras; A concepção bíblica de pecado; A
personalidade e divindade do Espírito Santo; A decadência do Darwinismo; a Filosofia
moderna; A igreja e o socialismo; A Teoria da Evolução no púlpito.
As anotações de Scofield relacionavam a Rússia com a profecia Bíblica do “poder que vem do
Norte”, de modo que quando houve a Revolução Bolchevique em 1917, onde se estabeleceu o
comunismo como doutrina estatal, os fundamentalistas também associaram com os
comentários de Scofield; e “a criação da Liga das Nações obviamente representava o
cumprimento da profecia de Apocalipse 16.14: era o Império Romano revivido que em breve
seria governado pelo Anticristo” (ARMSTRONG, 2009, p. 238).
Essa aversão a organismos internacionais como a Liga das Nações se devia ao fato de os
fundamentalistas acreditarem que no fim dos tempos haveria guerra e não paz, portanto a Liga
era no fundo a morada do Anticristo. Na visão pré-milenarista o Anticristo teria um projeto de
paz mundial. Essa atitude dos fundamentalistas de aversão às propostas de paz chocou os
997
liberais, que tinham uma visão completamente oposta. Para os teólogos liberais a destruição
mediante a guerra era totalmente contrária ao projeto do Reino de Deus. Para eles a atitude
dos fundamentalistas era anticristianismo.
Fundamentalismo e Pentecostalismo
O fundamentalismo dizia que a fé cristã era racional, de modo que não contrariava a lógica.
No inicio do século XX ocorreu o surgimento do pentecostalismo nos Estados Unidos; os
pentecostais não estavam preocupados com dogmas, doutrinas racionais, pois para eles é o
Espirito Santo quem revela as verdades da vida religiosa. Sendo assim, os fundamentalistas e
pentecostais possuíam muitas divergências.
Pahram uniu as doutrinas que no futuro serviriam de estrutura teológica explicável dentro do
movimento, tais como: estilo evangélico de conversão, santificação, cura divina, pré-
milenismo e o retorno escatológico do poder do Espírito Santo. Também ensinava aos seus
alunos, no que se diz respeito à santidade, a cura divina, etc., sempre usando o Livro dos Atos
dos Apóstolos (2.38): “E Pedro lhes respondeu: Convertei-vos: receba cada um de vós o
batismo no nome de Jesus Cristo para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito
Santo”, assim, convidava-os para passar por experiências e reflexão sobre essa questão. As
preces foram ouvidas e seus colegas relataram que Agnes Ozman começou a falar na língua
chinesa. Não muito tempo depois o próprio Parham começou também a falar em línguas
desconhecidas.
Dentre muitos seguidores das práticas carismáticas de Pahram, se destacou o seu aluno
William J. Seymour, pastor negro expulso da Igreja dos Nazarenos que, em 1906, na cidade
de Los Angeles, levou a nova mensagem a um número crescente de convertidos pentecostais.
Em um desses encontros, no dia 06 de abril de 1906, um menino de oito anos, entre outras
pessoas, começou a orar em línguas fazendo com que Seymour reafirmasse a sua crença. Esse
998
espaço ficou famoso e reconhecido como base de formação e divulgação mundial do moderno
movimento pentecostal, seu endereço era: Azuza Street, 312.
Seymour, com base nas doutrinas ensinadas por John Wesley e no movimento de santificação
ou holiness, seguia a sua experiência baseada nos dons do Espírito Santo. Falava em línguas
estranhas, acreditava no Batismo no Espírito Santo, na atualidade dos dons espirituais, tais
como cura, profecias, operação de milagres e também que o batismo pentecostal revestia o
crente como o poder do alto, capacitando-o para exercer seu ministério no mundo.
Rapidamente, grupos semelhantes foram formados em muitos lugares dos EUA, mas com o
rápido crescimento do movimento, o nível de organização também cresceu, até que o grupo
passou a se denominar Missão da Fé Apostólica da Rua Azusa. Esse pentecostalismo também
foi um movimento de inclusão, pois muitos de seus membros viam de grupos
tradicionalmente marginalizados como negros, mulheres e imigrantes latinos.
Desde seu inicio a ênfase do pentecostalismo não estava na dogmática, mas no êxtase, na
experiência, de modo que a compreensão da verdade divina viria não da leitura meticulosa do
texto bíblico, mas sim de um testemunho interno do Espírito Santo. Com efeito, para os
pentecostais a razão é insuficiente para conhecer a Deus. Tal visão era diametralmente oposta
à dos fundamentalistas, os quais diziam ser a fé cristã plenamente racional e explicável. Se os
conservadores desenvolveram uma fé cerebral baseado em dogmas, os pentecostais
mergulhavam numa religiosidade mística e sensorial.
Como já observamos outras vezes os fundamentalistas promoviam uma leitura literal do texto
bíblico, por acreditarem que as palavras também eram inspiradas; não que os pentecostais
menosprezassem a Bíblia, pelo contrário as experiências do Batismo com o Espírito Santo
eram fundamentadas, segundo eles, nos textos bíblicos. Entretanto para eles a compreensão do
texto das Escrituras não aconteceria mediante o uso das ciências exegéticas e históricas, mas
mediante um testemunho interno do Espírito Santo. Ortodoxia, tradição protestante,
999
dogmática não eram os elementos norteadores da espiritualidade pentecostal, mas sim o
êxtase e transcendência.
A grande adesão ao movimento pentecostal pode ter sido o desencanto com a racionalidade
científica da modernidade e, era um espaço onde se nutria um sentimento de pertencimento.
Ao contrário da sociedade secularista, que os excluía e os marginalizava. O falar em línguas
poderia ser interpretado também como um contraponto à linguagem racional e complexa de
explicação do mundo. Além disso, era uma forma de expressar que a linguagem humana seria
incapaz de traduzir o inefável; a experiência com Deus não caberia dentro dos conceitos
racionais. Portanto, para os pentecostais de Azusa a divindade não pode estar aprisionada nos
dogmas, nos sistemas humanos.
Por causa dessa ênfase dos pentecostais na experiência, foram logo no início, odiados pelos
protestantes fundamentalistas. Warfield dizia que os milagres já não existiam mais e, que eles
contrariavam as leis da natureza; ou seja, não podiam ser racionalmente explicados. Para os
fundamentalistas, os pentecostais estariam negando a razão, a qual estava a serviço da
comprovação da fé cristã. Sendo assim, os pentecostais foram acusados de fanáticos e
supersticiosos e, alguns fundamentalistas chegaram a dizer que o movimento pentecostal era o
último vômito de Satã; a reação do fundamentalismo ao pentecostalismo foi violenta. Todavia
os pentecostais abraçaram a doutrina pré-milenarista e anos mais tarde também os discursos
conservadores do fundamentalismo. No que diz respeito ao arrebatamento da igreja, o teólogo
pentecostal Horton ( 1995, p. 632) diz que:
Então, os crentes que ainda estiverem vivos serão transformados e arrebatados nos ares
juntamente com aqueles, num só corpo. A única exigência tanto para os mortos e,
obviamente para os crentes que estiverem vivos, é que estejam em Cristo, ou seja: num
relacionamento de fé e de fidelidade n’Ele. Paulo deixa claro que todos os mortos em Cristo
e todos os crentes que permanecerem são levados juntos num só corpo no arrebatamento.
Ao que tudo indica uma das razões pelas quais o pentecostalismo adotou as ideias do pré-
milenarismo, foi fato de a Bíblia de Scofield ter sido amplamente lida no movimento
pentecostal. Assim como Scofield, os pentecostais também acreditam em um reino milenial:
Apocalipse 20.1-3 e vv. 7-10 tratam da condenação de Satanás. Ficará preso no abismo
durante mil anos. Apocalipse 20.4 trata de dois grupos de pessoas: O primeiro assentava-se
em tronos para julgar. A mensagem a todas as igrejas indica que são os crentes
provenientes da Era da Igreja que permanecem fieis, sendo vencedores. Entre eles,
conforme a promessa de Jesus, estão os doze apóstolos governando as doze tribos de Israel.
Isso porque Israel, restaurado, purificado, com a plenitude do Espírito Santo de Deus,
ocupará sem dúvida a totalidade da terra prometida a Abraão ( HORTON, 1995, 638)
1000
Considerações finais
Referências
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
GEERING, Lloyd. Fundamentalismo: desafio ao mundo secular. São Paulo: Fonte Editorial,
2009.
OLSON, Roger. Historia da Teologia Cristã. São Paulo: Editora Vida, 2001.
ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São
Paulo: Paulus, 1996.
ROCHA, Daniel. Venha a nós o vosso reino: relações entre escatologia e política na história
do pentecostalismo brasileiro. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.
1001
1002
Fundamentalismo religioso nas testemunhas de Jeová: observação
participante em uma congregação
João Daniel de Lima Simeão1
Introdução
Com intuito de ter conhecimento de fato do que é ser testemunha de Jeová em dias hodiernos
e qual o sentido de vida encontrado em meio ao seu fundamentalismo, estrutura e
organização, proponho o desdobramento e esforço para desfazer a visão etnocêntrica criada
culturalmente na sociedade, procurando entender os códigos da linguagem das congregações.
E de certa forma colaborar para que a intolerância religiosa seja amenizada.
Neste apresento resultado de uma ida ao campo com finalidade de coletar dados etnográficos
numa pesquisa antropológica, desenvolvido em uma congregação das Testemunhas de Jeová,
no salão do reino, da cidade de Ceará-Mirim, região metropolitana de Natal, Rio Grande do
Norte. Articulada por meio da observação participante no ano de dois mil e treze num período
de dois meses, assim como em um congresso anual, além de conversas com membros e ex-
membros de congregações das testemunhas de Jeová.
As testemunhas de Jeová são consideradas por muitos não como uma religião, mas como uma
seita. E isso gera conflito, pois há uma inferiorizarão e demonização quanto às seitas. Mas se
pode estabelecer como diferença entre religião e seita, ao dizer que a religião é uma crença na
existência de uma força sobrenatural, assim como a seita, mas tem manifestações por meio de
doutrina e ritual próprios. Quanto ao conceito de seita é um grupo religioso, de forte
convicção que surge em oposição às ideias e às práticas religiosas dominantes, mas com
fundamentos filosóficos, teológicos entre outros. Desta forma o conceito de seita é muitas
vezes associado ao de heresia. Assim, devido as testemunhas de Jeová não terem a prática
constante de rituais e terem surgido em oposição as fortes religiões cristãs que se desenvolveu
na história são considerados como seita.
1
Bacharelando em Ciências Sociais pela UFRN. Contato: danielsimeao@outlook.com.
1003
O conhecimento que se é reproduzido no senso comum sobre as testemunhas de Jeová, é
muito ignorante e simplista. Ao questionar pessoas inclusive algumas que nunca tinha tido
contato, sobre o que é “um testemunha de Jeová”, vi e ouvi coisas de forma significativa e
expressiva sem sentido nenhum com o que de fato sejam. Por exemplo: “são crentes, que não
fazem barulho”; “pessoas que expressam os testemunhos de Deus aos outros ao pé da letra”;
“pessoas radicais devido uma má interpretação bíblica”; “São ricos, pois estão sempre muito
bem vestidos”; “uma organização social e politica que vivem testemunhando sei lá o que”,
“Pessoas chatas que bate em minha porta, mas bato na cara deles pois acham que conhecem a
palavra do Senhor de verdade”; “atendimento porta-a-porta”; “pessoas que não fazem nada
em dia de sábado”; ouvi até mesmo dizerem que seriam “seitas que adoram o diabo”. Como
também muito ouvi “respeito todas as religiões”, demonstrando assim total falta de interesse
em conhecer esta sociedade e suas instituições/religiões nela existentes. Podemos concluir que
o que se sabe sobre as testemunhas de Jeová é predominantemente uma visão preconceituosa,
etnocêntrica e que insistimos a ver o outro sem o olhar do outro2. Fazendo-se necessário o
processo de relativização “quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não
nos nossos: estamos relativizando”(GUIMARÃES ROCHA, 1988, p.9). Mas o motivo de
satisfação e orgulho desta congregação é o trabalho de visitas casa a casa e isto é notório que
a sociedade reconhece e percebe.
Em 1870, com menos de vinte anos de idade Charles Taze Russeull, conhecido como um
“jovem zeloso”, mesmo com formação religiosa presbiteriana e congregacional, passa a
questionar práticas e ensinamentos tradicionais da cristandade. Passando assim a fundar um
grupo para um estudo fiel das “sagradas escrituras”, nos Estados Unidos surgindo desta forma
os “Estudantes da bíblia”. Assim sente-se como que obrigados a difundir em todos os países
as “boas novas do reino”, como consequência os sermões de Russell passa a ser publicados
em milhares de jornais em todo o mundo. Para Russell e seus associados e irmãos3 em 1914
plena guerra mundial, seria um ano de fundamental importância, pois seria o exato memento
2
Tomando como base a teoria antropologia de Da Matta (1981), que se trata de “transformar o exótico em
familiar e familiar o exótico”, visto que para isso se faz preciso por primeiro o esforço para cancelar, conceitos
pré concebidos e em segundo lugar ter um conhecimento real e fiel de tal grupo/individuo social, visto que trata-
se de uma manifestação cultural, que por sua vez é um complexo de códigos compartilhado por membros de uma
comunidade.
3
Expressão usada entre os membros das congregações, desde inicio. Visto que todos são filhos de Deus, mas não
necessariamente salvo, por ele.
1004
do triunfo de Cristo, no céu, sendo referencia para a contagem regressiva da volta de Jesus ao
à terra. Em Julho de 1879 começa a publicar “A torre de Vigia de Sião e Arauto da presença
de Cristo” que hoje é conhecida como a revista “A Sentinela”, que se trata de um material de
estudo trazendo artigos e orientações para leitura da bíblia. Alguns anos depois desenvolve o
projeto que é uma sociedade jurídica que cuida dos interesses das Testemunhas de Jeová
intitulado: “Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados”. Em 1916 Charles Russeull
falece, mas o trabalho desenvolvido por ele continua em crescimento e aprimorando-se e em
1917 o advogado Joseph Rutherford, é eleito o segundo presidente da Sociedade Torre de
Vigia (EUA).
4
Nas congregações das Testemunhas de Jeová, o processo de desassociação é quando há expulsão de tal
membro que é provocado quando algo legitimado como errado é praticado, quando há descumprimento de
alguma regra, que é formulado pelo Corpo Governante, publica na “A Sentinela”, sustentados em suas
interpretações bíblicas.
5
Associado a significação de fundamentalismo apresentada no Dicionário Aurélio
1005
menos os que se dizem ser cristãos...”. Além de se honrarem por usar o “verdadeiro” nome de
Deus –Jeová- inclusive em sua bíblia – A tradução do novo mundo6-
Assim como tantos outros segmentos religiosos, a porta de entrada neste grupo é o batismo
que é feito com o mergulho na água. Este ato do uso da água é repleto de significados, não
desprezados pelas testemunhas de Jeová,
Mas não só o batismo, como também está cumprindo fielmente o que a bíblia diz, por
exemplo, caso seja impossível haver casamento em pessoas que já moram juntas, não será um
Testemunha de Jeová, poderá sim participar das reuniões, como “ouvinte”, que por sinal é
aberto para o público, inclusive para aqueles que estão em condições que nunca poderá a ser
batizado. Mas quem não for “digno” não será batizado, como expressa um irmão: “para ser
testemunhar Jeová, não pode ser qualquer um”.
Quando em uma das entrevistas com um ancião, sobre homoafetividade, e outras questões
consideradas polemicas, como encaram esse mundo pecaminoso, antes de perguntar fui
surpreendido com uma frase: “O testemunha de Jeová, não pode praticar o pecado, nem se
quer pensar nele. Pensar em cometer pecado é um pré-pecado, é o inicio do pecado”, não
podemos pecar!”
6
“A Tradução do novo mundo” é a tradução usada pelas Testemunhas de Jeová, que a qualificam como a melhor
tradução, mas respeitam e aceitam as outras
1006
porta, que é uma característica forte. Todo Jeová tem obrigação e de fazer as visitas e
revisitas, no dia e horário que melhor lhe convier, devem ser semanal. A visita é quando as
testemunhas têm o primeiro contato com pessoas que não são do grupo e falam de bíblia,
entre tantas outras crenças desta religião, em cada conversa deixam uma pergunta ou
perguntam dúvidas que são respondidas nas revisitas que é quando voltam. Tudo é muito
organizado sistematicamente. Não vão a qualquer casa, rua ou bairro, mas sim segundo uma
organização rigorosa e sistematizada.
Todos os membros da congregação tem a mesma significância para o grupo, como falou um
ancião:
aqui você não encontra pessoas com cargos, funções, não há hierarquia, não há destaque para
ninguém, quando um irmão for para outro estado, por exemplo, será muito bem acolhido na casa do
outro irmão mesmo que não o conheça, pois amamos todos mutuamente, se fores católico e for para
outro lugar em missão, e falares: sou católico, estou pregando, certamente não lhe dará dormida, nem
comida.
7
Critica sustentada em citações bíblicas (assim como em outras circunstancias), mas nesta situação trata-se do
conselho de Cristo, na bíblia: “De graças recebeis, de graça dais”.
1007
membros para posições de responsabilidades, por sinal todo irmão tem a obrigação de orar
pelo corpo governante.
Para ressaltar ainda mais essa nivelação dos membros destaco que nos cânticos, entoados no
inicio, meio e fim das reuniões, são cópias fieis da bíblia – citações- e são sempre entoados
por todos ao mesmo tempo, formando um grande coral, sem solos ou capelas, não se tem
instrumentos a tocar, são conduzidos por um som de um órgão, sempre com mesma melodia
e/ou ritmos. Fiquei a procurar de onde saia o som e percebi que não era produzido naquele
lugar, mas era uma gravação. Tudo para evitar qualquer destaque para algum dos irmãos.
Sempre vão muito bem vestidos para as reuniões, é bem visível isso! Mas isso porque
considera como uma demonstração de respeito profundo para com Jeová que vão adora-lo de
verdade8 no salão com o estudo de sua palavra e para com os irmãos. Chamou minha atenção
quando mim disseram “nos vestimos bem, pois respeitamos também nossos irmãos, este é um
momento muito importante para nós, nos encontramos com Jeová e com nossos irmãos” e
assim percebi que eles têm um apresso enorme um pelos outros. E esse respeito é visível,
acolhedor e marcante.
A matemática, a lógica e a precisão é muito presente e valorizada, pois todo o tempo estão
calculando dias para saber a volta de Jesus à terra, quantos já estão no céu e quanto suporta lá
- baseados no apocalipse – acreditam que o ano de 1914 marca a contagem regressiva dos fins
dos tempos e tantas outras coisas, estão sempre registrando a analisando os dados
matematicamente. Visto que, isso é uma forma de não desperdiçar os conselhos presente na
bíblia, desta forma se faz preciso o entendimento e conhecimento exato da cronologia
presente nas escrituras. Assim como por entender que nada na bíblia deve ser desperdiçado.
1008
nas paredes somente uma frase de exaltação a Jeová na parede interna de frente. Na frente um
lugar mais elevado com uma estante e nas extremidades duas bancadas em cada ponta, uma
para expor os livros, e a outra para as brochuras, e revistas, com a conclusão de cada reunião,
como também uma mesa com quatro cadeiras usadas nos encontros de preparação para as
visitas de campo. Além de um jardim na lateral do lado de fora do salão, largas janelas e
ventiladores, além do ambiente ter retenção do som. A tendência é que siga este padrão.
Para que o rito funcione é preciso que seja conduzido oficialmente por alguém reconhecido,
legitimado e aceito. Assim vivenciei na quinta-feira9 um momento que é diferente do que
acontece no Domingo. Neste encontro semanal é comentado e debatido formas, estratégias,
meios e treinamentos para o ato das visitas e revisitas, tendo para isso embasamento na bíblia,
além de revistas de orientação e outros livros essenciais para o grupo, para formação. O
momento começa com um canto, Depois uma oração direcionada a Jeová, oração essa em que
todos fecham seus olhos e inclinam a cabeça, feita por um dos membros, e registro aqui que
muito mim chamou atenção, nas orações os filhos pequenos abraçam-se com suas mães que
estão ao lado, inclusive É bem visível essa subdivisão na família, a criança está sempre muito
associada a mãe e quase nunca ao pai, que é chefe e superior, ate porque a mulher é
inferiorizada, com justificativas nos textos bíblicos, inclusive uma mulher nunca pode ir falar
na frente do salão. Após este momento inicial há o “estudo bíblico da congregação” que um
membro vai para frente e faz perguntas que são respondidas pelos irmãos sentados, quem sabe
levanta a mão a medida que o orador permite, dura exatos trinta minutos. Em seguida a
“escola do ministério teocrático”, com duração de rígidos trinta minutos, começa com trecho
bíblico, que os membros da congregação leram em casa e os estudantes matriculados nas
escolas que se têm no salão tem o direito de falar. Por fim “Reunião de serviço”, também com
exatos trinta minutos, neste momento é feito demonstrações e encenações de como fazer as
visitas e revisitas, assim como está sempre pronto para falar da bíblia nas horas do dia, nesta
quinta foi encenada uma situação de como falar de Jeová na sala de espera de um medico,
outra uma tia falando para uma sobrinha que tinha chegado de viagem quem iria morar no
céu, sempre de duas a três encenações, seguindo sempre um tema central. Conclui-se com
mais um canto e oração final. Nas reuniões temos uma sensação de estarmos em um leilão,
apesar de ser de forma silenciosa e ordenada, mas quando alguém sabe responder algo ou quer
comentar levanta a mão.
9
Podendo ser em qualquer dia da semana, mas deve ter de duas a três reuniões por semana.
1009
Outro momento que presenciei foi no Domingo, às 17hs a reunião começara com uma oração
feita por um ancião, e em seguida um canto de exaltação a Jeová. Em seguida todos se
assentam, e ressalto aqui que a atenção, o silêncio e o respeito imperam, Começa o discurso
publico que geralmente é feito por qualquer membro, mas sempre é um ancião da
congregação que dura pontualmente trinta minutos, neste momento um homem é convidado
para ler os textos, enquanto o ancião explica. Em seguida é cantado mais um “canto de Jeová”
e ao sentarem-se começam o estudo da revista “A Sentinela”, que traz estudos semanais. “a
mesma matéria da revista é estudada todas as congregações espalhadas no mundo” diz um
jovem que entrevistado. Como resultado uma só intepretação é aceita, visto que nas religiões
cristãs o espaço para interpretações gera fortes cismas, no catolicismo, por exemplo, os
movimentos carismáticos, são motivos de que causam tensões e desencontros com os
conservadores.
Nestes encontros fui muito bem acolhido pelos membros que estavam na porta do salão que
logo mim direcionou um lugar e um jovem que estaria para me auxiliar e ajudar. Pude ver que
a organização e a pontualidade são de fato características marcantes destes. Assim esta
reunião não é de fato um rito. Inclusive é positivo ressaltar que eles têm prazer em dizer que
não tem ritos, cultos, mas uma reunião! Em todas as partes do mundo a sequencia do que
ocorre tanto no encontro semanal, como no Domingo é o mesmo.
Questionei como se dava as contribuições financeiras, o jovem que estava para auxiliar-me
falou:
nos nossos encontros não há coletas, ou pedidos de dinheiro, mas temos nas bancadas
laterais, cofres para as pessoas colocarem seus donativos, pois os livros e materiais não são
vendidos, mas se dá colaborações de acordo com o coração e quanto queira dá, além de
nossos compromissos com a sustentação do nosso salão. Pedir dinheiro é o que mais afasta
as pessoas das religiões. Aqui não há pressão nem cobranças, mas compromisso e coração,
Russell mesmo que nos pediu isso...
Considerações finais
Desta forma, podemos perceber que a congregação das testemunhas de Jeová em seu numero
estimado de 60.000 congregações espalhadas por todo o mundo é um exemplo de
interiorização de valores, de uma moral, de “regras” e de convenções formuladas por
1010
autoridades e acolhidas com respeito e de forma inquestionável, isto deve ser observado e
levado em consideração a cima de tudo justificado, percebendo a importância dos símbolos,
códigos e significados demonstrados pelas linguagens sócias, deste grupo. Ver o sentido
encontrado em pertencer a esta congregação, e detectar a riqueza e nobreza das relações de
uns com os outros e de todos com o sagrado professado no Salão do Reino das Testemunhas
de Jeová. Esta congregação tem muito mais “regras”, do que as argumentadas aqui, mas já é
suficiente para perceber o quanto é complexa e envolvente. Esta prática religiosa é acima de
tudo, uma forma de um dos principais objetivos do homem: encontra paz e deus, por meio de
uma comunhão e com auxilio de fenômenos. Visto que na religião, assim como na arte e na
sexualidade é uma oportunidade do interior tomar corpo e face.
Referências
DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel. Rio de Janeiro, 1981.
O homem em busca de Deus. São Paulo: Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados,
2006.
Quem está fazendo a vontade de Jeová hoje? São Paulo: Associação Torre de Vigia de Bíblias
e Tratados, 2012.
1011
1012
Intolerância religiosa no espaço público: estudos de casos
Isabella Menezes1
Introdução
O livre exercício dos cultos religiosos e a liberdade religiosa são direitos garantidos pela
Constituição Federal de 19882, sendo considerado crime pelo artigo 208 do Código Penal 3,
atentar contra uma religião e/ou impedi-la de exercer sua liberdade. Embora esses direitos
sejam assegurados, o cenário religioso brasileiro nas últimas décadas aponta para um
horizonte diferente: a intolerância religiosa. Ao passo que a diversidade religiosa foi se
alargando no Brasil; cresceram também os números de ações violentas de alguns grupos
religiosos, a fim de combater outras religiões, o exemplo mais expressivo são os cristãos
neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras. Casos desse tipo vêm sido noticiados nos
meios de comunicação, muitos deles ocorridos em espaços públicos. Esse artigo tem como
objetivo analisar tais eventos à luz de uma literatura sócio-antropológica, procurando
identificar o discurso dos agressores e o embasamento teórico a que esses recorrem para
legitimarem suas ações.
1013
Antes de aprofundar a discussão sobre a questão da intolerância religiosa no Brasil
contemporâneo é importante fazer uma retrospectiva na história para entender genericamente
os conceitos de tolerância e intolerância. O sociiólogo Ricardo Mariano4 retoma a questão de
tolerância tratada primeiramente por Norberto Bobbio5 em A Era dos Direitos, mostrando que
esta noção surge na Europa em meio as guerras civis religiosas (século XVI). Surgem neste
cenário, leis que tratavam da tolerância e intolerância, leis essas que posteriormente
resultaram na democracia moderna. Mariano assinala, citando Ítalo Mereu 6, que
diferentemente dos direitos admitidos pela democracia e Estado de direito, a intolerância parte
do pressuposto da verdade e certeza absoluta, admitindo assim o dever de aplicá-la a todos,
mesmo que seja pelo uso da força (MARIANO, 2007, p.120).
1014
XIX a escravidão e o racismo foram motivo central para a perseguição religiosa as religiões
de origem africana. Mesmo depois do fim da escravidão, a aproximação do candomblé e da
umbanda ao “baixo-espiritismo” permaneceu até os anos de 1940. Posterior a esse momento,
a justificativa usada contra essas religiões, era de prática ilegal de curandeirismo, medicina e
magia negra (MARIANO, 2007, p.126 e 127). O cristianismo católico e protestante tratou de
demonizar e marginalizar todas as práticas e cultos das religiões africanas.
Depois de uma longa e histórica perseguição religiosa, as religiões afrodiaspórica ainda são
alvo para atos de discriminação, no entanto, os agressores agora são grupos dos
neopentecostais que nas últimas décadas do século XIX tomaram proporções espantosas. A
justificativa agora para tal perseguição se embasa na demonização dos cultos afro-brasileiros.
A doutrina proposta pelos cristãos neopentecostais se apoia na perspectiva dualista, ou seja,
no mundo tudo está dividido em dois campos opostos: bem e mal, anjos e demônios, Deus e
diabo. (MARIANO, 2007, p. 129). Para esses religiosos, as religiões de origem africana são
expressões máximas do mal na terra, e para que o bem vença, os “homens de bem” devem
combater o mal, evangelizando e convertendo os indivíduos que estão sob o “poder do mal”.
Partindo desse pensamento, apoiando-se numa teologia racionalizada, que esses religiosos
agem, e acreditam que todo ataque, por mais violento que seja contra as religiões que,
segundo eles, proliferam o mal na Terra, tem sua finalidade e é benevolente à raça humana.
Frente a esta teologia está Edir Macedo e R.R. Soares, líderes da Igreja Internacional da Graça
de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus, respectivamente. Macedo, fundador da IURD
não só usa como meio de evangelização o combate às religiões afro-brasileiras, como
demonstra bastante determinado a combater com as próprias mãos que candomblecistas,
umbandistas e espíritas, sejam convertidos e afastados de suas raízes religiosas. Como ele
mesmo assegura: “Se o povo brasileiro tivesse os olhos bem abertos contra a feitiçaria, a
bruxaria e a magia, oficializadas pela umbanda, quimbanda, candomblé, kardecismo e outros
nomes, que vivem destruindo as vidas e os lares, certamente seríamos um país bem mais
desenvolvido”. (MACEDO, 2002, p.38).
Foi através de uma justificativa – supostamente a de salvar os homens de todo o mal causado
pelo Diabo -, que a denominada “Batalha Espiritual” se estabeleceu no Brasil nos últimos
anos. Os relatos de intolerância religiosa mais expressivos do material disponível na mídia e
analisados para este artigo, foram empreendidos justamente por religiosos neopentecostais
como atores de discriminação. Como Vagner Gonçalves relata no prefácio do livro
1015
Intolerância Religiosa: Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, a
expansão evangélica no cenário brasileiro fez eclodir não só o número de religiosos e de
igrejas neopentecostais, como também o acréscimo dos atos de intolerância religiosa
praticados contra as religiões africanas.
Para esse trabalho foram selecionados algumas notícias sobre discriminação e intolerância
religiosa no Brasil nos últimos anos. As notícias foram organizadas por temas e serão
expostas nesse artigo de acordo com suas respectivas categorias.
A primeira categoria traz três casos onde foram relatadas invasões às casas religiosas. O
primeiro caso foi divulgado pelo G1, segundo a chamada do jornal: Evangélicos invadem
centro espírita no Catete7 (bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro). Segundo o responsável pelo
centro afirma: “Tinha uma fila com mais de 60 pessoas e aí eles começaram a provocar na
fila. Aí empurraram a porta, abriram a porta e entraram já xingando e quebrando todos os
santos.” Embora este caso tenha ocorrido dentro do próprio centro espírita, ou seja, um espaço
privado, a abordagem feita pelos religiosos neopentecostais atenta não somente contra o
Código Penal, como vai contra os direitos garantidos na Constituição de 1988, ainda em vigor
no país.
Outro caso com esse mesmo padrão de violência, ocorreu no estado de Santa Catarina 8, a
invasão no entanto, foi feita por policiais militares, que invadiram o centro umbandista em
meio a um ritual. Dois membros da religião encaminharam uma carta feita por eles mesmos,
ao governador de Santa Catarina.
Naquela noite, por volta das 8 da noite, a Tenda de Umbanda Caboclo Pajelança,
situada, Jaraguá do Sul, foi invadida por doze homens do 14º Batalhão da Polícia
Militar, fortemente armados com pistolas, armas de choque, sprays de gás de
pimenta e escopetas, sob o comando do sargento Adriano, que deu voz de prisão a
7
Evangélicos invadem centro espírita no Catete . G1. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL587234-5606,00.html > Acesso em 29/jul/2013.
8
Blog Umbanda para o Mundo. Disponível em: < http://grou.ps/umbandaparaomundo/blogs/item/437824>
Acesso em 28/jul/2013.
1016
diretora de culto Cristiane Tomaz de Oliveira. A sessão em homenagem aos pretos
velhos foi interrompida sob a ameaça dos policiais, determinando as dezenas de
pessoas presentes que se calassem e não se movimentassem, sob o risco de terem que
usar armas de choque e gás, além de todos serem levados presos. Um ogan, menor
de idade, foi conduzido algemado pra o distrito policial.
Na mesma carta, a diretora do culto afirmou que já haviam sendo feitos, abaixo-assinados dos
vizinhos, para que o centro umbandista saísse da vizinhança. Os adeptos e representantes
desse centro religioso, mostraram-se atentos e informados sobre seus direitos, na mesma carta
escrita ao governador, eles mesmo afirmam que reconhecem seus direitos constitucionais,
segundo o qual garante a “inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias”. O governador respondeu a carta, afirmando reconhecer a
violência contida nessa ação e que providências haviam já sido feitas, para solucionar o caso.
Em Nova Iguaçu também foi registrado esse mesmo tipo de violência, contra a casa religiosa.
Como traz a notícia:
O diagnóstico feito tanto por alguns estudiosos na área é que há no Brasil um cenário de
guerra espiritual, ou melhor, uma teologia da batalha espiritual. Para a teologia
neopentecostal, as divindades afro-brasileiras representam o demônio, e como afirma Vagner
Gonçalves da Silva, há não somente este reconhecimento, como esses religiosos acreditam na
natureza demoníaca dessas entidades, e são esses espíritos malignos que devem ser
combatidos, para salvar os homens de todo o mal. Nos casos noticiados a cima, os religiosos
evangélicos que atacaram tanto à casa religiosa do bairro Catete, no Rio de Janeiro, como a
casa religiosa de Nova Iguaçu, a depredação foi principalmente nas imagens religiosas. O
combate aos rituais também é uma forma de impedir que essas religiões mantenham suas
9
Caso de Polícia. O Globo. Disponível em: <http://extra2.globo.com/geral/casodepolicia/video/2009/15659/>.
Acesso em 15/ jul//2013.
1017
crenças em ação, o que segundo o ponto de vista neopentecostal é uma forma de
desestabilizar os adeptos e impedir que os rituais ocorram.
A segunda categoria feita para esse artigo, se pauta nos casos feitos contra os religiosos. O
primeiro caso dessa categoria, tem como chamada: Sargento evangélico é condenado por
intolerância religiosa.10 O caso teria acontecido quando o sargento apontou uma arma para a
cabeça de um soldado praticante do candomblé para testar se ele tinha mesmo o corpo
fechado. A ocorrência de casos como esse, atentando diretamente contra religiosos das
religiões afro-brasileiras é bastante recorrente. O site do ISER11 (Instituto de Estudos da
Religião) noticiou que houve crescimento de casos de discriminação e intolerância religiosa.
Como indicado no trecho retirado de uma matéria:
Entre as denúncias que chegaram à Relatoria de diversas regiões do país encontram-se casos de
violência física (socos e até apedrejamento) contra estudantes; demissão ou afastamento de
profissionais de educação adeptos de religiões de matriz africana ou que abordaram conteúdos dessas
religiões em classe; proibição de uso de livros e do ensino da capoeira em espaço escolar;
desigualdade no acesso a dependências escolares por parte de lideranças religiosas, em prejuízo das
vinculadas à matriz africana; omissão diante da discriminação ou abuso de atribuições por parte de
professores e diretores, etc. Essas situações, muitas vezes, levam estudantes à repetência, evasão ou
solicitação de transferência para outras unidades educacionais, comprometem a autoestima e
contribuem para o baixo desempenho escolar.
O site UOL também noticiou aumento dos casos de discriminação e intolerância religiosa:
Denúncias de intolerância religiosa crescem mais de 600% em 2012”.12 Segundo
informação, “A quantidade de denúncias de intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República cresceu mais de sete vezes
em 2012, quando comparada com a estatística de 2011.”
10
Sargento evangélico é condenado por intolerância religiosa. Gospel Prime. Disponível em:
<http://noticias.gospelprime.com.br/sargento-evangelico-e-condenado-por-intolerancia-religiosa/ >. Acesso em:
23/jul/2013.
11
Intolerância religiosa em escolas. ISER. Disponível em: <http://www.iser.org.br/site/imprensa/intolerancia-
religiosa-em-escolas-rj>. Acesso em: 20/ jul/2013.
12
Denúncias de intolerância religiosa crescem mais de 600% em 2012. Notícias Uol. Disponível em: <
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-crescem-
mais-de-600-em-2012.htm> Acesso em 25/jul/2013.
1018
Dos casos analisados, dois deles faziam referência à agressões e discriminações feitas contra
alunos. O primeiro caso foi noticiado pelo jornal O Globo13, segundo a notícia, um estudante
de 15 anos, seguidor do candomblé, vinha sofrendo agressões e intolerância religiosa por
parte da professora de história, que como indicado pelo aluno, dedicava 20 minutos iniciais de
sua aula, para a realização de orações.
O pai alega que a causa do bullying sofrido por seu filho é a pregação religiosa feita por
uma professora de história da escola estadual Antônio Caputo, em São Bernardo do Campo,
na grande São Paulo. Segundo ele, ela dedica os 20 minutos iniciais de suas aulas lendo a
Bíblia e rezando, enquanto os alunos são obrigados a ficar de cabeça baixa. — É essa
pregação em sala de aula que está causando a intolerância e o bullying contra meu filho.
Vivemos num estado laico e não pode haver ensino religioso numa escola estadual — diz
Sebastião, que é sacerdote da mesma religião professada por seu filho.
As agressões também eram feitas por outros alunos, que chegaram, como indicado
na notícia “As agressões se agravaram neste ano. A mais grave delas aconteceu mês
passado, quando um aluno jogou nas costas de M. uma bola de papel cheia de
secreção pulmonar.” Medidas foram tomadas pela promotoria e secretaria de
educação, a fim de resguardar a integridade do aluno.
13
Estudante diz sofrer agressões por intolerância religiosa. O Globo. Disponível em: <
http://oglobo.globo.com/pais/estudante-diz-sofrer-agressoes-por-intolerancia-religiosa-
4449745#ixzz20KYKb4P1> Acesso em 20/jul/ 2013.
14
Escola onde estudante sofreu discriminação pede desculpas ao aluno. O Globo. Disponível em:
<http://extra.globo.com/noticias/rio/escola-onde-estudante-sofreu-discriminacao-religiosa-pede-desculpas-ao-
aluno-186872.html > Acesso em 15/ jun/ 2103.
1019
As agressões, sejam elas físicas ou verbais contra os adeptos das religiões afro-
brasileiras, também foi caso de denúncia, como informado pelo G1: TJ-RJ condena
pastor e discípulo por intolerância religiosa. As agressões nesse caso eram mais
gerais, envolvendo também outras religiões, como o judaísmo, e eram feitas através
da internet,
De acordo com o TJ-RJ, Tupirani da Hora Lores, o pastor, e Afonso Henrique Alves Lobato, o
discípulo, pregavam através de blogs o fim da Igreja Assembleia de Deus e praticaram
intolerância religiosa contra judeus e outras religiões, caracterizando-as como "seguidoras do
diabo" e "adoradoras do demônio". Eles também associavam a figura de pais de santo a
homossexuais, de forma pejorativa, ainda segundo a ação.15
Os dados do Censo de 2010 (IBGE)16 confirmam a nova formatação no campo religioso brasileiro.
Os números indicaram a redução da população católica – situação já antes vista há 20 anos.
Os cristãos católicos ainda representam a maioria da população, mesmo que apresente uma
queda contínua desde o primeiro censo de 1970. No último censo (2010), os católicos
contabilizaram 64,6%, apresentando queda em todas as regiões do país, com maior força na
região Norte do país, região esta que apresentou maior crescimento de cristão evangélicos,
contabilizando aumento de 8,7.
15
TJ RJ condena pastor e discípulo por intolerância religiosa. O Globo. Disponível em:
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/07/tj-rj-condena-pastor-e-discipulo-por-intolerancia-
religiosa.html>. Acesso em: 02/ago/ 2013.
16
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/default.php>. Acessado em 08/ago/2013.
1020
Para melhor entender o crescimento desse segimento religioso, foi feita a leitura do texto
Intolerância Religiosa Iurdiana e Reações Afro no Rio Grande do Sul, do antropólogo Ari
Pedro Oro (2006)17, que se dedica a mostrar o impressionante crescimento da Igreja Universal
do Reino de Deus no Brasil (como também em outros países, totalizando oitenta países no
mundo todo, presentes em todos os continentes) na última década; identificando também o
aumento dos casos contra as religiões africanas no Brasil. O antropólogo atribui a presença
sólida e o crescimento fugaz da IURD ao poder midiático que este seguimento pentecostal
tem diante da sociedade.
Os meios de comunicação são vias de mão dupla, já que são através deles que os religiosos
neopentecostais evangelizam seus religiosos e procuram novos adeptos. Eles são utilizados
pelas Igrejas neopentecostais e seus representantes como forma de evangelização, contando
com todo um sistema de comunicação de massa não somente presente na televisão, mas em
programas de rádio, produtoras musicais, sites e editoras de livros.
A IURD é hoje detentora de 2 redes de televisão: a Record – com 63 emissoras, sendo 21 delas
próprias, e a Mulher, presente em 85% das capitais brasileiras e em cerca de 300 municípios. A IURD
também detém 62 emissoras de rádio no país, é proprietária do jornal Folha Universal, cuja tiragem
semanal supera a cifra de 1,5 milhão de exemplares. Além disso, é proprietária de uma gráfica
(Editora Gráfica Universal), de uma editora (Universal Produções, pela qual Edir Macedo publicou 34
livros). No exterior, ela possui os jornais Tribuna Universal em Portugal; Universal News e Pare de
Sufrir (destinada aos hispânicos) nos Estados Unidos. Faith in Action e City News na Inglaterra; Stop
Suffering na África do Sul; Pare de Sufrir no Chile e na Bolívia; Tribune Universelle na França.
(ORO, 2006, p.128, n. 43).
A questão da religião no espaço público é muito importante para o entender o novo cenário
religioso do Brasil, pois existem muitos casos, alguns já vistos anteriormente, de
discriminação movida por motivos religiosos que ocorrem em espaços públicos. Contando
com o texto do antropólogo Emerson Giumbelli18, que percorre a história das religiões no
Brasil ao longo dos tempos, é possível seguir o caminho feito pelas religiões no Brasil ao
longo de sua história. A proposta colocada pelo autor em seu texto A presença do Religioso
17
Doutor em antropologia pela Universidade de Paris III - Sorbone, atualmente é professor da UFRGS. Contato:
18
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor do
Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1021
no espaço público: Modalidades no Brasil é de compreender a presença das religiões no
espaço público brasileiro, para tanto, disserta sobre a questão de saber qual é a definição de
religião admitida no espaço público, esse reconhecimento, como mostra Giumbelli, depende
de dispositivos jurídicos, que de alguma maneira, envolvem meios de legitimação social.
1022
Já as religiões mediúnicas de origem africana, encontraram nos dias de hoje muitos problemas
para serem reconhecidos como religião, ainda muitos terreiros de umbanda e candomblé não
possuem registro em cartório. Como bem indicado por Giumbelli citando um comentarista e
militante de São Paulo “na cidade de São Paulo ainda hoje nenhum templo de candomblé tem
assegurada a imunidade tributária, os ministros não conseguem obter inscrição no sistema de
seguridade social e os cartórios se recusam a reconhecer a validade dos casamentos
celebrados no candomblé” (SILVA JR. 2007, p. 315). Essa configuração só confirma as
muitas dificuldades que os cultos de matriz africana encontram para se afirmarem como
religião e serem aceitos no espaço público.
Por fim, trata da inserção dos evangélicos no campo religioso brasileiro e diz que é difícil
sobrestimar o seu impacto nas últimas décadas. Aponta que o crescimento numérico seja o
aspecto que menos exprima esse impacto. O caráter político assumido pelos evangélicos sim,
pois assumem frente de políticas públicas em parceria com agências governamentais e usam a
religião como propriedade eleitoral. Outra característica muito peculiar aos grupos religiosos
evangélicos é a prosperidade. Essa prática é embasada numa teologia que tem como base o
pedido de dinheiro durante os cultos. Mas um dos atributos muito particular ao mundo
evangélico é a questão da liberdade religiosa. Quando são advertidos por estelionato espiritual
(referente à teologia da prosperidade), contestam afirmando que tal atitude é fruto da
liberdade dos fiéis. Da mesma maneira que quando são recriminados pela sua intolerância,
advertem que estão apenas exprimindo sua opinião e que isso está dentro da liberdade
religiosa que os cabe.
Outro estudioso que contribui para discussão dessa temática é José Geraldo19, em seu artigo A
intolerância religiosa e religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro, o autor trata sobre
os vários relatos de discriminação e até mesmo agressões motivados pela intolerância
religiosa, muitos deles em espaços públicos, tais como local de trabalho, escola, rua e órgãos
públicos, o que afirma a questão colocada pelo antropólogo Emerson Giumbelli. Essa
afirmação só reforça a premissa de que embora o nosso país garanta o direito ao culto e as
expressões religiosas, o que vivemos na realidade é um verdadeiro campo de batalhas,
expressão colocada pelos evangélicos, que têm como teologia a exterminação das religiões
chamadas por eles de demoníacas, como já visto aqui anteriormente.
19
Doutor em Ciências Humanas pela PUC-Rio, professor adjunto no PPG de Letras e Ciências Humanas
na UNIGRAN-RIO, UFF e UCAM.
1023
José Geraldo da Rocha traz para o texto a pesquisa que foi realizada na Baixada Fluminense a
fim de elucidar aspectos do estudo, apresentando um banco de dados importantíssimo e que
de alguma maneira, conversa com a análise desse artigo. A discussão e os resultados
colocados em seu estudo, comprovam empiricamente, o que a literatura vem apontando,
referente ao mundo religioso brasileiro. A escolha pelo local da pesquisa, como afirma o
autor, foi embasada nos altos índices de casos de intolerância religiosa sofridos pelas religiões
de origem africana. É um local de alta concentração de casas religiosas, e é também, como
ressalta ao longo do texto, mostrando estudos já feitos sobre a região,
Considerações finais
Por meio da análise dos noticiários foi possível verificar que entre os agressores, os religiosos
neopentecostais se mostraram mais expressivos. E o padrão que se mostrou ao longo da
análise confirma a hipótese levantada pela literatura utilizada ao longo do relatório, que
aponta esses religiosos como maior combatente das religiões afro-brasileiras.
Outro dado importante a ser considerado com essa análise é a ocorrência expressiva de casos
de intolerância religiosa em locais públicos, seja por intermédio da Internet, meio utilizado
por alguns religiosos, a fim de depreciar a imagem de outras religiões; como nos casos
ocorridos nas escolas e em locais de trabalho, como é o caso do sargento que coagiu um de
seus soldados.
Os locais privados não são isentos dessas agressões, o exemplo são as casas religiosas, que
são alvos também da violência religiosa. As agressões também atentam não só os adetos e os
locais de culto, mas também são feitas contra o mundo simbólico dessa religiosidades. As
imagens de entidades religiosas são alvos de depredações e de agressões físicas. Os atentados
feitos contra essas religiões também são feitas através de impedimentos de rituais.
Com esses dados é possível, portanto, traçar um perfil desses religiosos, assim como de seus
alvos e os locais onde mais ocorrem casos de discriminação religiosa. Os noticiários foram
1024
analisados a partir de uma tipologia que surgiu do próprio processo de análise. É importante
ressaltar a relevância que as leituras feitas ao longo do processo de feitura deste artigo
tiveram, devido à elas, a familiarização com o tema foi indiscutível e o diálogo entre teoria e
realidade foram os aspectos possibilitadores para o estabelecimento de hipóteses e conclusões.
Entendendo melhor a dinâmica da teologia neopentecostal e os argumentos utilizados por
esses grupos religiosos, foi possível traçar uma linha de pensamento que abrangesse a
realidade dos neopentecostais.
Outra questão a ser pontuada aqui é que há um reconhecimento por parte dos grupos
agredidos, de seus direitos, embora esses casos não representem a maioria, alguns deles
recorrem à justiça para solucionarem os casos. O que a análise proposta nesse artigo mostra é
justamente o crescimento dos casos de intolerância religiosa, não somente nos meios de
comunicação, mas no novo cenário religioso. Mas também aponta para um maior
reconhecimento das religiões que mais sofrem com a discriminação religiosa, de seus direitos
e a reivindicação do mesmo.
Referências
MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? 15ª edição. Rio de
Janeiro: Universal Produções. 2002.
ORO, Ari Pedro. Intolerância Religiosa Iurdiana e Reações Afro no Rio Grande do Sul. In:
SILVA, Vagner Gonçalves da(org.). Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo
no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007.
1025
__________. Religião Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar,
2006.
SILVA, Hédio. Notas sobre sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da (org.). Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no
campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007.
SILVA, Vagner Gonçalves. Prefácio, ou notícias de uma guerra nada particular. Os ataques
Neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In:
Internet
Evangélicos invadem centro espírita no Catete, diz polícia. Globo Notícias. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL587234-5606,00.html>. Acesso em 29 jul. 2013.
TJ-RJ condena pastor e discípulo por intolerância religiosa. Globo Notícias. Disponível em:
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/07/tj-rj-condena-pastor-e-discipulo-por-
intolerancia-religiosa.html>. Acesso em 02 ago. 2013.
1026
Estudante diz sofrer agressões por intolerância religiosa. Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/pais/estudante-diz-sofrer-agressoes-por-intolerancia-religiosa-
4449745#ixzz20KYKb4P1> Acesso em 20 jul. 2013.
Escola onde estudante sofreu discriminação religiosa pede desculpas ao aluno. Disponível em:
<http://extra.globo.com/noticias/rio/escola-onde-estudante-sofreu-discriminacao-religiosa-
pede-desculpas-ao-aluno-186872.html > Acesso em 15 jun. 2013.
1027
1028
Nova tolerância intolerante: mudanças de relações de gênero nas
Assembléias de Deus
Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa1
Introdução
Estamos em época de mudanças sociais bem como crises, como um dos principais segmentos
da sociedade, a religião também passa por mudanças (BERGER, 1971, p.21), pode-se afirmar
que estamos em época de efervescência religiosa (CAMPOS, 2002, p.97). Sobretudo no
Brasil, as profundas mudanças econômicas e sociais, bem como a inserção do país de modo
crescente no cenário econômico mundial afetou vários segmentos da sociedade brasileira e
sua religiosidade também foi afetada (MUNIZ DE SOUZA & MARTINO, 2004, p.15).
1
Antropólogo, jurista, mestre em filosofia, doutorando em Ciências da Religião pela UMESP, Bolsita do IEPG,
professor da UNESP- FAAC – Bauru. Orientador Lauri Emílio Wirth. Contato: adv.otavio@ymail.com.
1029
Igreja Pentecostal "O Brasil para Cristo" (1956); Igreja Pentecostal "Deus é Amor" (1961);
Metodista Wesleyana (1967) e muitas outras.
Na Década de 70, uma terceira onda pentecostal, que é a mais estudada, porque usa grande
espaço na mídia e suas ideias diferenciadas, com uma série de modificações da teologia
pentecostal, deu início a formas de pentecostalismo conhecido com o nome de
"pentecostalismo brasileiro" ou neopentecostalismo. A Igreja Universal do Reino de Deus
(1977), a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), a Igreja Cristo Vive (1986), são
expressões afirmadas do pentecostalismo brasileiro (MARIANO, 2005).
Cada uma focaliza seu discurso social e teológico em bases principais que podem até se
misturar com as outras. Todas podem pregar, por exemplo, a cura, ou a prosperidade, mas
cada uma enfoca algo que são diretrizes básicas da maioria das pregações em seus templos. A
primeira onda (pentecostalismo) enfoca o batismo com o Espírito Santo e a glossolalia e a
salvação da Alma (LEONARD, 1963 p. 47). A da segunda onda de (Deuteropentecostalismo)
enfoca a cura divina e estimula cultos com excessiva demonstração de Glossolalia
(MOREIRA, 1996 p.13). A da terceira (neopentecostalismo) exalta o exorcismo e mensagem
da prosperidade (FERRARI, 2007 p.22).
Varias igrejas surgiram no cenário Brasileiro nos últimos anos. Basta dar um pequeno passeio
em qualquer bairro, sobretudo os periféricos, para ver um sem numero de denominações
religiosas das mais variadas2.
2
Existem muitas listas, sobretudo WEB. Segue sugestões de consulta:
http://www.compulsivo.com.br/2010/02/todas-as-igrejas-do-brasil.html -
http://www.pulpitocristao.com/2010/05/confira-os-nomes-de-igrejas-mais-estranhos-e-engracados/ -
http://oskaras.com/97-nomes-estranhos-de-igrejas/ - http://www.gospel10.com/igrejas/denominacao--batista--1 -
http://www.gospel10.com/igrejas/denominacao--igreja-pentecostal--18 - http://www.mackenzie.br/10175.html
1030
através de registros das igrejas) anunciado da Convenção Geral das Assembleias de Deus o
Brasil (CGADB) de 2012 de ≈25.000.000, chegamos a uma média de 20.000.000 (vinte
milhões) de membros, (CPADNews, 2012) o mesmo site observa que se a taxa de
crescimento continuar constante, em 2020 o numero de evangélicos da AD ultrapassará os
50.000.000.
As neopentecostais têm suas praticas pautadas pela teologia da prosperidade (CAMPOS, L.S.,
1996 p.521), que significa uma troca simbólica de promessas supostamente divinas de que os
fieis tem, em troca de sacrifícios financeiros, o direito-dever de se tornarem ricos e
prósperos3.
Em que pese à popularidade alcançada, ou a grande colocação na mídia, não é nem de longe o
maior representante do pentecostalismo no Brasil, perto das Assembleias de Deus (AD).
Segundos dados do IBGE, as maiores representações somadas do neopentecostalismo não se
aproximam das ADs que na menor das contagens chega a quinze milhões de membros.
Segundo o IBGE a IURD tem 1.873.000 (um milhão oitocentos e setenta três mil membros).
A IIGD não aparece nas pesquisas do IBGE, mas segundo uma entrevista dada a revista
Enfoque Gospel, com seu fundador o missionário R.R. Soares, que auto atribui-se a cerca de
900.000 (novecentos mil) membros, não há porque duvidar, sendo que em apenas uma
pregação no estado do RJ na Enseada de Botafogo, no chamado “Dia da Decisão”, em
comemoração às quatro décadas de jornada ministerial de seu líder, cerca de 200 mil pessoas
compareceram (REVISTA ENFOQUE GOSPEL, 2012). A IMPD tem 315.000 (trezentos e
quinze mil membros) (IBGE, 2010), outras somadas chegam a 400.000 tais como o Ministério
Mudança de Vida, Renascer em Cristo, da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra , e
do Ministério Internacional da Restauração. Todas essas juntas não chegam a um terço das
Assembleias de Deus (ADs).
As ADs e igrejas derivadas a que denominar-se-á igrejas pentecostais ortodoxas, não estão
isentas de mudanças diversas, que estão ocorrendo bem agora, sobretudo nos últimos 5 anos
(de 2007 em diante). Vários eventos proporcionaram tais mudanças. A explosão Gospel
3
uma análise aprofundada de seu discurso revela em sub tom, de que as pessoas que forem fieis em dízimos e
ofertas tem não só o direito, mas o dever de serem prósperas (entenda-se ricas) e que em caso contrario deve
existir algum pecado ou demônio atrapalhando a prosperidade dessa pessoa.
1031
ocorrida na década de 1990 (CUNHA, 2007 p.9). A influência sempre histórica das igrejas
norte-americanas, cujo discurso e teologia foram mudados após os acontecimentos de
setembro de 2001. Outro em 2004 quando ocorre à saída da AD Madureira da CGADB.
Também a ordenação de mulheres a partir de 2005. Outro com a crescente influência de
Algumas ADs na mídia. Digno de nota é a mudança de discurso e sua grande influencia
teológica dos eventos promovidos pelos Gideões Missionários da Ultima Hora. Também vale
lembrar a crescente influencia teológica da CPAD e da CGADB, ou seja, há novas
instituições influenciando as Igrejas pentecostais ortodoxas.
As ADs tradicionalmente são conhecidas por impor uma adequação moral aos seus membros
no que se refere as vestimentas, impõe um jugo pesado inadequado ao clima brasileiro,
tachando o que é ou não uma roupa decente. No seu livro o pastor Ricardo Gondim (2005,
prefacio)4 denuncia o pesado jugo a qual estão dispostos tais pessoas. Essa é uma visão
fundamentalista, mas que tem mudado, porem há muito ainda que mudar.
Para a maioria das ADs não se pode cortar cabelo para as mulheres, homens não podem ter
cabelo comprido, de preferência o corte deve ser padronizado como o do pastor ou raspado,
mulheres só podem usar saia comprida, no mínimo abaixo do joelho, homens podem andar de
calça social e camisa, preferencialmente comprida, mas os obreiros no culto só podem portar
terno e gravata, não importa o calor (ROLIM CARTAXO, 1987 p. 18).
São inúmeros os ministérios, os mais numerosos são: Ministério Belém, Ministério Ipiranga,
Assembleia de Deus Missionária, Assembleia de Deus Ministério Missão, filiadas a CGADB. Há
inúmeras outras não filiadas tais como, AD Kairos, AD Restauração, AD Fama, etc... vale a
pena registrar a Assembleia de Deus Madureira, que só perde para números de fiéis para a AD
4
Pastor da Assembleia de Deus por 15 anos, o pastor Ricardo Gondim com 50 anos de idade e vivência dentro
dessa igreja, observou muita coisas nela e depois abriu sua própria igreja (Igreja Evangélica Betesda) por não
acreditar em certas regras e costumes impostos pelas ADs.
5
Por exemplo a AD missionária tem a visão de implantar missões em vários locais do Brasil e do mundo o vice
presidente ao contrario da maioria dos ministérios não é filho nem genro nem parente do presidente.
1032
Belém, e tem sua própria convenção: A CONAMAD - Convenção Nacional das Assembleias
de Deus no Brasil do Ministério de Madureira. Porém, todas podem ser caracterizadas por
certos códigos de comportamento que as caracteriza além da roupa: repetem em tom
monocórdio versículos bíblicos, ao menos em tese não falam gírias e palavrões, evitam ouvir
musicas mundanas e frequentar eventos mundanos. Não pode, varias coisas, ver tevê, praticar
esporte e cultuar ritmos musicais brasileiros, as crianças não podiam brincar de futebol,
bicicleta ou nadar , nem praticar esportes ou ir a praia. A justificativa é ao mesmo tempo
Simples e definitiva: são coisas do mundo ou do diabo6. Essa é uma visão fundamentalista
bíblica que impunha certa interpretação de lideranças mas que mudou nos últimos anos.
No templo do Brás, porém, às 19h30 do domingo 15, um grupo de cerca de vinte fiéis fazia
coreografias, ao lado do púlpito, ao som de uma batida funkeada. Seus componentes –
mulheres maquiadas e com cabelos curtos tingidos, calça jeans justa e joias combinando
com o salto alto; homens usando camiseta e exibindo corte de cabelo black power – outrora
sofreriam sanções, como uma expulsão, por conta de tais “ousadias”. Mas ali eram
ovacionados por uma plateia formada por gente vestida de forma parecida, bem informal.
Palmas, também proibidas nas celebrações tradicionais, eram requisitadas pelo pastor
Samuel de Castro Ferreira, líder do templo e um dos responsáveis por essa mudança de
mentalidade (...)Sua Assembleia do “pode” tem agradado aos fiéis. “Meu pai não permitia
que eu pintasse as unhas, raspasse os pelos ou cortasse o cabelo”, conta a dona de casa
Jussara da Silva, 49 anos. “Furei as orelhas só depois dos 40 anos. Faz pouco tempo,
também, que faço luzes”, afirma Raquel Monteiro Pedro, 47 anos, gerente administrativa.
Devidamente maquiadas, as duas desfilavam seus cabelos curtos e tingidos adornados por
joias pelo salão do Brás, cuja arquitetura, mais parecida com a de um anfiteatro, também se
distingue das igrejas mais conservadoras. (CARDOSO, 2011)
6
Para alguns fiéis é a mesma coisa pois interpretam ao pé da letra a passagem bíblica descrita em 1Jo 5.19
"Sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno."
7
Ver mais detalhes na reportagem - Um pastor moderno entre os radicais jornal mídia gospel de 20 de novembro
de 2011, disponível em http://www.midiagospel.com.br/variedades/noticias/assembleia-de-deus-sem-usos-e-
costumes acessado em 12/dez/2012.
8
Basta ir a qualquer culto.
1033
Tais mudanças se encontram em franca aceitação pelos fieis e afetam outras Assembleias de
Deus e igrejas, que cada vez mais rompem com tradições, a AD do Bom Retiro com mais de
7.000 membros que pode ser citada como exemplo (SANTOS CORREA, 2008 .p.56), mas a
maioria das ADs ainda mantém seus costumes.
9
Se baseiam na Bíblia em 1 epistola a Timóteo 2.9.
10
Apesar de haver ordenação ainda há muita resistência, a resistência está centrada nas igrejas que ainda não tem
pastoras ou não convidaram pastoras para pregar, após isso ocorrer a resistência pouco a pouco se dissolve
(GOSPEL PRIME – 2011).
1034
Embora nunca ordenadas, às mulheres e solteiros já tiveram nos anos 30 e 40 um papel
importante nas ADs, porem o que ocorreu de 1940 até 1990 foi um conservadorismo
extremado (ALENCAR, 2010 p. 76) que implicou em uma fase de machismo em franco
declínio da década de 2000 para os dias de hoje.
Ultimamente tem se observado uma força maior da CGADB (Convenção Geral das
Assembleias de Deus do Brasil) no que se refere às questões teológicas e diminuindo sua
força em questões de doutrina11. Isso se deve ao fato de multiplicar as denominações
associadas sendo impossível unificar por enquanto a doutrina de cada igreja. Creio que se
deve também a certo medo de sair da convenção como aconteceu com a AD Madureira. Em
seu site oficial, ela é definida como “uma igreja evangélica pentecostal que prima pela
ortodoxia doutrinária.”
Ainda há certo machismo, sempre tradicional nas ADs (MARIZ, 1994 p.12), esse machismo é
inclusive aceito pela maioria das mulheres, que se põe em papel de submissão visto que há o
entendimento geral, entre os homens e a maioria das mulheres de que a Bíblia diz assim
(MACHADO, 1996 p.199). Esse machismo se manifesta de varias maneiras, desde a
aceitação geral de que não poderia haver mulheres pastoras, como a ideia de que mulher não
trabalha, e que quem sustenta a casa é o homem (IDEM). Porem essa visão têm mudado, há
tempos vários pastores, em que pese o machismo na pratica de suas vidas pessoais diárias,
dizem em seus discursos e pregações que é grande o papel das mulheres no movimento
pentecostal, esse entendimento é compactuado em anos de observação12 e também na Bíblia
de Estudo Pentecostal (1995) nos comentários de provérbios 31.10-31, como no Dicionário de
movimento Pentecostal (ARAUJO, 2007, verbete mulheres). Não há já algum tempo a
separação de homens e mulheres nas igrejas da ADs, ainda continuam praticá-la a
Congregação Cristã do Brasil e a IPDA.
1035
dado grande importância para as mulheres e são homenageadas e chamadas para vários outros
trabalhos na igreja13. Pode ser ou não por interesse, mas a mulher tem sido mais valorizada.
Quanto à moral sobre o casamento ainda é soberano o fato de se manter a família, quase que a
qualquer custo14, sabe-se que o pentecostalismo tem uma visão machista (MARIZ, 1994
p.192), e o divorcio não era aceito pelas ADs porem o preconceito com mulheres separadas
antes de serem convertidas já inexiste, e está diminuído o preconceito com mulheres
separadas antes da sua conversão15, porem estas são estimuladas a perdoar e continuar com
seus maridos, o divorcio antes impensável hoje é possível apenas na possibilidade de
adultério, e mesmo assim a pessoa deve ser “tratada espiritualmente” antes de se relacionar de
novo com alguém16. O que antigamente era impossível. Ainda é um assunto tabu e desafio
para a igreja (STRECK, 2007 p.32), porem o poder da mulher dentro da igreja tem aumentado
e proporcionalmente a isso o apoio e diminuição de preconceito ao divorcio também
(FONSECA; MARIN; NASCIMENTO DE FARIAS, 2010 p.28).
Evidentemente o maior acesso a mídia, a televisão introduziu novas idéias antes impensáveis
as irmãs, tal como acesso a moda, ideários de beleza, que embora manipuláveis por uma
13
Por exemplo, a esposa do autor consagrada a diaconisa, como é publicitária e designer é constantemente
procurada para fazer a arte dos cartazes, de outdoors e outros, ou seja é a designer oficial da AD missionária de
Bauru e de outras igrejas co-irmãs.
14
Mesmo em caso de traição e agressão familiar há o estimulo para que o membro vitima perdoe o outro e haja
reconciliação de casal, o ministério de casal tem sido um dos mais poderosos das igrejas.
15
Ha pouco preconceito com homem separado ou divorciado, tanto é que ha vários pastores consagrados que são
separados, porém todos passam por “tratamento espiritual” nesse caso, que pode ser alguns anos ou meses sem
pregar, estando no Banco sendo orientado por um pastor e tendo um grupo de intercessores orando por ele(a).
16
As convenções omitem muita coisa, a CGADB apenas diz que é para manter a família, mas se omite em caso
de divorcio.
17
Testemunhos são oportunidades para que pessoas que não são pregadores falem das suas experiências
religiosas.
1036
industria cultural de interesses escusos deu novas escolhas as pertencentes as assembléias de
Deus em sua auto-imagem (MIRA, 2003 p. 40), alem do mais o acesso ao computador e a
internet, trouxe tremenda possibilidade de comunicação informacional ao mundo pentecostal
(CAMPOS JR, 2012 p. 14) , no que se refere a opressão tradicionalmente machista da Ad’s
trouxe uma liberdade de trocas de idéias e conversas para as crentes femininas antes
impossível e restrita ao seu circulo de amizade.
Trouxe diversas idéias antes totalmente alienadas alem do padrão de beleza, trouxe também a
ideia de introdução no mercado de trabalho e ideários de independência financeira trazidas
pelo capitalismo.
A prosperidade para Assembleia de Deus é uma visão bem diferente das neopentecostais.
Essas seguem a teologia ou evangelho da prosperidade que teve suas origens nos EUA, por
volta dos anos 30 e 40 (MARIANO, 1999, p. 151). No Brasil, segundo Mariano (idem, p.
157), a Teologia da Prosperidade iniciou a sua trajetória nos anos 70, penetrando em muitas
igrejas e ministérios, em especial: Internacional da Graça, Universal, Renascer em Cristo,
Sara Nossa Terra, nova Vida, Bíblica da Paz, Verbo da Vida, Cristo Salva, Cristo Vive,
Nacional do Senhor Jesus Cristo. Cada uma delas deu de diferentes maneiras e de diferentes
modos as doutrinas desse evangelho da prosperidade que se baseava em escritos de Hagin tais
como: "Não ore mais por dinheiro [...] Exija tudo o que precisar." (HAGIN, p. 17 apud
ROMEIRO, 1998, p. 43, grifos nossos). A Teologia da Prosperidade encontrou terreno fértil
no Brasil a partir os anos 70, encontrando espaço nos grupos evangélicos pentecostais. Após
certo tempo os pentecostais verdadeiros começaram a rejeitá-lo (PIERATT, 1993 p.81) o que
ocasionou, para quem acreditava uma ampla difusão de novas igrejas e divisões que
acreditavam nesse tipo de evangelho. Surgiram daí as chamadas igrejas neopentecostais.
A prosperidade para os Assembleianos não significam ter vários carros, belas casas, ter um
alto salário, ou uma vida com fartura de bens materiais como é pregada pelas igrejas
neopentecostais, e sim paz harmonia e segurança, em varias pregações é constante a definição
“prosperidade é viver bem com aquilo que Deus permite que você viva”. Ou seja, é um ato
continuo de gratidão a Deus pelo que você tem não uma luta para conquistar coisas que o fiel
ainda não tem.
1037
Isso gera um verdadeiro conflito para o fiel, porque ele ouve num dia desses grandes
pregadores, seja ao vivo ou na radio, a teologia da prosperidade, mas na sua igreja, também
assembleiana, o pastor alerta para o cuidado das falsidades da teologia da prosperidade. Na
bíblia de estudo pentecostal (CPAD – 1995), no estudo “Riqueza e Pobreza” observa-se a
seguinte afirmação: “o crente não deve se preocupar com acúmulos materiais nem amontoar
bens...para o cristão as verdadeiras riquezas são o amor e fé...”. O que ocorre é que certos
germes da teologia da prosperidade tem entrado entre os pentecostais tradicionais fazendo
com que muitos creiam nisso, o que pode explicar o crescimento tanto da ADs, que estão
aceitando tais mensagens mas não com ponto central da sua teologia que ainda é a salvação
das almas.
Aos poucos a teologia da prosperidade tem chegado aos pentecostais ortodoxos, se por um
lado aliena e escraviza os seus fieis, por outro possibilita uma coisa no que se refere ao
gênero, induz a mulher a procurar e se inserir no mercado do trabalho. Antes a mulher que era
relegada as tarefas do lar era o modelo a ser seguido, porem agora o modelo é a da mulher
formada, empresaria e principalmente dizimista na Igreja.
Considerações finais
A mídia também muda o modo de com a igreja se relaciona com o seu fiel e vice versa.
Correa (2000, p.87) afirma: "A relação que é criada através da mídia social, oferece
exatamente a associação que se busca no espaço público", assim o fiel antes negado no
espaço publico pela discrepância econômica, o encontra na igreja, na mídia social em vários
espaços, este começa a aparecer e a gostar disso, o sentimento de humildade cristão vai
1038
sumindo, e criando novas relações sociais dentro do grupo religioso que muda cada vez
mais as Igrejas.
Não vamos dizer que já há uma total independência da mulher, alias independência é um
conceito contraio na tradição pentecostal seja para homem seja para mulher. Porem já alguns
passos tem sido dados e isso é motivo para se observar um avanço nas relações de gênero
nessa pertença religiosa. Claro que ainda existem as Ad’s que mantém o seu tradicionalismo
machista (ex as AD’s ministério Ipiranga que ainda mantem homens e mulheres em lados
opostos da igreja) mas isto devem mudar com a constante influencia apontadas nesse
trabalho.
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1039
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SANCHIS, Pierre (org.). Fiéis & Cidadãos – Percursos de Sincretismo no Brasil. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2001.
1042
1043
O uso do corão como justificativa para ações de violência urbana
Magno Paganelli 1
Introdução
O Ocidente ouve com frequência o tom do discurso das grandes religiões pautado pela
convergência de temas que promovam a paz, a convivência pacífica e harmoniosa, o diálogo,
o entendimento entre os povos e a justiça social para todos. No sentido da promoção do
entendimento na “trinca” monoteísta, a Universidade de Harvard desenvolve projeto de
cooperação e diálogo para esses três ramos, chamado Abraham Path (Caminho de Abraão),
reunindo seus líderes para atividades conjuntas.
Embora a preocupação com piedade, espiritualidade e demandas por justiça social esteja
presente na tradição islâmica, elementos ditos negativos da modernidade penetraram esta
tradição religiosa e interferiram (ou reorientaram) no seu discurso. Há autores dando conta
que a modernidade provocou reação de repúdio dentro do Islã. A chamada modernidade, aqui
nomeada contemporaneidade, parece não ter “atualizado” o discurso religioso no Islã no que
toca a promoção da paz e do entendimento em grupos político-religiosos como a Irmandade
Muçulmana, o Hesbollah e o Hamas. Vemos isto nas obras de seus teóricos e em discursos de
seus líderes.
1044
Ásia. O Islã rejeitou a tendência ocidental e reagiu a ela, buscando um modelo de fé,
sociedade e política que se arroga o direito de ditar o modo de governar (DEMANT, 2004, pp.
210,211), interferir na economia e se fazer presente na sociedade.
Como o Islã nasceu em cultura distante e estranha aos costumes Ocidentais, a proposta da
presente pesquisa é útil à medida que constatará como pensam os islâmicos e os islamitas a
partir das suas convicções religiosas e culturais, quais são essas convicções e de onde vêm.
Feito isso, procurará demonstrar a orientação ideológica para uma postura política, econômica
e social orientada pelos interesses religiosos – ou se verificará o contrário: uma proposta de
política totalitária que se serve do discurso religioso com inclinação para o totalitarismo ou
teocracia.
A pesquisa
A região da faixa de Gaza, de população muçulmana que ocupa a Palestina, está sob o
controle do Hamas (sigla de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de
Resistência). É neste Movimento que a pesquisa se concentrará, haja vista ser um grupo com
forte expressão na região e no cenário internacional, em função do êxito alcançado nas
recentes eleições.
O Hamas é uma das expressões mais exatas e vigorosas da ideologia islamita, que
compreende os setores político, religioso, social e até mesmo econômico e familiar. Assim, a
pesquisa analisará o conteúdo de obras que tratem a ideologia da violência que levou à criação
do Hamas a procura de vínculos dessa ideologia com o Corão. Dentro da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, a temática está enquadrada em uma das linhas contempladas pelo
Programa de pós-graduação, relacionada à área de concentração “Ciências Sociais, Religião e
Sociedade”, que estuda “Religião e Violência”. Suprirá, ainda, uma lacuna na pesquisa atual,
à medida que olhar para o Islã e para a ocorrência de um pensamento e postura pública que
destoam de toda uma tradição já estabelecida de que “o Islã é uma religião da paz”.
Como o Hamas surgiu na década de 1980, será necessário identificar as necessidades que
trouxeram para a contemporaneidade o trabalho realizado pelos intérpretes do Corão e
teóricos da teologia islâmica sobre o pensamento original de Muhammad. Quem são e o que
ensinam os teóricos islâmicos sobre o papel e a missão da comunidade e do indivíduo? Que
expectativas têm sido nutridas nessa nova tradição?
1045
Pesquisa preliminar realizada na literatura publicada pela própria comunidade islâmica não
fundamentalista demonstra haver uma orquestração de forças disponíveis (o petróleo que
financia, a mídia que convoca, o contingente humano que avança) com o fim de estabelecer
em nível global o totalitarismo da ummah – a comunidade islâmica regida pela sharia, a lei
islâmica. A motivação para este avanço se orienta por uma perspectiva messianista.
Se, de fato, o Islã é uma religião da paz e se isso está claro para seus adeptos, como justificar
os recorrentes atos de violência tão marcadamente expressa nas manifestações do Hamas e de
grupos similares? A pergunta central que se coloca é “o Corão fornece base ideológica que
estimula a violência e o terrorismo do Hamas?”.
Tem sido dito que islâmicos e ocidentais não compartilham o mesmo sistema de valores e a
mídia ocidental, não entendendo a dinâmica desse grupo, reproduz os fatos pela sua ótica,
distorcendo-os em relação ao que realmente ocorre.
Trabalharei com a hipótese de que há uma interpretação do Corão e da tradição, os haddiths,
que fornecem a base ideológica para a violência e os atos terroristas promovidos pelo Hamas,
e não a situação de fronteira, a “fricção étnica”.
O Corão e os haddiths formaram no pensamento dos islamitas uma caricatura do chamado
“infiel”, seja ele judeu, cristão ou outro grupo étnico ou religioso que apoie esses dois ramos.
Nessa caricatura, quem não crê e não professa a fé do Profeta e do seu deus são inferiores,
traidores e precisam ser eliminados.
Para Andréa Bueno Buoro (1999, p. 40), a violência é hoje questão de direitos e privilégios. O
que poderia ser direito de uns pode rapidamente ser convertido em privilégio, assim, todos se
tornam suspeitos em algum momento, uns pela violência silenciosa e dissimulada, outros pelo
terrorismo explícito e chocante.
É na fronteira entre grupos que reside o núcleo ou estopim do problema. O Hamas só encontra
razão para organizar-se em função deste conflito de fronteira. Daí que a pesquisa certamente
será enriquecida pela participação e comunicação neste 1º Simpósio Sudeste da ABHR / 1º
Simpósio Internacional da ABHR – Diversidades e (In)Tolerâncias Religiosas.
O desenvolvimento da pesquisa
1046
Embora já venha estudando o Islã há três anos em caráter independente, a pesquisa acadêmica
está em fase inicial. A pesquisa fará revisão na literatura de obras publicadas por especialistas.
A revisão bibliográfica tem contemplado as obras que tratam do tema da violência, dentro do
seguinte quadro.
Inicialmente busca a definição adequada de violência fazendo breve reconstrução da história
da violência a partir de Andréa Bueno Buoro, Violência urbana: dilemas e desafios.
(BUORO, 1999)
Andrea Buoro e as demais autoras da obra, especialistas da USP em violência, apresentam
panorama do tema introduzindo a perspectiva histórica em culturas como da Europa. À
medida que o Estado assume seu papel na regulação da sociedade, menos o indivíduo pode
vingar os danos sofridos e mais o Estado ou a polícia assumem a responsabilidade de fazê-lo.
Após o Renascimento, surgiram leis que estabeleceram meios de defender direitos
particulares. Essa pacificação contribuiu com a formação de consciência sobre limites,
fazendo com que a violência se tornasse estranha no relacionamento humano.
Também tem sido consultada Violência urbana, de Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme Assis
de Almeida (2003), ambos especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A obra
norteará a definição de violência sobre a qual a pesquisa se apoiará. Da obra interessa-nos o
Capítulo 1, O que é a violência?, onde os autores pontuam a definição do que é a violência no
modo básico e dão definição ampla de violência cobrindo outros níveis que não os mais
visíveis pelo observador comum. Em seguida, relatam a importância de considerar o contexto
social onde ela ocorre, apontando valores culturais considerados violentos a uma cultura, mas
não necessariamente a outras.
Da exposição que o autor apresenta e das distinções que faz dos usos distintos entre força e
violência, encontramos uma orientação que apoia nossa pesquisa no que diz respeito à
definição do estamos querendo dizer quando falamos em violência. Seguindo o próprio
raciocínio, Pinheiro traz para o seu texto a definição de violência dada pela Organização
Mundial da Saúde, OMS.
O uso intencional da força física ou do poder, real ou potencial, contra si próprio, contra
outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento
ou privação. E. G. Krug, Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde. Brasília:
OMS/Opas/UNDP/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2002. (PINHEIRO e
ALMEIDA, 2003, p. 16)
1047
A definição da OMS abrange inúmeros casos como negligência, abusos físicos, sexuais,
psicológicos, suicídio, auto abuso etc., formas de violência que acarretam opressão a pessoas,
famílias, comunidades, sistemas de saúde. Além de atos de violência ativos e reativos. É a
partir dessa definição que farei minhas referências na pesquisa.
Outra obra utilizada é O mundo muçulmano, de Peter Demant (2004). O autor é historiador
holandês, professor do Departamento de História na USP e especialista em questões do
Oriente Médio, esteve ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e
palestinos.
Seguindo a metodologia de Girard, que trabalha com a literatura ao elaborar sua teoria, a
metodologia proposta para a nossa pesquisa contempla a reconstrução da história, que deverá
ser esboçada a trajetória do Islã desde a sua fundação até o surgimento do Hamas, a fim de
prover contextualização necessária a melhor compreensão do tema.
1048
a. Pré-análise
b. Exploração do material
Finalmente, deverão ser esboçados e analisados o tipo de ordem social e ideológica em que
tais ideias e temas conceituais possam lançar luz a nossa compreensão do objeto estudado e
como a hipótese se comportará diante da pesquisa.
Violência e ideologia
Cerca de 40 homens foram capturados e levados para uma delegacia por um grupo de
policiais. Ismail Helou, 22, estava trabalhando como frentista. Outro, Rajou Hayek, 33, levava
seu pai, um cadeirante, a uma clínica médica; foi algemado e obrigado por oito homens a
entrar num jipe da polícia e levado para a delegacia. A acusação? Eram palestinos com
aparência de ocidentais: corte de cabelo ou calça com cintura baixa. Foram espancados,
tiveram os cabelos raspados e sofreram humilhação.2
Quando notícias assim são lidas nos cantos do planeta, parte das pessoas fica com a respiração
suspensa, pois a alguns a informação passa a mensagem de violência contra seres humanos. E
quando a notícia reporta a morte de uma única pessoa – quando não dezenas, vítima da
explosão de um homem-bomba?
A notícia citada dá conta de ação sistemática ocorrida em Gaza pelo Hamas. Mas não é
situação nova nem exclusiva do grupo. Dines (VVAA, 1997, p. 63), há quase vinte anos,
falava de situação análoga:
2
Gaza police shaving heads of young men in crackdown on western fashion, The Guardian. Disponível em
<http://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/29/gaza-police-shaving-heads-men-western>. Acesso em 09 jul
2013.
1049
Talvez devêssemos perguntar se atos como esses são considerados violentos aos olhos dos
habitantes locais.
Ideologias não religiosas também matam. James Kennedy (2003, pp. 299-300) aponta que
Estados ateus totalitários –orientados por ideologia política antirreligiosa, somados aos
massacres de Stálin, Mao Tsé e Hitler, além das Grandes Guerras, mataram mais de 130
milhões de seres humanos somente no século 20. E se adicionarmos à religião, um ingrediente
como uma ideologia política? Teremos um efeito altamente explosivo?
A violência
Marilena Chauí diz que a brecada mais brusca do motorista de ônibus também é manifestação
de violência, “um ato de violência” (VVAA, 1997, p. 130), mas um ato não visto pela
sociedade, brasileira no caso, por conta do que chama “sistema dos preconceitos” (VVAA,
1997, p. 117). Esse sistema é a condensação do senso comum em torno do qual dado
pensamento ou sensação são admitidos como verdade para uma comunidade. Como é um pré-
conceito, a formulação é concebida anteriormente a todo e qualquer ato do grupo e usado por
este como emblema das pseudo virtudes pelas quais espera ser visto. Segundo a autora, o
preconceito serve para o exercício da dominação, pois dá ao dominado a ilusão de que tudo
está explicado e justificado; não há o que temer: o preconceito “se tornou a forma de
segurança num mundo, enfim, tornado transparente.” (VVAA, 1997, p. 119)
Chauí apresenta um sistema para driblar a convivência do fato com o relato, das ocorrências
com as consciências. O sistema consiste de três mecanismos diretos e três procedimentos
indiretos. Interessam-nos aqui os três mecanismos.
1050
Esse recurso é usado por Maria Clara Luccheti Bingemer (2002, p. 225) ao dizer que “grupos
que atualmente aparecem se auto intitulando ‘islâmicos’, não podem ser considerados
aleatoriamente como tais. É necessário sim um juízo crítico e aguçado para saber detectar
quem são realmente estes grupos e quais são seus interesses”.
Por último, o mecanismo das máscaras, de certo modo parecido com o primeiro. Aqui ocorre
a separação entre o nós e o eles, sendo que cada um de nós pode, acidentalmente, estar entre o
eles. Mas para que fique claro esse mascaramento, é preciso dar uma identidade própria a uns
e outros, para que a violência, quando vier, seja vista como ocorrida ou provocada por um
não-brasileiro, o outro.
O clássico de Georges Eugène Sorel, Reflexões sobre a violência, traz no prefácio de Jacques
Julliard indicação de que o tema do livro “encontramo-lo no ponto de intersecção de três
conceitos”, dos quais o segundo nos interessa. Ele “diz respeito, sobretudo à sociologia, é a
violência, mais precisamente o papel da violência nas relações entre classes e no
desenvolvimento histórico”. (SOREL, 1992, p. 7) Sorel introduz sua distinção célebre,
propondo chamar de força os atos da autoridade, e de violência os atos de revolta. A primeira
é obra do Estado; a segunda, do proletariado. (Ibidem, p. 11)
Para Sorel, o Estado deve usar a força como meio de garantir a ordem social pela qual a
minoria governará. A força do Estado é legítima, e a execução da “justiça” das mãos pelo
povo para os braços fortes do Estado, a violência passa a ser vista como quebra da ordem
social; a destruição dessa ordem que o Estado garantirá. Todo ato visando a acomodação de
interesses dentro da sociedade, e que não é desencadeado pelo Estado, não é uso da força, mas
da violência. (1992, p. 11) Ainda para Sorel, o conceito que se tem de justiça é remodelado
pelo tempo e pela cultura. Ele alinha o seu pensamento ao de Pascal e diz que a justiça existe
“conforme Deus no-la quis revelar”. Como os deuses diferem entre os povos, a justiça sofre
suas variações em função da fé. (SOREL, 1992, p. 37)
Sorel introduz uma questão que considera “gravíssima”, e é relevante a esta pesquisa,
chamando a atenção para diferenças culturais na definição da violência. Atos de violência
1051
funcionam bem no contexto da greve geral e geram a “ideologia socialista, rica e sublime”,
não observada como lei universal. Assim, em outros países as coisas não funcionam da
mesma maneira. Por quê? A sua resposta é que “as tradições nacionais desempenham aqui um
grande papel.” (1992, p. 240)
Por “tradições nacionais” certamente Sorel entende o ambiente todo de uma sociedade ou
civilização. Democratas e socialistas tinham claramente delineada a noção de Justiça, a
despeito da fissura. Então ele se contradiz? Não, a diferença está na moral, tema caríssimo a
Sorel. A legitimidade da ação envolvendo a violência está ligada à noção de moral, e é aqui
que a “concepção de futuro ... mais fundamental do socialismo oficial de hoje” se distingue:
ele está pouco ligando para a moral. (SOREL, 1992, p. 244)
Sorel diz que “o papel da religião é prover a ‘moral’ que mantem o proletário, no capitalismo,
submisso. Os intelectuais admitem a religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a
religião e dê condições iguais a todos por meio do Estado.” (SOREL, 1992, p. 265) Resposta
óbvia. E ideal para o Islã, que se inclina ao socialismo porque ele se opõe ao capitalismo
democrático e porque o povo é posto em pé de igualdade, em submissão ao que dita o Profeta.
A analogia entre as hordas de trabalhadores grevistas e as milícias das guerras da Liberdade
chega a ser feita por Sorel, que diz essas “curiosas analogias que existem entre as qualidades
mais notáveis dos soldados” e “exigidas de um trabalhador livre numa sociedade altamente
progressista” levam-nos a “um resultado satisfatório”. (SOREL, 1992, p. 218)
1052
escrivaninhas de “homens de letras, habituados a manejar a declamação clássica”. Não podia
haver retrato mais fiel do Islã quando narra suas glórias dos tempos ideais da comunidade do
Profeta em Yatrib.
Assim, para justificar a violência na revolução por meio das lutas geradas pela defesa dos
valores entre classes, sociedades ou civilizações, Sorel apropria-se da tese de Harnack, que
havia defendido que os mártires do Cristianismo não teriam sido muitos como a história quer
fazer crer. Os mártires não foram de fato muitos, embora a “revolução” causada pelo
Cristianismo tivesse sido sólida o suficiente para estabelecer-se. (SOREL, 1992, pp. 206-210)
A sua conclusão neste ponto é, mais uma vez, óbvia. O socialismo é bastante razoável e
“perfeitamente revolucionário”, pois mesmo com uns poucos e breves conflitos, esses são
ampliados, como o foram os relatos de martírio no Cristianismo, mas que guardadas as
devidas proporções (catastróficas), a “civilização não corre o risco de sucumbir sob as
consequências de um novo desenvolvimento da brutalidade”. (SOREL, 1992, p. 210)
Preconceito e Ideologia
O próximo passo será verificar no que se constitui uma ideologia, uma vez que partirei da
hipótese de que determinada interpretação do Corão tem sido feita de modo a consolidar uma
ideologia que promove violência. Como a violência perpetrada pelo Hamas sistematicamente
tem os judeus (e cristãos?) como alvo, não seria o caso de tal ideologia ser formulada sobre
bases preconceituosas?
Se assim for, José Leon Crochík, poderá lançar alguma luz no entendimento do que vem a ser
o preconceito por meio de sua obra Preconceito, indivíduo e cultura.(2006) A formação de
um indivíduo se dá na sua relação com a cultura e Crochík reconhece dois modos de o
indivíduo relacionar-se com ela. Um, é quando o indivíduo não reage à cultura, tornando sua
experiência acrítica. O outro modo é diferenciando-se da cultura, não reconhecendo a
contribuição que ela deu para a sua formação. “Como a experiência e a reflexão são as bases
da constituição do indivíduo, sua ausência caracteriza-se o preconceito. Mas a base do
preconceito não é essa ausência “e, sim, o que as impede: a ruptura com o mundo que o
preconceituoso percebe como demasiado ameaçador.” (CROCHÍK, 2006, p. 15)
1053
Crochík aponta para “complicações” no conceito de preconceito, como a que “se refere a que
o indivíduo preconceituoso tende a desenvolver preconceitos em relação a diversos objetos –
ao judeu, ao negro, ao homossexual etc.” (2006, p. 13). É o caso encontrado à partir da leitura
simples do Corão. A convivência entre o Profeta do Islã e os grupos de judeus na Península
arábica era conflituosa, em Meca e em Medina. Muhammad imprimiu em seu texto as suas
diferenças com os grupos de judeus, como também as diferenças com os “renegadores do
sábado” ou “macacos”, os cristãos. É a partir de tal situação que muçulmanos de hoje
manifestem algum preconceito contra os mesmos grupos.
Crochík considera a religião, como a filosofia e a própria ciência, ideologias que geram
estereótipos, como o preconceito cultural religioso. Sendo uma ideologia com o ingrediente
do estereótipo, os preconceitos culturais podem ser admitidos como “a justificativa para a
dominação.” (2006, p. 39) Assim ele já antecipa uma definição de ideologia como “a tentativa
de se justificar qualquer forma de dominação.” (Ibidem) Configurado este quadro – o
preconceito que cria o estereótipo, o estereótipo que impregna a cultura, a cultura que é
elaborada em ideologia e a ideologia que rege o indivíduo, têm-se a expressão de uma
sociedade totalitária. (CROCHÍK, 2006, p. 39)
Essa “volta ao passado” é que precisa estar em mente quando pensamos o Islã hoje. Dadas as
circunstâncias originais nas quais foi criado, o anseio por viver os tempos de ouro como em
Meca ou Medina estabelece um olhar constante para o passado quando tribos árabes se
digladiaram com comunidades judaicas e cristãs que estavam estabelecidas naqueles dois
centros urbanos e esses conflitos são inevitavelmente transportados para nossos dias num
revival espiritual, cultural e político. Tanto o indivíduo quando a cultura carregam os mesmos
preconceitos do passado (CROCHÍK, 2006, p. 39, p. 49) e se a cultura vivida há 1.400 anos
deve ser mantida e revivida, igualmente será violência:
Embora tenhamos visto uma boa definição de ideologia antecipada por Leon Crochík, é
preciso averiguar o termo com mais densidade. O texto de Roberto Cardoso de Oliveira é um
1054
clássico do assunto. Oliveira dá uma interessante contribuição ao registrar a “Teoria da
fricção interétnica” (1976, p. 15) que enquadra a “situação de contato entre grupos étnicos
irreversivelmente vinculados uns aos outros, a despeito das contradições”. (1976, p. 27, nota
14). Essas contradições são manifestas nas tensões e conflitos gerados no contato entre etnias,
e nos valem a atenção neste momento porque o Hamas foi criado dentro deste contexto
específico e é fruto de tensões da uma fricção interétnica existente na Palestina.
Feitas essas distinções, Oliveira dá ao leitor a sua definição de ideologia, incluindo o conceito
de outros pensadores que moldaram o seu próprio entendimento sobre o tema. O primeiro é
Erick Erickson. Mais condensada, mas não menos refinada, é a definição do segundo
pensador, Nicos Poulantzas.4 Para Poulantzas:
Oliveira admite a dependência de Poulantzas que concebe “ideologia como forma em que se
assumem representações.” (OLIVEIRA, 1976, p. 39, itálicos no original) A ideologia é
formulada no discurso que constrói uma realidade, explica o mundo por meio de um sistema
3
Do árabe, Dar-al-islam significa casa do Islã ou terra do Islã e indica o território onde predomina a presença
islâmica. Contrariamente há a Dar-al-harb, casa da guerra, que é o território onde predominam de infiéis.
4
Oliveira trabalha a partir da obra de Nicos POULANTZAS, denominada Clases sociales y poder politico en el
Estado Capitalista (1969, pp. 263,264).
1055
social que aglutina sistemas menores que integram a sociedade, como política, economia,
religião, relações entre grupos/tribos, estética, costumes, tradições e as próprias inovações que
ela pretende implantar. O discurso ideológico, então, serve “para eliminar contradições no
sistema social.” (OLIVEIRA, 1976, p. 39) Por isso é preciso olhar para as formulações de
Muhammad como ideologia, uma vez que na exposição do seu discurso, os grupos politeístas,
e principalmente os monoteístas judeus e cristãos, poderiam – como de fato o fizeram –
contradizer as propostas da nova religião.
Considerações finais
Esta “reconstrução” levará em conta a situação político social da península arábica do tempo
do Profeta, seguirá o roteiro de grupos e pensadores que influenciaram o Islã nos rumos que a
religião tomou no relacionamento com outros grupos religiosos, sociais e étnicos. Serão
contemplados os séculos iniciais, o período escolástico com a devida atenção aos movimentos
recentes, até o início da segunda metade do século 20, quando há maior efervescência dos
grupos de resistência no Oriente Médio, em especial no Egito e, consequentemente, na
Palestina.
1056
uma relação direta com uma interpretação tendenciosa do Corão, voltada para uma ideologia
que se serve da violência e destoa do Islã tradicional que, segundo autores contemporâneos
têm destacado, deram ampla contribuição para as artes, as ciências e para a humanidade.
Referências
BINGEMER, Maria Clara Luccheti. Violência e religião, 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora
Puc/Loyola, 2002.
BUORO, Andréa Bueno [et. al.]. Violência urbana: dilemas e desafios, 3a edição. São Paulo:
Atual, 1999.
CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
GIRARD, René. A violência e o sagrado, 2ª edição. São Paulo: Unesp [Paz e Terra], 1990.
KENNEDY, James C. E se Jesus não tivesse nascido? São Paulo: Vida, 2003.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira,
1976.
PINHEIRO, Paulo Sérgio & ALMEIDA, Guilherme Assis de. Violência urbana, Folha
Explica. São Paulo: Publifolha, 2003.
SOREL, Georges. Reflexões sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
1057
1058
Solus christus: exclusivismo cristão e tolerância religiosa
Alceu Lourenço de Souza Junior1
Introdução
Está na natureza das religiões oferecer respostas a questões transcendentes como a natureza
do mundo e da vida, decorrendo disso sua condição de formadoras da visão de mundo de
indivíduos e sociedades. Talvez daí, sua tendência para abranger a totalidade da vida do
indivíduo e da sociedade – e de perceberem umas às outras como concorrentes.
Entretanto, no mundo contemporâneo tem sido urgente que as religiões (re)elaborem suas
relações inter-religiosas visando a preservação tanto de suas identidades e existência, quanto
do próprio tecido e paz social. O Cristianismo, religião de um terço da humanidade, não tem
ficado imune a esta pressão. O problema que se apresenta, então, é como articular a tolerância
religiosa sem abrir mão dos fundamentos cristãos nem comprometer sua identidade histórica
própria.
Nos primeiros séculos do Cristianismo, os cristãos eram objeto da intolerância religiosa, com
as perseguições promovidas pelo Estado romano. Entretanto, com a união entre a Igreja e o
Estado a partir do Imperador Constantino, no início do 4º século, a igreja cristã passou a
sujeito da intolerância contra indivíduos e grupos considerados heréticos. Inicialmente,
impunha-se o banimento, a prisão e o confisco de bens dos hereges; posteriormente, a punição
1
Bacharel em Teologia pela EST da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluno do stricto sensu do PPG em
Ciências da Religião do Centro de Educação, Filosofia e Teologia (CEFT) da mesma instituição. Bolsista do
Instituto Presbiteriano Mackenzie. Contato: alceujmc@hotmail.com.
1059
incluiu a execução pública. As primeiras pessoas a serem executadas por heresia na história
do cristianismo foram o bispo espanhol Prisciliano e seis simpatizantes, decapitados por
ordem do imperador Teodósio I no ano 385. Poucas décadas mais tarde, Agostinho, que
inicialmente defendeu a conversão dos cismáticos por meio de evangelização, apoiou o uso da
coerção estatal contra o movimento donatista, no norte da África. Durante a Idade Média,
intensificaram-se as perseguições da igreja com o apoio estatal contra indivíduos e grupos
considerados heterodoxos. A partir do século XII, foi criado um tribunal eclesiástico especial
para julgar heresias – a inquisição – que tinha autoridade para receber e averiguar denúncias,
para obter confissões, inclusive pela tortura, e determinar a necessidade de punição pública, a
cargo das autoridades civis. Entre as vítimas estavam praticantes de alguma forma de religião
pagã ou sincretismo (acusadas de bruxaria) e judeus (acusados de falsa conversão) (MATOS,
2012).
1060
Na Grã-Bretanha, após o rompimento de Rei Henrique VIII com o papado por ver recusado
seu pedido para divorciar-se de Catarina de Aragão (porque esta não lhe dera herdeiro homem
após dezoito anos de casamento), uma igreja nacional surgira em 1534. Independente de
Roma, a Igreja Anglicana era conduzida pelos bispos, sob o comando supremo do rei. Durante
o reinado de Maria Tudor, “a Sanguinária” (1553-1558), houve uma tentativa de restaurar o
catolicismo romano, com a execução de centenas de protestantes. Sob Elizabete I (1558-1603)
o anglicanismo foi oficialmente restabelecido; porém, sofria pela tensão interna entre
diferentes grupos: anglicanos, católicos, congregacionais e presbiterianos. A partir de 1661,
no reinado de Charles II, alguns ministros que desejavam uma igreja nos moldes da Reforma
Protestante, denominados de “puritanos”, passaram a sofrer perseguição, sendo impedidos de
pregar, expulsos de suas paróquias e até exilados. Mais de dois mil clérigos perderam seus
cargos e cinco mil pessoas foram presas (CLOUSE; PIERARD; YAMAUCHI, 2003, p. 271).
Nos Países Baixos, o calvinismo da Igreja Reformada Holandesa foi desafiado por um
professor de Teologia, Jacó Armínio, que iniciou uma controvérsia ao ensinar e defender que
o decreto divino de salvação e o sacrifício de Jesus na cruz visam todos os seres humanos, que
cada um pode resistir ou aceitar a graça salvadora e, portanto, pode perder a graça uma vez
desfrutada. Mesmo após sua morte, seus seguidores continuaram defendendo suas ideias, e foi
convocado em 1618 o Sínodo de Dort para debate-las; o sínodo as rejeitou por meio de cinco
cânones que reafirmavam a doutrina calvinista ortodoxa (conhecidos até hoje como “Cinco
pontos do calvinismo”, ou pelo acróstico em inglês TULIP). Os treze ministros arminianos
foram proibidos de pastorear e ensinar, e quando se recusaram a assinar sua carta de
demissão, foram exilados. Clouse, Pierard e Yamauchi (2003, p. 274) demonstram que a
punição dos arminianos tinha uma dimensão de interesse político, conforme o Príncipe
Maurício de Nassau pode se livrar de adversários políticos que apoiavam os arminianos;
quando Maurício morreu, os arminianos puderam restabelecer suas igrejas nas províncias
holandesas.
Nos Estados Unidos, após uma tentativa de estabelecer uma “comunidade santa” em
Massachusets, houve uma crescente tolerância religiosa e separação entre estado e igreja.
Walzer (1999, p. 88) avalia que a liberdade religiosa norte-americana se deve a um processo
de “protestantização”, no qual cada religião adquiriu todo o direito de manter crenças e fiéis,
desde que sua associação fosse livre e a coexistência com as outras religiões fosse pacífica.
1061
A História demonstra cabalmente que, conforme uma religião consegue cooptar para si o
poder político, ele será usado para reprimir ou oprimir as religiões rivais. Como constata com
tristeza Chelikani (1999, p. 51), a verdade é que, “frequentemente, as religiões praticam duas
interpretações opostas da tolerância – uma em que são majoritárias e uma outra em que são
minoritárias”. Daí, que “a finalidade da separação entre Igreja e Estado nos regimes modernos
é negar poder político a todas as autoridades religiosas, partindo da suposição realista de que
todas são pelo menos potencialmente intolerantes. Quando esta negação é eficaz, elas podem
aprender a tolerância; melhor dizendo, aprendem a viver como se possuíssem essa virtude.”
(WALZER, 1999, p. 105).
1062
fundadores dos Estados Unidos, identificados, na maioria, como deístas (CLOUSE;
PIERARD; YAMAUCHI, 2003, p. 360-362).
Outro nome-chave desta época é Friedrich Schlaiermacher, que no início do século XIX
começou a questionar o exclusivismo do cristianismo. Para o teólogo luterano, a religião é um
profundo sentimento de dependência de Deus, e todas as religiões são manifestações desta
consciência religiosa universal, da qual o cristianismo seria apenas a forma mais desenvolvida
e livre de superstições (CAMPOS, 1997, p. 37). Rejeitando os aspectos sobrenaturais da fé
cristã, como a encarnação divina em Cristo, os milagres e a revelação escrita, Schlaiermacher
foi o mais influente teólogo do século 19, considerado o fundador da moderna teologia
protestante (CONSTANZA, 2005, p. 89).
2
The fundamentals foi recentemente publicado no Brasil:
1063
“mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e
critério da ortodoxia” (LOPES, 2010, p. 39).
1064
40). Campos conclui que no pluralismo religioso não há uma religião verdadeira – e podemos
questionar se há alguma religião falsa.
A tolerância religiosa foi sendo instituída aos poucos e hesitantemente na Europa pós-
Reforma, não pela misericórdia dos religiosos, mas pela conveniência dos governantes, por
razões de estado. Inadvertidamente, serviu de pano de fundo para o secularismo que
predominaria nas sociedades contemporâneas. Os historiadores Fernandez-Armesto e Wilson
(1997, p. 322, 326-327) chegam à conclusão que a tolerância promovida oficialmente
incentivou as pessoas a confundir secularismo político (a afirmação de que todas as
convicções religiosas são de igual valor perante a lei) com secularismo filosófico (a negação
de que elas tenham qualquer valor). Adiante, afirmam: “A tolerância secular abandona a
verdade objetiva e adota o relativismo; nega o absolutismo moral e afirma a liberdade de
escolha; depõe Deus para coroar o indivíduo” (FERNADEZ-ARMESTO; WILSON, 1997, p.
392). Berger e Luckmann (2005, p. 47-49), por outro lado, questionam a bem estabelecida
“teoria da secularização” como explicação suficiente para a perda de credibilidade da
interpretação religiosa na consciência das pessoas. Estes sociólogos afirmam que, com raras e
notáveis exceções, o indivíduo moderno comum ainda carece de “instituições medianeiras” de
sentido, e destacam que a religião continua entre as principais.
Segundo Peter Berger (1985, p. 60-62) é essencial para a manutenção do tecido social aquilo
que ele denomina “estruturas de plausibilidade” – estruturas de pensamento aceitas de
maneira abrangente e inquestionada por determinada cultura. Entretanto, em sociedades de
grande diversidade cultural (como a nossa) os indivíduos mantêm poucas instâncias em
comum. Em decorrência, estas tendem a ser sustentadas com maior tenacidade, como se
fossem percebidas como inegociáveis e essenciais para a manutenção daquela sociedade.
Donald Carson (2012, p. 2) sugere que o conceito de tolerância adquiriu tal status na
sociedade ocidental pós-moderna: numa sociedade tão fragmentada e multicultural, a
tolerância é vista como elemento imprescindível à sobrevivência social e individual.
1065
está aberta a possibilidade de que outros discordem da escolha uns dos outros, como está
aberta a possiblidade de que cada um venha a escolher diferentemente no futuro (BERGER;
LUCKMANN, 2005, p. 60-61). Portanto, a sociedade pluralista requer do Estado laicidade e
secularismo, e igualmente requer das religiões tolerância, mesmo que seja forçada e
antipática.
Rao Chelikani (1999, p. 59-60) traz uma contribuição interessante para o fomento da
tolerância como atitude individual; ele propõe três atitudes de tolerância: 1) Dúvida: o
questionamento de suas próprias crenças ou, pelo menos, do modo como elas foram
assimiladas pessoalmente; e também o diálogo com o outro para garantir minha compreensão
acerca da sua posição e para encoraja-lo a se questionar também. 2) Segurança: convicto de
que há um engano na posição do outro, busco convencê-lo de seu erro ou, ao menos, de que
minha posição deve igualmente ser tolerada por ele. 3) Indiferença: permaneço discordando
do outro, sem que isso implique juízo de valor a ele enquanto pessoa nem animosidade. Mas
quanto ao papel das religiões na busca da tolerância, Chelikani erra ao combater
especialmente o proselitismo: “Em um mundo superpovoado é desnecessário empreender uma
corrida para a conversão religiosa. A liberdade de converter-se e a liberdade de converter os
outros são duas coisas diferentes” (CHELIKANI, 1999, p. 72). Mesmo adeptos de religiões
não exclusivistas podem justificar seu proselitismo, pois, como vimos, na sociedade pluralista
a religião é uma escolha pessoal, significando uma decisão pelo que se considera a melhor
opção. Portanto, a “liberdade de converter” está ligada à “liberdade de converter-se” como
partes da liberdade religiosa. Chelikani parece ignorar algo da própria natureza das religiões,
como formadoras e organizadoras de sentido, pois o fiel não busca meramente trazer
crescimento à sua agremiação religiosa, mas trazer o infiel para a verdade – que ele já
conhece e deseja compartilhar. Assim, por mais que o pluralismo implique tolerância, não
resulta necessariamente eliminação das diferenças:
1066
Cristianismo, evangelho e exclusivismo
A História Eclesiástica nos ensina sobre a tendência da Igreja à intolerância, quando aliada ao
poder do Estado ou simplesmente em maioria numérica; mas também nos ensina sobre o
perigo da perda de identidade religiosa, quando abre mão de suas doutrinas para poder
estreitar laços com outras tradições religiosas. Em ambos os casos, a Igreja se torna menos
que cristã.
3
Cf. João 14.6; 17.3; Mateus 11.27.
4
Cf. 1Timóteo 2.5 e Atos 4.12.
5
Cf. Romanos 10.13-14
1067
Cristianismo, salvação e tolerância
Em primeiro lugar, na direção horizontal, que já abordamos, “Só Jesus salva” é uma
declaração axiológica dirigida ao outro, e significa que somente têm salvação aqueles que
creram em Cristo como seu único mediador para com Deus. Neste sentido horizontal, tem
função querigmática (como proclamação ao descrente), portando em si mesma a separação da
humanidade em duas famílias distintas: cristãos e não cristãos – e impondo sobre os últimos a
negação e a expectativa de mudança. É neste aspecto que “Só Jesus salva” tem sido fonte e
1068
justificativa para atitudes intolerantes por parte dos cristãos em relação a indivíduos, religiões
e culturas não cristãs.
Entretanto, “Só Jesus salva” guarda outro sentido, que alcunhamos vertical, pois dirigido a
Deus, com papel doxológico (como louvor a Deus). Aqui, “Só Jesus salva” manifesta o
reconhecimento do cristão de que ele, por si mesmo, nunca poderia produzir um novo cristão;
a ortodoxia cristã insiste que a retórica mais refinada, o argumento mais lógico, as explicações
mais claras jamais conseguiriam uma conversão. Por um motivo simples: “Só Jesus salva!” É
a própria Bíblia, única autoridade para a fé fundamentalista, que deixa claro que a obra de
revelar Deus, abrir o coração do incrédulo e convencer do pecado é prerrogativa
exclusivamente divina.6 O evangélico J.I. Packer, falando acerca da evangelização, expõe a
incapacidade humana para converter incrédulos:
Mais uma vez, em última análise, existe um só agente da evangelização: é o Senhor Jesus
Cristo. É Cristo mesmo que, por meio do seu Espírito Santo, capacita os seus servos a
explicar a verdade do evangelho e aplicá-la de forma poderosa e eficaz; da mesma forma,
como é o próprio Cristo que, por meio do seu Espírito Santo, abre o entendimento e os
corações dos seres humanos, para que recebam o evangelho, atraindo-os assim
salvadoramente para si mesmo (PACKER, 2002, p. 78).
Portanto, não precisamos ir mais longe do que a própria ortodoxia cristã fundamentalista para
encontrar a base para a tolerância que a sociedade pluralista contemporânea requer das
instituições religiosas que convivem em seu seio. O desenvolvimento histórico ocidental já se
encarregou de minar a arrogância das religiões de fazerem uso do poder estatal e político para
suprimir suas concorrentes. Entretanto, isso não seria necessário se a convicção cristã
ortodoxa de que a conversão é um milagre de Deus equivalente a um novo nascimento 7
tivesse moldado as interações inter-religiosas da Igreja Cristã. A própria Bíblia teria minado a
arrogância do Cristianismo de forçar por seus próprios meios o Reino de Cristo nos corações,
hábitos e culturas daqueles que não conhecem ou reconhecem o Rei.
Considerações finais
A História da Igreja Cristã nos mostra como a sedução do poder substituiu a proclamação da
fé. Quando possuidora da maioria numérica ou de laços com o poder, o Cristianismo se
6
Cf. Atos 16.14; João 16.8; Lucas 10.22.
7
Cf. Efésios 2.4-5; João 3.5; 2Coríntios 5.17.
1069
afastou profundamente da simplicidade do ministério de Jesus de Nazaré e seus apóstolos,
todos perseguidos por sua fé. Entretanto, os novos tempos no mundo ocidental parecem não
mais oportunizar tais rompantes de intolerância religiosa, quer pelo Cristianismo, quer por
outras religiões.
Por outro lado, ainda que o pluralismo moderno requeira que as religiões contribuam
decisivamente com a formação de sentido dos indivíduos na sociedade, também exige delas a
convivência pacífica e tolerante, que garanta a manutenção das escolhas religiosas pessoais e
livres destes indivíduos. Isso não significa que o Cristianismo tenha de sobreviver à custa de
abrir mão de sua identidade, já que neste caso não lhe restaria sequer sua função social de
apresentar um esquema de sentido coeso. Na verdade, o melhor caminho para uma tolerância
cristã pautada pela boa vontade está no coração da teologia cristã histórica: a salvação é dom
do Deus soberano. Alienados do movimento ecumênico em virtude de seu apego à ortodoxia,
os fundamentalistas devem buscar na ortodoxia a base para uma tolerância religiosa coerente
com sua identidade religiosa e promotora de um exclusivismo cristão tolerante.
O mesmo trajeto poderá ser percorrido por outras doutrinas sustentadas pela ortodoxia
fundamentalista, mas que geralmente não tem produzido maior tolerância na Igreja Cristã.
Outros trabalhos poderão explorar e expor aspectos doutrinários como, por exemplo, a ética
pacifista de Jesus ou a imagem de Deus no homem, verificando como apoiam ou alimentam
uma atitude mais tolerante naquela que ainda é a maior religião do mundo.
Referências
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1071
1072
GT10 – Gênero e religião
Coordenadoras
Resumo
1073
A Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular:
gênero e religiosidade através dos discursos de religiosas
(1946-1988)
Clarissa Milagres Caneschi1
Introdução
Em 17 de maio de 1946, durante o episcopado de D. Helvécio Gomes de Oliveira, foi
oficialmente constituída a Sociedade de Vida Apostólica Beneficência Popular,
associação religiosa feminina fundada por Monsenhor Rafael Arcanjo Coelho, na cidade
de Alvinópolis, estado de Minas Gerais. A espiritualidade de Monsenhor Rafael
inspirava-se na devoção do Sagrado Coração de Jesus e, nesse sentido, ele
1
Mestranda em História pela UFOP. Orientada pela Profa. Dra. Virgínia Buarque. \Contato:
clarissamilagres@yahoo.com.br
1074
Uma nova e significativa mudança ocorreu em 1975, quando D. Oscar de Oliveira, que
havia assumido a Arquidiocese em 1960, solicitou à Associação, em 1975, que se
instalasse em Mariana, sede do Arcebispado. Entretanto, somente em 28 de novembro
de 1988, já na gestão arquidiocesana de D. Luciano Mendes de Almeida, que as Irmãs
da Beneficência Popular finalmente conseguiram a aprovação do Vaticano para a
fundação de sua Congregação. Tendo recebido o Nihil Obstat em Carta da Sagrada
Congregação Pro Religiosis et Institutis Secularibus, de 18 de julho de 1988, a antiga
Associação foi então erigida, por decreto de D. Luciano, em Sociedade de Vida
Apostólica Beneficência Popular, regida pelo Direito Diocesano:
[...] usando das atribuições que nos concedeu a mesma Sagrada Congregação, muito
ex corde aprovamos e confirmamos pelo presente as Constituições da Sociedade de
Vida Apostólica Beneficência Popular. Que a fidelidade ao carisma do virtuoso
Monsenhor Rafael Arcanjo Coelho, seu fundador, possa levar os membros da
sociedade a proclamar a boa nova do amor e da bondade de Deus Salvador, por meio
da devoção ao Sagrado Coração. (Decreto de criação da Sociedade de Vida
Apostólica Beneficência Popular, de 28 de novembro de 1988).
1075
Irmãs de vida ativa
Chamadas para atuarem como agentes da Restauração Católica no Brasil, a maioria das
congregações femininas aqui chegadas nas primeiras décadas do século XX era de
1076
origem europeia. Sua vinda deveu-se tanto ao incentivo dos bispos locais como ao
incremento de certa hostilidade à Igreja em seus países de origem, que era associada,
pelos novos regimes políticos, às antigas monarquias restauradoras; isso ocorreu
principalmente na França, quando, em 1903, essas congregações foram suspensas e
expulsas. Assim, muitas delas encontraram na vinda para o Brasil uma saída para o
impasse, embasadas no espírito religioso de “missão em terra estrangeira”
(QUINTANEIRO, 1996).
A partir da década de 1960, a Igreja Católica passou por profundas alterações em sua
estrutura organizacional e em sua interpretação doutrinária. O Concílio Vaticano II
(162-1965) redirecionou significativamente os propósitos da vida consagrada,
masculina e feminina, associando-os a um ideário de inserção no mundo. As
congregações religiosas femininas tiveram de promover, por determinação episcopal,
uma revisão de seus estatutos e símbolos. Desta maneira, antigos hábitos foram
substituídos por roupas comuns, prédios conventuais foram trocados por pequenas
residências (sem quase nenhum aparato exterior que as distinguisse de moradias leigas),
rigorosas atitudes do cotidiano religioso, como o silêncio ou as práticas penitenciais,
foram flexibilizadas, substituídas ou até abolidas, em nome de outras condutas, mais
condizentes com a realidade histórico-social.
1077
feminina foi amplamente realizada no Brasil, contando com o apoio da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Confederação dos Religiosos do Brasil
(CRB).
Considerações finais
A despeito da tentativa promovida pelos historiadores para “dar voz aos mortos”
(CERTEAU, 1982, p. 106), um dos silêncios que ainda encobre a prática historiográfica
no Brasil refere-se às singularidades da vida religiosa feminina. Entende-se a carência
historiográfica acerca dessa temática como um desdobramento da representação
emudecida imposta às mulheres por inúmeras determinações eclesiásticas, que lhes
interditam a produção simbólica veiculada à pregação da palavra e à conferência dos
sacramentos.
1078
1960) e D. Oscar de Oliveira (1960-1988) mostraram-se valiosas prestadores de serviço
ao Estado e à sociedade: enquanto o clero lutava pelo restabelecimento do ensino
religioso nas escolas públicas, as freiras foram encarregadas de educar, nos internatos
por elas fundados, os filhos da antiga aristocracia e das novas camadas enriquecidas,
propiciando às elites conservadoras um aparato específico ao seu ideal civilizatório,
articular de uma perspectiva moderna (por ser europeia) e tradicional-nacional (por ser
católica). Também eram elas quem assistiam aos segmentos sociais marginalizados pelo
capitalismo liberal, através da manutenção de asilos, hospitais, orfanatos etc.,
contribuindo para um tênue apaziguamento dos conflitos urbanos. Essas duas práticas,
por sua vez, não eram excludentes: muitas congregações femininas dedicadas ao ensino
da elite direcionavam parcela de sua renda para atividades sociais.
Nesse sentido, sugere-se que apesar de todas essas práticas serem promovidas em
aliança com a elite social, a vida religiosa feminina nas congregações apostólicas
contribuiu significativamente para a conquista de certa autonomia por parte de um
grande número de mulheres de diferentes extratos sociais que, dotadas de menor
escolaridade, puderam não somente ingressar no mercado de trabalho, como sobretudo
reelaborar as representações que produziam de si mesmas, ampliando em decorrência as
possibilidades de novos posicionamentos sociais.
Referências
1079
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Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira Época. Petrópolis: Vozes,
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correspondance familiale au XIXe siècle. In. PLANTÉ, Christine. PERROT, Michele.
Palavras de mulheres. In: Mulheres públicas. São Paulo: Unesp, 1998.
1080
1081
Do Axé à Aleluia: um rosto feminino do pentecostalismo
Lizandra Santana da Silva1
Introdução
A pluralidade do campo religioso brasileiro é um dos fatores que têm provocado uma maior
circulação de fiéis por diferentes grupos religiosos. A fluidez dos adeptos entre as distintas
religiões permite afirmar que os símbolos e as práticas religiosas estão sendo intensamente
apropriadas e ressignificadas, o que favorece a permanência de laços identitários e simbólicos,
ou seja, “o fiel” não precisa necessariamente romper bruscamente com suas antigas tradições
religiosas. Pretendemos nesta comunicação analisar as motivações pelas quais mulheres
adeptas do Candomblé se converteram às denominações protestantes na cidade de Cachoeira-
Ba, entre 1980 e 2007.
Realizaremos esta análise a partir dos relatos orais das mulheres e dos homens que se
converteram, do Jornal Folha Universal, dos livros doutrinários O Perfil da Mulher de Deus,
O Perfil do Homem de Deus, O Perfil da Família de Deus, e a revista Plenitude. Com base
nessas fontes tentaremos compreender o predomínio feminino nas conversões, bem como as
relações estabelecidas na nova filiação religiosa. Por motivos éticos neste trabalho optamos
por atribuir pseudônimos aos entrevistados.
1082
espécie de ajudante do culto, que auxilia o pastor e seus assistentes na realização da
cerimônia.” (SANTOS, 2009, p.119). No campo das Ciências Sociais temos o trabalho da
professora Sueli Souza que investigou o processo de cura entre mulheres pentecostais
destacando que as pessoas do gênero feminino se socializaram nesses grupos religiosos e
redefiniram suas identidades.
Eduarda, uma das entrevistadas, membro da Igreja Batista Missionária ao refletir por que a
maioria das pessoas que se converteu foi mulheres afirmou:
Eu tenho pra mim assim, por que as mulheres são, são mais sofridas então dentro desse
sofrimento procura assim um refúgio, um consolo, um conforto né? É Jesus, Jesus nos
conforta mesmo, eu tiro por mim, por que foi onde eu encontrei um consolo foi com Jesus,
a minha alegria, minha paz, encontrei lá com Jesus e eu creio que muitas devem ser por isso
(...) 2
2
Entrevista com a senhora Eduarda concedida à autora em 22 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
3
É o nome, em iorubá, dado a sacerdotisa do Candomblé.
1083
mulher não mulher é mais oposição, ela sofre mais, ele é toda dedicada, ela é toda meiga, é
toda carinhosa, tudo dói, a mulher tem que ser bem tratada, bem amada infelizmente elas
não é pelas bênçãos que Deus dar e aí ela procura sempre o melhor. 4
Apesar de afirmar que para a mulher tudo dói, ou seja, para Mônica a mulher é mais
sentimental, mas ao mesmo tempo essa mulher é “segura de si”, ou seja, é uma pessoa que
tem coragem para enfrentar suas atribuições, mas aliviar suas aflições busca consolo na
religião. Conforme o discurso de Mônica uma mulher frágil é aquela que não busca solucionar
seus problemas e abandona os familiares, pois não suporta as adversidades. O discurso da
depoente reforçou a visão de que as mulheres são frágeis e que não devem ter uma vida
pública como os homens que podem descarregar suas angústias com os amigos em volta de
uma mesa de bar. Socialmente não é aceitável que uma mulher, mãe de família, sente com as
amigas para se embriagar, a mulher deve ficar no lar cuidando da casa e dos filhos. Assim,
Mônica reproduziu na sua fala os papéis socialmente construídos para o homem e a mulher.
“Muitas né? Não tá nem aí joga a peteca pro ar e dar o zignal delas, vai, não tá dando certo vai
se prostitui ou se não vende desfaz do que tem como você vê aí, mente fraca, usada pelo
inimigo.”5
De acordo com Mônica uma mulher determinada, uma mulher “segura” não desistiria do seu
casamento, mas buscaria a presença de Deus para aprender a lidar com as situações adversas
4
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
5
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
6
Idem
1084
da vida cotidiana. Para suportar os problemas conjugais e não busca a separação. Conforme o
texto bíblico “Toda a mulher sábia edifica sua casa, mas a tola derruba-a com as suas mãos”.7
Para a entrevistada por mais difícil que sejam as circunstâncias a mulher deve se manter firme
em prol da família, o marido pode ser o mais “miserável”, a mulher não pode desistir. De
acordo com o trecho acima citado da entrevista, afirmamos que a entrevistada assumiu sem
contestar os papéis culturalmente construídos para as mulheres, independente de suas filiações
religiosas. A mulher na sociedade ocidental tem como obrigação ser uma boa esposa e boa
mãe. Os cuidados com a casa, o marido e os filhos são atribuições naturalizadas como
femininas, conforme o discurso machista e patriarcal, portanto não tem por que a mulher
“jogar a peteca pro ar”. Machado, no texto Representações e Relações de Gênero nos grupos
pentecostais, afirma que:
As histórias de conversão masculinas revelam situações de desemprego, dificuldades
financeiras e problemas pessoais na área da saúde nas justificativas para a adesão religiosa
ao pentecostalismo já as mulheres quase sempre associam suas escolhas religiosas com as
desavenças familiares e as necessidades – materiais e espirituais – do grupo doméstico. Em
outras palavras, enquanto os homens procuram a comunidade religiosa em situações que
põem em ameaça a identidade masculina preponderante na sociedade, as mulheres se
colocam como guardiães das almas de todos que integram a família, buscando os grupos
confessionais sempre que um dos seus familiares se mostre em dificuldades. Nesse sentido,
as qualidades alocadas ao gênero masculino no sistema hegemônico de representações
parecem distanciar os homens das prescrições religiosas de uma forma geral e, em especial,
do ethos pentecostal, enquanto os atributos femininos favorecem as experiências das
mulheres com o sagrado e os vínculos comas comunidades religiosas (MACHADO, 2005,
p.389.).
No livro O Perfil da Mulher De Deus, o Bispo Edir Macedo (2001) afirma que: “O sucesso de
um homem, não importando a profissão que ele exerça, depende muito da mulher que faz
parte da sua vida. Ela é, na verdade, co-responsável tanto pelo seu sucesso quanto pela sua
desgraça”.8As mulheres cabe o papel de cuidar do marido, o sucesso dele depende da mulher.
No que se refere aos perfis feminino e masculino Edir Macedo (2001) afirma que: “A ele foi
dada a capacidade de sujeitar a Terra e dominar todos os tipos de animais. À mulher, porém,
foi dada a grandeza de poder gerar um filho no seu ventre” (idem, p.12).
(...) por que ela procurando Jesus, ela ficando uma mulher santa na presença do Senhor,
santa que eu digo assim é uma pessoa já dotada de Cristo, das como é que diz, da presença
7
Bíblia. Livro de Provérbios 14:1.
8
MACEDO, Edir. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro: Universal, 2001, p. 10.
1085
do Senhor, dotada das bênçãos de Deus, transformada por Jesus Cristo, pela palavra dele
então através dela também santificará o marido que a bíblia diz assim a mulher santa
edifica o marido, o marido santo edifica a mulher, ou seja, um dos dois que for pra Jesus
vai surgir uma transformação tão grande que o outro vai começar a ver essa diferença e vai
começar se ele quer também vai buscar aonde tá jorrando essa fonte (...) 9
Ser uma mulher santa pressupôs deixar de frequentar os pagodes, de vestir roupas curtas
exibindo seus corpos, ou seja, deixar de ser mundana. Silva e Almeida no texto: Mulheres
Protestantes: Uma Trajetória nem sempre submissa, afirmaram que a simbologia de Maria
estabelece duas funções sagradas para o sexo feminino: a maternidade e a pureza. Para as
autoras: “Esse ideal feminino implicava recato e pudor, a busca constante de uma perfeição
moral, a aceitação de sacrifícios, a ação educadora de filhos e filhas” (SILVA e ALMEIDA,
2011, p.368). Uma das entrevistadas relatou sua experiência com o marido: “(...) como meu
esposo era assim quando eu fui ser cristã, ele ficou no mundo aí da prostituição eu nem thum,
Jesus transformou tanto a minha vida, minha mente que eu só queria Jesus, só queria falar do
amor dele, ficar lá com os irmãos, ficar em casa ouvindo a palavra (...)” 10
Podemos afirmar que a conversão da entrevistada foi motivada pela busca de um casamento
em Cristo, no qual não mais existiria infidelidade, pois para as denominações protestantes o
adultério é condenado para ambos os sexos. Nos Terreiros de Candomblé não há uma rigidez
no que se refere a padrões de comportamento sexual. Nesse sentido, ignorar o adultério do
marido não seria, além de uma estratégia, uma fuga? Podemos conjecturar que para a
entrevistada estar com seus irmãos na fé e escutar a “palavra”, ou seja, buscar os
ensinamentos bíblicos era uma forma de aliviar as suas aflições conjugais. Sandra Duarte de
Souza, no que se refere às motivações femininas para uma nova adesão religiosa, identificou
em sua pesquisa sobre o trânsito religioso que:
Em terceiro lugar essa mulher aponta os problemas conjugais como motivo de preocupação
(39,5%). Em sua maioria esses problemas estão relacionados a infidelidade por parte do
marido, vindo em alguns casos a redundar na separação. É somente eu quarto lugar que as
preocupações com sua saúde pessoal vão aparecer, seguidas de problemas econômicos em
geral (SOUZA, 2006, p.26).
9
Entrevista com a senhora Mônica concedida à autora em 18 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
10
Idem
1086
cama, chamei ele pra ir pra igreja, vai pra igreja hoje? Não.” 11 A esposa deixou de brigar com
o marido, deixou de importuná-lo. Ela passou a utilizar-se de outras estratégias para conseguir
harmonizar seu casamento. A entrevistada buscava, conforme orientação do pastor, converter
seu cônjuge, numa atitude passiva, mas ao mesmo tempo vigilante.
Pronto, todo dia que eu ia pra igreja, vai pra igreja hoje? Não. A roupinha já ta lá. Quando
foi um certo dia botei a roupa lá nem perguntei se ia pra igreja mas daqui um pouco tá ele:
hoje vou pra igreja, eu olhei assim, falei amém, tanto que esperava, também não levou um
ano né? Depois que eu me converti pra ele se converter também, por que ele viu bem a
diferença, que se ele viu que eu era uma menina assim bem dedicada, quieta, aquietada não
gostava de sai nem nada, depois passei assim por ódio que ele me fazia, passei a vesti roupa
curta, passei a beber a ir pra “sere”, a ir pros pagode com minhas primas, com minhas tias,
ele aí começou o homem não gosta né?Aí já começou ficar, depois ele viu a diferença
quando eu fui pro Evangelho, ele é a mulher que eu quero é assim, ele também foi pra
igreja, mais por que ele queria também isso e aí aceitou Jesus, mas aonde dói é quem mais
procura quem ta sentido sua dor é quem mais procura o remédio então a mulher é onde ela,
é quem mais é ferida, maltratada (...)12
Ao analisar o trecho supracitado, podemos afirmar que o peso dos papéis femininos numa
sociedade com duplo padrão de relações conjugais estabelece que o homem pode tudo e a
mulher nada, isto é, deve ser submissa, obediente e reservada.
É se nós olharmos pra população existe mais mulheres do que homens e a mulher é mais
sofrida, muitas se entregam ao evangelho pelo fato de sofrer no relacionamento muitas
procura um relacionamento no Evangelho pelo fato de sofrer muito, de homens trair, então
elas procuram um relacionamento no senhor pra que haja fidelidade do marido e outras vai
pelo amor também e outras pelo chamado mesmo de Deus. 15
1087
oferece esperança para as mulheres, mas não podemos afirmar que as mulheres convertidas
terão certeza da fidelidade de seus companheiros, pois as orientações religiosas quanto à
sexualidade podem ser transgredidas. Conforme Machado: “A doutrina pentecostal enfatiza os
valores associados à subjetividade feminina, mas tal fato não deve ser interpretado como um
simples reforço a submissão das mulheres, uma vez que esses princípios, bem como os
constrangimentos à sexualidade, são extensivos aos homens da comunidade” (MACHADO,
2005, p.389).
Em relação ao menor número de conversões masculinas, Manoel, afirmou: “Os homens desde
o princípio foram machistas e ainda são machistas, muitos tem vergonha de seguir o
evangelho, mas Deus quando tem um chamado na vida de um homem não tem machismo
16
certo, por que ele vira criança, lá ele chora lá ele se aquebranta (...)” . Para o entrevistado
mesmo o homem sendo machista, diante de Deus ele admite suas angústias e aflições e
demonstra seus sentimentos. A vergonha de ser crente pode surgir devido aos possíveis
julgamentos que a sociedade venha a fazer.
16
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
17
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de Abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
1088
herança familiar além de nesse espaço terem exercido cargo de liderança, os três convertidos
exerceram o cargo de ogã.18
Na noite do dia 22 de abril de 2013, ao som da música de um culto protestante que ocorria no
bairro Ladeira da Cadeia, onde o senhor Manoel reside, em relação as suas atribuições no
Terreiro de Candomblé ele rememorou:
(...) a mim foi incumbido o cargo de ogã, eu era axogum da casa, onde eu sacrificava os
animais e oferecia aos orixás, tinha também por função alabê, de tocar os atabaques para os
orixás dançar (...) Eu praticamente no Candomblé eu era a mão direita da mãe de santo que
quando estava lá a pouco tempo tinha pessoas para ajudar a casa, a maioria começou a
viajar e eu fiquei praticamente sozinho só eu de ogã praticamente, então eu fazia quase
todas as funções praticamente na casa, eu dava banho nos Exus, eu acendia velas pros Exus,
eu como eu já disse eu cortava pros animais na hora das obrigações, da matança. Tudo isso
era eu que fazia e tinha alguém também que me ajudava, eu levava despacho pra cemitério,
pras encruzilhadas, pras matas, pras pistas. Tudo tinha por incumbência de eu fazer isso
aí.19
Identificamos a partir do discurso de Vanessa que ela tem ciência das diferenças dos papéis
sociais delegados ao homem e a mulher, afinal “o homem pode tudo”, ou seja, na nossa
sociedade os homens têm a permissão de se divertir e se relacionar com várias mulheres. Para
a entrevistada o espaço religioso protestante, não permite que o homem crente tenha esse tipo
de comportamento. Nesse sentido, da mesma forma como os rígidos padrões éticos e de moral
sexual são motivos para atrair as mulheres, esses motivos servem para afastar os homens do
18
Segundo Parés (2007), os ogãs, função exercida exclusivamente pelo sexo masculino, tem o papel de ser a
segunda pessoa depois do líder religioso, ialorixá ou babalorixá. Eles não dançam nem “recebem” o orixá na
cabeça, mas fazem o ritual de iniciação. Geralmente são responsáveis pelo toque dos atabaques e pelo sacrifício
dos animais.
19
Entrevista com o senhor Manoel concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
20
Entrevista com a senhora Vanessa concedida à autora em 24 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
1089
espaço religioso protestante. Além das regras morais que devem ser seguidas, a entrevistada
aponta para o fato das mulheres terem mais “problemas” do que os homens. Mais uma vez
observamos a responsabilidade que a sociedade, bem como os grupos religiosos, atribuem à
mulher. Os problemas femininos são imbricados com as questões familiares, cabe à mulher
manter a harmonia do lar.
Sandra Duarte de Souza (2006) ao estudar o trânsito religioso em Alto Paraíso-GO, além de
ter identificado que houve um trânsito maior de mulheres, percebeu distinções entre os
interesses que motivaram o trânsito de mulheres e homens. Assim, constatou:
Uma média de 45% dos homens apontou problemas econômicos e de doença pessoal como
os motivos principais de sua andança religiosa. Em outras palavras são motivos de fundo
individual que geram as demandas simbólicas desses homens entrevistados. Somente
depois disso é que vêm os outros motivos como doença ou morte dos filhos (22,7%) e
doença ou morte da esposa (14%). Os problemas conjugais somam ínfimos 2%. Esses
dados não aprecem assim tão alarmantes, mas se compararmos com as respostas das
mulheres, veremos uma grande divergência de interesses em sua busca religiosa. Nada
menos que 59% delas relataram mudança religiosa em busca de cura dos filhos e consolo,
no caso de morte desses. Essa cura inclui desde doenças físicas até problemas de
envolvimento com drogas.Um outro recordista da preocupação das mulheres nesse quadro é
aquele que se refere à doença ou morte do cônjuge (44,5%). Mas uma vez a preocupação
dessas mulheres é com o outro, desta vez como marido (SOUZA, 2006, p.26).
Conforme dona Eduarda, mãe biológica de Manoel, um dos motivos que a fez sair do
Candomblé foi:
Devido à situação também que meu filho tava passando, aí tudo isso me fez desgostar do
Candomblé e procurar Jesus (...). (...) quando nós estamos lá queremos ajuda, um socorro
daqueles orixás e no momento não teve nada disso, meu filho era o zelador, ele cortava, ele
e aconteceu muitas coisas, muito problema na vida dele, querendo tirar a vida dele, a vida
da mulher dele. No momento em que ele estava em aflição não achou consolo nenhum,
então eu penso assim se ele cuidava daqueles orixás, se ele alimentava, se ele fazia tudo
livrar ele, desse perigo, desse ato que tava acontecendo, foi em vários lugares o próprio
demônio queria destruir a vida dele, queria beber o sangue dele. Então essas coisas nós
vamos juntando e perdendo aquele amor que tem, aquele gosto e procura outra solução,
bate em outra porta.21
21
Entrevista com a senhora Eduarda concedida à autora em 22 de abril de 2013, em Cachoeira-Ba.
1090
A senhora Eduarda buscou adesão a outro grupo religioso com a finalidade de eliminar suas
aflições, causadas, principalmente, pelos problemas que seu filho estava passando. É
importante informarmos que ela se converteu logo após a conversão do filho. Ao afirmar que
foi juntando as coisas, dona Eduarda demonstrou que foi perdendo a identificação com o
Candomblé por um conjunto de questões. Conforme Sueli Souza:
Ao que parece os motivos para as conversões são os mais diversos e não raro os mais
triviais. Longe de ser uma coisa pontual, que ocorre num dado instante de decisão, a
conversão na maioria dos casos, parece ser muito mais um processo de convencimento e
/ou experiências religiosas marcadas por incidentes ou eventos que sinalizam o “chamado”
para a conversão. Esse processo pode variar em termos temporais de uma experiência de
dias até mesmo ao longo da vida. É algo muito mais processual que se delineia a partir de
um convencimento gradativo ou como resultado cumulativo de eventos e incidentes que são
destacados como sinais do chamado à conversão. (SOUZA, 2007, p.145).
Ao perguntar a dona Carla, como era a sua vida quando estava no Candomblé ela afirmou que
vivia sérios problemas conjugais:
Terrível. Apanhava todo dia. Ia dançar candomblé de noite quando eu chegava em casa o
marido me cobria a porrada, todo ano quebrava as minhas coisa tudo, eu não tinha paz , ele
tinha três mulheres, eu que era a casada parecia que eu era a arranjada, eu não tinha paz, eu
não tinha sossego, eu não tinha vida. Eu não tinha vida, minha vida era um vazio. 22
Os problemas conjugais foram destacados com veemência pela senhora Carla, que vivia
oprimida pelo marido devido à violência doméstica, bem como com a infidelidade. A partir da
análise do relato acima outras questões se impuseram23, por exemplo, como passou a ser o
relacionamento conjugal da senhora Carla após a conversão? Será que o marido deixou de
agredi-la? Será que o marido passou a ser fiel? Será que o marido se converteu? Quais as
estratégias utilizadas para convertê-lo?
Silva (1998) ao conjecturar sobre os motivos de uma maior adesão feminina, a Igreja Batista,
em Salvador, no final século XIX e início do XX aponta como uma das possibilidades o fato
de ser: “(...) uma religião que defendia um único padrão de moral para homens e mulheres ser
extremamente atrativa para mulheres que viviam sob o jugo masculino e as tensões por terem
que suportar as aventuras extraconjugais dos seus companheiros, ou o assédio de varões que
não tinham limites éticos na abordagem amorosa”(SILVA, p.1998, p.300).
22
Entrevista coma senhora Carla concedida à autora em 15 de fevereiro de 2009, em Cachoeira-Ba.
23
Esta entrevista foi realizada durante o primeiro ano da iniciação científica que fiz durante a Graduação e não
tinha como objetivo compreender o protagonismo das mulheres nas conversões, por isso essas questões não
foram contempladas.
1091
Para a senhora Laura, sua conversão, além de outros motivos, ocorreu em um momento que
“(...) também estava assim me sentindo muito deprimida né? Tinha tido alguns problemas
com o meu marido”.24 A conversão para algumas mulheres, também contribui para manter as
boas relações familiares.
Além dos problemas conjugais a senhora Laura relatou a mudança de comportamento pós-
conversão no interior do seu grupo familiar:
Olhe minha vida antes de me converter era terrível, por que meu relacionamento com o
meu pai - é uma das coisas que eu sempre falo com as pessoas que são próximas a mim- é...
uma das coisas que Deus fez na minha vida depois que eu me converti foi ter a amizade de
meu pai, por que levei trinta anos meu pai achando que eu era excomungada, que eu não
prestava, eu brigava muito com o meu pai, eu não respeitava meu pai, então hoje em dia,
né? Depois que eu me converti eu tenho um amigo, meu pai vem a minha casa, meu pai
conversa comigo, eu levei trinta anos sem vê um sorriso de meu pai, hoje sento com meu
pai, meu pai conta as coisas pra mim e eu dou risada, eu tenho um amigo e antigamente eu
tinha meu pai como meu inimigo, mas hoje em dia uma das coisas que eu mais prezo assim
que Deus fez comigo.25
A harmonia com o pai foi a consequência da conversão que mais alegrou dona Laura. A
mesma quantidade de tempo que ficou no Candomblé, coincidência ou não, igualou-se a
desunião entre Laura e seu pai.
1092
27
sentia uma pessoa ... , por que eu perdi meu marido (...) A sociabilidade que a comunidade
religiosa ofereceu à senhora Margarete lhe ajudou a superar os sentimentos de perda e tristeza,
após o falecimento do seu cônjuge. Conforme Cândido da Costa e Silva a religião dá sentido
um roteiro da vida e da morte.
Considerações Finais
Referências
ALMEIDA, Bianca Daéb’s Seixas. Uma História das Mulheres Batistas Soteropolitanas.
Orientação de Elizete da Silva. Dissertação (Mestrado em História) UFBA, Salvador, 2006.
ALMEIDA, Ronaldo de & MONTERO, Paula. Trânsito religioso no Brasil. Revista São
Paulo em Perspectiva, vol. 15, no. 3. CEBRAP, São Paulo, p. 17-35, 2001.
1093
MACHADO, Maria das Dores Campos. Representações e relações de gênero nos grupos
pentecostais. Estudos Feministas, vol.13, no.2, Florianópolis, p. 387-396, Maio/Ago. 2005,.
SILVA, Elizete da. Cidadãos de Outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. Orientação de
Augustin Wernet. Tese (Doutorado em História). USP, São Paulo, 1998.
SOUZA, Sueli Ribeiro Mota. Em Diálogo com Deus: A Construção de “Self” entre mulheres
pentecostais. Tese de doutorado. Salvador, UFBA, 2007.
1094
1095
Festejo de Nossa Senhora Mãe dos Homens – identidades,
sincretismo, religião e poder na Comunidade Remanescente
Quilombola de Juçatuba
Flávia Leite Gomes28
1. Introdução
Por se tratar de um local de existência secular, apresenta em seu contexto sócio, político e
cultural, festas religiosas de matriz africana e europeia sincretizadas como: São Sebastião,
Nossa Senhora do Bom Parto, Sant’Anna, Festa do Divino Espírito Santo31, Nossa Senhora
Mãe dos Homens e Festejo do Menino Jesus32, o sincretismo presente ao longo do ano é
externado nos rituais festivos, vez por outra, resignificando não só a fé de mulheres negras e
afro-descendentes, como permitindo acionamentos diversos de identidades, segundo os
discursos utilizados como vias de poder, segundo observam (REIS; SANTOS, 2010, p. 4):
28
Graduada em Letras pela UFMA, especialista em Literatura Brasileira e Língua portuguesa pela Faculdade
Santa Fé, pesquisadora associada à ABHR, membro do GE de Gênero e Identidade, na UFMA, sob coordenação
da Professora Doutora Sandra Maria do Nascimento. Contato: orquidiazul_fla@hotmail.com.
29
Segundo art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e artigo 216, I a V, §§ 1º e 5º da
Constituição Federal de 1988.
30
Dado fornecido segundo entrevistas orais com a presidente da Associação Comunitária Nossa Senhora Mãe
dos Homens, senhora Ivanilde Cascaes Monroe e tesoureira da mesma instituição, senhora Marinalva Garcês
Monroe. Ver localização em anexo.
31
Sempre festejada anualmente, esteve ausente do calendário festivo de Juçatuba durante intervalo de 2009 a
2011, por ocasião do falecimento da senhora Maria da Glória Monroe, “dona da festa” segundo entrevista à
senhora Maria de Fátima Monroe, filha, que desde o ano de 2012 retomou a festa junto às atividades do terreiro
de umbanda e à santa cultuada ao Divino, Sant’Anna.
32
Os festejos apresentados acima correspondem ao artigo Festejos religiosos na comunidade remanescente
quilombola de Juçatuba: fé, devoção e memória apresentado no XIII Simpósio Nacional da ABHR: Religião,
carisma e poder: As formas da vida religiosa no Brasil, na Universidade Federal do Maranhão em 2012.
1096
resistência e reorganização. Seja como ama de leite, ama seca ou cozinheira, ela ocupará o
espaço privado, não se abstendo, no entanto, de transitar pelo público como vendedora de
quitutes, escrava de ganho, etc
O que chama a atenção é que dentre as diversas atribuições desempenhadas, o cuidado com
o outro sempre esteve presente, seja na alimentação para as quituteiras, seja no cuidado de
crianças, no caso das amas, ou no cuidado espiritual e de saúde das mães de santo e
benzedeiras, ou seja, mantém-se ainda a troca material e simbólica.
O cuidado como atribuição feminina estará presente e não objetará a liberdade feminina.
[...] É da preservação - a duras penas - da sua cultura, que a mulher negra permitirá a si e à
sua religião o reconhecimento e o espaço público.
Transitando pelo mundo mítico e real com a mesma propriedade com que faziam entre o
público e o privado, as mães negras, conseguiram congregar e aliar aspectos africanos,
europeus e indígenas na construção de uma identidade que tinha por marca o feminino na
sociedade brasileira.
Quem não conheceu ou ouviu falar de uma rezadeira, uma referência feminina comunitária,
negra e sábia que houvesse acolhido as dores e alegrias de uma comunidade, fazendo com
que a cultura afro-descendente permanecesse e fosse respeitada. (REIS; SANTOS, 2010, p.
4):
Deste modo, com vistas em melhor esclarecer as investigações sobre gênero, identidade, os
usos discursivos e poder inserido nos mesmos antes, durante e depois do festejo, além do
sincretismo manifestado em cada evento religioso proponho relatar a principal fea 33, Nossa
Senhora Mãe dos Homens, desde os preparos à execução, junto às análises de Judith Butler,
Joselia Ferreira, Rita de Cássia Santos, Clifford Geertz, Rodrigo Caldeira, Néstor Canclini,
33
Refiro-me a festa ao invés de festejo, devido aos critérios elencados por Regina Prado (2007, p.115 – 121) que
argumenta ser a festa um evento contínuo com organização prévia de um ano, às junções entre o sagrado e o
profano, às presenças de batucada ou de baile, às divisões categóricas em “festa de rico” e “festa de pobre”.
1097
Sérgio Ferretti, Émile Durheim e outros autores para melhor compreender os fenômenos
religiosos na presente comunidade remanescente de quilombo, descrevendo a priori o
calendário festivo no local, com fins de verificar a inserção da festa da padroeira e
importância à população e visitantes.
Assim, é relevante elencar as festas em datas, pois uma vez dispostas, melhor podem-se
analisar os discursos sociais e os atos simbólicos, citados anteriormente, presentes na
principal festa Nossa Senhora Mãe dos Homens, em virtude do sincretismo presente em todos
os eventos inclusive no foco de nossa pesquisa. Desse modo, seguem abaixo as festas
pertencentes à comunidade remanescente de quilombo de Juçatuba, com breve descrição
quanto à origem, datas comemorativas e organização.
1098
cartas (solicitações de bons votos à família: saúde, paz, harmonia, felicidades, etc.) e jóias
(valor em espécie para o custeio do evento religioso) até a culminância da festa.
Juntamente ao festejo de Sant’Anna foi inserida a Festa do Divino Espírito Santo, que estivera
ausente do calendário de festas da comunidade desde o ano de 2009 a 2011, por ordem da
intervenção espiritual dos guias que requeriam o retorno das atividades do terreiro, que havia
sob a direção da mãe de santo, Maria da Glória Monroe, falecida em 2009, e resistência de
continuidade de sua herdeira, senhora Maria de Fátima Monroe.
Comemorada a 16 de dezembro, tem provável origem por volta de 1940, tendo por chefe o
senhor Luís Gouveia, passando a assumir a direção, após falecimento deste, a senhora Maria
da Conceição Lima Durans, filha da casa, moradora do bairro São Raimundo, mas com
parentesco na comunidade de Juçatuba.
1099
O presente festejo difere dos demais por ter caráter espírita (européia), mesclado a elementos
da religião católica (imagens e encenação do império; presente na Festa do Divino Espírito
Santo) e africana (dança do carimbó às vésperas do encerramento da festa).
3. Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens – identidades, sincretismo, religião e poder
As festas, com destaque às de caráter popular, há muito tem sido elementos de discussões
dentro e fora dos espaços acadêmicos por tratarem de momentos de efervescência
visibilizados nas ações de seus agentes sociais (Durkheim apud FERRETTI 2009, p. 185),
quando observamos as várias identidades acionadas ou mesmo entrecruzadas antes, durante e
após os eventos, valendo ressalva à segunda.
E nessa efervescência coletiva, segundo pensa Ferretti (2009, p. 185) ao citar Durkheim, é
perceptível através do constitutivo festa, a confluência de ações como cânticos, danças,
músicas, comidas, bebidas e outros que culminarão na coesão social, importante e
contributiva à permanência destes eventos ano após ano.
1100
outubro e estende-se por dez dias34, tem por característica comum às demais festas as
transformações e continuidades no que tange aos rituais e simbologias, segundo assinala
Canclini (1982, p. 131) quando analisa as relações entre as crenças tradicionais e as festas
rurais e urbanas:
Qual é o destino das crenças tradicionais que deram origem às festas? A secularização e a
mercantilização das cerimônias é inversamente proporcional ao grau com que uma
sociedade se encontre integrada equilibradamente e tenha resolvido a problemática da
satisfação das suas necessidades básicas. [...]
Vivemos num “sistema produtivo supra-urbano”, que substitui a oposição entre campo e
cidade por um reordenamento econômico, político e cultural homogeneizado.
Canclini, ao analisar as crenças tradicionais e relações destas às festas, tinha por parâmetro os
rituais tribais indígenas, contudo, se pensarmos na Festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens
e demais festas da referida comunidade, Juçatuba é-nos perceptível estas continuidades e
transformações correspondentes aos eixos rural e urbano, em virtude do que fora esboçado na
última linha acima.
Deste modo, segue a descrição da festa de Nossa Senhora Mãe dos Homens no ano de 2012.
Teve início no dia 05 e término no dia 14 de outubro, cuja abertura deu-se na capela de
mesmo nome da padroeira sob badalos de sino e fogos de artifício para conclamação à
população para celebração feita pelos seminaristas, Elinaldo Cavalcante Assunção e Diego
Manuel de Sousa ambos servos do Seminário do Sagrado Coração de Jesus – Bairro: São
Cristóvão. A capela encontra-se ornamentada e nas laterais do oratório da santa padroeira são
acrescidas a bandeira do Divino Espírito Santo à esquerda e das Santas Missões, à direita.
34
Segundo entrevista a senhora Joana, secularmente a festa era comemorada segundo a primeira lua cheia, haja
vista na época não haver luz elétrica na localidade. Entretanto, passou a ser comemorada na segunda semana do
mês de outubro, devido às finanças, posto o funcionalismo público ser a maior fonte de renda da população local.
6.1 A senhora Joana é um pseudônimo referente a uma das principais rezadeiras das festas na comunidade
remanescente de Juçatuba.
1101
Durante a celebração de caráter católico seguem-se os ritos35: inicial com o canto de entrada
(somente por instrumentos de percussão como pandeiros e tambores que ao longo dos outros
dias conduzirão as ladainhas em latim ao acompanhamento dos sons similares às Charangas
ou taró, cortejo e valsa), pedido de perdão e o canto de Glória, o rito da palavra com a leitura
do Livro de Jó, Salmo Responsorial por Marinalva Garcês Monroe, homilia, rito da comunhão
com o canto para ofertório e entrega das hóstias consagradas e o rito final com os avisos
referentes à festa, Oração a Nossa Senhora Mãe dos Homens e canto final ao som dos toques
de caixas.
Fato curioso quanto à organização antes, durante e após a festa, no que remete às questões de
simbologia religiosa, é a presença contínua do senhor César Monroe Garcês, único homem
partícipe dos eventos festivos referentes à padroeira, ausente das outras partes que remetem à
ideia de festa dos pecadores. Quando a comunidade cita a outra parte da festa atribuindo-lhe a
ideia a pouco citada, lembra-nos a análise por Durkheim em profano e sagrado, conforme
observado no fragmento:
[...] as festas populares levam aos excessos, fazem perder de vista o limite que separa o
lícito do ilícito; também há cerimônias religiosas que determinam como que uma
necessidade de violar as regras, ordinariamente as mais respeitadas. Não, é claro, que não
haja motivos para diferenciar essas duas formas de atividade pública. O simples regozijo, o
corrobori profano não visa nada de sério, ao passo que, em seu conjunto, uma cerimônia
ritual sempre tem um objetivo grave. Mas é preciso observar que talvez não haja regozijo
no qual a vida séria não tenha algum eco. No fundo, a diferença está, antes, na proporção
desigual segundo a qual esses dois elementos se combinam. (1996, p. 418)
Assim, sequencialmente à festa, durante a celebração tem-se explicação sobre o Terço das
Santas Missões, quanto ao sentido representativo das cores (azul: Oceano, verde: África,
vermelho: América, amarelo: Ásia e branco: Europa) ao passo que relembram o início do
35
Ao descrevermos os ritos da festa durante a missa de abertura, pretendemos analisar as adequações
significativas destes ao longo da festa segundo o Concílio Vaticano II, que a partir da década de 60 do século
XIX “objetivava integrar a igreja às transformações do mundo, reafirmando seu papel na contemporaneidade,
apontando novos rumos, demonstrando não ser uma instituição milenar e tradicional sem contato com a
realidade circundante e sem ressonância no mundo” (CALDEIRA, Rodrigo Coppe, 2012, p. 1).
1102
festejo enfatizando aspectos históricos da narrativa oral quanto à festa e a coincidência com o
dia de São Benedito.
Ao longo dos segundo, terceiro, quarto, sexto, sétimo e nono dias ocorrem as novenas em
latim anunciadas sempre à comunidade pelo badalar do sino e fogos de artifício, nesse sentido
vale ressalvar que a influência e diversidade da programação religiosa organizada pela
comunidade, de maioria feminina, promove o aumento do número de homens presentes às
novenas, para além das funções de limpeza e organização de finanças do leilão que estes
participam junto às mulheres.
À frente das rezas sempre está a senhora Rosilda que puxa o coro da comunidade, sendo a
quarta ladainha, rezada sempre de joelhos36, como Ato Penitencial Nossa Senhora Mãe dos
Homens, a quinta em conclamação à santa e na sexto é cantado um hino. Na sétima parte são
feitas as orações do Pai Nosso, Ave Maria e Santa Maria por três vezes e de joelhos, sendo a
Salve Rainha rezada somente uma vez.
No quinto dia o sino é badalado e os fogos de artifício são lançados para anunciar à
comunidade a celebração de missa pelo padre Abraão. Seguem-se os ritos da celebração
sempre ao som dos toques de caixas pelas senhoras, Rosilda, Maria da Paz Monroe, Noacir
Monroe Garcês, Sônia Maria Correa Garcês.
No oitavo dia, diferente dos outros, é feito um louvor da Renovação Carismática Católica e o
festejo é encerrado no décimo dia com a celebração de missa, pelo padre Nicolau, procissão
ao fim da tarde e leilão38.
36
Segundo relato da senhora Joana “deve ser de joelhos porque é um momento de fé, onde compartilhamos
nosso sofrimento com o de Maria”.
37
A conclamação à santa sempre feita ao término das novenas, missas, celebrações e louvor é: “Viva à Nossa
Senhora Mãe dos Homens !” “Viva!”.
1103
À tarde, quando sai da capela a imagem da santa e de Jesus Cristo em procissão junto à
comunidade, é notório o número de pessoas que pagam promessas andando descalças, o
aumento de fiéis durante o percurso e o acender de velas ao término da tarde.
Ainda referente à santa, ao longo da procissão, estão dispostas à frente a bandeira com a
imagem da santa, outra de Jesus Cristo, do Divino Espírito Santo e das Santas Missões, atrás
seguem crianças vestidas de anjos nas cores: rosa, branco e azul, sempre meninas de faixa
etária entre seis e oito anos de idade, todas de mãos dadas. São feitas cinco paradas para a
reza do terço das Missões Populares e o cortejo segue ao som de instrumentos musicais para
execução de hinos à Nossa Senhora Mãe dos Homens, valsas e louvação à Maria, mãe de
Jesus.
A chegada da santa, ao fim da tarde, à capela é anunciada por fogos de artifício e palmas da
comunidade, da mesma forma que é iniciada a procissão, sendo que a santa é disposta de
costas para a capela e de frente à entrada da comunidade39 durante longo tempo enquanto os
anjos permanecem sentados à sua frente. Nesse instante a senhora Rosilda inicia a reza das
ladainhas em latim agora ao som das valsas tocadas pelos músicos. Ao badalo do sino e fogos
de artifício as imagens da santa e de Jesus entram na capela, ao passo que os músicos dirigem
- se ao coreto, para início do leilão.
38
Ainda segundo a entrevista da senhora Joana “O leilão é um meio de divertir a comunidade, manter a tradição
e recolher fundos para o ano seguinte da festa”.
39
A chegada da santa e a disposição dos anjos dá-se assim segundo a senhora Joana: “...primeiro devido ao
calor, pois antes tudo era dentro da capela, mas como era pequeno e as pessoas ficavam com calor, resolvemos
que fosse feita lá fora. Além do mais como meio também da santa proteger a comunidade e todos verem sua
chegada após visitar toda a comunidade”
40
Em São José de Ribamar, município balneário pertencente ao Estado do Maranhão, ocorre durante o período
carnavalesco o mesmo lava-pratos, festa que corresponde ao fim de semana seguinte ao carnaval, após a quarta-
feira de cinzas, que segundo narrativas orais, devia-se ao fato de que era o único dia onde os garçons dos
restaurantes da cidade tinham para desfrutar da festa.
1104
Considerações finais
Deste modo, com destaque à descrição da principal festa Nossa Senhora Mãe dos Homens,
observamos as relações indissociáveis e complementares do sagrado e profano, no decorrer
da festa antes, durante e depois, as relações discursivas dos agentes sociais femininos e as
continuidades e transformações na festa tradicional de Juçatuba citada quanto às charangas,
aos louvores, missas, ladainhas em latim, procissão e festa dançante.
Referências
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Novos rumos para velhos dogmas. Revista de História. São
Paulo, p. 1-3, 2012.
PRADO DE PAULA. Regina Santos. Todo ano tem: as festas na estrutura social camponesa.
São Luís: EDUFMA, 2007.
1105
REIS, Joselia Ferreira dos. FREITAS, Rita de Cássia Santos. De matriz africana: o papel das
mulheres negras na construção da identidade feminina. Anais do Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010.
Outras referências
1106
1107
Participação de lideranças femininas na construção de políticas
públicas para afrorreligiosos em Belém, Pará
Daniela Cordovil1
Introdução
Desde o trabalho pioneiro de Ruth Landes (2002), muito foi escrito sobre a presença e
participação das mulheres em religiões de matriz africana. Desde então, inúmeras pesquisas
tem destacado o valor supostamente positivo atribuído ao gênero feminino nestas religiões.
Para os autores que se dedicaram ao estudo do tema (LANDES, 2002; BIRMAN, 1995;
SEGATO, 2005) no terreiro a valorização do gênero feminino aparece como igualitária ou
complementar no plano do simbólico a do gênero masculino, ao contrário do cristianismo,
onde existe uma desqualificação sistemática do feminino.
1
Doutora em Antropologia Social pela UnB. Professora do PPG em Ciências da Religião da UEPA.
Contato:daniela.cordovil@gmail.com.
1108
O objetivo desta comunicação é apresentar uma perspectiva alternativa ao pensamento
predominante sobre as relações de gênero nas religiões de matriz africana, pois enquanto
muito se destaca da participação de mulheres nestas religiões, irei estar preocupada aqui em
apresentar um quadro onde a participação de mulheres, especialmente no que diz respeito ao
desenvolvimento de políticas públicas e ocupação de espaços de poder é minimizada.
Apesar de tais constatações empíricas, o terreiro ainda é visto como espaço de supremacia
feminina, sendo que na imagem pública das religiões de matriz africana este papel é
destacado, um exemplo são os documentos referentes a politicas públicas para terreiro, onde é
possível ver fotografias de mães de santo com suas vestimentas tradicionais, sendo que nestas
imagens são retratadas majoritariamente as mulheres (BRASIL, 2013). É também nos eventos
públicos, como palestras, seminários e mesas de debates que essas mulheres são chamadas a
participar, como ícone emblemático das comunidades de terreiro.
No entanto, os terreiros em Belém podem ser espaços femininos onde atuam muitas
lideranças femininas, porém são representados publicamente por falas masculinas. Um dos
indícios dessa supremacia é a ausência de projetos para mulheres em casas de liderança
feminina, apesar do público das políticas ser majoritariamente feminino. Em Belém, como
apresentarei mais adiante, o único terreiro de religião africana a executar projetos voltados pra
mulheres é comandado por um pai de santo.
1109
Terreiros: espaços femininos, falas masculinas
Além da supremacia masculina no comando real do terreiro e da associação, outro fato que
chama atenção é a natureza das atividades desenvolvidas para capacitação das mulheres. As
oficinas e atividades sempre tem como foco o desenvolvimento de habilidades
tradicionalmente femininas como a culinária, a beleza, o artesanato. Este fato é uma constante
nas oficinas desenvolvidas esporadicamente por outros terreiros de Belém, todas versam sobre
saberes classificados pela sociedade brasileira como tradicionalmente femininos, e situados no
universo doméstico, como artesanato, corte e costura, culinária e beleza (SAFIOTTI, 2004).
Um outro caso em que uma fala masculina se sobressai em terreiro de liderança feminina é de
um conhecido terreiro de Candomblé Angola em Belém, cuja sacerdotisa ocupa papel de
1110
destaque nos debates públicos locais. Mametu Lindalva faz parte do comitê inter-religioso
ocupa diversos conselhos e representações nacionais e regionais. Nesta casa de culto, apesar
de a principal liderança ser feminina, todas as atividades públicas que envolvem
pronunciamentos e engajamento político são chefiadas por um dos ogãs da casa, que é
professor universitário. Este ogã atua como um portavoz da mãe de santo para assuntos
políticos e burocráticos.
Outro exemplo de obliteração do lugar de fala das mulheres é na condução de uma das
principais associações civis de afrorreligiosos em Belém. Nesta associação, a presidência e
principais cargos administrativos são ocupados por homens, pais de santo de destaque na cena
pública local, que efetivamente tomam todas as decisões sobre a condução política da
associação. No entanto, existe uma mãe de santo muito ativa na associação, esta mãe de santo
funciona como uma espécie de relações públicas da casa, atuando junto a políticos e
instituições. Também é uma espécie de “faz tudo” da associação quando se trata de promover
manifestações e atos públicos, mobilizar a mídia e políticos. Apesar do seu papel chave nas
atividades práticas, como organização de eventos, palestras e etc., essa mãe de santo não
ocupa nenhum cargo importante na burocracia da associação. Atualmente tem se envolvido no
fortalecimento de sua própria associação civil, percebendo a necessidade de que seus esforços
políticos atinjam resultados mais concretos.
Para finalizar, cito como exemplo da ausência de vozes femininas efetivamente ativas no
debate político dos afrorreligiosos de Belém o processo de participação na campanha eleitoral
para escolha de prefeito e vereadores, ocorrida em 2012. Com relação à política eleitoral, a
maioria dos afrorreligiosos de Belém considera importante a participação e ocupação deste
espaço. Para alguns isso se daria através do apoio a candidatos e partidos, para outros através
da eleição de um candidato afrorreligioso que pudesse representar os interesses deste grupo,
especialmente nos embates públicos contra os neopentecostais. Em 2012, as opiniões se
dividiram quanto a este tema e enquanto alguns afrorreligiosos apoiaram candidatos não-
afrorrelgiosos, de diferentes legendas partidárias, outros foram favoráveis ao lançamento de
um candidato afrorregioso. O candidato oficial dos afrorreligiosos foi um pai de santo, que
obteve apenas 400 votos, nenhuma mãe de santo foi cogitada para concorrer.
1111
Mulheres no terreiro: reprodução ou emancipação?
Essas ilustres matriarcas tem seu poder simbólico e real derivado de uma ordem social de
ancestralidade africana onde às mulheres eram reconhecidas como as únicas que
legitimamente poderiam entrar no estado de transe, estabelecendo a comunicação entre
homens e deuses (BASTIDE, 2001). Era reservado aos homens, nesta ordem social, o cuidado
com os aspectos públicos da casa de culto, a busca de proteção e amparo financeiro,
características do cargo de ogã (LANDES, 2002). Tradicionais protetores dos terreiros, os
ogãs contribuíam financeiramente para a manutenção da casa de culto, em uma sociedade em
que as mulheres possuíam pouca inserção no mercado de trabalho, além de fazer a mediação
entre o terreiro e o espaço público, num tempo em que a religião sofria forte perseguição
policial. Grandes pesquisadores e intelectuais como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson
Carneiro e Jorge Amado, filiaram-se como ogãs às tradicionais casas de culto baianas.
Na hierarquia do culto esses homens ocupavam um lugar pré-estabelecido e não faziam frente
às mulheres, reconhecidas como tradicionais e sábias lideranças. As grandes sacerdotisas
eram geralmente mulheres de idade avançada, após a menopausa, onde se considera que
simbolicamente a mulher já afastou os aspectos perigosos e ambíguos da feminilidade, como
a fertilidade e a sexualidade (DEL PRIORE, 2009). Essas grandes mães, assexuadas eram
reconhecidas como símbolo da ancestralidade e sabedoria dos terreiros baianos (LANDES,
2002) e também na Casa das Minas, tradicional casa de culto de São Luís (FERRETTI, 2009).
É essa imagem da mãe de santo que ainda se pode perceber nos materiais de divulgação
recentemente produzidos pela Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, da
Presidência da República. Onde é possível ver fotografias em sépia de mulheres, geralmente
em pequenos grupos, vestidas com tradicionais roupas litúrgicas, como na imagem abaixo.
1112
Ter
2
ritório Tradicional Bate Folha Manso Bandunquequé. Acervo SEPPIR, 2009
Se, por um lado, a figura da mãe de santo como símbolo de ancestralidade, sabedoria e poder
sempre foi louvada como um ícone das religiões de matriz africana, desde as observações de
Ruth Landes na década de 1930, uma figura andrógena já se destacava no cenário das
religiões africanas na Bahia, o homem homossexual de características femininas que entra em
transe com as divindades.
Considerados uma aberração pelas mães de santo tradicionais, esses homens já se destacavam
no período, tentando estabelecer-se com pais de santo, a despeito da proibição estabelecida
pela ortodoxia. A constatação etnográfica de Ruth Landes custou caro aos resultados da sua
pesquisa, que foram duramente criticados pela intelectualidade da época, escandalizados com
a revelação, naquele tempo considerada comprometedora, de que os terreiros seriam um
espaço de “invertidos”. Com a maioria da intelectualidade baiana naquele período lutava para
elevar o status das religiões africanas, as descobertas de Ruth Landes soaram desconfortáveis
aos ouvidos da época (CORRÊA, 2003).
Pesquisas posteriores passaram a dar cada vez mais destaque a realidade irrefutável, que
exceto em tradicionais casas de culto em São Luís e Salvador, a maioria dos terreiros de
religiosidade africana permite também a existência de médiuns de incorporação, que entram
em transe, entre indivíduos do sexo masculino.
A possibilidade do transe é condição sine qua nom, nas religiões africanas para atingir o cargo
máximo da hierarquia, o de pai ou mãe de santo. Se se admite que os homens também podem
2
Fonte: Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana. SEPPIR, Governo Federal, 2013.
1113
entrar em transe, então, tanto homens quando mulheres poderem ascender à liderança da casa
de culto, desta forma, cai por terra a ideia de que a religião de matriz africana seria um
matriarcado, um espaço de poder feminino, defendida por Ruth Landes.
No entanto, para esta autora, a tese do matriarcado não se contradiz pela presença de homens
na liderança de culto, pelo contrário, a condição de homossexuais “passivos” destes homens,
seria mais um indício de que o local simbólico do transe, que é o local de maior poder nas
religiões de matriz africana, seria um espaço feminino. Portanto, homens para ocuparem este
espaço teriam que exibir características do gênero feminino.
Revisitando algumas das teses de Landes, a partir de uma observação de campo realizada no
Rio de Janeiro na década de 1990, Patrícia Birman constata a forte presença de homossexuais
masculinos entre aqueles que entram em transe no terreiro de candomblé e umbanda. Esses
indivíduos tem um lugar garantido na hierarquia do culto, são chamados de adés, jovens
rapazes afeminados que valorizam o aspecto lúdico e visual da religião, a incorporação com o
orixá, a dramaticidade do transe.
A pesquisa de Birman chama a atenção para a importância que vem ocupar na religião de
matriz africana o homossexual masculino. O que tanto Landes quanto Birman não chamaram
atenção é que por mais que ocupe um papel simbolicamente feminino estes homossexuais
passivos ou afeminados não deixam de ser homens, para a sociedade envolvente. É neste
aspecto que gostaria de chamar atenção para buscar a compreensão do papel das mulheres nas
lutas políticas de afrorreligiosos em Belém.
O que podemos observar em Belém é que à medida que tanto homens quanto mulheres podem
legitimamente entrar em transe, percorrer um caminho iniciático na religião africana e
1114
tornarem-se lideres de terreiro, perde-se a condição de primazia do feminino como espaço
simbólico da liderança, como foi destacado por pesquisadores para o candomblé baiano e a
Casa das Minas de São Luís. E se, tanto homens quando mulheres podem ocupar o pólo
máximo de poder, que é o espaço do transe, era de se esperar que em uma sociedade machista
e misógina como a brasileira as mulheres ficassem novamente em desvantagem em se
tratando da ocupação de espaços de poder. Assim, prevalecem aqui estereótipos de gênero
predominantes na sociedade envolvente, subvertendo o tradicional poder feminino nas
religiões africanas.
Outro elemento que contribui também para o pouco empoderamento das mulheres nas lutas
políticas dos afrorreligiosos em Belém é a própria caraterísticas destas lutas. Elas se dão no
espaço público, espaço que a sociedade patriarcal elegeu como masculino. Assim, mesmo na
divisão de gênero dos terreiros tradicionais era o homem, o ogã, o responsável por representar
publicamente os interesses do terreiro. Em Belém, quando homens e mulheres afrorreligiosos
lutam pela inserção em um debate público sobre o futuro destas religiões, homens tendem a
usurpar a cena por geralmente serem vistos como mais hábeis para falar, construir redes de
relações, transitar por espaços de poder. Mesmo quando existem mulheres capazes de
apresentar essas habilidades, elas sofrem dura oposição das lideranças do sexo masculino.
Essa oposição pode ser explícita ou velada, mas tem se mostrado presente. No entanto,
quando é do interesse dos sacerdotes do sexo masculino, eles mesmos instrumentalizam as
mães de santo, apresentando-as como imagem pública, ou vitrine dessas lutas, pois
reconhecem a força simbólica contida na imagem das sacerdotisas de religião africana para a
sociedade brasileira.
Considerações finais
1115
Referências
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CORRÊA, Mariza. O mistério dos Orixás e das bonecas: raça e gênero na Antropologia
Brasileira. In: Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, pp. 163-184,
2003.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
1116
1117
Novas configurações das famílias contemporâneas: rupturas e/ou
continuidades nos discursos e práticas de metodistas e luteranos
acerca do divórcio e novos casamentos
Noeme de Matos Wirth1
Introdução
O presente artigo faz parte do tema da pesquisa da dissertação de mestrado que tem por
objetivo discorrer sobre as novas configurações da família contemporânea no contexto do
divórcio e novos casamentos. Pretende-se analisar como essas novas configurações familiares
estão impactando o discurso religioso no Protestantismo Histórico, mas especificamente no
luteranismo e metodismo. Através da pesquisa documental das Igrejas Metodista e Luterana
pretende-se avaliar se o discurso religioso tem acompanhado as mudanças ocorridas nas
dinâmicas familiares e através da pesquisa de campo, com aplicação de questionários, se
avaliará como os sujeitos religiosos experimentam o discurso institucional no convívio das
comunidades eclesiais. Procuraremos identificar se os sujeitos religiosos conhecem o discurso
institucional de suas respectivas Igrejas. Verificaremos se os discursos institucionais e
práticas eclesiais são coerentes ou dissonantes.
1
Mestranda em Ciências da Religião pela UMESP. Bolsista da CAPES. Filiada ao GP de Estudos de Gênero e
Religião Mandrágora/NETMAL. Orientadora: Profª. Drª. Sandra Duarte de Souza. Contato:
NoemeKlaus@luteranos.com.br.
1118
Na contemporaneidade
as pessoas passaram a se descartar com muito mais facilidade não apenas dos bens, mas
também de valores, estilos de vida, relações estáveis e ligação com as coisas, construções,
lugares, pessoas e modos herdados de fazer e ser (VAITSMAN, 1994, p. 48).
Essa atitude das mulheres tem gerado uma revolução nos costumes e tem sido vivida com mais
tranquilidade que no passado. Com as relações mais flexíveis e plurais as mulheres sofrem
menos discriminação e críticas. No passado muitas mulheres seriam acusadas de egoístas e de
individualistas por não quererem exercer a maternidade. Apesar das culturas do casamento e da
maternidade continuarem sendo o modelo idealizado pela sociedade e pela religião percebe-se
uma grande mudança na faixa das mulheres que estudaram mais e se profissionalizaram.
A maioria das brasileiras atinge o ápice profissional um pouco depois dos 40,
quando sente que o momento de ser mãe já se foi. Quanto mais educadas e bem
sucedidas, mais elas têm se revestido de coragem para se desviar daquilo que todo
mundo sempre viu como seu destino inescapável. (JIMENEZ, 2013, p. 119).
A mulher tem sido protagonista das mudanças na contemporaneidade. Hoje elas lideram o
ranking no pedido de separações na maioria dos estados brasileiros de acordo com os dados
do IBGE. O crescimento do divórcio por iniciativa das mulheres tem crescido por conta da
1119
postura diferente em relação ao casamento. Com a independência financeira e a realização
profissional, as mulheres não mais precisam se sujeitar a um relacionamento insatisfatório. A
própria desmistificação do casamento eterno, só dissolvido pela morte, tem levado muitas
mulheres não somente a romperem seus relacionamentos como também a refazerem suas
uniões através de uma nova organização familiar.
Com o crescimento do número de divórcios no país não dá para pensar que as pessoas que
participam de alguma religião estejam imunes ao divórcio. Com a modernidade as pessoas
passaram a ter mais coragem de assumir suas escolhas e optar por relacionamentos que lhes
tragam mais prazer e realização. Como a infelicidade na vida matrimonial e familiar não
escolhe pessoas por causa de sua classe social, etnia e por sua opção religiosa, também nas
comunidades religiosas observam-se, cada vez mais, diversas configurações familiares.
O discurso religioso, na maioria das religiões, legitima o poder do homem sobre a mulher,
assim como enfatiza o papel de submissão da mesma. "Aos homens coube o mandato divino
de exercer autoridade sobre as mulheres e crianças. Deus comanda os homens da mesma
maneira que o poder masculino comanda as mulheres e as crianças" (SILVA, 2006, p. 19).
A maioria das igrejas cristãs adota uma postura conservadora a respeito do divórcio e vê o
1120
casamento como uma aliança indissolúvel, só dissolvida pela morte. O divórcio é visto como
uma exceção e consequência de uma ruptura, resultado do pecado, que trouxe a destruição do
casamento. Mesmo entre as igrejas que possuem uma visão mais liberal, os posicionamentos
dos líderes religiosos são divergentes em relação ao divórcio. No entanto, apesar do modelo
de família instituído pela religião ser o modelo nuclear, cresce o número de famílias
reconstituídas através de uma segunda união, no contexto religioso. Diante dessas
circunstâncias, a religião não pode ignorar essa realidade latente nas igrejas. Entre o ideal
pregado e a realidade vivida há uma enorme discrepância. A igreja prega a indissolubilidade
do casamento, no entanto o número do divórcio e de novas configurações familiares
desconstruíram a concepção da antiga família patriarcal. O casamento deixou de ser perpétuo
e o sexo somente para procriar. A consanguinidade deixou de ser condição necessária e
obrigatória e cedeu espaço ao afeto em questão de laços e obrigações familiares. Deixou-se de
falar em família, mas em famílias, dada à existência de diversos tipos de relações familiares.
Com esse novo modelo de família baseado no afeto, na aliança e no amor, os pares não
precisam ser formados por pessoas da mesma faixa etária, da mesma classe social, ou de
sexos opostos para poderem constituir família.
A realidade social trouxe uma nova ideia de família com as diversas configurações. A
concepção de família a que estávamos habituados não existe mais como modelo único. Tudo
isso desmoronou a supremacia da concepção da antiga família patriarcal, onde o elemento de
constituição da mesma não é só laços de parentesco de natureza biológica ou civil, mas
principalmente de afetividade. Sarti (2006) afirma que na contemporaneidade
A tradição vem sendo abandonada como em nenhuma outra época da História. Assim, o
amor, o casamento, a família, a sexualidade e o trabalho, antes vividos a partir de papéis
preestabelecidos, passam a ser concebidos como parte de um projeto em que a
individualidade conta decisivamente e adquire cada vez mais importância social (SARTI,
2006, p. 43).
1121
Um dos pontos frágeis do divórcio tem sido o cuidado com os filhos. Muitos pais, ao se
divorciarem da esposa, parece que também se divorciam dos filhos. A guarda dos filhos, na
maioria das vezes, fica com a mãe. Muitos pais nem mesmo contribuem com a pensão dos
filhos, mesmo que esse compromisso seja uma obrigação garantida pela lei. Enquanto isso
muitas mães assumem todo o sustento da família. Por outro lado existem pais extremamente
atenciosos que dividem o cuidado dos filhos, seja na guarda compartilhada, na educação e,
por conseguinte, conseguem resolver a separação de forma madura sem prejudicar tanto os
filhos.
A riqueza das novas organizações familiares é que ela resgata vínculos e elos perdidos,
aproximando mais as famílias no cuidado com as crianças, estabelecendo uma rede solidária
entre avós, parentes, amigos e vizinhos, para driblar a pobreza. Nesse sentido, observa-se que
os novos arranjos familiares estabeleceram conexões resgatando a solidariedade que existia
nas famílias anteriormente. As dificuldades experimentadas afloram a criatividade, as
demandas de sobrevivência resgatam elos perdidos e abrem espaços para os vínculos de
parentescos.
A Igreja Católica, ao longo dos anos, assumiu um discurso conservador não aceitando o
divórcio. Já algumas Igrejas Protestantes, como a Metodista e a Luterana, entre outras,
assumiram um posicionamento mais liberal celebrando em suas igrejas o casamento de
divorciados. De acordo com Machado "os protestantes, ao contrário, destacam-se por uma
posição de respeito às leis civis, procurando se adaptar às mudanças sociais, como a dissolução
do contrato matrimonial e o planejamento familiar" (MACHADO, 1996, p. 104).
A Igreja Metodista, através dos seus documentos oficiais, expressou a sua posição em 1979,
publicando uma Pastoral da Família na qual a Igreja, enquanto instituição, expressava a sua
postura diante da aprovação da lei do divórcio. A posição da Igreja representou um grande
1122
avanço para a época que se pensava que através do divórcio a família estava fadada a
desaparecer. Destacaremos alguns trechos desta pastoral que reflete a posição da Igreja
Metodista.
Cremos que a família não está num processo de dissolução, mas sim, de transformação.
Compreender e aceitar este fato à luz da Palavra de Deus, de sua revelação natural e
histórica e à luz da realidade humana pessoal e social, é tarefa da Igreja... Cumpre-nos
reconhecer que, a superação da crise atual da família implica também agir de forma criativa
e dinâmica em tudo aquilo que tem afetado a vivência familiar (COLÉGIO EPISCOPAL,
1979, p. 9).
Diante da aprovação da lei do divórcio, a Igreja Metodista não se omitiu, mostrando uma
posição madura diante da crise vivenciada pela família. Tal postura representou um grande
avanço para a época. Reconhecer que, diante da crise da família, precisava agir de forma
criativa e dinâmica, representava, não só para aquela época como ainda hoje, um grande
avanço no contexto religioso. Havia várias pessoas que viviam separadas e tinha dificuldades
de refazerem suas vidas. A legalização do divórcio possibilitou um novo recomeço para
muitas pessoas. E a Igreja Metodista se fez presente na vida destas.
A Igreja Metodista não poderia deixar de emitir o seu pensamento e definir o seu
posicionamento. Temos nos pronunciando, no decorrer dos anos, contra solução
inadequadas, relativas aos casais que enfrentam crises conjugais ou que já vivem separados.
Em seu Credo Social, a Igreja tem-se pronunciado contra solução inadequada do desquite.
Reconhece que tanto o desquite, como o divórcio ou as uniões ilícitas, produzem sérios
males para a vida familiar, atingindo principalmente os filhos. Mas, diante de todas as
soluções preconizadas para resolver a situação do casal separado, a Igreja se manifesta
favoravelmente à implantação do divórcio, como o corretivo mais adequado, dentre todos
os usados (COLÉGIO EPISCOPAL, 1979, p. 27).
Percebe-se que a Igreja mantém uma postura pastoral e, como tal, deixa claro que não é a
favor do divórcio e sim a favor da indissolubilidade do casamento. O divórcio dentre todos os
recursos é aceito pela Igreja como mal menor para assegurar o bem estar da família, depois de
terem sido esgotados todos os esforços de manter o casamento. O divórcio é visto pela Igreja
1123
Metodista como algo "trágico", como consequência do pecado. A Pastoral da Família e o
Ritual de Celebração da Igreja, assim como os Cânones que regem as leis da Igreja afirmam
que as pessoas divorciadas que querem refazer suas vidas numa segunda união só poderão se
casar novamente após serem exortadas pastoralmente "e manifestar sinais de arrependimento
e disposição de nova vida em harmonia com a vontade de Deus" (PASTORAL DA
FAMÍLIA, 1979, p. 31). Mesmo aceitando como um mal necessário, a Igreja Metodista lida
melhor com a situação do divórcio, procurando agregar as famílias através de atividades que
fortalecem os vínculos familiares.
O divórcio é visto como pecado e como tal precisa ser confessado e tratado através do
arrependimento e de predisposições de mudanças. A ação pastoral precisa levar a pessoa
divorciada a ter consciência da nova chance dada para estabelecer uma nova união. A Igreja,
tanto a nível Geral, Regional, Distrital e Local, tem priorizado metas e ministérios específicos
com temas sobre a família, dando apoio e suporte através de atividades como: palestras,
grupos de casais, grupo de mulheres, ministérios de capacitações para pessoas que trabalham
na área da família. Todas essas atividades visam fortalecer os vínculos familiares na Igreja
Local onde os membros participam e, consequentemente, evitar o divórcio.
A pastoral da família foi publicada há 34 anos atrás e o novo Plano Nacional Missionário (2012 -
2016) menciona que essa pastoral deverá se adequar às novas demandas da contemporaneidade.
A pastoral aponta as rupturas das famílias, bem como perdas e ganhos dessas novas
organizações familiares. Nesse processo a Igreja precisa de novas propostas que visam
integrar essas novas configurações familiares. A partir das mudanças na área jurídica, a
1124
pastoral aponta que as mesmas trouxeram novas questões para a prática da Igreja.
Estas modificações na área jurídica trouxeram novas questões para a prática da Igreja. A
realização da Bênção Matrimonial estava naturalmente vinculada à sansão do Estado. Só se
concedia a Bênção Matrimonial ao casal que casava no civil. Em muitos lugares também só
se batizava a criança de um lar legitimamente constituído. A nova realidade admite uniões
fora do modelo tradicional. Existe a possibilidade legal de uniões por concubinato. Fala-se,
inclusive, na legalização de uniões de parceiros do mesmo sexo, tendo em vista ser uma
realidade a existência da indiferenciação entre os sexos (IECLB, 1997, p. 10).
A Pastoral da Igreja Luterana, por ter saído em 1997 depois das mudanças da Constituição de
1988 quanto ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, se mostra mais
aberta aos diversos modelos de família já existentes na Igreja e na sociedade. Fala-se até
mesmo de uniões de parceiros do mesmo sexo, mostrando que a Igreja não está alheia aos
acontecimentos da sociedade. A pastoral enfatiza também que o divórcio é visto como pecado
que precisa de penitência. Ao mesmo tempo em que a pastoral é progressista e liberal, ela
também é conservadora, representando uma continuidade dos valores religiosos. O ritual de
celebração de casamento da Igreja Luterana afirma que "o santo matrimônio será dissolvido
só pela morte. Assim diz Jesus Christo: o que Deus ajuntou, não o separe o homem (Mat.
19,6)" (IECLB, 1952, p. 51). O mesmíssimo conteúdo encontramos no Celebrações do Povo
de Deus, publicado em 1991, 39 anos depois (IECLB, 1991, p. 62).
Nos votos que os noivos fazem um ao outro é interessante como, na parte da mulher, é
acrescentado "ser a ele sujeita no Senhor, não abandoná-lo em horas de alegria e de dor e
manter a união matrimonial santa e indissolúvel, até que a morte vos separe?" (MANUAL DO
CULTO EVANGÉLICO, 1952, p. 52), o que não encontramos nos votos feitos pelo homem.
No ritual de celebração matrimonial de 1991 (CELEBRAÇÕES DO POVO DE DEUS, p. 62),
1125
essa frase dos votos da mulher é retirada, mas o compromisso do casamento continua sendo
"até que a morte nos separe".
No ritual da Igreja Metodista de 1990 essa frase ficou da seguinte forma: "Quero guardar-me
somente para ti enquanto junto vivermos". (RITUAL, 1990, p. 54). Já em 2001 o novo ritual
apresentou a seguinte mudança: "Na esperança de viver ao seu lado por toda a minha vida."
(RITUAL, 2001, p. 54).
Nota-se que as mudanças são pequenas, mas mesmo assim as Igrejas Metodista e Luterana
são consideradas mais abertas às pessoas que passam pelo divórcio e que procuram novos
casamentos.
A Igreja Metodista pesquisada está na cidade de Ferraz de Vasconcelos há 16 anos, num bairro
de periferia. A comunidade é constituída, em sua maioria, por mulheres negras que fazem parte
da liderança da Igreja. Das mulheres que participam dessa comunidade, 23% passaram pelo
divórcio e optaram em não casar-se novamente. A Igreja possui uma visão conservadora no que
se refere a este tema.
A Igreja Luterana está presente na cidade desde 1954, um ano após o município ser
emancipado. Surgiu com os migrantes de descendência alemã, vindos de Joinvile/SC, e foi a
segunda Igreja da cidade. A comunidade conta com um índice de 30% dos seus casais que
passaram pelo divórcio e também pelo segundo casamento. É um índice bastante elevado.
Constatou-se, através da pesquisa, que todos os sujeitos entrevistados das duas instituições
religiosas não têm sequer o conhecimento dos documentos da sua Igreja que falam a respeito do
divórcio e de novos casamentos, nem mesmo as lideranças leigas. A Igreja Metodista possui a
1126
Pastoral da Família, que é o principal documento que explicita a temática do divórcio, e
passaram-se 34 anos e os membros da Igreja Local entrevistados desconhecem a existência da
mesma. Na Igreja Luterana a Pastoral da Família saiu em 1997, há 16 anos atrás. Constatou-se,
através da pesquisa, que 100% dos sujeitos entrevistados dessa instituição também
desconhecem a existência desse documento. Isso nos faz concluir que esses documentos não são
estudados nem divulgados na vida das Igrejas Locais, pois nem mesmo a liderança conhece a
postura oficial de sua Igreja a respeito do assunto. Isso nos faz questionar: até que ponto é do
interesse da instituição não estudar esses documentos? Será que não divulgar esses documentos
serve aos interesses da Igreja enquanto instituição para manter um determinado modelo de
família? Ou serve aos interesses das comunidades eclesiais onde as prioridades são outras?
Porque os sujeitos religiosos que passam pelo divórcio não têm conhecimento desses
documentos?
Mas apesar das pessoas entrevistadas desconhecerem os documento de sua Igreja, 76,2% delas
responderam que sua Igreja aceita bem o casal de divorciado, enquanto que apenas 14,3 %
disseram que sua igreja aceita mais ou menos o casal de divorciados. Constata-se que, apesar de
desconhecerem os documentos, a prática das igrejas locais não é discriminatória, nem excludente.
Com relação à guarda dos filhos após a separação, constatou que 100% das pessoas
entrevistadas que tinham filhos no primeiro relacionamento responderam que a guarda dos
mesmos ficou com a mãe. Porém, quando perguntadas com quem deveriam ficar os filhos
após o divórcio, 66,7% dos homens responderam que a guarda deveria ser compartilhada e
66,7% das mulheres disseram que deveria ficar com a mãe. A resposta dos homens confere
com o índice de crescimento da guarda compartilhada segundo o último censo do IBGE.
Com as relações mais flexíveis e plurais, as novas configurações familiares têm se modificado
e os pais (homens) têm participado mais intensamente na educação dos filhos e se fazem mais
presentes que anteriormente. Isso representa um ganho para as mulheres que não precisam ter
a responsabilidade exclusiva no cuidado com os filhos, tendo mais tempo para si mesmas.
Essa mudança de mentalidade faz parte dos novos tempos, mas é uma mudança gradativa e
nem sempre muito fácil.
Quanto ao motivo da separação das mulheres, a traição é apontada em 37,5% das vezes, a
violência doméstica em 25% e as brigas domésticas em igualmente 25% das vezes. Enquanto
isso, os homens responderam que as brigas, ciúmes, que o amor acabou, e que se casaram
1127
muito cedo foram igualmente, em 23,1% das vezes, o motivo. Se no caso das mulheres a
traição é a grande responsável, no caso dos homens ela só aparece em 7,7% das vezes.
Conclui-se, a partir da pesquisa de campo, que os homens traem mais que as mulheres.
Nem sempre o discurso institucional tem sido coerente com as práticas eclesiais. Isso pode ser
constatado pela falta de conhecimento dos documentos institucionais pelos sujeitos religiosos
entrevistados.
A maioria das pessoas entrevistadas respondeu que não recebeu nenhum tipo de apoio pastoral
quando passou pelo divórcio, nem tão pouco da liderança e dos membros de suas respectivas
igrejas. Enquanto isso, numa pesquisa dirigida aos/às pastores/as da União Paroquial de São
Paulo (união das diversas Paróquias da IECLB na grande São Paulo) sobre os temas do divórcio
e novos casamentos, 80 % dos/as pastores/as disseram que o acompanhamento pastoral às
famílias que passaram pelo divórcio é bom e 10% disseram que é ótimo. Apenas 10% disseram
que era regular. Isso diverge com as respostas das pessoas entrevistadas, quando a maioria
respondeu que não recebeu nenhum tipo de apoio pastoral durante o período de divórcio.
Mas apesar de não se sentirem cuidados e acompanhados por seus pastores, nem tão pouco
pela liderança e pelas irmãs e irmãos de sua Igreja, a maioria das pessoas entrevistadas
reconhece que tanto a Igreja Metodista quanto a Igreja Luterana aceita bem o casal de
divorciados e que a postura da Igreja a esse respeito é liberal.
Mesmo não tendo conhecimento dos documentos oficiais da Igreja e apesar de não serem
acolhidos e acompanhados por seus/suas pastores/as, os sujeitos entrevistados constatam que
na prática das comunidades não se sentem discriminados e que a Igreja aceita bem em seu
meio os casais que passaram pelo divórcio e novos casamentos, demonstrando, desta forma,
coerência com os documentos oficiais da Igreja.
Diante disso, como tem se dado o discurso institucional religioso? Ele tem acompanhado as
transformações ocorridas na sociedade? Será que a prática eclesial onde essas novas
configurações estão inseridas modifica o discurso religioso? Percebe-se que a religião,
enquanto instituição, tem assumido, por vezes, um discurso progressista outras vezes
conservador, não acompanhando as mudanças ocorridas nas dinâmicas familiares. A religião
1128
enfatiza um determinado modelo de família baseado no modelo nuclear patriarcal e todas as
atividades desenvolvidas na Igreja visam fortalecer os vínculos da família e evitar o
rompimento. O divórcio é visto como um mal necessário e consequência do pecado. A Igreja
Metodista em sua pastoral enfatiza que a pessoa divorciada que quer refazer a sua vida numa
segunda união precisa ser exortada ao arrependimento e se propor a uma nova vida de acordo
com a vontade de Deus. Tanto que, apesar da pastoral da família ter saído há 35 anos atrás, ela
não foi atualizada, nem tão pouco o ritual de celebração do matrimônio inclui a pessoa
divorciada. Por outro lado se o documento é tão antigo, por que a comunidade não o conhece?
Será que manter o documento no esquecimento serve aos interesses institucionais ou
eclesiais?
Por outro lado muitas vezes as práticas das comunidades divergem com a posição
institucional, acolhendo em seu meio diversas configurações familiares. É o que refere os
sujeitos entrevistados na igreja luterana. Mesmo não conhecendo os documentos de sua
Igreja, todos afirmam que a postura da mesma é liberal e se sentem extremamente acolhidos.
Alguns inclusive vieram para a Igreja por causa do casamento. Pois na Igreja de origem não
quiseram celebrar o casamento por serem pessoas divorciadas. Um dos entrevistados que veio
de uma outra Igreja Evangélica disse que ao passar pelo divórcio recebeu em sua casa uma
carta de exclusão da sua antiga Igreja. No início do seu segundo casamento não conseguia
nem mesmo batizar os seus filhos por causa da condição de divorciado e o mesmo se sente
extremamente acolhido na Igreja Luterana. Só no ano de 2012 foram celebrados na referida
Igreja dois casamentos de pessoas divorciadas. Apesar do ritual não estar atualizado, os
pastores/as o têm adequado à celebração religiosa.
Na maioria dos casos houve rupturas com o modelo de família enfatizado pela religião, mas
apesar das rupturas percebe-se também continuidades do modelo tradicional. Muitos
casamentos são mantidos por causa de certas conveniências e dificuldades de romper com um
símbolo inculcado pela religião como algo sagrado assumido no altar da Igreja. A religião,
como sistema de sentido, atua como legitimadora dos símbolos sagrados e funciona, "para
sintetizar o ethos de um povo" (GERTZ, 1989, p. 66). As palavras proferidas nas celebrações
de casamento são investidas de um poder simbólico que transcende o próprio momento.
Romper com o modelo de família idealizado e enfatizado pela religião durante séculos, nem
sempre tem sido fácil. Não existem respostas prontas e nem únicas para cada situação. As
crises provocam instabilidades que precisam ser trabalhadas pela Igreja.
1129
Considerações finais
Percebe-se que houve mudanças significativas nas novas composições familiares, mas ainda
há continuidades de valores assimilados ao longo da vida que são difíceis de serem quebrados.
Toda mudança gera incertezas e inquietações. As mudanças geram crises e permitem o novo.
Os paradigmas nos influenciam na maneira como vemos o mundo. O difícil hoje pode ser o
padrão amanhã. Somos desafiados a criar e recriar o presente. Arranjos familiares diferentes
sempre existiram, talvez em menor quantidade ou de forma muito mais velada, não explícita
e, com certeza, assaz marginalizada. Percebe-se que quanto maior a frequência desses
arranjos, maior a aceitação dessas novas configurações. As novas regras começam nos limites
e, acima de tudo, com o rompimento de velhos paradigmas, assumindo novos. Há sempre
lugar para o novo, para acrescentar o que não estava antes. Diante das novas configurações da
família contemporânea, a religião tem por tarefa específica ir ao encontro das pessoas, jamais
podendo adotar princípios de intolerância.
Numa sociedade mutável, a religião transforma-se e tem como função relacionar o novo
com o passado e incorporar este último às novidades. A mudança social ameaça a
coerência. Para continuar existindo, uma sociedade depende tanto da transformação quanto
da continuidade. Eis o paradoxo de toda sociedade viva (RIVERA, 2010, p. 45).
Diante das novas indagações familiares, a religião precisa encontrar novas respostas para as
tantas inquietações surgidas no interior das multiformes composições familiares. Há diversas
1130
configurações familiares que querem ser acolhidas pelo e no discurso religioso. Este não pode
ser exclusivista, mas precisa ser inclusivo. Ao incluir as multiformes composições familiares,
novas e criativas respostas precisam ser encontradas.
Referências
COLÉGIO EPISCOPAL, Igreja Metodista. Ritual da Igreja Metodista. São Paulo: Cedro,
2005.
IBGE. Registro Civil 2011: Taxa de divórcios cresce 45,6% em um ano. 2011. Disponível em:
http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2294.
Acesso em 28 dez. 2012.
IGREJA METODISTA. Ritual da Igreja Metodista. São Paulo: Imprensa Metodista, 1990.
JIMENEZ, Gabriele. Filhos? Não, Obrigada. As mulheres que dizem não à maternidade
fazem parte de uma revolução de costumes que está mudando a cara do Brasil e do mundo.
Revista Veja, ano 46- nº 22. São Paulo: Editora Abril, pp. 114-120, 29 de maio de 2013.
1131
SARTI, Cyntia A. Família e individualidade: um problema moderno. In: A Família
Contemporânea em Debate. São Paulo: Educ/Cortez Editora, 2006, pp. 39-49.
SILVA, Eliane Moura da. Fundamentalismo Evangélico e questões de Gênero. In: SOUZA,
Sandra Duarte de. Gênero e Religião no Brasil. Ensaios Feministas. São Bernardo do Campo:
Universidade Metodista, 2006.
SOUZA, Sandra Duarte & LEMOS, Carolina Teles. A casa, as mulheres e a Igreja. Relação
de Gênero e Religião no contexto familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
1132
1133
Representações de gênero permeadas por violência simbólico-
religiosa no discurso midiático paraibano
Silvia Silveira1, Fernanda Lemos2
Introdução
1
Graduanda em Ciências das Religiões na UFPB. A temática desta proposta é integrante de pesquisa intitulada
“Gênero, cultura e religiosidade no contexto paraibano”, realizada através do Programa de Bolsas de Iniciação
Científica – PIBIC 2012-2013. Estudante no Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e de Gênero,
da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Contato: sas.ufpb@gmail.com
2
Doutora em Ciências da Religião pela UMESP e membro do GE de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL.
Professora do Departamento e do PPG em Ciências das Religiões da UFPB. Contato: somel_ad@yahoo.com.br.
3
O conceito de habitus remete à cultura tradicional herdada, pressuposto um monopólio na sua transmissão, que
“tem seu princípio na instituição escolar investida da função de transmitir conscientemente e em certa medida
inconscientemente ou, de modo mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas
inconscientes (ou profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor, seu habitus, ou seja,
em suma, de transformar a herança coletiva em inconsciente individual e comum.” (BOURDIEU, 2011, p. 346).
Embora o autor refira-se aí de modo geral às instituições que tiveram influências escolásticas, aqui o conceito é
aplicado à instituição midiática, por sua influência na constituição do saber de senso comum.
1134
(LEMOS, 2001, p. 114). Observou-se aí o poder simbólico no discurso, capaz de transformar
o pensamento e atuar como instituidor da misoginia e androcentrismo, utilizando-se de
símbolos religiosos para dar validade a uma linguagem que se pauta e produz violência de
gênero.
Nosso estudo contempla como este fenômeno se expressa através do discurso midiático da TV
regional e sua influência religiosa, isto porque assim “podemos melhor compreender o
jornalismo como prática que negocia cotidianamente com os demais atores sociais, inclusive
na tentativa de fazer prevalecer pontos de vista” (CARVALHO, 2010, p. 352 apud
SILVEIRINHA, 2005). Aqui nos interessa analisar as veiculações carregadas por
representações sociais4, especificamente aquelas de gênero, porque refletem o cotidiano do
senso comum, que é também uma:
Para estudar o meio de comunicação em sua produção e reprodução de discursos, nos valemos
da análise crítica do discurso (ADC). Julgamos adequado tal uso por esta se apresentar como
modelo teórico-metodológico que “procura estabelecer um quadro analítico capaz de mapear
a conexão entre relações de poder e recursos linguísticos selecionados por pessoas ou grupos
sociais.” (RAMALHO; RESENDE, 2004, p. 185-186).
4
Utilizamos o conceito da teoria das representações sociais, estas como formas de conhecimento geradas pelas
mais diversas visões de desenvolvimento cultural, pela realidade objetiva própria de indivíduos que pertencem a
grupos ou estratos sociais em suas “conversações cotidianas menos reprimidas” (MOSCOVICI, 2011, p. 181),
pertinentes à história de adaptabilidade nesta realidade. São reproduzidas, acumuladas e transmitidas de geração
em geração, em geral antecipando-se à possibilidade da apreensão subjetiva por processo cognitivo, como o
fazem as instituições. O discurso produzido então atua como reprodutor das representações sociais porque reflete
e comunica sobre uma realidade objetivada. No caso do discurso midiático, os temas abordados são
seletivamente organizados e comunicados, segundo o que é relevante para o público a quem se dirige, em sua
realidade, implicando na ancoragem de valores.
1135
Escolhemos o PCV em nossa análise, por sua característica de popularidade entre os
paraibanos da capital. Apresenta facilitada acessibilidade e visibilidade por diversas camadas
e categorias sociais, em razão de seu horário de transmissão ser capaz de atingir uma
amplitude considerável de público. Vai ao ar de segunda a sábado, ao meio dia, podendo ser
visto por crianças, adolescentes, adultos, idosos, estudantes, profissionais em horário de
almoço, donas-de-casa.
Ademais, nossa escolha por este programa decorre de sua filiação a um grupo midiático
religioso cristão. Sua transmissão é realizada pela Rede Correio TV – João Pessoa, gerida
pelo Sistema Correio, “um dos maiores grupos de Comunicação do Nordeste com 26 veículos
de comunicação: dois jornais impressos, duas emissoras de TV’s sendo uma TV afiliada à
Rede Record” (SISTEMA CORREIO, 2013). A Record, rede aberta de televisão, é de
propriedade de Edir Macedo, bispo na Igreja Universal do Reino de Deus, adquirida em 1989
e transformada em “rede nacional em expansão, cujas programação e administração foram
reestruturadas com os recursos da igreja” (MARIANO, 2005, p.67).
O que se segue é a transcrição de um quadro do PCV que foi ao ar no dia 24-09-2012 (vinte e
quatro de setembro de dois mil e doze)5. Os atores do discurso são: o apresentador (A1), o
repórter (A2) e a mulher (A3), apresentada primeiramente como uma jovem de 20 anos
baleada na cabeça.
(A1) diz: “Brincadeira... negócio de brincar com revolver não dá certo. O cara tem que
brincar de dar chêro na esposa dele. Mas não, ele foi brincar com a esposa de atirar, de
pegar o revolver, enrolar o cano, aquela roleta russa. Deixou uma bala no tambor, roda e
pá! – se não tiver a bala, sorte, se tiver, lascou. Ô, brincava de dar um beijo na mulher,
meu. Mas... graças a Deus ela sobreviveu! Ela recebeu alta graças a Deus! [...] Meu amigo,
tem certos tipos de brincadeira que não é pra brincar. Ela recebeu alta, graças a Deus. E ela
conversou com o repórter aqui do Correio Verdade [...] com exclusividade. coloca aqui na
tela pra todo mundo ver: ela sobreviveu, já saiu do hospital, graças a Deus. Vai!”
(A2) diz: “[nome da jovem] é aquela jovem que foi baleada na cabeça por um tiro acidental
disparado pelo próprio esposo. Segundo informações, ela recebeu um tiro na cabeça e foi
5
Família pede liberdade do homem preso por atirar acidentalmente na mulher. Correio Verdade: João Pessoa, 24
setembro, 2012. Programa de TV.
1136
socorrida pelo próprio marido para o hospital de emergência e trauma. E ela vai contar o
que aconteceu com ela e fazer um pedido e dizer como tudo aconteceu e porque? Porque
ela está querendo a liberdade do marido.” [imagens do marido são mostradas enquanto (A2)
pronuncia seu discurso. São alternadas imagens do marido e de (A2), sentado no sofá e
narrando o acontecido]
[...]
(A3) diz: “Eu tô aqui porque deus me deu um livramento, provou que ele existe.”
(A2) diz: “Você disse a mim que queria fazer um pedido, fazer um pedido, um apelo às
autoridades, à sociedade paraibana, a todo mundo na Paraíba que está te ouvindo.”
(A3) diz: “Eu queria que a justiça soltasse ele, porque eu não tô aguentando mais [...] (a
fala torna-se incompreensível por causa do choro). Dizem que vão soltar ele e não soltam,
todo dia. Ele não teve culpa”. (FAMÍLIA pede liberdade..., 2012)
Outras pessoas são mostradas. Uma segunda mulher (A4) é entrevistada pelo repórter,
apresentada como a dona da casa onde mora o casal. São mostradas outras cinco pessoas,
cujos relacionamentos com o casal não são explicitados, todas emitindo pareceres favoráveis
ao marido. No total, a imagem captura seis sujeitos: três jovens e três mulheres.
(A4) diz: “Todo mundo da família perdoou ele. Sabe que não foi porque quis, né. A gente
tamo ajudando a ele sair de lá. O pai dela, eu, os tio, as tia, todo mundo tá a favor dele”.
(A4) diz: “A gente quer que ele se solte, porque ele não teve culpa, e a família tá toda a
favor dele, a favor a ele”. (FAMÍLIA pede liberdade..., 2012)
Volta-se ao apresentador (A1). Este pede que na tela seja mostrado o marido, enquanto estava
algemado, chorando copiosamente. Então comenta:
(A1) diz: Graças a Deus que ela sobreviveu. Graças a Deus. E ela chora dizendo que perdoa
o marido. Eu não vou comentar: preste atenção! Vou deixar aqui pra você assistir, tirar as
conclusões: ela assume, ela diz que ela pegou o revolver, diz que perdoa... que ele não tem
nada a ver [...] poderia estar morta, poderia estar enterrada já, não é verdade? Coloca ela aí,
dizendo que perdoa, quer o marido de volta, e que AMA ele, ela morre de amor, ela quer
ele, quer porque quer, bota aí... (e colocam a parte do choro, incompreensível)”.
(FAMÍLIA pede liberdade..., 2012).
1137
Embora (A1) diz que não vai comentar, ele comenta com veemência, e não brevemente, antes
de chamar novamente a imagem piedosa da esposa chorando copiosamente, já anteriormente
mostrada, congelada e em seguida novamente reproduzida. Após o seu discurso que coloca a
mulher como responsável e vítima de seu próprio ato, frisa que ela não responsabiliza o
marido de forma alguma: o importante é que ela já o perdoou, é que ela morre de amor. A
imagem que (A1) resgata, mais uma vez, após suas palavras, é a da mulher chorando como
uma criança, tal sonoridade impossibilitando a compreensão de suas palavras. Vamos nos
aprofundar mais detalhadamente nestes elementos, através da ADC. Cabe-nos primeiro
apresentar o aparelho conceitual em que se embasa a problematização das relações sociais que
constituem o campo complexo de nossa pesquisa: o campo religioso.
Entendemos o campo religioso como o lugar complexo onde um determinado capital cultural
estruturado por sua gênese social se converte em manifestações no cotidiano das relações
sociais, em verdades últimas e reais para aqueles imersos nas relações de poder, inclusive
aquelas baseadas na divisão de sexo, portanto, em relações de gênero, demonstrando que
“gênero e religião são interdependentes” (LEMOS, 2007, p. 51).
1138
manutenção e instituição das relações de poder. Explica-se que “o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2001, p. 8). Os
sistemas simbólicos são instrumentos que “só podem exercer um poder estruturante porque
são estruturados” (idem, p. 9), e assim, cumprem um papel violento em:
Impostas também são as relações sociais de sexo que, entendidas como relações de gênero,
corroboram com uma naturalização das distinções e hierarquias que se baseiam em diferenças
“naturais” percebidas entre os sexos. A força simbólica proveniente do imaginário religioso é
influente neste processo de imposições na constituição do poder entre os campos de forças
sociais:
Como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas, o
gênero implica quatro elementos inter-relacionados: em primeiro lugar, os símbolos
culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas (e com frequência
contraditórias) – Eva e Maria como símbolos da mulher, por exemplo, na tradição cristã
ocidental – mas também mitos de luz e escuridão, purificação e poluição, inocência e
corrupção (SCOTT, 1990, p. 86).
Os sentidos veiculados por ela dizem respeito à coletividade, penetram o âmbito público e
privado e interpelam as instituições sociais. Dessa forma, a televisão em si mesma é uma
instituição, pois suas ações estão disseminadas nos diversos campos da realidade, seus
produtos são responsáveis por produção de sentidos e ela influi e é influenciada pelo
ordenamento do contexto social. (idem, pp. 361-362).
1139
Podemos daqui em diante partir para a identificação da condescendência em função do
habitus local transmitido, definido e significado como cultural-religioso: pela TV,
incorporam-se os sentidos de uma violência simbólica que se reproduz na matriz da cultura
paraibana e na sua leniência para com a violência física, na medida em que se torna:
Já vimos que o campo religioso constitui um universo simbólico, logo, um veículo de poder
capaz de construir e manter a realidade social. O poder estruturado e estruturante do símbolo
age como instrumento de dominação, integra socialmente por meio da comunicação e do
conhecimento, e ainda mantém a reprodução da ordem social. “A religião representa o ponto
nevrálgico para onde convergem as relações de poder estabelecidas no nível simbólico e
imaginário, por aglutinar a essencialidade da existência humana” (ALMEIDA, 1994, p. 59).
Neste nosso estudo de caso, percebemos o apresentador (A1) faz seu público apontar para o
Estado e seus aparatos (polícia, prisão) como aqueles com o poder de fazer esta mulher parar
de chorar. A teórica feminista De Barbieri (1993) destaca que os mais nobres sentimentos de
afeto, ternura e amor podem revestir uma subordinação invisível que persiste no
desenvolvimento da dominação dos homens sobre as mulheres. O poder da autoridade não se
manifesta apenas pelo Estado ou aos aparatos burocráticos. Nas palavras da autora:
1140
la subordinación que afecta a todas o casi todas las mujeres es uma cuestión de poder, pero
éste no se ubica exclusivamente en el Estado y en los aparatos burocráticos. Sería un poder
múltiple, localizado en muy diferentes espacios sociales, que puede incluso no vestirse con
los ropajes de la autoridad, sino con los más nobles sentimientos de afecto. ternura y amor.
(DE BARBIERI, 1993, p. 2).
então baseia-se o poder de mando em autoridade pessoal. Esta pode encontrar seu
fundamento na tradição sagrada, isto é, no habitual, no que tem sido assim desde sempre,
tradição que prescreve obediência diante de determinadas pessoas, ou, ao contrário, pode
basear-se na entrega ao extraordinário; na crença no carisma, isto é, na revelação atual ou
na graça concedida a determinada pessoa - em redentores, profetas e heroísmo de qualquer
espécie. (WEBER, 1991, p. 198).
6
Criança de 2 anos presencia a mãe sendo assassinada no bairro do cristo. Correio Verdade: João Pessoa, 09
outubro, 2012. Programa de TV.
1141
para legitimar as relações de sexo estabelecidas aí categoricamente pela dominação da família
patriarcal. A falta do homem na casa, sentida pela mulher, familiares e senhorio – afetivo-
sócio-econômica – é o que constrói a notícia, enquanto a violência ocorrida é tida como
brincadeira, acaso, irrelevante mesmo. O que salvou a mulher foi o livramento divino,
segundo suas próprias palavras.
Considerações finais
Em nossa análise a partir da sociedade paraibana, observamos que a mídia utiliza em seu
discurso de uma linguagem religiosa que legitima as regularidades de sua dinâmica social,
utilizando-se do poder simbólico do carisma e da afetividade, conferindo-lhes significado na
manutenção, na plausibilidade da violência nas representações sociais de sexo, pelo consenso
dos agentes sociais envolvidos. Não somente a mídia, como também, a mulher e os demais
envolvidos no discurso analisado.
7
Esta canção tem origem no acervo católico, o que demonstra sua forte influência na cultura paraibana, em
detalhe na nossa pesquisa completa (PIBIC 2012/2013-UFPB).
1142
Entre imagens e opiniões de atores que reproduzem estas que podem ser históricas relações de
poder entre os sexos, os discursos configuram-se como portadores e propagadores da
normalização por plausibilidade da violência simbólica na cultura paraibana. A mídia como
sistema cultural, atua assim, para a ancoragem e plausibilidade de um habitus carismático
patriarcal que se vale da teodiceia para figurar nesta realidade social, que consagra este tipo
de família e naturaliza a violência de gênero, tornando-a invisível e mais passível de
reproduzir-se sem obstáculos.
Referências
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulheres, educação e religião: as interfaces do poder numa
perspectiva histórica. Mandrágora, v.1, n.1, p. 52-63, 1994.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernanda Tomaz. 4ª. edição. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
__________. Estrutura, Habitus e Prática. In: MICELI, Sergio (org.). A economia das trocas
simbólicas. 7ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 337-361.
1143
LEMOS, Fernanda. Discurso religioso e violência de gênero – uma análise da linguagem
episcopal no periódico Conexão. Mandágora, São Bernardo do Campo, v.7, n.7/8, p. 109-
115, 2002.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n.2, p. 71-99, 1995.
Internet
SISTEMA CORREIO. Rede Correio de TV. Disponível em:
<http://www2.portalcorreio.com.br/rctv/>. Acesso em: 9 ago. 2013.
1144
1145
Representações de gênero no Espiritismo: como se dá a
distribuição de papéis ali?
Roger Bradbury 1
Introdução
1146
necessário “dar certa atenção aos sistemas de significados, isto é, às maneiras como as
sociedades representam o gênero, o utilizam para articular regras de relações sociais ou para
construir o sentido da experiência”.
Então, trazendo agora mais para a psicologia comportamentalista, conclui-se o quanto é eficaz
a modelação de comportamentos sexuais segundo as representações de gênero: a todo o
momento, meninos e meninas recebem reforços positivos distintos, na forma de prêmios e
incentivos, caso demonstrem atitudes adequadas dentro do padrão esperado (ou seja, das
representações de gênero de determinada cultura) para aquele (seu) sexo; ou recebem reforços
negativos, na forma de sansões e punições, quando demonstrem um comportamento fora
daquele padrão esperado.
Assim, nossa personalidade forma-se como num espelho, onde procuramos igualar nossa
imagem real àquela imagem virtual e social, na qual nos interagimos regulando nossa imagem
com aquela representação de gênero dada por determinada sociedade e tida como adequada
para cada sexo.
Tal formatação se dá durante a formação (educação) da personalidade no período da infância
e juventude acompanhar-nos-á pela vida adulta, nas escolhas profissionais, na vida conjugal,...
E, em nossa ocupação religiosa também.
Mesmo naquelas ocupações religiosas onde são permitidos ambos os sexos ocuparem, as
representações de gênero interagem (de forma endógena, uma escolha ou motivação pessoal e
também exógena, quando há uma expectativa do grupo religioso) classificando
diferentemente os homens das mulheres (FINE, 2012).
Assim ocorre também no Espiritismo5, que sempre manteve um discurso de igualdade dos
sexos, embora, na prática acabe reproduzindo, na distribuição de cargos e ocupações, antigos
padrões sexistas e, pior, androcêntricos, que limitam a atuação das mulheres a funções que
nada mais são do que uma extensão dos afazeres domésticos na instituição religiosa; e
também limitam o exercício da sensibilidade dos homens, os quais também saem perdendo no
computo geral das habilidades e competências aprendidas e desenvolvidas.
A presente pesquisa de inspiração etnográfica é resultado da leitura bibliográfica e análise de
textos e contextos espíritas relacionados especialmente a uma das hipóteses de minha
dissertação de mestrado – a qual está só começando - sobre a distribuição sexual desigual de
5
Trataremos neste artigo do Espiritismo surgido na França, em meados do século XIX, encabeçado por Allan
Kardec, e mais especificamente, aquele transplantado para o Brasil, o qual toma uma conotação mais religiosa do
que a versão original francesa (STOLL, 2002).
1147
papéis e ocupações no Espiritismo, ou seja, a hipótese das “representações de gênero” como
causa da divisão sexual do trabalho, ali.
A Natureza7 fez o sexo feminino mais frágil do que o outro, porque os deveres que lhe
incumbem não exigem igual força muscular e seriam mesmo incompatíveis com a rudeza
masculina. Nele a delicadeza das formas e a fineza das sensações são admiravelmente
apropriadas aos cuidados da maternidade. Aos homens e às mulheres são, pois, dados
deveres especiais, igualmente importantes na ordem das coisas; são dois elementos que se
completam um pelo outro (KARDEC, 1866).
Com este discurso, Kardec faz com que o Espiritismo se iguale às demais religiões que têm,
6
Allan Kardec foi o pseudônimo usado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (Lyon, 3 de
outubro de 1804 — Paris, 31 de março de 1869), nas obras básicas do Espiritismo para separá-las de sua
produção didático-pedagógica.
7
Este discurso pretensamente naturalista, por vezes tornou-se explicitamente teológico, como em: “Deus
apropriou a organização de cada ser às funções que lhe cumpre desempenhar. Tendo dado à mulher menor força
física, deu-lhe ao mesmo tempo maior sensibilidade, em relação com a delicadeza das funções maternais e com a
fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381).
1148
explícita ou implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e histórica,
uma específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e
femininos. O fundamento dessa visão encontra-se em uma ordem não humana, não
histórica, e, portanto, imutável e indiscutível, por tomar a forma de dogmas. Expressões das
sociedades nas quais nasceram, as religiões espelham sua ordem de valores, que
reproduzem em seu discurso, sob o manto da revelação divina (ROSADO NUNES, 2005,
p. 363).
Se os dados do censo 2010 (IBGE9) indicaram 58,9% dos espíritas serem mulheres, por que a
tão tímida participação nas lideranças das casas espíritas (e também das federações espíritas),
8
Afastando-se da doutrina calvinista da predestinação.
9
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores sociais. Disponível em: http://
http://censo2010.ibge.gov.br/resultados. Acesso em: 25 jun. 2013.
1149
em todos os departamentos, com exceção daqueles setores onde elas são maioria absoluta,
como o grupo de senhoras?
Mas quais são os atributos/requisitos para ascender às ocupações na hierarquia espírita, que
venham a revelar tal assimetria sexual no Espiritismo? Não era de se esperar um numero
mais representativo de trabalhadoras espíritas? Não era de se esperar uma estatística mais
mediana, seguindo a probabilidade genética de 50% de homens e de mulheres em todos os
cargos e ocupações relacionadas ao Espiritismo? Ou a probabilidade de quase 60% de
mulheres, a qual é a proporção censitária?
Rosado-Nunes (2005, p. 363), sobre a maior participação das mulheres nas religiões, comenta
que:
Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de que as mulheres
investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui que elas seriam ‘mais
religiosas’ do que eles. [...] Na verdade, as religiões são um campo de investimento
masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é
‘sagrado’ nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa
dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as
religiões conhecidas.
E como o Espiritismo se auto define como doutrina tríplice: filosófica, científica e religiosa,
façamos breve análise em separado de cada uma de suas faces.
A Filosofia, em si, sempre foi predominantemente um espaço masculino. O mesmo se daria
com a filosofia espírita?
Segundo afirma Almeida (apud BRADBURY, 2010, p. 14) o Espiritismo surge no auge do
positivismo científico, ou seja, “na segunda metade do século XIX [quando] um influxo novo,
de acordo com os princípios da ciência positiva, da filosofia secularizada, do materialismo
político e racional, invadiu esse domínio [do sagrado], antes exclusivo da religião.”
Neste momento histórico, o contingente de intelectuais e pesquisadores era quase
exclusivamente masculino. Kardec (1866) comenta sobre isto: “Não faz ainda muito tempo a
questão foi agitada para saber se o grau de bacharel podia ser conferido a uma mulher.”
Naquela época poucas eram as mulheres pesquisadoras livres dos afazeres domésticos e
liberadas para a pesquisa... Mas hoje com a democratização do ensino, muito deste quadro
mudou, mas por que a escolarização da mulher não permitiu uma maior ascensão aos cargos
de liderança nas casas espíritas? Mesmo porque não há critérios explícitos escolaridade para a
ocupação dos cargos.
1150
E quanto ao objeto da ciência espírita, os (as) médiuns, de ontem e de hoje, como se
comportam as estatísticas em relação ao gênero? Afirma Lúcia Loureiro (2008, p. 17.): “no
transcorrer da história dos fenômenos psíquicos, de médiuns notáveis, em que as
representantes do sexo feminino superam, em grande número, os do sexo masculino”.
Mas, se para o Espiritismo, todos somos médiuns, pois define a mediunidade como faculdade
humana. Sem se considerar o grau de sensibilidade desta faculdade, não era, igualmente, de se
esperar uma melhor proporcionalidade entre os sexos?
As casas espíritas não seriam uma extensão de seus próprios domicílios domésticos? Não
seria o mediunato uma projeção seus afazeres domésticos? A mediunidade de cura não seria
comparável aos cuidados de uma mãe para com seus filhinhos? A psicofonia e psicografia não
seriam semelhantes à prática de nossas avós ao admoestarmo-nos contando histórias de cunho
moral?
Segundo Rosado-Nunes (2005, p.363) as mulheres estão “ausentes dos espaços definidores
das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas”, e isto de
certa forma é ainda verdade em relação ao Espiritismo. Continua Rosado-Nunes (2005, p.
363) afirmando, que o “investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da
prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória”.
De fato as mulheres espíritas, como boas ou futuras mães se concentram mais na reprodução
da memória espírita, entre crianças e jovens – pois a transmissão de conteúdos espírita a
adultos é predominantemente espaço masculino10.
E quando atuam como trabalhadoras, como diz Rosado-Nunes (2005, p.363) é mais na prática
mediúnica, como médiuns do que na elaboração e reelaboração da doutrina espírita. Mas na
hora de dar bronca, de ralhar com espíritos obsessores, cabe ao médium doutrinador,
geralmente um homem, pela sua postura austera e enérgica, feito o papel tradicional de pai
(patriarca).
Por outra, a própria literatura espírita, tão rica em títulos e tiragens, de forma mais sutil, está
fortemente marcada por sexismos, desde a literatura infantil, com textos e imagens
estereotipadas de menino e menina e de ocupações diferenciados por sexo (vide figuras de 1 a
4) que hoje não mais condizem com a realidade social dos centros urbanos, onde o
Espiritismo tem maior adesão.
10
Tal como ocorre na educação escolar, os níveis mais básicos e menos qualificados são tradicionalmente
femininos, enquanto os níveis superiores são hegemonicamente masculinos.
1151
Figuras 1 e 2 – Kardec, sua esposa, Alice e Zito.11
Tanto quanto nos livros didáticos, como observa Moreno (apud PIRES, 2002), a literatura
espírita infantil apresenta:
a maioria das imagens de personagens representam homens realizando diversas ações [...]
consideradas frequentemente como masculinas, enquanto naquelas poucas em que
aparecem meninas e mulheres, estas estão costurando, lavando ou cozinhando, para que
tudo permaneça em ordem.
Nas ilustrações 1 e 2, Kardec é o intelectual e Gabi, sua esposa, é a dona de casa. Já nas
ilustrações 3 e 4, o trabalhador de serviços pesados é uma figura masculina, enquanto que o
trabalho doméstico é representado por uma mulher que cuida da prole.
Embora tais ilustrações sejam brasileiras e anacrônicas a Kardec, mesmo assim são fiéis ao
pensamento kardeciano.
Essas imagens dos livros representam práticas sociais muitas vezes exigidas como
comportamentos adequados e esperados em meninos e meninas. Ora, as crianças tendem a
representar em suas brincadeiras as identidades de gênero consideradas como “normais” em
11
Jacinto, Roque. Gotas do tempo. Rio, RJ: Federação Espírita Brasileira, 1995, 5ª Ed (Ilustrações de Juan Carlos
Portella).
12
Xavier, F. Cândido (espírito Meimei). Pai Nosso. Rio, RJ: Federação Espírita Brasileira, 1998, 17ª Ed (Arte de
Joel Linck).
1152
nossa sociedade [...] Enquanto o homem é símbolo de fortaleza, firmeza, proteção, a mulher
representa a sensibilidade, delicadeza, ternura e preocupação (PIRES, 2002).
Moraes (2008) referindo-se ao sexismo nas obras básicas da codificação ressalta “que, tanto o
pedagogo Kardec quanto o Espírito Mentor comunicante sempre falam do homem, e não se
referem ao ser humano e, muito menos, à mulher...”. Curiosamente, anos depois, registrará
Kardec (1867) que o Sr. Stuart Mill “pede que se retire a palavra homem e que se insira a de
pessoa”.
Seriam tais estereótipos sexistas mais um dos condicionantes que somariam na complexa
fenomenologia das relações de gênero nas casas espíritas? Talvez não o mais decisivo, mas
certamente veicula uma mensagem subliminar sexista que tem alguma importância na
formação da personalidade, mesmo de forma inconsciente.
O Espiritismo, algo dessemelhante das demais religiões, não apresenta nem sacerdócio –
como afirma Weber (2000, p.295): “Não há, sacerdócio sem culto, mas sim culto sem
sacerdócio especial”, parece este último ser o caso do Espiritismo. Assim descreve Incontri
(2012, p. 168) sobre a institucionalização do movimento espírita no Brasil:
1153
Figura 5 – Pirâmide da distribuição das mulheres na hierarquia espírita 13.
De início, é bom lembrar que há mobilidade das pessoas entre as diferentes estratificações
sociais da casa espírita, ou seja, há a possiblidade e certa facilidade de ascensão a cargos e
funções mais superiores na administração e divulgação doutrinária espírita.
Estrato 1. Aqui estão a grande maioria das mulheres que frequentam os estudos sequenciados
de doutrina espírita (evangelho, mediunidade, e outros), ou esporadicamente assistem
palestras temáticas; aqui, também estão aquelas mulheres que se declaram espíritas, mas não
necessariamente, frequentam reuniões de cunho doutrinário ou mediúnico, em nenhuma casa
específica, são denominadas pelo movimento espírita de simpatizantes, estas tomam passes,
leem a bibliografia espírita (em especial os romances mediúnicos) e creem nos postulados
espíritas (da sobrevivência do espírito após a morte física, na reencarnação e comunicação dos
espíritos);
Estrato 2. Nesta estratificação estão as primeiras funções de trabalho voluntário nas casas
espíritas, são trabalhadoras da limpeza, recepção (acolhimento) e entrevista de visitantes e
frequentadores, médiuns passistas, evangelizadoras de infância e juventude; e que
participaram (ou não) de cursos intensivos de trabalhadores (curso de passe, p.ex.);
Estrato 3. Aqui estão aquelas que por mérito ou por reconhecimento, por indicação,
aclamação e/ou por vontade própria ascenderam dos estratos 1 e 2, devido apresentarem
experiência inata ou adquirida, ter concluído os cursos doutrinários gerais (evangelho e
doutrina espírita) e específicos (mediunidade, passe, doutrinação, evangelização infantil, entre
outros) caso a função exija. Pode-se situar aqui aquelas mulheres que dirigem as reuniões
mediúnicas; chefiam os departamentos de infância e juventude, tendo ao seu comando certo
números de evangelizadores (as); dirigem estudos e trabalhos regulares da casa espírita,
geralmente distintos de acordo com os dias da semana; ministram cursos e palestras;
13
Ilustração do próprio autor.
1154
coordenam atividades de assistência social e assistência espiritual, também com certo número
de cooperadores (as);
Estrato 4. E por fim, nesta última estratificação, estão aquelas mulheres que respondem legal e
administrativamente pelos centros espíritas, ocupam os cargos estatutariamente determinados
como presidência, secretaria e tesouraria, além do conselho fiscal; e ainda as diretorias de
setor ou departamento. Estas ocupações de cargo em geral são eletivas, quer seja por
escrutínio ou por aclamação, e duram por volta de dois anos, podendo haver recondução por
igual período, e depois, há alternância de nomes, isto quando há pessoas dispostas a
ascenderem a tais funções.
A imagem da pirâmide é bem adequada à estrutura social e funcional das casas espíritas,
onde: a grande maioria das mulheres – como já o dissemos - está na primeira categoria, a qual
podemos dizer é a mais “passiva”, ou seja, são mulheres que buscam no Espiritismo (na
literatura ou nos centros espíritas) receber conhecimentos; passes; remédios (alopáticos,
homeopáticos ou fitoterápicos, quando dispõem de médicos para prescreverem receitas
médicas); alimentos (cestas básicas e/ou sopa); enxovais de bebê; assistência espiritual e;
outros...
Devido a esta passividade, quer por comodismo (conformação), quer por vontade própria, ou
quer por descrença na sua própria capacidade, poucas destas mulheres da categoria 1
ascendem aos níveis de trabalhadores da casa espírita.
A despeito disto, há uma prática constante de captação e capacitação de novos (as)
trabalhadores (as), mas parece valer a expressão evangélica (Mateus 22:14) “Porque muitos
são chamados, mas poucos escolhidos.”
Ao contrário deste primeiro nível de estrato social, as pessoas que compõe os três seguintes
são progressivamente mais ativos na produção e distribuição de bens simbólicos e materiais
oferecidos pelas casas espíritas.
Nos estratos de 2 a 4 é que se encontram aquelas pessoas que tem maior renda e maior
escolaridade, como destaca o último censo do IBGE:
Os resultados do Censo 2010 indicam importante diferença dos espíritas para os demais
grupos religiosos no que se refere ao nível de instrução. Este grupo religioso possui a maior
proporção de pessoas com nível superior completo (31,5%) e as menores percentagens de
indivíduos sem instrução (1,8%) e com ensino fundamental incompleto (15,0%) 14.
14
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2170>.
Acesso em: 2 ago. 2013.
1155
Pode-se com isto se inferir que – mas é necessário que se investigue melhor – os
conhecimentos inatos e também aqueles revelados (mediunidade) daquelas mulheres que
estão no primeiro nível não superam o conhecimento escolarizado na execução de tarefas
ligadas a cargos na administração espírita.
Igualmente à situação anterior, aquelas mulheres de baixa renda se percebem impossibilitadas
de doar, e quando doam é na forma de trabalhos voluntários de limpeza e cozinha.
Nos estratos 2 e 3 é que encontramos as funções mais próximas ou paralelas com o sacerdócio
eclesiástico das demais denominações religiosas: estas mulheres espíritas, à semelhança das
benzedeiras do catolicismo popular, ou a unção dos enfermos das correntes evangélicas,
impõem suas mãos sobre os enfermos na prática do passe; dirigem sentidas preces
espontâneas como fazem suas correspondentes durante as rezas e orações; ministram cursos e
palestras à semelhança da pregação de sermões evangélicos e católicos; fazem uso da
glossolalia quando da comunicação de espíritos de pessoas estrangeiras tal como nas
manifestações de dons de línguas, comuns no pentecostalismo; e também fazem revelações
pela mediunidade de vidência ou clarividência de forma semelhante às profecias de profetas e
profetizas de todos os tempos e lugares.
Entretanto, por não haver sacerdócio e nem ritual, ao contrário de muitas práticas religiosas,
no Espiritismo, nem mulheres e nem homens ministram sacramentos como batismo,
casamento, extrema-unção e ceia cristã entre outros sacramentos existentes em outras
religiões.
A ideia é a de racionalização do culto, fruto da ação sistematizadora e metódica de Kardec, a
qual é semelhante ao processo de “desencantamento” descrito por Weber (apud PIERUCCI,
2003, p. 51-52):
No quarto e último estrato social de nossa pirâmide da sociedade espírita, estão aquelas
pessoas com maior “tempo de casa”, por vezes são membros fundadores (as) da instituição,
que ocupam as funções mais administrativas, e como tal mais próximas da administração
empresarial, com o diferencial de que neste estrato, legalmente por ser uma organização sem
fins lucrativos, não há remuneração enquanto que eventualmente nos níveis 1 e 2 podem
1156
eventualmente ser remuneradas algumas funções por ser regidas por contratos de trabalho
regulares, como limpeza, vendas na livraria e lanchonete.
Considerações finais
1157
Ora, já presenciei, por várias vezes, em uma casa espírita, um dirigente de trabalhos
mediúnicos recomendar que as mães deixassem seus filhos em casa... Neste caso é uma
questão sine qua non: ou a mulher leva seus filhos consigo ou ela não poderá frequentar e
fazer uso a um direito de culto, pois por vezes o marido não é espírita, e é contra que sua
esposa frequente a casa espírita. Aqui a solução está não no casal ou na divisão mais
igualitária de deveres e direitos entre os sexos, mas na comunidade religiosa que deve prever
condições para assistir a prole das mães durante os serviços religiosos de que esta deseje
receber.
Ora é sabido que uma educação diferenciada sexualmente fará muita diferença na
aprendizagem e formação do indivíduo, e adultos com formação diferenciada para homens e
mulheres é o que produz a discrepância de funções na sociedade que diferencia papeis sexuais
distintos, e que também se reflete no interior das casas espíritas, como entende a presente
pesquisa.
A educação e formação das novas gerações (de meninos e meninas) como querem, por ideal,
os espíritas fiquem ao encargo das mães, é importante que estas mesmas mães sejam bem
formadas, até melhor do que aos homens, pois deverão vencer a natureza que no ideário
espírita seria vencer os vícios e erros das encarnações anteriores, tendências inatas, e isto
exige uma formação bem fundamentada nas ciências da educação (sociologia, psicologia,
pedagogia entre outras) e não aquilo que historicamente vem ocorrendo, a educação da
mulher é por vezes relegada a segundo plano e menor importância, como se para ser boas
mães não fosse preciso muita informação de como fazê-lo com sucesso.
Este foi o resultado de uma pesquisa bibliográfica preliminar, por isso muitos
questionamentos ficaram em aberto, e pretendemos respondê-los, se possível, na dissertação
de mestrado.
Referências
1158
FINE, Cordelia. Homens não são de marte, mulheres não são de vênus: como nossa mente, a
sociedade e o neurossexismo criam a diferença entre os sexos. Tradução de Claudia Gerpe
Duarte e Eduardo Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2012.
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes. 3ª edição. São
Paulo: Editora Comenius, 2012.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos: contendo os princípios da doutrina espírita. 76ª
edição. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1995 [1857].
NANJARÍ, Cecilia Castillo. Gênero como categoria de análise para desvendar a violência
contra as mulheres: um desafio para a educação teológica. Revista Caminhando v. 14, nº 2, p.
141-151, jul./dez. 2009.
Internet
KARDEC, Allan. As mulheres tem uma alma? In: Revista Espírita: Jornal De Estudos
Psicológicos. 9º ano, jan. 1866. Disponível em:<
http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/revista-espirita-1866.pdf> Acesso
em: 05 jan. 2011.
KARDEC, Allan. Emancipação das mulheres nos Estados Unidos. Revista Espírita: Jornal De
Estudos Psicológicos. 10º ano, jun. 1867. Disponível em:<
http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/revista-espirita-1866.pdf> Acesso
em: 05 jan. 2011.
1159
http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/revista-espirita-1858.pdf> Acesso
em: 05 jan. 2011.
1160
1161
GT11 – Hereges, judeus e infiéis e a
intolerância religiosa no decorrer da Idade
Média
Coordenadores
Resumo
Este GT tem por objetivo reunir e discutir trabalhos relativos à questão religiosa existente no
mundo medieval, especialmente na Península Ibérica. Nos interessam pesquisas nas quais
sejam tratadas questões relativas à diversidade e à (in)tolerância religiosa presentes no decorrer da
Idade Média. Dentre as questões que podem ser objeto de estudo e discussão destacamos: a
implantação do cristianismo; as resistências e permanências pagãs no âmbito da religião cristã; a
convivência e os enfrentamentos entre as diferentes formas de viver o cristianismo; as relações
entre poder e religião no processo de construção dos reinos; as relações entre a Igreja de Roma e as
igrejas locais; as relações de (in)tolerância entre cristãos, judeus e muçulmanos; as formas
institucionais ou não de combate às heresias, as diferentes fontes e o estudo de temáticas
relacionadas com as religiões medievais.
1162
A carta de Conrad Grebel (1498-1526) para Thomas Müntzer
(1490-1525)
João Oliveira Ramos Neto1
Introdução
As pesquisas mais recentes, porém, reconhecem que no século XVI houve uma pluralidade de
reformas diferentes que interagiram entre si. Para efeito didático, podemos defini-la
doutrinariamente em 5 grandes blocos: A luterana (centrada em Lutero e Melanchton2), a
1
Graduado em História e em Teologia, mestre em História Comparada pela UFRJ e doutorando em História pela
UFG. Bolsista da CAPES. Orientadora: Professora Doutora Dulce Oliveira Amarante dos Santos. Contato:
joaooliveiraramosneto@gmail.com.
2
Philippe Melanchton foi o autor da Confissão de Augsburgo, 1530.
1163
reformada (protagonizada por líderes como Calvino, Zwínglio e Knox), a anglicana
(expressa em nomes como Henrique VIII, Thomas Cranmer e Elizabeth I), a católica
(principalmente com Ignácio de Loyola e o Concílio de Trento) e a denominada reforma
radical. Esta última foi assim designada pelo historiador norte-americano George Houston
Williams para aqueles que lideraram movimentos inidependentes do apoio de uma
universidade ou de uma instituição nobre, como os conselhos das cidades. Ela, por sua vez, se
subdivide em três: Os espiritualistas (protagonizada por Thomas Müntzer3), os racionalistas
(protagonizada por Karlstadt) e os anabatistas (iniciados por Grebel e Manz).
Os anabatistas tiveram início em 1525 quando Conrad Grebel e Félix Manz romperam com as
modificações lideradas por Ulrico Zwínglio (1484-1531) na cidade de Zurique. Após
estudarem a Bíblia, eles e George Blaurock (1491-1529) ficaram convencidos de que uma
criança não poderia ser batizada, por ainda não ter consciência do que estavam vivenciando, e
então se rebatizaram. Por causa disso, receberam o nome de anabatistas, e passaram a
rebatizar os adultos que aderiam ao movimento. Esse relato está registrado na fonte
documental Die älteste Chronik der Hutterischen Brüder. Eles mesmos não se viam como
anabatistas, mas como aqueles que estavam organizando uma verdadeira igreja purificada, e
por isso se chamavam somente de irmãos. Logo, o movimento anabatista entrou em conflito
com o movimento luterano, e é exatamente este conflito o objeto da nossa pesquisa de
doutoramento.
Uma questão que surge, porém, é sobre a seleção da documentação para estudar os
anabatistas. Mesmo as pesquisas históricas mais recentes reconhecerem que não é possível
compreender os eventos religiosos do século XVI sem levar em conta seus aspectos políticos,
sociais e econômicos, as reformas são predominantemente estudadas por meio dos tratados
teológicos produzidos no período. Documentos importantes, como as cartas que os
reformadores trocaram entre eles, muitas vezes são negligenciadas. Nesta comunicação,
portanto, queremos analisar introdutoriamente a carta que Conrad Grebel escreveu para
Thomas Müntzer em 1524. Outros documentos importantes serão analisados em ocasiões
oportunas posteriores, culminando na escrita da tese como resultado da pesquisa em curso.
A crítica externa
3
A principal obra para o estudo da vida, obra e pensamento de Müntzer disponível em português é Ernst Bloch,
Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1973).
1164
Conrad Grebel nasceu em 1498 como o segundo de seis filhos de Junker Jacob Grebel e
Dorotheia Fries. A família Grebel era muito importante e influente na cidade de Zurique e
participava do conselho da cidade, ajudando a decidir os rumos políticos, econômicos e
militares. Jacob Grebel era um rico comerciante de ferro e também representava a cidade de
Zurique nas reuniões da Confederação Suíça.
Nos primeiros anos, Grebel teve uma ótima formação latina em Zurique. Em 1514 começou
sua carreira universitária em Basel, dando início à sua formação humanista, mas em 1515 se
transferiu para a universidade de Viena, que era um grande centro de estudos do período. Lá
ele conheceu o professor Jerônimo Vadian, com quem desenvolveu grande amizade, trocando
56 cartas com ele. Em 1519, Vadian casou-se com Martha, irmã de Grebel. Em 1518, quando
Vadian deixou a universidade de Viena para ser médico na cidade de Saint Gall, Grebel se
mudou para Paris. Em junho de 1519, uma grave praga assolou Paris, e Grebel retornou a
Zurique, sua cidade natal.
Ao retornar para Zurique, Grebel ingressou no grupo de estudo bíblico liderado por Ulrico
Zwínglio, sacerdote que implementava reformas religiosas naquela cidade. Segundo a
Enciclopédia Menonita, a partir de 1522 as cartas de Grebel começaram a mudar de tom. Ele
demonstrava estar muito interessado na causa da reforma que estava sendo liderada por
Zwínglio. Nesse período também, Grebel desenvolveu uma grande amizade com o jovem
Félix Manz.
A relação de Grebel com Zwínglio começou a mudar a partir do final de 1523, quando
começaram a divergir sobre assuntos teológicos. O rompimento definitivo ocorreu em outubro
de 1524, quando Zwínglio apresentou uma proposta radical de mudança na liturgia da missa e
em outras atividades, como a rejeição do batismo de crianças pela exclusividade do batismo
de adultos. Ao perceber que o conselho da cidade não estava de acordo, Zwínglio recuou na
sua radicalidade. Grebel discordou de tal decisão, entendendo que era necessário avançar.
Com a ruptura, um grupo de jovens começou a se reunir separadamente de Zwínglio, sob a
liderança de Grebel.
Desapontado com a falta de apoio de Zwínglio e do conselho da sua cidade, Grebel, em nome
do grupo de aproximadamente 15 pessoas que estava liderando, decidiu escrever para
reformadores alemães. Ele havia recebido notícias de que, à semelhança do seu rompimento
1165
com Zwínglio, Thomas Müntzer também havia rompido com Lutero e, após ler alguns dos
escritos deste, escreveu uma carta para ele em setembro de 1524.
Grebel escreveu outras dezenas de cartas, das quais 69 estão preservadas, além de também
estarem disponíveis 3 cartas que ele recebeu. O manuscrito original da carta para Müntzer está
preservado na Die Kantonsbibliothek Vadiana, em Saint Gallen. Ela foi escrita originalmente
em alemão e pode ser consultada na grandiosa coleção organizada por Muralt e Schmid,
Quellen zur Geschichte der Täufer in der Schweiz. Ela foi traduzida para o inglês pela
primeira vez em 1905 por Walter Rayschenbusch. Atualmente, há várias traduções
disponíveis em inglês. Michael G. Baylor a incluiu na sua coletânea The Radical Reformation,
publicado pela Cambridge Press em 1991. Já a tradução e coleção organizada por J. C.
Wenger em 1970 trás, anexo, facsímiles dos originais. E a atual coleção de edições críticas,
Classics of the Radical Reformation, a disponibiliza no volume 4. E em espanhol, a carta está
disponível na coleção Textos escogidos de la reforma radical, organizada por John Howard
Yoder. Para este trabalho, citaremos o texto original, conforme disponível na coleção de
Muralt e Schmid.
A crítica interna
A carta inicia com uma saudação: “Frid, gnad und barmhertzikeit von Gott unßerem vatter
und Jesu Christo unserem herren sy mit unß allen, Amen”. Podemos traduzir como “Que a
paz, a graça e a misericórdia de Deus, nosso pai, e de Jesus Cristo, nosso senhor, esteja com
todos nós, amém”. Apresentar uma saudação com o nome de Deus como pai ao lado do nome
de Jesus Cristo como senhor demonstra que Grebel e seus seguidores acreditavam na
Trindade. Para o contexto, isso significava que não faziam parte do grupo dos racionalistas,
que negavam que Deus e Jesus podiam ser a mesma pessoa, inclusive com Jesus sendo
chamado de senhor.
Após a saudação, Grebel elogia Müntzer por sua atuação, principalmente por saber que
Müntzer estava preocupado em demonstrar suas convicções cristãs através de suas atitudes.
Em seguida, Grebel elogia Müntzer por celebrar a missa em alemão, e não em latim, mas o
critica por introduzir a música na cerimônia, atitude totalmente reprovada por Grebel: “Mag
nit gůt sin, wann wir findet in dem nüwen Testament kein ler von singen, kein bispil”.
1166
Segue, então, uma explicação teológica do seu ponto de vista a respeito da celebração da ceia.
Para Grebel, o pão e o vinho não eram transformados em corpo e sangue de Jesus nem pela
transubstanciação católica, nem pela consubstanciação luterana, permanecendo a mesma
essência de pão e vinho como símbolo: “die wil daß brott nüt anderß ist dann brot”. Trata
também dos dízimos e da questão da espada, defendendo sua posição pacifista: “Man soll
ouch daß evangelium und sine annemer nit schirmen mit dem schwert oder sy sich selbs, alß
wir durch unseren brůder vernommen hand dich also meinen und halten”.
Por fim, Grebel discorre sobre sua posição a respeito do batismo ser exclusivo para adultos
conscientes: “Deß touffs halb gfalt unß din schriben wol, begerend ouch witer bericht werden
von dir. Wir werden bericht, daß man on die regel Christi deß bindens und entbindens ouch
ein erwachsner nit gtoufft solte werden”. E despede-se, assinando com outros nomes abaixo
da data de 5 de outubro de 1524.
Grebel era um membro da nobreza e recebeu apoio de Joaquim Vadian, seu cunhado, médico
e prefeito da cidade de Saint Gall. Na carta que estamos analisando, demonstra conhecimento
de teologia e preocupação com doutrinas que julga erradas, fazendo um verdadeiro tratado
sobre a transubstanciação. Isso, por si só, já é suficiente para causar uma revisão na
historiografia que predominantemente apresenta os anabatistas como camponeses desprovidos
de intelectualidade e despreocupados com debates teológicos, querendo apenas melhorias para
suas condições de vida4.
Pela carta, nota-se que Grebel e Müntzer não estavam juntos. Grebel só tomou conhecimento
das ideias de Müntzer porque um escrito seu chegou até Zurique. Então, Grebel
imediatamente escreveu para tentar dissuadir Müntzer de pontos em discordância entre eles.
Um ponto fundamental é que os anabatistas acreditavam que toda sua doutrina deveria ser
4
Essa é, por exemplo, a posição de Norman Cohn, em Na Senda do Milênio (1970).
5
Obras clássicas sobre a Reforma, como Weber, Febvre, Delumeau e Chaunu fazem essa associação. Já entre os
livros didáticos, temos como exemplo a obra de Schmidt.
1167
exclusivamente extraída da Bíblia, ao passo que Müntzer acreditava em revelações espirituais,
daí seu grupo ser chamado de espiritualistas. Se analisarmos documentos posteriores, veremos
que os seguidores de Grebel e os seguidores de Müntzer não tinham ideias em comum. E por
fim, Müntzer faleceu em 1525, justamente no ano que Grebel iniciou formalmente o
movimento anabatista, quando se rebatizou, e então rebatizou os demais.
Um ponto importante de discordância entre Grebel e Müntzer era sobre o uso ou não da
violência. Quando Grebel escreveu esta carta para Müntzer, em 5 de outubro de 1524, só
conhecia o texto Von dem getichten Glauben, escrito por Müntzer em Allstedt no ano anterior,
e o Prager Manifest, escrito em 1521. Nessas obras, Müntzer explicita sua concordância no
uso de armas, principalmente pelos camponeses, que em 1525 eclodiram a revolta na Suábia.
Como citamos anteriormente, porém, Grebel já havia manifesto nesta sua carta sua defesa
pelo pacifismo. O tema também é desenvolvido pelos anabatistas em documentos posteriores,
principalmente na Die Schleitheimer Artikel, principal fonte para o estudo do movimento.
Considerações finais
Esta comunicação não tem o objetivo de esgotar o assunto, mas apresentar introdutoriamente
o tema ainda a ser explorado. É evidente que por terem tantas ideias discordantes, e ações em
épocas diferentes, equivoca-se a historiografia que une Thomas Müntzer e Conrad Grebel
num mesmo movimento de reforma religiosa no Sacro-Império Romano-Germânico. Da
mesma forma, equivoca-se a historiografia que reduz o movimento a camponeses desprovidos
de recursos, que supostamente desprezavam debates teológicos por questões práticas. A carta
de Grebel para Müntzer é um documento importante, dentre outros de igual importância, que
uma vez questionado pelo historiador, concede valiosas informações históricas sobre o
pensamento e a ação dos anabatistas no século XVI.
Referências
BLOCH, Ernest. Thomas Müntzer: teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1973.
1168
CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas. 1225-1550. II. A Reforma Protestante. Lisboa:
Editorial presença, 1975.
GREBEL, KONRAD. Andere an Thomas Müntzer. In: MURALT, Leonard von e SCHMID,
Walter. Quellen zur Geschichte der Täufer in der Schweiz. Zurique: Hirzel Verlag, 1952.
RANKE, Leopold von. History of the Reformation in Germany. Philadelphia: Lea and
Blanchard, 1844.
SCHMIDT, Mario Furley. Nova história crítica. Ensino médio. Volume único. São Paulo:
Nova Geração, 2005.
WEBER, Max. A Ética protestante e o “espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
1169
1170
A doutrina do pecado, fé, obras e o paradoxo do antissemitismo
em Lutero
Filipe de Oliveira Guimarães1
Introdução
Esta matéria(hamartiologia) tem sido um dos principais focos de interesse dos teólogos e
debates nos centros acadêmicos na história. A presente investigação tem como proposta
levantar dados que nos ajude a conhecer o pensamento de Lutero no que tange ao seu
posicionamento em relação ao pecado, a fé e as obras.
No estudo também abordamos a temática da graça, tema que está diretamente relacionados a
hamartiologia luterana. O instrumental para a investigação foram, principalmente, alguns
documentos importantes para luteranismo como as 95 teses de Lutero, o Catecismo Menor de
Lutero e a Confissão de Fé de Augsburgo.
Lutero foi uma das principais mentes do movimento que ficou conhecido como Reforma
Protestante. Seu pensamento continua influenciando o meio teológico até os dias de hoje. A
principal doutrina enfatizada por ele foi a da justificação pela fé que, em um primeiro
momento, parece ser uma negação da importância das obras. Porém, uma breve leitura de
alguns de seus escritos dão a entender que a doutrina das obras ocupava um lugar relevante
em seu pensamento. Mas a grande questão é: como poderia um homem falar de fé, obras e
graça e se tornar uma dos mentores do nazismo?
Apesar da importância de Lutero para a teologia no fim da idade média, a ironia, ou paradoxo,
é que este escritor que defende a prática de boas ações para com os inimigos, como se lê no
1
Doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB. Pesquisador
FAPESP. Participa do GP Arqueologia do Antigo Oriente. Contato: filipeoligui@gmail.com.
1171
Catecismo Menor, é autor de textos anti-semitas que nos fazem pensar que, para ele,
posicionar judeus como inimigos seria atribuir um título honroso demais para este povo.
A identidade de Lutero
O desejo de seu pai era que se tornasse advogado. Chegou a iniciar seus estudos, porém,
interrompeu para ingressar em um mosteiro agostiniano. Segundo biógrafos, ele foi para o
mosteiro após uma experiência durante uma tempestade quando caminhava para Erfurt.
Durante a tempestade foi quase atingido por um raio que o fez cair por terra e gritar: Ajuda-
me santa Ana eu serei um monge! Em 1507 foi consagrado padre. (NICHOLS, 1992)
1172
Com base no seu dilema pessoal podemos entender a importância do estudo da Hamartiologia
para Lutero. Pecado, Lei, Condenação, foram temas que dialogaram constantemente com o
seu ser gerando crises pessoais profundas. Lutero buscou pontuar sua crise através da ênfase,
de que a Bíblia ensina a salvação pela fé. Este tema tornou-se o ponto central de suas
homilias.
Nessa seção examinaremos algumas fontes importantes que nos dão demonstrações no que
tange ao pensamento de Lutero sobre o pecado e a postura que os fiéis deviam ter em relação
ao mesmo, tema tangencial ao lugar das obras. Em um primeiro momento examinaremos
alguns artigos das Noventa e Cinco Teses, em seguida passaremos ao Catecismo Menor e
finalizaremos com algumas citações da Confissão de Fé de Augsburgo.
Logo no primeiro artigo das noventa e cinco teses podemos perceber o lugar que a temática
do pecado ocupava na teologia de Lutero. Ele escreveu: Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus
Cristo: Arrependei-vos...., certamente quer que toda a vida dos seus crentes na terra seja
contínuo arrependimento. Ele fala de arrependimento o que pressupõe pecado, erro, culpa. E
ainda diz que este estado de arrependimento para os crentes era contínuo enquanto suas vidas
durassem.
Em seguida, no artigo 2, ele busca deixar claro o seu rompimento com o modelo do
sacramento penitencial praticado em sua época: E esta expressão não pode e não deve ser
interpretada como referindo-se ao sacramento da penitência, isto é, à confissão e satisfação,
a cargo do ofício dos sacerdotes. Deixando claro, no artigo 3, que confissão sem mudança
2
A intenção de Lutero não era romper com a Igreja Católico Romana mas reformá-la, porém sem espaço para
isso e diante de ameaças foge, amparado por príncipes que viram em Lutero a oportunidade de romper com a
Igreja Católica, e da início a seu movimento.
1173
não servem para nada: Todavia não quer que apenas se entenda o arrependimento interno; o
arrependimento interno nem mesmo é arrependimento quando não produz toda sorte de
modificações da carne.
No artigo três também percebe-se que para Lutero o verdadeiro arrependimento tem um viés
social que pode ser captado pelos sentidos da sociedade através das mudanças operadas pelos
sujeitos. E nesse sentido, para o reformador, se não houvessem mudanças reais era porque não
se tinha ocorrido um verdadeiro arrependimento no íntimo do indivíduo.
É pensando em mudanças, e uma construção de uma futura sociedade mais ética, que ele
escreveu, em 1529, um documento conhecido como Catecismo Menor, cuja finalidade era
educar as crianças alemãs na direção de incentivar a prática de boas obras. Este documento
surge logo no início da reforma em resposta a ignorância teológica do povo alemão.
No catecismo ele associa os Dez Mandamentos a atitudes que o povo deveria ter em seu dia a
dia. Algumas atitudes que ele descreve são: confiar em Deus e amá-lo, não jurar, não praticar
magia, não mentir, orar, louvar, respeitar a Bíblia, estudá-la, ouvir pregações, não desprezar
os pais, não agredir o próximo, ajudar o próximo para que tenha o suficiente para sobreviver,
ter uma vida sexual responsável, não tomar o dinheiro ou os bens do próximo, não produzir
mercadorias falsificadas, não caluniar o próximo, não ser falso, não possuir a casa do
próximo, etc.
Com estes mandamentos ele tinha a intenção de estabelecer um comportamento social que
fosse coerente como a ética bíblica, mas que, também, serviria de mapa que conduziria os
cidadãos naquilo que se constituíam boas obras. Ele chega a ameaçar a população dizendo que
aqueles que não praticassem estas obras seriam castigados por Deus.
1174
Comentando a oração do Pai Nosso, no trecho que diz: E perdoa-nos as nossas dívidas como
também perdoamos aos nosso devedores, Lutero afirma que se deve perdoar de coração e de
boa vontade e fazer o bem aos que pecam contra nós. Ou seja, fazer o bem deveria ser uma
prática (obras) direcionada até mesmo aos inimigos.
A confissão de Augsburgo, apesar de não ter sido escrita por Lutero - seu mentor intelectual
foi Philipp Melanchthon grande amigo de Lureto e principal aliado que redigiu o documento
em 1530 - reflete o pensamento de Lutero, posto que tinha a aprovação do mesmo. No artigo
12 da Confissão esta escrito:
Do arrependimento se ensina que os que pecaram depois do batismo, recebem perdão dos
pecados a qualquer tempo em que cheguem ao arrependimento, não lhes devendo a igreja
negar a absolvição. Agora, arrependimento verdadeiro, autêntico, propriamente outra coisa
não é que sentir contrição e pesar ou terror por causa do pecado e todavia crer ao mesmo
tempo no evangelho e na absolvição, isto é, crer que o pecado foi perdoado e que por Cristo
foi obtida a graça, fé essa que volta a consolar e serenar o coração. Deve seguir-se a
melhora de vida e o abandono do pecado; pois esses devem ser os frutos do
arrependimento, como diz João Mt 3: Produzi, pois, fruto digno do arrependimento.
Lê-se no final que o verdadeiro arrependimento produz fruto, ou seja, obras que sinalizam
esta transformação interna. A doutrina da justificação pela fé de Lutero, levou os católicos a
acusarem os luteranos como possuidores de uma fé morta, sem obras. Ao que Melanchthon
argumentou repudiando aquilo que ele considerava obras vãs. O texto se encontra no artigo 20
da Confissão:
Os nossos são acusados falsamente de proibirem boas obras. Pois os seus escritos sobre os
Dez Mandamentos bem como outros escritos provam que deram bom e útil ensino e
admoestação a respeito de estados e obras de cristãos verdadeiros, de que pouco se ensinou
antes de nosso tempo. Insistia-se, ao contrário, em todos os sermões principalmente em
obras pueris e desnecessárias, tais como rosários, culto de santos, vida monástica, romarias,
jejuns e dias santos prescritos, confrarias, etc.
1175
Ainda no mesmo artigo, posicionando o lugar das obras, Melanchthon diz:
Ensina-se, ademais, que boas obras devem e têm de ser feitas, não para que nelas se confie
a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em seu louvor. Sempre é a fé somente que
apreende a graça e o perdão dos pecados. E visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o
coração também se torna apto para praticar boas obras. Porque antes, enquanto está sem o
Espírito Santo, é demasiadamente fraco. Além disso, está no poder do diabo, que impele a
pobre natureza humana a muitos pecados, como vemos nos filósofos que se lançaram à
empresa de viver vida honesta e irrepreensível e contudo não conseguiram realizá-lo, porém
caíram em muitos pecados graves e manifestos. É o que acontece ao homem quando está
sem a fé verdadeira e sem o Espírito Santo e se governa apenas pela própria força humana.
Considerações finais
A Alemanha deve ficar livre de judeus, aos quais após serem expulsos, devem ser
despojados de todo dinheiro e jóias, prata e ouro, e que fossem incendiadas suas sinagogas
e escolas, suas casas derrubadas e destruídas (…), postos sob um telheiro ou estábulo como
os ciganos (…), na miséria e no cativeiro assim que estes vermes venenosos se
lamentassem de nós e se queixassem incessantemente a Deus. (LUTHER, s.d., 34-36)
Ele também chamava os judeus de “povo do diabo”, de "uma prostituta incorrigível e uma
devassa maléfica", que os judeus estavam "cheios das fezes do demónio,... nas quais se
rebolam como porcos" e além de dizer que quem ajudasse o povo judeu seria condenado a
perdição. Também parece aconselhar a morte dos judeus quando diz: "É nossa a culpa em não
matar eles.” (Lutero apud MICHAEL, 1985, 343-344)
Por causa de afirmações desta natureza, presente em seus escritos, podemos dizer que sua
doutrina das obras, não era tão ortodoxa como parecia. Talvez a frase “peca forte” que Lutero
usa quando escreve para Melanchthon, esteja embasada em uma mentalidade do reformador
que alguns casos como, por exemplo, perseguir os judeus, o pecado pode ser justificado
1176
com base na justificação pela fé, posto que a graça tem a capacidade de encobrir toda e
qualquer falha. Neste sentido podemos pensar que Lutero incentivava o erro em determinados
contextos justificando o pecado com base na doutrina da graça. Na verdade, podemos afirmar
que a doutrina da graça, ou a aplicação que ele fazia da mesma, se constituía uma forte aliada
para que ele pudesse justificar, perante a comunidade alemã, sua intolerância para com os
judeus. Não é por acaso que ele se tornou uma figura respeitada por Adolf Hitler, ou um de
seus mentores.
Referências
LUTHER, Martin: Concerning the Jews and their lies. Reimpresso em Talmage, Disputation
and Dialogue, pág.: 34-36, s.d.
MICHAEL, Robert. "Luther, Luther Scholars, and the Jews," Encounter 46 (Autumn 1985)
No. 4:343-344.
Internet
1177
1178
A Investigação das religiões e a formação políticocultural do
principado Rus´ de Kiev. Diversidade religiosa e trocas culturais
Fabrício de Paula Gomes Moreira1
Introdução
Este trabalho objetiva analisar a chamada “Investigação das religiões”, evento narrado pela
Crônica dos tempos passados2, compilação do início do século XII d.C., elaborada no
Monastério das cavernas de Kiev, na atual Ucrânia. No final do século X d.C., o príncipe
Vladimir foi abordado por representantes de várias religiões praticadas por seus vizinhos, que
o instaram a adotar uma delas. Pretende-se demonstrar aqui a fecundidade do ambiente de
trocas culturais no qual esse evento se passou, além de discutir brevemente alguns aspectos
sobre o que seria religião nesse momento, balizando nossa análise a partir dos estudos de
Aron I. Gurevich reunidos em sua obra As categorias da cultura medieval (1972). Também
pensaremos alguns aspectos relevantes quanto à ideia de conversão religiosa, bem como as
implicações que a conversão traz para a visão de mundo do convertido e sua consequente
transformação dos quadros sociais na qual o indivíduo convertido se insere, principalmente
em se tratando de grandes líderes e/ou monarcas no período medieval.
Para discutir os aspectos culturais que envolviam os contatos culturais dentro e fora da
Planície Russa é necessário estabelecer uma tipologia das condições ambientais nos diferentes
territórios em questão e das estratégias de sobrevivência elaboradas pelos seus habitantes no
período (SHAW, 2006, p.23).
1
Mestrando em História pela UFOP. Bolsista institucional do PPG em História da UFOP. Contato:
fabrício.moreirahis@gmail.com.
2
Doravante referida apenas como Crônica. A edição que nos baseamos é impressão de 1968 da tradução para a
língua inglesa feita por Samuel H. Cross, que veio a público pela primeira vez em 1953.
1179
populações germânicas sob influência cultural de Bizâncio perpetuavam modos de
vida importados da Grécia e de Roma.
Em quarto lugar, as zonas de floresta das porções Central e Norte da planície Russa,
onde se praticava a agricultura, a caça e a pecuária. Essa zona era esparsamente
habitada principalmente por populações Fino-Ugrianas4 e Bálticas.
Tal como discutido por Thomas Noonan, essas divisões não são e não podem ser interpretadas
como um modelo rígido. Intersecções e influências mútuas no modo de vida dessas
populações devem ser levadas em conta, visto que estas comunidades não se
3
No trecho em que a estepe passa pela Planície Russa.
4
Ou Ingrianos e Karelianos. Povos que habitam a região norte da atual Rússia e dependiam no período medieval
de produtos da floresta. Hoje dependem da indústria como foma de sobrevivência (TAAGEPERA, 2004, pp.503-
504).
5
Povo de origem próxima à dos fineses. Distribuem-se pelo extremo norte da Europa, habitando principalmente
territórios do Noroeste da atual Rússia, Finlândia, Suécia e Noruega. Praticam em adição as práticas já citadas, a
criação de animais acostumados a climas de frio extremo, tal como renas e caribus (TAAGEPERA, 2004,
p.1347).
6
Nentsy, palavra que significa entorpecido, paralizado, abobado e era usada pelas populações eslavas para
diferenciar os capazes de falar (a língua eslava) Slovo, dos incapazes. Foi especialmente atribuída a essa
população pela dificuldade de estabelecer contato e pelas práticas de sobrevivência adotadas por eles, que se
diferenciavam muito das práticas sedentárias dos eslavos e eram consideradas excessivamente primitivas pelos
últimos (PIPES, 1995, p.2).
1180
encontravam isoladas umas das outras e não havia barreiras naturais que impedissem esse
encontro, mas apenas fronteiras abertas que, ao contrário, acabavam criando condições para o
mesmo (SHAW, 2006, p.41). Dessa forma, nômades e sedentários mencionados (nesse caso
principalmente os eslavos) habitavam a zona mista de florestas e estepes, ao mesmo tempo em
que caçadores coletores conviviam com os agricultores na zona de florestas; agricultores
praticavam caça e coleta e mesmo nômades e caçadores praticavam alguma agricultura.
No âmbito das expressões culturais, fenômeno semelhante é notável. Nosso foco nesse estudo
é o período de governo do príncipe Vladimir (980-1015 d.C.), com atenção especial para o
período anterior à sua adoção do cristianismo (em 988 d.C.). Porém, cabe destacar que as
relações entre os Rus´ e os povos que se situavam nessas diferentes regiões ou zonas
climáticas ao longo da Planície Russa acabaram por constituir um modo diferenciado de
interação com povos exteriores, bem como entre si. A própria noção do que seja Rus´ veio a
mudar profundamente ao longo do tempo. Segundo Dmitri Obolensky:
“O termo ‘Russos’ é derivado do nome de um povo que, nos séculos IX e X, foi chamado
Rus´ pelos Eslavos, Rhos pelos Gregos e Rūs pelos Árabes. O nome Rus´ ainda dispunha
àquela época, de três significados diferentes apesar de ocasionalmente sobrepostos.
Designava os Vikings Suecos, ou Varângios, que usaram o Volga e, posteriormente, o
Dnieper para suas expedições comerciais rumo ao Sul e que ganharam o controle de grande
parte da rota entre o Mar Báltico e o Mar Negro a partir de meados do século IX d.C.;
ocasionalmente se referia tanto aos Varângios e a seus súditos Eslavos do Leste que, será
retomado, então ocupavam a porção oeste e algumas porções centrais do que hoje é
nomeado Rússia Européia; e gradualmente adquiriu uma conotação geográfica, designando
o território em questão (habitado por tribos Fino-Ugrianas, assim como Eslavos do Leste),
sobre o qual os Vikings detinham a soberania” (OBOLENSKY, 1988, p.180-181).7
7
“The term ‘Russians’ is derived from the name of a people who, in the ninth and tenth centuries, were called
Rus´ by the Slavs, Rhos by the Greeks and Rūs by the Arabs. The name Rus´ still had at that time three different,
though occasionally overlapping, meanings. It designated the Swedish Vikings, or Varangians, who used the
Volga and later the Dnieper for their trading expeditions to the south, and who gained control towards the middle
of the ninth century over the greater part of the Baltic-Black Sea river route: it occasionally referred both to the
Varangians and to their East Slavonic subjects who, it will be recalled, then occupied the western and some of
the central areas of what is termed today European Russia; and it gradually acquired a geographical connotation,
designating the territory in question (inhabited by Finnic tribes as well as by the Eastern Slavs), over which the
Vikings held sway (Tradução nossa).
1181
como exemplos de que o contato entre culturas diferentes. Os Rus´ já conheciam o
cristianismo, tanto em sua expressão ocidental quanto em sua expressão bizantina desde muito
antes do evento que discutimos nesse estudo (BEREND, 2007, p.11). Quando da assinatura
do tratado de 944 d.C., no momento de propor o juramento de fidelidade ao que ficou
estabelecido, além do juramento a Perum – deus do trovão do panteão eslavo – feito pela
maioria dos seguidores de Igor, alguns seguidores do príncipe juraram cumprir as disposições
de seu tratado com o Império Bizantino na Igreja de Santo Elias em Kiev, além da premissa
no tratado de que caso alguém o violasse, que fosse amaldiçoado por Deus e por Perum
(CROSS, 1968, p.77) sem contar a própria Olga, batizada em Bizâncio (MARTIN, 1995, p.6).
Dessa forma, a preferência pelo Cristianismo de rito Bizantino exposta na passagem da
“Investigação das Religiões” acima descrita é um momento importante de escolha e decisão
diante de quase um século de expansão do cristianismo naquela região, que se mostrava
culturalmente receptiva, ainda que seletivamente em relação às religiões exteriores.
Quanto à situação política do principado Rus´, o que se pode dizer é que após um período
turbulento, quando teve de disputar o poder com seu irmão Iaropolk, Vladimir conseguiu unir
todo o território que compreendia o principado sob sua autoridade. Os combates com seu
irmão e com outros potentados, que tomaram lugar após a morte de seu pai, Sviatoslav em
972, duraram até 978-80, quando Vladimir finalmente tomou o poder.
Durante seu principado, Sviatoslav teve relações problemáticas com seus diversos povos.
Entre as campanhas de Sviatoslav, suas relações com o Império Bizantino merecem destaque.
Bizâncio costumava se valer de alianças com povos em momentos diversos de seus
empreendimentos militares. Várias alianças dessas foram estabelecidas com os Rus´, em
momentos diferentes das relações entre esses dois povos. Além dos tratados de 911 e 944,
Sviatoslav estabeleceu nova aliança com os Bizantinos em 971, após a sua segunda campanha
nos Balcãs. Nesse acordo, os Rus´ se comprometiam a auxiliar os bizantinos em caso de
ameaças e ataques de outros povos, em troca de condições privilegiadas de comércio em
Constantinopla, além de auxílio mútuo em operações militares no Mar Negro. Esse acordo
seria fundamental para o ambiente de trocas entre Bizâncio e os Rus´ posteriormente.
1182
Sviatoslav morreu deixando três filhos, Iaropolk, Oleg e Vladimir. Segundo a Crônica, este
último era filho de Malusha, uma criada de Olga. Quando Sviatoslav foi empreender a
segunda campanha pela conquista da Bulgária (em 972), deixou a cargo de seus filhos as
principais regiões do principado. Iaropolk ficou em Kiev, Oleg em Dereva e Vladimir em
Novgorod, após a recusa dos dois primeiros irmãos a esta cidade.
As guerras que se sucederam logo após Sviatoslav ser atacado e morto pelos Pechenegues, na
primavera de 972, culminaram em uma batalha, onde Iaropolk atacou e matou Oleg, quando
este batia em retirada em 976 (CROSS, 1968, p.90). Vladimir fugiu quando soube que
Iaropolk havia vencido Oleg, temendo a perseguição de seu irmão. Dessa forma, Iaropolk se
tornou governante único do principado Rus´.
Segundo a Crônica, Chegando a Kiev, Vladimir subornou Blut, general de Iaropolk, para
convencê-lo que lhe ajudasse a tomar Kiev. Dessa forma ele finalmente conseguiu assassinar
seu irmão e assumir o controle da cidade (CROSS, 1968, p.93). Após a conquista de Kiev,
aconteceram conflitos entre Vladimir e os soldados Varângios que o ajudaram a conquistar a
cidade. Eles demandavam um maior botim de guerra pela sua participação na campanha
contra Iaropolk. Diante dessa pressão, Vladimir se viu forçado a dispensar a maioria desses -
enquanto uns poucos foram agraciados com a administração de algumas cidades. Essa
dispensa foi um pedido dos próprios mercenários Varângios e Vladimir aceitou por não querer
aumentar a carga tributária sobre a população da região de Kiev (CROSS, 1968, p.93).9
8
“I will not, she replied, draw off the boots of a slave’s son, but I want Yaropolk instead” (Tradução nossa).
9
A região tomada após uma campanha militar normalmente era saqueada ou tributada e os tesouros obtidos
dessa forma eram distribuídos aos soldados. Esse tesouro era conhecido como o botim de guerra.
1183
Contudo, Vladimir tinha problemas por não ter laços com elites locais ou populações do
médio Dnieper (região de Kiev). Sua base política se situava em Novgorod, onde também se
deu o início de sua empreitada rumo ao controle exclusivo da Planície Russa. Da mesma
forma, sua origem, embora principesca, era alvo de desconfiança. Vladimir era, como já foi
dito, filho bastardo de Sviatoslav com uma criada de Olga, Malusha. Além disso, os soldados
Varângios dispensados se dirigiram para Bizâncio, deixando-o sem um séquito fiel e capaz de
impor e executar suas ordens sobre a população. Por essas razões, era necessário que o
príncipe não forçasse a situação das populações submetidas a ele.
Para compensar a falta de recursos, ele empreendeu expedições contra populações da região
que não lhe pagavam tributos, ou que deixaram de pagar, tais como os Viatichi, Liachs e
Radimichianos. Segundo Jonathan Shepard, o principal objetivo dessas expedições era
reimpor e assegurar a coleta dos mesmos, bem como estimular o trânsito de mercadorias,
alimentando o mercado de Kiev e obter meios de recompensar seus seguidores (2004, p.64).
Segundo a Crônica, a elaboração de um culto religioso oficial foi uma das primeiras
iniciativas de Vladimir quando ele tomou a cidade de Kiev. Jonatham Shepard acredita que
essa atitude era útil por dois motivos: Inicialmente serviria para, ao homenagear os deuses da
forma correta, assegurar as vitórias nas expedições militares empreendidas. Por outro lado,
serviria também para incentivar uma maior união dos povos submetidos ao príncipe e
consequentemente construir sua legitimidade, adotando tanto deuses como Perun (deus do
trovão), com um culto mais amplo e difundido, quanto deuses locais (2004, p.64). Contudo,
era a primeira vez que, no território dos Rus´, um príncipe tentava estabelecer um panteão de
deuses, o que demonstra para o historiador a crise de legitimidade na qual se encontrava
Vladimir, além de ressaltar a curiosa ligação entre religião e a legitimidade de regimes de
poder através dela.
Por que, então, o príncipe passou a examinar as religiões de seus adversários poucos anos
após estabelecer um culto oficial na Rus´? As razões para isso tendem a unir essa necessidade
de afirmação do principado de Vladimir, além da conjuntura política do mar Negro, de forma
mais ampla, com a própria irradiação cultural dessas religiões no território dos Rus´. A
Crônica narra que, após estabelecer o panteão na cidade de Kiev, Vladimir empreendeu
diversas expedições contra povos vizinhos. No entanto, quando tentou atacar os Búlgaros do
Volga, esperando dominar seus mercados, Vladimir foi alertado por seu tio Dobrÿnya de que
conquistar aquele povo não seria tarefa simples, dada a sua sofisticação (CROSS, 1968, p.96).
1184
10
Vladimir abandonou a campanha contra os Búlgaros e retornou a Kiev, onde se deu a
chamada “Investigação das Religiões”, forma como o episódio é conhecido pela
historiografia. O primeiro missionário a visitá-lo foi um Búlgaro do Volga adepto do
Islamismo.
Uma lacuna textual pode trazer preciosas implicações aqui. Não há nenhuma informação
precisa, além do conselho do tio de Vladimir sobre o desfecho da campanha que o mesmo
empreendeu contra os Búlgaros do Volga. A Crônica obviamente relatou uma vitória de
Vladimir, no entanto, imediatamente após essa entrada na Crônica temos a visita do
misionário Búlgaro.11 Shepard sugere que essa discrepância no relato possa ser derivada de
revezes na campanha e que a falha em conquistá-los e submetê-los a tributo fosse uma das
razões para que Vladimir escutasse missionários de outras religiões, visto que seus próprios
deuses teriam “falhado”. Um povo vizinho ao seu (os Búlgaros do Volga) que conseguia
inspirar tamanha insegurança quanto ao seu poder e a demonstração de que suas forças –
naturais ou sobrenaturais – eram limitadas, pode ter sido um bom motivo para a indignação do
príncipe diante de seus próprios deuses. A partir disso, um melhor fiador divino para suas
causas seria compreensível (SHEPARD, 2004, p.65).
Segundo a Crônica, o visitante islâmico advertiu Vladimir: “Apesar de você ser um príncipe
sábio e prudente, você não tem religião. Adote nossa fé e reverencie Maomé” (CROSS, 1968,
p.96).12 Vladimir então perguntou os fundamentos da natureza da religião deles ao que o
muçulmano falou sobre as proibições corânicas e as recompensas de quem segue essa fé.
Passagem curiosa se dá quando Vladimir negou essa fé. Ele não aceitava a proibição islâmica
ao consumo de bebidas alcoólicas: “A bebida, disse ele, é a alegria dos Rus´. Não podemos
existir sem esse prazer” (CROSS, 1968, p.97).13
Depois dessa visita, enviados cristãos de origem germânica o procuraram, como enviados do
Papa e o disseram: “Assim diz o papa, Seu país é como nosso país, mas tua fé não é como a
nossa. Porque nossa fé é a luz. Nós adoramos a Deus, que fez o céu e a terra, as estrelas, a lua
10
De acordo com o texto da Crônica o alerta do tio de Vladimir se baseia principalmente no fato de os
prisioneiros Búlgaros usarem botas. Ele recomenda que Vladimir procure inimigos que usem calçados mais
simples, ou seja, menos sofisticados.
11
Tal como já discutido, a penetração de outras culturas e religiões na Rus´ era uma realidade muito anterior à
essa entrada na Crônica (980).
12
“Though you are a wise and prudent prince, you have no religion. Adopt our faith, and revere Mahomet.”
(Tradução nossa).
13
“‘Drinking,’ said he, ‘is the joy of the Russes. We cannot exist without that pleasure’” (Tradução nossa).
1185
e todas as criaturas, enquanto seus deuses são apenas madeira” (CROSS, 1968, p.97).14 Então
Vladimir perguntou como eram seus ensinamentos, ao que os germânicos responderam
enfatizando a prática constante do jejum, que Vladimir negou, dispensando-os.
A Crônica diz que por último, Vladimir recebeu um missionário bizantino que foi enviado
para convence-lo a adotar sua fé. Ele se esforçou por difamar as outras religiões e então
explicou para Vladimir os fundamentos do cristianismo. A Crônica se detém longamente no
debate entre Vladimir e o missionário bizantino (chamado de sábio na Crônica), quando este
explicou para o príncipe os fundamentos da crença Cristã, do Antigo Testamento, do
nascimento, morte e ressurreição de Jesus e do estabelecimento do apostolado cristão no dia
de Pentecostes (CROSS, 1968, p.98-110).17
É importante relembrar que a escrita da Crônica se deu a partir do século XI d.C., portanto,
após o cisma entre Católicos e Ortodoxos, ocorrido em 1054. d.C. No entanto, a Crônica
narra essa investigação como se essa separação já tivesse ocorrido. Muito embora a polêmica
entre as sedes cristãs de Constantinopla e de Roma já existisse há muito tempo, desde pelo
menos o estabelecimento da primazia da sé romana no século IV d.C. e alguns cismas
menores já tivessem ocorrido entre as duas, motivados principalmente por diferenças
doutrinárias e o apoio dos imperadores bizantinos a algumas correntes do cristianismo, as
14
“Thus says the Pope: Your country is like our country, but your faith is not as ours. For our faith is the light.
We worship God, who has made heaven and earth, the stars, the moon , and every creature, while your gods are
only wood” (Tradução nossa).
15
God was angry at our forefathers, and scattered us among the gentiles on account o four sins. Our land was
then given to the Christians (Tradução nossa).
16
“How can you hope to teach others while you yourselves are cast out and scattered abroad by the hand of
God? If God loved you and your faith, you would not be thus dispersed in foreign lands. Do you expect us to
accept that fate also?” (Tradução nossa).
17
A descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, dotando os dos dons da pregação e da cura, iniciando a difusão
do cristianismo (Cf. Bíblia, Atos dos Apóstolos 1, 1-11).
1186
relações entre as duas vertentes eram rapidamente reestabelecidas. Também é fundamental
salientar que essa investigação e a consequente discussão com os sábios dessas religiões não
tem corroboração em nenhuma das outras fontes Rus´ dos séculos XI e XII d.C.: somente a
Crônica preserva essa tradição (CROSS, 1968, p.245).
Essa demora na narrativa do debate entre o sábio bizantino e Vladimir demonstra claramente
a perspectiva do momento da escrita da Crônica, onde, pelo menos um século depois da
adoção do cristianismo pelo próprio Vladimir, a consolidação do mesmo já era uma realidade,
pelo menos nos grandes centros da Planície. Da mesma forma, ressalta seu caráter
educacional e catequético. No momento desse debate, em uma exposição com uma linguagem
simples, porém demorada, o sábio explica para Vladimir os fundamentos da fé cristã, além da
história da humanidade do ponto de vista dessa religião. Uma ferramenta de propagação dos
fundamentos dessa fé para ser lida posteriormente.
A “Investigação das Religiões” continuou e após Vladimir debater com os representantes das
religiões, principalmente com o sábio Bizantino, ele decidiu junto aos seus seguidores e
conselheiros, enviar representantes em seu nome para examinar as práticas das religiões que
lhes interessaram. Dessa forma, enviou dez homens para investigar a fé dos Búlgaros (do
Volga), dos Germanos (que praticavam o cristianismo de rito Latino) e dos Gregos (que
praticavam o cristianismo Grego Ortodoxo). Eles retornaram com duras críticas aos Búlgaros,
de como a adoração a seu deus era feita sem alegria, só com o que eles chamaram de tristeza e
pavor, questionaram a falta de glória nas cerimônias dos Germanos e cobriram de elogios as
práticas dos Gregos. Após isso os guerreiros do séquito de Vladimir e os anciãos da cidade de
Kiev o lembraram da aceitação do cristianismo de rito Grego por sua avó, Olga,
anteriormente: “E então os vassalos o circularam e disseram, ‘Se a fé Grega fosse ruim, ela
não seria adotada por sua avó Olga, que era mais sábia do que todos os outros homens’”
(CROSS, 1968, p. 111).18
Essa investigação forneceu, segundo a Crônica, os subsídios que Vladimir precisava para
tomar sua decisão. No entanto uma conjuntura política muito específica tornou a adoção do
cristianismo pelo príncipe um fenômeno ainda mais fascinante. Na próxima seção veremos
brevemente dois pontos de vista diferentes sobre como se deu o batismo de Vladimir.
18
“Then, the boyars spoke and said, ‘If the Greek faith were evil, it would not have been adopted by your
grandmother Olga who was wiser than all other men’” (Tradução nossa).
1187
O batismo de Vladimir: debate historiográfico
Foi a partir das circunstâncias acima esboçadas que se desenrolou o batismo de Vladimir na
religião cristã, em 988 d.C. Contudo, os eventos que culminaram nele merecem atenção
especial, visto que são alvo de intensa polêmica entre historiadores e são cruciais para
determinar o significado da mudança promovida por Vladimir, em termos políticos, religiosos
e econômicos. Inicialmente veremos a posição tradicional da historiografia sobre o evento e
posteriormente veremos a proposta de revisão encabeçada pelo historiador polonês Andrzej
Poppe nos anos 1970.
De acordo com a visão mais aceita pelos historiadores (no decorrer do século XX), os eventos
se deram da seguinte maneira: após sofrer duras derrotas diante dos Búlgaros em 986, Basílio
II foi surpreendido por uma revolta seguida de guerra civil na Anatólia. O revoltoso Bardas
Phocas se declarou imperador e foi reconhecido por toda a Ásia Menor. Desesperado e
necessitando de suporte militar, Basílio enviou uma delegação ao príncipe Rus´ Vladimir em
busca de assistência. O príncipe Rus´ aceitou enviar ajuda para Basílio, contanto que este lhe
desse sua irmã Ana, uma princesa nascida na família imperial bizantina, em casamento.19
Basílio aceitou o acordo, contanto que Vladimir se tornasse cristão e convertesse seu povo.
Vladimir também concordou com os termos do imperador bizantino e enviou-lhe as tropas
necessárias. Nas batalhas de Crisópolis e Abydus20, ambas na primeira metade do ano de 989,
as forças Rus´ inverteram as escalas em favor de Basílio, desempenhando um papel vital na
obtenção da vitória sobre os rebeldes. Contudo, após a superação das guerras civis, Basílio
demorou a cumprir sua parte no acordo, suscitando a ira do príncipe Rus´, que atacou suas
possessões na Criméia e tomou a cidade de Cherson em julho de 989, ameaçando fazer o
mesmo com Constantinopla. As razões apontadas para a captura dessa cidade são associadas
principalmente com interesses de estado, ou então pela própria ganância e luxúria que
caracterizavam o príncipe Vladimir na Crônica, antes de ser batizado (POPPE, 1976, p.200).
Basílio II cedeu à pressão de Vladimir e enviou sua irmã, contra a vontade tanto dela quanto
dele, para se casar com o príncipe Rus´. Havia uma tradição bizantina, quebrada nesse
contexto, de não casar princesas da família imperial com estrangeiros, ainda mais pagãos. Ela
19
A procura, por potentados “bárbaros” por alianças de casamento com membros da corte bizantina foi
excepcionalmente numerosa nesse período, de tal forma que o imperador Constantino VII Porfirogênito, no
tratado De administrando imperio, aconselhou seu filho a evitar tal prática a todo custo (SHEPARD, 2003, pp.1-
2).
20
Cidades da Ásia Menor. A primeira ficava na parte externa do estreito do Bósforo, bem próxima a
Constantinopla. A segunda ficava no estreito do Hellesponto, do outro lado do Mar de Mármara. O objetivo de
tomar essas duas cidades era o de forçar um bloqueio naval à Constantinopla.
1188
foi levada até a cidade de Cherson, onde Vladimir se batiza e os dois se casaram. O príncipe
Rus´ devolveu a cidade bizantina ao imperador e partiu, levando Ana, até Kiev, onde
Vladimir ordenou à população da cidade que se batizasse. O batizado da população ocorreu
ainda em 989, nas margens do rio Dnieper.
A descrição acima é a mais aceita acerca dos fatos que culminaram no batismo do Príncipe
Rus´ e na cristianização (pelo menos oficial) do principado Rus´ de Kiev. Os principais
expoentes desse ponto de vista são Francis Dvornik, em sua obra The Slavs: Their Early
History and Civilization (1956), Georges Ostrogorsky em sua principal obra Geschichte des
byzantinischen Staates (1963), Dmitri Obolensky, também em seu trabalho principal, The
Byzantine Commonwealth (1972), além de um artigo dedicado diretamente a essa questão,
'Cherson and the conversion of Rus': an anti-revisionist view', publicado na Byzantine and
Modern Greek Studies 13 (1989), além de trabalhos mais recentes como o de Paul
Stephenson, Byzantium’s Balkan Frontier (2004).
Segundo esse autor, em setembro de 987 Bardas Phocas se declarou imperador e marchou
rumo a Constantinopla, sendo reconhecido por toda a Ásia Menor. Desesperado diante da
perda de metade de seus domínios, Basílio II pediu ajuda a Vladimir, em uma embaixada que
chegou a Kiev no inverno de 987/988. Como as conversações com Vladimir já estavam
adiantadas, uma vez que o príncipe já investigara as religiões dos estados vizinhos, tal como
demonstrado na Crônica, a embaixada enviada por Basílio II tinha poderes para discutir
assuntos tanto religiosos quanto políticos. Estabeleceu-se naquela ocasião que o príncipe
enviasse ajuda militar para o imperador bizantino, enquanto este lhe daria sua irmã em
casamento, contanto que Vladimir, bem como os Rus´, se convertessem ao cristianismo.
1189
989, quando o imperador bizantino venceu o revoltoso Bardas Phocas. As tropas Rus´
permaneceram em serviço junto a Basílio e Vladimir foi batizado em Kiev. Após isso
Vladimir atacou a cidade de Cherson, que tinha se declarado a favor de Phocas, graças à
aceitação deste na Ásia Menor, principal região fornecedora de alimentos para a cidade.
Vladimir tomou a cidade em 27 de julho de 989 e a destruiu como punição por seu
alinhamento com o rebelde Bardas Phocas, se casou com Ana Porfirogênita e levou ícones,
relíquias e objetos litúrgicos da cidade de Cherson para Kiev, com o objetivo de criar uma
igreja cristã ortodoxa na Rus´.
Tomando essa sequência de eventos como a mais verossímil a partir das informações –
escassas – das fontes, estão o próprio Andrzej Poppe (1976) no artigo já referido, mas
recorrente em toda sua obra, principalmente nas coletâneas de artigos The rise of Christian
Russia (1982) e Christian Russia in the Making (2007), Janet Martin em sua obra Medieval
Russia: 980-1584 (1995), além de John Fennel em sua obra A History of the Russian Church
to 1448 publicada postumamente (1995). Alguns historiadores, no entanto, se esquivam de
tomar um posicionamento a respeito, dentre os quais destacamos principalmente Jonathan
Shepard e Simon Franklin em The emergence of Rus 750-1200 (1996), e em inúmeros
trabalhos individuais dos mesmos.
1190
claramente para uma necessidade de apoio e legitimação da parte do príncipe Rus´. A própria
conversão teria sido vista por Bizâncio como apenas uma manobra para manter as aparências
do casamento da princesa com o príncipe Rus´, um bárbaro aos olhos da civilização
Bizantina.22 Dessa forma, essa iniciativa teria como motor primordial a situação política
internacional, visto que, se a ideia da conversão tivesse partido exclusivamente de Bizâncio,
tal como a iniciativa do Patriarca Fócio em 867, que batizou um grupo de Varângios e
acreditou ter batizado todo o povo dali, bem como o batismo de Olga, haveria inevitavelmente
um novo retorno ao paganismo (POPPE, 1976, p.243).
Tal como Simon Franklin e Jonathan Shepard ressaltaram, “qualquer que seja a hipótese que
se prefira, o fato central é que Vladimir se aproveitou de um período de turbulência em
Bizâncio para propor uma barganha sobre os imperadores e instituir um novo culto em termos
de, mais ou menos, sua escolha” (FRANKLIN; SHEPARD, 1996, p.162). A resolução desse
problema de datação não interfere na percepção da habilidade política de Vladimir para
conseguir se sobrepor nas relações internacionais do período casando-se com uma princesa
bizantina – fator de imenso prestígio que seria negado se a situação dos imperadores não fosse
tão desesperadora – adotar uma religião monoteísta que constituía em torno de si uma das
comunidades políticas mais fortes do período medieval, capitaneada pelo Império Bizantino,
que durante a segunda metade do século X e a primeira metade do século XI d.C., além de sua
próspera condição econômica, também era visto como uma potência militar. Tal aliança
visava consolidar sua posição de príncipe entre os Rus´. No entanto, a polêmica entre essas
duas reconstituições de eventos continua a ressurgir em praticamente todos os trabalhos
elaborados com nossa temática.
John Fennel, outro reconhecido estudioso da História da Rússia, aborda esse problema à luz
de duas questões principais. A primeira é se a iniciativa da cristianização veio dos gregos e se
o interesse de Basílio II era mesmo o de inserir a Rússia na chamada Commonwealth de
estados cristãos orientais. A segunda é se a demanda dos Bizantinos pelo batismo de Vladimir
seria apenas uma condição – admitidamente – essencial de seu casamento com uma princesa
nascida na púrpura, tal como o acordo se encaminhava. Segundo o autor, a resposta para a
segunda questão é inevitavelmente sim, com a iniciativa partindo de Vladimir ou mesmo de
Basílio, quando Vladimir, ao ser abordado com o pedido inicial (o envio de tropas para
22
Conferir também a digressão sobre a percepção histórica de Léo, o Diácono, feita por Andrzej Poppe em seu
trabalho “How the Conversion of Rus’ Was Understood in the Eleventh Century, publicado na revista Harvard
Ukrainian Studies 11 em 1987 e republicada no livro Christian Russia in the Making de 2007.
1191
auxiliar a suprimir a revolta de Bardas Phocas), decidiu os termos do acordo – o casamento
com a princesa – que implicava necessariamente em seu batismo. Contudo, batismo apenas
para si mesmo. Muito embora Bizâncio sempre atuasse em suas relações diplomáticas visando
obter a conversão dos povos ao seu redor, a conjuntura em que se encontravam os
imperadores tornavam as coisas mais difíceis no sentido de obter um acordo para o batismo da
população do principado. Assim, a cristianização de seus súditos não estaria, inicialmente, na
alçada de um acordo desse porte e, portanto, para esse autor, a iniciativa de batizar a
população da Rus´ seria principalmente de Vladimir (FENNEL, 1995, pp.38-39).
Conclui-se, então, que o acordo político entre Basílio II e Vladimir teve significados
diferentes para cada uma das partes. Para o primeiro o acordo foi uma ajuda militar
necessária, em um momento de crise, que se desdobrou em uma realização para a propaganda
imperial, defensora do ideal de expansão da fé cristã, uma grande vitória, política e religiosa.
Por outro lado, para o segundo, uma aliança importantíssima teve lugar. Graças a ela o
príncipe Rus´ dotou seu poder de nova legitimidade, agora baseada na aliança matrimonial
com uma princesa bizantina e em uma concepção de autoridade baseada na teologia política
cristã, que o imbuiu de uma aura de santidade.
Considerações finais
Finalizando nosso estudo, lançamos um olhar diferenciado sobre esses eventos: além de sua
perspectiva política, notamos as possibilidades geradas pela adoção de uma nova religião na
perspectiva da própria experiência religiosa. A conversão gera, sem dúvida, um
redimensionamento amplo da percepção de realidade do recém-convertido, graças à dimensão
ético-moral da religião. Sair de um paganismo e situar-se no cristianismo trouxe, além da já
discutida legitimação política ao regime de poder, uma nova postura para o príncipe, uma
nova ordenação e percepção da própria experiência do vivido. Adotar uma nova religião
impõe a adoção de toda uma nova conduta de vida como condição prévia para tudo o mais.
Vladimir precisava se afastar de, ou reconsiderar,, todas as condutas que se impunham como
necessárias ou prazerosas em sua vida enquanto pagão – Vladimir foi descrito pela Crônica
como dotado de um apetite insaciável pela bebida e por mulheres (CROSS, 1968, p.94). Essa
transformação trouxe consigo toda uma revisão da estrutura de poder encabeçada pelo
príncipe.
1192
Notamos ainda que, em nossa tentativa de pensar a conversão na Idade Média, tenhamos
sempre que lidar com uma perspectiva mais imediatista da vivência do divino, tal como
discutido por Sérgio da Mata, que cita De Vries ao afirmar que “o que permite, em muitos
casos, a passagem ao cristianismo não é o sermão cristão. Antes, a questão decisiva é a de
qual deus, cristão ou pagão, é o mais forte” (MATA, 2010, p.102). Pensamos essa afirmação
de De Vries à luz da discussão mais ampla de Gurevich, que propôs, em sua obra As
categorias da cultura medieval (1972), pensar a Idade Média à luz da suprema generalização
empreendida pelos membros de diversas sociedades medievais. O pensamento teológico era o
meio principal de organização e entendimento do mundo. Não se trata apenas do pensamento
teológico dos grandes centros de estudos do período e sim de uma forma mais ampla de
interpretar e organizar o mundo em que se vivia. Nesse sentido, as visitas dos representantes
das religiões e a pesquisa empreendida por Vladimir e seus enviados pode ser percebida como
um esforço para situar o principado (e as vidas dos seus membros) na discussão mais ampla
que ocorria sobre o mundo e sobre o além. Pensar a legitimidade de seu poder, a base de
sustentação do modo de vida dos Rus´, a política, a guerra, o comércio, tudo fazia parte desse
mesmo processo de pensamento durante o fenômeno da adoção religiosa. “A visão de mundo
medieva se caracterizava pela sua integralidade – daí a sua não diferenciação específica, a
inseparabilidade das suas diferentes esferas” (GUREVICH, 1990, pp.24-25).
Referências
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Europe and Rus´, c. 900-1200. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
DVORNIK, Francis. The Slavs: Their early History and Civilization. Boston: American Academy of
Arts and Sciences, 1958.
FENNEL, John. A History of the Russian Church to 1448. London: Longman, 1995.
FRANKLIN, S.; SHEPARD, J. The Emergency of Rus´: 750-1200. New York: Longman Publishing,
1996.
MARTIN, Janet. Medieval Russia: 980-1584. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
1193
MATA, Sérgio da. História & religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
MILLAR, James R. (Ed.). Encyclopedia of Russian History. Nova York: Thompson & Gale, 2004.
NOONAN, Thomas S. "European Russia c.500-c.1050. In: REUTER, Thimoty (Ed.). The new
Cambridge medieval history. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
OSTROGORSKY, Georg. Historia del Estado Bizantino. 2ª edição. Madrid: Akal Editor, 1963.
PIPES, Richard. Russia under the old regime. London: Penguin Books, 1995.
POPPE, Andrzej. Christian Russia in the making. London: Variorum Reprints, 2007.
SHAW, Denis J. B. Russia’s Geographical environment. In: The Cambridge History Of Russia. Vol. 1.
From early Rus´ to 1689. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
SHEPARD, Jonatham. The origins or Rus´. In: The Cambridge History of Russia. Vol 1: From Early
Rus´ to 1689. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.]
_____________ Marriages towards the millennium. In: MAGDALINO, Paul (ed.). Byzantium in the
year 1000. Londres: Brill, 2003.
1194
Adversus Iudaeos – a criação do antissemitismo no pensamento
cristão
Saul Kirschbaum23
Introdução
O fenômeno do antissemitismo tem sido caracterizado, de acordo com a época e o local dos
eventos, segundo diferentes planos ou vertentes. Assim, por exemplo, massacres ocorridos no
século XIV em diversas cidades espanholas (Barcelona, Cervera, Tarrega, Lerida) e alemãs
(Stuttgart, Estrasburgo, Colônia) são atribuídos ao medo popular de que os judeus estivessem
envenenando nascentes e, depois, disseminando a peste negra (DELUMEAU, 2009, pp. 205-
6); a rebelião dos cossacos ucranianos no século XVII, liderados por Bohdan Khmelnitsky,
que massacraram entre 100 e 300 mil judeus e destruíram 300 comunidades judaicas, tem sido
vista como resultado de um antissemitismo econômico. Afinal, a Ucrânia estava sob domínio
polonês, e a nobreza polonesa impunha pesados impostos que eram cobrados por
arrecadadores judeus.
Da mesma forma, o Holocausto praticado pelo regime nazista durante a Segunda Guerra
Mundial, que resultou na morte de seis milhões de judeus (além de ciganos, deficientes
mentais e outros grupos populacionais considerados indesejáveis), é entendido como
manifestação de um antissemitismo racial, uma vez que a concepção nazista da superioridade
ariana exigia considerar outras “raças” como inferiores; assim, os eslavos estavam destinados
a serem escravizados, e os judeus, que faziam parte do dia-a-dia germânico, eram vistos como
o grande empecilho à inevitável ascensão alemã, ao cumprimento de sua missão histórica, e,
por isso, deviam ser exterminados.
Nesta comunicação, trato de outra vertente, o antissemitismo religioso, que, na busca de seus
objetivos próprios, forneceu suporte ideológico para as demais manifestações, exacerbou,
legitimou e generalizou os sentimentos hostis das comunidades locais em relação aos judeus;
este “racismo religioso” desenvolveu-se através de um discurso teológico, um corpo de
escritos conhecido como Adversus Iudaeos.
23
Doutor em Letras pela USP. Pesquisador independente. Contato: saul.kirschbaum@gmail.com.
1195
A criação do antissemitismo no pensamento cristão
A literatura cristã anti-judaica começa a ser produzida já no Novo Testamento, quando tinha
dois objetivos: por um lado, diferenciar a visão de mundo cristã da judaica, favorecendo a
constituição do cristianismo como religião à parte e não como apenas mais uma seita judaica,
e, dessa forma, competir com o judaísmo na atividade de proselitismo dirigida aos pagãos, nas
condições impostas pela dominação romana; por outro, explorar conflitos internos do
judaísmo, num esforço para atrair adeptos dentre os judeus.
Exemplo do primeiro objetivo pode ser encontrado na segunda epístola de São Paulo aos
Coríntios:
3-13: E não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel
não atentassem na terminação do que se desvanecia. 14: Mas os sentidos deles se
embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu
permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido. 15: Mas até hoje, quando é
lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. 16: Quando, porém, algum deles se
converte ao Senhor, o véu lhe é retirado.
2-16: Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova,
ou sábados, 17: porque tudo isso tem sido sombra das cousas que haviam de vir; porém o
corpo é de Cristo.
Exemplo do segundo objetivo, a conversão de judeus, pode ser encontrada na epístola de São
Paulo aos Romanos:
11-11: Pergunto, pois: porventura, tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum! Mas,
pela sua transgressão, veio a salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes. 12: Ora, se a
transgressão deles redundou em riqueza para o mundo, e o seu abatimento, em riqueza para
os gentios, quanto mais a sua plenitude! 13: Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto,
pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, 14: para ver se, de algum
modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles. 15: Porque, se o fato
de terem sido eles rejeitados trouxe reconciliação ao mundo, que será o seu
restabelecimento, senão vida dentre os mortos?
1196
quando o cristianismo se ligou aos governantes imperiais; os polemistas cristãos declaravam e
ensinavam que os judeus eram uma nação cujos próprios profetas tinham testemunhado sua
corrupção, ainda que somente os judeus possuíssem a Lei de Deus, a Torá (BEM-SASSON,
1997, pp. 406-7); mesmo consolidado em face do judaísmo, no entanto, deve-se enfatizar que
o cristianismo não pregava a eliminação dos judeus; pelo contrário, como observa Maria
Guadalupe Pedrero-Sánchez, no limiar da Idade Média Santo Agostinho defende a
conservação dos judeus: era necessário que eles sobrevivessem, a fim de que, como custódios
das Sagradas Escrituras, dessem testemunho da verdade cristã, embora devessem estar
dispersos por todo o mundo e politicamente subjugados, de acordo com a interpretação dada a
Gênesis 25:23, “o mais velho servirá ao mais jovem” (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, p. 10).
Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández mostram que os argumentos empregados
nesses novos escritos adversus Iudaeos têm em comum a apresentação do “problema judaico”
como uma questão de negociação impossível, já que engloba acusações de natureza ou
princípio insolúveis: a acusação de uma obstinação congênita do povo judeu juntamente com
sua impiedade e ignorância, condição que lhe impossibilitaria a adoção sincera da verdade
cristã; sua condição semissatânica que se demonstraria pelo fato de terem sido repudiados
pela divindade ao longo de sua história e que os colocaria como inimigos eternos do
cristianismo; e, finalmente, o mais irreconciliável ou incendiário nível de acusações, o que
deriva da culpa coletiva do povo judeu de deicídio.( CASTRO CARIDAD; PEÑA
FERNÁNDEZ, 2012, p. 14)
1197
a) a caducidade da lei mosaica, que se põe de manifesto pela inferioridade da lei e do culto
judaicos, razão pela qual se criticam práticas judaicas como a circuncisão, o sábado, o
calendário lunar, a dependência cósmica da liturgia judaica, as festas, o jejum, as regras de
alimentação, os sacrifícios e o Templo;
b) a rejeição dos judeus e a eleição dos gentios, que se convertem no verdadeiro Israel, o que
se expressa mediante a análise da transferência da Aliança;
d) as consequências negativas que sofre o povo judeu, devido à culpa dos judeus na paixão de
Jesus, a repressão romana, sinal de reprovação divina, a hostilidade contra os cristãos, a
falsificação das Escrituras (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, pp. 21-2).
Com a desintegração do Império, surgem, de seus escombros, os estados europeus. E o
antissemitismo religioso muda de objetivo. Trata-se, agora, de consolidar estes estados por
meio da adoção por todo o povo de uma só religião. Afinal, antes dos nacionalismos forjados
pelo século XIX, os povos não se sentiam realmente ligados senão em um sentimento de
vinculação religiosa (DELUMEAU, 2009, p. 459). Neste esforço, a literatura adversus
iudaeos terá valor instrumental significativo.
Como assinala Luis Suárez Fernández, a Igreja espanhola, desde o Concílio de Elvira, no
começo do século IV, começara a preocupar-se com os efeitos que a convivência com os
judeus podia exercer sobre os cristãos, mas os monarcas visigodos, adeptos da seita cristã
conhecida como arianismo, num primeiro momento não alteraram a postura de tolerância que
permitia aos judeus um crescimento normal; porém, a partir do ano 589, quando se convertem
ao catolicismo, decisão na qual influía muito o desejo de utilizar a Igreja como instrumento de
seu poder, iniciam a perseguição aos judeus, pois estes eram o único obstáculo que se opunha
à unidade total buscada pelos monarcas (Suárez Fernández, 1988, p. 18); pode-se dizer que há
uma passagem do teológico ao político. Os projetos unificadores por parte das autoridades
cristãs, civis e eclesiásticas, terão uma justificação mais simples se se apresentarem frente a
um “outro” facilmente identificável, como é o caso do judeu (CASTRO CARIDAD; PEÑA
FERNÁNDEZ, 2012, p. 14).
1198
É ainda Suárez Fernández quem esclarece que a partir do III Concílio de Toledo, ocorrido
naquele ano de 589, no qual Recaredo se converteu ao catolicismo, assiste-se a um processo
de endurecimento: primeiro foi decretada a libertação dos escravos possuídos por judeus que
se fizessem cristãos ou que fossem circuncidados; depois, foram proibidos de ter servidores
livres; mais tarde, decretaram que os filhos dos judeus fossem educados por professores
cristãos. Foi proibida a Páscoa, o rito da circuncisão e até o casamento que não fosse cristão.
Finalmente, o rei Recesvinto ordenou o batismo compulsório de todos os judeus, numa
sinistra antecipação do que viria a ocorrer, de fato, oito séculos mais tarde24. Em 695, o rei
Egica acusou os judeus de conspiração contra a coroa (Suárez Fernandez, 1988, pp. 35-6).25 À
medida que as relações com os cristãos se deterioravam, os judeus da Espanha, em uma
última tentativa de provar sua inocência, tentaram mostrar que seus antepassados tinham
deixado a Palestina muito antes da época de Cristo, e, por isso, não podiam ter participado da
crucifixão. Desnecessário dizer que argumentos dessa espécie – por mais racionais que
fossem – não ajudaram em nada (EBAN, 1968, p. 125).
A primeira dessas obras, escrita em torno de 614-615, vem de ser publicada em tradução
espanhola pela editora da Universidade de Sevilha, em 2012. Isidoro, ao recolher a mais
relevante tradição polêmica antiga, converteu-se em uma das principais fontes a que os
24
É certo que muitos judeus só simularam conversão: inaugurando o que, mais tarde, viria a ser conhecido como
“marranismo”, continuaram, na intimidade, a praticar o judaísmo. Por outro lado, como voltaria a acontecer nos
séculos XV e XVI, muitos judeus espanhóis se converteram sinceramente ao cristianismo, e alguns até se
tornaram membros influentes da Igreja, ativos na repressão a seus irmãos.
25
Note-se que essa situação de opressão se estendeu até 711, quando os muçulmanos invadiram e conquistaram
a Península Ibérica. Para Suárez Fernández, o judaísmo hispânico só se salvou da completa destruição graças à
descomunal desordem de que padecia a monarquia visigoda. (op. cit. p. 18)
26
Calimani destaca, na mesma passagem, que os cristãos continuavam a ser atraídos por certas práticas ou
crenças judaicas, sem, no entanto, aceitarem o judaísmo inteiramente. Para o arcebispo Isidoro, “eles caem nos
erros dos judeus, e assim mancam dos dois pés: não são mais verdadeiros cristãos, nem são inteiramente judeus,
mas são piores do que maus cristãos e maus judeus”.
1199
apologistas anti-judaicos tiveram que recorrer, até bem avançada a Idade Média, ainda quando
as circunstâncias históricas já fossem diferentes. Em sua qualidade de “ponte” entre duas
tradições, a antiga e a medieval, os escritos de Isidoro não só tiveram uma influência evidente
na política do seu tempo, nas medidas tomadas contra os judeus pelos monarcas católicos
visigodos, mas também, dada a altura intelectual de suas ideias, mantiveram um marcado
protagonismo em épocas posteriores (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, p.
17). Eva Castro Caridad e Francisco Peña Fernández assinalam que a obra de Isidoro só
começou a ser deixada de lado no momento em que os polemistas cristãos começaram a tomar
em consideração o Talmud e a literatura rabínica, textos completamente desconhecidos pelo
arcebispo (CASTRO CARIDAD; PEÑA FERNÁNDEZ, 2012, p. 18).
Note-se que os apelativos empregados pela literatura anti-judaica estão inspirados nas
diatribes lançadas pelos profetas do Antigo Testamento contra os judeus, reforçando a tese de
que a condenação do judaísmo e a verdade do cristianismo são afirmadas por seus próprios
profetas. Por exemplo, em 1.5.5 Isidoro diz que “no livro de Daniel se mostra certeiramente o
tempo da vinda de Cristo, se contam os anos, se explicam os sinais evidentes e se expressa de
modo certeiro a posterior ruína dos judeus após a vinda e a morte de Cristo” (ISIDORO,
2012, p. 62)27 e em 2.9.1, “Isaias anunciou que os judeus, devido ao pecado que cometeram
contra Cristo, foram abatidos e dispersados” (ISIDORO, 2012, p. 133).
Note-se, também, o uso que Isidoro faz da leitura do Antigo Testamento como prefigurador
da vinda de Jesus, acolhendo o elemento comum a toda a literatura adversus Iudaeos, a saber,
a explicação cristológica daquela fonte. Por exemplo, em 1.34.2 diz que “só o Rei dos
séculos, Cristo, levou a glória de seu poder e de sua nobreza sobre seus ombros, o que havia
sido antecipado de maneira figurada por Isaac, o qual, quando foi conduzido por seu pai como
27
Todas as citações ao texto de Isidoro de Sevilha são traduções minhas da edição em espanhol, e podem, por
isso, introduzir divergências em relação ao texto original, escrito em latim.
1200
vítima, ele mesmo levou sua madeira, prefigurando a gloriosa paixão de Cristo, que carregou
a madeira de sua paixão (ISIDORO, 2012, p. 92).
Certamente, não era intenção de Isidoro a aniquilação dos judeus ou do judaísmo; em nenhum
momento, ao longo da obra, Isidoro sugere que os judeus sejam forçados ao batismo, pois
acredita que a remissão dos pecados só tem lugar mediante a conversão autêntica, que é a que
lhes permitirá crer em Cristo e compreendê-lo; mas o discurso teológico elaborado pelos
líderes da Igreja desde o século IV chegou às massas, e lá produziu efeitos concretos nos
séculos que se seguiram, na forma de pregações e de encenações por ocasião das principais
datas cristãs. Paul Johnson destaca oito “Sermões Contra os Judeus” proferidos pelo teólogo
grego João Crisóstomo em Antióquia, no início do século V, que utilizaram ao máximo
passagens-chave dos Evangelhos de Mateus e João, apresentando os judeus como assassinos
de Cristo (Johnson, 1988, p. 165).28 Em relação ao teatro sacro, Jean Delumeau destaca os
dramas de Cristo (transcritos pictoricamente por Hieronymus Bosch), os Autos da destruição
de Jerusalém, que destacam a vingança do Senhor punindo o povo deicida, os Autos do
Anticristo, que mostram os judeus esperando o falso Messias, e os Autos do Juízo Final, que
colocam todos os judeus no inferno (DELUMEAU, 2009, p. 424).
Como observa Paul Johnson, a tragédia da argumentação cristã é que ela levava diretamente a
uma nova espécie de antissemitismo. Que os judeus pudessem conhecer a verdade do
cristianismo e mesmo assim a rejeitassem parecia um comportamento tão extraordinário que
dificilmente podia ser considerado humano. Daí a noção de que os judeus eram muito
diferentes das pessoas comuns, uma ideia reforçada por suas leis relativas a alimentação,
abate, circuncisão. Circulavam histórias de que os judeus tinham rabos escondidos, sofriam de
fluxo sanguíneo, tinham um cheiro peculiar – que desaparecia instantaneamente quando se
batizavam. Tudo isso estimulava relatos de que os judeus serviam ao diabo – o que explica
tudo – e comungavam com ele em cerimônias secretas, viciosas (JOHNSON, 1988, p. 207).
Como registra Jean Delumeau, em um primeiro momento a Igreja considerava que o batismo
apagava, no convertido, todas as taras do povo deicida; mais tarde, na prática, essa virtude do
batismo foi colocada em dúvida, e considerou-se que o judeu conservava, mesmo tornando-se
cristão, a herança dos pecados de Israel; na Espanha, esse sentimento deu origem aos
chamados estatutos de limpeza do sangue; neste momento, o antijudaísmo tornava-se racial,
28
Riccardo Calimani menciona trecho de um desses sermões: “Israel, depois do deicídio, pôs-se a comerciar
com o demônio” (op. cit., p. 69).
1201
sem deixar de ser teológico (DELUMEAU, 2009, p. 452), e estava aberto o caminho para o
surgimento, no final do século XIX, de um antissemitismo puramente racial.
Considerações finais
Esta atitude geral da Igreja Católica, de condenação dos judeus baseada, principalmente, na
acusação de deicídio, perdurou até meio século atrás. Somente em outubro de 1965, ao final
do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI assinou a Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e
as religiões não-cristãs, reconhecendo a existência de “laços comuns da humanidade”.
Nesta declaração, sem abrir mão da leitura tipológica da bíblia judaica (“… a salvação da
Igreja foi misticamente prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão”) e da
transferência da Aliança (“… a Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os
judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si mesmo”, e, mais adiante, “embora a
Igreja seja o novo Povo de Deus”), o Papa reconhece que os judeus, embora não tenham
recebido o Evangelho, e até mesmo tendo se oposto à sua difusão, não foram rejeitados ou
amaldiçoados, e “continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito amados de Deus”.
Finalmente, num claro repúdio a condutas de outras épocas, como a “Santa” Inquisição, os
bispos declaram que “[a] Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e
qualquer discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição ou
religião”.
Sem dúvida, a Declaração Nostra Aetate representa um grande avanço, que deve ser saudado
como positivo e construtivo, contribuindo para a fraternidade universal.
1202
Referências
BEN-SASSON, Haim Hillel. The Middle Ages. In: BEN-SASSON, Haim Hillel (ed.). A
History of the Jewish People. 1a. edição. Cambridge: Harvard University Press, 1997, p. 385-
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do Brasil, 1996.
CALIMANI, Riccardo. L’errance Juive I. La dispersion, l’exil, la survie. 1ª. edição. Paris:
Diderot editeur, arts et sciences, 1996.
CASTRO Caridad, Eva, PEÑA Fernández, Francisco. Introducción. In: ISIDORO, Sevilla.
Sobre la fe católica contra los judíos. 1ª. edição. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2012, p. 13-
45
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente1300-1800: uma cidade sitiada. 1ª. edição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
EBAN, Abba. My people. The story of the Jews. 1a. edição. New York: Behrman House,
1968.
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de Sevilla, 2012.
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POLIAKOV, Léon. O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. 1ª.
edição. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
SUÁREZ Fernandez, Luis. Judíos españoles en la Edad Media. 2ª. edição. Madrid: Ediciones
Rialp, 1988.
1203
1204
Conflitos entre monarquia e clero no processo de aceitação do rito
romano na Igreja Compostelana
Jordano Viçose1
Introdução
1205
desligados do mundo nos seus monastérios, colocavam-se como os mais próximos de Deus e
do ideal de perfeição cristã. A oração individual e coletiva, neste caso com os demais monges,
era a fonte de equilíbrio e harmonia deles próprios e do mundo. Afinal, a mentalidade da
época atribuía à oração uma função social. Dito de outra forma: o mundo somente mantinha-
se com alguma ordem graças a esses homens que oravam mais e melhor.
De forma oposta, a vida apostólica era uma vida ativa no mundo. Não que a oração perdera o
seu valor, pelo contrário, além de orar, o monge, assim como os demais homens da Igreja,
deveria atuar no mundo, evangelizá-lo. Esse novo ideal de vida cristã era visualizado como
um retorno às primeiras comunidades cristãs em que a prática da pregação e anúncio do
evangelho era uma constante e um princípio precioso, principalmente, para os apóstolos.
Além disso, a fraternidade de uma vida comunitária, na qual tudo era pertencente a todos,
bem como a observância da pobreza que havia ordenado Cristo, voltaram a exercer notável
influência entre a população cristã.2
2
Cf BOLTON, Brenda. A crise religiosa do século XII. In: BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média.
Tradução: Maria de Luz Veloso. Lisboa: Edições 70.
1206
A inacessibilidade ao sagrado devia-se desde a adoção ao canto gregoriano, ou romano que
era estranho as liturgias locais à utilização do latim, língua não compreendida por grande
parte dos fiéis. André Vauchez, na obra A espiritualidade da Idade Média Ocidental – Séc.
VIII-XIII, apresenta a organização interna das igrejas durante os cultos. Segundo ele:
A organização interna do espaço das igrejas só podia favorecer a passividade dos fiéis: com
efeito, eles permanecem de pé na nave, separados do santuário pelo cancelo, e do altar
pelos coros dos clérigos que salmodiam na schola cantorum. O celebrante está de costas
para eles, e dirige-se a Deus em seu nome. A partir do século VIII, o sacerdote, que até
então oferecia o sacrifício eucarístico dizendo: ‘qui tibi offerunt hoc sacrificium laudis’,
passa a sentir a necessidade de acrescentar a fórmula: ‘vel pro quibus tibi offerimus’. Isto
traduz claramente o fosso que se abriu entre o clero e os fiéis. ‘Presentes fisicamente num
espetáculo por vezes brilhante, na maioria das vezes monótono, de cujo sentido pouco se
apercebem, sem hábito de rezarem em privado, raramente são convidados a rezarem em
comum, os leigos entendiam-se na missa por dela não participarem’ (VAUCHEZ, 1995,
p.21).
Na sequência, Vauchez salienta que “o fato de o latim ter se mantido como língua da liturgia
contribuiu igualmente para que esta se tornasse estranha aos fiéis” (1995, p. 21). Por outros
termos, o processo de desenvolvimento das práticas rituais, que se deu durante o período
carolíngio, contribuiu para afastar os simples fiéis da participação ativa nas celebrações. Isso
contribuíra para que nos séculos posteriores houvesse uma intensificação do culto aos santos e
as relíquias em detrimento do culto prestado aos anjos.
O culto aos santos remonta ao cristianismo primitivo, no entanto, o seu florescimento ocorre
no século IX, quando a impossibilidade de participar do Santo Sacrifício leva os fiéis a
buscarem receptáculos do sagrado em objetos concretos, como as relíquias.3 Dito de outra
maneira: em virtude do afastamento provocado pelas transformações ocorridas na liturgia em
tempos carolíngios, gerou-se a necessidade de buscar outros elementos palpáveis que
fornecessem aos leigos a sua ligação com o sagrado. Atentando-nos para o poder atribuído aos
santos e as relíquias nesse período, Vauchez enfatiza:
Procura-se-lhes com paixão as relíquias, isto é, partes dos seus corpos ou até mesmo
objetos que com eles tenham estado em contato durante a vida ou após a morte. Tocá-las,
3
As relíquias seguem uma ordem de importância, sendo partes do corpo de um santo, as de primeira grandeza.
As relíquias pertencentes a uma segunda ordem de valor são os objetos pessoais do santo. Numa terceira ordem
de importância das relíquias, seguem os objetos que tiveram contato com o corpo do santo, ou do relicário no
qual se acredita estar seu corpo, ou parte dele.
1207
ou simplesmente aproximar-se do túmulo ou do relicário que as contém constitui, para os
fiéis, ocasião privilegiada de entrarem em contato com outro mundo, e sobretudo de
captarem em seu proveito o dinamismo benéfico que delas emana, com a finalidade de
obterem a vitória ou a cura (1995, p. 31).
Os santos e as relíquias tornam-se, dessa forma, mediadores do poder divino. Possuir uma
relíquia era a garantia de comunicação direta com Deus, podendo rogar a Ele tudo aquilo que
fosse preciso. Essa intensificação do culto aos santos e às relíquias que estamos sublinhando,
entenda-se, a necessidade dos leigos de cultuarem algo concreto. Tal necessidade tornar-se-ia
mais nítida com o renascimento das cidades e do comércio, sendo estas, a saber: o culto
direcionado a algo visível, junto ao renascimento comercial e urbano, as principais causas que
contribuíram para as transformações espirituais ocorridas, sobretudo no século XII, no
cristianismo ocidental.4
4
Para um aprofundamento sobre a temática renascimento urbano no período medieval ver: LE GOFF (1992).
5
Ver LOPEZ ALSINA (1988).
1208
Resistência e aceitação: a troca do rito toledano pelo romano
No que tange as práticas, os rituais religiosos, o cristianismo ibérico, como apresenta Julia
Montenegro, foi influenciado, grandemente, pela tradição goda, pois havia sido o bispo Ulfila
o responsável pela evangelização dos godos que criara a escritura toledana. (2011, p. 78). Em
carta enviada aos reis Alfonso VI e Sancho Garcés IV de Navarra no ano 1074, Gregório VII:
Gregório buscava enfatizar as causas que haviam levado à corrupção da religião cristã na
península. A ortodoxia ensinada pelos apóstolos havia sido contaminada por outros valores
que deterioravam as verdadeiras práticas litúrgicas. Com essa tese, Gregório “não descartava
uma intervenção pessoal na Península com a qual implicitamente se retomava o tema de sua
‘reconquista pontifícia’” caso não houvesse a adesão ao rito romano. (AYALA MARTÍNEZ,
2008, p. 317). O tema reconquista pontifícia, ao qual Gregório se refere, foi tratado por ele
em uma carta enviada dois anos antes a Alfonso VI, alertando-o “que o regnum Hyspanie
desde a antiguidade era propriedade da Igreja de Roma” e, portanto, deveria vigorar os
direitos de São Pedro sobre a península e ele na condição de rex deveria aderir aos seus
pedidos. (AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 314).
Apesar da pouca resistência feita por Alfonso VI aos propósitos de unidade litúrgico-
disciplinar empreendidos pelo papado à Península, alguns bispos hispânicos mantiveram-se,
1209
excessivamente, contra a alteração do rito, a título de exemplo podemos citar o bispo de
Compostela Diego Peláez, que junto a outros bispos “viam na própria tradição hispânica um
valor irrenunciável de modo algum incompatível com a necessária renovação eclesiástica”
(AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 312). Apesar de acordarem com a renovação eclesiástica no
que tangia a disciplina, de modo algum concordavam com a alteração litúrgica.
Na Historia Compostelana (doravante HC), obra elaborada na primeira metade do século XII
na cidade de Santiago, o período anterior à aceitação do rito romano é denominado como
tempos de predomínio da ignorância e da rudeza. Evidentemente que se tratando de uma obra
escrita a mando do bispo Diego Gelmírez, partidário dos princípios unificadores do papado,
não poderia ser outra a opinião expressa pela HC. O primeiro trecho presente na obra que trata
sobre a transição do rito toledano ao romano encontra-se junto da eleição de Diego Peláez
como bispo de Santiago. Segundo a HC:
Logo foi elevado a mesma cátedra Diego Peláez pelo rei dom Sancho. Nesse tempo o rito
toledano foi esquecido e foi aceito o rito romano. O mencionado Diego floresceu nessa vida
presente durante muito tempo em nobreza e generosidade. Porém, viveu até tal ponto
entregado as preocupações do mundo que não adaptou, como era o seu dever, sua vida
interior a norma do hábito eclesiástico. Por isso, preso pelo rei dom Alfonso, segundo o
havia merecido, permaneceu encarcerado durante quinze anos 6 (HC, 1994, p. 77, tradução
nossa).
A HC não descreve, explicitamente, o motivo pelo qual Diego Peláez foi preso, apenas
salienta que havia merecido tal infortúnio. No entanto, acreditamos que tais preocupações
mundanas, as quais se entregara o bispo compostelano e que o levaram à prisão, referem-se à
resistência que manteve a implantação do rito romano na Igreja compostelana. Dito de outra
forma: Alfonso VI, nesse momento, vislumbrava a aceitação aos pedidos de unidade do
papado como algo “extraordinariamente positivo para consolidar o (seu) projeto político
régio, que era o fortalecimento do (seu) poder e do reconhecimento de (sua) hegemonia
peninsular” (AYALA MARTÍNEZ, 2008, p. 309). O que não é de se estranhar, afinal lutava
contra seu irmão, o rei Sancho, para obter a primazia em Hispânia.
6
Luego fue elevado a la misma cátedra Diego Peláez por el rey don Sancho. En este tiempo el rito toledano fue
olvidado y fue aceptado el rito romano. El mencionado Diego floreció en esta vida presente durante mucho
tiempo en nobleza y generosidad. Pero vivió hasta tal punto entregado a las preocupaciones del mundo que no
adaptó, como era su deber, su vida interior a la norma del hábito eclesiástico. Por lo que, apresado por el rey don
Alfonso, según lo había merecido, permaneció encadenado durante quince años.
1210
Não obstante, a crítica feita pelos autores da obra ao bispo Diego Peláez repousa na sua
preocupação exarcebada com as questões mundanas em detrimento das espirituais, podendo
ser lida, tal crítica, como uma ligação do então clero compostelano aos princípios
reformadores. Pois, apesar de advogar uma vida no mundo, o papado defendia uma vida no
mundo atrelada às questões espirituais.
Alfonso VI, segundo a HC, manteve Peláez preso durante quinze anos, tempo suficiente para
que o rito romano fosse imposto na Igreja de Santiago. Diego Gelmírez, bispo que o sucedeu,
depois de dois curtos bispados, tornou-se ardente defensor da soberania da Igreja de Roma,
colocando a Igreja de Santiago como submissa aos desígnios da Santa Mãe Igreja.
Considerações finais
Com estes dizeres, não queremos afirmar que as leis emanadas de Roma eram atendidas e
levadas a cabo por todas as regiões da cristandade. Todavia, não podemos deixar de
reconhecer que, em termos oficiais, tais normativas estavam sendo elaboradas, no entanto, até
que ponto elas realmente eram atendidas ou não é outra problemática. Por outras palavras: não
podemos ignorar a tentativa do papado de unificar a liturgia, nesse caso estudado, por meio da
troca dos ritos locais em benefício do rito romano.
Evidentemente que tal processo deu-se de forma lenta e gradual, de acordo com os interesses
locais em aceitar ou não a liturgia romana, bem como as ordenações impostas pelo papado
eram contornadas, ou não, segundo convinha aos interesses dos reis e dos prelados daquelas
regiões.
Referências
BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Tradução: Maria de Luz Veloso. Lisboa:
Edições 70.
1211
MONTENEGRO, Julia. El cambio de rito en los reinos de León e Castilla según las crónicas.
In: MARTÍNEZ SOPENA, Pascual & RODRIGUES, Ana (orgs).La construcción medieval
de la memoria regia. Valencia: Publicaciones de la Universitat de València, 2011. p. 71-86.
RIBEIRO, Daniel Valle. Igreja, Teocracia e Domínio do Mundo. In: RIBEIRO, Daniel Valle.
Igreja e Estado na Idade Média: relações de poder. Belo Horizonte, MG: Ed. Lê, 1995.
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental. Séc. VIII-XIII. Lisboa:
Estampa, 1995.
1212
1213
Duas baleias na rede de pesca: a terceira via hussita de Petr Chelčický
7
Thiago Borges de Aguiar
Introdução
Entre os séculos XIV e XV, a Cristandade europeia viveu um período turbulento, quer seja
sob o ponto de vista do outono de Huizinga quer seja da primavera de Wolff. No campo
religioso, o principal evento que marcou o período foi o cativeiro de Avignon, quando a sede
papal afastou-se de Roma e se estabeleceu em terras francesas, seguido pelo Cisma Papal, no
qual dois (e posteriormente três) papas afirmavam-se como o único e verdadeiro chefe da
Igreja Universal. Entre os anos de 1414 e 1418, os clérigos reunidos no Concílio de
Constança encontraram na posição conciliarista, a que sustenta a supremacia do poder do
concílio em relação ao do papa, a única alternativa possível para entender a crise de
autoridade e oferecer uma solução para ela (AGUIAR, 2012b).
Embora central na reunião eclesiástica, a definição da cabeça da Igreja não era o único
problema a ser resolvido. O Sacro Império estava maculado pelas heresias que começavam a
ganhar força nas terras tchecas, alimentadas pelo realismo de John Wyclif. Aqueles líderes
religiosos sentiam-se responsáveis por dar à Cristandade em turbulência respostas definitivas.
Diante da magnitude do problema papal não se poderia perder muito tempo para resolver uma
posição pouco ortodoxa de uma terra cuja maior importância estava na prata que seu solo
oferecia em abundância (cf. PORTAL, 1968, p. 91).
A solução encontrada para o problema das heresias foi um rápido julgamento do tido como
líder do movimento, Jan Hus, que foi condenado como heresiarca pelo concílio e morto na
fogueira em 6 de julho de 1415. Do ponto de vista dos conciliares, o problema estava
resolvido. Eles poderiam, então, dedicar-se a finalizar a transição, que se efetivou, da
existência de três papas para a eleição de um único e novo cabeça da Igreja. Este era o ponto
de vista do Concílio. (v. AGUIAR, 2012a, passim e GUIMARÃES, 2011, p. 164-7)
7
Doutor em Educação (História da Educação) pela USP. Professor do PPG em Educação da Universidade
Metodista de Piracicaba. Pós-doutorado realizado em 2012 com apoio da FAPESP, com parte dos resultados
apresentada nesta comunicação. Líder do GE História da Educação e Religião (GEHER-FEUSP) e pesquisador
do GP Educação e Protestantismo (GPEP-UNIMEP). Contato: tbaguiar@unimep.br.
1214
Entre os tchecos, havia aqueles burgueses, camponeses, nobres, aristocratas, professores e/ou
clérigos que concordavam com esta posição. Mas havia um crescente grupo igualmente
diversificado que também via na Igreja grandes manchas. Para esses sujeitos, a causa dessas
manchas não estava na sua suposta heterodoxia. Estava na opulência do clero e no apego de
seus membros a tradições que não possuíam base nas Escrituras. Eles defendiam uma vida
mais próxima à do Cristianismo Primitivo, o que incluiria, entre outras coisas, o desapego dos
bens terrenos, a submissão ao Cristo (e não ao papa) e a dupla comunhão oferecida também
aos leigos. A Capela de Belém, espaço construído em Praga para a pregação em língua
vernácula, chefiada entre os anos de 1402 e 1411 pelo clérigo e professor da Universidade de
Praga Jan Hus, tornou-se o centro irradiador dessas ideias, que se espalharam com maior
intensidade após sua injusta condenação e morte.
Observa-se, a partir da circulação destas ideias, a formação de dois grupos ou de dois modos
de se relacionar com o Cristianismo, ambos colocados em um lugar de heresia pela decisão do
Concílio de Constança. O primeiro está ligado à Capela de Belém e às igrejas que passaram a
oferecer a dupla comunhão (pão e vinho) nas terras tchecas e contaram com apoio intelectual
de professores da Universidade de Praga após a saída dos alemães em 1409. Estes eram os
Utraquistas, nome derivado do latim sub utraque specie ‘sob duas espécies’. Eles constituíam
uma igreja nacional organizada um século antes da Anglicana, por exemplo. Ao longo da
história posterior dessa igreja, tentaram por diversas vezes reconciliar-se com Roma e
dependeram de bispos católicos de fora da Boêmia para realizar a ordenação de seu clero em
muitas ocasiões (ATWOOD, 2010, p. 8).
Os Utraquistas foram politicamente influentes ao longo dos anos seguintes, tendo, inclusive
estabelecido um acordo com a Cúria em 1433, no Concílio de Basileia, garantindo sua
existência institucionalmente reconhecida nas terras históricas tchecas. Eles foram
perseguidos apenas no século XVII, com o início da Guerra dos Trinta Anos e a recatolização
jesuítica da Boêmia. Dois nomes se destacaram na liderança desse grupo após a morte de Hus:
Jakoubek de Stříbro (morto em 1429) e Jan Rokycana (morto em 1473).
1215
conhecidas Guerras Hussitas, enfrentando e vencendo o exército cruzado enviado pelo papa
eleito no Concílio de Constança, Martinho V.
Seus principais líderes foram Jan Žižka (morto em 1424) e Prokop Holý (morto em 1434),
que lideraram uma luta armada com o símbolo do cálice nas mãos, cantando hinos de vitória
nas marchas para as batalhas. Um dos mais famosos desses hinos chama-se Ktož jsu boží
bojovníci [quem são os guerreiros de Deus]. O texto com a original do hino, escrito em tcheco
do século XV, encontra-se no cancioneiro de Jístebnice, mas ele é conhecido ainda hoje, na
voz de um cantor tcheco de rock (LANDA, 2004). Alguns versos da letra deste hino podem
ser, em tradução livre, lidos assim:
O Cristo vale todos os seus sacrifícios. (...) Se você der a sua vida por Ele, você receberá a
vida eterna. (...) O Senhor vos ordena a não temer os ferimentos do corpo. (...) Não tenha
medo de seus inimigos, nem olhe para seu número. Mantenha o Senhor em seu coração, e
lute por Ele.
Os Taboritas só perderam sua “guerra santa” em 1434, com a aliança militar entre os
Utraquistas e os Católicos oriunda do Concílio de Basileia, na Batalha de Lipany. A cidade de
Tábor resistiu até o ano de 1452, quando então se submeteu ao poder do rei da Boêmia e à
autoridade do então arcebispo de Praga, o utraquista Rokycana. (ATWOOD, 2010, p. 9)
A terceira via
Entre a institucionalização dos Utraquistas e a “guerra santa” dos Taboritas surge uma terceira
via de pensamento e ação religiosa. Um jovem de nome Řehoř [Gregório] funda, entre 1457 e
1458, um grupo isolado do mundo, que queria viver uma vida simples e pacífica. Esse jovem
talvez tenha sido sobrinho de Rokycana, mas foi deste arcebispo utraquista que pregava na
igreja de São Tyn, na praça da cidade velha [Staroměstské náměstí] em Praga, que Řehoř
recebeu aconselhamento espiritual. O arcebispo indicou-lhe a leitura da obra de certo Petr
Chelčický, que escrevera há poucos anos diversos textos com “rigor moral e rejeição da
violência”. Esse aconselhamento acontecia pouco mais de duas décadas após a derrota
taborita e esta pode ter sido uma ação de Rokycana para direcionar um grupo de jovens
estudantes e comerciantes que frequentavam sua igreja para longe das ideias militaristas da
segunda via hussita.
1216
O grupo começou a se reunir para orações, discussões, leituras das escrituras e exortação
mútua na região da vila de Kunvald, a leste de Praga, hoje próximo às cidades de Hradec
Kralové e Pardubice. Inicialmente, eles continuavam a frequentar a igreja Utraquista, mas a
leitura dos textos de Chelčický levou-os a optar progressivamente por um total isolamento do
mundo e da igreja institucionalizada, vivendo uma vida ascética, disciplinada e de oração,
angariando membros também entre outros grupos como antigos Taboritas, Valdenses, ou
Adamitas. (ATWOOD, op. cit., p. 154-157)
O grupo fundado por Řehoř ficou conhecido como Jednotá Bratrská [Unitas Fratrum, em
latim], ou União dos Irmãos. Em língua portuguesa, por vezes eles também são referidos em
alguns textos como Irmãos Morávios. A longa história desse grupo, passando por figuras
menos conhecidas como Lukáš de Praga e outras muito famosas como o fundador da didática
moderna Jan Amos Komenský [Comenius] não cabe nesta comunicação. Destaca-se apenas,
neste momento, que foi da União dos Irmãos que saiu a tradução completa da bíblia para a
língua tcheca, no final do século XVI, um dos textos mais importantes utilizados no século
XIX para a reconstrução da língua tcheca escrita.
Petr Chelčický
Até os dias de hoje, há dúvidas sobre quem foi Petr Chelčický. Sabe-se que ele foi uma pessoa
de pouca instrução. Provavelmente não entrou na Universidade, visto seu parco conhecimento
de latim. Ele se autodenominava um “camponês” e possuía disponibilidade de tempo para o
estudo e para a vida religiosa. Uma hipótese é que tenha sido um pequeno proprietário rural.
Ele pode ter nascido em 1390, mas também há uma teoria que o associa a outro Petr chamado
Záhorčí, que nasceu entre 1379 e 1380 (MOLNÁR, 1947; v. também ATWOOD, 2010;
SPINKA, 1943).
Também não se sabe ao certo em que momento ele morreu, com as datas variando entre 1458
e 1460. Seu tempo de vida foi contemporâneo, portanto, ao de Jan Hus em alguns momentos.
Ele teria entre 25 e 35 anos quando do Concílio de Constança. Há condições concretas para
que ele tenha se encontrado com Jan Hus, e indícios que em 1412 – já durante o exílio deste
pregador – que tenham conversado pessoalmente sobre a Eucaristia (MOLNÁR, 1947).
1217
Chelčický foi um personagem pouco lembrado pela história. Seus escritos foram republicados
apenas no século XIX (ATWOOD, op. cit., p. 133) e foram retomados por Leo Tolstoi, em
sua obra O Reino de Deus está em você, que trata sobre o pacifismo e a não resistência. Após
resumir o conteúdo de um dos livros do autor tcheco com base em fontes secundárias (visto
que não teve acesso ao texto original), Tolstoi (1994, p. 23) escreve:
Esse livro é uma das raras obras que escaparam aos autos-de-fé, entre as que fustigaram o
cristianismo oficial, e é isto que o torna tão interessante. Mas, além de seu interesse, esse
livro, de qualquer ponto de vista que o examinemos, é um dos mais notáveis produtos do
pensamento, tanto pela profundidade das opiniões, como pela extraordinária energia e pela
beleza da linguagem popular na qual é escrito. E, no entanto, esse livro permanece como
manuscrito há mais de quatro séculos e continua a ser ignorado por todos, exceto pelos
especialistas.
O elogio de Tolstoi serve como parâmetro para entendermos o impacto que a obra causou no
autor russo que, talvez, só o conhecia em função da proximidade linguística e cultural de
ambos. Mas, mesmo com a menção de Tolstoi, Chelčický continuou pouco conhecido, apesar
de ter escrito diversos tratados. Há cerca de uma dezena de publicações com textos originais
do autor, embora se saiba da existência de quase seis dezenas de textos. Na década de 1420,
de acordo com, Chelčický começa a escrever intensamente em função das questões que tinha
contrário aos Utraquistas e aos Taboritas. Molnár (op cit., pp. 22-23) sinteticamente apresenta
a ruptura com ambos os grupos. Em 1424, ele escreve uma Replika proti Mikuláši Biskupci
Táborskémi [Réplica contra o bispo taborita “Nicolau”], na qual lamenta a posição defendida
pelos Taboritas em relação à eucaristia, opondo-se à concepção da presença física do Cristo
na eucaristia. Em 1425, ele escreve uma Replika proti Rokycanovi [Réplica contra Rokycana],
dirigida ao arcebispo utraquista que, segundo Chelčický estava numa posição de poder
hierárquico contrário ao que defendiam os hussitas. O pensador tcheco opunha-se à hierarquia
eclesiástica, à defesa da guerra como um mal necessário e à ideia da presença física do Cristo
na eucaristia.
Atwood data a Replika proti Rokycanovi com o ano de 1440 e traz uma citação desse
documento, estabelecendo-o como um marco divisório em relação a Jan Hus e aos utraquistas.
De certa forma, essas palavras de Chelčický são um indício de que ele pensava estabelecer
uma posição alternativa às outras defendidas até então entre os tchecos:
Eles escreveram coisas em seus trabalhos que são negadas pelas leis divinas, especialmente
quando o Mestre Hus escreveu sobre assassinato, juramentos e imagens. Portanto, eu não
1218
posso coadunar com o que eles transmitiram de natureza tão ofensiva para o escândalo de
muitos (ATWOOD, op. cit., pp. 134-135, em tradução livre do inglês).
Se olharmos para os escritos de Hus e de Chelčický hoje, veremos muitas semelhanças, talvez
mais do que diferenças. Mas são os detalhes que fazem as pessoas se diferenciarem e aquilo
que era ponto central para Chelčický foi suficiente para sua ruptura.
Mesmo que a datação de Atwood esteja mais correta que a de Molnár, é um fato que os
escritos de Chelčický apontam para sua separação tanto dos Utraquistas quanto dos Taboritas.
Molnár aponta ainda que nos textos da década de 1420, o pensador tcheco começa a utilizar a
palavra “nós”, indicando a formação de um grupo de pessoas que pensavam como ele. Mas
como ele pensava?
Escrito entre os anos 1440 e 1443 (BOUBÍN In: CHELČICKÝ, 2011, P. 345), o Siet Viery
Práve [A rede da fé verdadeira, que aparece em edições tchecas modernas simplesmente
como Síť Víry – a rede da fé] contém muitas das ideias defendidas por Chelčický, embora
estas tenham sido gestadas em outros escritos anteriores. De certo modo, Molnár e Atwood
apresentam as mesmas ideias a respeito do pensamento do pensador tcheco que analisam:
pacifismo, da não presença física de Cristo na eucaristia, dessacralização do estado com
consequente ruptura com a autoridade estabelecida, vida em comunidade, oposição à
hierarquia feudal (clero, nobreza e camponeses) e sua fidelidade.
Quando acabou de falar, disse a Simão: “Faze-te ao largo; lançai vossas redes para a
pesca”. Simão respondeu: “Mestre, trabalhamos a noite inteira sem nada apanhar; mas,
1219
porque mandas, lançarei as redes”. Fizeram isso e apanharam tamanha quantidade de peixes
que suas redes se rompiam. Fizeram então sinais aos sócios do outro barco para virem em
seu auxílio. Eles vieram e encheram os dois barcos, a ponto de quase afundarem.
Consequentemente, as Sagradas Escrituras são tecidas e preparadas como uma rede física,
um nó amarrado no outro, até que toda a grande rede esteja feita. Similarmente, há
amarradas umas às outras diferentes verdades das Sagradas Escrituras, de modo que elas
possam abranger uma multidão de crentes (e cada crente em particular com todos os seus
dons físicos e espirituais para que, cercado pela rede, ele possa ser retirado do oceano deste
mundo). E esta rede é capaz de arrancar cada um do mar de profundos e pesados pecados.
Agora nós podemos compreender que esta rede começou a quebrar, não muito por causa da
multidão de coisas pescadas – como a rede de Pedro – mas, tal qual num mar físico, por
causa de um grande número de outras coisas repugnantes apanhadas na rede, então também
uma série de almas perdidas, hereges e pecadores entram na rede da fé (às vezes
aparentemente vindo da fé, porém – em momentos de tentação – revertendo para
abominações e heresias) (apud MOLNÁR, op. cit., p. 52, em tradução livre do inglês).
Essa alegoria da rede será a sustentação de todo o argumento de Chelčický. Ele afirmará que,
no mundo de hoje, “as redes são uma miscelânea de cordas apodrecidas misturada com
raciocínios de diferentes pessoas” (ibidem, p. 53). Opõe as diferentes interpretações humanas
às escrituras, visto que nelas estão a fé verdadeira que move o verdadeiro crente. Bastam-lhe
apenas as palavras do Cristo, assim como elas bastaram para que Simão pescasse os peixes.
Isso leva a uma atitude contrária à organização secular e à autoridade, ou seja, contrário às
leis terrenas:
Portanto, nós desta geração, sentados como se estivéssemos sob a sombra dessas leis
[terrenas], discutimos fracamente a lei de Deus ou Sua regra, porque a escuridão dessas leis
obscureceu nossos olhos. E então, tateando nosso caminho no escuro, nós adivinhamos e
imaginamos: será que a doutrina do Cristo é suficiente por si só, sem a adição de leis
humanas, pode restaurar aqui na terra a plenitude da religião cristã? Nós fazemos esta
pergunta no medo e tremendo respondemos afirmativamente porque esta lei do Cristo era
adequada para instituir uma humanidade cristã com todos os seus discípulos e sem a
mistura de instituições humanas (apud MOLNÁR, op. cit., p. 67).
1220
Ainda na imagem da rede, Chelčický traz a figura de duas baleias que entraram nela: o
imperador e o papa. Ambos “entraram na rede” junto com um grupo de “peixes adversos” e
ficaram por lá adormecidos:
Ninguém no tempo da pesca sabia que a rede da fé também incluiu um grande número de
peixes adversos porque eles ficaram em silêncio na rede por um longo período depois de
Pedro e de outros apóstolos. No entanto, após certo período de tempo, quando os homens
estavam dormindo e embalados na segurança, seus inimigos vieram à noite e plantaram joio
no trigo. Então, quando as plantas cresceram e deram grãos, o joio apareceu também
(ibidem, p. 72).
O que causou a entrada dessas baleias e desses peixes na rede, para Chelčický, foi a Doação
de Constantino. Como a prova da falsidade deste documentos só foi feita por Lucrécio no
século XVI, na época do pensador tcheco, pensava-se que a doação era verdadeira. Tanto
Chelčický, mais do que propunha Jan Hus (1976, p. 129), lega à Doação de Constantino não
apenas a origem do poder papal, mas da corrupção do clero que se expandia, em sua visão,
para toda a sociedade. O papa faz de tudo para garantir que a rede de Pedro não pesque os
fiéis verdadeiros:
Esta baleia rasgou a rede da fé de modo que esta ficasse inútil para pescar peixes. E se
alguém laboriosamente a consertasse com medo e tentasse “pescar” pessoas na salvação,
ele confiscava seu pescoço, pois (o papa) odeia a fé que é a rede de Pedro. É por isso que
ele invadiu a rede, ele não a rasgou despropositadamente, pois ela o incomodava e o
perturbava grandemente. Pois, querendo ter um caminho largo, ele rompeu a rede de fé,
para que ela não o impedisse e nem tirasse sua liberdade de movimento. E ele não pode
tolerar ninguém que pesque com toda a rede, pois, ao fazê-lo, o (pescador) iria revelá-lo nu
e destruir sua obra, porquanto uma rede completa significaria vergonha na cara e morte de
seu orgulho e luxo. Desejando continuar em seu governo exaltado e para lhe serem dados
domínios e honras superiores ao do Imperador, ele é obrigado a criar espaço para si e a
destruir a rede. Ele só pode suportar os seus farrapos. Onde suas lacunas iriam revelar sua
nudez vergonhosa ele as conserta com remendos... (apud MOLNÁR, op. cit., p. 82).
Mas, ao contrário de Hus, que direciona todo seu “ataque” contra o papa e a hierarquia
eclesiástica8, Chelčický também “ataca” o imperador, visto que este trouxe o modo pagão de
organização social, com suas leis, para o mundo cristão:
8
O tratado De Ecclesia inteiramente dedicado à discussão sobre a estrutura da Igreja e a obediência ao papa, aos
cardeais e aos prelados. Não há discussões a respeito do poder imperial. Nem mesmo em suas cartas, Hus
questiona a autoridade do imperador. V. Jan Huss, The Church, 1976.
1221
A segunda baleia que invadiu e rasgou enormemente a rede de fé é o Imperador com seu
governo pagão e serviços com direitos e leis de pagãos. Ele é a raiz do paganismo no o
Cristianismo se transformou. É ele quem abriu a ferida a partir da qual verte o sangue que é
derramado entre todos os cristãos - até mesmo aqui - e todo o sangue que deve sempre ser
derramado. Quando ele entrou na rede da fé com esses males, ele despojou a inocência e a
pureza das pessoas que estavam na rede, de acordo com o estabelecimento apostólico
(ibidem, p. 83).
Chelčický propunha uma vida que se aproximasse à Igreja Primitiva, imagem tão comum à
época quanto tão diferentemente compreendida. Muitas de suas análises de como o cristão
deve viver em relação ao poder secular partem do princípio que os primeiros cristãos
conseguiam viver no meio dos gentios, mas isso mudou com Constantino:
Sua proposta é simples: é possível viver apenas de acordo com a lei de Deus, que é a lei do
amor, que impele cada um a ajudar o próximo e a não precisar de juízes externos para resolver
suas contendas, visto que
aqueles que vivem pelas leis do amor têm uma rica e forte vida espiritual. Em tempos de
iniquidade, tentações e tribulações eles podem se manter firmes, sofrendo injustiça e não
pagando mal com mal. Eles não tem necessidade de juízes e cortes de apelação para ajudá-
los a atravessar os dias difíceis de tensão (ibidem, p. 83).
Considerações finais
1222
Igreja. Os Taboritas não se desapegaram das lutas e das imposições de sua posição pela
guerra. Os verdadeiros cristãos não precisam de leis. Esta era a visão de Chelčický. Visão de
tamanho impacto que um dos membros da União dos Irmãos, mais de 150 anos depois,
quando o mundo volta a estar turbulento às vésperas da Guerra dos Trinta Anos, deixa
escritas estas palavras:
A essência de toda a lei resume-se em amar a Deus sobre tudo o que pode ser nomeado e,
sinceramente, desejar o bem ao próximo como para si mesmo. Percebi a essência das leis
de Deus resumida nestes dois mandamentos altamente louváveis, e eu mesmo vi e provei
que eles são mais valiosos do que todas as inumeráveis leis, regras e decretos do mundo. Na
verdade, são mil vezes mais perfeitas.
Pois àquele que ama a Deus com sinceridade e sem restrições, não é necessário que se lhe
prescreva quando, onde, como e quantas vezes deve servi-lo, adorá-lo e honrá-lo. (...) Da
mesma forma, aquele que ama seu próximo como a si mesmo não precisa de ordens mais
detalhadas de quando, como e em que circunstâncias ele deve servi-lo e em que situação
não deve prejudicá-lo e como pagar as dívidas que tenha. O amor lhe dirá e lhe mostrará
como se comportar com o próximo (COMENIUS, 2010, p. 149-150).
Referências
AGUIAR, Thiago Borges de. Jan Hus: Cartas de um educador e seu legado imortal. São
Paulo: Editora Annablume, 2012a.
ATWOOD, Craig D. The theology of the Czech Brethren from Hus to Comenius. University
Park, PA, EUA: The Pennsylvania State University Press, 2009.
CHELČICKÝ, Petr. Síť Víry. Brno: Česká Knižnice, Nakladatelství Host, 2011.
1223
HUIZINGA, Johan. O outono da idade média. Tradução de Francis Petra Janssen. São Paulo:
Cosacnaify, 2010.
HUSS, John. The Church. Trad. David Schaff. Nova Iorque: Charles Scribner's Sons, 1915.
Reimpressão Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1976.
LANDA, Daniel. Kdož jste boží bojovníci. In: LANDA, Daniel. Best of Daniel Landa 2.
EMI, 2004. CD Faixa 10.
MOLNÁR, Enrico C. S. A study of Peter Chelcický’s life and a translation from czech of part
one of his Net of Faith. 1947. Dissertação (Bachelor of Divinity). Pacific School of Religion,
Berkeley, California. Departamento de História da Igreja, 1947.
SPINKA, Matthew. Peter Chelčický: the spiritual father of the Unitas Fratrum. In: Church
history. Cambridge University Press; American Society of Church History. dez. 1943, vol. 12,
n. 4, pp. 271-291.
TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está em vós. Tradução Ceuna Portocarrero. 2ª edição. São
Paulo: Editora Rosa dos Tempos, 1994.
WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? São Paulo:
Ediçoes 70, 1988.
1224
1225
Eusébio de Cesareia e a nova história, eclesiástica
Daniel Sleder1
Introdução
12 de outubro de 312 d.C., Ponte Mílvia, proximidades de Roma. Acabara de ser travada a
batalha que, para muitos, decidiu o futuro de Roma e do Ocidente tal como o conhecemos.
Constantino, após ter ordenado a seus soldados que utilizassem em seus escudos um estranho
símbolo, vence a batalha contra Maxêncio, entra na Capital do Império e, para surpresa de
muitos, não participa dos sacrifícios. Pouco depois afirma que o símbolo lhe tinha sido
revelado em sonho, na noite antes da batalha: “sob este símbolo vencerás”. Este era a junção
das iniciais do nome de Cristo. O cristianismo passa então de religião perseguida (quando
muito, apenas tolerada) a religião do Imperador, amparada por ele, que até interfere em
questões internas dela. Tudo isso nunca tinha sido visto antes, tampouco poderia ter sido
previsto, por mais que o autor que abordaremos, Eusébio de Cesareia, se esforçasse para
afirmar o contrário. Mas não nos adiantemos. É preciso antes entender o contexto de tais
ações, e outras que as antecederam, desembocando nelas. Assim como o caminho que o
cristianismo percorreu até aí, para podermos entender porque Eusébio quer mostrar a
inevitabilidade de sua vitória, ao intentar construir uma memória e identidade cristã que se
afirma contra o paganismo, usando para isso elementos historiográficos novos e antigos.
Anarquia Militar
O século IV d.C. é tributário do terrível período conhecido como “Anarquia Militar”. E não
há como entender aquele sem passar, pelo menos brevemente, por este. O período vai do
assassinato de Severo Alexandre, em 235, até a conquista do poder por Diocleciano, em 284.
Cheio de golpes e contragolpes, usurpações e proclamações, viu cerca de 20 imperadores,
afora seus corregentes e usurpadores. Algumas vezes três ou quatro ao mesmo tempo, lutando
com seus rivais por apoio e legitimidade. Sendo proclamados pelo Senado, ou, o que não
tinha sido visto antes, pelo exército. Sejam eles acanhados aristocratas romanos ou brilhantes
e ferozes generais ilíricos, apenas dois morreram de morte natural, tendo os outros perecido
1
Graduando em História pela UFMT, bolsista PIBIC CAPES, membro do VIVARIUM. Orientado pelo prof. Dr.
Marcus Cruz. Contato: danielsleder@hotmail.com.
1226
por assassinato ou em batalha. Alguns reinaram por alguns meses, outros apenas por alguns
dias. Muitos intentaram reformas para aumentar a estabilidade do Império e a permanência no
poder.
Nos é difícil conhecer o período, visto que as guerras e saques muito destruíram. Também o
romano contemporâneo sente-se desanimado a escrever relatos à posteridade, está antes
preocupado em sobreviver. Quase todas as fronteiras sofreram ataques, mas duas frentes em
especial foram constantemente castigadas: a germânico-danubiana e a sassânida oriental.Os
imperadores, para fazer frente a tais inimigos e precaverem-se em caso de guerras civis,
reestruturaram e aumentaram periodicamente o efetivo militar (chegando este a dobrar com
Diocleciano). Ora, este fato, além das soluções intentadas para que o exercício do poder
imperial fosse legitimado, acelerou profundas mudanças no Estado e sociedade romanas.
Houve muitas perdas humanas, além da marcha forçosa de muitos camponeses e a perda de
animais e colheitas por saques, incêndios e requisições de funcionários do governo. Tudo isso
resultou na perda de capacidade quantitativa e qualitativa da capacidade produtiva da terra, os
agri deserti se tornaram algo familiar. A essa população já debilitada abateram-se ondas
sucessivas de peste, de procedência oriental, recorrente por vinte anos depois de 251.
Restauração tetrárquica
Diocleciano, por suas origens, era um típico “imperador dos soldados”. Homem pragmático,
buscou soluções práticas à medida que os problemas apareciam, como, por exemplo, a
associação de Maximiano ao trono, em 285, para fazer frente aos levantes bagáudicos da
Gália (violentos levantes de descontentamento camponês) e às pressões germânicas na
fronteira renana. Buscou, juntamente com os pares que foi associando a si, a unidade
territorial do Império e a estabilidade política, conjugando para isso medidas novas: o próprio
sistema tetrárquico, que conjugava a realidade de um império vasto e descentralizado com a
necessidade de um governo forte e unido; e outras aprendidas na anarquia militar: manter o
exército em primeiro plano do poder político e de governo, conceder importância aos técnicos
da burocracia na esfera da administração civil.
1227
Constantino, seriam as bases do Estado tardo-romano. As províncias foram praticamente
duplicadas, os governadores perderam suas atribuições militares e ganharam amplos poderes
civis, formava-se um pessoal específico de governo. Criou as dioceses, que agrupavam um
determinado número de províncias. Seus prefeitos regionais se comunicavam diretamente
com o imperador.
Para custear essa burocracia criada e esse exército aumentado, foi criado um novo sistema de
impostos, que se baseava em uma produtividade média da terra e no número de pessoas que
nela trabalhavam. Surgiu daí uma nova série de grupos sociais hierarquizados de acordo com
a capacidade de relacionar-se com o Estado, de subtrair-se às obrigações ou obter privilégios
dele. De fato, Peter Brown nos faz notar essa mudança, quando diz que nos anos iniciais do
Império
Para um romano, em começos do século IV, a estabilidade do Império não podia se assegurar
se não se conseguisse o favor divino, a pax deorum. Desde seu advento, os tetrarcas se
esforçaram por fazer públicas demonstrações de piedade na religião tradicional do Estado. O
estabelecimento do sistema tetrárquico supôs a constituição oficial de uma teologia imperial,
que situava num primeiro plano Júpiter e Hércules, consideradas como protetoras pessoais de
Diocleciano e Maximiniano. Havia também certa redução do número de divindades, junto às
já citadas se dava uma certa importância a Marte. Mas uma ação de governo encaminhada a
velar pela pontual observância da religião tradicional e dos costumes tinha que incluir um
intento de fazer voltar às ditas tradições aqueles que as haviam abandonado por outras
estranhas. Assim, 297 começa uma violenta repressão ao maniqueísmo. Em 303 começa a
grande perseguição ao Cristianismo (GARCIA MORENO, 2001, p. 351 e 352).
1228
O cristianismo surgiu no primeiro século como seita do judaísmo. Através de suas
apropriações e lutas com ele, para se aproximar de sua memória, mas se diferenciar dele,
muito podemos entender da religião cristã. A primeira perseguição se deu após o martírio de
Estevão, que levou à dispersão dos fiéis que espalhavam as boas novas onde chegavam,
humildes e desconhecidos missionários: comerciantes, funcionários, militares, escravos. Dos
primeiros esforços missionários conhecemos melhor os de Pedro, João e Paulo, sendo os deste
melhor documentados, relatados nos Atos e Epístolas. Tais apóstolos, assim como os demais e
seus auxiliares, fundaram e fortaleceram igrejas por onde passaram. Foram grandes
propulsores da expansão cristã. A segunda perseguição se deu em meados do segundo século,
quando os cristãos não se juntaram ao levante dos judeus contra o Império romano.
Assim a Igreja foi se difundindo durante os séculos II e III pelo mundo romano que, dava
condições para o seu crescimento: certa unidade de costumes e linguagem, que facilitavam a
comunicação e o entendimento, além da ausência de fronteiras. Mas lhe era hostil em vários
momentos, chegando muitas vezes a brutais perseguições. A religião romana tradicional tinha
função cívica e política, era símbolo da unidade do Império e da fidelidade ao imperador. Em
tempos de crise, quando se quer reafirmar e fortalecer as duas coisas, surgiram as
perseguições vindas “de cima”, das autoridades estatais, e as perseguições vindas “de baixo”,
movidas por populações locais (BROX, 1986, p.63), devido à estranheza vista nos cristãos:
suas reuniões eram secretas, ao contrário das públicas romanas, eram exclusivistas, ao
contrário do sincretismo romano. Assim, em tempos de dificuldades, a culpa dos
acontecimentos era imputada àqueles estranhos que não adoram devidamente os deuses. Mas
também tinham características que chamavam a atenção aos romanos: a caridade, a unidade
da comunidade, sua própria mensagem de salvação e de um Deus que se preocupa com todos
os aspectos da vida do fiel, dando novo sentido à sua vida. O Cristianismo, assim como o
Império, mudou ao longo desses três séculos. Adquiriu hierarquia.
1229
esferas regionais, e os conflitos não tardaram a aparecer, pouco depois havia seis augustos e
nenhum césar.
Os acontecimentos dos anos posteriores trabalhariam pela concentração do poder nas mãos de
Licínio e Constantino, e finalmente apenas nesse último, que se destacou por decisões que o
revelaram como grande estadista, dominador da diplomacia e propaganda. Tomou a iniciativa
no ataque a Maxêncio, vencendo-o sucessivamente até a Batalha da ponte Mílvia. Seguindo
uma orientação dada por sonho, ordena ao exército que marche com um símbolo cristão nos
escudos. Essa vitória, assim como outras posteriores, foi vista por Constantino e por muitos
de seus contemporâneos como favor especial do Deus cristão (GARCIA MORENO, 2001, p.
366 e 367).
Ao entrar em Roma, agiu com prudência. Revogou os editos de Maxêncio, sem prejudicar
aqueles que tinham colaborado com ele de forma normal, formando assim uma aliança com a
aristocracia senatorial romana, o que seria uma das constantes de sua política. Suas medidas
“pró-cristãs” não levantaram contra ele oposição, pois soube realizar uma distinção entre sua
religião pessoal e a do Estado, respeitando o fundamental das manifestações públicas pagãs.
Nos lugares de encontro comuns (moedas, panegíricos, inscrições e estátuas) utilizava uma
linguagem ambígua que reforçava os elementos ideológicos comuns: crença numa divindade
suprema e universal, protetora indiscutível do imperador. Este mesmo tom ambíguo se
percebe no chamado “edito de Milão”: entendida a liberdade religiosa do edito de Galério,
com restituição de bens aos cristãos, mas, prudentemente, ressarcimento dos atuais donos
(GARCIA MORENO, 2001, p. 368 e 369).
Pouco depois, Licínio derrota Maximino Daya. Restava a confrontação entre os dois
imperadores. Apesar dos maiores exércitos de Licínio, Constantino foi sucessivamente
vitorioso. Este era mais bem visto pela cristandade oriental, devido ao seu aberto apoio ao
cristianismo. O medo da traição tornou Licínio perseguidor, e Constantino foi visto como
libertador da oprimida igreja oriental.
1230
A construção do absolutismo imperial, trabalhosamente realizada ao longo dos séculos
anteriores, encontrava a culminação ao apoiar-se ideologicamente sobre uma concepção
religiosa claramente monoteísta. O princípio dinástico hereditário era claro, eliminando
qualquer possibilidade de ressuscitar o ideal eletivo (GARCIA MORENO, 2001, p. 374 e
375).
A grande mudança na administração territorial foi a mudança dos prefeitos centrais aos
regionais, com um âmbito de territorial e de funções civis bem específicas. Consolidou
definitivamente a organização diocesana, não introduziu grandes mudanças na administração
territorial.
Criou títulos e dignidades que refletiam a relação direta de fidelidade pessoal dos funcionários
com o imperador, ao mesmo tempo em que os englobava numa hierarquia rígida, regulada por
normas de protocolo cada vez mais estritas (GARCIA MORENO, 2001, p. 377).
Adotou políticas favoráveis à sua nova religião: fim à perseguição, devolução dos bens
confiscados, e começou a privilegiar os clérigos cristãos com as obrigações fiscais (GARCIA
MORENO, 2001, p. 381). Disponibilizou recursos para a construção de igrejas, mas vale
lembrar que essa era uma prática comum entre os imperadores: a de disponibilizar recursos
para a construção de templos e a manutenção de seu culto. Afinal, como já foi dito, assegurar
o favor divino era essencial. A diferença é que Constantino adotou o cristianismo, de maneira
um tanto voluntarista, se pode dizer, sem conhecer a fundo sua teologia ou seus conflitos
internos.
1231
Sua visão da função do culto era bem romana: fator de unificação dos súditos, e modo de
garantir o favor divino. Logo, assim que há um cisma, intervém. Convoca e preside o
Concílio de Nicéia, pressiona por uma solução conciliadora. Isso era algo novo para a Igreja.
Pouco depois chega a perseguir os cismáticos.
Há que se lembrar que o cristianismo, ao contrário do que afirmava a elite pagã, nesses
tempos não era apenas a religião de pobres e desfavorecidos. Vinha ganhando simpatia. Ainda
mais com a adesão do imperador e elevação da dignidade dos bispos. A nova aristocracia de
serviço era muito diferente da antiga aristocracia senatorial romana, que era firmemente
entrincheirada, orgulhosa de sua educação clássica e resistente à inovação religiosa. Era
heterogênea, e dependia dos favores imperiais para sua ascensão social, oque a tornava
propensa a acatar os desejos do imperador e imitar seu comportamento (MOMIGLIANO,
1989, p. 50 e 51).
Eusébio de Cesareia
Conhecido como o “pai da história eclesiástica”, nasceu entre 260 e 265, provavelmente
Cesareia, na Palestina. Estudou com Doroteu, sacerdote de Antioquia, e depois com Pânfilo,
ardoroso seguidor de Orígenes. Tornou-se sacerdote e foi sagrado bispo em 311. Era
partidário do arianismo e contra os que defendiam a consubstancialidade do Verbo com o Pai.
Tendo o imperador Constantino, que dirigia o concílio de Nicéia, se declarado contra Ário,
Eusébio se resigna então a assinar o símbolo de fé contendo o “consubstancial ao Pai”, para
não desagradar o imperador. Escreve o Vita Constantini a pedido deste, obra que é mais um
panegírico do que uma biografia (FRANGIOTTI, 2000, p. 7-9).
“Era verdadeiramente erudito. Infatigável, leu tudo quanto havia na literatura profana
quanto na sagrada (...). Devotíssimo do imperador, desenvolve a ideia de império cristão.
Torna-se bispo apoiado pelo Estado. (...) suas pesquisas trouxeram luzes sobre a Igreja dos
1232
primeiros séculos, sem as quais bem pouco saberíamos daqueles primeiros tempos do
cristianismo” (FRANGIOTTI, 2000, p. 9).
Não foi grande teólogo ou exegeta. Sua obra capital é a História Eclesiástica, que compreende
dez livros e foi escrita entre os anos 312 e 317. Se propõe nela a escrever uma história da
nação cristã e suas principais batalhas: perseguições e heresias, além do fundamento de sua
autoridade: a sucessão apostólica e a ortodoxia. Se fundamentava na autoridade, e não no livre
juízo de que se orgulhavam os autores pagãos. Seu novo tipo de exposição histórica dava
importância a um passado remoto, ao amplo uso de documentos e à posição central que
ocupavam as controvérsias doutrinais (MOMIGLIANO, 2001, p. 105 a 107).
Sua obra é rica naquilo que podemos chamar de questões não resolvidas, em tensões. O cânon
bíblico ainda não estava fechado, e ele opina sobre os livros que acha ortodoxos (HE, III, 3).
Percebe-se o esforço para fundamentar a autoridade do bispo, principalmente na sucessão
apostólica. Também a busca para aproximar-se da memória dos judeus, até apropriar-se de
sua história, mas afastar-se cuidadosamente deles.
Esforça-se por fundamentar suas opiniões na tradição, no testemunho dos antigos, pois é disso
que os sucessores dos apóstolos são guardiões. A igreja católica é aquela que teria sempre a
mesma identidade, e as heresias eram as que apresentavam inovações (HE, IV, 7).
A historiografia clássica pagã não agradava aos cristãos, que estavam mais interessados nas
vidas dos santos. E Eusébio sabia que estava escrevendo um novo tipo de história. Para ele, os
cristãos eram uma nação, logo, sua história era uma história nacional, e diferente da comum.
Era a história da luta contra o diabo, que a queria manchar com heresias e destruir com
perseguições (MOMIGLIANO, 1963, p. 106).
Uma história antiga, cheia de personagens ilustres, cultos e piedosos, das ações divinas em
favor destes. Uma história edificante, cheia de relatos de santos mártires, e das ações divinas
contra aqueles que se levantam contra a verdade. A vitória daqueles que se colocam a favor
dela é inevitável, pois não se pode resistir à ação de Deus, oque se percebe no fim daqueles
que tentaram (HE, VIII, 16). “O intento apologético da obra é evidente. A vitória do
cristianismo sobre as potências adversas é a prova tangível de sua origem divina e de sua
legitimidade” (FRANGIOTTI, 2000, p. 25).
1233
Considerações finais
Eusébio, naquela que é considerada a sua maior obra, a História Eclesiástica, inova em vários
sentidos. Ora, viveu num período de transformações, logo após um longo e doloroso período
de crise. Era o reparatio saeculi, onde se buscava voltar às tradições, mas, ao mesmo tempo
(mesmo às vezes sem perceber) inovar. Recebe com enorme empolgação a virada na situação
dos cristãos. Muitas questões ainda não estavam resolvidas, e apresenta respostas a elas.
Lembrando que este artigo é resultado de uma pesquisa em andamento, ainda inconclusa.
Referências
1234
1235
O Conceito de Jihad clássico à luz do Corão e dos hadith
Michele Rosado de Lima Castro1
Introdução
Maomé, profeta do Islã, morreu no ano 632. Nesse momento, aquele recente corpo de crenças
revelado por Allah que há pouco mais de dez anos havia se constituído como religião, já havia
obtido muitas conquistas. Desde a hégira, migração dos crentes de Meca para Medina, em
622, os seguidores das revelações de Maomé já chamavam a si mesmos de muslims
(submissos) e chamavam a sua comunidade de ummah. Em vida, Maomé iniciou a unificação
da Península Arábica sob os mandamentos da religião do Deus único e em seu último sermão
direcionado àquela comunidade reforçou a necessidade de que todos se mantivessem unidos e
seguissem as palavras divinas por ele transmitidas: “Lembrai-vos que um dia vós estareis
diante de Allah e respondereis por seus atos. Então vos atenteis, não vos distancieis do
caminho da retidão quando eu houver partido”. Mas como saberiam os crentes qual seria o
“caminho da retidão”? Como manter o Estado criado pelo profeta de Deus no caminho
correto, já que os ensinamentos proferidos pelo profeta através das revelações poderiam se
perder ao longo do tempo? Para evitar tal perda, os primeiros califas, sucessores do profeta,
precisaram criar um norvo corpo de normas que tivesse como base os ensinamentos
proferidos por Maomé. A primeira atitude tomada nesse sentido foi compilar as recitações de
Maomé de forma sistemática e oficial, o que somente ocorreu durante o califado de Uthmam
(644-656) dando origem ao Corão tal como conhecemos hoje.
Como sabemos, as mensagens descritas no Corão tratam da forma como os crentes deveriam
agir: “quando entrardes nas casas, saudai-vos mutuamente em nome de Deus e que vossas
saudações sejam bonitas e amáveis” (24:60); como deveriam tratar as mulheres: “E dize às
crentes que baixem o olhar e preservem o pudor e não exibam de seus adornos além do que
aparece necessariamente. E que abaixem seu véu sobre o seio e não exibam seus adornos
senão a seus maridos ou pais ou sogros.”(24:30); entre tantas outras normas sociais. Além do
Corão, outra compilação se tornou importante para os crentes, a compilação dos atos e falas
de Maomé: os hadıth. Também estes dizem muito sobre a forma como o crente deveria se
comportar; já que se parte do pressuposto que o profeta, como escolhido de Deus para
1
Graduanda em História pela UFOP, vinculada ao Núcleo de Estudos de História da Religião sob orientação do
Prof. Dr. Celso Taveira. Contato: michelerosado1@hotmail.com.
1236
transmitir Suas mensagens, não agiria de forma pecaminosa, e, por extensão, seus atos
poderiam ser emulados pelos crentes quando houvesse dúvida na leitura do livro sagrado. O
Corão e os hadıth são a fonte do direito islâmico (fiqh) e foram tomados como fundamentos
para aquele novo Estado que pretendia se fortalecer e se expandir sem se desviar do caminho
da retidão. Portanto, para compreender o conceito de Jihad faz-se necessário um atento estudo
destes escritos.
O conceito de Jihad é comumente traduzido como “guerra santa” muçulmana. Esta tradução
não é razoável, já que se trata de um conceito muito mais complexo e remete a outros tantos
esforços que não somente o de guerra armada, como a tradução sugere. Ademais, é comum
que o termo apareça associado à justificativa do terrorismo e, por conseguinte, associado a
atos de violência conta outros povos. Assim, além de ser uma tradução que resulta de uma
análise bastante superficial, ainda é uma explicação que carrega grande peso político e diz
muito mais sobre os desentendimentos entre Ocidente e Oriente, ao longo do tempo, do que
propriamente soluciona a dúvida do que vem a ser o Jihad. Dessa forma, o objetivo desse
trabalho é fazer uma análise tanto do Corão quanto de uma compilação dos hadith a fim de
tentar compreender e caracterizar o conceito de Jihad.
Para a análise do Corão utilizamos a tradução do árabe para o português de Mansur Challita,
comparando, sempre que necessário, com a tradução feita do árabe para o inglês de Hâce
Ahmet Dindin. Para a análise dos hadith será utilizada uma das compilações mais respeitadas
pelos sunitas2, a de Husayn Muslim al-Hajjaj, terminada no final do século IX e traduzita para
o inglês por Nasiruddin al-Khattab. Após breve descrição destes dois escritos, trataremos, em
linhas gerais, sobre a jurisprudência islâmica, passando, finalmente, para a análise dos
documentos com os quais trabalhamos.
A palavra qur’an, em árabe, significa recitação (HALEEM, 2001, p. 2) e, por si só, nos diz
muito sobre a história do livro sagrado do Islã, que, para ser melhor compreendida, deve ser
buscada ainda nos primeiros momentos das profecias de Maomé. Considera-se o ano de 610
2
O fato de utilizarmos uma compilação sunita não significa excluir a importância de outros partidos dentro da
religião. Esta escolha foi feita considerando o fato de que não seria possível, aqui, fazermos uma análise das
crenças e das diferenças de crenças entre eles e, também, o fato de a grande maioria da população muçulmana
tem predileção sunita.
1237
como o ano da realização da primeira profecia, mas somente no ano de 613 elas vieram a
público por meio das pregações das mensagens de Allah ao povo de Meca (WATT, 1956, p.
27). A primeira revelação foi recebida enquanto estava sozinho em uma caverna, mas, após o
início das pregações, os crentes puderam testemunhar o exato momento de contato com além,
presenciando muitas das profeciais enviadas por Deus. A princípio essas mensagens não
foram registradas de maneira sistemática: como a comunidade árabe pre-islâmica era uma
comunidade de tradiçõs orais, somente algumas partes das pregações eram anotadas por
aqueles que a ouviam, a maioria delas eram registradas somente na memória. Após a morte de
Maomé, os crentes se viram sem a orientação dada pelo profeta e percebem a necessidade de
fazer uma compilação oficial das revelações para que elas não fossem se perdendo à medida
que aqueles que tiveram contato direto com o profeta também morressem. Este esforço é
iniciado tanto por Abu Bakr (632 - 634) quanto por Omar (634 - 644), os dois primeiros
sucessores de Maomé, mas somente no Califado de Uthman (644-656) é que surgiu o texto
oficial que compõe o Corão tal como o conhecemos hoje.
O Corão é composto por 114 capítulos chamados suras e cada sura é formada por versículos,
ou ayat, num total de 6.235. Como já dito anteriormente, o Corão trata de diversos temas, o
que é demonstrado por Muhammad Abdel Haleen em seu livro Understanding the qur’an, em
que diz que temas relativos à crença ocupam a maior parte do livro, seguido por temas
relativos à moral. Logo após estão os rituais e, finalmente, as disposições jurídicas
(HALEEM, 2001, p. 15). Os crentes acreditam que o Corão seja a palavra de Deus transcrita
para um livro, sendo assim o autor é propriamente Deus e é Dele o lugar de fala em todo o
livro. Na apresentação da tradução do Corão para o português, Mansur Challita diz que o livro
é, normalmente, escrito em primeira pessoa, tanto do singular quanto do plural, e pode se
dirigir tanto a Maomé – usando a segunda pessoa do singular – quanto aos crentes no geral –
usando a segunda pessoa do plural. Quando utiliza a terceira pessoa está se referindo aos não
muçulmanos (2011, p. 21).
Após a morte de Maomé teve início um grande esforço dos estudiosos do Corão para
interpretá-lo, mas algumas regras sociais não estavam ali descritas ou estavam de forma a
causar dúvidas. Partindo da hipótese de que o profeta era um homem guiado diretamente por
Deus e, dessa forma, não erraria, e que nenhum crente viria a mentir sobre algo que a
comunidade, e principalmente ele próprio, tomava como sagrado, a ummah se voltou para a
história do profeta para solucionar essas possíveis lacunas ou ambiguidades. Além disso,
considera-se que esta seja uma forma totalmente legitimizada pelo Corão de se esclarecer as
1238
dúvidas que possivelmente surgiriam já que o próprio Corão é bastante enfático sobre a
importância de se seguir as mensagens proferidas por Meomé e tomá-lo como exemplo, o que
fica claro na seguinte passagem: “O mensageiro de Deus é um belo exemplo para os que
confiam em Deus e no último dia e recordam Deus com frequência” (33:21). Os atos e falas
de Maomé foram complilados por crentes que estiveram na companhia do profeta quando as
bases da religião ainda estavam sendo formadas. Essas compilações foram chamadas de
hadith. As mais famosas e reconhecidas compilações são as de Muhhamad Ibn Ismail al-
Bukhari (870) e a de Abu- l-Husayn Muslim ibn al-Hajjaj (875) (GLASSÉ, 1989, p. 141), elas
compõem uma coleção de seis livros considerada pelos sunitas como os de maior autoridade.
Entre estas, utilizaremos neste trabalho a segunda citada, a obra de Husayn Muslim al-Hajjaj,
na edição de Nasiruddin al-Khattab publicada em 2007.
Estas duas obras, o Corão e os hadith, passaram, a partir do momento de sua compilação, a
constituir o corpo de normas da comunidade muçulmana. Mas ainda era necessário um outro
esforço, o de interpretação. Para tal, aplicou-se um saber do Islã clássico chamado fiqh. Este
termo é normalmente traduzido como jurisprudência islâmica e se refere à ciência que lida
com a observância dos rituais e dos cinco pilares da religião (GLASSÉ, 1989, p. 126). Deste
esforço de interpretação surgiu a sharia, termo que se refere à lei islâmica, o material legal
que deve ser seguido pelo muçulmano e consultado em caso de julgamentos. É importante
destacar a existência de diversas escolas jurídicas islâmicas, entre sunitas, xiitas e caridjitas.
Assim, estas divisões possuem formas diferentes de interpretação do Corão e, por
consequência, diferentes shariah. Assim como as outras religiões do livro, o Islã não
diferencia religião da vida cotidiana e, por isso, a lei muçulmana não trata somente de rituais
religiosos ou questões teológicas, são competência do fiqh questões como a alimentação, o
matrimônio, a herança, o comércio e também a guerra (PARADELA, 2001, p. 3). É por esse
motivo que voltaremos nossa atenção aos escritos do Corão e da tradição, já que é ali que se
encontra a base fundamental das leis que são seguidas pelos muçulmanos, lei tal que também
trata da legitimação e da necessidade do Jihad.
1239
No Corão há diversas suras que tratam ora de paz ora da necessidade de guerra. Pode-se
encontrar versos passíveis de serem interpretados como sucitadores da guerra sem restrições,
como por exemplo: “ E combatei até que não haja mais idolatria e que a relegião pertença
excluzivamente a Deus. Se desistirem, Deus observa o que fazem.” (8:39). Outras falam
especificamente da legitimação da guerra contra o inimigo que primeiro atacar os crentes: “E
combatei, pela causa de Deus, os que vos combatem. Mas não sejais o primeiro a agredir.
Deus não ama os agressores” (2:190). Já em outras passagens é clara a necessidade de manter
a paz, mesmo com os infiéis: “Se eles se inclinarem para a paz, inclina-te para ela também e
confia em Deus. Ele ouve tudo e sabe tudo” (8:61); ou se manter afastados deles: “Proclama,
pois, o que te for mandado, e afasta-te dos idólatras. Bastamos Nós para te proteger contra os
zombateiros” (15:94-95).
Assim, tanto entre os estudiosos muçulmanos quanto entre os não muçulmanos, é possível
encontrar interpretações que divergem bastante entre si sobre o que é Jihad e quando ele pode
ser colocado em prática. Para Richard Bonney, o ponto central que traz tantos
desentendimentos é a questão da ab-rogação (naskh), onde algumas passagens do Corão
foram invalidadas por outras posteriores. Essa questão é um importante ponto de debate entre
estudiosos da lei Islâmica, motivo pelo qual várias escolas interpretam os textos sagrados de
formas diferentes (BONNEY, 2004, p. 22). Um verso do Corão trata especificamente sobre
este assunto: “Os versículos que ab-rogamos ou desprezamos nesse Livro, Nós os
substituímos por outros, iguais ou melhores. Não sabeis que Deus tem poder sobre tudo?”
(2:106). Este é um verso que possibilita a interpretação citada por Bonney em seu livro Jihad:
from Qur’an to Bin Laden, de que a “ab-rogação é um fenômeno inteiramente interno:
nenhum hadith, em outras palavras, pode ab-rogar algum verso do Corão” (BONNEY, 2004,
p. 24). Contudo, como se pode perceber na passagem citada acima, o fenômeno de ab-rogação
de uma passagem por outra do próprio Corão revelada posteriormente é geralmente aceita.
Dessa forma, faz-se necessário consultar a ordem de revelação das suras – lembrando que no
Corão elas não são organizadas cronologicamente. As últimas duas suras, em ordem de
revelação, foram, respectivamente, a 9ª (O arrependimento) e 5ª (A mesa servida). A 9ª é
especialmente importante para nossa análise porque ela contém a chamada ayah da espada,
verso tal que acredita-se ter ab-rogado mais de cem outras ayahs do Corão (BONNEY, 2004,
p. 22) e é bastante utilizada por grupos radicalistas para legitimar guerras. Trataremos desta
importante passagem mais a frente.
1240
Segundo Richard Bonney, há no Corão 35 ocorrências da palavra Jihad ou equivalentes
(BONNEY, 2004, p. 22). Dada a impossibilidade de analisar tal fonte em língua original, não
pretendemos, neste trabalho, localizar e estudar cada uma delas, mas, sim, procurar, nas
traduções para o inglês e para o português, as passagens que podem nos dizer algo sobre a
necessidade de guerra e quando ela pode ser considerada uma guerra em nome de Deus.
Alguns versos são enfáticos quanto ao fato da guerra em nome de Deus somente ser
justificada quando for em defesa da religião. Além da passagem citada acima, pode-se dar
como exemplo os seguintes versos: “Se, portanto, não se conservarem [os infiéis] afastados de
vós e não vos oferecerem a paz e não retiverem as mãos, capturai-os e matai-os onde quer que
os encontreis, porque sobre eles vos concedemos poder absoluto” (4:91) e “Quanto a vós,
descrentes, se era uma vitória que procuráveis sois bem servidos! Se desistirdes de combater,
será melhor para vós. Mas se voltardes, voltaremos! Vosso exército, por mais numeroso que
seja, de nada valerá. Deus está com os crentes” (8:19). Entretanto, outras passagens não são
tão claras quanto essa necessidade, mas é possível percebê-la se colocarmos a passagem em
questão dentro de seu contexto, é o que acontece, por exemplo, com “A guerra foi-vos
prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos prejudicando! Deus sabe
e vós não sabeis” (2:216). Se tomada separadamente é perfeitamente perceptível que a guerra
é incentivada sem restrições, mas se a olhamos dentro de um contexto maior, temos o
seguinte:
A guerra foi-vos prescrita e vós a detestais. Mas quantas coisas amais que acabam vos
prejudicando! Deus sabe e vós não sabeis Interrogarte-ão acerca do mês sagrado: haverá
combates nele ou não? Responde: “Guerrear nesse mês é uma enorme transgressão e um
afastamento da senda de Deus e um desrespeito a Ele e à Mesquita Sagrada . Mas expulsar
dos lugares santos seus habitantes é um erro maior ainda, pois o erro é pior que a
matança.” Ora, não pararão de vos combater até que vos levem, se puderem, a renegar
vossa religião. E quem de vós renegar sua religião e morrer na descrença terá perdido esse
mundo e o outro. (2:216-217)3
Esta é a primeira sura inteiramente revelada após a migração de Maomé para Medina, 622. As
ayahs 1 a 175, especificamente, foram reveladas nos dois primeiros anos desse período
(ASSAD, 1980, p. 15). Pensando no contexto histórico dessa revelação, é possível perceber
que quando se diz que os inimigos não pararão de combater até que os muçulmanos reneguem
sua religião, o Corão pode estar se referindo à conjuntura que motivou a evasão dos crentes de
Meca, onde não podiam colocar sua religião em prática pela oposição dos coraixitas. Assim,
3
Grifo nosso.
1241
colocando os versos em seu respectivo contexto, tanto o do livro quanto o histórico,
percebemos que há também um sentido de defesa na guerra proposta.
O mesmo ocorre com a ayah da espada citada acima, vejamos sua transcrição: “Mas quando
os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os encontrais e
capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e recitarem a
oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso” (9:5). Mais
uma vez, ao analisar o verso isoladamente, percebe-se um sentido de comando de guerra sem
restrições, mas vejamos a passagem juntamente com outras ayahs que complementam sua
ideia:
Mas quando os meses sagrados tiverem transcorrido, matai os idólatras onde quer que os
encontrais e capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles. Se se arrependerem e
recitarem a oração e pagarem o tributo então libertai-os. Deus é perdoador e misericordioso.
Se um idólatra procurar sua proteção, protege-o até que ouça apalavra de Deus. Então leva-
o a seu lugar de segurança . Pois esses idólatras são ignorantes.Como teriam os idólatras
uma aliança com Deus e Seu mensageiro, salvo aqueles com quem pactuastes junto à
Mesquita Sagrada? Enquanto forem leais para convosco, sede leais para com eles. Deus
ama os homens de bem. Como teriam um pacto com Deus e Seu mensageiro quando vos
derrotam e não respeitam nem sua palavra nem vossa honra? Procuram agradar-vos com
palavras enquanto seus orações se conservam fechados. A maioria deles é depravada.
Venderam a vil preço as revelações de Deus e desviam outros de Seu caminho. Condenável
é o que fazem! Não respeitam no crente nem parentesco nem aliança. São todos agressores.
Se, contudo, se arrependerem e observarem a oração e pagarem o tributo , então serão
vossos irmão na religião. Esclarecemos as revelaçoes para os que compreendem. Mas se
violarem seus juramentos e insultarem vossa religião , combatei então os cabeças da
descrença – eles não tem respeito por sua palavra- afim de levá-los a desistir. Deixareis de
combater um povo que violou seus juramentos e tentou expulsar o Mensageiro e tomou a
iniciativa de vos agredir? Será que os temeis? Deus é mais digno de ser temido. (9: 5-13) 4
Mais uma vez, vemos aqui, quando o contexto é colocado em destaque e não somente o verso,
outra alusão à guerra no sentido de defesa da comunidade religiosa. Assim, se voltamos à
teoria da ab-rogação, percebemos que mesmo que este veso tenha ab-rogado tantas outras
ayahs, ainda permanece o sentido de que a guerra só pode ser considerada uma guerra em
nome de Deus quando for no sentido de defesa. Mohhamad Assad enfatiza em diversos
momentos, em seu livro The message of the qur’an, que cada verso do Corão deve ser lido e
interpretado considerando o contexto do livro como um todo. Ele sugere também que esta
4
Grifo nosso.
1242
passagem seja lida juntamente com os dois versículos anteriores e com outros de outras suras,
como por exemplo a ayah 2:190 já citada. Além disso, ele explica que este versículo se refere
mais especificamente a uma guerra já em progresso contra povos que se tornaram culpados
pela violação de um tratado de não agressão com os crentes (ASSAD, 1980, p. 380).
Na compilação dos hadith de Husayn Muslim al-Hajjaj, há, no quinto volume, um livro
intitulado O livro do Jihad e das expedições, em que ele relata, entre outras coisas, momentos
da vida do profeta onde ele explicou como os chefes de guerra deveriam se comportar frente
aos inimigos (Muslim, 32, 2, 4522-4) ou quem poderia, ou não, ser morto durante a guerra
(Muslim, 32, 8, 4547-8). Até o momento não encontramos, nessa compilação, nenhuma
menção direta às formas de legitimação da guerra santa, no entanto, consta a descrição de
como o profeta se comportou em diversas batalhas e expedições. Dessa forma, faremos uma
análise desses momentos da vida do profeta para compreender se estas guerras empreendidas
eram realmente guerras de defesa da fé e da comunidade muçulmana como interpretamos no
Corão.
Para compreender as batalhas citadas no livro, devemos voltar ao contexto da migração dos
muslim de Meca para Medina em 622. No período de início das revelações de Maomé, em
Meca, a Península Arábica era uma encruzilhada de rotas comerciais e Meca era sua principal
cidade, onde era profundo o abismo entre pobres e ricos. As revelações de Maomé vêm se
contrapor a tudo isso, trazendo mensagens de generosidade e de auxilio material aos pobres.
Os coraixitas, tribo dominante em Meca, rejeitaram terminantemente estas mensagens, já que
este era um ponto de grande contraste entre as pregações do profeta e a realidade da vida dos
árabes e, por isso, a partir daí Maomé começa a sofrer grande oposição dos coraixitas. Maomé
teve proteção do clã Banu Hashim, do qual era mebro, até a morte de seu tio, Abu Talib, líder
dos hachemitas, em 619. Seu sucessor na liderança do clã foi Abu Lahab, adversário
declarado de Maomé. Até esse mesmo ano, ele já havia conquistado um grupo de seguidores,
que, se ainda não constituiam uma religião organizada, já se autodenominavam mumin (fiel)
ou muslim (submisso) (MANTRAN, 1877, p. 63). Com a perda de apoio de seu clã, a
pregação e a nova vida dos crentes – guiada pelas revelações do profeta – se tornavam cada
vez mais impraticáveis em Meca e, por isso, em 622, Maomé, juntamente com seus
seguidores, se retirou de Meca e buscou refúgio na cidade de Medina, mais ao norte. Os
muçulmanos migraram de Meca para Medina em setembro de 622, evento que marca o início
do calendário árabe, sendo chamado de hidjra (emigração), ou Hégira.
1243
A partir desse momento, os coraixitas se tornam inimigos diretos de Maomé e dos
muçulmanos, não só por permanecerem politeístas, mas, principalmente, por haverem
impossibilitado a prática de sua religião. A oposição dos coraixitas foi tomada como uma
ofença à comunidade. Assim, desde a Hégira era comum que os muçulmanos praticassem
ataques contra caravanas de comércio dos Coraixitas. Em 624, um destes ataques, que ocorreu
na cidade de Badr, próximo a Medina, obteve grande sucesso, culminando na morte de cerca
de 50 homens de Meca, entre eles diversos líderes militares, e outros tantos foram tomados
como prisioneiros (WATT, 1956, p. 12). Esta batalha é conhecida como Batalha de Badr e,
cronologicamente falando, é a primeira batalha citada no Livro do Jihad e expedições de
Muslim (Muslim, 32, 30, 4621). Apesar do sucesso nesta batalha, não houve nenhuma
mudança imediata na situação política dos muçulmanos: eles sabiam que essa batalha não
significava que eles haviam recuperado o direto de retornar a Meca ou que Medina passaria a
superar o poder de Meca na região. No entanto, a batalha deixou claro aos coraixitas que
Maomé os desafiava para um confronto de forças (WATT, 1956, p. 14).
No ano seguinte Abu Sufyan, um dos líderes militares dos coraixitas que sobreviveram ao
ataque em Badr, reuniu cerca de 3000 homens para atacar Medina como forma de se vingar
dos muçulmanos e recuperar seu prestígio em Meca. A tropa de Sufyan acampou ao norte de
Medina em frente ao Monte de Uhud, onde os muçulmanos foram encontrá-los para evitar
uma batalha dentro da cidade. Segundo as descrições de W. M. Watt, em seu livro Maomé em
Medina, os muçulmanos estavam prestes a conquistar a segunda vitória contra os coraixitas,
quando os arqueiros sairam da posição inicialmente estipulada por Maomé para saquear o
acampamento dos coraixitas, possibilitando, assim, um ataque surpresa da cavalaria de
Mecca. Os muçulmanos tiveram que se refugiar nas encostas do Monte Uhud e os coraixitas
retornaram vitoriosos para Meca (WATT, 1956, p. 21-24).
Uma terceira batalha que é citada nos hadith de Muslim e que também se deu em função
daquele primeiro momento de oposição dos coraixitas de Meca foi a batalha das trincheiras,
também conhecida como batalha dos confederados (Muslim, 32, 36, 4640), que ocorreu no
ano de 627. Os coraixitas e outras tribos, entre elas os judeus da tribo de Nadir, formando os
confederados, reuniram cerca de 10.000 homens para lutar contra os muçulmanos. Contra esse
grande contingente, os muçulmanos contavam com somente cerca de 3.000 homens, que era
quase toda a população de Medina, excetuando-se os judeus da tribo Qurayzah que não
participaram da luta. Tendo um número muito inferior de homens, Maomé utilizou uma tática
até então desconhecida na Península Arábica. Em qualquer lugar onde Medina poderia ser
1244
atacada em solo Maomé contruiu trincheiras, impossibilitando a entrada dos confederados na
cidade. Depois de cerca de quinze dias de tentativas mal sucedidas de adentrar e saquear a
cidade, os confederados retornaram a Meca porque seu estoque de comida para os cavalos e
para a própria tropa já havia acabado. Apesar das perdas terem sido mínimas, os coraixitas
retornaram a Meca com a moral gravemente afetada, o que trouxe implicações para o
comércio, já que, com o fortalecimento de Maomé e da comunidade muçulmana, a
possibilidade de haver novos ataques como o de Badr era grande (WATT, 1956, p. 35-39).
As duas tribos de judeus envolvidas na guerra das trincheiras – a tribo Nadir, que se aliou aos
coraixitas, e a tribo Qurayzah, que não participou da guerra, mas iniciou um processo de
negociações com os inimigos dos muçulmanos – passaram a ser alvo da fúria de Maomé
depois desse episódio. Segundo Watt, Maomé tinha, com a tribo Qurayzah, um tratado de não
agressão e de não auxílio dos inimigos contra os muçulmanos (WATT, 1956, p. 38), mas,
durante a batalha das trincheiras, os judeus confederados foram até os Qurayzah procurar por
aliança. Apesar das negociações não terem terminado em um acordo de auxílio por parte dos
Qurayzah, Maomé tomou como quebra do tratado o fato de haverem entrado em negociações
com o inimigo e, imediatamente após a retirada das tropas dos coraixitas, marchou contra os
Qurayzah e exterminou de 700 a 800 homens da tribo (ARMSTRONG, 2001, p. 21). Com os
Nadir, Maomé veio a se encontrar no ano de 629 na batalha de Khaybar (Muslim, 32, 43,
4665-9), quando os judeus foram obrigados a se render e pagar um tributo sobre tudo que ali
fosse produzido (WATT, 1956, p. 240).
1245
exercíto de cerca de 20000 homens. Ao serem informados do ataque, os líderes de Meca que
ainda não haviam se convertido ao Islã preferiram se aliar a Maomé contra as tribos beduínas
do que cair nas mãos de seus inimigos tradicionais. Dessa forma, coraixitas e muçulmanos
uniram forças e, em janeiro de 630, sairam para um ataque a essas tribos em Hunayn, dando
origem ao nome Batalha de Hunayn (WATT, 1956, p. 73). A batalha terminou com o
extermínio dos homens e o apresamento das mulheres e crianças – o Corão é claro quanto a
não matá-las em guerra – além dos animais.
Considerações finais
Há uma grande discussão entre os estudiosos sobre quando a guerra em nome de Deus pode
ser considerada legítima. Mohammad Assad (1900 - 1992), cujos principais trabalhos que
tratam sobre o tema são The road to mecca, publicado em 1954, onde ele dedica um capítulo
inteiro sobre o Jihad, e The message of the qur'an, publicado em 1980, onde ele faz uma
cuidadosa análise de cada verso do Corão; acredita que a guerra em nome de Deus somente
pode ser aplicada em um contexto de defesa da comunidade muçulmana. Richard Bonney
também cita outros, como, por exemplo, Shaykh Muammad al-Ghazali (1917 - 1996) que
ainda acrescenta que “mesmo uma guerra defensiva somente é legitimada quando ocorre pelas
causas de Deus e não por glória pessoal em busca de vantagens especiais” (BONNEY, 2004,
p. 30). Por outro lado, Bonney também cita Faruq Sherif, que acredita que “o mundo
muçulmano está sempre em posição de potencial hostilidade contra o mundo não
muçulmano” pelo fato da guerra contra os infiéis ser um dos pilares básicos da religião
(BONNEY, 2004, p. 31).
A partir de nossa análise do Corão, entendemos que Jihad, a guerra em nome de Deus, só
pode ser justificada quando colocada em prática tendo em vista a defesa da comunidade
religiosa. Quando voltamos nossa análise para os hadith de Muslim nos deparamos com a
descrição de várias batalhas travadas pelo próprio Maomé, que são tomadas pela comunidade
muçulmana como exemplo. Analisando o contexto histórico dessas batalhas percebemos que
o sentido de defesa da religião e da comunidade é reforçado. As mais importantes expedições
citadas são aquelas empreendidas contra os coraixitas de Meca, que, no primeiro momento
das revelações se opuseram veementemente às mensagens que aquela comunidade pregava,
culminando na fuga dos crentes da cidade. Outras batalhas, como as de Hunayn e a de
1246
Khaybar também foram empreendidas quando houve algum primeiro ataque, ou perigo de
ataque, dos inimigos.
Referências
ASAD, Muhammad. The Message of The Qur'an. Sharjah: Dar Al Andalus, 1980.
BONNEY, Richard. Jihad: from the qur’an to Bin Laden. Nova York: Palgrave Macmillan,
2004.
GLASSÉ, Cyril. The Concise Encyclopedia of Islam. New York, Harper Collins, 1989.
HALEEM, Muhammad Abdel. Understanding the qur’an: themes and styles. Londres:
I.B.Tauris, 2001.
MANTRAN, Robert. A Expansão Muçulmana (séculos VII-XI), São Paulo, Pioneira, 1977.
PARADELA, Nieves. Belicismo y espiritualidad: una caracterización del Yihad islámico. In:
Militarium Ordinum Anacleta, Oporto, nº 5, 2001.
1247
1248
O paradigma de Iudas-Iudei: Judas Iscariotes como uma
representação do judeu no Juízo Final e a Missa de São Gregório
(MASP 428P)
Doglas Morais Lubarino1
Introdução
Ainda pouco conhecida e estudada, a obra O Juízo Final e a Missa de São Gregório do acervo
do MASP é o objeto de pesquisa de nossa dissertação de mestrado, que visa analisá-la em
relação às ideias referentes à Doutrina Eucarística no final da Idade Média.
Estudaremos no presente texto a representação do inferno nesta obra nos atentado, sobretudo,
à figura de Judas enforcado e sua relação com a imagem do judeu na Baixa Idade Média. A
representação de Judas como figura emblemática do povo hebreu é um topos comum nas
imagens medievais. Nessas imagens a figura do apóstolo traidor tem traços marcantes, como o
nariz aquilino e uma bolsa de dinheiro no pescoço. Esses elementos não representam somente
a ojeriza cristã à traição que resultou no sacrifício de Cristo. Eles podem ser compreendidos
como uma visão negativa do povo judaico como culpado e herdeiro desse deicídio.
Examinaremos essa questão analisando a historiografia sobre esta temática e comparando o
nosso painel com outras pinturas murais, sobretudo retabulares do período gótico.
A obra O Juízo Final e a Missa de São Gregório do Acervo do Museu de Arte de São Paulo –
MASP (nº de registro 428 P), datado do final do século XV, é uma das raras obras tardo-
medievais presentes no Brasil. Trata-se de uma pintura retabular confeccionada a óleo sobre
madeira, com dimensões de 200 x 130 cm. A autoria dessa obra é atribuída no Catálogo do
MASP a um pintor anônimo catalão denominado como Mestre da Família Artés (MARQUES,
1998, p. 16).
1249
Borgonha, na França (idem p. 16). Não há notícias sobre a temática e nem o paradeiro das
outras partes do retábulo, mas segundo o mesmo catálogo, este painel central teria passado da
Borgonha para uma coleção particular na Bretanha e de lá, por meio de doação feita por
Daniel Wildenstein, em 1966, para o acervo do MASP (idem, p.16).
Descrição iconográfica
No que se refere à iconografia, o painel, apesar de apresentar cenas que se relacionam, como
veremos, encontra-se dividido em áreas bem distintas, que descreveremos em separado,
embora saibamos que sua compreensão só pode ser feita em conjunto.
Na parte superior do painel vemos o Céu cercado por uma muralha. A figura central do
Empíreo é o Cristo tronando, vestido com o perizônio e um manto vermelho, e com as cinco
chagas à mostra. Do lado direito de Cristo observamos figuras beatícias femininas e do lado
esquerdo, masculinas. À frente da muralha há sete anjos, dois dos quais sustentam uma cruz e
outros dois tocam trombetas. Mais dois levam as almas para o Paraíso, enquanto o último está
em atitude contemplativa.
Na parte central inferior da pintura há uma cena que se passa no interior de uma igreja,
evocada por colunas e arcos: o episódio conhecido como a Missa de São Gregório. E para
além desse espaço fechado há um campo a céu aberto, onde os ressuscitados saem de seus
túmulos.
Na lateral inferior direita desta imagem, numa espécie de formação rochosa, está representado
o inferno com dois poços. Num primeiro, de diâmetro menor, os danados são açoitados por
dois demônios e no outro, logo acima deste, há condenados em meio às chamas. Um deles é
fustigado por um diabo que verte em sua boca metal fundido. Na parte superior desta
representação há um grupo de almas que está envolvido a uma espécie de nuvem escura.
1250
Logo abaixo dessa nuvem vemos a figura que mais nos interessa neste trabalho: Judas
enforcado. Ele está representado com uma túnica vermelha, com uma bolsa presa no pescoço
e com uma auréola negra. A figuração do rosto deste apóstolo tem um traço notável que é a
hipertrofia nasal que o distingue dos outros personagens da pintura.
Esta forma de figurar Judas vai além de uma representação do apóstolo traidor que é
condenado à prolongação de seu suicídio por toda a eternidade. Carlos Espí Forcen,
historiador da Arte e professor da Universidade de Múrcia na Espanha, autor de vários
trabalhos sobre as representações dos judeus, indica que a origem dessa forma de representar
os judeus é um fenômeno da Baixa Idade Média. Esse fato está diretamente ligado à
urbanização e à associação dos judeus como credores usurários: “Respecto a la fisiognomía
del judío, el rasgo facial satirizado por antonomasia fue indudablemente la nariz,
frecuentemente relacionada con el pecado de la usura, atribuido a los judíos por su labor de
prestamistas” (ESPÍ FORCEN, 2009, p.2). O novo papel dos judeus como credores em um
período de transição política e econômica do final da Idade Média explica, conforme o autor,
o desenvolvimento de um traço que deforma a fisionomia do judeu.
Este mesmo traço facial foi analisado em uma imagem de Judas Iscariotes por Jérôme Baschet
no afresco A morte ignominiosa de Judas de Giovanni Canavesio, localizado na parede
esquerda da capela de Notre-Dame des Fontaines e situado em La Brigue, na França. Trata-se
de uma pintura do século XV e, portanto, do mesmo período do nosso painel. Essa imagem
apresenta Judas enforcado e vestido com uma túnica amarela. Esse apóstolo está representado
com o ventre aberto e com as vísceras expostas tendo sua alma arrancada por um demônio.
Ao analisar essa figura, Baschet afirma que “o traidor Judas oferece a ocasião de um ataque
contra os judeus: ele é representado com um longo nariz aquilino que lhes é atribuído e
mesmo a sua alma reproduz seus traços nefastos” (BASCHET, 2008, p. 437). Percebemos
pela argumentação do autor uma associação da figura de Judas ao povo hebreu pelo
característico traço facial presente tanto em seu rosto como em sua alma que é conduzida para
a danação eterna.
Embasados na argumentação destes autores propomos uma análise para a nossa imagem onde
a figura de Judas enforcado representa, além do apóstolo traidor, o povo judeu condenado por
1251
sua avareza. Como já vimos, esse pecado é bastante notável e reiterado na representação do
inferno do painel em questão. Não só o Iscariotes tem a bolsa que simboliza a busca pelos
bens materiais. Ao lado da figura de Judas há um personagem tonsurado que está sendo
lançado ao inferno pelo evidente pecado da avareza simbolizado pela bolsa. Além disso, a
imagem do inferno apresenta um demônio que verte metal fundido na boca de um condenado.
Essa tortura é na iconografia tardo medieval uma forma de representar o castigo pela avareza.
Assim, percebemos na nossa imagem, uma possível relação entre Judas e as conotações
judaizantes presentes não só na figura do apóstolo traidor, mas nas demais figuras do inferno
nesta imagem que se remetem à avareza.
O paradigma de Iudas-Iudei
Como vimos, diante desses elementos, podemos propor uma relação entre a iconografia de
Judas como representação emblemática do povo hebreu. Essa associação pode ser ainda mais
entendida pela argumentação de Paulino Rodríguez Barral:
Como ainda discorre o autor, essa associação da figura dos Judeus com a de Judas é frequente
na Idade Média (idem, p. 119):
Así Rabanus Maurus al rechazar la cualidad de los judíos como descendientes de Abraham
(la habrían perdido por su incredulidad, de modo que los cristianos serían, por su fe en
Cristo, los actuales detentadores de tal condición) les niega el derecho a derivar su nombre
del de la tribu de Judá, para ponerlo en relación con el de Judas. Igualmente Guillermo de
Bourges en su Librum bellorum Domini sostiene que si hasta Cristo el nombre de los judíos
derivaba del patriarca Judá, a partir de la Pasión debe hacerse derivar de Judas: vocati sunt
a Iuda traditore (idem, p. 119).
Alisando a argumentação dos autores medievais sintetizada por Rodríguez Barral, podemos
compreender que os judeus perdem a sua herança patriarcal e passam a ser uma espécie de
1252
descendentes de Judas. Esta questão parece-nos ser justificada por dois pontos. Em um
primeiro ponto, os hebreus negam a graça de pertencerem ao povo de Deus não crendo em
Seu Messias, Aquele que veio cumprir a Aliança Divina em meio de Seu povo escolhido. Em
um segundo ponto, eles são qualificados como herdeiros da traição do avaro Judas. Judas é o
apostolo que trai Cristo por dinheiro (Mt 26, 14-16). É a avareza do Iscariotes que o leva a
cometer esse crime. Assim, os judeus são considerados como incrédulos e avaros, e, além
disso, deicidas. Essa relação com Judas corrobora na ideia dos judeus como portadores de
uma natureza cristocida, como descentes deste apóstolo. E, essa questão, revela-se como algo
muito importante na análise da obra em questão, uma vez que Judas e o pecado da avareza
recebem uma posição de destaque na representação do inferno que analisamos.
O segundo é nomeado como Retábulo de almas com a Missa de São Gregório e é também do
acervo do Museu de Belles Arts de València (Inv. Nº 129/96). Ele apresenta em seu ático
(parte superior de uma estrutura retabular) a Coroação da Virgem pelas três Pessoas da
Santíssima Trindade. Logo abaixo, vemos o Cristo tronado e ladeado por santos e almas
salvas que estão dentro de uma espécie de muralha. Há um grupo de almas que está sendo
1253
conduzido aos Céus por anjos. Na parte inferior esquerda dessa imagem há uma representação
da Missa de São Gregório e na parte inferior direita (à esquerda do Cristo) vemos a
representação do inferno com a figura destacada de Judas enforcado.
Entretanto, essa última imagem apresenta Judas vestido com túnica amarela. Rodríguez Barral
ao analisar essa questão, em alguns retábulos do final da Idade Média, argumenta que:
El amarillo de sus ropas es generalizado. Tal circunstancia responde a una tradición que,
desde el siglo XIII, ha tendido a hacer de él un color en franco proceso de devaluación. Es
el color de los felones y mendaces. También el de los judíos y el de la sinagoga. En
consecuencia no debe sorprender que por lo general aparezca en los retablos que nos
ocupan vestido de tal guisa (RODRÍGUEZ BARRAL, 2003, p. 443).
Essa mesma argumentação pode ser mais bem compreendida na afirmação de Michel
Pastoureau:
Le jaune n'est plus guère la couleur du soleil, des richesses et de l'amour divin. Il est surtout
devenu la couleur de la bile, du mensonge, de la trahison et de l'hérésie. C'est aussi la
couleur des laquais, des prostituées, des juifs et des criminels. C'est enfin la couleur de la
jouissance. Le jaune c'est le mauvais or (....) Le jaune évoque la transgression de la norme
(PASTOUREAU, 1983, p. 69).
Percebemos aqui que a cor amarela da túnica de Judas tem uma forte conotação negativa.
Como vimos acima, a representação do enforcado na capela de Notre-Dame des Fontaines
tem a vestimenta da mesma cor. Em outra imagem de Judas que analisaremos nesse texto
Novamente veremos as conotações negativas desta cor no que se refere aos hebreus.
Propomos também que a presença da representação dos judeus no suporte retabular está
ligada à funcionalidade eucarística do retábulo. Apesar das imagens que acabamos de analisar
não apresentem diretamente uma profanação da Eucaristia, a retabílistica do Gótico tardio tem
um número significativo de representações de judeus profanando a hóstia consagrada. Essa
questão está ligada à concepção de realismo eucarístico que é ainda mais reafirmada com a
proclamação do dogma da transubstanciação em 1215 no IV Concílio de Latrão. Como
argumenta Espí Forcen (2009, p.7): “Si tras la consagración la hostia se convertía, al menos
1254
en sustancia, en el verdadero cuerpo y sangre de Cristo, los judíos podrían utilizarla para
infligir una vez más al Mesías los escarnios que había sufrido hasta su muerte”.
Para melhor entendermos esta questão, analisaremos um par de painéis proveniente da capela
de Corpus Christi de Vallbona de les Monges e que atualmente são conservadas no Museu
Nacional d’art de Catalunya (MNAC). Trata-se de um retábulo e um frontal produzidos para
o mesmo altar e que estão datados entre os anos de 1335-1345. O retábulo (nº de inv. 009920-
000) está dividido em sete ruas (divisão retabular no sentido vertical) e dois andares (divisão
retabular no sentido horizontal). Contudo, a rua central é formada por um único andar (como
evidente forma de destaque) e traz figurada uma representação da Santíssima Trindade unida
a uma espécie de ostensório que é centralizado por uma hóstia e que é sustentado por quatro
anjos. Essa representação amplia a concepção de realismo eucarístico, pois, a nosso ver, essa
imagem parece relacionar a espécie sacramental como uma presença física do próprio Deus
Trino.
Percebemos, igualmente, essa relação entre a concepção de realismo eucarístico nas demais
cenas deste retábulo. Ele traz cenas de alguns milagres eucarísticos o que reforça essa
questão. Há também uma representação da procissão de Corpus Christi no andar superior da
rua da extrema esquerda. Há também uma representação da Santa Ceia que está à esquerda do
painel central no andar inferior e é a única cena figurada ao mesmo tempo em duas ruas. Esse
destaque parece prestigiar a cena da Santa Ceia já que ela trata da instituição da Eucaristia
pelo próprio Cristo. Um outro elemento relevante (apesar de muito comum nas imagens de
Cristo portando a Eucaristia) é a hóstia ornamentada. Esse elemento está descontextualizado
da Ceia do ciclo da Paixão, porém parece-nos totalmente relacionado ao gesto litúrgico da
elevação da hóstia que acaba de ser consagrada para a adoração dos fiéis. Observando, logo
acima da representação da Santa Ceia, vemos no mesmo retábulo, um milagre que ocorre no
momento da elevação da hóstia, que nos parece ser uma primitiva imagem da Missa de São
Gregório. Assim, essa imagem, além de relacionar o Cristo à figura sacerdotal, corrobora a
concepção da repetição literal da Ceia de Cristo na celebração da Missa.
Além dessas representações, há nesse retábulo, cenas de profanações da hóstia por judeus. O
andar inferior das duas ruas da extrema direita representa cenas de profanação da hóstia.
Nestas duas imagens os judeus podem ser identificados pela barba e também pelo
característico traje que portam. Em uma primeira cena a hóstia é profanada com uma faca e na
segunda com uma lança. Em ambas as imagens a hóstia no qual os judeus desferem
1255
profanação sangram. Este elemento simbólico reafirma que a hóstia é o corpo real do Cristo
atribuindo à Eucaristia um forte realismo. Além de evidenciar um milagre eucarístico, o
sangue que verte das hóstias profanadas pode ser interpretado com conotações antissemitistas.
A natureza cristocida dos judeus é novamente elucidada nestas representações. Atacam
novamente ao Cristo através da profanação de seu verdadeiro corpo – a Eucaristia. A imagem
que apresenta o judeu profanado a hóstia com a lança é ainda mais singular para analisar essa
questão. Ela parece fazer referência à passagem do Evangelho de São João que alude ao
soldado que golpeia o Cristo morto com a lança (Jo 19, 34). Ainda que simbolicamente, essa
cena apresenta a concepção de realismo eucarístico e a profanação da matéria sagrada pelos
judeus que por sua natureza cristocida, e também por serem descendentes de Judas, repetem o
mesmo crime na hóstia de ferir o verdadeiro corpo do Salvador.
Essa mesma ideia antissemita unida ao realismo eucarístico pode ser visualizada no frontal (nº
de inv. 009919-000) deste par de painéis. Ainda que seja um frontal ele está divido no mesmo
esquema do retábulo anterior. Essa relação material é bastante importante para os estudos das
estruturas retabulares, uma vez que se acredita que o retábulo tenha sido, inicialmente, uma
elevação dos frontais (SERRA DESFILIS, 2010, p.15). A parte central desse painel representa
a imagem da Virgem com o Cristo, e pode ser também interpretada, além da evidente devoção
mariana, pela questão eucarística. As justificativas teológicas em torno do sacramento
eucarístico buscam reforçar a ideia de que a hóstia consagrada contém substancialmente o
mesmo corpo do Cristo que nasceu da Virgem. Da mesma forma, pode ser interpretada a cena
da anunciação que está localizada na parte direita inferior em relação à imagem da Virgem
com o menino. Maria é primeira serva que recebe o Cristo. Mais que isso, ela é escolhida por
sua virtude e seu reto comportamento. Além disso, as passagens evangélicas, especialmente as
lucanas, apontam que a bem-aventurança da Virgem está ligada à sua crença na vinda do
Salvador: “Bem aventurada aquela que acreditou, pois será cumprido o que o Senhor lhe
prometeu” (Lc 1, 45). Dessa forma, Maria é um modelo de perfeição cristã por acreditar. E
por crer ela recebe a graça inigualável de receber conceber o próprio Cristo. O cristão é assim
chamado a imitá-la. A graça milagrosa de receber o próprio corpo de Cristo requer como
consequência um reto comportamento cristão e, sobretudo crer como a Virgem. Essa questão
reforça também a imagem negativa em relação aos judeus, uma vez que eles são incrédulos do
ponto de vista dos cristãos. Eles negam a encarnação do Cristo e continuam negando a vinda
do Messias ao não acolherem o Cristo na Eucaristia.
1256
A mesma relação com o realismo eucarístico pode ser entendida na cena da Epifania que está
localizada à esquerda do painel central no andar inferior. Vemos os três personagens com seus
presentes sendo que um deles aponta para a imagem do painel central, como que convidando
o espectador a adorar o Cristo. Esta cena, também, parece revestir-se de um sentido
simbólico, pois o espectador é chamado a adorar aquele que está acima, o Cristo. E esse
Cristo simbolizado pela imagem está no altar, presente corporal e verdadeiramente no pão
eucarístico. Podemos compreender essa questão pensando na materialidade desse painel. Por
se tratar de um frontal, ele estava incrustado à frente da mesa do altar, e por isso, a nossa
hipótese é plausível. Podemos, ao mesmo tempo, propor uma análise no fato dos presentes do
Reis Magos. O verdadeiro cristão é convidado a presentear com sua credulidade o Cristo que
se faz presente em carne naquele altar. Ao contrário dos incrédulos judeus, como veremos,
que se propõem a vendê-lo, e assim, imitar o nefasto crime do avarento Judas.
Nas cenas localizadas na parte inferior direita do espectador podemos relacionar a profanação
da hóstia à avareza. Na da extrema direita vemos um judeu que porta uma bolsa de dinheiro.
Essa imagem parece ser precedida pela cena localizada do seu lado esquerdo. Nela vemos um
homem com uma hóstia na mão esquerda e com a mão direita sobre uma mesa com dados.
Analisando ainda outra pintura retabular também do acervo do MNAC podemos ver a mesma
relação. Trata-se do Retábulo da Virgem (nº de inv. 015916-CJT), datado entre os anos de
1367-1381, que é divido em uma rua central onde vemos a imagem da Virgem com o Menino
ladeados por Santa Catarina de Alexandria e Santa Maria Madalena Mirófona e tendo aos
seus pés o provável comitente do retábulo. Acima, vemos o ático com a figura da
Crucificação. As quatro entre-ruas estão dividas em três andares e apresentam cenas da vida
de Maria e de Cristo. No que se refere à iconografia, como já discutimos acima, além da
1257
devoção mariana, esse retábulo apresenta a forte relação entre a Virgem e o sacramento
eucarístico. Mas, é a predela deste retábulo a parte que mais nos interessa nesta análise. Ela
está divida em cinco casas. Ela apresenta nas casas laterais cenas de milagres e de
profanações à Eucaristia. As casas laterais situadas à direita do espectador narram a cena de
uma profanação eucarística por parte de um Judeu, o que insere esta obra na temática que
tratamos. Um ponto bastante significante na nossa análise é cena central da predela deste
retábulo que representa uma Santa Ceia. O Cristo porta nessa imagem um cálice com uma
hóstia. Novamente vemos uma cena que nos parece propositalmente descontextualizada com
a última Ceia, mas relacionada a um gesto litúrgico.
A figura de Judas nessa imagem merece no nosso trabalho uma especial análise. Em primeiro
lugar ele porta um manto amarelo. Essa cor, conforme a argumentação que já apresentamos
tem uma clara relação com a imagem negativa dos judeus e insere Judas como um
representante do povo hebraico. Igualmente, o característico nariz que deforma a sua
fisionomia é mais um indício das menções negativas que parte da iconografia gótica infere
aos judeus. Analisando ainda a expressão deste comensal, propomos que ela é endemonizada,
pela presença de um diabo ao lado de Judas que tem semelhante fisionomia facial. Essa
representação, além de evidenciar a relação entre Judas e o demônio, pode também relacionar
o próprio povo judaico como semelhante e influenciável pelo diabo. Do mesmo modo, esse
demônio parece orientar Judas a colocar a mão no prato que está no centro dessa imagem.
Cremos que essa cena está relacionada à passagem bíblica de São Mateus “vai me trair aquele
que come no mesmo prato que eu” (Mt 26, 23). Até mesmo o próprio animal que está nesta
bandeja parece apresentar uma ojeriza a Judas, e assim, aos judeus que se atrevem a
compartilhar da ceia de Cristo com o fim de traí-lo.
Parece-nos bastante provável, analisando esse conjunto imagético, uma relação entre os
judeus e a figura de Judas elucidada pela motivação da traição do Iscariotes: a avareza. Judas
trai o Cristo e o entrega aos judeus em troca de dinheiro. Ainda que essa afirmação possa ser
discutida do ponto de vista teológico, ela parece estar presente, ao menos no imaginário
medieval. Judas é a pessoa que trai o Cristo por sua avareza. Mas, além desses elementos, o
suporte retabular nos apresenta outra questão:
1258
profanación de la hostia unían inexorablemente una vez más a los judíos con los pecados de
la usura y de la avaricia (ESPÍ FORCEN, 2009, p. 7).
Pela argumentação do autor e mediante nossas análises podemos concluir que a imagem do
judeu está pejorativamente associada à questão da avareza. Com efeito, parte da iconografia
gótica no suporte retabular produz uma imagem significantemente negativa do povo hebreu
por considerá-lo avaro. E, no suporte retabular, além da associação a imagem de Judas essas
representação também pode ser notada pela profanação da Hóstia, o que amplia a visão
negativa do povo judaico.
Considerações finais
Ainda que o nosso painel não apresente diretamente cenas de profanação à hóstia, essa
questão também nos parece bem pertinente mediante as nossas análises da retabilística
medieval gótica. Judas, como representantes dos judeus carrega consigo um amálgama de
valores simbólicos, o que pode nos atentar a mais uma motivação dessa representação na obra
do MASP: a questão eucarística.
Essa questão pode ser mais bem compreendida ao debruçar-nos na iconografia do inferno da
nossa obra. Percebemos pelos elementos presentes nessa imagem uma crítica clara à busca de
bens materiais e o fim último das almas que cometem esse pecado. Essa censura não está
somente ligada aos judeus. Afinal, a pintura em evidência apresenta um forte destaque ao
grupo clerical pela presença de um papa, um cardeal e tonsurados nas chamas infernais, além
de leigos. Contudo, a representação de Judas enforcado, que pelo paradigma de Iudas-Iudei
tem uma evidente relação com o povo judaico, parece fazer-nos atentar a uma questão: a
equiparação dos cristãos pecadores (com destaque aos avarentos) ao Judas-judeu que é
incrédulo, traidor, avarento, profanador e, sobretudo um inimigo comum da cristandade. Essa
mesma questão associada ao suporte da imagem em evidência pode nos atentar a concepções
eucarísticas. O pecador é aquele que, assim como o incrédulo judeu, profana o Corpo de
Cristo, não somente no sentido da Hóstia consagrada, mas ao Corpo Místico da Igreja.
1259
imagem de Judas que traz amalgamada a figura do judeu, fortemente marcada por visões
negativas. A busca de uma padronização de comportamentos por parte do clero insere o grupo
de pessoas do qual a Igreja incorre pecado em uma retórica visual que, além de condená-los à
danação eterna, compara-os aos personagens a que a cristandade imputa ódio e intolerância.
Referências
ESPÍ FORCEN, Carlos. Érase un hombre a una nariz pegado: la fisonomía del judío en la
Baja Edad Media. Congreso Internacional de Imagen y Apariencia (2008). Congresos
Científicos de la Universidad de Murcia. Múrcia: EDITUM, p. 1-15, 2009.
MARQUES, Luiz. Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. São Paulo:
Prêmio, 1998.
SERRA DESFILIS, Amadeo. La madera del retablo y sus maestros. Talla y soporte en los
retablos medievales valencianos. Archivo de Arte Valenciano, v. XCI, nº 1, Valência, p. 13-
37, 2010.
1260
1261
O Venerável Beda e o combate ao paganismo na Grã-Bretanha do
século VIII
Itajara Rodrigues Joaquim1
Introdução
Na parte sul das Ilhas Britânicas houve uma forte romanização econômica e cultural, o latim
era normalmente utilizado em documentos romanos civis. A grande maioria da população
falava o idioma Britânico, mas uma pequena elite Romano-Britânica falava o latim, que logo
depois da retirada do Império Romano deixou de ser utilizado. Já nas partes norte e ocidental
a romanização teve mais o caráter militar.
O Império Romano retira seus exércitos por volta do ano de 410, e encerra sua administração
provincial. Não podemos afirmar se os Romanos teriam alguma pretensão de retornar, se
tinham não o fizeram deixando para traz apenas os rastros de sua ocupação:
(...) villas were abandoned, urbanism had virtually ended, the countryside was partly
abandoned around the old military focus of Hadrian’s Wall, (…) and all large-scale artisan
production ceased. In no other part of the empire was this economics simplification so
abrupt and total, and it must reflect a sharp social crisis as well. (WICKHAM, 2010, p151).
1
Graduando pela UFMT. Bolsista de Iniciação Científica Voluntária. Membro do GP Vivarium. Orientador:
Prof. Dr. Marcus Cruz. Contato: itajara1@hotmail.com.
1262
De acordo com alguns escritos do período, no ano de 500 as Ilhas Britânicas estavam
divididas entre pequenos governantes, também chamados de reinos. “A patchwork of tiny
polities had replaced the Roman state. In eastern Britain there was by now a similar set of
micro-kingdoms ruled by immigrant Anglo-Saxons” (WICKHAM, 2010, p151). Eles
chegaram às Ilhas Britânicas, a maioria vindos da Saxônia, norte da Alemanha, e falavam uma
varação de idiomas Saxônicos, tinham grandes habilidades em trabalhos manuais, construíam
barcos de grande qualidade e utilizavam os metais e as pedras preciosas para suas armas e
joias. Esses imigrantes também traziam com eles toda sua cultura, forma de governo e
religião. Eles formavam uma sociedade,
(...)uncontrolled by any occupying military power, and knowing nothing of any universal
system of law, taxation or schooling, the security of the individual did not lie within any
conception of a state, but within the much smaller unity of the kin. Any moment away from
fragmentation towards large political entities had its roots in the war band held together by
a successful leader (…) (BLAIR, 1995, p. 31).
Os Anglo-Saxões tinham uma ideia muito diferente de lealdade em relação aos Romanos. Na
ocupação romana a religião cristã foi utilizada como forma de demonstrar lealdade ao Império
Romano, mas para os Anglo-Saxões lealdade era um conceito pessoal sem uso de nenhum
conceito abstrato.
Nos reinos que ficavam na parte em que havia sofrido menos com a romanização, como
Dyfed e Gwynedd, conseguiram com mais facilidade se ligar à forma de vida dos Anglo-
Saxões, e ficando maiores e mais forte, pois tinham uma estrutura social parecida. Não
dependiam do estado Romano e mantinham forte ligação familiar e pessoal, forte senso de
lealdade, uma força militar ligada a uma autoridade local. “Começavam a transformar em
reinos as sociedades que não tinham conhecido até então qualquer sistema estatal” (BROWN,
1999, p, 215). Enquanto as sociedades Romano- Britânicas que mantinham uma cultura cristã,
regras e aspectos culturais Romanos, estavam cada vez mais se distanciando do seu passado e
ficando paralela a cultura Anglo-Saxônica.
1263
em um Cristianismo Céltico, onde eles apenas agregavam o deus Cristão a seus vários outros
deuses.
Essa mistura de religiões acontecia onde a cultura Romano- Britânica, pois, Peter Blair fala
que,
(...) the survival of Romano-British influences upon Anglo-Saxon England, here at least is
one sphere in which the break was absolut. In those parts of Britain which had been settled
by the English before 597 Christianity was totally obliterated and was replaced by
Germanic paganism. Christianity survived only in those parts of the country which lay
beyond the range of Anglo-Saxon settlement (BLAIR, 1995, p, 42).
A Missão Romana
Os governantes Saxões recebiam visitas de bispos e monges que vinham do outro lado do
oceano, que tentavam uma aproximação do povo de cultura pagã, mas que geralmente não
obtinham êxito, pois não eram vistos com bons olhos por esses lideres.
No ano de 597, Gregório I enviou para a Bretanha uma missão para tentar restaurar a ordem
cristã.
Por mais que os romanos já tivessem o conhecimento de guerras e da fome, em uma de suas
cartas para Agostinho, Gregório I os encoraja em seguir a missão, “they were not let
themselves be deterred by the difficulties of the journey or by the tongue of evil-speaking
men" (BLAIR, 1995, p, 49).
1264
O rei em questão era o Etelberto, foi casado com uma princesa franca cristã, Berta, durante
quinze anos, e uma das condições impostas para que houvesse o casamento seria de que a
noiva após a cerimônia pudesse continuar a exercer as práticas cristãs. No momento os
francos não estavam interessados na conversão de Etelberto ao cristianismo, pois não queriam
outro rei cristão. Mas com a chegada dos missionários romanos ele viu a conversão ao
cristianismo com uma nova perspectiva, para ele
(...) receber o batismo de Roma era completamente diferente. Etelberto podia contactar com
esse centro imaginado do mundo cristão latino, tranquilizadoramente distante, e podia até
passar por cima de Roma e procurar o reconhecimento pelo próprio Imperador romano
(BROWN, 1999, p, 224).
Gregório I, na tentativa de conversão do rei, mantinha contato com Etelberto e muitas de suas
cartas eram acompanhadas de presentes, honrarias ao rei e até a compara-lo com Constantino.
Em uma de suas cartas Gregório chegou a dizer,
(…) edify the manners of your subjects by the great purity of your life, with words of
exhortation, fear, fair, speech, correction and shewing example of well-doing: that you may
find Him to be your rewarder in haven, whose knowledge and name you make to be
enlarged upon the earth. For He will Himself also make your name the more famous unto
posterity, whose honour you seek and maintain among the nations (BEDE, 1994, p, 171).
Mesmo com todas as honrarias feitas ao rei, ainda existia uma insegurança em relação aos
visitantes, principalmente em ambientes públicos. Etelberto agia de forma cautelosa para que
o ânimo dos súditos, ainda fieis à religião pagã, não se exaltassem. Nem com o batismo do rei
a situação melhorou, eram tratados como “pessoas valiosas, mas potencialmente perigosas,
que seria melhor manter sob vigilância perto da corte régia” (BROWN, 1999, p, 225). Por
mais que Agostinho tivesse a permissão de fazer suas pregações e pequenas intervenções, foi
aconselhado por Gregório a ser cauteloso em suas ações e não tomar nenhuma medida
drástica, como por exemplo, Gregório mandou que os templos pagãos não fossem destruídos,
e que os sacrifícios ao invés de serem feitos como oferenda ao demônio, agora seriam
utilizados de uma maneira diferente.
The temples were by no means to be destroyed, but only the images which they housed. If
the temples were well built they were to be consecrated to the service of God so that the
people might continue to worship in familiar places. They should not be deprived of their
customary sacrifices of oxen, (…) now converted to Christian use, and celebrate with
1265
religious feasting, their animals no longer sacrificed to devils, but killed for their own food
with thanksgiving to God.(BLAIR, 1995, p, 63).
Além dessas medidas cautelosas para que o povo pagão fosse se acostumando aos poucos
com os costumes e regras cristãs, Etelberto publicou as Leis de Edelberto, fazendo com que se
aproxima-se da figura de Clovis, mas suas leis “não foram escritas em latim, mas em anglo-
saxão. Trata-se de uma clara indicação de firmeza de objetivos e capacidade de adaptação”
(BROWN, 1999, p, 226).
Mas o relacionamento entre o povo pagão e os grupos religiosos cristãos, não continuou em
um crescente avanço. Conforme os reis que protegiam missionários morriam ou saiam do
poder, os religiosos também acabavam por cair junto com eles.
Nos reinos saxônicos o Cristianismo fora apenas tolerado e, durante mais de uma geração,
os seus representantes foram cuidadosamente vigiados por reis e por nobres que sabiam
exactamente o que queriam de uma religião estrangeira. (BROWN, 1999, p 228).
Todos esses e muitos outros fatos sobre a cristianização da nação inglesa, foram narrados por
Beda em uma de suas publicações mais importantes o Historia Ecclesiastica Gentis
Anglorum.
O Venerável Beda
Beda, conhecido também como Venerável Beda, monge de origem saxônica nasceu
aproximadamente no ano de 672, não se sabe ao certo seu local de nascimento, é provável que
tenha sido aos arredores de Wearmouth e Jarrow. Aos sete anos de idade foi entregue por seus
pais ao abade Benedict, para ser criado no mosteiro de Wearmouth e posteriormente foi
encaminhado para o mosteiro de Jarrow com o abade Ceolfrid. Não se tem nenhuma
informação a respeito de quem foram seus pais,
(…) but we may infer that they were Christians and, in view of their association with such a
man as Benedict Biscop, probably from the rank of the well-born. At this time it was a
common practice for parents who were anxious for their children to be educated, to entrust
1266
them to the care of a monastery at an early age, but such a step did not necessarily imply
lifelong devotion to monasticism, still less any desire to be rid of an unwanted child
(BLAIR, 1995, p, 5).
Passou toda sua vida no mosteiro, se dedicou aos estudos e às orações. Foi um grande
estudioso de sua época, conhecia latim, grego, filosofia, matemática, teologia, música e
hebraico. Ele dividia seu tempo entre seus maiores interesses, “I wholly applied myself to the
study of Scriptures (…) I always took the delight in learning, teaching and writing” (BEDE,
1994, p, xiv). No ano de 691 ele é ordenado como diácono e em 702 como padre. “Bede died
in 735, a few years into his sixties” (GOFFART, 2005, p, 241). Ele viveu durante um período
considerado calmo de sua sociedade,
Had he been born half a century earlier Bede might well have found himself involved
directly in some of the many wars arising from the attempts of ambitious rulers to extend
their boundaries or to win supremacy over neighbours, and had he died a little more than
half a century later he would have witnessed the first Viking attack on his own monastery
(BLAIR, 1995, p, 5).
Ele também era muito bem relacionado, a primeira pessoa a ler o manuscrito de sua obra
Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, para fazer correções e apontamentos, foi o próprio
rei da Northumbria Aldfrith, homem com grande conhecimento.
Em seu livro Beda narra a história eclesiástica da nação inglesa, desde a chegada dos
Romanos até seu tempo. Para conseguir escrever eventos do qual ele não havia participado,
utilizou acervo de livros disponível na biblioteca de seu mosteiro, boa parte trazida de Roma
pelo abade Ceolfridg, e livros emprestados de outros monastérios. Também fazia uso de
correspondências do período, mas “it will be never possible to trace the growth of his
historical knoledge in detail or to determine exactly what material were availeble to him ar
particular times” (BLAIR, 1995, p, 71).
Beda afirmava a veracidade de todos os fatos cuidadosamente descritos com seu poder de
dramaticidade em seu livro, “I would not that my children should read a lie” (BEDE, 1994, p,
xv). Outro fator muito importante para ele era a cronologia dos acontecimentos, tanto que sua
obra é dividida em cinco livros, o primeiro se inicia com a chegada dos Romanos e um
1267
pequeno apanhado histórico da igreja britânica indo até a chegada de Agostinho e encerra
com a morte de Gregório I. O segundo livro inicia com um tributo a Gregório I, narra a
tentativa de união entre as igrejas Britânicas e Irlandesas, e termina com a morte do rei Edwin
da Nortumbria. O terceiro livro tem início com a história de Oswald e Oswy e termina com a
consagração de Wighard como arcebispo de Canterbury. O quarto livro relata a consagração
de Teodoro e os passos que ele tomou para organizar a igreja e termina com a morte de
Cuthbert. O quinto e último livro inicia com a missão Frisia e termina com uma visão geral
das condições da igreja no ano de 731. “Bede chooses important events which Mark disstinct
stages in the progress of the English Church, the main theme round which the different
digressions are grouped. His style is clear and natural, and a spirit of even-minded fairness
animates the whole work” (BEDE, 1994, p, xxi).
Considerações finais
Beda era influenciado por sua profunda e devotada fé cristã. Ele escreveu os fatos não apenas
para preservar a história eclesiástica de seu povo, mas com o intuito de ajudar os outros
clérigos a combater o paganismo, que estava ameaçando o cristianismo novamente em 731, e
obter a conversão do povo, tanto que o texto foi originalmente escrito em latim, idioma
utilizado pelo clero e não no idioma comum. Ele gostaria que suas narrativas fossem
utilizadas em pregações, mostrando tudo que o cristianismo havia passado para combater o
paganismo, e que agora os Britânicos estavam instruídos na fé cristã, eles não poderiam
continuar a persistir em seus erros antigos.
Referências
BEDE. Historical Works. Vol I,Vol II. Ecclesiastical History of the English Nation. London:
Harvard University Press, 1994.
BLAIR, Peter Hunter. The World of Bede. New York: Cambridge University Press, 1995.
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. 1ª edição. Lisboa: Editorial
Presença, 1999.
GOFFART, Walter. The Narrators of Barbarian History. (A.D 550-800).Indiana: University
of Notre Dame Press, 2005.
WICKHAM, Chris. The Inheritance of Rome. A History of Europe from 400 to 1000.London:
Penguin Books, 2010.
1268
1269
Sobre a controvérsia entre Martim Lutero e os judeus na reforma
do século XVI
Marcos Jair Ebeling1
Introdução
Martim Lutero escreveu dois textos principais acerca dos judeus: um primeiro de grande
simpatia; um segundo de grande antipatia. A pesquisa se propõe apresentar ambos os textos e
perguntar pelas motivações na mudança do pensamento em Martim Lutero.
Como forma de reflexão final o texto apresenta considerações da peça teatral de Lessing
“Nathan der Weise” (1779) e os posicionamentos da Igreja Luterana no Brasil e na Alemanha
acerca do relacionamento entre cristãos e judeus.
Os escritos de Lutero acerca do povo judeu tem um contexto histórico definido que,
brevemente, queremos analisar. Martim Lutero está profundamente envolvido com os
acontecimentos e debates teológicos do movimento da reforma. Os embates teológicos com os
papistas são de grande monta e, entre outros argumentos, consideram que a pregação e
interpretação do Evangelho é feita de forma equivocada pelos papistas. A simpatia inicial de
Martim Lutero para com o povo judeu está inserida neste contexto: como os judeus podem
acreditar em tão falha pregação, como esta feita pelos papistas? Os papistas estão afastados da
verdade bíblica e por isso, com razão, os judeus não são atraídos ao evangelho. Ou seja, a
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP, bacharel em Teologia pela EST/São Leopoldo, especialista
em Ética, Cidadania e Subjetividade pela EST/São Leopoldo. Bolsista CAPES/PROSUP. Contato:
marcos.ebeling@luteranos.com.br.
1270
primeira constatação não é um elogio ao povo judeu propriamente, mas uma crítica aos
papistas e seu jeito de conduzir a igreja cristã (ALTMANN, 1994, p. 261-263, apud Weimarer
Ausgabe, 11, 314-316).
Há que se considerar também que a controvérsia de Lutero com os judeus não é única na
história do povo judeu. Em sua caminhada histórica há uma sucessão de acontecimentos que
fizeram com que este povo vivesse situações de opressão, perseguição, preconceito e morte.
Altmann (1994, p. 259) afirma que “Uma boa parte desse sofrimento foi infligida por cristãos
e em nome de valores cristãos, quando não em nome de Deus e do próprio Cristo.” A
acusação principal é a de “terem feito verter o sangue de Cristo” (LIENHARD, 1998, p. 226).
Por um longo período o povo judeu, especialmente na diáspora, contou com a proteção dos
imperadores que os consideravam seus súditos e por declarações papais. Esta proteção
imperial sofre mudanças e se fragiliza a partir do século XII, quando os judeus são expulsos
da Inglaterra (1290), da França (1294) e da Espanha (1492 e 1496). Nesta época também o
império Romano-Germânico sofre uma divisão territorial, fragilizando-se esta proteção
porque diminui o alcance imperial. O povo judeu é expulso, em 1499, de Würzburg,
Mecklenburg, Magdeburg, Nüremberg, Esslingen e Ulm. “Na época de Lutero, Worms,
Frankfurt e Praga eram as únicas grandes cidades do Império onde ainda eram tolerados”
(LIENHARD, 1998, 226).
Por outro lado, a religião judaica também experimentou um despertar. Por um lado a própria
situação de perseguição contribui para isto. Por outro, a idade média vive um tempo de
retorno às fontes: o judaísmo e o humanismo contribuem muito neste sentido. No meio
judaico surgem movimentos escatológicos que vão ganhando espaço e a vinda do Messias é
marcada para o ano de 1503. Os judeus se preparam para esta vinda com jejum (LIENHARD,
1998, 227).
Além da perseguição e do retorno às fontes, Lienhard (1998, p. 232) considera que também o
luteranismo emergente do início do século XVI foi fator de fortalecimento e esperança da
religião judaica. O movimento da reforma havia renovado o embasamento bíblico,
relativizado o poder da igreja, da inquisição, do direito canônico e rejeitado o culto à virgem e
aos santos. Juntos criaram um ambiente de expectativa que, na opinião do povo judeu,
“anunciavam que o Messias iria aparecer e que Israel retornaria a seu antigo esplendor”
(LIENHARD, 1998, 232). Os escritos de Lutero, favoráveis ao povo judeu, endossavam este
1271
sentimento. As condições eram tão favoráveis e a expectativa messiânica tão acentuada que
“Em certas partes da Alemanha e da Polônia, ocorreu um certo proselitismo judeu, buscando-
se converter os cristãos às concepções judaicas ou, pelo menos, fazê-los valorizar as crenças
judaicas” (LIENHARD, 1998, p. 232).
“Que Jesus Cristo nasceu judeu” (1523) é o principal texto de Martim Lutero nesta primeira
fase do seu pensamento. A ideia central do texto é: a crítica aos papistas pela forma como a fé
cristã foi ensinada aos judeus; a esperança de que o correto ensino do Evangelho e a vivência
do amor cristão pelos cristãos atrairá o povo judeu à fé cristã: “Tenho a esperança de que, se
lidarmos amigavelmente com os judeus, ensinando-os de maneira límpida a partir da Escritura
Sagrada, muitos se tornarão verdadeiros cristãos, retornando à fé de seus pais, profetas e
patriarcas (LIENHARD, 1998, p. 231, apud Weimarer Ausgabe 11, 314, 28-315, 24).
Esta ideia central é desenvolvida pelos argumentos (cf. ALTMANN, 1994, p. 261-263, apud
Weimarer Ausgabe, 11, 314-316):
a) Lutero se dirige aos judeus apontando para o fato de Cristo ser judeu, nascido de uma
virgem. No tocante à carne e sangue os judeus estão mais próximos de Cristo do que as
demais pessoas;
b) A missão de Cristo foi a de atrair os judeus à fé cristã. Esta é também a missão de Lutero.
Ele acusa o papa, os bispos, os sofistas e os monges de praticar um cristianismo que, além de
não convidar, afasta os judeus. Mesmo os que aderiram à fé cristã permanecem judeus sob o
manto cristão. É hora de ensinar-lhes corretamente o Evangelho. Reside aqui a esperança de
que pelo Evangelho redescoberto, o povo judeu venha (pelo menos alguns) a acolher a Cristo;
2
Lutero manifestou-se várias vezes acerca dos judeus nesta primeira fase. Para delimitação deste texto vamos
nos ater ao texto “Que Jesus Cristo nasceu Judeu”, de 1523.
1272
c) Lutero anima as pessoas a lidar amavelmente com o povo judeu, assim como os apóstolos
lidaram gentilmente com os gentios. Foi o evangelho do amor e a postura gentil dos apóstolos
que atraíram os gentios à fé. Que assim seja da parte dos cristãos para com os judeus;
d) praticar com os judeus a lei do amor cristão: acolhe-los amigavelmente, deixar que
desenvolvam e assumam uma profissão, deixar que trabalhem e convivam entre os cristãos. É
nessa convivência que os judeus podem ver a “doutrina e vida cristãs”.
Esta simpatia, porém, não traz em si nenhuma concessão teológica. Lutero manifesta ciência
da suposta acusação de presunção contra os judeus (cf Romanos 2 e 3) que, pelo fato de serem
descendentes dos patriarcas, estariam livres do juízo de Deus. Lutero admite que o engano
deles consiste em “fazer-se um Deus que faz acepção de pessoas. [...] Preferindo-se aos
demais, em virtude de sua sabedoria e santidade [...] eles têm, da mesma forma, a presunção
de pensar que Deus os elegerá” (LIENHARD, 1998, p. 228, apud Weimarer Ausgabe, 56,
199, 12).
A partir do ano de 1530 as manifestações de Lutero acerca dos judeus ficam mais ásperas.
Expressam incompreensão e revolta. O principal texto é “Acerca dos judeus e de suas
mentiras”, de 1543, objeto de nossa pesquisa. No texto Lutero expressa:
a) desânimo acerca de uma possível conversão dos judeus4 e se indigna com o fato de cristãos
estarem se encantando com o judaísmo. Oferece resistência teológica ao jeito do judeu: “Eles
pretendem ser povo de Deus através de seu fazer, obras e ser exterior, não por pura graça e
misericórdia, como, afinal, todos os profetas e os verdadeiros filhos de Israel tiveram que
fazer” (ALTMANN, 1994, p. 263, apud Weimarer Ausgabe, 53, 417).
3
Nos anos de 1542/1543 Lutero escreve três tratados contra os judeus: “Acerca dos judeus e de suas mentiras”
(objeto de nossa pesquisa), “Acerca de Shem Hamphoras e da linhagem de Cristo” e “Acerca das últimas
palavras de Davi” (cf LIENHARD, 1998, p. 235).
4
“Pois quem escuta a palavra de Deus por 1500 anos e sempre diz: eu não quero conhecê-la, a este o
desconhecimento voluntarioso se torna uma péssima desculpa,”. LUTHER, M. 1543, p. 96. (tradução livre).
1273
No plano teológico, Lutero julgou necessário defender a pessoa de Jesus Cristo, em
particular face a certas tradições judaicas, as Toledoth Jeschu, que qualificavam Jesus de
mágico e se voltavam com escárnio para as considerações cristãs relativas à concepção e ao
nascimento de Jesus. Combateu também uma explicação dos milagres de Jesus, segundo a
qual ele teria utilizado, de maneira mágica, o nome gravado na pedra sobre a qual
repousava a arca da aliança. Lutero tentou mostrar que a caminhada de Jesus tinha sido
profetizada pelo Antigo Testamento, em especial que a sua morte substitutiva podia se
apoiar em Isaías 53. Junto com os pais da Igreja, tais como Atanásio e Agostinho, procurou
fundamentar o dogma trinitário num conjunto de passagens bíblicas, em particular
veterotestamentárias. E Lutero sublinhou a origem davídica de Jesus, a qual os judeus
colocavam frequentemente em questão.
d) Lutero vai ao ataque. Se pergunta sobre o que os cristãos devem fazer “com esse povo
amaldiçoado dos judeus? [...] Não podemos apagar o inextinguível fogo da ira divina [...] nem
converter os judeus” (ALTMANN, 1994, p. 263, apud Weimarer Ausgabe, 53, 522). E para
evitar que o fogo da ira divina se volte contra os cristãos sugere ações práticas aos príncipes. 5
E fecha o assunto dizendo: que “ninguém seja misericordioso ou bondoso nesse particular,
pois estão em jogo a honra de Deus e a salvação de todos nós”, pois “devemos permanecer
puros da blasfêmia dos judeus, não participando dela, devemos estar separados, devendo eles
ser banidos de nosso território. Que cogitem, então, de [chegar à] sua pátria” (ALTMANN,
1994, p. 264-265, apud Weimarer Ausgabe, 53, 523-526, 538).
a) Altmann (1994, p. 266) considera que a reflexão de Lutero tem caráter teológico,
estabelecendo diferença ao que hoje é chamado antissemitismo. Defender uma ideia teológica
não é a mesma coisa que ser contra um povo. Reconhece, todavia, que “do ponto de vista dos
5
As recomendações práticas contra os judeus são sete: incendiar as sinagogas; danificar as casas; tirar-lhes os
livros de oração; proibir aos rabinos o ensino; proibir o acesso às estradas, pois não produzem nada na terra;
pegar de volta tudo que roubaram por ganância; providenciar ferramentas de trabalho para os jovens fortes a fim
de vencer-lhes a preguiça. LUTHER, 1543, p. 93-95 (tradução livre).
1274
sofredores – no caso as vítimas judaicas, ao longo da história – não faz diferença decisiva se a
perseguição que sofrem é causada por motivos raciais ou religiosos”;
b) Liendhard (1998, p. 236-237) assegura que Lutero tinha uma linguagem dura e agressiva
com todos que eram considerados heréticos e que sua fala não teve reflexos imediatos. As
autoridades políticas tinham critério próprio de discernimento e os judeus continuaram a ter
seu papel político e social no império romano-germânico. Porém, é necessário reconhecer que
o debate teve dois desdobramentos: 1) à época passou do mundo acadêmico ao popular e ali
alimentou animosidades que já existiam; 2) Altmann (1994, p. 265) afirma que a “ideologia
nacional-socialista na Alemanha de pós-1933, (...) evocou Martim Lutero como precursor e
advogado de suas próprias ideologias e política anti-semitas, (...)”, embora reconheça não ser
boa hermenêutica atribuir comportamentos de hoje, com suas próprias motivações, a
personagem do passado;
c) Altmann (1994, p. 264-268, apud Weimarer Ausgabe, 53, 538) assegura que Lutero não
advogou o extermínio físico dos judeus6. No contexto da reestruturação territorial da igreja
cristã na Alemanha entre católicos e protestantes, Lutero defende que os judeus não convivam
com os cristãos e que tenham seu território: “(...) devemos estar separados, devendo eles ser
banidos de nosso território. Que cogitem, então, de [chegar à] sua pátria” (p. 264-265).
Razões para uma mudança de posicionamento por parte de Martim Lutero acerca dos
judeus
É justo fazer a pergunta pela motivação para uma mudança no posicionamento em Martim
Lutero acerca dos judeus. A resposta, todavia, não é precisa. Em verdade os teólogos
conseguem somente aventar hipóteses. Buscamos algumas dessas hipóteses:
a) a hipótese da frustração com a não conversão dos judeus: o Lutero jovem nutria uma
esperança de que a redescoberta do Evangelho e a sua correta pregação fosse incentivar e
promover a conversão dos judeus ao cristianismo. Mas a adesão e conversão de judeus ao
cristianismo não se concretizou (LIENHARD, 1998, p. 233). A não conversão, somada às
6
Esta é uma das grandes diferenças entre as sugestões de Lutero e o nacional socialismo de Hitler no pós-1933.
A outra diferença está que Hitler considerava a raça ariana superior, algo que também não encontramos em
Lutero (ALTMANN, 1994, p. 268).
1275
supostas difamações do Cristo e da fé cristã, provocam nele a necessidade de defender a fé
cristã sob pena de atrair a ira de Deus sobre si (ALTMANN, 1994, p. 264).
Rejeitamos, por completo, a reação de Lutero que inclui uma postura agressiva contra o povo
judeu. Ainda mais porque ele próprio, na iminência da guerra contra os turcos, admitiu ser
legítima a guerra somente como defesa em caso de ataque territorial, jamais o protagonismo
de guerra7;
b) o argumento econômico: na idade média gesta-se uma nova ordem econômica. Esta
mudança está baseada na passagem de uma economia natural (pagamento feito com trabalho
ou produtos) para uma economia financeira (pagamento feito em dinheiro). Isto dentro do
feudalismo como já para além dele. Brendler (1983, p. 11-13 e 112-113) afirma ser sinal claro
do que hoje chamamos de capitalismo moderno8. Ele descreve este processo a partir da
estrutura das minas de minério, cobre e prata. Na medida em que aumenta a demanda,
também aumentam as dificuldades em consegui-los. Surgem, neste contexto, as sociedades
que financiam os mineiros (a mão de obra) e recebem, como pagamento, o minério “in
natura”. Cria-se uma dinâmica: as sociedades antecipam recursos financeiros e tecnológicos
para o mineiro; este explora o minério e o vende “in natura” às sociedades. O resultado é:
alguns mineiros tornam-se donos de mina (caso do pai de Lutero) e muitos outros passam a
ser devedores das casas comerciais financiadoras. A casa comercial não assume risco de
produção nem tem perdas. Surgem aqui as grandes casas comercias, cujo símbolo maior até
hoje é a família dos Fugger.
Lutero foi um feroz combatente desta dinâmica econômica, especialmente por causa da
prática da usura.9 Os judeus são considerados praticantes da usura.10
7
LUTERO, M. Da guerra contra os turcos (1529). In: Obras Selecionadas, vol 6, p. 405-445.
8
O capitalismo moderno é uma construção de muitos anos e motivado por diversos fatores. Defendemos, com
Brendler, a tese de que aqui temos sinais evidentes da gestação deste novo modelo econômico.
9
Cf. LUTERO, M. Obras Selecionadas. Vol 5, p. 365 a 493.
10
Lutero acusa os príncipes de não punir o judeu que rouba para satisfazer sua ganância, ao contrário, este seria
mais valorizado pelos príncipes do que o próprio Deus. SASSE, p. 6.
1276
como povo eleito por teólogos protestantes; no movimento anti-trinitarista (em 1530); na
Silésia (1528) anabatistas substituem a observância do domingo pelo sábado; na Boêmia e na
Morávia alguns praticam a circuncisão.
Lutero se sente na obrigação de defender a fé. Afirma no texto Das Boas Obras: é boa obra
deste mandamento (o segundo) ser resistência a todas as falsas doutrinas, sedutoras e
heréticas, mesmo que se apresentem em nome de Deus.11
Trata-se da defesa da fé que professo em detrimento da fé que o outro crê e professa. Eliade 12
o chama de “Centro do Mundo”: um lugar sagrado e qualitativamente diferente para
determinado povo porque nele houve uma hierofania que organizou o caos. Quando o lugar
sagrado sofre um ataque, ele precisa ser defendido da ação do “inimigo” para que não volte a
ser caos. Eliade conclui que este sentimento de “Centro do Mundo” é universal e Finguerman
2005, p. 112) afirma que “Cada religião, a seu modo, acredita se situar no Centro do Mundo,
num ‘espaço’ sagrado que pode ser concreto (uma cidade, uma montanha, uma região) ou não
(uma aliança). Isto é, as religiões crêem em sua própria ‘eleição’.13
11
LUTERO, M. Obras Selecionadas, vol 2, p. 124-125.
12
Veja ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – a essência das religiões, 2001.
13
Esta ideia também é trabalhada pelo historiador Arnold Toynbee (1956) que afirma ser o ser humano
naturalmente centrado e achar que o mundo gira ao seu redor. Também em Victor Turner que afirma o ser
humano reconhecer a santidade somente no centro da peregrinação, sendo o caminho todo ele profano.
FINGUERMAN, 2005, p. 111, apud Turner, 1972, p. 214.
14
Veja BRENDLER, 1983, p. 58-59.
15
Veja BRENDLER, 1983, p. 60-61.
16
Como exemplo citamos: o catolicismo reconhece o papado como sucessor de Pedro (Mateus 16.18-19) como
símbolo da verdadeira igreja enquanto que a reforma aponta para os 4 somente: escritura, Cristo, fé e graça.
1277
ou de conversão ou de ignorá-lo e negá-lo. Parece ser este o script de Lutero e dos judeus,
particularmente no tocante à judaização do cristianismo.
A esperança – pelo menos no discurso cristão – aponta para o futuro, para o dia no qual as
resistências dos judeus cessem e todos sejam salvos (para os judeus, ao contrário, o futuro
aguarda o reencontro de todos sob a fé primeira). Lutero também expressa esse desejo
quando, mesmo cético, afirma orar para que os judeus se convertam. Mais recentemente Karl
Barth também se posicionou acerca do tema dizendo que a
descrença dos judeus [...] não poderia alterar o fato de que foi por meio
deste povo que Deus revelou a salvação dos homens. Poderiam resistir, mas
não alterar o decreto divino de redenção através de Jesus, que fora
crucificado também por eles. Por isso, a ‘Igreja aguarda pela conversão dos
judeus’, conclui.17
ALTMANN (1994, p. 268s) não fala em conversão de judeus ou cristãos, mas expressa o
desejo de que possam se encontrar em torno das redescobertas bíblicas.
d) a concepção de história em Lutero: lugar da ação de Deus e do diabo. Para Lutero a história
é o espaço da disputa entre Deus e o diabo. Entende que a resistência dos judeus, em última
análise, é ação do diabo. Este conceito é desenvolvido por Agostinho e Lutero o acolhe. A sua
visão de história é linear: inicia com a criação e termina com o julgamento final. Nesta
história o ser humano está, com ela precisa lidar, administrá-la e sofrer as situações que se
colocam. Calar é deixar o diabo agir livremente. Mesmo que Deus não seja dependente da
ajuda do cristão, este deve tomar parte de Deus e ser ferramenta em suas mãos. Firmeza,
perseverança e disposição do cristão ao martírio são sinais de testemunho claro do nome de
Cristo. O contrário também é verdade: os ataques sofridos são ataques do diabo e estes
precisam ser suportados (LOHSE, 1983, p. 199-201).
Esta visão de história reforça o que é uma característica da ética pessoal de Lutero: não
silenciar. Diz Lutero: “Pois o que até agora por desconhecimento toleramos (eu próprio não o
sabia) nos será perdoado por Deus.”18 E complementa: se não podemos convertê-los, é
17
FINGUERMAN, 2005, p. 142, apud BARTH, Karl. The Judgment and the Mercy of God. In: TALMAGE,
Frank E. (Ed). Disputation & Dialogue: Readings in the Jewish-Christian Encounter. New York : Ktav
Publishing House Inc, 1975, p. 40-48.
18
LUTHER, M. 1543, p. 95 (tradução livre).
1278
suficiente que denunciemos suas mentiras e descortinemos a verdade. 19 Esta denúncia tem
uma dupla finalidade: afastar a ira de Deus e acordar os judeus (...) (por uma) ação firme.20
Ou seja: no caminho da história, em direção a um final, a ação do diabo precisa ser combatida
com sinais claros do testemunho e fidelidade a Deus.
Febvre (2012, p. 136-137), por sua vez, retoma a ideia de que Lutero tem uma verdade
definida e que é aplicada de forma universal. Quando esta é atacada reage com fúria. Esta tese
de Febvre pode ser acolhida, pois Lutero define como pontos centrais da reforma os quatro
“solas”: fide, Christus, gratia e escriptura. Na relação com o judaísmo particularmente o
“somente Cristo” é relativizado, colocando em xeque o caminho salvífico cristão. Conforme a
concepção de história (salvífica, inclusive) de Lutero isto é trágico, pois a ação de Deus está
ameaçada, relativizada. As pessoas de fé precisam reagir. Ou seja, repete-se a concepção de
“centro de mundo” em Eliade.
Valemo-nos da peça teatral “Nathan der Weise”21 para conquistar impulsos à reflexão e
vivência da tolerância religiosa necessária no século XXI. “Nathan o sábio” é o título e
personagem principal de uma peça teatral de Gotthold Ephraim Lessing, de 1779, e narra da
forma como as circunstâncias da vida aproximam e interligam a vida de um judeu, um cristão
e um islamita. Pano de fundo da peça é a disputa entre a teologia protestante alemã e o
iluminismo alemão, culminando no que é conhecido como “Fragmentenstreit”.22 No terceiro
ato da peça temos a parábola dos três anéis, à qual nos referimos em particular, por trazer a
pergunta acerca da verdadeira religião. Conta a parábola: um pai tem um anel cuja pedra é
muito valiosa. Este anel é dotado de uma particularidade: ele torna a pessoa boa e agradável
diante de Deus e dos homens, desde que ela o carregue nesta confiança. Passado de geração
em geração ao filho herdeiro, eis que um pai ama igualmente seus três filhos e não quer
privilegiar nenhum deles. Decide então fazer duas cópias “perfeitas” do anel. Somente o pai
19
SASSE, M. p. 8. (tradução livre).
20
LUTHER, M. 1543, p. 93-95. No mesmo texto, à página 49, Lutero atribui a mentira, dureza de coração e
falsa fé dos judeus à ação do diabo. Roga para que Cristo, por misericórdia, os converta e mantenha os cristãos
em Sua fé, não permitindo que se afastem da eternidade.
21
A fonte principal da trama está em: <http://de.wikipedia.org/wiki/Nathan_der_Weise>, acesso em 17.11.2012.
22
Acerca desta disputa confira VIDEIRA, Mario. In: Trans/Form/Ação. 2011, v.34, p. 57-74. Disponível em
<http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1155/1031>. Acesso em: 17 nov.
2012.
1279
reconhece o anel verdadeiro (aqui está a essência da pergunta feita a Nathan: qual é a religião
[anel] verdadeira?). O pai entrega um anel a cada um dos filhos dizendo tratar-se do anel
verdadeiro. Ao concluir a entrega o pai morre. Os filhos, inconformados, vão a juízo a fim de
descobrir qual dos três anéis é o verdadeiro. O juiz, porém, não tem condições de o
determinar. Em vez de sentenciar, o juiz aconselha os três irmãos. Os lembra que o anel tem a
particularidade de tornar agradável e bom o portador junto às outras pessoas. O portador do
anel verdadeiro manifestará este dom. Se esse efeito do anel não se tornar visível em nenhum
dos três, então significa que o anel verdadeiro foi perdido (o juiz não explicita quando isso
aconteceu. Em tese o anel do pai também já pode ter sido falso). E conclui junto aos irmãos:
que cada um acredite ser o seu anel o verdadeiro. Cada portador do anel deve se esforçar para
atrair o efeito da bondade do anel para si mesmo (amar “para fora”, o próximo, não somente a
si mesmo, interiormente).
A parábola aponta para indicativos consistentes sobre a verdadeira religião: Deus ama
igualmente os seus filhos e filhas; a verdadeira religião é a que expressa o amor ao próximo e
o torna uma prática, uma vivência; assim como não é possível definir qual é o anel
verdadeiro, também não é possível definir, em essência, a religião verdadeira; o fato de
existirem três anéis não é um problema para o pai. Os irmãos, por sua vez, não podem se auto
definir portadores do anel verdadeiro sob pena de não serem expressão do amor; o anel (a
religião) por si só, nada faz – é necessária a participação ativa de quem o carrega. Se houver
ofensa mútua, nenhum dos irmãos será o portador do verdadeiro anel. A autenticidade da
religião (do anel) é reconhecida na medida em que doa amor; viver no sentido de atrair para si
a benesse do anel é considerar a condenação de práticas religiosas como intolerância e
proselitismo entre as religiões. Em suma, Lessing crê que a verdadeira religião não se mostra
no dogma, mas na ação amorosa da religião. E esta prerrogativa é universal.
Elas se reconhecem herdeiras do movimento da reforma do século XVI. Isto inclui lidar com
as limitações e reveses do movimento. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
1280
tornou público em 1992 documento no qual afirma „Deus não é racista“23. Nele condena toda
forma de racismo, discriminação e violência e afirma ser o antisemitismo um dos mais
hediondos, lembrando-se do holocausto da Alemanha nazista. Conclama ao respeito à
diversidade de credos criada por Deus e convida a resistir ao início de toda e qualquer forma
de discriminação. Também a Igreja Evangélica na Baviera (Alemanha) se posicionou em
documento de 1999 intitulado „Christen und Juden: Erklärung der Evangelisch-Lutherischen
Kirche in Bayern“ (Cristãos e Judeus: declaração da Igreja Evangélica Luterana na Baviera).24
Este documento é mais específico em relação à questão do judaísmo e elenca três
perspectivas:
b) perspectivas teológicas: reconhece que o povo judeu continua sendo „povo de Deus“,
apesar daqueles que não acolheram Cristo (Romanos 11.29) – isto se deve à fidelidade de
Deus, não a escolhas humanas; o judeu Jesus como o Cristo da Igreja (2 Coríntios 1.20 afirma
que a mensagem de Cristo é uma continuação da mensagem do Antigo Testamento); e o
significado do Antigo Testamento na Igreja (a concepção de que o Novo Testamento não se
opõe ao Antigo Testamento, pelo contrário, o concebe como testemunha da lei e da
promessa).
c) aponta temas que precisam ainda estar na pauta de debates. Entre eles a postura da Igreja
Evangélica Luterana na Baviera durante a segunda guerra mundial.
23
Documento disponível em <http://www.luteranos.com.br/conteudo.php?idConteudo=12586>. Acesso em: 06
ago 2013.
24
Documento disponível em <http://www.freiburger-rundbrief.de/de/?item=704>. Acesso em: 06 ago 2013.
1281
Considerações finais
Lutero expressa, no primeiro texto, um respeito e amor tolerante para com o povo judeu. Uma
fé que se doa e que desafia o cristão à construção de uma cultura da paz e tolerância. No
segundo texto é refém da verdade redescoberta. Ao ser absolutizado, o Evangelho
redescoberto em Lutero perde a dimensão amorosa, libertadora e salvadora para se tornar
intolerante. Esta postura não é assumida pelas igrejas cristãs herdeiras do movimento e legado
da reforma, pois assume a perspectiva da ira humana em detrimento da redescoberta
evangélica do amor e da graça de Deus.
O século XXI ainda sente as dores de duas guerras mundiais, de períodos sangrentos de
ditaduras militares por toda a América Latina, de regimes políticos absolutistas e sangrentos
em várias regiões do mundo, de um sistema capitalista devorador de vidas, de homofobia, etc.
Mas também respira o renascimento de vozes como as do movimento de mulheres, das
religiões afro, de expressão da liberdade de grupos minoritários, etc. Sinais de vida ainda não
consolidados. Neste contexto a voz da fé cristã precisa ser a voz da vida, do respeito ao
próximo, do amor ao próximo, da abertura e do diálogo respeitoso com o diferente.
Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª. edição rev. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1993.
BRENDLER, Gerhard. Martin Luther: Theologie und Revolution. Berlin: VEB Deutscher
Verlag der Wissenschaft, 1983.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo:
Três Estrelas, 2012.
1282
LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida e mensagem. Tradução Walter Altmann e
Roberto H. Pich. São Leopoldo: EST, Sinodal, 1998.
LOHSE, Bernhard. Martin Luther. Eine Einführung in sein Leben und sein Werk. 2a. edição.
München: Beck, 1983.
LUTERO, Martinho. Da guerra contra os turcos (1529). In: Obras Selecionadas, vol 6. São
Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1996, p. 405-445.
_________. Economia. In: Obras Selecionadas. Vol 5. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/
Concórdia, 1995, p. 365 a 493.
_________. Das Boas Obras. In: Obras Selecionadas. Vol 2. São Leopoldo/Porto Alegre:
Sinodal/Concórdia, 1989, p. 97 a 170.
Internet
LUTHER, Martin. Von den Juden und ihren Lügen. Erstausgabe, Wittenberg 1543, S. 95, 96
e 99. Disponível em http://www.theologe.de/martin_luther_juden.htm#Auszuege. Acesso em:
07 out. 2012.
SASSE, Martin. Martin Luther über die Juden: Weg mit ihnen! a.a.O., s. 8. Disponível em
http://www.theologe.de/martin_luther_juden.htm#Auszuege. Acesso em: 07 out. 2012.
1283
1284
GT12 – História cultural das religiões
Coordenador/a
Eliane Moura da Silva
Carlos André Silva de Moura Livre docente MS-5 em História pela
Doutorando em História pela UNICAMP. UNICAMP.
Comentador
Paulo Julião da Silva
Doutorando em História pela UNICAMP. Bolsista FAPESP.
Resumo
Depois da virada cultural da década de 1970, novos objetos e abordagens foram criadas por
historiadores de todo o mundo. Sob o impacto dessas reflexões, a análise cultural da história
das religiões também tem sido reformulada. Os estudos em história cultural comportam novas
perspectivas sobre o papel que as religiões desempenham na construção de identidades e nas
diferentes relações sociais de gênero, etnicidade e classes que estabelecem parâmetros com
forte influência nas práticas cotidianas, espaços, atitudes e representações. O GT pretende
receber comunicações sobre os seguintes temas: 1. Questões teóricas e metodológicas sobre
história das religiões; 2. História de instituições e confissões religiosas; 3. Gênero e religião;
4. Missionarismos, colonialismos e cristianização; 5. Diálogos religiosos na América Luso-
espanhola; 6. História das teologias e da construção de crenças, devoções e discursos
religiosos nas sociedades modernas, pluralistas, cristãs, não-cristãs e multiculturais.
1285
A África lusófona no período de descolonização: missões e
alteridades na Revista O Campo é o Mundo
Harley Abrantes Moreira1
Introdução
Esse trabalho tenta realizar algumas reflexões preliminares de pesquisa acerca das missões
protestantes brasileiras na África Lusófona. Nessa investigação, importa discutir a percepção
dessas igrejas e suas agências missionárias sobre as regiões africanas de colonização
portuguesa, seus contextos socioculturais e suas religiões tradicionais. Para isso, será
analisada a possibilidade de trabalho com a revista O Campo é o Mundo, durante o período de
descolonização, com ênfase em duas colônias: Moçambique e Angola.
Como acontecia em muitas regiões da África, as missões cristãs eram os agentes mais
ativos na luta contra a escravidão nativa [...] apesar da abordagem conservadora dos
missionários – católicos e protestantes da mesma forma – os postos das missões
conquistavam a reputação de centros de refugiados para escravos, e, o número de escravos
fugitivos procurando asilo aumentou na década de 1870 (LOVEJOY, 2002, p. 336).
1
Professor efetivo do curso de História da Universidade Estadual de Pernambuco, unidade Petrolina. Possui
mestrado em História pela UFRN, graduação em História pela UFC e bacharelado em Teologia pelo Seminário
Teológico Batista do Norte do Brasil. Contato: harleyabrantes@hotmail.com.
2
Informações disponíveis em: http://www.africanos.eu/ceaup/index.php?p=g&n=346
1286
Todavia, é no século XX que a expansão do cristianismo, em detrimento da redução das
religiosidades tradicionais se faz sentir com maior ênfase no continente, afirma-se que, antes
desse período, apenas 10% da África era cristã e que, atualmente, cerca da metade o é. 3 Essa
grande transformação no campo religioso africano torna urgente o estudo dos eventos
missionários e suas articulações com a vida social, política e cultural de recortes temporais
mais específicos e, nesse sentido, as décadas centrais foram especiais para o continente uma
vez que suas metrópoles colonizadoras vivenciavam, até o fim da 2ª guerra Mundial, políticas
expansionistas que se expressavam através de maior vigor colonial e, posteriormente, da
abertura que se antecipava aos movimentos de independência, no intuito de causar um
momento neocolonial dentro das repúblicas independentes.
É dentro desse contexto que a relevância dos fenômenos religiosos se faz notar. Especialistas
em História da África afirmam que o africano é um ser profundamente crente e religioso e que
a religião impregna toda a vida social e comunitária no continente, consistindo não apenas um
conjunto de crenças, mas um modo de vida, o fundamento de suas culturas, identidades e
valores morais (TSHIBANGU, 2010).
Kwame Nkrumah, em seus esforços para construir uma ideologia pan-africanista que
unificasse as identidades em prol de uma agenda social transformadora, via nas religiões uma
força e um recurso indispensável para atingir tal finalidade e, muito embora compreendesse
que a sociedade africana ancorava-se na religião tradicional, entendia que era impossível
ignorar a experiência histórico-religiosa do Islã e do cristianismo já inseridos nas sociedades
africanas, de modo que o pluralismo religioso, durante o período colonial, torna-se uma das
grandes características do continente (K. NKRUMAH, 1964 Apud TSHIBANGU, 2010).
3
Ibdem, Ibdi.
1287
A revista O Campo É O Mundo: colonialismos e alteridades
MOÇAMBIQUE: Pastor José Nite Pinheiro E Cilcéia Cunha Pinheiro; Valnice Milhomens
Coelho; Albertina Ramos da Silva; Lourenço Marques; Maria Ivonete da Costa. ANGOLA:
Pastor Levy Barbosa da Silva e Elizabeth Barbosa da Silva; Elnice de Brito (REDAÇÃO,
1974, p. 27).
O Pastor A. Antônio Bornes, obreiro da Baptist Missionary Society, desde 1959, foi
missionário em Angola por alguns anos [...] Seu artigo divide-se em duas partes: a primeira
refere-se às atividades missionárias por ele realizadas e oque presenciou até 1961; a
segunda parte é um breve relato no que respeita a situação da evangelização. As
informações que seguem precisam ser lidas com oração, de joelhos, para que Deus tome
uma providência e abra as portas dos céus em favor daquelas almas sofredoras. [...] Desde
1948, aprofundou-se a penetração portuguesa pelo interior do continente angolano com
forte presença católica. Questões políticas que as vezes envolvem nossos missionários sem
que eles queiram[...] As igrejas batistas cresceram animadoramente nos últimos vinte anos
(REDAÇÃO, 1966, p. 4 e 5).
4
A esse respeito, ver SILVA, Elizete. Os Batistas no Brasil. In: Fiel é a Palavra. P. 286-287.
1288
Segundo as informações relatadas, Angola já era campo de uma variedade de juntas
missionárias evangélicas que cooperavam com a Aliança evangélica de Angola, com sede na
capital Luanda, para “poder atender às necessidades do país” (Ibdem, Ibdi) e, uma vez que
nossa problematização central diz respeito à discussão das alteridades ou de como se
comportar em relação a outrem (TODOROV, 1996), é importante notar, em trechos como
este, a construção histórica e discursiva do outro e de sua diferença, quase sempre marcada
pelo sinal do sofrimento, da carência e, consequentemente, da vitimização e inferioridade.
No Brasil, esses estudos tem despertado a atenção de historiadoras como Eliane Moura da
Silva que, a esse respeito, afirma:
1289
ensinamentos. Por exemplo, o fato de que chefes locais requisitaram a presença de escolas
missionárias e clínicas médicas como um esforço contra seus inimigos e competidores
políticos. Para estes autores, a ênfase nos paradigmas colonialistas acabou por silenciar os
agentes locais e ignorar como a mensagem cristã foi traduzida de acordo com determinadas
necessidades sociais e espirituais de cada grupo e cultura (SILVA, 2011, p.7).
1290
dramática diminuição das religiões tradicionais, discutindo de que forma os missionários
construíam a diferença que se estabelecia estre estes e o outro.
A esse respeito, a redação da revista apresentava sua visão acerca dos africanos locais, ainda
em 1966, no momento em que ainda tentava entender o continente a partir das experiências de
missionários enviados por agências internacionais:
Talvez seja difícil imaginar o ambiente psicológico da mente de uma pessoa criada no puro
feitichismo que exerce uma influência tão profunda em sua mente e chega a viver
assombrada pelo paganismo, muitos apesar de crentes. Por isso a igreja se torna muito
exigente para o ingresso de novos membros. O meio ambiente também serve de base para
justificar a disciplina da igreja. As orgias noturnas com o batuque que faz vibrar a solitária
noite, os tambores, a potentíssima bebida alcoólica e toda espécie de feitiçaria e
imoralidade que se misturam. Essas coisas, como não podiam deixar de acontecer, são
proibidas aos crentes (REDAÇÃO.1966, p.6).
Apesar de não ser objetivo desse texto discutir com profundidade a história das religiões
africanas, vale ressaltar que qualquer generalização nesse sentido é perigosa. Mario Cutis
Giordani, a esse respeito, alerta para o notável pluralismo religioso e para alguns traços
comuns às religiões tradicionais como o contato íntimo com a natureza, em razão do qual
homens (vivos ou mortos) se transformariam em animais ou plantas; a plena integração entre
o natural e o sobrenatural e o pragmatismo dos cerimoniais religiosos que visavam
comunicação com os deuses e antepassados ou o alcance da fertilidade (Giordani, 1985, p.
232).
Em outras palavras, o estudo das religiões tradicionais africanas pode revelar pontos
importantes para uma interpretação da cultura local, compreendida pelos textos da revista em
função de sinais de inferiorização e pecaminosidade. A existência de institutos educacionais
voltados para a formação missionária e os próprios conteúdos da revista ora analisada, nos
levam a afirmar que a opção por termos como “feitiçaria” para se referir à religião do outro
não indica ignorância das culturas africanas, e sim, uma “postura de alteridade” que precisa
ser investigada. Sobre isso, Tzevetan Todorov afirma que
1291
É preciso distinguir entre pelo menos três eixos, nos quais pode ser situada a problemática
da alteridade. Primeiramente um julgamento de valor, (um plano axiológico): o outro é bom
ou mau, gosto dele ou não gosto dele, ou, como se dizia na época, me é igual ou me é
inferior (pois, evidentemente, na maior parte do tempo, sou bom e tenho auto-estima…).
Há, em segundo lugar, a ação de aproximação ou de distanciamento em relação ao outro
(um plano praxiológico): adoto os valores do outro, identifico-me a ele; ou então, assimilo
o outro, impondo-lhe minha própria imagem; entre a submissão ao outro e a submissão do
outro, há ainda um terceiro termo, que é a neutralidade ou indiferença. Em terceiro lugar,
conheço ou ignoro a identidade do outro (seria o plano epistêmico); aqui não há,
evidentemente, nenhum absoluto, mas uma gradação infinita entre os estados de
conhecimento superiores e inferiores (TODOROV, 2003, p. 269).
Considerações finais
1292
ponto, ao levar a civilização e a religião cristãs para o luso-africano, esses missionários
também não trouxeram o outro para dentro de si.
Referências
ALMEIDA, Vasni; SANTOS, Lyndon Araújo; SILVA,Elizete da. Fiel é a Palavra: Leituras
Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil. Feira de Santana, UEFS Editora, 2011.
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da Religião. São
Paulo, Paulos, 1985.
REDAÇÃO. Relação dos missionários. O Campo é o Mundo, Abril a Junho de 1974, p. 28.
SANNEH, Lamin. West African Christianity: The Religious Impact. New York, Maryknoll:
Orbis Books, 1983.
TSHIBANGU, T.; AJAYI, A. A. & SANNEH, L. Religião e evolução social. In: MAZRUI,
A. A. & WONDJI, C. (Ed.). A África desde 1935. 2ª. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.
Notícia na internet
1293
1294
A emperie Católica como parte de uma filosofia ultramontana: as
missões capuchinhas no nordeste mineiro (1873-1889)
Tatiana Gonçalves de Oliveira1
Introdução
As missões católicas na Europa entre os séculos XVII e XIX foram importantes para a difusão
de princípios do Concílio de Trento (1545 e 1563). Louis Chântellier (1994), ao estudá-las,
percebeu como seus representantes utilizavam conhecimento e método para se inserir nas
comunidades e levar a cabo o processo de evangelização. À exemplo das ações jesuítas, os
missionários Capuchinhos Frei Serafim de Gorízia e Ângelo de Sassoferrato fundaram no
nordeste mineiro, em1873, o Aldeamento de Itambacuri e lá deram continuidade aos métodos
de evangelização de índios e nacionais.
Autores da CEHILA2 como Eduardo Hoornaert (1979) apostavam nos aldeamentos como o
rincão da preservação de uma consciência católica conservada ao veneno do padroado3.
Nosso objetivo é pensar nesses missionários como agentes de uma Igreja reformista, que
buscavam na prática, formar as bases dos fundamentos Católicos tão apregoados pelos
ultramontanos em níveis intelectuais.
1
Licenciada em História pela UFV, graduanda no bacharelado pela mesma instituição, sob a orientação da
professora Draª Karla Denise Martins. Contato: tatiana.oliveira@ufv.br.
2
Comissão de Estudos da Igreja na América Latina, fundada em 1973 na cidade de Quito, Equador, sob a
liderança do religioso argentino Enrique Dussel. Segundo Karla Denise Martins, esses pesquisadores da
CEHILA estavam preocupados em libertar a consciência popular, obscurecida pela relação entre estado e Igreja,
resultando num Catolicismo deformado. Para mais informações consultar: MARTINS, Karla Denise. O Sol e a
Lua em tempo de eclipse: a reforma católica e as questões políticas na província do Grão-Pará (1863-1878),
Campinas, SP, 2001. Dissertação (Mestrado em História). IFCH, Unicamp.
3
O Padroado real português pode ser definido em geral como uma combinação de direitos, privilégios e deveres
concedidos pelo papado à Coroa de Portugal na qualidade de patrocinadora das missões católicas e dos
estabelecimentos eclesiásticos missioneiros na África, Ásia e Brasil. Para mais informações ver: BOXER,
Charles R. A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770. Trad. Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
4
Os sertões, segundo Núbia Braga, devem ser compreendidos através da perspectiva, como representações dos
espaços por uma determinada cultura e suas relações sociais. Segundo a autora a demarcação de terras, de
fronteiras é fruto de conflitos políticos, sociais e econômicos. Muitas vezes os sertões são associados a lugares
desabitados, terras de ninguém, ou por regiões habitadas por índios, selvagens. Ver mais em: RIBEIRO, Núbia
Braga. Os povos indígenas e os sertões das minas do ouro no século XVIII. (Tese de doutorado), FFLCH,
Universidade de São Paulo, USP-SP, 2008.
1295
expansionista no Segundo Reinado estava intrinsecamente relacionado com a questão
indígena, suas terras e sua cultura, que eram vistas pelo governo e também pela Igreja como
lugares para a ação da civilização.
A defesa política da catequese missionária, tal como realizada pelo influente diretor de
Itambacuri, fazia-se necessária naquela época em que administrar oficialmente a população
indígena e sua força de trabalho significava deliberar sobre questões que envolviam
interesses presentes nas principais pautas do debate nacional, às voltas com o problema da
abolição e com o desgaste do antigo regime, responsável pela manutenção da catequese
missionária, entre outras atribuições designadas ao poder eclesiástico (MATTOS, 2004,
p.180).
Os capuchinhos foram chamados por decreto imperial em 1840 para cuidarem, além de outras
missões, da civilização dos índios5 nos sertões. Como um importante ramo do serviço público,
os aldeamentos ganharam no século XIX uma configuração diferente dos tempos coloniais.
Primeiramente, Dom Pedro II buscou sistematizar esse empreendimento como um serviço
público, organizando-o administrativamente, criando cargos gerais e locais, exigindo
relatórios acerca dos gastos e despesas, além de mapeamentos com o número de índios nas
províncias e localização dos aldeamentos.6
Essa busca por uma sistematização dos aldeamentos consolidou com a promulgação do
Decreto 426 de 1845, criando o Regulamento acerca das missões de catequese e civilização
dos índios7. Segundo José Oscar Beozzo (1983), esse documento possuía em suas diretrizes a
forma como se deveriam retomar as missões para a catequese com os índios, enfatizando o
predomínio da ordem capuchinha e dos militares para a civilização dos gentios. Além de
estabelecer o meio pacífico para catequizar os índios, deixou-os sob a administração espiritual
5
Teófilo Benedito Otoni, em suas Notícias sobre os selvagens do Mucuri, em carta destinada ao IHGB no ano de
1858, descrevia a população indígena do Mucuri, composta até aquele momento por: Macunis, Malalis,
Machacalis, NakNenuks, Aranaus, Bakués, Biturunas, jyporocks, e Pojichás, todos identificados como parte da
nação botocudos, denominação genérica para os índios que usavam botoques (alargadores) na boca. Em
Itambacuri havia um pouco de cada aldeia, o grande obstáculo ao trabalho missionário e considerados o “flagelo
do Mucuri”, eram os Pojichás. Ver mais em: DUARTE, Regina Horta. Notícia sobre os Selvagens do Mucuri.
Belo Horizonte: UFMG, 2002.
6
Op.cit; p.105
7
Segundo José Oscar Beozzo, que analisou as leis e regimentos da política indigenista no Brasil colônia e
império, a lei de 1845 parecia ter dois objetivos, por fim aos conflitos armados nas áreas de expansão do Estado
Nacional, e liberar as terras indígenas para a ocupação da lavoura. Ver mais em: BEOZZO, José Oscar. Leis e
regimentos das missões: política indigenista no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.
1296
dos missionários. O novo Regimento das Missões reutilizava alguns pressupostos do
Diretório Pombalino8, como a manutenção do cargo de Diretor das aldeias.
Nesse sentido, o aldeamento de Itambacuri pode ser analisado como um verdadeiro palco de
disputas entre representações10 e discursos que se materializaram nas práticas de missionários,
8
O Diretório Pombalino foi criado em 1755 pelo irmão do Marquês de Pombal Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, então governador do Maranhão e Grão-Pará, para regulamentar as questões referentes à administração
dos índios e sua liberdade. Somente em 1757 este se estendeu as outras províncias. Com esse documento foram
regulamentadas e, em alguns pontos, reformadas a Lei de liberdade dos Índios de 1755, dispondo sobre a
liberdade dos índios e abolindo as administrações das ordens religiosas. Estabeleceu que os índios, apesar da
maioridade assegurada anteriormente pela lei de 1755 precisavam ser tutelados. A figura do diretor civil surge
nesse documento como o responsável por levar os índios ao trabalho e a civilização. Por esse mesmo documento,
os aldeamentos, então sob a administração temporal e espiritual dos jesuítas deveriam se transformar em vilas
sob a administração civil. Além de perder a tutela e controle sob os aldeamentos, os jesuítas foram expulsos do
Brasil em 1759/1760 acusados de usurpar as terras indígenas e sua mão de obra em benefício próprio. Foi
somente em 1798 que o Diretório Pombalino foi abolido, dando início a uma fase conhecida na historiografia
como “guerra aos bárbaros” e ausência de uma política “branda” no tratamento do índio, só retomada com o
Regulamento de 1845. Ver mais em: BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista
no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.
9
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais pelo presidente da província
Joaquim Floriano de Godoy no ato de passagem de sua administração para o vice-presidente Francisco Leite da
Costa Belém. Ouro Preto, Tip. de J.F. de Paula Castro, 1873.
10
Segundo Roger Chartier, Representações são classificações, divisões e delimitações que organizam a
apreensão do mundo social. Estas, devem ser pensadas como “apropriação criadora” porque permite perceber as
1297
índios e nacionais. Os missionários capuchinhos frei Ângelo e Serafim eram, nesse sentido,
representantes de uma Igreja reformista em um espaço criado para atender aos interesses de
um projeto de Estado. Nesse ambiente híbrido, dificilmente poderemos pensar em imposições
culturais, mas em circulações, em adaptações que criaram uma cultura própria, que traduziam
para além das pretensões universalistas da Igreja e do projeto colonial, uma experiência
Ultramontana.
Segundo Gustavo Souza de Oliveira (2010, p.14), em sua dissertação sobre o movimento
Ultramontano em Minas Gerais, o processo reformador do Catolicismo no século XIX, levado
a diante por alguns bispos, a saber, Dom Antônio Ferreira Viçoso (Bispo de Mariana), Dom
Antônio Joaquim de Melo (Bispo de São Paulo), Dom Antônio de Macedo Costa (Bispo do
Pará) e Dom Vital de Oliveira (Bispo de Olinda) esteve longe da rigidez apregoada por Roma,
adaptando-se às necessidades locais. Nosso objetivo é pensar no desenvolvimento dos ideais
reformadores a partir da sua práxis nas missões dos capuchinhos frei Serafim de Gorizia e frei
Ângelo de Sassoferrato, e de que forma estas contribuíram para a formação de uma cultura
religiosa no nordeste mineiro.
Segundo Louis Châtellier (1995, p.262), “o Ultramontanismo teve suas origens nas missões
jesuítas nos campos europeus, que buscavam varrer da cultura popular vestígios de uma
crença pagã através da catequese”. No século XIX, o movimento reformador do Catolicismo
seria identificado por seus adversários perjoritivamente como “jesuitismo”.
A partir Concílio Tridentino, ocorrido entre 1545 e 1563, a Igreja Católica pretendeu expandir
suas missões pelas terras de missão, inaugurando o que Nicolas Gasbarro (2006) chamou de
Cristianismo em ação. Segundo Gasbarro, “o encontro entre diferentes culturas deu origem a
um outro cristianismo[...]” (2006, p.78) a partir do qual as relações sociais entre os grupos
envolvidos se forjaram dentro de um código específico. Dessa forma, para o autor, as religiões
são pensadas do ponto de vista cultural, como representações históricas que aspiram
universalidade. Essa pretensão de uma cultura universal a partir da expansão do Catolicismo
era um dos pressupostos do Concílio Tridentino. No entanto, a cultura religiosa no Brasil se
ressignificações dos objetos de uma forma dialógica e não verticalizada, fixa e irredutível. Ver mais em:
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa, Presença, 1998.
1298
criou a partir de bases familiares, particulares e desvinculadas do poder central da Sé Romana.
Na coletânea sobre a História da Igreja no Brasil, em sua segunda edição, o historiador da
CEHILA, Eduardo Hoornaert descreveu a religiosidade no Brasil Colônia “com traços dos
elementos da Idade Média: oratórios, ermidas, pregadores itinerantes, confrarias, casas de
misericórdia, romarias, festas dos padroeiros e paróquias” (2008, p.112). Estas características
teriam, segundo o autor, inibido uma verdadeira “consciência religiosa” entre o povo, que
além de tudo sofria pela carência de religiosos dedicados exclusivamente aos trabalhos
espirituais.
O jornal O Apóstolo, ao se dirigir contra a “praga” maçônica, e tomando como exemplo o que
se passava na Europa, recomendava ao povo:
1299
Será talvez esta a ultima que vos dirigimos, por occasião da seita maçônica que se vai
introduzindo no nosso bispado, e que daqui a pouco produzirá entre nós as mesmas
desordens que está produzindo nas Bispados litoraes do Imperio. Abram os olhos vem, e
vejam o que vai lá pela antiga Europa, e o que vai acontecendo entre os nossos vizinhos.
Cada um agarre bem o que tem, diz S. João no Apocalypse, tene quod habes. É christão?
Seja verdadeiro christão até a morte. Temos quem nos dirija para a felicidade deste mundo,
obedeçamos: temos quem nos dirija para a feliidade do outro, obedeçamos.
Mas se aquelles nos dissere: – a sociedade maçônica é boa, nada tem contra a religião; e a
outra autoridade nos disser: – é má, é péssima; não entre nella. Que faremos? Nosso
Senhor diz: “Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos despreza a vós, a mim
despreza”.11
Honra e glória ao governo Imperial, que se empenha em pagar sua dívida com Deus
estendendo misericórdia e civilização aos índios. As aldeias estavam até aquele momento (
antes da criação dos aldeamentos centrais) (grifo meu) nas mãos de diretores omissos, que
morando distante das aldeias, sem receber remuneração pecuniária ou honorifica( já que a
graduação de tenente-coronel não era vitalícia) não se interessavam em entranharem-se nas
matas para civilizar os gentios[...]12
Ainda no relatório, Musqueira ressaltava que a chegada dos frades Serafim e Ângelo seria
uma solução para os problemas enfrentados pela província com os conflitos entre os colonos e
índios no Mucuri. “Estes, longe de repelirem os frades, o que não seria de admirar, visto o
11
PASTORAL. Transcrição O Apóstolo. Seção Noticiário. 24/08/1873. Rio de Janeiro. Nº34, Ano VIII, p.5.
12
Relatório do diretor Geral dos índios, 30 de novembro de 1872. In: Relatório que o presidente da província
Joaquim de Godoy apresentou à Assembleia legislativa provincial em 15 de Janeiro de 1873, p.12.
1300
estado de hostilidade em que se achão com os colonos, foram logo visitá-los em
Philadelphia[...]”13, mais tarde Teófilo Otoni, em homenagem ao político liberal. Este havia
desbravado o Vale do Mucuri através da sua Companhia de Comércio e Navegação, criada
juntamente com Honório Benedito Otoni em 1847.14
Para além dessa visão verticalizada, de sobreposições de culturas nas relações em disputa em
torno da natureza e sociedade em Itambacuri, Marta Amoroso (2009, p.67) enfatiza o papel
dos aldeamentos na construção de sociabilidades, ressignificação de identidades, e trocas
simbólicas.
Para a autora, através da Propaganda Fide,16 as missões dos capuchinhos ganharam um teor
mais moderno, devido à preocupação do Vaticano em romanizar o Catolicismo. Nesse
sentido, a antropóloga enfatiza a preocupação dos missionários capuchinhos em desenvolver
uma metodologia de conversão dos índios em cristãos trabalhadores.
13
Relatório do diretor Geral dos índios, 30 de novembro de 1872. In: Relatório que o presidente da província
Joaquim de Godoy apresentou à Assembleia legislativa provincial em 15 de Janeiro de 1873, p.13.
14
A historiadora Regina Horta Duarte organizou correspondências e cartas escritas por Teófilo Otoni acerca dos
povoadores do Mucuri, os índios que lá habitavam quando chegou sua companhia, e em especial os relatos de
Otoni foram, que foram respostas às críticas feitas pela opinião pública à sua empresa. Ver mais em: DUARTE,
Regina Horta. Notícia sobre os Selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
15
Entre alguns estudiosos da questão indígena no século XIX, cuja teoria do deslocamento do interesse da
sociedade imperial do índio para suas terras, apontamos o trabalho de José Oscar Beozzo, Leis e Regimentos das
missões: política indigenista no Brasil. São Paulo, Loyola, 1983.
16
Campanha pela propagação da fé instituída pela Igreja católica no Século XVII. Foi criada em 1622 pelo Papa
Gregório XV e consolidada pelo seu sucessor papa Urbano XIII por meio do “Colégio Urbano de Propaganda”
em 1627, que organizou formalmente o processo de difusão da doutrina Cristã nas chamadas “terras de
Missões”. Os capuchinhos no Brasil estavam diretamente ligados a Propaganda, pela qual recebia suas
orientações. Esta dependência direta de Roma e não do Padroado dava as missões capuchinhas uma maior
liberdade de ação do que dispunha, por exemplo, as ordens seculares. Para mais informações ver: PRIMÉRIO,
Fidélis Mota de. Os capuchinhos em terras de Santa Cruz nos séculos XVII, XVIII e XIX. Apontamentos
Históricos. São Paulo, 1942.
1301
historiador da Ordem: em ambos os terrenos, tratava-se de enfrentar a decomposição
apenas aparente do universo, tendo em vista sua representação recomposta. No caso de
Itambacuri, a missão católica pretendeu apresentar a mistura purificadora, da qual emergiria
a unidade possível, o índio que pela mistura das raças era feito cristão laborioso.
(AMOROSO, 2009, p. 65)
Ao falar das missões de Frei Serafim e Ângelo em Itambacuri, o jornal O Apóstolo exaltava a
eficiência das missões capuchinhas em contraposição ao projeto liberal de colonização e
civilização das áreas de fronteira através da imigração estrangeira.
A “escória” a que o jornal se referia eram os colonos alemães, belgas, suíços, portugueses e de
outras nacionalidades que partiram da Europa para colonizar o nordeste mineiro. Era
recorrente no jornal relacionar a imigração estrangeira à desordem, republicanismo e
17
MUCURI. Transcrição O Apóstolo. Seção Comunicados. 24/08/1873. Rio de Janeiro. Nº34, Ano VIII, p.3.
1302
protestantismo, em contraposição, as missões católicas seriam a melhor opção para a
Monarquia, uma vez que traziam os valores sedimentares da civilização, Catolicismo e
trabalho.
Além de ser portadora da “verdadeira” civilização, pois era a que levava o homem a conhecer
a palavra de Deus e seguir a doutrina cristã, as missões católicas, defendia o jornal, estavam
abnegadas de qualquer outro interesse, que não o da ação apostólica.
Frei Serafim, abandonando então o rio São Mateus e cedendo às insistências dos índios,
acompanhado pelos mesmos, tomou o caminho indicado, em busca da terra de Canaã. Na
tarde do dia 19 de fevereiro de 1873, Frei Serafim, seu fiel companheiro e sua estranha
comitiva chegaram ao alto da serra que divide as águas do Itambacuri e Córrego d’Areia.
Do alto, dominando as alturas do soberbo vale que se deparava com extasiando a vista,
como que arrebatado pela beleza selvagem do panorama imponente, compreendeu ser
aquele lugar indicado pela vontade de Deus para plantar o marco da fundação do
aldeamento e a tenda do seu apostolado, inspirado e com acento profético, exclamou:
DAQUI NÃO SAIREI MAIS! (PALAZZOLO, 1973, p.43).
1303
Assembleia Provincial no ano de 1875, o então presidente da província, Pedro Vicente de
Azevedo trazia em anexo o relatório do diretor geral dos índios, Luiz de Magalhães
Musqueira, que falava sobre a situação do aldeamento e das lavouras plantadas pelos freis
para atender as necessidades dos habitantes de Itambacuri. A descrição de Musqueira
enfatizava os profícuos resultados daquele aldeamento, que até aquele momento havia
plantado 12 mil pés de café, roças de milho, além de terem construído alguns edifícios, para a
moradia dos freis, e outros dois para a educação de meninos e meninas, além de engenhos. A
Igreja matriz estava em construção, e o Diretor falava também da existência de casas para
famílias que ali moravam, oficinas, e uma cadeia18.
A seca que muitas vezes castigava o nordeste mineiro e sertões baianos obrigava algumas
famílias à se dirigirem para Itambacuri, mas nem sempre a convivência com os índios era
pacífica, como queria demonstrar Palazzolo. Para Izabel Missagia (2004, p.24), “nunca houve
em Itambacuri a vitória da civilização, uma vez que os índios, mesmo após 20 anos de
aldeamento se revoltaram contra frei Serafim e Ângelo”.
No entanto, ressalta a socióloga “O Mucuri era para todos um país encantado, uma espécie de
Eldorado. Muitas caravanas penetraram então em suas cabeceiras” (MATTOS, 2004, p.254).
As lendas sobre Itambacuri continuaram na imaginação dos missionários e seus relatos, como
também no imaginário da população mineira, que acreditava existir lá uma promessa de
18
Relatório da Diretoria Geral dos Índios de Minas Gerais, anexo ao relatório de 1875, apresentado à
Assembleia pelo presidente da província Pedro Vicente de Azevedo.
1304
salvação da miséria. Esse Eldorado, na visão dos políticos adeptos à catequese missionária,
estaria relacionado a potencialidade da região para o desenvolvimento da agricultura e
comércio, que só seria realizável quando todos os obstáculos fossem retirados, ou civilizados
na ótica do progresso.
O ano de 1879 marca o início de uma crise nos aldeamentos centrais em Minas Gerais. Pela
leitura dos relatórios percebemos que, após a saída provisória de Musqueria da Diretoria
Geral, definitiva em 1880 com sua morte, os relatórios traziam algumas dúvidas sobre a
eficácia dessas missões. Em 1879, alguns aldeamentos são extintos, como o do Etueto, sendo
seus diretores acusados de má administração e de desvio de verbas públicas. Em 1880 veio o
golpe final, com o corte da ajuda pecuniária destinada aos aldeamentos.
Em 1889, o relatório de presidente de província trazia em sua seção sobre a catequese alguns
dados sobre a situação de Itambacuri.
A construção da matriz ocorreu no ano de 1883, depois de vários pedidos de ajuda de frei
Serafim para tal empreendimento, alegando que a partir desta se poderia pensar no progresso
de Itambacuri, através da fundação de uma cidade ao redor da igreja. “Estava ali erguido não
somente o templo material, mas a julgar pelo número de fiéis que se chegaram nesse dia à
mesa eucarística, aí estava formado um grande rebanho de Cristo, milhares de almas
arrancadas das trevas da barbaria [...]” (PALAZZOLO, 1973, p.114).
Considerações finais
19
Fala apresentada à Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais pelo vice-presidente barão de
Camargos por ocasião da instalação da 2.a sessão da 27º legislatura. Ouro Preto, Typ. de J.F. de Paula Castro,
1889, p.15.
1305
Buscamos nesse trabalho relacionar as missões capuchinhas com o desenvolvimento de uma
práxis ultramontana no nordeste mineiro. A partir da análise de alguns relatórios de presidente
de província e do jornal O Apóstolo foi possível visualizar certa esperança depositada nas
ações dos freis Serafim de Gorizia e Ângelo de Sassoferrato para a civilização dos habitantes
do vale do Mucuri.
Itambacuri ficava em um vale rico, com terras férteis e abundantes, muito bem aproveitadas
por trabalhadores nacionais e índios na plantação de gêneros de subsistência e comércio. O
milagre, apregoado aos missionários capuchinhos, abnegados apóstolos do evangelho, na
sobrevivência do aldeamento não poderia acontecer sem os braços que o sustentavam, criando
condições para que o mesmo sobrevivesse mesmo sem a ajuda do governo.
No entanto, não era só aos índios que servia o aldeamento, como vimos, muitas famílias iam
para o mesmo aos domingos e feriados, quando as celebrações aconteciam, como missas,
festas do padroeiro, ou para receber os Sacramentos. Devido à vacância comum naquele
momento, Itambacuri serviu como paróquia para onde um considerável número de pessoas se
deslocavam.
Para além da rigidez apregoada pelo Concílio Tridentino, as missões capuchinhas forjaram
práticas, em que a presença da Igreja e suas regras de comportamento, cuja inspiração era do
movimento Ultramontano, tiveram que se adaptar. Nesse sentido, fugimos dos discursos
triunfalistas, das apologias da primazia Seráfica, que enxergaram nos capuchinhos heróis
desbravadores, verdadeiros agentes de civilização. E por outro lado, também criticamos o
entendimento das missões reduzido à empresa colonial, uma vez que, como disse
anteriormente, elas produziram discursos e práticas culturais. Portanto, esta breve análise nos
indica que o aldeamento de Itambacuri era um espaço em que a prática ultramontana ficava
entre o “rígido e flexível”, ou seja, absorvida pela lógica cotidiana.
Fontes
Relatórios de Presidente de Província (1830-1930) disponíveis no endereço eletrônico:
http://www.crl.edu/brazil/provincial/minas_gerais
Jornal O Apóstolo, disponível no Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica da
Universidade Federal de Viçosa.
Referências
1306
AMOROSO, Marta. Mudança de Hábito: catequese e educação para índios nos aldeamentos
capuchinhos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.13, nº 37, 1998.
__________. Natureza e sociedade. Disputas em torno do cultivo da paisagem em Itambacuri.
Revista Brasileira de Ciências Sociais (Impresso), v. 24, p. 55-72, 2009.
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Paulinas, v.3, 1992.
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Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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Paulo, Loyola, 1983.
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1998.
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XVI-XIX. Lisboa: Editora Estampa, 1994.
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2002.
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Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006.
HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do
povo. Primeira Época. 2ºed. Petrópolis: Vozes, 1979.
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questões políticas na província do Grão-Pará (1863-1878). Campinas, SP, 2001. Dissertação
(Mestrado em História). IFCH, Unicamp.
MATTOS, Izabel Missagia de. Civilização e revolta: os botocudos e a catequese na Província
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OLIVEIRA, Gustavo de Souza. Entre o rígido e o flexível: D. Antônio Ferreira Viçoso e a
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RIBEIRO, Núbia Braga. Os povos indígenas e os sertões das minas do ouro no século XVIII.
(Tese de doutorado), FFLCH, Universidade de São Paulo, USP-SP, 2008.
PALAZZOLO, Frei Jacinto de. Nas selvas dos Vales do Mucuri e do Rio Doce. 3 ed. São
Paulo: Brasiliana, 1973.
PRIMÉRIO, Fidélis Mota de. Os capuchinhos em terras de Santa Cruz nos séculos XVII,
XVIII e XIX. Apontamentos Históricos. São Paulo, 1942.
1307
1308
A Lavagem de Santana: disputas e expressões de fé
Introdução
A “Nova” História Cultural trouxe para a historiografia novos campos de estudos que geraram
transformações nas concepções sobre história. As mudanças de concepções transformaram a
forma de ver e estudar a história, substituindo antigos paradigmas, como a história das
mentalidades, por novos, permitindo aos historiadores o debruçamento num variado campo de
estudo, entre eles, a Festa como um espaço de dinamicidade, movimento e sociabilidade,
composto por diferentes variáveis, apresentando diversos significados e sentidos. Segundo
Abreu, a Festa pode ser “um atraente caminho para se conhecer uma coletividade, suas
identidades, valores e tensões, através das atitudes, dos comportamentos, dos gestos e do
imaginário presente em suas celebrações.2” Considerando os festejos em homenagem à
Senhora Santana como uma grande festa dividida em várias etapas, ela pode se apresentar
como um amplo campo de estudos e análise para a pesquisa histórica.
As primeiras notícias a respeito do culto e devoção a Senhora Santana são de 1732, com o
casal Domingos Barbosa e Ana Brandão. Segundo Galvão3, no século XVIII, o casal dou à
Igreja Católica um terreno no Alto da Boa Vista, onde foi erguida uma capela em homenagem
a Santana e a São Domingos”, inicialmente, vinculada à Paróquia de São José da Itapororocas,
pertencente à comarca de Cachoeira.
1
Mestrando em História pela UEFS. Contato: rennanoliveira5@yahoo.com.br.
2
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999. p.38.
3
Chegou a Feira de Santana no ano de 1965. E logo assumiu a posição de pároco da cidade e Cura da Catedral
de Santana. Dois anos depois, em 1967, foi promovido a Monsenhor. Na Universidade Estadual de Feira de
Santana, UEFS foi professor de Estudos de Problemas Brasileiros e Vice-Reitor nos dois mandatos de José
Maria Nunes Marques, Além de ter produzido e publicado vários textos, artigos e monografias sobre temas
históricos, religiosos e antropológicos, entre os quais merece citação “O Clero Baiano no Século XIX” e “Os
Povoadores da Região de Feira Santana”, este último foi publicado na Revista Sitientibus.
1309
missas e novenas. Esta composição de ordenamento da Festa da Padroeira de Feira de Santana
tinha significados, sentidos e simbolismos peculiares.
Dentre estas etapas que constituem a Festa tanto, aqui em Feira de Santana, quanto nas festas
de santos estudadas por Couto4, a Lavagem e seu comportamento parecem seguir um
fenômeno semelhante ao que acontece nas festas de largo na capital baiana, a exemplo a
Lavagem do Bonfim em Salvado, um dos objetos de estudo da autora.
A Lavagem de Santana é também uma festa dentro da Festa maior, pois leva consigo
elementos singulares que não se repetem em outras etapas da Festa de Santana. Sendo a
Lavagem uma “Festa” ela também podem ser definida como uma prática cultural, se a
colocarmos numa perspectiva historiográfica voltada para o estudo da cultura, a qual tem se
preocupado com temas voltado para esse aspecto, permitido pela chamada História Cultural
ou História Social da Cultura como discute Silva Lara5.
A Festa pode ser compreendida, entre outras coisas, como um ritual, produtor de símbolos e
significados que podem ser decifrados e compreendidos, além de poder ser vista também
como um texto passível de ser lido e investigado pelo historiador,assim como fez, Darnton ao
analisar através de um documento escrito por um burguês as relações sociais presente na
França do século XVII. Ele textualizou os ritos e as expressões na procissão que acontecia na
cidade de Montpellier “não para descobrir todos os quens, quês, onde e quandos de um
acontecimento, mas para ver o que o acontecimento significou para as pessoas que dele
participaram6”.
Sendo a Festa espaço de socializações, ela pode revelar como afirma Vovelle “um
maravilhoso campo de observação, momento de verdade em que um grupo ou uma
4
COUTO, Edilece Souza. As Lavagens nas festas Católicas de Salvador-BA. Ciências Humanas em revista, v.7,
n.2, São Luis/Ma, 2009.p.01.
5
Em seu artigo História Cultural e História social, Silvia Lara discute a importância do convívio e traz
complementações que essas duas linhas teóricas (alvo de tantos debates) podem trazer para a pesquisa e para a
resolução dos problemas apresentados pelo campo de estudos históricos. Ainda segundo a autora, recentes
trabalhos da “história social vêm demonstrando que não só "novos" aspectos da experiência humana devem ser
levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos para as complexas
relações culturais que os informam. ”(2008, p.3). Defende, também, que o historiador social, em seus estudos,
não pode deixar de levar em conta, os aspectos econômicos e culturais de uma sociedade, pois poderá correr o
risco de ser simplista nas suas investigações.
6
DARTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de
Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986. Darton 1986
p.295.
1310
coletividade projeta simbolicamente suas representações de mundo, e até filtra
metaforicamente todas as suas tensões.7”
A Lavagem de Santana sendo uma expressão cultural popular, também fazem parte do campo
simbólico, pois nele estão contidos símbolos que são desempenhados pelos participantes, de
forma direta ou indireta. Durante a saída do cortejo da Lavagem pelas ruas de Feira de
Santana, seus diversos símbolos e códigos podem ser interpretados e compreendidos através
do olhar matizador do historiador.
Assim como também podem ser captadas as relações de tensões e disputas quando se olha a
Festa como um espelho refletor de uma realidade existente na sociedade feirense, pois nesse
momento de realização do evento se presentificam nela fragmentos da realidade representados
por seus participantes durante o consumo do festejo. A pesquisa se propõe analisar os
diversos aspectos da montagem e funcionamento da Lavagem, além de buscar como as
performances produzidas pelos participantes da Lavagem produziram choque de
representações desencadeadora de disputas entre organizadores/participantes com a Igreja
Católica feirense.
A Lavagem era um ritual encenado de forma cadenciada através das várias performances dos
sujeitos integrantes dessa etapa da Festa, dividida em dois momentos supostamente distintos,
porém complementares: um mais contrito com a entrada de pessoas no templo e outro que
pode ser considerado uma grande festa momesca devido a sua organização de ritual-cortejo.
Sendo o ritual como expressa Cox (1974) uma “forma de ação humana, que alimenta a
fantasia e corporifica-a na sociedade e na história” 8, nessa manifestação popular de caráter
historicamente construído, os partícipes se liberavam de suas restrições morais e sociais,
expressando corporalmente seus desejos e fantasias através dos gestos, movimentos e dança
embalada pelos sons das zabumbas e bandinhas. Nesse dia muito se era permitido: homem se
vestir de mulher, mulher se vestir de homem, se mascarar, se vestir de baiana, sendo a
7
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Tradução Maria Julia Cottuasser. 2ª Ed. São Paulo, SP:
Brasiliense, 1991.p.247.
8
Cox, Harvey. A festa dos foliões, 1974. Ed. Vozes
1311
criatividade o grande marcador da originalidade das fantasias materializadas para serem
usadas na Festa da Lavagem.
Esse dia pode ser comparado a uma grande manifestação carnavalesca, não com um caráter de
inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval, também não parece
se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute o autor. A Lavagem de
Santana parece ser composta por manifestações de caráter polissêmico9 apresentado pelas
suas multivivências, produtoras de significados para seus partícipes.
Eles se apropriavam da Festa para revelar seus sentimentos e representar, mesmo por um
curto tempo, a sua fé na padroeira da cidade. Participar da Festa podia ter um sentido muito
mais amplo de compartilhamento, cumplicidade, curtição e até mesmo de homenagem, sendo
possível também unir todos esses sentidos.
A Festa da Lavagem acompanhada ora por bandinhas, ora por Trio elétrico, acontecia na
Praça da Matriz. Esta festa, dita profana, devia e acontecia fora dos muros da Igreja, pois o
templo religioso deveria ser resguardado da profanação, sendo possível apenas a Lavagem de
seu chão e santuários no turno oposto à Lavagem “carnavalesca” que acontecia sempre à tarde
normalmente depois das 16h.
A Lavagem era um lugar de participação de todos, inclusive dos mais abastados da cidade. Os
filhos de empresários, comerciantes, médicos, populares, homens, mulheres, crianças e jovens
outros que estudavam na capital vinham se fantasiar para se entregar à diversão e saírem pelas
9
Esse caráter polissêmico da Festa da Lavagem toma como base os estudos de ABREU, Marta em O Império do
Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900...; de CUNHA, Maria Clementina
Pereira em Carnavais e outras f(r)estas: ensaio de história social da cultural; de Vovelle, Michel em Ideologias
e Mentalidades, em seus estudos sobre religião popular; e COUTO, Edilece em Tempo de festas: homenagens a
Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940).
10
Nesta proposta de pesquisa as noções de Sagrado e Profano são fundamentadas, inicialmente, a partir dos
escritos de Eliade (1992) e a discussão de Serra (2009). O sagrado e o profano são tidos como espaços de
circulação entre homens que se consideram homens religiosos, mas também fazem parte da festa profana no
Bando e na lavagem, existindo pessoas também que só fazem parte apenas da parte litúrgica ou apenas dos
festejos profanos e outros que transitam nos dois espaços.
1312
ruas. O universo da Lavagem era composto por agentes fixos e outros flutuantes, misturados
em prol de um interesse comum: a diversão e a fé. Puxando a Lavagem, tradicionalmente,
estavam as porta-bandeiras.
A narrativa do memorialista nos remete ao cenário das primeiras décadas do século XX,
apesar de não citar, as características apresentadas nos levam a supor que parece ser às
baianas a quem se refere. Nos anos 50 o grande destaque na comissão de frente da Lavagem é
a baiana Dolores do acarajé11, já entre os anos de 60 e 80, a Lavagem era pensada e levada
pelos terreiros de candomblé da Ialorixá12 Mãe Socorro e do Babalorixá Zeca de Iemanjá,
figuras cativas e marcantes na Lavagem13. Na sequência, organizadas pelos barraqueiros, em
sua maioria, vinham as carroças sempre enfeitadas e prontas para a disputa da mais bela.
Santos (2006b) afirma ser a performance cultural também composta da mídia cultural,
referindo-se aos modos de comunicação que incluem igualmente a linguagem falada e os
meios de comunicação não linguísticas, tais como o canto, a dança, a encenação, as artes
11
Sua presença na Lavagem é narrada nas memórias de Lajedinho em seu livro de memórias: A Feira na década
de 30 (memórias); [s.n] Feira de Santana, 2004.
12
Ialorixá e Babalorixá são chefes de um terreiro de candomblé.
13
A presença dessas duas figuras é comentada nos jornais Feira Hoje e Folha do Norte durante anos de 1980 a
1987.
1313
plásticas e gráficas - que se combinam de várias maneiras para expressar e comunicar o
conteúdo de uma determinada cultura.
Como uma performance cultural e texto passível de ser lido, a Lavagem de Santana se
organizava a partir de uma linguagem com códigos compartilhados entre os sujeitos
participantes envolvidos em um enredo desdobrado em multivivências. Sua composição
heterogênea sugere que o cortejo seja visto não só em seu aspecto religioso. Contudo, como
discute Santos (2006c), a respeito da Lavagem do Bonfim, em Salvador, este tipo de festejo
deve ser visto “como um instrumento vivo e abrangente de comunicação social utilizado pelos
diferentes grupos que dela participavam para tornarem públicos os conteúdos, valores e
símbolos14”, e no transcorrer do cortejo era possível “impor um panorama móvel”, uma
espécie de imagem pública, repleta de significados15.
Assim como a Lavagem do Bonfim, a Lavagem de Santana também possuía seu panorama
móvel marcado pelas práticas dos participantes em suas performances, constituído por uma
forma de ser e acontecer singularizando-se diante das outras manifestações presentes nas
homenagens a Santana16. A conduta dos participantes os identifica a partir de suas práticas
expressas através de seu jogo corporal e dança cadenciados pela energia rítmica e sonora do
som das bandinhas e zabumbas. Neste movimento se exalava sensualidade e outras
simbologias aceitas no universo da Lavagem, mas totalmente rejeitadas em outro universo
social-moral.
14 Ibidem p.12.
15 Ibidem p.12.
16 Para Paul Zumthor (2007), a performance “está marcada por sua prática – manifestação cultural lúdica não
importa de que ordem ( conto, canção, rito, dança), na performance o corpo é veículo que da forma ao que se
quer se comunicar, a performance envolve o uso da linguagem poética e que todo ato de performance é
reflexixvo, ou seja, cria uma experiência ao mesmo tempo em que reflete sobre ela.
1314
Extravagância e Encenações nas performances dos Travestidos e da Tribuna Popular
Levados pelas músicas de duplo sentido logo atrás das baianas, das carroças, das bandinhas e
zabumbas vinham os travestidos17, transitando entre sua ala e as das baianas, pois muitas
vezes eles se fantasiavam de baianas, mas eram facilmente reconhecidos por destoarem delas
pelos tons de cores extravagantes estampado nas suas roupas e enfeites.
A Festa da Lavagem para eles parecia ser um avesso 19 ou travessura, rompiam, em certa
medida, com a ordem estabelecida, mas não faziam dela uma inversão total como acontecia
17
O jornal os coloca como travestis, porém tenta fazer a diferença entre os travestis que ganham a vida usando
roupas de mulher e os Travesti de carnaval, aqueles que saiam, exclusivamente, na Lavagem. Discussão travada
no jornal Feira Hoje (26/01/82), Ano XII, n.2305.
18
Foto 1: Travesti caricato: sutiã de maiô, saia midi de chita, lenço. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305,
Foto 2: O Travesti passa, uma Senhora o aponta e a criança fica espantada. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII,
n.2305, Foto 3: Ilkias, o “Momo” de travesti: eufórico. Feira Hoje (26/01/82). Ano XII, n.2305.
19
Tomo emprestado o conceito explicitado pela Marlene Soares Pinheiro (1995) em seu estudo sobre o carnaval
-“em termos sócio-culturais, a noção de avesso se prende a toda e qualquer linguagem, principalmente a
comportamental, que contradiga as “boas normas” da moral vigente”. p. 21. Avesso é toda e qualquer linguagem
1315
nos carnavais medievais apontados por Burke (2010), nos quais ficavam em suspensão por
um tempo a ordem estabelecida e tudo era permitido desde a mudança de hierarquia à
liberação total do prazer corporal. Como no carnaval europeu ou no próprio carnaval
brasileiro, a Lavagem dentre suas manifestações apresentava encenações e performances
próprias, nas quais eram representados temas e mensagens diversos, falando de sexo, formas
de fé, religião, maternidade e política.
Participavam do grupo dos travestidos, tanto homens comuns, quanto filhos de comerciantes,
empresários, industriários, além de homens solteiros, casados ou até os enrustidos que não
podiam se expressar no cotidiano, pelos tabus e preconceitos existentes. De forma lúdico-
festiva, eles tinham seus corpos modelados por roupas femininas e maquiagem para, de forma
irreverente, fazer suas performances para o público.
No momento do desfile, os homens comuns, vestidos de mulher, quebravam sua rotina - como
apresentado nas fotos 1, 2 e 3 - se abandonando ao divertimento, à irreverência e de forma
ousada rompiam, como já fora dito os limites e regras sociais, se deixando fotografar sem
nenhum temor. Eles brincavam, a exemplo de “ ‘Um casal’, ‘ele’ de uns 30 anos, ela de uns
45 anos, perguntavam aos espectadores se queriam ver ‘um beijo’, mas logo depois
explicavam: é um beijo de mentirinha20”. Os travestis se entregavam ao som esfuziante das
bandinhas.
Eles eram a grande maioria da Lavagem, sempre engrossavam o cortejo com suas centenas de
participantes distribuídos nas ruas e eram admirados por seus observadores das calçadas, pela
ousadia (quase transgressora). Apesar de, muitas vezes, serem criticados, eles já faziam parte
da identidade da Lavagem, como descreve o jornal Feira Hoje, no ano de 1987: “os
personagens que, nos últimos anos, tanta polêmica vem despertando na comunidade feirense,
ora estimulando elogios, ora conduzindo as críticas ferrenhas - no sentido de estarem
desvirtuando a intenção sacro-folclórica da Lavagem de Santana21”.
que, de forma inusitada, de súbito, perverte o hábito de estar e de ser, instaurando uma nova interrogação,
captação pura, ao textualizar ou ler um nascedouro nuança do mundo. p.21.
20 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 20/01/1985, Ano XV, nº3213, p.05.
21 Noticia publicada no Jornal Feira Hoje, 23/01/1987, Ano XVI, nº3611, p.03.
1316
Levando reflexões da realidade vivida para a comunidade e seus espectadores “se utilizam de
dramatizações para protestos [...] 22”. A Lavagem não era um palco aberto somente para várias
expressões de fé, mas também um espaço para reivindicações políticas e protestos populares.
Através de suas dramatizações encenadas ao público, o Movimento de Tribuna Popular trazia
profundas críticas, feitas de formas criativas diversas, fosse a partir das metáforas, símbolos e
ludicidades ou de cartazes e faixas. Eles apresentavam para seus observadores, situações da
realidade que estavam diretamente ligadas ao momento presente. Isso nos permite concluir
que a Lavagem era também um espaço de critica de fina ironia das relações sócio-econômicas
e políticas vividas no país.
As Baianas na Lavagem
Concentradas no adro da Igreja Matriz, na Praça Padre Ovídio, as Baianas chegavam cedo
para se organizar e dar início ao cortejo da Lavagem, numa expressão de fé e ratificação da
ancestralidade afro-brasileira tão presente nas festas de largo na Bahia. Elas eram organizadas
nos primeiros anos da década de 1980 pelo Ialorixá Mãe Socorro, líder Terreiro de Oxossi,
situado na Rua Nova, e o Babalorixá Zeca de Iemanjá, líder do Terreiro Ilê Oguntê Omi Lodô,
localizado no Campo Limpo. Ao longo dessa década, foram introduzidas no cortejo da
Lavagem, Baianas de outros terreiros da cidade. Assim noticiou o jornal Feira Hoje23 sobre o
convite feito pela SETUR para a participação na Lavagem de Santana as baianas dos
Terreiros de Ogum do bairro Tomba sobre o comando de Mãe Benta Machado, do centro de
Mãe Zeti, além da presença de Baianas de Terreiros de Santo Amaro da Purificação e de
cidades da circunvizinhança para prestar suas homenagens a Senhora Santana ou Nanã, a
senhora dos lagos no sincretismo religioso.
1317
onde se apresentaram as maiores tensões e diferenças da Igreja para com os seguidores do
candomblé.
24 Ibidem p.09.
25 Ibidem p.09.
26 OLIVEIRA, Josivaldo Pires. Adeptos da mandinga”: candomblés, curandeiros e repressão policial na
Princesa do sertão (Feira de Santana-Ba, 1938-1970). CEAO/UFBA: Salvador, 2010. Nesta tese de
doutoramento, ele estuda as perseguições e repressões policiais e políticas que o candomblé e seus membros
sofriam durante este período.
1318
Lavagem pareciam não entrar mais em negociação e conciliação, por conseguinte, ela parecia
apresentar sinais de que poderia acabar. Em alguns momentos essa ordem se tensionou e
quase rompeu, mas se recriaram novas relações ou se tirou de linha o objeto tensionador,
destarte o ponto de equilíbrio durou até 1987, quando ela foi extinta juntamente com outras
manifestações consideradas profanas pela Igreja Católica feirense.
Considerações finais
Com base na pesquisa e no material usado pela pesquisa como livros de memorialistas e em
especial as notícias de jornais publicadas pelo Feira Hoje foi possível chegar a algumas
conclusões. Como a compreensão que a Lavagem tinha uma linguagem própria, formadas por
códigos e símbolos que a representava e dava a ela um caráter diferenciado das outras etapas
da festa de Santana como o Bando Anunciador e a Procissão realizada pela Igreja como
última etapa dos eventos em homenagem avó de Cristo.
A Lavagem pode ser comparada a uma grande manifestação carnavalesca, não com um
caráter de inversão como aponta Da Matta (1986) em seus estudos sobre Carnaval, também
não parece se apresentar hermeticamente como um rito de reforço como discute o autor. A
Lavagem de Santana parece ser composta por manifestações de caráter polissêmico27
apresentado pelas suas multivivências, produtoras de significados para seus partícipes.
Nela se exaltava a democracia e o respeito das diferenças, pois nela cabiam as Baianas,
travestido, carroceiros, cavaleiros e os protestos das condições sócias, políticas e econômicas
do país e região feito pelo Movimento de Tribuna popular, além dos seus espectadores que em
muito momentos acabavam saindo das calçadas e seguindo o cortejo puxado pelas baianas.
27
Esse caráter polissêmico da Festa da Lavagem toma como base os estudos de ABREU, Marta em O Império
do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900...; de CUNHA, Maria Clementina
Pereira em Carnavais e outras f(r)estas: ensaio de história social da cultural; de Vovelle, Michel em Ideologias
e Mentalidades, em seus estudos sobre religião popular; e COUTO, Edilece em Tempo de festas: homenagens a
Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940).
1319
Esse momento festivo trazia as varias visões de mundo, os espaços ocupados pelo
participantes no desfile durante o cortejo e os conflitos de poder. Entre os vários conflitos
encontrados pela pesquisa estavam as disputas pelo comando do cortejo entre Zeca de
Iemanjá e Mãe Socorro e o da Igreja diante a necessidade de acabar com a festa profana sob a
justificativa de distorção do verdadeiro sentido religioso da festa.
A partir da interpretação e descrição da Lavagem foi possível perceber que ela foi apropriada
de diversas formas pelos seus participantes, que a deram significados e sentidos próprios,
permitindo multivivências e expressões culturais apresentadas através das performances
culturais dos sujeitos participantes.
O Cortejo da Lavagem era uma grande festa, que tinha sentidos diferentes: para Igreja era um
grande ato de profanação e desrespeito ao sagrado, para a prefeitura e Secretária de Turismo
podia representar um grande potencial lucrativo e turístico uma vez que aumentava a
densidade populacional da cidade resultado do evento e para o povo era uma grande
manifestação das expressões populares. A grande querela se dava nos choque desses sentidos
e a disputas de interesses entre a Igreja, a Setur e o povo, que resultou na suspensão de toda
parte profana da festa e em especial a mudança de janeiro para julho das comemorações a
Santana, que foi resumida a parte religiosa.
Referências
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fapesp, 1999.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. 2ª Ed. São
Paulo, SP: Companhia das Letras,2010.
COSTA e SILVA, Cândido. Roteiro da Vida e da Morte. São Paulo, Ática, 1982.
1320
COUTO, Edilece Souza. Tempo de Festa: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da
Conceição e Sant’Ana em Salvador ( 1860-1940 ). Salvador: EDUFBA, 2010.
CHARTIER, Roger. A “nova” história cultural existe? In: LOPES, Antonio Herculano,
LOPES, Antonio Herculano, VELLOSO, Monica Pimenta e PESAVENTO, Sandra Jatahy
(org.). História e linguagens: textos, imagem, oralidade e representação. Rio de janeiro:
7Letras, 2006, p.29-44.
______. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 11, n. 5, jan-abril
1991. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40141991000100010&script=sci_arttext. Acesso em: 20 ago. 2010.
COX, Harvey. A festa dos foliões. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1974
CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaio de história
social da cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT, 2002.
DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
1321
OLIVEIRA, Josivaldo Pires. Adeptos da mandinga”: candomblés, curandeiros e repressão
policial na Princesa do sertão (Feira de Santana-Ba, 1938-1970).Tese de doutoramento no
CEAO/UFBA: Salvador, 2010
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. Tradução Maria Julia Cottuasser. 2ª Ed. São
Paulo, SP: Brasiliense, 1991.p.247.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich.São Paulo: Cosac Naify, 2007.
1322
1323
A produção conflituosa e controversa do aspecto religioso do
Espiritismo nos tempos de Allan Kardec (1857-1869)
Alexandre Ramos de Azevedo1
Introdução
O presente trabalho é uma retomada das reflexões produzidas no decorrer da pesquisa que
culminou com a defesa e aprovação, em 2006, da dissertação de mestrado desenvolvida sob o
título Abrigos para a infância no Brasil: por que, quando e como os espíritas entraram nessa
história? (AZEVEDO, 2006), no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, cujos resultados foram apenas parcialmente divulgados
(AZEVEDO, 2009; 2010).
Na lógica moderna, também entrou na disputa hegemônica do processo civilizador, com seu
projeto particular de mundo. Para isso, fez uso de espadas e escudos e sua fé se materializou
em monumentos que afirmaram seu vínculo com o Cristo, ou seja, sua identidade cristã. Estes
monumentos foram suas obras de caridade, dentre elas algumas que foram objeto da pesquisa
a qual nos reportamos como matriz para o presente trabalho: os abrigos ou asilos para a
infância órfã, desprotegida ou desamparada.
Aqui trataremos de um aspecto que consideramos importante para a compreensão deste grupo
social, da construção de seu imaginário e de sua identidade coletiva: a produção conflituosa e
controversa do aspecto religioso do Espiritismo nos tempos de Allan Kardec (1857-1869).
1
Mestre em Educação pela UERJ. Professor Substituto de Didática e Prática de Ensino na UFRJ, campus
Macaé. Técnico em Assuntos Educacionais no Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de
Macaé (NUPEM/UFRJ). Contato: somaralex@gmail.com.
1324
É interessante constatar como a controvérsia sobre o aspecto religioso perdura ainda hoje
neste movimento social. E escolhemos abordar essa controvérsia não como construção
posterior às obras consideradas basilares e constituintes daquela unidade que os espíritas
chamam de Doutrina Espírita, mas como elemento presente na própria construção dinâmica
destas obras, em um contexto histórico-social de conflito tanto no campo científico quanto no
religioso. E para isso, precisamos contar com as ferramentas da história cultural.
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito
às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis consoante as
classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e
partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as
figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o
espaço ser decifrado (CHARTIER, 1990, p. 16-7).
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
1325
indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições
cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações
têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos
quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que
são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1990, p. 17).
Dissemos que concordamos apenas em parte porque não chegamos a ver, na história que
estamos contando, os espíritas em geral e, em especial, os brasileiros, numa luta pelo poder ou
pela dominação do ponto de vista político. Mas desde que o movimento espírita se organizou
para divulgar sua doutrina, há sim uma luta para afirmação social e pela conquista do espaço
que têm como seu. Acreditam que o Espiritismo veio para ficar e se expandir, a fim de
contribuir para a transformação social do planeta, como consequência da regeneração
humana, individual, através de várias reencarnações. Neste sentido, encontramos nos espíritas
uma prática com vistas a conquistar as mentes ou opiniões, em busca de uma hegemonia2
cultural. Entretanto, não é algo que se possa colocar em pé de igualdade com a luta de classes
e a revolução do proletariado, nem com a guerra santa, mas aceitamos a lógica das
concorrências e competição apresentada por Chartier que, neste sentido, assim conclui em
relação a uma de suas principais categorias de análise:
Esta categoria de análise para Chartier distancia a nova história cultural de sua antecessora – a
história das mentalidades – que já proporcionava algum interesse e a possibilidade de se
ocuparem os historiadores com novos objetos, tais como “as atitudes perante a vida e a morte,
as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco e as relações familiares,
os rituais, as formas de sociabilidade, as modalidades de funcionamento escolar, etc.”
(CHARTIER, 1990, p. 14). Para ele:
Mais do que o conceito de mentalidade, ela [a noção de representação] permite articular três
modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação
e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a
2
Os discursos e as práticas que alguns personagens que ocuparam funções de destaque no movimento espírita do
período analisado, são semelhantes ao que foi proposto por Gramsci mais tarde, no que ele chamou de luta
hegemônica, conforme comparação que faremos adiante.
1326
realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas
que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no
mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas
institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas
ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da
classe ou da comunidade (CHARTIER, 1990, p. 23).
Chegamos, então, a nos aproximar dos personagens que nos ajudarão a contar nossa história.
Pessoas singulares ou instâncias coletivas encarnadas no contexto sociocultural em que
existiram, ocupando posições de onde narram o que vêem, dão ênfase ao que está sendo mais
valorizado, realizam ou propõem a fundação de outras instituições com alguma função
específica etc.; enfim, produzem discursos e práticas que se tornam significativos –
representações coletivas – e que se incorporam no patrimônio cultural dos espíritas de sua
época e do futuro.
As representações não são meras fantasias ou quimeras, que habitam outro mundo que não
aquele ao qual acostumamos chamar de real, mas, segundo Chartier (1990, p. 18), são “as
matrizes de discursos e de práticas diferenciadas” e – citando Marcel Mauss – “mesmo as
representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só o são
verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos” (apud CHARTIER, 1990, p.
18).
E por falar em imaginação, alguns autores, tais como Sandra Jatahy Pesavento, ainda somam,
na condição de um novo e importante conceito que faria “parte do elenco de mudanças
epistemológicas que acompanham a emergência da História Cultural: o imaginário”
(PESAVENTO, 2004, p. 43). Este conceito parece se confundir com a ideia de representação
coletiva, pois segundo a autora citada “entende-se por imaginário um sistema de ideias e
imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si,
dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43).
1327
Ou seja, nos propomos a estudar diferentes aspectos do imaginário espírita. Estamos
buscando apreender o sistema de representações coletivas deste grupo social, que nos dá a
ideia de um conjunto – como acima foi dito – “dotado de relativa coerência e articulação”,
sem perder de vista de que se trata de uma construção social e histórica. Para isso, outra noção
importante tivemos a incluir acreditando fundamental dentre as categorias com as quais
trabalhamos, que é a de identidade, sobre a qual Pesavento (2004, p. 89-90) assim se refere:
O ano de 1857, para os espíritas, é um marco importante, devido à publicação em Paris, no dia
18 de abril, da primeira edição francesa de O Livro dos Espíritos, obra de apresentação do
Espiritismo escrita por Allan Kardec, personagem fundamental desta história, que inclui
inclusive os Espíritos3.
Allan Kardec, na verdade, foi o pseudônimo escolhido por Hippolyte Leon Denizard Rivail
para divulgação do produto de suas pesquisas acerca da “imortalidade da alma, a natureza dos
Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o
porvir da Humanidade” (KARDEC, 2005b, p. 3), que iniciou com O Livro dos Espíritos
(1857), mas que teve continuidade em O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o
Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1866) e A Gênese (1868), as quais, em conjunto,
formam o que os espíritas brasileiros costumam chamar de obras básicas ou Pentateuco4. Foi
com esse nome, igualmente, que ele tomou as rédeas do movimento espírita nascente, tendo
como principal instrumento, além das referidas obras, o periódico mensal intitulado Revista
3
Não estranhem, mas os espíritas acreditam neles. Logo, o que os Espíritos dizem é significativo e deve ser
considerado pelos pesquisadores, que não precisam acreditar na existência dos mesmos, mas devem
compreender o papel que estes desempenham no imaginário do grupo social que estamos estudando.
4
Pentateuco por se tratarem de cinco obras. Além dessas, consideradas principais, Kardec publicou também
Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (1858), O que é o Espiritismo (1859), O Espiritismo na sua
expressão mais simples (1862), Viagem Espírita em 1862 (1862-3) e outras.
1328
Espírita, publicado sob sua inteira responsabilidade de janeiro de 1858, quando foi por ele
fundado, a abril de 18695.
Enfim, tivemos em mãos uma coleção de livros e periódicos, os quais tiveram uma função
importante em nossa análise, pois nela é que fomos encontrar a matéria-prima de onde
procuramos capturar a ação que nos interessa: discursos e práticas sobre a identidade espírita
e principalmente sobre o aspecto religioso desta identidade. Allan Kardec, com a Revista
Espírita e os diversos livros citados, fornece-nos as balizas para o nosso recorte cronológico:
1857 a 1869.
Mas os personagens em si não são propriamente importantes para o tipo de história que
queremos contar: uma história cultural. Entretanto, cada um ocupa certo lugar, de onde
observa, relata o que vê, produz ou mesmo reproduz opiniões e ideias que traduzem o espírito
da época e a identidade do grupo ao qual pertencem e que estão ajudando a formar, mas que
não se restringe apenas ao que já está posto concretamente naquele contexto, pois podem
também apontar para o que, acreditamos, está pronto ou maduro, para (re)aparecer, (res)surgir
ou (re)nascer, predizendo, prevendo, prescrevendo, projetando novas práticas ou,
simplesmente, atualizando práticas antigas.
Assim, os lugares ou funções que ocupam os personagens que vamos apresentar não podem
ser desconsiderados e, por isso, conferem relevo a estes sujeitos da história, que acabam se
tornando referência de nossa narrativa. Kardec, o codificador6 da Doutrina Espírita, aquele
que parece ter estabelecido a ordem do discurso espírita, definindo suas fronteiras iniciais, as
regras do jogo, mas que também inaugurou algumas práticas dentro do movimento espírita.
Mas também os Espíritos, cujo pensamento está transcrito nas obras de Allan Kardec, as quais
consultamos através de traduções conceituadas, editadas pela Federação Espírita Brasileira
(FEB)7.
5
Hippolyte Leon Denizard Rivail nasceu em Lyon (França), a 03 de outubro de 1804, e desencarnou – a morte
para os espíritas é chamada de desencarnação – em Paris, a 31 de março de 1869. Quando desencarnou,
portanto, a Revista Espírita de abril de 1869 já estava pronta. Somente na edição de maio daquele ano aparece a
notícia de sua morte e a revista passa a ser dirigida por um Comitê de Redação.
6
Kardec dizia que a doutrina era dos Espíritos e não dele. Não se apresentava como fundador do Espiritismo e
sim como codificador e, neste sentido, seu papel teria sido apenas o de reunir, baseado em critérios por ele
considerados racionais, científicos, e compilar as sínteses que foram publicadas na forma de livros.
7
Instituição fundada em 1884, que conquistou certa liderança no movimento espírita brasileiro e que teve
durante muitos anos o direito exclusivo de traduzir e publicar as obras de Allan Kardec em língua portuguesa.
Hoje essas obras estão em domínio público, mas as traduções publicadas pela FEB continuam gozando de grande
credibilidade entre os espíritas.
1329
A controversa e conflituosa construção do aspecto religioso do Espiritismo
Mas em algum momento o Espiritismo acabou assumindo também um aspecto religioso e isto
acreditamos ter ocorrido ainda quando sob a liderança de Kardec, residente em Paris. Só que
no Brasil, mais tarde, o chamado aspecto religioso da Doutrina Espírita parece ter se
desenvolvido numa intensidade ainda maior, tanto que os movimentos espíritas de outros
países, em seus discursos, ressaltaram várias vezes o caráter místico predominante entre os
brasileiros, que majoritariamente seguiram uma linha que muitos denominaram de
8
É bom recordar que a obra inaugural do Espiritismo – O Livro dos Espíritos – foi publicada em 18 de abril de
1857.
1330
espiritismo-cristão. Podemos dizer, sem muita dúvida, que existiram – e ainda existem –
muitos espiritismos, seja no transcorrer de sua constituição inicial, na França, seja também
mais tarde, nos vários países onde este fincou suas bases. Mesmo no Brasil, o Espiritismo
nunca foi homogêneo. Mas algo em comum entre esses diversos espiritismos e a chave para
entendermos a unidade nesta diversidade está em compreendermos como o Espiritismo
nasceu pelas mãos de Kardec, com múltiplas faces.
Basta conhecer algumas definições apresentadas por Allan Kardec, que a princípio
distanciavam o Espiritismo do terreno religioso, mas que, com o tempo, acabou firmando um
de seus principais apoios neste campo. Posteriormente, a corrente majoritária do Espiritismo
no Brasil acabou adotando a compreensão de que sua doutrina contemplava um tríplice
aspecto: científico, filosófico e religioso9. Seria importante estudar como e quando se firmou a
tese do tríplice aspecto, já que Kardec nunca conceituou o Espiritismo dessa forma,
explicitamente. Mesmo assim, não queremos questionar esse entendimento, mas demonstrar
que a doutrina espírita, assim como o movimento espírita, é um artefato cultural em constante
produção e reprodução. Não se trata, portanto, de um objeto estático.
9
O aspecto religioso, sempre ocupando o último lugar nessa trilogia, acabou no decorrer do tempo e na prática
social assumindo a posição de maior destaque.
1331
Intitulais vosso artigo: “Uma nova religião em Paris”. Admitindo que tal fosse, com efeito,
o caráter do Espiritismo, aí haveria um primeiro erro, considerando-se que ele está longe de
circunscrever-se a Paris. [...] Em segundo lugar, o Espiritismo é uma religião? Fácil é
demonstrar o contrário. (KARDEC, 2004b, p. 204-5).
Mas no mesmo artigo, Kardec aproxima o Espiritismo da tradição cristã, da seguinte forma:
Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, e a prova disso é
que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso
renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu
culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas.
Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com as
observações espíritas. O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes
de toda questão dogmática. É verdade que tem consequências morais, como todas as
ciências filosóficas. Essas consequências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas
as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as
seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira
essência (KARDEC, 2004b, p. 205-6).
O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus
ministros. Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à
vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande
distância e creio que seria imprudência seguir tal ideia (KARDEC, 2004b, p. 206).
Entretanto, a relação com a tradição religiosa cristã era muito forte, tanto que mais tarde
surgem os livros O Evangelho segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, cujos
títulos já dizem um pouco do conteúdo sobre o qual versam. Assim, o Espiritismo, definido
inicialmente como ciência e filosofia, vai adquirindo cada vez mais sua vocação religiosa. Um
dos primeiros e maiores passos neste sentido foi dado com a publicação de O Evangelho
segundo o Espiritismo em abril de 1864, onde a doutrina espírita insere-se decisivamente na
tradição cristã, apresentando-se como a Terceira Revelação, após o advento de Moisés e,
depois, o aparecimento do Cristo, há 2000 anos (Kardec, 2004, p. 57). O Espiritismo seria,
ainda, o Consolador Prometido por Jesus, que teria dito, conforme consta do Evangelho de
João (14: 15 a 17 e 26):
Se me amais, guardai os meus mandamentos; e eu rogarei a meu Pai e ele vos enviará outro
Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: – O Espírito de Verdade, que o
mundo não pode receber, porque o não vê e absolutamente o não conhece. Mas, quanto a
1332
vós, conhecê-lo-eis, porque ficará convosco e estará em vós. – Porém , o Consolador que é
o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
recordar tudo o que vos tenho dito (apud KARDEC, 2004a, p. 144).
Antes mesmo de O Evangelho segundo o Espiritismo ter sido publicado, já era previsto seu
impacto no meio religioso, conforme trecho de mensagem atribuída a um Espírito, divulgada
mais tarde em Obras Póstumas10. Essa mensagem dizia, em 9 de agosto de 1863:
Logo, podemos dizer que o desenvolvimento do seu aspecto religioso era inevitável, pois que
entrou decididamente no domínio que era próprio da Igreja, a qual não aceitando os princípios
novos que o Espiritismo vinha propor, teria que, inevitavelmente, combatê-lo como uma nova
heresia. O confronto, mesmo que fosse de ideias, seria inevitável, de ambos os lados, a não ser
que um dos dois cedesse em favor do outro, o que efetivamente não ocorreu.
Mas o Espiritismo, essa nova religião cristã, teria desde o início características bem fortes da
Modernidade, a qual ajudou a gerá-lo. Dentre esses aspectos poderíamos destacar sua
tentativa de promover a aliança entre a Ciência e a Religião, bem como, o que é semelhante,
da fé com a razão:
10
Sua primeira edição foi em 1890 e reunia textos inéditos de Kardec, que ele não tivera tempo de publicar ou
que tenha achado por bem não o fazer. Lembremos que Kardec desencarnou em 31 de março de 1869.
11
Em geral, essas mensagens eram produzidas na forma escrita, através do que os espíritas chamam de
psicografia. A psicografia seria a mediunidade através da qual um Espírito escreve sua mensagem através do
médium, seu intermediário.
1333
A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as
coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher
o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no
conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo
corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos
seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se
à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo (KARDEC,
2004a, p. 63).
Por isso acreditamos ser possível falar de Espiritismo como uma Religião Moderna, algo
híbrido que em se definindo na prática desta forma, não deixa de estabelecer os conflitos que
terá a enfrentar, de um lado e de outro, bem como internamente. Em primeiro lugar porque,
propondo-se uma religião científica ou uma ciência religiosa – a ciência dos Espíritos –
acaba não sendo reconhecido como semelhante nem pelas ciências nem pelas religiões
estabelecidas ou tradicionais (VASCONCELOS, 2003, p. 93). Além disso, assumindo-se
como uma nova ciência perante uns ou sendo identificado como uma nova religião pelos
outros, teve que buscar seus fundamentos e parâmetros nos dois campos, mas à custa de
encontrar também neles seus principais opositores. É o preço justo a ser pago, para a
afirmação de uma nova identidade, pois o diferente há de surgir a partir dos referenciais que
obtém naquilo que já existe.
Os membros da Igreja católica serão seus principais opositores e muitas vezes perseguidores,
como maioria que eram tanto na França de Kardec quanto no Brasil, onde o Espiritismo
adquire muitos adeptos ainda no século XIX. Mas os ataques sofridos sempre tiveram
resposta nas páginas dos periódicos que consultamos12. Por outro lado, muitos são os
expoentes do catolicismo milenar que ressurgem como exemplos da caridade a que tanto os
espíritas prezam, além do que a presença destes mesmos expoentes, agora na condição de
Espíritos13, se faz uma constante seja no período da codificação kardequiana, ou seja mais
tarde no desenvolvimento histórico da doutrina espírita.
12
Estamos nos referindo aos periódicos: Reformador, órgão de divulgação da Federação Espírita Brasileira,
ainda em circulação; e Revista Espírita do Brasil, já extinta, publicada sob a égide da Liga Espírita do Brasil.
Tais periódicos figuraram entre as fontes para a pesquisa desenvolvida durante o mestrado em educação
(AZEVEDO, 2006).
13
Dentre os Espíritos que se comunicaram na época de Kardec, estão, segundo constam das fontes espíritas, São
Luis, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, Fénelon etc.; ou seja, muitos dos santos e personagens que fizeram
história dentro da Igreja. Além disso, pode soar estranho para um texto acadêmico falar em Espíritos e
colocarmo-los como informantes de uma realidade. Mas a existência ou não dos espíritos não será posta aqui em
julgamento. Os espíritas acreditam nessa possibilidade e, por isso, as mensagens atribuídas a estas entidades
1334
No meio científico, não é tão diferente. Dentre os cientistas, havia aqueles que confirmavam e
os que negavam a realidade dos fenômenos espíritas, a sobrevivência da alma após a morte do
corpo físico e a possibilidade desta se comunicar com os vivos através dos médiuns ou se
tornando visível e até tangível, como é o caso do fenômeno de materialização de Espíritos,
estudado por alguns membros de corporações científicas da época. É claro que, para os
espíritas, a opinião favorável, vindo do campo científico, lhe era muito cara, devido mesmo a
sua pretensão de ser também uma ciência. Assim, as páginas dos periódicos que analisamos,
estão repletas de narrativas a respeito de cientistas espiritualistas ou dedicados à pesquisa
sobre a realidade espiritual. Sempre que havia a publicação de um livro ou a divulgação de
uma opinião favorável, isto era amplamente noticiado. Assim também, livros ou opiniões
contrárias provenientes dos homens de ciência acabavam objeto de outra gama de artigos, os
quais teriam a finalidade de contrapor com provas as conclusões adversas às teses espíritas.
Mas há também as divergências internas ao movimento espírita que atravessam sua história,
principalmente sobre o verdadeiro caráter do Espiritismo. Uns pendendo mais para o lado
científico-filosófico e outros para o religioso, tendo surgido ainda uma tentativa de consenso
formulada no tríplice aspecto da doutrina espírita, que procura reunir os dois lados num
equilíbrio que na prática acaba não ocorrendo. O aspecto religioso, principalmente no Brasil,
tem sido o hegemônico, apesar de nunca ter sufocado completamente vozes críticas que
existiram e continuam existindo.
Considerações finais
Mesmo sem questionar o caráter coerente e unitário desta obra, que foi considerada desde o
início como fonte ou repositório primário da doutrina espírita e das práticas desenvolvidas
pelos movimentos espíritas em todo o mundo, temos que ressaltar os aspectos dinâmicos da
construção desta obra.
metafísicas, como as que transcreveremos a partir deste ponto, têm grande importância na constituição do
imaginário e identidade coletiva desse grupo social, atuando no terreno de suas práticas e representações.
1335
Além disso, é importante compreender que os caminhos tomados pelo Espiritismo não
estavam sob o controle absoluto de Allan Kardec, assim como não tiveram nas mãos de
qualquer outro personagem isolado, grupo ou instituição que mais tarde ganhou destaque
nestes movimentos espíritas.
A produção do espaço social e cultural que aquela nova doutrina viria a ocupar, desde seu
início na França e mais tarde em diferentes lugares do mundo, dependeria dos conflitos e
disputas, mas também das articulações ou aproximações com os diferentes sistemas de
pensamento e tradições culturais existentes.
Referências
AZEVEDO, Alexandre Ramos de. Abrigos para a infância no Brasil: por que, quando e
como os espíritas entraram nessa história? Orientação de Luiz Cavalieri Bazilio. Dissertação
(Mestrado em Educação), UERJ, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em
<http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5481>. Acesso em 18, ago,
2013.
__________. Abrigos espíritas para a infância: uma descoberta da infância sob o lema “fora
da caridade não há salvação”. In: SAMPAIO, Jáder (Org.). Pesquisa sobre o Espiritismo no
Brasil: textos selecionados. São Paulo: CCDPE-ECM, 2009, p. 155-170.
KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 124. ed. Rio de Janeiro: Federação
Espírita Brasileira, 2004a.
__________. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano segundo – 1859. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004b.
__________. Obras póstumas. 35. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005a.
1336
__________. O livro dos espíritos. 85. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2005b.
__________. O que é o espiritismo. 51. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2005c.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.
1337
1338
As representações do bispado brasileiro nos debates sobre a lei da
Separação do Estado das Igrejas em Portugal (1910 – 1911)
(Art. 3.º da Lei da Separação do Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911
[DG 92, 21/4; CLP 1911, p. 430 – 446])
1339
instituição atuante em um lugar que mesmo em processo de secularização, mantinha sua
organização em diálogo com o Estado para as ações de combate a “desordem”3.
Destacamos que o movimento de Restauração Católica foi desenvolvido pela Cúria Romana
com o objetivo de restabelecer o seu poder político, social e cultural nos países que estavam
propondo leis seculares e / ou laicizantes. Colaborando com o projeto católico, intelectuais
conservadores e religiosos mantiveram-se empenhados em países como a França, Portugal,
Espanha, Brasil e tantas outras localidades que apresentaram atritos entres o membros do
poder político e religioso.
Em termos gerais, a secularização estava envolvida com a liberdade religiosa garantida pelo
Estado brasileiro, em 1890, e Português, em 1911. Em contrapartida, os movimentos de
laicização atingiram setores mais amplos da sociedade. Para Fernando Catroga, a laicização
3
Para Georges Balandier a desordem existe quando um elemento de um conjunto não está em harmonia com o
todo. Por isso, os discursos da Igreja Católica caracterizavam a desordem como as doutrinas da esquerda política,
o anticlericalismo, o pensamento moderno, as formas simbólicas de laicização, dentre outras ações que não
estavam em consonância com os ensinamentos da Cúria romana Cf. BALANDIER, 1997: p. 45.
4
Em pesquisa realizada na Biblioteca Nacional Portuguesa, encontramos várias cartas e discursos de líderes
católicos que defendiam a separação do Estado e da Igreja, por acreditarem que a secularização em Portugal
garantiria liberdade à instituição religiosa. Os debates também destacavam que com o formato, a Igreja Católica
passaria a ser subordinada apenas as ordens da Cúria romana.
1340
do Estado exige um programa compreensivo que tem seu ponto “nevrálgico no ensino e, de
modo mais abrangente, no domínio do espiritual e do simbólico. Combatendo a hegemonia
das Igrejas, nomeadamente da Igreja Católica, que se opôs tantas vezes à modernização”
(CATROGA, 2006, p. 08 – 09).
Os processos de laicização nos dois países aqui analisados foram diferentes pelas relações que
a Igreja Católica manteve com cada Estado após a sua secularização. Para José Mattoso, o que
distinguiu o procedimento de separação do Estado do clero em Portugal e no Brasil foi a
forma de reconhecimento da Igreja Católica nas leis de cada uma das nações. Em Portugal, a
Lei da Separação de 20 de abril de 1911 ignorava a existência de uma Igreja submissa a
Roma. O objetivo dos promotores dessa lei não era apenas a separação das duas instituições,
mas a laicização do Estado, a estatização e/ou “secularização” do cristianismo em terras
lusitanas. Evitava-se o modelo de “sociedade” independente como no Brasil, pois para os
republicanos portugueses a parceria implicaria na criação de um Estado religioso dentro de
um espaço laico (MATTOSO; RAMOS, 1993, p. 407 e 409).
Analisando as leis que instituíram a secularização nos dois países, percebemos que o
reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica foi o ponto fundamental para a
continuidade dos diálogos entre o clero e o Estado no Brasil. Em Portugal, a falta do
reconhecimento e o incentivo da fiscalização da população aos “crimes religiosos”, criados
pela lei de separação, colaboraram com as constantes querelas entre os dois poderes.
1341
culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes (Decreto nº 119-A, 7 de
Janeiro de 1890. Pub. Col. BR. 1890. V. 001, p. 000010, Col. 1.).
Os dois artigos são diferenciais importantes quando realizamos uma História Comparada com
a lei instituída em Portugal. João Seabra, ao desempenhar um estudo jurídico da Lei da
Separação do Estado das Igrejas - Decreto de 20 de Abril de 1911, destacou os esforços do
seu principal articulador, o Ministro da Justiça do Governo Provisório, Afonso Costa, para
promover um acerto de contas entre o Estado e a Igreja Católica. Para o autor, a lei foi
pensada como uma forma de desmobilizar o catolicismo em Portugal, estabelecendo artigos
que dificultassem o cotidiano dos religiosos no país (Cf. SEABRA, 2009).
Diferente do Decreto 119-A, que mesmo com a secularização do Estado brasileiro garantia a
liberdade de culto e os direitos civis aos membros de todas as religiões5, a lei de separação
portuguesa foi recebida pelo clero como um conjunto de normas que não apenas retirava a
posição de religião oficial do Estado, mas promovia uma perseguição aos seus membros em
caso de descumprimento de qualquer artigo.
Com uma lei composta por 7 capítulos e 196 artigos, em Portugal foram estabelecidas
normas, além das já citadas anteriormente, que determinaram que os bens eclesiásticos
passassem a ser de propriedade do Estado, a liberdade religiosa restringia-se à liberdade de
culto, estando condicionada no tempo, no espaço e nos sujeitos, extinguiam-se todas as
formas tradicionais de manutenção e sustentação do clero. Também se proibiu qualquer
5
Destacamos que muitas práticas religiosas, principalmente as oriundas dos cultos afros, não receberam a
liberdade de manifestações estabelecida pela lei brasileira. Alguns grupos foram perseguidos, com membros
presos ou destinados as instituições de saúde pública e mental, principalmente durante os anos de 1930 e 1940.
1342
contribuição ao clero que não estivesse garantida nas modalidades que a lei estabelecesse,
tendo a sua sustentação assegurada por uma pensão. O documento ainda exigia a criação das
comissões cultuais e que os seminários e missões passassem ao controle do Estado. Estas
foram algumas das normas determinadas no novo regulamento, que dificultaram o
desenvolvimento das atividades religiosas no país (Cf. OLIVEIRA, 1914).
Muitos dos artigos tiveram a intenção de macular a imagem do clero junto à população,
causando um verdadeiro “caça aos padres” em Portugal. Entre as determinações da lei que nos
chamam atenção, destacamos as pensões oferecidas aos religiosos. O ato foi bastante criticado
por líderes eclesiásticos, pois causava a dependência dos membros das dioceses com menor
poder econômico ao Estado. Em cartas da Nunciatura de Lisboa, encontramos recomendações
da Cúria Romana para que os padres não aceitassem as formas de sustento oferecidas pelo
governo republicano, como resistência as leis recém implementadas. Entre os tipos de pensões
oferecidas, eram garantidas contribuições aos filhos e viúvas dos líderes da Igreja Católica.
Mesmo sendo uma lei destina a todas as religiões presente no território português, o caso das
pensões foi direcionado especificamente aos membros da Igreja Católica. Diz o artigo 152º
que:
Para João Seabra, a questão de se estabelecer uma pensão às viúvas e aos filhos dos
eclesiásticos era uma clara tentativa do Ministro da Justiça para se levantar o debate referente
1343
ao celibato, demonstrando as fragilidades do clero à população. A lei da separação portuguesa
teve como uma de suas inspirações à legislação francesa de 1905, que estabelecia
genericamente, que em caso de morte de um religioso, as pensões deveriam ser destinadas as
viúvas e possíveis filhos. Em tal determinação, estavam incluídos os rabinos, os pastores
reformados, dentre outros membros das religiões existentes na França. Aplicando as mesmas
determinações em Portugal, o Ministro da Justiça definiu que tal prática fosse aplicada apenas
paras os membros da Igreja Católica (SEABRA, 2009, p. 140).
Outra questão classificada como parte do processo de laicização simbólica foi a proibição do
uso dos trajes católicos em público. O artigo 176º proibia a utilização dos hábitos ou vestes
talares fora dos templos e das cerimônias cultuais, sob a pena de desobediência, por todos os
ministros, seminaristas, membros de corporações de assistência e beneficência, encarregadas
ou não do culto. Além disso, os religiosos estavam submetidos à fiscalização das autoridades
ou de qualquer pessoa do povo, podendo ser preso e encaminhado as autoridades por tal
delito.
O poder estabelecido aos cidadãos para fiscalizar a realização dos cultos ou do uso das vestes
acarretou perseguições de padres, prisões e até espancamentos. Por isso, os líderes religiosos
orientavam que a norma fosse cumprida para que não tivessem problemas com a justiça e
principalmente com a população estimulada por alguns governantes. Moradores de cidades
como Lisboa, Porto e Coimbra se apresentaram ao Ministério da Justiça para gratuitamente
fiscalizar o cumprimento deste artigo, proporcionando uma constante vigilância sobre as
atividades desenvolvidas pelos padres.
A preocupação com a integridade dos religiosos pode ser percebida nas cartas e bilhetes
presentes no Arquivo das Congregações da Torre do Tombo em Portugal. Na mensagem de J.
P. Dias Oliveira ao Padre Barros, informou-se a situação política em Lisboa e as
problemáticas enfrentadas pelos membros do clero, destacando-se para se ter cuidado com o
uso dos hábitos e com parte da população que se demonstrava resistente aos símbolos
católicos utilizados em público. Na correspondência, Dias Oliveira avisou que “os amigos não
venham á cidade com hábitos talares. Já hoje foram agredidos alguns sacerdotes. Isto é um
paiz perdido” (Carta de J.P. Dias Oliveira ao Pe. Barros. [s/d.]).
1344
A reação da Igreja Católica portuguesa aconteceu em diversas frentes. Desde a cúria, aos
religiosos com condições financeiras mais baixas que recusavam o recebimento das pensões.
O líder da Igreja romana acompanhou o desenrolar das questões que envolviam a laicização
em Portugal, orientando os eclesiásticos sobre as ações que deveria tomar em relação aos
pontos contrários aos ensinamentos do catolicismo.
A encíclica de Pio X foi a primeira reação oficial da Igreja à lei de separação em Portugal. No
entanto, outras formas de protesto foram realizadas por vários religiosos, como a divulgação
de manifestos na imprensa católica e a orientação aos fieis para não aceitarem as
determinações do Estado. Mesmo antes da publicação da Lei da Separação do Estado das
Igrejas, os eclesiásticos portugueses já articulavam formas de burlar os decretos publicados
pela República.
Com a lei de separação religiosa portuguesa, não apenas os líderes católicos, mas todos os
membros do clero, a exemplos dos seminaristas, foram proibidos de residir ou trabalhar juntos
em número superior a três. Por este motivo, percebe-se a preocupação dos eclesiásticos em
transferir as instituições de ensino, que também foram proibidas, para outras localidades com
o objetivo de continuarem com suas atividades.
1345
O controle dos dirigentes da República portuguesa sobre as ações dos religiosos e suas
práticas sociais foi garantido a partir de um forte sistema de vigilância. Os dirigentes do
Ministério da Justiça e dos Cultos contavam com informantes que observavam o cotidiano
dos eclesiásticos, fiscalizavam suas ações em instituições como hospitais e escolas,
interceptavam cartas, dentre outros modos que garantiam o cumprimento das leis instituídas
pelo Estado.
[…] Quanto á viagem do Ir. Lochu V. R. determinará melhor as coisa d’ahi pois as
circunstancias podem mudar de um momento para outro. Se em consequência dos desastres
de Portugal tivéssemos a facilidade de recebermos padres d’ahi a vinda do Ir. Lochu não
apresentaria dificuldade nenhuma. Já escrevi ao R. P. Geral e ao P. Provincial desse
Provincia convidando-os a enviar para cá os padres Irmãos de Portugal em caso de
expulsão de por acaso a carta não tivesse chegado ás mãos do dito padre N.R. pode repetir
o convite em nome de todos os padres do Brazil. Única precaução necessária para evitar
perseguições aqui na chegada é de virem em pequenos grupos vestidos como padres
seculares ou disfarçados. Seria melhor que viessem alguns antes da expulsão oficial se por
acaso se tivesse de realisar. Não desesperemos ainda da boa solução. O Governo aqui nos
protege: só a imprensa maçônica nos ataca violentamente; mas até agora foi batida. […]
(Carta do Padre Justino M. Lombardi a…. Itu, 29 mai 1901.)
A parceria entre o Estado e a Igreja era um dos principais pontos admirados pelo clero
português nas questões referentes à Restauração Católica no Brasil. A proteção referida na
citação anterior faz menção a não existência das perseguições aos membros do clero pelo
poder político, a exemplo das acorridas no país lusitano. Desde a separação do Estado e da
Igreja, o poder governamental se utilizou dos discursos católicos para legitimar suas propostas
políticas. No entanto, é importante destacarmos que o clero brasileiro também enfrentou
dificuldades nos debates com o Estado, principalmente nos assuntos que envolviam o ensino
religioso nas escolas e a promoção da sua politização (Cf. MOURA, 2012).
Foi durante o governo de Getúlio Vargas que as negociações entre os poderes civil e
eclesiástico se apresentaram mais intensas. As ações de combate à “desordem”, promovidas
pelo clero, serviram de apoio ao arquivamento dos discursos da esquerda durante a década de
1930. Tal parceria foi vista por membros da Igreja Católica portuguesa como um exemplo a
1346
ser seguido, pois mesmo com os poderes independentes, continuaram atuando em conjunto
para o combate à chamada desordem social (MAINWARING, 2004, p. 43).
6
O mesmo não aconteceu com o Bispo do Porto, que para ganhar tempo e permitir a leitura da Pastoral demorou
a responder os comunicados do Ministro da Justiça. Sobre o seu processo: Cf. SEABRA, 2009, p. 64 – 66.
1347
A pastoral foi um documento que também colaborou com as ações desenvolvidas pelos
membros da Igreja Católica no momento de maior efervescência do laicismo em Portugal.
Para os eclesiásticos:
Em julho de 1911, com uma carta de D. Manuel Vieira Matos a Afonso Costa, respondendo
sobre a intenção dos padres abandonarem seus postos devido às dificuldades financeiras,
iniciou-se uma discussão que o levaria a ser punido e expatriado das funções eclesiásticas. O
ministro da Justiça se utilizava dos instrumentos punitivos existentes nos diversos decretos e
leis publicadas pela República, como forma de controle do episcopado católico. Entre os
principais meios de penalidade, o degredo e a proibição de continuar com as funções
religiosas foram os mais utilizados pelo republicando, impedindo os eclesiásticos de
desenvolverem suas críticas contra o novo sistema político.
Em sua carta, o bispo da Guarda demonstrou a insatisfação dos membros do clero com os
impedimentos estabelecidos pela Lei da Separação do Estado das Igrejas, lembrando ao
político as ligações históricas entre a Igreja Católica e Portugal. D. Manuel Vieira Matos
destacou que durante o período monárquico o clero tinha livre acesso aos assuntos do Estado,
por isso o momento poderia ser considerado de paz e crescimento para o país.
1348
Com a leitura das correspondências entre os religiosos que questionavam a nova realidade dos
membros da Igreja no país lusitano, percebemos que um dos seus principais argumentos para
a crítica ao governo eram as afinidades entre os poderes político e eclesiástico durante a
Monarquia. Por isso, como forma de contra discurso, os republicanos mais exaltados
argumentavam que os problemas econômicos, sociais e políticos enfrentados pela população
portuguesa eram resultado dos “séculos de exploração do clero” em parceria com a família
real.
Outra República nossa irmã é bem gloriosa, no dia em que entendeu dever separar-se da
Egreja, garantiu ao clero o que elle recebia, sem devassas sobre os seus haveres nem sobre
os seus sentimentos, deixando ainda á Egreja a propriedade de tudo o que lhe pertencia. Se
assim tivesse feito entre nós, o clero português, como o clero brasileiro, não teria levantado
os protestos que o dever lhe tem aconselhado e que malevolamente se teem interpretado
como hostilidade á República, quando são apenas os desabafos da consciência offendida
(Carta do Bispo da Guarda ao Ministro da Justiça Português. Guarda, 02 jul. 1911.)
1349
Ministro da Justiça, observamos o eclesiástico como um intelectual que apresentou propostas
para as mudanças na governabilidade portuguesa.
Como represália às ações do bispo da Guarda, o governo republicano estabeleceu penas que
atingiram as suas atividades como religioso e o funcionamento da sua arquidiocese. Por
decreto de agosto de 1911, o seu Paço Episcopal foi confiscado e utilizado como repartição
para os serviços públicos. A prática era comum quando o Estado tinha a intenção de finalizar
as atividades de uma região eclesiástica, dificultando o culto católico na localidade.
A conclusão do seu processo o impunha o desterro por dois anos. Na tentativa de cumprir sua
pena, o religioso passou por várias regiões a busca de um lugar para moradia, mas sempre
encontrando reação dos “fiscais” do governo. Fixou-se em Mangualde, retornado a Guarda
apenas no final de 1913. Mesmo atendendo as determinações estabelecidas pelo Ministro da
Justiça, o bispo foi preso em outros momentos para prestar informações sobre os movimentos
políticos que surgiram em sua cidade de atuação.
O processo enfrentado por D. Manuel Vieira Matos é um dos pontos que diferencia a
secularização / laicização no Brasil e em Portugal. No país lusitano, percebe-se que o artigo 3º
da Lei da Separação do Estado das Igrejas, que estabeleceu que “Dentro do territorio da
Republica [portuguesa] ninguem póde ser perseguido por motivos de religião, nem
perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa” (Lei da Separação do
Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911), não foi levado em consideração nas
formas de controle estabelecidas pelo Ministro Afonso Costa.
Como contra discurso ao político republicano, vários religiosos apresentaram o exemplo das
relações da Igreja Católica com o Estado no Brasil. Os diálogos transoceânicos estiveram
presentes durante todo o processo de Restauração Católica no país ibérico, sendo apresentado
como uma possibilidade de convivência pacífica entre o político e o religioso. No momento
1350
dos debates sobre a assinatura da Concordata entre Portugal e a Sé Romana, as atividades do
episcopado brasileiro serviram de inspiração para as duas instituições, principalmente nas
questões que envolviam o ensino católico e a lei do casamento.
Para os membros da Igreja Católica no Brasil, um dos principais resultados dos diálogos com
os religiosos lusitanos foi o processo de recepção de ordens religiosas no país. O exílio de
membros do clero português possibilitou o desenvolvimento de uma ação cultural nos
diversos estados brasileiros, com a elaboração de métodos de ensino, atividades missionárias,
organização de retiros e seminários que deram suporte as práticas desenvolvidas no novo
espaço de atuação.
Fontes
Archivio Segreto Vaticano. Archivio Della Nunziatura di Lisbona. Carta do Bispo da Guarda
ao Ministro da Justiça Português. Guarda, 02 jul. 1911
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 4.
Carta do Padre Luiz G. Cabral a Alexandre. [s/d.].
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 6.
Carta de J.P. Dias Oliveira ao Pe. Barros. [s/d.].
Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Arquivo das Congregações, mç. 32, mct. 24. Doc. 7.
Carta do Padre Justino M. Lombardi a…. Itu, 29 mai. 1901.
Decreto nº 119-A, 7 de Janeiro de 1890. Pub. Col. BR. 1890. V. 001, p. 000010, Col. 1.
Federação das Associações Portuguesas do Brasil. O Cardial Cerejeira no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Alba Limitada, 1935.
Lei da Separação do Estado das Igrejas. Decreto de 20 de Abril de 1911 [DG 92, 21/4; CLP
1911, p. 430 – 446]
OLIVEIRA, Carlos de. Lei da Separação do Estado das Igrejas anotada por Carlos de
Oliveira. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1914.
1351
Pio X. Iamdudum in Lusitania. Roma, 24 mai. 1911.
Referências
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Portugal (1889 – 1910). Coimbra: EDUFU, 2007.
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916 – 1985). São Paulo:
Brasiliense, 2004.
MOURA, Carlos André Silva de. Fé, Saber e Poder: os intelectuais entre a Restauração
Católica e a política no Recife (1930 – 1937). Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 2012.
SEABRA, João. O Estado e a Igreja em Portugal no início do Século XX: a Lei da Separação
de 1911. Cascais: Principia, 2009.
1352
1353
Cândidas Palavras: literatura e missões protestantes no romance
“Candida” de Mary Hoge Wardlaw
Sergio Willian de Castro Oliveira Filho1
Introdução
The cathedral clock struck nine. They were in the little sala again. Augusto drew a
little book from his pocket.
“Candida,” said he, hesitatingly, glancing first at the closed windows, and lowering
his voice; “Candida, my father sends this little book to you. See, he has written
your name in it with his own hand.”
“The priests do forbid it, but without authority, so father thinks. He half convinced
me, Candida; and I promised for myself to read it”
WARDLAW, 1902, p. 21
Ante o presente de casamento de Joaquim de Oliveira, seu sogro, Candida fora tomada pelo
temor de aquele livro que estava em suas mãos pudesse vir a lhe proporcionar castigos
advindos da Igreja ou até mesmo do próprio Deus. Sabia o quão já havia ido longe demais ao
casar-se com Augusto, filho de um protestante, e o quanto tal decisão havia trazido
desavenças na sua família, já que suas irmãs, Glória, Christina e Joanna não aceitavam tal
relacionamento afastando-se de Candida.
A comemoração do casamento fora organizada por sua tia, Dona Theresa, que cuidara de
Candida e de suas irmãs após a mãe destas ter falecido, apesar de tia Theresa não gostar dos
protestantes. Mas, afinal, Augusto não era um deles, e sim seu pai. Entretanto, aquele livro
dado por Joaquim de Oliveira ao jovem casal iria modificar todo o curso da história deles e
daqueles que os rodeavam. Tratava-se de um Novo Testamento, e a leitura do mesmo,
inicialmente, por parte de Augusto o fizera abdicar do catolicismo e adentrar na comunidade
protestante em Fortaleza liderada pelos missionários americanos Mr. e Mrs. Cary.
1
Doutorando em História pela UNICAMP. Orientadora: Prof.ª Dra. Eliane Moura da Silva. Contato:
sergiowfilho@ig.com.br.
1354
Dentro de algum tempo Candida começaria a ser atraída a caminhar pelo mesmo rumo, mas
não sem antes passar por uma série de dificuldades ao longo dessa jornada. Primeiro a morte
de seu primeiro filho, Timotheo, ainda bem criança. Aliado a isso a conversão de Augusto ao
protestantismo havia causado um grande mal-estar e, por fim, a reprovação de tia Theresa, a
quem Candida amava como se fosse sua mãe, gerando árduas discussões entre o jovem
protestante e a fervorosa senhora católica. Apesar disso, a dor causada pela morte da criança
havia propiciado a reconciliação entre as quatro irmãs.
Grávida novamente, Candida teve que morar com sua tia, já que Augusto resolvera migrar
para Manaus, após ouvir acerca das possibilidades de ascensão social aos que partiam com
destino aos seringais às margens do rio Amazonas. Candida passou a manter contato cada vez
maior com o casal de missionários protestantes, principalmente com Mrs. Cary, o que,
combinado à leitura do Novo Testamento, resultou na conversão de Candida à nova fé. Tal ato
gerou uma profunda mágoa em Glória, irmã mais velha de Candida, que era extremamente
devota à religião Católica. Entretanto, paulatinamente, através de Candida os membros da
família começaram a converter-se um a um ao credo protestante. Todas inclusive tia Theresa
nos momentos finais de sua vida viriam a abdicar do catolicismo, exceto Glória, a qual após a
morte de Theresa saíra de casa por não aceitar o novo rumo religioso tomado por suas irmãs.
Todo este processo não ocorreu sem conflitos gerados pela intolerância religiosa instigada
pelos padres e que causavam até mesmo risco de vida aos protestantes como no episódio em
que Candida visitaria Cherubina, participante da comunidade protestante, no bairro do Outeiro
tendo sido atacada a pedradas sob gritos de ordem, tais como, “protestante”, “padre casado”,
“fora com os protestantes”, “morte ao padre casado”.
Neste ínterim nasceria a filha de Candida, que receberia o nome de Estrela. Estrela veria o pai
somente durante alguns meses, quando Augusto retornou do Norte, passando uma temporada
com sua esposa e filha na fazenda de seu pai em Baturité, vindo a retornar novamente ao
Norte em seguida. Augusto acabou por não conseguir concretizar seus planos de melhoria de
condições de vida já que morreria de uma doença adquirida nos seringais, seu novo retorno ao
Ceará não pudera salvar-lhe a vida, sendo enterrado ao lado do túmulo de seu filho Timotheo.
Sozinha com Estrela e Florinda - uma criada que sempre estivera ao lado de Candida - a
jovem viúva ainda teve que enfrentar uma nova e terrível dificuldade: a seca que começara em
1888. Sua sogra, Dona Clementina, propusera a Candida que esta lhe desse Estrela, afirmando
1355
que a criança teria uma vida melhor na fazenda em Baturité, ao que Candida negara-lhe o
pedido. Durante a ausência de Augusto, quando o mesmo ainda vivia, Candida passou então a
estudar, aprimorara sua leitura e escrita, começava a aprender inglês e aritmética, tudo com
auxílio de Mrs. Cary, enquanto a pequena Estrela brincava com Evangeline e Nellie, filhas do
casal de missionários americanos.
Para sustentar a si e sua filha, Candida passou a trabalhar como governanta. Mas ainda faltava
a reconciliação com Glória, o que veio a acontecer durante os festejos juninos, quando a
própria Glória resolveu fazer as pazes com a irmã, vindo a aproximar-se da fé protestante
pouco tempo depois. A seca terminaria, a família estava novamente em paz e reunida, e um
horizonte de novas e sublimes expectativas se abriam para Candida, Estrela e o protestantismo
no Brasil com a proclamação da República.
Tais linhas gerais são o resumo da trama do romance “Candida; or, by a way she knew not. A
story from Ceara” de Mary Hoge Wardlaw. Tal livro toma como recorte periódico a década
de 1880 trazendo em suas páginas alusões diretas a abolição dos escravos no Ceará, a seca de
1888-1889, a migração de cearenses rumo às Províncias do Norte do Império e a Proclamação
da República, todos estes acontecimentos vivenciados pela autora que chegou ao Ceará em
1882. O enredo é ambientado primordialmente na cidade de Fortaleza lançando ao leitor
espaços tais como os arredores do Seminário da Prainha, o Passeio Público, a estrada de ferro,
o bairro do Outeiro. No entanto, alguns capítulos do romance se passam em Baturité (também
local de atuação da missão presbiteriana) e na região Norte do Império.
O Romance e a Missão
‘Candida’ foi o primeiro e único romance da missionária estadunidense Mary Wardlaw. Mary
Hoge, filha de um pastor presbiteriano, nascera em Baltimore no ano de 1855, casando-se aos
25 anos de idade com um jovem Reverendo presbiteriano chamado De Lacey Wardlaw. Um
mês após o casamento Lacey e Mary Wardlaw partiram para o Brasil na função de
missionários.
1356
presbiteriana em Fortaleza e em Mossoró, além da atuação na cidade de Baturité no interior
do Ceará.
The aim of this story is, primarily, to show the power of the gospel in Brazil, and, secon-
darily, to deepen the interest in Brazilians as fellow-beings. If, through its instrumentality,
the way of salvation should become clearer to some groping soul and the Saviour of sinners
dearer, I shall be blessed above measure (WARDLAW, 1902, p. 6).
Desta forma, através de seu romance, Mary Wardlaw buscava apresentar um relatório acerca
da atuação da missão protestante no Ceará na década de 1880 encabeçada por ela e seu esposo
De Lacey ao mesmo tempo em que supunha que a publicação deste escrito poderia servir
como um instrumento de proselitismo a seus compatriotas.
“Candida” surgia então como um tipo de literatura engajada e porque não dizer militante. Não
podemos tomar as linhas de tal romance como desinteressadas, mas pelo contrário, cada
capítulo, cada linha, cada acontecimento do romance voltava-se para a constituição de uma
perspectiva vitoriosa, apesar de sofrida, da implantação de uma comunidade protestante da
cidade de Fortaleza. Seus personagens são apresentados como fictícios, no entanto Mary
afirma que os fatos no romance seriam “strictly true” (estritamente reais), sugerindo ao leitor
a uma constatação de que de fato o que estaria a ler seriam as reais condições do Brasil no
período sobre o qual se escrevia.
Contudo, não podemos perder a perspectiva que “Candida” é um produto literário e como tal
articula-se como “um produto do desejo, seu compromisso é maior com a fantasia do que com
1357
a realidade. Preocupa-se com aquilo com o que poderia ou deveria ser a ordem das coisas,
mais do que com seu estado real” (SEVCENKO, 2003, p. 29).
Buscando alcançar o que considerava ser a real ordem das coisas, a autora apresenta a seus
leitores como figura central de seu escrito não um reverendo protestante e sua esposa
missionária, que, aliás, surgem com papéis secundários, mas sim uma brasileira comum, com
pouca instrução, cujos ofícios eram de lavadeira, costureira e governanta, a qual após casar-se
vai morar em uma pequena casa quase sem mobília, e que devido às dificuldades financeiras
vê seu esposo partir ao norte deixando-lhe com uma filha no Ceará.
Acreditamos que outros interesses, além dos confessados por Mary Hoge, existiam por detrás
de suas linhas. Uma das motivações está na grandeza da dimensão que envolvia o projeto
missionário protestante nos Estados Unidos desde o século XVIII, e principalmente no
oitocentos, quando esta nação passou a ser um dos maiores centros missionários protestante
do mundo. Contando com vários núcleos de aglutinação de jovens recém-egressos dos
seminários teológicos protestantes, tais como Nashville, Richmond e Nova York, várias
denominações protestantes nos Estados Unidos (presbiterianos, metodistas, batistas,
congregacionais) passaram a enviar inúmeros missionários para países estrangeiros,
especialmente para a África, a Ásia e a América Latina, como, por exemplo, o Brasil.
Considera-se que com a difusão do protestantismo nos Estados Unidos advieram daí diversos
dos chamados movimentos avivamentalistas nas igrejas os quais exigiam de seus fiéis maior
investimento e dedicação no trabalho missionário para além das fronteiras; e tal processo
reforçou-se com a conjunta propagação do ideário do Destino Manifesto.
Tal perspectiva caminhava em uma direção em que a linha de raciocínio era a seguinte: como
detentores da “verdade” os protestantes estadunidenses deveriam estar convencidos de seu
supremo dever em compartilhar tal “verdade” às nações que ainda não haviam tido acesso a
tal privilégio concedido pelo próprio Deus. Forjava-se aí o que Rubem Alves denominou de
uma “utopia social protestante”:
1358
A melhor sociedade possível será aquela em que todos forem protestantes. Uma sociedade
protestante será livre, democrática e rica. Será livre e democrática porque o “livre exame” e
a própria organização política das Igrejas protestantes o exigem. Será rica porque o senso
de responsabilidade individual, exigido pela doutrina da mordomia, e a bênção de Deus
sobre aqueles que se submetem à sua vontade produzirão o máximo de bem-estar
econômico (ALVES, 2005, p. 275).
Desenvolvido tal horizonte, a maior parte dos recursos financeiros destinados às missões no
exterior partiam dos fiéis das igrejas que enviavam os missionários, os quais passavam então
a manter constante correspondência acerca dos locais que as missões atuavam assim como o
progresso e as dificuldades do trabalho, servindo tais escritos como relatórios aos seus
colaboradores. Em pouco tempo surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos periódicos
protestantes2 que subdividiam-se em diversas seções por países com o fim de promover o
trabalho dos missionários publicando a correspondência dos mesmos.
o gênero literário das cartas, artigos e testemunhos sobre missões, que relatam os esforços e
as esperanças no futuro vindouro de conversão e salvação das almas, é tanto uma arte de
dizer como uma arte de fazer; suas construções formam um campo de operação dentro do
qual se produzem procedimentos e táticas que, de formas sutis, revelam as astúcias entre as
histórias vividas e as histórias narradas (SILVA, 2008, p. 33).
Estes procedimentos e táticas sutis, os quais Eliane Silva se refere se articulavam de acordo
com as necessidades pelas quais os missionários sentiam que eram imprescindíveis serem
reforçadas acerca de seus campos missionários. Desta maneira, mesmo não mais estando no
Brasil, Mary Wardlaw projetava a esta nação pela qual dedicara duas décadas de sua vida, um
futuro com a fé e as práticas protestantes que faziam parte do cotidiano do leitor
estadunidense.
Por esta razão mesmo não mais missionária em solo estrangeiro a autora de “Candida”
assumia o papel de anunciadora a seus compatriotas da necessidade de apoio aos missionários
que ainda estavam em outras nações e àqueles que preparavam-se para partir. O discurso de
Mary Wardlaw revestia-se com um prisma de grande legitimidade, levando-se em conta que a
2
Como exemplo de tais periódicos poderíamos citar: o The Missionary da Igreja Presbiteriana, publicado em
Richmond; e o The Gospel in All Lands da Igreja Metodista (mas que se postava como um periódico
interdenominacional), publicado em Nova York.
1359
autora, por haver vivido tanto tempo no país acerca do qual escrevia, possuía respaldo ante
seus leitores, surgindo aos olhos destes como detentora de confiabilidade.
Para fazer propaganda de suas publicações geralmente o ‘Committee’ postava ao final dos
livros anúncios de várias outras obras, apresentando inclusive o preço dos produtos. No caso
do romance de Mary Hoge, pudemos encontrar o preço pelo qual era comercializado quando
de sua publicação, ao final de outro livro editado pelo Comitê Presbiteriano (PHILLIPS,
1906)3, que no caso tratava-se de um dólar; ‘Candida’ surge em uma listagem ao lado de
outras publicações com a seguinte caracterização “Latest and Best books of missions”.
Na medida em que o romance de Mary Hoge constituiu-se como uma espécie de diário
romanceado, o qual tinha entre um de seus objetivos despertar em seus compatriotas o desejo
e a valorização do trabalho missionário protestante, tal livro está repleto de correlações entre
as memórias vivenciadas enquanto missionária no Brasil e aspectos concernentes ao projeto
que representa “Candida”, isto é, o projeto de um Brasil protestante. Uma destas ligações está
na temática central da obra que é o processo de desenvolvimento da primeira missão
protestante no Ceará ao findar do século XIX, processo do qual Mary foi participante ativa.
Assim, Mary e seu esposo, surgem no romance, se não nos papéis principais, pelo menos com
funções fundamentais para o desenvolvimento da trama. Mister e Misses Cary, são
representações diretas do casal Wardlaw, inclusive sendo o nome Cary um nome da família de
Mary Hoge4. Além de estadunidenses, os Cary passam durante o romance por situações que
3
A listagem ao final desta obra continha 49 publicações cujos preços variavam de 25 cents a dois dólares.
4
A dedicatória de “Candida” é dirigida a um primo de Mary Wardlaw, que a autora diz ter homenageado dando
o seu nome ao casal de missionários do romance.
1360
podem ser comparadas às experiências vivenciadas pelo casal Wardlaw postadas no periódico
cearense ‘Libertador’ e no ‘The Missionary’ nas décadas de 1880 e 1890.
O casal Wardlaw, quando de sua estadia em Fortaleza, fixara residência na Rua das Flores,
rua pela qual passavam rotineiramente cortejos fúnebres com destino ao cemitério da cidade.
Tais cortejos chamaram a atenção de Mary Wardlaw, que dedicaria uma matéria completa no
‘The Missionary’(THE MISSIONARY, 1890, p. 428-429) para abordar ritos fúnebres no
Brasil. Em seu romance, tal temática não passaria em branco, na medida em que ao abordar a
morte do pequeno filho de Candida e Augusto, Mary dedicara um capítulo inteiro intitulado
“Vou Para o Céo” abordando aspectos concernentes ao velório e funeral de Timotheo.
As descrições que Mary Hoge esboça em seu romance são bastante semelhantes as que
escrevera mais de uma década antes para seus compatriotas e que fora publicada no ‘The
Missionary’. Os cochichos dos presentes no velório acerca do absurdo da criança ter
demorado a ser batizada podem ser comparados ao que Mary afirmaria ser crença recorrente
no Brasil com relação às crianças não batizadas serem denominadas “pagãs”:
"They say," whispered one woman to another in the adjoining apartment, "that they let him
die without a candle."
"He just missed dying a pagan," returned her neighbor. "Who knows if this is a punishment
for leaving him so long unbaptized?" (WARDLAW, 1902, p. 108)
a child who dies before the time of responsibility. They say it is a little angel, and went
straight to heaven. This only applies to a baptized child; an unbaptized child is said to "die
a pagan." (THE MISSIONARY, 1890, p. 429)
Em seu romance Mrs. Wardlaw chega a descrever inclusive características do caixão do filho
de Candida e Augusto:
They went toward the sala. At the door Joanna turned back, and Mrs. Cary went in alone.
The little casket was of pure white, relieved with the figures of angels wrought in silver.
But the sweetest angel lay within. (…) in her three years of Brazilian life, she had never
before seen a baby prepared for burial. (WARDLAW, 1902, p. 109).
Tal descrição do caixão infantil mostra-se semelhante às esquifes das marchas fúnebres que
Mary Hoge presenciava da janela de sua casa na década de 1880, as quais, geralmente
1361
levavam as crianças em um “little cofin covered with blue or white cambrie trimmed with
silver braid” (THE MISSIONARY, 1890, p. 428).
They took him to the Santa Casa. One of your church members learned of it, and went for
Mr. Cary. They say there was a dreadful scene. I don't believe half the rumors, of course;
but they say the sisters tried to put Mr. Cary out by force, telling him he had no right to
come to a Catholic institution. 'Excuse me, Senhora,' said he, 'this building belongs to the
State' (WARDLAW, 1902, p. 182).
Surge aí a perspectiva dirigida àqueles que deveriam preocupar-se com os missionários que
estariam no Brasil sob as diversas dificuldades enfrentadas por aqueles que tão somente
teriam por desejo, parafraseando o próprio De Lacey Wardlaw, “convencer os brasileiros das
inovações do catolicismo”. Mary Wardlaw reforça algo que é tão marcante para todo o
cristianismo, tanto protestante quanto católico, que é a ideia da perseguição religiosa a qual,
quando posta ao extremo, fornece aos fiéis mártires que devem ser vislumbrados como figuras
exemplares.
1362
Tais relatos da violência física e verbal aos representantes da missão presbiteriana de
Fortaleza seriam destacados por Lacey Wardlaw no ‘The Missionary’, quando este afirmaria
que
A great deal of the popular prejudice has been overcome, but the opposition has become
more organized than ever. Still we are making progress and have had very little to disturb
us in the meetings we have had in the outskirts, even in that part where on two former
occasions my wife was struck with stones while visiting with me (THE MISSIONARY,
1890, p. 421).
Mary Wardlaw, segundo informa seu esposo, por duas vezes vítima de ataques a pedradas
forneceria aos leitores de seu romance um episódio deveras semelhante ao que lhe havia
sucedido no Brasil. Candida, ao visitar Cherubina, viúva de Hilário, e também pertencente à
comunidade protestante de Fortaleza, seria atacada a pedradas por pessoas que ao mesmo
tempo em que jogavam as pedras vociferavam contra os protestantes:
Immediately a score or more of voices took up the cry, "Protestante!" "Married priest!"
"Down with the Protestantes! Death to the married priest!"
A stone fell behind them; another; two or three together; then a shower of stones came
crashing through the air (WARDLAW, 1902, p. 194).
Assim como Mary Wardlaw havia sido atacada nos “subúrbios” da cidade, Candida o fora no
bairro do “Outeiro”. E surge nas linhas de Mary Hoge, de maneira proposital, a alcunha pela
qual De Lacey Wardlaw fora tão apupado por aqueles que estavam descontentes com sua
presença na cidade: O “Padre Casado”. Apelido este que era lançado de maneira desdenhosa
e desafiadora como o fez um anônimo no ‘Libertador’ de 06 de setembro de 1883 após fazer
críticas ao missionário presbiteriano: “Mandem o seu padre casado para os Estados Unidos”.
1363
esta razão o centro da trama se passa em volta das relações entre as famílias de Candida e de
Augusto, principalmente a família de Candida que gradativamente é convencida do engano
religioso pelo qual estariam engodados e desta maneira acabam por optar por uma nova fé, a
protestante.
A figura de Candida surge desta forma aos olhos dos leitores estadunidenses como o alvo a
ser almejado pelos protestantes engajados no projeto missionário, na medida em que esta
figura trata-se de um símbolo alusivo aos brasileiros católicos. Durante todo o romance
Candida surge como uma personagem repleta de dúvidas acerca da sua fé católica, entretanto
resiste às mudanças por conta do desejo de manutenção das tradições, elemento este que surge
como fundamental na construção discursiva do romance, isto é, Mary Wardlaw sustenta que a
resistência por parte dos sujeitos do romance em serem alcançados pelos missionários
estadunidenses não se dava por conta de uma firme crença na fé católica, mas pelo receio de
romper com a tradição de seus familiares.
Contudo, Candida é apresentada como uma jovem mulher diferenciada de seus pares, por todo
o romance surge como uma pessoa cujo caráter moral e submissão ao marido são
apresentados de maneira louvável pela autora. Todos que mantinham contato com Candida,
em pouco tempo eram cativados pela simplicidade e humildade da protagonista da trama.
Significativa foi a escolha do próprio nome da personagem central da trama, a qual remete a
ideias de pureza, ingenuidade, inocência.
Neste contexto, o subtítulo do romance salta aos nossos olhos como essencial para
compreensão da proposta de Mary a seus leitores, isto é, a trajetória de abdicação do
catolicismo por parte de Candida rumo a um “Caminho que ela não conhecia”. Isto é,
Candida e todos aqueles brasileiros que lhe rodeavam, tinham por necessidade o auxílio de
sujeitos que já conhecessem o “caminho”; ou, em outras palavras, a efetivação da missão
1364
protestante de salvação de almas no Brasil predispunha da ação direta dos protestantes norte-
americanos no que dizia respeito ao financiamento das ações missionárias.
Mas se por um lado Mary Wardlaw apresenta Candida como a representação dos brasileiros
pelos quais se devia investir no momento presente que a autora escrevia a seus leitores, por
outro, a esposa do reverendo Lacey Wardlaw, viria apresentar uma personagem que pode ser
encarada como a idealização absoluta do projeto missionário protestante para um futuro
Brasil: Estrella.
Estrella surge aos leitores do romance no décimo capítulo, sendo a segunda filha de Candida e
Augusto. Após a imensa tristeza causada pela morte do pequeno Timotheo, um novo filho
surge como portador de felicidade para o jovem casal. Casal este que já havia passado pelo
processo de conversão ao protestantismo, encontrando-se ambos numa busca dedicada ao
cumprimento dos comportamentos inerentes á sua nova fé. Tanto que até mesmo a escolha do
nome da criança por Candida mostrou-se como uma espécie de confirmação do novo modo de
vida da mesma:
"Candida," asked Joanna, a little later, "have you thought what you are going to call your
baby? You know she brought the name of Mary of the Assumption."
"(…) Listen, girls. It has been dark so long; dark here." She touched her brain. "And darker
here;" she touched her heart. "And now the night has gone; Augusto is going to recover. As
for my Timotheo," a great sob rose in her throat, but she kept on with what she had to say,
"he is with Jesus. I must only think of him as safe and happy. My dear sisters are given
back to me. And we all love Jesus. Yes, I, too, at last; I know I love him. This wee one came
as Heaven's own messenger of light, I shall call her Estrella" (WARDLAW, 1902, p. 123).
Apesar dos vislumbres de dias menos sofríveis após o nascimento de Estrella, na realidade
Candida passa por inúmeras situações difíceis, como a partida do marido Augusto para o
Amazonas como migrante, a morte de Tia Theresa, os conflitos com sua irmã Glória por
haver renunciado ao catolicismo, a perseguição religiosa de habitantes da cidade, a morte de
Augusto, as dificuldades de sobrevivência impostas pela seca.
1365
Tal qual Mary Wardlaw percebia o protestantismo no Ceará, assim o era a personagem
Estrella, ambos “recém-nascidos”, porém já tendo que enfrentar diversos problemas, como os
enumerados acima. No entanto, ambos vistos como o caminho que solucionaria todas as
demandas daqueles que deles se aproximassem, na medida em que o protestantismo era
percebido pelos missionários como único caminho religioso viável, e a trama do romance de
Mary Hoge caminha rumo a esta mesma conclusão.
Estrella, então, surge como a esperança ante todos estes empecilhos na vida de Candida.
Devido a sua educação totalmente pautada em moldes protestantes, a filha de Candida mostra-
se ao leitor como destituída de valores e práticas negativas, que estariam presentes em outras
crianças de sua idade, mas filhas de pais católicos.
Necessitando sustentar a si e sua filha, Candida, já viúva, passa a trabalhar como governanta
de uma senhora chamada Lucretia, a qual não gostava dos mimos feitos por seu esposo à
Estrella e quando tinha oportunidade descontava seu descontentamento na filha da
governanta. Tal oportunidade é visível no episódio em que Estrella brincava com os filhos dos
patrões de sua mãe, Mariquinha, Anita e Pedro, o qual em um momento de raiva pueril grita
“Diabo” o que faz com que Estrella pare de brincar com as crianças e explicar a elas o
motivo: “mother doesn't let me play with children that say that word” (WARDLAW, 1902, p.
330-331).
Ante tal situação, Pedro quebra uma das rosas de sua mãe e inventa a esta que Estrella seria a
autora do delito, fazendo com que Lucretia vá tirar satisfações com Candida que prontamente
defende sua filha afirmando que “Estrella is perfectly truthful” (WARDLAW, 1902, p. 332).
A pequena Estrella aparece ao leitor como portadora de um diferencial ante as outras crianças
brasileiras, na medida em que se mostra totalmente obediente à sua mãe, não fazendo
traquinagens, não contando mentiras, além de mostrar-se uma criança extremamente cativante
a quase todos os adultos que a rodeiam por conta do referido comportamento.
A explicação para isso se mostra bastante simples ao leitor do romance de Mary Wardlaw, e
ela reside no fato da mãe de Estrella ser uma protestante que ensinava a filha seu modo de
vida religioso cotidianamente com o auxílio de Mrs. Cary e das filhas desta, Evangeline e
Nellie. Assim, o diferencial de Estrella era o fato de esta haver nascido protestante, ou, nas
palavras de um padre que visitaria Candida e tentaria fazer Estrella beijar sua mão, tendo seu
pedido recusado, a criança era “A genuine little Protestant” (WARDLAW, 1902, p. 218).
1366
Além dos aspectos inerentes à moral de Estrella, Mary Hoge destaca no romance outras
características que a criança apresentava por conta da ação de sua mãe. Uma destas
características era o fato Candida interessar-se por estudar português, aritmética e inglês para
em breve tornar-se a professora de Estrella visando para a criança um “futuro”, assim, ainda
bastante jovem Estrella é descrita na história como uma criança extremamente inteligente e
com poucas dificuldades para o aprendizado das lições dadas por sua mãe.
Outro fator pelo qual a autora faz questão de enfatizar era o modo como a pequena Estrella se
vestia:
Candida looked at the three little girls. Estrella's hair was freshly curled; Mariquinha's and
Anita's hung in an uncouth tangle. Estrella's stockings were whole, and her shoes neatly
brushed and tied. Her plain black and white checked calico was clean and well-fitting.
The other little girls were clad in faded finery. Anita's dress was unhooked half the way,
while torn lace hung from Mariquinha's (WARDLAW, 1902, p. 333).
Tal cuidado por parte de Candida revela muito mais que um zelo maternal, traz à tona uma
preocupação essencial ao modo de vida protestante do século XIX que era a compostura dos
trajes, inclusive das crianças.
Por haver nascido em lar protestante Estrella possuía todos os atributos necessários a um bom
seguidor desta fé, a tal ponto, do penúltimo capítulo do romance chamar-se “Estrellas’s first
work for Christ”. Após sair da casa de Dona Lucretia, Candida passou a trabalhar para outro
casal, Frederico e Esmerina Vieira, os quais rapidamente são cativados por Estrella. Esmerina
Vieira, uma mulher com deficiência física, surge no romance como uma boa mulher, porém
solitária e deveras amargurada por acreditar que, devido à sua situação, seu esposo não a
amava mais. Desta maneira, Dona Esmerina passa a compartilhar momentos com a criança
que apesar de bastante pequena possuía uma voz belíssima, o que agradava a patroa de
Candida.
Esmerina solicita, então, que todos os dias Estrella cantasse para ela e propôs-se a dar aulas de
piano à criança já que sabia tocar o instrumento. Na medida em que todas as canções entoadas
por Estrella possuíam conotação religiosa protestante, fica nítida, a ênfase que Mary Wardlaw
chama de “first work for Christ” de Estrella, que apesar da pouca idade já mostrava-se uma
espécie de missionária, a ponto de tocar o coração da patroa de sua mãe que mostrava-se
totalmente indiferente a qualquer tipo de religião.
1367
Além disso, de alguma forma, quase milagrosa, a autora dá a entender que a presença de
Candida e Estrella naquela casa fora fundamental para a reestruturação do casamento de seus
patrões; Frederico Vieira tornou-se mais atencioso com Dona Esmerina e decidiu partir rumo
ao Rio de Janeiro com sua esposa em busca de um tratamento para o problema de saúde da
mesma.
Considerações finais
Two weeks later the monarchy fell. Across the threshold of the new dynasty we cannot pur-
sue her history. It is enough to say that she has richly redeemed the promise of her
childhood. In appearance, in intellect and in character, she deserves her name.
She is a star, — one that bids fair to shine the brighter, whatever clouds may gather. May it
be her privilege (as it was that of her parents) to "turn many to righteousness." Then, when
her light is withdrawn from earth, she will "shine as the stars forever and ever"
(WARDLAW, 1902, p. 352-353).
Mary Wardlaw e sua família partiram do Brasil em 1901, quando esta nação já era uma
República, e este novo momento político do Brasil foi extremamente significativo para os
vários missionários protestantes estadunidenses que aqui atuavam, na medida em que a queda
do Império e o estabelecimento do fim da união da Igreja Católica com o Estado Brasileiro
representou a estes protestantes um horizonte de múltiplas expectativas quanto à expansão
protestante na recém-nascida república, a qual cresceria juntamente com o recém-nascido
protestantismo brasileiro.
Desta forma, assim como Estrella, a visão formatada no projeto missionário era a que a
mensagem protestante seria uma luz que tinha por atribuição guiar os passos da República do
Brasil. Mary Wardlaw desenvolve a partir de “Candida” aquilo que já em 1888 almejava para
o Brasil: “We know that happy day is a long way off, but we look forward to it, and believe
that it will be ushered in with many blessings” (THE MISSIONARY, 1888, p. 434).
1368
Referências
PHILLIPS, A. L. The call of the home land: A study in home missions. Richmond: The
Presbyterian Committee of Publication, 1906.
‘The Missionary’. A monthly Journal, issued in behalf of The Foreign Missions of the
Presbyterian Church in the United States. Edited by the secretaries. Published by Whittet &
Shepperson. Richmond: 1888 - 1890.
WARDLAW, Mary Hoge. Cândida; or, by a way she knew not. A story from Ceará.
Richmond: The Presbyterian Committee of Publication, 1902.
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Comer o tatu antes ou depois da comunhão? As manifestações
religiosas dos brasileiros e o conhecimento das normas católicas
(segunda metade do séc. XIX)
José Leandro Peters1
Introdução
Neste trabalho proponho uma discussão sobre uma questão central: a valorização dos
brasileiros frente ao sacramento da Eucaristia a partir da leitura da Carta Ânua da
Congregação do Santíssimo Redentor do ano de 1901 (Casa de Aparecida, interior de São
Paulo). Este é um documento riquíssimo que permite levantar uma série de questionamentos
sobre a religiosidade brasileira e a atuação dos padres redentoristas no interior do estado de
São Paulo nos anos finais do século XIX.
Embasado por trabalhos recentes sobre as manifestações religiosas brasileiras, procurei ler
esse documento de maneira crítica, visualizando respeito e conhecimento onde os
redentoristas afirmavam existir indiferença e ignorância. Para promover essa leitura me
apropriei dos conceitos teóricos defendidos em parte por Pierre Bourdieu; Reinhard Koselleck
e Roger Chartier, os quais trabalham com os conceitos de representação e apropriação.
Segundo esses autores os indivíduos são formados dentro de uma cultura (habitus,
experiência, sociedade), mas eles não estão inertes nesse campo, eles devem serem vistos
como seres atuantes que se apropriam daquilo que lhes é dado de acordo com as suas
experiência e suas expectativas de futuro e reformulam a mesma ideia que lhe havia sido
apresentada reivindicando suas expectativas, suas perspectivas futuras (BOURDIEU &
CHARTIER, 2011; KOSELLECK, 2006). Desse modo torna-se possível a compreensão do
discurso redentorista exposto neste documento. A meu ver, a fala redentorista ao criticar o
catolicismo brasileiro faz parte de um discurso de legitimação do trabalho religioso
desempenhado no Brasil. Contudo, os relatos deixados pelos padres permitem uma leitura
distinta da conduzida por eles e observar justamente o oposto das ideias que eles propõem ao
longo do texto.
1
Professor do Instituto Federal de Educação do Sudeste de Minas Gerais (Campus Juiz de Fora). Doutorando em
História pela UFJF. Orientadora: Drª Beatriz Helena Domingues. Contato: joseleandropeters@yahoo.com.br.
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Breve relato sobre os documentos analisados e a memória neles proposta
Antes de iniciar uma discussão sobre os relatos dos padres redentoristas e sobre a
religiosidade dos brasileiros, algumas ressalvas são importantes e devem ser feitas para não
gerar interpretações inadequadas do discurso aqui proposto.
A primeira ressalva que faço é sobre o conjunto de regras da Igreja que estou tomando para
poder compreender a religiosidade expressa nesses documentos e o grau de compreensão que
as manifestações religiosas dos brasileiros permitem supor que o povo tinha dessas normas.
Para essa análise utilizei as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (VIDE, 2010),
isso porque embora as constituições não se encontrassem vigentes mais no período de atuação
do clero redentorista no Brasil, são essas mesmas Constituições que formaram os brasileiros
que são retratados nesses relatos, portanto a compreensão de religião oficial que eles possuem,
a meu ver, deve ser baseada nessas constituições e não nos documentos que a substituem após
a Proclamação da República.
no Brasil, os párocos não escrevem os livros ou só conforme seu estado de humor, são os
que menos observam as prescrições do Direito Canônico e do Bispo. Entende-se pois que
os assentamentos de batismo e casamentos sejam deficientes e estragados. Ao se procurar
algo, recebe-se muitas vezes, a resposta “não se encontrou nos livros”. Compreende-se que,
onde não se pratica o celibato, não se sabe duma vida sacerdotal, não se pode esperar senão
mau trato e descuido nos sagrados deveres do ofício, sacrificando-se mesmo as confissões e
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as pregações, servindo o púlpito, muitas vezes para a exibição de espírito e talento oratório
sem nenhum valor prático para a vida religiosa e servindo só para embolsar 200-500 mil
réis ou marcos por uma pregação festiva. O que não dá lucro não se faz. É o princípio geral
(BRUSTOLONI, 1978, folha 101).
Fica claro nessa passagem a imagem que os padres da Congregação desenham do corpo
paroquial brasileiro, ou pelo menos daquele que encontraram na Paróquia de Aparecida.
Embora em alguns momentos faça referência a essa dualidade apresentada não é o objetivo
desse trabalho em si apresentar essa oposição e sim buscar nos relatos dos padres
redentoristas, mais precisamente na carta ânua do ano de 1904, passagens que permitem
observar o oposto à ideia apresentada pelos padres. Enquanto eles defendem nessas passagens
o pouco conhecimento e respeito dos brasileiros para com os sacramentos e as normas da
Igreja Católica, percebo nesses discursos, ou melhor, relatos, um conhecimento e respeito
significativo dos fiéis sobre os dogmas católicos. Entendo que em alguns momentos é
justamente o conhecimento sobre esses dogmas e os questionamentos que os indivíduos
levantam sobre eles que os levam a cometer falhas durante os sacramentos. Os relatos
permitem assim visualizar a forte religiosidade dos devotos quando imersos no espaço
religioso. Como aponta Célia Maia Borges:
Avaliar a religiosidade dos colonos pela forma como as pessoas se envolviam nas festas,
como bem chamou a atenção Sérgio da Mata, como o têm feito alguns historiadores,
na esteira do viajante Saint Hilaire, parece – me ser uma visão algo parcial: agradar aos
seus santos, orná-los e organizar as festas com muita pompa espelhava exatamente a
fé dos confrades (MATA, 1997, p. 50). Era isto a expressão de uma forte religiosidade que
refletia – se no desejo de requisitar o amparo de seus santos, quer para obter a proteção
naquela sociedade, quer para recuperar a saúde, obter prosperidade e garantir um bom
futuro na vida e no além (BORGES, 2011, p. 4).
A pesquisa de Célia Borges aponta essas conclusões para as representações religiosas dos
irmãos do Santíssimo Sacramento na Colônia. Acredito ser possível reportar noções parecidas
quando analisamos as manifestações religiosas dos devotos e católicos que viviam ou se
dirigiam a Aparecida e eram assistidos espiritualmente pelos redentoristas no final do século
XIX. Para tanto a leitura do documento é feita de maneira a questionar de maneira crítica os
argumentos levantados pelos redentoristas, levando em consideração, como já mencionei o
interesse desse grupo em mostrar a deficiência na formação dos católicos brasileiros.
Enquanto esses religiosos focam suas conclusões e afirmações nos números de comunhões
1373
oferecidas, procuro analisar os poucos relatos que aparecem nesses textos sobre o
comportamento dos fiéis diante dos sacramentos, mais precisamente a Eucaristia.
As comunhões
aumenta o número de ano para ano. Diz-se que, quando chegamos em outubro de 1894,
eram 300 as comunhões anuais. Já em 1895, apesar de os padres falarem mal a língua e as
pessoas não entenderem ou não serem entendidas, o número subiu a 2000. Com a
transferência dos PP. Wendl e Gahr para Campinas e dos PP. Wiggermann, Späch e Siebler
de lá para Aparecida, em fins de 1895, tomaram impulso as pregações e confissões,
chegando o número de comunhões a 7000 no ano de 1896. Em 1897, 14.000; em 1898, as
comunhões, contando-se as duas missões, foram 30.000, sendo 14.000 de Aparecida.
Dessas 30.000 uns 90 não se tinham confessado nunca ou só uma única vez. Acontece, às
vezes, que as pessoas comungam sem se confessarem ou observarem o jejum, mas fazem-
no por ignorância e não por maldade (BRUSTOLONI, 1978, folha 114).
O número baixo de comunhões distribuídas, antes de 18942, está relacionado não a pouca
importância que os brasileiros davam aos sacramentos, mas a um respeito extremo à
Eucaristia e às normas que a envolviam. Como aponta o documento, poucos desses indivíduos
tinham se confessavam ou conservavam o jejum, ficando, desse modo, impossibilitados de
comungar se levassem a sério, como me parece que ocorria, os sacramentos da comunhão.
Quando o redentorista cita um caso em específico esse temor pelas consequências de se tomar
a Eucaristia sem seguir os preceitos da religião católica aparecem de maneira mais clara. Diz
o documento;
Um homem veio de longe à missão e em jejum, pois queria comungar. Trazia na sacola um
tatuzinho já assado para o desjejum. Veio-lhe então a dúvida: como o tatu depois da
comunhão, então o Senhor Jesus fica abafado debaixo dele; como antes a comunhão, então
não está certo, mas ao menos, mas ao menos o tatu fica por baixo. Resolveu o caso,
2
Ano que marca a chegada dos padres da Congregação do Santíssimo Redentor no Brasil.
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comendo o bichinho e depois foi comungar muito devotamente (BRUSTOLONI, 1978,
folha 114).
Este trecho das permite uma série de apontamentos. Em primeiro lugar, é preciso entender a
justificativa do redentorista para a atitude deste indivíduo. Segundo o documento, o motivo
deste homem ter se colocado nessa situação, ou melhor, nesse questionamento, se comia o
tatu antes ou depois da comunhão seria o resultado de um certo abandono religioso pelo qual
passavam os brasileiros das regiões mais interioranas do Brasil. Conforme o padre
redentorista, no início desta mesma carta, a assistência espiritual dos brasileiros no período
anterior à chegada dos padres da Congregação no Brasil (ano de 1894) principalmente nas
regiões do interior do país. Portanto, estando os brasileiros em quase completo abandono
espiritual não tomariam conhecimento das normas que regiam a Igreja Católica, nem teriam
consciência da importância dos sacramentos dentro da Igreja, embora manifestassem a sua de
maneira veemente. Dentro deste contexto, Wendl cita o caso acima apontado como exemplo
da falha na formação religiosa do povo brasileiro. Deste modo o problema não é que o povo
não tem fé ou religião, o problema seria que eles não possuem conhecimento das regras que
norteiam a Igreja e os seus sacramentos. Ora, quando analisamos o texto acima o que me
parece é justamente o contrário.
De fato, a fé relatada por Wendl realmente parece existir, mas não nos cabe aqui o julgamento
deste ponto, o que nos interessa é outro lado da citação, o conhecimento sobre as regras da
Igreja e a importância dada pelo indivíduo que vai se comungar ao sacramento, a qual não me
parece diminuta. Pelo contrário, ele parece ter um conhecimento muito avolumado destas
regras e encarar de forma muito respeitosa o sacramento da comunhão. A questão que o
conduz a dúvida de comer o tatu antes ou depois da comunhão não é fruto da falta de
conhecimento e sim do farto esclarecimento que possui sobre a religião que se pôs a seguir. O
indivíduo tem a noção de que deveria se comungar em jejum, portanto não poderia comer o
tatu antes da comunhão, incorrendo, caso o ingerisse desse modo, em um grave pecado. Por
outro lado, ele se questiona sobre o fato de comer o tatu depois da comunhão, questão para ele
tão ou mais grave que a primeira, já que a hóstia consagrada era o símbolo do corpo e do
sangue de Jesus Cristo. Deste modo, o tatu ficaria sobre Cristo, o que seria, ao ver deste
homem, um fato muito grave. Quando ele levanta essa segunda questão permite perceber que
ele possuía o conhecimento de que a hóstia representava o corpo e sangue de Jesus e ele a
respeitava enquanto tal. Ao que me parece esse discurso pode ser lido como um indício em
sentido oposto ao apresentado pelo redentorista. Enquanto para o padre o discurso é uma
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prova do total desleixo espiritual em que viviam os brasileiros, para mim ele permite perceber
que por mais que os brasileiros estivessem em uma situação de desamparo pela Igreja
Católica eles tinham uma mínima noção da fé católica.
É possível afirmar, por meio desse relato, que esses indivíduos encaravam de forma séria os
sacramentos e que mesmo praticando uma religiosidade lida como devocional pelos
redentoristas e pela maior parte dos membros da Igreja Católica, não se distanciavam dos
anseios sacramentais do período. Como afirma Célia Maia Borges em artigo recente, o
número pouco expressivo de comunhões oferecidas dentro do Brasil, conforme foi apontado
no documento, não pode ser tomado como um significado de pouca religiosidade ou
indiferença dos brasileiros para com a Eucaristia.
Dizer que havia “uma grande indiferença” por parte dos colonos em relação à Eucaristia
cotidiana pelo fato de ela não se encontrar explicitada nos livros de compromissos,
conforme afirma Adalgisa Arantes Campos, pode não traduzir, do meu ponto de vista,
uma leitura suficientemente esclarecedora dos documentos (CAMPOS, 1984, p. 261).
Não era por constituir a missa um valor em si para o colono que este se dispensava de
frequentar a comunhão diária; ela era tão importante que exigia uma grande preparação
(Idem: 262). Como acertadamente demonstrou Sérgio da Mata, a baixa freqüência dos fiéis
à comunhão podia não significar uma “subvalorização da eucaristia no Setecentos mas
antes a sua hipervalorização” (MATA, 1997: 4157). Isto porque o colono podia deixar de
comungar por temor ao sagrado, por medo dos castigos e também pelo receio de não
corresponder ao modelo de cristão exigido pela Igreja (BORGES, 2011, p. 7-8).
O homem que traz o tatu reconhece que não pode comê-lo porque infringiria uma regra da
Igreja, mas, para ele, infringir a regra imposta era menos grave que permitir que o tatu
permanecesse sobre o corpo e sangue de Cristo, uma regra lógica, criada por ele dentro desse
catolicismo dito devocional. Essa decisão mostra a maneira respeitosa com que encara o
sacramento, logicamente interpretado segundo seus padrões culturais e religiosos. O homem
não admite que o tatu fique sobre Cristo. É possível pensar que como esse devoto, outros
também ficassem indecisos e decidissem por não comungar, como afirma Célia, isso ocorria
por temor de que algo lhes pudesse ocorrer. Se pensarmos nas relações entre os signos e seus
significados, este homem estaria até certo ponto correto em seu raciocínio, mas o fato é que
infringiu uma regra da Igreja (a qual fica claro, como já demonstrado, que ele possuía
conhecimento) e por isso é “condenado” e tomado como exemplo pelo redentorista de um
povo brasileiro que desconhecia e pouco valorizava os sacramentos da Igreja Católica, sendo
deixado de lado o julgamento lógico feito pelo indivíduo.
1376
É fato que os redentoristas ao escreverem essas cartas procuraram valorizar ao máximo suas
ações no Brasil, portanto exploram em muito o número das confissões e comunhões
oferecidas no Santuário3, como indica um dos documentos acima citado. Apresentam, como já
foi apontado no início dessa discussão sobre as comunhões, números muito expressivos a
partir do início da atuação redentorista na região. Dados como esses, bem como o relato aqui
citado e analisado ajudavam a corroborar o discurso redentorista, que afirmava terem
encontrado um povo espiritualmente abandonado, mas extremamente religioso, que a partir do
início de sua atuação passaram a adotar um catolicismo mais sacramental. Desse modo os
redentoristas mostram estar cumprindo o desejo da Igreja brasileira naquele momento, desejo
inclusive que motivou a vinda deles para o Brasil.
Mas mesmo apontando para toda essa “evolução sacramental” dos brasileiros, mais
precisamente para um aumento no número de indivíduos que se comungavam, os
redentoristas não deixaram de apontar para dificuldades ainda presentes para efetivação do
trabalho feito com os fiéis (em grande parte devotos da imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida). Eles citam, por exemplo, a dificuldade que tinham na assistência aos
doentes que habitavam o interior do país, mais precisamente, regiões que estavam a mais de
30 minutos de caminhada da região do Santuário. Locais em que o acesso só se daria por meio
da utilização de cavalos. Contudo havia um grande entrave para se assistir aos indivíduos
nessas regiões: levar a hóstia sobre os cavalos. O relato abaixo citado expõe a questão:
Andam pelos 800 os doentes visitados desde 1896; a comunhão só se leva no próprio lugar
a pé ou numa distância de meia hora, quando há condução. No Brasil, o viático é levado
solenemente com padre paramentado convenientemente, coroinhas, baldaquino e povo
acompanhado. O padre leva em geral duas hóstias consagradas, quando o doente é do lugar,
para poder trazer processionalmente o Santíssimo de volta.
Por um lado, o texto permite perceber os entraves ao trabalho sacerdotal dos redentoristas.
Interessante que eles parecem apontar para as próprias regras da Igreja como uma barreira ao
desenvolvimento do trabalho de assistência espiritual aos brasileiros. As mesmas regras que
3
No caso o Santuário de Aparecida no interior do estado de São Paulo.
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eles dizem que os religiosos brasileiros não seguiam, nesse ponto são colocadas para explicar
porque ação missionária não alcançou números mais expressivos. O interessante é que
justificando a falta com um determinado grupo (os doentes) o texto do redentorista permite
visualizar que os sacramentos não eram encarados de maneira simplista pelos religiosos
brasileiros como uma leitura desatenta do documento permitiria supor. Da mesma forma que
o questionamento do homem que não sabia se comia o tatu antes ou depois da comunhão
partia não de um desconhecimento dos dogmas de sua religião e sim de um respeito a esses
dogmas, a situação acima descrita permite supor que, ao contrário do que afirma o
redentorista sobre a atuação paroquial naquele local antes da sua chegada, o respeito ao
sacramento da eucaristia era algo presente nessa sociedade. Visto o fato de a eucaristia não ser
levada a qualquer lugar, de qualquer forma, por qualquer pessoa. E quando acontece de ela ser
levada, seja em locais mais próximos ou mais longínquos, tudo é feito sob autorização do
bispo e há todo um cortejo e um cerimonial para seguir o trajeto. Como aponta o documento,
a saída do “Santíssimo Sacramento” da igreja é feito em cortejo acompanhado por um padre
com vestes adequadas para o processo, coroinhas, baldaquino e o povo em geral, que durante
o trajeto cantam músicas de louvor ao “Santíssimo Sacramento”, a Jesus Cristo e à Vigem
Maria. Quando as distâncias são mais longínquas e é necessária a utilização do cavalo para o
transporte, o padre também não segue sozinho, leva junto consigo um ajudante, o qual
provavelmente garantiria a boa execução dos rituais necessários ao respeito com o sacramento
viático.
Fato é que o texto redentorista apresenta esses casos em parte para afirmar o descompromisso
do corpo eclesiástico brasileiro com as funções religiosas a que estavam destinados, mas em
alguns momentos os relatos permitem perceber que os redentoristas esbarravam em
dificuldades similares aos seus antecessores. Desse modo, podemos compreender que os
redentoristas utilizam esses casos citados da forma que melhor lhes convém. Quando querem
criticar os padres que os precederam, os registros servem para corroborar um discurso
pejorativo da religião dos brasileiros afirmando uma possível indiferença dos brasileiros para
com os sacramentos e as regras da Igreja Católica, fruto de uma falha do corpo eclesiástico.
Contudo, quando não conseguem efetivar o trabalho, o discurso, em alguns momentos muito
próximo dos exemplos usados para crítica, emerge em um sentido contrário; para justificar
ações ainda não tomadas.
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Conclusão
Propus ao longo do trabalho uma leitura crítica da carta ânua dos padres redentoristas do ano
de 1901, um documento riquíssimo que permite uma série de interpretações. Procurei
demonstrar que o documento apresenta a visão dos redentoristas sobre a religiosidade
brasileira e a utilização de argumentos pelos padres para justificar o trabalho já efetuado e
aquele que ainda não foi concretizado. Foquei minha análise no sacramento da Eucaristia,
procurando mostrar como os redentoristas entendiam que os brasileiros o encaravam e como
os documentos permitem abordar a questão de maneira distinta sem aceitar a interpretação
oferecida pelos padres da Congregação. Em concordância com estudos recentes tenho
chegado à conclusão de que uma simples análise quantitativa que relaciona o pouco número
de comunhões a um desprezo brasileiro pela Eucaristia pode conduzir a interpretações que se
distanciem da realidade vivenciada. Até o momento dessa pesquisa tendo a concordar com a
Célia Borges quando a autora menciona que estas atitudes podem estar relacionadas a uma
supervalorização sacramental e não a uma subvalorização do sacramento eucarístico.
Referências
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(orgs). Caderno de resumos & Anais do 5º. Seminário Nacional de História da
Historiografia: biografia & história intelectual. Ouro Preto: EDUFOP, 2011. (ISBN: 978-85-
288-0275-7). P. 4.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre:
Editora Universidade / UFRGS, 2002.
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:
EDUSP, 2010.
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Congreganismo e anticongreganismo: a situação eclesiástica em
Portugal entre 1820 e 1834
Gustavo de Souza Oliveira1
Introdução
Em Portugal a ausência da família real após o ano de 1808 proporcionou o emergir de liberais
desejosos por mudanças políticas. Em 1833, com a queda do reinado de D. Miguel, foi
consolidada a monarquia constitucional, que teve como uma de suas primeiras atitudes a
extinção das congregações religiosas masculinas no ano de 1834. Tal medida não significou o
abandonou da religião católica, mas a concretização do cisma entre o Reino de Portugal e a
Santa Sé, divisão que prevaleceu até 1841.
Desde o século XVIII havia uma questão religiosa, que considerou o clero regular um entrave
para o Estado. D. Maria I, no ano de 1789 criou a Junta de Exame do Estado Actual, e
Melhoramento Temporal das Ordens Regulares, que teve como dirigente o Bispo do Algarve,
D. José Maria de Melo. Esta organização examinava as congregações e elaborava pareceres
sobre a situação dos conventos, expondo quais necessitavam ser suprimidos e quais deveriam
ser melhorados (CORREIA, 1974, p. 102). A organização dessa Junta demonstrou que o
debate sobre a situação do clero regular não era uma discussão original do século XIX, mas
acontecia desde os anos setecentos.
A partir dos anos de 1820 a condição eclesiástica sofreu mudanças. Os revolucionários não se
posicionaram contra o catolicismo, mas contrários às congregações. A experiência portuguesa
1
Doutorando e mestre em História pela UNICAMP. Bolsista da CAPES. Orientadora: Dra Eliane Moura da
Silva. Contato: gso_vicosa@yahoo.com.br .
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com o liberalismo pode ser compreendida se a dividirmos em dois momentos. O primeiro é
caracterizado pelos acontecimentos decorridos nos anos 20 do século XIX, vintismo. Já o
segundo é marcado pela Guerra Civil com as disputas entre os irmãos D. Miguel I e D. Pedro
IV entre 1832 e 1833.
Para Isabel Nobre Vargues, o movimento conhecido como Revolução de 1820 marcou o
momento fundador do liberalismo oitocentista em Portugal. Com a mudança da corte para o
Brasil a colônia passou a abrigar a sede do Reino. A medida alterou as relações estabelecidas
no pacto colonial, fato acentuado com a abertura dos portos brasileiros. As relações mercantis
na América lusitana cresciam e o cenário em Portugal tornava-se caótico, devido à presença
das tropas francesas e a inoperância do governo regencial estabelecido em Lisboa
(VARGUES,1998 , p. 41-42).
Entre 1820 e 1823 o vintismo se caracterizou pela criação do parlamento liberal em Portugal
(1821) e pela elaboração da Constituição (1822). Esta carta magna foi jurada e celebrada e o
próprio rei D. João VI antes de deixar o Brasil aceitou suas bases constitucionais
(VARGUES, 1998, p. 54 e 55). O novo estatuto não previa um Estado laico, pelo contrário,
definia o catolicismo como religião oficial. Torna-se evidente que o problema eclesiástico
debatido no parlamento durante o período liberal se concentrou no congreganismo (NETO,
2010, p.11 e 53).
Vítor Neto acentuou que o clero assumiu um novo papel. Eles deveriam auxiliar o regime
constitucional, utilizando a sua influência junto à população. Visava-se conseguir maior apoio
e adesão ao liberalismo (NETO, 1988, p. 47). Percebemos que os vigários seculares passaram
a ser entendidos como a expressão da religião em favor do Estado. Já os regulares eram
1383
interpretados como elementos de fragmentação da coesão nacional, uma ilha estrangeira
dentro de Portugal.
De acordo com Antônio Matos Ferreira, mesmo com o reconhecimento do catolicismo como
religião oficial, o juramento das bases constitucionais gerou o primeiro conflito entre o Estado
e aqueles que defendiam a não legitimidade do poder temporal sobre as questões religiosas. O
caso mais célebre foi protagonizado por D. Carlos Cunha e Meneses (FERREIRA, 2002,
p.24).
D. Carlos Cunha era o cardeal patriarca de Lisboa e em 1821 se envolveu em polêmica ao não
apoiar as bases constitucionais estipuladas pelos liberais. Por essa postura foi isolado no
convento de Buçaco e depois exilado para Baiona na França, local em que permaneceu até o
ano de 1823 (VARGUES & TORGAL, 1998, p. 57). Em 26 de fevereiro de 1821 os liberais
determinaram que os bispos e arcebispos portugueses enviassem comunicados a suas dioceses
argumentando que as reformas políticas apresentadas não desrespeitavam a religião católica.
Porém, a tentativa de usar o clero como instrumento para legitimar o novo formato político
encontrou resistência, como foi o caso do patriarca de Lisboa (FERREIRA, 2002, p. 26 e 27).
Em setembro de 1821 Carlos I enviou uma pastoral para os fiéis na qual apresentou sua
versão acerca do fato ocorrido.
Carolus I
[...]Sabeis igualmente que a Jurisdicção Espiritual que temos sobre vos, so nos pode
ser suspensa segundo as regras prescritas nos Concilios: da Igreja a recebemos, so a Igreja a
pode tirar, havendo culpa verdadeira, e processo formado; porque o sacerdocio não se
governa pelas leis do Imperio: he hum distincto do outro; [...] Mas como o exercicio da
nossa jurisdição em parte se impossibilita pela nossa aucensia, julgamos ser do nosso dever
declarar, para socego das vossas consciencias, que logo que recebemos a ordem para sahir
1384
do nosso Patriarcado e hir para o convento do Bussaco, immediatamente expedimos huma
provizão ao exmo Collegio pella qual se lhe delegamos toda a nossa jurisdição ordinaria,
por estarmos hem persuadidos das suas virtudes, e que pello seu Santo zelo uzará de tudo
quanto fora bem da salvação das vossas almas. [...]
2
C. Cardeal Patriarcha
Nesta circular o patriarca, explicou aos fiéis que foi exilado devido às acusações que davam
conta que ele desaconselhou aos sacerdotes a jurarem as bases da constituição. Ele
argumentou que apenas deixou claro aos clérigos que essa era uma orientação do governo e
não a sua posição pessoal. Na interpretação de D. Carlos Cunha, o aceitar ou não eram
decisões pessoais e cabia a ele apenas defender os interesses da Igreja. O cardeal não
reconheceu legitimidade no poder temporal para retirá-lo do cargo, mas diante das
dificuldades um colegiado foi designado para exercer suas funções.
No entendimento liberal os clérigos deveriam ter uma função social. O padre passou a ser
compreendido como um funcionário público que se diferenciava de outros cargos apenas por
suas obrigações. Assim, as congregações religiosas não possuíam desempenhos vantajosos
para a nação, pois viviam em reclusão, possuíam muitos bens e se sujeitavam a lideranças
estrangeiras. Alicerçados nesta convicção o governo suspendeu as entradas de noviços e de
noviças em 23 de março de 1821 e 21 de agosto em 1822 (FERREIRA, 2002, p. 26).
2
Pastoral de D. Carlos Cunha e Meneses (Carlos I). Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa. Cota: R2751//22A.
1385
Para Antonio Matos Ferreira, o regime político que se constituía determinou uma nova
compreensão sobre a religião. O clero passou a ter mais vínculos com o poder estatal.
Transformou-se em um departamento da administração pública. Ocorreu uma clericalização
ao estilo liberal que serviu como uma desclericalização do modelo eclesiástico do Antigo
Regime, de atuação marcante na política e na sociedade. Nesta circunstância, uma resistência
ultramontana se articulou para tentar impedir a redução da influência religiosa (FERREIRA,
2002, p. 27).
A primeira experiência liberal não durou muito tempo, foi freada em 1823 com uma
demonstração clara do poder militar daqueles que se opunham a ela. A reação foi encabeçada
por D. Miguel e teve inicio em Vila Franca, conhecida como Vila-Francada. O rei D. João VI
alertado sobre uma possível contrarrevolução dirigiu-se àquela localidade e entregou ao seu
filho, o infante D. Miguel, o comando do exército, evitando qualquer confronto armando
naquele momento. A família real retornou a Lisboa e foi recebida por contrarrevolucionários
(VARGUES & TORGAL, 1998, p. 58-59).
1386
irmão. Ele deveria assumir o governo regencial no lugar de sua irmã D. Isabel, jurar a
constituição de 1826 e efetivar o casamento com sua sobrinha D. Maria II. No entanto, em
março de 1828 ele dissolveu a Câmara dos Deputados nomeou uma junta para convocar a
antiga assembleia dos três estados. Com essas medidas foi aclamado rei absoluto de Portugal.
Durante o tempo que esteve no poder conseguiu o reconhecimento de apenas três governos,
sendo eles: Espanha, Santa Sé e Estados Unidos. Ainda em 1828 teve inicio a resposta liberal
que se acentuou em 1831 com o retorno de D. Pedro a Portugal (VARGUES & TORGAL,
1998, p. 64-66).
O governo de D. Miguel não obteve grande aceitação internacional. Seu isolamento somado
aos erros cometidos em suas ações militares direcionou seu reinado ao colapso. D. Pedro IV 3
teve papel importante na vitória liberal, pois conseguiu que outras nações virassem as costas
para o seu irmão, impedindo alianças. Diante da impossibilidade de prosseguir com as
batalhas, generais reunidos em Évora optaram por uma rendição e uma proposta de armistício.
Em 26 de maio de 1833 foi assinado um documento de paz na localidade de Évora Monte,
Convenção de Évora Monte. Neste acordo ficou estipulada a anistia geral de todos os crimes
políticos, o retorno dos vencidos aos seus lares e a entrega das armas. A D. Miguel coube
devolver as joias da coroa e partir para o exílio com direito a uma pensão anual. Ele aceitou e
dirigiu-se para Roma, mas depois negou a convenção e manteve sua posição crítica aos
liberais com a esperança de conseguir retornar ao trono português (SILVA, 1998, p. 80-81).
3
Cabe ressaltar que ao retornar para Portugal D. Pedro I passa a ser conhecido como D. Pedro IV.
1387
A Santa Sé e o reconhecimento de D. Miguel I
Entre os religiosos indicados para ocupar funções episcopais encontrava-se Frei Fortunato de
S. Boaventura, padre regular que desde o retorno de D. Miguel se caracterizou como
personalidade importante da causa da contrarrevolução. No ano de 1828 discursou tanto na Sé
de Coimbra quanto na Igreja de S. João da Almedina sermões em ação de graças pela chegada
do monarca. Em sua mensagem enfatizou que “[...] antes mil vezes um rei mais que absoluto
do que cem despotas [...] hoje condemnados para sempre os inimigos do Senhor D. Miguel I.
Quem vos deo a suprema auctoridade a 24 de Agosto de 1820?” (CAMPOS, 1928, p. 33-35).
Seus dizeres estavam repletos de ataques aos liberais e de exaltação ao governo absolutista.
Devido ao seu apoio foi indicado para ocupar o cargo de Arcebispo de Évora em 29 de
setembro de 1831 sendo sua nomeação confirmada pelo papa Gregório XVI. A luta política de
Frei Fortunato era percebida na imprensa. No periódico Mastigoforo nos anos de 1830 a 1832
o sacerdote publicou artigos a favor do Antigo Regime, como ficou claro na definição de
absolutismo impresso naquele jornal (CAMPOS, 1928, p. 35, 50-51).
1388
Nesta argumentação apologética o frei apontou uma diferenciação entre Absoluto e
Absolutismo. O primeiro era colocado apenas como característica de rei que garantiria a
ampliação da monarquia. Já o segundo seria uma expressão deturpada, construída pelos
maçons, que seria sinônimo de despótico. Sua interpretação acusava os liberais de atribuírem
sentido pejorativo a princípios do Antigo Regime.
[...]Eu sinto profundamente n’alma de me ver obrigado a declarar a Vossa Santidade que
não reconheço, desde já, nem reconhecerei para o futuro, como validas, as nomeações de
Bispos feitas pelo usurpador da Coroa de Minha Augusta Filha, antes farei intimar a todos
os candidatos que as acceitarem, e negociarem em Roma a expedição ordinaria de suas
Bullas, que se abstenhão de o fazer, sob pena de serem por mim considerados e tratados
como traidores e rebeldes a Sua Magestade Fidelissima, e se a Providencia favorecer, como
é de esperar a justiça da Sua Cauza, de serem expulsos do Reino [...].
Eu protesto diante de Deos, e de Vossa Santidade, que nenhum Principe foi, nem é mais
alheio do que Eu, do temerario desejo de excitar scisma, ou ainda a mais leve interrupção
da boa harmonia com a Santa Sé, mas Eu não ignoro que se os tempos estão mudando [...].
4
[...] D. Pedro, Duque de Bragança = Paris 12 de Outubro de 1831 .
1389
Percebemos também uma intimidação aos sacerdotes que apoiavam D. Miguel, considerados
traidores e que por esse motivo deveriam ser expulsos do Reino. De acordo com Antônio
Matos Ferreira, a ameaça de promover um cisma religioso expressada por D. Pedro IV
significava tornar autônoma a Igreja portuguesa em relação à Santa Sé (FERREIRA, 2002, p.
30).
Mesmo com toda resistência do clero ultramontano, diante da situação política que ocorria em
Portugal, o liberalismo obteve sua vitória e dificultou a organização dos religiosos centrados
em Roma. A condição se agravou em 1834 quando o ministro de negócios eclesiásticos e da
justiça, Joaquim Antonio d’Aguiar, escreveu um relatório contra o clero regular e propôs o
decreto de extinção das ordens masculinas promulgado pelo Duque de Bragança.
1390
Em nosso tempo, Senhor, quantas vezes não se tem urdido no claustro insidiosas tramas
contra o Throno Legitimo, e contra a civilisação, e liberdade nacional! Não é necessário
recordar antigos factos; basta o que se tem passado desde 1820. [...].
A existencia das Ordens Religiosas não se combina com as maximas d’uma saa politica [...]
as Ordens Religiosas são duplicadamente prejudiciaes á população: como celibatarias
deixam grande vasio nas gerações; como corpos de mão morta, absorvendo enormes
propriedades, que não se tornam mais alienar, fazem com que o numero consideravel
d’individuos não possam ter um palmo de terra [...].
Em conclusão, Senhor, é força extinguir as Ordens Regulares, e dar destino aos bens que
possuem. [...]. Paço das Necessidades, em 30 de Maio de 1834. – Joaquim Antonio
5
d’Aguiar.
Para o ministro, o clero regular interferia na liberdade e intrometiam nas questões políticas.
Sua atividade era interpretada como incompatível com as funções que os padres deveria
exercer, isto é, servir ao Estado por meio de uma função social. Neste entendimento, as
congregações eram vistas como entidades que visavam apenas os interesses próprios,
desconsiderando ou prejudicando a política que emergiu após a Convenção de Évora Monte.
Decreto
[...]
Artigo 1º. Ficam desde já extinctos em Portugal, Algarve, Ilhas adjacentes, e Domínios
Portuguezes todos os Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer Casas de
Religiosos de todas as Ordens Regulares, seja qual for a sua denominação, instituto ou
regra.
Art. 2º. Os bens dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaesquer casas de
Religiosos das Ordens Regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional.
Art. 3º. Os Vasos Sagrados e Paramentos, que serviam ao Culto Divino serão postos á
disposição dos Ordinarios respectivos para serem distribuidos pelas Igrejas mais
necessitadas das Dioceses.
5
Coleção de decretos e regulamentos, 1835, página 184-188. Disponível em:
<http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/15/107/p460>. Acessado em 06/08/2013.
1391
Art. 4º. A cada um dos Religiosos dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, ou
quesquer Casas extinctas, será paga pelo Thesouro Público para sua sustentação uma
pensão annual, em quanto não tiverem igual, ou maior rendimento de Beneficio, ou
emprego público. Exceptuão-se:
Paragrafo 1º. Os que tomaram armas contra o Throno Legitimo, ou contra a Liberdade
Nacional.
[...]Paço das Necessidades, em vinte e oito de Maio de mil oitocentos trinta e quatro. – D.
6
Pedro, Duque de Bragança – Joquim Antonio d’Aguiar.
Neste documento percebemos que a extinção das ordens englobava todas as suas áreas de
atuação. Foram finalizados hospitais, seminários, colégios, mosteiros e capelas. Tudo que
pertencia ao patrimônio dos congregados foi tomado e entregue ao governo. Os utensílios das
igrejas foram direcionados para as paróquias pobres. Os sacerdotes forçados a abandonar suas
residências e funções. Aqueles que não se envolveram com o governo de D. Miguel e não se
manifestaram contra o liberalismo puderam receber uma pensão anual.
Ao decretar a extinção das ordens D. Pedro IV valorizou um clero nacional representado pelos
párocos seculares. De acordo com Antônio de Matos Ferreira, o fim da atuação do clero
regular reduziu de forma significativa as maneiras de relação entre a Igreja Católica e a
população. Importantes centros educacionais foram fechados e a base do clero passou a ser
essencialmente formada por padres seculares (FERREIRA, 2002, p. 34).
6
Coleção de decretos e regulamentos, 1835, página 189. Disponível em:
<http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/15/107/p460>. Acesso em 06/08/2013.
1392
A Igreja Católica perdeu muito do seu suporte econômico, pois os bens das congregações
foram confiscados pelo poder temporal. Essa situação correspondeu ao triunfo de uma
concepção secular sobre o funcionamento da Igreja. Aos regulares que não foram
considerados traidores, restou aceitar a pensão e regressar a sua terra natal, empenhar em
atividades missionárias fora do Reino de Portugal ou passar por uma secularização, incluindo-
se em novas atividades dentro das dioceses. Esta última opção foi escolhida por muitos padres
que passaram a viver como vigários nas paróquias portuguesas ou em outras nações
(FERREIRA, 2002, p. 31).
Mesmo com a possibilidade de seguir como sacerdotes diocesanos diversos padres preferiram
deixar Portugal. No entanto, nem todos prosseguiram na vida comunal. José Nunes Cardoso
Vaz Leitão após se mudar para o Brasil, alegando desordens religiosas em Portugal, solicitou
ao núncio apostólico no ano de 1837 o direito de se tornar clero secular com atuação na
diocese de São Paulo.
Diz Joze Nunes Cardozo Vaz Leitão, Chorista professo da Ordem de Santo Antonio dos
Olivaes de Coimbra, em Portugal, que sendo constante as desordens que tiverão logar em
sua Patria, e extinção das Ordens Religiosas vio-se o suplicante na necessidade de passar-se
para o Brazil e fazendo a sua rezidencia [fixa] no Bispado de S. Paulo [...]e neste sentido
requer a V. Exa Rma a Graça de lhe conceder Breve de perpetua secularização, assim
também poder herdar e testar dos bens que para elle adqueridos, cuja graça espera de V.
Exa Rma para tranquilizar o seu espirito e alcançar o estado de sacerdote secular que tanto
aspira e com os documentos juntos tem satisfeito tudo quanto V. Exa Rma exigiu, e assim
espera.
7
[R Mce]
Do pedido realizado por José Nunes Cardoso Vaz Leitão podemos supor duas considerações.
A primeira sugere que esse religioso foi favorável ao miguelismo e por isso não se manteve
em Portugal. A outra insinua que a situação religiosa era tão conturbada que mesmo sendo
possível receber uma pensão anual e trabalhar em alguma paróquia aquele sacerdote preferiu
migrar. Não podemos afirmar o que ocorreu durante sua vida, mas insinuamos que as
condições de trabalho no Brasil eram favoráveis aos religiosos. Ainda como regular trabalhou
7
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 62.
1393
na diocese de São Paulo, recebeu bens de doações e não encontrou dificuldades em seu
processo de secularização. Como podemos observar nos atestados seguintes:
O Padre José Antonio da Silva Chaves, Presbitero Secular Cavalleiro da Ordem de Christo,
Secretario do Bispado, e Escrivão da Camara Eclesiastica [] certifico que revendo os autos
do Patrimonio de José Nunes Cardozo Vaz Leitão, [...] o habilitando José Nunes Cardoso
Vaz Leitão chorista professo na Ordem de Santo Antonio dos Olivaes de Coimbra, e
residente na Provincia de São Paulo pedio que para ordenar-se de ordens sacras pedio se lhe
permittisse estabelecer patrimonio Ecclesiastico em huma [data] de terras de quarenta e
duas braças de testada, e hum quarto de legoa de fundo no lugar da fazenda denominada de
Santo Antonio dos Pinheiros no termo da Villa de Vallença da Comarca de Vassouras
dadas por Joaquim Bernardes Guimarães [...] Rio vinte de Setembro de mil oitocentos e
trenta e nove = Narciso da Silva Nepomuceno.= [...].
Rio de Janeiro vinte tres de setembro de mil oitocentos e trinta e nove. Eu o Pe Joze
Antonio da Silva Chaves, Escrivão da Camara Eclesiastica a subscrevi, e assignei.
8
O Pe Joze Antonio da Silva Chaves
Joaquim Claudio Vianna das Chagas, Presbitero Secular, Cavalleiro da Ordem de Christo,
Parocho [Conternado] da Freguesia de N. Sᵃ da Gloria de Villa de Valença, e Vigario da
vara da mesma.
Attesto que o [Vr] José Nunes Cardoso Vaz Leitão, durante a sua residencia nesta freguesia
portou-se com [regularidade] em seus costumes, e prestou serviços á Igreja[...] Freguesia de
Valença 10 de fevereiro de 1837.
9
Pe Vigario Joaquim Claudio Vianna das Chagas
Tais atestados foram anexados ao processo de secularização do padre José Nunes Cardoso
Vaz Leitão. As informações contidas nesses documentos permitem perceber que no Império
do Brasil o passado ligado às ordens regulares não influenciava na vida e atuação dos
religiosos. Ao contrário de Portugal não havia nenhum tipo de censura ao estilo de vida e
posses dos sacerdotes congregados.
O cenário português não era favorável ao clero centrado em Roma. Todavia, os problemas
enfrentados por congregados não significou que o ultramontanismo estava inoperante. De
8
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 68-69.
9
Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, Arquivo da Nunciatura no Brasil, fasc. 22, doc. 22,
página 70.
1394
acordo com Vítor Neto, eles ainda atuavam e defendiam o retorno ao Antigo Regime.
Questionavam a legitimidade do poder temporal em substituir bispos e proclamavam nulas
todas as ordens que vinham de clérigos liberais. Colocavam em prática uma desobediência
aos vigários capitulares e aos poucos conseguiram sair de uma clandestinidade e retomar
velhos benefícios (NETO, 1988, p. 70). Na segunda metade do século XIX observa-se o
retorno gradual das ordens religiosas, mas sempre com o olhar atento do parlamento liberal
que tentava restringir suas ações.
Considerações finais
Concluímos que o decreto de extinção das ordens religiosas só veio a confirmar o cisma
religioso ameaçado por D. Pedro IV em carta direcionada ao papa. Ao assumir o trono, como
regente, o duque de Bragança cumpriu o que havia dito. Retirou todos os clérigos indicados
por D. Miguel e no ano de 1834 pôs fim aos congregados que eram o braço romano em seu
território. Valorizou os religiosos seculares e demonstrou que o liberalismo não era
anticlerical, mas contrário às ordens regulares.
Investigar o cisma religioso que surgiu em Portugal após as disputas entre ultramontanos e
liberais significa entender que o Brasil se constituiu como um campo importante de atuação
do clero regular. O Império brasileiro manteve a religião católica como oficial e permitiu que
congregações se instalassem e expandissem em seu território. Aqui se constituiu uma grande
atuação ultramontana durante o século XIX, pois foi neste espaço que os sacerdotes
congregados influenciados por Roma puderam atuar sem esbarrar nos interesses liberais em
voga na Europa.
Referências
1395
FERREIRA, António Matos. Desarticulação do Antigo Regime e guerra civil. In:
CLEMENTE, Manuel & FERREIRA, António Matos (orgs.). História Religiosa de Portugal.
Religião e secularização, vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002.
1396
Disseminação de idéias no milieu esotérico: notas sobre a
influência de Gurdjieff no Movimento Gnóstico de Samael Aun
Weor
Marcelo Leandro de Campos1
Introdução
O objetivo deste artigo é contribuir com o debate proposto pelo sociólogo italiano Pierluigi
Zoccatelli, que analisa a influência das idéias do esoterista armênio George Ivanovitch
Gurdjieff (1866-1949) sobre o Movimento Gnóstico fundado pelo colombiano Samael Aun
Weor em 1949.
O sociólogo italiano Perluigi Zoccatelli realizou uma importante pesquisa sobre as idéias do
ocultista armênio George Ivanovich Gurdjieff (1866-1949); num primeiro momento ele
reflete sobre as possiveis influências presentes no processo de formação de sua “Psicologia do
Quarto Caminho”; em seguida ele analisa o impacto que as idéias de Gurdjieff tiveram sobre
o esoterismo tradicional e sobre a nova onda de espiritualidade sincrética conhecida como
Movimento Nova Era. Num de seus artigos ele analisa como a cosmovisão de Gurdjieff e seu
1
Graduando em História pela PUC/Campinas. Orientador: doutorando Fábio Augusto Morales Soares. Contato:
mlcampos_2005@hotmail.com.
1397
principal discipulo, o físico e psicólogo P. D. Ouspensky (1878-1947), são apropriadas e
representadas na obra do esoterista colombiano Samael Aun Weor.
Zoccatelli é um dos diretores do Centro Studi Sulle Nuove Religioni (CESNUR). Num artigo
para a revista Aries ele enumera as três razões que o levaram a estudar o tema: (1) Gurdjieff e
Samael são duas figuras muito importantes para a compreensão do milieu esotérico-ocultista
contemporâneo; ambos constituem a origem de uma complexa genealogia de grupos e
instituições que se difundiram a nível internacional e abarcam dezenas de milhares de
membros; nós acrescentaríamos que suas idéias não se restringiram ao campo religioso, tendo
exercido poderosa influência sobre a cultura e a sociedade modernas, desde campos tão
diversos como a educação, artes e psicologia, até a formação de movimentos políticos.
Zocatelli acredita que a dinâmica dos grupos criados por ambos esoteristas se encaixa na
categoria de “hipertrofia da filiação” proposta pelo sociólogo Massimo Introvigne, mas que
para afirmar isso faltam estudos mais detalhados; os estudos sobre Gurdjieff ainda contêm
uma série de lacunas importantes, enquanto que sobre Samael há pouquíssimo material
produzido até o presente2. (2) Zoccatelli considera que Samael e Gurdieff constituem dois
exemplos interessantes para validação do conceito hermenêutico-sociológico de “carisma do
livro”, proposto pela norte-americana Jane Willians-Hogan. (3) Finalmente, Zocatelli admite
que os ensinamentos de Samael lhe trouxeram uma compreensão muito mais profunda sobre o
verdadeiro papel da magia sexual (ou alquimia interna) nos ensinamentos do próprio
Gurdjieff, ao mesmo tempo em que destaca o papel central que o pensamento de Gurdjieff
desempenha na obra samaeliana: Zocatelli argumenta que Krum-Heller forneceu a Samael o
modus operandi da magia sexual, mas que todo o suporte teórico que sustenta a prática foi
extraído quase literalmente da obra de Gurdjieff e seu principal discípulo, Ouspensky
(ZOCATELLI, 2005, p. 267).
2
Além de dois artigos produzidos pelo próprio Zoccatelli, a produção acadêmica sobre Samael Aun Weor e seu
movimento se resume basicamente a um artigo de Andy Dawson sobre a Igreja Gnóstica em Curitiba, A
Phenomenological Study of the Gnostic Church of Brazil e a tese de Cristina Tamayo intitulada Gnosce Te
Ipsum: uma analisis antropologico de la Iglesia Cristiana Universal de Colômbia desde la perspectiva de la
Esoterologia, seguida de um artigo na Revista Cuestiones Teológicas intitulado El Movimiento Gnóstico
Cristiano Universal de Colômbia: um movimiento esotérico internacional nacido em Colômbia. O Movimento
Gnóstico também é tema de Massimo Introvigne no livro Il Ritorno dello Gnosticismo. O trabalho mais
completo sobre o assunto é do espanhol José Álvaro Lopez Bellas, Un estúdio de Antropologia Social de las
organizaciones: el caso del MGCU (Movimiento Gnóstico Cristiano Universal), de 2008, analisando a
instituição fundada por um dos principais discípulos de Samael, Joaquim Amortegui Valbuena (Mestre Rabolu).
O primeiro texto brasileiro sobre o assunto é de minha autoria, Usos da arqueologia no discurso religioso:
Samael Aun Weor e o renascimento do gnosticismo e foi apresentado na I Semana de Arqueologia do LAP-
UNICAMP, em 2013.
1398
Meu propósito é analisar o processo de assimilação das idéias de Gurdjieff por Samael.
Pretendo demonstrar que elas não ocorrem desde a fundação do Movimento Gnóstico, como
acredita Zocatelli (idem, p. 272), mas são fruto de um longa transição do modelo rosacruz de
Krum-Heller até o sistema gurdjieffiano que dura pelo menos uma década. Adicionalmente,
vou apresentar a hipótese de que toda uma problemática surgida ao longo dessa transição
doutrinária constitui a causa causorum do principal cisma dentro das instituições gnósticas
nos últimos anos de vida de Samael.
O iniciado rosacruz
Victor Manuel Gómez (Samael Aun Weor) nasceu em Bogotá, em 1917, numa família de
classe média. O contato com a literatura espírita, sobretudo Kardec e Leon Denis, logo
despertou seu interesse por temas esotéricos; leu Blavatsky e aos 16 anos filiou-se à
Sociedade Teosófica (ST), que atuava na Colômbia desde 1921; em 1934 tornou-se
conferencista da S.T. No ano seguinte filiou-se à FRA (Fraternitas Rosicruciana Antiqua),
então dirigida por Israel Rojas3. A Rosacruz Antiqua é uma clássica escola esotérica
tradicional, com uma importante especificidade: ela faz parte das escolas européias que
incorporaram ao seu repertório de práticas mágicas os exercícios sexuais de algumas escolas
tântricas da Índia, conhecidos como sahaja maithuna (Krum-Heller, 1929, p. 43); seu
fundador, o médico e militar alemão Arnold Krum-Heller, havia sido discípulo de Theodor
Reuss, membro da prestigiosa ordem hermética Golden Dawn e fundador da OTO (Ordo
Templo Orientis). Krum-Heller teve entre seus colegas de estudos figuras como Spencer
Lewis (fundador da AMORC) e o famoso mago Aleister Crowley, um dos maiores ícones do
Ocultismo. Em 1910 Krum-Heller mudou-se para o México; mais tarde fundou sua própria
3
Os relatos autobiográficos de Samael e de seus principais discípulos são analisados por Lopez Bellas, p. 645. A
vida de Samael também é descrita em ZOCCATELLI 2000 e DOSAMANTES.
1399
instituição, a FRA, e realizou um giro por diversos paises sulamericanos para divulgar seu
grupo. A loja colombiana da FRA foi fundada em 19274.
Samael ingressou na FRA em 1935, e logo conquistou um cargo em seu braço litúrgico, a
Igreja Gnóstica. Em 1938 o dirigente colombiano da FRA, Israel Rojas, apresentou um
estudante, Omar Cherenzi Lind, à comunidade rosacruz como sendo um autêntico iniciado
vindo do Tibete; não demorou para que Israel Rojas se convencesse de que Cherenzi era o
próprio Avatara da futura Era de Aquário5. Isso produziu um grande entusiasmo inicial e
formou-se uma instituição congregando estudantes das diferentes escolas rosacruzes e
teosóficas, a Universidade Espiritual da Colômbia. Mas em pouco tempo Israel Rojas e
Cherenzi se desentendem seriamente e começa uma violenta troca de acusações entre os dois
partidos.
No periodo entre 1941 e 1947, Samael abandonou a capital e passou a viver uma vida errante
pelo interior colombiano, ganhando a vida como uma espécie de curandeiro. Neste periodo
conheceu a mulher que seria sua companheira pelo resto da vida, Arnolda Garro.
Samael deixou deste periodo relatos que lhe conferem um ar de epopéia mítica que lembra em
alguns momentos a história clássica da iluminação de Buda, que deixa sua família abastada e
parte para a floresta em busca de uma experiência direta com o divino.
Yo me convencí entonces que las teorías no conducen al hombre a ninguna parte y que las
escuelas de espiritualistas que para ese tiempo había en Colombia, eran solo jaulas de loros
que a ninguna parte me conducirían. (WEOR, 1950, p. 8)
4
Um interessante resumo histórico sobre a vida de Krum-Heller e a Fraternitas Rosicruciana Antiqua pode ser
vista em http://hermetic.com/sabazius/krumm.htm e http://fraargentina.host56.com/krummheller.htm. Além de
seu importante papel como líder esotérico Krum-Heller teve atuação política durante a Revolução Mexicana de
1910 e em alguns episódios da espionagem alemã no México durante a Primeira Guerra Mundial.
5
As aventuras de Omar Cherenzi, até ser desmascarado em 1947, na Europa, por um professor que falava
tibetano, são narradas em: http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/cherenzi-develado-t410.html
1400
Esse periodo marca o ponto de inflexão em sua vida: deixa de lado as teorias e se dedica
intensamente às práticas mágicas do repertório rosacruz; o resultado é um progressivo
processo de “iluminação”, que Samael atribui principalmente à prática do sahaja maithuna.
Transformado internamente, ele se autodenomina Aun Weor, “verbo divino” (LOPEZ
BELLAS, 2008, p. 652).
No inicio de 1948, Samael (agora Aun Weor) retorna à cidade de Cienaga e procura alguns de
seus amigos da FRA, Julio Medina e Rafael Romero Cortês, para anunciar sua missão
enquanto iluminado. Suas duas primeiras obras, O Matrimônio Perfeito ou a Porta de
Entrada à Iniciação, lançado em maio de 1950, e a Revolução de Bel, de outubro do mesmo
ano, são claramente dirigidas ao público rosacruz e possuem um propósito claro: combater as
doutrinas tântricas de Cherenzi.
Resumindo o conflito, Samael é adepto de exercícios sexuais onde existe a cópula, mas não se
chega ao orgasmo; a conjunção carnal (sahaja maithuna) serviria apenas para preparar a
energia sexual para ser canalizada internamente através de exercícios respiratórios
(pranayamas); Cherenzi, pelo contrário, é adepto de sistemas que admitem o orgasmo; o
sêmen retirado do órgão feminino é considerado mágico e é reabsorvido, seja por meio de
ingestão ritual ou reinserido na uretra por meio de exercícios iogues (WEOR,1950, pp. 15-20,
p. 45):
O que a obra de Samael está documentando é um importante capítulo da evolução das práticas
sexuais tântricas no ocidente6.
6
A apropriação de técnicas de magia sexual por esoteristas europeus do século XIX é descrita por URBAN. Um
panorama histórico também pode ser visto em WALDEMAR.
1401
sistema misto em que o casal deve manter normalmente o sexo comum e praticar os
exercícios sem perda seminal em ocasiões específicas, como parte da preparação de discípulos
já em avançados graus iniciáticos7.
Cherenzi, por sua vez, é adepto das experiências de magia sexual feitas por Aleister Crowley
e adotadas pela O.T.O.; a magia sexual thelemita preconiza a perda seminal (inclusive através
da masturbação ou de relação homossexual) e sua ingestão como parte de um ritual mágico,
normalmente em grupo (Koenig, s/d).
Havia ainda um elemento complicador nesse debate: a relação amistosa entre Krum-Heller e
Crowley, observada em trocas de correspondência e citações recíprocas, aparentemente
indicando que as diferentes concepções sobre sexualidade tântrica não constituam obstáculo
significativo para o trabalho conjunto8.
Samael dá uma nova dimensão à questão sexual em sua cosmovisão: a magia sexual torna-se
o eixo central de toda a doutrina: “La Iniciación es únicamente cuestión de sacar el maximum
de provecho de la médula y del semen y para esto el único camino es querer intensamente a la
mujer –esposa–.” (WEOR, 1950, p. 10)
A transição
Como se pode constatar na leitura das obras iniciais de Samael, sua mensagem tem o
propósito inicial de defender o que ele considera a essência dos ensinamentos rosacruzes de
Krum-Heller, em especial a prática da magia sexual sem perda seminal, que ele intitula de
tantrismo branco (estabelecendo assim uma clara distinção com os exercícios admitidos por
Parsival e Cherenzi, classificamos de tantrismos cinza e negro, respectivamente). O alvo de
seu discurso é claramente o universo de adeptos e simpatizantes do milieu esotérico
colombiano; alguns são nominalmente citados no livro A Revolução de Bel: rosacruzes,
teósofos, maçons, estudantes da Universidade Espiritual e espiritualistas em geral (WEOR,
1950-b, pp. 81-113).
7
Um adepto de Parsival, defendendo seu sistema, afirma: “a instrução sobre magia sexual é feita de forma
interna e no último grau devido à seriedade do tema e à preparação que requer”.
(http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/samael-y-la-orden-rosacruz-t141.html)
8
Referências de seguidores de Crowley à Krum-Heller e Samael podem ser vistas em:
<http://www.astrumargentum.org/arquivos/ht/ensaios/thor_1.htm>
1402
Samael não tem o propósito de criar uma nova escola; sua preocupação mais evidente é de
estimular uma reforma nas instituições existentes9. Sua produção bibliográfica inicial é
destinada essencialmente a explicar os ensinamentos de Krum-Heller, como podemos ver a
seguir:
Sua terceira obra, Curso Zodiacal, de 1951, é toda baseada no livro homônimo de Krum-
Heller, de 1929, e são absolutamente complementares. O Tratado de Medicina Oculta y
Magia Prática, de 1952, é baseado essencialmente nas concepções de Krum-Heller sobre a
fisiologia humana.
Em 1961, porém, Samael empreende uma longa revisão de seu primeiro livro, O Matrimônio
Perfeito, e faz publicar uma edição “ampliada e corrigida”; o novo texto traz uma série de
modificações, não só de estilo, mas principalmente doutrinárias. Pela primeira vez é possível
perceber em sua obra o uso de idéias do universo ideológico de Gurdjieff, como os sete
centros da máquina humana (WEOR, 1961, p. 71), a transmutação dos hidrogênios, o
exercício de recordação de si mesmo (idem, pp. 74-76) e o famoso hidrogênio SI-12
resultante da prática de magia sexual (idem, p. 94). A quarta dimensão é explicada conforme
o modelo apresentado pelo principal discípulo de Gurdjieff, Ouspensky, que tem um trecho de
seu livro citado literalmente:
9
“Por aquella época el maestro no tenía la intención de formar ninguna escuela, sino que predicaba el sendero
del hogar doméstico, y trataba de entregar todas las claves del ocultismo en sus libros.”
<http://www.gnosis2002.com/revisiones/asg.htm> O comentário é referente à sua obra Apuntes secretos um
guru, de maio de 1952.
1403
Uma série importante de idéias gurdjieffianas também é mencionada sem que haja referências
ao autor, como é o caso do “quarto caminho”, a expressão que resume o método de Gurdjieff
e identifica o principal movimento criado a partir de seus ensinamentos, a Escola do Quarto
Caminho:
É o inicio de uma guinada definitiva no corpo doutrinário: o universo mágico rosacruz vai
gradativamente ficar em segundo plano; sob os refletores vai surgir toda uma noção de
psicologia transformadora fortemente apoiada nas idéias do Trabalho Interior da dupla
Gurdjieff/Ouspensky.
De forma esquemática, poderíamos afirmar que a doutrina samaeliana da década de 1950 tem
como pilares principais a Magia Sexual, as regras morais e éticas do cristianismo e os
exercícios mágicos e práticas litúrgicas rosacruzes. Em 1970, quando sua doutrina já está
consolidada, Samael resume seus ensinamentos no que ele chama de Três Fatores de
Revolução da Consciência. A influência de Gurdjieff neste novo formato é evidente: o
primeiro fator, a Morte Psicológica, tem como ponto de partida práticas descritas por
Ouspensky em seu livro Em busca do milagroso: fragmentos de um ensinamento
desconhecido; Samael divide a morte do ego em três etapas: (1) auto-observação do ego, (2)
compreensão do ego e (3) eliminação mística do ego. A primeira etapa é baseada
exclusivamente nos exercícios de auto-observação da dupla Gurdjieff/Ouspensky; a
compreensão utiliza elementos das meditações ensinadas por Krishnamurti, e a eliminação
mística é um desenvolvimento da idéia de partes autônomas do ser que encontramos em
Gurdjieff, mas que são apropriadas por Samael de uma forma muito original, formando o
coração de um culto do Eterno Principio Feminino, a Deusa ou Mãe Divina que lembra em
diversos aspectos o culto mariano dentro do catolicismo latinoamericano.
O segundo fator, o Nascimento Alquímico, é a Magia Sexual como ensinada por Krum-Heller
acrescida de todo o suporte teórico de Gurdjieff sobre a fisiologia das energias transmutadas
dentro do organismo.
1404
A apropriação de idéias de Gurdjieff por Samael vai produzir uma série de críticas, vindas
principalmente do próprio universo esotérico; é muito comum encontrarmos na internet listas
indicando as enormes passagens de livros de Gurdjieff e principalmente de Ouspensky que
são reproduzidas literalmente nas obras de Samael como se fossem de sua autoria10. Samael se
defende dizendo que sua missão é sintetizar as doutrinas existentes:
Conclusão
Gostaria de encerrar este artigo com duas considerações finais: a primeira delas é que
Zoccatelli foi induzido ao erro de acreditar que Samael é adepto dos conceitos de Gurdjieff
desde 1950; na bibliografia de seu artigo ele cita o livro O Matrimônio Perfeito publicado
pela AGSACAC como sendo fiel reprodução da 1ª. edição colombiana de 1950. Na verdade
as instituições gnósticas somente publicam a edição revisada por Samael em 1961. A edição
de 1950, considerada “imperfeita” e desautorizada pelo autor, não voltou a ser republicada ou
traduzida11. Os outros livros publicados por Samael na década de 50 também passaram por
correções posteriores, seja feitas pelo próprio Samael, por seu secretário ou por alguns de seus
discípulos. À exceção de O Matrimônio Perfeito, que Samael revisou e seguiu reeditando
como sendo um dos livros fundamentais de sua doutrina, o restante de suas obras da década
de 50 adquiriram um status secundário; Samael se refere a elas como obras cheias de falhas
escritas antes da encarnação de seu Real Ser Interior.
A segunda consideração é a própria razão de ser deste artigo: acreditamos que a transição
ideológica que Samael realiza na primeira década de seu ministério, do rosacrucianismo de
Krum-Heller para a psicologia revolucionária de Gurdjieff/Ouspensky constituirá peça
10
Listas dessa natureza podem ser vistas, por exemplo, num dos mais acessados sites de combate ao
gnosticismo, La Gnosis Develada, em: http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/los-plagios-de-samael-al-
tertium-organum-de-ouspensky-t151.html e http://lagnosisdevelada.com/fuentes-gnosticas/plagios-de-samael-
aun-weor-al-cuarto-camino-de-gurdieff-t106.html. Uma descrição detalhada de passagens retiradas das obras de
Gurdjieff/Ouspensky também pode ser vista no Apêndice 1 da obra de Lopez Bellas, vol II., pp. 3-122.
11
O texto de 1950 somente tornou-se acessível recentemente, graças ao trabalho de divulgação das primeiras
obras de Samael empreendido por Francisco Caparros Pujalte em seu site http://www.gnosis2002.com.
1405
fundamental para a compreensão da dinâmica histórica das instituições gnósticas fundadas
por Samael Aun Weor, sobretudo após sua morte, em 1977. A síntese que Samael opera entre
elementos até então antagônicos (Gurdjieff é um crítico ferrenho do rosacrucianismo e da
teosofia) não foi integralmente assimilada por seus principais discípulos e as diferentes
instituições que compunham então o universo samaeliano: Julio Medina Vizcaino (V.M.
Gargha Kuichines), o mais importante membro da FRA a aderir às fileiras gnósticas na
década de 50, tornara-se dirigente da Igreja Gnóstica a nível internacional e permanecera em
grande medida fiel ao ideário rosacruz, especialmente à sua tradição litúrgica. A AGEACAC
(Associação Gnóstica de Estudos Antropológicos – Ação Civil), fundada no México, para
onde Samael se mudara no ano de 1956, e onde se destacam figuras como a esposa de
Samael, Arnolda Garro de Gómez (Mestra Litelantes), seu secretário Efrain Villegas Quintero
e sua filha Hypatia Gomes Garro, vai aderir integralmente à síntese rosacruz/Gurdjieff.
Finalmente, o Movimento Gnóstico Cristão Universal, fundado na Colômbia na década de
1960 e que a partir de 1978 será comandado por Joaquim Amortegui Valbuena (V.M.
Rabolu), é radicalmente partidário da Psicologia Revolucionária12.
Desde 1976 há na Colômbia uma crescente animosidade entre os partidários de Julio Medina
e Joaquim Amortegui. O falecimento do Mestre Samael, em dezembro de 1977, sem que
fosse indicado um sucessor para liderar o conjunto das instituições gnósticas, abriu espaço
para uma guerra aberta entre as duas facções a partir de 1978, e de ambas contra as
instituições sediadas no México (LOPEZ BELLAS, 2008, p. 815).
12
Cristina Tamayo Jaramillo descreve de forma resumida as diferenças estruturais entre as três facções
(JARAMILLO-b, p. 254)
1406
Na presente obra foram corrigidos alguns erros de imprensa que vinham de edições
anteriores, para que chegue de forma mais nítida às mãos de nossos leitores. Também
fizemos certos esclarecimentos pela primeira vez, em algumas partes desta obra, com a
finalidade de não dar lugar a más interpretações e para que o estudantado assimile o
ensinamento da maneira mais correta. (WEOR 1991, p. 1)
A renovação que Rabolu opera nos ensinamentos de Samael permite traçar uma série de
paralelos com processo semelhante que ocorre entre Gurdjieff e seu principal discípulo,
Ouspenky, que submeteu os ensinamentos de seu mestre a um rigoroso filtro, e em seguida
construiu sua própria interpretação do que constitui de fato o Quarto Caminho (Ouspensky
2010); da mesma maneira a Nova Ordem de Rabolu, sob a alegação discursiva de estar
“protegendo a essência dos ensinamentos de Samael” (RABOLU, 1982, p. 1), vai realizar
importantes mudanças de cunho ideológico e institucional e criar de fato uma nova forma de
gnosticismo que merece um estudo específico.
Referências
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Yearbook of Religion in Britain, no. 5. London, p. 119-136, 1972.
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1410
1411
Entre a modernidade e a barbárie: o discurso redentorista acerca
do progresso em Goiás (1894-1930)
Robson Rodrigues Gomes Filho1
Introdução
Desse modo, a primeira reflexão a que nos dispomos no presente trabalho fazer refere-se às
possíveis experiências temporais2 dos religiosos redentoristas em Goiás.
O embate mais significativo para a decisão de Dom Eduardo em trazer uma ordem religiosa
estrangeira para o estado de Goiás se deu na cidade de Barro Preto (atualmente Trindade),
1
Mestre em História pela UFOP. Professor efetivo do curso de História da UEG/UnU-Morrinhos. Contato:
robson.educacao@yahoo.com.br.
2
A definição de experiência com que estamos trabalhando, refere-se, com já dito, à Koselleck, que define a
“experiência” como sendo “o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de
comportamento, que não estão mais, ou quem não precisam mais estar presentes no conhecimento” (Koselleck,
2006, p. 310).
1412
cuja romaria ao Divino Pai Eterno (ainda hoje a mais popular do estado, e uma das mais
frequentadas do Brasil) mantinha-se em mãos (religiosa e financeiramente) de irmandades
leigas. Com a necessidade de obter das romarias e festas populares o quinhão que caberia à
superação da crise financeira pós-padroado da diocese, Dom Eduardo – após ter seus padres
expulsos da tentativa de gerenciamento da festa – decidiu partir à Europa em busca de uma
ordem religiosa que lhe tomasse à diocese o controle da romaria de Barro Preto, e iniciasse
um processo de moralização das condutas eclesiásticas em Goiás 3. Foi neste contexto que
Dom Eduardo Silva negociou a vinda dos religiosos da Ordem Redentoristas da Baviera, na
Alemanha, para Goiás e São Paulo4.
Neste sentido, visto o trânsito constante dos religiosos redentoristas entre as casas alemã,
paulista e goiana, acreditamos haver em nossos agentes históricos em questão aquilo que
chamamos de alteridade temporal, fruto tanto de suas experiências com três localidades
inteiramente distintas no que se refere à modernidade, quanto de suas diferenciadas
expectativas para estes diferentes espaços geográficos.
3
Sobre os conflitos religiosos de Dom Eduardo em Goiás, bem como suas posturas diante do clero que
encontrou na região, ver: Santos (2008), Vaz (1997) e Gomes Filho (2011).
4
A repartição dos missionários redentoristas entre Goiás e São Paulo não estava nos planos iniciais de Dom
Eduardo, tendo deste um expresso descontentamento. Segundo ele mesmo relata em sua autobiografia, Dom
Joaquim Arco-Verde, bispo da diocese de São Paulo, ao saber dos religiosos conseguidos pelo bispo de Goiás,
igualmente os pediu para o superior da província redentorista alemã com intuito semelhante ao de Dom Eduardo:
administração do Santuário e Romaria de Aparecida do Norte. Ver: SILVA (2007).
5
Sobre as dificuldades de adaptação, conflitos e disposições das primeiras décadas dos Redentoristas em Goiás,
ver: Paiva (2007) e Gomes Filho (2011).
1413
do tempo, e tornou-se possível de ser igualmente balizado no espaço. É desse modo que
encaramos a experiência e expectativa de variação temporal vivida pelos redentoristas, uma
vez que seu trânsito entre Alemanha, São Paulo e Goiás marcava o descompasso de três
lugares espaciais localizados em diferentes tempos de desenvolvimento e progresso. Por outro
lado, tomamos ainda aquilo que Koselleck chama de “expectativas”, porquanto, o
futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas
pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise
racional, a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.
(Koselleck, 2006, p. 310).
Também esta categoria formal parece-nos de singular importância para compreendermos que
tipo de anseios por progresso os editores redentoristas imprimiram em suas folhas, uma vez
que a singularidade de sua elaboração sobre o progresso em Goiás não pode ser desvencilhada
nem das experiências históricas, sociais e temporais, nem tampouco daquilo que esperavam
para um Goiás que ainda vivia sob a sombra do “atraso”. Assim, a partir de tais categorias
formais nos parece possível captar as impressões do modo como os editores em questão
compreendiam o tempo histórico de Goiás, elaborando, a partir de suas experiências europeias
e paulistas, bem como de suas expectativas para o sertão goiano, uma visão inteiramente
singular do que acreditavam por “progresso”. Destarte, nas palavras de Koselleck (2006, p.
308),
experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo
histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para se tentar
descobrir o tempo histórico, pois, enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações
concretas no movimento social e político.
6
Para informações e reflexões mais específicas sobre o próprio jornal em si e seus editores, ver: Gomes Filho
(2011).
1414
tornaram conhecidas no período da Primeira República. No estado goiano, a oligarquia
representada pelos Bulhões (família de tendência maçom e liberal)7 tomou a dianteira política
durante as primeiras décadas da república, sendo superada, a partir da década de 1910 pelos
Caiado, cuja afinidade com o Partido Católico e com as agendas de preocupações da diocese
eram explícitas8. Além dos conflitos políticos, é de fundamental importância lembrarmos
outros importantes adversários da Igreja Católica no estado – os quais nos ocuparemos mais
adiante – cujas preocupações estiveram explícitas nas folhas do Santuário da Trindade.
Destacamos dentre eles a “maçonaria”, o “protestantismo” e o “espiritismo”.
Não obstante às divergências e conflitos entre adversários políticos e/ou religiosos em Goiás,
é ímpar lembrarmos-nos de um elemento que não só fez parte dos discursos de quase todas as
tendências em questão, como foi um artifício retórico responsável tanto pela autolegitimação
do discurso redentorista, quanto por ataques diretos a seus adversários: o nacionalismo.
Com o início de suas edições em 1922, ano do centenário da independência do Brasil, não
seria assombro a quantidade de matérias de cunho nacionalista lançadas pelo Santuário da
Trindade. De fato, todas as comemorações do centenário, seguidas de argumentos fortemente
patrióticos, fizeram parte das folhas do periódico em questão durante todo o ano de 1922.
Todavia, chama-nos a atenção o teor de tais matérias, cuja argumentação articulava-se em
torno do nacionalismo, imperialismo político estadunidense, combate ao protestantismo9 e, o
que nos é mais caro, o progresso.
Dentre muitas e variadas matérias que vinculam o nacionalismo e a religião, destacamos duas.
Na primeira, o editor chefe do jornal, Padre João Batista Kiermeier, argumenta em favor de
7
Lembramos que o bispo Dom Eduardo Silva, que trouxe os redentoristas à Goiás, teve diversos conflitos com a
família Bulhões, por suas tendências liberais, maçons e anticlericais, chegando até mesmo a ser expulso da
capital do Estado, passado a residir em Uberaba ainda no final do século XIX. Sobre estes conflitos, ver: Santos
(2008).
8
Sobre os conflitos entre Bulhões, Caiado e Igreja Católica em Goiás, ver: Vaz (1997) e Chaul (2002).
9
Sobre a vinculação nacionalismo e imperialismo estadunidense como forma de combate ao protestantismo,
trazemos como exemplo as seguintes matérias: “Anda por quasi toda parte um inimigo insidioso e traiçoeiro que
tenta roubar ao povo o que tem de mais precioso, a sua Religião, e junto com ella lhe rouba o amor à pátria e a
paz na própria família. Este inimigo é o protestantismo […] Os pregadores protestantes vêm quasi todos da
América do Norte e seu fim não é cuidar de Religião, mas ganhar partido para que os Estados Unidos da
América do Norte possam mais tarde predominar no Brasil. Assim já fizeram no México e em outros paízes. Se
elles quizessem mesmo tratar de religião deviam ficar no paíz delles, onde há vinte vezes mais pagãos e gente
sem Religião que no Brazil.”. (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 2, 15/07/1922); “[…] é realmente inimigo do
Brazil quem se torna protestante ou quem favorece a propaganda protestante norteamericana” (Santuário da
Trindade, Ano 1, nº 12, 02/12/1922); já em edição de 21 de outubro de 1922, o jornal se refere a um suposto
protestante em Campinas (Goiás) que distribuiria folhetos protestantes pela cidade: “Elle, porem, contará a seos
patrões que distribuiu tantos centos ou milheiros de folhetos e será bem pago por aquelles que querem fazer-nos
protestantes para nos tornar norteamericanos” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 9, 21/10/1922).
1415
que seriam os católicos os mais propícios para o desenvolvimento do verdadeiro patriotismo
no Brasil:
O amor à Patria é um sentimento nobre e justo, semelhante ao amor que votamos a nossos
Paes. É a Patria que nos viu nascer, que protegeu a nossa infância, que desenvolveu a nossa
mocidade. É a Patria o berço de nossos parentes e de todos os que comnosco fallam a
mesma língua e seguem os mesmos costumes. A Religião reconhece e proclama o dever do
amor à Patria, o dever que a todos assiste de trabalhar pela Patria. É um dever que a
propria natureza nos impõe e que a Religião approva e ennobrece. A experiência mostra-
nos mesmo que as pessoas religiosas são as mais patriotas, as mais dispostas a trabalharem
e fazerem sacrifícios pela Patria. [...] No centenário da independência ninguém deixa de
recordar os grandes benefícios que o Brazil deve no patriotismo do clero. […] Em parte
alguma Religião e patriotismo andaram sempre tão estreitamente unidos como no Brazil.
P.J.B. (Santuário da Trindade, nº 5, Ano 1, 26/08/1922. Grifos nossos)10
Na segunda, em edição seguinte do jornal, o apelo ao progresso tornou-se uma das marcas
indeléveis no discurso redentorista no que tange a defesa do patriotismo:
[…] o Centenário nos deixará também cousa mais preciosa e que mais dure: um augmento
de amor pela Patria e do desejo de trabalhar por seo progresso e por sua grandeza. Quem
trabalha pela Patria? Todo aquelle que se esforça para augmentar os recursos materiaes e
moraes do paiz. […] É patriota o official que procura trabalhar e aperfeiçoar-se e no seo
officio, porque emquanto trabalha para ganhar a vida, trabalha também para o
melhoramento de sua cidade, para o progresso da Patria. Não é patriota somente o
preguiçoso que não se dedica a nenhum trabalho serio e assim rotina-se um inútil um peso
para os seus e para a sua terra. Trabalha pela Patria quem trabalha pela instrucção […] A
instrução é a base de todo desenvolvimento e progresso. […] É inimigo da Patria quem por
interesse próprio excita ódios e [ilegível] partidárias, que são um [ilegível] empecilho do
progresso. […] Trabalha emfim pela Patria quem trabalha pela Religião. É certo que a
Religião é o mais firme laço da unidade nacional, que a religião é uma força moral de
inestimável valor, porque preserva o homem de mãos caminhos e lhe aumenta o amor ao
trabalho e a fidelidade no cumprimento de seos deveres. Por isso é inimigo da Patria quem
trabalha contra a Religião e pelo contrario, é benemérito da Patria quem contribue para
que a Religião cada vez mais augmente e floresça. P. J. B. (Santuário da Trindade, nº 6,
Ano 1, 26/08/1922. Grifos nossos).
10
Destacamos que a norma linguística das citações do jornal Santuário da Trindade foi mantida do original.
1416
se opõe frontalmente às tendências oitocentistas da Igreja Católica ultramontana. A elevação
da nação à condição de produtora de sentidos (Anderson, 1989), tornando-se uma espécie de
religião secular, tornou-a adversária de uma Igreja ultramontana que se pretendia ainda mais
universal, tanto do ponto de vista político, quanto cultural e religioso. A influência do papa
sobre a soberania dos estados nacionais, conforme tentou impor o movimento ultramontano,
feria diretamente os princípios básicos do amor à pátria e serviço à nação. Todavia, tais
princípios, responsáveis pela vinda dos missionários redentoristas a Goiás, parecem ter se
perdido em uma nova aliança informal estabelecida ao longo das primeiras do século XX
entre Igreja Católica e Estado brasileiro11. Tal aliança mostrava-se igualmente forte nos
discursos redentoristas, conforme percebemos na primeira citação, cuja mensagem central
procura referir-se ao catolicismo como sendo não somente um catalisador do sentimento
nacional, mas o verdadeiro paladino da nação brasileira.
Já no segundo trecho citado do jornal, há uma evidente ligação feita entre três elementos
aparentemente relacionais, mas que guardam um paradoxo que necessita ser evidenciado:
nacionalismo, progresso e trabalho.
As relações entre trabalho e progresso, analisadas em primeira mão no Brasil por Iraci Galvão
Salles (1981), tiveram uma ascensão discursiva fundamentalmente na crise e abolição da
escravatura brasileira, tornando-se necessário a afirmação de que o progresso nacional viria
do trabalho enquanto fonte de enriquecimento, não de castigo. Todavia, conforme lembramos
em Weber (1989) e Troeltsch (1951), essa associação entre riqueza e trabalho ligada a
discursos religiosos remete-nos diretamente ao protestantismo, não ao catolicismo. Aqui,
precisamente, reside o paradoxo que desejamos expor: se, por um lado, o discurso
redentorista, conforme vimos na segunda citação do jornal, liga o progresso da nação ao
trabalho, e este trabalho à religião (“é inimigo da Patria quem trabalha contra a Religião e
pelo contrario, é benemérito da Patria quem contribue para que a Religião cada vez mais
augmente e floresça”), por outro, os mesmos editores redentoristas atacam o protestantismo
(precursor da relação “trabalho vs. religião”) como inimigo não só da religião, mas
fundamentalmente da pátria: “Anda por quasi toda parte um inimigo insidioso e traiçoeiro que
tenta roubar ao povo o que tem de mais precioso, a sua Religião, e junto com ella lhe rouba o
amor à Patria e a paz na propria familia. Este inimigo é o protestantismo” (Santuário da
Trindade, Ano 1, nº 2, 15/07/1922).
11
Sobre as relações entre Igreja Católica e Estado brasileiro no início do século XX, ver: Vaz (1997), Bruneau
(1974) e Hoornaert, et. al. (1983).
1417
Entretanto, mais curioso ainda é a crítica feita ao protestantismo pelo fato de este estar sempre
ligado a questões políticas e comerciais:
Os missionários protestantes não fazem bem algum no extremo oriente; antes seu interesse
é perturbar a paz. Esses missionários não ensinam o caminho ou doutrina de Deus aos
estudantes, sinão o caminho do diabo. Esquecem-se de que são propagadores da religião e
se metem em política. […] De modo contrário procedem os missionários catholicos: estes
não são commerciantes, não perturbam a paz dos povos, antes auxiliam a consolidar em
seos postos as autoridades legitimamente constituídas. Também no México os ministros
protestantes favoreceram a revolução e chegaram mesmo a pegar em armas e mandar seos
adeptos pegar em armas contra o governo. Bons missionários esses protestantes. (Santuário
da Trindade, Ano 1, nº 18, 24/02/1923)
Quem trabalha pela Patria? Todo aquelle que se esforça para augmentar os recursos
materiaes e moraes do paiz. […] Não é patriota somente o preguiçoso que não se dedica a
nenhum trabalho serio e assim rotina-se um inútil um peso para os seus e para a sua terra.
(Santuário da Trindade, nº 6, Ano 1, 26/08/1922).
Neste sentido, parece haver uma preocupação dos editores redentoristas, no que tange o
caminho do progresso da nação, sendo este fruto não da acumulação de bens para si (algo
inerente ao protestantismo), mas da necessidade de que o trabalho pessoal seja exercido em
prol do desenvolvimento econômico e financeiro da nação12.
Faz-se necessário lembrarmos ainda o fato de que, em plena década de 1920, época de
ascensão clara dos regimes totalitários na Europa, os religiosos redentoristas alemães em
Goiás não destoaram do nacionalismo político em franca ascensão em seu continente de
origem. Pelo contrário. Em diversas matérias do jornal Santuário da Trindade é perceptível
uma visão política inteiramente compassada às práticas totalitárias europeias, cujo conteúdo
12
Esta relação entre “progresso” e “trabalho” pode ser refletida também em termos do “medo da vadiagem”,
analisado por Oliveira (2006). Mais especificamente, no caso dos redentoristas editores do Santuário da
Trindade, esta oposição frontal à vadiagem ficou explícita no combate ao movimento messiânico de “santa
Dica”. Sobre o assunto, ver: Gomes Filho (2012).
1418
perpassa desde o combate ao comunismo13, a xenofobia14 e mesmo um apoio direto ao regime
fascista italiano, cujo conteúdo, mais uma vez, se liga diretamente a uma visão específica
acerca do progresso da pátria.
Diga-se o que quizer; uma cousa não se pode negar quanto a Mussolini: é um homem
extraordinário, um político de vistas largas, com visão estupenda das necessidades do
momento de energia e atuação inegualável. Agora que a Itália vai celebrar o sétimo
centenário da morte de São Francisco de Assis enviou ele uma mensagem grandiosa a todos
os italianos do mundo inteiro concitando-os a festejarem este grande santo como typo do
verdadeiro patriota, glória de sua nação e benemérito da humanidade. Assim esse homem
extraordinário de tudo se occupa, cultuando sempre a religião como o princípio e base de
toda felicidade e grandeza de sua pátria. Belo exemplo para esses político pygmeos de
nosso parlamento que com suas curtas intelligencias tanto se oppuzeram às emendas
religiosas. (Santuário da Trindade. Ano 4, n. 137. 19/12/1925. Grifos nossos).
Por fim, em diversas matérias, especialmente quando se trata de repressão a quaisquer formas
de vivência religiosa não católica, o Santuário da Trindade transparece posicionamentos de
combate religioso e político contra o “atraso” supostamente representado por seus
adversários. No que tange o espiritismo, este sempre é taxado – dentre outras coisas – como
um atentado à saúde pública15; com relação ao protestantismo são apontados argumentos
13
“No Rio de Janeiro constitui-se um partido communista, semelhante em seus planos ao que arruinou a Rússia e
que ainda faz a infelicidade daquelle grande paíz” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 6, 09/09/1922); “Os chefes
socialistas dizem aos operários que se deve guerrear os ricos e repartir os bens delles entre todos. Mas emquanto
assim fallam, fazem os operários pagar mensalidades e ocultamente ajuntam riquezas fabulosas […] Assim fez o
Sr. Trotzki, chefes dos communistas russos que já tem uma fortuna de mais de sessenta mi contos. E todos os
outros fazem isto mesmo. Operários, não vos deixeis explorar e não entreis em ligas que atacam a religião e a
propriedade.” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 7, 23/09/1922); Morreu Lenine, o grande carrasco que mandou
matar centenas de milhares de pessoas para fazer um paiz comunista. A desorganização, a revolução, o terror e a
fome tornaram a Rússia um paiz extremamente infeliz durante os annos que Lenine a tyrannisou de modo que
sua morte é certamente um allivio, a esperança de tempos melhores. (Santuário da Trindade. Ano 1, n. 4,
09/02/1922).
14
Em uma curiosa matéria do dia 7 de Outubro de 1922, o Santuário da Trindade divulgou uma longa matéria
sobre uma suposta vinda de mil famílias de imigrantes negros estadunidenses para povoarem o sul de Goiás, com
críticas de tom francamente xenofóbico: “Pelo ultimo recenseamento verificou-se que todo o Estado de Goyaz
não tem seiscentos mil habitantes, o que quer dizer que os brazileiros, os filhos do paiz, aquelles que têm luctado
com difficuldades e tropeços mil para o próprio progredimento, se hão de enfrentar de repente com quinhentos
ou seiscentos mil adventícios, activos, expertos, finos e endinheirados, que hão de absorver e anniquillar a
população nacional. E saberão os leitores que immigrantes são esses que vão invadir Goyaz? Basta que apellem
para sua memória. Hão de estar lembrados que os protestantes da America do Norte da raça negra que elles
detestam e odeam visceralmente […] Com essa gente vinda para cá, sobretudo em massas conquistadoras e
absorventes, se hão de produzir luctas religiosas, que sempre são as mais temíveis. Defendamos, pois, o nosso
patrimônio moral, que está crystallizado na Santa Egreja Catholica Romana”. (Santuário da Trindade, Ano 1, nº
8, 07/10/1922).
15
Inúmeras são as matérias do Santuário da Trindade em combate ao espiritismo (um dos adversários católicos
mais combatidos pelo periódico). Na maior parte delas, a expressa maioria dos argumentos utilizados pelo jornal
contra o espiritismo se refere à ideia de que este causaria loucura, sendo um verdadeiro “atentado à saúde
pública”, portanto, impensável em um país que almeja o progresso. Dentre as mais variadas, destacamos duas
como exemplo: “A quantos o espiritismo tem transtornado a cabeça. O director do hospício do Juquery, o grande
1419
contra o imperialismo estadunidense que impediria o progresso e patriotismo brasileiro, e,
consequentemente, goiano; quando se trata de curandeirismos e benzedores o periódico
aponta para uma direção voltada para a esfera de superstição e irracionalidade.
[…] É incrível que no século 20 ainda haja pessoas que se prestem para taes babozeiras.
Mais uma vez se prova que a falta de religião e a ignorância do catecismo arrastam os
homens para a superstição e fanatismo. Mais uma vez pedimos providências ao Governo
contra essa mancha para os foros civilizados de Goyaz. (Santuário da Trindade. Ano 3, n.
93. 17/01/25)
[…] Não é isso uma vergonha para o nosso século tão adeantado que se julga livre de toda a
superstição e fanatismo? […] (Santuário da Trindade. Ano 4, n. 120. 14/08/25)
hospício de São Paulo declarou que grande parte dos doudos que ali estão internados, enlouqueceu por causa do
espiritismo” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 4, 12/08/1922); “Acontece muitas vezes que os que praticam o
espiritismo acabam loucos ou suicidam-se. O espiritismo é por isto um grande inimigo da humanidade, uma
praga terrível que, onde entre, causa os maiores estragos” (Santuário da Trindade, Ano 1, nº 11, 18/11/1922); “A
demência de um guarda-livros, chefes de família, e o suicídio de uma jovem, são os factos mais recentes. Não
faz dois mezes talvez suicidou-se uma senhora, num sanatório espírita, nos subúrbios da capital. […] Mas qual o
principal culpado de tantas desgraças? O código penal brasileiro não condena de forma clara a prática do
espiritismo? Como, pois, campeia ele, desenfreadamente, por toda parte? Que faz a nossa policia? E os nossos
governantes que providência tomam? Não é o caso de perguntarmos: onde estamos e para onde vamos?”
(Santuário da Trindade, Ano 1, nº 22, 21/04/1923).
16
Sobre as relações entre os redentoristas e o movimento messiânico de santa Dica em Goiás, ver: Gomes Filho
(2012).
1420
Tais argumentos, seja contra a prática do espiritismo, do protestantismo ou das superstições,
demonstram uma preocupação singular dos editores redentoristas não só com as práticas
religiosas adversárias do catolicismo, mas com a expectativa de “progresso” que se poderia
construir sobre a nação brasileira a partir daquilo que consideravam atraso, decadência ou
antipatriotismo. Estas preocupações, como pretendemos demonstrar com os expostos
argumentos, apontam, antes de tudo, para uma elaboração singular sobre o progresso da nação
brasileira, uma vez que não se tratava apenas do desenvolvimento material e econômico, mas
igualmente moral e religioso, construído sobre experiências não apenas com o tempo e espaço
do sertão goiano, mas sobretudo da alteridade deste com os tempos e espaços litorâneo e
europeu, de cujos exemplos constantemente citados, podemos perceber a singularidade de
uma visão de modernidade e progresso calcada na alteridade temporal e espacial de suas
experiências e expectativas.
Considerações finais
O presente artigo, embora com reflexões bastante iniciais, teve como propósito central refletir
sobre a possibilidade de se enxergar a singularidade da visão de progresso dos missionários
redentoristas editores do jornal Santuário da Trindade em Goiás. Esta singularidade baseia-se
no fato de, conforme acreditamos, haver uma específica alteridade temporal e espacial em
suas experiências e expectativas sobre a realidade que elaboraram, fruto de serem tais
editores, alemães com trânsito constante entre as casas provinciais de São Paulo e Goiás.
Neste sentido, foi o descompasso do desenvolvimento entre Europa, litoral e sertão que, ao
que nos parece, levou nossos agentes históricos em questão a experienciarem em Goiás tanto
um campo de experiências de atraso, como um horizonte de expectativas de progresso, cuja
atuação firme e convicta dos discursos impressos via periódico poderia servir como ação real
de transformação da realidade goiana.
Estas ações com vistas ao progresso de Goiás de modo algum ficaram apenas nos discursos
religiosos. Antes, foram os próprios missionários redentoristas que tomaram frente de ações
que acreditavam ser responsáveis pelo progresso de Goiás, como a construção da primeira
linha telefônica de Goiás, entre Campinas e Trindade, o estabelecimento da luz elétrica em
Campinas, ou mesmo a obtenção da primeira bicicleta vista na região. Tudo isso, amplamente
divulgado e autolegitimado nas linhas do Santuário da Trindade. Tais ações não apenas
1421
ilustram a preocupação com o progresso de que vimos argumentando até aqui, mas antes,
corroboram com nossa hipótese de uma atuação histórica (seja por meio dos discursos
impressos no jornal, seja através de tais ações “progressistas”) cuja elaboração da realidade
estava certamente calcada no cosmopolitismo de suas experiências e expectativas, a que
temos denominado “alteridade temporal”.
Referências
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Igreja no Brasil: ensaio e interpretação através do povo. Rio de Janeiro: Vozes, 1983.
OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. As representações do medo e das catástrofes em Goiás. Tese
(Doutorado) – Universidade de Brasília, 2006.
PAIVA, Gilberto. A província redentorista de São Paulo (1894-1955). Aparecida, SP: Editora
Santuário, 2007.
SALLES, Iraci Galvão. Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada. São Paulo: Hucitec,
1986.
1422
SANTOS, Leila Borges Dias. Ética da Súplica: catolicismo em Goiás no final do século XIX.
Goiânia: Ed. da UCG, 2008.
SILVA, Dom Eduardo Duarte. Passagens: autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva –
Bispo de Goyaz. Goiânia: Editora da UCG, 2007.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1989.
1423
O anticatolicismo norte-americano como bandeira protestante na
luta pelo Estado Laico no Brasil (1930 – 1945)
Paulo Julião da Silva1
Introdução
Alguns grupos se levantaram contra tal união alegando que o Estado era laico e, portanto, não
poderia privilegiar uma religião em detrimento das demais. Dentre tais grupos estavam igrejas
protestantes. Diversas denominações evangélicas no país, como batistas, presbiterianos e
metodistas, usavam a Constituição de 1891 para justificar sua oposição. Tais denominações
chegaram ao Brasil em diferentes contextos durante o século XIX através de imigrações
norte-americanas. Alguns vieram por questões econômicas, outros por questões missionárias
(DAWSEY, C. B.; DAWSEY, J. M.). Durante a Era Vargas, foi grande o número de norte-
americanos presentes no Brasil com o objetivo de espalhar a fé protestante. A oposição às
ações de Vargas, como dos católicos, era baseada em princípios das referidas igrejas nos
Estados Unidos.
1424
que para a república ser de fato estabelecida, era necessário viver o ideal de liberdade
democrática que diziam ser garantida nas igrejas protestantes do país (CORRIGAN; NEAL,
2010).
Partindo dos Estados Unidos, missionários vinham para o Brasil financiado por missões, ou
por igrejas locais. Boa parte dessas pessoas acreditava que poderia de alguma forma
contribuir para a transformação do país (CRABTREE, 1953). Não apenas com formação
teológica, mas também em medicina, enfermagem, ou em alguma área da licenciatura
chegavam ao Brasil com um discurso progressista modernizador. Apesar de, a partir da
década de 1930, algumas denominações brasileiras passaram a se desligar das missões
estadunidenses (CASE , 1931), alguns vinham por conta própria, ou eram mantidos por
igrejas locais, e se espalhavam por diversas regiões do país com o objetivo de propagar a nova
fé.
Mesmo com o Congresso do Panamá em 1919 decidindo que a América Latina não era a
prioridade das missões protestantes já que era uma área cristianizada, muitos missionários
decidiam vir para o Brasil, pois acreditavam que o cristianismo pregado no país era falso. As
críticas ao catolicismo de início eram parecidas com as que eram feitas nos EUA. Igreja
retrógrada, que atrapalhava a implantação da república e, principalmente, idólatra. Porém, ao
se depararem com a situação brasileira, perceberam que o problema a enfrentar não era apenas
com a religião. Apesar de o país ser legalmente laico, a reaproximação do Estado com a Igreja
Católica era nítida. O golpe dado por Vargas em 1930 até deixou alguns protestantes, tanto
brasileiros como americanos esperançosos. Porém, com as ações tomadas pelo Estado a partir
de 1931, percebeu-se que além do catolicismo, o Estado Brasileiro também se mostrava como
um problema à expansão da fé evangélica (BRUNEAU , 1974).
O sonho de tornar o Brasil parecido com os Estados Unidos não mudou, mas percebeu-se que
não se faria isso apenas criticando o catolicismo. Além da crítica à Igreja e ao Estado, as
práticas de inserção na sociedade tiveram de ser repensadas. O simples fato de mostrar o
catolicismo como religião retrógrada nem sempre agradava aos ouvintes. Mostrar o Estado
1425
com um ideal de governo ultrapassado também não era suficiente. Passaram então a investir
com mais ímpeto na questão educacional, bem como na saúde. Acreditavam atrair pessoas
com tais métodos, e os viam como eficientes para a implantação da fé evangélica no país. É
certo que muitos fundamentalistas discordavam. Para tais, a bíblia por si só deveria bastar.
Porém, mesmo com a discordância de alguns, tais práticas foram uma crescente, apesar de
alguns fundos nos Estados Unidos cortarem o financiamento de missões o que dificultava o
trabalho no Brasil (SMITH, 1932. p. 1).
Escolas eram construídas ao lado de igrejas, bem como locais para atendimento médico, que
nem sempre eram hospitais. Ações políticas também foram tomadas, como a criação da Liga
Pró-Estado Leigo em 1931. Além dos problemas externos citados, havia também questões
internas. Divergências sobre onde deveriam ser aplicados recursos, dificuldades financeiras
em algumas regiões, e, inclusive, acusações de desvios de verbas das missões passaram a se
tornar um problema na expansão do protestantismo no Brasil (PIRES, 1930).
Algo interessante, é que o anticatolicismo entre os “irmãos do norte” tinha uma conotação
diferente do que ocorreu no Brasil. Porém, a visão de um país próspero, democrático, livre e
com princípios morais estabelecidos, era usada para justificar a defesa da separação entre o
Estado e a Igreja Católica, vista como atrasada, antidemocrática, degradada moral e
socialmente e com princípios que não condiziam com o verdadeiro cristianismo.
1426
corrupta, antidemocrática, supersticiosa, anticultural e antiamericana. Declaravam-se
defensores dos mais diversos tipos de liberdade e, a forma hierárquica de organização católica
era tida como uma ameaça. Citavam exemplos de países católicos europeus, mostrando-os
defensores de monarquias e contrários ao sistema republicano (Espanha, Portugal, França,
etc.) (MASSA, 2003).
John Corrigan e Lynn S. Neal (2010) destacam alguns diferentes grupos e métodos de
combate ao catolicismo nos Estados Unidos. Além da K.K.K., que em seus discursos usavam
o mote do republicanismo para justificar suas ações, políticos e escritores conhecidos e
influentes nos Estados Unidos contribuíram para que o anticatolicismo proliferasse entre os
norte-americanos. Thomas E. Watson (1856-1922) é um grande exemplo. Watson produziu
diversos textos que instigavam o racismo, o antissemitismo e o anticatolicismo entre os seus
ouvintes e leitores. Seus escritos influenciaram perseguições públicas ao catolicismo e
serviram de âncora para a K.K.K., mesmo nas décadas que sucederam a sua morte.
Uma das principais instituições católicas atacadas pelos protestantes americanos, segundo os
autores acima, eram os conventos. As acusações contra tais locais eram das mais variadas. Os
protestantes relatavam que as mulheres eram tratadas como prisioneiras, sofriam abusos
sexuais e viviam em completo desespero tentando a todo o custo fugir. Era uma instituição a
ser expurgada da sociedade. Os conventos eram uma afronta às liberdades tão defendidas
pelos republicanos protestantes, haja vista que as mulheres precisavam obedecer a certas
hierarquias e se submeterem a determinados tipos de trabalho e opressão.
A forma como se dava o processo eleitoral americano, e como os candidatos eram escolhidos
em alguns casos mostra também a ideia de supremacia branca e protestante. Negros não eram
bem vistos por serem classificados como pertencentes a uma raça inferior. Judeus não
aceitavam Cristo como salvador e messias. Católicos se submetiam às ordens do Papa. Isso
1427
era “inadmissível”. Como em uma nação livre, alguém que assumisse um poder público
poderia estar sujeito a uma autoridade em outro continente? Católicos se viram de certa forma
aliviados quando Franklin Delano Roosevelt (católico) ganhou as eleições em 1932. O medo
era que as políticas republicanas com base protestante se alastrassem pela sociedade. É certo
que durante a Segunda Guerra Mundial, o anticatolicismo tornou-se mais intenso pela
associação ao fascismo. Porém, havia o medo que com um republicano no poder a
perseguição fosse ainda maior (MARLIN, 2004).
Na primeira metade do século XX, quando se aguardava o “fim dos tempos”, a Igreja Católica
era vista como a mãe de todas as desgraças na qual suas ações eram recheadas de atitudes
abomináveis e o seu líder maior, o Papa, era a representação do anticristo na Terra. Os
americanos acreditavam que por predestinação ou providência divina, os protestantes com sua
ética e moral, eram os principais representantes de Cristo no mundo e só eles mereciam gozar
dos “prazeres de ser americano”. O mito fundador da nação também teria contribuído para
que o anticatolicismo fosse uma constante nos EUA, inclusive nos dias de hoje. Teriam sidos
os protestantes puritanos os verdadeiros heróis que saíram da Inglaterra em busca de novos
horizontes no século XVII. Teriam sido eles, que com a ajuda divina teriam desbravado e
construído uma nação democrática e com liberdades individuais. Com essa visão, o
catolicismo se mostrava uma ameaça, haja vista sua organização eclesiástica, sem liberdades
de escolha e com a exigência de obediência a uma hierarquia que começava com o Papa
(JENKINS, 2003).
Nos anos 1930 e 1940, o anticatolicismo cresceu, mas, agora não só como uma religião que
era “teologicamente equivocada”. Nesse período era destacado que o problema do catolicismo
não era apenas religioso, mas, cultural. Não eram apenas os protestantes que rejeitavam o
catolicismo, mas o “espírito americano”. Era tida como a religião dos estrangeiros, dos
europeus, dos ignorantes. O nacionalismo que floresceu em vários países do mundo entre os
anos 1920 e 1945, era visto também no discurso anticatólico norte-americano como
antidemocrático.
Philip Jenkins (2003) descreve que o anticatolicismo ganhou a ajuda científica no século XIX
e XX. Estudos eugênicos revelavam que anglo-saxões e alemães eram mais inteligentes que
pessoas do sul da Europa, em sua maioria católicos e, também, mais inteligentes que africanos
e asiáticos.
1428
Tais discursos acerca do catolicismo chegavam ao Brasil com os missionários norte-
americanos. Deveriam ser copiados os exemplos da “maior democracia do mundo”. Teria sido
graças ao protestantismo que Estados Unidos eram a nação mais rica do planeta. Na Era
Vargas, com os privilégios que o catolicismo recebeu do então presidente, os evangélicos
passaram a atacar com mais ênfase o Governo e a Igreja. Jornais protestantes comparavam a
cultura brasileira com a norte-americana, mostrando que a causa dos atrasos social, político e
econômico que o país passava, estava associada aos privilégios que o os católicos recebiam.
Segundo os evangélicos, isso não ocorria nos Estados Unidos, apesar de os autores analisados
anteriormente mostrarem havia privilégios políticos para quem era protestante.
Quer se queira ou não, quer se saiba ou não, lutar contra a Escola leiga é lutar contra a
unidade moral da Patria, uma vez que a missão essencial da escola leiga é manter e
argumentar, se possivel, essa unidade [...] Ao affirmar o pretenso anachronismo do laicismo
escolar, esqueceu talvez o ministro da educação que as duas maiores democracias do
mundo, a França e os Estados Unidos, berços gloriosos da Liberdade no Antigo e no Novo
Continente, fundaram seu edificio da instrucção popular, nesse “anachronico” laicismo
escolar, garantia unica da liberdade de consciência [...] Radicalmente contrario ao laicismo
escolar está, apenas sempre e sempre, o clericalismo romano. Não apenas contra o laicismo
escolar, uma das modalidades da liberdade de consciencia, senão contra essa propria
liberdade de consciencia (ANDRADE, 1931, p. 6).
O redator no Expositor Christão mostra sua indignação com o decreto publicado no ano de
1931, o qual instituía o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. A unidade da pátria
só seria possível com a escola leiga. A democracia é posta em questão citando exemplos de
países que adotavam tal sistema de governo. O primeiro, com a população essencialmente
católica possuindo o ensino laico. O segundo, com a população em sua maioria protestante,
tido como exemplo para o mundo, devendo ser copiado pelo Brasil. Principalmente os
Estados Unidos era exemplo a ser seguido (HACK, 2000). A liberdade estaria garantida a
partir do momento em que o laicismo fosse colocado em prática. Tanto o Estado quanto a
Igreja foram alvos do discurso protestante. O catolicismo estaria sendo radical no momento
em que exigia a presença da religião em setores públicos. A questão educacional tomou um
cunho político e religioso. Ter ensino religioso em escolas públicas era ser antidemocrático,
haja vista que não estavam sendo respeitados os que possuíam religião diferente. A liberdade
de consciência também é citada. Em um sistema republicano ela não poderia ser cerceada.
1429
Em 1934, os católicos viram seus privilégios reconhecidos constitucionalmente. Percebendo
que a posição que passariam a ocupar no Brasil frente ao catolicismo seria complicada, haja
vista que aqui os protestantes eram minoria, os evangélicos adotaram estratégias de inserção
na sociedade que foram além do proselitismo e discursos contra o Estado2.
Investir mais em educação foi uma das estratégias. Boa parte dos brasileiros não sabia ler. A
ideia de se construir uma escola para cada igreja não tinha sido tão eficaz. Mesmo assim,
apostaram na construção de grandes centros de ensino que de certa forma ajudaram na
propagação da fé evangélica. A pedagogia a ser adotada deveria vir dos Estados Unidos. Um
sistema de educação que preparasse para o mercado de trabalho, principalmente industrial. A
formação católica para bacharéis, nem sempre foi bem vista na mentalidade dos norte-
americanos (HACK, 2000). O Colégio em Porto Alegre, por exemplo, criou o curso
comercial.
[...] mas nós não estamos aqui para ensinar pequenas viboras como melhor picarem. O
cultivo de caracter christão tem primeiro lugar, a instrução por seu valor intrínseco tomando
posição secundaria, apezar de procurarmos com toda a dilligencia aperfeiçoar a ultima [...]
É por causa dessa necessidade de evangelismo e o mister de combinar a actividade
educacional com a religiosa, que abri a carta com a menção da palavra “missionária”, que
talvez até te assustasse (BAGBY, 1945, p. 1, 2).
2
Harriet Aileen Odom (1952) analisou a influência de igrejas protestantes na vida pública e privada de
brasileiros. Questões de raça, economia, morais, familiares e até de saúde estavam entre tais influências. As
igrejas procuraram inserção nos lares com o discurso de que Cristo deveria estar presente na vida de um cristão
por completo. Em relação ao trabalho missionário, diversos métodos de inserção social, considerados eficazes,
foram usados para se aproximar os brasileiros das igrejas evangélicas. Os métodos sofriam alterações, à medida
que era percebido as diferenças culturais das pessoas a serem alcançadas.
1430
muitos casos, os réus, ou vítimas, nem sabiam que eram vistos de tal forma. Os termos usados
para qualificar os católicos no Brasil, por parte dos protestantes não fogem da análise do
referido historiador. Nos templos, jornais, e em cartas, como a citada acima, eram construídas
representações que desqualificavam os católicos, mostrando-os como atrasados, degradados e,
como cita a missionária, domadores de víboras.
Os professores não católicos não serviam para o ensino das crianças. Em alguns casos, pais
católicos matriculavam seus filhos em escolas protestantes buscando a pedagogia mostrada
como inovadora e moderna que vinha dos Estados Unidos. A missionária deixa claro qual
seria a intenção primordial do ensino: o proselitismo. A instrução nas disciplinas escolares,
apesar de fundamental, era algo secundário na visão do Colégio. Como então não mostrar isso
de forma explícita para os pais? Contratando professores protestantes que soubessem como
combinar a atividade educacional com a religiosa, mesmo em disciplinas tidas como seculares
(RAFETA, 2008).
Investir na educação que não tivesse a participação católica era contribuir para o crescimento
do país. É interessante notar nas documentações que ser laico, era não ser católico. Uma
escola protestante, que se mostrava moderna, com cursos e disciplinas importantes para o
momento histórico, tinha em seu interesse primordial realisar o proselitismo. Outro ponto que
chama atenção, é que em algumas escolas evangélicas não existia a disciplina de ensino
religioso. A religião era inserida nas aulas de matemática, química, física e, principalmente
português e inglês (BAGBY, 1938). Esse era uma das bases da defesa do estado laico através
da educação, pelos missionários norte-americanos. Ora, se em uma escola confessional não
existia a disciplina de ensino religioso, como então o Estado poderia justificar essa disciplina
nas escolas públicas? Com tal argumentação, os protestantes discursavam a favor do Estado
Laico, criticando a atitude do Governo Vargas, mostrando-a como benéfica apenas para a
Igreja Católica e citando como exemplo a ser seguido, as escolas norte-americanas (RAFETA,
2008).
Considerações finais
Não foi apenas na Era Vargas que as ideias anticatólicas norte-americanas estiveram presentes
nas representações protestantes acerca da instituição em questão. Porém, foi nesse período
que se teve mais ênfase, já que em nenhum outro momento da República Brasileira a Igreja
1431
Católica teve tantos privilégios constitucionalmente reconhecidos. Os reflexos do
anticatolicismo norte-americano estiveram presentes também em investimentos na saúde e na
organização de grupos políticos que exigiam a laicidade do Estado presente na Constituição.
Os missionários que aportavam no país, precisaram mudar as estratégias de ataque à Igreja
quando viram que seus opositores tinham o apoio oficial. A escolha pela educação como
método de inserção social e evangelística foi segunda mais enfática, ficando apenas atrás do
das pregações em locais públicos. Os protestantes perceberam que nas escolas, as pessoas
eram mais “receptíveis” à nova doutrina.
Fontes e Referências
BAGBY, Helena. Carta endereçada a Profª. Alice Gerab. Porto Alegre, RS. In Luther-
Bagby-Smith Family Papers, Baylor University Libraries, Texas. 30 Jan. 1945. p. 1, 2.
CASE, Esther. The Brazilian Methodist Church becomes autonomous. The Missionary Voice.
Nashville, Jan, 1931. p. 18, 19, 21, 33, 36, 39.
DAWSEY, Cyrus B.; DAWSEY, James M. The Confederados: old south immigrants in
Brazil. The University of Alabama Press: Tuscaloosa, 1995.
1432
American Protestantism, 1900 to the present. Grand Rapids: William B. Publishing Company,
1998.
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
HACK, Osvaldo H. Protestantismo e educação brasileira. São Paulo: Cultura Cristã, 2000.
JENKINS, Philip. The new anti-Catholicism: the last acceptable prejudice. New York: Oxford
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NORDSTROM, Justin. Danger on the doorstep: Anti-Catholicism and American print culture
in the progressive era. Notre Dame: University of Notre Dame, 2006.
ODOM, Harriet Aileen. The church at work in Brazilian society. Tese (Mestrado em Artes na
Baylor University),Waco, 1952.
PIRES, Arlindo Moreira, et. all. Carta endereçada a Junta Baptista de Richmond. Porto
Alegre. In Luther-Bagby-Smith Family Papers, Baylor University Libraries, Texas. 23 Dez.
1930. p. 1,2.
SMITH, Alice Bagby. Carta endereçada a Rufus Boylan. San Antonio, TX. In Luther-Bagby-
Smith Family Papers, Baylor University Libraries, Texas. 11 Mar. 1932. p. 1.
1433
1434
O Cristianismo na África agostiniana em Peter Brown
Adailson Nascimento Souza1
Introdução
Esta proposta de comunicação tem como finalidade desenvolver uma pesquisa relacionado a
contextualização do cristianismo ocidental do século IV e V, dentro desse contexto propomos
estudar a influencia da fé cristã no contexto africano onde Aurelius Augustinus ou o Bispo de
Hipona foi um dos maiores contribuintes para a evangelização, estaremos fazendo tal analise
dentro do pensamento de um dos maiores pesquisadores do hiponense Peter Brown.
Dentro do contexto cristão ocidental vivenciado por Agostinho vemos uma grande influência
da cultura africana e é essa influencia que pretendemos discorrer nesse trabalho. A partir daí
analisaremos o desenvolvimento da religião cristã na África agostiniana. Dentro dessas
perspectivas abordaremos os desafios que Agostinho teve de catequizar os africanos dentro de
uma sociedade totalmente pluralista e as influências da cultura cristã para os africanos.
Africa Agostiniana
Conhecida não só pelas belas paisagens, mas, por várias obras de engenharias que fazia de
Tagaste uma cidade modelo para as demais, dentre as construções realizadas está as enormes
hidráulicas e arquedutos que facilitavam o abastecimento de águas até os interiores mais
distantes, as águas distribuídas em suas maiorias eram recolhidas das chuvas em reservatórios
1
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Bolsista da CAPES/PROSUP. Membro do GP NEMES.
Orientando do Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé. Contato: aj.rui@terra.com.br.
1435
que podia se chegar a medir até 3 mil metros quadrados, onde eram fixos, todos essas
informações tem o intuito de nos localizarmos nos contexto da áfrica agostiniana em quais
eram na época a situação que fazia da áfrica uma cidade modelo para as demais.
escancarou os seus olhos maravilhados diante de uma beleza até então desconhecida, que
emanava de todos os monumentos e das estátuas de sugestivos contornos. Lá, ele descobriu
o amor com suas queimaduras e o fervilhar das paixões, com alternâncias de exaltação e
vindita, de pudor e transbordamento. (HAMMAN, 1989. p. 11).
Toda essa beleza foi de espantar Agostinho, só que, no século IV ocorreu uma grande
estagnação que fez com que os projetos ainda em construção viessem a parar, obrigando-o as
riquezas africanas a mudar-se para os centros muito distantes, com isso, passa a prejudicar as
várias cidades e comerciantes que dependiam de tais centros para comercializarem seus
produtos.
Após as mudanças ocorridas Tagasta passa a ser uma cidade dependente, administrada pela a
África de Cartago, considerada na época como o símbolo da civilização, “não era uma cidade
distinta da zona rural”, pois, suas concepções era que “na terra que se buscavam os prazeres
da vida, quando se dispunha de meios para custeá-los” (BROWN, 2012, p. 24) os moradores
trabalhavam nos campos nas maiorias das vezes por prazeres e não por necessidades. Certo de
que a vida não era muito fácil além de força de vontade era necessário ter pessoas influentes
que pudessem ajudar a desenvolver suas habilidades. Tal ajuda e sorte Agostinho veio a
receber pelo o motivo de seu pai Patrício, homem pobre de recursos escassos, pagão, mas, que
tinha conhecimento com pessoas influentes a realizar seu sonho que era de ver seu filho
Agostinho dedicar exclusivamente nos estudos, Romaniano homem de grande influencia,
espécie de jurista que costumava defender suas propriedades na corte imperial, foi a pessoa
que ajudou a Agostinho a realizar o sonho de seu pai, pois “no mundo flexível do século IV, a
sorte e o talento podiam eliminar o abismo entre um Patrício e um Romaniano”(BROWN,
2012, p. 2) e quem as tinha era uma grande oportunidade de mudar de status, nesse caso,
quem tinha essa oportunidade era considerados de pensadores ou alto escalão se assim,
podemos dizer.
Os recursos da África eram muitos, não dependiam somente dos solos que eram tidos como
férteis, onde tudo que plantavam, colhiam com abundancia, mas, a população por seu turno,
1436
era trabalhadora e audaciosa. “o homem da região tinha o sentido de empreendimento e o
gosto pelo o comercio que, sobretudo os homens do litoral, haviam herdado dos fenícios. Até
mesmo os padres católicos se fariam recebedores do tesouro público, por gosto pelos negócios
– ou por compensação.” (HAMMAN, 1989, p. 12), é uma herança que os africanos trazem até
os dias de hoje mais com menos frequência.
O cristianismo, religião que se fundamenta nos ensino de Jesus Cristo como o estabelecedor
das doutrinas conhecidas como os “Evangelhos” 2que marcaram a historia das religiões no
que se refere em específico no contexto Judaico, pois, conforme as escrituras Jesus o Messias
prometido nos escritos proféticos “veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” 3 a
partir daí, a Bíblia Sagrada conhecida pelos cristãos (pequenos cristos) passou a ser o seu
manual de seguimento moral e religioso para aqueles que acreditavam nos ensinamentos por
Ele (Jesus) instruído, não deixando de esquecer que, O Cristo não fundou nenhuma religião,
tais ensinamentos é que provocaram tantas repercussões que seus seguidores mais próximos,
com isso, resolveram descrever o que viam, sendo-os na maioria testemunhas diretas com o
Messias.
Dentre essa rápida passagem para descrevermos o que vem a ser o cristianismo, nesse tópico
relataremos o contexto propriamente dito de nosso tema proposto, que é o cristianismo da
vida de Agostinho que estar contido nos séculos IV e V, período em que dentro da cultura
africana em especifico, vemos ainda hoje, a influência dos mais poderosos em relação as
classes menores consideradas pobres, tal cultura era influenciada pela a elite de sua época,
onde as mesmas datava leis e normas conforme suas vontades, fazendo da população
cumpridores de leis que viabilizava suas necessidades comerciais e econômicas.
Patricio, Monica e Agostinho, tudo indica que eram de descendência “berbere”4, os mesmos
“eram sincretistas acolheram as divindades fenícias, egípcias, gregas e romanas sem no
2
São um gênero de literatura do cristianismo primitivo que contam a vida de Jesus, a fim de preservar seus
ensinamentos ou revelar aspectos da natureza de Deus. O desenvolvimento do cânon do Novo
Testamento deixou quatro evangelhos canônicos, que são aceitos como os únicos evangelhos autênticos para a
maioria dos cristãos.
3
Jo. 1. 11.
4
Os berberes (que chamam a si próprios Imazighen, ou seja, "homens livres"; singular Amazigh ) são um
conjunto de povos do Norte de África que falam línguas berberes, da família de línguas afro-asiáticas. Estima-se
1437
entanto abandonar suas próprias divindades” (HAMMAN, 1989, p. 12) tais práticas da cultura
religiosa da África agostiniana eram normais, até mesmo entre os cristãos acreditavam que
existiam uma divindade para cada necessidade que mais tarde a igreja católica daria
continuidade só que agora os nomes eram trocados por divindades latinas.
Tudo dar-se início no fim do século I quando judeus vindos da Líbia cirenaica para Jerusalém,
testemunhas vivas do Pentecostes chegam à áfrica para anunciar as boas novas que em pouco
tempo já tinha se infiltrado até mesmo nas tribos berberes que estavam localizadas nas
proximidades de Getúlia e Mauritânia que, devido a rápida expansão ocorreu vários martírios
por parte dos povos que não o aceitavam, “o cristianismo africano apresentava um espírito de
campanário e o orgulho da terra. Estava profundamente arraigado numa terra que se embebeu
no sangue dos mártires” (HAMMAN, 1989, p. 18), fazendo do cristianismo uma religião
muito perseguida, mas que a cada dia o seu crescimento era espantoso.
Devido sua característica própria, e diferente da época, o cristianismo passou a ser visto de
forma agradável pela população devido o cuidado com os excluídos e oprimidos, falavam
muito sobre fraternidade e igualdade, o temor diante a Deus, doutrina da salvação e da graça,
tais ensinamentos causou impacto até no fogoso Tertuliano, fazendo do cristianismo uma
religião diferente das outras existentes na África.
No contexto a qual estamos estudando o cristianismo já não era uma religião nova, já tinha em
torno de uns 300 anos de existência, tendo basicamente uma identidade própria e diferenciada
das demais e que ainda incomodava muita gente principalmente os imperadores não adeptos
da nova religião, tal exemplo estar no cisma que,
...o cristianismo apesar de sua grande aceitação por parte dos caridados, uma grande parte
ainda se mantinha oposto a suas doutrinas.
que existam entre 58 e 75 milhões de pessoas que falam estas línguas, principalmente em Marrocos e Argélia,
mas também fazendo parte deste grupo os tuaregues, predominantemente nômades do Sahara.
1438
Com a dominação dos donatistas5 na África no século IV, vemos uma queda muito grande por
parte dos mesmos em relação ao poder dominante, as ameaças dos bárbaros militaristas
vindos da Pérsia, fazendo com que o perigo e os impostos aumentassem, nessa condição quem
houvesse de confrontar o imperador poderia comprometer toda a sua comunidade com o
castigo de quem o acusou (BROWN, 2012 p. 29) isso nos revela que a população não tinha
autoridade para reinvidicar seus direitos, se é que tinha direito na visão do imperador.
Diante dessas situações entendemos que no contexto africano vivido por Agostinho a religião
em específico o cristianismo não tinha uma aceitação ou influência agradável por parte do
império.
A África coberta por uma influencia cultural que chegavam até a confundir-se em relação aos
seus cultos e adorações ao seu Deus ou deuses, isso, passa a ser um grande desafio para o
agora então bispo de Hipona Agostinho, que o incomodava bastante tais posturas dos cristãos
onde “as mesmas pessoas que cantavam ‘Aleluia’ encontravam-se para aclamar histriões e
pantomímicos” (HAMMAN, 1989, p. 113) sua indignação com tais posturas dos cristãos era
visíveis nos cultos.
Desde sua fundação a África já trazia consigo esses traços culturais fazendo-o diferenciada
das outras pela a valorização maciça do seu povo pela sua própria cultura, em alguns
momentos os organizadores eram obrigados a venderem suas propriedades para livrar suas
despesas, só que o prazer pela a prática de espetáculos como, teatro, mímica, pantomima, o
anfiteatro, o circo e as festas pagãs falavam mais fortes em sua natureza africana, sendo um
obstáculo para o anuncio da fé cristã.
Mas tais atitudes ainda que indignasse o bispo, em seus olhos podia ver o quanto tal sociedade
era carente de um Deus verdadeiro que viesse mostrar exatamente a eles o preenchimento do
vazio que havia em seus íntimos e que as festas e atividades culturais viriam a ser na sua
maioria das vezes seu refúgio, e como o cristianismo ainda não era bem aceito a ponto de
5
O Donatismo (cujo nome advém de Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia e posteriormente de Cartago) foi
uma seita religiosa cristã, considerada herética e cismática pelo catolicismo. Surgiu nas províncias do Norte de
África na Antiguidade Tardia. Iniciou-se no início do século IV e foi extinta no final do século VII. Os autores
que mais influenciaram os donatistas, em termos de doutrina religiosa, foram São
Cipriano, Montano e Tertuliano.
1439
abandonar suas práticas religiosas á outros deuses que não viesse a ser o Deus verdadeiro que
Agostinho propunha anunciar, mas, mesmo com tais dificuldades o hiponense não desistiu de
cumprir sua missão,
por mais que Agostinho descrevesse o espetáculo da natureza, onde o Criador estende sua
magnificência; por mais que fizesse admirar as maravilhas de Deus na história; por mais
que afirmasse que os campos são mais matizados que os cenários do teatro. Por mais que
prometesse o espetáculo futuro do Cordeiro no cenário da Nova Jerusalém; nesse dia o
africano de Hipona ou de Cartago não o seguia, (HAMMAN, 1989, p. 131).
Vemos que a influencia cultural era tão grande que aos olhos humanos vemos uma grande
impossibilidade de tal sonho de Agostinho vim a se realizar, isso demonstra o imenso desafio
que a Igreja cristã na pessoa de Agostinho como o líder responsável a evangelização ou
catequização dos africanos, enquanto “cristãos ou pagãos, os espectadores que voltavam do
circo encontravam nas ruas paroquianos que voltavam da missa” (HAMMAN, 1989, p. 131).
Mas a influencia cristã mesmo assim não deixou de ser vivida, mesmo com as grandes
dificuldades enfrentadas como era de costume dos adeptos da fé cristã morrer por causa dessa
verdade eles morreriam. Devido a perseverança de Agostinho podíamos perceber que a igreja
começara a prevalecer diante das situações acontecidas no ponto até de Salviano de Marselha
afirma que a causa já estaria praticamente ganha, pois, se andasse nas casa pelos os arredores
era muito difícil não ver um cristão, embora houvesse muitos pagãos, mas sempre existia
alguém que acreditavam em Jesus Cristo.
Mesmo ainda com práticas de adoração a outros deuses vemos a expansão do cristianismo de
um forma muito rápida devido sua veracidade e firmeza nas suas convicções de seus
seguidores demonstração mas exata estar quando em 382 o imperador “Graciano tenha
condenado a religião pagã e confiscado os templos em Cartago, o jovem Agostinho viu
templos amplamente abertos” (HAMMAN, 1989, p. 134) caso que não vínhamos com
frequência ou que até então não era muito aceito pelo o império e até por parte da igreja
católica na época, passamos a ver constantemente a mudança, mas também era notório de ser
sempre pagãos e céticos zombando-os, e ainda argumentavam que “ os cristãos participam de
nossas festas pagãs, retornam aos velhos ritos, recorrem à magia e imploram às divindades
nos momentos de aflição. Por que abandonar os nossos deuses, se os próprios cristãos os
veneram conosco? (HAMMAN, 1989, p. 142-143)”, vemos os maus exemplos de cristãos que
1440
conforme Agostinho ainda não tinha conhecido a Verdade verdadeiramente, fazendo-o
comprometer toda a igreja.
Não bastando os neófitos na fé em suas maiorias das vezes quando alguns dos seus familiares
estavam doente e recorria ao bispo ou a outro irmão em oração e o mesmo era curado
agradecia ao Senhor Jesus, se tal cura não ocorresse no tempo determinado os familiares já
recorria aos curandeiros, adivinhos demonstrando o total ligamento com os traços culturais
sociais.
Depois de grandes lutas, perseguições e menosprezo, vemos a igreja cristã tomando sua
autonomia diante da sociedade africana. Após o Edito de Milão, a igreja passou a ter
privilégios aos templos que até o momento não tinha, “entre outros, o direito de asilo junto
aos altares e santuários, velha instituição, conhecida de quase todos os países da Antiguidade,
que possibilitava a impunidade aos escravos, aos devedores e a todos os cidadãos perseguidos
pela polícia”(HAMMAN, 1989, p.289) para a igreja é uma vitória imensa, de ter conquistado
tais liberdade era como se deixasse livre a igreja a viver como ela pretende viver. A partir daí
a igreja passou a ser vista com outros olhos, onde o Estado era pela justiça para o povo, a
Igreja é pela misericórdia, sua missão é de “dar comida a quem tem fome, dar bebida a quem
tem sede, vestir a quem não tem roupa, acolher aqueles que não tem abrigo” desde então, o
cristianismo passou a ser visto como “uma espécie de oásis de humanidade em uma época de
regime ditatorial” onde a policia e os ricos da época eram capazes de fazerem grandes
barbáries só que, tal ação viesse ocorrer, o Bispo de Hipona tinha autoridade suficiente para
contestar contra tal ato cometido.
Considerações finais
1441
doutrinária, não como almejava, mas, vemos que a iniciativa foi dada e isso é o era um dos
itens mais importante para igreja.
E toda essa pesquisa veio a ser realizada dentro das pesquisas já elaboradas por um dos
maiores estudiosos do hiponense Peter Brown que dedicou sua vida a estudar a vida do Santo
Padre de Hipona.
Referências
BROWN, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho, uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro.
– 7ª Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2012.
HAMMAN, A. – G. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.
1442
1443
O rosto ambíguo do monoteísmo: libertação e violência na
instituição do monoteísmo no Antigo Testamento
Luiz José Dietrich1
Introdução
Ao lermos certas passagens da Bíblia deveríamos pedir para as crianças saírem da sala. “A
Bíblia é um catálogo de maus costumes”, apresenta um Deus violento ao qual estão
relacionadas muitas crueldades e carnificinas, “é um catálogo de crueldades, e o pior da
natureza humana.”2 Opiniões como esta, de José Saramago, importante escritor português e
prêmio Nobel de literatura, recentemente falecido, podem chocar muitas pessoas que possuem
Bíblia como seu referencial religioso. Claro que devemos reconhecer nas afirmações do
renomado autor certo grau de exagero, dado o contexto coloquial dessas frases. E com certeza
elas não são verdadeiras para a maior parte dos textos da Bíblia. Porém, já isso é um reflexo
da ambiguidade aludida no título. Uma grande parte das pessoas que leem a Bíblia,
frequentam sinagogas ou igrejas, não se dá conta das violências ali presentes. Para elas os atos
e as ordens de Deus não promovem violência, ou pelo menos violências que não sejam, desde
seu ponto de vista, justificadas. Pois o senso comum é que Deus é bom, e quer o bem das
pessoas. E muitos foram levados a crer que essa bondade se manifesta mesmo em seus atos
punitivos. Também é verdade que das comunidades religiosas do judaísmo e do cristianismo
nos chegam muitos relatos a respeito de pessoas que dedicaram e doaram suas vidas em prol
de outras se encontravam em situações de carência, miséria, fome, violência, etc., e também
de muitas instituições que atuaram neste sentido ao longo da história.
1
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor da Pontifícia Universidade Católica doPUC/PR.
Contato: luizdietrich@ig.com.br.
2
http://www.youtube.com/watch?v=UZxFXn07dTE&feature=related
1444
ocorrem estes conflitos e entre as populações e instituições neles envolvidas sempre há
pessoas e grupos que, a partir de sua fé e de determinado entendimento de seus textos
sagrados, participam, legitima e impulsionam estes conflitos, e outros que, também partido de
sua fé e de seus textos sagrados, buscam soluções de diálogo e pela construção de relações de
paz.
Esta ambiguidade vista no comportamento de judeus e de cristãos, seja na história, seja nos
dias de hoje tem suas raízes nas ambiguidades da história de Israel e de sua religião, pois suas
marcas acabaram por ser inscritas em seus textos sagrados. De fato dos textos sagrados se
tiram leituras para a guerra e leituras para a paz.
Esta comunicação visa contribuir para a compreensão da possível gênese dos textos
intolerantes e violentos do Antigo Testamento, e especialmente das concepções teológicas que
incluem e apoiam atos de intolerância, discriminação e violência. Com uma abordagem
histórica propõem-se uma compreensão e uma leitura libertadora destes textos e pistas para a
transformação das teologias deles emanadas.
De fato há na Bíblia muitos textos que incitam e legitimam a violência contra religiões e
contra as pessoas que nomeiam e cultuam a Deus de outros modos. A violência e a incitação a
atos de violência fazem parte de textos que ao longo da história de Israel serão considerados
sagrados e instituídos como palavras de Deus. Teologicamente a caminhada de Israel vai do
politeísmo ao monoteísmo, “da pluralidade à singularidade” (REIMER, 2009, p. 21-52).
Porém o movimento em direção ao monoteísmo acontece ou sob o patrocínio ou em aliança
com o poder político e carrega alto grau de violência, estando, quase sempre associado a um
projeto de concentração de riqueza, poder e de dominação e tendo uma função importante de
legitimação.
1445
No início, a religião oficial do rei Davi e de sua dinastia (c. 1000 a.C.)
Os primeiros passos na direção do monoteísmo talvez tenham sido dados por Davi, que ao
tornar-se rei após uma série de mortes (1Sm 22-2Sm 5) e em condições muito suspeitas (2Sm
16,5-8), leva um dos principais símbolos religiosos das tribos da região montanhosa central de
Israel, a arca, para dentro das muralhas de Jerusalém (2Sm 6,1-23). Embora a grande
quantidade de guerreiros, necessária para tomar a arca das tribos de Benjamim e Efraim,
possa estar exagerada: “toda a elite do exército de Israel: trinta mil homens” (2Sm 6,1), serve
para revelar parte da violência e da imposição implicada no ato. E após isso a divindade
conhecida com YHWH dos Exércitos (YHWH Sebaot), associada à arca, passa a ser o Deus do
rei e da monarquie davídica. E o culto a YHWH dos exércitos passa a ser uma espécie de
culto oficial.
Isto se torna visível nos vínculo entre a narrativa da luta entre Davi e Golias (1Sm 17,1-18,5)
e a chamada narrativa da arca (1Sm 4,1b-7,1). Estes textos apresentam uma série de conexões
tradicionais e textuais que permitem supor que tenham sido parte de uma redação anterior ao
período de Ezequias e Josias (DIETRICH, 2006, p. 129-135). A divindade comum às duas
narrativas é YHWH dos Exércitos. E assim como em 1Sm 4 YHWH do Exércitos é
representado pela arca, em 1Sm 17 é Davi quem representa YHWH dos Exércitos.
Em 1Sm 4,4 a arca é chamada: “arca da aliança de YHWH dos Exércitos, o entronizado sobre
os querubins” (também em 2Sm 6,2). E em 1Sm 17,45 Davi se apresenta para o combate “em
nome de YHWH dos Exércitos”. E em 2Sm 6,18, quando após estabelecer a arca em
Jerusalém Davi abençoa o povo em nome desta divindade.3
A simbologia nos textos também atesta essa relação. Em 1Sm 17,49 Golias, representando os
filisteus e seu Deus (1Sm 17,43) cairá diante de Davi com sua “face para a terra”. Exatamente
como em 1Sm 5,3 e em 5,4 o Deus filisteu, Dagon, cai diante da arca. Os sacerdotes e
escribas da dinastia davídica representam assim a presença de YHWH dos exércitos em Davi.
E o anacronismo de 1Sm 17,54, que diz que Davi levou a cabeça de Golias para Jerusalém –
que só será conquistada anos mais tarde (2Sm 5,6-10) – além de testemunhar a antiguidade da
3
Além das passagens já citadas, na chamada Obra Histórica Deuteronomista (que compreende os livros:
Deuteronômio, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel) o nome YHWH Sebaot é ainda usado em 1Sm 1,3.11 ligado ao
santuário de Silo, em 2Sm 5,10, quando Davi já se encontra em Jerusalém, e em 2Sm 7,8.26.27; ée usado
também em 1Rs 18,15; 19,10,14.31; 2Rs 3,14; e provavelmente também no texto corrompido de 2Rs 19,31.
1446
narrativa, reforça a ligação entre as duas narrativas e a constituição de uma religião oficial,
religião do rei, possivelmente já com Davi ou nos inícios de sua dinastia em Jerusalém.
Porém, possivelmente YHWH tinha como sua jurisdição específica a organização dos
guerreiros e as batalhas em defesa das colheitas, das terras e da vida dos camponeses das
aldeias (cf. Ex 14,14.24-25.27; 15,2-3; Dt 1,30; Jz 4,14-15; 1Sm 4,3-6; 14,6; 17,47, etc.).
Seus rituais deviam envolver um tipo de aliança, ou compromisso, no qual quem ficava nas
aldeias se comprometia a cuidar dos órfãos e das viúvas dos defensores que viessem a morrer.
A partir desse núcleo básico, YHWH pode ter se tornado também o garantidor das relações
éticas de justiça e solidariedade (Ex 22,20-26, Dt 10,18-19; 24,10-22; 27,19; Sl 146,9; Is 1,17;
Jr 7,6). Embora certamente YHWH tivesse algum altar com destaque, e de algum culto
especial nas estruturas urbanas vinculadas à monarquia davídica, nessa época ele era adorado
ao lado de outras divindades, que atuavam nas outras áreas da vida, como Baal, responsável
pelas chuvas e pela fertilidade dos campos, El e Asherá e outras divindades responsáveis pela
fertilidade das mulheres e dos animais, entre outras (SMITH, 2006, p. 131-226; . Mas, a
colocação de YHWH como Deus do rei, da casa davídica, é o primeiro passo no processo que
terminará com YHWH sendo concebido como o Deus único para todo universo e para todos
os povos. A ambiguidade aqui se manifesta no fato de Davi conduzir lutas de libertação das
tribos da Palestina central contra o avanço dos Filisteus que as exploravam (1Sm 13-14; 2Sm
5,17-25). Porém ao encerrar a arca dentro dos muros da cidade por ele controlada, YHWH
dos exércitos passa a ser usado para legitimar seus projetos e o peso social da estrutura
monárquica que vai ganhando corpo com seu governo.
Muito mais significativas para esse processo serão, no entanto, a série de reformas político-
religiosas efetivadas posteriormente pelas monarquias de Israel e de Judá. Embora não exista
conclusão definitiva sobre o alcance e a profundidade destas reformas, sem dúvida elas
avançam na direção da instituição do monoteísmo.
1447
A reforma de Eliseu e Jeú: YHWH, Deus oficial de Israel (841-814 a.C.)
No reino do norte, Israel, a dinastia de Amri (845-841 a.C.), que a partir de uma aliança com
os fenícios, parece ter adotado Baal e Asherá como divindades oficiais (1Rs 16,31-33; 18,19;
2Rs 10,25-27), será exterminada no contexto de uma guerra com a Síria e num golpe militar
desfechado pelo profeta Eliseu e por Jeú, um dos comandantes do exército de Amri. A
narrativa esmiúça os vários massacres, que culminam com a destruição do santuário de Baal,
das imagens de Baal e de Asherá, e a instituição de YHWH como Deus oficial também em
Israel (2Rs 9,1-10,31). É preciso notar, porém, que esta reforma deve ter se restringido ao
santuário oficial na Samaria e talvez alcançando também os santuários de Betel, Guilgal e Dã
(Am 4,4; 5,5; 7,10-13; 8,14), espaços controlados pelo rei. Nada se diz dos outros santuários
tribais e dos cultos populares nas aldeias, onde certamente Asherá e Baal continuavam sendo
cultuados ao lado de YHWH, das divindades familiares (Elohim) e de muitas outras
divindades e com muitas imagens.
Simultaneamente à ação de Jeú e Eliseu no reino do norte é realizada uma reforma no sul, no
templo de Jerusalém (2Rs 11,17-20, cf. 2Cr 23,1-24,16). Embora em menor grau esta também
envolve violência. Atalia era filha de Amri e mãe de Ocozias (2Rs 8,25-26), o rei de Judá
morto na reforma de Jeú. Atalia como Rainha Mãe (no hebr. gebiráh, cf. 1Rs 15,13)
exterminou os filhos sucessores de Ocozias e reinou em Judá por seis anos (2Rs 11,1-3). Esse
curto reinado – única mulher e única pessoa não descendente de Davi que ocupou o trono de
Jerusalém em cerca de 400 anos – terminou num golpe organizado por Joiada, sacerdote chefe
de Jerusalém (cf. 2Rs 12,8), com os guardas do templo e com o “povo da terra” (grandes
proprietários de terras que apoiavam política, militar e financeiramente à dinastia de Davi,
2Rs 11,14.18.19.20; cf. 16,15; 21,24; 23,15.20; 25,19). Joiada, com o “povo da terra” também
destroem o templo e os altares de Baal em Jerusalém, matam Matã, o sacerdote de Baal.
Parece ter havido uma aliança em que o rei e o povo da terra comprometiam-se a ser povo de
YHWH. Sua ação, no entanto, não deve ter ido muito além do templo, ou dos arredores do
templo de Jerusalém. É um prelúdio das reformas que serão empreendidas por Ezequias e
Josias em territórios mais amplos.
1448
A reforma de Ezequias (716-687 a.C.)
Pouco antes de Ezequias assumir o poder em Jerusalém a Assíria conquistou o reino de Israel
e destruiu Samaria (722 a.C.). O império assírio seguirá crescendo por amis algumas décadas
até incluir parte do Egito. Embora com o império assírio dominando todas as regiões
importantes ao seu redor, Ezequias busca manter Judá como um reino independente. Sua
reforma situa-se esse contexto de resistência. Ezequias prepara-se para uma guerra com o
exército assírio. Amplia o fornecimento de água cavando na rocha um canal de pouco mais de
500 m, que hoje é chamado de “o túnel de Ezequias”, levando água da fonte de Gion para
dentro de Jerusalém (2Rs 20,20; 2Cr 32,30; Eclo 48,17; Is 22,11). Também aumenta a área da
cidade, para que ela possa acolher tanto fugitivos do reino de Israel (722 a.C.), como os
nobres das 46 cidades dos arredores de Jerusalém (cf. 2Cr 30,18.25; 2Rs 22,14)4, que foram
saqueadas por Senaquerib em 701 a.C. (2Rs 18,13; 2Cr 32,1,) reforça o tamanho e a espessura
das muralhas que cercavam a cidade de Jerusalém (2Cr 32,5; Is 22,9-10).
É neste contexto de forte preparação militar que se dará uma importante modificação
teológica em Judá. Ezequias faz o reino de Judá adorar somente a YHWH e centraliza seu
culto em Jerusalém. É para lá que deverão a partir de agora serem levadas todas as oferendas
que anteriormente eram feitas fora de Jerusalém. Todos os santuários e cultos fora de
Jerusalém são proibidos, sejam eles dedicados a “outros Deuses”, às Deusas, ou mesmo a
YHWH. Todos os santuários, locais de culto (os “lugares altos”) fora de Jerusalém são
condenados e destruídos. Todos os outros Deuses e Deusas, e suas respectivas imagens são
destroçados e proibidos. A ideia é que para ter a proteção de YHWH, contra o poderoso
império assírio, Judá deve fazer uma aliança de adoração exclusiva a YHWH, ser o povo de
YHWH, para que YHWH seja o Deus de Judá (2Rs 18,3-6; 2Cr 29,1-31,1).
Como visto anteriormente, YHWH, no mundo politeísta vigente até então, era provavelmente
a divindade que patrocinava, guardava e dirigia os guerreiros encarregados da defesa armada
das vilas camponesas. Desde Davi era também o Deus do rei, da dinastia davídica. Com
Ezequias YHWH passará a ser o Deus nacional de Judá. No entanto, para ser a divindade
nacional, única divindade de Judá, sua jurisdição tem de abarcar todas as áreas da vida.
YHWH será então identificado com as divindades clânicas, familiares, chamadas
4
Nesse período, em menos de 20 anos a área cercada por muralhas em Jerusalém passou de 5 hectares (50.000
m2/0,05 Km2) para 60 hectares (600.000 m2/0,6 km2), e a população que vivia em seu interior passou de 1.000
ou 2.000 para 15.000 habitantes (cf. FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2003, p. 29-331; LIVERANI, 2008, p.
195-199). Uma avaliação divergente, com números maiores, é apresentada por SHNIEDEWIND (2011, p. 98-
106). Porém este autor parece superestimar a importância de Jerusalém no tempo de Ezequias.
1449
genericamente de Elohim, e também com El, o grande Deus supremo do panteão cananeu (Dt
10,17), sendo que os cultos oficiais passam a atribuir a YHWH tanto as funções dos Elohim e
de El, como também as de Baal, de Asherá, de Astarte e de muitas outras que serão banidas
(Dt 28,1-68; cf. 7,12-16; 11,13-17: Ex 12,1-13,16). Com isso, funções, anteriormente
atribuídas a outras divindades, como a fertilidade das mulheres e dos animais, seus
primogênitos, a fertilidade e as primícias dos campos, a chuva, amor, saúde, doença, morte,
etc., paulatinamente são transferidas a YHWH (cf. Gn 20,18).
Essa tremenda centralização religiosa que tem como objetivo a centralização de todas as
oferendas em Jerusalém. Sacrifícios e oferendas que antes estavam dispersas em centenas de
locais sagrados, agora eram todas direcionadas a Jerusalém. Com isso Ezequias visa estocar
mantimentos e obter produtos para comerciar e obter recursos para suas obras, equipar seu
exército e o fortalecer suas defesas (2Cr 31,4-12). Porém a centralização religiosa foi feita,
como sempre acontece, com muita imposição e violência (2Rs 18,4.22; Is 36,7; 2Cr 30,13-14;
31,1). E como uma série de textos da chamada “Obra Histórica Deuteronomista” (Js, Jz, 1 e
2Sm, 1 e 2Rs), do Pentateuco e de vários livros dos profetas tiveram sua redação iniciada
nessa época, o rosto deste YHWH oficial violento, exclusivista, centralizador,
homogeneizador e intolerante ficou gravado na Bíblia.
O que Ezequias fez em Judá, Josias sonhou fazer em todo Israel. Josias assume o poder
quando a Assíria, em decadência, é expulsa do Egito e se retira da Palestina. A reforma
centralizadora de Josias segue a inspiração e a pauta da reforma de Ezequias. Porém Josias
sonha estender o poder de Jerusalém, da casa de Davi, abarcando além de Judá também o
território do antigo reino do norte. Nos textos do Pentateuco e dos Livros Históricos redigidos
nessa época Josias projeta o ideal das 12 tribos unidas, adorando a um só Deus, seguindo a
um só homem, em aliança com YHWH. Mostra Moisés, Josué, os Juízes, Samuel, Saul e Davi
numa linha sucessória designada por YHWH, sempre realizando o papel que ele sonha para
si: as doze tribos unidas em um só povo, seguindo a um só homem e, todos adorando somente
a YHWH e somente em Jerusalém. A reforma de Josias veio após o longo reinado de
Manassés que foi completamente submisso à Assíria e deve ter reestabelecido o culto às
outras divindades em Jerusalém e em Judá e (2Rs 21,1-17). Com Josias YHWH passa a ser “o
1450
Deus de Israel”. Para realizar seu sonho de construir um pequeno império, projetado na mítica
imagem do império davídico-salomônico, criada pelos escribas e sacerdotes de Josias5, Josias
terá de enfrentar o faraó, que também pensa assumir o controle sobre o espaço vazio deixado
pelos assírios em retirada.
Como Josias terá mais condições políticas e militares de promover sua reforma e integrar em
seu domínio político o reino do norte – que o poder assírio em seu ápice não permitiu a
Ezequias – sua ação certamente terá um componente de violência maior (2Rs 23,4-23; 2Cr
34,3-7). A ampliação do domínio político sobre as terras e tribos do norte, a violência contra
os santuários, os Deuses e Deusas cultuadas há séculos, a violência contra seus sacerdotes,
sacerdotisas (2Rs 23,5-7.14.16.20) e seguidores necessita de uma justificativa forte e muito
bem elaborada. Com essa função grande parte do atual Pentateuco, dos livros da Obra
Histórica Deuteronomista, dos livros dos profetas pré-exílicos, de Provérbios e Salmos foram
redigidos de modo a dar suporte teológico e legitimação religiosa para a ação de Josias.
Muitos textos de Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio e dos Livros Históricos, com
YHWH ordenando que sejam mortos os cananeus, que seus templos, Deuses e imagens sejam
totalmente destruídos, provavelmente são redigidos nessa época, como Dt 13, o livro de
Josias, etc. Inscrevem no passado uma ordem dada por YHWH (a partir do “livro da Lei”,
“descoberto” no templo, provavelmente Dt 12-26 ampliado) que nunca teria sido seguida pelo
povo de Israel, mas que agora Josias estava decidido a implantar, com apoio de YHWH (2Rs
23,1-3).
E nestes textos transparece toda a ambiguidade da teologia oficial dessa época. Como o
principal adversário político de Josias é o faraó do Egito, YHWH será mostrado como o Deus
do Êxodo: “Eu sou YHWH teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”
(Ex 20,1). E o êxodo será descrito como uma luta entre o faraó, com seus Deuses e seu
exército de um lado (Ex 12,12; 14,25-28; 15,1-11), e do outro YHWH e “os filhos de Israel”,
as doze tribos unidas, sob o comando de um só homem, em aliança com YHWH (Ex 6,1.6-7;
7,4-5; 8,6; 10,1-2). Usa-se e reforça-se o sagrado rosto de YHWH, como um Deus libertador,
defensor da vida dos oprimidos, forjado desde a antiguidade no culto dos camponeses
armando a defesa de suas colheitas, sua liberdade e de suas vidas, refletido numa das mais
belas passagens da Bíblia: “YHWH disse: eu vi, eu vi, a miséria do meu povo que está no
Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso
5
Divergindo da interpretação apresentada por William M. SCHNIEDEWIND, citada na nota anterior.
1451
desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios” (Ex 3,7-8a; cf. 2,23-25; 6,5; At 7,34). Mas esse
sagrado rosto do YHWH que defende e promove a vida é posto a serviço do projeto de
dominação de Josias e usado para justificar toda a violência necessária para sua efetivação: a
“terra boa e vasta, terra que mana leite e mel”, que YHWH promete para o seu povo, é a terra
dos “cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus” (Ex 3,8b),
e estes povos deverão ser exterminados! YHWH mesmo vai ajudar a exterminá-los (Ex 23,23-
33). Estes povos deverão ser excluídos, desterrados, atacados e mortos ou escravizados por
quê? Somente porque adoram a outros Deuses, possuem imagens, cultuam suas divindades de
formas e modos diferentes daquele que Ezequias e Josias estão estabelecendo em suas
reformas centralizadoras da religião, com objetivos econômicos, políticos e militares.
Em Is 40-55 estão as afirmações monoteístas mais antigas da Bíblia Hebraica 7. Por trás deste
escrito estão os grupos de exilados da segunda deportação, muitos dentre eles eram levitas do
interior. Na luta contra opressão imperial, começam a afirmar que as Deusas e Deuses
6
Podem ter recebido influências do Mazdeísmo propagado pelo profeta Zaratustra (em gr. Zoroastro), instituído
como religião oficial persa mais ou menos nessa mesma época, que também propõe a existência de um único
Deus: Ahura Mazda. Ahura Mazda, a divindade única responsável pelo bem, tem um adversário, o Deus Harimã,
responsável pelo mal e pelo caos. Embora por isso o Zoroastrismo seja melhor qualificado como “monoteísmo
dualista”, há diversos pontos de contato com judaísmo, cristianismo e islamismo: possui um livro sagrado
revelado, Zend-Avesta, anuncia a vinda de um Messias nascido de uma virgem, e crê num juízo final.
7
As afirmações monoteístas encontradas em páginas ou livros anteriores a Is 40-55, como Dt 4,35.39; 32,39, são
provavelmente marcas de releituras exílicas ou pós-exílicas, onde a própria linguagem revela seu vínculo com o
texto de Is 40-55.
1452
babilônicos, que apoiavam e legitimavam a violência, a escravidão e a opressão, não são
Deuses. As divindades babilônicas opressoras e suas imagens na verdade nada são (Is 44,9-
20). Dessa forma começam a estabelecer a concepção monoteísta da fé de Israel (Is 43,10-13;
44,6-8; 45,5-6.21; 46,9;). Revela-se aqui o coração sagrado e libertador do monoteísmo: a
única divindade verdadeira é a que está junto aos oprimidos em luta contra a opressão. O
critério para estabelecer essa classificação é mais a função exercida pela divindade do que o
seu nome, suas características ou forma de culto. Como em Ex 3,14, a verdadeira divindade é
definida mais por uma ação do que por um nome ou por uma forma de culto. “EU SOU”, eu
sou o que sou para vocês, eu sou o que serei, o que estou sendo, presença solidária e
libertadora junto a vocês. Na sua resistência e luta por liberdade e dignidade os exilados
contam as histórias antigas acrescentando essas releituras e nelas refundam forças para manter
acesa a esperança da libertação e do retorno à terra de Judá.
Estas releituras, no entanto, irão consolidar-se nos escritos bíblicos somente após o retorno
dos exilados, a partir de 530 a.C., quando o rei Ciro da Pérsia irá derrotar o império
Babilônico e libertar os exilados. E principalmente entre 515-400 a.C., quando os persas
apoiarão a reconstrução do Templo, das muralhas e da cidade de Jerusalém, com o envio de
Neemias e do sacerdote Esdras.
No conflito que se estabelece com a volta dos exilados, que encontram os latifúndios de seus
antepassados ocupados há mais de 50 anos pelos camponeses remanescentes aos ataques
Babilônicos. Parte dos exilados, buscando reaver sua condição de latifundiários e nobres, irão
usar muitas das intuições e instituições libertadoras criadas no exílio para menosprezar,
condenar e excluir os camponeses remanescentes na terra de Judá.
Entre os anos 450-400 a.C. os sacerdotes, organizados a partir do novo Templo, serão
confirmados como intermediários entre o povo e o império persa, e com o transformação da
Judéia em uma província persa, os sacerdotes irão exercer o poder em nome de Deus. Esse
governo teocrático irá a impor nova concepção de Deus, do povo de Deus e do pecado.
YHWH será agora será considerado como Deus único e universal (Dt 4,39; 1Rs 8,60).
1453
divindade, a um lugar sagrado, a um conjunto de determinados rituais e leis e a uma
hierarquia sacerdotal bem definida. O nome será tão sagrado que só poderá ser pronunciado
pelo sumo sacerdote, e num ritual realizado uma só vez por ano (Lv 16). O templo, casa desta
divindade, é considerado o lugar mais sagrado do país, com espaços exclusivos aos
sacerdotes. Outra pessoa que adentrar a esses espaços é punida com a morte (Ex 19,13; Nm
1,51; 3,10; 2Cr 23,19). Faltas rituais serão punidas com a morte (Lv 20,1-21; 23,29-31; 24,10-
23; Ex 19,12; 31,14-15; Nm 15,32-36; 25,1-18) ou com a exclusão (Lv 10,11; 11,24-28.31-
45; Mc 2,15-17). A pureza racial e ritual torna-se o critério básico para definir quem pertence
ou não ao povo de Deus. E o pecado é agora definido pelas leis de pureza e impureza,
conforme o livro do Levítico. É nesse processo, aliás, que o Pentateuco – Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio – receberá a forma em que se encontra hoje em nossas
Bíblias. Serão promulgados como livros sagrados pelas autoridades do segundo Templo e
impostos como lei de Deus – e do rei – com apoio dos persas (Esd 7,25-26). E a
desobediência a essas leis poderá ser “castigada rigorosamente; com a morte ou o desterro,
com multa ou prisão.”
E Jesus? E o cristianismo?
Jesus, com certeza, herdou de seu povo uma concepção monoteísta de Deus. Porém
certamente não era a concepção definida pela teologia oficial de seu tempo, embasada tanto
na teologia centralizadora de Ezequias e Josias, como no monoteísmo legitimador da exclusão
e justificador de violências, hierarquias e privilégios dos sacerdotes do segundo templo. Essa
era na realidade, a teologia das pessoas que oficialmente condenaram Jesus à morte, ou
apoiaram essa condenação. E que nas décadas seguintes perseguiram e excluíram parte dos
primeiros seguidores e seguidoras de Jesus.
1454
condenação Jesus tinha características semelhantes a este monoteísmo trinitário cristão que
promove, ou aceita calado, atitudes discriminatórias, intolerantes e violentas contra partes das
culturas e das religiões dos povos africanos e afrodescendentes, dos povos nativos das
Américas, e muitas outras etnias e religiões diferentes. Esse mesmo monoteísmo exclusivista,
homogeneizador manifesta-se também em posturas violentas contra as pessoas que mantem
ou desejam manter relacionamentos homo afetivos, ou combatendo as propostas que visam
reconhecer os direitos de tais pessoas a viverem suas orientações ou opções sexuais.
Tais teologias afastam-se muito da teologia de Jesus. Formaram-se certamente nos séculos
seguintes à morte de Jesus, quando uma corrente do cristianismo tornar-se-á religião oficial
do império romano. Nesta situação se fortalecerão as tendências centralizadoras,
hierarquizadoras, homogeneizadoras e exclusivistas dentro do cristianismo nascente para que
este pudesse cumprir o papel desenhado, não por Jesus, mas pelos objetivos e desejos do
império romano e de seus aliados. A colonização desse cristianismo será alimentada e
aprofundada depois do império Bizantino ainda pelo papel do cristianismo no império
colonial Britânico, no império Espanhol, no império Português, e também no domínio
imperial norte-americano.
Considerações finais
Uma leitura histórica e descolonizadora (DIETRICH, 2010, p.11-21) talvez possa resgatar
esse núcleo sagrado do judaísmo e do cristianismo, núcleo esse parcialmente soterrado sob a
grande carga de imperialismo, legalismos e ritualismos embutidos nos monoteísmos oficiais.
Uma releitura em perspectiva ecumênica e inter-religiosa pode superar as práticas
colonialistas e imperialistas e a compreensão exclusivista e homogeneizadora associadas ao
monoteísmo cristão, e saberá reconhecer que em todas as religiões existe um núcleo sagrado
direcionado à promoção e à defesa da vida, à prática do amor. Esse núcleo confere igual
dignidade às religiões de todos os povos.
1455
muitas das igrejas, aliada à indiferença frente às injustiças e às ainda escandalosas diferenças
sociais que caracterizam nossa nação, o individualismo insensível que se revela na oposição e
no combate à políticas de ordem compensatória e distributivista, e à intolerante e
antidemocrática beligerância contra políticas de Direitos Humanos, mostram que longe de um
“Reino de Deus”, estamos mergulhados no reino das ambiguidades, que sacralizam interesses,
hierarquias, concentração de poder e riqueza, muitas vezes legitimando-se com teologias e
discurso pretensamente defensores e promotores da vida.
Referências
DIETRICH, Luiz José. Davi e Golias e a atual discussão sobre a história de Israel. In:
REIMER, Haroldo; SILVA, Valmor da (orgs.). Hermenêuticas bíblicas. Contribuiçõe ao I
Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG/ABIB, 2006,
p. 129-135.
FINKELSTEIN, Israel e SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão, (tradução de
Tuca Magalhães), São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p. 29-331.
LIVERANI, Mário. Para além da Bíblia – História antiga de Israel, (tradução de Orlando
Soares Moreira), São Paulo: Paulus/Loyola, 2008, p. 195-199.
REIMER, Haroldo. Inefável e sem forma. Estudos sobre o monoteísmo hebraico, São
Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, 2009, p. 21-52.
1456
1457
Protestantismo e culturas populares tradicionais: arranjos,
rearranjos e interações
Lauana Ananias Flor1
Introdução
Este artigo2 sugere uma breve discussão de um tema pouco contemplado pela historiografia
do protestantismo3 no Brasil. Muito focado em grandes personagens e embates polêmicos, o
protestantismo construiu a sua imagem representativa de forma porosa, pois digna de
questionamentos atualmente legítimos diante dos estudos das religiões. A proposta é
desvencilhar-se deste modus operandi e abordar temas incomuns, no caso, a participação
efetiva de pessoas simples e comuns do meio rural, na propagação de idéias protestantes
transmutadas para a realidade cotidiana.
No contexto brasileiro, muito se tem pesquisado acerca do protestantismo, porém não mais do
que o catolicismo, religião hegemônica em nosso país. É de praxe falar do catolicismo para
depois se mencionar o protestantismo, ambos constantemente em oposição. Diante de tal fato,
conclui-se que quando as pesquisas giram em torno do tema das culturas populares
tradicionais e as suas expressões religiosas, estas são comumente ligadas ao catolicismo, o
que evidencia uma constante ausência ou negação deste tema relacionado ao protestantismo
no Brasil, questão que aqui será questionada.
Enquanto o catolicismo, de certa forma, legitima e autoriza várias formas de crenças e até
mesmo ‘superstições’, o protestantismo e sua historiografia demonstram uma imagem
negativa do tema, por ressaltar principalmente o seu caráter civilizador, vinculando-o a
suposta superioridade dos ideais anglo-saxões, propagados pelos representantes do
protestantismo norte-americano.
1
Mestre em Ciências da Religião pela UMESP, com apoio do CNPQ. Graduada em Teologia pelo Mackenzie.
Orientador: Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth. Contato: lauana_correa@yahoo.com.br.
2
O artigo procede de parte da discussão apresentada por mim na dissertação: Manoel Moises, Mãe Bela e o
protestantismo rural na história da Igreja Presbiteriana em Cabeceira Grande (IPCG) - MG (1947-1970) em
2012.
3
Embora tenha como objeto de pesquisa o presbiterianismo, usarei o termo protestantismo constantemente,
devido ao fato de que nem sempre há a especificação nas fontes pesquisadas.
1458
De forma geral, acredita-se que o protestantismo se revela através de suas próprias
representações, e por tal razão, inviabiliza a compreensão das dinâmicas sociais. Segundo
Roger Chartier, historiador francês, consolidado na Nova História Cultural, “a representação
transforma-se em máquina de fabricar respeito e submissão, num instrumento que produz
uma exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à força
bruta” (1990, p. 186). Neste sentido, o pensamento de Chartier sugere a submissão crítica
de “legados interiorizados e os postulados não questionados de uma forte tradição
historiográfica” ao mesmo tempo em que abre espaço para “compreender as práticas
complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”
(CHARTIER, 1990, p. 28). Se, como apregoa Chartier, o mundo é tido como representação,
se verá que:
Mas como mostrar, não outra imagem do protestantismo brasileiro e sim, uma imagem
simplesmente diferente, aquela que está fora da história institucional e confessional? Como
mostrar a interação do protestantismo com as culturas populares tradicionais? Nesse
sentido, tendo como foco de estudo o presbiterianismo, pode-se apontar para a pesquisa de
Lidice Meyer P. Ribeiro e sua idéia de um protestantismo rural, ao afirmar que:
1459
este “teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma nova forma religiosa: o
protestantismo rural” (2009, p. 201).
1460
discursos eclesiásticos e oficiais. Elas são válidas como ferramentas da máquina institucional,
na criação de outra mentalidade, que desqualifica direta ou indiretamente o sujeito religioso e
a sua própria experiência religiosa. Sobre o tema das práticas e das representações, discutindo
também a questão da apropriação, Chartier sugere que:
o consumo cultural [...] pode assim escapar à passividade que tradicionalmente lhe é
atribuída. Ler, olhar ou escutar são, efetivamente, uma série de atitudes intelectuais que –
longe de submeterem o consumidor à toda-poderosa mensagem ideológica e/ou estética que
supostamente o deve modelar – permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a
desconfiança ou resistência (1990, p. 59).
Ora, é sabido que o protestantismo, mesmo tendo que em muitos espaços digladiar-se com o
catolicismo, tinha no universo rural o principal local de recepção de sua mensagem. Segundo
Lídice Ribeiro, pesquisas apresentadas por Emílio Willems, Maria Isaura Pereira de Queiroz e
Carlos Rodrigues Brandão apresentam o protestantismo convivendo simultaneamente com o
catolicismo rural e por tal razão, neste ambiente, adquiriu “características mais fortemente
diferenciadores e contrastantes do catolicismo, em prol de se firmar pela oposição,
desenvolvendo-se dentro dos parâmetros do protestantismo tradicional” (2009, p. 220s). Mas,
1461
longe da supremacia do catolicismo rural, o protestantismo rural desenvolveu “crenças e
práticas diferenciadoras” pelo fato de ter-se originado “num amálgama com as crenças já
existentes em nosso país” (RIBEIRO, 2009, p. 221).
Apesar de o protestantismo ser uma religião oriunda de outro país, trazida por missionários,
esta exerceu o famoso “jogo de cintura” brasileiro, se ajustando à cultura de raiz que
encontrou aqui, mantendo seus dogmas e ritos, apesar de reinterpretado, criando, assim, um
protestantismo genuinamente brasileiro (RIBEIRO, 2009, p. 223) .
Desde a chegada do protestantismo ao Brasil nota-se que o povoamento do país era rarefeito,
dando a constituição de um mundo rural que teve o seu predomínio relativizado somente
depois da segunda metade do séc. XX, quando então se passa à transição do predomínio do
urbano. Observa-se que as características do mundo urbano vão efetivamente se entranhar na
sociedade brasileira somente a partir das décadas de 1960 e 1970
1462
Tais questões acima colocadas evidenciam o ambiente de interação cultural e social do
protestantismo, diante de sua inserção no Brasil e durante todo o seu processo de organização,
estabelecimento e desenvolvimento que ocorreu também diante de um lento e esparso
desenvolvimento do país.
É recorrente a afirmação de que a pregação protestante nas zonas rurais foi valorizada, e sem
sombra de dúvidas, foi uma franca estratégia de inserção, prática adotada no final do século
XIX, principalmente entre os presbiterianos. Segundo Willian Read, este padrão missionário
foi implantado por José Manoel da Conceição (1822-1873)4, e todos os campos missionários
passaram a segui-lo (s/d, p. 50).
Contudo, longe dos centros mais povoados ao longo da costa brasileira, o protestantismo
soube aproveitar as brechas e fissuras para a sua inserção nas zonas rurais. Antonio Gouveia
Mendonça, discutindo especificamente as origens do protestantismo, levanta três razões
possíveis para tal ocorrência: o protestantismo chegou ao Brasil num momento histórico-
social favorável a tal acontecimento, desenvolveu-se na camada livre e pobre da população
rural e seguiu a trilha do café (2008, p. 28). Segundo a análise do autor, que tem como objeto
de compreensão os presbiterianos5, o protestantismo além da trilha do café foi
predominantemente urbano e de rarefeita intensidade (MENDONÇA, 2008, p. 184). Read
também demonstra tal questão ao afirmar que:
Os missionários presbiterianos pioneiros iniciaram nas cidades, sua obra no Brasil. Nesse
período, fundaram igrejas no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia e no Recife. Todas se
constituíram em centros importantes, mas foi escasso e muito lento o êxito obtido pelos
missionários. De modo geral, podemos afirmar que o trabalho missionário nas duas
4
José Manoel da Conceição é considerado o primeiro brasileiro a se tornar pastor presbiteriano. O ex-padre foi
ordenado em 17 de dezembro de 1865.
5
Mendonça (2008) justifica tal opção por afirmar que o ramo protestante brasileiro que mais se expandiu no
recorte cronológico de sua pesquisa (periodo final do Império, a partir de 1859) foi justamente os presbiterianos.
1463
primeiras décadas, limitou-se aos centros situados ao longo da costa, em função do fácil
acesso. Com a conversão e influência de Conceição, logo essa concentração única nas
cidades foi modificada (s/d, p. 50).
O que se pode intuir com esta exposição de fatos é que o ambiente fundante do protestantismo
brasileiro estava diretamente relacionado ao mundo rural de fazendeiros e sitiantes e as suas
respectivas famílias. Vale destacar que são esses sitiantes e moradores das zonas rurais que
carregam no cotidiano os elementos e crenças sem forte embasamento nas religiões
institucionalizadas, mas muitas vezes discriminados nas representações impostas, quando não
eliminadas da memória institucional.
Diante de tais fatos, fica também a questão da ausência dos consumidores da mensagem
religiosa na historiografia protestante e consequentemente, a inexistência da relação do
protestantismo com as culturas populares tradicionais no contexto brasileiro. Nota-se que no
que diz respeito ao contexto fundante e ao período posterior, chegando ao marco de um
centenário, este mesmo ambiente se refere ao aqui denominado universo das culturas
populares tradicionais. Diz respeito ao mundo caipira, sertanejo e de tantas outras expressões
culturais regionais, onde o protestantismo se colocou como uma opção religiosa.
Sabendo que o tema das culturas populares é por demais complexo, o que gera uma enorme
discussão, ressalta-se aqui, não um profundo estudo sobre a questão e sim, a opção pelo
sentido de interação entre este tema, a sociedade e a religião. Se conforme Euclides Marchi, a
discussão sobre cultura gerou a conclusão de que “ela é a totalidade dos produtos e atividades
de um povo, sejam eles de caráter social como os usos e costumes ou de caráter religioso,
1464
como as crenças, rezas e rituais” é aceitável então, a ideia de que “a cultura estrutura a
sociedade e é por ela também estruturada, fornecendo-lhe o equipamento cultural que se
manifesta de forma codificada” (2002, p. 33).
Na região de Cabeceira Grande o protestantismo, em sua forma leiga, dava os seus primeiros
passos em 19477, num período em que as igrejas pioneiras já se organizavam para celebrar a
jornada de um século do presbiterianismo no Brasil8.
Ressalta-se que esta história não tem o foco nos ‘ilustres’ personagens, os quais os feitos
heróicos são constantemente lembrados na historiografia protestante. Basta dizer que a
história da Igreja Presbiteriana de Cabeceira Grande (IPCG) confunde-se com a vida do
lavrador Manoel Moises e de tantas outras figuras daquele contexto, como por exemplo Maria
6
As origens da localidade, datada na década de 1950, estão historicamente ligadas aos municípios de Paracatu e
Unaí, no noroeste de Minas Gerais. A vila de Cabeceira Grande passou a distrito na década de 1960 e teve a sua
emancipação em 1995.
7
Nesta época, a localidade contava com uma fraca e esparsa assistência católica, refletida nos chamados pousos
de padre. Uma simples capela foi construída ali somente em 1951 e a assistência institucional se deu após a
década de 1990.
8
A questão da inserção do protestantismo no Brasil não será aqui tratada, pois julgo já ter disponíveis muitas
pesquisas sobre a questão. Sobre o tema, ver Lèonard (2002) e Mendonça (2008).
1465
Odete da Costa Vale, carinhosamente chamada por todos de Mãe Bela. Figuras centrais que se
entrelaçam no desenvolvimento e organização da IPCG.
Watanabe, discutindo a historiografia presbiteriana sugere que “os inúmeros sujeitos, os fieis,
chamados por Certeau de consumidores, não foram vistos nessa produção histórica” (2006, p.
19). De início, estes consumidores são tipificados como um advogado, juiz ou até mesmo, as
damas ilustres de São Paulo, etc., representantes da cultura erudita, mas dificilmente
aparecerá entre estes ‘ilustres’, usando a expressão mencionada por Léonard (2002, p. 107) o
lavrador e a parteira.
Léonard, sem dúvidas é quem melhor descreve o chamado “corpo protestante” brasileiro,
retrato do corpo social do país. Desde o início, todas as classes e todas as profissões ali foram
representadas, no entanto, comumente nem sempre seus representantes são nomeados.
Aparecem ali os camponeses, os escravos, os sitiantes, artesãos e operários. As pessoas
comuns são adjetivadas ou em grande medida, são representadas por algarismos, embora “os
algarismos não são o principal nem podem por si só dar-nos uma idéia da força que tomava
rapidamente o protestantismo brasileiro” (LÉONARD, 2002, p.105).
1466
pronunciar invangelo em vez de evangelho, era muito criticado. Por isso, se alguém
possuía um animal muito bruto, e com muito trabalho o dominava e dizia: “conheceu o
invangelo!” (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA GRANDE , Atas do
Conselho, 1988).
Na Fazenda Bolívia, Manoel Moises construiu uma casa de capim para sua moradia e lá ele
tinha o costumeiro hábito de pregar o evangelho. Neste contexto surgiram as primeiras
adesões ao protestantismo na região, como também registra-se a única ocorrência de
oposição à mensagem de Manoel Moises.
A presença de Manoel Moises na região teve grande repercussão, tanto que era do
conhecimento de muitos uma composição, uma moda de viola, cuja letra se refere a imagem
do pregador protestante. Foi diante de lembranças vagas e incompletas que se deu o registro.
Segundo a colaboradora, a sra. Ilda José Viana, era mais ou menos assim:
9
Termo de origem bíblica.
10
Arquivo pessoal. A antiga igrejinha em Ebenézer está abandonada, mas ainda resiste aos novos tempos e
diante da necessidade de abertura de pastos para os animais da propriedade. Nota-se que é uma construção
rústica, construída com tijolos, barro e vigas de aroeira.
1467
É uma grande ilusão
Até quem não sabe ler
Anda com o livrinho na mão (FLOR, 2012)11.
At Fazenda Bolívia, near Formosa, an illiterate man who became truly converted through
having the bible read to him, has been leading the people spiritually the last couple of years,
and many have become converted through him. It was a marvelous thing to meet an talk
with this man of God and preach to nearly 150 people who gathered in from 20 miles or
more aroud 60 men in 2 days had made us a landing strip. Several have joined the church.
Each Sunday teams of two or more go out to hold meetings in different places. “Manoel
Moiséis” is the name of this extraordinary man (NEWS LETTER FOR JUNE, 1949 ).
Há também o registro de que a Fazenda Baixão era o ponto de partida para a evangelização
aos sábados e domingos (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA GRANDE, Atas
do Conselho, 1988). Neste cenário de movimentação e desenvolvimento do protestantismo,
a Fazenda Baixão era comprovadamente outra importante referência para os presbiterianos,
justamente por pertencer a uma das pessoas que primeiramente aderiram ao
presbiterianismo naquele cenário: Mãe Bela. A Ata registra a adesão de Mãe Bela ao
protestantismo com detalhes importantes.
11
Segundo a sra. Ilda José Viana, estes versos foram criados em um pouso de folia por seu sogro, o sr. João
Ribeiro Viana, hoje já falecido. Entrevista concedida em 26 de setembro de 2011.
12
Harry P. Midkff, membro da CBM e também integrante da Comissão Central do Centenário da Igreja
Presbiteriana do Brasil (IPB).
1468
Durante a semana, dona Ana13 ensinava aos alunos ler e escrever, mas também ensinava a
palavra de Deus. Nos fins de semana, sempre ia para o Baixão, precisamente para a casa de
Mãe Bela que a tempo era crente. E por sinal, muito perseguida, muitas vezes pelos
próprios irmãos de sangue. Queremos lembrar uma frase muito dita por ela: “aceitei a
Cristo, não só por mim, mas por causa dos meus filhos”. Ela era viúva e o seu maior desejo
era ver os filhos crescerem honrados (IGREJA PRESBITERIANA DE CABECEIRA
GRANDE , Atas do Conselho, 1988).
Mãe Bela, neste contexto, não só recebia os pastores, missionários e missionárias em sua casa,
como também constantemente andava com Manoel Moises para a realização dos cultos. Não
só porque era da região, mas principalmente por ser parteira e possuir a função necessária
àquele contexto. Com os conhecimentos médicos que possuía e sua confirmada atenção aos
problemas de saúde da população local, fato que a obrigava a conhecer a região, bem como
também as famílias e os seus respectivos endereços, ela foi um importante contato de Manoel
Moises.
É Mãe Bela a responsável pela doação da madeira usada para construir, em forma de mutirão,
a casa pastoral de Filadélfia14, em 1952, outra localidade de apoio aos serviços religiosos e
educacionais das missões presbiterianas. É ela também, a principal benfeitora à época da
construção do templo presbiteriano inaugurado posteriormente em 1970, pois foi a
responsável pela doação do terreno onde hoje se realizam cultos e escolas bíblicas dominicais
da IPCG.
Além de toda a importância dentro da IPCG, Mãe Bela teve forte atuação como parteira na
região de Cabeceira Grande. Com os conhecimentos que tinha da medicina rústica teve
grande participação e honrosa imagem na sociedade local. Em sua homenagem foi criada a
Creche Mãe Bela, hoje Centro de Educação Infantil Mãe Bela.
Consequentemente, a presença institucional da IPB, com o apoio das missões americanas, o
protestantismo ali foi bem sucedido, interagindo com a sociedade e a cultura locais. Mesmo
demonstrando o seu caráter civilizador e progressista, em sua forma institucional, acredita-se
que foi a forma simples como se apresentou primeiramente naquele contexto, através da
imagem e do trabalho do lavrador Manoel Moises, o maior fundamento para interação do
protestantismo com as culturas populares tradicionais na região. Julga-se que por esta razão,
13
Ana Correa, missionária da CBM.
14
Outro nome de forte tradição bíblica, comumente usado por fieis protestantes.
1469
é possível intuir que ali se desenvolveu o protestantismo rural, o que favoreceu e reforçou o
dialogo cultural entre a nova proposta religiosa e a sociedade local. Dentro deste contexto e de
forma pontual alguns fatores observados são relevantes: a noção de culto como festa, a crença
em seres fantásticos, como por ex. o Romãozinho, a crença em ritos protetivos e o uso mágico
de ervas em conformidade com a medicina rústica (FLOR, 2012).
É devido a inserção do protestantismo rural na localidade que Mãe Bela permaneceu com a
prática de parteira, sem observar na profissão, nenhum tipo de interdições negativas impostas
pela mensagem protestante.
Considerações finais
Embora Ferreira afirme que “desde o início a WBM, como outras missões, não pode
prescindir do elemento leigo nacional, [...] a referência ao trabalho dos evangelistas, homens e
mulheres é quase inexistente nos registros históricos da Missão” (1996, p. 26). O certo é que,
conforme afirma Leonard, “quando uma população está pronta ao conhecimento e aceitação
de uma nova ideologia, ela se propaga como um incêndio na floresta, por faíscas dispersas
levadas pelo acaso dos ventos, ou do Espírito” (2002, p. 101s).
1470
no árduo trabalho ao pé da máquina e mediante as doações que recebia pelos serviços
prestados aos doentes da região, a aquisição de um terreno, o qual foi ofertado à IPCG,
organizada em 1988, local onde hoje se localiza o templo presbiteriano na cidade.
Referências
CASTRO, Maurício Barros. História oral e cultura popular. In: Oralidades: Revista de
História Oral. NEHO/USP. São Paulo, Ano I, n° I, p. 51-57, Jan/Jun. 2007.
FLOR, Lauana Ananias. Manoel Moises, Mãe Bela e o protestantismo rural na história da
Igreja Presbiteriana em Cabeceira Grande (1947-1970). Dissertação (Mestrado em Ciências
da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012.
1471
READ, Willian R. Fermento religioso nas massas do Brasil. São Bernardo do Campo:
Imprensa Metodista, s/d.
Outros
NEWS LETTER FOR JUNE, 1949 , Pasta 1947- Diversos. Arquivo Presbiteriano.
Entrevistas
1472
1473
Reflexos da União Prussiana na formação de luteranismos no Rio
Grande do Sul: das comunidades livres até a fundação de sínodos
confessionais evangélico-luteranos
Introdução
Para entender a situação religiosa na Prússia é preciso levar em conta a formação nada
homogênea desse território. Com uma política de anexação de territórios, a Prússia do século
XVI ao XIX obteve um crescimento expressivo tanto no âmbito territorial quanto no
populacional17. Entre 1740 e 1786, sob o reinado de Frederico II, o Grande, aconteceram as
ampliações territoriais mais expressivas, quando a população chegou a 5,4 milhões de
habitantes (WACHHOLZ, 2004, p. 91).
16
Bacharel em Teologia pela ULBRA. Especialista em Teologia Ministerial Pastoral pelo Seminário Luterano
Concórdia, São Leopoldo. Graduando em História pela UFU. Contato: renatofarofa@yahoo.com.br.
17
Segundo Wachholz (2004, p.91), a cidade de Brandemburgo, ao norte da cidade de Wittenberg, é o centro e
ponto de partida para a formação e ampliação da Prússia. Entre o ano de 1608 a 1619, houve a anexação dos
territórios de Kleve, Mark e Ravensburgo e do então ducado da Prússia. Com a união destes territórios a pequena
Brandemburgo cresceu consideravelmente e a partir de então passou a se denominar de Prússia. No reinado de
Frederico Guilherme, o Grande (1640-1688), o território sofreu alterações. Estas ocorreram devido ao final da
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e a Paz de Westfália (1648) permitiu as anexações de Magdeburgo,
Halberstadt e Minden ao oeste. Com isso a Prússia chegava na metade do século XVIII com aproximadamente
1,5 milhão de habitantes e com uma superfície que superava os 100 mil Km 2.
1474
Estas alterações transformaram a Prússia em um grande território geograficamente unificado.
Mas, este mesmo território não tinha uma administração coesa. Isto era o resultado de um
estado unido por um Rei e governado por diferentes Duques, Príncipes e Condes. A soma de
ducados, principados, condados e cidades livres chegava ao total de 348. Essa diversidade
administrativa tinha grande influência no aspecto religioso do povo.
Assim, ao falarmos de igrejas na Prússia, devemos lembrar que elas são provinciais. É
importante lembrar que em nenhuma Província existia uma única denominação. Em todas as
províncias havia luteranos, reformados, católicos, judeus e menonitas, estes dois últimos em
pequeno número (Idem, p.95). Contudo, existiam aquelas com predominância de uma
denominação18. A política contribuiu e muito para esta diversidade confessional. Ao longo
dos anos, a Prússia recebeu as mais diversas formas de expressão de fé cristã e deve tudo isso
a política de anexação de territórios.
Desde a Reforma, as guerras contribuíram para transformar e alterar não só o mapa político
europeu, como também a fazer com que diferentes denominações cristãs (em especial
18
Conforme Wachholz (2004, p.92), Brandemburgo em 1539 aderiu ao luteranismo, e mesmo com a primeira
anexação feita nos anos de 1608 a 1619, não teve alterações quanto a isto. Esta província que abrangia Berlim no
século XIX possuía apenas 34 comunidades reformadas, sendo que o luteranismo era dominante.
Semelhantemente, o território da Pomerânia era predominantemente luterano. Com exceção de cinco
comunidades reformadas, o restante da população, ou seja, 98,44% professava a fé luterana. Com predominância
reformada, havia apenas algumas cidades como a de Lingens e Tecklemburgo. Nelas, o luteranismo era
praticamente inexistente. Diferente de tudo isto, era a realidade das províncias da Renânia e Westfália, nelas o
catolicismo era dominante.
1475
luteranos e reformados), tivessem de conviver sob um mesmo território. Toda essa
multiplicidade denominacional na Prússia afetou o reinado (1770 – 1840) de Frederico
Guilherme III. O rei da Prússia que era de confissão reformada, casou-se com uma luterana. A
confissão diferente de ambos não impediu o casamento do rei, mas impossibilitava que ele e a
esposa pudessem participar conjuntamente da Santa Ceia. Este foi o motivo principal que em
conjunto com a comemoração dos 300 anos da Reforma (TEICHMANN, 1996, p.16), levou o
rei Frederico Guilherme III a dar início ao processo de união:
No século XVII, a casa reinante tornara-se calvinista. Frederico Guilherme III (1770-1840),
casado com uma luterana, não podia comungar com ela na Eucaristia. Usando os 300 anos
das 95 teses de Lutero, em 31 de outubro de 1817, buscou reunir luteranos e calvinistas em
uma só igreja (DREHER, 1999a, p.142).
O propósito do rei era que, a partir de então, passassem a existir em seu reino, somente
católicos e evangélicos. Mas essa união não foi tão simples assim. Muitas diferenças que
separavam luteranos de reformados teriam de ser deixadas de lado. Para colocar em prática
suas ideias e poder comungar junto com a esposa, Frederico Guilherme III precisava de uma
nova ordem litúrgica. Essa ordem não poderia ser luterana ou reformada, pois os conceitos
eucarísticos eram bem distintos. Por isso, o rei ordenou elaborar uma nova ordem litúrgica,
assim “Os ministros estavam prontos a abolir os nomes ‘luterano’ e ‘reformado’ e só usar o
(nome) ‘evangélico’. Mas quando o rei produziu uma nova liturgia, ele (o rei) ficou chocado
por encontrar uma discordância quase unânime por parte do clero” (NICHOLS, 1956, p.154).
Essa nova ordem (agenda litúrgica) não agradou a todos. Tanto reformados quanto luteranos
ficaram descontentes. E, além disso, o nome evangélico passou a ser adotado para denominar
os protestantes na Prússia.
Apesar de ser colocada em uso essa nova liturgia, ainda houve grupos que resistiram e não a
usaram. Em vista disso, no ano de 1830, em comemoração aos 300 anos da Confissão de
Augsburgo (apresentação da doutrina luterana ao imperador Carlos V e aos príncipes
alemães), Frederico Guilherme III avançou o processo de união. Foi nesse ano que o rei da
Prússia oficializou a Igreja Evangélica Territorial da Prússia. E com ele isso outorgou um
decreto tornando obrigatório o uso da nova liturgia; “O rei da Prússia sabia que a causa da
união avançaria pela adoção de uma agenda comum. Uma ordem administrativa datada em 30
de abril de 1830, autorizava o uso da força do estado para superar a resistência a União”
(SCHULTZ, 1964, p.60).
1476
Essa falta de diálogo e uso da força por parte do estado geraram muitas controvérsias. O
resultado desta oposição não poderia ser outro do que de um rompimento com a ideia de
união entre evangélicos. Especialmente entre os luteranos, a união não foi bem aceita. Nesse
grupo surgiu um movimento de reavivamento confessional que se opunha a toda e qualquer
forma de unionismo (WACHHOLZ, 2003, p.59-63).
Com a União realizada por Frederico Guilherme III, deu-se início ao movimento de
consciência confessional. No século XIX surgiram com isso muitos defensores da fé
genuinamente luterana. Entre eles Wilhelm Löhe (1808-1872), que se preocupou em preparar
uma liturgia essencialmente luterana e Johannes Konrad von Hofmann (1810-1877),
especialista em Lutero, colaborou muito com este movimento (ALAND, 1986, p.335).
Mas o principal expoente deste período foi Claus Harms (1778-1855). Primeiro, em resposta à
comemoração dos 300 anos da divulgação das 95 teses de Lutero, feita pelo rei da Prússia, ele
publicou 95 teses contra a União Prussiana. E, depois, fazendo uma convocação a todos que
estivessem de acordo com sua posição em defesa da fé luterana:
As seguintes teses são dirigidas contra todo tipo de erro e confusão na Igreja Luterana. O
autor está preparado para explicá-las em maior detalhe, para apoiar, defender e assumir
responsabilidade por elas, caso esta tarefa ficar grande demais para ele, ele pede a todos os
luteranos genuínos e aqueles que estejam de acordo com ele, e que tenham bom domínio da
fala e de escrita, que lhe dêem apoio fraternal (SCHULTZ, 1964, p.66).
Este movimento não obteve muito sucesso, mas mesmo assim serviu de base para a fundação
de comunidades luteranas livres na Europa e fora do velho continente, como no caso da LC-
MS (Lutheran Church – Missouri Synod) nos Estados Unidos em 1847, fundado por saxões
não atingidos pela União Prussiana, mas estritamente luteranos.
Assim como não se pode separar o luteranismo no sul do Brasil da imigração alemã 19, não
pode haver separação da chegada desses imigrantes com o propósito do império brasileiro do
século XIX. Como não se podia usar mão-de-obra dos escravos, para poder entrar no mercado
internacional de capital e divisão de trabalho, o Brasil teve de buscar outro tipo de
19
Denominaremos os prussianos neste trabalho de alemães, uma vez que os trabalhos publicados assim
identificam esses imigrantes oriundos deste território.
1477
trabalhadores que substituíssem os escravos. Este era um dos motivos para trazer colonos
europeus para o Brasil.
No caso do Rio Grande do Sul, existia um fator determinante para o interesse na chegada de
europeus. A então província de São Pedro era praticamente despovoada e suas fronteiras eram
vulneráveis a qualquer investida dos países vizinhos. Sabendo dessa situação, D. Pedro I
solicitou a vinda de mais de 3000 soldados prussianos, sendo na maioria oriundos de casas de
correções, para a formação de um exército no RS (HUNSCHE, 1975, pp.38-40). Estes
elementos ajudaram para a solidificação das fronteiras nacionais, processo que levou muitos
anos e com sucessivas guerras (ROCHE, 1969, pp.11-12)20.
Passados sete anos da União Prussiana, chegam ao Brasil esses imigrantes em sua maioria
protestantes. Diante da miséria causada pelo capitalismo industrial que acabou por formar no
velho continente uma grande massa de desempregados (DREHER, 1999b, p.111), muitos
colonos não tinham alternativas senão migrar. Além de uma situação política turbulenta no
RS, os imigrantes evangélicos tinham de enfrentar uma legislação religiosa que não lhes eram
favorável. No Brasil, toda e qualquer religião que não a católica, era apenas tolerada. Com
isso, os protestantes tinham de construir seus templos sem a aparência de igreja, e ter seus
próprios cemitérios, pois os públicos eram somente para os católicos (TEICHMANN, 1996,
p.39-40).
Somando a este quadro, existia uma diversidade religiosa entre os imigrantes. Além de alguns
católicos, os evangélicos vinham de várias denominações:
Também sob o ponto de vista sociorreligioso era grande a variedade dos emigrantes. Além
dos mencionados livres-pensadores e católicos, havia entre os protestantes, que constituíam
mais da metade dos emigrantes, luteranos, reformados, unidos, bem como, entre os teuto-
russos, especialmente menonitas (PRIEN, 2001, p.30).
Esse número de evangélicos aumentou durante o século XIX no RS. Estima-se que, nos
primeiros cinquenta anos de colonização, viviam aproximadamente 20.000 evangélicos no
estado, e que pelo final do mesmo século a população evangélica já se aproximava dos 80.000
(FISCHER, 1986, p.34); a grande maioria oriunda da Prússia.
20
O autor relata que a fronteira com o Uruguai só foi reconhecida em 1851.
1478
O período congregacionalista e a formação de comunidades livres
A situação religiosa nas primeiras décadas da imigração foi bem difícil para os protestantes. O
atendimento pastoral era quase inexistente. Entre 1824 até 1864 vieram ao Brasil menos que
20 pastores (PRIEN, 2001, p.50) e ao RS apenas seis pastores ordenados, sendo que apenas de
um se poderia confirmar o estudo teológico (DREHER, 1984, pp.66-69)21. O assim chamado
período congregacionalista ocorreu entre os anos de 1824 a 1864. Por isso, esse período
também é denominado de “seca espiritual” (FISCHER, 1986, p.35).
Chegando aqui, os imigrantes se defrontaram com uma situação nova e desconhecida para
eles. Não havia Consistório. O estado não providenciava nem sequer escolas, e muito
menos cuidava dos assuntos da Igreja. Se quisessem ter igreja, os imigrantes teriam que
usar seus próprios recursos. E, de fato, eles não ficaram de braços cruzados. Fizeram o que
puderam com seus poucos recursos, seus limitados conhecimentos e com experiência
nenhuma na questão de uma escola e igreja independente do estado. O modelo que
conheciam era o de uma igreja territorial. Adaptaram esse modelo, na medida do possível,
ao novo ambiente. O estado não regulamentava e controlava a Igreja? Então, eles mesmos
teriam que tomar o lugar do estado, ou pelo menos o do patrono local, e estabelecer igrejas,
regulamentar as taxas a serem pagas ao pastor, etc (BUSS, 2000/2, p.17).
21
Conforme o autor, o único pastor seria Johann Peter Christian Haesbert. Nasceu em 1807 na cidade de Cleve,
Alemanha. Migrou para os Estados Unidos e estudou teologia no seminário luterano de Gettysburg. Chegou ao
Rio Grande do Sul em 1845 e assumiu a comunidade de Hamburgo Velho.
1479
Devido a uma estrutura eclesiológica e comunitária inicialmente marginalizada, os imigrantes
tiveram dificuldades na participação da sociedade como um todo. Isso contribuiu para um
futuro pensamento provinciano dos luteranos (DREHER, 1988, p.53-54).
Nessa estruturação eclesiástica que vai surgindo, tudo é “nosso”, na expressão comunitária
desses agricultores: nossa Igreja, nossa escola, nosso cemitério, nosso pastor. A
consequência eclesiológica dessa Igreja comunitária é que a Igreja, com o passar dos anos,
mais e mais, vai terminar nos limites da colônia, faltando a percepção para a catolicidade da
Igreja (DREHER, 1999b, p.121-122).
Somente nos anos de 1863 e 1864 é que a situação começa a mudar entre os luteranos no RS.
Com a vista em 1863 de von Eichmann (embaixador da Prússia), ficou constatada a situação
em que se encontravam espiritualmente os colonos aqui chegados. Eichmann fez contato com
o Evangelisher Oberkirchenrat de Berlim (CSEB), e o mesmo providenciou um pastor para o
RS (REHFELDT, 2003, p.24).
Hermann Borchard foi o pastor que aceitou o chamado. Com sua chegada em 1864, o
luteranismo institucional começa a ser organizado no RS, não só porque ele era um pastor
com formação teológica, mas devido ao fato dele manter um bom relacionamento com o
diretor da “Sociedade Evangélica para os Alemães Protestantes na América do Norte”
(SEAPA), o Dr. Friedrich Fabri (HESS, 1986, p.8). Quatro anos após a chegada do pastor
Borchard à São Leopoldo, mesmo com a resistência de muitas comunidades 22, foi fundado,
em 11 de fevereiro de 1868, por iniciativa do mesmo, o primeiro sínodo evangélico no RS. A
fundação deste sínodo tinha os seguintes objetivos:
22
Entre os anos de 1864 a 1886 foram enviados ao Rio Grande do Sul 23 missionários de diversas regiões da
Alemanha (PRIEN, 2001, p.72-73). Os missionários que chegaram naquele estado enfrentaram uma série de
dificuldades. Eles tinham a difícil tarefa de conquistar a confiança dos evangélicos do RS (DREHER, 1984,
p.73). Essa resistência era resultado de um longo período sem atendimento que essas comunidades enfrentaram.
Somando a isso o sentimento de liberdade e de independência, muitos evangélicos viam na figura do pastor
ordenado um intruso, pois ele não teria ajudado na formação da comunidade e agora viveria às custas da mesma
(TEICHMANN, 1996, p.62-64).
1480
A iniciativa de Borchard concretizou-se em 1868, quando foi fundado o Sínodo
Teuto-Evangélico da Província do Rio Grande do Sul (Deutsch-Evangelische
Synode der Provinz Rio Grande do Sul). Como um dos objetivos principais era
lutar contra os pastores não-ordenados, somente foram aceitos, no Sínodo, pastores
ordenados e comunidades que tinham um pastor ordenado trabalhando, ou
esperavam receber alguém com tal qualificação (TEICHMANN, 1996, p.46).
Este sínodo teve a participação de nove pastores e de nove comunidades na sua fundação. Não
foi um número expressivo, até porque não havia muitos pastores ordenados neste estado e este
acabou por ser um sínodo de curtíssima duração. Já no ano de 1875, ele foi desfeito, devido
especialmente em função da independência das comunidades e a diversidade confessional dos
clérigos e comunidades.
A situação confessional deste primeiro sínodo foi sem dúvida um fator importante. Essa
questão confessional consistia no fato de que agora o sínodo deveria trabalhar em conjunto e
sob uma única linha doutrinária. Até então, não havia divergências porque as comunidades
eram totalmente independentes uma das outras. Mas, com a fundação do sínodo, a diversidade
confessional instalada no RS prejudicou o andamento da organização sinodal (HESS, 1986,
p.17).
O quadro começou a mudar no ano de 1874, com a chegada de Hamburgo (Alemanha) à São
Leopoldo, do Rev. Dr. Hermann Wilhelm Rotermund que declarava-se confessionalmente
teólogo do cristianismo positivo (TILLICH, 1999, p.123)23. O nome de Rotermund está
intimamente ligado à fundação do Sínodo Riograndense. Ele foi enviado pelo CAPSB
(Comitê para os Alemães Protestantes no Sul do Brasil) a pedido de Friedrich Fabri ao RS
para tentar revitalizar o sínodo existente (PRIEN, 2001, p.118). Durante o período de 1870,
ano da saída de Borchard, até o ano de 1886, ano da fundação do Sínodo Riograndense, as
23
Tillich explica que o cristianismo positivo, desenvolvido por Schleiermacher, se baseava no conhecimento
positivo de uma realidade histórica. Assim se fazia distinção entre teologia filosófica, histórica e prática. E a
teologia dogmática agora pertencia a teologia histórica e não mais à filosófica.
1481
condições para a fundação de uma igreja institucionalizada melhoraram consideravelmente:
Rotermund em nenhum momento desistiu de uma união eclesiástica. O que de fato beneficiou
os projetos de Rotermund foi o crescente número de pastores missionários enviados ao RS.
Em 1886, já atuavam em torno de 20 pastores, enquanto que em 1868 eram em torno de 10
clérigos. Isso colaborou contra o independentismo das comunidades. Tendo em vista esta
situação mais amistosa, Rotermund enviou circulares para as comunidades convocando-as
para os dias 19 e 20 de maio de 1886, em São Leopoldo, para discutir a fundação de um novo
sínodo. Após discutirem a proposta de organização, sete pastores e sete leigos assinaram o
documento que marca a fundação do Sínodo Riograndense.
24
No Rio Grande do Sul ele constatou nas comunidades de São Leopoldo e Lomba Grande
(município de Novo Hamburgo), que os protestantes eram em sua maioria reformados, e com
isso procurou desde o inicio se adaptar à situação na qual ele se encontrava. Diferente era a
situação no sul do Rio Grande do Sul, onde existiam evangélicos de origem pomerana
(REHFELDT, 2003, p.41-42), que eram em sua maioria luteranos.
1482
Diante desta situação, o Sínodo Evangélico Alemão da Província do Rio Grande Sul, no que
diz respeito à confissão estaria de acordo com a Igreja Territorial Evangélica da Prússia
(WACHHOLZ, 2003, p.371). Essa confissão tinha caráter unido de acordo com os estatutos
da comunidade evangélica de São Leopoldo, que antes mesmo da fundação do sínodo já em
1865 adotava o prontuário evangélico-prussiano (Idem, p.464).
A fundação de uma igreja estritamente luterana no Rio Grande do Sul tem início na primeira
25
Wachholz (2003, p.146) explica que a união confederativa era diferente da absortiva. Na absortiva todas as
comunidades deveriam ser unidas sob uma mesma confissão, e na confederativa todas as comunidades eram
unidas em um sínodo, mas ficando livre no que diz respeito a postura confessional.
1483
década do século XX, ligado à concepção luterana da LC-MS que era contra qualquer tipo de
unionismo. Esta viria a ser a linha teológica de um novo sínodo entre os imigrantes no RS.
O Sínodo de Missouri (LC-MS) que foi fundado por alemães nos Estados Unidos em 1847,
manifestou no fim do século XIX sua preocupação pelos luteranos brasileiros sem
atendimento espiritual:
Essa preocupação com os irmãos luteranos brasileiros foi levada até a convenção da LC-MS.
E na convenção de 1899 ficou decidido iniciar um trabalho missionário no Brasil. Esse foi o
ponto de partida para o início da missão no Brasil, “a convenção agiu como resultado de um
senso de obrigação em relação aos irmãos luteranos alemães que estavam em situação de
abandono [espiritual]” (Idem, p.31-32).
26
Segundo Prien, a abolição da escravatura fez com que se incentivasse a vinda desses imigrantes para o Brasil
na busca de uma substituição da mão-de-obra. E a república oferecia melhores condições, no que diz respeito à
questões de ordem civil, ao imigrante europeu.
1484
cresceram para a marca dos 7.115 membros (Idem, p.116).
Considerações finais
Referências
ALAND, Kurt. A History of Christianity. Vol. II: From the Reformation to the Present.
Translated by James L. Schaff. Philadelphia: Fortress, 1986.
BUSS. Paulo W. Taxas e Outras Formas de Arrecadar Dinheiro na IELB (Histórico). In: Vox
Concordiana Suplemento Teológico. Ano 15 (2000/2).
DREHER, Martin N. Aspectos Teológicos da Ação Social em Lutero. In: __________ (org).
Reflexões em Torno de Lutero. Vol. III. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988.
__________. Hermann Borchard em São Leopoldo. In: ______, ______; (org). Simpósio de
História da Igreja. São Leopoldo: Rotermund S.A; Editora Sinodal, 1986.
1485
__________. Coleção História da Igreja. Vol. IV. A Igreja Latino Americana no Contexto
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HESS, Ulrich. Os Inícios da Formação da Estrutura Eclesiástica no Rio Grande do Sul. In:
FISCHER, Joaquim; (org). Ensaios Luteranos: Dos Primórdios aos Tempos Atuais do
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TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. 2.ed. Trad: Jaci
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1486
WACHHOLZ, Wilhelm. “Atravessem e Ajude-nos”. A Atuação da “Sociedade Evangélica de
Barmen” e de Seus Obreiros e Obreiras Enviados ao Rio Grande do Sul (1864-1899). São
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ZIERER, Otto. Pequena História das Grandes Nações: Alemanha. 10.ed. Trad. José
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1487
GT13 – História e historiografia do
protestantismo no Brasil
Coordenadora
Resumo
1488
A ignorância de um pensar: a história da ausência do pensamento
protestante sobre a questão social no Brasil
José Edson do Carmo Lima1, Wagner Pinheiro da Silva2
Introdução
Em suma, esse processo de formação foi incapaz de absorver importantes influências que
culminariam na consolidação de uma melhor e mais ampla compreensão da questão social, a
exemplo disso, podemos destacar o pensamento protestante, que por sua vez foi visivelmente
ignorado.
A má interpretação do termo Estado laico no Brasil tem de fato, contribuído para ampliar o
desprezo a qualquer vertente de inspiração religiosa, sob alegação da cisão da Igreja-Estado, a
influência do pensamento protestante ficou à margem do processo histórico de formação
social.
1
Graduando em Serviço Social pela Faculdade Vale do Salgado (FVS). Contato: edsoncl.lc@hotmail.com.
2
Graduando em Serviço Social pela FVS. Contato: wagnerumierd@gmail.com.
1489
pensar é grande. Já para os protestantes a responsabilidade social da igreja é muito maior que
filantropia.
E esta não deixa o Estado de lado como se acredita, a igreja é entendida como a consciência
do Estado. Calvino tinha a visão de que tanto a igreja como o Estado serviam aos propósitos
de Deus, e se este não praticasse a justiça era dever da igreja fiscalizar e cobrar do Estado que
cumpra seus deveres e até resisti-lo se este o forçar que pratique atos contrários ao
cristianismo. Foi com esta visão que os puritanos ingleses fizeram sua revolução nos idos de
1640, e como diria Christopher Hill, um marxista:
Os ingleses tiveram que enfrentar situações revolucionárias inesperadas, durante dos anos
de 1640 e 1650, sem nenhuma orientação teórica, como a que Rousseau e Marx deram a
seus sucessores franceses e russos, e sem a experiência de acontecimentos anteriores que
pudessem ser chamados de revoluções. Eles tiveram de improvisar. A Bíblia em inglês foi o
livro ao qual naturalmente voltaram-se em busca de orientação (HILL, 2003, p. 29).
Novos grupos protestantes como metodistas e cristãos bíblicos, pregadores leigos, também
contribuíram para a formação desta cultura radical, como o metodista William Wilberforce
que dedicou sua vida para por fim a escravidão no Império Britânico. Para este grande
historiador marxista, algumas denominações protestantes fizeram parte dos grupos radicais
que contribuíram para a formação da consciência de classe dos trabalhadores ingleses.
É curioso o fato disto ser completamente ignorado no Brasil. Se dois dos maiores
historiadores marxistas afirmam ser possível ao protestantismo criar concepções políticas e
ajudar na formação da consciência de classe, por que o pensamento protestante sobre a
questão social é exaurido pelo Serviço Social brasileiro? Este é um questionamento pertinente
em um tempo onde o protestantismo cresce tanto no Brasil.
1490
As instituições criadas por protestantes como a Associação Cristã dos Moços, o Exército de
Salvação, a Visão Mundial, cada uma dentro de seu contexto, buscam a valorização da pessoa
humana, a luta pelos seus direitos, sua autonomia como cidadão e justiça social. A diferença é
que entendem esses conceitos fora dos padrões marxistas. A igreja se vê como sal e luz, tem
motivações religiosas, mas produz eficazes transformações sociais. A história destas
instituições testemunham isso.
Hoje o Serviço Social defende em seu projeto ético-político a metodologia de atuação como
interventiva e de transformação da realidade, embasado no método dialético e materialista do
alemão Karl Marx, pregando contra a exploração, alienação e perda de direitos. Partindo da
crença no verdadeiro sistema socialista baseado no manifesto do partido comunista, dentre
outros, enfatizando a construção de um pensamento ideologicamente crítico-transformador
abdicando ao clientelismo, assistencialismo e filantropia para obter uma possível construção
coletiva de consciência de classe, onde os mesmos lutam pela concretização dos seus direitos
e liberdades. “Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais
democráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com o constante
aprimoramento intelectual” (BRASIL, Lei 8.662/93, principio VII).
1491
questão social, oriundas dos efeitos nefastos da conjuntura socioeconômica nacional, que por
sua vez explicitava-se em maior escala principalmente na região Nordeste.
A atenção especialmente dada para com o possível enfrentamento da questão social, assim
como, a preocupação de determinadas entidades protestantes de mudar a sua forma de atuação
objetivando alcançar não só melhores, como também resultados de maior magnitude na
própria sociedade, torna-se, algo surpreendentemente inovador e inesperado conforme
assevera o cientista político Dr. Joanildo Burity.
O que é notável não é que falassem em revolução, mas que eles falassem em revolução.
Afinal, lendo-se os jornais, revistas, manifestos e outros documentos da época, o discurso
da ‘revolução’ é altamente freqüente. Fossem indivíduos, partidos, organizações civis ou
militares, de boca em boca, a ‘revolução’ se repetia. Mas que os protestantes, sabidamente
ausentes e resistentes a qualquer aproximação das ‘coisas do mundo’, ou seja, das questões
e problemas sociais e políticos, se pusessem lado a lado com os movimentos sociais e
políticos do período, isto sim, é digno de surpresa (BURITY, 2011, p. 13).
Durante a conferência foi realizada em sua totalidade seis palestras onde os integrantes se
debruçavam sobre as bases e princípios bíblicos relacionando-os com o cenário social,
político, e econômico do Brasil. Em suma, num âmbito teológico o reverendo João Dias
Araújo tratou do conteúdo revolucionário do ensino de Jesus sobre o reino de Deus,
compactuando com tal linha de pensamento o reverendo Joaquim Beato discursou sobre os
profetas numa época de transformações sociais, já o reverendo Edmond Sherrill discorreu em
relação da missão total da igreja numa sociedade em crise.
1492
Em relação à participação dos intelectuais convidados bem como a desenvoltura que
culminou na concepção de uma nova forma de pensar a ação social, podemos destacar o
doutor Celso Furtado que discorreu sobre o Nordeste no processo revolucionário brasileiro, o
professor Juarez Alves que fez sua alocução sobre resistências às transformações sociais no
Brasil e o professor Paul Singer ressaltou sobre as mudanças sociais da sociedade
contemporânea.
Brasil estava dentro de um processo revolucionário diante do qual as igrejas não poderiam
se omitir. Por isso, a agenda da conferência contava com dois aspectos complementares: de
um lado, uma análise de conjuntura que seria processada por sociólogos e economistas
neutros, isto é, que nada tinham a ver com as igrejas e, de outro, propostas teológicas no
sentido de chamar a atenção das igrejas para o seu papel na situação histórica pela qual o
país passava. [...] As análises de conjuntura, cujo espaço era tomado pelas questões sociais
provocadas pela industrialização e pela crise do campesinato, foram feitas por Gilberto
Freyre, Celso Furtado, Paulo Singer e Juarez Rubem Brandão Lopes. A chamada à
responsabilidade das igrejas diante do “estado revolucionário” ficou a cargo de pastores
envolvidos com as “novas teologias”, como o luterano Ernst Schlieper, o metodista Almir
dos Santos, os presbiterianos Joaquim Beato, João Dias de Araújo e Sebastião Gomes
Moreira, e os episcopais anglicanos Edmund Knox Sherrill (bispo) e Curt Kleemann. A
Conferência do Nordeste, com repercussão nacional e internacional, causou grande impacto
dentro das igrejas. A situação agravou-se com a chegada de novo “bando de teologias
novas”, a intensificação do conflito entre fundamentalismo e ecumenismo e o golpe militar
de 64 (MENDONÇA, 2005, p. 62).
Estado laico é aquele em que as instituições religiosas e políticas estão separadas, mas não
é um Estado em que só quem não tem religião tem o direito de manifestar-se e qualquer
manifestação religiosa deva ser combatida, para não ferir suscetibilidades de quem não
acredita em Deus [...] na concepção dos que entendem que num Estado Laico, sinônimo
para eles de Estado Ateu, só os que não acreditam no Criador é que podem definir as regras
de convivência, proibindo qualquer manifestação contrária ao seu ateísmo ou agnosticismo,
1493
teríamos uma autêntica ditadura da minoria contra a vontade da esmagadora maioria da
população (MARTINS, 2012).
Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar
o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação
dos homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus,
toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui
uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos algumas vezes
considerado a evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas. Embora a
reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social
evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o
envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são
necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por
nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica
também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de
discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que
existam [...] a salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de
nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta (LAUSANNE, Suíça,
1974, Parágrafo 5º).
O Pacto de Lausanne de modo inovador desafiou os cristãos a cogitarem juntos, uma nova
forma de evangelismo, diferente do modelo até então utilizado, direcionando-os assim para a
concretização de um pensamento que vislumbrava a necessidade de criar de maneira coletiva
uma conscientização da responsabilidade social cristã, onde a mesma esta diretamente ligada
1494
para com a compreensão do meio social da qual esta subentendida em sua conjuntura uma
série de contrastes e problemas que merecem urgentemente de uma atenção especial.
Seu discurso repercutiu em nas diferentes nações presente no evento, incluindo o Brasil,
ocasionando um grande desdobramento na própria natureza da evangelização. Justamente por
isso foi criada também uma comissão da qual seria encarregada para dar abertura e
continuidade num aprofundamento cada vez maior da ação social cristã, foi assim chamada de
Lausanne Committee for World Evangelization (LCWE), sob a presidência do evangelista
canadense, Leighton Ford.
Não há lugar mais político do que uma igreja. O que são os sistemas episcopal,
presbiteriano e congregacional senão formas eclesiásticas de governo? O que fazemos
quando elegemos um pastor ou excluímos um membro? Onde encontraríamos tão
representadas as fraquezas humanas, o orgulho e a inveja, a luta pelo poder, as
“queimações” e os conchavos, as tendências e os partidos (de Paulo, de Apolo...)?
(CAVALCANTI, 2002, p. 15).
Para Robinson Cavalcanti a própria vida eclesiástica de um protestante o forma como um ser
político. E ele não para por aí, praticamente clama a participação protestante na vida política
do Brasil, citando a necessidade de uma maior conscientização política, já que julga seus
próprios irmãos de fé acomodados ou com visão restrita em relação à atuação na vida política
do país:
1495
Ser conscientizado é dever de todo cidadão. Somente as minorias privilegiadas, que
monopolizam o exercício do poder, é que não estão interessadas nesse processo, antes
preferindo a apatia e a ignorância que tanto as beneficia. Ressaltamos a necessidade de
evitarmos uma conscientização unilateral (uma só fonte), pois um amadurecimento político
pressupõe uma absorção seletiva, um acesso a dados e opiniões de diversas tendências e
procedências. Sendo a atividade política algo necessário, válido e digno, os cristãos,
esclarecidos, devem se fazer presentes, interessados em gerir alguma coisa pública (res
publica), não só para assegurar os seus direitos e cumprir seus deveres (e os de sua família,
de sua igreja, de sua categoria profissional etc.), mas também para permear a sociedade de
valores que redundem em uma maior benefício para todos e cada um. É o que a Bíblia nos
ensina e o que a história atesta (CAVALCANTI, 2002, p.16 e 17).
Considerações finais
De maneira contraditória não vemos uma difusão em nosso país de manifestações tão
importantes das quais marcaram, não somente a história do pensamento protestante, como
também a iniciativa de almejar e mudar o contexto político e socioestrutural dentre outros,
consequentemente não apenas proporcionando uma simples alusão a um marco histórico, mas,
sobretudo, uma completa reflexão das novas configurações sociais.
Em meio a tempos de mudanças no sistema capitalista o Serviço Social brasileiro tem muito o
que ganhar conhecendo mais a fundo os teóricos protestantes da questão social. E só assim
honrará o princípio do pensamento pluralista de seu código de ética. Diante de tantas e
inegáveis contribuições do pensamento social protestante, respaldados no presente artigo.
Continuar alheio a essas contribuições é inaceitável em um país com 45 milhões de usuários
protestantes.
1496
Referências
HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. São Paulo: Editora
Civilização Brasileira, 2003.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. São Paulo, SP,
Editora Paz e Terra, 2002.
Internet
MARTINS, Ives Ganga da Silva. Estado laico não é estado ateu. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2012-nov-26/ives-gandra-estado-laico-nao-estado-ateu>. Acesso
em 10 de julho de 2013.
1497
1498
“A saga” de Eurico Nelson em Belém do Pará: relatos de outra
história
Ezilene Nogueira Ribeiro1
Introdução
Embora seus biógrafos batistas afirmem que Eurico Nelson deixou o “norte nevoso” da
Suécia e foi para a “fornalha Equatorial”, superdimensionando àquela ideia de sacrifício dos
mitos fundadores, observei que o contexto econômico da época lhe foi generosamente
favorável. Muitos imigrantes por conta do ciclo estavam adentrando na Amazônia, uns
subvencionados pelo governo paraense, outros por conta própria, já que o sonho da riqueza
era a sensação mais evidente no momento.
1499
representantes das organizações batistas. Fiz um recorte dessas cartas, a partir do ano de 1898,
quando Eurico Nelson já estava efetivamente vinculado a uma junta batista, já que em data
anterior, embora não vinculado à junta alguma, mas em nome da igreja batista, realizou
atividades missionárias na condição de voluntário.
O trabalho do historiador paraense José Ronaldo Trindade foi importante nesse trabalho, pois
apresentou além dos sujeitos ébrios, meretrizes e cafetinas que destacou no seu trabalho como
sujeitos simples que “teciam suas tramas no plano do cotidiano” (TRINDADE, 1999, p. 11)
outras pessoas, que também pobres e excluídas, ficaram muito tempo “escondidas” da
historiografia oficial. Trindade estudou um dos bairros centrais mais antigos de Belém. Estou
me referindo ao bairro da Campina,3 local em que o historiador observou qual era a vivência
dos indivíduos que ali forjavam suas atividades de lazer e trabalho a partir do critério das ruas,
concluindo que eram pessoas que viviam em cortiços ou em outros tipos de habitações
coletivas conhecidas como casa de cômodos, ou ainda “hospedados em estalagens ou em
hotéis que utilizavam como locais voltados para a prostituição, jogo ou outra atividade”
((TRINDADE, 1999, p.14).
Mas sobre a população que transitava na cidade, visualização imprescindível na feitura deste
trabalho, o autor identificou a presença de imigrantes estrangeiros de diversas nacionalidades:
turcos, árabes, judeus marroquinos, italianos, espanhóis, norte-americanos, húngaros,
franceses, “todos convivendo na cidade e desenvolvendo atividades variadas” (TRINDADE,
1999, p.48), além de migrantes nordestinos, negros, índios e mestiços, afirmando que essa
miscelânea étnica compunha um cenário que “maquiava” dos visitantes recém-chegados as
cenas reais que se queriam apresentar pelas elites e era para Trindade, “a pluralidade cultural
do lugar” (TRINDADE, 1999, p. 48).
O resultado disso era uma grande diversidade étnica que confluía para os espaços da rua do
bairro da Campina, o bairro “mais agitado do final dos oitocentos” (TRINDADE, 1999, p.48),
concentração justificada pela insuficiência de indústrias em Belém e para a formação de
bairros operários nas áreas periféricas, principal alternativa do trabalhador do setor terciário e
3 Rotulado como o bairro das ruas de marginalidade e prostituição em Belém, até hoje.
1500
motivo suficiente para que “qualquer pessoa interessada em manter alguma atividade de
subsistência procurasse fixar moradia nessas redondezas” (TRINDADE, 1999, p. 48).
Trindade (1999) afirma ainda que o bairro da Campina era de fato o bairro mais populoso da
época e também abrigava o centro comercial da cidade, muito agitado na época. Foi sem
dúvida, um dos mais procurados pelos recém-chegados que pretendiam pleitear algum tipo de
ocupação “seja no comércio ou nos serviços públicos ou através de expedientes”
(TRINDADE, 1999, p.45), embora sua intenção na pesquisa fosse o de compreender como
todas essas pessoas experimentavam a diversidade de referências culturais, hábitos, práticas e
línguas.
Uma das características mais marcantes das ruas do bairro da Campina era a diferença social
latente que dividia seus moradores. Alguns habitavam suntuosos sobrados de até três
pavimentos, o que já denotava uma diferença marcante em relação aos outros moradores que
viviam em cortiços, homens pobres que moravam na mesma rua ou na rua seguinte, próximas
a ruas em que podia haver vários sobrados ou nenhum, como a Rua General Gurjão e
Riachuello que eram consideradas ruas de meretrício.
O que se sabe a respeito de Eurico Nelson além das cartas, encontra-se publicado pela
denominação batista desde 1945. São biografias que relatam, de forma heroica, sua vida
missionária na Amazônia, sua participação na fundação de igrejas batistas no Brasil e sua
experiência como colportor4. Encontrei na Suécia algumas publicações a respeito da
imigração em massa de suecos para os Estados Unidos no início do século XIX, entre elas
havia uma que tratava sobre Eurico Nelson. É um texto de autoria de Jansson (1959) 5,
informando que Eurico Nelson nasceu em Bittinge, norte de Big Mellosa, em 09 de janeiro de
18636. Seu pai Anders Nilsson se converteu a fé batista em 27 de abril de 1859. Foi Anders
que começou a implantação do cristianismo batista em Stora Mellosa, na Suécia, com a
4
Àquele que vende Bíblias ou Novos Testamentos.
5
Segundo este texto, Erik Jansson, foi um dos missionários suecos pioneiros no Brasil em 1912. Foi publicado
durante as comemorações dos 100 anos da Assembleia de Eldstodens Molnstodens, em data provavel de 17 de
abril de 1959.
6
Esta data diverge da registrada por seus biógrafos batistas brasileiros.
1501
prática de reuniões em casa para escolas dominicais. Sua esposa Anna Maria, a princípio da
igreja luterana foi batizada depois.
Em 1854 ainda não havia igreja batista em Stora Mellosa, mas o pietismo foi um movimento
crescente nas paróquias luteranas da Suécia. Foi através do professor, organista e funcionário
paroquial John Palmqvist que o pietismo ingressou na paróquia de Stora Mellosa, embora
conflitos tenham surgido com os grupos tradicionais. Tais embates, segundo Jansson, acabou
ocasionando os processos migratórios para os Estados Unidos, já que os suecos que foram
aderindo a movimentação das igrejas livres foram considerados pelo governo como
dissidentes do luteranismo.
Segundo o historiador sueco Hans Norman (1974) em abril de 1869, varios suecos emigraram
para a América do Norte. Somente em Gotemburgo, havia aproximadamente 300 familias de
imigrantes e muitos eram batistas. Anders Nilsson tornou-se o líder do grupo maior. Anders
Nilsson e sua família se estabeleceu em Kansas, e fundou uma congregação batista com 25
membros.
Para Erik Jansson, em 10 de abril de 1877, Eurico Nelson foi batizado por seu próprio pai
Anders Nilsson aos 14 anos de idade, esta seria a idade de Eurico Nelson quando chegou na
América do Norte. Aos 22 anos sentiu que estava sendo chamado para pregar o evangelho.
William Bagby, escreveu no jornal batista dos Estados Unidos sobre a inserção batista no
Brasil. Foi nesta ocasião que Eurico Nelson decidiu viajar para o Brasil. Aportou em Belém
do Pará, desembarcando em um navio denominado Esperança.
Quanto a sua permanência no Pará, não há no texto biográfico, porém, informações mais
precisas sobre a experiência social de Eurico Nelson com paraenses propriamente ditos. Seus
biógrafos não fazem referência sobre os primeiros adeptos batistas paraenses, provavelmente
nem sequer existiram, embora Eurico Nelson já estivesse na Amazônia há algum tempo
tentando convencê-los a seguir a fé. Entre os biógrafos de Eurico Nelson destacam-se Reis7,
Landers8, Bratcher9, Crabtree10 e Almeida11, que trazem poucas informações divergentes a
7
O Pastor batista José dos Reis Pereira escreveu uma biografia de Eurico Nelson editada pela Casa Publicadora
Batista, em 1945.
8
John Landers escreveu uma tese de doutorado, biografando Eurico Nelson e seu trabalho missionário no Brasil.
9
Bratcher foi o único biógrafo batista que conseguiu entrevistar Eurico Nelson em Manaus, quando este já
estava com idade avançada.
10
Asa Routh Crabtree, considerado o historiador dos batistas. No livro História dos Batistas no Brasil: até o ano
de 1906, refere-se saudosamente ao “Apóstolo da Amazônia”, termo que os batistas adotaram para se referir a
Eurico Nelson.
1502
respeito da trajetória missionária do biografado, porém, percebe-se que há certos filtros ao
falar sobre as culturas locais ou sobre as primeiras aproximações de Nelson com nascidos no
Pará, e isso pra mim é muito estranho, já que além dele ter vendido bíblias pelas áreas centrais
de Belém, bastante movimentadas na época, sua esposa Ida Nelson durante o dia, montou um
ateliê de costura em casa. Nesse espaço alugado vendia bíblias e literaturas protestantes,
enquanto costurava, por esta razão é muito provável que seu contato com o povo paraense ou
com as pessoas que transitavam na província fosse muito intenso.
Verifiquei, contudo, que José dos Reis Pereira, um de seus biógrafos, ao se reportar à
população paraense, utilizou expressões claramente preconceituosas, ao afirmar, por exemplo,
“que o homem procedente da Amazônia era ignorante e obscurecido pelo catolicismo”
(PEREIRA, 1954 p.64), mas esta referência também já é conhecida nos estudos sobre o
protestantismo, já que David Gueiros ao falar da questão religiosa na Amazônia, vaticinou:
Belém do Pará não era um lugar muito amistoso para com a “verdadeira religião”, qualquer
que fosse esta. Até certo ponto, sua população não era de modo algum diferente do resto da
população brasileira, que de um ponto de vista ortodoxo ou teológico tendia mais a ser
“superticiosa”. Nesse ponto, tanto os missionários como os clérigos católicos ultramontanos
estavam de perfeito acordo – para ambos os grupos, os brasileiros não eram cristãos
verdadeiros (GUEIROS, 1980, p.170).
Durante aproximadamente seis anos de sua permanência no Pará, não encontrei nenhum
registro da adesão de paraenses à fé batista. Em 1896, Eurico Nelson enviou uma carta ao
11
Antonio Batista de Almeida escreveu um livro intitulado “80 anos construindo a glória de Deus”. Este
material, porém não consta data de publicação e nem editoração. Presume-se que seja uma publicação da década
70 do século XX.
12
Martin Dreher, historiador da igreja. É professor de história na Universidade Vale dos Sinos, no Rio Grande
do Sul e membro do CEHILA.
1503
pastor batista Salomão Ginsburg que estava em Recife, convidando-o a organizar uma igreja
batista no Pará. Nessa época o casal Eurico e Ida Nelson contavam com uma família de
batistas oriundos de Maceió, além de um grupo de pessoas que, segundo Reis (1963), havia
abandonado o pastor metodista Justus H. Nelson, proprietário e redator do Jornal ―O
Apologista Cristão Brazileiro13.
Outros relatos
Na escrita de outra história sobre Eurico Nelson, procurei destacar, a princípio, o contexto
regional que recepcionou o proselitismo de Nelson. O papel das correntes migratórias
marcaram intensamente as transformações que iam se operando na urbe e o aparecimento de
outras expressões religiosas já se notavam. Antes dos Batistas, já circulavam em Belém os
metodistas que já possuíam igrejas e administração definida. Os metodistas também chegaram
dentro do contexto do ciclo da borracha. Diante do aumento das demandas populacionais
causadas por este ciclo, problemas relacionados à saúde pública, no entanto, afetaram
diretamente a imagem que se propagandeava de Belém fora dos contextos amazônicos e, em
minha opinião, representou um verdadeiro contrassenso, pois as classes hegemônicas da
região defendiam a ideia de atrair imigrantes para o Pará, com fins capitalistas.
Os altos valores cobrados nos aluguéis foi um dos assuntos mais recorrentes nas cartas
pessoais de Eurico Nelson. Ele não tinha alocação prévia de estrangeiros e nem tampouco
subvenção do governo. A historiadora Edilza Fontes (2002) afirma que os imigrantes que
chegavam à região nessa época, vieram diretamente ao Pará, sem passar pelo Rio de Janeiro
ou São Paulo, situação facilitada pela estreita ligação entre o Brasil e os Estados Unidos
através das companhias de navegação que traziam aos portos brasileiros, diversos imigrantes
procedentes da Europa e dos Estados Unidos.
Além do mais, para sua sobrevivência na cidade, Eurico Nelson passou a praticar
colportagem, com venda de bíblias e literaturas nos centros, principalmente nos bonds que
circulavam próximo ao porto, e desta forma se mantinha. Quanto às epidemias, sua esposa Ida
Nelson adoeceu por duas vezes, embora se registre uma nota no jornal metodista, de que
Eurico Nelson pretendia abrir um azilo para cuidar de doentes de febre amarela no Pará. Não
13
Jornal que circulava na província paraense, pelos idos de 1890. Justus Nelson atribuía à propriedade do jornal
a Igreja Metodista e funcionaria no jornal como redator.
1504
confirmamos, porém, a existência desse tipo de estabelecimento, uma vez que os órgãos de
Saúde Pública, nos códigos de Postura municipais, multavam frequentemente os locais que
não se adequavam as normas de prevenção à doença ou comunicação aos órgãos competentes.
Os imigrantes que vinham subvencionados pelo estado, como no caso dos portugueses,
encontravam com maior facilidade moradias para alugar em Belém e aqueles outros, vindos
espontaneamente, como era o caso Eurico Nelson, enfrentavam as duras realidades de não
encontrar lugar para ficar em Belém naquela ocasião. Tinham que dispor de altos valores para
o pagamento de aluguel principalmente nas áreas mais centrais da cidade. Estes eram os
espaços de moradia das elites, logo eram áreas privilegiadas e com os valores acima do
orçamento da maioria populacional, esta última em geral, morava nas áreas periféricas mais
baratas, porem contempladas por todos os tipos de problemas decorrentes da falta de
estrutura. Por esta razão, achamos improvável que um homem que veio sem subvenção para o
Pará, sobrevivendo de venda de bíblicas, tenha tido condições de abrir uma espécie de asilo
para ajudar pessoas debilitadas por febre amarela.
Confirmei, contudo, que as visitas a pessoas doentes nos hospitais que atendiam os afetados,
de fato foi possível sim, e sem muitas dificuldades, já que sendo sueco, Eurico Nelson se
comunicava com facilidade com os que estavam hospitalizados. Segundo os dados estatísticos
da Saúde Pública14 os mais “atacados” por febre amarela, eram os embarcados de origem
norueguesa, sueca e dinamarquesa.
Outro aspecto que considerei favorável na inserção batista foi o momento político da
província. O ideário de progresso, desenvolvimento econômico, temáticas visíveis no
processo emancipador da República cogitou uma maior liberdade de circulação de
estrangeiros protestantes no Brasil e no Pará não foi diferente, embora a explicação que
encontramos para inferir a não adesão de paraenses a evangelização de Eurico Nelson seria a
profunda identificação dos paraenses com as devoções tradicionais em todo o vale. Verifiquei
que esta questão foi silenciada nos documentos do ambiente religioso, porém voltavam
fragmentadas as biografias ao destacar as dificuldades corriqueiras de Eurico Nelson, sempre
de forma excessiva.
Um guardião do passado?
14
Na época foram criados vários órgãos de fiscalização das demandas, cito a Inspetoria Geral do Serviço
Sanitário do Pará, o Instituto Bacteriológico, o Instituto Clinicas e Bromatológicas, o Hospital de Isolamento e o
Desinfectório Central.
1505
Além dos aspectos que já são bem conhecidos na Academia, quanto à construção biográfica
de mitos fundadores de igrejas cristãs, procurei destacar no meu trabalho o aspecto
fragmentário das biografias de Eurico Nelson. Aquilo que Giovanni Levi (1996) afirmou
sobre construir uma narrativa que dê conta dos elementos contraditórios que constituem
representações que dele se possa ter conforme os pontos de vistas e as épocas. E foi
exatamente este aspecto que considerei ao reconstituir o contexto social que agia Eurico
Nelson. Os limites e lacunas impostos pelo biógrafo José dos Reis Pereira, ao selecionar
apenas os sucessos da vida do biografado, sem articulá-los com maiores pormenores do
contexto imediato, de fato fragmentou o todo narrativo, e além do mais, o biógrafo batista
deixou de vinculá-los com o curso de vida das outras pessoas que construíram com ele laços e
experiências sociais, e assim fazendo deixou questões “abertas” sobre o ambiente que
germinou a fé batista em Belém do Pará.
Neste trabalho, recorri a análise de construção de imagens e discursos no campo das Ciências
da Religião, em que Campos analisa “a função do louvor ao passado e aos lideres na criação e
manutenção de uma cultura organizacional” (1999, p.88). Esta atividade para o autor é
extremamente importante no campo religioso, particularmente na fase de institucionalização e
rotinização do carisma, pois cria um senso de identidade e de maior coesão entre os agentes
ao desenvolver um trabalho pedagógico. Daí a importância dos “celebradores”, pois eles
procuram estabelecer um elo entre o que “foi” e o que “será”.
De todos os biógrafos, somente Bratcher conheceu de fato Eurico Nelson. Apesar disso, a
produção da imagem de herói construída por biógrafos que não o conheceram pessoalmente,
como o pastor batista José dos Reis Pereira, lá pelo ano de 1960 criou a ideia de que somente
um grupo que se identificasse com os ideais de Eurico Nelson (um personagem do passado
batista) seria capaz de persistir no trabalho missionário batista, qualquer outro modelo,
deveria ser de fato retirado, de tal forma que nada fosse mencionado.
Por esta razão, infiro que o silêncio de José dos Reis Pereira sobre os problemas que Eurico
Nelson enfrentou em relação ao contexto paraense fugia completamente ao discurso que se
pretendia imprimir a partir de sua imagem idealizada e é por esse motivo não há uma sequer
referência a respeito das populações locais que recepcionaram a fé batista em Belém do Pará,
nem tampouco as querelas que Nelson travou com o metodista Justus Nelson, que chegaram a
ser ofensivas e publicadas na imprensa paraense do passado, ou ainda as cisões ocorridas na
1506
primeira igreja batista entre os anos de 1901 e 1905, bem antes do aparecimento do
Movimento Apostólico de Fé, de cunho pentecostal.
Com a palavra, a transcrição de uma publicação de Justus Nelson que encontrei entre os
códices da coleção pessoal de Eurico Nelson, que não deixam dúvidas quanto tais embates e
que indicam a intensidade das discussões entre os dois protestantes:
Junto com esta lhe remetto um convite amigável para esclarecer-nos um ponto ―essecial
fundamental da sua fé – a rocha mesma em que está constituída a igreja batista. Só depois
de escrito o meu convite foi que li em ―As Boas Novas‖ de 28 de fevereiro p.p a
declaração do seu collega, o Rev. W.M.Bagby sobre o mesmo ponto fundamental, e no
mesmo sentido que no convite e representado a declaração do irmão. Diz elle: ―é essencial
não só ser baptizado (immergido), mas que o batismo seja legal e válido, e para o batismo
ser válido e legal é preciso, 1° que a pessoa baptizada seja regenerada antes do batismo; 2°
que quem faz o baptismo seja membro de uma igreja da mesma fé como as chamadas
Baptistas (porque só estas são igrejas de Christo, legalmente constituídas) e que seja,
authorizadas por uma tal igreja de Deus a baptizar.
A construção de Eurico Nelson como herói batista que foi o fundador das primeiras igrejas
batistas na Amazônia, um apóstolo, “um herói autêntico, um verdadeiro missionário que pode
ser colocado na gloriosa galeria dos Paton, dos Carey, dos Judson” (PEREIRA, 1954, p.59),
tanto no livro O Apóstolo da Amazônia de José dos Reis Pereira, como na tese de doutorado
de John Landers é uma interpretação que muito se aproxima ao modelo de “guardião do
passado” analisado por Campos (1999), pois este autor enfatiza que a tarefa de construir a
realidade social e a cultura organizacional das instituições religiosas cabe aos seus
“celebradores” que nessa tarefa cooperam também para a manutenção do poder, na medida
que eliminam outras tendências.
Por outro lado, para compreensão da construção biográfica de O Apóstolo da Amazônia basta
se comparar dois momentos distintos de Eurico Nelson: o primeiro que marca a sua chegada
em Belém do Pará, quando era um personagem “marginal” da história dos batistas, sueco,
desconhecido, sem habilitação ao ministério pastoral. Esta posição dentro do contexto
1507
institucional não deixou de ser percebida por Eurico Nelson, razão pela qual se compreende a
nota magoada em um artigo que escreveu para o jornal Batista do ano de 1923, quando
afirmou que “não era fácil escrever sobre aquele assunto (referindo-se ao trabalho inicial em
Belém do Pará) e nem tampouco agradável”15. Fez uma dura critica ao artigo do Pastor
batista Salomão Ginsburg, durante os festejos do centenário da denominação batista no Brasil,
o criticando abertamente por não ter mencionado a “missão do norte” em seus artigos e “não
disse uma palavra sequer sobre Belém do Pará, quando se assim não fôra, estava na
obrigação de falar, pois cooperou commigo na organização da 1ª igreja de Belém, tendo elle
mesmo feito os primeiros baptismos no rio Amazonas”16. Enquanto Eurico Nelson travava
esse longo embate, José dos Reis Pereira, na escrita biográfica ia minimizando os fatos
enaltecendo principalmente suas virtudes, ao afirmar que:
É oportuno repetir que, no seu desejo insopitável de pregar o evangelho no Brasil, Eurico
Nelson não contava com nenhum auxilio humano. Não tinha ainda sido consagrado ao
ministério e por isso também não esperava a remuneração de nenhuma igreja. Mas decidira
partir e nada neste mundo seria capaz de demovê-lo. Um dos traços distintivos do seu
caráter, desde a infância, segundo o testemunho de seu irmão Carlos, era a firmeza de seus
propósitos e a pertinência com que os levava a termo. Era um “homem de uma só peça”,
desses que só dizem “sim, sim – não, não” (PEREIRA, 1954, p. 43).
Percebe-se que para seus contemporâneos Eurico Nelson era apenas um “homem de Deus”,
esforçado, um colportor que fugiu do padrão do grupo. Seu heroísmo foi ter deixado “o
melhor dos mundos” (ALENCAR, 2009, p. 72) e vir para o “Inferno Verde” (PEREIRA,
1954, p.20), fundando as primeiras igrejas batistas na Amazônia, porém enquanto não está
institucionalizado como de praxe, ninguém reconhece o trabalho desenvolvido nos seis
primeiros anos de permanência no Pará antes de ser vinculado a uma junta missionária ou
ordenado de fato um pastor batista. A história que se reconhece é a história a partir de 1897,
quando funda a primeira igreja em Belém e quando é vinculado a Junta Americana de
Richimond.
Depois de morto, o cinqüentenário dos batistas foi o momento ideal para projetar a imagem de
Eurico Nelson no imaginário batista. Uma representação heróica em torno do batista Eurico
Nelson como foi projetada no livro O Apóstolo da Amazônia está claramente inserida naquela
1508
tarefa de construção de imagem já amplamente discutida pelo campo historiográfico e a
respeito de “heróis” missionários no meio protestante, destaca-se o conceito de “construção
ideológica” discutido por Alencar (2006) ao afirmar que a historiografia missionária é uma
espécie de épico quando contada por algum representante da instituição que está envolvido,
principalmente quando se prioriza a glória, o sofrimento (martírio) com privações, doenças e
até “morte sacrificial”. O pastor José dos Reis Pereira tornou-se um “guardião do passado” ao
eternizar a memória de Eurico Nelson como um modelo de missionário batista ideal, embora
no Livro de Ouro da Convenção Batista Brasileiro, publicado recentemente pelos batistas, um
registro de cinco linhas em um único parágrafo, marcam a sua extensa passagem de 47 anos
de trabalho missionário no Brasil:
No extremo norte do país, decorrente do trabalho de Eurico Nelson, foi fundada a Primeira
Igreja de Belém do Pará, em 1897; e, em 1900, a primeira Igreja Batista de Manaus. O
evangelho e os batistas cresciam e se espalhavam no território brasileiro. O total de
membresia brasileira já alcançava 1.500 (BARBOSA; AMARAL, 2007, p.34).
Eurico Nelson continuava seguindo, mesmo morto, o estigma que seus contemporâneos
batistas lhe reservaram em vida.
Considerações finais
Eurico Nelson podia ser considerado um pregador “rural” ao chegar ao Pará, pois tudo lhe era
acessível, a teologia, o ministério e a Bíblia. Era extremamente auto-suficiente, que se
depreende inclusive das biografias batistas a seu respeito. Tinha plena liberdade para tratar de
todos os assuntos, por isso tomava a iniciativa de pregar nas embarcações dinamarquesas,
norueguesas e americanas que aportavam em Belém. Sentia-se totalmente livre para pregar a
1509
mensagem cristã entre os grupos sociais que transitavam na cidade de Belém. Era um
missionário sem qualquer dependência de outro corpo eclesiástico (AZEVEDO, 2004, p.127),
pois entendia que o seu relacionamento fundamental ocorria entre Deus e o indivíduo (Cristo
e o indivíduo), numa prerrogativa de igreja em que a salvação antecede a membresia.
No trabalho inicial, quando enfrentou vários obstáculos, a maior parte deles foi sem dúvida a
dificuldade financeira em manter sua família num país estranho, sem trabalho, sem recursos,
dependendo exclusivamente de sua fé. Os problemas que foram se apresentando diariamente,
a princípio, não são decorrentes de um ambiente hostil, pois os diversos sujeitos sociais que
transitavam na urbe já tinham como corriqueiro a oferta de vários produtos nas áreas centrais
da cidade. Judeus marroquinos e turcos eram exímios vendedores de bugigangas e produtos
importados. O centro de Belém do Pará era um “mercado aberto” no auge da exploração da
borracha. Ali conviviam pessoas de vários lugares e nacionalidades, que se encontravam num
cotidiano considerado “turbulento”. Encontrar um local para vender bíblias tornou-se uma
tarefa difícil e bastante concorrida, diante de uma freguesia tão eclética e um empresariado tão
variado.
Isto posto, inferiu-se que o cristianismo batista trazido por Eurico Nelson de forte traço
pietista e conversionista pouca referência exerceu no homem autóctone da Amazônia, e por
esse motivo compreende-se que os primeiros membros da primeira igreja batista em Belém ou
eram de outras igrejas batistas procedentes das demais regiões brasileiras ou eram
provenientes de outros grupos religiosos já estabelecidos no Brasil, como metodistas e/ou
presbiterianos.
Diante dos fatos, percebe-se nas suas atitudes dos seus primeiros anos em Belém, que Nelson
não se enquadrou no modelo padrão estabelecido pela organização batista americana
responsável pela implantação do protestantismo de missão batista na Bahia e nem tampouco
fundou a primeira igreja batista no Pará de acordo com o princípio landmarkista da igreja
apostólica (AGUIRELLA, 1988).
Apesar de todos os seus esforços para missionar no Pará e implantar uma igreja batista em
Belém, esta última sofreu em menos de dez anos dois cismas decorrentes de problemas
eclesiológicos e/ou doutrinários, principalmente os ocasionados nos anos de 1899, 1901 e
1911 que resultou na fundação da futura Assembléia de Deus no Brasil. Apesar de todos esses
contratempos criou-se em torno dele um modelo idealizado pelos batistas brasileiros já em
1510
meados do século XX, que procurei visualizar através daquela construção biográfica de José
dos Reis Pereira (1954). Este último, durante a crise desencadeada pelo movimento radical na
década de 60 do século XX, projetou uma representação de Eurico Nelson a partir de uma
narrativa épica de seu trabalho.
Para concluir convém observar que a valorização dos sujeitos “invisíveis” acabou por revelar
duas possibilidades: a existência dos cortes no campo religioso que legitima certas práticas e
condena outras. Essa percepção foi possível de observar na história biográfica de Eurico
Nelson entre os anos de 1890 a 1897, em Belém, que não deixou, contudo de demonstrar que
se tratava de um personagem independente. Diante de tudo isso, infere-se que o resultado
desse percurso reflete de fato nos choques que surgiram até mesmo no meio dos seus próprios
seguidores batistas, que de uma forma bem peculiar, guardavam como modelo o perfil
emblemático do seu pioneiro.
Referências
AGUIRELLA, José Miguel Mendoza. Um povo chamado Batista: um jornal (OJB) a serviço
da Formação de uma mentalidade Religiosa (1960-1985). Dissertação (Mestrado em Ciências
da Religião) - Instituto Metodista de Ensino Superior. São Bernardo do Campo/SP, 1988.
ALMEIDA, Antonio Batista. 80 anos construindo para a glória de Deus. Belém: produção do
autor, 1981.
BARBOSA, Celso Aloísio Santos; AMARAL, Othon Ávila. Livro de Ouro – epopéia de fé,
lutas e vitórias. Rio de Janeiro: JUERP, 2007.
1511
CRABTREE, Asa Routh. História dos Batistas do Brasil até o ano de 1906. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1962.
FONTES, Edilza. O paraíso chama-se Pará: o álbum “Pará em 1900” e a propaganda para
atrair imigrantes. In: Terra Matura, historiografia e História Social na Amazônia. BEZERRA
NETO, José Maia; GUZMÁN, Décio de Alencar (Orgs.). Belém: Paka-tatu, 2002.
LACERDA, Franciane Gama. Infância e Imigração no Estado do Pará (final do século XIX,
início do século XX). In: Terra Matura, historiografia e História Social na Amazônia.
BEZERRA NETO, José Maia; GUZMÁN, Décio de Alencar (Orgs.). Belém: Paka-tatu, 2002,
p. 395-406.
LANDERS, J M. Eric Alfred Nelson: the first baptist missionary on the Amazon, 1891-
1939. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculty of Addran College of Arts and Sciences. Texas
Christian University, August (EUA), 1982.
LEVI, G. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.).
Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996 p.
167-182.
PEREIRA, J.R. O apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1963.
1512
1513
Educação protestante em perspectiva na imprensa batista
Anna Lúcia Collyer Adamovicz1
Introdução
O trabalho proposto pretende focalizar a maneira como a imprensa batista realizou entre os
anos de 1901-1930 uma produção jornalística profícua e uma literatura instrutiva
compromissada em noticiar os descompassos e os progressos alcançados pelos movimentos
sociais, políticos e culturais da Primeira República brasileira, conferindo pronunciado
destaque para as discussões acerca do panorama geral da Educação formal e religiosa na
nação. A pesquisa teve início no processo de desenvolvimento da tese de Doutorado de título
Imprensa Protestante na Primeira República: Evangelismo, Informação e Produção Cultural
(O Jornal Batista 1901-1922), defendida junto ao departamento de História da Universidade
de São Paulo, quanto se constatou a viabilidade de se dar prosseguimento à pesquisa sobre a
imprensa protestante no Brasil utilizando o Jornal Batista como fonte principal, ampliando e
aprofundando esta temática, a partir da investigação privilegiada das questões relativas aos
avanços do projeto batista na área de Educação.
1
Doutora em História Social pela USP e integrante do GEHER (Grupo de Estudos de História da Educação e
Religião) da Faculdade de Educação da USP. Contato: adamovicz@usp.br.
1514
A imprensa batista: educação e modernidade
A luta dos protestantes por um espaço religioso na sociedade brasileira desenrolou-se através
de práticas educacionais específicas articuladas em dois níveis: no nível ideológico, o objetivo
era introduzir elementos transformadores na cultura brasileira e, no instrumental, era auxiliar
a veiculação da mensagem evangélica entre as camadas desprovidas da população (sendo o
primeiro representado pelos grandes colégios americanos, e o segundo, pelas escolas
paroquiais). O Jornal Batista refletia o pensamento destes preceptores que procuravam superar
as adversidades encontradas na implantação de seu programa educacional, e os seus
idealizadores mobilizaram-se no sentido de angariar recursos materiais e humanos para
assegurar o êxito de um projeto editorial que visava à promoção de um modelo ético-social e
à construção de um processo de cidadania. Este projeto previa a extensão do programa de
educação religiosa e possuía como diretriz o objetivo de garantir o acesso à informação, por
meio da qual os seus interlocutores poderiam ser mais bem preparados para acompanhar e
participar dos debates em que eram discutidas pautas de natureza política e social, sobretudo
no que diz respeito à questão dos direitos cívicos e da democracia dentro da recém-
estabelecida ordem republicana.
1515
brasileira o intuito de modernizá-lo. O complexo ideológico do protestantismo norte-
americano foi bem recebido pelos integrantes das elites dirigentes que eram, em sua maioria,
favoráveis ao ensino dos princípios democráticos nas escolas - a igualdade de direitos, a
responsabilidade individual, a liberdade intelectual e religiosa. A elite nacional havia sido
cliente da Educação católica por mais de três séculos e os missionários evangélicos
perceberam a necessidade de iniciar um trabalho na área de Educação que possibilitasse a
abertura de colégios protestantes, através dos quais poderiam oferecer uma nova alternativa ao
grupo que buscava um novo tipo de orientação pedagógica. Os primeiros missionários que
aqui desembarcaram logo se convenceram de que, somente com o doutrinamento religioso, o
protestantismo não ganharia espaço na cultura brasileira: era necessária uma ação educativa
sistematizada capaz de criar uma força de renovação que deslocasse a Igreja Católica do seu
posto hegemônico.
1516
dissolução do sistema do Padroado4 em 1891, podem-se observar mudanças significativas que
o novo regime promoveu na esfera da Educação, não somente em termos jurídicos através da
implantação de novas políticas públicas, mas por intermédio da disseminação de novas
escolas do pensamento filosófico-pedagógico professadas por intelectuais positivistas e
educadores leigos. Em contrapartida, neste mesmo ambiente social marcado pelo crescente
processo de secularização da cultura, surgem novas escolas católicas fundadas por religiosos
europeus formados sob a égide do movimento ultramontano5, o qual tencionava restaurar o
catolicismo brasileiro nos moldes da romanização do clero. A maior parte destas
congregações de origem europeia recém-chegadas em território nacional no inicio do período
republicano elegeu o trabalho docente como função primordial, e por meio da ação educativa
pretendiam instruir as novas gerações, assegurar a continuidade do ensino religioso católico,
angariar recursos materiais e humanos para a manutenção das obras assistenciais realizadas
pelas instituições religiosas a que pertenciam - em um âmbito geral, deveriam cooperar para a
reestruturação da Igreja brasileira, sob a orientação do episcopado ultramontano.
A imprensa batista, desde os primeiros anos de sua atuação, desempenhou papel relevante no
processo de desenvolvimento das missões protestantes em território nacional. Através da
leitura do conjunto de suas publicações é possível constatar que o traço mais característico da
4
Sistema que estabelecia o monarca português como patrono da Igreja e instituía o catolicismo como religião
oficial em seus domínios coloniais, concedendo-lhe o poder de administrá-la e organizá-la em nome da Santa Sé.
Dentre os direitos firmados em tratado com o Vaticano, era concedida ao rei a incumbência da arrecadação do
dízimo e a nomeação de bispos e de outros religiosos, que deveriam ser aprovados pelo Papa.
5
O Ultramontanismo é um movimento surgido na França no século XIX como uma reação ao crescente
secularismo do período pós-revolucionário. Fundamentava-se em uma doutrina política centralizadora da Igreja,
que privilegiava o poder decisório de Roma e assentava-se na defesa do dogma da infalibilidade papal em
matéria fé e disciplina.
1517
literatura produzida encontra-se em seu conteúdo religioso e pode-se observar que, em grande
parte de seus escritos, estão também presentes as suas convicções políticas, sobretudo no que
se refere à defesa do princípio da separação entre o Estado e a Igreja. Em sua produção
jornalística é recorrente a manifestação de sua crença no princípio da liberdade religiosa (as
suas referências à necessidade de separação entre o Estado e a Igreja como único meio capaz
de viabilizá-lo) e a posição assumida em defesa do direito ao livre acesso às Escrituras, que só
poderia ser assegurado através da implantação de um programa eficaz de combate ao
analfabetismo. Destacava-se também a sua preocupação com ausência da experiência
democrática, ou a pouca familiaridade que com ela haviam tido os brasileiros em sua história
política e religiosa.
Até o ano de 1889, o catolicismo havia sido a religião de Estado no Brasil e como tal possuía
sólidas bases de sustentação enquanto religião oficial, exercendo influência determinante na
vida cultural da nação e dispondo de significativa representatividade política. Sob esta
perspectiva e tendo em vista as críticas veiculadas através da imprensa que os grupos
protestantes receberam de representantes do clero católico (os confrontos ideológico –
doutrinários que se deram através dos jornais seculares e religiosos), é possível afirmar que o
espaço de discussão criado onde muitos destes debates foram travados possibilitou aos
missionários batistas a abertura de um importante espaço para a exposição de suas ideias.
Muitos dos episódios registrados na história da denominação batista no Brasil revelam que os
missionários se utilizaram dos órgãos de imprensa como estratégia de resistência e souberam
conduzir discussões polêmicas de forma a conquistar com as bases argumentativas de seus
escritos o respeito e a simpatia de muitos leitores.
1518
concessão de plena liberdade religiosa a todos os cidadãos.
Seja através do consumo dos artigos de última moda ou da recepção entusiasmada das novas
estéticas ou das novas escolas filosóficas em voga o Brasil ilustrado do inicio do século XX,
colocava-se como coparticipante do modelo cultural que primava pelo “triunfo da
modernidade sobre o atraso”, pela crença na primazia da racionalidade, que instaurava uma
1519
crise na identidade religiosa do homem contemporâneo (SEVCENKO, 1988, p.14).
Concomitantemente, a religião cristã estava tendo o seu número de fiéis reduzido nas
sociedades europeias e, de um modo geral, com a exceção dos EUA, a religião ocidental
nunca havia sofrido maior pressão no meio intelectual e político como no final do século XIX
(HOBSBAWN, 1987, p. 245). Neste sentido, o protestantismo de missão proveniente dos
EUA que se estabeleceu no Brasil no início da Primeira República, está inserido em um
movimento histórico que é de certa forma, uma reação contra o processo de secularização que
se instalava na Europa e que se refletia nas posições ideológicas das lideranças políticas e
intelectuais da América Latina.
Neste período abundaram matérias que traziam informes sobre as novas descobertas
realizadas em todas as áreas do saber, pois eram noticiadas constantemente novas teorias
científicas (como as mais recentes descobertas das ciências, a invenção de novas máquinas, os
avanços tecnológicos), e também as conquistas no terreno político-social, de modo que a
capacidade engenhosa dos cientistas, artistas e políticos dos países protestantes era
grandemente enaltecida no Jornal. Os artigos eram elaborados de modo a pontuar as
contribuições históricas de personalidades de origem protestante nas diversas áreas do
conhecimento, das artes e da política, sendo citados, dentre numerosas figuras proeminentes
os grandes nomes da história do desenvolvimento das ciências naturais, humanas e das artes.
Pode-se observar na articulação destes textos, o intuito de vincular os conceitos de progresso
e de civilização às nações de formação protestante, uma vez que procuram evidenciar o nível
1520
de desenvolvimento técnico, artístico e científico que estas nações haviam atingido e
estabelecer uma relação entre a liberdade de consciência religiosa (entendida como herdeira
do pensamento protestante), e o processo de aprimoramento de suas instituições políticas e
educacionais.
1521
Europa e da América Latina ainda estavam sendo dominados pelo “obscurantismo” do
catolicismo ultramontano, sendo facilmente manipulados por estas “lideranças reacionárias”
que travavam uma luta acirrada contra a intelectualidade liberal e contra os pastores
protestantes, para que se não fossem erradicados destas nações o analfabetismo, a superstição,
e mesmo o fanatismo religioso. A sua opinião era de que a Igreja Romana, ao invés de instruir
essas populações transmitindo-lhes o conhecimento bíblico e facultando-lhes o acesso à
cultura geral, optara por mantê-los cativos da mais “crassa ignorância”, pensando com isso
que poderia torná-los imunes aos “efeitos subversivos” tanto do discurso liberal quanto da
prédica protestante. Conforme podemos constatar na leitura dos artigos do Jornal Batista que
foram publicados no período, está fortemente arraigada no imaginário da denominação a
convicção de que o ideário e o modo de vida protestante eram as ferramentas ideológicas mais
eficazes para libertar a nação brasileira de sua “ignorância” e para fazê-la percorrer o caminho
da modernização e do progresso, concorrendo para a aquisição da “prosperidade industrial
rigorosa e luxuriante tal como uma floresta tropical” de que falava Ruy Barbosa7 e outros
integrantes da elite intelectual do país (GRAHAN, 1973, p. 294).
Desde o início do século XIX havia tanto em nosso sistema religioso bem como em nossa
cultura elementos favoráveis à inserção do protestantismo em terras brasileiras, e esta
disposição pode ser percebida através das ações reformistas de padres e leigos católicos que
vieram a se tornar colaboradores dos missionários protestantes (entre eles citamos o ex-padre
católico Antônio Teixeira de Albuquerque, o primeiro brasileiro ordenado ministro batista). A
cultura brasileira como um todo cedia espaço a um pluralismo que também se refletia em
nosso sistema religioso. Movidos pela aspiração de uma reforma espiritual de bases bíblicas,
alguns membros do clero católico tornaram-se adeptos dos princípios reformistas e aderiram
ao movimento reformador, tornando-se importantes agentes na implantação de novas igrejas.
Também entre os intelectuais idealizadores das reformas sociais que ocorreram no final do
século XIX, encontramos o parecer favorável ao encaminhamento da separação entre o Estado
e a Igreja presentes nos discursos de Ruy Barbosa, Saldanha Marinho, entre outros. O Jornal
7
Richard Grahan, em seu livro sobre a modernização no Brasil menciona a frase de Rui e com ela transige,
adicionando a informação de que outro brasileiro traduziu prontamente para o português o livro do escritor
francês Emílio de Laveley “Do Futuro dos Povos Católicos”, logo que ele foi posto à venda em 1875. A obra
teve ampla repercussão no meio evangélico porque supunha que as nações protestantes triunfariam sobre as
católicas, alegando que este evento se concretizaria pelo fato de os protestantes investirem na educação,
fomentarem o desenvolvimento científico, cultivarem o sentimento de nacionalismo e respeitarem a liberdade
intelectual. A imprensa protestante de um modo geral procurou divulgar essa ideia, na medida em que retratava o
protestantismo como o contraponto do catolicismo não apenas no terreno dogmático, mas também em seu
incentivo para que os povos trilhassem as sendas do progresso e da modernidade.
1522
Batista elogiou insistentemente a posição política de intelectuais brasileiros que eram
defensores dos ideais do liberalismo como foi o caso de Saldanha Marinho e a sua atuação na
chamada Questão Religiosa ocorrida em 1870. Em sua obra A Igreja e o Estado, o autor
equacionara a problemática das relações estreitas entre o poder temporal e espiritual, fazendo
a asserção de que a força da lei política era impotente para manter as crenças religiosas, já que
os seus rigores e a sua força de coerção poderiam somente fazer dos cidadãos “vítimas ou
hipócritas, mas nunca crentes”. Saldanha Marinho fez uma célebre exposição do ponto de
vista liberal, ao declarar que em uma sociedade na qual não há unidade de crenças, a religião
não pode ser o fundamento da organização política; e assim sendo, concluiu que “não poderia
existir regularmente religião de Estado no Brasil” (HOLLANDA, 1974, p. 333).
Outro exemplo ilustrativo do alcance dos debates acerca do protestantismo entre intelectuais
brasileiros é a referência que Rui Barbosa lhe faz em sua obra (o que remete a ideia de que a
sua repercussão não se restringia às comunidades religiosas). Rui Barbosa refere-se ao
protestantismo como um movimento nascido da liberdade da consciência individual, cuja
consequência política é a liberdade religiosa e afirma que “do protestantismo é filha a
instrução popular, que constitui a grande característica, o principal instrumento e a
necessidade vital da civilização moderna". O autor problematiza as questões religiosas da
América Latina discorrendo sobre a tensão gerada pela crença no progresso como regenerador
da sociedade e a luta do catolicismo pela permanência dos valores tradicionais, por vezes
opostos aos progressos técnico-científicos. Conforme os questionamentos próprios de seu
tempo, a ideia de que o progresso, a conformação mais igualitária da sociedade e uma cultura
mais elevada são fenômenos sociais encontrados em países de formação protestantes, estão
frequentemente presentes em seus discursos (BARBOSA, 1950, p. 163).
Considerações finais
1523
educacional, pois estavam determinados a contribuir com a transformação da atmosfera
cultural do país. Em suas congregações localizadas nas regiões rurais, a ação evangelizadora
batista foi acompanhada da iniciativa de promover a alfabetização que tornava possível a um
número maior de fiéis o estudo individual da Bíblia; nas cidades, a preocupação era aprimorar
o sistema educacional, e elevar o grau de instrução daqueles que tinham acesso à Educação
formal. Tanto o analfabetismo popular como as deficiências do sistema de ensino brasileiro
eram considerados pelos batistas como um entrave ao desenvolvimento de um conjunto de
valores positivos para a formação intelectual do indivíduo e para a ilustração da cultura
nacional.
Entre os anos de 1901 e 1930 a imprensa batista também privilegiou em suas pautas as
severas críticas ao desempenho do catolicismo romano no âmbito da Educação, buscando
demonstrar sistematicamente em seus artigos como eram atrasados na alfabetização os súditos
das nações católicas, em contraste com os altos índices estatísticos de escolaridade observados
entre os cidadãos dos países protestantes. Esta grande defasagem na área educacional era
patente nos países católicos e estava na mira da imprensa evangélica que pintava um quadro
sombrio desta desfavorável realidade social, em que a média de percentagem de analfabetos
chegava a aproximadamente 60% da população, enquanto que nas nações onde o
protestantismo era a religião majoritária, não passava de 4%, em média. Quando o assunto era
o analfabetismo no Brasil, as críticas ao clero católico se intensificavam, pois grande parcela
da responsabilidade pela administração do ensino brasileiro fora diretamente delegado à Igreja
Romana por séculos, e os estudos do censo indicavam naquele momento a existência de cerca
de 80% de iletrados na nação.
A posição dos batistas sobre essa questão se assentava na explicação de que o clero também
deveria ser implicado como um agente responsável pelo fenômeno de atonia moral na
política: o argumento era o de que, em parte, a Igreja Católica deveria ser responsabilizada
pela debilidade intelectual das massas que ficaram alijadas do acesso à cultura letrada,
tornando–se indivíduos sem o instinto do direito, sujeitos a uma obediência passiva quase
servil; e na sua diagnose, esta marginalização da maioria dos cidadãos do processo político
enfraquecia as instituições civis e o próprio sentido da nacionalidade. Então, para além da
propagação dos princípios centrais da Reforma, os articulistas de O Jornal Batista
empenharam-se para oferecer ao seu público leitor informações sobre o desenvolvimento do
seu projeto educacional, noticiando a expansão da rede de suas instituições escolares, de suas
formas de organização e de seu projeto pedagógico. Os missionários idealizadores deste
1524
periódico o conceberam como um instrumento para a evangelização e instrução de brasileiros
residentes em diferentes localidades e a estratégia missionária em torno da implantação de um
programa de publicações de tal escopo, sediado no Rio Janeiro, tinha como metas não
somente o aprimoramento da formação religiosa, mas também a produção de material
educativo que seriam utilizados nos colégios e lares batistas de todo o país.
Referências
1525
Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1974.
HOBSBAWM, Eric. The Age of the Empire (1875-1914). Nova Iorque: Random House, 1987.
MEIN, David. O que Deus tem feito. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e
Publicações da Convenção Batista Brasileira, 1982.
PEREIRA, José Reis. História dos batistas no Brasil. Rio de Janeiro: JUERP, 1982.
REIS, Álvaro. As conferências do Padre Júlio Maria. Rio de Janeiro. Livraria Evangélica,
1908.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SEVCENKO, Nicolau. História da vida privada no Brasil República: da Belle Époque a era
do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
1526
1527
Émile-G. Léonard e seu lugar na historiografia protestante
brasileira
Marcone Bezerra Carvalho1
Introdução
Em conferência dada na École Pratique des Hautes Études Jean-Paul Willaime2 afirmou em
relação ao historiador Émile-G. Léonard
que todos os especialistas do protestantismo têm uma dívida com ele: a sua Histoire
Générale du Protestantisme não tem sido substituída e, se muitos trabalhos estão sendo
dedicados ao estudo dos protestantismos dos diferentes continentes, a leitura da obra de
Léonard continua sempre estimulante pelas pistas de pesquisa que abre. A consulta
freqüente dessa magistral obra permite adquirir uma visão mundial do estabelecimento e
desenvolvimento do protestantismo (WILLAIME, 2000, p. 17-18).
Na opinião de outros estudiosos franceses, sua monumental Histoire assegura a ele um lugar
entre os clássicos no estudo do fenômeno protestante (LE BRAS, Gabriel & GROUPE DE
SOCIOLOGIE DES RELIGIONS, 1962, p. 3). Foi devido à sua dedicação à temática
protestante que o acadêmico recebeu dois títulos de Doutor Honoris Causa: pela Universidade
Livre de Amsterdã (1955) e pela Faculdade de Teologia de Montpellier (1959).
1528
Guillaume Jules Émile Léonard4 nasceu em 30 de julho de 1891 em Aubais, cidade do sul da
França localizada entre Nîmes e Montpellier. A região é significativa para a história do
protestantismo francês, pois é depositária da herança das églises du désert 5 e dos camisards6
do século XVIII: área onde seguidas gerações de protestantes viveram e desenvolveram um
forte senso identitário (WATANABE, 2011, p. 84). O próprio Léonard a descrevia como
“terra de camisarda” (LÉONARD, 1962, p. 9).
O início de sua carreira profissional aconteceu em Roma. De outubro de 1919 a junho de 1922
foi membro da École Française de Rome. De volta à França, atua como bibliotecário da seção
de manuscritos da Bibliothèque Nationale de Paris (junho/1922 a outubro/1927). Depois da
capital francesa, volta à Itália para viver em Nápoles (novembro/1927 a março/1934) -
vinculado ao Institut Français e à Universidade local. Seu doutoramento pela Faculté des
Lettres de Paris se dá em 1932.
Nova mudança de endereço acontece em 1934, quando retorna à França. Agora em Caen,
região da Normandia, ele consegue seu primeiro emprego como professor titular. Na Faculté
des Lettres ensina história da Idade Média e história da Normandia. Preside a Sociedade dos
Antiquários. Sua permanência em Caen se estende até 1940. Essa experiência resultou na obra
Histoire de la Normandie. De Caen, Léonard volta ao sul do país: Aix-en-Provence, lá
permanecendo de 1940 a 1948 como professor de história na Faculté de Lettres e de história
da igreja na Faculté Libre de Theologie.
4
O uso de um nome “social” diferente do nome de registro se deve a um costume da época, como nos explicou
em carta a filha dele, Sra. Jeanne-Marie Léonard.
5
A expressão “igrejas do deserto” designa as comunidades huguenotes que sobreviveram na clandestinidade
durante a perseguição estatal, entre 1685 – ano de revogação do Édito de Nantes (de 1598) – e 1787 – quando foi
decretada a tolerância religiosa no país.
6
A denominação “camisards” foi dada aos calvinistas que se levantaram contra a monarquia em 1702,
reivindicando liberdade de culto. “Camisard” vem do tipo de camisa que identificava os revoltosos. A rebelião
terminou em 1715, quando foi firmado um acordo de paz.
1529
Nessa altura, década de 40, Léonard já desfruta de reconhecimento acadêmico e seu contato
com o grupo da Escola dos Annales é visível: publica, na revista homônima, Economie et
religion. Les protestantes français au XVIIIe siècle (1940), La question sociale dans l’armée
française au XVIII siècle (1948) e algumas resenhas ao longo desses anos. Por mais que sua
bibliografia revele pesquisas sobre diferentes temáticas, a partir de então, com mais de 40
anos, Léonard passa a se dedicar cada vez mais ao assunto acerca do qual será reconhecido e
ganhará projeção internacional: a história da Reforma e do protestantismo. Seu contato com
Lucien Febvre remonta à essa época. É relevante observar essa aproximação entre eles porque
Febvre teve influência crucial na história de Léonard. Foi por indicação sua que ele veio ao
Brasil lecionar na USP; é também por indicação sua que Léonard o substituirá como diretor e
professor da École Prátique des Hautes Études. A pedido de Febvre, Léonard escreve Le
Protestant Français (1955), obra que lhe rende dois prêmios e uma elogiosa resenha do
próprio Febvre na revista Annales.
Em maio de 1948 Léonard, desembarca em São Paulo onde ficaria por 2 anos e 8 meses.
Segundo Bastide a vinda de Léonard para USP atendeu ao pedido de Lucien Febvre e Fernand
Braudel (BASTIDE, 1962, p. 79). Sua vinda tinha uma finalidade dupla, por assim dizer:
lecionar e, sobretudo, pesquisar “o país que, naquele momento, tinha os mais altos índices de
crescimento do protestantismo mundial” (WATANABE, 2011, p. 86). E, de fato, sua estada
entre nós foi profícua. Sua inserção no cenário intelectual paulistano é digna de apreciação.
Em dois e oito meses, entre idas e vindas à França, além de ensinar na Faculdade, visitou e
conheceu o acervo de bibliotecas da capital e do interior, publicou em periódicos
confessionais, escreveu para o jornal O Estado de São Paulo, assinou resenhas, ocupou o
púlpito, freqüentou igrejas, ciceroneou e apresentou compatriotas ao público brasileiro,
estabeleceu amizades que perduraram pelos anos e leu a bibliografia pertinente à história do
país e do protestantismo. No entanto, seu grande feito entre nós foi ter produzido uma obra
absolutamente importante sobre o movimento evangélico nacional.
Na expressão de sua fé, ele freqüentou as Igrejas Cristã de São Paulo e Presbiteriana
Conservadora; visitou, ou na condição de convidado ou como pesquisador-observador, outras
igrejas - tanto aquelas ligadas ao protestantismo histórico como as que estavam à sua margem.
Por aqui, fez amigos, relacionou-se com líderes evangélicos e seus liderados, familiarizou-se
com os arquivos e bibliotecas – eclesiásticos ou não – e desenvolveu alta estima por dois
aspectos do protestantismo brasileiro: a evangelização e a Escola Dominical (LÉONARD,
1962, p. 9).
1530
Em dezembro de 1950, devido aos compromissos com a École em Paris, ele volta à França.
Os termos da carta-renúncia do seu contrato com a Faculdade deixam perceber seu afeto para
com a instituição e os brasileiros:
Instalado em Paris, ele assume efetivamente a direção da École Prátique des Hautes Études.
Em 1955, passa a integrar o Conselho Administrativo da Sociéte de l’Histoire de France.
Nessa década ele desfruta do respeito dos pares e passa a colecionar títulos e honrarias dentro
e, eventualmente, fora do país. No fim de outubro de 1961, uma queda causou a fratura da
perna e o agravamento do seu estado de saúde; é que ele, deprimido, vinha sofrendo de uma
forte crise anêmica. Por causa do acidente, não mais se levantou, falecendo em 11 de
dezembro.
Quando Léonard por aqui aportou, a presença protestante em nosso país não tinha completado
100 anos. Referimo-nos ao estabelecimento dos missionários a partir de 1855, com a chegada
do casal Kalley no Rio de Janeiro7. Tratava-se, segundo a opinião de Léonard, de um
protestantismo “ainda em sua primeira adolescência ou primeira infância” (LÉONARD, 2002,
p. 16).
Uma vez aqui, Léonard imediatamente se debruçou sobre a literatura produzida pelos
protestantes, sobre os autores e obras clássicas da história do Brasil e iniciou seus contatos e
7
Mencionamos isso porque o objeto de estudo que Léonard cunhou de “protestantismo brasileiro” diz respeito
tão somente às igrejas implantadas pelos missionários a partir da segunda metade do século XIX. Cf.
LÉONARD, Emile-G. O Protestantismo Brasileiro, p. 16 e, especialmente, p. 20. Os alemães luteranos dentre
outros estrangeiros, por um lado, e os pentescostais – aos quais ele denominava de “iluministas” -, por outro, não
foram por ele analisados. Os pentecostais, ou “iluministas”, até foram estudados, mas a parte dos “históricos”.
1531
conversações com estudiosos e líderes das igrejas evangélicas. Ainda estava por ser escrita
uma síntese do evangelicalismo brasileiro. Existiam trabalhos dispersos e alguns poucos
dedicados à história de cada denominação. Estes eram de importância relativa, uns mais
outros menos, variados quanto à temática e nem sempre de fácil acesso.
1985, p. 338-339).
Mendonça afirma que Léonard foi o iniciador “da historiografia protestante nos trilhos da
pesquisa científica, pois que até então os historiadores do protestantismo eram formados em
teologia e limitavam-se à uma história confessional, apologética ou polêmica e edificante”
(MENDONÇA, 2008, p. 288).
1532
Observando especialmente, mas não exclusivamente, os livros Cincoenta annos de
Methodismo no Brasil, Annaes da Primeira Egreja Presbyteriana de São Paulo e História dos
Baptistas no Brasil de 1907 até 1935, Watanabe contextualiza os mesmos no quadro da
produção historiográfica vigente no país e chega à conclusão de que eram obras influenciadas
- na sua metodologia - pela tradição dos Institutos Históricos e Geográficos estaduais e do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, livros que procuravam, de alguma forma, servir às
igrejas evangélicas no seu processo de legitimação na sociedade brasileira, majoritariamente
católica, demonstrando a superioridade civilizacional do protestantismo. Ademais, havia o
desejo de nacionalização, de autonomia das igrejas em relação às suas mães americanas
(WATANABE, 2011, p. 24-25) - justamente num momento histórico em que a geração
daqueles que conheceram os missionários fundadores já tinha desaparecido ou estava por
desaparecer.
O Protestantismo Brasileiro
8
Possuímos o original que nos foi ofertado pela Sra. Jeanne-Marie Léonard. O documento não tem registro de
data. Todavia, pelas informações nele contidas, é possível concluir que o mesmo foi redigido entre 1952 e 1953.
9
Possuímos uma cópia que nos foi ofertada pela Sra. Jeanne-Marie Léonard. Uma anotação feita pela própria no
verso da última folha registra a data do texto: 20/9/1948.
1533
5. Experiências Espirituais Francesas e Brasileiras, em Cooperador Cristão, setembro-
outubro de 1948;
10. Le probléme du messianisme dans ses rapports avec le nationalisme chez les nègres du
Brésil, em Le Monde Non-Chrétien, nº 19, 1951, p. 316-326;
1534
16. Pionniers de la foi, 1955, editora La Cause. Tradução do livro Bandeirantes da Fé, de
Maria de Mello Chaves, com introdução de 5 páginas e notas explicativas para o público
francês;
17. La Confession de foi brésiliene de 1557, em Archiv für Reformationsgeschichte, sem data,
p. 204-212, e em Mélanges Netter, 1958;
Além desses escritos, Léonard publicou Guillaume Apollinaire meu camarada de caserna no
jornal O Estado de São Paulo11, e assinou duas resenhas que também foram publicadas no
Brasil: Um Parlamentar Paulista da República, de Alfredo Ellis Júnior (REVISTA DE
HISTÓRIA, 1951, 215-219), e Séville et l’Atlantique (1504-1650), de Huguete e Pierre
Chaunu (REVISTA DE HISTÓRIA, 1956, 534-537). Outro escrito, não publicado, é o
fichamento da obra O índio brasileiro e a Revolução Francesa de Afonso Arinos de Melo
Franco12.
Os escritos mais conhecidos e, por certo, os mais importantes, são os maiores, que foram
publicados de forma independente – ou seja, em volumes próprios e não como parte de uma
coletânea ou de uma revista. O 1º a ser lançado foi L’Eglise Presbytérienne du Brésil et ses
expériences ecclésiastiques, que, conforme Léonard registra na primeira página, era parte de
uma obra em preparação (O Protestantismo Brasileiro). Foi publicado na França no 1º
semestre de 1949 e nunca vertido para o português. A comparação de L’Eglise com as páginas
de O Protestantismo Brasileiro dedicadas ao presbiterianismo no Brasil revela que, apesar do
que pode sugerir a observação do autor, não se trata do mesmo texto inserido numa obra mais
ampla.
10
Possuímos uma cópia, que nos foi enviada pela Sra. Jeanne-Marie Léonard.
11
Em 08 de agosto de 1948.
12
Possuímos uma cópia que nos foi enviada pela Sra. Jeanne-Marie, intitulada “Analyse de Franco (Affonso
Arinos de Mello), O Indio brasileiro e a Revolução Francesa. As origens brasileiras da theoria da bondade
natural. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1937. (Collection ‘Documentos Brsileiros’)”. O material, de 5
páginas, não tem data.
1535
pela editora presbiteriana. Aliás, o retardamento da publicação não significa que não tenha
havido interesse ou mesmo tentativas de fazê-lo. O Dr. Eurípedes Simões de Paula, diretor da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e editor da Revista,
compactuava desse interesse Infelizmente ele não chegou a vê-la publicada devido ao seu
falecimento em dezembro de 1961 - meses antes do lançamento de O Protestantismo
Brasileiro pela ASTE. Prefaciada por seu meu melhor amigo no Brasil, o livro possui dez
capítulos apensados a outras duas partes: uma introdução e um levantamento bibliográfico
comentado.
De partida, temos que observar esta obra sobre o Brasil foi escrita seguindo uma orientação de
Febvre, fato admitido pelo próprio autor, que procurou fazer uma “história social e
psicológica” (SALUM, 1962, p. 466-467). Nada mais natural visto que Léonard nutria grande
admiração por quem ele considerava o mestre da historiografia francesa dos nossos dias e
também porque naquele momento havia um declarado interesse dos annalistes pela América
do Sul.
Eis os aspectos reveladores da ligação de Léonard à Escola dos Annales, tais como se
mostram em O Protestantismo Brasileiro:
- os indícios daquilo que ficaria conhecido como psicologia histórica ou, mais comumente,
história das mentalidades (LÉONARD, 2002, p. 16)... “o que importava para ele era a história
das ideias” (GUIRAL, 1962, p. 32);
13
São os números dados por Salum no prefácio da obra (p. 12). Ele se baseia no original (p. 9) e não na edição
tal como a conhecemos. Esta possui 340 páginas (desconsiderado o prefácio do próprio Salum) e 745 notas
(incluídas as notas do tradutor).
1536
- “A comparação entre a Europa e o Brasil” para se servir “de uma imagem análoga, diagonal
ou oblíqua...” (LÉONARD, 2002, p. 16) trata-se de um exercício de inovação diante da
historiografia da época, inovação típica da nouvelle histoire soprada por Febvre, Bloch e
companhia. “Se é verdade que os Annales procuravam conhecer o passado a partir do
presente, num método regressivo, Léonard quer conhecer o presente do ‘outro’ para conhecer
o ‘seu’ passado” (WATANABE, 2011, p. 94);
Essa ampliação documental e construção de uma história que recusava o relato factual, tal
qual era praticada pelos historiadores eclesiásticos, permitiu a visualização de outros
agentes, em especial, os leigos, o início de comunidades menores e uma problematização
sobre quais grupos sociais nos quais o protestantismo teria tido maior aceitação
(WATANABE, 2011, p. 106).
Na “Introdução” o autor registra que seu estudo está relacionado a uma pesquisa mais ampla:
“os acontecimentos, as situações e as evoluções da história espiritual européia”. Não pretende
ser, diz ele, uma “história confessional” ou uma “história religiosa”, mas sim “um estudo de
eclesiologia e de história social religiosa” que consiste
na delimitação e no estudo das formas de Igreja que respondem a tais ou quais necessidades
religiosas, a tal ou qual psicologia, e no estudo dos problemas institucionais e práticos,
eclesiásticos e algumas vezes políticos levantados pela implantação e desenvolvimento de
crenças e de igrejas... estudo do “corpo social”... fazendo das Igrejas realidades, realidades
humanas, com todas as peculiaridades que surgem desta tradução da Idéia ao “real”
(LÉONARD, 2002, p. 16).
Léonard faz a comparação entre duas realidades, Europa e Brasil, mesmo reconhecendo que
seus estados são muito diversos, e revela seu pressuposto de que, ao se ter “uma consciência
mais profunda” dos referidos contextos, se conseguirá “uma compreensão melhor dos
fenômenos brasileiros atuais bem como dos fenômenos europeus de outrora”.
1537
Como partícipe do círculo dos Annales, a proposta de Léonard é inovadora. Ao se lançar no
“estudo de eclesiologia” ele está se referindo ao estudo dos problemas ocasionados pelas
“necessidades religiosas” assim como de outros (institucionais, práticos, eclesiásticos,
políticos) que surgiram no desenvolvimento das igrejas. Busca, dessa forma, entender a
“psicologia histórica” – expressão que já havia sido usada por Hernri Berr (1900), Marc Bloch
(1924) e Lucien Fevbre (1938) e que acabou sendo substituída pelo termo “mentalidades”
(BURKE, 1997, p. 132). Ao mesmo tempo, quando menciona “história social religiosa” ele
está advogando o estudo do contexto social como elemento básico de explicação do problema
religioso entre os homens e não apenas conforme as doutrinas e estruturas da instituição
(WATANABE, 2011, p. 105). O foco é o grupo na sua diversidade, e não os personagens
principais, os pastores ou a história institucional. Isso porque Léonard era, além de
historiador, ou melhor, por ser historiador, “um verdadeiro sociólogo (...) que se interessa pelo
real, pelo móvel, pelo social que se faz e continua a se transformar” (BASTIDE, 1962, p. 83).
Para tanto, ele se serve de uma gama considerável de documentos e fontes na elaboração do
seu texto. Eis aí, no material pesquisado e consultado, outra novidade encetada pelo modelo
historiográfico de Léonard. Que fique claro: novidade entre os autores que até então tinham
escrito sobre o protestantismo no país. É disso que trata a seção seguinte do livro: “Fontes e
Biliografia” – onde temos “uma ‘aula’ sobre como fazer história” (ARCI, 2012, p. 222).
Obras importantes contendo o histórico das igrejas evangélicas, clássicos da historiografia
brasileira, teses e monografias escritas por estrangeiros, estatísticas diversas, biografias,
periódicos denominacionais, atas, arquivos (públicos ou particulares), bibliotecas
(eclesiásticas ou não), papéis oficiais, documentos familiares, testemunhos orais, visitas de
campo etc., enfim, o francês seguiu à risca o mote da escola a qual pertencia: “tudo é
história”. Não somente pelo repertório documental e a utilização dos diversos tipos de fonte,
mas também pelos assuntos que se propõe a analisar - que revelam outro princípio caro aos
annalistes: o da “história-problema”, em oposição à história factual (WATANABE, 2011, p.
107) -, a abordagem leonardiana traz um sopro de novidade à historiografia protestante
vigente.
1538
A Historiografia Protestante Brasileira depois de Émile-G. Léonard
Foi assim que Émile-G. Léonard pode escrever sua magnífica monografia: O
Protestantismo Brasileiro. Estudo de eclesiologia e de sociologia religiosa, publicado na
Revista de História de São Paulo, assim como os diversos artigos publicados na Revista da
Faculdade de Teologia Protestante d'Aix ou na Biblioteca da Escola de Altos Estudos.
Quantas vezes discutimos juntos esses problemas, e eu pude acompanhar durante sua estada
brasileira o pesquisador atormentado pelo seu objeto. Eu digo: atormentado. Ao trabalho
para o qual estava proposto não faltavam dificuldades... Os documentos não faltaram, mas
eles estavam abandonados em algum armário empoeirado... Houve uma segunda fonte de
documentação, mais facilmente acessível, e que eu chamaria literatura sociológica: as
estatísticas de igrejas, dos pastores, dos fiéis, os regulamentos eclesiásticos, os jornais
religiosos. Porém, as cifras e os artigos não significam nada se não souberem ler, em
filigrana, a vida espiritual da qual eles não são mais que a expressão (...). Assim, durante a
pesquisa, o historiador se confunde em sociólogo, em um sociólogo sem dúvida oposto a
uma sociologia acadêmica que lhe parecia falsa, porém que faz de todo o conjunto de sua
obra uma contribuição valiosa tanto para a sociologia quanto para a história social do
protestantismo (BASTIDE, 1962, p. 82-84).
14
Conferir as páginas 21, 29, 33, 80, 110, 116, 124, 135, 141, 155 e 161.
1539
Em 1970, o americano Carl Joseph Hahn defendeu sua tese de doutoramento na Universidade
de Edimburgo, Escócia. A mesma ficou inédita em português até 1989 quando a ASTE, por
meio da tradução de Antonio Gouvêa Mendonça, lançou-a entre nós: História do Culto
Protestante no Brasil. A conclusão a qual Hahn chegou é aquela já presente em O
Protestantismo Brasileiro. Mendonça, na nota introdutória ao livro, foi preciso:
o autor constata que o culto protestante no Brasil contém um desvio básico: nunca é a
jubilosa resposta do homem ao amor de Deus pela humanidade mas é, antes, o
cumprimento de um dever acrescido de elementos. As “ordens de culto” são instruções para
o cumprimento desse dever. O fiel, ao mesmo tempo que cumpre um dever, aprende. Ora,
dever e aprendizado são trabalhos. Foi por isso que Léonard estabeleceu a diferença entre o
culto no Brasil e na Europa: aqui “culto = trabalho”, lá “culto = adoração” (HAHN, 1989,
p. 12).
No início e no final do seu texto, Hahn não tem dificuldade em assumir o que Mendonça e
qualquer leitor mais atento percebem: sua dependência de Léonard (HAHN, 1989, p. 23-24 e
359-360). Para Hahn, a obra do francês “é a mais completa obra sobre o protestantismo no
Brasil” (HAHN, 1989, p. 384).
Três anos mais tarde, outra tese de doutoramento foi defendida. David Gueiros Vieira
defende, na The American University, em Washington, D.C., Protestantism and The
Religious Question in Brazil: 1850-1875. Nela, encontramos o seguinte parecer: “the
scholarly, and to date the most complete, work on Protestantism in Brazil, by Professor
Émile-Guillaume Léonard, which contributed the germinal thought for the present study”
(VIEIRA, 1973, p. 7).
Em 1979, Rubem Alves trouxe a lume Protestantismo e Repressão15. Trata-se de sua tese de
livre-docência apresentada à UNICAMP. Nela Alves afirma ser possível estabelecer pelo
menos “três tipos ideais no Protestantismo”: o protestantismo de reta doutrina, o
protestantismo do sacramento e o protestantismo do espírito (ALVES, 1979, p. 35-36).
15
Atualmente o livro é publicado com o título Religião e Repressão.
1540
Indagamos: onde, ou em quem, ele se baseou para desenvolver esta tipologia? Ou teria sido
um insight dele? A julgar por suas palavras, não parece ser este o caso:
Não sou capaz de explicar o método que me levou a construir o tipo que irei descrever
(protestantismo de reta doutrina), no transcurso deste trabalho. Há emoções, valores,
experiências biográficas envolvidas no processo. Muitas sugestões me foram feitas pelas
discussões que já se deram em torno do assunto (ALVES, 1979, p. 35).
Asseguramos que se trata de uma ligeiríssima adaptação das “três vias de acesso ao divino”
mencionadas pelo francês. Alves conhecia a principal obra de Léonard. Ela aparece na
bibliografia, na seção “obras não-citadas” (ALVES, 1979, p. 289). Em outros escritos Alves
também se utiliza da reflexão de Léonard (ALVES, 1981, p. 130-131).
Para Leonildo Silveira Campos, “Emile Leonard (1891-1961) deixou uma notável obra no
campo da história do protestantismo francês e também da história social do protestantismo
brasileiro” (CAMPOS, 2008).
“Emile-Guillaume Léonard (...) é o responsável nesse período pela publicação de uma das
mais importantes obras de eclesiologia e história social do protestantismo brasileiro”, assevera
a antropóloga Lidice Meyer Pinto Ribeiro (RIBEIRO, 2007, p. 121).
Dentre os nomes que não optaram pelo protestantismo como tema de seus interesses, mas que
reconhecem a contribuição de Léonard no que se refere à bibliografia nacional referente ao
tema, citamos alguns. Isaac Nicolau Salum, na conclusão do prefácio dO Protestantismo
Brasileiro, desfere: “são estes, pois, seus grandes méritos: trabalho pioneiro, documentação
rigorosa, lúcidas intuições, exposição muito agradável” (LÉONARD, 2002, p. 17).
Para Eurípedes Simões de Paula, o francês era “grande conhecedor da História Social da
França e da Itália na época moderna, deixou marcada sua presença no Brasil com uma
excelente História do Protestantismo no Brasil, publicada em fascículos pela Revista de
História” (PAULA, 1971, p. 430).
Referindo-se aos franceses que serviram à USP, Novais diz que todos eram
1541
especialista em História do Protestantismo, escreveu um artigo muito interessante sobre o
protestantismo no Brasil (NOVAIS, 1994)16.
José Ribeiro de Araújo Filho, Aziz Simão e Eduardo d’Oliveira França, todos catedráticos na
USP, e que foram alunos da geração francesa, testemunham: “Este esteve no Brasil (...) e ao
voltar à França sucedeu a Lucien Febvre na Universidade de Paris, tornando-se, por sua obra,
a maior autoridade francesa em História da Reforma Protestante; em São Paulo escreveu
trabalho fundamental sobre a História do Protestantismo no Brasil” (FILHO, SIMÃO e
FRANÇA, 1989, p. 26).
Na sua Teoria da História do Brasil, ao discorrer sobre a temática religiosa, José Honório
Rodrigues pontua que “estudos como os de José Carlos Rodrigues, de Erasmo Braga e
Kenneth Grubb, e especialmente de Emile G. Leonard, revelam o nascimento e a expansão
paulatina das várias seitas protestantes que contam, hoje, com mais de dois milhões de fiéis”
(RODRIGUES, 1978, p. 189).
Por fim, evocamos Antonio Gouvêa de Mendonça, autor que mais escreveu em nosso país
sobre o tema abordado por Léonard – o protestantismo brasileiro. Ele contextualiza a
contribuição de Léonard assim: pioneirismo, ao lado Bastide e Henri Desroche nos estudos da
religião no Brasil – o primeiro em relação ao candomblé, o segundo quanto aos milenarismos
16
Disponível em http://moodle.stoa.usp.br/file.php/1216/IEA22/Fernando.pdf. Acesso em 05/10/11.
1542
e messianismo, e Léonard no que concerne ao protestantismo (MENDONÇA, 2008, p. 254).
Léonard foi também “o iniciador da historiografia protestante no Brasil nos trilhos da
pesquisa científica” (MENDONÇA, 2008, p. 288). E arremata, referindo-se à obra maior do
francês: “julgo este livro o primeiro a ser escrito ‘para fora’, para o mundo extra-eclésia...”
(MENDONÇA, 2004, p. 3).
Considerações finais
Referências
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17
Le Monde. Disponível em <www.lemonde.fr/web/recherche_breve/1,13-0,37-1212650,0.html>. Acesso em 07
dez 2012.
1543
ALVES, Rubem. As idéias teológicas e os seus caminhos pelos sulcos institucionais do
protestantismo brasileiro. In: História da Teologia na América Latina. 1ª ed. São Paulo:
Edições Paulinas, 1981, p. 127-137.
FILHO, José Ribeiro de Araújo; SIMÃO, Aziz & FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Relatório
sobre os Professores Franceses. In: CARDOSO, Luiz Claudio &
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1990.
HAHN, Carl Joseph. História do Culto Protestante no Brasil. 1ª edição. São Paulo: ASTE,
1989.
LE BRAS, Gabriel & Groupe de Sociologie des Religions. Emile-G. Léonard (1891-1961).
Archives des sciences sociales des religions – EHESS, vol. 14, n. 14, Paris, p. 3-6, 1962.
LÉONARD, Émile-G. O Protestantismo Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: JUERP & ASTE,
1981.
1544
__________. Resenha Bibliográfica. Revista de História – USP, vol. 2, n. 5, São Paulo, p.
217-219, 1951.
__________. Resenha Bibliográfica. Revista de História – USP, vol. 7, n. 27, São Paulo, p.
534-537, 1956.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Dois Pioneiros e ‘Un Passeur de Frontières’. In: TEIXEIRA,
Faustino (org.). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Paulinas, 2008, p.
251-295.
RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. O protestantismo brasileiro: objeto de estudo. Revista USP –
USP, n. 73, São Paulo, p. 117-129, março-maio 2007.
RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil. 5ª edição. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1978.
SALUM, Isaac Nicolau. O Prof. Emile-G. Léonard e o Brasil. Revista de História – USP, n.
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SOUZA, Beatriz Muniz de. A experiência da salvação: Pentecostais em São Paulo. São
Paulo: Duas Cidades, 1969.
VIEIRA, David Gueiros. Protestantism and The Religious Question in Brazil: 1850-1875.
Orientação de Harold E. Davis. Tese (Doutorado em História), The American University,
Washington, D.C., 1973.
1545
WILLAIME, Jean-Paul. O protestantismo como objeto sociológico. Estudos da Religião –
UMESP, ano XIV, n. 18, São Bernardo do Campo, p. 13-37, 2000.
Internet
1546
1547
História e historiografia da imprensa presbiteriana no segundo
reinado
Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros1
Introdução
Esse artigo é um breve resumo do que temos analisado em nível de mestrado. O nosso tema é
a história da inserção do protestantismo no Brasil imperial. Nosso foco é a análise do primeiro
periódico protestante publicado no Rio de Janeiro, a Imprensa Evangelica, jornal de
publicação presbiteriana. Nossa principal preocupação com o presente artigo é apresentar ao
leitor, de forma panorâmica, quem foram as principais personagens envolvidas na produção
desse periódico, quais eram suas principais linhas editoriais e por fim, fazer uma contribuição
historiográfica, apresentando os principais trabalhos publicados no Brasil que abordaram este
tema.
Como referencial teórico, nós partimos das reflexões de Pierre Bourdieu a respeito das
relações entre o campo religioso e o campo político. Entendemos que o campo religioso
brasileiro constitui-se como um espaço de luta entre o novo que estava se inserindo naquele
momento, isto é, o protestantismo, e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que
tende a conservação e a defesa do monopólio da gestão dos bens de salvação, excluindo a
concorrência. Além disso, outra reflexão importante de Bourdieu para a nossa análise é a
afirmação de que a “a subversão herética reclama-se do regresso às primeiras fontes, à
origem, ao espírito, à verdade do jogo, contra a banalização e a degradação da qual ele foi
objeto” (BOURDIEU, 2003, p. 119).
O Brasil imperial era constitucionalmente católico, mas tolerava outras religiões com
restrições. Entretanto, devido a necessidade de atrair imigrantes no processo de substituição
gradual da mão de obra escrava pela livre, diversos protestantes passam a constituir colônias
no Brasil, sem intenções proselitistas, o que muda com a vinda dos missionários, a partir do
segundo reinado, e principalmente a partir do momento em que eles passam a publicar artigos
religiosos na imprensa.
1. Fundadores do jornal
1
Mestrando em História pela UFRRJ. Licenciado em História pela UFRRJ. Orientador: Prof. Dr. Marcello
Otávio Néri de Campos Basile. Contato: phcmedeiros@yahoo.com.br.
1548
A missão presbiteriana no Brasil teve início em 12 de agosto de 1859 com a vinda do jovem
reverendo Ashbel Green Simonton, enviado pela Board Foreing of the Presbyterian Church
dos Estados Unidos. Suas primeiras atividades foram com os marinheiros norte-americanos,
tripulantes do navio John Adams comandado pelo capitão Mason, principalmente. Essa
atividade, entretanto, durou pouco tempo, desestimulado pelo choque entre o puritanismo de
Simonton e a “vida muito frívola” dos marinheiros (MATOS, 2002, p. 126-128).
Semanas depois, ocorre o conflito entre os dois missionários, motivado por intrigas a respeito
das intenções de Simonton sobre o campo missionário carioca. Após a resolução do
imbróglio, Kalley expõe sua ansiedade por cultos públicos e que só não os iniciava por temer
não ser bem sucedido ou estabelecer maus precedentes. Julgava que Simonton seria melhor
amparado na tentativa, pois não era visado pessoalmente, e teria a proteção do consulado
americano. “Informou-me que tinha tido a opinião de alguns dos melhores advogados daqui
sobre a legalidade da tentativa” (MATOS, 2002, p. 135).
Ao citar “a opinião de alguns dos melhores advogados”, Kalley fazia referência a uma
situação em que estava envolvido. Em 07 de janeiro de 1859, receberam o batismo em sua
Igreja, as senhoras Gabriela Augusta Carneiro Leão e sua filha Henriqueta Soares do Couto;
Gabriela era irmã de Honório Hermeto Carneiro Leão, marquês do Paraná, e de Nicolau Neto
Carneiro Leão, futuro barão de Santa Maria; isto é, Kalley havia batizado duas damas da
Corte, num país com restrições ao proselitismo.
1549
A situação de Kalley se agravou quando o visconde do Rio Branco o denunciou perante o
consulado britânico, por desobediência às leis brasileiras de restrição aos cultos divergentes
do catolicismo. Para se defender, Kalley enviou uma relação de questões a respeito dos
limites da tolerância religiosa no Brasil a três juristas brasileiros: José Thomaz Nabuco de
Araújo, Urbano Sabino Pessoa de Mello e Caetano Alberto Soares. A resposta que ele obteve
desses juristas foi amplamente favorável a liberdade do culto protestante em solo brasileiro.
Em 16 de julho de 1859, munido da resposta dos juristas, ele envia sua defesa ao consulado
britânico, e apela para o fato de que se a situação não se resolvesse, ele estaria no direito de
informar a todos os países donde o Brasil esperasse colonos imigrantes para que não se
enganassem com a liberdade aparente na Constituição do Império. Em 03 de agosto de 1859,
o governo aceita a documentação e põe um fim à demanda (REILY, 1984, p. 97-100), De
acordo com Douglas Nassif Cardoso (2001, p. 134), “estes pareceres e a resolução
governamental foram a jurisprudência necessária para a implantação do protestantismo no
Brasil, servindo de referência aos demais grupos que começaram a chegar ao país”, essa
análise corrobora com o que a fonte diz a respeito do encontro entre Kalley e Simonton.
Dentre as atividades missionárias de Kalley, a que mais interessa para nosso estudo é a
frequente publicação de artigos religiosos em jornais da Corte. De acordo com David Gueiros
Vieira (1980, p. 132), Kalley teria publicado entre outubro de 1855 a dezembro de 1866,
aproximadamente, trinta e cinco artigos no Correio Mercantil. No mesmo jornal, também
teria publicado em série a obra O Peregrino de John Bunyan. No Jornal do Commercio, a
partir de 1864, Kalley também teria publicado artigos que teriam provocado os ultramontanos.
Ainda de acordo com Vieira (1980, p. 147) os artigos escritos por Kalley teriam influenciado
Simonton a tomar a decisão de fundar a Imprensa Evangelica.
1550
Brasil. Foi uma ocasião de alegria e prazer. Muito antes que minha pequena fé esperava, Deus
permitiu-nos ver a colheita dos primeiros frutos de nossa missão” (MATOS, 2002, p. 152).
Em novembro 1863, Blackford vai até Rio Claro para conhecer o padre protestante. A
conversa teria sido sobre a obra redentora realizada por Jesus, sem muitas polêmicas. “Ambos
estavam de comum acordo a respeito dos textos bíblicos lidos” (CÉSAR, 2000, p. 107). Quase
um ano depois, em 23 de outubro de 1864, Conceição prega seu primeiro sermão em uma
igreja não católica e professa sua fé em Jesus Cristo, tornando-se evangélico. E em 17 de
fevereiro de 1865, o recém-formado Presbitério do Rio de Janeiro ordena Conceição ao
ministério pastoral, sendo este então o quarto ministro presbiteriano do Brasil.
Conceição, entretanto, de acordo com o que a historiografia tem apontado até agora, manteve
sua singularidade enquanto pastor presbiteriano, ele não aceitava permanecer fixo em um
lugar, antes preferia manter uma vida de evangelista itinerante. Na sua missão itinerante,
1551
Conceição teria visitado ao todo quarenta cidades, trinta e duas na província de São Paulo,
cinco no Rio de Janeiro e três em Minas Gerais (CÉSAR, 2000, p. 109). De acordo com
Émile G. Léonard (1981, p. 64-67), Conceição foi útil aos missionários americanos, para abrir
caminho, principalmente em São Paulo, lançando os fundamentos de diversas congregações.
Por fim, falemos um pouco de Antônio José dos Santos Neves, poeta, taquígrafo do Senado,
funcionário do Ministério da Guerra e membro do partido liberal. Convertera-se ao
protestantismo presbiteriano em 1863. De acordo com Vieira (1980, p. 150), Santos Neves via
o protestantismo como “fonte de ‘progresso’”. Como poeta escreveu uma obra de dois
volumes, o primeiro intitulava-se Louros e Espinhos, continha versos patrióticos e religiosos
sobre a Guerra do Paraguai, além de um apelo ao imperador para conceder plena liberdade de
culto no país; o segundo intitulava-se Homenagem aos Heróis Brasileiros na Guerra Contra
o Governo do Paraguai Sob o Comando em Chefe dos Marechais do Exército, Sua Alteza
Real o Senhor Conde D’Eu e o Duque de Caxias. Oferecido a Sua Majestade Imperial o
Senhor Dom Pedro II. Como protestante, compôs uma série de hinos adotados pelas igrejas
evangélicas. Em 1868, tornou-se maçom, convidado por um presbiteriano, Possidônio M. de
Mendonça Jr; e, em 1872, publicou um poema em homenagem à Maçonaria no qual
reclamava a abolição da escravatura.2 Na Imprensa Evangelica, Simonton registra que ele
contribuía compondo poemas para serem publicados na folha (MATOS, 2002, p. 169).
Defendemos que houve duas linhas editoriais principais no jornal, uma propriamente
religiosa, e outra mais política. Ao analisarmos a linha religiosa do jornal pudemos identificar
a formação intelectual e religiosa de Simonton, que dirigiu o jornal de 1864 até 1867, e de
Blackford que dirigiu o jornal de 1868 até 1876. E ao analisarmos a linha mais política,
pudemos identificar os contextos históricos nos quais os redatores estavam inseridos, além
2
Vieira (1980, p. 164) informa que Possidônio se ofereceu a ajudar a Imprensa Evangelica na solicitação de
assinaturas em 1867, ele teria conseguido um número considerável de assinaturas.
1552
dos diálogos que eles mantiveram com determinados discursos políticos da época. Seguindo
as orientações de John Pocock, ao analisarmos o jornal procuramos conhecer as situações
históricas e os contextos a que o editor estava situado e aos quais sua enunciação se vinculava
(POCOCK, 2003, p. 67-75).
1553
emotiva. Para Velasques Filho (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2008, p. 94-95) a
teologia dos metodistas estava baseada no tripé: arminianismo, puritanismo e pietismo. Como
arminianos, eles defendiam que a salvação estava condicionada a uma experiência pessoal de
fé de cada um, e não a um pré-determinismo de Deus, e uma vez aceitando a Cristo para
salvação, podia-se rejeitá-lo. Como puritanos, eles defendiam que o eleito deveria dar sinais
exteriores de salvação, a inatividade religiosa era muito mal vista, o ativismo, por outro lado,
era considerado sinal de fé e de eleição. E como pietistas, eles defendiam o progresso
espiritual do crente em busca da “perfeição cristã”, não se preocupavam com disputas
teológicas, viviam isolados do mundo e eram predominantemente leigos.
Após a expansão do metodismo, ocorre o II Grande Despertar. Para Mendonça (2008, p. 86-
87), a ênfase desse movimento centrava-se na “descida do Espírito Santo” e no combate aos
vícios. As pregações procuravam introduzir todas as tradições teológicas, a fim de atenuar as
divergências entre as diversas seitas. A teologia desse avivamento era uma resposta às
condições de uma sociedade em que as oportunidades estavam abertas a todos, portanto, devia
estar desprendida do calvinismo tradicional que pregava a soberania absoluta de Deus e a total
incapacidade do homem. O principal personagem deste momento é Charles Grandison
Finney, que passou a entender, após sua conversão, a salvação como um assentimento
intelectual voluntário. Assim um conceito que também se forma neste momento é o
evangelicalismo, dando ênfase mais na experiência de conversão do que na própria conversão,
uma experiência que se repetiria ao longo da vida cristã (MENDONÇA; VELASQUES
FILHO, 2002, p. 82-87).
Outra questão levantada por Mendonça (2008, p. 92) a respeito dos avivamentos foi a ideia de
se formar uma civilização cristã que ultrapassasse as fronteiras americanas, base para a
empresa missionária. No século XIX, desenvolveu-se a ideia de que a vinda do Reino de Deus
se daria com a implantação da civilização cristã no mundo.
1554
mundo real e a capacidade da memória de conhecer objetivamente o passado. A Bíblia torna-
se fonte exclusiva do conhecimento de Deus, e seu estudo deveria, obrigatoriamente, ser
baseado na literalidade do texto. O estudo científico não seria rejeitado, conquanto não
contradissesse a fé.
3
O dispensacionalismo pode ser considerado como sendo uma filosofia cristã da história. Tal doutrina sustenta
que a relação de Deus com o homem está dividida em sete dispensações, todas elas referidas na Bíblia. A última
dispensação é o milênio, quando a humanidade estará sob o governo pessoal de Jesus Cristo (MENDONÇA;
VELASQUES FILHO, 2002, p. 124).
1555
1868; “A historia da igreja”, publicado em 19 de setembro de 1868; e, “Historia
ecclesiastica”, publicado entre 03 de outubro de 1868 até 1º de julho de 1871. Para o editorial,
o cristianismo estava dividido em algumas fases históricas. O primeiro período era o do
cristianismo primitivo, “notavel por sua simplicidade e pureza”, esse período foi até
Constantino. De Constantino até a Reforma Protestante, a “gloria do christianismo apostolico
[ficara] mareada pelo espirito ambicioso e carnal”. Na Reforma Protestante ocorrera “a
ressurreição rapida da igreja do Deus vivo do sepulcro de superstição em que por seculos
tinha estado encerrada” (IMPRENSA Evangelica, 1868, p. 116 e 172).
Uma série de artigos em defesa da liberdade religiosa é publicada ao longo das duas primeiras
fases do jornal. O jornal defendia que a liberdade religiosa tinha importância mundial
(IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 116, 127, 136). Em outros momentos defendia que a
liberdade religiosa era necessária para o progresso social e econômico brasileiros, a exemplo
de outros países nos quais havia essa liberdade (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 165). Para
os redatores, a liberdade religiosa também não deveria estar fundamentada em filosofias
iluministas e sim em leis práticas, deixando a cada um a possibilidade de escolher a melhor
confissão (IMPRENSA Evangelica, 1866, p. 65-66, 73-74, 81-82, 89-90, 97-98).
Algo que também chamou nossa atenção ao longo da análise é o diálogo que o editorial da
Imprensa Evangelica manteve com o discurso liberal, principalmente, com o discurso de
1556
Aureliano Cândido Tavares Bastos. A primeira menção a Tavares Bastos no jornal ocorreu
em 06 de abril de 1867, com a transcrição do artigo “reflexão sobre a imigração”. Para os
editores, não havia dúvida que os estadistas brasileiros entendiam a necessidade de se garantir
a liberdade religiosa, bastava apenas estabelecer as bases dessa liberdade. Tavares Bastos
defendia que aqueles que queriam restringir a liberdade religiosa eram retrógrados, opositores
do progresso (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 54).
Em 03 de agosto de 1867, Tavares Bastos é mencionado novamente no jornal, dessa vez para
destacar o seu projeto de casamento civil. No entanto, o jornal lamentava o fato de que o
projeto estivesse engavetado (IMPRENSA Evangelica, 1867, p. 116).
1557
na situação cultural propícia à aceitação no País, das Denominações Protestantes” (RIBEIRO,
1973, p. 11-12). O autor defende que pelo menos em três setores: legislativo, político e
religioso; a sociedade brasileira já estava se preparando para a aceitação do protestantismo,
antes mesmo da chegada dos missionários. Sua tese é a de que o sistema brasileiro aceitou o
protestantismo de forma “consciente e deliberadamente” (RIBEIRO, 1973, p. 31).
David Gueiros Vieira também mantém um diálogo com Émile Léonard e com Boanerges
Ribeiro. Em sua obra O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil,
publicada em 1980, fruto de sua tese de doutorado, o autor procurou examinar outro campo
que possibilitou a inserção dos protestantes ao longo da segunda metade do oitocentos, isto é,
a maçonaria. Vieira procurou demonstrar como os maçons estavam extremamente vinculados
aos protestantes, tanto os protegendo ante os clérigos ultramontanos, quanto os apoiando na
prática missionária. Houve, também, jornais protestantes que transcreveram artigos escritos
por maçons. O estudo de Vieira possui grande valor por ser extremamente denso em questão
de fontes. Embora se baseie em uma teoria que ele próprio diz ter “má reputação”: a teoria da
conspiração, defendendo que forças maçônicas, republicanas, protestantes, liberais e outros
grupos se aliaram para destituir o poder político da Igreja Católica (VIEIRA, 1980, p. 12).
Outro autor a ser destacado é Antônio Gouvêa Mendonça e sua obra O Celeste Porvir: A
inserção do protestantismo no Brasil, com primeira edição em 1984, fruto de sua tese de
doutorado em Ciências Sociais pela USP. Nesta obra o autor procurou demonstrar como a
mensagem missionária foi aceita pela sociedade brasileira. A preocupação que norteia o seu
trabalho é analisar o protestantismo recebido por aqueles que realmente se converteram à
nova fé: o homem pobre da zona rural de São Paulo. Tendo em vista que aquela camada da
população brasileira, em sua maioria, era analfabeta, o autor destacou a importância que o
primeiro hinário protestante - Salmos e Hinos - teve na expansão da fé, exercendo,
principalmente, um papel pedagógico, substituindo, por vezes, o discurso doutrinário do
pastor que visitava a comunidade raramente.
A primeira crítica ao trabalho de Léonard que encontramos foi feita por Mendonça, na obra
que escreve em conjunto com Prócoro Velasques Filho, professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, intitulado Introdução ao Protestantismo no Brasil, publicado em
1990. Para Mendonça, Léonard não teria estabelecido um diálogo necessário com a sociedade
brasileira nem com a Igreja Católica, descumprindo o que havia prometido, isto é, “propor um
estudo de eclesiologia e história social” (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2002, p. 83).
1558
As principais contribuições deste trabalho de Mendonça e Velasques Filho se centram na
atenção que é dada às mudanças de ordem social, teológica e filosófica que atingiram tanto a
sociedade brasileira quanto a sociedade norte-americana, lugar de origem da maioria dos
missionários.
Sobre a imprensa protestante no XIX, temos a obra de José Carlos Barbosa, Negro não entra
na Igreja: espia pela banda de fora; protestantismo e escravidão no Brasil Império,
publicado em 2002, fruto de sua dissertação de mestrado pela UnB. Analisando jornais e
cartas de viajantes, Barbosa defende que na inserção do protestantismo no Brasil, houve
pouca preocupação social com os negros, para os missionários era muito mais importante a
evangelização e a conquista da mente dos brasileiros. Para o autor, os missionários só se
preocuparam com a abolição quando ela já era iminente. Por fim, o autor defende que aqueles
que se preocuparam com a escravidão não o fizeram por motivos sociais, e sim por motivos
econômicos, pois esse era um entrave para o progresso do Brasil.
1559
diferentes fases do jornal, ela defende que a Imprensa Evangelica pode ser dividida em quatro
fases: a gestão de Simonton (1864-1867), a gestão de Blackford (1868-1876), a gestão de
George Whitehill Chamberlain (1877-1885) e a última fase de 1886-1892, que a autora não
conseguiu identificar uma gestão clara, pois, esse é o período em que ocorrem os conflitos
entre os missionários americanos e os nativos na direção da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Sem dúvida alguma essas obras não representam e nem chegam perto da totalidade de obras
escritas a respeito do protestantismo no Império, mas cremos que as obras abordadas aqui
representam um conjunto muito importante para o nosso tema.
Conclusão
Sem dúvida alguma, devido ao espaço exíguo de um artigo, esse texto ficou com diversas
lacunas. Procuramos apresentar um pouco daquilo que estamos estudando de forma bem mais
aprofundada em nossa pesquisa.
Neste texto procuramos defender a ideia de que a formação intelectual dos missionários, e
suas redes de sociabilidade no Brasil refletiram diretamente na produção dos artigos da
Imprensa Evangelica. E de forma a contribuir para produção de novas pesquisas, procuramos
apresentar de forma panorâmica os principais trabalhos a respeito da inserção do
protestantismo no oitocentos.
Referências
BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na Igreja. Espia pela banda de fora: Protestantismo
e escravidão no Brasil Império. Piracicaba: Unimep, 2002.
1560
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley. Médico, missionário e profeta: A história da
inserção do protestantismo no Brasil e em Portugal. São Bernardo do Campo: edição do autor,
2001.
SANTOS, Edwiges Rosa dos. O jornal Imprensa Evangélica. Diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1892). São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2009.
Fontes
MATOS, Alderi Souza de (Org.). O diário de Simonton 1852-1866. 2ª ed. Cambuci: Editora
Cultura Cristã, 2002.
1561
1562
O protestantismo e a historiografia no Brasil: crise conceitual
João Marcos Leitão Santos1
Introdução/Status Quaestiones
Este trabalho, informamos de saída para evitar frustrações nos eventuais leitores abre mão
deliberadamente do caráter propositivo, pois o status de provisoriedade da investigação a que
se encontra, conforme anunciado no tema, ainda não lhe permite uma proposição como teses a
ser demonstrada. Antes se constitui uma interrogação para ouvir dos colegas que se debruçam
sobre o protestantismo brasileiro sobre a validade da concepção majoritária de que não é
possível a construção de um ponto gregário a partir do qual se possa oferecer uma identidade
– com todas as ambiguidades que esta ideia contém – para o protestantismo brasileiro, sim, no
singular, e que também trará consequências próximas por exigir que certas práticas religiosas
tão residuais e quase caricaturadas que são nomeadas como protestantismo ou como
derivações deste passem a exigir novas caracterizações.
1
Doutor em História Social/USP. Professor do PPG em História da UFCG. Contato: tmejph@bol.com.br.
1563
no processo de reconhecimento do protestantismo no ocidente, e algumas inflexões sobre a
questão conceitual.
Toda protestatio possui um caráter religioso. Seu caráter legal permanece com instrumento
jurídico pelo uso que faculta a alguém que encontra sob ameaça ou imagina está sobre ela no
futuro. Este caráter ganha maior associação as origens do protestantismo se nos reportarmos a
um evento específico, a Dieta de Spira em 1529, esta já uma negação dos direitos
reconhecidos pela Dieta de 1526. Mas esta problemática distancia-se do tema proposto para
esta comunicação.
Mais importante talvez seja registrar que os debates dela decorrentes se incluiu o fenômeno de
consciência, uma vez que a crença religiosa não permitia flexibilizações, exigia um
comprometimento radical, onde a responsabilidade pessoal já não se submetia a decisão da
maioria. Não se há de ignorar, todavia, as implicações políticas desta questão. Porém, será
este reconhecimento político da maioria sobre a decisão de consciência de uma minoria, o
determinante da inserção histórica e da caracterização substantiva do protestantismo nascente.
1564
Ao afirmar categoricamente o domínio da Escritura sobre as suas consciências, fixam a
determinação desta mesma Escritura sobre a totalidade das suas experiências pessoais e
eclesiais.
Roger Mehl já nos lembrava que os fatos sociais tem uma dimensão axiológica, do qual nem
um grupo social pode eximir-se. E afirmando que nenhuma sociologia do cristianismo pode
prescindir de uma sociofenomenologia do objeto religioso específico" (MEHL, 1974, p. 12) e
completa afirmando que o protestantismo se entende como responso de uma palavra viva
manifesta em livros sagrados, de onde derivam suas práticas comportamentais; daí que sua
preocupação primária é com a pregação da Palavra de Deus. No protestantismo a comunidade
é a imagem da situação existencial dos fiéis diante de Deus.
O protestatio possui uma implicação inalienável de liberdade que a ele se impunha, que era
revestida de uma natureza escatológica ao fixar que se destinava a “todos os que agora e no
futuro estiverem abertos a Santa palavra de Deus” como entendeu Lutero (WHALLE, 1967)
Daí o protestantismo evoluiu para significar, predominantemente, num conceito coletivo para
designar as igrejas e comunidade cristãs que se distinguem da Romana, e que o fazem por
uma determinada maneira de compreender a eclesialidade, a igreja, inevitavelmente, por
exigência do rigor histórico, associadas ao movimento de Reforma religiosa do século XVI,
mesmo havendo comunidades que se organizaram em períodos posteriores guardando
características herdadas de seus momentos fundadores, que fazem com que a sua identificação
com os determinantes históricos do protestantismo seja uma tarefa simplista, porém,
necessária, reconhecendo que as próprias igrejas cujas raízes estão no século XVI, tem sido
objeto de mudanças específicas, matizadas na trajetória histórica e cultura da sua inserção.
1565
Se entendermos que do ponto de vista epistemológico o conceito se constitui uma síntese de
marcas segundo as quais os entes os abrangidos pelo conceito não se distinguem, porque o
conhecimento científico exige clareza conceitual, produzida pelo rigor do método, nos vemos
sobre a exigência cognitiva de operar distinções, que sejam cartesianamente claras e distintas.
Como já sugeriu Stuart Hall, as identidades, que adquirem sentido por meio da linguagem e
dos sistemas simbólicos, fazem com as representações identitárias, atuem simbolicamente
para classificar o mundo e suas relações, portanto, é, em substância, relacional, depende para
existir de algo fora dela que fornece condições para que ela exista, operando dialeticamente
1566
no binômio negação-similaridade, e fazendo com que a diferença seja sustentada pela
exclusão, quase sempre de natureza simbólica em detrimento da dimensão fática, diferenças
que possuem hierarquias e a graus (Cf. HALL, 2000).
O protestantismo, portanto, como fenômeno multifacetado, exige para sua compreensão que
se percorra concepções várias, que possibilitem nessa pluralidade maior precisão. Por isso diz
Anderson que “se tivermos que para compreender corretamente o protestantismo teremos que
levar em conta tanto os seus frutos como a suas raízes, seus resultados e o que dele procede”.
(ANDERSON, 1953, p. 164) (grifo nosso). Neste esforço de compreensão se sobressaem dois
aspectos principais: a realidade eclesial ou religiosa e a realidade filosófica, que impõe a
necessidade de se caminhar para além do senso comum, e um exercício intelectivo categórico
e conceitual.
Cada cultura como sistema partilhado de significações tem suas formas de classificar o
mundo, e constrói lugares sob um certo grau de consenso. (EAGLETON, 2005), e serve de
intermediação da experiência, fornecendo categorias básicas de autoridade (RAYMOND,
2000). Por isso, “separar, purificar, demarcar e punir transgressões tem como sua principal
função impor algum tipo de sistema a uma experiência inerentemente desordenada. É apenas
exagerando a diferença entre o que está dentro e o que está fora, acima e abaixo, homem e
mulher, a favor e contra, que se cria a aparência de alguma ordem” (DOUGLAS, Apud.
HALL, 2000, p. 46).
Neste ponto é possível afirmar que o protestantismo (o complexo inteiro) pode ser visto
também sob duas outras características, uma de uma negação e uma de afirmação,
significando que o protestantismo constitui-se uma recusa/superação a determinadas
expressões históricas tanto sociais, como eclesiais e filosóficas, e que também deve ser
reconhecido por aquilo que ele afirma e não apenas por situar-se negativamente em relação a
1567
realidades que estavam postas, porque “o protestantismo se originou daquilo que os
reformadores criam e não daquilo que eles negavam” (KERR Jr, Apud AMARAL 1962, p.
109).
A forma que assumiria este novo homem seria resultado do seu encontro com a liberdade, e
o usufruto da liberdade de consciência, autonomia condicionada na doutrina cristã
reformada pelas intervenções permanentes do Espírito Santo, a que cabia delinear a forma
pneumática desta nova consciência.
Há outra faceta que importa ser colocada previamente para esta reflexão que diz respeito a
originalidade do protestantismo. A reforma não foi original por protestar, esta já era uma
experiência da Igreja desde os seus primórdios, e os princípios que o protestantismo defendeu
e que o caracterizaram, não foram também originais, mas a sua relevância está na ênfase dada
a cada uma destas questões.
1568
Neste sentido nos aproximamos da necessidade de construir categorias operacionais para o
tratamento analítico do protestantismo, uma vez que as Categorias são modos de atribuição de
um predicado a um sujeito que interpela sua substância, o que é e a qualidade qual atributo
lhe serve de predicado, e são unidades de classificação para ordenar e classificar os fatos da
experiência.
Da mesma forma não se deve identificar como protestantismo o somatório das denominações
religiosas, que na experiência brasileira tornou-se majoritária e quase hegemonicamente
evangelical, que apesar de conterem elementos de história e formulações doutrinárias
aproximadas, também não constrói relação de identidade com os princípios especificamente
protestantes.
Neste ponto talvez seja útil a compreensão lembramos a tese de Troeltsch (2008) de
demonstrar que o cristianismo não é inteligível sem a história dos influxos sociais do seu
ambiente, examinando como as necessidades ligadas a existência de comunidades cúlticas
explicam o desenvolvimento do dogma e como a ética da igreja tem exercido influência social
determinando formas de organização política, jurídica, econômica e sociocultural. Na
primeira intenta demonstrar a vitalidade do grupo religioso e no segundo as funções sociais
que leva a efeito uma religião nos domínios da ética social.
Nesta lógica é possível inferir que o protestantismo se entende como responso de uma palavra
viva manifesta em livros sagrados, de onde derivam suas práticas comportamentais; daí que
sua preocupação primária é com a pregação da Palavra de Deu, e nele a comunidade é a
imagem da situação existencial dos fiéis diante de Deus.
A religião tem sua característica básica no transmitir-se, o que faz por meios diversos e não se
transmite sem evoluir internamente. Só a história nos permite entender como alguns aspectos
das comunidades religiosas mantém o estilo com que se difundiram. Se a história nos fornece
os dados em sucessão e as formas, a sociologia os requer para formar seu conceito da religião
que investiga e também para entender seu processo evolutivo. "O objetivo do sociólogo é
1569
reconstruir tipos religioso..." (MEHL, 1981, p. 41) para distinguir os fenômenos entre si,
portanto, para o representar conceitualmente.
Outra especificidade que não deve ser suficiente para produzir identidade de uma comunidade
como o protestantismo é a sua exclusiva remissão ao evento da Reforma (a continuidade
histórica), pois os reformadores tinham como proposta inicial promover uma reforma na
igreja de Roma de natureza teológica e institucional e não objetivavam o estabelecimento de
outra família confessional dentro da tradição cristã. Associado a isto, deve-se reafirmar,
enquanto demonstração do não deve ser entendido como protestantismo, que ele não é
identificado pela sua oposição ao catolicismo romano, pois, de certa forma, o protestantismo
não se opõe a tradição católica, apenas assumiu uma postura não romana, mas que apenas
conjunturalmente representa uma tendência de sua prática histórica. Além disso, como já foi
visto na significação etimológica da palavra protestatio está acentuado o seu caráter
afirmativo de sentença declaratória.
Munod, então nos diz que a Reforma “nos apresentou uma igreja romana a reformar e uma
igreja romana reformada em duelo” (MUNOD, 1928, p. 147, 148), e que deste duelo uma, a
reformada, recusou-se a ser romana na medida em que foram excluídos como inovadores se
obrigaram a organizar-se forma dos espaços oficiais.
Assim, frente ao catolicismo, a Reforma foi um enfrentamento a uma religião que era vista
como gestual, supersticiosa, de indeclinável simbiose com o espaço civil, e este
enfrentamento deu-se na teologia, na tradição – enquanto expressão de poder -, na liturgia,
nos costumes e em relação ao próprio poder político. Com isto pretendia afirmar a supremacia
dos direitos espirituais sobre a autoridade institucionalizada, organizada nos cânones
eclesiásticos, a supremacia da Escritura e da Fé, sobre o aparato litúrgico e simbólico.
Neste contexto é necessário que se afirme que a Reforma não foi uma afirmação da
independência do pensamento ou dos direitos absolutos do indivíduo como muitas vezes
anunciada, mas propunha a substituição da autoridade do Magistério Eclesiástico como
equivalente a autoridade das Escrituras, uma vez que entendia que estas já não guardavam
relações simétricas, caminhando num processo de institucionalização através de confissões e
do estabelecimento das igrejas nacionais. Ainda concernente a esta dimensão eclesiástica ou
religiosa do problema, deve-se dizer que o protestantismo é essencialmente uma hermenêutica
1570
eclesial, i.é, uma compreensão geradora de sentido e identidade, daquilo que constitui-se a
Igreja.
Por isso a reforma dará ênfase a eclesiologia, a comunidade como espaço de segurança contra
a heterodoxia. Assim, como efeitos decorrentes próximos da expressão religiosa da Reforma é
possível afirmar o reordenamento da religião interior, rompendo com o seu condicionamento
institucional e que “no terreno moral é o cultivo da consciência” (AMARAL, 1962, p. 70).
Decorre deste efeito a organicidade que foi adquirindo o processo, perdendo seu caráter de
movimento, na medida em que o risco do subjetivismo exigia alguns fundamentos de normas
eclesiásticas, sem com isso pretender a regulamentação da vida religiosa, de caráter
institucional, moralista, sacramental ou dogmático; antes pelo contrário, afirmando a
“autoridade intrínseca e imediata da palavra de Deus” como verdade que se estabelece pelo
reconhecimento pessoal. Desta forma consumada a cisão, passaram logo protestantismo e
catolicismo romano, como era natural, a ser entidades opostas que se lançaram em ataques
recíprocos, e não somente, ambos têm vivido quatro séculos como ainda se têm distanciado
ideologicamente mais e mais no decurso desse tempo (Id., p. 85) (grifo nosso).
A diversidade que tantas vezes tem sido objeto de crítica em relação ao protestantismo pode
ser entendida a partir de que é esta mesma diversidade que amplia a possibilidade de
existência concreta de caráter pluralista, mesmo se estando atento ao fato de que ela pode
migrar de sua positividade, para ser apenas a expressão da “tortura moral” que impõe o
1571
sectarismo, ou conflitos que revelam em suas bases, marcas da estratificação social, as
controvérsias político-econômicas, o individualismo, os fatores geográficos, entre outros
matizes, inclusive porque "Um grupo social possui não somente estruturas, organizações,
práticas e símbolos, mas também estas realidades tem um sentido, pretendem significar algo,
tendem para algo mais além delas mesmas" (MEHL, 1981, p. 42 ).
A igreja terá sua forma-no-mundo sempre determinada pelas condições da historicidade, não
havendo possibilidade de esta se constitua em realidade supra-histórica encravada no mundo
por uma forma de inserção sobrenatural. Do ponto de vista teológico ela é realidade histórica
decorrente da presença de Deus em Cristo na Encarnação. É preciso considerar o grupo
religioso como complexificado e composto de três esferas distintas: comunidade autônoma
diferenciada da comunidade global, corpo social em relação com os demais e comunidade
sobrenatural. É preciso explicar como a comunidade se torna autônoma recruta seus membros
se mantem e se difunde.
Outro aspecto importante a ser considerado e que não deve ser confundido é que
protestantismo enquanto ideia, projeto, princípio, não se confunde com as configurações
históricas que adquiriu. O protestantismo não se restringe aos modelos históricos que se
derivaram de sua ontologia. Por isso, nenhuma comunidade protestante constitui-se uma
representação perfeita do protestantismo e do seu ideário, uma vez que o movimento de
1572
reforma “se reduz ao que ele foi e não ao que gostaríamos que ele fosse” (AMARAL, 1962, p.
165), para com isso afirmar que o protestantismo sempre estará desprovido de qualquer
caráter de finalização ou conclusão. Eclesia reformata, semper reformanda.
Assim o cristianismo que não se constitui uma realidade eclesiástica ou uma realidade
doutrinaria em sua essência, vê a emergência destes caracteres doutrinais e eclesiásticos sendo
incorporados progressivamente. As fórmulas e símbolos que se constituíram rigidamente a
fim de resistir ao enfrentamento com o catolicismo no século XVI começam a resistir a si
mesmas e a critica, como lembra Niebhur “... degenerou em justiça de crença o que antes fora
experiência de justificação pela fé” (NIEBHUR, 1947, p. 118). Este processo de formulação
doutrinal, numa complexa dualidade entre a liberdade e a confissão agravou historicamente a
fragmentação em torno de uma incipiente organicidade do protestantismo e muitas vezes
produziu experiências de individualismo e intolerância, associando muitas vezes a isto, uma
ética como principio desagregador, como demonstrou Alves (1982).
Por possuir um caráter humano, e ser uma denuncia contra toda rigidez dogmática, o
protestantismo em perspectiva histórica, como portador imperfeito dos princípios da Reforma,
trouxe em si mesmo suas possibilidades de deformação, mas também a possibilidade de
evoluir, criticar-se, adaptar-se, guardando a sua responsabilidade em ser uma expressão do
cristianismo e expressão da Reforma, com vistas a unidade, a tolerância, a inserção social, ao
fim do exotismo e do caráter iconoclasta, inclusive por emergir no contexto das mudanças que
ocorreram no mundo ocidental, e de uma nova concepção de mundo. Por isso ele se apoia
nestas mudanças produzidas pela modernidade, pelo humanismo, e o faz num processo
interativo em que influencia e se deixa influenciar, num modelo que é simultaneamente tenso
e dialético, na medida que julga e rechaça estas contribuições do advento moderno, ao mesmo
tempo em que nutre-se e influi sobre ele.
1573
santificação vai significar a ruptura de relações entre a comunidade cristã e a comunidade
secular (MACIEL, 1972).
A associação do protestantismo ao mundo moderno fez com que, na medida em que este
entrasse em crise, esta correspondesse a uma crise no protestantismo, com o envelhecimento
das “pequenas cristandades ou subculturas” e a secularização do movimento missionário,
esgotando-se a ideia de que o protestantismo era fundamental para o fim da cristandade
tradicional.
Conclusões
Assim, toda identificação, segundo Hall, corresponde a um processo pelo qual nos
identificamos com os outros, seja pela ausência da consciência da diferença, seja como
resultado de supostas similaridades, que é próprio das construções conceituais. Notadamente,
todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder
incluindo poder para definir o que é incluído e o que é excluído. Por seu turno, a cultura
molda a identidade ao dar sentido a experiência e ao tornar possível optar gera modos
1574
específicos de subjetividade, a partir das variedades de relações simbólicas, e pelas relações
sociais.
O passado e o presente exercem um importante papel neste processo, pois indivíduos e grupo
são herdeiros de algum passado e se comportam a partir da identidade fornecida pelo passado,
e quando algo que se supões fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida,
gera-se a incerteza que é o elemento dinâmico da mobilidade identitária.
Referências
ADAMS, Jay. Introdução. In: TILLICH, Paul. A era protestante. São Paulo: IMS, 1992.
1575
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org. e
trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.
103-133.
NIEBHUR, Reinhold. The nature and destiny of man. New York: Scribner´s Sons, 1944
WHALE, J.S. The protestant tradition. New York, Westminster Press, l967.
1576
1577
Pensamento político do metodismo em Belém do Pará: registros
históricos do jornal O Apologista Christão Brazileiro na transição
republicana do Brasil (1890-1891)
Tony Welliton da Silva Vilhena1
Introdução
Aliada deste empreendimento, esta pesquisa considera que observar as tendências políticas do
jornal O Apologista Christão Brazileiro2, editado pelo missionário metodista Justus Henry
Nelson, em Belém do Pará, assume relevância na percepção das tensões ideológicas e
transformações sociais verificadas na transição do Império para a República, sobretudo, nas
questões que tangem a religião.
Este trabalho preocupa-se em pontuar os temas políticos mais relevantes do jornal no período
de janeiro de 1890 a fevereiro de 1891, interregno entre o início da sua publicação e a
aprovação da primeira Constituição republicana. O Brasil passava pelo período conhecido por
governo provisório, chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca. A recém criada República
brasileira vivenciava intensos debates sobre qual ideário republicano se instituiria no país e
pautaria a Constituição.
Durante vinte e um anos (1890-1910), Justus Nelson produziu o jornal O Apologista Christão
Brazileiro, divulgando notícias locais, nacionais e internacionais, estudos bíblicos, matérias
de propaganda religiosa protestante e opiniões políticas, registrando e permitindo que
percebamos a perspectiva da minoria religiosa, bem como sua reação e seu posicionamento,
diante às mudanças políticas e econômicas.
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UEPA, especialista em Ciências da Religião pela UMESP, bacharel e
licenciado em Ciências Sociais pela UFPA. Integrante do GP Movimentos Sociais, Educação e Cidadania na
Amazônia (GMSECA). Orientador: Prof. Dr. Henry Willians Silva da Silva. Contato:
tonysvilhena@hotmail.com.
2
Toda a produção do Jornal encontra-se microfilmada na Biblioteca Pública Estadual Arthur Vianna, Seção de
Microfilmagem, em Belém do Pará.
1578
A tiragem do jornal era de mil exemplares, o que revela uma grande penetração social, pois
circulava não só no Pará, mas em estados de todas as Regiões do país (SALVADOR, 1982),
além de exemplares que eram enviados para os EUA, alcançando um público de leitores
metodistas e não-metodistas muito expressivo para aquele período.
Belém era uma cidade despontada no cenário internacional devido ao vertiginoso crescimento
da economia gomífera. Por causa do forte fluxo migratório, o crescimento demográfico
registrado no Pará era extraordinário para aquela época3. A maioria dos imigrantes vinha do
Nordeste, fugindo da seca e em busca de oportunidades de melhorar de vida. Mas havia
também imigrantes estrangeiros como os norte-americanos que fugiram da guerra civil. Esta
intensa movimentação populacional, somada à riqueza criada pela economia da borracha, fez
a cidade de Belém fervilhar culturalmente.
Politicamente, Belém via florescer descontentamentos cada vez mais incontidos dos políticos
liberais que consideravam “o relacionamento econômico extremamente desfavorável da
Amazônia com o governo central” (WEINSTEIN, 1993, p. 127). Este discurso colaborava
para o aumento da oposição à monarquia. Crescendo a pujança dos liberais, que combatiam a
centralização administrativa e fiscal, e dos republicanos, que queriam derrubar o Império.
3
Em 1880 a população do estado era de 270.000, passando para 445.000 em 1900, segundo o IBGE (Apud
PROST, 1998, p. 30).
1579
Setentrional. Quão importante é que nossa influência silenciosa pudesse ter um ano ou dois
para fazer-se sentida e conhecida, antes que o tempo das novas cristalizações chegue. As
épocas revolucionárias nos Países Papistas são sempre uma boa oportunidade para a
introdução do Evangelho, pois, no meio de rugir da tempestade o humilde trabalho
missionário pode existir despercebido, de modo que, apesar de pedir a Deus que o dia ainda
esteja longe, acho que devíamos tomar em consideração em nossos planejamentos algo que
é mais do que uma contingência (Apud VIEIRA, 1980, p. 177).
Em 1886, foi fundado o Clube Republicano do Pará. Este refutava tanto o Partido
Conservador quanto o Partido Liberal. Nos dizeres do seu Manifesto encontramos a
radicalidade daquele pequeno grupo contra o Império:
A República, que é o reinado de luz, não pode deixar de ser aurora da libertação dos nossos
cidadãos. Para quebrar o trono do rei é necessário quebrar o trono dos algozes. Assim, nós
opomos a uma monarquia de escravos, a República dos homens livres (ROQUE, 1996, p.
95).
Não houve grandes problemas, no dia 16 de novembro de 1889, para implantação do novo
regime em Belém (...). O povo foi às ruas, movido pela natural curiosidade; as tropas
acataram as instruções vindas do Rio; e os republicanos locais, como no resto do país, uma
minoria, apanhados de surpresa, viram-se, de repente, transformados em senhores da
situação (ROQUE, 1996, 93).
É neste clima de mudança dos rumos políticos da nação que encontramos a brecha que os
protestantes precisavam para marcar sua posição na sociedade, ainda mais no Pará, um estado
onde a insatisfação era generalizada. Registra-se que até então, o Brasil imperial era um país
oficialmente católico, sendo os acatólicos apenas tolerados. Senão vejamos o que dizia o
Artigo Cinco da Constituição de 1823:
1580
Art. 5. A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas
as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo (Apud REILY, 1984, p. 28).
Art. 1º - É proibida à autoridade federal, assim como à dos estados federados, expedir leis,
regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a a criar
diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento,
por motivo de crenças ou opiniões filosóficas ou religiosas; Art. 2º - A todas as confissões
religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a
sua fé e não serem contrariados nos atos particulares ou públicos, que interessem o
exercício deste decreto; Art. 3º - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos
nos atos individuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem
agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamente,
segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público (Apud REILY,
1984, p. 225-226).
1581
exclusivamente utilizados por católicos, sendo os acatólicos sepultados em cemitérios
particulares ou valas comuns,
Logo no editorial da primeira edição do jornal, num discurso envolto da estratégia de busca de
legitimação, junto com o fortalecimento e a ampliação da proteção para sua atuação social,
intitulado “Nosso Programa”, Justus Nelson argumenta a favor da República:
segundo nosso parecer, a república é a forma de governo que melhor conserva os direitos
do maior número de cidadãos, ou, por outros, que mais chegada é aos princípios da religião
christã. Portanto, somos republicanos, não republicano francez, mas sim americano. A
verdadeira república permite e exige a existência de Deos, da consciência, das convicções.
Faltando isso, só pode haver a tyrania ou a anarchia. No mesmo acha-se, ou achar-se-lhe o
governo republicano do Brazil. Procuraremos, portanto apurar a consciência e despertar
1582
convicções firmes, sem as quaes a república vindoura do Brazil não poderá ser feliz (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 1, p.1) 4.
A república aparece sacralizada não por ser uma obra divina, mas por ser manifestação do
povo, cujos direitos, estes sim, eram sagrados e universais. Esta é uma herança do Iluminismo
que enfatizava os direitos individuais e privilegiava as fontes seculares de legitimidade das
instituições políticas frente às religiosas.
Ainda no primeiro número do O Apologista, Nelson apresenta a tradução do hino Nosso Paiz,
uma oração pela nação brasileira em formação que idealiza um governo civil com princípios
cristãos, assentado em bases religiosas, senão vejamos alguns trechos:
Divino Salvador!
Nosso Paiz!
Sorte feliz!
4
A transcrição dos textos do referido jornal encontra-se fiel aos originais por não comprometer o entendimento
da leitura.
1583
Tu, Rei dos reis!
Ensina a governar,
Outorga a direção
Do teu amor;
E, no eternal, porvir,
De ti gostar ouvir
Doce louvor
Para Fonseca, esta ponte entre o temporal e o sagrado aludida neste hino é arquitetada pela
concepção de religião civil que permite aos norte-americanos “associar secularismo político e
religiosidade social, juntar Deus e pátria, de maneira a conferir santidade religiosa ao
patriotismo e legitimidade nacionalista às crenças religiosas” (2007, p. 155). A religião civil é
um “somatório de mitos organizados à maneira de ‘instrumento discursivo’, que vinculava
política e moralidade e, assim fazendo, facilitava o consenso social e oferecia sentido à
existência da comunidade” (ibid., p. 154).
Como a campanha anti-protestante do clero católico estava nas ruas de Belém, o Apologista
também serviria para pontuar o posicionamento protestante frente à Igreja Católica, sempre
fazendo esta ligação entre o mundo civil e o religioso, tendo o intento de formar um
sentimento de participação dos cidadãos na esfera pública. Contra-argumentando o discurso
católico condenatório da pulverização do protestantismo, no texto A Igreja e as Igrejas,
vemos no jornal a seguinte opinião de seu redator,
a Igreja de Roma não tem razão quando aponta ‘as milhares de seitas’ (são cincoente pouco
mais ou menos) como um dos males indisíveis do protestantismo. Ao contrário, esta mesma
diversidade de formas de governo e de costumes e de opinião es que a Igreja de Roma
procura estrangular, e que nas igrejas evangélicas acha livre expressão, é o que, pela ajuda
1584
de Deos há de conservar para as gerações vindouras a pureza da fé, a liberdade da
consciência e a liberdade civil (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 1,
p. 2).
na adaptação das Regras Gerais as necessidades do meio em que nos achamos, o traductor
acrescentou às cousas prohibidas a mentira, cousa que não foi tão necessário prohibir-se aos
ingleses que se dizem ser christãos. Porém, como no Brazil a mentira é ensinada e praticada
como virtude, a sua prohibição tornou-se de primeira importância na adaptação das Regras
(O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº1, p. 4).
Embora sendo uma religião minoritária na cidade, Justus Nelson acredita que o metodismo
pode ser uma parte integrante e atuante do processo constitutivo da sociedade. Reside neste
esforço argumentativo a tentativa de impactar a esfera pública das relações sociais
aproveitando-se da recomposição do campo religioso, deslegitimando a frouxidão da conduta
moral católica e estabelecendo um novo referencial identitário para um indivíduo postular-se
cristão.
Logo, o que parece ser uma simples recomendação comportamental, reveste-se de ação
política dos indivíduos que se associam ao metodismo, pois estas Regras marcam a explícita
opção de ruptura daquele grupo social com condutas não condenadas pelo catolicismo como,
além da citada prática da mentira, o ágio, a posse ou tráfico de escravos e o acúmulo da de
riquezas econômicas, entre outras.
A opção pelo metodismo é um ato político por representar um manifesto de rotura social, pois
era a Igreja Católica que mantinha a supremacia no estabelecimento dos preceitos morais e
1585
éticos do país. Ao assumir-se metodista, o indivíduo altercava contra o monopólio católico
dos códigos da vida pública, apresentando um novo modelo de cidadania e organização do
Estado, visto que antes era a Igreja Católica que
detinha o monopólio dos principais atos cívicos e ritos de passagem comuns à vida dos
brasileiros, como o batismo, o casamento e o sepultamento, e estar fora dela significava não
desfrutar da cidadania que tais atos simbolizavam [...]. Essa interpenetração entre Igreja
Católica e o Estado possibilitava, na prática, que questões religiosas fossem tratadas como
meramente políticas ou leigas e que a religião fosse utilizada para fins políticos do Estado
(CORDEIRO, 2005, p. 112).
Neste sentimento de ruptura social, outro posicionamento relevante fala acerca da atuação das
mulheres na igreja e na política, pois na Igreja Metodista as mulheres já ministravam
sacramentos e exerciam o sacerdócio. Acompanhemos esta citação sob o título “As senhoras
na política”:
O mundo vae cedendo pouco a pouco à mulher o seu lugar de social de direito. Este século
vai reconhecendo que as mulheres pensam, que lêem, e que estudam, e que quanto mais
entram no pensamento das nações mais ellevadas estas se tornam... Os factos vão
demonstrando que é absolutamente infundado o escarneo que nega à mulher a capacidade
de entender de política (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 20, p. 1) .
Como era de se esperar, são representadas entre ellas muitas idéias caprichosas socialísticas
como abolição dos bancos nacionais, e a decretação do dinheiro avulso, e a propriedade
exclusiva e nacional de terrenos. Mas outras idéias de sua propaganda são de primeira
importância, como a propriedade nacional dos caminhos de ferro e outras vias de
transportação, legislação contra as combinações dos capitalistas que se chamam ‘trusts’, e
que actualmente aumenta a oppressão da lavoura e das classes artísticas e trabalhadoras (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº1, p. 2).
Neste trecho, também percebemos que Nelson preocupa-se em preencher o jornal com
notícias do seu país de origem para atualizar os outros norte-americanos que haviam migrado
1586
ou estavam de passagem pelo Brasil, por outro lado, também servia para espelhar diante da
realidade brasileira como funcionava um país que primava pela liberdade de reunião das
organizações políticas e como estas podiam influenciar diretamente na formulação de leis.
Pois,
Uns taberneiros não querem que seus caixeiros tenham um momento de descanso na vida.
O pobre caixeiro pode trabalhar das 6 horas até às 9 da noite por trezentos e sessenta e
cinco dias no ano. Não faz mal, que aguente até morrer. Depois de morto há outros rapazes
bastante desempregados, que podem servir, o caixeiro morto não faz falta (diz o patrão)... É
dever do governo proteger os direitos dos fracos contra os fortes. Os empregados têm
direitos que os patrões devem respeitar (O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO,
1890, nº 6, p. 1).
Impregnado por este espírito civilizatório, Justus Nelson reproduz a obra de Emílio de
Laveleye intitulado O futuro dos povos catholicos, no anseio de contribuir com uma reflexão
de apelo liberal sobre o desenvolvimento da nação brasileira. Como veremos em seguida, esta
obra aponta para a origem do atraso econômico e científico das nações católicas e exalta o
progresso das nações protestantes. Outrossim, O Apologista trás à tona a defesa da garantia
constitucional de um Estado leigo.
1587
protestantes são os únicos que tem conseguido assegurar a instrucção a todos. Os Estados
catholicos em vão decretam a instrucção obrigatória, como a Itália, ou despendem muito
dinheiro para esse fim, como a Bélgica, elles não conseguem dissipar a ignorância (O
APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO, 1890, nº 4, p. 2).
Com seus textos ou reproduções de artigos n’O Apologista, Justus Nelson alimentava
constantemente esta compreensão que relacionava o casamento entre Estado e catolicismo
com o atraso e a ignorância da nação. Senão, por fim, vejamos este trecho da reprodução de
um artigo de Rui Barbosa sobre a liberdade religiosa, expressa no O Apologista Christão
Brazileiro, nº 06, de 08 de fevereiro de 1890, que expressa que a história dos séculos de
instituição do catolicismo “é uma longa demonstração do maléfico efeito da proteção do
estado sobre o christianismo. O pacto de aliança entre a soberania e o altar é, foi e há de ser
sempre, pela força das cousas, um pacto de mútua e alternativa servidão” (ibid., p. 2).
Justus Nelson, como boa parte dos missionários americanos, ainda usou outra estratégia de
disseminação do pensamento liberal-protestante: a escola. Assim, em janeiro de 1881, apenas
seis meses após estabelecer-se em Belém, Nelson funda o Colégio Americano. É interessante
perceber que a fundação da escola antecede a da Igreja, organizada em 1º de julho de 1883.
Por fim, as concepções de Nelson sobre a missão metodista que desenvolve na Amazônia são
impregnadas da ideologia do destino manifesto, onde os EUA aparecem como paradigmas de
uma sociedade perfeita, escolhida por Deus, com a importante missão de levar ao mundo o
seu modus vivendi (FONSECA, 2007). Duncan Reily descreve o destino manifesto da
seguinte forma,
1588
como Deus, por Moisés, libertou os israelitas da escravidão no Egito, pela travessia
maravilhosa do Mar Vermelho, os puritanos se libertaram da opressão dos soberanos
ingleses Tiago I e Carlos I, atravessando o Atlântico no pequeno navio Mayflower. Deus
estabelecera seu pacto com o povo liberto, no Sinai; paralelamente, os puritanos, antes de
pôr os pés em terra seca na América, firmaram o Mayflower Pact. Explicitaram que haviam
encetado sua viagem de colonização “para a glória de Deus, avanço da fé cristã e honra do
nosso rei e país, solene e mutuamente, na presença de Deus, e cada um na presença dos
demais, compactuamos e nos combinamos em um corpo político civil.” Finalmente, como
Josué havia conquistado a terra da promissão, os americanos viam como seu “destino
manifesto” conquistar o continente de Oceano a Oceano, espalhando os benefícios de uma
civilização republicana e protestante por toda a parte (1984, p. 19).
Ana Lúcia Cordeiro corrobora com esta análise quando aponta que “os metodistas pioneiros
julgavam ser o povo escolhido por Deus para estabelecer o cristianismo protestante no mundo
todo” (2005, p. 117).
Considerações finais
Neste metodismo que tenta imprimir na vida concreta as aspirações de seu sentimento
religioso, encontra-se a confirmação dos escritos de Max Weber, que afirma que a unidade
das práticas religiosas são primordialmente racionais e voltadas para o mundo físico. Sendo
1589
que a ação religiosa, “ainda que não seja necessariamente uma ação orientada por meios e
fins, orienta-se, pelo menos, pelas regras da experiência” (WEBER, 1977, 279). Assim,
Weber defende que em todas elas há necessidades ou propósitos sociais ligados a um fim,
cujo desenvolvimento, em sua grande maioria, tem alcance político e econômico.
Com seus artigos, notícias e reproduções literárias, O Apologista Christão Brazileiro propõe-
se em irradiar o ideário de construção da nação brasileira, o qual era imprescindível na
sustentação da República, tentando desconstruir a imagem daquele tipo humano brasileiro
formado no latifúndio rural o qual Oliveira Vianna (Apud COSTA, 2006, p. 2) chama de
“amante da solidão e do deserto, rústico e anti-urbano, fragueiro e dendrófilo”. Pois, “o ser
personalista assim formado não possuiria em sua base histórico-social os elementos
necessários à formação dos laços de solidariedade exigidos para o surgimento de uma vida
política tal qual idealizada pelas elites liberais que então inauguravam a República” (ibid.).
Conclui-se que não era intenção do jornal postular um projeto de poder, mas influenciar
determinantemente as decisões de quem detinha o poder. Assim visava contribuir na
formatação de um ideário de nação pós-império, disputando as consciências.
Referências
BARBOSA, Rui. Secularização dos Cemitérios. In: Obras Completas de Rui Barbosa. v. 7,
tomo 1. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1950,.
CONRADO, Flávio César dos Santos. Religião e cultura cívica: um estudo sobre
modalidades, oposições e complementaridades presentes nas ações sociais evangélicas no
Brasil. 2006. 206 p. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
CORDEIRO, Ana Lúcia. Religião e projetos educacionais para a nação: a disputa entre
metodistas e católicos na Primeira República brasileira. Horizonte, v. 04, nº 7, Belo
Horizonte, p. 110-124, dez. 2005.
1590
FONSECA, Carlos da. Deus está do nosso lado: excepcionalismo e religião nos EUA.
Contexto Internacional, v. 29, nº 1, Rio de Janeiro, p. 148-185, jan./jun. 2007.
PROST, Gerard. História do Pará: do período da borracha aos dias atuais. Belém: Secretaria
de Estado de Educação, 1998.
ROQUE, Carlos. Antônio Lemos e sua época: história política do Pará. 2ª Ed. Belém: CEJUP,
1996.
WEBER, Max. Sociologia da religião: tipos de relações comunitárias religiosas. In: Economia
e Sociedade. Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília: UnB, 1977.
Fontes
1591
1592
GT14 – Igrejas inclusivas LGBTT e a luta
contra a intolerância religiosa
Coordenadores
Resumo
1593
A diferença se tornando unidade: análise dos temas da semana
nos grupos de discussão na Igreja Missionária Inclusiva em
Maceió
Niara Oiara da Silva Aureliano1
Introdução
A construção do ser social, principalmente no que diz respeito à gênero e sexualidade, vem
sendo estudada há séculos, desde os tempos dos mais antigos filósofos, cientistas sociais,
antropólogos, historiadores. Entende-se que tendo sido a religião judaica, em união
posteriormente ao nascido cristianismo, a base moral da sociedade ocidental, delimitações de
comportamento, de ser, agir, ter e pensar foram construídas e solidificadas à seu bel prazer
por séculos e mantém-se fortes nos dias de hoje. Em termos gerais, a maioria dos
comportamentos de gênero e sexualidade no mundo ocidental tem a mesma base: religiosa.
Entretanto, como era de se esperar, há diferenças significativas de uma região para outra.
Obviamente, não apenas a partir da religião se constrói a identidade do indivíduo; e é nesse
ponto que se deve entender a construção da identidade social do humano, que é construída e
moldada a partir das interações sociais, a partir do meio em que vive, internalizando logo o
que chamamos de moral, acreditamos ser certo ou errado, e sendo iniciado, na maioria das
vezes inconscientemente, na religião de seus pais.
1
Graduanda em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela UFAL. Orientada pelo Prof. P.h.D.
José Wagner Ribeiro Contato: niaraaureliano@hotmail.com..
1594
em estudos científicos, além da bíblia sagrada, para solidificar a liberdade sexual masculina,
com poucas ressalvas. Além disso, há também a ordem burguesa, que está estritamente ligada
à ordem vigente religiosa, e que garante o maior desenvolvimento da sexualidade masculina.
Entretanto, de certo além da doutrina católica, foram outras doutrinas cristãs, as de igrejas
pentecostais e neopentecostais, as que mais se fixaram em solo brasileiro. O pentecostalismo,
a saber, instalou-se no Brasil oficialmente ainda na primeira década do século passado “[...]
através das Igrejas: Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus. Essas igrejas foram
trazidas dos Estados Unidos da América pelo italiano Luís Francescon e os suecos Daniel
Berg e Gunnar Vingren que aqui firmaram suas doutrinas” (SILVA, 2007, p.2).
1595
O neopentecostalismo ou pós-pentecostalismo é um termo adotado para distinguir a nova
roupagem que o pentecostalismo brasileiro vem desenvolvendo desde a segunda metade
dos anos 1970, que cresceu e se fortaleceu nos anos 1980 e 90. A Igreja Nova Vida,
fundada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo missionário canadense Robert McAlister, foi o
palco inicial que fez nascer as maiores representatividades desse movimento, através das
igrejas: Universal do Reino de Edir Macedo (1977), Internacional da Graça de Deus (1980),
Cristo Vive (1986), Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976), Comunidade da
Graça (1979), Renascer em Cristo (1986) e Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (1994)
(SILVA, 2007, p.3).
Configuram uma espécie de “inimigo comum” (da Igreja Católica e das religiões de matriz
africana) a ser combatido. Isto porque, segundo a Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa – CCIR/RJ, um dos atores de maior destaque em nível local e nacional, seriam os
neopentecostais responsáveis pela atualização e pela prática da intolerância religiosa no
país (VITAL DA CUNHA, 2011, p. 1).
Chega-se então à seguinte questão: no contexto atual, o que representa a igreja inclusiva ou
“renovada”? Sabe-se que as igrejas evangélicas pregam, sejam elas das correntes pentecostais
ou neopentecostais, novas ideias que constituem então uma nova doutrina em que problemas,
males, inconveniências são todas causadas pelo diabo; que foi causado pela falta de religião
ou pela presença em centros espíritos ou rituais de matriz africana. “O diabo torna-se a causa
1596
principal de todos os males, sejam eles materiais, espirituais ou existenciais. A necessidade de
retirá-lo, libertar-se, faz-se, então, fundamental” (SANTOS, 2004).
O culto da igreja inclusiva no Brasil, relativamente recente (começo dos anos 2000), baseia-se
na aceitação de sexualidades não heterossexuais e a religião cristã. Diferentemente de outras
igrejas neopentecostais, uma sexualidade que se “desvia” da norma padrão não é tida como
artimanha do diabo ou um “encosto”; aqui, é a inclusão a característica maior.
Maceió, com cerca de 1 milhão de habitantes, é a capital e cidade mais populosa de Alagoas.
Apesar de sua beleza, está em Alagoas uns dos piores níveis de desenvolvimento social,
violência contra mulheres, contra a juventude negra e contra os LGBTTs. Neste sentido, é
importante salientar que é na “Terra da Liberdade”, da capital ao interior do Estado, que a
violência contra as minorias se instalaram e perpetuam.
Localizada no bairro do Poço, parte baixa de Maceió, é a única igreja inclusiva do Estado.
Com cerca de 20 membros fixos, a maioria do gênero masculino, a igreja não tem sede
própria. Seus poucos membros tem, em sua maioria, faixa etária inferior a 30 anos. Não há
membros fixos heterossexuais; em sua maioria, os heterossexuais que comparecem às
celebrações são familiares dos membros e, ainda assim, aparecem ocasionalmente.
1597
A igreja tem uma página na rede social Facebook em que convida os cristãos a comparecerem
aos cultos, vigílias, e outras atividades organizadas pela I.M.I. Nesta página, diferentemente
dos comentários postados em matérias de veículos alagoanos de comunicação (em que muitos
religiosos, católicos ou evangélicos baseiam firmemente a homofobia na Bíblia Sagrada), a
igreja anuncia e convida os cristãos a participarem de atividades da igreja: cultos, vigílias, etc.
Nesta nova sede (onde estão alojados desde junho), um espaço relativamente pequeno e
simples, eles dividem as atividades a serem realizadas na semana. Fixamente às quintas-feiras,
ocorrem os cultos de oração; aos sábados, os cultos de adoração e louvor (musicalmente
agitados, letras gospel em ritmos como sertanejo são cantadas pelos fieis); aos domingos são
realizados os cultos de celebração – com momentos de leitura da palavra bíblica e momentos
de reflexão, em que frases de auto ajuda ou até capítulos de obras literárias são levadas para
serem discutidas no culto; a intenção é gerar ânimo nos fieis para enfrentar a semana que se
inicia. Nas terças-feiras ou sextas-feiras encontros para discutir a teologia inclusiva eram
realizados na sede da igreja, o chamado Grupo de Estudo de Teologia Inclusiva (Geti). Com a
mudança de sede, esses encontros foram temporariamente interrompidos. As sextas-feiras são
destinadas para a realização dos encontros do grupo de discussão.
1598
de estudos de teologia inclusiva (Geti) são psicólogos, assistentes sociais, jornalistas e outros
profissionais registrados a facilitarem os debates. Neste sentido, as discussões, que tendem a
esclarecer e ajudar os jovens cristãos a aceitarem sua condição sexual enquanto criação de
Deus e viver, assim, para Deus, não têm a Bíblia Sagrada como central. A Bíblia é usada,
apenas, para contextualização da questão debatida.
Considerações finais
Considera-se, então, que diferentemente dos neopentecostais que atribuem problemas sociais,
físicos, políticos e à respeito de sua sexualidade à mazelas do diabo e à necessidade de cura
divina, pela fé e “aceitação de Jesus Cristo”, na Igreja Missionária Inclusiva de Maceió esses
problemas são racionalizados: a homofobia é um problema psicológico e social e os
homossexuais são criações divinas; os problemas sociais e políticos da sociedade alagoana
(aos quais esses cristãos reservam momentos em seus cultos para orar por sua cidade, estado e
país) são resultados da falta de educação, saúde e distribuição de renda, não de alguma
maldição divina ou “armadilha do anjo caído”.
1599
Neste sentido, a igreja inclusiva diverge de uma das características mais importantes da
doutrina neopentecostal. As ciências humanas lançam então luz sobre questões políticas,
econômicas, sociais e sobre o próprio indivíduo, enquanto a Bíblia serve de ponto de
contextualização. A doutrina desta igreja em específico parece, neste caso, abrir mão de
questões que, para muitos, não a apetece. Logo, além da formação religiosa, igrejas renovadas
podem ser capazes de formar também cidadãos.
Referências
MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. In: Estudos
Avançados, v.18, n.52, São Paulo, p. 121-138, 2004. Disponível
<http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a10v1852.pdf>. Acesso em 23 jul. 2013.
SANTOS, Elder C.; KOLLER, Sílvia H.; PEREIRA, Maria Teresa. Religião, saúde e cura:
um estudo entre neopentecostais. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n.3, Brasília, p.
82-91, 2004. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1414-
98932004000300011&script=sci_arttext>. Acesso em 19 jul. 2013.
1600
Internet
Fiéis precisam manifestar dons para serem escolhidos pastores, afirma pesquisa. UFAL. Disponível em
<http://www.ufal.edu.br/noticias/2013/07/fieis-precisam-manifestar-dons-para-serem-
escolhidos-pastores-afirma-pesquisa>. Acesso em 29 jul. 2013.
Cristãos gays de Alagoas se reúnem em igreja inclusiva em busca de Deus. G1. Disponível
em <http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2013/06/cristaos-gays-de-alagoas-se-reunem-em-
igreja-inclusiva-em-busca-de-deus.html>. Acesso em 29 jul. 2013.
1601
1602
A pomba-gira sou eu: aspectos da identidade transexual com a
religiosidade afro
Tássio Acosta Rodrigues1
Introdução
O interesse na formulação desse artigo deu-se após entrevistas com diversas transexuais
femininas que, a partir de agora, serão chamadas de trans.mulheres, terem nas religiões de
matriz africanas como escolhas de filosofia de vida. Muitas delas encontraram total aceitação
de suas condições nas casas de santos e amparo emocional por parte das mães e pais de
santos, assim como os irmãos de santos dessas casas, das quais frequentam.
A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas e com análise qualitativa dos dados que são
apresentados dentro da narrativa, sem um lócus determinado. Todas as entrevistadas foram
muito receptivas e se mostraram disponíveis para dirimir todas as questões apresentadas. Os
nomes reais foram suprimidos no texto para garantir o anonimato.
Das trans.mulheres entrevistadas para esse artigo, todas tiveram dificuldades de entendimento
consigo (com o Eu) e com o outro (aqueles que estavam aos seus redores). Dificuldades essas
das quais fizeram com que a respectiva identidade individual, do Eu, ficasse um período de
suas vidas desnorteados, com questionamentos sem respostas e dificuldades no
relacionamento intrapessoal e interpessoal.
Pessoas nascidas em corpos cuja anatomia não condiz com seus entendimentos necessitam de
atributos e intervenções para (re)significarem suas existências. Atributos e intervenções essas
que podem ser de uma mudança de registro do nascimento para o nome social, através da
carteira de identificação de nome social,2 e/ou até mesmo a intervenção cirúrgica como, por
exemplo, mastectomia e/ou neofaloplastia, esta última ainda em caráter experimental no
1
Cursando especializações em Ética, Valores e Cidadania na Escola, pela USP, e em Patrimônio Histórico,
Memória e Preservação pela Universidade Santa Cecília. Graduado em História pela Universidade Católica de
Santos. Contato: tassiocosta@gmail.com.
2
DIÁRIO OFICIAL DE SÃO PAULO. 21/05/2013, Disponível em
<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/54561884/dosp-legislativo-21-05-2013-pg-24>. Acesso em 30 jun.. 2013.
1603
Brasil, assim como diversas outras intervenções cirúrgicas. Porém, de acordo com o
entendimento legal para a respectiva autorização, a pessoa transexual tem que apresentar uma
comprovação de sua própria condição. Comprovação essa que não basta seu relato de vida e
dificuldades na inserção no meio social, há de obter uma série de laudos médicos,
psicológicos e psiquiátricos, pois no entendimento de determinados setores médicos, as
pessoas transexuais sofrem de algum tipo de disfunção psicológica.3 No entendimento legal,
para que haja qualquer cirurgia de intervenção em um transexual, há de se ter um laudo
expedido por junta médica,4 aumentando o sofrimento de quem busca adequar sua imagem
interna com o corpo que não é reconhecido como seu.
Enquanto a medicina e o judiciário criam barreiras burocráticas através de laudos e papéis que
dificultam a inserção das pessoas transexuais na sociedade, elas ficam a mercê dos olhares
críticos, discriminatórios e negativos do outro. Entende-se o outro como pessoas inseridas na
sociedade das quais seguem as normas e padrões convencionais heteronormativos.
Essa obrigatoriedade de laudos médicos das quais as pessoas transexuais são impostas e vistas
pelo outro, como seres doentes, com transtornos e que necessitam de tratamento, dificultam o
que de fato elas realmente necessitam: respeito e entendimento de que suas condições são
formas subjetivas do comportamento humano, onde não é possível mensurar e criar uma
obrigatoriedade de normas e prosseguimentos a serem seguidos. Afinal de contas a identidade
de gênero assim como a sexualidade, é subjetiva e há a possibilidade de que intervenções de
agentes externos, como questões culturais, por exemplos, busquem heteronormatizar tais
condições através das dicotomias do gênero (WARNER, 1991, p. 09).
3
O DSM V afirma que as pessoas transexuais sofrem de Disforia de Gênero, enquanto no DSM IV afirmava que
sofriam de Desordem de Identidade de Gênero. Hoje uma pessoa transexual tem que passar por avaliações
médicas e psicológicas por no mínimo dois anos para ter o direito de adequarem seus próprios corpos a suas
identidades de gênero.
4
Junta Médica é uma equipe de psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais destinadas a
avaliar a condição da transexualidade do paciente.
1604
Os indivíduos são sempre sujeitos do controle e normas sociais em qualquer sociedade. No
ponto de vista da sexualidade, a descoberta do sexo biológico do bebê, que ainda na barriga
da mãe já desencadeia uma série de normas, padrões e imposições. Quando o bebê crescer, ele
estará entrelaçado numa gama de significações e dispositivos que determinaram e
padronizaram sua existência de acordo com o seu gênero através de brincos, vestimentas,
nomes, cores, brinquedos, brincadeiras, etc.
Vale ressaltar que a sua condição como transexual nada tem a ver com a sua orientação
sexual. Podemos ter trans.mulheres homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Assim como
podemos ter trans.homens homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Identidade de gênero e
orientação sexual são conceitos e expressões do ser humano totalmente distintos, sem que
tenha que haver (mais) uma normatização. Esse é outro ponto que muitos transexuais têm
dificuldade durante as sessões de análise com a junta médica. Muitas das trans.mulheres
entrevistadas relataram que não bastassem elas terem baixa aceitação e entendimento perante
a junta médica, elas ainda tinham que "fazer a hetero"5 pois aqueles que estavam analisando-
as queriam também engessar e heteronormatizar as relações.
"No terreiro fui aceita, no terreiro sou eu. Lá, a pomba-gira sou eu."
Essas foram as palavras que mais chamaram a atenção nas entrevistas realizadas, o impacto
foi tão grande que se fez necessário colocá-las no título do artigo. “A pomba-gira sou eu”, o
discurso de pertencimento está muito além da respectiva religiosidade, está no fato do
entendimento de que, assim como a pomba-gira pertence ao gênero feminino, com vestes
femininas e trejeitos femininos, no corpo de um médium masculino, a trans.mulher também
está na mesma condição.
5
Entende-se a expressão ‘fazer a hetero’ manter-se no padrão heteronormativo.
1605
Não só as pombas-giras são, mas as trans.mulheres também são inquilinas nos próprios
corpos onde buscam um entendimento consigo e com o outro (CECCARELLI, 2008, p. 57).
Esse entendimento ocorreu perfeitamente dentro das casas de santos. Muitos porquês podem-
se elencar para possíveis questionamentos que poderiam desvirtuar do foco do texto, porém a
premissa principal não é essa e, sim entender qual a relação essas trans.mulheres criaram com
as pomba-giras.
O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos gestos, dos olhares, ou
seja, de uma estilística definida como apropriada. São esses sinais exteriores, postos em
ação, que estabilizam e dão visibilidade ao corpo (BENTO, 2011, p. 553).
Assim como as pombas-giras estavam em corpos que não lhes pertenciam, essas
trans.mulheres estavam nas mesmas condições. Em uma eterna busca por um corpo que de
fato lhes representassem com total sentimento de pertencimento.
Motivos diversos levaram para essa identificação, mas um dos principais dá-se pelo respeito
que tais entidades impõem ao frequentadores do terreiro, através de adoração, presentes,
atenção, beleza, feminilidade e sensualidade.
Muitas relataram que no itinerário de suas casas até os terreiros, as zombarias e agressões
verbais eram constantes. Chamadas de “putas”, “travecos” e “João”, essa rotina fazia parte de
1606
seus cotidianos. Porém, quando na casa de santo entravam, os atabaques tocavam e as vestes
colocavam, toda essa realidade ultrajante desaparecia, viviam verdadeiros momentos de paz
com demasiado orgulho e tinham o respeito de todos que ali estavam. Praticamente uma
fábula da Disney, mas a princesa na verdade eram as Pombas Giras.
Faz-se necessário lembrar que até mesmo essa feminilidade das quais essas respectivas
trans.mulheres afirmaram ter como objetivo e desejo mantêm-se na dicotomia de gênero onde
segue aquela ordem de que a mulher é feminina, meiga, sensual e passiva. Dentro do
imaginário dessas trans.mulheres a imagem do gênero feminino tem que seguir essa
normatização “que ensina e produz certas formas de pensar, agir, estar e se relacionar com o
mundo” (CECHIN; SILVA, 2012, p. 626).
A heterogeneidade presente nas casas de santos faz com que as condições individuais dos
frequentadores não sejam o foco e muito menos motivos de questionamentos. Todos estão ali
com o mesmo objetivo: adorar a divindade incorporada nos médiuns. Naquele momento, a
aceitação das trans.mulheres e o respeito passam a ser o pensamento e filosofia dos
frequentadores, o que é extremamente necessário para elas. Tudo o que a trans.mulher
gostaria de ser, mas por algum motivo (questões jurídicas, laudos médicos etc) não ocorre, ela
tem durante aquelas horas de festividade e religiosidade, o direito integral de ser quem de fato
ela sempre foi e pertenceu: gênero feminino.
Se não somos predestinados a tais obrigações, por que devemos engessar as possibilidades de
vivência e convivência? Quais as necessidades que temos em estabelecer métodos, padrões e
6
Para entender mais a respeito das relações de poder no meio social, ler A Microfísica do Poder, de Michel
Foucault.
1607
normas para as práticas? Esses questionamentos esquecem que está no direito individual a
liberdade de manifestar-se, seja como quiser, desde que não agrida verbal e fisicamente o
próximo.
Considerações finais
Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS,
1948)
A aceitação da condição trans na sociedade é uma luta e busca continua não só das pessoas
transexuais como de qualquer outra que luta a favor da diversidade, do respeito, da tolerância
e da pluralidade, incluída a sexualidade e a identidade de gênero.
Faz-se necessário respeitar o direito individual a suas manifestações e não a discriminação por
meio de críticas negativas ou imposições externas a partir de padrões pré-estabelecidos. O
padrão de "normalidade", principalmente o heterossexista, fazendo uso de sua condição
hegemônica impõe formas de agir e tratar as trans.mulheres.
Impor e atrelar aos transexuais sejam eles masculinos ou femininos, a necessidade de laudos
para cirurgias de readequação e entraves burocráticos para mudança de nome, traz ainda mais
sofrimento para aqueles que necessitam principalmente de entendimento, e não um
atendimento.
1608
Atualmente no Brasil é possível encontrar-se discursos e ações contra o segmento trans
baseado principalmente em critérios religiosos, ligados a heteronormatividade, um exemplo
tácito disso é que o Ministério da Saúde, por meio do ministro Alexandre Padilha, desistiu no
dia 05/08/2013, de estender o tratamento hormonal para transexuais a partir de 16 anos no
Sistema Único de Saúde (SUS), por conta de uma ligação telefônica do Pastor Samuel
Ferreira, presidente da Igreja Assembléia de Deus, contrário a portaria. 7 Nesse caso
específico, existe um contraponto bastante significativo, pois o Conselho Federal de Medicina
(CFM) já havia se manifestado favoravelmente à temática, que foi discutida em diversas
reuniões por mais de dois anos. A que se considerar o que deve nortear um Estado laico,
aparentemente, essa questão ainda não foi plenamente resolvida no Brasil.
Durante todo o artigo foram feitas aproximações entre as pombas giras e as trans.mulheres,
como já dito, não se trata de exaltação de uma determinada religião em detrimentos de outras,
mas de reafirmar a possibilidade de aceitação que elas têm nos cultos das religiões afro-
brasileiras, a partir de um ponto de identificação. A necessidade e desejo de pertencimento
das trans.mulheres, como de todas as pessoas, podem e devem ser respeitado a partir de
políticas públicas específicas direcionadas a esse segmento dentro de uma perspectiva de
Direitos Humanos, onde ninguém deve ser alvo de constrangimento por conta de suas
características.
Referências
________. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. In: Revista de Estudos
Feministas, v.19, n.2, Florianópolis, p. 549-559, 2011.
CECCARELLI, Paulo Roberto. Transexualismo. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2008.
CECHIN, Michelle Brugnera Cruz; SILVA, Thaise da. Assim falava a Barbie: uma boneca
para todos e para ninguém. In: Fractal, Rev. Psicol., v.24, n.3, p. 623-638, 2012.
7
Portaria que beneficia transexuais é suspensa. GPS Gospel. Disponível em <http://www.gpsgospel.com.br/planalto-
suspende-portaria-para-tratamento-de-transexuais-pelo-sus-a-pedido-do-pastor-samuel-ferreira/>. Acesso em 03
ag.o 2013.
1609
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
WARNER, Michael. Introduction: Fear of Queer Planet. Duke University Press. n. 29, p. 3-
17, 1991.
Internet
1610
1611
Comunidade Cristã Inclusiva: movimento LGBTTIS ou
pentecostal? 1
Regiane Ap. de Lima2
Introdução
A questão religiosa homossexual está em evidência por sua atuação participativa dentro do
movimento pentecostal. Historicamente homossexualidade era indiscutível do ponto de vista
teológico e prático religioso. A transmissão religiosa familiar tradicional gerava uma coerção
suficiente para a propagação do sistema moral ao qual bania qualquer discussão sobre a
questão e realizava a repressão total do assunto. O único espaço religioso com aceitação do
publico gay são as religiões afro-brasileiras.
O movimento pentecostal em vista de seu histórico ascético e fechado às transformações e
questionamentos tem assimilado algumas mudanças no cenário brasileiro desde as décadas de
60 do século XX, como se pode observar com a Teologia da Prosperidade e a abertura para as
tecnologias e para o acúmulo de bens, acreditando que o sucesso financeiro é um medidor de
fé.
Nesse sentido, há um envolvimento cada vez maior com o mundo social, principalmente na
busca por controle dos instrumentos de riqueza e prestígio e entrada no cenário político para
conquista de poder dentro da esfera pública. No entanto, a maioria das denominações
pentecostais no que toca a questão da homossexualidade e o seu julgamento religioso, ainda
são muito arcaicos e condenatórios no que se refere a “moral e bons costumes”.
Mesmo existindo grupos homofóbicos contrários à inclusão e impulsionados pela ideia de
“cura gay”, avanços são visíveis acerca da aceitação e reflexão sobre a hermenêutica bíblica e
religiosa na questão da sexualidade.
"Não existe cura gay, porque homossexualidade não é doença", diz. E continua: "Mas não
podemos tolher o direito de um profissional, como um psicólogo, de estudar um assunto
1
Trabalho realizado a partir de pesquisa preliminar desenvolvida ao longo de 2012 por meio da observação de
campo em instituições religiosas e dos estudos desenvolvidos na disciplina “Estudos de religiões e
religiosidades” vinculado ao curso de Ciências Sociais e ao LERR/UEL. Projeto de Iniciação Científica
“Comunidade Cristã Inclusiva: Movimento LGBTS ou Pentecostal?” sob orientação do Prof. Dr. Fabio Lanza –
Departamento de Ciências Sociais – UEL.
2
Graduanda em Ciências Sociais pela UEL. Contato: tuti34@bol.com.br.
1612
que ainda não se colocou nele um ponto final, ainda é uma incógnita, ainda é um fenômeno.
E é isso que esse projeto de decreto legislativo prevê".3
O interesse desse estudo é observar e contribuir com o debate sobre a temática de inserção do
gay em qualquer religiosidade, principalmente na pentecostal que é o foco da pesquisa.
A sociedade brasileira na atualidade vive uma constante pressão pelas grandes transformações
econômicas e tecnológicas ocorrida no mundo globalizado. No Brasil, a distribuição de renda
é precária e o abismo da desigualdade é gigantesca, tudo se reverte em péssimas condições de
vida, saúde, falta de acesso à moradia digna, educação e também na inadimplência civil pelo
consumo desenfreado daquilo que se compra com os olhos e sem lastro financeiro suficiente.
Somando essa reflexão ao universo homossexual, é possível pensar o sofrimento e a morte de
“valores tradicionais” como propulsor para a busca de um segmento religioso como uma
resposta desse sofrimento material e espiritual, onde tentam encontrar, em alguns casos, uma
explicação das atuais relações sociais dentro deste contexto.
Gramsci diz que “[...] as concepções de mundo mais difundidas no corpo social são,
efetivamente, o senso comum e a religião, sendo a religião um conjunto ideológico [...]
portanto, importante na formação da cultura e política de um povo”. (GRAMSCI Apud
PORTELLI, 1984, p. 24-5)
Não tem como pensar as relações sociais e politicas sem levar em consideração que a religião
contribui na formação das ideias, de onde a raiz é plantada nas concepções de ver a si e o
outro, a matriz de pensamento religioso. E dentro dessa perspectiva podemos observar um
fenômeno crescente na cultura brasileira que são os movimentos pentecostais. De acordo com
o ultimo Censo feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Ciência), a partir da
3
Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, deputado (PSC-SP) e
pastor. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-video-feliciano defende-projeto-da-cura-
gay-e-diz-ser-bodeexpiatorio,1046743,0.htm, acessado em 17/08/2013.
1613
entrevista para a revista do Instituto Humanitas Unisinos a professora Meneses do Programa
de Pós Graduação em Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro falou sobre os dados a respeito do pentecostalismo.
Todos esses dados já foram sublinhados pelos pesquisadores que se pronunciaram sobre os
resultados do censo de 2010, mas esses comentaristas também assinalaram algumas
surpresas, como o decréscimo no número de membros da Igreja Universal do Reino de
Deus, igreja de modelo hierárquico, centralizado e episcopal, e o crescimento expressivo da
Assembleia de Deus, igreja de modelo mais congregacional, capilar e deliberativo, para
além de diferenças teológicas e litúrgicas entre ambas. Esse dado é extremamente relevante,
pois nos impede de tratar os evangélicos, mesmo os pentecostais, em bloco, de modo
unívoco, e nos leva a pensar na riqueza de sua diversidade interna, bem como nas diferentes
modalidades de agregação e pertencimento compreendidas por essa identidade religiosa.
(MENESES, 2012)4.
Essa nova escola que se instaurava na cidade ensinava os alunos que eram possíveis fazer
ligação entre experiências extáticas com transe, glossolalia (falar em línguas estranhas) e
dom do Espirito Santo. Ou seja, experiências místicas que os possibilitavam ter um contato
4
MENEZES, Renata disponível em < http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_
content&view=article&id=4588&secao=400.>. Acesso em 17 ago. 2013.
5
Cruzada ou avivamento da santidade (em inglês “holiness”) que teve como personagem central Phoebe Palmer,
ao qual pregavam a cura pelo Espirito Santo e dom de línguas (falar línguas estranhas).Disponivel em
<http://www.mackenzie.br/6982.html>. Acesso em 17 ago. 2013.
1614
real e perto do divino, igual aos da festa de Pentecostes, festa bíblica comemorativa a
ressurreição de Jesus, onde seus discípulos recebiam o Espirito Santo.
Dentro desse contexto vale lembrar que os Estados Unidos viviam um momento efervescente,
pois refletiam agitações que ficaram marcados por traumas como a Guerra Civil, libertação
dos escravos, tensões raciais, crises no mundo da agricultura, industrialização crescente e
chegada de milhões de imigrantes europeus pobres.
Segundo Campos (2005), dentro desse cenário Seymour iniciou seus estudos bíblicos na
escola recém aberta em Huston por Parham. Ele não podia estudar dentro das dependências da
escola porque o racismo de seus lideres não deixavam, então ele ficava nos corredores fora
das salas de aula aprendendo sobre as teorias pentecostais.
A partir desse contexto no final do século XIX e início do XX, que o Movimento Pentecostal
se constitui nos Estados Unidos e a seguir nos países sul americano, pois Seymour abriria uma
igreja na famosa Rua Azusa em Los Angeles que revolucionou o mundo religioso até então.
Um negro, filho de ex- escravos da Louisiana, então com 36 anos de idade, começou em
abril de 1906, num templo abandonado de uma igreja Metodista Africana, no bairro negro
de Los Angeles, uma caixa-preta, da qual começaram a sair gritos, convulsões, proféticas,
glossolalia, curas, milagres, prodígios a toda sorte de coisas, que rapidamente chamou a
atenção da imprensa e por meio dela, de todo o país. Em 18 de abril de 1906, o jornal Los
Angeles Times publicava uma matéria que começava afirmando estarem os seus repórteres
diante de “uma sobrenatural babel de línguas” e de uma “nova seita de fanáticos” formada
em sua maioria por negros e imigrantes pobres, liderados por um pregador negro, Wilhian
Seymor. (CAMPOS, 2005, p 110)
1615
mesmo assumindo cargos de liderança. Naquela comunidade viviam negros, brancos e
imigrantes, não existiam separações entre as culturas, enquanto nas ruas a Ku Klux Klan,
racismo e pobreza destruíam as dignidades e identidades. Como disse Campos (2005, p.111)
pessoas simples se tornavam lideres e celebridades religiosas, produtores religiosos, pois
havia condições sociais para que isso ocorresse.
Ou seja, esse movimento já chegou no Brasil com grande facilidade em se adaptar com uma
estrutura espontânea e flexível na aculturação popular. O pentecostalismo se adaptou muito
rapidamente ao modo de vida brasileiro, seus seguidores passaram a transição da sociedade
“tradicional” para a “moderna” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p.116) Várias outras
denominações pentecostais foram criadas e moldadas dentro da cultura brasileira, com suas
doutrinas rígidas e uma interpretação bíblica integralistas ou fundamentalistas pautadas em
cima de uma moralidade rigorosa. (BITENCOURT FILHO,2003, p.119)
1616
Religiosidade inclusiva
A religiosidade inclusiva já vem sendo percebida há algum tempo por intelectuais das áreas
das Ciências Sociais e Teológicas. É um movimento que tem como protagonistas gays,
lésbicas e transgêneros ao qual em sua maioria vieram de outras denominações evangélicas.
A pesquisa em desenvolvimento foi realizada a partir do trabalho etnográfico em uma
comunidade inclusiva de Londrina-PR no ano de 2012, chamada Cidade de Refúgio.
Vale lembrar que estudos acerca das sexualidades foram de grande importância na reflexão
das discussões sobre inclusão homossexual nos espaços religiosos. Nesse sentido, uma
contribuição importante são os estudos da teoria Queer uma teoria que questiona a
normatividade heterossexual como ponto de partida. O estranhamento Queer está no fato de
que até os anos de 1990 as Ciências Sociais tratavam a ordem social como sinônimo de
heterossexualidade, e com isso os estudos sobre “minorias” terminavam por naturalizar e
continuar a norma heterossexual.
Assim como nas comunidades eclesiais de base e nos grupos de mulheres, gays e lésbicas
resgatam suas experiências, suas formas de experimentar, de ver e de encarar o mundo, para
poder emergir como sujeitos de sua própria realidade, no fazer da sua própria história e na
construção de uma teologia que responda às suas vivencias. (MUSSKOPF, 2004, p.132)
A antropologia como uma ciência que lida com diferenças coloca a necessidade de deslocar o
olhar para o estudo do outro partindo dessa perspectiva, e não olhando a homoafetividade
como desvio “perspectiva na qual a heterossexualidade é pensada como normal e
inquestionável”. (MISKOLCI, 2009, p.2)
Podemos lembrar também que discussões feministas da década de 1960 , pensando na própria
Teologia Feminina e da Libertação na América Latina são elementos que fomentaram a
construção de uma teologia que refletisse sobre a homossexualidade. São teorias que vieram
para inspirar discussões sobre inclusão nas esferas pública/privada dando a alternativa para
exercer a liberdade das práticas religiosas cristãs sem uma perspectiva de cura e fomentando
uma cidadania gay.
Natividade cita Regina Fachini ao comentar sobre avanços nesses estudos:
1617
Gay. O primeiro grupo que passou a se reunir no CAEHUSP foi responsável pela
ordenação dos primeiros pastores gays no Brasil. (NATIVIDADE, 2010, p. 92)
“As igrejas inclusivas são um fenômeno recente no Brasil, surgido a partir do final dos anos
1990 com a articulação de alguns grupos que discutiam religião e homossexualidade a
partir da experiência de LGBTs em suas igrejas de origem. Mas somente a partir do inicio
dos anos 2000 que acontece uma proliferação de diversas denominações religiosas
inclusivas no Brasil.” (WEISS DE JESUS, 2003, p. 01)
1618
presente e que seriam pessoas gays e com aparências sofridas pelos vários problemas tantos
financeiros, educacional e de preconceito.
Logo na recepção que foi no salão do centro de eventos, todo o meu próprio pré-conceito caiu
por terra. Fui bem recebida por pessoas que se comunicavam muito bem. O salão era grande
com espaço pra umas 150 pessoas, porem, presentes lá percebi umas 80 pessoas. O salão
muito bem decorado de branco, tendo letreiros dando boas vindas aos visitantes, logo que
entravamos tinha uma mesa com livros, cds e dvds falando a história da igreja, das pastoras e
sobre a nova Teologia denominada Inclusiva.
No palco (usado como altar) tinha tudo muito bem estruturado com bateria, violões, guitarra,
baixo, teclado e um púlpito para a pregação, algumas cadeiras ao fundo. Um grupo de pessoas
ficava na parte de baixo do palco com uma mesa contendo instrumentos que controlavam o
som, o microfone e um telão com informações da igreja e letra de hinos. No decorrer de uns
minutos antes de começar o culto foram chegando mais pessoas principalmente casais
homoafetivos. Pessoas da faixa de idade entre 19 a 39 anos, extremamente bem vestidas, mais
não uma veste característica de pessoas evangélicas pentecostais, com roupas mais recatadas e
fora da moda, porém, de jovens atualizados na moda vigente. Fui recebida calorosamente pelo
pessoal que ficava na porta e que às vezes andavam no meio do salão conhecendo os
visitantes. Logo chegou a protagonista da noite que era a pastora Lanna Holder e sua esposa
Rosania Rocha. Lanna responsável pela pregação da palavra como eles dizem, e Rosania
como ministra de Louvor, cantora. Duas pessoas extremamente carismáticas e comunicativas.
Voltando a descrição da parte física do espaço, fiquei admirada pela estrutura e suporte que
eles tinham, aparelhos de última geração e computadores para administrar som e imagem no
momento do culto, sendo uso de data show e retroprojetor também.
O curioso no momento dos hinos foi um dançarino na frente fazendo coreografias nos ritmos
das músicas tocadas. Outro ponto que percebi foi o fervor que os membros que vieram de São
Paulo adoravam e gritavam “Glorias a Deus”, cantavam de olhos fechados. Muitos cantavam
e oravam juntos, pulavam, choravam, seguravam na mão uns dos outros. Entretanto, não era
como igrejas clássicas pentecostais e achei muito próximo com grupo católico carismático.
Refletindo sobre as leituras nas Ciências Sociais, percebo o quanto é importante o trabalho
etnográfico, como esse encontro empírico com o outro completa o entendimento dos sujeitos
e suas práticas. Fui como pesquisadora, observadora de um mundo que eu achava que
conhecia, mas ao mesmo tempo, sabia que iria me deparar com novidades, porém não
1619
imaginei que seriam tantas novidades, que isso causaria um impacto em mim como sujeito.
Percebi naquele instante que estava vivendo um pouco o mundo do outro, praticando a
alteridade e um grande estranhamento. “Os antropólogos deixam sua cultura nativa para
estudar uma outra e, na volta, tendo se familiarizado com o exótico, tornam-se exótica sua
cultura familiar, na qual a identidade social renasce”. (PEIRANO, 1995, p.58)
Comentou sobre o dizimo, mais não se prendeu mais que 10 minutos nesse discurso, passaram
uma sacolinha recolhendo ofertas e acabou o assunto. Ficando claro que não se pautam na
Teologia da Prosperidade e nem no fundamentalismo religioso. A missionária era muito
carismática e muito eloquentes conseguindo prender a atenção de todos que estavam lá de
forma sútil e dominadora.
Após o termino da fala de Lanna, foi apresentado aos visitantes a pastora que seria
responsável por Londrina, Pastora Eddy, uma mulher de cabelos grisalhos e com roupas
masculinas. Ela passou o endereço de onde seria a igreja na cidade, dias de inauguração e as
atividades rotineiras daquela filial.
Considerações finais
O estudo aqui quer compreender essa nova religiosidade emergente e refletir dentro de seus
ambientes aos impactos nos sujeitos como protagonistas desse polêmico movimento.
1620
Os objetivos que norteiam a investigação buscam identificar entre os sujeitos se existe uma
perspectiva de reivindicação política de quebra ao tradicionalismo moral evangélico ou
apenas um espaço religioso, e a partir da coleta de matérias nos cultos e da observação
participante é possível apresentar como resultado parcial a inexistência de discursos políticos
da bandeira política LGBTs, porém instigam a luta pela inclusão não só do homossexual, mas
das mulheres e dos negros.
Referências
Internet
1621
MATOS, Alderi Souza de. O movimento Pentecostal: Reflexões a Propósito do seu Primeiro
Centenário. Fides Reformata ,V Xl,n°2,2006,p.23-50.Disponivel em:
<http://www.mackenzie.br/6982.html>. Acesso em 18 ago. 2013
Marco Feliciano. Defende projeto da 'cura gay' e diz ser 'bode expiatório. Estadão.com.br.
Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-video-feliciano-defende-
projeto-da-cura-gay-e-diz-ser-bode-expiatorio,1046743,0.htm>. Acesso em 18 ago. 2013.
1622
1623
Evangélicos e as relações de gênero na implantação
de uma Igreja Inclusiva em Campinas
Livan Chiroma1
Campinas, reconhecida no folclore popular como uma cidade gay brasileira, encontra-se
localiza no interior do estado de São Paulo. É o segundo município mais populoso do interior
do país. Cerca de um quarto de seus habitantes declaram-se evangélicos (25,35%),2 índice
pouco acima da média nacional (22,2%). A fé católica firma-se como preferência (69,94%),
além de uma presença marcante dos sem religião (7,9%). Em 2011 deu-se inicio em
Campinas o processo de plantação da primeira Igreja Inclusiva da cidade. As comunidade
inclusivas, ramificações do movimento evangélico, tem se multiplicado no Brasil à partir da
década de 90 e crescendo em ritmo acelerado3 em diversas novas denominações. Este artigo
pretende analisar características destas Igrejas voltadas ao público homoafetivo, compreender
sucintamente a formação destas denominações além de tentar capturar o trânsito religioso
demonstrado entre seus fiéis e por fim analisar as representação e fronteiras em relação ao
pensamento evangélico tradicional (resistente a inclusão do público GLBT em suas práticas
diárias).
Como metodologia utilizaremos bibliografia, pesquisa de campo e fontes virtuais (sites, blogs
e midia social dos interlocutores). Em nossa bibliografia lançaremos mão de Natividade
(2010) e, sobretudo, Anezini (2013).4 Este artigo também se pautou em pesquisa de inspiração
etnográfica realizada entre Janeiro e Abril de 2012 em visitas de campo, período de
cumprimento das disciplinas do meu mestrado, sendo o trânsito religioso e novas
configuração de pertencimento religioso no Brasil - especialmente os “Evangélicos Sem
Vínculos Institucionais” o objeto em destaque na dissertação.5
Igrejas Inclusivas
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP. Filiado ao GIPESP (Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em
Sociologia do Protestantismo). Bolsista CNPq. Graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de
Campinas e graduando em Ciências Sociais pela UNICAMP. Contato: livanveiga@gmail.com.
2
Segundo o Censo 2010, Campinas tem 1.080,113 habitantes. 636.703 católicos, 273.812 evangélicos, sendo
que 171.941 ( 62.79%) de origem pentecostal e 33.374 ( 12,18%) evangélicos de missão. Os Sem Religião
perfazem 86.403 sujeitos.
3
Ao final do artigo, sumário de igreja encontradas até a data de finalização desta análise. Pesquisa realizada na
internet e nas mídias sociais.
4
Anezini gentilmente forneceu o mimeo de sua monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais
(Unicamp).
5
Mestrado realizado junto ao GIPESP, orientação do Prof. Leonildo Silveira Campos.
1624
As igrejas inclusivas pretendem incluir a temática GLBT6 em suas práticas cotidianas.
Tradicionalmente as igrejas evangélicas “convencionais” opõe-se as práticas homossexuais.
Em certos casos os casais homoafetivos são aceitos porém, são proibidos de assumirem
cargos e lideranças formais. Denominarei para este artigo como “tradicionais” as instituições
não inclusivas, agências evangélicas que refreiam a prática homossexual. Para Anenizi
(2013), Igreja Inclusiva é:
Weiss (apud Anenzini, 2010) ainda afirma que é “Um termo êmico e controverso pelo qual se
designam igrejas que, em geral podem ser definidas por compatibilizar as formas de
sexualidades não heterossexuais e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas.”
(Anenzini, 2013, p. 28 apud Weiss de Jesus, 2010, p. 132). Ainda, nesta tentativa de
compreender o termo, encontramos Natividade (2010), onde:
“Tal segmento se destaca no campo religioso mais amplo pela criação de cultos nos quais
homossexuais podem tornar-se pastores, reverendos, diáconos, presbíteros, obreiros,
ocupando, assim, cargos eclesiais. Esse movimento é protagonizado em sua maior parte por
pessoas egressas de denominações evangélicas e/ou paróquias católicas” (Natividade,
2010).
6
Utilizarei a sigla “GLBT” (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros). Para André Musskopf é a mais
utilizada pelos movimentos civis e pesquisas acadêmicas. Existem outras variações, como GLS, LGBTTTI e
outras derivações.
7
Mateus 28.19.
1625
acolham e doutrinem os convertidos à fé. Esta ênfase conversionista e expansionista esteve
historicamente em várias calhas, de acordo com os movimentos teológicos e culturais das
diversas denominações. Encontramos em Bosch (2011) algumas faces das motivações para o
empreendimento missionário: 1) Movimento cristão de estudantes: “Evangelizar o mundo
nesta geração”; 2) Movimento Étnicos: evangelizar todas as tribos povos e raças; 3) AD
2000: A volta de Jesus8 virá através da pregação do evangelho à todas as nações9 - Pacto de
Lausanne (Missão Integral / Evangelical): O Evangelho todo, para o homem todo, para todos
os homens. Estas convenções influenciam fundamentalmente os formatos da plantação de
novas igrejas cristãs e a gestão da alteridade diante de diversas culturas.
De maneira geral a atual expansão do setor pentecostal e não pentecostal no campo religioso
brasileiro indica a preferência pela missão de salvação de almas e inclusão do fiél em uma
nova rede que santifica seus próprios circuitos e pecaminiza interlocutores externos, as coisas
do mundo, incluindo a ingerências na construção social das sexualidades. Para Souza:
8
Retorno de Jesus, segundo algumas linhas teológicas.
9
Mateus 24:14; 4.
1626
de gênero demanda pensar o papel da religião na construção social dos sexos (SOUZA,
2006, p.9).
Este processo ajudou a definir as esferas de atuação de cada gênero para além do
1627
determinismo biológico, que tipologicamente representanva as mulheres com sendo serenas,
dóceis, submissas e homens - ríspidos, cuidando do bem estar das mulheres e da sociedade.
Para estes autores a modelagem sexual é produzida pelas relações de poder e não somente
como resposta à uma configuração do sexo biológico ou divinizado. Esta desnaturalização
abre precedentes para incluir outras clivagens, como a questão da homossexualidade em um
olhar agora codificado por estas novas referências e alteridades. Para Bellotti (2007) o
imaginário judaico cristão reforça a manutenção destes papéis generificados modelaradores da
divisão sexual social religiosa, santificando o domínio masculino e secundarizando as
representações do feminino (BELLOTTI, 2007). Considerando que na construção social de
certos ramificações evangélicas os pastores, bispos ou apóstolos ocupam a posição do ungido,
cujas falas são a voz de Deus, o ciclo do domínio se fecha em um habitus climatizado à estas
qualificações.
A partir dos anos 1990 nota-se o crescimento em ritmo acelerado das igrejas inclusivas no
Brasil. O rápido surgimento de inúmeras denominações, cismas e a publicização das mesmas
junto às mídias de massa, incluem-nas como a mais nova protagonista no mapa dos estudos
das religiões, gênero e sexualidade no Brasil. Elas acolhem cerca de 10.000 fieis, ou 0,005%
da população brasileira. [...] Hoje, segundo o IBGE, há 60 mil casais homossexuais no
Brasil. Para grupos militantes, o número de gays é estimado entre 6 a 10 milhões de
10
publicação original em inglês e publicado no Brasil pela primeira vez em 1983.
1628
pessoas.11 Em cerca de 10 denominações principais e 40 congregações em processo de
implantação.12
Esta seção pretende analisar sucintamente certas “ondas” históricas das lutas e conquistas dos
movimentos GLBT no Brasil, entendemos que esta ondas foram concomitantes a
consolidação das releituras sociais das igrejas evangélicas, até ao ponto da atual pré
normatização das agências religiosas inclusivas.
11
Segundo o jornalista Luís Guilherme Barrucho que assina a matéria “Desafiando preconceito, cresce número
de igrejas inclusivas no Brasil”. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/04/120329_
igrejas_tolerancia_gays_lgb.shtml >. Acesso em 07 jan. 2013.
12
Na tabela I, 18 novas denominações (algumas micro denominações) e igrejas independentes. A tabela é uma
boa amostra do crescimento em ritmo acelerado das Igrejas Inclusivas no Brasil.
13
Grupos, predominantemente domésticos, que proporcionam proximidade e comunhão entre seus participantes.
1629
estilos de vida e um clima cultural livre, sem precendentes para o debate do gênero e da
sexualidade. Os crescimento censitário dos evangélicos (à galope e à partir da década de
1990), ensejou o fortalecimento de organizações religiosas potencialmente mais preparadas às
rápidas adaptações culturais do país, um cenário propicio para a consolidação da igrejas
evangélicas gays friendly. O terceiro destaque é a conquista e visibilidade do debate sobre a
diversidade sexual, nas esferas públicas. O movimento GLBT politiza-se causando embates e
estranhamento inevitável com a tradicional cosmovisão cristã heteronorminativa. Uma
percepção sociológica da sexualidade se difundiu entre diversos atores, organizações e
movimentos sociais, pluralizando discursos. ( p. 92)
A Acalanto foi pioneira no Brasil e inspirou várias outras Igrejas Inclusivas. Em 2006 alguns
de seus membros fundaram a CCNE - Comunidade Cristã Nova Esperança. A Igreja Crista
Evangelho Para Todos - ICEPT São Paulo. Segundo Natividade, surgiu por volta em 2004, à
partir da antiga igreja Acalanto, fundada pela pastora Indira Valença.14 A unidade de
Campinas iniciou suas atividades em 2009 devido a presença de membros da ICEPT na
cidade. Em meados de 2011, os primeiro encontros foram em sala alugada em hotel, logo
depois passaram a se reunir em uma escola de inglês (ANEZINI, 2013, p. 30).
Resumidamente, o debate sobre o gênero visto como uma construção social à partir dos anos
60, relidos pela Queer Theory, à partir dos anos 80, ressoou nas igrejas protestantes, com o
surgimento do eixo das Igrejas Inclusivas na década de 1990. Para Duarte sistemas simbólicos
14
Disponível em <http://www.igrejaparatodos.org/pastores.html#>. Acesso em 15 ago. 2013. A informação no
site indica que Pastora Indira iniciou a pregação ao público GLBT à partir de 1988, nos anos 90 abriu sua casa
para acolher irmãos de fé em conflito com suas igrejas tradicionais e serem acusados de pecadores, excluídos do
Reino de Deus pelas suas igrejas. O site afirma que ela Indira era moderadora do primeiro Grupo GLS Cristão
no Brasil, no final dos anos 90.
1630
fixados pelas instituições religiosas são fixos até o momento em que uma necessidade
especial não é atendida (SOUZA, 2006, p. 28), [assim o fiel realiza] novas combinações que
lhes permitam lidar com seu cotidiano, realizando sua bricolagem a partir de elementos
escolhidos de sistemas religiosos diversos, configurando uma verdadeira religiosidade da
escolha contínua (SOUZA, 2006, p. 28).
Podemos dizer que as Igrejas Inclusivas representam uma nova onda ou tendência na gestão
das particularidades simbólicas e teológicas dos fenômenos religiosos no Brasil. Devido à
suas particularidades, causam estranhamento na comunidade evangélica tradicional como
observado na página oficial da Para Todos Campinas15, onde encontramos o seguinte
comentário, postado por um visitante virtual:
Cláudio, frequentava anteriormente uma igreja neopentecostal. Afirmou que, ao revelar sua
homossexualidade à antiga igreja, foi acusado que estaria sob a influencia de um escosto
15
Disponível em <https://www.facebook.com/profile.php?id=100004091894570&fref=ts>. Acesso em 10 mar.
2013.
16
Todos os nomes são fictícios.
1631
espiritual. Portanto, para sua purificação teria que ser exposto diante da congregação durante
algumas semanas e ser submetido à rituais de expulsão de demônios e encostos para alcançar
libertação da entidade espiritual. Paulo, ao assumir sua homossexualidade, afirmou que foi
convocado frente à igreja, no dia de ceia do Senhor para que pedisse perdão sobre seu pecado
sexual.
Ambos passaram por um período na categoria dos Evangélicos Sem Vínculo Institucional. A
integração na igreja inclusiva Para Todos serviu de consolidação da suas próprias identidades
de gênero. Fraser (2008) observa que a participação em grupos de acolhimento colaboram na
consolidação da identidade de gênero e superação das rejeições aos quais os sujeitos foram
expostos. Podemos concluir que trânsito religioso nas igrejas evangélicas inclusivas segue um
certo fluxo: 1) o desligamento das instituições às quais eram filiados, 2) seguido de um
período de desfiliação, 3) Por fim, filiação à uma igreja gay friendly. Desta forma, igrejas
históricas e/ou fundamentalistas ditas tradicionais funcionam como “doadoras universais”,
fornecendo seus fiéis homossexuais às novas formas alternativas. Em conversas e entrevistas
notaram-se que grande parte dos membros já eram cristãos antes de frequentarem a ICEPT,
predominantemente evangélicos, mas com a presença de alguns ex catolicismo.
17
Liturgia é ordem dos elementos que acontecem em um culto ou missa.
1632
aceitação e de dificuldades de inserção social (ORELLANA apud MUSSKOPF, 2011, p,
277).
“[1)] Aborda de maneira objetiva e completa todos os versículos bíblicos usados por
homofobicos, [2)] Objetiva desmistificar e derrubar a hipocrisia e discriminação que
algumas pessoas e igrejas pregam sobre a homossexualidade alegando estarem embasadas
na Bíblia, [3)] É realizado nas unidades da Igreja Para Todos, e [4)] Também é ministrado
gratuitamente em ONGs, escolas, empresas ou grupos de amigos e em qualquer cidade,
desde que com quorum mínimo de pessoas”.19
Considerações Finais
Concluímos afirmando que as Igrejas Inclusivas são tendência no campo religioso brasileiro 21.
As organizações religiosas estão cada vez mais fragmentadas e independentes dos grandes
eixos denominacionais. Esta emancipação permite releituras diversas quanto as práticas e as
teologias de cada uma. Muitos ministros religiosos de igrejas inclusivas outrora foram
pastores e presbíteros em igrejas históricas, pentecostais não inclusivas. A não normatização
da homossexualidade no protestantismo convencional impeliu que determinadas lideranças
procurassem caminhos próprios e empreendessem suas versões gay friendly evangélica.
18
Interpretação das línguas bíblicas originais.
19
Disponível em <http://www.igrejaparatodos.org/curso_biblia_versus_homoafetividade.html> . Acesso em 17
ago. 2013
20
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=Ut3lAzjKfyE>. Acesso em 10 ago 2013. Afirmação do
Pastor Marcos Gladstone, que ministra o curso “A Bíblia sem preconceitos”.
21
Comparando os resultados da pesquisa de Natividade, que analisou as principais ramificações de igrejas
inclusivas no Brasil em 2010. Em 2013 já observamos a expansão do quadro. Esta informação esta contida na
tabela I, anexa.
1633
Outro consideração é apontar que o recrudescinto desta opções de fé impulsionarão dois
movimentos dentro do cenário evangélicos brasileiro em geral. Em primeiro lugar, o reforço
das vertentes fundamentalistas, que amplificarão e pautarão as cosmogonias bíblias da
criação, pois deles advém as teologias do “sexo binário” (homem e mulher); em segundo
22
lugar, as vertentes progressistas estarão cada vez mais abertas ao dialogo e a construção da
diversidade sexual nas organizações eclesiásticas.
Além disso as igrejas evangélicas estão cada vez mais voltadas a atender demandas
segmentadas da sociedade brasileira, tais como igrejas para jovens, orientais, classe média,
roqueiros, etc. As teologias que expressam a inculturação radical também vascularizam esta
circulação simbólica no campo religioso e criam novas expressões e lógicas de fé, aliadas aos
recentes estudos hermenêuticos que procuram legitimar a temática homoafetiva nas práticas
cristãs evangélicas.
TABELA 1
Principais denominações e igrejas independentes inclusivas
* Pesquisa realizada na internet e em midias sociais virtuais
22
http://delas.ig.com.br/comportamento/2013-05-23/os-evangelicos-progressistas.html
1634
Divinópolis - MG
Mairiporã – MG
Baixada Fluminense – RJ
Cuiabá – MT
Caxias do Sul – RS
Teresina-PI
Maceió -AL
CFCA Brasília - DF
Comunidade Família
Cristã Athos
IMI Maceió - AL
Igreja Missionária
Inclusiva
1635
Igreja Apostólica Nova Pastora Andréa Gomes
Geração em Cristo
Referências
ALMEIDA, Ronaldo Rômulo de. Religião em Transição. RJ: Religião & Sociedade. vol.31
no.1, Junho, 2011.
BELLOTTI, Karina Kosicki. Gênero e Religião. In: SOUZA, Sandra Duarte de. (org.)
Gênero e Religião no Brasil: Ensaios Feministas. São Bernardo do Campo: Editora da
Umesp, 2007. Disponível em <http://www.unicamp.br/~aulas/Conjunto%20III/r1.pdf>.
Acessado em 10 maio 2013.
COSTA, Jease. Homos-sexus, o que a bíblia diz sobre. SP: Abba Press, 2011.
FRASER, Suzanne. Getting out in the “Real World”: Young Man, Queer and Theories of gay
community. The Haworth Press. In: Journal of Homossexuality, v. 55, n.2, 2008.
JESUS, Fátima Weiss de. A Cruz e o Arco-Íris: refletindo sobre gênero e sexualidade a partir
de uma igreja inclusiva no Brasil. In: Ciências Sociais e Religião, n. 12, Porto Alegre, p. 131-
146, 2010.
1636
MISKOLCI, Richard.. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização. In: Sociologias, ano 11, n. 21, Porto Alegre, p. 150-182, 2009. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/soc/n21/08.pdf>. Acesso em 05 mai 2013.
MUSSKOPFI, André. Via (da) gens teológicas. Itinerários de uma teologia queer no Brasil.
São Paulo: Fonte Editorial, 2012
RIBEIRO, Arilda Ines. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. In:
Educar em Revista, no.39, 2011. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
40602007000200017&script=sci_arttext>. Acesso em 05 mai 2013.
1637
1638
Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo: o perfil de
uma igreja inclusiva e militante
Aramis Luis Silva23
Introdução
Em meio a uma série de denominações religiosas que despontam na cena pública brasileira
por conta das suas participações na controvérsia em torno das relações homoeróticas e dos
tópicos temáticos que delas se desdobram (união civil entre pessoas do mesmo sexo,
tratamento psicológico para redefinir orientação sexual, intervenções cirúrgicas para mudança
de sexo, práticas corporais alternativas orientadas ao prazer, etc.), as ditas igrejas cristãs
inclusivas surgem como interessantes elementos de um sistema de discursos orientado à
reconfiguração e visibilidade dos significados dessas condutas sexuais e afetivas.
23
Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Pesquisador do Cebrap e vinculado ao GE sobre Mediação
e Alteridade (Gema) e ao GP sobre Religião e Esfera Pública. Contato: aramisluis@uol.com.br.
24
Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
25
O termo híbrido é aplicado em função de um efeito retórico (a busca do contraste) para delinear um horizonte
empírico e não uma vinculação ou afinidade a qualquer teoria do hibridismo, quadro conceitual, aliás, que
procuramos nos distanciar. Nesta seara de pesquisa (igrejas inclusivas), a percepção da existência de campos
supostamente autônomos entre religião e política é um dado etnográfico e é constitutivo da própria construção de
trajetórias dos agentes (eles se pautam por essa normatividade). Todavia, estamos diante de um ponto de
transformação desse processo e da própria representação nativa sobre ele.
26
Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos (um dos principais pontos de eclosão do movimento
LGBT), país no qual se assistiu à emergência dos movimentos gays cristãos paralelamente à formação de demais
organizações civis afinadas em torno da dita causa homossexual, no Brasil o surgimento de grupos religiosos
associados em torno das bandeiras LGBTs ocorre com força a partir do final da década de 90, praticamente duas
décadas depois da formação das organizações não-religiosas. Autores como Facchini (2005), Natividade (2007 e
2008) e Weiss de Jesus (2012) nos fornecem pistas em suas produções como ocorreu esse entrelaçamento de
relações entre as organizações civis laicas e as instituições religiosas, processo marcado pelo trânsito de agentes
de uma instância a outra. Marcelo Natividade, particularmente, sugere a ideia da formação nascente de um
“movimento gay cristão no Brasil (2007, p.82).
1639
compreensão dos contemporâneos processos de produção (simultânea) de sujeitos e dos seus
repertórios de sentidos, bem como os procedimentos comunicativos que os colocam em
circulação.
Cientes da existência de um cenário institucional muito mais amplo e crivado por distinções
reguladas por variados padrões de moralidade sexual, como atestam levantamentos e análises
recentes (WEISS DE JESUS, 2012; NATIVIDADE, 2008; e MUSSKOPF, 2008), colocamos
em foco a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), particularmente o núcleo paulistano.
A fim de explicitar virtudes e limites da nossa escolha, bem como adiantar alguns pontos de
interesse que guiam nossa observação, faremos uma breve e esquemática apresentação dessa
organização de abrangência internacional, assim como registrar de que modo estamos
estabelecendo relações com esse campo de pesquisa. Comecemos por aí.
A chegada ao campo
Ligados a um grupo de investigadores que está promovendo uma cartografia das controvérsias
em curso envolvendo agentes religiosos e seus posicionamentos frente a temas dissonantes
para a sociedade brasileira,27 encontramos em uma notícia veiculada na internet uma
oportunidade para nos aproximarmos de uma nova frente de pesquisa e enriquecer o
mapeamento do grupo com a “controvérsia do homoerotismo”: a Igreja da Comunidade
Metropolitana de São Paulo (ICM-SP), organização para nós até então desconhecida,
anunciava a abertura de um curso sobre a História da Sexualidade 1 – A vontade de saber, de
Michel Foucault. O grupo de religiosos cristãos, acossado pelo crescente ataque
fundamentalista e que neste ano galgou simbólica posição dentro da máquina governamental
com a nomeação do deputado e pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara de Deputados Federal, estava interessado em compreender de
que modo a metodologia genealógica daquele autor contribuiria para o seu projeto histórico
de desconstruir preconceitos incutidos ao longo de sua formação religiosa junto às suas
comunidades primárias.
27
Referência ao Grupo de Pesquisa Religião & Espaço Público, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Paula Montero.
Deles fazem parte ainda: Lilian Sales, César Augusto de Assis Silva, Eduardo Dullo, Carlos Gutierrez, Jaqueline
Moraes Teixeira, Henrique Fernandez Antunes, Leonardo Siqueira Antônio, Milton Bortoleto e José Edilson
Teles.
1640
Vimos no momento que se abria uma possibilidade de inserção em um novo campo de
pesquisa. Proferido em 11 encontros, sempre às quintas-feiras, entre 17h30 e 19h00, entre os
dias 14 de fevereiro e 23 de maio de 2013, o curso sobre a obra de Foucault se constituiu
como uma privilegiada janela para o universo discursivo da ICM, que foi (e está sendo)
posteriormente complementado com a participação nos cultos de domingo, a nossa atual
plataforma a observação participante. Além da ICM de São Paulo, tivemos oportunidade de
visitar em agosto deste ano a ICM de Fortaleza durante um dos seus cultos dominicais.
Depois de idas e vindas entre igrejas, o fim de um casamento com uma filha de pastor
interpretado como uma malsucedida tentativa de “cura gay”, expatriação para Alemanha por
conta de um alistamento militar e uma tentativa de suicídio, a criação da ICM surge na
biografia de Perry como ponto culminante de um processo de autoaceitação e de combate à
homofobia externa e internalizada.29 Um caminho no qual a proposição de uma renovação
hermenêutica dos ensinamentos morais bíblicos e o engajamento político pelos direitos (e
visibilidade) gays tornaram-se indissociáveis.
28
Em texto divulgado em site da ICM, Troy Perry conta com mais detalhes: “Eu sabia que os homens me
atraíam. Porém não havia um nome para isso naquela época, naquele tempo as pessoas acreditavam que se
alguém incorria em atos homossexuais, era um heterossexual que andava mal, era um comportamento doentio,
mau, criminoso, pecaminoso. A homossexualidade era nomeada somente às escondidas... Eu pensava que era o
único". Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago
2013.
29
“Deus me disse: te amo, Troy. Eu não tenho enteados nem enteadas, tenho filhos e filhas”, conta o reverendo.
Antes de fundar a ICM, o religioso buscou inúmeras igrejas para frequentar mediante condição de que pudesse
contar às demais pessoas que era gay. “Disse à minha mãe que não ia mentir a ninguém sobre quem eu sou”. Os
trechos foram extraídos do site da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-
igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago. 2013.
1641
“A ICM prega um evangelho inclusivo de três pontos: salvação cristã, comunidade Cristã e
igualdade de direitos”, afirma o reverendo em trecho divulgado pelo site da instituição,30 nos
sugerindo em que termos a liderança religiosa pode convergir com a política e associativismo
militante. A Confissão de Fé Inclusiva, texto ritualmente lido durante os cultos, e no caso da
ICM de São Paulo, afixado e exposto nas paredes da igreja, é ainda mais eloquente:
“Creio em Deus, Pai de todos, que deu a terra a todos os povos e a todos ama sem distinção.
Creio em Jesus Cristo, que veio para nos dar coragem, para nos curar do pecado e libertar
de toda a opressão. Creio no Espírito Santo, Deus vivo que está entre nós e age em todo o
homem e em toda a mulher de boa vontade. Creio na Igreja, posta como um farol para todas
as nações, e guiada pelo Espírito Santo a servir todos os povos. Creio nos direitos humanos,
na solidariedade entre os povos, na força da não-violência. Creio que todos os homens e
mulheres são igualmente humanos. Creio que só existe um direito igual para todos os seres
humanos, e que eu não sou livre enquanto uma pessoa permanecer escrava. Creio na
beleza, na simplicidade, no amor que abre os braços a todos, na paz sobre a terra. Creio,
sempre e apesar de tudo, numa nova humanidade e que Deus criará um novo céu e uma
nova terra, onde florescerão o amor, a paz e a justiça. Amém.”
Porém, destacando que foram necessárias certas mediações para estabelecer o trânsito entre
esses dois âmbitos, o religioso e o político, no mesmo relato, o reverendo enfatiza que foi
preciso quebrar algumas barreiras, pois alguns integrantes do movimento de direitos LGBT
suspeitaram da ideia de ter como aliados pessoas que se assumiam como religiosas. A sua
interpretação para o fato nos parece ainda mais significativa, pois evidencia sua visão crítica e
reformadora do papel das organizações cristãs: “Eles já haviam sido muito feridos pela Igreja
e não importava que esta fosse uma igreja gay ou lésbica”, conta o religioso, reconhecendo
que a experiência comunitária baseada no ideário tradicionalista cristão se impunha para
muitas trajetórias de vida como fonte de exclusões, violências e sofrimentos. Seu projeto
compreendia a fundação de uma igreja baseada em uma nova visão de comunidade.
Atualmente, a ICM está presente em mais de 50 países no mundo, seja em forma de igrejas
formalmente instituídas ou missões. Ela está inclusive em países como a Arábia Saudita e
Uganda, onde as práticas homoeróticas são passíveis de punições legais, inclusive com a pena
de morte. Segundo informações de fontes da ICM de São Paulo, a igreja, por meio de relações
com entidade médicas locais, funciona nesses países como uma espécie de núcleos que
30
A História da ICM. Ver o site da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-
igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago. 2013.
1642
garantem a transferência para outros países de pessoas que estão sob ameaça das autoridades
nacionais.
Nos Estados Unidos, a ICM enfrenta forte oposição das igrejas cristãs, principalmente aquelas
de orientação fundamentalista. Por conta disso, Troy Perry precisa viajar regularmente sob a
vigilância de guarda-costas e já sofreu 22 vezes o amargor da notícia de uma filial da sua
igreja ser arrasada por incêndios criminosos. Em contrapartida, a igreja já vem colhendo há
alguns anos alguns trunfos públicos nesse país. Perry, por exemplo, assumiu uma cadeira na
Comissão de Direitos Humanos do Condado de Los Angeles, foi convidado pelo ex-
presidente Jimmy Carter para a discussão sobre direitos homossexuais na Casa Branca em
1977 e foi hóspede do ex-presidente Bill Clinton em 1997 durante a Conferência sobre
Crimes de Ódio da Casa Branca. Por sua vez, a reverenda Nancy Wilson, que ocupa
atualmente o principal cargo na hierarquia da igreja, por meio de um convite para participar
de uma celebração na Casa Branca, foi reconhecida publicamente pelo presidente norte-
americano Barack Obama como uma liderança religiosa local.
No Brasil, a igreja está estabelecida oficialmente há 7 anos, com igrejas e missões em várias
cidades brasileiras, como São Paulo, Fortaleza, Rio de Janeiro, Cuiabá, Maringá, Vitória, Belo
Horizonte, Divinópolis, João Pessoa, Teresina, São Luis e Porto Alegre.31 E todos esses
núcleos – nacionais e internacionais – estão organizados em torno da Fraternidade Universal
das Igrejas da Comunidade Metropolitana (FUICM),32 possuem um clero escalonado em
níveis hierárquicos com pastores formados em seminários e cursos especializados da própria
instituição, liturgia unificada organizadas e executadas por ministérios locais e defendem
aquilo que eles chamam de Teologia Inclusiva, vertente segundo a qual alguns informantes
dizem estar fortemente inspirada pelas Teologia Feminista e pela Teologia da Libertação.33
31
Musskopf (2008) nos lembra que a presença da ICM é anterior. Segundo o autor, em 2003, foi realizada a I
Conferência das Igrejas Metropolitanas no Brasil com o objetivo de adensar o trabalho que a instituição
mantinha no Brasil via rede eletrônica de computadores. A meta era abrir núcleos locais e presenciais. Já no ano
seguinte, o reverendo e fundador Troy Perry viajou para o Rio de Janeiro para participar da criação da ICM na
cidade. Porém, dois anos depois, o núcleo foi descredenciado pela organização internacional por divergências
administrativas e regimentais. A festa de aniversário da ICM de São Paulo foi comemorada no dia 11 de agosto
durante uma celebração marcada para ocorrer antes do culto dominical de domingo.
32
A liderança da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana é exercida desde 2005 pela
reverenda Nancy Wilson, sob o cargo de “moderadora”. No livro memorialístico Nossa Tribo: Gays, Deus e a
Bíblia, editado no Brasil pela editora Metanoia, ela se define como uma pensadora do ecumenismo terrorista,
numa alusão bem-humorada ao seu trabalho de fazer convergir a Teologia e a Teoria Queer.
33
Certamente a leitura, interpretação e o trabalho de transposição da Teologia da Libertação para a Teologia
Inclusiva realizados pelos intelectuais/teólogos da ICM despontam como uma frente de investigação a ser
realizada.
1643
ICM-SP
Fundada em agosto de 2006 pelo hoje reverendo Cristiano Valério, psicólogo e ex-ativista do
Grupo Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor35 e atual pastor-moderador
local e responsável pela coordenadoria de desenvolvimento das ICMs do Brasil, a ICM-SP
está organizada em um corpo administrativo escalonado entre pastores, diáconos e demais
lideranças escolhidas em assembleias gerais para ocupar posições em
“departamentos/ministérios”, “conselhos” e a “diretoria’, esta última composta por
Presidência da Igreja, Vice-presidência, Secretaria da Igreja, Tesouraria e Conselho Fiscal.
Os pastores devem ser ordenados e nomeados pela Fraternidade Universal das Igrejas da
Comunidade Metropolitana, mediante formação teológica referendada pela Fraternidade, mais
complementação teológica oferecida pela entidade. Os diáconos dependem da indicação do
pastor e da aprovação da comunidade religiosa. Atualmente, a ICM-SP conta com seis
diáconos, sendo três identificados com nomes femininos e três masculinos. Importante
também destacar o lugar simbólico que as assembleias gerais ocupam para a organização.
Como expressões rituais da reafirmação do seu compromisso com os ideais democráticos e de
igualitarismo participativo – princípios para o seu modelo de exercício de poder –, a
promoção periódica de tais assembleias é marcada por certa suntuosidade reflexiva a fim de
destacar o caráter especial daquele evento, que se configuraria como um sinal diacrítico da
igreja.
34
Texto de apresentação da ICM. Disponível em <http://www.icmsp.org/icm/>. Acesso em 5 ago. 2013.
35
O Grupo Corsa - Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor é uma entidade civil criada há 13 anos e
direcionada à luta pelos direitos civis humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Sediado na
cidade de São Paulo, a partir de 2001 tornou-se uma organização não-governamental (ONG) concentrada em
projetos de intervenção social na área de prevenção às DST/Aids e na formação de professores da rede pública
em relação à temática da diversidade sexual, entre outros. Nos primeiros anos de atividade da ICM, a igreja
dividiu espaço físico com o Corsa, mantendo até hoje, além do pastor, outro agente que também pertencia às
fileiras da ONG, o diácono Dário Neto.
1644
As lideranças são responsáveis por coordenar uma agenda que tem semanalmente três dias
fixos de atividades, congregando, em média, 60 pessoas, cuja a maioria é formada por homens
que se identificam como homossexuais. Além deles, um pequeno grupo de mulheres (10% da
audiência), organizado em torno do Ministério de Mulheres (o ICM Delas, responsável pelo
culto pelo menos uma vez ao mês), que engloba inclusive aqueles que seriam descritos pela
terminologia LGBT como transgêneros, e pessoas com deficiência auditiva, organizados no
Ministério de Surdos (5% da audiência).
Às quintas – Quinta-feira de Adoração – a igreja fica aberta das 14h00 às 21h00. Este é o
intervalo para o atendimento pastoral à tarde, sessões de estudo sob o comando do
Departamento de Formação e Ensino a partir das 17h30 (foi nesse âmbito que ocorreu o curso
do Foucault)36 e o Culto de Celebração e Adoração, iniciado a partir das 20h00. Aos
domingos, desde as 18h00, a igreja fica por conta do culto, no qual também acontece a Santa
Ceia (partilha da hóstia e do cálice de Cristo) que, ao lado do batismo, se constituem como os
dois únicos sacramentos professados pela ICM. Os cultos são regidos por uma estrutura
litúrgica regulada pela matriz, cabendo ainda variações e acentos rituais locais decorrentes das
igrejas de referência dos seus membros. Roteiros de celebração são postos nas cadeiras como
o do “Boletim Informativo da Igreja da Comunidade Metropolitana”.37
36
Atualmente está sendo promovido um curso de especialização em Libras. Na sequência, está programada a
abertura de um novo curso de Foucault. A igreja promoverá uma leitura dirigida de Território, Segurança e
População.
37
Esquematicamente, as etapas do culto são: acolhida; prelúdio; boas-vindas; oração inicial; leitura do Salmo;
momentos de louvor; testemunhos de gratidão; hino de contrição; mensagem; cântico de louvor; momento de
entrega do dízimo; Santa Ceia; anúncios; oração final; bênção apostólica; poslúdio (WEISS DE JESUS, 2012, p.
102). Os cultos geralmente são presididos pelo pastor-mediador Cristiano Valério, sempre com a intensa
participação de outros membros, seja na leitura bíblica, evocações e cantos. Além do pastor, também podem
presidir o culto diáconos ou outros religiosos convidados.
1645
antropológica, a entidade ganhou especial atenção na época da produção da tese de doutorado
de Fátima Weiss de Jesus, defendida em 2012 no PPGAS/UFSC. Segundo a autora, orientada
por questões teóricas distintas das nossas, sua intenção foi compreender as articulações entre
gênero, sexualidade e vivência religiosa nesse específico espaço dito inclusivo, focando em
sua análise em “como se dá a construção e valorização de ‘femininos’ entre gays, lésbicas,
travestis, transexuais e drag queens (WEISS DE JESUS, 2012b)”.38
Mas, a partir do produtivo diálogo que estabelece com o trabalho de Marcelo Natividade
(2008), que anos antes usara a Igreja da Comunidade Metropolitana (em geral) como um
espelho para identificar as especificidades do seu objeto de estudo de então, a Igreja Cristã
Contemporânea (ICC),39 a autora chega a termos que nos interessam particularmente. Lendo o
Código de Conduta e Disciplina dos/as Clérigos/as da ICM, documento existente dentro do
Manual do Clero, organizado pela Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade
Metropolitana, Weiss de Jesus, também se valendo de interessantes entrevistas com membros
da igreja, identifica a sexualidade como o “eixo teológico estruturante da ICM” (WEISS DE
JESUS, 2012, p. 104). Indo além, uma vez que a “sexualidade é positivada, entendida como
um dom de Deus, que não está limitada às relações estáveis, à reprodução, preocupa-se com
relações igualitárias e consentidas” (idem), esse dispositivo é também, como já havia
demonstrado ao seu modo Natividade, assumido como uma linguagem para organização dos
múltiplos gêneros e código para a expressão performativa de múltiplas humanidades
possíveis, organizadas por novos regimes de regulação de conduta compartilhados em vida
comunitária.
“Portanto, irmãos, vocês que receberam o chamado de Deus, vejam bem quem são vocês:
entre vocês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos de alta
sociedade. Mas, Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios; e
38
Ainda sobre a ICM de São Paulo, especificamente, núcleo no qual iniciamos em maio nossa pesquisa de
campo por meio da frequência em um curso sobre o Livro História da sexualidade – a vontade de saber, de
Michel Foucault, ministrado para membros da comunidade, vale destacar que ela acaba de ver eleito o seu
diácono Dário Neto como um dos 20 representantes da sociedade civil do Conselho Estadual dos Direitos da
População Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti e Transexual do Estado de São Paulo. Também militante do PSOL,
Dário concorreu em eleição de votação popular promovida no dia 29 de junho ao lado de mais três candidatos
ligados a outros partidos.
39
O surgimento da Igreja Cristã Contemporânea está associada a primeira tentativa de abertura da ICM no Rio
de Janeiro. Saiba mais em Weiss de Jesus (2012).
1646
Deus escolheu o que é fraqueza do mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o
mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o
mundo pensa que é importante. Desse modo, nenhuma criatura pode se orgulhar na
presença de Deus. Ora, é por iniciativa de Deus que vocês existem em Jesus Cristo, o qual
se tornou para nós sabedoria que vem de Deus, justiça, santificação e libertação, a fim de
que, como diz a Escritura: ‘Aquele que se gloria, que se glorie no Senhor’.” 1 Coríntios
1:26-31 (Edição Pastoral)
O trecho da carta aos Coríntios opera no contexto da ICM como índice de legitimidade
espiritual para o seu específico projeto de Teologia Inclusiva, ou, como também define a
reverenda Nancy Wilson (2012), de Teologia Queer. “Somos um movimento que proclama
fielmente o amor inclusivo de Deus para todas as pessoas e que testemunha com orgulho a
sagrada integração entre espiritualidade e sexualidade”, anuncia o texto no qual a instituição
declara publicamente sua Missão e Visão40. Reconhecendo a historicidade constituinte da
moralidade cristã, bem como as influências culturais que a moldam através dos séculos, a dita
Teologia Inclusiva ergue-se como um projeto desconstrutivista de forte inspiração na tradição
da teologia bíblica (alemã), interessada em recuperar os sentidos históricos dos textos
tornados cânones. Assim exemplifica o reverendo Marcio Retamero a execução prática desse
projeto teológico dentro da sua igreja inclusiva:
“Não há outro, para uma leitura inclusiva da Bíblia, senão o víeis ou método histórico-
crítico de análise dos textos que compõem a Bíblia. A leitura inclusiva da Bíblia pressupõe
que o leitor ou o pregador bíblico assuma a tarefa – nem sempre fácil – de desconstrução do
pensar teológico, inclusive o dogmático, para, a partir daí, construir este novo edifício que
chamamos de ‘Teologia Inclusiva’” (RETAMERO, 2010).
A Teologia Inclusiva da ICM coloca em cena a figura do homossexual, articulando uma vida
espiritual com orientações e práticas sexuais para além daquelas estabelecidas como norma
moralmente aceitas. Mas, como bem demonstrou Natividade, “partindo do pressuposto de que
não existe ‘homossexulidade’, mas ‘homossexualidades’”, se existem múltiplas experiências e
mediação nesse campo inclusivo nacional em formação (NATIVIDADE, 2010, p. 111), a
ICM se posiciona nesse campo sob o compromisso de ir além da simples positividade das
ditas orientações sexuais heterodiscordantes. Interpretando suas mensagens pastorais, que
assumem combativamente o tema da homofobia e da exclusão de gays, lésbicas, trânsgeneros
como importantes tópicos discursivos, podemos afirmar que seu projeto está fundando na
40
O texto pode ser encontrado na íntegra no site da ICM-SP. Disponível em
<http://www.icmsp.org/icm/index.php/sobre-a-igreja/historia-da-icm>. Acesso em 5 ago 2013.
1647
ideia de uma crítica radical da heteronormatividade e de qualquer configuração na qual a
inclusão figure como uma concessão ao status quo. A partir dessa posição, ganhamos chave
de interpretação para as suas posturas ditas libertárias em relação a temas como relações
sexuais fora do casamento, poligamia, práticas sexuais alternativas, trânsito entre gêneros, etc.
“a busca por reconhecimento social é perpassada por uma constante reflexão sobre como
proceder na promoção da igualdade: tomar a diferença como eixo das reivindicações ou
elaborar discursos que tendem a apagá-la, forjando fendas e forçando rachaduras em
sistemas de valores tradicionais, de modo a obter mudanças estruturais mais profundas?
(NATIVIDADE, 2010, p. 112).
“Na ICM, nós acreditamos que Jesus presidiu o caminho com atos de compaixão e atos de
justiça. Por termos sido um povo nas margens da sociedade, compreendemos
completamente a graça que Deus estendeu a nós. Nós buscamos nos distanciar da exclusão
e nos aproximar da inclusão de todos os que são de alguma forma marginalizados. Com
ousadia, colocamo-nos do lado daqueles que resistem às estruturas de exclusão, como Jesus
fez, e trabalham para garantir liberdade para todas as pessoas. Na margem, somos
abençoados.”
Em linha com as formulações queer, é da margem e pela margem, isto é, de um lugar social
considerado como estranho, interdito, impuro e/ou imoral, que a ICM reivindica seu acesso à
experiência ao sagrado. Experiência que compreende a comunhão comunitária da aceitação,
não do estranho, interdito, impuro e/ou imoral, mas da figura social que metaforizaria essas
condições, isto é, o “homossexual”, aquele que existe em muitas formas de ser. “Nós vivemos
a nossa crença de que é na margem que somos abençoados/as e fornecemos muitas formas
1648
para as pessoas encontrarem nossa mensagem de libertação e inclusão.” Mais adiante,
evidenciando de forma a política se impõe como uma língua para uma atuação política, o
texto institucional arremata:
“Na ICM, nós experimentamos a destruição de almas que vem da retórica carregada de
ódio. Ao restaurarmos nossas almas, descobrimos que nossas vozes falarão a libertação que
vem através da paz, da compaixão, do amor, do respeito e da graça. Como seguidores de
Jesus, nós acreditamos no privilégio sagrado de todos as pessoas trabalharem por sua
salvação. Embora sejamos uma igreja cristã que segue a Jesus, nós respeitamos as outras
tradições de fé e trabalhamos junto com elas para libertar todos os que são oprimidos pelo
ódio, pela falta de consideração e pela violência”.
Interessante notar que no contexto discursivo da ICM “libertação” e “salvação” são textos de
assinatura teológica, no sentido que Agamben deu ao termo, que, ao invés registrarem em sua
memória semiótica sua vinculação religiosa para fazer referência a ela em uma nova matriz
secularizada, expressariam a relação de imanência entre história e cosmologia, numa primeira
escala, e corpo e espírito, em numa outra. Num sentido diametralmente oposto observado por
Natividade em relação às “curas milagrosas” e aos rituais de “libertação” (da
homosseuxalidade) pentecostal, nos quais tais fenômenos “reportariam à necessidade de
ordenar, submeter o indivíduo divergente ou sem fé às regras vigentes entre os crentes”
(NATIVIDADE, 2007, p. 102), a batalha sexual que metaforizaria uma batalha espiritual na
ICM se daria em nome da conquista da autonomia e não da repressão como expressão de
força espiritual.
Considerações finais
Uma vez encerrado o esforço de circunscrever a ICM-SP sob a luz de um novo problema
teórico, esperamos ter tornado mais convincente a nossa escolha de eleger essa instituição
como plataforma para analisarmos os processos de produção e veiculação de discursos que
amalgamam as gramáticas do político e do religioso. Como já vem demonstrando a análise
dos discursos de agentes ditos religiosos em torno de certas controvérsias empreendidas pelos
demais pesquisadores do Grupo de Pesquisa sobre Religiões & Espaço Público, as falas
postas em cena pela ICM fazem muito do “que colocar em circulação no espaço público
discursos religiosos, ‘traduzindo seus insights éticos em um idioma secular’
(HABERMAS,1983, p.5, apud MONTERO, 2012) mas, sim remodelam, repensam e
1649
retrabalham as próprias noções de religioso e secular” (MONTERO, 2012). Indo além,
fazem da religião uma linguagem para instaurar uma nova agenda política, na qual a
aclamação pública de identidades originadas em torno de condutas sexuais torna-se correlata
no plano mítico à reivindicação do reino de Deus na história.
Referências
MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Jesus me ama no dark room e quando
faço programa: narrativas de um reverendo e três irmãos evangélicos acerca da flexibilização
do discurso religioso sobre sexualidade na ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Polis
e Psique, v.1, n. temático, Porto Alegre, p.166-194, 2011.
MUSSKOPF, André. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil.
Orientação de Rudolf Von Sinner. Tese (doutorado em Teologia), Escola Superior de
Teologia, São Leopoldo, 2008.
RETAMERO, Marcio. Pode a Bíblia Incluir? Por um olhar inclusivo sobre as sagradas
escrituras. Rio de Janeiro: Metanoia, 2010.
1650
WEISS DE JESUS, Fátima. Unindo a cruz e o arco-íris: Vivência religiosa,
homossexualidades e trânsitos de gênero na Igreja da Comunidade Metropolitana de São
Paulo. Orientação de Miriam Pillar Grossi. Tese (doutorado em Antropologia Social), UFSC,
Florianópolis, 2012a.
WILSON, Nancy. Nossa Tribo: Gays, Deus e a Bíblia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012.
Internet
1651
1652
Espaços religiosos de inclusão e diversidade sexual: um estudo
sobre uma igreja inclusiva paulistana e os elementos sagrados e
profanos em torno da noção de sexualidade
Introdução
O pluralismo religioso é um forte elemento da contemporaneidade e pode ser observado na
existência de muitas denominações que ressignificam as noções de pecado, como é o caso das
igrejas inclusivas. Elas surgiram no Brasil entre os anos 1990 e 2000, com uma teologia que
se aproxima muito de igrejas tradicionais, mas se distanciam destas por flexibilizarem alguns
valores considerados inquestionáveis.
Essas vertentes formulam novas hermenêuticas e também novas formas de atrair e acolher
membros da comunidade LGBT, reinterpretando a noção de pecado, em especial em relação à
opção sexual, dando legitimidade para a homossexualidade.
O estudo dessas questões levou-nos a entender a influência que essas vertentes exercem sobre
as percepções que estes fiéis tem do mundo, como suas condutas são alteradas e como eles
lidam com a própria sexualidade e fé.
Esse artigo se propõe a analisar questões tradicionais tratadas de maneira diferente no campo
religioso brasileiro com a emergência de novas vertentes religiosas. Antes de entrar na
especificidade da temática desta pesquisa, é importante que se deixe claro qual a noção de
religião adotada neste trabalho.
1
Graduanda em Ciências e Humanidades pela UFABC. Orientada pela Profa. Dra. Ana Keila Mosca Pinezi.
Bolsista JTC/CAPES. Contato: marina.santilopesgarcia@gmail.com
2
Doutora em Ciências Sociais pela USP. Professora adjunta IV da UFABC. Coordenadora do PPGCHS –
UFABC. Contato: ana.pinezi@ufabc.edu.br.
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(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de
existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições
e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 2008, p. 67).
A partir desse conceito, podemos observar que a religião concede legitimidade a certas noções
de sagrado e profano. No caso das igrejas inclusivas, o fiel tem acesso a um sistema de
símbolos e condutas que possibilitam que ele alcance o reconhecimento da sociedade, a partir
de “uma nova forma de ver e interpretar o Sagrado e o Profano” (MOREIRA, 2012, p. 11),
dando sentido a vida de homossexuais que querem vivenciar a sexualidade sem abandonar sua
fé.
Esse parece ser o caso das chamadas igrejas inclusivas que surgiram no Brasil entre 1990 e
2000. Elas vinculam-se, por meio de alguns elementos, às igrejas tradicionais, enquanto se
distanciam destas, flexibilizando alguns valores considerados inquestionáveis.
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sociais, como apontado mais adiante. Sendo assim, “a secularização multiplica os universos
religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo
de modernidade” (STEIL, 2001, p. 11). Partindo desse princípio, a diversidade e sua aceitação
estariam intrínsecas ao processo de modernização da sociedade.
O estudo de vertentes religiosas inclusivas e de seus impactos na vida dos fiéis significa, além
de uma ameaça às bases religiosas tradicionais, a reivindicação pela inserção de grupos
outrora marginalizados nas instituições religiosas. As igrejas inclusivas se fazem interessantes
porque, como afirmam Natividade & Oliveira (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 139),
“destacam-se no cenário religioso amplo por serem iniciativas evangélicas autônomas,
lideradas por gays e lésbicas egressos de denominações convencionais”.
As igrejas inclusivas surgiram num período em que “transformações sociais insufladas pela
atuação e pela organização política de movimentos homossexuais, [...] relacionadas aos
direitos civis, à reivindicação de despatologização, à luta contra a violência e a discriminação”
(NATIVIDADE, 2010, p. 91).
Assim, a demanda por religiões que aceitassem membros da comunidade LGBT cresceu
baseada não apenas na exclusão de líderes de igrejas tradicionais que assumiram sua
sexualidade, mas “sobretudo pela configuração de importantes diferenças teológicas e adoção
de condutas morais (sexuais)” (JESUS, 2010, p.91).
1655
uma categoria de pessoas, como afirma Weinberg” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p.
126).
(…) ensinamento de que “Deus aceita os homossexuais como eles são” e compreende uma
pedagogia da aceitação, [...] fornecendo subsídio para que gays e lésbicas possam efetuar a
passagem de uma percepção negativa de si à identidade de um gay evangélico
(NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009, p. 140).
Outra controvérsia se dá nos aspectos práticos da vida religiosa. Natividade & Oliveira
afirmam que algumas igrejas inclusivas assumem uma postura mais tradicional, defendendo a
monogamia e uma conduta que não remeta à promiscuidade. Outras tem uma visão
extremamente positiva e valorizada da homossexualidade, incentivando ações que
demonstrem um certo orgulho por sua orientação sexual.
Como afirma Jesus (2010, p. 140), os trabalhos que tratam de igrejas inclusivas “centram sua
reflexão sobre a participação de homens gays”, mas também apontam para a valorização do
feminino por algumas comunidades inclusivas que permitiram a aproximação de um público
pouco frequente nessas igrejas, como travestis, transsexuais e lésbicas, enquanto que, em
outras, a frequência é composta “majoritariamente por gays e qualquer traço considerado da
feminilidade é “condenado”” (NATIVIDADE, 2008 apud JESUS, 2010, p. 140).
1656
Capítulo 2 – Metodologia
Esse grupo religioso tem características, por um lado, de uma igreja com costumes
tradicionais, como atitudes discretas e relações monogâmicas, mas, por outro, tem a
característica de compatibilizar orientações sexuais dissonantes da heterossexualidade,
unindo-os com uma vertente social, que se manifesta pela criação de grupos de apoio e troca
de experiências (NATIVIDADE, 2010).
Para compreender como os homossexuais são vistos e inseridos nessa comunidade religiosa,
abordei o tema com base na teoria antropológica e sociológica. Foi realizado trabalho de
campo, que se baseou no método etnográfico, que pressupõe também observação participante
e entrevistas abertas. A etnografia é a descrição de como um povo ou grupo social se
relaciona entre si e com os outros. No entanto, se trata de uma descrição que leva em conta os
significados, símbolos e sentidos que estão presentes nos discursos e nas ações dos indivíduos
em foco.
Para realizar a etnografia, visitei essa igreja, aos domingos, no culto de adoração que acontece
no horário de 19 horas, e às terças-feiras, no culto de intercessão, que acontece no horário de
20 horas. Num primeiro momento, realizei apenas observação participante, que “supõe a
interação pesquisador/pesquisado. As informações que obtém, as respostas que são dadas às
suas indagações, dependerão, ao final das contas, do seu comportamento e das relações que
desenvolve com o grupo estudado” (VALLADARES, 2007, p. 154).
1657
Tabela de Entrevistados
Essa comunidade religiosa se situa na região central de Santo André, próxima a comércios,
condomínios residenciais, bom fluxo de transporte público e um shopping, o que valoriza o
bairro. O prédio tem portas de vidro, que oferecem fácil acesso a qualquer pessoa. O espaço é
pequeno e à frente há um pequeno altar e um púlpito. No altar, há um teclado e, à esquerda do
altar, os fiéis que participam do coral se posicionam para cantar os hinos. Para maior interação
dos fiéis, slides com as letras dos hinos e imagens que remetem à mensagem dos hinos são
projetados em uma parede acima do altar. Não há qualquer imagem de santos e nem qualquer
outra imagem, nem mesmo uma cruz. O que há é uma pequena placa, ao lado do altar, com o
logo da CCNE, com os dizeres “Uma Igreja que Acolhe a Diversidade Humana”.
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O ambiente é bastante acolhedor. Como todos os fiéis se conhecem pelos nomes, os membros
se cumprimentam com bastante intimidade e, ao perceberem a presença de um novo fiel,
aproximam-se e oferecem boas vindas calorosas, café e água, antes do início do culto e ao
final dele. Apesar de a igreja ser formada, em sua maioria, por homossexuais, parece não
haver discriminação por parte deles em relação aos heterossexuais, já que pude perceber que
eu era a única pessoa de orientação heterossexual. O tratamento que recebi, por ser
heterossexual, não se modificou durante todas as visitas à igreja.
Os fiéis também são, em sua maioria, homens e jovens. Em alguns cultos, havia uma criança
que acompanhava sua avó. O culto é acompanhado por, aproximadamente, 50 pessoas. A
maioria se acomoda em assentos, enquanto o restante permanece atrás deles, em pé. Essa
configuração se mantém na maior parte dos cultos, com pouca variação na quantidade de
fiéis.
A CCNE realiza três cultos por semana, todos à noite, além de oferecer ministérios de canto,
dança, teatro, que visam louvar a Deus, e ter uma biblioteca com livros direcionados ao uso e
interpretação da Bíblia. Há apenas um pastor, mas, esporadicamente, pastores de outras
comunidades inclusivas são convidados para pregar nos cultos, como foi o caso da minha
primeira visita à igreja. Além disso, há bastante participação dos fiéis nos cultos, por meio de
depoimentos e participação nos rituais, por exemplo, o dízimo.
O culto é iniciado com hinos, que apresentam, em alguns casos, letras que demonstram o
caráter inclusivo dessa comunidade, enquanto um fiel ou mesmo o pastor fazem a abertura do
culto com orações e pedidos a Deus. Após esse momento, um fiel, previamente escolhido, vai
até o púlpito e incentiva as pessoas a contribuírem com o dízimo, por meio de depoimentos
que revelam a influência positiva que a religião exerceu em sua vida. Da segunda vez em que
estive lá, quem realizou esta atividade foi uma frequentadora da comunidade, que tinha traços
masculinos em termos biológicos, mas que estava vestida como mulher e tinha expressão
corporal feminina. Ela não fez nenhum relato que comprovasse a influência positiva que a
participação no dízimo tinha trazido à sua vida, apenas afirmou que quem sabe da sua história,
percebe o bem que a contribuição causou.
Disso se segue mais um hino, que geralmente é escolhido por esse fiel. O culto segue com a
leitura de um trecho da Bíblia sugerido pelo pastor, ele desenvolve um diálogo sobre esse
trecho que, em uma das minhas visitas, fazia referência à diferença dos relatos dos apóstolos
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Mateus, Marcos, Lucas e João a respeito dos homens que foram crucificados junto a Cristo.
Ao final, todos se cumprimentam, desejando bençãos. Todo o culto é rodeado por muita
emoção.
Em uma de minhas visitas, aconteceu um ritual que simboliza a Última Ceia de Jesus. Após a
leitura da Bíblia, próximo ao final do culto, juntos, todos comem um pedaço de pão, que
simboliza a carne de Jesus, e tomam um pequeno cálice de suco de uva, que representa o
sangue de Cristo. Esse ritual da Santa Ceia é idêntico ao praticado nas outras igrejas
tradicionais evangélicas/protestantes.
Em minhas últimas visitas, que ocorriam às terças-feiras, ocorreu uma campanha denominada
Voltar a Respirar, que tinha como intuito incentivar os fiéis a orar por outras pessoas e, se
possível, trazê-las fisicamente à igreja. A princípio, foram distribuídos pequenos sacos com
alguns feijões dentro. Os fiéis deveriam orar por uma semana, a fim de identificar quais
pessoas deveriam receber essas preces. Após essa semana, os feijões foram plantados e seu
crescimento simbolizaria a influência da fé na vida dessas pessoas.
Os cultos de terça-feira tiveram sua configuração alterada e passaram a ser dedicados a essa
campanha. No início, houve pequenas apresentações de teatro, que visavam demonstrar que o
indivíduo deve resistir às tentações terrenas – dinheiro, fama, promiscuidade – para que possa
conhecer uma vida de vitória com Deus. Após esse momento, hinos eram cantados e o culto
voltava à configuração habitual.
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Capítulo 3 – Análise
Muitos fiéis, que hoje frequentam a Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE), tem família
religiosa, muitas vezes em vertentes evangélicas tradicionais. Esse aspecto faz com que o
homossexual tenha maior dificuldade em aceitar sua sexualidade e sentir-se confortável
consigo mesmo, levando-o a adotar condutas que camuflem sua orientação, como é o caso de
um dos entrevistados, que afirma que “tinha que namorar [uma mulher] pra parecer pra
família que eu era heterossexual” (SAULO, 24 anos).
“E você querendo adorá, você tem toda aquela espiritualidade, todo aquele amor por Deus,
querendo expressar esse amor e você não consegue porque todo mundo te diz que é errado
e você se sente errado” (JOÃO, 50 anos).
Nesse aspecto, a CCNE traz para o fiel a legitimidade religiosa que ele não encontra em
outras vertentes tradicionais e mesmo nas mais recentes neopentecostais. Por desenvolver
uma hermenêutica que prioriza a evangelização do homossexual, essa igreja inclusiva faz com
que o estigma colocado sobre a sexualidade se desfaça, mostrando um Deus que busca fiéis
pelo que eles são como pessoas, sem distinguir a opção sexual. Confirmando essa
característica, uma fiel aponta que “a palavra de Deus fala (…) que ele não vê como homem,
ele vê o coração, não nossas vestes ou nossa opção sexual” (SALETE, 30 anos).
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A legitimidade sexual é concomitante à legitimidade religiosa entre os adeptos da CCNE, de
modo a não exigir do indivíduo uma postura que esconda ou suprima sua sexualidade.
Segundo Natividade, “é possível dizer que uma percepção sociológica das sexualidades se
difundiu, (…) pluralizando discursos e instituindo novas zonas de legitimidade e
ilegitimidade” (NATIVIDADE, 2010, p. 92). Todos os entrevistados responderam que se
sentem mais livres e acolhidos dentro da comunidade inclusiva no que tange à vivência da
sexualidade. Apesar desse aspecto acolhedor, a noção de religião que apresenta uma
sexualidade normativa – a heterossexualidade – parece não desaparecer das noções simbólicas
sobre o sagrado para o indivíduo que faz parte dessas igrejas inclusivas. Pode-se observar
isso no depoimento de um fiel:
Nos primeiros três meses, (…) não consegui dar liberdade pro Espírito Santo de Deus, não
consegui sentir Deus aqui neste lugar (…) de passar tantos anos em uma igreja onde falava
“não, não pode”, “gay vai pro inferno”, “você tem que mudar, tem que pedir pra Deus a
libertação”. (...) Eu tava apavorado quando eu tava aqui (SAULO, 24 anos).
O trabalho feito pela comunidade, em especial pela liderança da igreja inclusiva CCNE, é
possibilitar uma alternativa em relação à forma como os fiéis acham que Deus os vê. Segundo
um dos entrevistados, “Deus tá pouco se importando com isso (orientação sexual), né? Porque
o maior de todos os mandamentos é adorar a Deus sobre todas as coisas, com toda tua força,
com todo o teu entendimento e somente a Deus” (JOÃO, 50 anos). Esse ensinamento
O que se pode ver, pelos depoimentos, é que a igreja inclusiva CCNE enfatiza o amor divino
como algo que se sobrepõe às escolhas humanas e à própria conduta dos fiéis. Dessa maneira,
a opção sexual torna-se descentrada na teologia desse grupo e aparece como uma
naturalização da sexualidade humana, sem que seja espiritualizada e nem vista como uma das
características do ser cristão. Tratada como algo periférico na conduta do fiel, a sexualidade
passa a ser um dado que não influencia a relação do indivíduo com o sagrado, ao mesmo
tempo em que, despida da noção de pecado, tem um espaço de liberdade para, dessa forma,
compatibilizar-se com os ideais cristãos de adesão religiosa.
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2. Condutas sobre sexualidade e vida social
A CCNE tem, em sua doutrina, uma conduta diferente das igrejas evangélicas tradicionais,
“prega a conciliação entre uma orientação sexual dissonante da norma da heterossexualidade
e o exercício da vida religiosa” (NATIVIDADE, 2010, p. 90). O sexo é visto como “não só
uma troca de prazer, mas deixar de ser dois pra ser um” (MATEUS, 22 anos). Dessa maneira,
substitui-se a noção do quem e como se exerce a sexualidade pela noção cristã de
complementaridade e de união, sem distinção de gênero.
A relação sexual não é proibida desde que aconteça dentro de um relacionamento estável e,
de preferência, com um membro de igrejas inclusivas. Essa preferência por membros ou pelas
relações endogâmicas pode apresentar dificuldades para alguns fiéis. Sobre esse aspecto, uma
das entrevistadas afirma que “sexo sem amor é pecado. Infelizmente, é assim que a gente tem
nossa orientação” (SALETE, 30 anos).
Curiosamente, um dos entrevistados coloca o sexo como uma forma de prazer e diversão, que
só pode ser obtida por meio do amor: “Deus fez o sexo pra gente aproveitá! (entre risos) Se
não fosse pra ser bom, não teria prazer, não seria gostoso, né?” (JOÃO, 50 anos).
Observa-se, então, uma forma de liberdade e prazer controlada, em que o indivíduo pode
viver sua sexualidade desde que corresponda às expectativas da orientação recebida na igreja.
Isso demonstra que, embora as igrejas inclusivas abram espaço para outras formas de
sexualidade, há regras, interditos e normas que norteiam essas outras formas, o que reafirma o
fato de que a sexualidade, embora descentrada, num primeiro momento, no que tange à
relação com o sagrado, volta ao centro refeita, remodelada e que deve se adequar a outras
regras, muitas vezes as tradicionais encontradas nas vertentes religiosas das quais vieram uma
boa parte dos adeptos das igrejas inclusivas. Uma sexualidade alternativa é fundante de uma
nova maneira de relacionar-se com o sobrenatural, embora os valores tradicionais emerjam
fortemente no formato de como essa sexualidade alternativa deve ser vivenciada pelo adepto.
1663
3. Reação externa à CCNE
Sobre a reação de grupos externos à CCNE, a principal ideia que se tem é a de que os fiéis são
vistos como pecadores, sendo julgados pelas pessoas que não estão inseridas na comunidade.
Como apresentado por um dos entrevistados, o julgamento e as críticas normalmente vem de
outros grupos religiosos, como demonstrado no trecho: “Os religiosos, no entanto, eles não
aceitam e não respeitam e te julgam, né?” (JOÃO, 50 anos).
É interessante perceber nessa fala, a de João, que os religiosos são os tradicionais, aqueles
que, de uma certa maneira, ainda possuem o monopólio do sagrado e de seus dogmas. Assim,
esse grupo parece se opor, paradoxalmente, à noção do religioso e assume a identidade do
outro, do não-religioso, não como um grupo que não busca uma relação intensa com o
sagrado, mas que a busca de uma maneira alternativa e opositora às tradições do religioso.
Entre os entrevistados, há também a presença de críticas de familiares, como afirma Saulo (24
anos) no trecho: “minha irmã mesmo disse que essa igreja onde eu tô é lugar de
endemoniados, que não é lugar de Deus, pelo fato de ela já ser da outra igreja (...) tradicional”
(SAULO, 24 anos).
A comunidade também já sofreu o ataque de uma emissora de televisão, que filmou um culto
sem a permissão dos fiéis e dos responsáveis pela igreja e passou em rede nacional, no intuito
de ridicularizar e inferiorizar os fiéis e a igreja. Segundo os entrevistados, esse foi o único
ataque direto que o grupo já sofreu.
Há, porém, uma visão que destoa das que indicam o julgamento e a crítica como sendo o
principal aspecto da reação de indivíduos externos à comunidade, como afirma Mateus (22
anos) no trecho:
(...) ultimamente, alguns pensam que é loucura. Mas, para outros, também é uma forma de
buscar a Deus e não estar no meio do mundo, se prostituindo, se drogando. Mesmo sendo
um homossexual, eu estou na casa do senhor, adorando ao senhor e levando minha vida
íntima com Deus (MATEUS, 22 anos).
Apesar de tantas reações negativas, é possível observar que sua fé na ideia de que Deus
legitima essa prática se sobrepõe às reações externas, como apontado por um entrevistado que
afirma que “eu sei que, pra religiosos, eu nem pastor sou. (…) Eu to... pouco me importando
1664
com eles. Como eu te falei, eu tenho a minha experiência com Deus e eu sei que Deus me
aceita. Então, isso pra mim é o suficiente” (JOÃO, 50 anos).
A fala de Mateus, acima, aponta, também, que há a ideia de que apesar ou mesmo sendo
homossexual o adepto da CCNE sente-se como um indivíduo que vence essas barreiras para
aproximar-se do divino. Nesse discurso, parece ficar clara a contraposição ao discurso
tradicional, mas, ao mesmo, tempo, utilizar-se dele para legitimar uma relação com o divino
que ultrapassa as mazelas dos que vivem no mundo. Ao dizer que poderia “estar se
prostituindo, se drogando”, Mateus dá-nos uma pista sobre como esses fiéis se veem: como
aqueles que vencem as tentações, inclusive as que se aproximam do status de ser
homossexual, para ter uma relação com o sobrenatural que é, segundo a fala desses adeptos,
representado pelo mesmo Deus das igrejas de vertente evangélica tradicional.
A inserção do indivíduo não apenas no espaço físico da igreja, mas também na comunidade
formada por ela, traz mudanças muito profundas à vida dos fiéis. Alguns relatam mudanças de
amizades, de condutas, de lugares que frequentam e da forma como lidam com a sua
sexualidade.
Um dos nossos entrevistados afirma que a CCNE mudou sua vida no sentido comportamental:
“eu criei maturidade, que eu não tinha” (LUCAS, 18 anos). Esse mesmo entrevistado afirma,
em outros trechos, que costumava frequentar baladas, ou seja, um ambiente que, na visão
religiosa, remete à promiscuidade e a relacionamentos pouco estáveis. Assim, pode-se
observar que a mudança citada pelo fiel traz uma questão de amadurecimento espiritual no
que se refere ao tratamento do próprio corpo e da própria sexualidade.
1665
Mateus (22 anos) aborda uma outra mudança como sendo a principal: “eu sempre relutava
contra isso (orientação sexual) e me julgava e devido aos encargos e ao trabalho em outros
ministérios (internos à igreja, como coral), (…) aqui me fez enxergar de uma forma diferente
o amor de Deus”. Nesse caso, a mudança ocorrida foi interna, no sentido de mostrar ao
próprio indivíduo que suas práticas são legítimas, o que não se desvincula da relação externa
com a comunidade e nem mesmo da dimensão mais externa, que é a da relação com outras
comunidades evangélicas.
Uma das entrevistadas coloca ainda que a mudança principal não se dá por uma questão
institucional, de frequência aos cultos, mas “mais pela conversão de aceitar Jesus Cristo,
entender o caminho de Deus e começar uma vida nova seguindo a Jesus” (SALETE, 30 anos).
Vê-se um discurso desses fiéis idêntico aos discurso dos evangélicos tradicionais. A
diferença, que muitas vezes é banida do próprio discurso e da visão religiosa desses adeptos, é
a forma de lidar com a sexualidade, com o corpo, muito embora haja também regras e
interditos claros para o exercício dessa sexualidade alternativa para o homossexual cristão.
Considerações finais
A partir dos dados obtidos, procurei apresentar como adeptos de uma igreja inclusiva pensam
sua espiritualidade e sexualidade diante do padrão de legitimidade religiosa cristã. Apesar de
aceitar e compatibilizar a homossexualidade, a igreja apresenta muitas similaridades com as
igrejas tradicionais, como os rituais e a forma como o sermão acontece, bem como um rol de
regras e interditos de como a sexualidade deve ser vivenciada.
O efeito que a religião tem na vida desses fiéis se reflete, principalmente, na aceitação de sua
sexualidade, como apresentado nas análises, mas também se dá em aspectos comportamentais
e sociais, há uma “constante preocupação em dissociar o ambiente religioso de formas de
sociabilidade que implicassem comportamentos percebidos como “promíscuos”
(NATIVIDADE, 2010, p. 103). Além disso, a igreja oferece serviços de aconselhamento e
palestras que guiam as pessoas no sentido de orientar pelos caminhos da igreja e auxiliar em
aspectos pessoais da vida dos fiéis, oferecendo-lhes suporte de como compreender-se como
homossexuais que buscam uma relação institucionalizada com o sagrado.
1666
Devido a esses aspectos, além da fé, os fiéis passam a dividir aspectos da vida pessoal e as
amizades e outras manifestações sociais normalmente ficam concentradas a outros fiéis e
compromissos ligados à igreja. Todos os entrevistados apresentam um sentimento de orgulho
de pertencer a essa grupo que chamam de uma nova família. Esse grupo religioso, portanto,
parece ser o espaço para libertar-se da culpa da homossexualidade e para vivenciar, seguindo
o modelo tradicional de estrutura da fé cristã evangélica, uma relação com o sagrado despida,
paradoxalmente, da alusão à sexualidade. Assim, poderíamos dizer que, de certa maneira, o
fiel da CCNE experimenta uma relação com o sobrenatural desprovido de sua própria
sexualidade. Parece ser uma relação em que o fiel torna-se assexuado, em um momento, e,
ambiguamente, reafirma sua forma alternativa de vivenciar sua sexualidade alternativa à
heterossexualidade, em outro.
Referências
GEERTZ, Clifford. A religião como sistema cultural. In: A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: LTC, 2008.
JESUS, Fátima W. de. A cruz e o arco-íris: refletindo sobre gênero e sexualidade a partir de
uma “igreja inclusiva” no Brasil. In: Ciências Sociais e Religião, n. 12, Porto Alegre, p. 131-
146, 2010. Disponível em <www.seer.ufrgs.br/CienciasSociaiseReligiao/article
/view/12731/9921>. Acesso em 28 set. 2012.
LUMMIS, Adair. T. Gender and Religion. In: Handbook of the sociology of gender. New
York: Kluwer Academic/ Plenum Publishers, 1999, p. 101-118. Disponível em <www.
link.springer.com/chapter/10.1007%2F0-387-36218-5_27?LI=true>. Acesso em 28 jan. 2013.
MOREIRA, Cosme Alexandre R. A visão do sagrado e do profano sob a ótica das igrejas
inclusivas em São Paulo. Revista Anais do VI Congresso Internacional em Ciências da
Religião e XIII Semana de Estudos da Religião. Goiânia: Ed. PUC Goiás/América, 2012, p. 9-
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1667
/V_Congresso_Ciencias_Religiao/ArquivosUpload/1/file/ANAIS_Congresso%202012_PUC
%20GOIÁS.pdf#page=9>. Acesso em 03 mar. 2013.
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Igrejas Inclusivas: novo movimento religioso ou mais uma igreja
cristã emergente?
Cosme Alexandre Ribeiro Moreira 1
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo apresentar e classificar as Igrejas Inclusivas, que
buscam desconstruir os traumas carregados pelos homossexuais, redefinindo a
homossexualidade e seu lugar na religião cristã, com fundamentação na Teologia Inclusiva,
para isso serão considerados os conceitos de Novos Movimentos Religiosos, Seitas e
Igrejas. Para a fundamentação deste trabalho, o primeiro capítulo analisará quais são as
origens do termo Novos Movimentos Religiosos, buscando apresentar definições e conceitos
que permitam uma identificação direta dos principais argumentos utilizados pelos
estudiosos do tema, para essa classificação. Nesse contexto apresentar-se-á como elemento
principal dessa nova conformação religiosa, a figura do líder carismático, com fator
decisivo para entender as causas que permitem a criação de movimentos religiosos com
características próprias e quais as consequências para o mundo religioso, diante de tantas
novas denominações religiosas que se apresentam invariavelmente como detentoras da
verdade divina.
O segundo capítulo tratará da história e formação de uma nova configuração religiosa que
tem demonstrado grande fôlego para crescer, ao menos no âmbito do público LGBT, que
professa ou professou uma religiosidade com bases nos princípios cristãos. Esse novo
sistema religioso cristão que reconhece a homossexualidade como uma apenas mais uma
forma de viver a sexualidade dada por Deus e por isso longe de ser considerada como
pecado, atrai adeptos que buscam uma vida religiosa nos fundamentos cristãos do amor
incondicional, sem a necessidade de abandonarem ou ocultarem suas preferências sexuais,
para que possam fazer parte de uma comunidade religiosa cristã, sem sofrerem quaisquer
tipos de discriminação, é parte integrante do seu sistema de captação e manutenção de seus
1
Mestrando em Ciências da Religião pela UMESP. Graduado em Ciências Jurídicas pela UNICID e em
Teologia pela UMESP. Pós-graduação "Lato sensu" em Direito Penal ESMP. Membro do GE de Gênero e
Religião, Mandrágora/NETMAL/UMESP, linhas de pesquisa Religião e Dinâmicas Sócio-Culturais. Servidor
Público Estadual. Bolsista CAPES/CNPQ, na modalidade Bolsa Flexibilizada. Contato:
arquivocosme@gmail.com.
1670
adeptos, aplicando a chamada Teologia Inclusiva fundamentada na Teologia da Libertação,
para dar voz às minorias sociais, também no âmbito religioso.
O terceiro capítulo como parte final deste trabalho discorrerá sobre as proximidades e
distanciamentos que as Igrejas Inclusivas possuem com os sistemas religiosos classificados
pelos estudiosos das Ciências da Religião, como igrejas, seitas e Novos Movimentos
Religiosos, buscando demonstrar de forma inequívoca que muitos elementos podem ser
considerados como inerentes a todos eles, demonstrando com isso que uma posição
religiosa “puro sangue” é quase impossível de ser concebida, ao menos em se tratando de
religiões de vertente cristã evangélica.
Por último, nas considerações finais serão apresentadas algumas percepções a respeito das
Igrejas Inclusivas, enquanto movimento religioso ligado diretamente à causa LGBT. Nesse
contexto, como religião pensada quase exclusivamente para atender às demandas de um
público específico, habitualmente possuindo visões e posições conflitantes com as demais
denominações cristãs evangélicas, porém possuindo momentos de conciliação com os
pensamentos cristãos predominantes. Essa complexidade permite uma visão ampla das
dificuldades enfrentadas por aqueles que dedicam suas vidas para entenderem como as
relações entre indivíduos são construídas a partir de uma necessidade intrínseca ao modo de
vida do homem antigo que permanece no homem moderno, a necessidade de fazer parte e
entender sua ligação com o transcendente que não consegue ver, mas pode sentir.
1671
Deus. Muitas se declaram como as verdadeiras religiões, outras convivem em “harmonia”
com as demais. Nesse universo religioso de múltiplas opções, em especial o caso brasileiro,
reconhecido por muitos como uma das nações mais religiosas do mundo, não pela
quantidade de pessoas religiosas, mas pela quantidade de religiões existentes no território
nacional.
Ao longo dos tempos, inúmeros movimentos religiosos surgem e desaparecem sem que sua
história seja objeto de pesquisas sérias e imparciais, para determinar sua classificação como
um Novo Movimento Religioso, ou se apenas mais uma cisão de movimentos existentes.
Desta forma muitos grupos religiosos não foram classificados adequadamente e por esta
razão, tem-se buscado ampliar os estudos a respeito do tema, em especial entender e situar
momentos e espaços específicos onde líderes carismáticos atuam e de que forma sua
mensagem, quase sempre apocalíptica, passa a fazer parte do imaginário popular. A origem
histórica do termo remonta à década de 1980, quando estudantes de sociologia e teologia
cunharam o termo para referir-se a quaisquer religiões não reconhecidas nas principais
correntes religiosas, em substituição ao termo seita que carregava intrinsecamente uma forte
conotação pejorativa, entretanto, o uso desses termos com significados específicos ainda
não é pacífico no meio acadêmico e por vezes ambos são utilizados para conceituar
religiões onde em tese, seus líderes estariam utilizando a fé das pessoas para manipulá-las e
explorá-las.
Conceituar Novos Movimentos Religiosos não é tarefa fácil, pois ao longo dos anos, os
termos seita, igreja e novos movimentos religiosos passaram quase que a qualidade de
sinônimos, uma vez que, a classificação sempre parte da vontade subjetiva do indivíduo que
está realizando a classificação e, desta forma seus desejos, anseios e interesses sejam eles
religiosos ou comerciais, sempre influenciam suas colocações. Entretanto, alguns estudiosos
do tema apresentam algumas características, que facilmente definem e podem ser utilizadas
para a elaboração de um conceito com fundamentação imparcial.
1672
salvacionismo dos que fazem parte do grupo; [...] 14. Proselitismo compulsivo e
obrigatório (CAMPOS, 2002, p. 102-103).
Analisar essas novas conformações religiosas como sendo apenas uma das formas que
indivíduos ou grupos sociais, se utilizam das explicações sobrenaturais para desvendar as
causas das mazelas sociais que atingem a humanidade é na verdade, simplificar a discussão,
desqualificando o discurso dos defensores dessa nova realidade religiosa.
Todo movimento religioso possui seus líderes. Alguns previamente determinados pela
hereditariedade outros escolhidos por votação, outros por inconformismo. Como agentes
agregadores e formadores de opiniões, os líderes carismáticos possuem papel vital na
formação e propagação destes novos paradigmas religiosos, uma vez que, o carisma é fator
determinante para a formação e manutenção do grupo. Os líderes carismáticos,
invariavelmente, apresentam-se como portadores divinos das verdades absolutas, emanadas
diretamente da divindade. Como elo entre a humanidade e a divindade, o líder carismático
religioso geralmente se autodenomina ou é denominado por seus seguidores fiéis, como
filho das estrelas, o enviado, filho do sol, ou outros títulos que deixem bem claro sua
estreita relação com o divino. Estabelecendo sua liderança sobre as pessoas mais próximas
que fazem parte de seu círculo social, seus ideais ganham força e volume muito mais por
1673
sua capacidade de influenciar as pessoas, que propriamente pela coerência de suas ideias.
Diferente do religioso comum, o líder carismático que inicia seu próprio movimento
religioso, não costuma ser um religioso fervoroso, sendo muitas vezes, até mesmo avesso à
religião, até o momento em que recebe o “toque divino”. A capacidade de projeção de ideias
e pensamentos sobre as pessoas faz do líder carismático um dominador absoluto do espaço
em que são desenvolvidas suas estratégias e teorias religiosas.
Exceção à regra, alguns líderes religiosos possuem um histórico religioso bem vasto,
passando por diversas denominações religiosas. Esse tipo de líder carismático em geral,
acredita que os mandamentos divinos não estão sendo seguidos da maneira correta, o que os
leva em primeiro momento, a um enfrentamento com os líderes de sua religião e
posteriormente o rompimento total com o líder, porém muitas vezes, não com a instituição,
mantendo o nome da instituição com o adendo ao final, de expressões como renovada ou
simplesmente realizando modificações no posicionamento das expressões que formam o
nome religioso. Os Novos Movimentos Religiosos são possíveis pela necessidade do ser
humano em manter uma relação próxima com o sagrado e de preferência sem grandes
privações de sua vida material. Os líderes carismáticos captam com perfeição essa
transcendência do comportamento humano e fundamentam todas suas ações para cobrir
esses claros espirituais vividos pela sociedade.
1674
O Brasil vive atualmente uma nova manifestação religiosa cristã, onde o álcool, o fumo, o
divórcio, sexo entre adolescentes, ou fora do sacramento do casamento, já não são vistos
como o sinal dos tempos ou uma incapacidade do indivíduo abandonar o mundo do pecado.
O exercício da sexualidade em especial tem sido objeto de muitos debates que envolvem
velhas e novas religiões de vertente cristã. O amor de Cristo que outrora era utilizado como
moeda de troca para o pecador conseguir viver uma nova vida, atualmente tem sido utilizado
como arma para a manutenção do status quo do novo convertido. Esse cenário nos traz a baila
à questão das Igrejas Inclusivas, conhecidas no cenário religioso nacional como Igrejas Gays,
por pregarem um evangelho de inclusão do público homoafetivo no cenário religioso cristão
que sempre alijou os homossexuais de uma participação efetiva no dia a dia das igrejas
cristãs.
Conscientes de sua força junto aos homossexuais cristãos, as Igrejas Inclusivas tem
buscado, por meio de ações afirmativas, como acompanhamento pastoral e psicológico,
1675
desconstruir o muro que foi erigido entre homossexualidade e espiritualidade cristã,
utilizando-se muitas vezes, dos próprios textos bíblicos que são utilizados para condenar a
homossexualidade, realizando uma releitura teleológica-inclusiva desses textos. O amor
ágape praticado e pregado por Cristo é a todo o momento evocado como instrumento
justificador da possibilidade de uma vivência religiosa cristã, sem a necessidade do
abandono da homossexualidade. A utilização de frases de impacto e efeito proporciona a
fixação do pensamento em seus membros e visitantes, construindo uma forma toda nova de
ver, ouvir e sentir o texto bíblico. Venha como está, Deus te ama como você é, o seu amor
não é pecado, Cristo não faz acepção de pessoas, são frases repetidas a todo o momento,
sejam nas reuniões oficiais, nos cultos e conversas entre amigos. Essa nova visão teológica
e as técnicas utilizadas para angariar novos adeptos e manter aqueles que se entregaram a
essa nova experiência religiosa, possuem grande relação com os métodos utilizados pelos
Novos Movimentos Religiosos para seu crescimento. O trabalho psicológico de
desconstrução dos paradigmas religiosos que condenam a homossexualidade, bem como a
autoafirmação da homossexualidade como apenas mais uma maneira de viver a sexualidade,
são características que definem com precisão as Igrejas Inclusivas e possibilitam sua
conceituação. “Igreja Inclusiva é o termo êmico e controverso pelo qual se designam essas
igrejas, que em geral podem ser definidas por compatibilizar sexualidades não
heterossexuais e religiosidades cristãs, majoritariamente evangélicas” (WEISS DE JESUS,
2010, pg. 132).
Teologia Inclusiva
O universo religioso sempre esteve permeado por inúmeras crenças e formas de viver a fé.
Entretanto, discutir Teologia trazia uma carga intrínseca compreendida apenas como o
estudo da palavra do Deus cristão. Quaisquer outras teologias que fossem debatidas, de
imediato eram apresentadas como heresias, isso mudou. No meio acadêmico moderno não
se fala mais em estudo da Teologia, e sim, das Teologias. Assim, foi possível o estudo de
novos deuses, quebrando a hegemonia existente até então. Cada religião institucionalizada
possui seus fundamentos teológicos e a Teologia Inclusiva apresenta novos fundamentos do
Deus cristão, de acordo com as convicções de seus líderes. Como ciência a Teologia
Inclusiva é ignorada por muitos apesar de já contar com mais de quarenta anos de
existência. Dentre os vários conceitos a respeito do tema, pode-se inferir que Teologia
1676
Inclusiva é uma proposta de releitura dos textos sagrados, em especial a Bíblia Cristã,
surgida a partir e com fundamentação na Teologia da Libertação, que busca a inserção das
minorias sociais em todos os aspectos do cotidiano social, inclusive no religioso.
A Teologia Inclusiva, como a própria denominação sugere, é um ramo da teologia tradicional voltado para a
inclusão, prioritariamente, das categorias socialmente estigmatizadas como os negros, as mulheres e os
homossexuais. Seu pilar central encontra-se no amor de Deus pelo homem, amor que, embora eterno e
incondicional, foi negado pelo discurso religioso ao longo de vários séculos. (FEITOSA, 2010, p. 13 -14).
A Teologia Inclusiva como forma específica de inserção religiosa cristã, demonstra muito
comprometimento com os movimentos LGBT, abrindo espaço para que o público
homoafetivo possa apresentar-se como ator social pleno, atuando em todos os aspectos do
culto, desde a membresia à liderança, sem quaisquer óbices na ocupação dos cargos mais
elevados.
1677
falhas do grupo ou movimento que são contrários, demonstrando que suas construções estão
fundamentadas não em hipóteses válidas ou pesquisas que demonstrem uma construção
sólida e sem reservas de seu pensamento, e sim, em pré-conceitos carregados de
preconceitos. A análise imparcial dos temas sociais é absolutamente necessária para que
seja considerada válida e agregadora de conhecimentos. No tema em questão, a análise
realizada por cientistas sociais que estudam os fenômenos religiosos são a base para
delimitar a classificação das Igrejas Inclusivas no universo religioso cristão, em meio à
sociedade moderna sedenta de líderes que lhes mostrem o caminho da salvação, seguindo
parâmetros pré-estabelecidos cientificamente.
Por muito tempo os conceitos de igreja, seita e novo movimento religioso têm sido bastante
debatidos e por vezes não se chega a um denominador comum a respeito do assunto,
entretanto, os estudiosos que se debruçam sobre o tema religião não poupam esforços para
apresentarem conceitos que mesmo não conseguindo plena aceitação das partes envolvidas,
ao menos demonstram um caminho possível. Iniciar a análise pelos institutos mais antigos
no campo religioso brasileiro parece à decisão mais acertada.
[...] os especialistas em sociologia da religião têm usado a palavra “igreja” para designar
uma “instituição que foi, como resultado da obra de redenção, dotada de graça e
salvação” e que pode “receber as massas, e ajustar-se ao mundo”; enquanto “seita” se
aplica aquela “instituição formada de voluntários, composta de crentes cristãos, rigorosos
e explícitos, unidos entre si pelo fato de todos terem experimentado o novo nascimento
(CAMPOS, 2002, p. 99).
Como se pode notar, o termo igreja é reconhecido como uma instituição religiosa que
conseguiu adaptar-se e ajustar-se ao mundo, como forma do exercício do proselitismo e ao
mesmo tempo acenando aos seus adeptos a necessidade do mundo religioso evoluir de
acordo com a sociedade que a envolve e permeia. O termo seita em contrapartida apresenta
uma instituição que não se adapta aos padrões existentes no mundo, isolando-se ao máximo
e fechando-se em si mesma, como forma de manter padrões morais e religiosos, que não
seria possível se fosse aberta ao convívio de forma pacífica com elementos contrários a seus
posicionamentos. Os conceitos utilizados pelo meio acadêmico, apesar de demonstrarem
coerência, não costumam ser utilizados pelos religiosos que em geral, consideram suas
instituições igrejas e as demais como seitas. Nesse contexto essas instituições se aproximam
e muito do conceito de novos movimentos religiosos, que advogam serem os únicos
detentores da verdade divina considerando os demais ramos religiosos, ainda que sejam do
1678
mesmo tronco ancestral, como infiéis que deixaram de lado a verdadeira religião por
realizarem concessões para manterem ou atraírem novos adeptos.
As cerimônias religiosas realizadas nas Igrejas Inclusivas situadas na cidade de São Paulo
demonstra se não um sincretismo religioso ao menos uma mescla litúrgica, com músicas
ritmadas, danças, estudos bíblicos, orações que envolvem elementos das Igrejas Protestantes
Tradicionais e Evangélicas. Observa-se com muita nitidez nesse novo espaço religioso, uma
nova forma de interpretar os ensinamentos básicos da vida cristã, com ressignificações não
somente dos textos bíblicos, mas, de forma muito mais ampla a toda a vida religiosa da
comunidade. Nesse aspecto as Igrejas Inclusivas se assemelham muito ao conceito de
Igreja, uma vez que, estão em perfeita sincronia com o mundo secular moderno, em especial
no tratamento dado às questões sobre a homossexualidade, como totalmente compatível
com a fé cristã segundo os ensinamentos de Jesus Cristo. Esse posicionamento sobre a
questão cristã e a homossexualidade serem ou não compatíveis aproximam as Igrejas
Inclusivas dos conceitos aplicados aos Novos Movimentos Religiosos e as seitas.
Apresentando sua verdade sobre os enganos cometidos ao longo dos séculos por
denominações religiosas cristãs ao condenarem os homossexuais e seus comportamentos, as
Igrejas Inclusivas assumem o aspecto de únicos detentores da verdade divina, característica
primordial dos Novos Movimentos Religiosos e das seitas, entretanto, ao menos nas igrejas
visitadas, a figura do líder carismático que atrai multidões por seu carisma, não é presença
tão marcante, mas existe. Os adeptos dessa nova configuração religiosa aderem às Igrejas
Inclusivas, não apenas por sua ideologia e sim, como forma de se sentir aceito social-
religiosamente, agregando a isso um sentimento de pertença ao movimento que emite
respostas esperadas a perguntas previamente formuladas no consciente e subconsciente dos
grupos cristãos LGBT, a respeito de seus sentimentos, angústias, anseios, amores e
desilusões vividas por professarem uma fé que na verdade os excluía por serem diferentes.
Considerações finais
1679
não demonstra grande dificuldade, porém, na ausência da experimentação o que sobra nada
mais é do que o posicionamento subjetivo do pesquisador que se não for muito bem
aplicado e explicado, torna-se alvo de críticas duras e por vezes destrutivas. No caso em
questão, apesar de não ser possível a experimentação prática, muitos são os estudiosos a
respeito do tema e por isso, a subjetividade do autor já não é mais somente sua, fazendo
parte de um senso e consenso comum, o que viabiliza uma análise mais apurada com a
abordagem de diversas posições a respeito.
As Igrejas Inclusivas são novas realidades no mundo religioso cristão, que podem até ser
aceitas ou não, contudo, negar sua existência como um movimento cristão, uma vez que,
todo o desenvolvimento de suas atividades é fundamentado na Bíblia Sagrada e nos
ensinamentos de Jesus Cristo e dos Apóstolos, é no mínimo falta de bom senso. Negar pura
e simplesmente a existência de movimentos religiosos somente pelo fato de não seguirem
uma norma geral imposta pelas comunidades religiosas cristãs tradicionais, em especial às
evangélicas, é “tapar o sol com a peneira”. Os Novos Movimentos Religiosos não são
afetados por posicionamentos contrários a suas ideias e ideais, muito menos, pelo fato de
serem ignorados pelas religiões estabelecidas, sejam elas de quais vertentes forem. Diante
dessas considerações cabe uma análise das ações e reações provocadas pelas Igrejas
Inclusivas sejam por seus posicionamentos a respeito das demais igrejas cristãs, sejam por
suas doutrinas e fundamentos religiosos ou simplesmente pela liturgia utilizada em seus
templos.
Como característica principal dessa nova configuração religiosa, salta aos olhos o
posicionamento das Igrejas Inclusivas, como igrejas cristãs de características evangélicas
pentecostais, voltadas para os dons do espírito, curas divinas, campanhas para quebras de
maldições, curas interiores, retiros espirituais e Teologia da Prosperidade dentre outros,
elementos comuns e sempre presentes nas denominações evangélicas pentecostais.
Entretanto, a semelhança entre Igrejas Inclusivas e Igrejas Pentecostais, não vão além destes
elementos cúlticos, que por vezes, são mesclados com elementos dos ritos religiosos das
denominações Protestantes Tradicionais, com o uso de estola sacerdotal, colarinho
clergyman e divisão hierárquica nos moldes protestantes tradicionais. No que concerne às
doutrinas implementadas pelas Igrejas Inclusivas, o sistema religioso é bem diverso das
demais igrejas cristãs, sejam elas de vertentes evangélicas ou católicas. A principal
característica doutrinária apresentada por essa nova configuração religiosa, está
fundamentada no pensamento de que o pecado não pode ser imputado a comportamentos
1680
humanos relacionados ao exercício da sexualidade, seja ela qual for, pois acreditam que
toda forma de amor emana da criação divina, seja ela hetero ou homossexual. Contudo, para
algumas Igrejas Inclusivas, a homossexualidade praticada fora da segurança da igreja,
como por exemplo, nas casas de prostituição, são considerados profanos, devendo ser
evitados. Nesse contexto, a doutrina se aproxima das igrejas tradicionais, pois, o
relacionamento monogâmico é visto como princípio fundamental da ação de Cristo na vida
do indivíduo, afastando-o de comportamentos tidos como perniciosos como prostituição,
uso de drogas e promiscuidade.
Uma análise mais aprofundada demonstra ainda, que as Igrejas Inclusivas se aproximam dos
conceitos de seitas e de Novos Movimentos Religiosos, pois, acreditam ser donos da
verdade divina. Suas doutrinas fundamentando como único e grande pecado da humanidade
a falta de amor ao próximo, demonstra um afastamento das doutrinas das demais igrejas,
mas não somente delas e sim, da sociedade brasileira em geral, ainda com estrutura
patriarcal e machista. Outro fundamento que aparece em algumas das Igrejas Inclusivas
visitadas na cidade de São Paulo, que podem caracterizá-la como Novo Movimento
Religioso é a figura do líder carismático, ainda que em menor intensidade seja uma
realidade presente. Com discursos inflamados, que acariciam os egos de seus adeptos, os
líderes carismáticos das Igrejas Inclusivas invariavelmente, proferem palavras de ordem e
autoafirmação inflamando nos membros sentimentos de solidariedade mútua e aceitação de
sua homossexualidade como oriunda da vontade ou atos de Deus, despertando naqueles que
ainda não assumiram sua condição perante seus parentes e amigos, segurança e confiança
para fazê-lo.
1681
Referências
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1996.
1684
1685
GT15 – (In)tolerância, gênero e religião
Coordenadoras
Comentador/a
Resumo
O Brasil tem sido considerado um país de fácil convivência entre diferentes, inclusive no
campo das religiões. Nos últimos anos, porém, à medida em que a sociedade se torna cada vez
mais plural em termos religiosos, temos assistido a manifestações públicas de intolerância.
Tais manifestações dão-se em um contexto político novo de investimento de setores religiosos
conservadores na sociedade e no Estado, seja disputando lugares de poder no Executivo, seja
conquistando espaços cada vez maiores no Parlamento ou ainda, ampliando as possibilidades
de incidência social pelo uso das mídias e do trabalho de assistência. A ampliação do poder
político desses grupos expressa-se, entre outros, nas tentativas de reverter avanços em relação
a direitos nos campos da sexualidade e da reprodução, afetando diretamente a população
LGBTTI e, particularmente, as mulheres. O GT propõe a discussão de questões que dizem
respeito às articulações entre liberdade religiosa, democracia e a efetivação dos direitos de
cidadania em um Estado constitucionalmente laico.
1686
Comunidades de terreiro: relatos da intolerância
Lucas de Deus da Silva1092
Introdução
O presente artigo tem por finalidade analisar alguns dados coletados através do questionário
aplicado durante a pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz Africana do Rio
de Janeiro”1093 realizada pela PUC/Rio, com o intuito de identificar a maneira pela qual a
intolerância religiosa se manifesta no Rio de Janeiro. Procura visibilizar as manifestações de
preconceito, discriminação e intolerância a que estão sujeitos os indivíduos praticantes das
religiões de matriz africana. Neste artigo, a partir de um recorte da pesquisa, iremos discutir
especificamente sobre os tipos de agressões ocorridas contra as religiões de matriz africana e
que desdobramento judicial estes ataques vem provocando dentro do universo estudado.
Os dados recolhidos pela pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz Africana
do Rio de Janeiro” correspondem a um universo de 847 casas mapeadas. A totalidade das
casas mapeadas não representa a quantidade absoluta existente no Rio de Janeiro e, por isso,
os dados e as reflexões decorrentes delas não tem o intuito de representar a variedade das
casas de religiões de matriz africana que compõem a região metropolitana. No entanto, os
dados produzidos a partir de uma análise qualitativa dialogam com a vasta literatura acerca da
temática da intolerância religiosa o que confere autenticidade a pesquisa.
1092
Graduando em Ciências Sociais pela PUC/RJ. Bolsista PIBIC/CNPq na pesquisa “Mapeamento das Casas de
Religiões de Matriz Africana no Rio de Janeiro: Visibilidade e intolerância Religiosa”. Orientado pela Profa.
Dra. Sonia Maria Giacomini. Contato: dedeuslucas@yahoo.com.br
1093
A pesquisa é um projeto realizado pela PUC/RJ com financiamento do Governo Federal através da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Coordenadores do projeto: Profa. Dra. Sonia
Maria Giacomini, Profa. Dra. Denise Pini Rosalem da Fonseca e pelo Prof. Dr. Luiz Felipe Guanaes Rego.
1687
Constituição Federal de 1988, que em seu Artigo V, Inciso VI, afirma ser “é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos
e garantida na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
Desde o período da escravidão a população negra junto com todo o seu complexo cultural
fora tratada como seres inferiores, o negro, “na verdade, não era concebido como parte do
gênero humano; era considerado coisa, mercadoria” (SILVA, 2009, p.126). Num estudo
elaborado pelo Hédio Silva Jr em que ele se debruça sobre o aparato jurídico do escravismo é
possível averiguar, as “regras implícitas e explicitas enderaçadas ao controle e subjugação dos
africanos escravizados”. O autor traz a público algumas leis que visibilizam a sua afirmação,
tais como: “equiparava o escravo a animais e coisas (Tít. LXII), criminaliza a feitiçaria,
punindo o feiticeiro com a pena capital (Tít. III)” (SILVA JR, 2007, p. 305). Mesmo com a
abolição a população negra continuou sendo subjugada, sendo submetida aos piores postos de
trabalho, expropriadas das condições mais básicas de sobrevivência (PRANDI, 1996). No
entanto, com a instauração da República construiu-se no imaginário social brasileiro o “mito
da democracia racial” que segundo Carlos Hasenbalg, produz uma “ausência de preconceito e
discriminação racial e, consequentemente, oportunidades econômicas e sociais iguais para
brancos e negros” (HASENBALG, 1979 p. 242). O imaginário de harmonia racial destina-se
a socializar a totalidade da população de forma igual evitando áreas potenciais de conflito.
Uma vez a democracia racial sendo entendida como algo real, as manifestações de
preconceito passam a ser atribuídas a diferenças de classe (HASENBALG, 1979). Sendo
assim, a discriminação racial, o preconceito e a intolerância religiosa são encobertos pela
ideologia construída pelos grupos dominantes, pois, reiteram no país um sentimento de
igualdade inexistente. Segundo Marlise Silva, essas formas de pensar, ver e sentir o mundo
“determinam práticas sociais, tais como a violência, o preconceito, a discriminação etnorracial
e a religiosa” (SILVA, 2009, p 128).
1688
fazer um panorama histórico sobre qual definição de religião o catolicismo, o espiritismo, os
cultos afro-brasileiros e as igrejas evangélicas, respectivamente foram legitimados. Segundo
ele, o debate acerca da liberdade religiosa no inicio do século XX não se debruçava sobre qual
religião teria liberdade, mas sim, qual liberdade desfrutaria a religião, cuja referência era a
Igreja Católica (GIUMBELLI, 2008). A conceitualização no que concerne a liberdade
religiosa estava sujeita a hierarquização das confissões religiosas em que a Igreja Católica
mantinha sua supremacia, gerando desigualdades religiosas desde o início da República
brasileira.
1689
Tolerância e intolerância religiosa
O princípio da liberdade religiosa surge em meio a um contexto europeu nos séculos XVI e
XVII em que a discriminações civis eram constantes, os Estados que possuíam uma religião
oficial passavam por conflitos rotineiros por vezes sangrentos (GIUMBELLI, 2003). Levando
em consideração que o reconhecimento enquanto expressão religiosa e sua respectiva
legitimação passaram por meios de dispositivos jurídicos diferentes, Giumbelli argumenta que
o princípio de liberdade religiosa foi uma resposta a esses conflitos
Vem associada a um certo modelo, tido como solução para essa situação problemática:
discriminações e conflitos cessariam a partir do momento em que Estado e igrejas fossem
autonomizados e em que a crença e a prática religiosas dependessem apenas da consciência
individual (GIUMBELLI, 2003, p. 76).
Este princípio está em total consonância com a democracia moderna que propõe a laicização
do Estado, igualdade das religiões perante a lei e garantia da diversidade religiosa. Além do
princípio da liberdade religiosa associar-se aos valores da democracia moderna ela está
prescrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião
ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou
coletivamente, em público ou em particular (Artigo 18 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos)
Não obstante a esses princípios verificamos uma bibliografia específica sobre os constantes
processos de intolerância religiosa que segundo Marlise Silva
É uma expressão que descreve atitudes fundadas em preconceitos e caracterizadas pela falta
de respeito às diferenças de credos religiosos práticados por terceiros, podendo resultar em
atos de discriminações violentas dirigidas a indivíduos específicos ou em atos de
perseguição religiosa, cujo alvo é a coletividade (SILVA, 2008, p. 128).
1690
Abaixo se encontram um desses relatos que se referem aos organismos públicos como
instituições que reproduzem atos de discriminação.
[...] existe uma discriminação institucional. Organismos como defensoria pública, polícia e
prefeitura afrontam e descriminam os terreiros na Baixada Fluminense. Alguns desses
órgãos colocam certas exigências para os terreiros existirem, que não são colocadas para as
igrejas das demais religiões. (ROCHA, 2011, p. 16).
Essas práticas contrariam os princípios basilares do serviço público que segundo Silva Jr,
“tem por obrigação legal valorizar uma cultura de paz, compreensão e respeito recíproco entre
os humanos, e não servir à intransigência e ao preconceito” (SILVA JR, 2009, p. 207).
Percebe-se, portanto, que a “a instauração de um regime de tolerância para diversos cultos não
é garantia da eliminação da discriminação legal” (BLANCARTE, 2003 apud MARIANO,
2007, p. 123). Igualmente, Norberto Bobbio em “A Era dos direitos” problematiza as noções
de tolerância e intolerância que para ele seriam ambíguas, pois, ambas podem ter sentido
negativo e positivo (BOBBIO, 1992). Segundo ele, estas noções podem ser interpretadas de
maneiras diferentes, de acordo com os contextos históricos e sociais. Em meio à
complexidade na definição dos conceitos de tolerância e intolerância religiosa, Norberto
Bobbio define tolerância como o “reconhecimento do igual direito a conviver, que é
reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se
considera depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos ao erro de boa-fé” (BOBBIO,
1992, p. 213). Intolerância, portanto, seria o não reconhecimento desses direitos. Segundo o
autor, as práticas de intolerância se baseiam na crença que religiosos possuem em serem
portadores da única verdade e consequentemente incumbidos por Deus a impor suas
convicções. Geraldo Rocha aponta mais duas possibilidades no que concernem as
dificuldades em reconhecer a liberdade religiosa, essas dificuldades estão ligadas ao
preconceito com relação às religiões de matriz africana e às práticas de proselitismo religioso
(ROCHA, 2011). A partir da reflexão do Bobbio, percebemos que as noções de tolerância
subjugam aquilo que é tolerado, criando assim, uma hierarquia valorativa das crenças
religiosas. Estes impasses da tolerância legitimam os discursos que as lideranças religiosas
das casas de matriz africana expressam ao afirmarem que não querem ser toleradas e sim
respeitadas, quando são indagadas sobre a intolerância religiosa no Brasil. Em texto
1691
produzido coletivamente por lideranças religiosas e apresentado na abertura da Plenária
Nacional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana,1094 definem intolerância religiosa como:
Expressão que não dá conta do grau de violência que incide sobre os territórios e
tradições de matriz africana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por
ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem
demonizadas e / ou reduzidas em sua dimensão real. Tolerância não é o que queremos,
exigimos sim respeito, dignidade e liberdade para SER e EXISTIR.
Esse discurso encontra expressão no texto do Zvi Yavetz em que ele “considerava injurioso
tolerar alguém e achava que a verdadeira virtude estava em reconhecer e respeitar o outro”
(YAVETZ, 1992, apud MARIANO, 2007, p. 125).
1094
Divulgado no mês de julho de 2013, na III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial –
CONAPIR.
1692
teologia neopentecostal. Vagner da Silva recorda do livro “Mãe de Santo” publicado pelo
fundador da Igreja pentecostal da Nova Vida, o missionário canadense Walter Robert
McAlister, em 1968, que deixa claro a guerra declarada aos cultos afro-brasileiros (SILVA,
2007). Os temas centrais da “batalha espiritual” são a identificação das divindades afro-
brasileiras com o demônio, a libertação dos adeptos das religiões de matriz africana pelo
poder do sangue de Jesus e a consequente conversão. Os neopentecostais não veem as
divindades do panteão afro brasileiro como crendices populares ou folclore, eles reconhecem
o poder dessas divindades, no entanto, para eles, são “espíritos demoníacos” que iludem e
ameaçam a vida da população brasileira (SILVA, 2007). O fato das sessões de descarrego
assumir a centralidade dos cultos da IURD1095 evocando e vilipendiando as divindades afro-
brasileiras leva o Ricardo Mariano a concluir que “os demônios constituem o ‘braço direito’
das igrejas que o combatem metódica e sistematicamente” (MARIANO, 2007, p.139).
Não obstante a demonização das religiões de matriz africana, Ari Pedro Oro (2007) apresenta
três aspectos que mostram que IURD possui similitudes com as religiões de matriz africana.
O 1° aspecto é o que ele determina como “igreja religiofágica”: “apropriação e atribuição de
novos significados a elementos de crenças tomados de outras igrejas e religiões”; 2° aspecto é
a “igreja da exacerbação”: “amplificação desses elementos e de outros já existentes no campo
religioso”; o 3° aspecto é a “igreja neopentecostal macumbeira”: “metamorfose dessa igreja,
sobretudo em determinados rituais, que ao invés de distanciá-la das religiões afro-brasileiras
que combate, delas se aproxima”. As sessões de descarrego, a invocação e libertação coletiva
de demônios, são segundo o autor, semelhantes a algumas cerimônias de casas de matriz
africana (ORO, 2007). Dialogando com Pedro Oro, Vagner da Silva em seu artigo “Entre a
Gira de Fé e Jesus de Nazaré”, também tipifica algumas práticas dos cultos neopentecostais
que se assemelhariam ao universo das comunidades de terreiro. Segundo Silva, nos cultos
neopentecostais a palavra falada, “suas palavras de fogo”, possui poder mágico simbólico, é
através da palavra que se expulsam os “demônios”. Esse poder é uma característica das
religiões afro-brasileiras. Segundo ele, há “cosmogonias cruzadas”, ou seja, a uma
ressemantização das divindades e entidades afro brasileiras.
Ao indagar sobre a aparente inércia das religiões de matriz africana aos ataques dos
neopentecostais, Pedro Oro assinala que um dos motivos para a indiferença das comunidades
de terreiro aos ataques reside no antagonismo cosmogônico entre ambas as religiões.
1095
A forma que se convencionou pelos estudiosos identificar a Igreja Universal do Reino de Deus
1693
Enquanto a IURD concebe o mal de forma transcedental cujo sua ética está baseada na guerra
contra o demônio, as religiões de matriz africana em geral concebem o mal “como tendo
origem nos seres humanos, sendo os espíritos meros instrumentos usados por eles” (ORO,
2007, p.53). Diante dessa questão observada pelo Oro, será que realmente existe uma guerra
santa, ou somente há uma deflagração da IURD de guerra aos cultos afro-brasileiros, que
apesar de serem vítimas dos ataques de intolerância religiosa não possuem uma postura
belicosa. Analisando os relatos da pesquisa Mapeamento, averiguamos uma recorrência no
que diz respeito à possível inércia das religiões de matriz africana que reforçariam esse
questionamento sobre a forma que assume a “batalha espiritual”.
A tipificação de certas práticas pentecostais como crime pelo poder público é apontada por
Mariano como uma possível contribuição ao enfrentamento dessas práticas, no entanto, o
autor caracteriza essa tipificação como um possível problema, pois ao tipificar esses atos
correriam o sério risco de inibir a liberdade religiosa dos neopentecostais (MARIANO, 2007).
Ao mesmo tempo, entretanto, Mariano afirma que os evangélicos “protagonizam atos
explícitos de ‘violência simbólica’ que estigmatizam, desqualificam e rebaixam moralmente
os adeptos dos cultos afro-brasileiros” (MARIANO, 2007, p. 126). Em meio a essas
discussões, Hédio Silva Jr, afirma que a liberdade de expressão não se caracterizaria como um
direito absoluto prescrito na Constituição e, portanto, “à medida que a liberdade de expressão
passa a ser utilizada para pregar o preconceito e a discriminação, tem-se um quadro de abuso
e não de uso do direito” (SILVA JR, 2009, p. 206). Nesse sentido, as práticas encaradas pelos
evangélicos como o livre exercício da sua liberdade são caracterizadas como discriminações
religiosas e, por conseguinte, seriam enquadradas no artigo 208 do Código Penal brasileiro
que afirma: “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar a cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente de
ato ou objeto de culto religioso”. Além do artigo 208 do código penal a constituição brasileira
de 1988 em seu artigo V, retrata sobre o tema da liberdade de crença. Silva Jr aborda várias
leis que dizem respeito à liberdade religiosa, tais como, a “Lei n° 7.716/89, que pune a
prática, a incitação e a indução a discriminação ou ao preconceito por motivo de religião
(art.20)” (SILVA JR, 2009, p.208).
1694
Em 2003 o Supremo Tribunal Federal, “entendeu que a discriminação religiosa submete-se na
norma constitucional que criminaliza a prática do racismo” (SILVA JR, 2009, p.316) sendo
assim, os indivíduos praticantes da discriminação religiosa estão sujeitos aos mesmos efeitos
punitivos do crime de racismo no Brasil.
A intolerância de natureza religiosa/racial configura uma das faces mais abjetas do racismo
brasileiro, mantendo-se intacta ao longo de toda a História, e resistindo, inclusive, ao
processo de democratização, cujo marco fundamental foi a promulgação da Constituição de
1988 (SILVA JR, 2009, p. 210-211).
Por esse motivo, Silva Jr imbuído da perspectiva do direito, é enfático em afirmar que os
agentes protagonistas de discriminação religiosa devem ser tratados como criminosos,
segundo manda a Lei.
Metodologia
A análise dos dados coletados da pesquisa “Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz
Africana do Rio de Janeiro” está fundamentada numa reflexão antropológica sobre a
religiosidade no cenário brasileiro atual. Devido à diversidade e complexidade do universo
das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro, foi necessário construir categorias
analíticas que dessem conta da complexidade do universo estudado, a fim de respeitar a
identidade religiosa autodeclarada pelos respondentes. As análises minuciosas dos relatos
encontrados nos questionários da pesquisa permitiram identificar as diversas formas e os
locais sob as quais as agressões se manifestam: verbal, física, contra a casa, contra os adeptos,
na rua, no cemitério, na escola pública e privada, locais de trabalho, em transportes coletivos,
matas e beiras de cachoeira.
A partir destas análises, foi possível a construção de categorias que dessem conta das diversas
expressões de discriminação religiosa relatadas pelos respondentes do questionário. Os relatos
foram classificados segundo: I- local da manifestação (público / privado); II - Tipo de
agressor (vizinho, evangélico, outros); III - Tipo de alvo (pessoa, casa, outros); IV - Tipo de
agressão (verbal, física, outras) V - Tipo ação/ processo judicial (de quem, contra quem,
onde/situação). Todas essas categorias descritas são baseadas nas informações que os
respondentes relataram ao pesquisador de campo. Por meio destas categorias identificamos os
locais de maior recorrência de discriminação religiosa, os principais agressores, os principais
1695
alvos, as agressões mais sofridas pelos adeptos das religiões afro-brasileiras e a maneira pela
qual os processos judiciais ocorrem e se desenvolvem na sociedade brasileira. As categorias
classificatórias que organizam os relatos convergem, em alguma medida, com a classificação
feita pelo Geraldo Rocha em seu artigo intitulado “A intolerância religiosa e as religiões de
matrizes africana no Rio de Janeiro”, publicado em 2011. No artigo Rocha utiliza as
categorias “família”, “o local de trabalho”, “a escola”, “a rua”, “a relação com organismos
públicos”, “no espaço religioso”, que segundo Rocha, são esferas da vida humana que sofrem
diversas práticas de intolerância religiosa afetando diretamente os processos de interação
social (ROCHA, 2011). A convergência entre as pesquisas com temas correlatos legitimam a
validade dos dados produzidos por meio da análise dos questionários.
Por meio da análise dos relatos encontrados no questionário do Mapeamento, o primeiro dado
bastante significativo que aparece é que mais da metade dos relatos (52,4%) afirmaram que a
casa ou algum adepto havia sofrido algum tipo de discriminação religiosa. No que diz respeito
aos tipos de agressores verificamos no universo pesquisado que a maior parte das agressões
aos adeptos das religiões de matriz africana são empreendidas por evangélicos, seguida por
vizinhos e vizinhos evangélicos. Os agressores compreendem 32%, 27% e 7%,
respectivamente dos casos relatados.
1696
do demônio (1); demônio (5); diabo (3); encosto (1); endemoniada (1); endemoniados (2);
está amarrado (3); coisa do demônio (1); filhas do diabo (1); filhos do diabo (1); ligação com
o diabo (1); mulher do demônio (1); mulher do diabo (1); o demônio mora ao lado (2); o
diabo está com você (1); pacto com o demônio (1); religião do diabo (1); sai demônio (1);
satanás (1); trabalhar para o demônio (1). Percebemos com isso uma consonância desses
dados com a bibliografia acerca da intolerância religiosa que é categórica em dizer que um
dos motivos que animam a perseguição aos cultos de matriz africana é a constante associação
do demônio as religiões de matriz africana. Esses dados visibilizam de forma concreta um dos
problemas gerados pela existência de uma teologia que endemoniza as religiões de matriz
africana.
A pesquisa indica ainda outras formas de agressões menos expressivas no universo estudado,
tais como: agressão sonora (5); impedimento/não atendimento em espaço público e/ou
privado (12); impedimento dos religiosos de entrar na escola por estar caracterizado como um
religioso (5); proselitismo religioso (16) e denúncia as autoridades competentes contra a casa
de culto de matriz africana.
1697
Considerações finais
Se ficarmos no plano do dever ser sem nos lançarmos na luta pela rela efetivação dos
direito à liberdade religiosa, estaremos no terreno da pura abstração da ideia de democracia,
o que reforçaria a invisibilidade da herança cultural afrodescendente e, em especial, das
religiões de matriz africana (SILVA, 2009, p. 130).
Referências
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1698
GIUMBELLI, Emerson. A presença do Religioso no Espaço Público: Modalidades no Brasil.
In: Religião & Sociedade, v. 28, n. 2, Rio de Janeiro, p. 80-101, 2008.
MONTEIRO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. In: Novos Estudos
CEBRAP, v.1, n. 74, São Paulo, p. 47-65, 2006.
ORO, Ari Pedro. Intolerância Religiosa Iurdiana e Reações Afro no Rio Grande do Sul. In:
SILVA, Vagner Gonçalves da. (org). Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo
no campo religioso afro-brasileiro. 1ª edição. São Paulo: Edusp, 2007, p. 29-69
ROCHA, José. Geraldo da. A Intolerância Religiosa e Religiões de Matrizes Africanas no Rio
de Janeiro. In: Revista África e Africanidades, v. 1, n. 14/15, Rio de Janeiro, 2011. Disponível
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19 set. 2012
SILVA JR, Hédio. Intolerância Religiosa e Direitos Humanos. In: SANTOS, Ivanir dos;
ESTEVES FILHO, Astrogildo (orgs). Intolerância Religiosa X Democracia. 1ª edição. Rio de
Janeiro: CEAP, 2009, p. 205-216.
__________. Notas sobre sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. (org). Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no
campo religioso afro-brasileiro. 1ª edição. São Paulo: Edusp, 2007, p. 303-323.
1699
Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. 1ª
edição. São Paulo: Edusp, 2007, p. 191-260.
Internet
1700
1701
Da ortodoxia ao clericalismo:
Igreja, Estado e as tentativas de influência eclesiástica no poder
público
Guilherme Borges Ferreira Costa1
Em dezembro de 2009, foi lançado pelo governo federal o assim chamado PNDH-3 (3º
Programa Nacional de Direitos Humanos).2 O documento, contendo mais de quinhentas
orientações governamentais, foi publicado no Diário Oficial da União após passar pela
assinatura do então presidente da República e de vinte e oito de seus principais ministérios,
além de ter sido submetido à vistoria jurídica da Casa Civil.3 Entre seus itens, alguns
despertaram grande interesse nacional, em razão de seus conteúdos particularmente
polêmicos, tais como:
- alocação de objetivo estratégico visando a angariar apoio à aprovação do projeto de lei que
descriminaliza o aborto, levando em conta a autonomia das mulheres para decidir sobre seus
corpos;4
- ações programáticas visando a apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre
pessoas do mesmo sexo;5
1
Mestrando em Sociologia pela USP e graduado em Ciências Sociais pela mesma universidade. Orientado pela
Profa. Dra. Maria Helena Oliva Augusto. Bolsista CAPES. Contato: guibc@uol.com.br
2
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Disponível em <http://www010.dataprev.gov.br/ sislex/
paginas/23/2009/7037.htm>. Acesso em 30 mai. 2013.
3
SALOMON, Marta. Críticos tiveram quatro meses para mudar projeto, diz Vannuchi. Folha de São Paulo, São
Paulo, p. A7, 9 de janeiro de 2010.
4
Diretriz 9; objetivo estratégico III; ação programática “g” da primeira versão do PNDH-3.
5
Diretriz 10; objetivo estratégico V; ação programática “b” da primeira versão do PNDH-3.
6
Diretriz 10; objetivo estratégico V; ação programática “c” da primeira versão do PNDH-3.
7
Diretriz 7; objetivo estratégico VI; ação programática “n” da primeira versão do PNDH-3.
1702
Como era de esperar, setores da Igreja Católica reagiram pública e prontamente, em alto e
bom som,8 aos artigos do documento presidencial arrolados acima, mas o Governo, na versão
final do decreto9, não excluiu nenhum dos propósitos supracitados. O segundo item em
questão teve a redação revista, passando a ênfase à consideração do aborto enquanto tema de
saúde pública. Contou também, tal item, com a adição do seguinte anexo singelo, mas
“escandaloso”:
do aborto.10
Colocação do problema
Na intenção de ser claro já de saída, faz-se necessário esclarecer sem demora qual o objetivo
da pesquisa na qual este texto se insere como reflexão parcial: observar a legitimidade social
do catolicismo conservador no interior da Igreja no Brasil e, para além dos limites clericais,
também no que diz respeito ao âmbito jurídico-político nacional. A ideia é fazer uma análise
concerne às esferas propriamente estatais. Em outras palavras, o foco da investigação está nas
iniciativas se apresentam valorizadas (ou não) pelo poder público e pela institucionalidade
católica do país.
8
Ver, por exemplo, CARIELLO, Rafael. Igreja também critica plano de direitos humanos de Lula. Folha de São
Paulo, São Paulo, p. A6, 8 de janeiro de 2010.
9
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto número 7.177, de 12 de maio de
2010. Disponível em < http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em 30 mai. 2013.
10
Diretriz 9; objetivo estratégico III; ação programática “g” da segunda versão do PNDH-3
1703
Toma-se como ponto de partida a observação dos embates múltiplos entre representantes do
poder federal e clero desencadeados pela divulgação oficial do PNDH-3. A escolha desse
conjunto bem delimitado de acontecimentos tensos de produção de discursos não menos
tensos baseia-se na constatação de uma certa singularidade histórica sua, na qual esses
processos aparecem como que revestidos de características supostamente novas, para não
dizer de um novo caráter, quando comparados com outras conjunturas nada remotas de
relações Igreja-Estado em nosso país.
Trata-se, tudo leva a crer, de um caso no mínimo delicado para a Igreja Católica nos dias
atuais, em cujo quadro ela aparece se colocando numa situação peculiarmente embaraçosa,
deslocada, fortemente prejudicial para a sua imagem pública ainda altamente positiva,
porquanto historicamente consolidada ao longo da segunda metade do século XX, de
defensora incondicional das prerrogativas constitucionais. De porta-voz tribunícia das
liberdades básicas, a Igreja passa não só a se mostrar em desacordo frontal com grupos LGBT
e militantes feministas – adversários costumazes –, mas nesse caso ela se dava a ver também
na contracorrente de organizações em defesa dos direitos humanos e, não menos importante,
na contramão de um governo que alcançava então um apoio popular recorde, quase 80% de
aprovação nacional.11
Mas além dos controversos ocorridos, já por si altamente significativos, há outro fator que
sustenta a opção empírica deste projeto: a repercussão midiática nada desprezível que o atrito
provocou e ao mesmo tempo recebeu, objetivada fisicamente na considerável quantidade de
material impresso e digital passível de investigação que foi produzida desde o início da
grande polêmica. Possibilidade aberta de observar, analisar e avaliar, a partir de um feixe de
episódios recentes e fartamente documentados, a quantas anda o poderio político da hierarquia
eclesiástica da era Ratzinger num Brasil em que se vê esgotar o monopólio católico de gestão
do capital simbólico12, esvaindo-se conjuntamente seus mecanismos de legitimação social.
Uma controvérsia religiosa pública [...] funciona como um banho revelador. Ou como um
sismógrafo. Detecta mudanças importantes de concepção da vida social, registra
deslocamentos conceituais fundamentais, imperceptivelmente em processo,
molecularmente em progresso na institucionalidade mesma da sociedade (PIERUCCI,
1996, p. 285).
11
CANZIAN, Fernando. A 9 meses de sair, Lula tem aprovação recorde de 76%. Folha de São Paulo, São
Paulo, p. A4, 28 de março de 2010.
12
SCHWARTSMAN, Hélio. Revolução quase silenciosa. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A2, 30 de junho de
2013.
1704
O sem-número de disputas que acercaram e constituíram o caso do PNDH-3, por mais locais
que esses embates fossem em relação à vastidão do universo católico, resulta num desses
dispositivos analisadores (HERVIEU-LÉGER, 1999) por meio dos quais se apresenta possível
localizar dinâmicas sociais – políticas e simbólicas – cujas implicações suplantam e muito o
próprio ocorrido naquilo que diz respeito aos seus enredamentos imediatos.
Ainda sem entrar, porém, nas complicações que perpassam as controvérsias fundadas no
PNDH-3, este texto dá um passo atrás e procura esclarecer, antes, o que aqui se entende por
“catolicismo conservador” e respectivos sinônimos. A opção pela realização de um recorte
definidor redundou duma tomada de decisão que se mostrou indispensável para efeitos de
viabilização do esforço de análise interpretativa. Dada a ampla gama de pré-noções que se
avolumam no uso mais do que corrente das expressões “católico” e “conservador”, fez-se
necessário, pois então, um exercício de elucidação conceitual, tendo em vista a reconstrução
dos adjetivos em questão para a sua utilização nas condições estritas de categorias
sociológicas descritivas. Com o afastamento dos pressupostos de senso comum, o que se
procurará com o emprego dos termos citados são os ganhos classificatórios que eles podem
propiciar para uma análise rigorosa. E para assim o fazer, é imprescindível a fixação
sistemática dos nomes nas coisas. O que não implica, importante deixar claro, numa busca por
“definições definitivas” de sentidos terminológicos. Trata-se simplesmente de localizar, em
meio a múltiplas confusões de significados, uma definição conceitual mínima, talvez
provisória, pois instrumental, que tenha por finalidade imediata a análise em processo.
“Saber do que se fala sempre ajuda” (PIERUCCI, 1998): é nesse postulado, simples de tão
pragmático, que se inspira a sessão que se inicia.
1705
catolicismo o aspecto do risco e da incerteza. Ou seja, o desafio não está só em desviar de
toda a carga de senso comum que se formula sobre a Igreja e pela Igreja. Também por sua
infinitude, o objeto em questão se mostra muitas vezes opaco e de difícil aproximação. Mas
ainda que com esse entrave, ou melhor, exatamente por causa desse entrave, cabe propor uma
estratégia de análise: a identificação dos aqui nomeados ideários e práticas católico-
conservadores pode se tornar factível pela investigação preliminar da realidade em oposição a
qual esses ideários e práticas se erguem. E neste procedimento há uma não disfarçada
apropriação do esboço de conservadorismo idealizado por Karl Mannheim (1986).
Ele, Mannheim, vai propor que a postura conservadora é antes uma postura de reação ao
gradativo fim das sociedades e sensibilidades tradicionais. O sistema de pensamento
conservador seria, consequentemente, um “contra-sistema”, que emerge, vale dizer, por
rejeição ao pensamento do direito-natural. Seguindo esse raciocínio, para explicar o
conservadorismo se faz proveitoso, primeiro, compreender a conjuntura que o motiva a se
impor em luta. Ou seja, para conceber a intenção básica dos conservadores, é positivo que se
apreenda a modernidade contra a qual e para a qual os mesmos se mostram ressentidos.
Porém, posto que aqui não se trata de um conservadorismo genérico, mas sim daquele
propriamente religioso e decisivamente católico, é, pois então, a questão da modernidade
religiosa – ou modernidade secular, dá no mesmo (PIERUCCI, 2008a) – que se coloca
forçosamente para a análise. Pela compreensão da contemporaneidade laica, pode-se acercar
pelas beiradas, e por efeito de contraste, a ortodoxia clerical. Cabe destrinchar essa
modernização, pois então, na expectativa de que na identificação daquilo que o
conservadorismo católico não é, na observação daquilo que ele hostiliza, se mapeie aquilo que
ele é.
13
“É incrível como soa atrevido e torto [...] hoje um sociólogo falar em declínio da religião e ousar qualificá-lo
de persistente” (PIERUCCI, 1998, p. 100).
1706
mostrariam um crescimento nas últimas décadas, nas sociedades europeias e norte-
americanas, de novos movimentos religiosos (cf. ENTOTH, 2005; DAWSON, 2006) – muitos
deles que, de tão exóticos e “orientalistas” (SAID, 2007), parecem por vezes capazes de
dinamitar qualquer princípio de racionalidade cultural. Mas a dessecularização no primeiro
mundo não se dá apenas por essa comoção de espiritualidades alternativas. Do mesmo modo,
também como contra-evidência ao processo de secularização, é citada a possível alavancada
de confissões do cristianismo evangélico (STARK, 2008), para não falar da invasão islâmica
na Europa, que, a confiar nos diagnósticos catastrofistas (cf. CALDWEEL, 2010), há de estar
ocorrendo a passos largos. Já aqui no capitalismo periférico, longe do escopo ocidental das
análises que fundam a sociologia, a situação encontrada é ainda mais calamitosa para a tese da
secularização: o processo pelo jeito passou ao largo das bandas de cá e a fé aparentemente só
se revitaliza por estes sítios (PIERUCCI, 1997, p. 102). Essas formas emergentes da religião
remeteriam, por sua vez, à incontornável natureza não secular do ser humano (BARRET,
2012). A sede pelo sagrado como necessidade invariável de nossa condição.
Não cabe neste momento entrar no mérito de deduções que escapem à alçada sociológica, e
que assim procedam por meio de apelos de cunho idealista que, na busca pela essência
humana abstrata, reportam-se a uma ontologia a-histórica. Saindo pela tangente das
discussões de raízes metafísicas, resta ainda assim destacar o que soa como uma distorção
comum nos argumentos adversários à teoria da religião weberiana. A afirmativa dos
“dessecularizantes” vai sempre na direção de apontar uma religiosidade efervescente e plural
no que diz respeito ao âmbito privado-íntimo. São as conversões e reconversões particulares –
em ebulição, ao que parece – que são colocadas como evidência da ressacralização pela qual
passamos. É urgente que se deixe claro, pois então, que o processo de secularização, ao menos
aquele tipificado por Weber, seu principal teórico, é sempre secularização da sociedade, e de
modo algum envolve uma supressão contingente da religião no que concerne à esfera
individual:
1707
Também Mannheim vai falar da retração para o privado de certas esferas anteriormente
públicas (as esferas da vida onde prevalecem os sentimentos pessoais e religiosos), numa
espécie de compensação pela crescente racionalização da “vida oficial” em geral
(MANNHEIM, 1981, p. 94). “As relações originais e irracionais do homem com o homem e
do homem com as coisas” são impelidas para a periferia da vida do indivíduo, em contraste
com consistente desenvolvimento racional de esferas mais representativas. “Como deve-se
esperar, de fato persistiram, mas como geralmente acontece na história, submergiram e
tornaram-se latentes, manifestando-se no máximo como uma contra-corrente oposta à corrente
principal” (idem).
O sagrado é capaz de ter um valor dos maiores na esfera do exercício devocional privado, o
que, contudo, não tem consequências de fôlego no interior das instituições sociais dominantes.
Como pontua Bryan Wilson ao longo de sua obra (1982), sendo a sociedade moderna
caracterizada pela dinâmica generalizada de procedimentos impessoais e burocráticos de
controle, os despertamentos religiosos, que podem bem ocorrer, ficam desde já
impossibilitados de ter por consequência algum retrocesso na fundamentação da ciência e da
república como modelos hegemônicos de organização da vida social. “Desde quando a
sociedade moderna repousa sobre as relações pessoais? Delírio microssociológico do mais
puro” (PIERUCCI, 1997, p. 113).
1708
racionalização da ordem jurídico-política, a qual começa com o disestablishment da religião
para fora da esfera do Estado (idem, 2008a).
Mais do que na luta da modernidade cultural contra a religião, e mesmo mais do que na perda
do monopólio da verdade para a ciência, é no declínio da fé como potência in temporalibus
que se impõe com nitidez, à vista geral, a realidade histórica da secularização. Afinal, a
formação de todo e qualquer Estado liberal democrático trouxe e traz consigo não menos do
que a derrocada da logística do magistério religioso como sustentáculo organizador da
geografia política (MICHAEL, 1999, p. 356). No movimento de atribuição da posição central
ao direito nacional, há, em simultâneo, a desinstalação do pedestal transcendente para a
legitimidade governamental. Fora do escopo religioso, é aí que se instala a racionalidade
utilitário-instrumental do positivismo jurídico, o qual referência e vetor de nossa desencantada
política contemporânea. Assim, talvez esteja aqui, na laicidade estatal, um ponto inequívoco
(dada sua evidência), um mínimo consenso entre inúmeras contestações mútuas sobre a
factualidade ou não do declínio da fé na modernidade. Se tomado o Estado como locus de
análise, pode-se dizer que se está, finalmente, a tratar de “um fenômeno [...] incontroverso”
(MARTELLI, 1995, p. 274) quando se fala em processo de secularização.
Sem a separação entre Estado e religião, o traço que porventura ocorrer de modernidade
religiosa aqui ou acolá será apenas um prenúncio dela, oxalá um anúncio, mas não ela
própria, não a modernidade religiosa propriamente dita. Nesse sentido, apreende-se a
separação Estado/Igreja como cravando o elo último de uma regressão histórico-empírica
com pretensão teórica de imputá-la geneticamente como causa histórica da modernidade
religiosa enquanto pluralidade religiosa ativada (idem p. 12).
1709
E uma vez de acordo com a estimativa de Ernst Troeltsch, para quem a Säkularisation des
Staates é “o fato mais importante do mundo moderno” (2012), parece razoável que toda vez
que aqui se fale em secularização, a ênfase esteja toda ela na secularização do aparato
jurídico-político.
Entre o catolicismo romano e o moderno Estado liberal, Émile Poulat, por sua vez, aponta
uma contradição de ideários "infindável e, talvez, insuperável" (op. cit., p.28), contradição
que se expressa recorrentemente por estratagemas de intervenção eclesiástica no âmbito
político-legal, principalmente no que diz respeito àquilo que a socióloga Rosado-Nunes
classificou como "novos campos de legalidade" (ROSADO-NUNES, 2008a, p.75), em cujo
interior, segundo ela, desponta "a novidade representada pela proposição dos direitos sexuais
e reprodutivos". Incipientes direitos que não podem mais ser considerados alheios à realização
da democracia e da cidadania. Ocorre, no entanto, que do lado da Igreja Católica, como
escreve ainda Rosado-Nunes, continua valendo o pressuposto segundo o qual questões
relativas à sexualidade e à reprodução humana relevam da ordem da natureza:
14
Todos os excertos cujos originais são franceses foram traduzidos pela pesquisadora Maria José Rosado-Nunes.
15
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Libertas Praestantissimum. Disponível em <http://www.fsspxbrasil.com.br
/page%2006 -7-Libertas.htm>. Acesso em 30 mai. 2013.
1710
“[...] ou seja, são questões que se situam fora do político (...) e como tal, quando a Igreja
Católica procura interferir nas legislações nacionais sobre esses campos, (...) ela não o faz
em nome do debate democrático (...). É em nome da competência que lhe foi outorgada
pelo direito divino que ela dá sua palavra autorizada e intenta impô-la sobre a sociedade
toda, uma vez que é a própria natureza do que é humano que está em jogo” (idem, p.77).
Desse modo, assim como um dos atos causais primeiros da modernização de uma comunidade
nacional se encontra na secularização do poder público (PIERUCCI, 1998 e 2008a), decidiu-
se na pesquisa adjetivar dado catolicismo como conservador se e na medida em que o mesmo
incorrer no ataque a esse princípio, isto é, toda vez que setores da Igreja Católica se
manifestam em oposição ativa à legitimidade do Estado laico. Em outras palavras, pode-se
dizer também que aqui o conservadorismo que interessa é aquele preocupado em barrar as
liberdades contemporâneas só viabilizadas para todos e cada um com avanços na
racionalização política de direito e de fato.
Se a modernidade de uma sociedade pode ser avaliada pela valorização que se concede ao
arbítrio individual (HERVIEU-LÉGER, 1999, p.299), além de implicar no “empoderamento”
dos membros cidadãos da coletividade para que tenham condições de definir articuladamente
os rumos daquela na qual se incluem (idem, p.298); em contrário, o conservadorismo
eclesiástico, segundo o concebemos, se constitui na negação ativa de tais possibilidades
abertas de autonomia. E isso nos dois sentidos apontados por Hervieu-Léger: no que diz
respeito à direção das existências particulares e no que toca aos direcionamentos do corpo
social. A oposição à autonomia nas esferas privada e pública, por sua vez, se apresenta como
não-reconhecimento de uma legitimidade garantida constitucionalmente. E esse
desmerecimento eclesiástico de direitos emancipatórios assegurados pela constituição secular
16
Decreto número 7.037, de 21 de dezembro de 2009, atualizado pelo Decreto número 7.177, de 12 de maio de
2010, p. 99. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf>. Acesso em 30 mai. 2013.
1711
deriva, em continuidade, da rejeição a toda “autoridade mundana não submissa ao poder
espiritual”17. Falando sinteticamente, consideramos como conservadora aquela posição que
contraria o poder público laico por meio da não aceitação de sua legalidade enquanto
desvinculada do aparato doutrinal e institucional católico - "Devem todos os governantes
atender à soberania suprema de Jesus Cristo e na ordenação temporal nada dispor que impeça
a difusão do Reinado Social do Divino Salvador. Pelo contrário, incumbe-lhes facilitar a
atividade da Igreja de Deus".18 Tal ideário se expressa ainda na declaração do principal líder
leigo da hoje maior comunidade católica nacional, a Canção Nova (OLIVEIRA, 2009); em
entrevista qualitativa para a pesquisa, a liderança disse a respeito do PNDH-3:
Esse nefasto programa (...) quer impor ao país uma ideologia que destrói os valores e os
conceitos sagrados de nossa sociedade cristã, edificados ao longo de séculos. (...) Como
muitos bispos disseram (...), o governo deveria preservar nossas raízes católicas, mas
destrói a nossa cultura.
E se a crítica teocrática à laicidade é o que define primeiro o que aqui se entende por
conservadorismo eclesiástico, não dá para deixar de lado, na constituição de nossa categoria,
o grande influxo da mesma nas discussões várias acerca dos assim classificáveis “novíssimos
direitos sexuais e reprodutivos”. A propósito, Rosado-Nunes coloca os “prazeres da cama”
sem finalidades procriativas como indícios de um processo secularizador radical, de uma
revolução em curso a que se contrapõem as tentativas católicas de controle dos corpos e dos
sexos (ROSADO-NUNES, 2008a, p.77). E é particularmente nos intentos de barrar o
reconhecimento legal da competência dos sujeitos na condução de suas existências sexuais
que encontramos a ortodoxia clerical em sua forma conservadora quase ideal-típica.
17
BONIFÁCIO VIII, Papa. Bula Unam Sanctam. Disponível em <http://www.newadvent.org
/library/docs_bo08us. htm>. Acesso em 30 mai. 2013.
18
Terceiro catecismo da doutrina cristã. Campos: Serviço de animação eucarística mariana, 2005, p. 264.
1712
Referências
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1715
1716
Discurso, poder e mulheres na cibercultura: uma análise
das consequências sócio-políticas do conceito de corporeidade
difundido no ciberespaço por adeptas das novas
espiritualidades femininas e formação de capital simbólico e
social
Sabrina Alves19
1. Introdução
Considerando o contexto da cibercultura e das teorias de comunicação propomos Discurso,
poder e mulheres na cibercultura: uma análise das consequencias sócio-políticas do
conceito de coporeidade difundido no ciberespaço por adeptas das novas espiritualidades
femininas e formação de capital simbólico e social.
Esta proposta de trabalho trata-se de início de uma pesquisa para uma tese de doutorado. Por
isso, aqui, será abordada mais suposições do que conclusões dado o andamento da pesquisa
encontrar-se nos meses iniciais do segundo semestre. Contudo, trata-se de uma pesquisa que
teve suas primeiras descobertas no mestrado em Ciências da Religião.
19
Mestre em Ciências da Religião e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Graduada em
Comunicação. Membra participante do GE GREPO coordenado por Maria José Rosado Nunes Orientada pelo
Prof. Dr. Eugênio Trivinho.. Contato: alves.sabrina@gmail.com.
20
Cisgênero é um adjetivo usado no contexto das questões de género para se referir a um tipo de identidade de
género constituída pela concordância tradicional entre o sexo biológico de um indivíduo e o seu comportamento
ou papel considerado socialmente aceito para esse sexo. Em algumas situações, cisgénero começa a ser usado
para identificar uma identidade de género concordante com um dos (tipicamente dois) estereótipos de género
socialmente reconhecidos, independentemente de haver ou não concordância com o sexo biológico Nesta
perspectiva, cisgénero é o contraste de transgénero no espectro do identidades de género. De acordo com
Jaqueline Gomes de Jesus (2012), cisgénero é "um conceito que abarca as pessoas que se identificam com o
gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento, ou seja, as pessoas não-transgénero". A origem da
palavra vem do Latim, onde o prefixo cis- significa "ao lado de" ou "no mesmo lado de", fazendo alusão à
identificação, à concordância da identidade de gênero da pessoa com seu sexo (sexo biológico, sua genitália).
1717
construídos, e, de que modo, estariam a partir dessas percepções, tais sujeitos produzindo
novas leituras religiosas e, consequentemente, políticas.
Tendo em vista que o meio de proliferação desses conteúdos produzidos por tais mulheres
ganhou fôlego no final da década dos anos 90 em função da ampliação dos computadores em
rede, entendemos que um novo e peculiar discurso esteja sendo produzido dentro das redes
sociais.
Tal movimento começa a ganhar contornos nos idos anos 70 nos movimentos new age de
espiritualidade. Contudo, na década de 90 e começo dos anos 2000 com a ampliação da
internet caseira, as experiências ganharam novas formas de serem compartilhadas. Mas foi
mesmo com tomada autônoma dos ciberespaços dos blogs e redes sociais, onde o conceito de
“espiritualidade feminina” se propagou no contexto de espiritualidades fluídicas que mesclam
conhecimentos das filosofias orientais, de medicinas tradicionais, como xamãs e pajés,
neurociência e psicologia. A atuação das adeptas das “novas espiritualidades femininas” se dá
com a divulgação de encontros, workshops e a formação de “círculos de mulheres” nos quais
a proposta é quase sempre para o “resgate do sagrado feminino”, cura dos padrões
“masculinizantes” das “mulheres modernas”, e outros. Sobre o contexto do que se trata o
chamado “resgate”, teremos oportunidade em falar com o avançar da pesquisa, esmiuçando a
expressão dentro do seu contexto.
Em uma pesquisa por artigos, dissertações e teses, não encontramos nenhum que mencione a
análise dessa relação – novas espiritualidades das mulheres e ciberespaço. Encontramos sim,
um crescente interesse na análise dos movimentos das grandes religiões instituídas, como
catolicismo, protestantismo e outras, e o seu uso das ferramentas da Web, como sites, ou
1718
ciberreligiosidades. Contudo, foi observado que não fazem os devidos recortes de classe, raça
e gênero.
Outra base que pretendemos usar, mas que também verificamos que a produção é bastante
tímida, é a relação ciberespaço e feminismo. Assim como nas religiões as mulheres quase
sempre são maioria, nas redes sociais o número de pessoas que utilizam os serviços são
autodenominadas mulheres. Consideramos portanto que, estaria aí neste cruzamento de
constatações uma material de grande relevância para os estudos da cibercultura, biopolíticas,
para os estudos de gênero e para as configurações das novas-religiões.
2. Objeto de estudos
O presente Projeto de Pesquisa versa sobre a forma, o conteúdo e as consequências sócio-
políticas das mensagens produzidas pelas mulheres dos grupos denominados “círculos de
mulheres” no ciberespaço, ao utilizarem com certa autonomia as ferramentas da internet
caseira, como computadores e sinal de internet em casa sempre à disposição, para divulgar
suas vozes e expressões espiritualizadas sobre seus corpos. Nesse contexto, levaremos em
consideração que tal grupo faz uso do resgate de uma sabedoria sapiencial entrelaçada com
necessidades contemporâneas a partir de marcadores como menstruação, gestação/puerpério e
menopausa junto com a visão espiritualizada da natureza e, que, de certa forma, no
vocabulário dessas mulheres classificam as pessoas como aptas ou não a buscarem o “resgate
do sagrado feminino” como se estivessem em constante processo de cura.
Para interpretar tais protagonismos nas redes sociais, trabalhamos aqui com a ideia de que
comunicação constitui-se da interação, do processo, dos encontros, da experiência vivida,
vínculos, compartilhamento de tempo e espaço, não restrito aos meios, tampouco às técnicas.
A partir desse entendimento do processo comunicativo, questionamos a ausência de
comunicabilidade, ou seja, o seu reverso, a incomunicação, na divulgação das mensagens no
ciberespaço por tais membras dos “círculos de mulheres”. Estariam os excessos de imagens
e informação, principalmente sem fonte e transformadas em memes, terminariam por deixar
não-identificada as mensagens por outros grupos de mulheres? Nesse cenário, que para
Baitello Júnior (2005), parece extremamente propício para a incomunicação, não são apenas
os excessos ou as facilidades da propagação das mensagens, os responsáveis pela
incomunicação, mas ela é também resultante do fenômeno de desigualdades sociais e de pré-
conceitos arraigados e reforçados pelas estruturas de poder.
1719
Considerando que tais mulheres dos “círculos de mulheres” são cisgêneras, de diversos países
e comunicam-se entre si no ambiente web divulgando seus encontros, suas mensagens,
imagens e posicionamentos sobre seus corpos e o seus conceitos de “espiritualidade
feminina”, pretendemos saber por que tais grupos, mesmo estando em um ambiente de alto
grau de comunicabilidade como o ciberespaço, com possibilidade de difusão em ampla escala
das mensagens, incorrem no processo da incomunicação com outros grupos ou outras
mulheres, principalmente as cis negras e as trans*21 brancas ou negras.
3. Tempos fluídicos
Ao nos referirmos a “novos movimentos de espiritualidades”22 e, especificamente “novas
espiritualidades de mulheres”, falamos de algo pontualmente autodenominado “círculos de
mulheres” ou “círculos femininos”.23 Verificou-se no mestrado que tais agrupamentos estão
espalhados pelo mundo com diferenciadas abordagens, mesclando conhecimentos de
filosofias orientais, ocidentais, psicologia junguiana, neurociência, além de conceitos de
saúde das medicinas tradicionais de diversas etnias do mundo associando a diversos panteões
mitológicos. Observou-se até aqui que são quase sempre constituídos por mulheres cisgêneras
e, principalmente, formados nas áreas urbanas e em grande maioria classe média. Podem ser
constituídos fisicamente ou no ambiente web.
21
O termo trans pode ser a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades, como transexual
ou transgênero, ou até mesmo travesti. Por isso, para evitar classificações que correm o risco de serem
excludentes, o asterisco é adicionado ao final da palavra transformando o termo trans em um termo guarda-chuva
[umbrella term] – um termo englobador que estaria incluindo qualquer identidade trans “embaixo do guarda-
chuva”. Daí a ideia do guarda-chuva. Além disso, o termo também pode incluir pessoas trans* que se
identificam dentro e/ou fora do sistema normativo binário de gênero, ou seja, da ideia normativa que temos de
“masculino” e “feminino” que forma um binário. O uso do asterisco como um termo englobador, é menos
estigmatizador e mais fluido, de modo que elimina classificações excludentes e abre também a possibilidade da
pessoa se identificar como quiser. É importante ressaltar que a identidade é soberana e as pessoas trans* tem a
palavra final quanto a sua própria identificação. Disponível em < http://transfeminismo.com/trans-umbrella-
term/>. Acesso em 15 maio 2013.
22
Em “novas espiritualidades” pensamos o conceito apresentado por TERRIN, Aldo Natale, Nova Era. A
religiosidade no Pós-Moderno. São Paulo: Loyola, 1996. Aqui o novo e o antigo se misturam. Estão sempre em
movimento nesta espiritualidade em que os elementos do Oriente se misturam com o Ocidente. Símbolos como
xamanismo, figuras míticas de pajés, meditações, e a sacralização da natureza fazem parte de uma religião
performática. Dão a idéia de um conjunto de crenças e práticas espirituais que não pertecem a ninguem.
Sobrevive no trânsito religioso e nas muitas oportunidades de composição religiosa que o individuo pode dispor.
23
Autodenominam-se Círculo de mulheres pessoas que em reunions tem como pauta o “resgate do sagrado
feminine”, conceitos junguianos de feminilidade, e algumas vezes inclui dança e cantos. Usam diversos motivos
para se disponibilizarem assim, e podem estar juntas fisicamente ou virualmente.
1720
A pesquisa tem-se configurado até aqui na reunião de textos e imagens, vídeos (espalhados
em blogs, redes sociais como facebook e twitter) produzidos por tais adeptas dos “círculos de
mulheres”. Estão espalhados pelo mundo, mas estamos nos atendo até o presente momento
aos formados em alguns países das América Latina, como Brasil, Chile e México, da Europa,
como Espanha e Inglaterra e da América do Norte, Estados Unidos. Outras entradas e a
expansão do corpus estão em processo de discussão e análise de orientação. O processo
fundamentátorio sairá do conjunto de twitter e post feitos nos blogs e facebook dos grupos de
discussão e compartilhamento frequentados pelas mulheres dos grupos “círculos de
mulheres”.
Nascer Gerar - Nascendo o feminino, Gerando o Sagrado juntamente com Casa Sândalo,
convida à todas as mulheres para juntas realizarmos a Benção do Útero na Sintonização de
Miranda Gray pela primeira vez em JUNDIAÍ - SP .
" A Bênção está disponível para todas as mulheres, quer tenham ou não útero, quer tenham
ou não ciclo. A energia do Divino Feminino é para todas nós. A única condição para a
Bênção é que as mais jovens tenham já tido a sua primeira Lua, de modo a receber a
energia."
Ao se cadastrar você recebera um e-mail avisando que seu registro foi confirmado (caso
não receba é necessário se cadastrar novamente)
24
Disponível em <https://www.facebook.com/events/184644651711682/?fref=ts>. Acessado em 10 ago. 2013.
1721
Essa Benção pode ser realizada individualmente, mas como sabemos quando nos unimos
em círculos de mulheres a energia de cura que se estabelece cria uma energia de AMOR,
curando não só nós como o Feminino de Mãe Gaia
(Aquelas que não puderem comparecer, se cadastrem no melhor horário para vocês e
recebam essa energia em suas casas)
1 Vela
1 Lenço cachecol para cabeça (escolha uma cor que expressa a fase do seu ciclo, ou a fase
da sua vida, ou o Divino Feminino)
Pedimos por gentileza que façam a inscrição pelo nosso e-mail nascergerar@gmail.com ou
diretamente na Casa Sândalo. Em caso de dúvidas entre em contato
Lembremos sempre que Nós Mulheres precisamos nos unir para voltarmos a compartilhar
tudo aquilo que trazemos em nosso ser. Nos unindo nos curamos umas as outras (Quando
você se cura, eu me curo. Quando eu me curo você se cura) e curaremos nossa Sagrada e
Amada Mãe Terra
Local: Rua Senador Fonseca - 247 - Centro Jundiai – SP. Horário : 19h15 as 21h30
1722
Tal convocação foi feita por iniciativa de um grupo no Brasil, interior de São Paulo, estando
“sincronizado” à proposta da inglesa Miranda Gray. Observa-se neste caso, um misto de
virtual com o presencial, e a exclusão imediata das mulheres trans*, das mulheres cis sem
acesso a internet, o que as poderia configurar pertentes à classe baixa e, ainda negras.
4. Problema(s) de pesquisa
Sabemos que no universo das religiões, principalmente as instituídas, as mulheres são sempre
maioria. Contudo, nunca chegam a cargos de liderança. Por isso, observar a difusão de novas
formas espiritualidade formada por grupos de mulheres que se auto-organizam em torno de
saberes do próprio corpo e utilizam de forma autônoma a web, tendo em vista o contexto
social e histórico das mulheres no mundo, é relevante para os avanços político-sociológico
não só das mulheres, mas de todas as pessoas.
1723
Todavia, ao entendermos que o ciberespaço é local de troca simbólicas, de busca de
informação e de aquisição de poder, tais trocas estabelecidas pelos grupos “círculos de
mulheres” podem significar um fortalecimento da cooperação, da confiança, da solidariedade
entre pessoas e instituições, ou uma formação de capital simbólico, social e político. Mas,
mesmo com adeptas espalhadas pelo mundo, e, estando em um meio que promoveria a
comunicação sem fronteiras, como a web, observamos que há uma “não-comunicação” para
com outros grupos de mulheres. Uma resistência a comunicação com outras mulheres, onde já
podemos pensar na incomunicação.
Uma vez que tais grupos podem não reconhecer seus privilégios e feitas essas considerações
indaga-se tais questões:
3) E pretendendo informar e comunicar, por que não se comunicam com outras mulheres fora
do context de “novas espiritualidades”?
4) Além disso, ao tomarmos conhecimento do momento social e político em que esses grupos
surgiram e se desenvolveram, conteporâneos aos movimentos de mulheres e feministas de
Segunda Onda25, pretendemos investigar as origens das idéias que são divulgadas atualmente
por essas mulheres dos grupos “círculos de mulheres”.
25
Conceito de feminismo nascido a partir dos anos de 1960.
1724
5. Hipóteses
6. Objetivos
1725
7. Marcas da dominação
As grandes religiões no mundo são baseadas em figuras e princípios masculinos, como
deuses, sacerdotes, santos, profetas e iluminados. De acordo com Joan Scott (1995,p.86) essas
representações e construções dos sentidos e significados relacionados às masculinidades e
feminilidades dependem dos aspectos sociais, culturais, políticos e históricos.
Esta abordagem auxilia a justificar como símbolos constroem e destroem identidades, sendo
capazes de dar significado às estruturas de dominação masculina estabelecidas em
determinado lugar. Tendo isso, destacamos que não só os símbolos, mas os discursos e
práticas religiosas também tem marca da dominação.
Nesse embate, é importante destacar que a religião, como aspecto cultural, produz e reproduz
dominantes de uma sociedade, muitas vezes segregando, aqueles ou aquelas, determinando
espaços para as identidades. Da mesma maneira a cultura produzida pelos sujeitos se apropria
dos meios para comunicar. Pode-se dizer que as novas tecnologias da informação e da
comunicação ultrapassam a mítica noção de ferramenta, prótese ou extensão do próprio corpo
(JOHNSON; REGIS, 2002). No entanto, vale ressaltar que, a geração de um ambiente
sustentado por máquinas e softwares, esta sujeita ao peso da cultura patriarcal falocêntrica.
Por conseguinte, como outros meios, capaz de reproduzir e nutrir valores tradicionais e
conservadores que legitimam práticas conservadoras fomentando práticas discriminatórias e
de desvalorização das mulheres e de outras minorias.
Em resumo o ciberespaço não é um lugar neutro de gênero. Sem dúvidas, trata-se de um lugar
de tensões, disputas e de contestação de crenças e valores.
Nesse sentido, a pesquisa prentende contribuir para novos olhares e arranjos sócio-políticos e
culturais, não só de todas as mulheres mas também, para todas as pessoas tendo como veículo
de fomentação o ciberespaço, onde evidentemente, os devidos recortes de gênero, classe e
raça se fazem necessários.
8. Quadro teórico-epistemológico
No contexto posto, para as observações e investigações pertinentes ao objeto de estudo
utilizar-se-á para as consequências sócio-políticas das mensagens produzidas no ciberespaço
pelas adeptas dos “círculos de mulheres”, teorias focadas na temáticas de poder do
multiculturalismo, ciências e filosofias políticas, além de teorias feministas e de gênero que
1726
nos ajude a fazer o devido recorte para análise. Se fará necessário contextualizar também, o
percurso das mulheres na sociedade, utilizando concepções políticas e culturais sobre a
participação das mulheres e suas construções históricas na cultura ocidental. Bem como,
teorias sociológicas e antropológicas que contemplem os conceitos mencionados de “novas
espiritualidade”, “espiritualidade new-age” e “espiritualidade femininas”.
Tendo em vista a utilização do discurso do corpo no bojo das mensagens das membras dos
“círculos de mulheres”, sem dúvidas, nos parece bastante coerente o uso de teorias de
corporeidade, para amplificar a compreensão de como utilizam e com quem intenção usam o
corpo, bem como suas devidas consequências dos conceitos divulgados para outras pessoas.
Para as devidas investigações do ambiente em que tais adeptas serão investigadas, a web,
teorias da cibercultura e do ciberespaço, e, em particular das redes sociais.
Esta sendo pensado em contexto de orientação a adequação da utilização das teorias
multiculturais e pós-modernas. Além de teorias da comunicação quanto a especificação de
concepções e perspectivas.
9. Conclusão
Tendo em vistas tais desafios, tal comunicação nos apresenta uma oportunidade de troca e
novos olhares sobre o tema, para que avancemos na pesquisa de modo suficientemente
inclusivo, mesmo que, por vezes, nosso comportamento aculturado na estrutura social
capitalista, patriarcal e sexista nos faça falhar.
Verificamos que tal abordagem nos coloca diante do desafio de constantemente revermos o
lugar da fala dominante que, em maioria, é o lugar da pessoa privilegiada. Mas entendemos
que tal lugar pode muitas vezes não considerar a interseccionalidade, e mesmo uma mulher
classe média, classe historicamente oprimida mesmo que branca, pode estar no lugar social
diante de outros grupos, privilegiada, se considerarmos a situação de mulheres negras, gordas,
lésbicas, trans* e pobres.
Entendemos que a fala protagonizada por tais grupos pesquisados, “círculos de mulheres”, se
posiciona do lugar de quem assume as expressões do próprio corpo, o que sem dúvidas,
historicamente coloca as mulheres em empoderamento político diante do lugar que seu corpo
ocupa na trama social, independentemente do estado. Mas entendemos até aqui que tais
1727
membras dos “círculos de mulheres” ao utilizarem as ferramentas da web , lugar por si de
poder, estariam a partir de seu lugar oprimido reconstruindo falas do opressor para outros
grupos.
Agradecemos desde já, toda e qualquer contribuição que vier a partir desta comunicação, e,
serão sem dúvidas fontes de reflexão para pensarmos alguns marcadores como diferença e
intersccionalidade para os estudos de gênero, religião e cibercultura.
Referências
BAITELLO JÚNIOR, Norval. As Irmãs Gêmeas: Comunicação e Incomunicação. In
SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise histórica. Educação e realidade.
In: Educação & Realidade, vol. 20, n. 2, Porto Alegre, 1995, pp. 71-99.
Internet
1728
1729
“Eu amo homossexuais como eu amo bandidos”: o pensamento
religioso de Silas Malafaia
Andrew Feitosa do Nascimento1
Introdução
No Brasil, a tradição religiosa cristã instalada juntamente aos demais elementos europeus
postiços próprios do processo colonizador, construiu bases sólidas para manutenção de sua
hegemonia. A partir da segunda metade do século XX o espaço antes ocupado sem
concorrência efetiva pela Igreja Católica Apostólica Romana começou a ser dividido pelo
crescente avanço dos pentecostalismos e neo-pentecostalismos.
Na passagem daquele século para o presente constituiu-se, de maneira cada vez mais
expressiva, uma bancada no legislativo federal formada essencialmente por líderes
evangélicos, assim como programas televisivos ou outros canais de telecomunicação que têm
em tais figuras seus principais produtos. Destes, destacaremos, por meio desse trabalho, a
figura do pastor Silas Malafaia e sua construção discursiva acerca das homossexualidades.
1
Graduado em Educação Física pela UCDB e em Turismo pela UFMS. Integrante do Universo Dialógico – GP
em História, Cultura & Política e do LabDiS (Laboratório de Estudos em Cultura e Diversidade, Política e
Sexualidade). Contato: andrew_ufms.ucdb@hotmail.com.
1730
Silas Malafaia se propõem a discutir, em sua coluna na verdade gospel, inúmeros temas que
envolvem a Igreja, a família, religião, política, as relações afetivas e os ensinamentos da bíblia
de um modo geral. Dos temas existentes na coluna, delimitamos a temática que se referia,
direta ou indiretamente, à homossexualidade.
Silas Malafaia
Silas Lima Malafaia atua como pastor protestante, estando à frente como líder da igreja
Assembleia de Deus-Vitória em Cristo, possui programa em redes emissoras de televisão, é
dono de gravadoras e autor de livros, CDs e DVDs, que como podemos notar na citação
retirada do portal eletrônico Mídia Gospel.com, possui vendas em nível nacional. Além disso,
podemos perceber também, que sua entidade possui um numero representativo de pastores em
todo país, os quais buscam disseminar as ideias religiosas de seu líder.
[...] líder da igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, ainda é presidente do Conselho
de Ministros do Estado do Rio de Janeiro (Comerj), vice-presidente do Conselho
Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (Cimeb), entidade que agrega mais
de 8,5 mil pastores brasileiros, e presidente da Editora Central Gospel e da gravadora
Central Gospel Music. É um dos líderes evangélicos que mais vendem CDs, DVDs e livros
religiosos para evangélicos e não evangélicos no País. Há 30 anos ininterruptos na
1731
televisão, seu programa “Vitória em Cristo” é exibido todos os sábados em três emissoras:
Bandeirantes, Rede TV e CNT; e de segunda a sexta-feira, apenas na CNT. A versão
dublada é exibida em mais de 200 países (Mídia gospel, 11 abril 2013).
Sobre esta questão, Silas se posiciona contra a união de pessoas do mesmo sexo, pois o
casamento está diretamente ligado a relações heterosexuais e tem como objetivo apenas a
perpetuação da espécie, é contra também, a adoção de crianças por gays, pois não acredita que
duas mulheres ou dois homens tenham a capacidade de desenvolver um ser humano (Mídia
gospel, 11 abril 2013).
No ano de 2008 liderou manifestações contra o projeto de Lei 122 diante o congresso
nacional, que objetiva criminalizar atitudes homofóbicas. Também articulou em campanhas
nas redes sociais, como no microblog Twitter em que convoca seus seguidores a enviar email
aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STJ) para que o órgão não reconheça a união
homoafetiva. Percebe-se então a postura de um ativista político contra os interesses do
movimento LGBTT e do público homossexual, posicionando nestas questões, com valores e
preceitos religiosos.
Em uma entrevista no programa De Frente com Gabi, apresentado pela jornalista Marília
Gabriela, Silas Malafaia, referindo-se a sua relação com o homossexual, afirma: “eu amo
homossexuais como amo bandidos” (Mídia gospel, 08 maio 2013). Esta resposta era feita ao
questionamento da apresentadora, ao entender como homofóbica, a posição do pastor.
Negava-se pela resposta, que o pastor era contra, diretamente, ao indivíduo homossexual, e
que não havia qualquer impessoalidade, apenas não se aceitara o comportamento que o
indivíduo realizava. Embora, o indivíduo realize a prática homossexual, Silas Malafaia,
demonstra ter afeto que independe da atitude. Fazia então, um esforço em diferenciar o
1732
indivíduo de suas atitudes, e de julgar o segundo independentemente da pessoa. No entanto,
ao comparar o homossexual com um bandido, o pastor demonstra também um juízo de valor,
na qual, entende-se a prática homossexual como desviante e pecaminosa. Sobre esse juízo de
valor, percebe-se, o realsamento desta idéia, em outros momentos de sua fala, como no espaço
eletrônico verdade gospel, onde atua como colunista.
A nós, evangélicos, como Igreja de Cristo, coluna e baluarte da verdade, cabe pregar o
evangelho e convocar os pecadores ao arrependimento. Mas a nós não cabe odiar ninguém.
Devemos amar o pecador e condenar o pecado. Porém amar não é aprovar nem justificar
comportamento errado. Existe uma grande diferença entre amar a pecador e concordar com
suas práticas (Verdade gospel, 16 jul. 2013).
Percebe-se no discurso, o pecado na relação afetiva entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas,
mesmo que ela seja errada, não se deve odiar aquele indivíduo que a comete, ao contrário, o
evangélico, segundo o pastor, deve amar a todos.
Defendo a si e aos evangélicos que situam a prática homossexual como algo errôneo, o pastor
afirma que não se trata de preconceito e nem homofobia, como é afirmado por homossexuais
e grupos do movimento LGBTT, e sim, de preceitos éticos, morais e espirituais. A lei de
Deus, que aparece na bíblia, segundo ele, aponta que uma pessoa só chegará ao “reino de
Deus”, além de outras “virtudes”, não praticar o ato homossexual ou, caso tenha cometido, se
arrepender do ato.
Em 1 Coríntios 6.10,11, está claro que nem os efeminados nem os sodomitas (ou seja, os
homossexuais passivos e os ativos) herdarão o reino dos céus. A menos que eles se
arrependam dessa prática abominável aos olhos de Deus e convertam-se a Cristo, serão
condenados a passar a eternidade no inferno, um lugar de pranto, dor e ranger de dentes
(Mateus 13.40-42; 24.51) (Verdade gospel, 16 jul. 2013).
A alternativa então, aquele que possui gestos e atitudes femininas (afeminado) e/ou aquele
que é homossexual, é se arrepender de seu ato pecaminoso, e buscar se converter na palavra
de Deus, que no caso, é mediada pela bíblia sagrada.
1733
Embora remédios e técnicas terapêuticas não possam transformar um homossexual em
heterossexual, se ele reconhecer seu erro, confessá-lo a Deus, pedir perdão e entregar sua
vida a Cristo, será justificado pelo sangue de Jesus, liberto do pecado que o domina e
transformado em uma nova criatura. Mas, para isso, é preciso, sobretudo, que o
homossexual tenha consciência da sua condição pecaminosa e queira dar um novo rumo à
sua vida. É uma decisão pessoal dele render-se à verdade, entregar-se a Cristo (Verdade
gospel, 16 jul. 2013).
Não existe um gene que determine que uma pessoa será homossexual. Os cromossomas XX
determinam que ela será do sexo feminino, e os cromossomas XY, que será do sexo
masculino. Portanto, essa tese de que o homossexualismo é genético é uma falácia; uma
mentira. Deus criou o ser humano como macho ou como fêmea. Ele estabeleceu que eles
teriam atração sexual um pelo outro e que, da relação sexual entre eles, nasceriam filhos
(Gênesis 1.27,28).
Aliás, é por causa desse princípio que a espécie humana tem subsistido. Se não houvesse
casamento entre homem e mulher, não seria possível a perpetuação da espécie (Verdade
gospel, 16 jul 2013).
Em Levítico 20.13, vemos que a pena na Lei mosaica para quem praticasse o
homossexualismo era a morte.
1734
No Novo Testamento, apesar de não haver mais a pena de morte, observamos que a morte
espiritual persiste para o homossexual, entregue por Deus ao que Paulo chamou, em
Romanos 1.28, de sentimento perverso (ARC) ou disposição mental reprovável (ARA).
Neste mesmo texto, o homossexualismo é denominado paixão infame; torpeza; erro. Leia 1
Timóteo 1.8-11 (NVI) (Verdade gospel, 16 jul. 2013).
Há muito tempo que venho dizendo sobre a diferença entre ativistas gays e homossexuais.
O segundo grupo quer viver apenas segundo a opção sexual que fizeram. O primeiro grupo
quer ter privilégios e direitos acima de toda a coletividade social. Querem calar qualquer
um que se opõe às suas práticas e objetivos, querem ter a liberdade para fazer o que bem
entenderem, não respeitando os valores e princípios de ninguém. Eles clamam por direitos,
mas o objetivo é cercear o direito dos outros e ter direitos para anarquizar, esculhambar,
denegrir e enxovalhar quem quer que seja (Verdade gospel, 25 jul. 2013).
2
“Mandado de injunção coletivo, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros –
ABGLT, em que se requer, nuclearmente: i) o reconhecimento de que ‘a homofobia e a transfobia se enquadram
no conceito ontológico-constitucional de racismo’ ou, subsidiariamente, que sejam entendidas como
‘discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais’; ii) a declaração, com fundamento nos incisos
XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de mora inconstitucional do Congresso Nacional no alegado
dever de editar legislação criminal que puna, de forma específica, a homofobia e a transfobia, ‘especialmente
(mas não exclusivamente) a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a conduta de ‘praticar, induzir
e/ou incitar o preconceito e/ou a discriminação’ por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real
ou suposta, da pessoa”. Ver: Ativistas gays fazem manobra jurídica para aprovar privilégios; entenda. Verdade Gospel
Disponível em <http://www.verdadegospel.com/ativistas-gays-fazem-manobra-juridica-para-aprovar-privilegios-
entenda/?area=1>. Acesso em 17 ago. 2013.
1735
Os comentários feitos no portal verdade gospel, logo abaixo da fala de Silas Malafaia,
demonstram, no geral, apoio ao pastor. Buscam, também, reconfortá-lo, pois é perseguido por
homossexuais, que insistem em não aceitar a “verdade de Deus”.
Segundo o comentarista, a retribuição ao pastor, por ser perseguido por homossexuais e por
lutar em mostrar a “verdade”, será recompensada por Deus, que o honrará.
È tempo da igreja abrir a boca, somos cidadãos temos o direito de expressar nossa
opinião,acorda igreja vamos orar por um propósito, neutralizar as forças malignas deste
mundo. Isso já é uma perseguição com o Pastor.Vamos orar POVO DE DEUS,ACORDA
BRASIL !!! NÃO CALE PASTOR SILAS É O NOSSO DIREITO DE FALAR. DEUS
VAI TE HONRAR (Verdade gospel, 11 abril 2013).
Pastor estão tentando fazer com o senhor o mesmo que fizeram, com o apostolo Paulo. O
mundo sabe que DEUS fez Adão e EVA , não ADÃO E IVO.
Estas pessoas, vão ter que prestar contas a DEUS por tocar em um ungido do SENHOR. E
estes gays tem que tomar vergonha na cara e se aceitar como DEUS os vez .E não ser o que
não são povo dentes, que precisa de ajuda principalmente a de DEUS, para serem libertos,
destes atos demoníacos (Verdade gospel, 11 abril 2013).
Os “atos demoníacos” são as relações entre duas pessoas do mesmo sexo. Assim como no
discurso de Silas, o modelo binário, homem e mulher, é apontado também pelos seus
seguidores, como o único provindo da Deus.
Além de o homossexual estar fadado a ser punido “quando for prestar contas com Deus”,
pode sofrer também, punições de Deus antes de sua morte. Intervindo Deus, sobre a injustiça
para aqueles que defendem valores e princípios religiosos.
Nosso amado Pr. Silas, o senhor está debaixo dos nossos joelhos. Deus é contigo, eu não
tenho dúvidas! Essa perseguição ignóbil e ultrajante será resolvida pelo Deus dos céus que
não se deixa escarnecer. Que absurdo e ignorância essa… Quer dizer que não se pode mais
defender valores e princípios? Eu não posso acreditar! Então, defender valores e princípios
é ser retrógrado, quadrado, intolerante e obscuro!!! Tem nada não, Deus está contemplando
tudo e, certamente, entrará em ação (Verdade gospel, 11 abril 2013).
1736
Forja-se um modo de respeito ao homossexual, que se aceita o indivíduo, mas não a sua
prática. Como foi dito anteriormente, o homossexual é visto como uma pessoa que busca
privilégios, além de destituir valores, percebe-se na fala do comentarista, como o cristão não
deve se posicionar. Sendo “imundo” um cristão aceitar tais imposições.
basta basta basta …. ja tirou Deus das escolas, agora rediculariza as familia, casando
pessoas do mesmo sexo e permitindo que adote criança, isso e totalmente imundícia.
e uma vergonha pra qualquer pais aceitar tal feitos, os pais que aceita isso esta sem respeito.
Respeitamos os homem ou as mulheres que querem o mesmo sexo, Mais nao venha impor
leis para aceitar isso , SOU TOTALMENTE CONTRA.
cristao aceitando isso, e uma vergonha, Imundo! naquele grande dia nao vai ter
misericórdia (Verdade gospel, 11 abril 2013).
Vergonha nimguem mais pode simplesmente não gostar de gays não,pois quando alguem
pensa assim eles chamam logo de preconceituoso! Pois digo-lhes,se algum gay vier dar em
cima de mim ou tentar alguma coisa de indecente em referencia a mim “SERA MENOS
UM GAY NA TERRA” (Verdade gospel, 11 abril 2013).
Nesta disputa de poder, há uma configuração entre o “bem” e o “mau”. Entre os dois lados,
Silas ocupa espaço do “bem” e os homossexuais ocupam o espaço do “mau”.
Figuras malignas religiosas são atribuídas aos homossexuais nos discursos dos comentaristas,
que revelam a luta entre o “bem” e o “mau”.
Delimitamos esta discussão à população LGBT. No entanto, este corte feito em nossa
pesquisa, não restringe a questão á este grupo, pois abrange grande parte da população, em
geral, as minorias que não se encaixam nos modelos de uma sociedade normativa.3
3
Amylton de Almeida aponta, na década de 1980, que epiléticos, hippies, mães solteiras, loucos, homossexuais,
delinquentes, prostitutas, vagabundos, drogados, alcoólatras, surdos-mudos, tísicos, exibicionistas, anões,
1737
O preconceito, manifestado de forma diferente nos grupos, parte do mesmo princípio, a
anormalidade como fator de depuração e de exclusão. Neste caso, aparecendo recentemente
na história, a heterossexualidade é o elemento normalizador.
Considerações finais
Os líderes religiosos de nosso tempo, assim como em outros tempos, são firmes e dispostos a
demonstrar a verdade absoluta, e com isso, carregam multidões consigo. Após textos
calorosos na coluna de Silas Malafaia, os comentários, demonstram o apoio daqueles que se
aconchegam nas ideias conservadoras e que possuem o desejo da verdade.
O que podemos perceber, de um modo geral, neste trabalho, é o julgamento das minorias
sexuais em nome de Deus. Chamamos atenção ao discurso persuasivo sobre o indivíduo que
se torna pecador pelos pensamentos e atitudes imorais. Nota-se também, ao longo do trabalho,
os discursos normativos que são dirigidos à outra forma de pensar ou de se comportar,
motivando direta ou indiretamente, uma violência simbólica e/ou física. O fato de que não se
leprosos, sifilíticos, albinos, anarquistas, mulheres, impotentes, frígidas, os que se creem covardes, inconstantes
ou perigosos, os pecadores, os tímidos ou os que têm pênis pequeno (ou seja, ao menos metade da humanidade)
sentem-se culpados por haver transgredido a norma ou se sentem enfermos, anormais, tarados, por não terem se
ajustado em sua conduta, sentimentos e atitudes aos ditames da classe dominante. Ou, ainda, sentem-se
envergonhados ou humilhado por não corresponderem aos valores ou expectativas construídos socialmente
enquanto representações sociais sobre o “padrão ideal” do ser humano, seja do ponto de vista estético ou
comportamental. SOUSA NETTO, Miguel Rodrigues de. Homoerotismo no Brasil contemporâneo:
representações, ambiguidades e paradoxos. Tese (Doutorado em História Social), Programa de Pós-Graduação
em História, Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011, 14 p.
1738
tem atenção sobre estas violências por parte dos lideres religiosos, faz-nos pensar, que a
religião insiste em negar como consequência de seus valores.
Será que devemos ser todos iguais? Aos que não seguirem as verdades dos líderes estarão
correndo o risco de serem punidos por uma forma divina? Será que o modelo binário, que
garantirá a perpetuação da espécie, é único modelo criado por Deus? Estas são algumas
perguntas que podem ser feitas a partir das idéias de Silas, expostas aqui.
1739
contradiz, aos sentimentos de ódio e repulsa frente à diversidade sexual, que por sua vez,
podem ser observados na sessão comentários do portal eletrônico Verdade gospel e neste
texto.
Referências
Internet
A intolerância vergonhosa do ativismo gay; Pr. Silas comenta. Verdade gospel. Disponível em
<http://www.verdadegospel.com/a-intolerancia-vergonhosa-do-ativismo-gay-pr-silas-
comenta>. Acesso em 25 jul. 2013.
Ativistas gays fazem manobra jurídica para aprovar privilégios; entenda. Verdade gospel. Disponível em
<http://www.verdadegospel.com/ativistas-gays-fazem-manobra-juridica-para-aprovar-
privilegios-entenda/?area=1>. Acesso em 17 ago. 2013.
Eu amo os homossexuais como amo os bandidos, diz Silas Malafaia à Gabi. Mídia gospel.
Disponível em <http://www.midiagospel.com.br/eu-amo-homo-como-amo-bandidos-diz-
silas-malafaia-a-gabi>. Acesso em 08 maio 2013.
Silas responde a intolerantes gays que querem cassar seu registro de psicólogo. Verdade
Gospel. Disponível em <http://www.verdadegospel.com/pr-silas-responde-a-intolerantes-
gays-que-querem-cassar-seu-registro-de-psicologo/>. Acesso em 11 abril 2013
1740
1741
Intolerância religiosa no Brasil: características, estratégias
de enfrentamento e tendências no Serviço Social
Graziela Ferreira Quintão4
Introdução
4
Mestre em Política Social pela UFF Assistente Social do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Contato: grazielaquintao@yahoo.com.br.
1742
Intolerância religiosa no Brasil: características e estratégias de enfrentamento
As tendências no cenário religioso brasileiro apontam para uma redução dos católicos. De
acordo com o censo demográfico de 2000, se em 1970 os católicos representavam 93,1% da
população, esse percentual foi caindo a cada década, chegando em 1991 a 83,3% e em 2000
representavam 73,8% da população.5 Em 2010, seguindo a tendência de redução observada
nas duas décadas anteriores, e ainda mantendo-se maioria, os católicos passaram a representar
64,6% da população. Em paralelo, foram nessas últimas décadas que houve maior
crescimento do conjunto de evangélicos, somando em 2000, 26.184.941 pessoas (MARIANO,
6
2004). A consolidação deste crescimento dos evangélicos foi verificada em 2010, quando
passaram a representar 22,2% da população, 42,3 milhões de pessoas.7 Nas duas últimas
décadas do século XX, o grupo dos “sem religião”, assim como os evangélicos, apresentou
maiores taxas de crescimento, constituindo hoje 7,3% da população (idem). Já os cultos afro-
brasileiros vêm sofrendo uma perda lenta, gradual e contínua de seguidores nas duas últimas
décadas do século XX. Em 2000, apenas 0,34% dos brasileiros se declararam pertencentes à
umbanda ou candomblé (PIERUCCI, 2004), percentual que se manteve em 2010.8
Toda a agitação que tem sido vista no cenário religioso brasileiro é, de acordo com Pierucci
(2008), nada mais que o resultado da ampla liberdade de que gozam os profissionais e
ativistas de toda e qualquer expressão de crença religiosa em nossa República. Desde a
constituição republicana,
“o Brasil passou por um longo processo histórico-religioso, gradual, mas constante, quase
imperceptível em seus avanços paulatinos, mas muito bem marcado no traçado da trajetória
percorrida sem retorno à vista: a progressiva demissão do estamento eclesiástico católico, a
destituição das regalias e precedências monopolísticas a ele reservadas por quatrocentos
anos como religião oficial, do período colonial até o fim do Segundo Império.”
(PIERUCCI, 2008, p. 14)
Nesse sentido, a evolução no ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito à liberdade
religiosa, gradativamente ampliou o exercício desse direito. No período imperial, a
5
“O exato seria dizer que mostra isso uma vez mais, como, aliás, tem feito sempre, compassando a intervalos
regulares de dez anos um declínio que é constante, persistente... parece impor-se ao catolicismo brasileiro como
um fado: inexorável.” (PIERUCCI, 2004, p. 18).
6
Dentre estes, foram os pentecostais os que mais cresceram; de 1991 a 2000 saltando de 8.768.929 para
17.617.307 de adeptos, entre 1991 a 2000. Ou seja, o número de adeptos saltou de 5,6% para 10,4% da
população (idem).
7
Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias>. Acesso em 14 jul. 2012.
8
Disponível em <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias>. Acesso em 14 jul. 2012.
1743
Constituição de 1824 estabelece a religião católica como oficial, embora estenda às outras
religiões o direito à liberdade. Contudo, o exercício dessa liberdade se restringia ao âmbito
doméstico, o que significava a existência de uma inferioridade jurídica dessas religiões em
relação à Igreja Católica.9
Corrêa (2008) sinaliza que apesar das proclamações liberais da Constituição de 1824 e do
Código Criminal de 1830, o direito ao culto doméstico era válido para os protestantes
europeus, e não para os africanos, sendo que o sistema de controle das religiões de origem
africana ficava, na prática, à mercê das autoridades locais. De acordo com Silva Jr. (2007), a
história do colonialismo e o escravismo no Brasil confunde-se com a história da subordinação
do direito penal aos interesses dos senhores de engenho, na medida em que a lei, sobretudo no
Código Criminal do Império, não se limitava a garantir o trabalho e a subjugação do negro
escravizado. “Mais do escravizar e explorar o africano, era necessário importa-lhe uma
religião, devassar sua identidade cultural, convencendo-o do poder de vida e de morte de que
dispunham seus algozes.” (SILVA JR., 2007, p. 308)
9
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em 25 jul.
2013.
10
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em
25 jul. 2013.
11
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm> Acesso em
25 jul. 2013.
12
Os avanços verificados estão no seu artigo 141, que assegurava aos brasileiros e estrangeiros residentes no
país a liberdade e o direito à assistência religiosa.
13
Conforme mostra em seu art. 153, § 1º, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho,
credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.” Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc01-69.htm> Acesso em 25
jul. 2013.
1744
rigorosamente laico, vedando de um lado, que o mesmo estabeleça alianças ou relação de
dependência com qualquer culto; e de outro, que dificulte o funcionamento de culto de
qualquer natureza (SILVA JR.º, 2007). Essa transição e consequente superação do discurso
teológico-confessional sobre a liberdade religiosa para um patamar jurídico-constitucional
trouxeram aos Estados contemporâneos, a exemplo do Brasil, como refere Corrêa (2008, p.
44) “uma possibilidade de alargar o âmbito de proteção desta liberdade, realçando o debate
em torno da igualdade de condições neste aspecto para todos os cidadãos.”
14
Dentre os quais, a imunidade tributária do templo; a inscrição dos sacerdotes no sistema de seguridade social;
o reconhecimento da validade civil do casamento realizado nos templos; o direito de sepultar os sacerdotes no
templos, entre outros. Grande parte dos sacerdotes, geralmente pessoas de origem extremamente humilde,
envelhece e morre sem ter acesso à previdência social.
15
[PDF] Declaração de Durban – OAS – Disponível em < www.oas.org/.../ ..>. Acesso em 25 jul. 2013.
1745
mente desses povos as suas lembranças, suas concepções de mundo, tradições e crenças, e os
seus deuses.” (DA SILVA, 2009, p. 17) As religiões afro-brasileiras foram perseguidas pela
igreja católica ao longo de quatro séculos, e pelo Estado republicano, sobretudo na primeira
metade do século XX, quando este utilizou a repressão e controle social e higiene mental. Da
mesma forma, também pelas elites sociais, que nutrem um misto de desprezo e fascínio pelo
exotismo, que sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus
descendentes. Mas desde a década de 1960, quando essas religiões conquistaram relativa
legitimidade nos centros urbanos, não se tinha conhecimento de agentes antagônicos tão
empenhados em desqualificá-las, como os evangélicos (neo)pentecostais. 16
16
Silva (2007) destaca as três ondas, fases ou momentos históricos que dividem o movimento pentecostal, que
surgiu no Brasil no início do século XX, sobretudo a partir das décadas de 1950 e 1960. Nessa época, esse
movimento religioso expandiu a base de suas igrejas, adensando o número de denominações e ganhando maior
visibilidade. A segunda onda do pentecostalismo se distinguiu pela ênfase do dom da cura divina, e a terceira,
iniciada nos anos 1970, com grande projeção nas duas décadas seguintes, foi marcada por diferenças
significativas no perfil das igrejas surgidas e nas práticas adotadas, com o acréscimo do prefixo latino “neo”, o
neopentecostalismo assumiu um abandono( ou abrandamento) do ascetismo, valorização do pragmatismo,
utilização da gestão empresarial na condução dos templos, ênfase na teologia da prosperidade, utilização da
mídia para o trabalho de proselitismo em massa e de propagandas religiosas, e centralidade da teologia da
batalha espiritual contra as outras denominações religiosas, sobretudo, as afro-brasileiras e o kardecismo.
17
Segundo o autor, “o termo “ataque” está sendo usado no sentido de uma investida pública de um grupo
religioso contra outro. Certamente as razões desse ataque se justificam, do ponto de vista do “atacante”, por
convicções religiosas. E deste ponto de vista, o termo é visto como sinônimo de “evangelização”, “libertação”,
etc. Faz parte aliás, de um léxico “belicoso”, no qual figuram outros termos como “batalha”, “guerra santa”,
“soldado de Jesus” e outros, presentes no discurso neopentecostal que descreve suas ações contra o demônio e os
sistemas religiosos que supostamente o cultuam. Do ponto de vista dos grupos afro-brasileiros, obviamente o
ataque possui inúmeros outros significados, sendo visto como sinônimo de “intolerância religiosa”,
“preconceito”, “discriminação”, etc.”(SILVA, 2007, nota 17).
18
Como o “Fala que eu te escuto”, “Ponto de Luz”, “Pare de sofrer”, “Show da Fé”, entre outros, transmitidos
pela Rede Record e por outras emissoras que têm seus horários comprados pelas igrejas (neo)pentecostais.
1746
religiões de origem africana ao lado de religiões hegemônicas como o cristianismo, dando-
lhes o mesmo espaço e legitimidade destas, gerou protestos de educadores e políticos
evangélicos. Além disso, a ofensiva se realiza através de publicações de igrejas (neo)
pentecostais, como o livro “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios?”, 19 que foi objeto
20
de uma Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal da Bahia, por conter de forma
recorrente, afirmativas preconceituosas e discriminatórias desferidas contra outras formas de
manifestações religiosas e credos, em especial, os afro-brasileiros. A Justiça Federal de 1.ª
Instância da Bahia deferiu a liminar, tal como requerida pelo Ministério Público Federal. 21
Contudo, a venda do livro foi liberada pelo Supremo Tribunal Federal - a partir de recursos
reivindicados pelos acusados - que defendem a liberdade de expressão - e atualmente é
possível adquiri-lo em lojas, templos ou pelo site da IURD.
Diante desses ataques, as reações dos grupos religiosos afro-brasileiros e de seus aliados, que
vinham sendo quase insignificantes nas duas últimas décadas, têm crescido, embora não
representem “um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos, que
cada vez mais se empenham em ocupar espaços estratégicos nos meios de comunicação e nos
poderes Legislativo e Executivo.” (SILVA, 2007, p. 18) Na última década, porém, algumas
entidades federativas de religiões afro-brasileiras têm procurado estabelecer interlocução com
agentes do poder público, movimento negro, organizações não governamentais, etc.
1747
endereçadas ao poder público, em especial aos sistemas de segurança pública e de justiça –
representando um diferencial deste movimento social.
Nesse sentido, a CCIR tem ensejado ações de mobilização popular, que visam à discussão de
propostas de políticas públicas específicas relativas à questão da intolerância religiosa. O
evento mais importante promovido pela Comissão, a “Caminhada em Defesa da Liberdade
Religiosa”, que está em sua quinta edição e é uma passeata realizada na cidade do Rio de
Janeiro, na orla de Copacabana (local escolhido por proporcionar maior visibilidade para o
evento), na qual as pessoas levam cartazes e faixas com suas reivindicações, no que diz
respeito ao campo religioso do acesso a direitos relacionados à liberdade religiosa. Os
participantes da Caminhada são convidados a usar roupas brancas ou aquelas características
de sua religião, o que possibilita que sejam identificadas várias denominações religiosas e
étnicas. A Primeira Caminhada foi realizada no dia 20 de setembro de 2008 e reuniu cerca de
vinte mil pessoas, contando com comitivas de onze Estados e duzentos e trinta e cinco ônibus
de oitenta e sete municípios fluminenses. No processo de mobilização da Caminhada, a
Comissão buscou dialogar com a Sociedade Beneficente Muçulmana, a Federação Israelita do
Estado do Rio de Janeiro, dentre outras, trazendo para o movimento grupos que não
participaram da constituição da Comissão, mas que também aderiram à reivindicação de
políticas públicas voltadas ao tema, o que formou o Fórum de Diálogo Inter-Religioso, ainda
em 2008, agregando judeus, muçulmanos, hare krishnas, budistas, umbandistas, ciganos,
candomblecistas, entre outros. Esse Fórum objetiva a difusão, ampliação do debate e
mobilização da sociedade em defesa das garantias constitucionais relativas à liberdade de
expressão e consciência religiosa.
Nos eventos mencionados, foi distribuído o Guia de Luta contra a Intolerância Religiosa e o
Racismo, que trata de temas como a discriminação racial, intolerância e discriminação
religiosa, assim como informações sobre a legislação. Neste sentido, busca orientar as pessoas
para que elas possam identificar atos de intolerância e registrá-los nas delegacias de polícia,
22
como também esclarecer os policiais sobre a Lei Caó e a maneira adequada de tipificar os
crimes dessa natureza.
Tais ações da CCIR demonstram, que em pouco tempo de existência, conquistou uma maior
visibilidade e debate no espaço público, do que movimentos existentes há mais tempo em
22
Lei 7.716/89 - Carlos Alberto de Oliveira - que a partir das alterações que sofreu, passou a definir o crime de
intolerância religiosa.
1748
outras regiões do país, visto ter ensejado a criação de um Plano Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa. O Plano Nacional incluiria questões, como a implementação de lei que
torna obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira; proibição por parte
do governo federal a empresas e órgãos públicos de anunciarem ou patrocinarem programas
de emissoras que transmitem ou produzem programação de conteúdo discriminatório ou
proselitista; a punição pelo Ministério das Comunicações, com a retirada de programação do
ar e aplicação de multas às emissoras de televisão e rádio que promovam a intolerância
religiosa; a atualização de todas as delegacias do país para o uso da Lei 7.716/89 (Lei Caó), e
a realização de um censo nacional das casas de religião de matriz africana em parcerias com
universidades em cada estado. Contudo, a possibilidade de veto pela Bancada Evangélica no
Congresso Nacional indica que há grandes desafios colocados para esse movimento, na
concretização de políticas públicas.
1749
social e religião.23 Foram verificados, 27 cursos de pós-graduação stricto sensu na área de
Serviço Social. Em relação a grupos e projetos de pesquisa, foram encontrados 04 específicos
sobre temas e questões referentes à religião. Contudo, não se pode afirmar que estes grupos
sejam únicos e nem que outros também estudem a questão de forma transversal a outros
temas. Isso porque a base web ainda é recente e as atualizações são ainda muito limitadas nos
sites de âmbito acadêmico. No levantamento, sobre a produção nos programas de pós-
graduação foram encontrados 34 estudos, sendo que nenhum deles tratou sobre questões
referentes à liberdade ou intolerância religiosa.
A maioria dos estudos levantados foi produzida em períodos mais recentes, tendo sido
encontrados 14 estudos no período de 1991-2000 e 17 estudos entre 2001 -2010. Quanto ao
nível acadêmico, são 27 dissertações de mestrado e 07 teses de doutorado. Em sua maioria,
foram produzidos em universidades católicas, onde foram encontrados 20 estudos. Em relação
ao conteúdo dos estudos, foi verificado, a partir da leitura mais atenta dos resumos e
sumários, que aparecem mais os temas referentes à Igreja Católica e história do Serviço
Social; criação das primeiras escolas de Serviço Social; pastorais da criança e da juventude;
assistência social católica; comunidades eclesiais de base, e recentemente, ainda que de forma
pontual, temas sobre a relação do serviço social com a religião; dependência química, gênero
e religião; violência; igrejas evangélicas e secularização; assistência social evangélica, dentre
outros.
24
A ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social), entidade
acadêmico-política e científica, tem o papel de propor e coordenar a política de formação
profissional na área de Serviço Social, com o foco central, na formulação e implementação de
estratégias que permitam a articulação entre a graduação e a pós-graduação, e ainda, a
definição de uma política de pesquisa para a área de Serviço Social que priorize eixos, temas e
abordagens, que favoreçam a qualificação da produção e fortaleça e consolide o Serviço
Social como área de produção e conhecimento.
1750
que perpassa o debate em todos eles é a vinculação entre o projeto ético-político profissional e
uma perspectiva societária emancipadora, orientada por uma compreensão do ser social como
um ser sócio histórico auto constituído pelo trabalho e criador da cultura, em suas diversas
formas de manifestações e fruições. 25
Os GTPs se constituem a partir de grandes eixos temáticos, que comportam dimensões como
a democracia, cidadania, esfera pública, direitos humanos, dentre outros. Contudo, na
sistematização proposta para as áreas dos GTPs novamente há uma ausência do tema da
religião nas áreas propostas, o que desfavorece a abertura para a construção de um espaço
privilegiado para a reflexão teórica e estímulo para a elaboração, produção e circulação de
ideias e conhecimento acerca de temas sobre a religião; religiosidades; espiritualidade;
conflitos religiosos; etc, e suas influências na sociedade e no Serviço Social, e mais
especificamente, no exercício profissional dos assistentes sociais.
No que diz respeito ao posicionamento do Serviço Social em relação aos movimentos sociais
que hoje direcionam suas lutas para o direito à liberdade religiosa e reivindicam políticas
públicas que combatam a intolerância religiosa e promovam a valorização de expressões e
culturas dos grupos religiosos mais atingidos, foi verificada no website do CFESS (Conselho
Federal de Serviço Social), a página do ‘CFESS Manifesta’ 26
– onde estão disponíveis os
principais posicionamentos políticos da categoria. Foram verificados todos os manifestos
disponíveis, e entre as várias questões abordadas nos mesmos, não se encontrou temas
relativos ao direito à liberdade religiosa ou combate à intolerância religiosa.
Considerações finais
“Estes instrumentos possuem um caráter menos “instrumental” (no sentido de ser algo que
se utiliza para ajudar a atingir um resultado concreto) e mais processual, pois a mediação se
25
Disponível em <http://www.abepss.org.br/briefing/documentos/GTPs_Novembro_de_2009_Final.pdf>.
Acesso em 25 jul 2013.
26
Disponível em <http://www.cfess.org.br/publicacoes_manifesta.php>. Acesso em 25 jul. 2013.
1751
constitui em procedimentos, atitudes, posturas que visam levar os homens a produzir novas
atitudes” (TRINDADE, 2001, p.05).
São instrumentos diferentes daqueles que medeiam a produção material, o que significa, que
eles não trazem em si uma dinâmica de aplicação que, se seguida à risca, proporcionará a
consecução daquilo que se planejou. “Os aspectos relativos à relação
subjetividade/objetividade são muito mais decisivos, já que os resultados almejados se
referem à mudança na consciência de outras pessoas, na mudança de seus comportamentos.”
(idem) A mediação se realiza menos em decorrência da configuração e organização da
técnica, e mais em decorrência da postura e atitude do sujeito que age. O que explica o fato de
tais instrumentos e técnicas sociais só adquirirem conteúdo à proporção que são postos em
movimento pela subjetividade. Nesse sentido, o alcance dos resultados pretendidos é muito
mais incerto. Há uma diminuição das possibilidades de controle do processo de
desenvolvimento da atividade e dos resultados. Conforme nos diz a autora,
“Dessa forma, as técnicas não são portadoras de uma capacidade imanente de alcançar
determinados resultados, pois são mobilizadas a partir da capacidade teleológica dos
sujeitos, no sentido de pôr finalidades, a partir das necessidades presentes na realidade a ser
transformada. Portanto, há um conteúdo e uma direção social próprios ao uso das técnicas,
que impossibilita qualquer consideração sobre uma possível neutralidade técnica.”
(TRINDADE, 2001, pp. 05-6, grifo da autora).
1752
O posicionamento político da principal entidade representativa do Serviço Social sugere que,
embora a profissão tenha avançado bastante em seus últimos Códigos de Ética sobre a questão
da religião, hoje defendendo como um dos seus princípios fundamentais; o exercício do
Serviço Social sem ser discriminado nem discriminar, por questões de religião,27 não há,
contudo, uma luta pelo reconhecimento deste direito, em específico, sugerindo uma
hierarquização da escala de direitos dentro da profissão, onde o direito a pertencer a uma
religião e exercer uma identidade religiosa não é objeto de nenhum posicionamento nas
entidades da profissão e, portanto, não recebe prioridade em seu reconhecimento e garantia. O
estudo sugere que a superação de tais limitações parece estar na inclusão de questões
referentes à religião e à espiritualidade nos espaços de debates acadêmicos e profissionais do
Serviço Social.
Referências
27
Assistente Social: ética e direitos. Coletânea de Leis e Resoluções. 4.ªed., CRESS 7.ªR-RJ, 2007.
1753
SILVA, Vagner Gonçalves da. (org). Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras:
Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo.
EDUSP: São Paulo, 2007.
SILVA JR.º, Hédio. Notas sobre o sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil. In:
SILVA, V. G. da. (org). Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do
ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. EDUSP: São
Paulo, 2007.
Internet
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jul. 2012.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituiçao24.htm Acesso em 14 jul.
2012.
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891).
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm Acesso em
12 out. 2012.
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm Acesso em
12 out. 2012.
Emenda Constitucional n.º 01 (de 17 de outubro de 1969). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc01-69.htm
Acesso em 12 out. 2012.
Declaração de Durban. Disponível em:
http://www.oas.org/dil/port/2001%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de
%20A%C3%A7%C3%A3o%20... Acesso em 12 out. 2012.
Ação civil pública com pedido de medida liminar em face de Edir Macedo Bezerra.
Disponível em: www.prsp.mpf.gov.br/.../Acao%20Civil%20Publica%20 Acesso em 24 nov.
2011.
Deferimento de medida liminar em face de Edir Macedo Bezerra. Disponível em:
http://www.prba.mpf.gov.br/links-uteis/manifestacoes/acoes/liminar_universal_.pdf Acesso
em 24 nov. 2011.
Grupos Temáticos de Pesquisa da ABEPSS. Disponível em:
http://www.abepss.org.br/briefing/documentos/GTPs_Novembro_de_2009_Final.pdf Acesso
em 02 fev. 2012.
CFESS Manifesta. Disponível em: http://www.cfess.org.br/publicacoes_manifesta.php Acesso
em 25 jul. 2012.
1754
1755
GT16 – Marketing, espetáculo e ciberespaço:
entre diversidades e (in)tolerâncias religiosas
Coordenador/a
Comentadores
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Emerson Sena da Silveira da Religião pela mesma instituição.
Doutor em Ciência da Religião pela UFJF.
Professor no Programa de Pós-Graduação Stewart M. Hoover
da mesma instituição. Professor da University of Colorado.
Diretor do Center of Media, religion and
Leonildo Silveira Campos Culture da mesma instituição.
Doutor em Ciências da Religião pela
UMESP. Professor e Coordenador do
Resumo
1756
A internet e seus perigos:
individualismo e poder entre as Testemunhas de Jeová
Suzana Ramos Coutinho1148
1. Introdução
1148
Pós-doutora pela Cambridge University e Ph.D em estudos da Religião pela Lancaster University, Inglaterra.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião no Mackenzie. Contato:
sucoutinho@gmail.com.
1757
1916), um presbiteriano convertido ao adventismo que passou a reinterpretar os textos
bíblicos. Baseado nos livros de Daniel e Apocalipse, Russel fixou o fim do mundo para o ano
de 1874 e/ou quando o movimento atingisse 144 mil adeptos. Após sua morte, Russel foi
substituído por Joseph Franklin Rutherford (1896-1942), que rebatizou oficialmente a religião
como hoje a conhecemos, Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, popularmente
identificados como Testemunhas de Jeová. Russel reinterpretou a idéia dos 144 mil eleitos à
Doutrina da Grande Multidão, onde estes 144 mil são escolhidos para reinar com Cristo no
céu e as demais Testemunhas viverão na Terra sob o domínio de Cristo, como seus súditos.
Uma das características mais marcantes das Testemunhas de Jeová é a importância dada à
divulgação, transformando suas publicações e comunicação de textos em aspectos de grande
prioridade. Outra característica relevante da atuação deste grupo reside no fato de possuírem
uma estrutura altamente centralizada e hierarquizada, “refletindo o controle centralizado de
suas atividades e do pensamento de seus membros” (FAILLACE, 1990:106).
1758
sincronizado com gravações musicais e diversos discursos gravados em fonógrafos. Segundo
informações do grupo, até o final de 1914 o fotodrama foi apresentado a milhões de pessoas
na América do Norte, Europa, Nova Zelândia e Austrália.
A terceira grande estratégia proselitista utilizada pelas Testemunhas de Jeová ocorreu assim
que a radiodifusão comercial foi iniciada. Em 1922 Rutherford (sucessor de Russel, que
faleceu em 1916) proferiu seu primeiro discurso pelo rádio, na Califórnia. Dois anos mais
tarde, em fevereiro de 1924, a emissora WBBR, de propriedade da Torre de Vigia, em Nova
Iorque, começou a operar. Com o tempo, o grupo passou a transmitir mundialmente através
do rádio programas e discursos bíblicos. Em 1933 “havia 408 emissoras que transmitiam a
mensagem do Reino em seis continentes” (PROCLAMADORES, p. 80).
1759
Esta diferença de foco pode ser notada no fato de as Testemunhas de Jeová não utilizarem
este novo espaço virtual possibilitado pela Internet. Possuem uma página na Web, porém
orientam os membros do grupo no sentido do máximo de evitação possível, considerando ser
um ambiente perigoso para sua moralidade e fé. Em uma de suas publicações, alertam: “É
necessária extrema cautela no uso da Internet (...) É preciso saber que muitos sites na Internet
foram criados por pessoas de intenções imorais ou desonestas. E muitos sites que talvez não
sejam imorais ou desonestos, como os grupos de bate-papo, são pura perda de tempo. Fique
longe de tudo isso!” (DESPERTAI, 22/01/2000, p. 21).
Dentro deste contexto, diversos grupos religiosos passam a se utilizar dos meios de
1760
comunicação como eficazes instrumentos de conversão e evangelização de fiéis. No Brasil,
instituições religiosas passaram a se apropriar deste mercado no final dos anos 70, com o
surgimento do que passou a se chamar de fenômeno da “Igreja Eletrônica”. Entre os
estudiosos deste fenômeno está Assmann (1986), que elaborou um estudo relacionado à
“Igreja Eletrônica” dos Estados Unidos e à sua influência na América Latina. Partindo do
cenário norte-americano, de intenso e crescente uso dos meios eletrônicos (especialmente da
TV) por lideranças religiosas que elaboravam um tipo de mensagem salvacionista
(supersavers), o autor desenvolve a idéia da necessidade de se conhecer o fenômeno que se
desenrola nos Estados Unidos para poder caracterizar melhor a originalidade dos programas
religiosos eletrônicos em nossa realidade. Este fenômeno foi absorvido por diversos grupos
religiosos brasileiros.
O início dos anos 80 foi marcado por uma “concorrência” na fé. Segundo Montero (1986), já
naquele período os protestantes mantinham 250 estações de rádio através do país. Pastores do
protestantismo histórico tinham uma presença semanal em 88 emissoras de TV e 43 rádios.
Os pentecostais aos poucos entravam em cena, com suas curas e milagres. A Igreja Católica
neste período, segundo a autora, já começava a se preocupar com o relativo atraso da
instituição nos meios de comunicação.
Internet às avessas
1762
adaptadas.
De início, acreditei que as Testemunhas de Jeová utilizariam (assim como diferentes salas de
bate-papo) a Internet como espaço missionário. A realidade, porém, revelou-se surpreendente.
Minha primeira impressão foi que as Testemunhas de Jeová simplesmente não “existiam” no
mundo virtual, especialmente quando comparadas com outros grupos religiosos. A discreta
presença do grupo limitava-se, durante a realização de pesquisa de campo em 2004, à página
oficial - disponível em diversos idiomas, conforme atuação do grupo nestes países. Este “não-
uso” da Internet possibilitou o início de minhas investigações com as Testemunhas de Jeová.
Durante 5 meses, acompanhei com regularidade as reuniões semanais e eventos importantes
do grupo em uma congregação situada no bairro da Lagoa da Conceição, em Florianópolis.
Um importante aspecto a ser considerado reside no fato de que a prática exercida pelo grupo -
o trabalho proselitista de visitação de casa em casa – contrapõe o “web-evangelismo”
praticado por usuários de canais de bate-papo vinculados a diferentes grupos religiosos.
Pensar na forma como as Testemunhas de Jeová se comunicam com o “mundo” hoje,
significa também considerar a necessidade de entender e conhecer como os membros do
grupo se comunicam entre si. Vale ressaltar, porém, que o entendimento deste processo de
comunicação não implica em realizar uma “etnografia da fala” nem tampouco uma
“etnografia da leitura” (LEWGOY, 1998). O que desejo aqui é apresentar ao leitor o modo
como as Testemunhas de Jeová se utilizam do vasto aparato bibliográfico disponível no
processo de evangelização e a opção pela não utilização de novas tecnologias.
1764
coisa, apesar de estarem vinculados) que missão está relacionada à primeira conversão e
dirigida aos “não-cristãos”, e que evangelismo está ligado à reconversão, à busca do próximo
afastado. Considero também que missão é mais amplo que evangelismo, sendo este parte
essencial da missão.
1765
experimentados em diferentes esferas da sociedade em geral, o ciberespaço e o campo
evangélico. O trabalho de Jungblut pode, neste contexto, contribuir em diversos aspectos,
considerando que este autor está pensando o indivíduo dentro de um quadro de
“transformações inéditas e tão globalmente impactantes” (Ibid., p. 42). As atitudes frente a
estas rápidas transformações sociais evidenciam, ainda mais, aspectos específicos do
indivíduo presente nas Testemunhas de Jeová em contraposição ao indivíduo na sociedade
moderna e contemporânea.
1766
que vicia mesmo.” (Despertai!, 22/01/2000). Não somente a pornografia é fonte de alerta,
mas também a pedofilia. As Testemunhas de Jeová alertam seus membros, em especial os
pais, contra estes exploradores de crianças: “Alguns pedófilos participam em conversas
eletrônicas interativas com jovens. Fingindo-se de crianças, esses adultos extraem nomes e
endereços de jovens insuspeitos” (Despertai!, 22/07/1997). Ou então: “Não há limites ou
restrições ao tipo de informação que os usuários da Internet podem implantar e acessar. Esse
é um ambiente onde geralmente as crianças e os adolescentes são alvos fáceis do crime e da
exploração (...)” (Ibid.). Seja como for, a liberdade que esse território oferece compromete em
sua visão não somente o aspecto moral da família como também propicia informações
apóstatas a respeito do grupo, preocupação central no discurso das Testemunhas de Jeová.
Exemplifico esta argumentação no que se refere ao uso do email com esta citação: “As
informações talvez lhe sejam passadas na forma de experiências ou comentários sobre nossas
crenças. Estas informações são passadas a outros que, por sua vez, também as passam adiante.
Geralmente, não há como confirmar as informações, que podem ser inverídicas. Os
comentários podem servir de fachada para divulgar idéias apóstatas” (Nosso Ministério do
Reino, novembro de 1999).
Esta fragmentação dirige nosso olhar para os considerados perigos do ciberespaço, claramente
confirmados no discurso das Testemunhas de Jeová. O fato é que o “eu” das Testemunhas de
Jeová é na verdade a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados (eu Testemunha de
Jeová = eu Organização). O “eu” individual não encontra espaço no ambiente virtual, já que é
absorvido pela identidade abrangente da Instituição, que em todos os momentos se apresenta
como mediadora destas informações. Isto é revelado pelo fato de a Instituição orientar os seus
membros a não disponibilizarem páginas na Internet, instruindo-os a remeterem qualquer
informação sobre a Sociedade à página oficial. Absorvem, desta forma, as expressões e
discursos individuais possivelmente elaborados neste meio virtual. Há não somente uma
relativização no uso da Internet, mas também uma clara intervenção da Instituição no sentido
de impedir qualquer possibilidade do eu Testemunha de Jeová vir a ser um indivíduo
autônomo.
Conclusão
1767
do processo missionário/proselitista, e em nome do grupo delimita e constrói espaços de ação
dos membros, estimulando o aperfeiçoamento de técnicas de persuasão e reivindicando para
si o domínio da vivência religiosa individual dos seus membros. A Bíblia, ao lado da
Sociedade, tem espaço privilegiado mas somente sob a ótica da interpretação oferecida pelo
próprio grupo. Estes elementos centrais do fazer missionário testemunha-de-jeová é que vão
determinar que outros aspectos – como o uso da Internet, por exemplo - não façam parte do
conjunto das ações missionárias do grupo.
É necessária extrema cautela no uso da Internet (...). É verdade que existem muitas fontes
úteis na rede, como bibliotecas, livrarias e canais noticiosos. Por exemplo, a Sociedade
Torre de Vigia (dos EUA) recentemente anunciou seu próprio endereço mundial na rede
(...) que serve para fornecer informações corretas a respeito das Testemunhas de Jeová.
1768
Ainda assim, deve-se reconhecer que existem influências extremamente prejudiciais na
Internet, incluindo pornografia e apostasia. O cristão deve ter em mente o conselho de
Paulo: ‘Isto, portanto, digo, e dou testemunho no Senhor, que não mais andeis assim como
também as nações andam na improficuidade das suas mentes... Tendo ficado além de todo
senso moral, entregaram-se à conduta desenfreada para fazerem com ganância toda sorte de
impureza. Mas vós não aprendestes que o Cristo seja assim’. (Efésios 4:17-20). (...) É
preciso saber que muitos sites na Internet foram criados por pessoas de intenções imorais ou
desonestas. E muitos sites que talvez não sejam imorais ou desonestos, como os grupos de
bate-papo, são pura perda de tempo. Fique longe de tudo isso! (Despertai, 8/01/1998).
Referências
ASSMANN, Hugo. A Igreja Eletrônica e seu Impacto na América Latina. Petrópolis: Vozes,
1986.
1769
outubro 2002. Disponível em: <http://www.naya.org.ar/congreso2002/ponencias/jonatas
_dornelles2.htm>. Acesso em 01 dez. 2007.
FAILLACE, Sandra T. Testemunhas de Jeová. In: LANDIM, Leilah (org.) Sinais dos
Tempos: Diversidade Religiosa no Brasil. In: Cadernos do ISER, n. 23, Rio de Janeiro, 1990.
JUNGBLUT, Airton Luis. Nos chats do Senhor: Um Estudo Antropológico sobre a Presença
Evangélica no Ciberespaço Brasileiro. Orientação de Ari Pedro Oro. Tese (Doutorado em
Antropologia Social), UFRS, Porto Alegre, 2000.
LEWGOY, Bernardo. Etnografia da Leitura e Fala num Grupo de Estudos Espírita. In: VIII
Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, 1998, São Paulo.
MARIANO, Ricardo. O Futuro não Será Protestante. In: Ciências Sociais e Religião/Ciencias
Sociales y Religión, ano 1, n. 1, Porto Alegre, p. 89-114, 2º sem. 1999.
1770
1771
A mão de Deus está aqui e na televisão: análise etnográfica dos
cultos da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), na Sede
Regional, em São Luís - MA
Introdução
O que de mais característico pode haver no fenômeno pentecostal é sem dúvida o processo de
ruptura e de continuidade. As cisões geram muito mais do que desafetos e escândalos, elas
geram novas instituições, novos líderes, novas possibilidades de escolha de qual igreja seguir.
1
Graduada em História pela UFMA. Membro do GP História e Religião. Orientada pelo Prof. Dr. Lyndon de
Araújo Santos. Contato: jaciara_jc@hotmail.com. Este artigo foi escrito com base no trabalho intitulado: “A mão
de Deus está aqui nas Cajazeiras”: a presença da Igreja Mundial do Poder de Deus em São Luís- Maranhão
(1998-2012). Monografia (Graduação em História), UFMA, São Luís, 2013.
1772
A Igreja Mundial do Poder de Deus é fruto desse processo. A ruptura entre o bispo Edir
Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e o bispo Valdemiro Santiago foi o
ponto de partida para que a IMPD nascesse.2
O agora líder da IMPD faz questão de esclarecer em seus relatos sobre a formação da igreja
que sofreu e sofre muita perseguição por parte daqueles, que segundo ele, não querem ver a
obra de Deus crescer, e por isso, tentam atrapalhar o seu ministério. A ênfase nas
perseguições e sofrimentos pelos quais ele passou para conseguir criar a IMPD é
constantemente frisada nos pronunciamntos do apótolo e demais bispos e pastores.
O apóstolo Valdemiro deixa a IURD, pois o outro ministério não mais seguia a verdade das
escrituras: “Já não via isso na igreja [...], pois não pregávamos mais a verdade. Mas era
2
Valdemiro Santiago foi membro da IURD por 18 anos. Passou pelos cargos de obreiro e pastor. Sua atuação
mereceu destaque, sendo consagrado a bispo em abril de 1992 (CAMPOS apud REZENDE, 2011, p. 71), até
chegar a membro do conselho de bispos, a cúpula da liderança da Universal em que os cargos são ocupados por
pessoas de alta confiança do bispo Edir Macedo. Sua figura tornou-se conhecida no meio da IURD no Brasil,
sendo enviado para realizar um trabalho missionário em Moçambique, no ano de 1996. Sobre sua ida para
Moçambique, de início tratava-se de ajudar na expansão da IURD no continente africano, porém, por sua
personalidade carismática estar ganhando cada vez mais espaço no seio da IURD, levanta-se a hipótese de que a
figura de Valdemiro passou ser vista como ameaça à liderança da IURD, tendo sido essa a motivação que levou
à transferência de Valdemiro para Moçambique, em 1996 (ALMEIDA, 2010).
3
Notícia veiculada no site http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2006/junho/08/bis.asp?bis=marciog, In: Bitun
2007, p. 49.
1773
obrigado a obedecer à direção. Oramos a Deus e ele colocou em nosso coração para que
saíssemos. Nada foi planejado”.4 Assim recebendo uma suposta “orientação divina”,
abandona o antigo ministério e passa a falar contra esse. Nesse momento, o apóstolo transita
próximo à figura do profeta weberiano.5“Se o profeta usurpa o poder graças à revelação
divina e predominantemente para fins religiosos (WEBER, 1999, p. 306), é para também se
distinguir dos sacerdotes e, ao mesmo tempo, colocar em dúvida o fato de estes últimos serem
os únicos portadores de um encargo divino especial” (ALMEIDA, 2005 p. 73).
O pesquisador Ricardo Bitun, durante uma conversa com um pastor da IMPD, soube que a
IURD, no ano de 2005 havia “desconsagrado” Valdemiro Santiago da condição de bispo
(BITUN, 2007, p. 65), numa tentativa de desautorizar Valdemiro Santiago, negando sua
autoridade religiosa, outrora outorgada pela própria IURD. O título de bispo, recebido ainda
na Universal, foi mantido em uso até dezembro de 2006. Na ocasião de um culto no dia 23 do
mesmo mês, Valdemiro Santiago foi consagrado a apóstolo, e sua esposa Franciléia recebeu o
título de bispa.6
Da cisão com a IURD, o cenário religioso brasileiro viu o despontar de uma nova e forte
liderança carismática e o surgir de uma nova institituição. Essa nova instituição faz uso de
uma estratégia para alcançar seu publico e estabelecer-se no extenso rol de igrejas
evangélicas.
Uma das razões para o crescimento dos pentecostais é a sua faceta neopentecostal:
4
Idem nota 3.
5
“Agente religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir de grupos marginais, produz por seu
discurso ou sua prática uma nova concepção religiosa,(...) onde a legitimação dessa inovação é conferida pelo
carisma (...) o carisma pessoal dá ao profeta legitimidade para contestar a ordem religiosa estabelecida e
instaurar uma nova ordem simbólica” (OLIVEIRA apud BITUN, 2007, p.66 )
6
Informação contida em José Tadeu de Almeida, 2008, p. 3. O pesquisador não deu mais detalhes de tal evento
ocorrido no dia 23 de dezembro, limitando-se a dizer que conversou com membros da IMPD em suas pesquisas.
O trabalho de Ricardo Bitun não faz menção a Valdemiro como apóstolo, mas como bispo, por ter sido escrito
anterior à sua “consagração”.
1774
brasileira para crescer de maneira extraordinária nas três últimas décadas (MENDONÇA,
2003, p.158).
A maioria dos fiéis da IMPD não é de novos convertidos, mas sim de pessoas que já passaram
por outras igrejas pentecostais. Segundo Ricardo Bitun,
Esses fiéis compõem um público flutuante, o qual caminha às margens da igreja instituição
e tem como principal característica a facilidade com que estabelecem o trânsito entre uma
igreja e outra à procura das melhores ofertas de bens religiosos. Nos últimos anos tem se
intensificado o chamado trânsito religioso. Fiéis que até então migravam apenas do
catolicismo e das religiões afro-brasileiras para o pentecostalismo, agora realizam seu
trânsito entre as igrejas neopentecostais, em busca de sua “bênção”, com especial destaque
a bênção da cura divina (BITUN, 2007, p. 5).
A entrada massiva dos pentecostais na mídia foi possibilitada ainda nos anos 80, pela política
implementada pelo governo Sarney, que segundo Baptista (2007), estes veículos foram
utilizados como “moedas de troca para os constituintes votarem conforme sua orientação. A
porcentagem de evangélicos que se beneficiou com este esquema equivaleu à que favoreceu o
conjunto maior de parlamentares” (BAPTISTA, 2007, p. 213).
Nesse contexto, a IMPD destaca-se mesmo sendo uma igreja com poucos anos de existência,
mas que já possui uma expansão significativa e um complexo sistema de meios de
1775
comunicação, onde a televisão ocupa um papel central, isso foi possível em parte pela grande
captação de recursos e pelo apoio de lideranças políticas.7
A IMPD inaugurou em 1º de agosto de 2008 a TV Mundial, na cidade de São Paulo. Por não
possuir concessão, a emissora transmite sua programação pela internet e pelas emissoras
locadas. No ano de 2008, dois anos depois da inauguração do Grande Templo dos Milagres, a
IMPD negociou o acordo que garantiu 22 horas de programação no Canal 21, pertencente ao
Grupo Bandeirantes de Comunicação (CARDOSO e LOPES, 2011, p. 55). A IMPD também
inaugurou, no ano de 2009, o complexo de estúdio de televisão chamado de Cidade Mundial:
A Mão de Deus Está Aqui, com uma área de 400 m².
7
Na comemoração do oitavo aniversário da IMPD, em São Paulo, o apóstolo Valdemiro fez um agradecimento
especial aos políticos ali presentes como o Deputado Gilberto Nascimento, por intermediarem a locação do
estádio, que quase foi vetada pela prefeitura, “e, graças a estes “homens de Deus” (políticos presentes) aquela
reunião se concretizara” (BITUN, 2007, p. 85).
8
Ver site www.gospelmais.com.br, In: Rezende (2011).
9
http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimas-noticias/2012/10/02/igreja-mundial-faz-acordo-com-band-e-fica-no-
canal-21-ate-2015.htm
1776
Fonte: SANTOS, 2013.
Segundo Elaine Regina de Oliveira Rezende, a IMPD obteve um salto de 715% no número de
templos entre os anos de 2007 e 2008. Segundo a pesquisadora foi nesse mesmo período que
a IMPD obteve um aumento no número de horas na programação televisiva (REZENDE,
2011, p. 133).
O número de templos da IMPD no Brasil ultrapassa a casa dos 2.000, fazendo- se presente em
todas as regiões do país, com uma concentração destes na região sudeste. Um número
expressivo se levarmos em consideração que se trata de uma igreja com 15 anos de existência.
Em nossas pesquisas bibliográficas achamos dados referentes à sua expansão nos anos de
2007 a 2011, o site da IMPD também oferece um levantamento do número de templos da
denominação. Os dados dos pesquisadores consultados trazem o que seriam os números da
IMPD relativos a 2007-2011:
1777
ANO NÚMERO DE TEMPLOS
2007 70
2008 500
2009 1279
2010 2092
2011 2114
Fonte: SANTOS, 2013
O site da IMPD traz a informação de que no início de 2013 seriam 2213 templos espalhados
pelos estados do país.10
Culto em ação
A presença e a atuação do poder de Deus, por meio do Espírito Santo, antes percebidas no
pentecostalismo clássico por meio da manifestação de transes e, principalmente, da
glossolalia, e no deuteropentecostalismo por meio da cura e do exorcismo, passam a ser
percebidas no neopentecostalismo a partir da triangulação da prática do exorcismo,
prosperidade e cura.
10
Ressaltamos que esses números podem variar conforme as dinâmicas próprias do campo religioso.
1778
A IMPD diferencia-se nesse momento, da imagem concebida como a do discurso
neopentecostal, ao trazer para o núcleo de suas práticas o milagre da cura, colocando em
segundo plano a prática do exorcismo. O culto é organizado em torno do momento de atuação
do poder de Deus, por meio da figura do líder spiritual, que atua na condução do fiel para a
obtenção do milagre. O mal ainda existe, as religiões afrobrasileiras e kardecistas ainda são
instrumentos de sua atuação, a possessão ainda manifesta-se nos cultos, contudo não toma o
lugar central, esse é dado à ação do Espírito Santo por meio da manifestação de milagres de
cura.
Diante dessa configuração, segundo Ricardo Bitun, tanto a IMPD como a IURD,
A IMPD, tal qual a IURD possui uma oferta de bens, estruturando suas práticas litúrgicas e
seus cultos consoantes às necessidades apresentadas por seu corpo de fiéis. A manutenção da
igreja, enquanto detentora do discurso religioso é embutida no rol dessas necessidades, uma
vez que o fiel necessita receber o milagre do poder de Deus por meio dos líderes da
instituição.
1779
A pregação da palavra, a oração e os cânticos, presentes desde os primórdios do cristianismo,
estão presentes na estrutura do culto na IMPD. Somam-se a estes a realização de campanhas
de oração, os momentos de dízimos e ofertas, o uso de objetos, os momentos de intercessão e
a ênfase nos testemunhos. Estes elementos foram instrumentalizados na dinâmica de atuação
da igreja. Faremos aqui uma breve exposição sobre a oração,o testemunho e a pregação.
A IMPD realiza longos períodos de oração, durante os seus cultos, como também, um
momento de oração, chamado de subida ao monte. Trata-se de uma espécie de ritual de
sacrifício do líder, em prol da igreja e dos fiéis. De acordo com o pesquisador Paulo Romeiro,
Tanto o apóstolo como os bispos das sedes fazem uso da subida ao monte e tais momentos
são filmados e transmitidos na programação da TV MUNDIAL.
A edição das filmagens resulta em um vídeo que ressalta o momento sacrificial dos líderes,
que muitas das vezes aparecem carregando galões de água, litros de óleo de unção, livros de
dizimistas, urnas com pedidos de oração e demais objetos utilizados nos cultos. A sonoplastia
traz músicas de fundo que em suas letras exaltam a necessidade da oração e do sacrifício, para
que se alcance o milagre. Os closes sobre os rostos dos líderes cansados, suados e ofegantes,
completam a produção visual. O bispo e pastores da sede estadual em São Luís, costumam
realizar esses momentos na área litorânea da cidade. Ao final da subida, os bispos e pastores
apresentam ao telespectador o motivo específico da subida e encerram com uma oração,
realizada muitas vezes de joelhos, em que se apresentam a Deus, os elementos carregados na
subida.
Os cultos da IMPD apesar de não seguirem uma distribuição fixa- costume da maioria das
igrejas evangélicas- possuem uma lógica ordenada entre o testemunho dos fiéis e a palavra
pregada pelo bispo e/ou pastor. O momento do testemunho é o momento em que o fiel reparte
com os presentes a alegria de receber o milagre, propaga a veracidade do que é pregado e
1780
reafirma sua fé na instituição, no caso, na IMPD. O que é reapropriado pelo bispo ou pastor,
que constantemente declaram ao final dos testemunhos que esse é o poder de Deus que atua
na Igreja Mundial do Poder de Deus. O fiel é convidado a falar para toda a igreja sobre a
bênçao ou milagre que recebeu. Durante a observação dos cultos da sede estadual em São
Luís, percebemos a ênfase dada ao testemunho, consoante aos cultos dirigidos pelo apóstolo
Valdemiro na sede nacional. Notamos que os bispos costumam seguir um roteiro durante o
testemunho do fiel:
-O bispo pergunta o nome da pessoa e pede a ela que conte como era a sua vida antes de
vir para a IMPD- os entrevistadores sempre tomam cuidado para que não sejam citados
nomes de outras instituições ou líderes religiosos;
-O bispo pede que a pessoa conte como ela conheceu a IMPD- nesses momentos, quando
alguns relatam que conheceram a IMPD através da programação televisiva, o bispo aproveita
para ressaltar a importância da manutenção da programação televisiva local e nacional;
-O bispo pergunta o que aconteceu na vida dela a partir de sua participação nos cultos
da IMPD- nesse momentos, os relatos de aquisição de emprego, ganhos de causas na justiça,
trnasformação da família são dados, contuda são os relatos de cura que geralmente dominam
o número de testemunhos. A menção à participação de campanhas e de uso dos objetos é
frequente;
-O bispo pede que a pessoa finalize o seu testemunho, glorificando a Deus- nesses
momentos os bispos abraçam efusivamente as pessoas, dando gritos de aleluia e glória a
Deus, afirmando que o a mão de Deus está na IMPD.
11
Alguns desses vídeos estão disponíveis no site www.youtube.com.br
1781
Amor e receba uma toalhinha Sê Tu uma Benção e seja mais um das 5000 colunas do canal
39.
As imagens utilizadas nos vídeos são de cultos, das pregações do apóstolo, dos bispos e
pastores e da logomarca da IMPD são mescladas nos vídeos com imagens da natureza e de
filmes com cenas do sofrimento de Jesus, tendo como música de fundo som instrumental.
Nos cultos que acompanhamos na sede estadual em São Luís, percebemos que as pregações
duravam em média 30 minutos. Os textos das escrituras, utilizados nas pregações, são
também permeados pela ênfase dada ao poder de Deus em realizar milagres, como também
pelo uso da Teologia da Prosperidade. No momento da pregação, “o pastor-ator tangibiliza as
12
Por vezes o bispo pede o auxilio dos pastores nessas encenações, para que eles formem muros, encenam
pequenos cercos. Etc.
1782
forças sagradas diante de uma multidão que, como em um teatro de arena, também participa
da encenação, com gestos” (CAMPOS, 1999, p. 360-361).
Hoje, a sociedade contemporânea experimenta uma nova aura, dessa vez não mais de
fascínio sagrado, mas de um fascínio essencialmente espetacular – trata-se de mais um
fenômeno cultural da contemporaneidade, em que o conhecimento e as vivências religiosas
passam a ser predominantemente estruturados por meio do consumo de imagens e do
estímulo às emoções (PATRIOTA, 2008, p.70).
Os fiéis que frequentam a IMPD na sede estadual em São Luís, por diversas vezes,
demonstraram uma profunda expectativa sobre o que aconteceria no culto, demonstrando uma
profunda devoção em seus gestos e posturas.
Considerações finais
A Igreja Mundial do Poder de Deus, apesar de estar alocada na categoria neopentecostal, traz
em si um conjunto de práticas tomadas a empréstimo das outras categorias evangélicas.
Criando assim a sua dinâmica de relação com a esfera do sagrado e com os fiéis.
O fiel, após tentar uma série de recursos a fim de alcançar a solução do seu problema,
encontra na IMPD, uma igreja que utiliza de grandes recursos para propagar que ali a Mão de
Deus está operando milagres, a figura de uma liderança carismática, disposta a acolher todos
que adentram por suas portas. Alcançando o milagre, por intermédio do líder religioso, o fiel
passa novamente a crer em Deus, uma vez que por meio da figura dos líderes da IMPD,
alcançou os meios necessários para obter o seu milagre. O líder por sua vez, conduz o fiel a
perceber que o milagre veio diretamente das mãos de Deus, mãos essas que operam na IMPD,
e que derramaram sobre o líder a unção do homem de Deus. Em uma espécie de movimento
de bumerangue, a atribuição do milagre é lançada sobre a figura da divindade, mas retorna ao
líder uma vez que a mediação foi realizada pela sua fé.
As visitas realizadas nos cultos da IMPD, na sede estadual em São Luís, proporcionam uma
ampliação na verificação da dinâmica própria do movimento neopentecostal, no contexto
histórico maranhense. Somam-se as particularidades que vêm sendo construídas pela IMPD,
ao longo de sua atuação, as dinâmicas percebidas no decorrer das pesquisas que apontaram
para a reapropriação característica do pentecostalismo da segunda onda, a ênfase na cura
1783
divina. As características do movimento neopentecostal, o recurso à teologia da Prosperidade,
o uso de objetos mágicos e a liderança carismática, somam-se na formação da identidade da
IMPD, enquanto representante de uma religiosidade sincrética, que oferece a um amplo
número de fiéis, a possibilidade de garantir mais que uma experiência extática, oferece uma
experiência prática de perceber-se em contato com a esfera do sagrado e vendo o seu agir,
através da figura dos líderes da IMPD.
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Introdução
A Internet é uma espécie de projeção de tudo quanto existe no espírito humano. Uma
extensão do que o indivíduo é, no dia-a-dia, e que não modifica a índole das pessoas. Muitas
pessoas, por exemplo, têm dificuldades em lidar com o anonimato. Quando ocorre uma
situação em que o indivíduo não precisa se identificar, como é o caso da Internet, existe a
possibilidade de vir, à tona, coisas malignas e ruins. Por outro lado, a Rede viabiliza também
uma sociabilidade com estímulos religiosos que apenas esse ambiente propicia.
Desde que a Internet se popularizou, há dezoito anos, um fato com o qual lidamos todos os
dias, ao abrirmos a nossa caixa postal eletrônica, são as mensagens relacionadas à atitude
positiva, valores positivos, otimismo, sabedoria, espiritualidade e sentido da vida. São muitos
os que se utilizam do e-mail para enviarem e receberem mensagens humanísticas e espirituais.
No artigo são apresentados alguns conceitos que podem ser aplicados a esse fenômeno do e-
mail como a Espiritualidade, a Mística, o Sagrado, a Ética, a Moral e os Valores. Em nosso
entender, uma das motivações dos internautas, ao enviarem mensagens humanísticas e
espirituais, tem conexão com a propagação da experiência mística pessoal. Quanto aos efeitos,
o fenômeno pode proporcionar o encontro com o Sagrado e suas conseqüências éticas.
Espiritualidade é uma dimensão do profundo de cada ser humano. Todo ser humano é
portador de Espiritualidade (BOFF, 2000, p. 99). A Espiritualidade é aquilo que produz
dentro de nós uma mudança, uma transformação capaz “de dar um novo sentido à vida ou de
abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério
de todas as coisas” (BOFF, 2006, p. 45). A tarefa da Mística, que indica o cuidado com o
mistério, é vivenciar e elaborar a Espiritualidade interiormente. É conscientizar-se de tal
1
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Contato: avellar@unicap.br.
1788
dimensão, trazê-la ao nível da prática e reservar-lhe um lugar explícito no projeto humano
(BOFF, 2000, p. 99).
Doutrina segundo a qual é possível, dentro de certas condições, que a alma humana, que é
uma realidade diferente do corpo humano, comunique-se por meio de uma experiência (não
sensível, mas análoga por suas características diretas àquela que se produz no contato do
sentido humano com os objetos) com a realidade superior que conserva a primazia (no
tempo ou na criação) em relação a toda outra realidade; admite-se ao mesmo tempo que
esta comunicação, ligada a uma intensa afeição de amor, e também livre de toda
participação das faculdades físicas do homem, constitui um bem particularmente desejado e
que ela é, ao menos nas suas formas mais intensas, o bem supremo que o homem pode
conquistar na sua vida terrestre (KOLAKOWSKY apud SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 22).
A partir de sua definição, Kolakowsky deduz que algumas características estão presentes de
forma quase invariável nos movimentos místicos:
1789
emprego da própria vontade) e a perfeição; reconhecimento de um antagonismo entre
criatura e o criador (apud SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 23).
A experiência mística propriamente dita refere-se ao lado subjetivo e interior dos místicos.
Para Sell e Brüseke, existem dois caminhos que podem levar à sua compreensão: a análise
psicológica dos estados místicos e os relatos de quem os vivencia. Os relatos dos místicos são
formas aproximadas de compreensão para tentar traduzir a experiência em si. Como a fala
deles está longe de traduzir o que realmente acontece, eles preferem se utilizar de metáforas,
analogias e símbolos no lugar de conceitos (2006, p. 23-26). Frei Betto observou a
necessidade de Mística através da grande procura de exemplares de Paulo Coelho e de livros
esotéricos (aí incluídos os de Espiritualidade), nas bienais do livro (1999, p. 28).
A experiência do internauta que vivencia uma Mística passa por isso. Ele faz o seu relato
utilizando-se de mensagens relacionadas à sabedoria adquirida ao longo de sua caminhada
Mística. Ele tenta fazer-se entender aos outros internautas através do e-mail, utilizando, como
mensagens, trechos desses livros procurados nas bienias ou poemas, parábolas, crônicas e
textos filosóficos. Boff também tem observado essa necessidade das mensagens dos místicos.
Em suas palavras, ele afirma que “nós temos fome e sede” dos místicos, que eles “despertam
em nós a dimensão espiritual” (BOFF, 2006, p. 45). O teólogo Carlos Josaphat, dentro de sua
concepção cristã, expressa essa “rede de místicos” ao afirmar que “estamos todos ‘plugados’,
à transcendência que é Palavra, ao Logos fonte de vida e de luz, o qual está na origem e no
destino de cada um e de todos os seres humanos, sendo-lhes princípio de sentido” (In:
BOGAZ; COUTO, (Orgs), 2004, p. 39).
O último vértice do triângulo seria “o místico”, aquilo que encarna a dimensão transcendente
e não racional do Sagrado. Para Rudolf Otto, a essência da Mística é constituída desse caráter
misterioso e divino que ele chama de Numinoso. Portanto, a Mística é essencialmente uma
propriedade do Numinoso (SELL; BRÜSEKE, 2006, p. 65).
1790
de um interesse orientado para as problemáticas sociais (apud MARTELLI, 1995, p. 171-
173). Com isso, ele afirma que “somente quem fez uma experiência religiosa autêntica é
capaz de reconhecer, na pesquisa histórico-social, aquilo que é autenticamente religioso”
(1995, p. 173). Rudolf Otto, no seu livro O Sagrado, convida o leitor a se lembrar dessa
experiência e desaconselha a prosseguir a leitura quem nunca a vivenciou:
Convidamos o leitor a fixar a atenção num momento em que experimentou uma emoção
religiosa profunda e, na medida do possível, exclusivamente religiosa. Se não for capaz ou
se até não conhece tais momentos, pedimos-lhe que termine aqui a sua leitura (1992, p. 17).
A partir da sua experiência e de outras pessoas, Wunibald Müller, um autor da atualidade que
faz uma releitura de Otto, afirma que o encontro do Sagrado pode acontecer em diferentes
situações, como na natureza, na liturgia, nos sonhos, nos pensamentos e na leitura. O correio
eletrônico da Internet, através da leitura de mensagens relacionadas à existência humana,
pode ser uma das situações desse encontro:
[...] o lugar capaz de despertar em mim estes sentimentos (do Sagrado) pode ser uma igreja,
pode ser o encontro com o Grand Canyon ao nascer do sol, pode ser a celebração da
eucaristia ao cair da noite no deserto do Sinai, ou de manhã cedinho em um altar de
sacrifícios sobre uma elevação na cidade nabatéia de Petra. Ou quando eu penso em meu
período de estudos em Israel, e nas palavras que me são familiares da Bíblia, ainda hoje eu
sinto um pouco do toque do numinoso que então me foi dado experimentar (2004, p. 45).
O usuário da Internet que recebe um e-mail, algumas vezes, desperta para o Sagrado, quando
ele é “tocado” no mais profundo do seu ser pela assimilação do conteúdo dessas mensagens
numa espécie de despertar interior. Segundo Müller:
1791
Quando este mundo se encontra fechado ou bloqueado, uma determinada situação de nossa
vida pode fazer com que ele volte a se tornar ativo. Talvez ao entrarmos em algum lugar
especial, ao nos encontrarmos em uma região particularmente bela e experimentarmos aí
alguma coisa que nos toca tão profundamente que nossa capacidade de experimentar o
sagrado volta a ser ativada (2004, p. 25).
Essa possibilidade de despertar o Sagrado através desse novo fenômeno, faz com que o
internauta queira participar, assiduamente, como emissor e receptor das mensagens:
Ser tocado pelo sagrado é uma experiência que deve envolver com sua atmosfera o meu
pensar, o meu sentir e o meu agir. Quase sempre eu consigo isto de uma forma bastante
precária. Mas não desisto de estar aberto para esta experiência. Para mim não existe outra
alternativa. É a trilha que descobri para mim, a rota que eu sigo, convencido de que ela me
leva para onde eu me encontro, para o que constitui meu anseio mais profundo – não
importando o que este seja ou o que possa ser (2004, p. 43).
A Ética também é abordada em nossos estudos. Mas antes que iniciemos esta jornada teórica,
temos que fazer uma distinção entre Moral Social e Ética, já que para o senso comum esses
conceitos são sinônimos. Leonardo Boff faz a seguinte distinção entre Moral e Ética:
A Moral é parte da vida concreta. Trata-se da prática real das pessoas que se expressam por
costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é Moral quando age
em conformidade com os costumes e valores consagrados. Estes podem, eventualmente, ser
questionados pela Ética. Uma pessoa pode ser Moral (segue os costumes até por
conveniência) mas não necessariamente Ética (obedece a convicções e princípios) (2003, p.
37).
A Moral Social, para Sell e Brüseke, está fundamentada na sociedade, a partir de um conjunto
de representações que os membros de uma coletividade têm em comum. Ela expressa a
consciência coletiva e orienta, com seus critérios, o agir do indivíduo. Mesmo que um
membro da sociedade não concorde com ela, sente-se no dever de agir como se concordasse.
Portanto, a Moral Social é uma força que exerce poder sobre o indivíduo. A Ética passa pelo
desconforto que o indivíduo sente em certas situações em que os outros membros da
sociedade estão em sintonia. Com sua Ética, ele tem a sensação que a Moral da sociedade está
na direção errada. Dessa forma, a Ética muitas vezes é anti-social e por isso ela é denominada
1792
de Ética da Resistência. Porém, em outras situações, a Moral Social pode convergir com a
Ética por influência desta última. Nesse caso, esses valores éticos não se fundamentam na
sociedade (2006, p. 226-227). Uma pergunta vai surgir, então, por conta disso: onde estaria a
fonte dessa Ética?
Sell e Brüseke se baseiam em Rudolf Otto quando afirmam que a força que o Numinoso
possui, fundamenta qualquer valor ético. Esses valores que a integram, não são construídos na
sociedade, mas são derivados dessa força. A Ética está além da Moral Social, que é construída
pela consciência coletiva num momento histórico (2006, p. 63). Portanto, “a sensibilidade
Mística para o Numinoso, abre um caminho para a fonte de uma Ética que é mais do que mera
Moral Social” (2006, p. 225). O que nós temos observado, através da nossa experiência, é que
os conteúdos humanísticos e espirituais dessas mensagens que circulam pelo e-mail podem
proporcionar consciência de valores éticos ao agir humano. E isto está de acordo com Müller.
Sentir-se tocado pelo Sagrado fundamenta uma Ética que realiza ações concretas no dia-a-dia.
Mudanças de atitude que muitas vezes vão de encontro à Moral Social:
[...] Seguir esta trilha e encontrar este caminho influenciado pelo sagrado, isto me é dado
por uma força e uma instância que vão muito além destas competências, que, em última
análise, são competências humanas. É uma força que, às vezes, a bem da santidade, pode
exigir que eu siga uma direção diferente do que oficialmente se considera correto
(MÜLLER, 2004, p. 43).
[...] um feixe de palavras, gestos, idéias e imagens, luzes, ruídos ou sons, coligados e
harmonizados em um “código”, que o “comunicador” “emite” a fim de que seja recebido,
decifrado e compreendido pelo seu “destinatário” (2006, p. 23).
É importante frisarmos que a Ética pressupõe e exige que a comunicação exista e que venha a
ser uma rede eficiente que leva mensagens e estabelece a comunhão entre as pessoas (2006, p.
25). Com essa relação, passamos agora para a definição da Ética da Comunicação Social:
1793
A ética da comunicação social se define como o projeto de uma orientação livre e
responsável do processo e do sistema de informação, bem como dos comunicadores e do
público, visando ao bem da própria informação e da sociedade, uma e outra encaradas sob o
ângulo do bem comum, do respeito das pessoas, dos valores e direitos fundamentais (2006,
p. 34).
A partir desse conceito, podemos avaliar que, para que a Ética da Comunicação se torne
efetiva, é preciso que ela tenha influência sobre as atitudes de cada um dos profissionais da
comunicação e de todos que nela estão interessados e envolvidos. Além disso, os valores,
normas e modelos de comportamento da Ética, que têm como fundamentos o reconhecimento
do primado da dignidade da pessoa humana e a aceitação da prioridade do bem social, sobre
todos os interesses particulares de indivíduos, grupos e sociedades, se traduzam em modelos
de orientação para o próprio sistema de comunicação (2006, p. 34-35).
No campo da Ética, os Valores, enquanto bens humanos almejados, são universais e, como
convêm à dignidade da pessoa, merecem ser desejados por todos e para todos, dentro de uma
apreciação racional. A Ética da Comunicação fundamenta-se no equilíbrio dos interesses
particulares e desses Valores humanos fundamentais. A Ética estimula e fundamenta o agir
humano através de seus objetivos, determinados e desejados em virtude de uma intenção
racional e livre (2006, p. 62-63). Esses objetivos humanos da mídia podem ser sintetizados
em quatro ideais ou exigências normativas que se conectam e interagem: a Dignidade percebe
o ser humano em sua singularidade e grandeza próprias; a Responsabilidade surge no plano da
ação como o ponto mais alto da liberdade, é reconhecer-se investido de direitos e deveres a
exercer em virtude da exigência do ser humano de agir para o próprio bem e o bem dos
outros; a Felicidade exprime a realização harmoniosa das aspirações de cada um; o Bem
Comum é a certeza de um núcleo de direitos fundamentais, de bens materiais e culturais para
todos (2006, p. 66-72). Ao se tornarem operacionais, os objetivos humanos da Comunicação
Social concretizam-se em uma escala de Valores Éticos (2006, p. 74).
1794
fonte dos outros Valores. Se os membros de uma sociedade não a possuem, especificamente
na informação e comunicação de idéias, eles não podem exercer os direitos e deveres pessoais
e sociais. A Justiça tem como objetivo a promoção de todos os direitos para todos, a procura e
a promoção do Bem Comum através de uma informação verdadeira. Do ponto de vista do
comunicador, este deve ser leal e buscar a exatidão do que transmite. A Solidariedade faz-se
presente na própria comunicação porque esta em si mesma é aberta a ela quando a mídia leva
ao interesse pelas outras comunidades, povos e continentes, valorizando o outro, o diferente
(2006, p. 75-83).
Antes de respondermos à pergunta feita anteriormente “como a Internet pode colaborar para
uma Ética de dimensão social, visando à qualidade humana?”, temos que levantar ainda
alguns aspectos negativos desse novo meio de comunicação. Nesse ponto, podemos ver que a
Moral de nossa sociedade também vai estar presente nesse meio. Os indivíduos podem
satisfazer os seus gostos através do erotismo e hedonismo, gastar o tempo em futilidades e
aventurar-se em propostas contrárias a uma Ética responsável. Outro fato negativo é a
exclusão digital ou discriminação virtual. Uma camada da população que não tem acesso a
Rede Mundial de Computadores por ser menos favorecida economicamente (2006, p. 163-
164, 184-185).
1795
A Internet também tem aspectos positivos que contribuem para uma interação na sociedade e
uma influência sobre a qualidade da convivência social. O intercâmbio de amizade, de mútua
ajuda, da cultura, do aprimoramento intelectual, profissional e mesmo espiritual são exemplos
disso. Além disso, “a Ética bem avisada pode discernir e apontar modelos presentes ou
possíveis dos valores humanos: de Verdade, Justiça, Liberdade e amor, prestes a desabrochar
em Solidariedade mundial”. Dessa forma, vislumbramos na Internet a possibilidade e mesmo
a presença de uma interatividade esclarecida e responsável capaz de modificar as formas de
viver, de conviver, de comunicar e de organizar a sociedade, a começar pela família, pela
empresa, pela escola e pela religião. Existindo essa Liberdade de semear Responsabilidade e
Solidariedade pela Rede, transformamos a dura e complexa realidade social (2006, p. 163-
183).
O que podemos tirar de proveito nesse esboço teórico apresentado é que um internauta pode
despertar para o Sagrado quando lê na sua caixa de entrada do correio eletrônico uma
mensagem de conteúdo humanístico ou espiritual. E por vivenciar uma experiência mística ou
ser conduzido a ela a partir desse contato, ele tem a possibilidade de repassar tal mensagem
para outros na Internet com a perspectiva de ser entendido. Isso possibilita a conexão em rede
de indivíduos em comunhão afetiva, de laços de amor e de amizade verdadeiramente
humanos, que se desdobra na realidade da existência, na comunhão real e generosa de
interesses e na mútua doação de si mesmos em meio às belezas e rudezas da vida (2006, p.
187). Dessa forma, essa rede proporciona a Ética, base do agir humano, com seus objetivos de
Dignidade, Responsabilidade, Felicidade e Bem Comum e seus Valores da Verdade,
Liberdade, Justiça e Solidariedade que poderão impactar a realidade social.
Carlos Josaphat, em uma concepção teológica cristã, afirma que a Internet vai se tornando
mais acolhedora ao Logos (Palavra, revelação divina). Numa visão otimista, ele acredita que o
aparecimento dessa rede de computadores autônomos, que tem como característica a
interatividade, dinamiza a verdade e a dignidade, os demais valores e direitos humanos
universais. Ele afirma também que nesse novo meio de comunicação estariam presentes
“indícios da encarnação da Palavra divina mediante a presença universal e dinâmica dos
valores humanos, que são outros tantos dons divinos salvadores: a verdade, a justiça, a
liberdade e o amor que se faz solidariedade mundial” (In: BOGAZ; COUTO, (Orgs), 2004, p.
35-36).
1796
A seguir, apresentaremos exemplos comentados de alguns textos que foram enviados através
da Internet. Uma mensagem que circulou pelo e-mail, por exemplo, foi a história de um
viajante que se perdeu na floresta. Ela tem um conteúdo espiritual muito forte porque aborda a
brevidade da nossa existência e o desapego às coisas materiais:
Um viajante que se perdera na floresta viu-se sozinho em meio ao cair da noite e saiu
procurando um abrigo. Encontrou uma pequenina casa onde vivia um velho. Explicou sua
situação e o velho gentilmente ofereceu sua casa para que lá pernoitasse. Quando entrou, o
viajante pôs a mala no chão e surpreendeu-se com a pequenez da construção. Naquela
diminuta casa, além de um velho fogão de barro, só havia uma cama, uma mesa e uma
cadeira. Sem esconder a incredulidade, o viajante perguntou ao velho se ele vivia ali
mesmo. O velho indo além da pergunta, respondeu que não precisava de nada mais do que
realmente precisava. Mas o viajante, curioso, insistiu em saber como ele se virava com tão
poucas coisas. O velho apontou para a mala no chão e disse que ele devia saber pois
também tinha poucas coisas. - Mas eu estou só de passagem... Sorriu o viajante, muito
lógico. E o velho respondeu: - Eu também.
Uma outra, que foi retirada do livro “O Enigma do Iluminado”, tem como título: “Perdoar os
Nazistas”. O tema principal é o perdão:
- Sim.
- Nesse caso - disse com doçura o amigo – você ainda é prisioneiro deles.
Nossos inimigos não são aqueles que nos odeiam, mas sim aqueles a quem odiamos
(MELLO, 2000, p. 147).
A mensagem “Quase Acreditei”, que circulou na Internet, nos conta, na forma de um poema,
o processo de conversão de uma pessoa:
1797
Quase acreditei que não sabia
Me ensinaram
se ame,
se admire de si mesmo,
acreditando.
E por acreditar
1798
e até de cometer enganos.
E se errar?
(Autor desconhecido)
Considerações finais
A Internet é um ambiente que veio para ficar e não um modismo. Seja pela forma do acesso,
que é ágil e quase instantânea, seja pelo alcance mundial: as religiões sabem que esse meio
tem um potencial grande como veículo divulgador da fé. A tendência do seu crescimento faz
com que as Instituições Religiosas Formais invistam nesse ambiente de forma massiva. Por
outro lado, o próprio indivíduo também faz uso desse meio de comunicação para propagar
mensagens humanísticas e espirituais através do e-mail. Partindo de alguns enfoques
conceituais das ciências humanas, buscamos evidenciar de forma mais clara alguns aspectos
que envolvem esse fenômeno religioso.
Em geral, as mensagens que circulam pelo correio eletrônico da Internet não modificam a
visão de Deus do internauta e estes também não abandonam a religião que professam. As
mensagens podem preencher algumas lacunas deixadas pela Instituição. É um novo
movimento religioso no sentido de que, se a religião não está suprindo todas as suas
necessidades espirituais, o indivíduo precisa de outros meios como esses tipos de e-mail.
Referências
BOFF, Leonardo; BETTO, Frei. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
(Coleção Arco do Tempo).
________. Depois de 500 anos: que Brasil queremos?. Petrópolis: Vozes, 2000.
OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Ed. 70, 1992. (Coleção Perspectivas do Homem).
SELL, Carlos Eduardo; BRÜSEKE, Franz Josef. Mística e sociedade. Itajaí: Univali, São
Paulo: Paulinas, 2006.
1800
1801
Anjos, demônios sociais e canções de amor
Claudefranklin Monteiro Santos1
Introdução
A cena é emblemática. João de Santo Cristo, baleado pelas costas, tomba amparado por sua
amante, Maria Lúcia, que também foi atingida, carregando uma criança no ventre. Na outra
extremidade, de um pequeno campo de futebol de várzea, num subúrbio pobre de Brasília, o
traficante Jeremias contempla a cena com o mesmo ódio que lhe fez sacar dois tiros certeiros.
Convencido de que havia se livrado de seu concorrente e da mulher a quem julgava traidora,
ele é surpreendido por João de Santo Cristo com uma Winchester-22. O traficante cai com
cinco tiros cravados no corpo. Era o desfecho de uma típica cena de faroeste norte-americano,
que se configura numa das muitas canções da Banda Legião Urbana, representando uma
realidade hipotética, que poderia ter sido do Distrito Federal dos anos 80.
Em 2013, a saga de João de Santo Cristo foi encenada nos cinemas brasileiros num filme
homônimo ao título da música: Faroeste Caboclo. No mesmo ano, cinéfilos de todas as
idades, sobretudo adolescentes e fãs da banda que cresceram nas últimas duas décadas,
puderam assistir a história que contava o início do maior grupo de rock brasileiro: Somos Tão
Jovens. Alguns anos antes, em 2011, o autor Wagner Moura e a jovem atriz Aline Moraes já
haviam emocionados plateias do Brasil inteiro com o filme O Homem do Futuro, vivendo um
romance embalado pelo sucesso Tempo Perdido.
1
Doutorando em História pela UFPE. Mestre em Educação e Licenciado em História pela UFS. Professor no
Departamento de História da UFS. Pesquisador e vice-líder do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e
Religiosidades (GPCIR). Contato: franklinmonteiro@oi.com.br.
1802
de Renato Russo, se transformou numa bandeira de luta social para uma juventude carente de
liberdade e ainda aprendendo a viver com uma democracia muito tênue. Ao passo em que
seus componentes amadureciam frente à conjuntura histórica, seu líder vivia às voltas com um
drama pessoal que o levou a óbito em 11 de outubro de 1996: a AIDS. De Faroeste Caboclo a
Pais e Filhos, entre demônios sociais e canções de amor, a Banda Legião Urbana deixou um
repertório rico de possibilidades para os estudiosos das religiosidades no mundo
contemporâneo, revelando um sentimento que ultrapassa, ao mesmo tempo em que também
atravessa, o institucionalmente estabelecido. O presente trabalho quer mergulhar nesse
potencial analítico e procurar entender o universo social e religioso do Brasil dos anos oitenta
e noventa do século XX, à luz de uma discussão historiográfica e dentro de uma perspectiva
que congrega estudos culturais em torno do tema música crítica popular.
Por isso mesmo, aquele autor nos convida a pensar a música enquanto fenômeno popular,
dentro de uma ótica onde a crítica histórica ajude a compreender a música da Legião Urbana
no contexto em que ela foi gerada, avaliando suas influências e reverberações no campo
social, nas tramas sociais e na afetividade e sensibilidades dos sujeitos. Uma música popular
não somente em seu sentido estrito ardoniano,2 de “música-comercial-urbana”, mas enquanto
2
Uma referência aos estudos culturais de Theodor Adorno (1903-1969), filósofo e mentor de uma crítica
musical. A guisa de refletir sobre os efeitos estéticos e sociais da “indústria da arte”, o teórico alemão é
conhecido como o pioneiro numa reflexão mais sistemática sobre o que ele chama de uma arte travestida em
indústria. Trata-se de uma leitura imprescindível para qualquer estudo sobre música popular. É bem verdade que,
até pela natureza de nosso trabalho, não nos aventuraremos na empreitada de ler seus textos a respeito, mas
reconhecemos essa necessidade na medida em entendemos que a contribuição de Adorno torna as a música
popular um corolário de uma indústria que mexeu profundamente com a estética e com o jeito clássico de ouvir e
pensar a música. Cf. ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. Tradução: José Lino
Grunnewald. In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1980, p, 165-192.
1803
fenômeno potencializado da mediação cultural entre o ser, a história e suas demandas sociais
e pessoais (NAPOLITANO, 2005, p. 9).
A ideia de uma canção popular está condicionada ao fato de que ela é “veiculada através da
indústria fonográfica e dos meios de comunicação de massa” (NAVES, 2010, p. 7). Assim, a
banda Legião Urbana, enquanto produtora de uma música massificada, e, portanto, popular,
se insere num momento da história da música brasileira quando novos estilos musicais vão,
também, surgindo, a exemplo do rock nacional dos anos 80 do século XX. Uma época em que
o rádio, com o advento e consolidação da FM (frequência modulada), e, sobretudo, a
televisão, com a onda dos videoclipes, alçam a música popular a um patamar ainda maior de
alcance e de consumo, e, necessariamente, de influência nos hábitos, modos de ser e,
particularmente, de pensar.
As mudanças promovidas pelo período do pós-revolução industrial fez, depois das guerras
mundiais do século XX, aumentar “o interesse por um tipo de música, intimamente ligada à
vida cultural e ao lazer urbano” (NAPOLITANO, 2005, p. 12). Quando a banda Legião
Urbana estourou no Brasil, aquele interesse estava mais sólido e só aumentava a sua demanda.
Aquela geração, batizada por Renato Russo de “geração coca-cola”, queria uma música para
dançar, para revoltar-se, mas também, para pensar e amar. Sob o torpor das drogas e suas
fugas evasivas, uma música que também fazia e queria transcender.
Para Santuza Cambraia Naves, a geração dos anos 80 do século XX desenvolveu um tipo de
rock que ao tempo em que recebia influências norte-americanas, também agregava
características novas que lhe creditaram uma “feição brasileira” (2010, p. 19), notadamente
com uma maior ênfase ao ritmo. Nesse sentido, destoava da Bossa Nova e da MPB,
principalmente por estes ensejarem mais a melodia ou a harmonia melódica. Isto, em parte,
cabe para compreender a musicalidade do rock nacional, de um modo geral, mas não serve
para explicar a musicalidade da Legião Urbana, na medida em que, seu principal compositor,
também primou por aqueles dois elementos. Sensível e poético, Renato Russo imprimiu à
banda uma boa pitada de elementos melódicos e harmônicos, alguns deles, inclusive, variando
com uma sonoridade e ritmia mais fortes e aparentemente desconexa e desarmônica, digna de
grandes concertos de música clássica. Exemplo disso é a canção Metal Contra as Nuvens (CD
Legião Urbana V, faixa 2, 1991).
1804
De qualquer forma, a opção metodológica adotada por Santuza Naves nos pareceu mais
apropriada para a análise a qual nos propomos fazer de análise das canções da banda Legião
Urbana, pois ela tem, em sua essência, o desenvolvimento rico do que o autor classifica como
“componente crítico” (2012, p. 19). O conceito de “canção crítica” nos apresenta como salutar
para nossos objetivos. Para Naves, é a partir da Bossa Nova que a música popular brasileira
assume a condição proposta por ele, de que nos utilizamos no presente artigo, de “veículo por
excelência do debate intelectual”, necessariamente por que passa a operar duplamente, seja
com o texto, seja com o contexto, no plano interno, e, também, no plano externo (Idem, pp.
20-21). A nosso ver, a música da banda Legião Urbana vai, perfeitamente, ao encontro dessa
assertiva, notadamente, como uma categoria bem representativa de “canção crítica”. Para
tanto, é preciso, de igual modo, compreender o perfil de seus componentes, de modo
particular, de Renato Russo, como operador desse conteúdo crítico que passa a constar do
universo inspirador do grupo.
Do rock in roll clássico, quase punk, ao blue melódico, a musicalidade refinada e intelectual,
mas também escrachada e pseudoingênua, a banda Legião Urbana alcançou públicos os mais
diversos ao longo de trinta anos e torna-se, portanto, um interessante objeto de crítica
histórica e sociocultural. Estudos em torno da música popular, em especial, os mais recentes,
revelam que é difícil sustentar abordagens generalizantes e normativas, afirma o autor
(NAPOLITANO, p. 36). É preciso levar em conta as variáveis históricas e sociológicas.
A música é produzida num determinado contexto histórico, sob certas condições do tecido
social. Além disso, afora seu consumo cultural, é preciso levar em consideração suas
representações, suas apropriações e suas circularidades no tempo, na história. Assim, somos
adeptos da tese de que “(...) o documento artístico-cultural é um documento histórico como
outro qualquer, na medida em que é produto de uma mediação da experiência histórica
subjetiva com as estruturas objetivas da esfera socioeconômica” (NAPOLITANO, 2010, p.
32).
1805
Demônios sociais3 e canções de amor
Em grande medida, pode-se afirmar que o Rio de Janeiro e parte considerável do Nordeste,
notadamente a Bahia e Pernambuco, forjaram as formas musicais do Brasil entre os séculos
XIX e XX (NAPOLITANO, 2005, p. 39). O surgimento da banda Legião Urbana redireciona
o foco para a nova Capital Federal. A partir dos anos 80, Brasília torna-se o centro irradiador
de um fenômeno da música brasileira. É bem verdade que, para tal estado de coisas, contribui,
decisivamente, a conjuntura histórica do lugar, que refletia um quadro político e social pós-
ditadura militar, que, ainda que estivesse reexperimentando a democracia, vivia um clima
nebuloso e tenso.
A banda Legião Urbana, pode-se dizer, foi um dos desdobramentos de uma época da música
popular produzida no Brasil no contexto de supressão das liberdades individuais dos anos 70.
De um momento de nossa história em que o rock in roll se configurava como uma expressão
de uma contracultura, que expunha as condições políticas de um regime de governo militar,
mas também a forma de produzir cultura no país naquele contexto adverso (NAVES, 2010, p.
107). Assim, aquela geração havia atualizado a linguagem do rock para as condições locais
(idem, p. 116), algo que a Legião Urbana seguiu fazendo nas décadas subsequentes em outro
patamar e com outra formatação, aliando crítica social e canções de amor, com uma boa e
significativa dose de religiosidade.
Contextualizando os anos 80, é possível perceber um rock brasileiro que bebia de fontes
diversas, particularmente de origem norte-americana e inglesa. Entre as influências, destaque
para o punk anglo-americano. Para Naves, a influência desse estilo, da chamada “atitude
punk” se manifestava “na utilização de uma linguagem despojada, de estreita comunicação
com os aficcionados, fosse ela politizada (anárquica) ou hedonista” (2010, p. 122). Como
diria a canção Teorema (CD Legião Urbana, 1985, faixa 10): “Parece energia, mas é só
distorção”. Na mesma música, a tônica libertária da influência punk sobre o grupo, de senhor
da história e do destino, ao sabor do aconteça o que aconteça, faça você mesmo: “Não peça
permissão / É só você quem deve decidir o que fazer”.
Em 1985, a banda Legião Urbana lançou seu primeiro álbum gravado em estúdio, de um total
de oito4, ao longo de quinze anos de existência. Sua formatação inicial, 1982, tinha Renato
3
Demônio é uma forma representativa de anjo. No plural, também pode denotar complicações de diversas
ordens. A categoria é utilizada aqui para representar problemas de ordem social, como miséria, degeneramento
moral, mazelas, entre outros.
1806
Russo no vocal e guitarra, Marcelo Bonfá, na bateria, Dado Villa-Lobos, na guitarra, e Renato
Rocha, no baixo. Um grupo de rock que revolucionou o estilo em nível nacional, com
diversas influências, como o já citado punk e o folk. Não tardaram para se tornar uma das
maiores bandas do gênero e influenciar de forma significativa uma juventude que crescia num
período de reabertura democrática da história do Brasil. Em destaque, “(...) letras politizadas,
contestadoras e eivadas por uma certa melancolia...”.5
Eram tempos de abertura política, mas tensos e dramáticos. No ano anterior, o país ficava
desapontado com a derrota da Medida Dante de Oliveira no Congresso Nacional, que
propugnava eleições diretas. Assim, mesmo os militares tendo saído de cena, os civis tomam
as rédeas do poder e elegem, indiretamente, o político mineiro Tancredo Neves, que faleceu
antes mesmo de tomar posse, em 21 de abril de 1985. Era um início de um lento, nem sempre
progressivo, de um processo de redemocratização o Brasil.
Antes de lançar o primeiro álbum da banda Legião Urbana, Renato Manfredini Júnior, o
Renato Russo, professor de inglês e estudante de jornalismo,6 ainda nos anos 70, tentou levar
adiante seu primeiro projeto artístico no campo da música. A banda Aborto Elétrico durou até
1982 e imprimiu um novo estilo de rock brasileiro, que naquele momento só podia ser ouvido
em circuitos muito restritos e para um público específico de classe média, composto
basicamente por universitários. Apesar de não lograr êxito, a banda Aborto Elétrico plantou a
semente de um rock que pôs Brasília na condição de celeiro de grandes sucessos nacionais ao
lado da Legião Urbana, como Capital Inicial e Paralamas do Sucesso.
Nunca é demais lembrar que em 1985 o rock internacional descobria o Brasil. Naquele ano,
entre os dias 11 e 20 de janeiro, aconteceu a primeira edição do Rock in Rio. A cidade do Rio
de Janeiro tornou-se, por alguns instantes, a capital internacional do rock in roll, que reuniu
atrações como Iron Maide, AC/DC e Queem, esta última numa performance inesquecível e
histórica de Fredie Mercury.
4
Em razão das limitações técnicas no que diz respeito ao número máximo de caracteres para a confecção do
presente texto, de acordo com as Normas de Edição de Trabalhos Completo para os Anais do I Simpósio
Regional Sudeste e I Simpósio Internacional da ABRH, nossa análise limitar-se-á a cinco álbuns apenas.
5
Cf. CD Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 1).
Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 07.
6
Renato Russo era carioca de nascimento, ocorrido no dia 27 de março de 1960. Teve uma infância
movimentada às voltas com as viagens do pai, como a que o fez morar em Nova York por mais de um ano,
quando foi instalar-se em Brasília no ano de 1973. Depois de quinze anos à frente da banda Legião Urbana,
Renato morre vitimado pelas complicações da AIDS, enfermidade descoberta seis anos antes de seu falecimento
em 1996. Cf. MARCELO, Carlos. Renato Russo, o filho da revolução. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2012.
1807
A juventude dos anos 80 estava atônita com tudo que acontecia no país. De alguma forma, ela
buscava alento em novas coisas que pudessem aplacar suas carências e seus desejos. Nascia
dali uma afinidade entre artista e público que ultrapassou o entretenimento, pois as letras da
banda Legião Urbana, contundentes, encontraram ressonância com “a insatisfação difusa dos
jovens da época”.7
Assim, a canção Será (CD legião Urbana, 1985, faixa 1) caiu como uma luva para atender aos
anseios da juventude da segunda metade dos anos 80. Um misto de medo e ansiedade
dominou a cena criativa de seus compositores, que nutria um sentimento de dúvidas,
traduzidas em muitas de suas inquietações e desilusões, como nos versos “brigar pra quê, se é
sem querer, quem é que vai nos proteger?” O grupo denunciava o egoísmo e a compreensão
difusa do amor.
O amor descartável, que visa apenas o sexo, o prazer e o hedonismo, fala fundo aos jovens e
seus excessos, inclusive em sua sanha desenfreada por fugas (drogas), são motes inspiradores
da canção A Dança (CD Legião Urbana, 1985, faixa 2). A atitude do grupo pode até parecer
careta, mas Renato deixava claro como esse caminho poderia ser sem volta. Lembra muito a
música Como Nossos Pais, sucesso de 1976, de autoria de Belchior, notoriamente ouvido na
voz de Elis Regina por muitos anos. Nesse sentido, vejamos o que diz um trecho: “Você é tão
moderno, se acha tão moderno / mas é igual aos seus pais, / é só questão de idade, passando
dessa fase / tanto fez e tanto faz”.
Na canção Baader-meinhof Blues (CD Legião Urbana, 1985, faixa 8), o grupo afirma que
amar o próximo é démodé e o diz não como se estivesse concordando que deva ser assim.
Pelo contrário, ao falar de amor, sobretudo Renato Russo, se ressente da falta desse amor
numa sociedade cuja justiça é desafinada, em meio a uma violência que fascina, de que aquele
princípio do Antigo Testamento, tão renovado pela figura do Cristo, agora se torna suplantado
pelo sentimento de está cheio por se sentir vazio. Mais adiante, numa canção assinada por
Renato Russo, Metrópole (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 7), o grupo critica o tempo
presente, o espetáculo do horror e o apelo ao trágico, à burocratização da vida e das pessoas, à
futilidade e frivolidade das pessoas e suas vidas guiadas por regras de repartição pública, com
seu mal serviço, e pelas novelas de ocasião, que mata a humanidade restante nelas. Nesse
sentido, em Plantas Embaixo do Aquário apela: “Faça do bom-senso a nova ordem” (CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 8).
7
Cf. CD Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 1).
Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 23.
1808
Quase trinta anos depois, a sociedade brasileira ainda tenta entender aquela ruptura de 1985.
Em tempos de Comissão da Verdade, vítimas das atrocidades da Ditadura Militar ainda não
têm sepulturas e seus entes pratearam um vazio que ainda não define bem quem é quem e
quem foi quem entre todos os “vencidos”. O clima democrático obscureceu a verdade dos
crimes cometidos: “Sou brasileiro errado / vivendo em separado / contando os vencidos / de
todos os lados” (Petróleo do Futuro – CD legião Urbana, 1985, faixa 3). O Estado
democrático de direito implantado em 1985 e confirmado mais tarde pela Constituição de
1988, na visão da banda deitou sobre a sociedade mais dúvidas e inseguranças do que
certezas, onde o inimigo não é claro e logo se transforma naquele que vai ocupar as
instituições para zombar do povo com suas manobras escusas: “Nos defendemos tanto tanto
sem saber / porque lutar” (Soldados - CD legião Urbana, 1985, faixa 9) ou ainda em outra
canção mais conhecida: “Mudaram as estações e nada mudou” (Por Enquanto - CD legião
Urbana, 1985, faixa 11); expressão que ficou famosa na voz da cantora brasileira Cássia Eller
em 1990.
Como se vê, politicamente, o grupo fala às claras e com muita franqueza e até usa trocadilhos
para expressar suas concepções: “Pra seu governo / o meu estado é independente” (Baader-
meinhof Blues - CD legião Urbana, 1985, faixa 8). Assim, as palavras “governo” e “estado”
pode até parecer algo coloquial de uma briga de namorados, mas tem um recado direto e
profundo. A canção Fábrica (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 11) é uma ode à liberdade
e é bem politizada no que se refere às questões trabalhistas no país. Ela vai ao encontro dos
oprimidos pelo trabalho. Não tem conteúdo marxista, mas aponta para a luta de classes e
clama, com esperança, por dias melhores, pois, para Renato Russo, que assina sozinho a letra:
“Deve haver algum lugar / onde o mais forte não consegue escravizar”.
Renato Russo escolhe uma canção para classificar a geração de seu tempo. Geração Coca-
Cola é uma música símbolo daqueles tempos pós-ditadura, ao mesmo tempo em que se
apresentava como o prenúncio de uma juventude que hoje grita nas ruas, “de crianças
derrubando reis / fazendo comédia com a suas leis”. Rotulada assim com muita, foi a geração
da banda e de Renato Russo, era filha da “revolução”, pois foi assim que os militares
classificavam o golpe de 64. Burgueses sem religião, porque a classe média chegava à
universidade e descobria que ela, a religião, era ópio do povo8 e que Deus estava morto.9 Uma
8
Expressão atribuída a Karl Marx, em sua obra Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844.
9
“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!”, afirmou o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche na obra Gaia Ciência, de 1882.
1809
geração que quando adulta viu os “Caras Pintadas” derrubarem Collor da Presidência da
República em 1992: “Vamos fazer nosso dever de casa / aí então vocês vão ver”. Uma
geração que sempre ouviu dizer “cresça e apareça!”, da qual ninguém perguntou se estava
pronta, que “ficou completamente tonta / procurando descobrir a verdade” (O Reggae – CD
Legião Urbana, 1985, faixa 7). Numa democracia que prega a liberdade, mas que pede uma
identidade se não quiser apanhar, que convive com a violência, sem ter armas para se
defender, pois “os assassinos estão livres, nós não estamos” (Teatro dos Vampiros - CD V:
Legião Urbana, 1991, faixa 5).
No segundo álbum do grupo, lançado em 1986, já era possível perceber seu amadurecimento,
com letras românticas e baladas de conteúdo ainda mais crítico-social, sempre focado,
também, numa experiência transcendente, na maioria das vezes alucinantes. Com José Sarney
efetivado na condição de Presidente da República, um civil desde 1964, um “ambiente de
otimismo enganoso” foi, de certa forma, influenciando a criação musical e letrista da banda,
às voltas com sua estrondosa aceitação no mercado fonográfico. Nessa nova fase do grupo,
Renato Russo imprime, cada vez mais, uma liderança e influencia que foi decisiva para os
seus autos e baixos, sem falar de seu desempenho nos palcos, lembrando uma espécie de Elvis
Presley epilético, um punk alucinado que convidava seu público a mover-se, sair do lugar,
mexer a cabeça e pensar.
A ideia de uma afirmação pós-ditadura tomou conta dos anseios daquela “geração coca-cola”,
um estado de independência inspirava jovens de todas as idades e seus ecos ainda se fazem
sentir nas ruas, a exemplo de versos como esse: “Quando o que eu mais queria / Era provar
pra todo mundo / Que eu não precisava / Provar nada pra ninguém” (Quase sem Querer - CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 2). A canção Que país é este (CD Que país é Este: Legião
Urbana, faixa 1) foi composta por Renato Russo em 1978, mas como sucesso só estourou em
1987, no terceiro álbum da banda. Virou uma música atemporal e muito atual, curiosamente
muito atual, capaz de responder aos problemas políticos e os demônios sociais de pelo menos
três décadas da história do Brasil. E bem começa uma quarta década e a melodia já se
apresenta como um aporte para compreender as chamadas “vozes da rua”. Naquele ano, a
democracia, ensaiando mais uma Constituição (1988), não conseguia dar alento ao povo
brasileiro, ávido por melhores condições: “(...) o país continuava a patinhar economicamente,
a dar guarida aos corruptos e a semear desesperanças com relação ao futuro”.10
10
Cf. CD Que País é Este: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v.
3). Lançado originalmente em 1985, pela EMI. p. 10.
1810
As experiências religiosas e exotéricas de Renato Russo são flagrantes em partes
consideráveis das letras do grupo. Tendo passagens pelas chamadas ciências ocultas e pela
astrologia (da qual não se apartou hora nenhuma), Russo imprimiu uma dimensão espiritual
nas canções que iam mostrando um sujeito cada vez mais maduro sobre sua relação com
Deus, sobretudo, diante da AIDS e a iminência da morte.
A figura do anjo é uma imagem recorrente na obra da banda Legião Urbana. É o mote
inspirador até mesmo para seu nome, pois a palavra legião consiste numa reunião de vários
anjos. Ora essa imagem inspira bondade, ora rebeldia e protesto. Ela aparece pela primeira
vez na música Quase sem Querer (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 2), na expressão
“Como um anjo caído / fiz questão de esquecer”. “Anjo caído” remete, normalmente, à
Lúcifer (luz bela), um anjo que gozava da predileção de Deus antes de ser condenado por
desobediência e tornar-se a representação do mal na teologia cristã. No que diz respeito esta,
se diz que aquele anjo fez questão de esquecer-se do plano de divino de salvação.
Em “O infinito é realmente / um dos deuses mais lindos” (Quase sem Querer - CD Dois:
Legião Urbana, 1986, faixa 2), aponta para a ideia de transcendência do grupo. No trecho “É
o mal que a água faz, quando se afoga / E o salva-vidas não está lá porque não vemos” (CD
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 1) é possível perceber uma clara menção à ausência de fé
em meio as circunstancias torpes da vida. A música traz como título uma passagem conhecida
do Antigo Testamento: Daniel na Cova dos Leões. À propósito, ao longo dos oito álbuns da
banda, são dezenas de elementos daquele livro sagrado, inclusive expressões literais ou
indiretas, o que demonstra conhecimento do texto. Nunca é demais lembrar, que também o
Novo Testamento está entre os motes de inspiração do grupo, notadamente mais presente nas
letras assinadas individualmente por Renato Russo.
Na música Eduardo e Mônica (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 4), um trecho chama
atenção para o vimos refletindo: “E quem um dia irá dizer / Que não existe razão / Nas coisas
feitas pelo coração”. Essa convivência entre a racionalidade universitária com o
sentimentalismo romântico e religioso foi uma marca registrada da Legião Urbana. Razão e fé
é uma das discussões mais antigas e espinhosas da Igreja Católica, por exemplo, e que chegou
a envolver dois de seus mais importantes doutores: Santo Agostinho e São Tomaz de Aquino.
Ao longo dos álbuns, as letras vão dando pistas de sua maneira de ser religioso. A ideia é
acreditar duvidando, inquirindo, provocando, se arriscando. Na canção Acrilic on Canvas, isto
já começa a se evidenciar: “Mas então por que eu finjo que acredito no que invento?” (CD
1811
Dois: Legião Urbana, 1986, faixa 3). Em Tempo Perdido (CD Dois: Legião Urbana, 1986,
faixa 4) fala fundo aos jovens. Trata-se de uma espécie de evocação da guinada que eles
precisavam dar em relação as coisas da vida, afinal, “somos tão jovens”. A letra é repleta de
elementos que vão do poder do jovem ao respeito que se precisa ter pelo sobrenatural ou pelo
menos da convivência estratégia, de sobrevivência mesmo, que precisa ter com ele: “Não
tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora”. Provocação era o estilo de Renato
Russo quando o assunto era fé e religiosidade. Na passagem da canção Depois do Começo
(CD Que País é Este: Legião Urbana, 1987, faixa 4), “Deus, Deus somos todos ateus / Vamos
cortar os cabelos do príncipe / E entregá-los a um deus plebeu”, duas questões sobressaem.
Ora ele grafa a palavra Deus com letra maiúscula, ora com letra minúscula, deixando claro a
quem se dirige. Em seguida, dirige a Deus, declarando que todos são ateus, não acreditam
Nele. Essa era a ideia de Renato: contradizer, confundir, criar paradoxos de propósito,
desconsertar.
Assumindo o papel de um índio hipotético, que se questiona sobre mais de quatro séculos de
conquista (à época) Renato Russo, na canção Índios (CD Dois: Legião Urbana, 1986, faixa
12), faz um balanço da chegada dos portugueses ao território brasileiro, sintetiza todo
desapontamento dos nativos e cria uma representação de um índio queixando-se das táticas
dos conquistadores, dos seus modos e de seu aparato ideológico. Nesse sentido, chama
atenção uma passagem de cunho religioso, envolvendo o dogma católico da Trindade Santa e
o martírio de Cristo na Cruz: “Quem me dera ao menos uma vez / Entender como um só Deus
ao mesmo tempo é três / E esse mesmo Deus é morto por vocês / É só maldade então, deixar
um Deus tão triste”. Trata-se, portanto, de um paradoxo constrangedor entre o credo e a
instituição, entre a fé e a Igreja.
Faroeste Caboclo é uma obra-prima de Renato Russo no contexto novo rock brasileiro (CD
Que País é Este: Legião Urbana, 1987, faixa 7). A letra é repleta de possibilidades para
entender o seu escracho com o Cristianismo, ao mesmo tempo em que, no deboche
provocativo, revela elementos de uma singular, porém, contraditória religiosidade. O
personagem João de Santo Cristo11 é muito complexo, pois reúne os demônios sociais que
Renato Russo denúncia em sua musicalidade, mas também a saga do amor sincero, do sujeito
que é o resultado das agruras e dilemas da vida. São vários os símbolos forjados por Russo
nessa canção, que provocam as mais variadas reações, dentro de uma dubiedade que lhe
11
O sobrenome é uma referência às origens do personagem João. Trata-se de uma hipotética fazenda do interior
baiano. Santo Cristo também é o nome de uma cidade do Noroeste do Rio Grande do Sul.
1812
peculiar, ora irritante e fascinante e desconcertante, como em “Deixou pra trás o ódio que
Jesus lhe deu”, pois João se via e se sentia abandonado por Deus e pelo mundo, as voltas com
várias tramas: miséria e de sua família, infância difícil diante do assassinato do pai pelas mãos
de um policial, a vingança, enfim, pelos dramas inúmeros de sua trajetória até Brasília e
estando lá, que vão culminar com a sua morte, ao lado de sua Maria Lúcia, que lhe havia
proporcionado um raro momento de aconchego de Deus. O Santo Cristo era pobre,
trabalhador e carpinteiro como o Cristo, mas ao longo dos anos de sua existência foi ao
inferno por pelo menos três vezes. Os trocadilhos são muitos e Renato o faz com
intencionalidade e genialidade, forçando um paralelismo constrangedor para os mais pudicos
da fé cristã, mas ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de atentar-se para princípios
defendidos pelo próprio Cristianismo, como a justiça e a sede de justiça, o amor, a ternura, a
solidariedade e a esperança. Assim, “O Santo Cristo era Santo porque sabia morrer”,
morrendo com uma dignidade difusa, em busca de uma felicidade que não encontrou repouso
nele.
Considerações finais
Nesse sentido, pudemos notar que a relação de Renato Russo com seu público foi visceral,
mas não focou apenas em sua pessoa. Ele foi a expressão de uma banda, e, sobretudo de uma
geração que se via no palco, dizendo e fazendo coisas que ele fazia e pensava, cantando
lamentos, denunciando os fantasmas e tentando exorcizar os demônios sociais, mas também
cantando o amor, numa nova maneira de se relacionar com o sobrenatural, representado não
só na ideia do Deus cristão-católico, santos, bem como em anjos, forma idealizada de crianças
e homens divinizados.
1813
Para Santuza Cambraia Naves (2010, pp. 124-125), as bandas do rock nacional que surgiram
no contexto pós-anos 70, a exemplo da Legião Urbana, alcançaram maior respeitabilidade
crítica e um público mais diversificado, na medida em que foram adotando algumas práticas
características da MPB, como preparo intelectual mais refinado, o amadurecimento, embora
ainda agudo e forte, de uma crítica social, o gosto pela melodia e pela harmonia,
diferentemente de outros grupos que preferiram continuar fazendo um rock menos estético e
mais escrachado, a exemplo do Ultraje a Rigor, e, porque não dizer, dos Mamonas Assassinas
num outro contexto. Talvez isto, explique a longevidade, a renovação e a aceitação da Legião
Urbana, mesmo depois da morte de Renato Russo e do consequente desmanche do grupo em
1996. A banda Legião Urbana, quase quatro décadas depois, ainda consegue não só vender
seu produto, como ela ainda influencia no modo de pensar de uma geração que nem havia
nascido quando o grupo estourava nas paradas de sucesso.
Ainda que isso não se configure num todo e que nos falte elementos para afirmar com mais
precisão, de alguma forma pode-se dizer que a banda até influenciou na resignificação de
grupos que optaram por uma espécie de “rock de Jesus”, em especial se pensarmos no caso da
banda Catedral, onde o vocalista Kim em muito lembra a performance vocal de Renato Russo.
Onde o denuncismo da Legião mexe, de forma significativa, não só com uma juventude
evangélica, mas também católica. Uma música que transcende e que vive no limiar entre o
profano e o sacro.
Referências
MARCELO, Carlos. Renato Russo, o filho da revolução. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2012.
1814
Coleção
Legião Urbana: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião
Urbana; v. 1).
Legião Urbana: Dois. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 2).
Que País é Este: Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião
Urbana; v. 3).
Legião Urbana: V. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. (Coleção Legião Urbana; v. 5).
Discografia
Que País é Este: Legião Urbana. CD. São Paulo: EMI, 1987.
1815
1816
Catolicismo renovado nas mídias sociais: o discurso mercadológico de um popstar da fé
Adriana do Amaral Freire1, Karla Regina Macena Pereira Patriota Bronsztein2
Introdução
Estamos submersos em uma sociedade que foi denominada por Debord (1967), como a
“Sociedade do Espetáculo”. Já na primeira tese do seu livro, o autor assegura que a vida das
sociedades modernas se apresenta como uma imensa “acumulação de espetáculos”. O que
viabiliza, por conseguinte, que a atual consciência ontológica encontre alguns de seus
alicerces no próprio espetáculo.
Logo, não é difícil concluir que o campo religioso não ficou isento do entrelaçamento e
absorção do contexto espetacular que abarca a vida de todos na contemporaneidade. De fato,
inseridos numa conjuntura marcada pela lógica midiática e assinalada pela dilatada presença
da comunicação e das imagens em todas as esferas da vida cotidiana, nos deparamos com o
crescimento pujante, e de caráter ubíquo, do espetáculo e do entretenimento também na esfera
religiosa (PATRIOTA, 2008).
Com efeito trata-se, a nosso ver, de mais um fenômeno cultural contemporâneo, no qual o
conhecimento e as vivências religiosas passam a ser predominantemente estruturados por
meio do consumo de imagens e do estímulo às emoções - inescapáveis, portanto, às lentes
espetaculares da mídia. Como bem afirmou Prandi (2000), numa entrevista a Revista Isto é, a
religião, que antes era um instrumento de formação de valores, está se tornando um produto
de consumo imediato e passível de experimento, troca ou rejeição, e que amanhã, como já é
hoje, o espetáculo será muito mais importante do que a doutrina religiosa.3
1
Doutoranda em Comunicação pela UFPE. Mestra em Extensão Rural e Desenvolvimento Local. Membro do GP
Publicidade nas Novas Mídias. Bolsista CAPES. Contato: adfreire2@hotmail.com.
2
Doutora em Sociologia e mestre em Comunicação pela UFPE. Professora Adjunta 3 do Curso de Publicidade e
Propaganda e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE. Coordenadora do GP Publicidade nas
Novas Mídias. Contato: k.patriota@gmail.com.
3
Em entrevista concedida a Bruno Weiss, para a Revista Istoé. Edição 1579. O bem e o banal. O pluralismo de
tendências terá de conviver com a ampliação da fé como produto de consumo. Publicada em 05.01.2000.
1817
Portanto, impulsionados pelo aprofundamento reflexivo de tal conjuntura - que ainda dialoga
com a ampla dimensão mercadológica da contemporaneidade - verificamos, nesse cenário, a
manifestação de um panorama religioso específico: o da Igreja Católica Apostólica Romana,
seus representantes e suas aparições midiáticas. Em algumas destas, no entanto, são
ressaltados escândalos sexuais envolvendo crianças, determinados problemas administrativos
relacionados à corrupção e a evidência clara de uma doutrina de teor “conservador” que,
muitas vezes, resiste ao estabelecimento de diálogos com o tempo presente e com a nossa
sociedade de essência pós-moderna.
Soma-se a isso o fato de que, nos últimos vinte anos, a cada ano consecutivo, o catolicismo
vem perdendo 1% de fiéis para outras denominações (sejam estas cristãs ou não), como
reconheceu um de seus representantes, o Frei Betto, em palestra proferida no Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, no mês de abril do
corrente ano. Com efeito, a Igreja Católica distingue o momento da crise em que está situada
e busca reagir contra o que vem promovendo a fragilização de sua imagem.
É nesse contexto, buscando sobreviver e manter sua soberania, que a Igreja Católica vem
renovando as suas práticas e aceitando ações e interlocuções que seguem as tendências de
mercado, a exemplo do despontar, em seu seio, de clérigos como os Padres Marcelo Rossi4 e
Fábio de Melo.5
Visivelmente distantes dos padres tradicionais, como os que estamos acostumados a ver na
maioria das missas dominicais de comunidades brasileiras, estes possuem configurações
marcadamente distintas em relação às imagens habituais do clero: modernos, atléticos,
bonitos, cantores e com constante presença na mídia secular. Mas não apenas isso os
diferencia dos “clássicos” clérigos católicos de outrora, como bem pontua Fernandéz, quando
se refere ao conteúdo de suas mensagens (grande parte veiculada através da música): “o que
se privilegia é o ritmo e a capacidade de mobilizar emocionalmente tornando a adesão
religiosa uma opção prioritariamente emocional, sem grandes elaborações da mensagem
doutrinal” (FERNANDÉZ, 2005, p.132).
4
Marcelo Mendonça Rossi (São Paulo, 20 de maio de 1967) tornou-se um fenômeno de mídia e cultura de
massas no final dos anos 90. Ficou muito conhecido pela forma como adota danças e coreografias típicas da
Renovação Carismática Católica (RCC) e pela publicidade dos trabalhos (CDs, DVDs, cinema e televisão).
Andrade Junior (2006) lembra que, diferentemente dos outros padres, Rossi transformou a sua missa num evento
com linguagem e roupagem midiáticas. O autor descreve que o padre Marcelo organiza tais missas com
diferenciais, a nosso ver, de essência espetacular, pois se centra na sua “ginástica litúrgica”, que, de acordo com
Andrade Junior (2006) aproxima-se de um show de auditório, um showmissa.
5
Estaremos discorrendo detalhadamente sobre ele no tópico Quem é o midiático Padre Fábio de Melo?
1818
Esses novos padres estão sempre presentes em programas televisivos de auditório de grande
audiência, em shows que mais se assemelham a grandes festivais da indústria musical e em
todos os espaços midiáticos que lhes rendam publicitação da imagem – até no cinema6. Tal
visibilidade “promocional” também é ampliada para os ambientes 2.0 da web – estes,
extremamente favoráveis à autopromoção constante dos indivíduos midiáticos.
Consequentemente, nesses espaços é possível dar continuidade as práticas que nem sempre
são plausíveis nos recintos das mídias tradicionais, permitindo o alargamento de ações
interativas de construção e consolidação identitária na proximidade com os fãs.
Com isso em mente e a partir desta breve contextualização inicial, este trabalho propõe, como
principal objetivo, analisar os usos e discursos de uma personalidade do catolicismo, numa
perspectiva mercadológica e espetacular, classificando-o como um popstar da fé, no ambiente
das mídias sociais digitais. Para isso, nos debruçamos sobre a fanpage do Padre Fábio de
Melo, na rede social Facebook – FB (facebook.com/PadreFabiodeMelo) e no seu perfil na
rede Twitter (twitter.com/pefabiodemelo). Analisamos fragmentos dos discursos veiculados e
alguns dos conteúdos postados nesses espaços, considerando como ponto de partida, além da
sua dimensão midiática, as possibilidades interativas, a construção identitária espetacular e as
vertentes promocional e mercadológica, constituintes da imagem do padre em questão.
Esta reflexão também visa fortalecer o debate que envolve mídia, religião e sociedade no
contexto brasileiro contemporâneo. Dessa forma, pretendemos, nos tópicos a seguir,
promover um relato breve sobre a religiosidade Católica Apostólica Romana e seu
entrelaçamento midiático, expor um pouco da trajetória do padre Fábio de Melo e descrever o
ambiente virtual que propomos como objeto de investigação, ao mesmo tempo em que
analisamos e inferimos os parâmetros que reconfiguram e constroem as relações que se
estabelecem hoje entre religião, mídia, mercado e espetáculo, campos anteriormente tidos
como totalmente desvinculados.
Até o final do século XIX, o catolicismo quase reinou absoluto como religião oficial do Brasil
(SOUZA, 2005). O autor, em suas análises (2005; 2008), traça um panorama histórico da
6
A exemplo de Padre Marcelo Rossi, com os filmes Maria, Mãe do Filho de Deus (2003) e Irmãos de Fé (2004).
1819
emergência e evolução do cenário midiático religioso no contexto brasileiro, concluindo que
até a metade do século XX, a Igreja Católica estava “mais voltada para as suas próprias
questões internas” (SOUZA, 2005, p. 17) e, só a partir de 1950 é que passa a reagir ao
crescimento de outras religiões no país.7
Com a visão ampliada para a importância da mídia, a Igreja se constituiu como dona de um
conglomerado midiático que abrange três emissoras de televisão: Canção Nova, Rede Vida e
Século XXI, além de editora de livros, revistas, jornais, internet e centenas de emissoras de
rádios espalhadas pelo país. Dessa forma, a Igreja não só tem investido nos jovens “padres
cantores” como estratégia para a propagação da religião católica, mas também na luta contra a
adesão a outras instituições religiosas, especialmente ao neopentecostalismo10, e de “quebra”
ainda tem apostado no desenvolvimento de suas atividades econômicas, uma vez que o
crescimento das vendas de produtos religiosos, nos veículos disponíveis, é um dos aspectos
mais rentáveis da inserção midiática.
7
As peculiaridades de um Brasil religioso, cada vez menos católico, não são reveladas da noite para o dia. É
verdade que tais variações são observadas de forma mais palpável depois de 1980, todavia, o movimento de
redução do catolicismo está ocorrendo de forma significativa pelo menos desde a década de 40 (PATRIOTA,
2008).
8
Elaborado no pontificado do papa Inocêncio VIII no século XV.
9
De acordo com Atos 17:16-33, Paulo fez um discurso no Aerópago, chamando os atenienses da idolatria para o
culto ao Deus verdadeiro (o Deus do Cristianismo).
10
Nome que se dá aos pentecostais da terceira geração. Diversos autores os têm designado de maneiras diversas,
entretanto neste trabalho assim os chamamos, porque é possível perceber que eles diferem muito dos
pentecostais históricos e dos da segunda geração. Dessa forma, semelhantemente a Mariano (1995), acreditamos
tratar-se realmente de um novo pentecostalismo: (...) “termo que mais vem ganhando terreno nos últimos anos
entre os pesquisadores brasileiros para classificar as novas igrejas pentecostais. Embora recente entre nós, o
termo foi cunhado há vários anos nos Estados Unidos” (MARIANO, 1995, p. 25).
1820
inclusive os digitais. Trata-se, de forma mais ampla e estendida às diversas correntes
religiosas, do que se convencionou chamar de “midiatização da religião” (GASPARETO,
2011). A reflexão acerca desse fenômeno contemporâneo retrata o surgimento das novas
formas de "fazer religião" - quando a mídia adentra, dialoga e transmuta as experiências
religiosas dos fiéis.
Mineiro, nascido em 3 de abril de 1971 e o mais novo dos oito filhos do pedreiro Dorinato
Bias Silva e da dona-de-casa Ana Maria de Melo Silva, Fábio de Melo é, além de um
sacerdote católico, artista (cantor), escritor, professor universitário e apresentador de tevê.
Como formação acadêmica, tem graduação em Teologia e mestrado em Antropologia
Teológica. Originário da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, o Padre
Fábio foi ordenado em 2001 e hoje atua na Diocese de Taubaté, interior de São Paulo. Entre a
sua produção intelectual, artística e evangelística, estão 11 livros publicados e também vários
CDs gravados e distribuídos para o mercado - o que gerou a comercialização de mais de 1,8
milhão de unidades12 em gravações que contam com a participação de consagrados cantores
da Música Popular Brasileira, a exemplo de artistas como Toquinho, Fábio Júnior e Renato
Teixeira.
11
Uma tentativa de satisfazer as necessidades das pessoas no campo da fé através da oferta de “bens religiosos”
(não necessariamente físicos e/ou tangíveis) na mídia digital.
12
As informações desse parágrafo foram acessadas no site: <https://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%
A1bio_de_Melo>. Acesso em 26 maio 2013.
1821
De acordo com a Revista Isto é,13 o Padre Fábio declara que vive num sítio em uma região
rural de Taubaté e aprecia uma vida tranquila, ao mesmo tempo em que afirma que está cada
vez menos urbano. A mesma revista relata, contraditoriamente, uma vida que só é possível
nas áreas urbanas e em metrópoles: o Padre, segundo descreve a publicação, já vendeu dois
milhões de CDs e 700 mil DVDs e, até então, tem realizado cerca de 100 shows anuais e pelo
menos um lançamento de CD ou DVD por ano.14 Além disso, Fábio de Melo também se
tornou nacionalmente conhecido por seu trabalho como apresentador de um programa
transmitido pela TV católica Canção Nova.
Suas aparições midiáticas ocorrem em diversos programas e emissoras sejam católicas ou não.
Na TV Globo, por exemplo, já participou de programas como: Estrelas, Domingão do Faustão,
TV Xuxa, Programa do Jô e Fantástico, esse último com a exibição de um clipe do seu novo
CD. Em suas aparições públicas e fora dos templos católicos não costuma usar batina, afirma
que “não gosta de parecer padre, na acepção tradicional”. De acordo com Marthe & Martins
(2009) o padre é um homem “bem-apessoado e vaidoso”, que cuida da aparência física e só se
veste com roupas de grife: “cultiva, enfim, uma imagem de homem atraente”. O que é
sobremodo alargado em meio a esse cenário, católico, artístico e midiático, e que tem
dialogado com os postulados religiosos contemporâneos.
Assim, vemos o despontar do sucesso do Padre Fábio de Melo que, tendo como referencial o
Padre Zezinho,15 se transformou em um dos grandes ícones de vendas do mercado editorial e
fonográfico. Seus shows, cuidadosamente elaborados, contam com cenografia, superprodução
e atraem centenas de pessoas – o que o torna, além de um atrativo e grande vendedor de CDs e
DVDs de ancoragem religiosa, a melhor definição para a expressão “popstar da fé”.
13
CARDOSO, Rodrigo; LOES, João . A rotina dos popstars da fé. Isto É Independente, 25.Mai.12. , Ed. 2220.
Disponível em <http://www.istoe.com.br/reportagens/209097_A+ROTINA+DOS+ POPSTARS+DA+FE>.
Acesso em 26 maio de 2013.
14
Na nossa última contagem eram, ao todo, 23 CDs: Iluminar (ao vivo); Iluminar; Grandes momentos 2; Eu e o
Tempo; Kit Eu e o Tempo; Coletânea Padre Fábio de Melo - 3 CDs; Vida; Enredos do Meu Povo Simples;
Grandes Momentos; Enredados - Volume 2; Enredados - Volume 1; Cristão; Filho do Céu; Sou um Zé da Silva
e outros tantos; Tom de Minas; Humano Demais; Marcas do Eterno; Saudades do Céu; As Estações da Vida;
Canta Coração; De Deus Um Cantador. 8 Livros: Cartas entre Amigos: Sobre Ganhar e Perder; Mulheres Cheias
de Graça; Cartas entre Amigos - Sobre Medos Contemporâneos; Quando o sofrimento bater à sua porta;
Mulheres de aço e de flores; Quem Me Roubou de Mim?; Amigos somos muitos, mesmo sendo dois; Tempo:
saudades e esquecimentos. 1 DVD: Bem da Palavra do Bem, disponíveis para comercialização em lojas e no site
no Padre
15
Pe Zezinho destaca-se entre os primeiros clérigos a fazerem sucessos na mídia fonográfica e editoria, ainda
na década de 1960. Membro da congregação Sagrado Coração de Jesus e Diocese de Taubaté em São Paulo, este
padre além de cantor é também escritor e apresentador do Programa Direção Espiritual, transmitido
semanalmente pela rede de TV Canção Nova. Possui um estilo jovem e apresenta-se com roupas de grifes sob
um físico moldado por exercícios. De voz baixa e calma atrai muitos fãs, em sua maioria, do sexo feminino.
1822
De acordo com a revista Veja16, “o fenômeno Fábio de Melo leva sua aproximação com o
universo mundano (tratado aqui na dimensão do show business)17 a um extremo inédito”, já
que o padre é classificado entre os maiores recordistas de vendas de CDs no Brasil. Sua
excelente posição no ranking do mercado editorial e fonográfico impulsiona milhares de fiéis
a assistirem seus showsmissas, considerados pela mídia como mega-eventos religiosos.
Mesmo com toda a visibilidade conquistada no espaço midiático tradicional, o Padre Fábio
não se fez ausente dos espaços interativos da internet e das mídias sociais. Possui um site
oficial através do qual os usuários podem se conectar ao seu perfil no Twitter - que conta com
mais de 540 mil seguidores (16.06.2013) e com quase 13 mil registros de tweets (realizados
diariamente e várias vezes ao dia), desde agosto de 2012. No Facebook o Padre possui uma
fanpage oficial em que, ao contrário do Twitter, não há atualizações diárias e o conteúdo
postado tem um caráter marcadamente promocional – peculiaridade das fanpages, que
diferem das páginas pessoais nas quais os amigos se relacionam na rede. Como definidas pelo
próprio Facebook: “As páginas de fãs (fanpages) existem para que as organizações, empresas,
celebridades e bandas transmitam muitas informações aos seus seguidores ou ao público que
escolher se conectar a elas”.18 O que evidencia a perspectiva de olhar para o Padre Fábio
como uma marca com fãs e “consumidores”. Por fim, no Twitter, os posts apresentam um ar
mais informal, porém o espaço é igualmente aproveitado para a divulgação de seus shows e da
rotina artística que estrutura o seu dia a dia.
Campos (1997), em livro Teatro, Templo e Mercado, mesmo tendo como objeto de análise a
16
Edição 2098, de 4 de fevereiro de 2009.
17
Entrelaçado às diversas esferas que envolvem as artes performáticas, incluindo as dimensões financeiras,
criativas e estruturais dos espetáculos como entretenimento.
18
O Facebook ainda defende que tais páginas são semelhantes aos perfis dos usuários comuns (não marcas) mas
“podem ser aprimoradas com aplicativos que ajudem as entidades a se comunicarem e interagirem com o seu
público e adquirirem novos usuários por recomendações de amigos, históricos dos Feeds de notícias, eventos do
Facebook e muito mais”.
1823
Igreja Universal do Reino de Deus,19 abordou vários aspectos relacionados a junção dos mass
media, da religião e do mercado - no sentido amplo do termo. O autor postulou que, da
manifestação do panorama religioso-midiático contemporâneo, “emergem ideologias,
processos institucionais e estratégias de comunicação, que exigem novos perfis de líderes e
fiéis”. Nesse sentido, Campos (1997, p. 295-296) defende que “a visão de mundo, como um
enorme Shopping Center, tende a fundir templo e mercado, propaganda e publicidade, religião
e comércio”.
Tal visão ganha concretude e ampliação quando vemos o despontar dos novos perfis dos atores
religiosos aos quais Campos (1997) fez referência. A pergunta então seria: são os novos líderes
religiosos que moldam os novos fiéis, ou são os novos fiéis que demandam o aparecimento de
novos líderes? A resposta a essa questão ainda nos parece de difícil articulação, pois nos falta
elementos concretos para a sua formulação, contudo, ao analisar dois espaços de propagação
discursiva (Twitter e Facebook) de um líder midiático do catolicismo moderno, podemos ver
aflorar uma peculiar e marcada fusão de elementos religiosos, espetaculares e mercadológicos
– o que evidencia, claramente, um novo perfil de liderança religiosa.
No Twitter do Padre Fábio a sua presença diária e intensa atividade dão à sua página no
microblog20 um tom bastante pessoal. Nesse espaço, ao contrário do Facebook, o uso da
primeira pessoa é recorrente. No Twitter, além de utilizar sua página - de mais de 540 mil
seguidores - como espaço estratégico de divulgação publicitária para seus produtos (CDs,
DVDs, livros e shows) quase sempre “retweetando” as publicações de outras pessoas (tabela
1), o padre fala de si, emite opiniões como consumidor (tabela 2), partilha sua rotina diária
(tabela 3), expõe seus parâmetros de espiritualidade (tabela 4) e pensamentos variados sobre a
“vida” (tabela 5) – as duas últimas se constituindo como as postagens que mais conseguem
adesões como favoritas, além de obterem recordes de “retweets”.
POSTAGEM
Participe no dia 7 de abril da Festa da Misericórdia na CN. Haverá também gravação do DVD do
@pefabiodemelo: http://bit.ly/WhHuol.
Lindo e emocionante a gravação do DVD do Padre Fábio de Melo na Cancao Nova.
UM DOS MAIS BELOS ENCONTROS DA MUSICA CATÓLICA !!!!! Hoje 06 de abril na Canção
19
Principal expoente do movimento neopentecostal no Brasil, fundada em 1977 por Edir Macedo.
20
Nesse caso só são permitidas micro-postagens como um diário pessoal (ideia inicial para os blogs) de apenas
140 caracteres cada.
1824
Nova DVD @pefabiodemelo !
Gravação do #DVD @PeFabiodeMelo aqui na @cancaonova saiba + http://youtu.be/hIOi3OQzJoQ?a
Tabela 1 – Exemplos de Retweets promocionais dos produtos dados pelo Padre Fábio
POSTAGEM R
REPERCUSSÃO
Vergonhosa a cobertura da @Vivoemrede aqui em Manaus. 53 Retweets
13 Favoritos
O pior é que a gente não tem pra onde correr. Já tive Tim, Claro e Nextel. 79 Retweets
Agora tenho dor de cabeça, no estômago, nas costas... 24 Favoritos
O encanador cobra 120 reais só pela "visita". Será que por este preço a 64 Retweets
visita inclui um bolo de fubá? 31 Favoritos
Agora, sem brincadeira, eu sempre gostei dos produtos da marca. Vamos 30 Retweets
aguardar o resultado das investigações. 18 Favoritos
POSTAGEM R
REPERCUSSÃO
Hoje cantamos em Borba, AM, coração da Amazônia. Povo querido, 53 Retweets
acolhedor. É uma honra poder conhecer o Brasil. 13 Favoritos
Hoje estaremos no Clube Português em Recife. Será as 21H. 39 Retweets
17 Favoritos
Hoje tivemos a primeira reunião para preparar a gravação do DVD. Será dia 98 Retweets
06/04 na Canção Nova, em Cachoeira Paulista 34 Favoritos
POSTAGEM R
REPERCUSSÃO
Não há um só dia em que não necessite ser protegido de mim mesmo. O 394 Retweets
algoz que pode me derrotar não está fora. Ele se esconde é aqui. Em mim 96 Favoritos
Não é possível admitir que o amor a Deus justifique o nosso desamor aos 499 Retweets
humanos. 132 Favoritos
Não é sempre que Deus pode ser encontrado nos altares. Há momentos em 600 Retweets
que Ele habita é o coração da dor. 176 Favoritos
POSTAGEM R
REPERCUSSÃO
A estrada que nunca é longa. A que nos devolve aos que amamos. 252 Retweets
93 Favoritos
A arte é a beleza a nos contar os fatos. 163 Retweets
55 Favoritos
Impressionante como necessitamos encontrar culpados para justificar nossas 661 Retweets
incompetências. 183 Favoritos
Percebe-se que, por utilizar o Twitter com uma participação mais informal, pessoal e
interativa, os discursos possuem uma dada regularidade, mesmo havendo conteúdos
1825
heterogêneos no espaço, que podemos caracterizar, de acordo com Foucault (2008), como
uma formação discursiva – evidenciando as regularidades que se relacionam com uma
formação ideológica (definida como um ajuntamento complexo de representações e práticas
ideológicas atreladas às posições de classes em confronto na esfera de uma dada formação
social).21
A partir dessas colocações, a análise que realizamos do discurso desse popstar da fé católica,
nos conduz à percepção de um sujeito ativo, que trabalha e que interfere, não apenas alguém
que é meramente afetado pelo discurso católico que, por ele, “deve ser proferido”.
Obviamente entendemos que as condições de produção “condicionam” tal discurso (trata-se
de um sacerdote católico que usa o título de Padre na sua página pessoal do Twitter e ainda se
constitui como um representante da Igreja Católica), mas não necessariamente determinam,
afinal só o entendimento de um sujeito ativo pode explicar porque “as coisas foram como
foram” – e vemos, por exemplo, um Padre assumido como “consumidor” e que se permite
“filosofar” e comentar sobre assuntos cotidianos, estes totalmente desvinculados da religião
que professa.
Ressaltamos ainda que o fato de o sujeito, no caso em análise o Padre Fábio de Melo, não ser
considerado o centro do discurso católico que ele representa, não significa necessariamente
que ele seja apenas um sujeito afetado e estático, por meio do qual as determinações sociais
chegariam ao Outro. A própria língua permite manobras, desvios ou escapes, fazendo com
que ocorra uma escolha no modo do dizer e do não-dizer: o padre, no Twitter, quase nunca se
promove como artista – para isso, ele usa os outros (seguidores) retweetando as postagens de
dimensões mercadológicas relacionadas a ele – o que corrobora com o fato de que o Padre
parece perceber que Twitter tem um forte potencial para construção de negócios e promoção
de “marketing on-line” (KOMM & BURGE, 2009).
Com efeito, Komm & Burge (2009) apontam para a eficiência do Twitter na promoção de
produtos no meio web e para a ampliação do faturamento de empresas, marcas e
personalidades que o utilizam com fins promocionais, ressaltando, inclusive, ser possível zerar
os custos iniciais de comunicação nesse tipo de mídia – e mesmo que Fábio de Melo saiba do
21
Neste contexto, Pêcheux e Funchs (1990) argumentam que as formações discursivas existem a partir das
formações ideológicas. Portanto, as formações ideológicas induzem o que o sujeito pensa e as formações
discursivas o que ele diz. Não é à toa que através da formação discursiva o sujeito edifica o seu discurso e acaba
por (re)produzir a realidade. É justamente por este atrelamento ao contexto do social que Althusser (1974) vem
afirmar que a constituição do sujeito deve ser encontrada no bojo da ideologia.
1826
potencial de seus 540 mil seguidores e monitore as postagens relacionadas ao seu nome
(comprovado por seus retweets), ele parece bem mais preocupado no Twitter em projetar para
si uma imagem positiva, cotidiana e “normalizada”, mas com fortes alicerces espirituais e
propositalmente desvinculada do artista que se autopromove para vender CDs, DVDs e livros.
Nos espaços das mídias sociais utilizadas pelo Padre Fábio, e em especial no Facebook, sua
atuação ganha total relevância discursiva e notoriedade, como um local em que os produtos
ligados à sua personalidade estão expostos – as postagens são, em grande medida, para falar de
seus shows, seus CDs, seus livros, suas aparições na mídia – e nunca na primeira pessoa, como
no Twitter. A tônica é a promoção da atuação do padre na dimensão espetacular e produtiva do
“artista” dono da fanpage no Facebook, a qual é utilizada em um sentido visivelmente
comercial, como podemos observar em alguns exemplos que selecionamos a seguir (tabs.6 a8):
PRODUTO POSTAGEM
CD – venda Já está disponível nas Lojas Americanas o CD "No Coração da Jornada,"
álbum oficial da Jornada Mundial da Juventude - 09.05.13
1827
CD – lançamento Padre Fábio de Melo lança em breve seu novo álbum de músicas religiosas,
"Estou Aqui"! Neste lançamento, pela primeira vez na carreira Padre Fábio
vestirá paramentos litúrgicos em comemoração dos seus 10 anos como
sacerdote. O lançamento está previsto para dia 8 de outubro. – 27.09.2012
CD – venda autografada Hoje tem tarde de autógrafos do álbum "Estou Aqui" na Lojas Americanas
do Shopping ABC em Santo André! O evento está marcado para 16h. Não
perca! - 22.11.12
PRODUTO POSTAGEM
DVD – Show Agora você pode assistir ao show do DVD "No Meu Interior Tem Deus"
no Netflix Brasil! Clique aqui e confira – 06.05.13
Clip de música O iTunes chegou no Brasil! Baixe o novo clipe do Padre Fábio de Melo
"A Vida do Viajante" – 13.12.11
Vídeo de DVD Assista no VEVO ao vídeo "Vida de Viajante" que faz parte do novo DVD
"No Meu Interior Tem Deus". Clique aqui: http://sonym.us/7EnIV –
24.11.11
Vídeo síntese das Curta o vídeo mostrando um pouco do que já rolou por aqui! – 28.06.12
postagens no Facebook
PRODUTO POSTAGEM
Show Padre Fábio de Melo - Show: "Queremos Deus" (70 fotos) – 08.04.13
Aparição na mídia – O Padre Fábio de Melo é capa e matéria da revista Isto É desta semana. Leia
Revista isto É aqui. – 28.05.12
Aparição na mídia – Confira a matéria do Jornal A Tribuna com o Padre Fábio de Melo –
Jornal A Tribuna 19.12.11
Show Show Natal Mágico (23 fotos) – 03,12.11.
Aparição na mídia – TV Encontro de fé! Gravação do TV Xuxa com Padre Marcelo Rossi, Padre
Xuxa Fábio de Melo, Damares Oficial e Regis Danese. – 14.03.12
Aparição na mídia – Padre Fábio de Melo no "Estrelas" (3 fotos) – 26.01.13.
Programa Estrelas – TV
Globo
Nos conteúdos selecionados para demonstrar como se dá a presença do Padre Fábio de Melo
na rede social Facebook, tornam-se evidentes as estratégias de marketing via a vasta produção
de conteúdos de teor publicitário para divulgar shows, lançamentos de livros, CDs e DVDs,
além de informar os locais onde tais produtos estão disponíveis para aquisição e ofertar
“amostras” da produção artística, por meio de links com clips e músicas. Trata-se, portanto, de
um lócus personalizado e adequado (repleto de fãs) para a autopromoção dessa personalidade
midiática que também é, antes de tudo, religiosa.
1828
Considerações finais
É bem provável que a dimensão espetacular e mercadológica das ações do Padre Fábio se
constituam como respostas ao contínuo imperativo que as diversas organizações religiosas –
incluída a Igreja Católica – tem para contrapor às demandas dos fiéis-consumidores, o que
solicita, por conseguinte, a modelagem no conteúdo discursivo, a oferta de produtos atrativos
(na maior parte das vezes de cunho espetacular e/ou diversional) e a instauração de um novo
tipo de diálogo. Segundo Guerra (2003), essa “dependência” das instituições religiosas em
relação às aspirações e desejos dos consumidores “parece variar de maneira diretamente
proporcional ao nível de competição em um dado mercado religioso e também se relaciona
com as mudanças no papel social da religião na vida dos indivíduos” (GUERRA, 2003, p.2).
No caso analisado, nos fica claro que o catolicismo que estimula e promove a emergência de
padres cantores, artistas e escritores não ficou isento do entrelaçamento e absorção do
contexto espetacular e mercadológico que dita o consumo moderno e cria demandas atrativas
para a manutenção e ampliação de fiéis que, se não fosse por tais atrativos, provavelmente já
teriam “batido em retirada”.
1829
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. J.J. Moura Ramos.
Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974.
ALVES, Maria Lúcia; BRONSZTEIN, Karla Patriota. Mega-events and religious spectacles:
new singularities within the consuption society. In: 31º Conférence de la SISR - Société
Internationale de Sociologie des Religions, 2011, Aix en Provence. 31º Conférence de la
SISR - Société Internationale de Sociologie des Religions, 2011.
ANDRADE JUNIOR, Péricles Morais de. Uma estrela da fé: o padre Marcelo Rossi e o
catolicismo brasileiro. Orientação de Lília Junqueira. Tese (Doutorado em Sociologia) UFPE,
Recife, 2006.
MARTHE, Marcelo; MARTINS, Sérgio. Cantar com fé. In: Revista Veja, Edição 2098, 2009.
SOUZA, André Ricardo de. Igreja in concert: padres cantores, mídia e marketing. São Paulo:
Annablume, 2005.
1830
1831
E quando Deus vira Google? O adolescente
e sua percepção sobre Deus no Facebook
Introdução
A dinâmica das relações pessoais, econômicas e até mesmo religiosas está apresentando às
pessoas uma nova maneira de agir, interagir e até mesmo expressar a sua espiritualidade ou
adesão religiosa. A mobilidade e a pluralidade é uma realidade que está sendo debatida e
analisada nas mais diversas áreas de estudo do campo da Teologia e das Ciências da Religião.
Adolescente virtualizado
Quando se aborda a temática “Adolescência” em pleno século XXI, é preciso estar atento as
constantes modificações identitárias e culturais que este grupo possa estar inserido. A
diversidade e a virtualidade possibilitam uma gama de características que dificultam o
enquadramento do adolescente numa categorização estanque. Atualmente, os adolescentes
possuem diferentes características culturais, identitárias e sociais e ele não é mais visto por
sua singularidade e sim por sua pluralidade. De acordo com Monica Macedo:
1
Doutoranda em Ciências da Religião pela EST. Membro dos GPs História do Cristianismo na América Latina e
Currículo, identidade religiosa e práxis educativa – EST. Bolsista CAPES. Orientada pelo Prof. Dr. Wilhelm
Wachholz. Contato: kate@novaformacultural.com.
1832
Os tempos atuais, marcados pelo imediatismo e pela imagem, são também, produtores de
inegáveis avanços científicos e tecnológicos nos mais diversos campos do saber. O ser
humano, contudo, está sujeito às vicissitudes do tempo e é, irremediavelmente, incompleto,
como sujeito psíquico. É neste contexto de fragilidade que se estabelece o ideário de uma
imagem proposta pela cultura contemporânea na qual o ter tem prioridade em detrimento do
ser. Esse é o cenário das demandas contemporâneas o qual deverá abarcar o processo de
construção da identidade do adolescente. (MACEDO, 2010, p. 112)
Durante a pesquisa, este post publicado na Página Comunitária Psicopatas Anônimos chamou
a atenção por representar bem o quanto a expectativa da “beleza” adolescente está mais aos
olhos dos adultos do que do próprio adolescente.
Há muita pressão externa em cima do sucesso adolescente do século XXI, nesta época, que os
adultos consideram a mais bela de todas as épocas. A família cobra responsabilidade, a escola
cobra resultados e seus pares a popularidade. Além disso, ele tem um universo midiático que
diz o quanto ele deve pertencer a um padrão estético específico e o quanto ele deve ser bem
sucedido para ser uma pessoa realizada. Ser adolescente no século XXI parece ser muito mais
complicado do que ter sido adolescente no século XX. Antes era necessário manter e moldar
2
Página Comunitária Psicopatas anônimos. 771 curtidores e 641 compartilhamentos. Disponível em:
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=551394068251498&set=pb.314187328638841.-
2207520000.1374195935.&type=3&theater >.Acesso em 17 de jul. 2013.
1833
apenas um perfil identitário, hoje, é preciso definir a identidade na vida real e atualizar
constantemente as múltiplas identidades do espaço virtual.
Imagem de Deus
Pensando no universo adolescente do século XXI, que precisa construir e manter um perfil
identitário dinâmico surge o seguinte questionamento: Como o adolescente do século XXI
está construindo e compartilhando a imagem de Deus no Facebook?
O desenvolvimento da imagem de Deus é uma construção que inicia nos primeiros anos de
vida de uma criança, e com o passar dos anos essa imagem vai se modificando de acordo com
as fases de desenvolvimento humano. De acordo com a pesquisa de Ana Maria Rizzuto:
Deus é encontrado na família. Na maior parte do tempo, ele é oferecido pelos pais à
criança; ele é encontrado na conversa do dia a dia, na arte, na arquitetura e em eventos
sociais. Apresentam-no como sendo invisível, mas apesar disso, real. Por fim, a maioria das
crianças é apresentada oficialmente à “casa de Deus”, um lugar em que Deus supostamente
“mora” de uma forma ou outra. Esta casa é governada por regras muito diferentes de
quaisquer outras; a criança é apresentada ao ritual, ao comportamento oficial que se espera
dela ali e a outros eventos em que o encontro com Deus é socialmente organizado
(RIZZUTO, 2006,p.23).
O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira ,ao comparar os dados do senso de 2000 e de 2010,
utiliza a expressão desafeição religiosas e ressalta que houve “o crescimento de jovens entre
15 e 19 anos sem religião. As novas gerações brasileiras têm uma forma religiosa muito
diferente das antigas gerações. Em termos de projeção, isso é algo a ser pensado”.3
O afastamento institucional não está somente entre os adolescentes, mas também entre os
adultos. Esse afastamento de pais e filhos está gerando uma crise nos valores antes passados
pela família ou pela comunidade religiosa a qual o grupo familiar pertencia, além disso a
imagem de Deus não é construída dentro do ambiente familiar, mas fora dele.
Esse desmoronamento do saber religioso está evidente no pensamento adolescente uma vez
que sua definição de Deus está relacionada ao Google, como foi apresentado em um blog
disponível na internet. O texto apresenta evidências que Google está diretamente relacionada
a figura de Deus. O texto foi colocado na íntegra, justamente para que possa gerar reflexão
por parte do leitor.
3
RIBEIRO, Pedro de Oliveira. A desafeição religiosa de jovens e adolescentes. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511180-desafeicao-religiosa-esse-conceito-seria-central-para-
entendermos-os-sem-religiao-entrevista-especial-com-pedro-ribeiro-de-oliveira. Acesso em 03/06/2013.
1835
9 provas de que Google é Deus
O Google é a entidade mais próxima de atingir a onisciência (saber de tudo) que existe. Ele
indexa mais de 9,5 bilhões de páginas da web, o que é mais do que qualquer outro
mecanismo de busca. Além disso, ele organiza e distribui essas informações, para nós,
meros mortais.
Você pode fazer uma prece ao Google na forma de busca para achar a solução de qualquer
problema. O Google te dirá tratamentos para doenças, como melhorar a saúde, sites em que
você pode encontrar o amor da sua vida e qualquer outra coisa que lembre uma prece
normal. O Google aponta o caminho e deixa você tomar uma decisão.
5- O Google é infinito
A Internet crescerá para sempre, e o Google irá para sempre indexar seu crescimento
infinito.
Ao enviar suas opiniões, fotos, textos e pesquisas o Google os guardará em cachê páginas
da web armazenadas em diversos servidores. Quando você morrer, você irá existir para
sempre na memória do Google. Uma espécie de vida após a morte.
Ele não é mal. Na verdade, isso faz parte da filosofia da Google, uma empresa não precisa
ser má para ganhar dinheiro. Além de não ter sido usado de motivo para nenhuma guerra,
ataque terrorista, sacrifício ou invasão.
De acordo com o Google, termo “Google” é mais procurado que os termos “God”, “Jesus”,
“Allah”, “Buddha”,”Christianity”,”Islam”, “Buddhism” e “Judaism” juntos.
9- Evidências
Você pode encontrar evidências da existência do Google com facilidade. Se ver é crer, vá
agora mesmo em google.com e comprove você mesmo que ele existe. Para acreditar na
existência do Google você não precisa nem de fé.4
4
KNUTTZ, Gilberto. Nove provas de que o Google é, na realidade, Deus. Disponível em
<http://cybervida.com.br/nove-provas-de-que-o-google-e-na-realidade-deus>. Acesso em 04 jun. 2013.
1836
Não é raro encontrar um adolescente que confirme e até acredite na ideia apresentada de
forma humorística no meio virtual. O adolescente do século XXI está diretamente ligado à
tecnologia, logo, sua relação com a figura de Deus acaba sendo substituída ou associada ao
pensamento puramente científico não dando espaço ao pensamento humanístico teológico.
Ao iniciar a pesquisa, a palavra Deus foi colocada no campo de buscas do Facebook, a partir
da conta pessoal da autora deste artigo. As quatro primeiras Páginas comunitárias foram
analisadas, como mostra a imagem abaixo:
Figura 15
Dentre estas quatro, apenas uma estava dentro do critério inicial de análise, onde a idade
popular dos participantes das páginas fosse a partir dos 13 anos de idade. Desta forma, a
Página Comunitária que foi pesquisa e será analisada neste artigo, será a Página “Deus” que
possui 509.927 curtidores, idade popular dos 13 aos 24 anos e a sua maioria pertence a cidade
de São Paulo.6 As demais Páginas não foram usadas neste trabalho, pois estavam relacionados
a idade popular a partir dos 18 anos, o que fugia do foco etário desta pesquisa que se detém a
análise da visão de Deus compartilhada por adolescentes entre 13 aos 17 anos.
A Página Deus possui até o momento 25.990 postagens em sua linha do tempo. Essas
postagens promovem mensagens e imagens relacionadas com a figura de Deus, Jesus Cristo e
5
Pesquisa realizada entre os meses de junho-agosto de 2013 a partir do perfil pessoal da autora. Disponível em <
https://www.facebook.com/kate.rigo.9>. Acesso em 03 jun. 2013.
6
Página Comunitária Deus. Disponível em < https://www.facebook.com/AmoDeusS2?fref=ts>. Acesso em 04
jun. 2013.
1837
a vendas de sapatos e roupas que não seguem um estilo, convencionalmente, conhecido como
cristão.
Figura 27
Figura 38
Mesmo com a imagem, buscando uma ligação com o adolescente a partir da ideia de festa, o
post teve apenas 23 compartilhamentos e 287 curtir. O que demonstra que o adolescente, no
espaço virtual, não está compartilhando e nem curtindo com frequência a figura de Deus.
7
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/media/set/?set=a.32170
9647940466.69498.321694901275274&type=3>. Acesso em 03 jul. 2013.
8
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=416634888447941&
set=a.321709647940466.69498.321694901275274&type=3&theater>. Acesso em 06 ago. 2013
1838
Ainda mais se considerarmos que esta página possui um número superior a 500 mil
agregados, ou seja, Deus é curtido, mas não compartilhado no espaço virtual.
Figura 49
Abordar a temática da adolescência envolve refletir também sobre os efeitos dos tempos de
consumo, fluidez e imediatismo sobre a família. Constata-se na contemporaneidade haver
um colapso das hierarquias representadas pelas instituições tradicionais; entre elas, situa-se
a família. [...]
Percebe-se que o recurso parental à gratificação proporcionada aos filhos pela via do
consumo, em certos casos, busca camuflar ou minimizar situações de escassez ou privação
de afeto por parte da família, podendo promover, cada vez mais, o enfraquecimento do
vínculo afetivo. (2010, p.116)
9
Página Comunitária Deus. Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=416634
888447941&set=a.321709647940466.69498.321694901275274&type=3&theater>. Acesso em 06 ago. 2013
1839
A família está cada vez mais desconectada do universo do adolescente virtualizado. E isso faz
com que o mesmo, deixe de ter a oportunidade de pensar e de construir uma imagem de Deus.
Além da família, as instituições escolares confessionais também não conseguem criar
momentos de discussão com o adolescente sobre a figura de Deus. Essa falta de espaços para
o diálogo dentro do âmbito familiar e escolar das instituições particulares confessionais está
fazendo com que o adolescente busque suas respostas e seu espaço de expressão nas redes de
relacionamento como o Facebook, já que este está sempre disponível para divulgar seus
pensamentos, suas angústias e suas crenças.
Considerações finais
A figura de Deus está perdendo a sua popularidade entre os adolescentes urbanos de classe
média/alta, por não ser visível, por não oferecer respostas tão instantânea quanto o Google e
principalmente por não dar ao adolescente a possibilidade da vida eterna na terra, como o
Google consegue proporcionar. Esse afastamento ou até mesmo descrença em relação a figura
de Deus, na sociedade urbana elitizada está fazendo com que os adolescentes vivam uma
espécie de vazio espiritual, pois não se acham finitos e não se percebem como pessoas dignas
de serem amadas pelo outro, a evidência disso está no aumento da violência entre estes
adolescentes, na falta de vínculos amorosos duradouros, no consumo de entorpecentes e na
própria ideação ou ato suicida que está aumentando cada dia mais nas redes de
relacionamento do Facebook. É necessário criar alternativas de diálogo no meio familiar e
escolar, para que as futuras gerações tenham a oportunidade de voltar a pensar sobre a
existência ou não de alguma divindade maior que nos guarde.
Referências
1840
________; AYUB, Renata. A escuta da adolescência em tempos de excessos. In: MACEDO,
Monica Medeiros Kother; GOBBI, Adriana Silveira. Adolescência e psicanálise: intersecções
possíveis. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
RIBEIRO, Jorge Cláudio. Religiosidade jovem: pesquisa entre universitários. São Paulo:
Loyola/Olho d´Água, 2009.
RIZZUTO, Ana Maria. O nascimento do Deus Vivo. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
Internet
1841
1842
Lápides, flores e velas virtuais: os rituais post-mortem nos
cemitérios on-line (1990-2013)1
Julia Massucheti Tomasi2
Introdução
Realizar um cortejo fúnebre, vestir o morto com sua mortalha, participar do velório, tocar os
sinos de morte e visitar o cemitério no dia 2 de novembro são alguns dos rituais de morte
presentes no decorrer dos séculos. Entre os variados rituais relacionados com a morte do ente
está o luto - palavra que remete aos sentimentos de dor e tristeza, o luto tem variados
significados, mas quando mencionado, é logo associado ao pesar pela morte de alguém. 3 O
luto, como bem sintetiza Edgar Morin (1997, p. 80), “exprime socialmente a inadaptação
individual à morte, mas, ao mesmo tempo, ele é este processo social de adaptação que tende a
fechar a ferida dos indivíduos sobreviventes.”
De acordo com Jeffrey Kauffman (2004, p. 321), que atribui várias definições para a palavra
luto, esta pode ser compreendida como
[...] uma resposta psicológica à morte ou a outra qualquer perda, e é igualmente a expressão
ou comunicação dessa resposta. [...] O luto é, então, entendido como o ritual do luto.
O luto é um processo de posicionamento face à perda e à morte.
O luto é habitualmente descrito como ocorrendo em estágios ou fases. As teorias
desenvolvimentistas dividem o trabalho de luto numa série de fases ordenadas
sequencialmente no tempo.
No decorrer da história, o luto foi vivenciado de diferentes formas, sendo que muitos dos
rituais cristãos de luto encontrados desde o medievo, e que perpassaram até a
contemporaneidade, são herdados do luto judaico. Entre tais rituais pode-se destacar o luto
1
Este artigo faz parte da dissertação intitulada “Eternamente Off-Line”: as práticas do luto na rede social do
Orkut no Brasil (2004-2011), defendida no ano de 2013, no Programa de Pós-Graduação da Universidade do
Estado de Santa Catarina.
2
Mestre e graduada em História pela UDESC. Doutoranda em História pela UFSC. Contato:
juliamtomasi@hotmail.com
3
A morte de uma pessoa próxima costuma causar muitas dificuldades para a vida dos que ficam, podendo
ocasionar implicações psíquicas na vida do enlutado, desenvolvendo “até o aparecimento de doenças
psicossomáticas, depressão, ansiedade, melancolia e psicopatias.” (OLIVEIRA, 2001, p. 92). Alguns enlutados
podem demonstrar seu pesar por algum tempo, atingindo inclusive algumas décadas, como aqueles que passam
por uma morte trágica, enquanto outros podem expressar mais brevemente. Do mesmo modo que a duração do
luto, pode-se destacar a forma como este é manifestado, sendo que algumas pessoas conseguem demonstrar sua
dor mais naturalmente, enquanto outras são mais recolhidas e introspectivas. Enfim, o luto, como a memória, vai
modificando-se com o passar dos anos, tendo em vista que “não é um processo moldado (‘elaborado’) no tempo
histórico.” (PORTELLI, 2006, p. 109).
1843
fechado, que costuma findar com a missa de sétimo dia, as missas mensais e anuais realizadas
em memória dos entes mortos, a celebração anual do dia de finados, entre outros ritos de
morte, conforme destaca Júlio de Queiroz (2008, p. 73).
Na primeira metade da Idade Média, as práticas de luto eram um dos rituais de morte mais
dramáticos. Estas eram manifestações bastante violentas, pois os enlutados, logo após a morte
do ente querido, “rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, esfolavam as faces,
beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes,
teciam elogios ao defunto, o que é uma das origens da oração fúnebre”, como apresenta Ariès
(2003, p. 107-108).
Já era encontrado também no medievo o trabalho feito pelas carpideiras, as mulheres que
eram pagas para chorar e demonstrar a dor da perda durante o funeral, através de choros,
gritos e lamentações (ARIÈS, 2003, p. 128). Em muitos países, as carpideiras tomaram o
espaço anteriormente ocupado pela família e amigos durante os rituais de post-mortem,
perdendo-se com isso a autenticidade e espontaneidade4.
Diferentemente, do final da Idade Média até o século XVIII, o enlutado tinha que expressar
sua dor da perda por determinado período, mesmo que esta não estivesse mais presente, de
modo que o tempo de luto poderia “ser reduzido ao mínimo por um novo casamento
precipitado, mas nunca era abolido.” (ARIÈS, 2003, p. 71). Outra característica é a visitação
constante dos familiares e amigos à casa da família enlutada, sendo que nesse período teve
início o ritual de reclusão e resguardo dos enlutados, afastando-os inclusive de algumas
exéquias5. O objetivo para o período de reclusão é explicado por Ariès através de duas
motivações: permitir que os sobreviventes que estavam realmente enlutados e infelizes
4
As carpideiras ainda são bastante encontradas no Oriente Médio, já que através delas aumenta-se “a intensidade
dos lamentos e as dimensões da tristeza socialmente obrigatória: elas se arrancam os cabelos, espalham cinzas,
rasgam suas roupas, laceram a si mesmas com as unhas, num ritual que talvez provoque mais emoção do que
exprima”, como ressalta Rodrigues (2006, p. 41).
5
Durante o século XIX, a reclusão e o resguardo dos familiares do falecido se tornaram mais voluntários do que
obrigatórios, não sendo mais proibida a participação dos familiares nas exéquias, como nos cortejos e velórios,
de modo que “não mais se tolerava que fossem as mulheres afastadas dos serviços fúnebres, como antigamente”
conforme aponta Ariès (2003, p. 249). As mesmas práticas de reclusão estiveram presentes em algumas cidades
brasileiras até a primeira metade do século XX, como observado em Urussanga, interior de Santa Catarina.
Nessa cidade, muitos dos familiares do falecido, em especial os mais próximos, costumavam ficar “durante
meses e às vezes anos resguardados dentro de casa, visto que a vida social dos enlutados era controlada.”
(TOMASI, 2010, p. 96).
1844
pudessem resguardar sua dor do mundo, “consentindo-lhes esperar, como um doente em
repouso, a amenização de seus sofrimentos” (ARIÈS, 2003, p. 247); e um meio de “impedir
os sobreviventes de esquecerem demasiado cedo o falecido, excluindo-os durante um período
de penitência, das relações sociais e dos prazeres da vida profana.” (ARIÈS, 2003, p. 248).
A partir do século XIX, modificam-se essas formas de praticar o luto, sendo tais
transformações como um retorno aparente, depois de sete séculos, dos modos espontâneos
presentes na Alta Idade Média (ARIÈS, 2003, p. 72). Os enlutados passam então a demonstrar
o sofrimento espontaneamente ou de modo histérico para os psicólogos de hoje: chora-se,
jejua-se, desmaia-se e desfalece-se, tocando até mesmo os limites da loucura, de forma que
essas manifestações eram para os enlutados bastante legítimas e necessárias. Tal “excesso”
das práticas de luto durante o século XIX tem para Ariès (2003, p. 72) um significado: “os
sobreviventes aceitam com mais dificuldade a morte do outro do que o faziam anteriormente.
A morte temida não é mais a própria morte, mas a do outro.”
Essa individualização da dor da perda acaba fazendo com que a morte diga respeito apenas ao
enlutado, que a vivencia desamparado, de modo que nenhum enlutado pode escapar “ao
trabalho de luto, o aspecto mais angustiante da nossa memória, pois nos confronta com a
presença invisível daqueles que nos precederam”, como enfatiza o historiador Michel Vovelle
(2010, p. 13). E quanto mais o falecido for “próximo, íntimo, familiar, amado ou respeitado,
isto é, ‘único’, mais violenta é a dor; nenhuma ou quase nenhuma perturbação se morre um
ser anônimo, que não era ‘insubstituível’.” (MORIN, 1997, p. 32).
6
As características da morte e das práticas do luto apresentadas no decorrer desse artigo se restringem a morte
ocidental, em especial dos países católicos. Podem-se destacar, nesse sentido, alguns rituais bastante diferentes
dos encontrados no ocidente e presentes em algumas partes do mundo. Segundo Sigmund Freud (1996, p. 68-
69), um “dos costumes mais estranhos, e ao mesmo tempo mais instrutivos, que estão ligados ao luto é a
proibição de pronunciar o nome da pessoa morta. Esse costume é extremamente disseminado, manifesta-se de
variadas formas, e tem conseqüências importantes. É encontrado não apenas entre os australianos e polinésios
[...], mas também entre povos separados uns dos outros por grandes distâncias como os samoiedos da Sibéria e
os todos da Índia Meridional [...]”.
1845
E, contemporaneamente, como bem destaca Ariès, expressar a dor da perda não causa muitas
vezes sentimento de pena nos indivíduos, mas sim
Conforme destaca Jeffrey Kauffman (2004, p. 322), as transformações dos rituais de luto na
era pós-moderna são profundamente evidentes, sendo que “os rituais de luto perderam o seu
poder normativo e o seu valor de orientação implícito, as teorias e os estudos sobre o luto
através dos métodos das ciências positivas e da psicologia surgiram para ajudar a definir e a
sancionar o luto”.
Espera-se que o indivíduo enlutado seja discreto no seu trabalho de luto, de modo que
demonstre pouca ou nenhuma lágrima e comoção nos rituais de morte, como no velório, no
enterro e nas missas realizadas em intenção ao ente falecido, segundo evidencia o antropólogo
Mauro Guilherme Pinheiro Koury (2002, p. 80): “Discreto, também, deve ser, o
comportamento do enlutado nos diversos trâmites socialmente valorizados de despacho do
corpo e da expressão de sofrimento público no processo de despedida (velório, enterro, missa
de sétimo dia etc.).”
Nesse mesmo contexto, percebe-se que a sociedade, que nos séculos passados fazia-se
presente após a morte, visitando e apoiando o enlutado, agora está, em muitos casos, distante,
talvez pelo medo de não saber expressar as condolências adequadas ou vergonha de mostrar a
dor, o sofrimento e as lágrimas.
Em algumas cidades brasileiras, sobretudo das áreas rurais, percebe-se que durante a primeira
metade do século XX, muitas práticas do luto ainda eram constatadas, visto que o luto era
representado pela vestimenta preta,7 pelas visitas e mensagens de condolências de parentes e
amigos e pelas intervenções na vida social, como o resguardo dentro de casa.
Entretanto, em grande parte das cidades brasileiras, as transformações das práticas do luto
foram se intensificando no decorrer do século passado. Entre as décadas de 1960 e 1970, o
luto gradualmente foi deixando de lado seu caráter público e interativo, e a vestimenta preta
7
Às vezes a cor preta não estava em toda a vestimenta, mas ao menos em alguma peça ou fita preta presa na
roupa ou no chapéu.
1846
“como sinônimo de dor cai em desuso”, conforme destaca a socióloga Marisete Horochovski
(2009, p. 12). E no século XXI, a individualização da dor da perda pela morte faz parte da
vivência de muitas pessoas e o luto tornou-se para muitos indivíduos um problema, quando
não uma doença.8
Além disso, durante o século XX e a primeira década do XXI, o tempo de duração do luto
diminuiu, de forma que as marcas públicas anteriormente tão comuns como as faixas pretas
colocadas em frente às casas e comércios, que indicavam que se estava de luto, apagaram-se.
E a ausência de alguns rituais de morte, como a não realização de um velório ou
sepultamento, deixam muitos familiares e amigos do falecido “sem meios de expressar o luto
e o pesar, tão necessário nessas circunstâncias.” (OLIVEIRA, 2001, p. 25). Assim, o
sofrimento e a dor da perda podem estar presentes na vida do enlutado durante meses, anos e
décadas, mas isso não deve ser demonstrado fora do âmbito individual.
Alguns enlutados acabam inclusive preservando a memória da pessoa morta por meio de seus
objetos pessoais, como as roupas, sendo, às vezes, mantido intacto o quarto do falecido, como
se este fosse retornar algum dia9. Para tais indivíduos, o processo do luto pode ocasionar
também os bloqueios de memória, como esquecimentos de experiências vivenciadas junto do
ente, antes deste falecer, em especial os fatos que ocorreram próximos à data da morte, além
dos casos de enlutados que não recordam do velório ou enterro, aos quais efetivamente
compareceram e participaram.
8
Muitos enlutados são atualmente vistos ou tratados como depressivos.
9
Segundo Roberto DaMatta (1997, p. 158), para muitos enlutados, seus entes mortos parecem não morrer,
permanecendo vivos nas suas lembranças diárias, demandando atenção e reverências, sendo que, para DaMatta
(1997, p. 155) “quanto mais saudade, mais intensa é a memória do morto ou do lugar. Quanto menos saudade,
menos intensidade na recordação.”
1847
Os rituais de morte nos cemitérios on-line
Nesse contexto, percebe-se que contemporaneamente muitos enlutados utilizam novos meios
e espaços para expressarem a dor e a perda, como os sites de cemitérios on-line, encontrados
desde meados da década de 1990, além das redes de sociabilidade, como os perfis pessoais de
mortos na rede social do Orkut. Estes são ambientes virtuais em que os enlutados podem
enviar mensagens de pesar nos memoriais de seus entes falecidos.
Assim, no decorrer dos séculos XX e XXI, além das transformações dos rituais post-mortem
descritos anteriormente, como a práticas do luto que se tornaram tão individualizadas,
solitárias e introspectivas, percebem-se, ao mesmo tempo, novas formas em lidar com a perda
no mundo virtual. As contemporâneas práticas do luto na internet, como deixar mensagens de
pêsames ou páginas on-line recordando o ente falecido, são encontradas em muitos sites de
cemitérios on-line, que são criados para lembrar e preservar a memória do falecido. Existentes
desde meados da década de 1990 em diversos países, como Alemanha, Estados Unidos,
França e Portugal, os cemitérios on-line têm como principal objetivo disponibilizar páginas
com memoriais de pessoas mortas.
Breves pesquisas na internet são suficientes para encontrar uma grande quantidade de
cemitérios on-line, como o Emorial das Erinnerungs-Portal Menchen gedenken,10 da
Alemanha, o Jardin Celestial Cementerio Virtual11, do Equador e o MyCemetery.com,12 dos
Estados Unidos. Em muitos desses cemitérios, os visitantes podem depositar flores e velas
virtuais13 nos memoriais de cada falecido, além das mensagens de saudade, bastante
frequentes nesses cemitérios on-line.
Um dos mais antigos cemitérios virtuais é o estadunidense “The Virtual Memorial Garden”,14
criado no ano de 1995, por Lindsay Marshall. O site, que tem como único idioma disponível o
inglês, é composto por seções com memoriais de pessoas mortas, de modo que cada falecido
10
Portal Emorial das Erinnerungs-Portal Menchen gedenken: <http://www.emorial.de/>. Acesso em 10 jul.
2012.
11
Portal Jardin Celestial Cementerio Virtual: <http://www.jardincelestial.com/index.html>. Acesso em 10 jul.
2012.
12
Portal MyCemetery.com: <http://www.mycemetery.com/my/index.html>. Acesso em 10 abr. 2013.
13
Para depositar as flores e velas virtuais, os visitantes necessitam adquiri-las nos sites, variando o valor dos
produtos, conforme o cemitério. As velas costumam “apagar” e as flores “murchar” virtualmente depois de sete
dias on-line.
14
Portal The Virtual Memorial Garden: < http://catless.ncl.ac.uk/VMG/>. Acesso em: 10 jul. 2012.
1848
possui um espaço como uma verdadeira lápide,15 com informações gerais, como idade que
possuía, nome completo e datas de nascimento e falecimento. Os visitantes podem criar
gratuitamente tais memoriais, além de possuírem também a opção de incluir uma fotografia
do ente e deixar mensagens de luto, que demonstram quase sempre dor e saudade, como no
memorial a seguir, de uma filha que expressa seus sentimentos pelo falecimento de seu pai,
que morreu no ano de 1983: “I miss you dad, but you'll always be a part of my being. Thanks
for everything! With all my love Your daughter [...]”.16
Nesse cemitério on-line, os memoriais mais frequentes são os de adultos, mas existem alguns
casos de crianças e natimortos, sendo encontrados inclusive memoriais de pessoas que
morreram há anos, como de um bebê que nasceu e morreu no ano de 1927. Alguns desses
memoriais infantis descrevem os últimos momentos de vida da criança, como também o
motivo de sua morte, conforme exemplo a seguir, de um menino que nasceu em 1992 e
morreu em 1995: “[...] was a beautiful child, a happy child. He was doagnosed with cancer at
2 years old. He died just after his third birthday. We love him, and miss him”.17
O site também possui um livro de visitas existente desde o ano de sua criação, de forma que
os internautas podem assiná-lo deixando seu nome, e-mail e mensagem. O livro de assinaturas
possui recados de visitantes de diversas partes do mundo, como México, Rússia, Alemanha e
Inglaterra, sendo possível visualizar as centenas de mensagens criadas desde o ano de 1995,
como algumas expostas abaixo:
A very worthwhile service on the Internet (12/07/1995); Thank you for providing myself
and others with the opportunity to express our bereavement over the loss of loved ones. It is
reassuring knowing that loved ones will forever be immortalized and remembered
(16/07/1995); A great idea. A fitting memorial for the on-line generation (21/07/1995); It
was like being in a real cemetery (30/07/1995); Merging the virtual world of the InterNet
with the virtual world of rememberance is more than logic (26/08/1995); This is a good
page. It will let our loved one live in our hearts for ever (09/11/1995); Thank you so much
15
Nas lápides de uma sepultura física, costumam conter variados dados, como, por exemplo, nome completo do
falecido, datas de nascimento e morte, fotografia, além dos epitáfios.
16
“Eu sinto sua falta pai, mas você sempre será uma parte do meu ser. Obrigado por tudo! Com todo o meu amor
Sua filha [...]” (tradução da autora). Disponível em: <http://catless.ncl.ac.uk/vmg/B/Ba.html>. Acesso em 10 jul.
2012.
17
“[...] era uma criança linda, uma criança feliz. Ele estava com câncer diagnosticado com menos de 2 anos de
idade. Ele morreu logo após seu terceiro aniversário. Nós o amamos, e sinto sua falta” (tradução da autora).
Disponível em: http://catless.ncl.ac.uk/vmg/B/Ba.html. Acesso em: 10 jul. 2012.
1849
for having this website. I'm a very private person when it comes to my emotions, so this
helps me to be able to express my grief. God Bless You! (15/05/2007).18
Outro cemitério on-line bastante acessado pelos internautas e que possui diversificadas
práticas de luto é o “Le Cimetière Virtuel”,19 criado na França, no ano de 2003. Segundo
matéria do site Terra, o Le Cimetière Virtuel foi criado por Daniel Coing-Daguet, uma pessoa
apaixonada por informática, que criou o endereço para fazer uma homenagem a seus artistas,
cantores e escritores preferidos e que já haviam morrido. Depois de algum tempo “ele montou
perfis para os familiares que partiam, e depois para os amigos, os amigos dos amigos. Até que
hoje qualquer pessoa pode se cadastrar no endereço e registrar a página de quem quer que seja
- com a condição de que a pessoa esteja morta” (TERRA, 2007).
O Le Cimetière Virtuel possui grande quantidade de perfis de falecidos, que são criados
gratuitamente, de modo que o acesso aos visitantes não é permitido em todas as páginas dos
memoriais, existindo algumas privadas, acessadas apenas com senha. No memorial de cada
falecido, os enlutados podem depositar flores e velas virtuais e enviar mensagens de dor e
saudade, além de possuir um espaço bastante parecido com uma lápide, tendo em vista que
traz informações pessoais do ente morto e as fotografias para identificá-lo. As velas e flores
gratuitas duram 24 horas no perfil do homenageado, e posteriormente são apagadas. Quanto
às outras homenagens, essas são vendidas pelo site, como os variados tipos de velas e arranjos
de flores virtuais que duram sete dias no perfil, sendo que o vaso de flor mais barato pode ser
18
Um serviço muito útil na Internet; Obrigado por proporcionar a mim mesmo e aos outros a oportunidade de
expressar nosso luto pela perda de entes queridos. É reconfortante saber que os entes queridos serão para sempre
imortalizados e lembrados; Uma ótima idéia. Um memorial adequado para a geração on-line; É como estar em
um cemitério real; Mesclando o mundo virtual da Internet com o mundo virtual de recordação é mais do que
lógico; Os mortos estão por toda parte! Por que não na Internet!? Boa idéia. Obrigado; Muito obrigado por ter
este site. Eu sou uma pessoa muito reservada quando se trata de minhas emoções, então isso me ajuda a ser
capaz de expressar a minha tristeza. Deus vos abençoe! (tradução da autora). Mensagens disponíveis em:
<http://catless.ncl.ac.uk/vmg/1995/aug.html>. Acesso em: 10 jul. 2012.
19
Portal Le Cimetière Virtuel: <http://www.lecimetiere.net/index.php>. Acesso em: 10 jul. 2012.
1850
adquirido por 1,80 euros, devendo ser pago com cartões de crédito/débito, transferência
bancária ou cheque.20
Em datas especiais, como Natal, dia das crianças, dia das mães e, principalmente no dia de
finados, o site recebe grande quantidade de visitantes, em especial dos enlutados, como de
familiares e amigos do morto, que deixam as mensagens de pesar, tristeza e sofrimento, além
de depositarem as velas e flores virtuais. Nos dias de finados, percebe-se que alguns
memoriais são bastante ritualizados com as variadas formas virtuais de homenagear o ente, de
modo que algumas páginas ficam completamente “movimentadas”, floridas e enfeitadas,
como se fossem verdadeiras sepulturas.
Pensando-se na sua estrutura, o Le Cimetière Virtuel é dividido em cinco seções, entre elas a
“Particuliers, Petits Anges, Célébrités, Religion e Mémorial”, podendo o visitante navegar
por todas elas. Em cada uma destas seções, existe um espaço de introdução, com explicações
do que se encontrará nesse item, como também os últimos dez falecidos acrescentados, os
“aniversariantes” de nascimento e morte do dia, além do destaque dado aos perfis esquecidos
(os menos acessados) e aos mais visitados daquela seção.
Uma das seções mais visitadas e ritualizadas pelos internautas é a “Pequenos anjinhos”. Nela,
encontram-se perfis de crianças falecidas de diferentes partes do mundo, como de natimortos,
de bebês que morrem com poucos dias de vida, e também de crianças maiores. Nessa seção
20
Pode-se observar que muitos dos cemitérios on-line tornaram-se um mercado bastante lucrativo, de modo que
a morte e os mortos podem propiciar lucros para empresas de variados ramos. Assim, na grande maioria dos
cemitérios on-line, os visitantes necessitam pagar para enviar alguma mensagem, depositar uma vela ou flor
virtual, ou mesmo para criar um memorial para seu ente falecido. Ou seja, muitos dos rituais de morte presentes
nos cemitérios virtuais são comercializados, vendendo-se as flores, as velas ou as mensagens on-line por
variados preços, conforme o modelo escolhido pelo cliente.
21
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
1851
infantil, é grande a quantidade de recados deixados pelos familiares, especialmente pelos pais,
sendo acrescidas as mensagens diversas imagens de brinquedos, como bonecas, ursos e
carrinhos, além das flores e velas virtuais. Junto ao perfil das crianças, são encontradas em
alguns casos fotografias da sua sepultura física (Imagem 2), das mães durante a gravidez, dos
bebês hospitalizados e das crianças brincando. Um caso bastante particular é o perfil de um
menino que já nasceu sem vida no dia 3 de fevereiro de 2005. No seu memorial, os familiares
colocaram uma imagem do ultrasson de sua mãe, conforme exposto abaixo.
Imagem 2 - Memorial da seção “Petits Anges” com uma Imagem 3 - Memorial de um natimorto com imagem do
foto da sepultura de uma criança.22 ultrasson de sua mãe.23
Já na seção “Indivíduos”, uma das maiores em número de perfis de falecidos, são encontradas
as páginas de memoriais de pessoas que morreram com diversas idades (com exceção das
crianças), e de variadas nacionalidades, como franceses, italianos, brasileiros, alemães,
ingleses, argelinos e belgas. Nesses perfis, costumam aparecer fotografias, dados de
identificação do morto, como idade que possuía, nome completo, nacionalidade, datas de
nascimento e morte e o signo do zodíaco, além das flores, velas e mensagens de saudade
deixadas pelos internautas.
22
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
23
Fonte: Le Cimetière Virtuel (2012)
1852
Já na seção “Religião” estão presentes perfis de alguns religiosos falecidos, como o memorial
do Padre Pio Francesco, do Papa João Paulo II (conforme Imagem 4) e da Madre Theresa,
além das homenagens realizadas aos santos, como São José, Santa Rita e Santa Teresinha do
Menino Jesus. Nesta seção, os visitantes podem inserir os dados gerais sobre os religiosos,
como também enviar mensagens de condolências, como constatado no memorial do Papa
João Paulo II, que além das informações de seu nascimento e morte “18 maio de 1920 - 02 de
abril de 2005. Morreu com 84 anos - Basílica de São Pedro do Vaticano” encontrou-se a
seguinte mensagem: “Très Saint Père, veillez sur mon fils svp”24. Os internautas podem
depositar, do mesmo modo, as flores e velas, tanto as gratuitas quanto as pagas, conforme
observado no memorial a seguir, do Papa João Paulo II, com as variadas espécies de flores
depositadas na página.
Por fim, a seção “Memorial” homenageia uma série de acontecimentos trágicos ocorridos em
diversas partes do mundo no decorrer da história, além de pessoas que morreram nesses
eventos, como alguns dos soldados que faleceram na Segunda Guerra Mundial. Entre as
dezenas de episódios destacados estão: o atentado de 7 de julho de 2005, na cidade de
Londres, o atentado de Madri, que ocorreu no dia 11 de março de 2004, a Tsunami de 26 de
dezembro de 2004, o naufrágio do Titanic, em 15 de abril de 1912, o atentado as torres
Gêmeas, ocorrido no dia 11 de setembro de 2001 e o terremoto no Haiti, no ano de 2010.
Nesse cemitério on-line, os visitantes dos jazigos virtuais também podem depositar flores e
velas, que permanecem na página durante uma semana, de forma que é cobrada uma taxa
individual para cada produto. Através da aquisição de créditos, que valem por um ano, a
pessoa pode então enviar as flores e velas para qualquer jazigo, até seus créditos findarem ou
expirarem. Nesse site, o visitante pode escolher entre oito opções diferentes de arranjos de
flores, e apenas dois tipos de velas (Imagem 5).
Considerações finais
Em síntese, percebe-se que o enlutado vê nesses cemitérios on-line um espaço para praticar os
rituais post-mortem, como através das expressões de luto nas mensagens de pesar, podendo o
26
Portal Cemitérios de Portugal: <http://www.cemiteriosportugal.com/>. Acesso em 10 jul. 2012.
27
Fonte: Cemitérios de Portugal (2013)
1854
internauta recordar e preservar a memória do ente falecido. Em algumas datas especiais, como
no dia de finados, os sites recebem uma grande quantidade de visitantes, como nos cemitérios
físicos, de modo que alguns memoriais de falecidos ficam enfeitados e coloridos com a
variedade de arranjos de flores e formatos de velas virtuais, da mesma forma que as sepulturas
reais.
Mas, afinal, o que motiva os enlutados a escolherem os cemitérios virtuais para expressarem
sua tristeza e pesar pela morte do falecido? Para muitos indivíduos, a ausência de um espaço
físico para ritualizar seu morto, como uma sepultura em um cemitério físico, é um motivador
para tal ocorrência, sendo os cemitérios virtuais como um espaço de memória, local em que se
pode falar do ente morto e também da sua dor, como a saudade diária causada pela perda.
Enfim, muitos enlutados pagam para manter o jazigo de seus entes, porém, não no cemitério
físico, mas no cemitério on-line, podendo visitá-lo diariamente em qualquer horário e local,
utilizando apenas as ferramentas do mundo virtual. Todavia, isso não significa dizer que essas
práticas fúnebres, principalmente as de luto, são mais amenas e apáticas por estarem presentes
no espaço virtual, já que muitos enlutados se sentem a vontade para demonstrar seu pesar pela
morte do ente querido apenas na internet, como através das mensagens virtuais, que podem
sintetizar a constante dor da perda em algumas palavras.
Referências
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
1855
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sofrimento íntimo: individualismo e luto no Brasil
contemporâneo. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v.1, n.1, pp.77-87, João Pessoa,
GREM, abril de 2002.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997. 356 p.
OLIVEIRA, Tereza Marques de. O psicanalista diante da morte: intervenção psicoterapêutica
na preparação para a morte e elaboração do luto. São Paulo: Editora Mackenzie, 2001.
QUEIROZ, Júlio de. Morrer para principiantes: ensaios. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. 2 ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2006.
VOVELLE, Michel. As almas do purgatório, ou, o trabalho de luto. São Paulo: Editora
UNESP, 2010.
Internet
Cemitérios de Portugal. Disponível em <http://www.cemiteriosportugal.com/>. Acesso em 10
jul. 2012.
1856
MyCemetery.com. Disponível em <http://www.mycemetery.com/my/index.html>. Acesso em
10 abr. 2013.
1857
Mborai: o canto sagrado guarani
João José de Félix Pereira1
Introdução
Mborai: O Canto Sagrado Guarani, forma com Mimby: A Arte de Fazer e Tocar Flautas de
Bambu e Mborayu: Um Conceito da Espiritualidade Guarani, uma trilogia sobre a música e a
espiritualidade Guarani. Entre 1991 e 1995 escrevi a dissertação de mestrado Mimby: A Arte
de Fazer e Tocar Flautas de Bambu. Essa dissertação foi defendida em 1995 no programa de
Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Entre 2008 e 2010 escrevi a tese de doutorado
Mborayu: Um Conceito Da Espiritualidade Guarani, essa tese foi defendido em 2010, no
programa de Ciências da Religião da UMESP. O estudo que apresento, agora, faz parte da
minha pesquisa de pós-doutorado, nela me detive especificamente na poética do Mborai,
Canto Guarani, cujo conteúdo tem cunho religioso, linguagem afetiva que é compartilhada
reciprocamente por todos que tem em si o sentimento de pertença a esse liame social.
No Mborai que apresento Mba’eã’ã e que faz parte do meu estudo de pós-doutorado, canto
coletado por Martínez Gamba (GAMBA, 1984, p.52), apresenta o contraste entre o princípio
econômico Guarani e o do Jurua, do ocidental; raiz de toda uma incompreensão da maneira de
viver e de tratar as coisas entre essas duas culturas que compartilham o mesmo espaço. O
ponto crucial desse canto está no dizer:
Arajeapo awã xe tataxyna rupa ñemomba’e awykyguy, xe tataxyna rupa rakã poty
ñemomba’e awykyguy, urukure’a’i te ma (...) há’eguy maem, juruapy ame’em ramowe,
aupity wa’erã xo’o’i, mba’e re’em’i, juky’i re’em ro, u’ixim reko axy, Xe reta kwere há’e
jawi kwe’i rewe roupi awã, ore rataypy rupa mbowy’i re. (BAPTISTA, 1996, p. 10).
Ã’ã significa esforçar-se por conseguir algo, os cantos constituem um esforço em busca de
valor e força espiritual. Ñemomba’e awykyguy é aquilo que se toca, refere-se à madeira que
1
Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor de Composição Musical na UNESPAR Participa do
GP NETMAL da UMESP. Orientado pela Prof. Dr. Sandra Duarte de Souza. Contato: awajupoty@ig.com.br.
1858
esta em contacto com o côncavo das mãos ao se entalhar um animalzinho. Rakã poty nomeia
os dedos e as unhas: ramos floridos. Por outro lado, o côncavo das mãos, palma das mãos
contêm a neblina vivificante, a força criadora. Juru’a: o ocidental; juru: boca; a: aberta;
literalmente é o falador, o que fala muito. A tradução desse trecho é:
Possa eu fazer com o que tocam os meus leitos de nevoeiros, com o que roçam os ramos em
flores de meus leitos de nevoeiros, imagenzinhas de pequenas corujas (...) e só depois de os
vender aos estrangeiros, comprarei carne, um pouquinho. Pouquinho de açúcar. Pouquinho
de sal salgadíssimo e de imperfeita farinha de milho, para comer junto com todos os meus
irmãos, todos, em torno aos poucos assentos de nossas fogueiras (BAPTISTA, 1996, p. 11).
Em seu texto sobre os Guarani, Neblina Vivificante, Josely Vianna Baptista relata que:
No relato, da Josely temos bem ilustrado o contraste entre a espoliação econômica da natureza
e o deleite de apreciá-la, porque para o Guarani o desejo de prosperidade econômica,
ambições políticas ou qualquer outra ambição pouco significam e não o preocupam. Seu ideal
de cultura é de outra ordem, o da vivência, do deleite místico da divindade.
1859
No caso do Guarani, a distância é maior, porque tem os dois pés fincados em sua cultura.
Observando um Guarani ao vender um Tangua, imagenzinha, podemos conferir que ele
coloca em sua mercadoria um valor relativo à sua necessidade, então para o juru’a
dependendo da necessidade do Guarani, o preço será caro ou barato, mas nunca
compreensivo, porque nunca será o mesmo para o mesmo objeto, ou para algum semelhante,
como se poderia supor. Para o juru’a o preço deveria ser o mesmo, caso não haja inflação;
mas para o Guarani não, depende da sua ou, da necessidade dos seus, de quanto precisam para
ir tocando a vida e, poder deleitar seu espírito, não mais que isso. Portanto, o preço se
avaliado pelo material e pelo tempo de serviço é sempre, para um apreciador esclarecido,
muito barato. Um Guarani pode levar dias fazendo um Tangua e, no entanto, vendê-lo pelo
preço de um pacote de sal, se essa é a sua necessidade, mas também pode sair pelo preço de
um telefone celular, se for a sua necessidade; mas se o comprador negociar pode conseguir até
de graça, se disser que admira o objeto, mas que não tem dinheiro para pagá-lo, porém, que
tem roupas ou, seja lá o que for que o índio também necessite, para oferecer em troca pelo
Tangua. E essa aquisição será partilhada com todos os membros de seu Tekowa, aldeia, para
quem também possa servir.
As relações entre os Guarani não são balizadas pelo status social, pela situação econômica ou
social do indivíduo; mas pelo Mborayu, o espírito que os une, e que nos une. Esse é um
conceito fundamental para se compreender a diferença entre a concepção Guarani e a juru’a.
Para se entender essa diferença e o estranhamento gerado entre as duas culturas que partilham
este espaço do cone sul da América é necessário se fazer uma digressão no tempo e vermos
alguns conceitos.
Apreciando esta questão com um olhar Guarani, aprendemos que Mborayu: “O Espírito que
nos Une”, nos une por afinidades, nos fazendo um povo, e dentro desse povo, com os mais
afins, nos torna uma parcialidade. Mas também nos une com os nossos dessemelhantes, nos
trazendo contrastes e, assim possibilitando a expansão da nossa concepção de mundo.
1860
diante. Porém, somos todos humanos e, nos identificamos com toda essa família planetária,
somos todos filhos e filhas de Ñandexy Ywy Retã, a Mãe Terra.
As diferenças geram contrastes dentro dessa imensa família humana e, isto é inegável. Essa
diferença gera estranheza e, quando não estamos atentos a essa estranheza, nos permitindo
flexibilizar conceitos, caímos nas armadilhas dos preconceitos.
Para se compreender essa armadilha e, portanto nos conscientizarmos de como nos tornamos
prisioneiros no presente de, aywu marã, conceitos que nos causam mal-estar, apresento a
seguir uma digressão sobre a gênese desse mal entendido.
Por ocasião das primeiras expedições ao Rio da Prata, com a posterior fundação de
Assunción até o momento em que é implantado o sistema de “encomienda”, no Paraguai,
no ano de 1556, o espanhol que entra em contacto com os Guarani – e com outros indígenas
da região – é alguém que está de passagem. Nesse primeiro momento o Guarani será visto e
conceituado sob dois aspectos fundamentais: política e socialmente, como eventual aliado;
economicamente, como possível fornecedor de alimentos (MELIÁ, 1987, p. 20).
Essas primeiras notícias, embora tenham sido dadas por aventureiros que estavam de
passagem, vão trazer informações sobre aspectos importantes do modo de ser do povo
Guarani que os conhecimentos posteriores virão confirmar. Assim, a carta de Luis Ramirez,
de 1528 diz:
Aqui com nosotros está outra generación que son nuestros amigos, los cuales se llamam
Guaranis por outro nombre Chandris: estós andan dellamados por esta tierra, y por otras
muchas, como corsários a causa de ser enemigos de todas estotras naciones... son gente
muy trahidora... estos señoream gran parte de la India y confinan con los que habitan la
Sierra. Estos traen mucho metal de oro e plata en muchas planchas y orejeras con que
cortam la montaña para sembrar: estos comen carne humana (RAMÍREZ, 1941, p.98).
Diego Garcia (1530), por sua parte, chama a atenção sobre os recursos alimenticios dos
Guarani. “Habitan el las islas otra generación que se llama los Guaranies; estos comen carne
humana..., tienen e matan mucho pescado e abatíes (milho), é siembran e cogen é calabazas”.
(GARCIA, 1941, p. 47-52).
Estos comem carne humana”, esse estigma perdura ainda na mente de muitas pessoas
pouco informadas, que acham que mesmo hoje em dia os índios são antropófagos, coisa
que dessa maneira nunca foram. Seria como hoje julgarmos todo europeu como cruel e
1861
sanguinário porque os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças praticavam
crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e
os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre ( LAS
CASAS, 2001, p. 34).
Esse é apenas um detalhe dessa crueldade, infinitas outras aconteceram, de todas as maneiras
possíveis, sempre com requinte de maldade e evidências de demência.
Mas se mesmo em extremo desespero e fome foi cometida a antropofagia, o estigma não deve
perdurar, é possível que isso tenha acontecido em situações como a descrita por um sacerdote
católico:
A eles e a elas não lhes davam a comer (...) de tal sorte que o leite secava nos seios das
mães e assim em pouco tempo morriam todas as criancinhas. E em virtude de estarem os
maridos separados, não coabitando com as mulheres, a geração cessou entre eles; eles
morriam nas minas de trabalho e de fome, e elas morriam do mesmo modo nos campos
(LAS CASAS, 2001, p.41).
O que nos vemos nesses relatos é o conflito entre uma cultura que praticava a reciprocidade e
outra que praticava o intercâmbio. O Guarani recebeu bem o estrangeiro, dentro do seu
conceito de reciprocidade, lhe forneceu viveres e abrigo; pelo estrangeiro foi julgado como
alguém que estava desejando algum intercâmbio, ou aliança. Quando perceberam que não
desejavam nada além do convívio, foram julgados como inofensivos e possíveis de serem
escravizados, pois nada pediam em troca, e tudo de si doavam. Então lhe tomaram tudo, até a
própria liberdade e a vida. Ou seja, a sociedade de intercâmbio maximizou o lucro ao extremo
e a satisfação desmedida do interesse próprio. Essa diferença de conceitos é bem
compreendida por Melia e Temple:
1862
Entre todos, jesuítas e não jesuítas – excetuando, claro, os mesmos Guarani – Segundo Meliá,
Montoya é o melhor conhecedor da Cultura Guarani, acredito que do período missioneiro,
sem dúvida isso é verdade, no dizer de Meliá:
é Antônio Ruiz de Montoya o melhor conhecedor da cultura Guarani, como fica patente em
suas diversas obras. O Tesoro de la Lengua Guarani contém a maior suma etnológica
Guarani já coletada, uma lavra por enquanto muito insuficientemente explorada pelos
próprios pesquisadores do Guarani. A partir das palavras “chave”, com suas conotações e
associações, consegue-se levantar quadros sumamente ricos e bastante completos sobre os
mais diversos aspectos da cultura Guarani, na sincronia do tempo dos primeiros contatos. A
obra lingüística de Montoya, formalmente sincrônica, encontra sua dimensão diacrônica nas
cartas e, sobretudo, na Conquista Espiritual, onde o índio Guarani, em contato com o
mundo colonial, revela a própria identidade através de sua ação e reação. Montoya será
assim um dos principais autores para a etno-história Guarani (MELIÀ, 1987, p. 27).
Antonio Ruiz de Montoya fez o primeiro verbete do termo Jopoi, reciprocidade, em sua obra
“Arte Vocabulário Tesoro y Catecismo de La Lengua Guarani”, obra editada em 1639. Assim
é apresentada essa obra na edição: “Conquysta espiritval hecha por los religiosos de La
Compañia de Iesús, em las Provincias del Paraguay, Paraná, Vruguay, y Tape. Escrita por El
Padre Antonio Rviz de La misma Compañia. Dirigida a Octavio Centvrión, Marques de
Monasterio. Com privilegio. Em Madri. Em La imprenta Del Reyno. Año 1639. (4), 104 ff.
In-4”.
Uma versão em Guarani, junto com a tradução portuguesa, apareceu sob o titulo de “Aba reta
y caray eym baecue Tupã upe yñemboaguyje uca hague Pay de La Comp@ de IHS
poromboeramo aracae P. Antonio Ruiz icaray eym bae mongetaypy hare oiquatia caray ñeen
rupi ymã cara mbohe hae Pay ambuae ogueroba aba ñeen rupi. Año de 1773 pipe. S. Nicolas
PE. Ad majorem Dei Gloriam” (Annaes da Bibliotheca Nacional, vol. VI, Rio de Janeiro
1879).
Montoya era tido pelos Guarani como Paje (xamã), porque fez as disciplinas espirituais, e
recebeu nome Guarani, ele se chamava Guaracitã, ou seja Sol Resplandecente. E o próprio
Montoya reconhecia que seu mestre de vida espiritual foi o índio Inácio Pires de Floretas, que
lhe ensinou uma espécie de exercícios místicos. (cf. MELIÀ, 2009, p.72). E, em 1614
Montoya foi excomungado por ter feito coisas contra a lei divina e humana. (cf. 2009, p. 74).
Montoya praticou Jopoi, a reciprocidade. De certa forma a doutrina cristã comporta esse
conceito, mas para o estabelecido pelas encomiendas essa era uma questão fechada, e
1863
Montoya sofreu as consequências. Em suma o mal-entendido surge de uma falta de qualquer
vontade de entendimento, pois, tratava-se de conceitos antagônicos com relação aos
princípios norteadores da economia que colocavam em risco um sistema baseado no poder
patriarcal, do senhor que se impõe pela força, defendendo seus interesses próprios em
detrimento do coletivo e, de certa forma Montoya “contaminado” pelo convívio com os
Guarani, entrou em choque com a sua sociedade de origem, mas não de opção. Mas de
qualquer maneira esta é mais uma questão polêmica e difícil de ser compreendida na
distância, pois envolve uma relação de paixão e de marcas recíprocas, cujas cicatrizes
perduram ainda no presente.
3. Considerações finais
O discurso do conhecimento sobre a cultura Guarani sempre teve uma ansiedade em torná-lo
contínuo, preenchendo suas lacunas com díspares conteúdos, e hoje se dá por contente
achando que pôde representá-lo totalmente. Acredito que a cultura Guarani nunca foi
apreendida plenamente, e que nunca será, exatamente pelas lacunas deixadas pelas
destruições, que causaram a extinção de vários aspectos da cultura Guarani. Não podemos
afirmar que o que hoje ela é, diz do que ela foi ou será, posto que hoje ela se recicla e busca
reestruturar-se e auto-resgatar-se, dentro do que julga ser. Como nos diz outro trecho do
canto, Mba’eã’ã: “...Ore ywara tyre’ym mbowy mbowy’i /rogueropyta’i wa’e/ nde ywypy
poteri./ ywypo amboa’e’i kwerupe ame’em ramowe”. (BAPTISTA, 1996, p. 10). Ou seja: “...
Nós, uns poucos e poucos órfãos de teu paraíso,/que ainda animamos uns aos outros, apesar
disso,/ para ir vivendo em tua morada terrena./ Depois de aos forasteiros os ter vendido.”
(idem, p. 11). É como dizer que nós vamos tentando juntar nossos cacos para tentar não
deixar escorrer o conteúdo que nos comporta. Que não entendemos muito bem porque temos
que fazer isso além de que se não o fizermos não sobreviveremos. Que nos esforçamos para
fazer o que não nos causa esforço, mas prazer como cantar e dançar para Ñamandu: a natureza
de todos os mundos, que através do mborayu, o espírito que nos une, em uma situação
paradoxal. Mas, que inexoravelmente, é o caminho para Ywy’marã’heym, a Terra-sem-mal,
porque não há outro caminho senão através dessa terra onde até o “u’ixim reko axy”, como é
dito em outro trecho da canção (cf. ibidem), ou seja, até a “farinha de milho é imperfeita”
(ibidem), porque não é de awaxy ete, o milho perfeito multicolorido, mas de milho hibrido ou
1864
transgênico, alimento que foi profanado, pois para o juru’a o milho não é sagrado; porém, não
o podemos acusar pelos pesares que causa pois não sabe e não entende isso.
4. Referências
GAMBA, Martínez. El Canto Resplandeciente – Ayvu Rendy Vera. Buenos Aires: Ediciones
del Sol, 1984.
MONTOYA, Antônio Ruiz de. Tesoro de la Lengua Guarani. Madrid: Ed. Facsin, Lepizig,
1876.
1865
1866
Narrativas digitais nas diversas redes educativas que atravessam
as aprendizagens em terreiros de Candomblé no Brasil
Máira Conceição Alves Pereira1
Introdução
Este trabalho tem o objetivo de analisar as narrativas digitais construídas por meio de
imagens, vídeos, textos e interações em redes sociais digitais compartilhados por praticantes
dos terreiros de Candomblé. O eixo da análise recai sobre as diversas redes educativas que se
entrelaçam cotidianamente nesses terreiros, alcançando o ciberespaço, em que seus
praticantes aprendem sobre a religião, seus rituais, seus valores e filosofia de vida, sobre as
formas de se relacionar entre si, com a Natureza e com os deuses cultuados.
Caputo (2012) conclui que fazer parte da religião não se mostra suficiente para assumi-la em
outros espaços, sobretudo na escola. O amor ao Candomblé permanece, mas as crianças
desenvolvem táticas para lidar com o preconceito e a hostilidade nas escolas, negando e
escondendo, muitas vezes, a própria fé.
O papel das narrativas digitais será analisado em sua potência criadora de novos significados
para os praticantes do Candomblé, conferindo mais visibilidade para a religião e contribuindo
para a superação do preconceito, validando práticas e crenças, viabilizando interações e novas
aprendizagens e fortalecendo identidades de forma alinhada com a concepção de que as redes
se inserem em todas as fibras do cotidiano.
1
Psicóloga pela UFRJ, Mestre em Administração Pública e Empresarial pela FGV/RJ. Professora do curso de
graduação em Psicologia do Centro Universitário IBMR Membro do GP Ilè Obà Òyó, Contato:
mairapereira@uol.com.br.
2
Caputo, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. 1ª. ed.
Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
1867
Na perspectiva aqui ensaiada, tanto narrativas digitais quanto os próprios terreiros são tidos
como redes educativas ao lado da cibercultura. Afinal, não é possível compreender as tensões
e os paradoxos atuais sem compreender o fenômeno da cibercultura, que para Santos (2012)
significa a cultura contemporânea estruturada pelas tecnologias digitais em rede que “vem se
caracterizando atualmente pela emergência da mobilidade ubíqua em conectividade com o
ciberespaço e as cidades” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 3). Ainda dialogando com as
autoras, para Pierre Lévy, o termo cibercultura evidencia uma forma inovadora de
comunicação “gerada pela interconexão de computadores ao redor do mundo, não abrangendo
apenas a parte de infraestrutura material, mas também esse novo universo informacional que
abriga os seres humanos que a mantêm e a utilizam” (SANTOS; SANTOS, 2012, p. 3).
Nesse contexto cibercultural, as narrativas digitais relativas ao Candomblé podem ser como
dentes-de-leão3 soprados ao vento, espalhando a esperança de novos tempos de convivência
na e com a diversidade, de respeito pela diferença, de vitórias nas lutas contra a proliferação
da discriminação religiosa e de resistência na preservação dos cultos aos Orixás. Em uma
3
A inspiração da analogia com os dentes-de-leão tem sua origem nas reflexões poéticas de Stela Guedes Caputo
em sua página no Facebook, conforme transcrito a seguir: “Vamos soprar os dentes-de-leão. Lavei os pratos bem
rápido, duas ou três panelas. Sequei tudo ligeiro e corri para o quintal atrás no terreiro. Queria ver que algazarra
era aquela que os meninos faziam. Estavam soltando pipa enquanto a festa não começava. Comemoramos
ontem, 19 de janeiro, nosso aniversário e o início das atividades do ano no Ilè Aşé Omi Laare Ìyá Sagbá, em
Santa Cruz da Serra, Duque de Caxias. Meu coração é guiado pelo coração delas. Foi pelas mãos de crianças e
jovens de terreiros que há muito tempo me aproximei do candomblé. As mesmas mãos me tornaram do
candomblé. Uma opção radical pelo lugar em que quero estar, pelas pessoas com quem desejo estar e pela fé que
devagar me chega como as sementes de dente-de-leão que João Vitor me soprou ontem. Porque fé deve ser algo
leve de brotar, no semear delicado, suponho. Se for na força só pode ser outra coisa.
Lanhei a perna em um vergalhão, cortei o dedo no cerol. Tentava ajudar a desenrolar a linha. Tudo estava
agitado porque João Vitor entrou em um cruza. Os amigos gritavam: “dá linha...dá linha”. João cortou e
comemoramos. Mas logo depois, “estancou”. “A linha era fraca”, resmungaram. Os olhos dos meninos estavam
no céu, mas os ouvidos atentíssimos ao mínimo som que revelasse o início do candomblé no barracão.
“Começou?”, perguntava um. “Não, ainda não. Dá tempo de correr atrás da que cortamos”. E lá foram eles pelos
quintais dos vizinhos.Antes disso, porém, enquanto conversávamos no meio das folhas e flores, dois dos
meninos me pediram para postar as fotos, mas para não marcá-los no facebook. “A gente gosta de olhar no seu,
mas se marcar, a gente aparece para os nossos amigos da escola e tenho vergonha!”, disse um. “Tenho medo de
perder meus amigos. Na escola todo mundo me zoa quando vê meu face”, completou o outro. Quando sumiram
atrás da pipa ficamos eu e os dentes-de-leão. Dente-de-leão é o nome comum de várias espécies pertencentes ao
gênero Taraxacum que, por brotar espontaneamente, sem mesmo a intervenção humana, indica solo fértil, solo
bom. Também resiste fortemente às condições ruins e renasce sempre, sendo por isso símbolo de união,
resistência, otimismo e esperança. A festa começou. Bem antes disso os meninos retornaram sem a pipa. Não
ousaram enfrentar os cães que guardam os quintais dos vizinhos. Dois foram para os atabaques,um deles, João
Vitor. O outro se preparou para receber Oşalá que, quando chegou agigantou aquele corpo franzininho franzinho.
Foi em cima dos magros ombrinhos que o grande Òrìṣ à ergueu o terreiro inteiro. Epà Bàbá!
Meus meninos são reis, como são reis e rainhas meninos e meninas de todos os terreiros. Cantam, tocam e
dançam como reis. Sabem yorubá, conhecem as folhas, soltam pipas e...vão à escola. Eu chorei quietinha quando
Oşalá chegou. Em parte por sua força, em parte porque não me conformo com uma escola que envergonha
guerreiros. Disse que o dente-de-leão brota espontaneamente. Quisera viver em um país em que as religiões de
matriz africanas fossem respeitadas, principalmente nas escolas. Como sei que não vivo, quisera que mudar essa
realidade fosse tão simples e espontâneo como o nascer dos dentes-de-leão. Mas mudar as desigualdades de
classe, raciais e de cultura em nosso país nunca foi espontâneo. Então precisamos soprar juntos e espalhar as
resistências, os otimismos, as esperanças, os dentes-de-leão”.
1868
reflexão poética, Stela Guedes Caputo, comenta a relação das crianças do seu terreiro com as
fotos publicadas por ela no Facebook. Há encantamento e expectativa pela postagem das
fotos. Contudo, há também a ressalva de que esses mesmos meninos desejam não ser
marcados nas fotos para que não se sintam envergonhados perante os colegas da escola que
fazem parte de suas redes no Facebook.
O brincar, o dançar, o cantar, o estar com amigos, o aprender e o ensinar e tantas outras ações
compõem e caracterizam o terreiro de Candomblé como uma rede educativa para as crianças e
demais praticantes da religião. Como as redes educativas são múltiplas e se intercruzam, elas
ultrapassam os limites físicos e sagrados dos próprios terreiros e atingem o ciberespaço por
meio de imagens, textos e narrativas digitais diversas. Como nos ensina Alves (2008), 4 há
muitos outros espaçostempos de aprendizagens além da escola, em que se vive, se aprende e
se ensina. Destacam-se neste ensaio os próprios terreiros e as redes sociais virtuais.
Há outra consideração, entretanto, em relação ao papel assumido pelas narrativas digitais para
o Candomblé. Por ser uma religião permeada e caracterizada por Àwo, que significa segredos
na língua Yorubá, as variadas narrativas digitais poderiam expor seus praticantes a
discriminações e perseguições, resultado da incompreensão de seus fundamentos por pessoas
leigas e da intolerância às religiões de matriz africana. Portanto, o papel dessas narrativas
digitais pode abarcar aspectos positivos no sentido da divulgação do Candomblé e no
fortalecimento da identidade de seus praticantes e também alguns pontos de atenção e de
tensão por meio dos variados usos, por variados autores, dessas narrativas. Em ambos os
casos, a oportunidade de debate gerada e de produção de sentido, com disputas de
significados, constitui o tecido de uma complexa rede de subjetividades (SANTOS, 1995), em
um fluxo de novas aprendizagens e múltiplas possibilidades não excludentes, pois neste
ensaio de pesquisa o
ponto crucial é que o ciberespaço é ao mesmo tempo, coletivo e interativo, uma relação
indissociável entre o social e a técnica. Essa perspectiva nos leva a pensar o ciberespaço,
então, como um potencializador de infinitas ações interativas, um novo espaço de
comunicação, de sociabilidade, de reconfiguração e de autorias (SANTOS; SANTOS,
2012, p. 4).
4
Entrevista realizada em 30 de outubro de 2008 com Profa. Nilda Alves, Professora titular da UERJ, onde
coordena o Laboratório Educação e Imagem, para o Programa Salto Para o Futuro, da TV Escola. Disponível em
<http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo/entrevista.asp?cod_Entrevista=54>. Acesso em: 08 de agosto de
2013.
1869
Parcerias intelectuais: notas sobre o quadro teórico-metodológico
Além da inspiradora e principal parceira intelectual da pesquisa, Stela Guedes Caputo, este
ensaio dialoga com as definições de cibercultura encontradas em Santos e Santos (2012), nas
quais se destacam o entrelaçamento das relações entre pessoas e tecnologias digitais que
produz linguagens e signos mediados e socializados pelo digital. Segundo as autoras, quando
citam Lévy,
A complexidade das questões, dos paradoxos e dos conflitos contemporâneos, incluídos nesse
escopo de contornos imprecisos a intolerância e a discriminação religiosa e racial, além do
amplo e variado universo das narrativas digitais que dialogam com o Candomblé e atravessam
as redes educativas nos terreiros, é evidente e requer o entendimento do fenômeno da
cibercultura.
1870
pela valorização da coletividade, noção que se amplia indefinidamente no ciberespaço por
meio da cultura do compartilhamento.
Scharmer (2010) inclui uma nova forma de liderança no centro do processo de mudança e
reinvenção da realidade, conforme a passagem a seguir:
(...) não me refiro principalmente a líderes individuais, mas à nossa liderança distribuída ou
coletiva. Todas as pessoas realizam mudança, apesar de suas posições ou títulos formais. A
liderança neste século significa deslocar a estrutura de atenção coletiva – nosso ouvir – em
todos os níveis” (SCHARMER, 2010, p.15).
A vida no campo social pode ser compreendida em termos de rede, mas não de reações
químicas, e sim, de comunicações. Redes vivas em comunidades humanas são as redes de
comunicação e também as redes educativas. Cada comunicação cria pensamentos e
significados, os quais, por sua vez, dão lugar a comunicações posteriores, e, assim, uma rede
inteira gera a si própria.
Aqui, cabe uma referência à importância de ações colaborativas para gerar transformações das
realidades, em que diferentes atores unem seus saberes e seus esforços em nome de um
1871
objetivo comum. Se o ser se considera parte do todo e se vê espalhado em infinitas conexões
dessa grande rede, ele também se enxergará como parte da solução e buscará estabelecer
parcerias com outras pessoas e grupos para conhecer o problema em maior profundidade. É
assim que muitas comunidades de povos dos terreiros ou povos de Axé, como podem ser
chamados os praticantes do Candomblé, podem traduzir e exercitar a vida coletiva,
colaborativa e transformadora por meio de suas variadas narrativas digitais, por meio das
quais falam de si, da sua fé, de sua indignação contra o preconceito, de suas tradições, de seus
Orixás, de suas lendas ancestrais, de seus desafios, de seus dilemas, do orgulho que sentem de
sua religião.
A visão complexa admite os contrários, o avesso das coisas, não os nega, não os separa e os
reúne na compreensão da realidade. A complexidade remete à multirreferencialidade, muito
mais além da tradição disciplinar que rege nossa forma de ver o mundo, de lidar com os
problemas e de fazer Ciência. A disciplinaridade, isto é, a separação dos diferentes
conhecimentos por áreas específicas e estanques, tem sua origem na formação das
universidades modernas, no Século XIX, conforme observou Morin (2007). Trata-se de uma
fragmentação do conhecimento que insiste em marcar presença na atualidade e limita nosso
potencial de solucionar problemas e mudar realidades, além de inibir ações colaborativas e
inclusivas.
A sociedade está cada vez mais cheia de vozes, ideias e culturas diversas. Portanto, não se
pode crer que todos enxergam as coisas da mesma maneira, que se pode fazer as coisas do
jeito que sempre foram feitas, pensando que o que uma pessoa faz não afeta os outros ou vice-
versa. Isso pode ser perigoso para nossa própria existência e coexistência.
A noção de rede vem despertando tal interesse nos trabalhos teóricos e práticos de campos
tão diversos como a ciência, a tecnologia e a arte, que temos a impressão de estar diante de
um novo paradigma, ligado, sem dúvida, a um pensamento de relações em oposição a um
pensamento de essências (André Parente, 1994, citado por SANTAELLA; LEMOS, 2010,
p. 7).
O prognóstico de André Parente escolhido por Lucia Santaella (2010) para abrir o capítulo de
introdução do seu livro Redes sociais digitais, se potencializa com o surgimento e com a
explosão das redes sociais da internet. Com isso, “as redes passaram também a penetrar por
todas as fibras do cotidiano” (SANTAELLA; LEMOS, 2010, p. 7), o que equivale a dizer que
as redes são vivas e fazem parte das nossas vidas, em suas múltiplas dimensões, incluindo a
1872
forma de pensar e de fazer ciência, considerando as vivências e os saberes cotidianos,
produzidos por pessoas comuns que se implicam e transitam nessas redes, aprendendo,
ensinando, se equivocando, transformando, compartilhando, interagindo, vivendo.
1873
A abordagem metodológica pretende mapear e dialogar com os rastros deixados pelas
narrativas digitais relacionadas ao Candomblé nas redes sociais da internet. Em uma fase mais
adiantada da pesquisa, ora apresentada como ensaio, em seu estágio ainda de esboço, deseja-
se ouvir com sensibilidade, respeito e curiosidade os significados e desdobramentos dados por
alguns praticantes da religião nos terreiros por meio de conversas. Como os praticantes do
Candomblé percebem e se relacionam com as narrativas digitais presentes nas redes sociais da
internet? Como essas narrativas digitais afetam os diversos cotidianos dos praticantes de
Candomblé e contribuem para a superação da discriminação religiosa e racial? Essas são
algumas das questões norteadoras do estudo. Há também espaço para práticas dos povos de
terreiro que se desdobram e se reconfiguram em narrativas digitais autorais na internet, uma
vez que o conceito de redes educativas não obedece linearidades e admite vários sentidos e
possibilidades criativas, incluindo noções supostamente contrárias, em uma convergência-
fluxo entre o dentro e o fora, o individual e o coletivo, o público e o privado, o revelar e o
esconder, a teoria e a prática, o ensinar e o aprender.
Selecionar imagens e outras narrativas digitais presentes na internet que ilustrem e dialoguem
com as questões desta pesquisa, ora ensaio, se mostra tarefa desafiadora e árdua, uma vez que
são incontáveis os exemplos disponíveis cotidianamente. Essa produção nunca cessa e a rede
se amplia a cada clique, a cada comentário, a cada compartilhamento.
1874
Foram selecionadas algumas dessas imagens e narrativas presentes no Facebook, em páginas
temáticas públicas sobre o Candomblé e sobre a cultura africana em geral, como uma amostra
do potencial criativo e educativo dessas redes. O objetivo é apresentá-las e comentá-las nesta
seção. O acervo dessas imagens e narrativas é grandioso e se amplia a cada momento,
configurando-se como importante desafio metodológico da pesquisa em fase mais madura e
consistente não só o seu arquivamento adequado como também as formas de organizar e
analisar as informações e as referências múltiplas.
Uma das questões que a pesquisa pretende responder é como as narrativas digitais afetam os
diversos cotidianos dos praticantes de Candomblé e contribuem para a superação da
discriminação religiosa e racial? Pressupõe-se, ainda, que essas imagens e narrativas digitais
disseminam a imagem do Candomblé de forma positiva e fortalecem a identidade dos
praticantes da religião, que se sentem confiantes e orgulhosos em relação a sua fé e a suas
escolhas de vida.
1875
Figuras 1, 2, 3, 4 e 5 – Páginas públicas da Casa de Oxumarê e do Projeto Matrizes Que Fazem no Facebook 5
As primeiras figuras ilustram como a superação de preconceitos pode ser um dos resultados
atingidos pelas narrativas digitais nas redes sociais da internet, embora as leituras das
imagens, as diversas produções de sentido, dependam diretamente dos mais diferentes
leitores. Os comentários publicados relativos às imagens, contudo, demonstram o sentimento
de orgulho, de solidariedade e de pertencimento dos praticantes do Candomblé.
Por meio dessas narrativas, são difundidos também a cultura, a filosofia de vida, o respeito
pelo convívio na coletividade e o saber ancestral que fazem parte do Candomblé. Em
conversas com praticantes presentes nas figuras 5 e 6 foi possível tecer algumas novas redes
5 Disponíveis em <https://www.facebook.com/casadeoxumare>
e em <https://www.facebook.com/pages/ Matrizes-Que-
Fazem/113022635441843>. Acesso em 03 de ago. 2013.
1876
de significados, conferindo um caráter autoral a essas imagens. Na figura 5, temos o
autorretrato de uma recém-iniciada no Candomblé que vivenciou na faculdade onde cursa o
último período do curso de Pedagogia a discriminação religiosa em seu período de preceito,
que é a fase que se segue à iniciação na religião. Uma professora lhe dirigiu ofensas e
insinuou durante as aulas que sua escolha pessoal e religiosa havia sido equivocada. A autora-
personagem da foto optou pelo trancamento da disciplina e publicou a imagem na página do
Projeto Matrizes Que Fazem no Facebook, associando à imagem e a um provérbio africano
ensinado por sua Iyalorixá (Mãe de Santo), Mãe Márcia d’Oxum, que sintetiza o valor de se
respeitar as pessoas como princípio estruturante da religião. Já na figura 6, temos citação e
imagem de Mãe Márcia D’Oxum, Iyalorixá, idealizadora e coordenadora do Matrizes Que
Fazem, projeto de ações sociais e afirmativas, sediado e vinculado ao Egbe Ile Iya Omidaye
Ase Obalayo, terreiro de Candomblé situado no município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro.
1877
Figuras 6, 7 e 8 – Página pública no Facebook da Casa de Oxumarê
1878
Figuras 9, 10, 11 e 12 – Páginas públicas no Facebook da Casa de Oxumarê e de Yalodê, originalidades nagô 6
6 Disponíveis em <https://www.facebook.com/casadeoxumare>
e em <https://www.facebook.com/ yalodeoriginalidades>. Acesso em 03 ago.
2013.
1879
Figuras 13 e 14 – Imagem de Mãe menininha do Gantois publicada na página do Projeto Matrizes Que Fazem
no Facebook e de Mãe Stella de Oxóssi na página pública de Yalodê, originalidades nagô
Há ainda imagens e narrativas que remetem à fusão entre Orixá e praticante do Candomblé,
revelando espaçostempos de reforço e exposição da fé, valorizando a relação próxima,
inseparável com a religiosidade, com impactos na visão de mundo. Religião, vida, Orixá,
pessoa representam aqui instâncias intimamente unidas.
1880
Figuras 15, 16 e 17 – Página pública de Yalodê, originalidades nagô
1881
Há também as narrativas disponíveis no Youtube. No vídeo Brincando com os Deuses, por
exemplo, a infância no Candomblé e a experiência do transe são tratados de forma leve e as
vozes ouvidas são as das próprias crianças de terreiro, com suas produções de sentido acerca
de fenômenos de difícil apreensão pela lógica da modernidade e vivências íntimas com o
sagrado.
Muitas são as leituras possíveis dessas imagens e narrativas digitais. Seu verdadeiro sentido
poderá ser compreendido ao se conviver e ao se conversar com os praticantes do Candomblé
nos próprios terreiros e em outros espaçostempos.
Além de se relacionar com a divulgação de uma imagem positiva e sem preconceitos acerca
do Candomblé, as narrativas digitais em redes sociais da internet podem trazer questões e
dilemas quanto aos usos que expõem rituais secretos e exclusivos para os iniciados. Há
também publicações feitas por praticantes de segmentos diferentes da religião contendo
críticas que indicam rupturas e discriminações dentro do Candomblé. Como delinear os
limites entre o que pode ou não ser revelado? Há controle possível das imagens e narrativas
que circulam na internet? Sabe-se que tal controle é inviável e incoerente com a própria noção
de internet e com a cultura do livre compartilhamento. É importante reconhecer essas tensões
Nesse sentido, uma publicação recente na página pública de um dos mais importantes e
tradicionais terreiros de Candomblé do país no Facebook, convoca os praticantes da religião,
chamados no post de Povo do Axé, a zelarem pelo conteúdo de suas postagens nas redes
sociais, (co)responsabilizando-os pelas possíveis consequências danosas de tais atos.
Gostaríamos de aproveitar e fazer um apelo aos usuários das redes sociais, que mesmo com
boas intenções, se apropriam dessas imagens e as expõem apontando os erros e
denunciando a falta de conduta religiosa dos personagens em questão. Temos a certeza que
esta conduta não contribui com nossa religiosidade, muito pelo contrário, fomenta uma
imagem depreciativa dos nossos rituais para sociedade.
Mesmo ciente de ter visualizado uma postura equivocada ou ter presenciado um ritual que
não segue os preceitos religiosos, não faça a crítica negativa. Ao invés disso, poderíamos
orientá-las, criarmos campanhas resgatando os princípios e conduta religiosa. Vamos criar
páginas elogiando as boas ações e exaltando os nomes das pessoas hierárquicas e de boa
conduta. Pense nisso!!!
1883
Considerações finais
Retornando à fonte de inspiração da pesquisa e do presente ensaio, Stela Guedes Caputo, foi
em seu perfil no Facebook que foi localizada, em um post público, a narrativa escolhida para
encerrar este texto. Nela, Stela rememora o início da sua pesquisa em construção perene e
materializada no livro Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de
candomblé, em vínculos de afeto que a uniram às crianças de Candomblé, à pesquisa, à
religião. Em um dos trechos, ela afirma que “quem escreve com amor e respeito cria coisas
além do texto”. Trata-se de uma homenagem carinhosa à Tauana dos Santos, hoje com 23
anos, cuja imagem aos dois anos estampa a capa de seu livro.
Trata-se também do testemunho da autora acerca das mudanças em sua própria vida, na forma
como vê o mundo, se relaciona com as pessoas e com a vida, completamente imbricada com
1884
sua pesquisa. É no respeito às pessoas e na valorização dos vínculos de afeto que sua pesquisa
se pauta. Dessa forma, a autora sempre foi acolhida nos terreiros e hoje suas narrativas tomam
as redes sociais, apontando novas formas de fazer ciência, contribuindo para a alegria e o
orgulho dos praticantes de Candomblé, em especial, as crianças, e também inspirando novas
pesquisas e a produção de novas imagens do Candomblé, feitas com respeito, carinho e
espalhando-se sem limites, em uma espécie de doação-presente, unindo-se a tantas outras
imagens e narrativas que transitam no ciberespaço.
Referências
ALVES, Nilda. Cultura e cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação, número 23,
maio/junho/julho/agosto, 2003.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças
de Candomblé. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina. 3ª edição, 2007.
SANTOS, Rosemary S.; SANTOS, Edméa Oliveira. Cibercultura: redes educativas e práticas
cotidianas. Revista Eletrônica Pesquiseduca, pp. 159-183, v. 04, n. 07, jan-jul 2012.
SCHARMER, Otto. Teoria U: como liderar pela percepção e realização do futuro emergente.
Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2010.
1885
1886
O marketing eletrônico como instrumento de manipulação da fé
Introdução
O culto tem início com a chegada do pastor Jaime, após algumas frases de boas vindas aos
fiéis que lotam o templo, inicia-se um importante processo de salvação (como foi por ele
mesmo caracterizado o ato). O pastor começa a exorcizar uma pessoa, que sob seu conceito
está possuída por forças do demônio por ser homossexual. O processo ocorre durante 15
minutos sob gritos de “Sai, Satanás, deste corpo”. Só então o pastor acrescenta que finalmente
a pessoas está curada, “voltou a ser gente”.
Ao contrário do que muitas pessoas poderiam pensar, este culto não foi assistido em nenhuma
igreja, e sim veiculado no dia 20 de setembro de 2002, às 08:30h da manhã, no canal Rede
Record de Televisão. Faz parte de uma vasta programação religiosa transmitida pelo canal. A
Rede Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, tornou explícito o problema da
vinculação entre os meios de comunicação e a religião. Nos dias atuais, a igreja tem se
apresentado como um promissor empreendimento, e os líderes religiosos são em sua maioria
verdadeiros empresários da fé, com capacidade administrativa de um eficiente profissional de
marketing. Foi exatamente com este propósito que o Bispo Edir Macedo resolveu adquirir a
concessão da Rede Record de Televisão em 1989.
8
Professor P.h.D. na UFAL. Coordenador do NEP em Comunicação e Informação (NEPEC). Contato:
josewagnerribeiro@bol.com.br.
1887
Na prática, a Rede Record de Televisão, na qual está vinculada a Rede Família, de Edir
Macedo, tem hoje um patrimônio invejável. São trinta e nove emissoras, entre próprias e
afiliadas, somando 247 retransmissoras em todo o país. Todas utilizam equipamentos de
última geração, como o sistema digital, por exemplo. Ela utiliza recursos semelhantes aos da
Rede Globo, como a edição em sistema digital. A Rede Record é considerada uma das
melhores televisões do mundo em termos de agilidade visual.
Desde os primeiros anos após ter sua concessão cedida para a Igreja Universal do Reino de
Deus, a Rede Record apresentou, de imediato, características básicas da Igreja Eletrônica,
espelhou suas técnicas e produções nos valores comerciais da indústria televisiva.
Trabalhando com a trilogia: fé, salvação e cura. Vendendo a salvação, os televangelistas
prometem na TV a cura de doenças, ascensão social, a paz de espírito, discutem
homossexualidade, brigas de família e drogas, tudo dentro de estratégias de marketing que
visam atingir ainda mais fiéis (CAMPOS, 1988, p. 23).
A Rede Record utiliza sua verdade bíblica através dos fiéis, aumentando ainda mais a
credibilidade de sua teologia. Ao longo dos programas e cultos, os pastores pregam que só é
feliz quem faz parte da IURD. As pessoas aparecem dando depoimentos, dizendo-se livres
dos mais diversos problemas, sejam eles emocionais ou até mesmo financeiros. A família tem
sido o assunto mais discutido pelos programas religiosos, muitos têm programações
específicas para casais e crianças, mas estão cada vez mais sendo moldados para os diversos
tipos de espectadores, assim como programas musicais gospel, voltados para adolescentes. A
família na Igreja Eletrônica é sempre representada dentro dos clássicos padrões de hierarquia.
A religião está hoje disponível em várias televisões de qualquer país, nos mais diferenciados
sistemas de transmissão, desde a TV aberta, por cabo ou antenas parabólicas. Os aspectos da
religião, que é mostrada na televisão, seguem modelos desenvolvidos em filmes, rádio e
ficção, tudo com a intenção de aumentar a audiência.
1888
Unidos, a partir das décadas de setenta e oitenta, associado ao crescimento das congregações e
denominações de evangélicos. Sabemos que os programas religiosos estão disponíveis na TV
desde o seu surgimento, só antes eram apenas com o objetivo de manter a rede no ar.
Algumas vezes eram também veiculados por algumas emissoras, programas religiosos pagos,
com o propósito de tornar popular alguma religião. Depois do aumento da popularidade da
televisão os programas religiosos foram perdendo cada vez mais seu espaço, já que a maioria
das igrejas utilizava o espaço através de caridade das emissoras.
Já nos anos sessenta, algumas igrejas evangélicas começaram a adquirir suas próprias redes de
televisão, visto que notaram o quanto era rentável para o aumento de sua popularidade. A
característica mais evidente que diferencia a Igreja Eletrônica são os líderes carismáticos
(televangelistas), que na maior parte das vezes acabam sendo considerados verdadeiros astros
pelos fiéis. A transmissão da Igreja Eletrônica representa uma realidade cultural em particular,
representa um jogo específico de símbolos e valores para seus telespectadores.
Preocupado com o aumento da popularidade da Rede Vida, o bispo Edir Macedo promete
ainda implantar mais um canal exatamente no estilo da Igreja Eletrônica; ela já está no ar em
Salvador e em dezoito municípios do sul da Bahia, sendo sintonizada também no Estado do
Rio Grande do Sul. Batizada de Rede Família, a emissora tem a proposta de trabalhar somente
com programas religiosos. Segundo líderes da Igreja Universal, brevemente ela ficará no ar 24
horas. Por enquanto, em caráter experimental, a emissora está com dezoito horas de
programação.
O maior desafio para Edir Macedo, como líder da Igreja Eletrônica no Brasil, tem sido driblar
o crescimento dos carismáticos católicos, que têm um tipo de comportamento parecido com o
dos evangélicos, e acima de tudo fazer crescer ainda mais a popularidade de sua teologia
através da televisão.
A Folha Universal
É claro que essa conquista custou à IURD mais investimentos, já que o jornal sobrevive
basicamente às custas da igreja e sua distribuição é gratuita e a periodicidade é quase nula,
quanto existe é feita apenas por empresários envolvidos com a IURD. A Folha Universal é
produzida por uma editora pertencente à própria igreja, que trabalha também com publicação
de livros e revistas evangélicas.
1890
Além de ter uma linha editorial voltada para o engrandecimento da IURD, o jornal busca
ainda englobar temas atuais. Os artigos e matérias são bem elaborados, e sua boa diagramação
o torna ainda mais atraente. Suas manchetes sempre são ilustradas com fotos de ótima
qualidade. Podemos observar que os aspectos positivos da Folha Universal não acabam por aí,
já que não se caracteriza como a maior parte dos outros veículos religiosos impressos, que
sempre utilizam uma diagramação pesada e com poucas cores. A Folha Universal trabalha
com material de boa qualidade e é quase toda colorida.
É dividida em dois cadernos. O primeiro caderno traz algum acontecimento que engrandecem
a IURD, falam principalmente da sua expansão no Brasil e no mundo, assim como as matérias
publicadas no dia 17 de dezembro de 2002, edição 558, Excursão levará turistas de santos e
Porto Alegre a Irecê e Mais de 10 mil pessoas estiveram presentes à inauguração da Igreja
Universal do Reino de Deus em Alcântara. O semanário enfoca que as ações da igreja são
acima de tudo um meio de levar a palavra de Deus até todos. A manchete é sempre voltada a
explicar algum fato ocorrido sob o ponto de vista da teologia iurdiana. Como exemplo
podemos tomar o caso Pedrinho , que sob o aspecto da IURD só aconteceu devido à falta de
religiosidade que aflige os brasileiros. Outros tópicos são ainda abordados no primeiro
caderno, assim como o milagre da fé, saúde, educação e cidadania. Já o caderno dois é mais
variado, os temas nem sempre possuem conotação religiosa específica; buscam sempre falar
sobre relacionamentos familiares, problemas sociais e política.
Os testemunhos são por vezes relatos de suspensão de fenômenos como alucinações, delírios,
uso e dependência de diversas drogas, do restabelecimento de laços familiares, afetivos e,
principalmente, de um reencontro de sentido da vida. São biografias que encontram, de uma
certa forma, um espaço dentro da Folha Universal, para serem elaboradas e publicadas.
Outro ponto forte da Folha Universal é a coluna dedicada à opinião do leitor. Desta forma o
veículo pode se mostrar como sendo mais aberto ao público, o que aumenta ainda mais sua
credibilidade. No entanto, o que mais emociona os fiéis é poder acompanhar os artigos
assinados pelo bispo Edir Macedo e outros líderes da igreja, como o bispo Marcelo Crivela.
1891
Os fiéis acreditam ter através da Folha Universal um meio para escutar o divino, já que os
seus líderes carismáticos são vistos como pessoas a serviço de Deus. Os que o fazem acham
que dessa forma conseguem oferecer, de certa maneira, uma terapêutica para seus membros
que contribui com algum resultado positivo em suas vidas.
Pastor on-line
Para conquistar cada vez mais um público heterogêneo, a Igreja Universal utiliza uma
estratégia de marketing que compreende a ocupação da mídia em suas diversas formas:
televisão, rádio, jornal, chegando até a internet.
Os fiéis agora podem navegar em um portal eletrônico totalmente criado para o mundo
evangélico. Basta apenas acessar www.arcauniversal.com.br e conhecer o mundo iurdiano
através da tela do computador. Trata-se do maior portal evangélico da América Latina.
Os apelos espirituais começam a aparecer assim que a tela de início do site é baixada. Um
banner chama a atenção de quem navega, ostentando a mensagem de salvação típica da
IURD: procurando uma luz no fim do túnel? Universal do Reino de Deus! Os apelos são em
sua maioria ocultados através de links interativos, assim como o pastor on-line, que se diz o
amigo fiel de todas as horas, no entanto de todas as vezes que pudemos navegar no site nunca
encontramos nenhum pastor on-line, mesmo sendo informados que o serviço estaria
disponível 24 horas por dia. Além das pesquisas interativas, que em sua maioria já expõem
perguntas e respostas mais coerentes, ou então limitam o visitante a das respostas que
agradem a IURD.
Com grande destaque na página principal, a Arca News dispõe diariamente de informações
nacionais, internacionais, esportivas e religiosas. É importante ressaltar que é preocupação da
Universal, como não poderia deixar de ser, que todas as matérias disponíveis no site
enfoquem o lado bom e humano da igreja por meio de projetos sociais, eventos e
principalmente ajuda espiritual.
O portal foi elaborado para atingir o mais variado público. Existe links direcionados às
crianças, mulheres e jovens. Toda semana o internauta pode conhecer a capa do jornal Folha
Universal e acompanhar as matérias que são distribuídas na Folha Principal, que engloba os
1892
links Milagres da fé, Nacional, Educação e Cidadania; e Folha 2, onde as matérias giram
sempre dentro dos temas Política, Saúde, Esportes e Variedades.
A teologia da Universal é reforçada como sendo algo real, verdadeiro e que dá certo por meio
dos testemunhos de pessoas que freqüentam a IURD e que de alguma forma mudaram suas
vidas. Ao visitar o site no dia 17 de dezembro de 2002 encontramos os seguintes testemunhos:
A força da confiança de Deus: Carmen teve dificuldades para engravidar, mas após muita
determinação teve o filho tão desejado;
A maior benção que Taísa Marins Trocado recebeu na igreja Universal foi o encontro que
teve com Deus.
Estratégias para arrebanhar fiéis em um país onde o número de evangélicos aumenta a cada
dia.
O rádio é um dos meios mais antigos de comunicação, e sabendo da sua popularidade a Igreja
Universal do Reino de Deus possui hoje cerca de 30 emissoras espalhadas em todo o Brasil.
Uma delas, a rádio Aleluia, freqüência 100,3, localiza-se em Maceió há cinco anos. Todas
possuem o objetivo de disseminar a teologia da IURD e converter ainda mais fiéis.
Com o intuito de conhecer o funcionamento da rádio Aleluia, realizamos uma entrevista com
um ex-funcionário, André Muricy de Medeiros, que trabalhou durante um ano e meio na
empresa. Pudemos, através desta iniciativa, entender melhor como se deu o processo de
implantação da rádio em nossa cidade. Além de que tivemos a oportunidade de enriquecer
nossa pesquisa.
1893
O rádio é utilizado principalmente como um meio que pode atravessar fronteiras, e por atingir
um público bem mais diversificado. Um único pastor pode evangelizar milhares de pessoas ao
mesmo tempo sem ao menos sair de dentro dos estúdios. Observamos que a forma de fazer
programas ao vivo é uma das características das emissoras evangélicas. No momento que um
ouvinte liga para um programa o pastor tente de alguma forma convertê-lo, mostrando todas
as vantagens de se fazer parte da IURD.
O público alvo dos programas das rádios são sempre pessoas atormentadas por algum tipo de
problema, em sua maioria são pessoas de classe média baixa que procuram de alguma forma
tornar a vida mais fácil de ser aceita. Os chavões fazem parte do diálogo entre o locutor e o
ouvinte para assegurar a audiência. O depoimento de pessoas que tiveram a vida mudada após
a entrada na IURD torna ainda mais sedutor a conversão dos ouvintes. O locutor utiliza
situações de angústia, também chamada de fraqueja, uma brecha para entrar na vida de cada
um trazendo a salvação.
Os programas nunca são de alguma forma democráticos, apenas são postos no ar depoimentos
que interessem a IURD. Já que sobrevivem exclusivamente através da igreja, senda esta a
grande diferença entra as rádios comerciais e as evangélicas.
Considerações finais
Chegamos a esta conclusão por meio das observações e análises dos programas de televisão
produzidos pelas lideranças da IURD e exibidos diariamente nos canais da TV Record. Entre
as principais características observadas nos programas veiculados, notamos que sempre é
mostrado que existe uma facilidade de acesso da população à religião. O contato com Deus
passou a ser feito de maneira simples e objetiva. O pastor, que também assume o papel de
apresentador é o mediador entre os mortais e Deus. Para a teologia iurdiana a religião
desempenha um papel fundamental para o homem. Assim como o atendimento médico é um
serviço essencial, a religião, sob seu ponto de vista, passou também a ter um papel igualmente
essencial para a humanidade.
Entre as características que observamos na IURD, percebemos que ela sempre sugere um
meio de salvação dos problemas sociais, sejam eles de ordem física, emocional ou até mesmo
financeira. Um suposto canal de comunicação entre o público massificado e as lideranças
iurdianas sugere uma impressão de democracia. Outro artifício muito utilizado diz respeito ao
calendário de eventos da igreja. Variando de temas ou épocas especiais, a programação
semanal é muito valorizada na mídia da igreja. Cada dia da semana foi destinado para sanar
um tipo de problema social. Ora, todos desejam prosperidade, saúde, amor, e desta maneira
são induzidos a acompanhar todas as correntes sugeridas. Isto faz com que diariamente os
cultos sejam freqüentados e também diariamente os fiéis possam dar suas contribuições
financeiras.
É óbvio que a IURD oferece explicações diferentes para o seu sucesso. Segundo seu líder
supremo, bispo Edir Macedo, o sucesso da IURD é fruto do Espírito Santo. Segundo ele, não
se trata de marketing bem feito, boa administração, nem qualquer outra razão humana. A
1895
IURD investe ainda em projetos sociais, a fim de desenvolver um marketing institucional.
Esta iniciativa visa melhorar a imagem da igreja que sofre com as críticas da mídia. Com os
projetos, a IURD passou a sentir mais confiança e notou que pode realmente ser uma presença
expressiva na sociedade.
Sentimos que seria por demais elementar estabelecer que a IURD seja vista apenas como uma
seita vendendo “milagres”. Sabemos que seu crescimento se deu através de estratégias de
marketing, que incluem a solução imediata dos problemas sociais, motivo este que seduz
principalmente os menos esclarecidos, mas não exclui sob nenhum aspecto os ditos mais
esclarecidos. A necessidade de provar que realmente a vida dos fiéis será mudada após a
conversão, fez a IURD lançar mão de testemunhos em todos os seus programas televisivos e
radiofônicos. As histórias contam sempre casos de pessoas que sofriam e tiveram suas vidas
melhoradas. Após a confirmação do “milagre”, da libertação do sofredor, o pastor convida
essas pessoas a buscar um templo da IURD para iniciar sua caminhada de libertação.
Assim, partindo de um ponto de vista psicológico, tivemos que lidar com os fenômenos
denominados de curas e salvação que os membros da IURD realizam. Chegamos à conclusão
de que seria precipitado negar totalmente este fenômeno, pois sabíamos que a cura poderia
simplesmente ser algo passageiro e existir apenas no imaginário dos fiéis. Um resultado mais
profundo sobre este fenômeno só poderia ser levado adiante por meio de testes e
acompanhamentos constantes, além de exames médicos que poderiam ser realizados nas
pessoas que diziam realmente estarem curadas de algum problema de saúde. Além do que
vimos na IURD relatos de pessoas que realmente tiveram suas vidas melhoradas, pois
encontraram na religião um consolo para sair de vícios, e também pessoas que restabeleceram
laços familiares e afetivos.
Compreendemos que a IURD não está unicamente envolta em teatralização dos fatos, pois
parte (pequena se comparada à quantidade de fiéis) dos testemunhos são aparentemente
verídicos. Claro que não sabemos até que ponto existiu a interferência da IURD. Isso só seria
possível de ser estudado se tivéssemos também acompanhado a vida anterior das pessoas
entrevistadas.
Concluímos ainda que será determinante para a continuidade do crescimento da IURD uma
possível reformulação da fórmula iurdiana, que promete a cura, a salvação, exorcismo e
prosperidade, como solução para todos os problemas. Cito porque várias outras correntes
neopentecostais já estão empregando esta mesma fórmula de crescimento. Algumas não
1896
sabem administrar tão bem a relação entre a religião e o dinheiro como a IURD, mas outras
estão se tornando verdadeiras rivais na arregimentação de fiéis. Como exemplo temos a Igreja
Católica que através do movimento carismático tem se tornado uma grande concorrente de
Edir Macedo.
Sabemos ainda que o nosso estudo não poderá parar por aqui, e sim deverá servir de alguma
forma para embasar outras pesquisas mais aprofundadas sobre o fenômeno neopentecostal.
Referências
CAMPOS, Lenildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
1897
1898
O que dizem os evangélicos sobre o incêndio na boate Kiss: lazer e
(in) tolerância cultural
Introdução
Para esta tarefa proposta, quero fundamentar aminha análise em torno de um fato ocorrido
este ano no Brasil que gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se
pronunciarem sobre o caso, o que possibilitou esta análise. Trata-se da tragédia que ficou
conhecida como o incêndio da boate Kiss. Então, este trabalho visa problematizar declarações
e discursos de evangélicos sobre o ocorrido. Analisando falas coletadas em pesquisa
etnográfica e em sites e redes sociais, o objetivo principal é apresentar como, apesar de vários
destes sujeitos se envolverem em atividades de lazer aparentemente semelhantes a que estava
acontecendo na boate, algumas características do evento em que se originou o incêndio são
vistas como pecaminosas e condenadas.
O texto será dividido em quatro partes diretamente ligadas ao seu título, pretendendo com isso
afunilar o assunto sobre o qual quero tratar neste espaço. Inicialmente, discuto a possibilidade
de falarmos em “evangélicos”, na segunda parte descrevo um pouco do que ocorreu no
incidente. Na parte seguinte problematizo brevemente o uso do termo lazer e ao final, trabalho
9
Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012)
pela mesma instituição e em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na
área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. Contato:
dnney@ibest.com.br.
10
Por imaginário tenho entendido um conjunto de significações imaginárias (CASTORIADIS, 1982) que
agrupadas, constituem um conjunto através do qual o sujeito lê a realidade definindo suas formas de pensar e
agir, ou seja, permeia sua cultura. Nos termos de Gilbert Durand (1989), estas significações são construídas
através de um “trajeto antropológico”.
1899
algumas significações operadas pelos evangélicos em torno deste tipo de vivência para tentar
explicar um pouco de como o imaginário lhes possibilita formas de pensar que geram este
tipo de intolerância cultural, apesar de que, de forma bem ambígua, eles se apresentam
tolerantes para com vivências aparentemente semelhantes.
De imediato, eu deveria pedir desculpas pelo título do texto. Quem conhece um pouco do
campo religioso evangélico sabe que é muito difícil afirmar o que os evangélicos dizem sobre
qualquer coisa. Como bem acentuou a professora Miriane Frossard (2013, p. 46), ao pesquisar
o turismo religioso evangélico a heterogeneidade desta vertente religiosa impossibilita
generalizações. Aliás, uma coisa a se perguntar é a que grupo religioso podemos chamar de
evangélico.
Sem querer entrar em pormenores desta discussão, indico ao leitor apenas um capítulo de um
livro publicado recentemente em que Martin Dreher (2013) em que ele explica como é
possível entender a relação entre protestantismo e o que se chama genericamente de
“evangélicos” aqui no Brasil, mas o fato é que, desde o período de implantação do
protestantismo de missão no Brasil, os protestantes se referiam a si próprios como evangélicos
(MENDONÇA, 2005). Dentre os motivos para isso, Rubem Alves afirma que era “para se
distinguirem dos papistas.” (ALVES, 2005, p. 12). Ao que parece, este termo, que fazia
referência ao papa, era utilizado na época para se referir aos missionários católicos.
Pois bem, o mesmo Rubem Alves afirma que o que se chama de evangélico hoje, nada tem a
ver com o protestantismo clássico (ALVES, 2005, p.12). Mas, a despeito disso, me parece ser
a opção mais plausível a de Zwinglio Dias quando, ao se referir aos pentecostais
especificamente, afirma que devido ao seu “inegável parentesco com determinadas expressões
do Protestantismo de Missão, não temos como não considera-los como parte da grande
família do protestantismo latino-americano.” (DIAS, 2008, s/p).
Deste ponto de vista, ainda que ajam muitas rupturas, no decorrer do “trajeto antropológico”
(DURAND, 1989) das culturas que deram origem a estas cisões, é possível que algo do
imaginário anterior tenha permanecido no imaginário emergente. No decorrer do texto, o
1900
leitor perceberá que acabo adotando esta posição e isso muito tem a ver com o tipo de
pesquisa que tenho efetuado.
Minha pesquisa tem sido produzida com viés antropológico de caráter etnográfico e o grupo
que pesquiso está inserido em uma igreja que tem passado por um forte crescimento nos
últimos anos. Trata-se de um grupo composto por uma maioria de jovens entre quinze e vinte
e cinco anos de uma grande igreja batista em Juiz de Fora, cidade situada na zona da mata do
estado de Minas Gerais. Este grupo por nome Fixados em Cristo possui uma média de
trezentos jovens ativos, segundo um de seus membros informou, e promove vários eventos
para jovens. Destaquei em outro trabalho, já citado (COSTA, 2013), vários eventos de lazer
que ocorreram entre 2012 e 2013 sob sua organização.
Este grupo pertence a uma das mais antigas igrejas evangélicas em Juiz de Fora. Nesta cidade
há varias igrejas que reivindicam em seus nomes a identidade batista, mas é difícil precisar
qual está vinculada a que convenção. Há também algumas que não são vinculadas a nenhuma.
Neste cenário batista juiz-forano, a Primeira Igreja Batista de Juiz de Fora – MG (PIBJF)
chama a atenção por tratar-se de uma instituição eminentemente histórica, mas que tem
passado por algumas transformações recentes que parecem ser de grande relevância. Segundo
os dados de seu site oficial, foi uma igreja evangélica pioneira no Estado de Minas.
Comemorando neste ano (2013) 86 anos de presença na cidade, a instituição já passou por
várias reorganizações, especialmente na década de 1950. Mais recentemente, além das
mudanças administrativas, a instituição passou por transformações de ordem espacial.
Ainda segundo o site da igreja, com a chegada do pastor Aloísio Penido Bertho, que é quem
está atualmente na direção da instituição, ocorreu uma grande mudança no perfil da igreja. O
número de membros ativos saltou de trezentos para dois mil11. O templo se tornou pequeno e
passou-se a alugar as instalações do Ginásio Sport Club, localizado na Avenida Barão do Rio
Branco, no centro da cidade, para melhor acomodar os frequentadores dos cultos realizados
nas noites de sábado e domingo. Em pouco tempo, os cultos das noites de quarta também
passaram a ser realizados no ginásio.
11
Esta também é uma informação do site. Talvez seja questionável, visto que é muito comum as igrejas
superestimarem o contingente de membros que possuem. Mas no período que estive em campo, ocorria uma
campanha de recadastramento de membros, em que as pessoas são convocadas a atualizar seus dados na
secretaria da igreja, para confirmar que estão ativos. Esta campanha tem sido realizada todo ano nesta igreja, ao
que parece, numa forma de controlar a quantidade de votos necessários para aprovar as decisões de assembleias,
como a que foi realizada para definir um estatuto de uma casa de recuperação de narcóticos a ser criada.
Acredito que este fato aumenta a confiabilidade dos dados informados.
1901
A solução encontrada para melhor acomodar as pessoas foi alugar as instalações da antiga
malharia Master, também localizada na avenida Barão do Rio Branco. Durante o tempo em
que estive em campo, era muito comum, especialmente no momento da coleta de ofertas, os
dirigentes do culto falarem o valor do aluguel deste espaço, que se afirma ser de trinta mil
reais. Trata-se de um espaço relativamente grande. Com um salão com capacidade para três
mil pessoas sentadas, o espaço também agrega várias outras instalações que também são
utilizadas com diversas funções.
Na apresentação destes dados o que me importa é destacar a forma breve com que esta igreja
cresceu e a forma como isto aconteceu. O que tenho constatado através de pesquisa de campo
é que, neste crescimento, a igreja recebeu grande quantidade de membros vindos de outras
igrejas ditas evangélicas, pentecostais ou não. No contato com o grupo pesquisado, pude
perceber que, apesar de assimilarem muito da visão teológica institucional, muitas
significações advindas da teologia da igreja a que pertenciam anteriormente continuam a
permear o imaginário destes jovens. Então, ao que parece, está acontecendo um câmbio de
imaginários evangélicos, pelo menos no contexto em que estou pesquisando.
Mas acredito haver motivos para se acreditar que fenômeno semelhante não está ocorrendo
somente nesta igreja. Por que ele pode acontecer de outra forma que é bem mais
potencializadora. Trata-se da mídia. Como acentuado por Magali Cunha (2013), parece que o
Brasil está vivenciando “tempos de cultura gospel”. Desta forma, a mídia e os meios de
comunicação interativos, comumente chamados de redes sociais, se apresentam como grandes
veículos de promoção de religiosidades, o que promovem, em maior escala, estes
intercâmbios de imaginários religiosos evangélicos.
É por estas razões acima descritas que penso ser possível de falar sobre o que os evangélicos,
de maneira geral, estão pensando sobre determinados assuntos. Penso que é possível e talvez
até desejável. Em determinadas pesquisas sobre temas pontuais, uma reflexão sobre como
outros grupos que compõem esta grande vertente conhecida como evangélicos, pode ajudar a
entender heterogeneidades que se apresentem no grupo pesquisado e é nesta linha que
pretendo desenvolver esta reflexão.
Estou consciente de que existem vários problemas relativos a estas questões, mas visto que,
durante algum tempo, no desenvolvimento da ciência social brasileira, a antropologia não
dedicou ao protestantismo, nem mesmo a sua versão (neo) pentecostal, a mesma atenção dada
1902
às religiões de matriz afro, (MONTERO, 1999, p. 357) e que muitas pesquisas deixaram
escorregar categorias nativas (leia-se institucionais) para a pesquisa sociológica, como por
exemplo, a categoria de conversão, (MONTERO, 1999, p. 359); as pesquisas de viés
antropológico que têm emergido não podem se deixar seduzir pela visão institucional. Pelo
contrário, devem se empenhar em retratar os sujeitos em sua realidade.
Olhando para esta realidade atual descrita por Cunha (2013), a qual tentei aqui dar uma
contribuição a partir do contexto que pesquiso, a consciência do que se passa em outras
realidades inerentes ao contexto evangélico se apresenta para mim como uma alternativa
profícua. É o que acredito que vai ser possível perceber na análise que se segue. Meu foco é
sobre as falas de evangélicos sobre uma tragédia ocorrida. O tema me ocorreu em pesquisa de
campo, mas a atenção aqui recairá sobre as falas que, de modo geral, foram julgadas
intolerantes.
Era um culto de jovens realizado ao sábado, situado no contexto em que descrevi acima,
quando fui surpreendido com uma série de afirmações do pregador fazendo alusão ao fato de
que vários jovens haviam perdido suas vidas por estarem afastados da presença do senhor,
segundo ele. Tratava-se do incêndio na boate Kiss. Para além dos muitos dados que flutuam
na internet sobre o que de fato ocorreu, quais os culpados e se foram julgados adequadamente
ou não, antes de pensar o porquê das afirmações que foram proferidas pelo pregador, se faz
necessária uma breve apresentação da situação do incêndio em si.
Em traços gerais, o que aconteceu foi que, em uma madrugada de janeiro deste ano, ocorria na
boate Kiss, situada em Santa Maria – RS, um evento chamado “Aglomerados” em que
aconteceria a apresentação de uma banda famosa por seus shows pirotécnicos que envolviam
fogos de artifício e também a apresentação de alguns DJ’s. Ao que parece, devido a um ato
imprudente durante o show pirotécnico da banda, iniciou-se um incêndio que se transformou
em uma das maiores tragédias deste tipo já vista no país, com a morte de mais de duzentos
jovens.
O ocorrido gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se pronunciarem sobre
o caso. Grande polêmica se deu em torno de algumas declarações de pessoas que se
1903
identificaram como evangélicos, pois algumas afirmações se apresentaram intolerantes não só
para com a cultura dos jovens que ali estavam, mas também para com a dor das famílias que
perderam seus entes.
As declarações deste tipo podem ser tipologizadas em pelo menos três argumentos. O
primeiro, que foi o mais projetado nas ditas redes sociais, especialmente no site Twiter é o de
que “o diabo fez sua colheita”, neste sentido, argumentos semelhantes tentavam apontar para
o fato de que um ente maligno havia preparado aquele lugar para depois promover a morte
das pessoas que ali se encontravam para toma-las para si.
O segundo argumento que mais identifiquei nas redes foi o de que havia uma obreira12 que
estava na boate e acabou sendo morta pelas chamas por que estava fazendo o que não deveria.
Neste sentido, os argumentos deste tipo enfatizavam o fato de que uma pessoa temente a Deus
não deveria frequentar estes lugares que se apresentam como espaços de perdição. Aqueles
que enfatizavam isso focavam todo o tipo de coisas ruins que poderiam acontecer nestes tipos
de vivências de lazer.
Sobre os dois últimos argumentos citados, importa, para além da discussão sobre se de fato
ocorreu o que estão falando, destacar a construção dos argumentos para entender como são
articuladas as significações que compõe o imaginário destes evangélicos sobre lazer.
Antes de prosseguir com a discussão, torna-se relevante notar o fato curioso de que alguns
evangélicos, possivelmente os mesmos que pronunciaram coisas deste tipo, participam de
atividades de lazer aparentemente semelhantes às que estão repudiando, o que destaca o
princípio de ambiguidade que compõe o imaginário religioso brasileiro. (SCHULTZ, 2007).
A título de exemplo, vou colocar lado a lado um cartaz de um evento promovido pelo grupo
qual pesquiso e o cartaz do evento “Aglomerados”, para que se possa perceber que
visualmente são muito próximos na linguagem empregada.
12
Termo utilizado por algumas denominações evangélicas para identificarem uma cooperadora, também é
chamada de diaconisa em alguns contextos.
1904
Figuras 1 e 2 – Cartazes dos shows: Gurizada Fadangueira no evento “Aglomerados” 13 e Oficina G3 na PIBJF.14
Lazer?
No decorrer do texto venho empregando várias vezes o termo lazer, mas como já estou
caminhando para a análise e apresentação dos resultados, julgo necessário fazer uma pausa
para tecer algumas considerações sobre o que estou pensando quando assim o faço. Cristina
Gomes (2013) constatou, ao pesquisar uma vasta quantidade de bibliografias, que
Dumazedier foi o pesquisador estrangeiro que mais influenciou a literatura científica
brasileira sobre o assunto. Ao se tornar referência no Brasil, a partir da década de 70, o
sociólogo teve seu conceito de lazer citado em diversas obras sobre o assunto. Tal conceito
está sistematizado no livro Lazer e Cultura Popular, em que o lazer é apresentado como:
[...]Um conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja
para repousar, seja divertir-se, recrear-se, entreter-se, ou ainda desenvolver sua formação
desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, após
livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.
(DUMAZEDIER, 1973, p. 34)
Com este conceito, o autor conjuga dois elementos, o tempo e a atitude. Estando preocupado
com o fato de que, em muitos casos, o vocábulo lazer é empregado para se referir a apensas
13
Boate promoveu festa Aglomerados que virou tragédia. Disponível em:
<www.noticiasnobrasil.org/2013/01/a-festa-agromerados-na-boate-kiss-vira.html>. Acesso em: 3 junho 2013.
14
Oficina G3 em Juiz de Fora. Disponível em: <
http://www.radiovidacataguases.com/index.php/evento.php?id=22 >. Acesso em: 5 junho 2013.
1905
um de seus conteúdos, de maneira muito incompleta, ele procura criar uma definição que
pudesse circunscrever o fenômeno, conjugando os dois elementos que dividiam duas grandes
linhas de pensadores que o precederam. (MARCELINO, 1987, p. 27). Assim, na primeira
parte, enfatiza o quesito atitude quando afirma que “o indivíduo pode entregar-se de livre
vontade” e, ao final, evoca o quesito tempo ao dizer “após livrar-se ou desembaraçar-se das
obrigações”.
Mesmo sem desconsiderar suas contribuições, é importante notar que este sociólogo francês
também sofreu algumas duras críticas posteriores, sendo que sua abordagem funcionalista
chegou a ser acusada de um “falso humanismo”. (MARCELLINO, 1987, p. 35). Gomes
(2008) assinala que a definição de Dumazedier, ao tratar o lazer como fenômeno isolado, se
revela frágil por não dar conta de vivências dinâmicas que hoje são facilmente observadas na
realidade, como as que serão tratadas nesta pesquisa. Ela cita como exemplo a ambiguidade
do conceito de “semilazer” criado pelo próprio pesquisador. (DUMAZEDIER, 1979).
Sendo assim, esta definição que busca identificar o que é lazer com intensa preocupação em
destacá-lo das obrigações, não se mostra suficiente para descrever vivências desse tipo, que se
contrastam com a vivência promovida no evento “Aglomerados”. Marcellino (1987) percebeu
esta limitação e, ao propor o lazer como elemento pedagógico, recomenda outra visão que,
tanto valorize o fenômeno em si mesmo, quanto entenda a sua íntima dialética com as demais
esferas sociais. Inspirado em Geertz (2008), ele defende que o lazer seja interpretado como a
“cultura vivenciada no tempo disponível”. (MARCELLINO, 1987, p.29).
Para Gomes (2008a), há hoje uma tendência da literatura científica brasileira a esta tipo de
abertura antropológica. É o que explora em suas obras posteriores. Ela que, anteriormente
(GOMES, 2008b), buscando retomar as raízes históricas na Grécia Antiga, entendia o lazer
como um fenômeno que englobava quatro elementos, sendo: tempo e atitude, conjugados por
1906
Dumazedier (1973, 1979), mas também espaço e cultura; explorados por Marcellino (1987);
agora volta sua atenção totalmente para o âmbito cultural. Tal posicionamento surgiu após
perceber que, quando as raízes do fenômeno são remetidas ao mundo ocidental, seja à
modernidade ou à Grécia antiga, as concepções que emergem não contribuem muito para
explicar vivências do lazer em outros contextos marginais, como a América-latina.
Como resultado desta nova perspectiva, Gomes e Elizalde conceituam o lazer como “a
vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço social”. (GOMES; ELIZALDE,
2012, p. 30). Estou tendente adotar esta perspectiva, pois, pensando este fenômeno de um
ponto de vista cultural e tratando a cultura em perspectiva semiótica (GEERTZ, 2008), é
possível perceber que, ainda que não chamem eminentemente de lazer, algumas significações
do que povoam o imaginário das várias vertentes evangélicas se referem a ele. Algumas
destas significações dão vazão a afirmações intolerantes do tipo acima exposto. Entender um
pouco delas é a tarefa a seguir. Para facilitar a leitura para aqueles que não estão
familiarizados com discussões que flutuam em meio aos estudos do lazer, sugiro que leia-se
lazer como diversão.
Para entender estas interpretações dos evangélicos que se apresentam intolerantes, julgo ser
necessária uma breve exposição de algumas significações que compõem o imaginário dos
evangélicos sobre lazer. Lendo a bibliografia sobre a inserção do protestantismo no Brasil,
especialmente aquele dito protestantismo de missão identifica-se que, como foi muito
influenciado pelo pietismo estadunidense (MENDONÇA, 1994), foi gerado em seu interior
uma significação que pode ser entendida como a “neurose do tempo” (MENDONÇA;
VELASQUES FILHO, 1990, p. 187), segundo a qual emerge a imagem do protestante como
aquele que não deve desperdiçar o seu tempo, aproveitando-o para se dedicar ao serviço da
“obra do senhor”.
Considerações finais
Como foi discutido do decorrer do texto, existem várias interpretações a respeito do que
representem o tipo de vivência do qual se tratava o evento que deu origem ao incêndio na
boate Kiss. De maneira geral, algumas interpretações de evangélicos podem ser vistas como
intolerantes, pelo tipo de leitura que fazem da situação que ocorreu. Como pude demonstrar,
estas interpretações advém de algumas significações que compõem o imaginário evangélico
sobre lazer, fazendo parte da visão de mundo destes sujeitos, ou seja, sua cultura. Algumas
são até muito ambíguas, visto que alguns evangélicos curiosamente participam de eventos
1908
aparentemente semelhantes. Mas o que concluo é que as afirmações que podem ser lidas uma
espécie de intolerância cultural, poderiam ser pensadas em outra chave, como fruto de algo
que já possui um termo técnico bem adequado: etnocentrismo. Sendo este uma tendência
natural das culturas, se faz necessário aprofundar a reflexão sobre a forma como entendemos
estes sujeitos.
Referências
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Oficina G3 em Juiz de Fora. Disponível em: <
http://www.radiovidacataguases.com/index.php/evento.php?id=22 >. Acesso em: 5 junho 2013.
1910
1911
O Testemunho Religioso no ciberespaço: uma forma (cri)ativa de
interpelar o outro
Ronivaldo Moreira de Souza1
Introdução
A parceria entre religião e mídia alterou a forma de demarcação de espaços e adesão de fiéis
entre as religiões. Se antes este processo se baseava mais no corpo a corpo, hoje a corrida pela
exposição midiática e a comunicação voltada para as massas são o centro desta disputa
(MORAES, 2010. p.32).
Este desafio migratório das comunidades religiosas locais para a mídia insere um paradoxo
constitutivo para o discurso religioso evangélico. É preciso manter os traços tradicionais da
tipologia discursiva religiosa, visto ser ela quem define o lugar em que o leitor precisa se
colocar para interpretar o discurso e em função de qual finalidade este discurso foi
organizado; mas também, há uma evidente necessidade de adaptar os gêneros tradicionais do
discurso religioso evangélico (sermão, testemunho, louvor, e etc.) ao suporte material de
mídia na qual passará a veiculá-lo. O pastor que antes interpelava uma audiência passiva
sentada nos bancos de um templo no domingo a noite observando in loco as reações do seu
público, agora se vê em um estúdio diante de uma câmera falando para uma audiência sem
rosto, para um tipo ideal de enunciatário que presumivelmente consumirá este discurso de
maneiras diversas de acordo com o meio no qual o discurso será veiculado.
Com isto em mente, o problema que aqui se propõe investigar é como a Igreja Universal do
Reino de Deus elabora um misto testemunho-publicidade para interpelar o enunciatário em
1
Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. Bolsista FAPES. Contato:
Kawai150@hotmail.com. Este trabalho apresenta resultados parciais da minha dissertação de mestrado sob o
título: Ethos em cena: A interação do ethos na construção da cena enunciativa do discurso dos fiéis da IURD;
orientada pelo professor David Mesquiati de Oliveira, doutorando em Teologia pela PUC/RJ.
1912
uma mídia caracterizada pela diversidade e alcance das mensagens, considerando-se ainda o
comportamento ativo da audiência nesta mídia digital. A pesquisa levanta a hipótese de que se
por um lado a tipologia do discurso posiciona o enunciatário para interpretar o texto
interpelando-o a partir desta identidade a ele atribuída, por outro, o discurso precisa adaptar-se
ao suporte de mídia sendo capaz de interpelar o enunciatário posicionando-o quanto à maneira
como consumirá o texto.
Como ponto de partida este trabalho investigará algumas características do discurso religioso.
Em seguida, observará o gênero Testemunho Religioso na sua forma tradicional e as
mutações deste gênero ao migrar para a mídia. Depois, especificará alguns pressupostos
teóricos sobre a mídia digital e suas implicações quanto ao discurso religioso. Por fim,
aplicará estes conceitos à página de testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus
disponível no endereço eletrônico: www.eucreioemmilagres.com.br.
1913
constitutiva entre a imagem que ele dá de sua instauração e a validação retrospectiva de certa
configuração da comunicação, da repartição de autoridade, do exercício do poder que ele
cauciona, denuncia ou promove por seu gesto instaurador” (MAINGUENEAU, 2008. p.54).
“E Jeová fechou a porta por fora” (Gênesis 7,16). A arca foi fechada. Ela simboliza a
totalidade reconstituída. Quando o universo está desenfreado, o microcosmo organizado
reflete a ordem de um o macrocosmo que está por vir. [...] Quando Noé, ou seja, cada um
de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano
agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção diferente.
Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estarão
eternamente à deriva na superfície das águas (LÉVY, 1999. p.15).
O autor afirma ainda que esta nova dinâmica comunicacional incide na construção dos
sentidos. Se nas sociedades orais a divergência de sentido era mitigada pelo fato da mensagem
ser recebida no mesmo contexto de sua produção, na comunicação escrita os problemas de
recepção e interpretação foram exacerbados pela distância espaço-temporal entre a produção e
recepção da mensagem. Surgiram então mensagens (entre elas a religiosa) concebidas para
preservar seu sentido independentemente do contexto. Em sua obra, Lévy defende a hipótese
de que “a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta ao seu contexto, como
ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala [...]. A nova universalidade não depende
mais da auto-suficiência dos textos [...]. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão
das mensagens entre si [...]” (LÉVY, 1999. p.15). Portanto, o ciberespaço é constituído por
esta integração de diferentes vozes onde os participantes têm um papel ativo.
Este papel ativo e coexistente de um enunciador/enunciatário cria uma nova relação entre a
audiência e o meio/suporte. A audiência antes interpelada como agente passiva (ouvinte,
telespectador, espectador, e etc) agora é atraída pela interação, o que lhe confere uma nova
identidade, ou seja, “o espectador transforma-se no novo usuário que acessa a rede para
buscar por sua própria conta tudo o que necessita [...]. Os usuários podem interagir com redes
1914
e pessoas [...], e podem criar personagens e papéis, e até mesmo identidades, o que antes só
era permitido aos atores, na tela da televisão” (VILCHES, 2003.p.21-22). Vilches destaca
ainda que esta interação tem seu inicio na forma compreensível pela qual a máquina se
apresenta ao usuário permitindo a este ultimo uma experiência de gestão por meio de objetos
visuais preparados para interagir. Esta interface “não é um complemento do ato de ver, como
o controle remoto [...]. A interatividade permite aos usuários usarem as mídias para organizar
seu espaço e seu tempo, e não o inverso, como acontecia nos meios tradicionais baseados na
manipulação das imagens e dos sons, a partir de um centro emissor” (VILCHES, 2003.p.24).
Esta dinâmica comunicativa da mídia digital afeta a produção e o consumo do texto em dois
aspectos. No primeiro, verifica-se que a linguagem precisa ser criada para propiciar a escolha
e o consumo individualizado, proposta oposta ao do consumo massivo propiciado pelos meios
de comunicação de massa. Texto e interface se completam na proposta de arrancar a audiência
da inércia da recepção de mensagens impostas de fora e transformá-la no usuário treinado
para buscar a informação e o entretenimento (SANTAELLA, 2003. p.27). No segundo
aspecto este processo afeta também o consumo dos textos, pois, nos meios digitais a “marca
principal está na busca dispersa, alinear, fraguimentada, mas certamente uma busca
individualizada da mensagem e da informação” (SANTAELLA, 2003. p.27). Se por um lado
a mídia digital propicia uma comunicação massiva em termos numéricos, por outro, não o é
em termos de simultaneidade e uniformidade da mensagem recebida. A multiplicidade de
mensagens e de fontes torna a audiência mais seletiva (CASTELLS, 2005. p.424).
1915
Castells conclui que esta lógica comunicativa da mídia digital enfraquece o poder simbólico
dos emissores tradicionais como a religião, por exemplo, se este estiver fora do sistema.
Porém, uma vez recodificado para esta nova mídia, o discurso religioso tem seu poder
multiplicado “pela materialização eletrônica dos hábitos transmitidos espiritualmente: as
redes de pregadores eletrônicos e as redes fundamentalistas interativas representam uma
forma mais eficiente e penetrante de doutrinação em nossas sociedades do que a transmissão
pelo contato direto da distante autoridade carismática” (CASTELLS, 2005. p.461).
Tendo em mente estes pressupostos teóricos este trabalho se interessa pela constante
recorrência que as igrejas neopentecostais fazem do gênero Testemunho Religioso como
forma de doutrinação e adesão de novos fiéis por meio da mídia digital.
Para analisar o testemunho religioso se faz necessário conhecer alguns traços peculiares deste
gênero. Oliveira define o gênero testemunho como “aquilo que se declara a respeito de uma
pessoa ou de um fato, com o objetivo de produzir convicção” (OLIVEIRA, 2010. p.56). Para
o autor esta atividade comunicacional no meio religioso, especialmente no cristianismo, está
atrelada à tarefa de comunicar o evangelho contribuindo para a divulgação da religião cristã.
Segundo sua constatação, tradicionalmente o testemunho religioso se dava na forma de
comunicação direta interpessoal ora de pessoa a pessoa, ora de forma pública durante as
reuniões informais nas casas, e formais (cultos, missas) nos templos. O autor atesta que em
sua “configuração original o gênero testemunho cristão estava somente no domínio religioso e
na modalidade oral” (OLIVEIRA, 2010. p.58). Oliveira lembra ainda que no decorrer do
tempo a prática quase foi extinta da liturgia católica e das igrejas protestantes históricas,
porém, com o fenômeno do neopentecostalismo o gênero se tornou o centro da liturgia.
1916
tempo presente uma nova identidade e um novo modo de afirmação social atravessado pelos
valores da crença (FRANCISCO, 2011. p.3). Sobre este binômio da estrutura narrativa do
gênero, Mafra acrescentou que a “estrutura típica do testemunho [...] organiza-se segundo um
processo de reconhecimento de um determinado estado volitivo x que, com o auxílio ou
intervenção de Jesus, transformou-se no estado y” (MAFRA, 1999. p.378).
Diante das particularidades do gênero e dos indicadores de sua finalidade na prática religiosa
pode-se recorrer a estudos já realizados neste campo tendo como corpus a recorrência do uso
dos testemunhos pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Campos observou que a espontaneidade discursiva que marcava o gênero em sua forma
tradicional foi substituída na IURD pelo formato do tipo espontâneo-administrável onde
predomina um claro direcionamento daquilo que o depoente deverá dizer, eliminando assim
tudo o que poderia destoar do discurso padrão da igreja (CAMPOS, 1997. p. 306). Nesta
mesma perspectiva Francisco constata que o roteiro narrativo do testemunho dos fiéis da
IURD se concentra na resposta a três perguntas básicas: “Como era sua vida antes de chegar
à igreja? Como você chegou até a igreja? Como está sua vida agora?” (FRANCISCO, 2011.
p.4). Este roteiro assegura os eixos narrativos antes/depois tendo como ponto de
transformação a intervenção da Universal.
1917
É quase consenso na literatura a natureza mercadológica da Igreja Universal do Reino de
Deus, com isto, algumas incursões investigativas neste viés dão conta do caráter publicitário
da apropriação iurdiana do gênero testemunho. Ao comparar a forma tradicional do gênero
com a apropriação iurdiana do testemunho, Oliveira aponta que o que antes consistia no
simples relato de uma benção alcançada arquitetado sobre informações pertinentes ao
problema e sua solução, cuja finalidade era a glorificação do nome de Deus; no modelo atual
tem como objetivo divulgar uma marca (instituição) e vender produtos (OLIVEIRA, 2011.
p.7). O autor atribui a esta mutação o fenômeno da adequação da religião à dinâmica de
mercado culminando, por fim, na migração de gêneros da tradição religiosa para meios
midiáticos o que reconfigura as noções de coletividade, momento e lugar (OLIVEIRA, 2010.
p.58). Sua conclusão é que o uso que a IURD faz do gênero é um misto de testemunho-
publicidade, “um tipo de testemunho que só serve para glorificar a(s) instituição(ões) [...],
portanto, o testemunho que era uma forma antiga e espontânea de compartilhar a fé, carrega
em seu bojo a intenção intrínseca da promoção” (OLIVEIRA, 2010. p.103).
E enunciatário crente2
Para entender melhor, a pesquisa recorre ao videoteipe veiculado pela TV Record nos
intervalos comerciais de sua programação. Um texto narrado insere uma pergunta: “Você
acredita em Deus?”. Após isto uma sequencia de imagens de lugares paradisíacos desfilam na
tela. No desfecho, outro texto narrado: “então você acredita em milagres.
www.eucreioemmilagres.com.br”.3 A lógica argumentativa é bastante óbvia explicitada pela
conjunção coordenativa conclusiva “então”: “Se você acredita em Deus, então você acredita
2
O termo crente aqui, não indica o indivíduo cristão, mas, aquele que tem a competência de crer ou acreditar.
3
Vídeo disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=mpHo2MlieEk>. Acesso em dez. 2012.
1918
em milagres”. Neste caso, o endereço eletrônico funciona como uma declaração pessoal de fé:
eucreioemmilagres.
Observe que o apelo argumentativo é semelhante. A questão é: por quê as imagens do mundo
natural são evocadas para comprovar a existência do mundo sobrenatural? É que estes
enunciados sincréticos concordam com o primeiro tópico da declaração de fé da IURD: “Há
um só Deus, Vivo, Verdadeiro e Eterno, de infinito poder e sabedoria. O Criador e
Conservador de todas as coisas visíveis e invisíveis [...]” (grifo meu). O Deus da IURD é
portador de um poder infinito que se comprova nas belezas da criação, mas também, é um
Deus que age e esta condição ativa é comprovada na conservação das coisas que criou.
Portanto, crer nesse Deus vivo e de infinito poder significa por implicação, crer na
possibilidade de milagres.
Sendo assim, antes mesmo de assistir aos testemunhos, o enunciatário interagiu por duas
vezes com uma espécie de declaração de fé: a primeira ao digitar o endereço eletrônico do
site; a segunda no vídeo de abertura: Eu creio em milagres. É este jogo discursivo capaz de
produzir um enunciado que faz o tu dizer eu que garante a instauração do discurso. O “eu” é o
sujeito que crê, a este enunciatário é atribuída tal competência a partir da qual será
interpelado.
O enunciatário usuário
Uma vez interpelado pelo discurso em função de sua tipologia e sendo este discurso
indissociável de seu suporte material, o enunciatário também é interpelado pelo suporte
material em função do modo de circulação e consumo deste texto. O primeiro posiciona o
enunciatário para interpretar o texto (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008. p.96), o
segundo posiciona o enunciatário para o consumo do texto.
Sendo o discurso da IURD veiculado por meio de um suporte material de mídia digital,
conclui-se que precisa ser capaz de interpelar seu enunciatário como usuário porque esta é a
1919
expectativa que este suporte suscita no enunciatário. Para que isto aconteça são necessárias
duas coisas:
A interface precisa apresentar o discurso na forma de uma prestação de
serviços;
A interface precisa convocar o enunciatário à interação atribuindo a ele uma
competência ativa4.
Após o vídeo inicial anteriormente analisado, o enunciador é direcionado para a página com
os depoimentos e relatos dos fiéis. Observa-se no topo da página, canto superior esquerdo, o
enunciado: “Eu creio em milagres”. A destacabilidade textual recai sobre a declaração “Eu
creio”. Esta declaração permanece imóvel no topo da página independentemente do acesso a
qualquer dos depoimentos.
No canto inferior esquerdo da página um banner traz os seguintes dizeres: “Coloque seu nome
no livro de oração. Estaremos orando por você”. Abaixo em destaque um enunciado
imperativo: “Clique aqui”. O banner leva para uma página onde o enunciatário pode colocar
seu nome e e-mail e seu pedido de oração. Já no canto inferior direito é possível acessar a
Rede Aleluia, emissora de rádio na qual a IURD transmite suas doutrinas. Logo abaixo outro
texto linkado: “Orientação Espiritual”. Um enunciado logo abaixo diz: “Receba orientação
sob a luz da palavra de Deus”. Basta um clique no “Fale conosco” para ter acesso a uma
página onde o enunciatário insere seus dados pessoais (nome, e-mail, telefone, país e cidade
onde mora), além do assunto para o qual deseja orientação e uma mensagem contendo as
informações pertinentes ao assunto.
4
Para retomar o termo utilizado por Vilches (2003. p.21).
1920
Nota-se que a exposição do discurso instaurada pela interface o apresenta diante do
enunciatário como uma prestação de serviços buscando causar a impressão de que a IURD
está colocando à disposição do enunciatário seu conhecimento prático e sua “expertise” para
orientá-lo em diferentes áreas da vida (sentimental, financeira, familiar, e etc.). O enunciatário
não é interpelado apenas pela sua capacidade de crer, mas também, pela utilização dos
serviços cedidos pela IURD, o que o transforma em um usuário. Comprova-o também as
ofertas de serviços na parte inferior da página apresentados por enunciados que alternam entre
“mandamentos” e promessas: “Coloque seu nome no livro de oração. Estaremos orando por
você”.5
Observa-se ainda que esta interface confere ao enunciatário uma competência ativa. É o
enunciatário quem seleciona o “serviço” que deseja de acordo com sua necessidade e seu
tempo. Em um vasto universo com oitenta depoimentos6 o agrupamento de vídeos pelo
conteúdo temático ajuda na otimização do tempo do enunciatário permitindo-lhe acessar
diretamente o “serviço” que deseja.
Considerações finais
Desta investigação é possível concluir que ao migrar para a mídia digital o discurso religioso
opera preservando sua natureza constituinte e ao mesmo tempo adaptando e alterando seus
gêneros às regras do suporte material que incidem, por fim, na maneira pela qual passa a
interpelar sua audiência.
5
Diga-se de passagem, uma estrutura textual que lembra às encontradas no texto bíblico.
6
Dados coletados em junho de 2013.
7
Claro que isto se dá apenas no ponto de vista da interação proposta pela interface, uma espécie de simulacro,
pois, independentemente do depoimento que selecionar o enunciatário sempre estará diante da voz institucional
da Universal direcionando a finalidade do gênero.
1921
Quanto ao seu caráter constituinte, mesmo convivendo com a diversidade de discursos outros
neste instável oceano da mídia digital, o discurso iurdiano não cessa de atribuir a si a missão
de assinalar o lugar destes outros discursos tentando constantemente subordiná-los. Os
depoimentos postados no site são repletos de testemunhos daqueles que quando estavam no
“fundo do poço” buscaram auxílio na ciência e em outras religiões, porém, só alcançaram o
milagre quando aderiram à Igreja Universal. É por meio deste jogo de exclusão e apropriação
do discurso outro que a IURD propõe legitimar seu posicionamento discursivo e seu lugar
institucional.
Contudo, o simples fato de migrar para a mídia exige deste discurso uma estratégia precisa
para interpelar a audiência. Os testemunhos que a Universal veicula têm como finalidade não
apenas a fidelização de seus fiéis visando superar a ameaça do trânsito religioso, mas também,
fazer disto uma oportunidade de suscitar a adesão de novos fiéis. Desta forma, a IURD não
interpela sua audiência em função de uma empatia com a igreja, mas sim, em função de uma
crença na existência da divindade. Apropriando-se da metáfora de Lévy é possível concluir
que em meio a esta infinidade de microcosmos organizados no oceano da comunicação digital
faz-se necessário encontrar o lugar da homogeneidade a partir do qual seja possível interpelar
o maior número de arcas possíveis. Uma pesquisa encomendada pela agência de notícias
Reuters constatou que 84% dos brasileiros acreditam em Deus ou em um ser supremo. É deste
ponto característico da cultura brasileira que a Universal interpela sua audiência: “Você
acredita em Deus?”. Acessar os testemunhos na página da IURD é responder a esta
interpelação: www.eucreioemmilagres.com.br.
Uma vez acessando o conteúdo da página, o enunciatário se depara com uma interface que
atribui a ele a identidade de um usuário. O discurso lhe é apresentado como uma prestação de
serviços: é a Igreja Universal dispondo sua expertise para “orientar” o usuário em assuntos
referentes às finanças, família, sentimentos, além de orientação espiritual e orações. A este
usuário é atribuída uma competência ativa dando-lhe o direito de selecionar os serviços que
deseja de acordo com seu tempo e suas necessidades.
Referências
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 1º edição. São Paulo:
Editora 34, 1999.
MAFRA, Clara Cristina Jost. Religiosidades em trânsito: o caso da Igreja Universal do Reino
de Deus no Brasil e em Portugal. In: Lusotopie, 1999. p. 369-382. Disponível em
<http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/mafra.pdf>. Acesso em 12 abril 2013.
1923
VILCHES, Lorenzo. A migração digital. Tradução Maria Immacolata Vassallo de Lopes. São
Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: Editora PUC/RIO, 2003.
Internet
Brasil é o 3º país onde mais se crê em Deus, diz pesquisa. G1. Disponível em<
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/04/brasil-e-3o-pais-onde-mais-se-cre-em-deus-em-
pesquisa.html>. Acesso em 29 jun. 2013.
1924
1925
Religião e ciberespaço: cultura do imaterial e estética classicista
no portal dos Arautos do Evangelho
Introdução
A Igreja Católica se apresenta como vertente do cristianismo com grande número de adeptos,
mas reconhece que o islamismo já supera o número de seguidores da “Igreja de Pedro”, como
se referencia. Define-se como “Una, Santa, Católica, Apostólica”. No entanto, observam-se
características diferentes em grupos nas quais ela se subdivide. Um desses grupos se define
como Associação de Direito Pontifício são os Arautos do Evangelho.
Com o objetivo de utilizar a internet para expressar e reverberar seus valores, esses grupos
aumentam gradativamente sua presença no ciberespaço, o que demonstra o desejo de se
apropriar de um instrumento simbólico - a internet.
O Concílio Vaticano II, que aconteceu de 1962 a 1965, em Roma, provocou na Igreja Católica
grandes reflexões e nela estabeleceu novas posturas. Embora, quase 50 anos depois, diversos
líderes religiosos e outras associações e movimentos da Igreja Católica ainda resistam às
definições surgidas no Concílio, assembleia histórica para a Igreja, não se pode negar que
uma das grandes novidades foi a visão gregária que a Igreja assumia, a partir daquele
1
Doutoranda e mestre em comunicação pela UNIP. Contato: jornalista.gabriela@gmail.com
1926
momento, que se refere ao lugar dos movimentos e associações na instituição.
Sobre os movimentos, o site oficial do Vaticano dispõe de uma seção sobre o DECRETO
APOSTOLICAM ACTUOSITATEM em latim, ou Decreto sobre o Apostolado dos Leigos,
que explana a “importância e atualidade do apostolado dos leigos na vida da Igreja”. A página
cita em seu primeiro parágrafo:
1. O sagrado Concílio, desejando tornar mais intensa a atividade apostólica do Povo de Deus
(1), volta-se com muito empenho para os cristãos leigos, cujas funções próprias e
indispensáveis na missão da Igreja já em outros lugares recordou (2). Com efeito, o
apostolado dos leigos, que deriva da própria vocação cristã, jamais poderá faltar na Igreja. A
mesma Sagrada Escritura demonstra abundantemente como foi espontânea e frutuosa essa
atividade no começo da Igreja (cfr. Act. 11, 19-21: 18, 26; Rom. 16, 1-16; Fil. 4, 3). Os
nossos tempos, porém, não exigem um menor zelo dos leigos; mais ainda, as condições atuais
exigem deles absolutamente um apostolado cada vez mais intenso e mais universal. 2
A aprovação lhes conferia a partir daquele momento um mandato especial, que implicava à
comunidade uma relação própria com a Cátedra de São Pedro, ou seja, com o Papa, líder
máximo da Igreja Católica, possibilitando que não mais estivesse como ponto de referência
um bispo. A medida fez a vertente, agora mais próxima do Papa, ganhar respeito da
comunidade católica e expandir os trabalhos. Sua organização demonstra complexidade
quando o assunto é defini-los. De acordo com seu site oficial, o www.arautosdo.org.br, “a
Associação dos Arautos é composta predominantemente por jovens entre 15 e 25 anos, e está
presente em 78 países”. Está subdivida em membros que abraçam a vida religiosa, e membros
2
DECRETO APOSTOLICAM ACTUOSITATEM, Disponível em <http://www.vatican.va/
archive/hist_councils/iivaticancouncil/documents/ vat-ii_decree_19651118_ apostolicam-
actuositatem_po. html>. Acesso em 01 jun. 2012.
1927
leigos, que estão engajados em outras atividades do movimento.
Segundo o canal oficial dos Arautos na internet, dos abraçam a vida religiosa está a masculina
Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli, constituída por membros dos Arautos do Evangelho
que se ordenaram sacerdotes, e na feminina Regina Virginum, ramificação feminina dos
Arautos. Ambas receberam aprovação pontifícia em 4 de abril de 2009. Há também os leigos
que não professam votos, mas praticam o celibato, vivendo em casas destinadas
especificamente para rapazes ou para moças, e os Cooperadores. Desta categoria fazem parte
aqueles que tenham constituído família, ou ainda, exerçam profissão que não permita tempo
livre para se envolver com as atividades do grupo, e dispõem-se a participar dos encontros
periódicos dos Arautos.
É citado no portal que, em seus estatutos (material não disponível no canal), está delineada a
vocação dos Arautos do Evangelho:
1928
elas não precisam provar nada e podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e
ajuda14. (BAUMAN, 2001, p. 16).4
Sobre sua origem, as informações oficiais da Associação não são elucidativas. O mesmo livro
(2001, p.56) menciona que a origem dos Arautos “teve a Providência seus desígnios
misteriosos”, referindo-se aos “insondáveis desígnios de Deus”.
A linguagem textual dos Arautos do Evangelho nos falam tanto quanto o texto que constroem
em seu canal. Neste sentido, destacamos também a linguagem utilizada para a internet: a
figura do fundador, monsenhor João Scognamiglio Clá Dias. Clá possui uma área criada
especificamente para suas mensagens, no endereço www.joaocladias.org.br, que detalha das
origens do fundador à trajetória da sua vida pública e, segundo informações dessa área, é
brasileiro, nascido em São Paulo, a 15 de agosto de 1939. O canal enfatiza a data
comemorativa da Igreja Católica por ocasião de seu nascimento: a 15 de agosto se celebra a
solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Afirma ainda que seus pais, António Clá Dias e
Annitta Scognamiglio Clá Dias, “constituíam uma família de imigrantes europeus (o pai era
espanhol e a mãe italiana), na qual a fé católica, herdada de seus maiores, era ainda muito
viva”.
Com fotos do fundador em quase todas as páginas, o site menciona o grau acadêmico de João
em vários momentos, inclusive na página oficial dos Para haver identificação, as facções da
Igreja Católica imprimem um sinal em seu chamado ‘trabalho de evangelização’, o qual
denominam “carisma” que, de acordo com informações de seu site oficial, “os leva a procurar
agir com perfeição em busca da pulcritude em todos os atos da vida diária, mesmo estando na
intimidade, que está expresso no sublime mandamento de Jesus Cristo: ‘Sede perfeitos como
vosso Pai Celeste é perfeito’ (Mt 5, 48)”. No que se refere à espiritualidade, de acordo com o
seu estatuto, procuram viver a religiosidade tendo como referência três pontos: Eucaristia,
Maria e o Papa. Esses conceitos estão estampados no brasão5 que ostentam, no portal e nas
roupas.
1929
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP6 define-se como
entidade cívica legalmente registrada em São Paulo em 1960. Fundada por um grupo de
católicos leigos tradicionalistas, encabeçados por Plínio Corrêa de Oliveira e com atuação
política destacada nas décadas seguintes ao seu surgimento, a TFP, mesmo com a morte de
seu criador, em 1995, ainda possui sócios que mantêm sua organização original. Formam, em
cada Estado, uma seção, tendo à frente um diretório seccional, que se divide em subseções,
coordenadas por dois órgãos de jurisdição em todo o país: o Conselho Nacional, com o
encargo das atividades sociais em seus aspectos culturais e cívicos, e a Diretoria
Administrativa e Financeira Nacional, cujo campo de ação é definido pelo próprio título.
Matéria publicada pela revista Veja7 menciona que as grandes brigas que racharam a TFP se
deram após a morte de Plínio, como mencionado, em decorrência da disputa por donativos
entre a TFP e os Arautos do Evangelho. Outra matéria, esta publicada pela Folha de S.Paulo,
e reproduzida no site www.fundadores.org.br, datada de 13 de dezembro de 2008, afirma:
Eles perderam o controle da entidade em 2004, numa disputa judicial que havia começado
em 1997. Um grupo dissidente, liderado pelo hoje monsenhor João Scognamiglio Clá Dias,
exigiu na Justiça o direito de que as decisões da organização não fossem tomadas apenas
pelo pequeno grupo de, então, oito sócios-fundadores remanescentes. Os dissidentes
perderam em primeira instância, mas ganharam a causa e o controle da TFP em decisão do
Tribunal de Justiça de São Paulo em 2004. Desde então o processo aguarda julgamento
final no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Entre 2004 e 2006, os sócios-fundadores e seus
seguidores se separaram da “nova” TFP e passaram a se denominar “Associação dos
Fundadores da TFP”. Há dois anos, nova decisão proibiu o uso da sigla pelos fundadores.
Eles então passaram a se denominar apenas “Associação dos Fundadores”. Clá Dias e seus
seguidores, também fundadores da associação ligada à Igreja Católica Arautos do
Evangelho, são acusados pelos fundadores de terem tomado o controle da entidade que teve
seu auge no regime militar (1964-1985) para abandonar a principal característica da TFP: a
6
Quem é a TFP. Disponível em <http://www.tfp.org.br/tradicao-familia-e-propriedade/luz-
agua-ou-lenha>. Acesso em 05 jun. 2011.
7
Matéria “A TFP do B”, publicada pela revista Veja em 28 de abril de 2004. Disponível em
<http://veja.abril.com.br/280404/p_094.html>. Acesso em 24 jun. 2011.
1930
militância política em defesa intransigente do direito de propriedade e combate a
movimentos sociais que ameacem esse princípio (FOLHA DE S.PAULO; 13 de dezembro
de 2008).
Cavaleiros Templários
8
Artigo intitulado “A estruturação do poder na Ordem Militar dos Cavaleiros Templários”,
apresentado no Congresso Internacional de História, setembro de 2011, disponível em
<http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/68.pdf>. Acesso em 20 dez. 2012.
1931
(MORETTI, A. e ESTEVAO, Jaime Apud Demurger. 2011).9
Sobre as especulações acerca do segredo que a Ordem protegia, mais se destaca a de que os
Templários seriam guardiões do Santo Graal. O mistério acontece pelo que realmente seria o
Santo Graal e quais indícios fizeram com que essa questão permanecesse latente no
imaginário humano. O Graal, segundo a revista Sociedades Secretas, seria uma taça.
Diz a lenda que foi a taça na qual Jesus bebeu na última ceia; outra lenda diz que foi a taça
em que José de Arimateia colheu o sangue que saiu das feridas de Jesus na cruz. Uma
terceira versão da mesma lenda diz que Maria Madalena teria coletado o sangue de Jesus
nessa taça. (SOCIEDADES SECRETAS, Escala, 2011; p. 96).
Jean Chevalier, no “Diccionario de los Símbolos” (1986, p. 536), cita várias definições para o
Graal. Menciona Julius Evola (Julius Evola, en BOUM, 53), quando define “el grial... es
propriamente un objeto sobrenatural, cuyas principales virtudes son: que alimenta (don de
vida); ilumina (espiritualmente); hace invencible. Segundo o autor, entre as várias
explicações, a menos delirante é a de Albert Béguin, que define o Graal como sangue de Jesus
Cristo; o do cálice, que segundo a doutrina católica foi oferecido aos discípulos na última
ceia, no ritual em que é lembrado em todas as missas, e aquele sangue que impregnou os
tecidos do sepulcro:
El graal representa a la vez, y substancialmente, a Cristo muerto por los hombres, el cáliz
de la santa cena (es decir la gracia divina concedida por Cristo a sus discípulos), y en fin el
9
Augusto Moretti Junior e Jaime Estêvão dos Reis citam os estudos de Alain Demurger
sobre a estruturação do poder na Ordem dos Templários. Moretti e Estêvão mencionam que
em 26 de novembro de 1095 “um dia antes da proclamação da primeira Cruzada”, houve uma
discussão sobre as mudanças de propostas de direcionamento da Igreja Católica, que ficou
conhecida como Reforma Gregoriana. Apoiados nos estudos de Demurger, os historiadores
mencionam que “a reforma visava, prioritariamente, libertar a Igreja do domínio dos laicos”.
O artigo pode ser lido na íntegra no link: http://www.cih.uem.br/anais/2011/trabalhos/68.pdf
1932
cáliz de la misa, que contiene la sangre real del Salvador. La mesa donde reposa el vaso es,
pues, según estos tres planos, la piedra del santo sepulcro, la mesa de los doce apóstoles, y
por fin el altar donde se celebra el sacrificio cotidiano. Estas tres realidades, la crucifixión,
la cena y la eucaristía, son inseparables y la ceremonia del grial es su revelación, al ofrecer
en la comunión el conocimiento de la persona de Cristo y la participación en su sacrifício
salvifico. (CHEVALIER, 1986, apud BEGG, p. 18).
Em ambas as Ordens estão implícitos conceitos de eugenia: para ‘ser de Deus’ é preciso, além
de aceitá-lo e viver de acordo com os ensinamentos da Igreja Católica, pertencer a um grupo
de pares idênticos, belos e perfeitos.
Não é nosso objetivo nos aprofundarmos no tema eugenia, mas as citações demonstram como
na contemporaneidade alguns ideais permanecem vivos nos discursos, inclusive no âmbito
religioso. A primeira imagem sobre os Arautos do Evangelho é a indumentária e a relação que
se estabelece com os Cavaleiros Templários, incluídas a organização e a semelhança dos
10
No documentário “Arquitetura da destruição”, o sueco Peter Cohen enfoca a trajetória do
ditador alemão Adolph Hitler, que culminou no extermínio de milhares de judeus, sob a
prerrogativa de purificação da raça humana.
11
Citação de Geraldo Salgado-Neto, doutor em Agronomia pela Universidade Federal de
Santa Maria, em artigo Sir Francis Galton e os extremos superiores da curva normal.
Publicado na Revista de Ciências Humanas v.45, n. 1, p. 223-239, 2011.
1933
integrantes. Em uma primeira análise, chega-se a supor que se trata de uma vertente
tradicional do catolicismo.
Para os Arautos do Evangelho, a internet é uma das principais formas de relacionamento com
seus seguidores. Já a algum tempo, estudiosos demonstram uma grande preocupação com os
caminhos que a obsessão pela velocidade podem tomar. Konrad Lorenz em seu livro “Os oito
pecados da civilização” (1973; p. 28) chama a atenção para a aceleração do cotidiano do
homem e sua conseqüente cegueira, em decorrência do senso estético e moral afetado pela
superpopulação das cidades, que resvala, inclusive, na sua insensibilidade diante de uma
diversidade de situações grotescas, e que os Arautos do Evangelho, vertente da Igreja Católica
ignoram, quer por desconhecimento, quer por questões particulares do grupo.
O senso estético e moral estão estritamente ligados. É evidente que os homens, obrigados a
viver nas condições das quais falamos, sofre a atrofia de um e de outro. A beleza da
natureza e a beleza cultural, criado pelo homem, são necessárias à saúde moral e espiritual
do ser humano. Essa cegueira total da alma para com tudo aquilo que é bonito, difundida
atualmente em grande velocidade e em toda parte, é uma doença mental que deve ser levada
a sério, não fosse pelo fato de acarretar a insensibilidade diante dos fatos moralmente mais
repreensíveis. (LORENZ, K. 1973; p. 28).
O canal dispõe de uma diversidade de ferramentas para manter conectados os seus seguidores
e está disponível em português, espanhol e italiano. Possui área para cadastro, o que confere
aos cadastrados um email diário com o Evangelho do Dia e atualizações de notícias. Registra
uma média de 955 mil visitas por mês e 715 mil visitantes únicos, contabilizando cerca de
1.855.000 visualizações de páginas, segundo informações disponibilizadas pelos próprios
Arautos para esta pesquisa. Esse número de acessos é considerável para um site de um grupo
1934
que se supõe tão segmentado, pressupondo um fenômeno maior do que se imagina12.
Todo o site possui links que levam a uma diversidade de desdobramentos de página que pode,
facilmente, fazer com que o internauta se perca em suas páginas. Ao posicionar o mouse sobre
o meu “Quem somos”, por exemplo, é aberta com os seguintes submenus: “Arautos do
Evangelho”, “Virgo Flos Carmeli”, “Regina Virginum” e “ITTA – Instituto Teológico São
Tomás de Aquino”. Em cada um desses itens, históricos sobre o funcionamento e subdivisão
dos Arautos do Evangelho que foram descritas no capítulo I desta pesquisa. Importante citar
que a cada click, os links ganham novos endereços.
Sabemos que o êxtase nasce com a cultura, como símbolo do homo religious 13; não é novo
fato de que o êxtase sempre nos pareceu irresistível. Novo, porém, é sua emancipação do
contexto do ritual e da busca de transcendência, já que inicialmente o homem buscava os
estados alterados da consciência e o êxtase nas práticas religiosas ou em rituais específicos
(que ele cria exatamente para conter e e significar essas práticas), em práticas que
demarcavam claramente o caráter extraordinário do êxtase – com tempo e espaços
diferenciados e delimitados – e que o relacionavam com uma função transcendente ou
mítica. O êxtase era, enfim, um meio para a ampliação da consciência ou para a
comunicação com os deuses (como no caso do xamanismo), e não um fim em si mesmo
(CONTRERA, M. 2010; p. 52).
12
E-mail enviado pela coordenação do grupo em 07 de junho de 2011 para fins dessa
pesquisa confirmam a informação citada. No entanto, a pesquisa encontrou uma grande
dificuldade em acessar dados sobre o portal, referentes à acessos, ferramentas entre outros.
Também não foram encontradas referências em outros sites da internet que não fossem só o
próprio www.arautosdoevangelho.com.br.
13
Apud Mircea Eliade sobre o caráter religioso do homem.
1935
A cada click os menus se desdobram e a possibilidade de informação são infinitas. Entre
notícias, destaques da TV Arautos, enquete, foto do dia, capa do último boletim distribuído
aos membros desta vertente da Igreja Católica, banner convidando o internauta para assistir a
missa on-line ao vivo, últimos artigos, últimos posts dos blogs, galerias de imagens, ainda na
lateral direita links que se repetem. Em sua arquitetura extremamente confusa, vemos um
portal no qual a cada click os menus se desdobram e as possibilidades de informação são
infinitas.
Tendo em vista todos esses conceitos e análises, podemos dizer que há uma identificação do
grupo com a estética caótica da internet, e um uso exacerbado de conceitos que pode espantar
um internauta que se aventure a navegar por essas páginas. Conforme veremos mais adiante, o
canal, nada mais é que uma tentativa para utilizar a cibercultura como forma se auto-
legitimação do grupo, independente de quais sejam os esforços e sacrifícios do corpo e do
ritual para que isso ocorra.
Vemos ainda no discurso dos Arautos do Evangelho uma quantidade de informações que
muitas vezes remetem a eles mesmos e que, no entanto, não oferece interação com aqueles
que acessam o portal. São perguntas sem respostas, sugestões sem confirmação de que foram
recebidas, comentários sobre os posts que não são mencionados. Tal performance se
contrapõe ao conceito que conhecemos por internet 2.0, que deveria oferecer interatividade
total aos usuários. Para Sodré, isso também pode ser uma estratégia de poder.
Aquele que agora não se deixa ver é o mesmo que retém o poder, as regras de organização
disciplinar daqueles que são vistos. Esta dicotomia entre ver e ser visto é correlata de outra,
fundadora da “função” individualmente moderna: a separação radical, por parte do
indivíduo, entre “si mesmo” e seu papel social. (SODRÉ, M. 1990; p.23).
Redes Sociais
1936
facebook.com/pages/heralds-of-thegospel, facebook.com/pages/ArautosdoEvangelho).
Infelizmente não é possível saber se todas pertenciam ao grupo, mas levavam o nome da
vertente da Igreja Católica e continham informações e direcionamentos ao portal. Nesta
ocasião, a home mostrava o número dos chamados “curtidores” da página oficial que
ultrapassava 7 mil pessoas que se disponibilizaram a seguir as ações dos Arautos. Na data de
nova avaliação43, os dados nos mostram que 28.769 pessoas curtem a página oficial do grupo
e recebem suas atualizações.
Algumas imagens postadas no facebook confirmam o que já foi citado sobre o apelo
hiperbólico da linguagem utilizada pelos Arautos do Evangelho na internet. Nas postagens
dos curtidores da página da vertente da Igreja Católica, nenhum ‘curtir’ por parte dos Arautos,
o que corresponde a um sinal de que as publicações são lidas, analisadas e que agradam esta
vertente da Igreja Católica, possível indício que a grande preocupação do grupo é apenas falar
e não estabelecer algum tipo de troca.
Lugar possível entre a matriz religiosa cristã e a internet – a noção de religare na mídia
contemporânea
14
Artigo A Dessacralização do mundo e a sacralização da mídia: consumo imaginário
televisual, mecanismos projetivos e a busca da experiência, apresentado na XIV Compós,
2005, Niterói RJ. GT Comunicação e Cultura. Disponível em GT - Comunicação e Cultura.
Disponível em <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_687.pdf >. Acesso em 07 maio
2012.
1937
alternativa, resultando na busca de uma religiosidade que preencha esse vazio. Jorge Miklos
(2012; p.9),15 com base nos estudos de Malena Contrera, sugere uma dupla contaminação
entre a esfera do religioso e a midiática: os formatos religiosos se apropriando do elemento
ritual religioso, sugerindo, de acordo com o pesquisador, ‘uma estética própria’, resultando na
ciber-religião.
A saturação no portal é traço de uma linguagem que induz à reflexão sobre a necessidade da
emergência no cenário midiático, descrita por Malena Contrera, de uma civilização que
precisa de heróis.
A partir do que aqui se propõe, é possível verificar a relevância de uma questão latente
analisada no início deste capítulo, presente no portal: a insistência na figura do fundador João
Clá Dias nas páginas do grupo na internet.
Numa sociedade sem heróis pessoais, surgem então instâncias, instituições, que se
apresentam sob um evidente discurso heróico,16 na tentativa de evocar as identificações e o
poder simbólico-mítico do herói (poder esse que será, depois, muito convenientemente
usado); entre elas, atualmente no Brasil, vemos destacarem-se duas: as novas religiões
evangélicas e a mídia (CONTRERA, 2010, p. 26).
15
MIKLOS, Jorge. Ciber-religião: a construção de vínculos religiosos na cibercultura. São
Paulo, Idéias e Letras, 2012.
16
No livro O poder do mito, Joseph Campbell fala sobre a saga do herói e a motivação para
tantos heróis na mitologia. Campbell explica “A façanha convencional do herói começa com
alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as
experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade”(CAMPBELL,
1990, p.137).
1938
Uma das justificativas para se dedicarem a estabelecer performance na internet é a tentativa
de difundir sua mensagem, atendendo ao chamamento da Igreja Católica. Mas os
antagonismos do discurso e o excesso de informações abrem lacunas para esta pesquisa
questionar os objetivos dos Arautos. No cyberspace, espaço-tempo imaterial, em que o corpo
é abolido da experiência religiosa, analisa-se onde se encaixa o discurso tecnófago dos
Arautos do Evangelho e de que forma uma comunidade não porosa faz um elogio ao valor
simbólico do meio. Nesse universo, o padrão de um católico ideal, imaterial, ou seja, puro
espírito (não corpóreo), encontra abrigo perfeito.
Outorga-se à internet uma espécie de poder divino, que Malena Contrera (2012, p.55)
denomina crise das competências simbólicas A pesquisadora ressalta que essa “natureza
autorreferente da tecnologia retroagindo sobre a linguagem e criando aí um mundo de alta
produtividade, porém fechado para o espanto, para o não operacionalizável, para o não
comunicável, para o encantamento sem palavras frente à grandiosidade do desconhecido e do
silêncio” (2012, p. 74).
Outro ponto da relação religião/internet centra-se no uso das categorias temporais. Conforme
explica Mircea Eliade (1962, p.63), “o Tempo para o homem religioso não é nem homogêneo
e nem contínuo”. No ambiente internet não há limitação de tempo e hora. O conteúdo está
disponível e se adapta a quem o acessa. Embora não tenha sido verificada interatividade da
atualização do portal e das redes sociais, conforme análises no início deste capítulo, as
atualizações são feitas diariamente.
A abolição de tempo ritual na execução contínua dos programas da internet leva a retomar a
área “Reze por mim” no portal. Em qualquer horário de acesso, visualiza-se a mensagem que,
a partir daquele momento, um membro está rezando por ele, em um imediatismo
desrritualizador, como uma “usurpação dos atributos divinos pela tecnologia mediática”, no
caso, a onipresença simulada pela rapidez do meio. Esse conceito é denominado por Jorge
Miklos (2012, p. 57) de midiofagia. O pesquisador define que há ação de devoração e
metabolização por parte dos meios de comunicação eletrônicos interativos dos conteúdos
arcaicos presentes no imaginário de uma cultura, e após esse processo uma devolução dos
seus interesses.
1939
identificar-se com eles (MIKLOS, 2012, p. 61).
Tais análises nos levam á seguinte reflexão: qual o custo de muitas vezes haver a tentativa de
se seduzir o fiel e engajá-lo nas atividades próprias de cada vertente da Igreja Católica?
O conceito que mais se aproxima daquele que remete à análise do ambiente midiático em
questão, o cyberspace, propõe vivências do homem concreto em um não lugar. Essa reflexão
fica ainda mais complexa quando se transfere esse panorama para o campo da religiosidade.
Por isso, nos utilizaremos dos estudos sobre o imaginário midiático proposto por Edgar
Morin, denominado “noosfera”.
1940
história, baseada em cristãos produzidos em série, que aceitem sua doutrina, identifiquem-se
com sua ideologia e disseminem esse conceito.
Embora seja um grupo antagônico, com fortes características medievais, que se aventura a
mergulhar na modernidade dos meios tecnológicos - o meio de comunicação ao qual este
estudo se atém, o cyberspace permite espaço a todos aqueles que desejam ‘seu lugar ao bit’.
Ao se apropriar de estratégias específicas e de elementos muito fortes da estética classicista e
da estética medieval, buscam criar/reforçar sua imagem pública por meio do portal, o que se
verá a seguir.
Para uma relação mais cuidadosa do portal com a ‘estética classicista’, deve-se recorrer aos
estudos de E. H. Gombrich, em “A história da arte” (1950). O autor analisa as principais
características da arte, e denomina o período da arte clássica como “O Império do Belo”,
ocorrido entre os séculos IV a.C e I d.C.
Não existe corpo humano que seja tão simétrico, tão bem construído e belo quanto o das
estátuas gregas. As pessoas pensam frequentemente que o método empregado pelos artistas
1941
consistia em observar muitos corpos e deixarem de fora qualquer característica que não lhes
agradasse; que começavam copiando meticulosamente a aparência de um homem real e
depois o embelezavam, omitindo qualquer irregularidade ou traço que não se
harmonizassem com a ideia de um corpo perfeito. Muitos dizem que os gregos
‘idealizaram’ a natureza e que a conceberam em termos de um fotógrafo que retoca um
retrato eliminando pequenos defeitos. Ocorre, no entanto, que uma fotografia retocada e
uma estátua idealizada carecem usualmente de caráter e vigor. Tanta coisa fica de fora e
tanta é eliminada que pouco restará além de um pálido e insípido espectro do modelo.
(GOMBRICH, 1950, p. 103-104).
Ao transpor seu pensamento para este objeto de estudo, outra característica embasa a hipótese
das discussões anteriores: a impressionante tentativa de disciplinamento do corpo e criação de
um modelo padronizado e perfeito. Assim como Praxíteles17 e outros famosos artistas da
estética clássica, os Arautos do Evangelho pretendem reproduzir um católico idealizado, belo,
inteligente e simétrico, inclusive fisicamente.
Considerações finais
17
Praxíteles, citado por E. Gombrich, foi um famoso escultor da Grécia Antiga, que possui
várias obras, conhecidas por meio de cópias romanas de sua autoria, mencionadas na
antiguidade. É considerado um dos responsáveis pela evolução do Alto Classicismo para o
Helenismo.
1942
Os Arautos do Evangelho, onde quer que estejam, despertam curiosidade e perplexidade pela
uniformidade até mesmo no comportamento, formas de se expressar, andar e falar. No portal,
há imagens de diferentes momentos em que não é possível identificar diferenças entre dois
membros. Sobre o conceito de beleza, que se destaca nas formas de doutrinamento ou
evangelização dos Arautos do Evangelho, para Umberto Eco (1987) a Idade Média, a despeito
da Antiguidade Clássica, conferiu novo significado a alguns temas, “preocupando-se em
incorporá-los a marcos filosóficos, propondo uma nova consciência sistemática”, entre eles a
estética. Ao se pensar em beleza, a Antiguidade Clássica referia-se à natureza e à sua
realidade; boa parte da tradição medieval remetia-se à tradição cultural, contaminada por
conceitos do cristianismo, ou seja, não havia dissociação entre belo e verdadeiro; logo,
bom.Ainda sobre beleza e perfeição, Umberto Eco menciona outras definições de beleza da
Idade Média. Segundo o autor, havia uma concepção quantitativa que definiria o conceito de
beleza que aparecia no pensamento grego, a chamada “teoria de proporções“.
Essas definições revelam uma vertente da Igreja Católica extremamente apegada aos ideais de
beleza e perfeição estabelecidos pela Idade Média. Embora nascido no Brasil, mais
precisamente em São Paulo, o grupo pretende, a cada clique no portal e nas redes sociais,
tentar convencer que os belos são mais merecedores do “reino dos céus”.
Deduz-se que a figuração dos Arautos do Evangelho no cyberspace chega a ser irônica. Um
grupo com performance e pensamento de séculos passados tenta utilizar ferramentas da
modernidade para reverberar seu pensamento e criar sua imagem pública. Fora do contexto
histórico da Era Clássica, essa visão é extemporânea, revelando um grupo que atribui valor à
beleza, imprimindo a ela o conceito de simetria. Logo, à visão de que o belo tem de ser
igualmente simétrico e padronizado. Há a supervalorização da imagem, pois por meio dela é
mais fácil incentivar a padronização. Esse aspecto enquadra-se nas hipóteses levantadas no
início deste trabalho, de que há tentativa de doutrinação pelos Arautos do Evangelho,
especialmente na linguagem na internet - portal ou redes sociais. Uma doutrinação que visa à
padronização estética e religiosa do que entendemos por católico. O católico ideal seguida e
insistentemente mencionado pelos Arautos do Evangelho.
1943
série sem que isso implique um tipo de processo altamente repressivo das particularidades
humanas.
Referências
BAUMAN, Zigmund. Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003.
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
EVANGELHO, Arautos do. Arautos do evangelho: surge um novo carisma na igreja. Edição
comemorativa de reconhecimento pontifício dos Arautos do Evangelho. São Paulo, 2001.
1944
MIKLOS, Jorge. Ciber-religião: a construção de vínculos religiosos na cibercultura. São
Paulo, Idéias e Letras, 2012.
SALGADO-NETO, Geraldo. Sir francis galton e os extremos superiores da curva normal. In:
Revista de Ciências Humanas ,v. 45, n. 1, Florianópolis, p. 223-239, 2011.
UMBERTO, Eco. Arte y belleza em la estética medieval. Barcelona: Editorial Lumen, 1997.
Internet
1945
1946
GT17 – “No templo, no quartel e no porão”:
os protestantes e a ditadura militar
brasileira
Coordenadores/a
Resumo
1947
“Nadando contra a corrente”: a atuação da juventude protestante
através da juventude batista baiana (1960-1970)
Luciane Silva de Almeida1
Introdução
Na conjuntura de intensa mobilização política vivenciada pela sociedade brasileira a partir dos
anos de 1950, destacou-se entre os protestantes uma juventude entusiasmada com a
possibilidade de uma prática de tipo novo ou alternativo e de uma consciência autocrítica,
enfrentando, como consequência, a reação das rígidas estruturas de poder das igrejas ou a
incompreensão dos irmãos conservadores que correspondiam sempre à maioria da membrezia.
Segundo Burity (1989, p.82), nesse momento, duas alternativas restavam a este segmento
radicalizado das igrejas: a passividade gerada pelo desânimo (quer permaneçam nas igrejas ou
não) e o confronto com o conservadorismo, sendo por este identificada como “rebeldes ou
comunistas”.
Apesar de atingir seu auge nos anos 1960, o primeiro registro de um movimento estudantil
evangélico organizado no Brasil foi verificado em 1925, no Instituto Granbery, em Juiz de
Fora, MG, com o nome de União de Estudantes para o Trabalho de Cristo (UETC), sendo o
pastor presbiteriano Jorge Cesar Mota um dos seus organizadores. Em 1940, as UETC’s
uniram-se a algumas Associações Cristãs de Acadêmicos (ACAs), que trabalhavam apenas
com universitários, formando a União Cristã de Estudantes do Brasil (UCEB). Em 1942, a
UCEB se filiou a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (Fumec) como movimento
pioneiro.
No estado da Bahia das décadas de 1960 e 1970 um setor dos jovens batistas, organizados em
torno da Juventude Batista Baiana (JBB) assumiu um importante papel em defesa do
envolvimento do evangélico com a política e os problemas sociais. A Juventude Batista
1
Mestre em História Social pela UEFS, doutoranda em História pela UFMG, integrante do GP História Política
– culturas políticas na história sob orientação do prof. Dr. Rodrigo Patto Sá Motta. Professora substituta do
Instituto Federal de Minas Gerais, campus Ouro Preto. Contato: luhistoria2004@yahoo.com.br.
1948
Baiana era uma organização que tinha como principal objetivo, aglutinar jovens das Uniões
de Mocidade da Denominação Batista do estado. Era uma estrutura reconhecida pela
Convenção Batista Baiana, desde o seu surgimento na década de 1950, como a instância
responsável por organizar a juventude batista, mas, em termos especificamente doutrinários e
administrativos.
2
Doutora em História e pesquisadora da história dos batistas no Brasil. Fez parte da mocidade da Igreja Batista
de Sião e, posteriormente da Igreja Batista da Graça. Atualmente não faz parte da membresia de nenhuma
Denominação Batista.
1949
Em 1965, os jovens batistas que faziam parte da ACA, organizaram a primeira candidatura de
oposição da história da JBB, conseguindo eleger através de uma forte mobilização seu
representante, o jovem Iraci Spinola, da IB Dois de Julho, à presidência do órgão. Em 1966,
para garantir a reeleição de Spinola, antes da Assembléia que elegeria a nova diretoria, esse
grupo fez uma espécie de mobilização velada pelas Denominações Batistas que existiam em
Salvador à época. A campanha teve resultado, e numa eleição que geralmente contava com 20
a 30 votantes, participaram cerca de 500 pessoas, o que fez com que Raimundo Coelho
desistisse de colocar sua candidatura garantindo a vitória dos jovens da ACA com uma
maioria esmagadora de votos (MUNIZ, Agostinho. Entrevista concedida a autora em 2011).
Logo nos primeiros meses, esses jovens passaram a organizar reuniões de estudos da Bíblia,
onde os textos eram utilizados como referência para analisar a realidade brasileira, o que
deixou clara a gestão independente e atuante que a nova diretoria pretendia construir na JBB.
A partir daí, a Juventude Batista Baiana passou a ter um papel mais contestador, tanto nas
questões internas à Denominação, quanto na problematização de temas político-sociais do
país. Nesse sentido posicionou-se a favor da participação do crente na política, deixando
evidente sua busca por espaço. Os membros da JBB buscaram reproduzir em sua estrutura a
democracia que pleiteavam dentro da igreja, e que já não mais via na sociedade controlada
pelos militares, nesse sentido tinha por princípio nas eleições de sua diretoria a não reeleição
pela segunda vez para que não houvesse personalismo no cargo (Seção da Juventude Batista
Baiana. Jornal Batista Baiano. Maio de 1967, p.04).
Nos primeiros anos de atuação da nova JBB, o espaço destinado aos jovens no jornal Batista
Baiano passou a ter informes regulares e mensais sobre as diversas atividades realizadas e
textos com suas reivindicações, como quando noticiou a participação da JBB no 7º Congresso
da Mocidade Batista Brasileira, realizado em Niterói no estado do Rio de Janeiro:
O presidente da Juventude Batista Baiana, Iraci Spinola, foi escolhido como chefe da
delegação da Bahia, que estava composta com a maioria de membros da Capital, não
faltando o interior, principalmente de Conquista, Feira, Jequié e Juazeiro. Dois baianos
foram eleitos para o Conselho Nacional da Mocidade: Agostinho Muniz, membro efetivo, e
Eraldo Tinoco, suplente [...] A atuação da caravana da Bahia despertou a atenção, pois
trabalhou condignamente, mesmo sem contar com a colaboração dos que, ainda no nosso
meio não compreendem o alto espírito que dirige a Juventude Batista Baiana (Seção da
Juventude Batista Baiana. Jornal Batista Baiano. Setembro de 1966, p.03).
1950
Observando essa nota, fica claro que logo nos primeiros meses de atuação, membros da nova
diretoria já assumiram papéis importantes na organização da mocidade batista a nível
nacional, contudo, as criticas àqueles que “não compreendem” a JBB nos indicam que a
participação dos jovens baianos neste tipo de evento, já não era bem vista.
A manutenção deste espaço no jornal certamente deveu-se a atuação de Agostinho Muniz, que
por ter ligações profissionais e pessoais com o Pastor Belmiro Sampaio – redator-chefe do
Batista Baiano à época – e cursar jornalismo, foi convidado por ele para assumir a edição do
jornal. Contudo, realizou tal atividade de maneira não oficial, para evitar as reações dos
conservadores que não concordavam com suas práticas e posicionamento político.
Outra característica da JBB era o fato dela conseguir integrar jovens de diversas igrejas e,
portanto, em diferentes condições sociais. Dela faziam parte desde membros das Igrejas
Batistas de Sião e Dois de Julho, provenientes das classes médias e alta de Salvador; até
jovens da Primeira Igreja Batista – localizada, à época, na região da Baixa dos Sapateiros –
conhecida entre os batistas como uma igreja mais popular. Segundo o relato de Agostinho
Muniz: “não discriminávamos ninguém, tinha líderes jovens naquelas igrejas que
independiam de formação educacional, com a abertura da JBB essas lideranças foram tratadas
pelo potencial que tinham não por causa do nível universitário, ou se era rico ou não”
(MUNIZ, Agostinho. Entrevista concedida a autora em 2011).
A preocupação dos jovens baianos com o cerceamento da liberdade era uma constante e não
só em nível local. Como exemplo, podemos citar um episódio no qual um pastor do
Departamento de Treinamento da Mocidade Batista Brasileira foi destituído de seu cargo por
ter permitido que os jovens tentassem publicar na Revista Juventude Batista um texto
intitulado: Criança: sexo, Deus e salvação – que levou os diretores da Casa Publicadora
Batista a tirar esse exemplar de circulação. Diante deste fato, a JBB, em nome de todas as
Uniões de Mocidade da Bahia, publicou uma “declaração de inconformismo” na qual
afirmava:
1951
Denominação Batista Brasileira. Somos, porém, uma força e vamos trabalhar. Com a nossa
inevitável autonomia os outros setores, também, devem processar uma reformulação
administrativa, para que não sejam sufocadas (Seção da Juventude Batista Baiana. Jornal
Batista Baiano. Novembro de 1966, p. 2)
Nesse texto, podemos observar a indignação que a interferência dos líderes batistas em
questões específicas dos jovens causou. A reivindicação por autonomia se faria uma constante
nas publicações da JBB no Batista Bahiano. A nova e autônoma JBB, não agradou em nada
aos pastores batistas baianos e as reações à ela ocorreram de diferentes formas que variavam a
medida em que sua visibilidade aumentava. A princípio optou-se por uma estratégia que
tentava mantê-la sob o controle da Convenção ao mesmo tempo em que encarava com
descrédito suas reivindicações. Essa forma de agir foi percebida e duramente criticada pelos
jovens que lançaram um “Manifesto Adolescente” que, dentre outras reivindicações, dizia:
O adolescente não deve ser comandado, deve ser orientado. [...] A integração no trabalho
da igreja é impedida pela indiferença com que os adolescentes são tratados. O adolescente
se sente bem com aquele que lhe dá importância, se a igreja aceitasse o adolescente como
ele é, seria uma nova fase para a igreja (Adolescentes reclamam nova estrutura. Jornal
Batista Baiano. Novembro de 1966, p.02).
A partir de 1968, os poucos espaços dedicados à Mocidade Batista traziam textos produzidos
pela nova diretoria da JBB que, voltou a ser ocupada por jovens com o pensamento alinhado
ao da hierarquia e que continuaram utilizando o espaço para divulgar ações rotineiras, mas,
dessa vez apelando para um discurso com um tom conciliador:
Amados irmãos jovens, vamos esquecer as tristezas, decepções, até derrotas e unidos na
pessoa de Jesus Cristo, o alvo da Suprema Vocação, pois alcançaremos o mundo para
DEUS, e assim coesos no mesmo amor cristão, 50º Congresso e JBB, formaremos a mais
1952
expressiva força que DEUS tem para ganhar o mundo para o seu reino (A Juventude Batista
Baiana no Dois de Julho. Jornal Batista Baiano. Julho de 1968, p.02).
Percebe-se que além da idéia de renovação, convocou-se os jovens para cumprir com aquela
que seria a verdadeira vocação cristã, ou seja, o trabalho de evangelização. As acusações
direcionadas aos jovens eram feitas também nos boletins semanais das igrejas, segundo uma
carta aberta divulgada pela União de Mocidade da Igreja Dois de Julho nos meses que
antecederam a crise que estava por vir entre eles e o pastor Ebenézer Cavalcanti, denunciava:
a mocidade perdeu o contato porque de certo tempo pra cá deixou de ser acompanhada, e
ouvida. [...] basta que recordemos muitos dos ataques e insinuações (sem fundamentos),
colocados em diversas edições do Boletim da Igreja, ainda que para isso se estivesse
desviando e desvirtuando seu uso (Carta da União de Mocidade da Igreja Batista Dois de
Julho. Salvador, 19 de setembro de 1974. Documentação IBN ).
A reação aos jovens progressistas também ocorreu de forma mais severa através do processo
que afastou os jovens não só da diretoria da JBB como também das suas próprias igrejas.
Apesar de ganhar força nos anos finais da década de 1960, tal prática, teve início ainda em
1966. Segundo Agostinho Muniz:
De fato, a maioria dos progressistas batistas nunca fez parte do partido comunista. O próprio
jornalista Agostinho Muniz apesar de ter se aproximado da Ação Popular faz questão de
deixar claro que nunca foi membro do Partido Comunista. Entretanto, alguns jovens
protestantes aproximaram-se do PCB e foram duramente condenados a exemplo de Norberto
Bispo dos Santos Filho, membro da Igreja Batista Dois de Julho, que, segundo relato de sua
irmã Ellen Mello, sabendo que seria afastado do rol de membros caso assumisse ser
1953
comunista, optou por ele próprio deixar a igreja logo após a sua filiação ao Partido (MELLO,
Ellen. Entrevista concedida a autora em 2007).
Os fatos ocorridos a partir de 1966 também são relatados pela professora Marli Geralda
Teixeira, ex-membro da Igreja Batista de Sião:
Foi em 1966 o racha, ai veio a grande acusação: “é um bando de comunista!” Pronto, você
chamar alguém de comunista em 1965, era uma coisa perigosíssima.... ouvia-se
“comunista, comunista!”... “é! não é!” um bate-boca, etc.. e houve alguns detalhes sórdido
inclusive, muito sórdidos e que resultaram na eliminação da igreja de uma de nossas
líderes, Maria Assis (TEIXEIRA, Marli. Entrevista concedida a autora em 2010).
Expulsaram Maria Assis da igreja numa sessão em que só eles participaram, ninguém soube
e isso foi o estopim e o grupo todo resolveu também sair da igreja, sair não, exigir a volta
dela, ousadia demais exigir a volta dela, como era impensável dentro do aparato de
Valdívio Coelho voltar atrás das decisões, era impensável, ele era irredutível, era o jeito
dele, era um cacique, então ele expulsou todo mundo da igreja, deu carta de transferência a
todo mundo, ao grupo todo (TEIXEIRA. Marli. Entrevista concedida a autora em 2010).
A exemplo do que ocorreu na Igreja Batista de Sião, os jovens da IB Dois de Julho ligados a
vertente progressista da JBB que ousaram contestar o pastor, também sofreram duras
retaliações. Entretanto, a expulsão que só veio ocorrer em 1975, foi resultado de um longo
processo de perseguições e acusações, incentivado pelo pastor Ebenézer Cavalcanti, iniciado
ainda na década de 1960, especificamente, 1966, ano em que ocorreram eliminações do rol de
membros dos jovens da Igreja Batista de Sião.
1954
teatro e o “comportamento inadequado” praticados por eles principalmente por conta da
realização de atividades como excursões e retiros espirituais de carnaval.
Essa trajetória contestadora de Agostinho Muniz foi resgatada e somada às novas acusações
sobre sua índole e ações frente à JBB. Assim, em 1975 o jovem Muniz recebeu do pastor
Ebenézer Cavalcanti, com a aprovação da Igreja, sua carta demissória 3 como um “convite”
para que ele se retirasse da Igreja Batista Dois de Julho. A partir daí, os desentendimentos
entre o pastor Ebenézer Cavalcanti e a União de Mocidade tornaram-se cada vez mais
recorrentes e mais expostos. Após este evento, os jovens lançaram um manifesto à igreja,
assinado por 24 membros, onde expuseram suas insatisfações e denunciaram as acusações e
práticas de que estavam sendo vítimas. As principais críticas foram direcionadas a falta de
assistência dada a eles pelo pastor Ebenézer Cavalcanti.
Dando continuidade aos atos de censura intensificados naquele ano, a Igreja Batista Dois de
Julho proibiu que a União de Mocidade realizasse campanhas para levar novos participantes
às suas reuniões e vetou a circulação dos boletins impressos pela mesma, bem como a
divulgação de suas atividades no jornal Batista Bahiano, a essa época, dirigido por Ebenézer
Cavalcanti. Após este evento, os jovens lançaram um manifesto à igreja, assinado por 24
membros, onde expuseram suas insatisfações e denunciaram as acusações e práticas de que
estavam sendo vítimas. As principais críticas foram direcionadas a falta de assistência dada a
eles pelo pastor Cavalcanti e às acusações direcionadas ao grupo, informando que
Como era de se esperar o Manifesto, não foi bem recebido na Igreja Dois de Julho visto que
era insustentável que dentro da igreja existissem jovens que contestassem tão publicamente a
hierarquia e a autoridade do pastor. Assim recomendou-se que o “Manifesto” fosse
considerado “sem fundamento” e arquivado.
A partir daí a situação ficou insustentável, e no dia 10 de outubro de 1974, depois de uma
tumultuada sessão da Igreja onde o grupo ligado à União de Mocidade teve sua fala cerceada,
3
Liberação do membro, mediante aprovação pela congregação, para que o membro em questão escolha outra
igreja de sua preferência.
1955
a jovem Liane Cumming e Silva deu e pediu sua Carta de Transferência sendo acompanhada
por cerca de 26 outros como a decisão foi tomada de forma não planejada eles ainda não
tinham uma igreja para ir sendo naquele momento compulsoriados 4. Posteriormente esse
grupo organizou a Igreja Batista de Nazaré, que continuou enfrentando muita resistência no
campo batista baiano e durante anos foi considerada o reduto ecumênico dos protestantes
baianos, mas sobre a qual não trataremos no artigo.
Ambos os casos demonstram que a prática da delação e expurgo dos jovens batistas baianos
tem dois auges em momentos distintos: em 1966, com a eliminação de cerca de 30 membros,
entre jovens e seus parentes, da Igreja Batista de Sião pelo pastor Valdívio Coelho; e em 1975
quando foi a vez de Ebenézer Cavalcanti por fim aos ‘missionários comunistas’ da sua igreja.
Ambos os grupos fundaram novas comunidades batistas similares em sua origem mas de
trajetórias e orientação profundamente diferentes.
Considerações finais
O período que abrange as décadas de 1960 e 1970 no Brasil marcou uma dicotomia na
história do país: por um lado havia o conservadorismo e a repressão por parte do governo
ditatorial e por outro um maior engajamento de jovens que sonhavam com a liberdade social e
política e com uma sociedade mais justa. Os jovens protestantes não ficaram de fora dessa
realidade tendo representantes que atuaram em ambas as partes5. Neste artigo, utilizou-se dois
casos que comprovam o esforço de jovens em construir uma prática voltada à participação
política sem ter que afastar-se da sua profissão de fé. No entanto, tal aproximação com idéias
da esquerda em um momento político em que elas eram consideradas “perigosas”, fez com
que essas iniciativas fossem abafadas ou, em termos práticos, condenadas.
4
A carta compulsória é destinada aos membros que querem ser liberados de sua igreja de origem mas ainda não
tem uma igreja destino definida, entretanto, ela tem um prazo de validade determinado e caso a nova igreja não
seja escolhida dentro deste prazo o membro deixa de ser considerado como tal.
5
Para uma leitura mais aprofundada acerca do assunto sugere-se os trabalhos de ALMEIDA (2011) e SILVA
(2007), ambos citados integralmente nas referências bibliográficas deste artigo.
1956
em de retaliações, perseguições, acusações e até a exclusão permanente do seu convívio.
Assim, analisando o desenrolar dos fatos, podemos observar que as formas de repressão e
condenação aplicadas aos jovens progressistas protestantes, seguiu o roteiro de perseguições,
denúncia e condenações empregado pela Ditadura Militar contra seus opositores. Dessa
forma, repetiu-se dentro do universo protestante o autoritarismo conservador ao qual estava
refém toda a sociedade brasileira em geral.
Referências
1957
1958
“No Brasil vivemos numa democracia”: os batistas e os direitos
humanos nos anos derradeiros da ditadura militar no Brasil
(1978-1988)
Adriano Henriques Machado1
Introdução
Poucos dias após o golpe militar de 1964, no O Jornal Batista (OJB), órgão oficial da
Convenção Batista Brasileira (CBB) e principal veículo de comunicação dos batistas no país,
o seu novo editor, o pastor José dos Reis Pereira fazia algumas considerações a respeito do
momento pelo que passava a política brasileira e seus possíveis desdobramentos:
A democracia já não está mais ameaçada. A vontade do povo foi entendida e respeitada [...]
Um milagre de Deus, atendendo às orações do seu povo. É o que cremos. [...] A vitória da
democracia, o restabelecimento do respeito à constituição, o crédito de confiança dado do
Congresso Nacional, tudo isso, significa para nós, crentes, oportunidade. Não será agora
que se vai estabelecer censura e limitação da liberdade no Brasil. Mas que tal hora nunca
1920chegue (PEREIRA Apud AGUILERA, 1988, p. 158).
No excerto acima, retirado do editorial Responsabilidade dos crentes nessa hora, de doze de
abril de 1964, fica claro o apoio da direção do jornal ao golpe capitaneado contra o presidente
João Goulart. O articulista via como positiva essa ação política e justificava que tal atitude era
necessária, devido ao momento de intranqüilidade pelo que passava a sociedade brasileira,
causada por uma minoria comunista que colocava em risco a democracia brasileira. O editor
também salienta que havia sido feita a vontade da maioria do povo brasileiro, prova disso
seria a ausência de resistência ou manifestações contrárias ao episódio.
Esse posicionamento era compartilhado por amplos setores da sociedade brasileira da época,
principalmente por aqueles que possuíam um forte viés anti-comunista, como no caso de parte
significativa dos evangélicos brasileiros, num contexto fortemente marcado pela bipolaridade
da Guerra Fria.
1
Doutorando em História Social pela PUC/SP. Bolsista CAPES. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Heloisa de Faria Cruz.
Contato: bozo.rqop@gmail.com.
1959
É claro que grande parte dos que apoiaram a deposição de Jango acreditavam, pelo menos
num primeiro momento, que esse ato representava uma contra-revolução, ou seja, uma ação
preventiva frente à possibilidade de um golpe perpetrado por grupos de esquerda ou forças
comunistas. Destaca-se desse modo a fala do próprio editor do jornal, que via o
acontecimento como uma vitória da democracia, numa posição bastante ambígua e
contraditória, visto que o golpe derrubou um presidente legalmente no cargo. Porém, o que
chama mais atenção no texto do pastor é sua parte final, na qual ele alerta para o perigo do
estabelecimento de algum tipo de censura ou cerceamento de liberdade por parte do novo
governo.
Contudo, não demorou muito para que os militares, que apregoavam a defesa da democracia e
bradavam contra o perigo da instalação de uma ditadura comunista, começassem a organizar
um governo autoritário marcado pela censura, cassações, perseguições, prisões, violências e
torturas contra aqueles que se colocavam em oposição à sua ideologia. Assim, o golpe
preventivo, que muitos acreditavam ser uma etapa provisória até à organização de novas
eleições, tornou-se numa longa noite escura que duraria mais de duas décadas.
Frente a isso, diversos grupos ou pelo menos parte daqueles que apoiaram o golpe em 1964,
observando a escalada ditatorial pelo que adentrava a sociedade brasileira, que muitas vezes
atingia pessoas ou órgãos desses próprios grupos, passaram a criticar as arbitrariedades
cometidas pelo regime, principalmente após 1968, com a promulgação do Ato Institucional n.
5 (AI-5), que fechou ainda mais o regime e instalou um sistema de perseguição e repressão,
além de uma forte censura aos diversos meios de comunicação e às atividades artístico-
culturais. No entanto, outra parcela da sociedade só passou a ter uma atitude mais crítica ou
posicionou-se pelo fim do governo ditatorial, entre a segunda metade dos anos 1970 e início dos
1980, quando o governo militar passava por um forte desgaste e houve um crescimento das
forças que lutavam pela volta da normalidade democrática, no que ficou visível em diversas
movimentações, como na luta pela Anistia e nas grandes manifestações pelas Diretas Já.
Desse modo, o presente artigo busca discutir como os batistas brasileiros, ou pelo menos, o
seu grupo dominante, que controlava a Convenção Batista Brasileira e conseqüentemente o
seu órgão oficial - O Jornal Batista - posicionaram-se frente à ditadura militar, principalmente
no que diz respeito às arbitrariedades cometidas pelo regime e nos casos de grave violação aos
direitos humanos. Entretanto, como outros estudiosos já se debruçaram sobre essa questão nos
primeiros momentos do regime ditatorial, este trabalho centra-se no período conhecido como
1960
abertura política, com destaque para os anos entre 1978 e 1988; momento este em que o
governo passava por uma forte crise de legitimidade e ocorria uma grande contestação frente
ao mesmo, a qual vinha de diferentes setores sociais e numa conjuntura em que muitos grupos
faziam uma autocrítica ao apoio dado aos governos militares nos seus anos mais repressivos
ou mesmo buscavam construir uma memória em que procuravam se desvincular para com
essa herança autoritária.
O claro apoio do editor do OJB ao golpe militar de 1964 pode trazer a falsa impressão de que
os batistas brasileiros eram hegemonicamente compostos por grupos fortemente
conservadores e anti-comunistas. Porém, uma análise mais aprofundada do período anterior
ao golpe, com destaque para o início dos anos 1960, demonstra que ao invés de uma posição
monolítica frente às questões sócio-políticas, os batistas brasileiros passavam por uma grande
efervescência no debate sobre questões como: a Missão Social da Igreja, a atuação do fiel
batista frente às questões sócio-políticas e às reformas de base.
Exemplo dessa agitação política pôde ser observado nas diversas colunas e artigos do OJB do
período, com destaque para a atuação de dois grupos, com linhas de pensamento político
bastante antagônicas: de um lado a corrente “conservadora”, que se posicionava
contrariamente à discussão e atuação dos batistas nas questões sócio-políticas, as quais
emergiam na sociedade brasileira de então, com o argumento de que essa participação estava
marcada pelo viés da luta de classes e pela infiltração comunista, o que poderia desvirtuar a
função espiritual da igreja; de outro lado, destacava-se o grupo ligado ao Movimento Diretriz
Evangélica, liderado pelo pastor David Malta do Nascimento, que defendia a missão social
dos batistas e proclamava por reformas estruturantes na sociedade brasileira.
Dois acontecimentos demonstram claramente essa agitação política dentro dos meios batistas
e ressaltam também o momento no qual o grupo que defendia uma maior atuação dos mesmos
frente às questões sócio-políticas conseguiu maior apoio e projeção. Um primeiro episódio
aconteceu no plenário da 45ª Assembléia Anual da CBB, ocorrida em 1963 na cidade de
Vitória, com a criação, em regime provisório, da Comissão de Ação Social (CAS), que
buscava desvencilhar a Ação Social de um conceito meramente assistencialista-beneficente,
tendo como proposta de ação a análise dos problemas sociais e da conjuntura política
1961
brasileira. Até à chegada do golpe a Comissão teve destacada atuação, com a elaboração de
boletins, escrevendo uma coluna no jornal denominacional, realizando ciclos de estudos e
uma conferência, com a temática Cristianismo e Sociedade (AGUILERA, 1988, p. 181-187).
Porém, o evento que trouxe maior notoriedade e demonstrou a força dessa corrente foi a
veiculação do Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil, elaborado numa reunião da Ordem
dos Ministros Batistas do Brasil, que contou com a presença de mais de 200 pastores no ano
de 1963. Esse documento, direcionado à denominação batista e à toda sociedade brasileira,
publicado com destaque na capa do OJB de quatorze de setembro do mesmo ano,
recomendava a atuação efetiva dos membros da igreja na política do país e nas organizações
de classe, defendia o fim da exploração do homem pelo homem e apregoava a necessidade da
realização de reformas estruturais na sociedade brasileira, visto que:
Entretanto, logo após o golpe, toda a discussão em torno dessas temáticas foram suprimidas,
censuradas ou mesmo silenciadas, tanto no âmbito da diretoria da CBB e em suas convenções
anuais, e conseqüentemente em seu periódico oficial. Uma mostra disso ocorreu com a
Comissão de Ação Social, que passou a ser criticada e questionada no plenário da Assembléia
de 1965, onde se instalou uma Comissão Especial para avaliar suas atividades, a qual
concluíra que a CAS havia dado um sentido ideológico às suas ações em prejuízo das
atividades fundamentais do cristianismo, até ser totalmente dissolvida na Assembléia de 1968.
Atitude de caráter mais autoritária ocorreu nas páginas do O Jornal Batista, que depois de ter
trocada a sua direção após o golpe, o novo editor, além de apoiar efusivamente a deposição
perpetrada pelos militares, rapidamente suprimiu as colunas que tratavam da Missão Social da
Igreja e os debates sobre as questões e problemáticas sócio-políticas pelo que passava a
sociedade brasileira.
A respeito do posicionamento dos batistas frente aos primeiros anos do regime militar, dois
importantes estudos analisaram fortemente a questão: a dissertação em Ciências da Religião,
intitulada Um povo chamado Batista: um jornal (OJB) a serviço da formação de uma
mentalidade religiosa (1960-1985), de José Miguel Mendonza Aguilera, defendida ainda em
1962
1988, que discute o pensamento e o posicionamento dos batistas dentro do contexto brasileiro,
tendo como principal fonte o próprio OJB; e a dissertação O comunismo é o ópio do povo:
representações dos batistas sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia
(1963-1975), da historiadora Luciane Silva de Almeida, de 2011, que discute as
representações dos batistas frente ao governo militar e em relação ao comunismo, com foco
nos batistas baianos das cidades de Salvador e Feira de Santana, entre os anos de 1963 e 1975.
Tendo como base esses dois estudos e analisando também as páginas do O Jornal Batista,
torna-se claro que houve nos primeiros anos dos governos militares uma forte aproximação e
estreitamento de relações entre os batistas brasileiros e as autoridades militares de então.
Como exemplo dessa aproximação pode-se citar a troca de visitas entre batistas e autoridades
político-militares, a realização de cultos de ação de graças em datas nacionais, principalmente
na semana da pátria, a publicação de artigos no OJB dando “vivas” à Revolução de 64, que
havia trazido tranqüilidade, harmonia e progresso para o país e inclusive a publicação na capa
do periódico de fotos em que os presidentes-ditadores eram apresentados e saudados. E até as
diversas Campanhas de Evangelização que foram lançadas nesse período faziam referências
ao momento político do país, nas quais as mesmas teriam como um de seus objetivos ajudar a
salvar o Brasil, ou seja, aliavam-se ao discurso propagandeado pelos militares de um Brasil
grande e forte, que combatia os elementos considerados subversivos. Desse modo, todas as
arbitrariedades e violências cometidas no período mais sangrento da ditadura militar, entre
fins dos anos 1960 e início dos anos 1970 são praticamente ignoradas ou omitidas nos artigos
e editoriais produzidos pelo OJB.
A construção teológico-religiosa desse discurso batista para com os regimes militares dava-se
basicamente em torno de dois pontos: de que a igreja deveria ater-se aos assuntos de caráter
espiritual e com isso distanciar-se das temáticas e problemas sócio-político-econômicos; além
da evocação da tradição batista de respeito às autoridades, baseada biblicamente na Epístola
de Paulo aos Romanos, com o argumento de que as mesmas são constituídas e enviadas por
Deus.
Outro ponto de conciliação entre o discurso batista e a ideologia do governo militar instalado
era o seu caráter anti-comunista, posicionamento este que vinha sendo construído em grande
parte dos meios batistas e evangélicos brasileiros há diversas décadas, no qual tal sistema era
visto como uma ameaça à democracia e principalmente ao cristianismo e às liberdades
religiosas.
1963
Nesse mesmo sentido, analisando o campo batista baiano, a historiadora Luciane Silva de
Almeida demonstra como se dava num local específico essa colaboração entre batistas e
autoridades político-militares, como na articulação para o recebimento do governo federal de
um terreno para a construção do Hospital Evangélico da Bahia, em 1966; na ocupação de
cargos públicos, cujo exemplo maior foi a nomeação do diácono batista Clériston Andrade
como prefeito de Salvador, em 1971. Além disso, relata a censura e a perseguição sofrida por
jovens batistas por parte da hierarquia da igreja, os quais propunham debates sobre política e
questões da realidade brasileira e tinham uma aproximação com o ecumenismo, além de
contestarem questões internas da estrutura da denominação, sendo alguns deles expulsos de
suas igrejas, tendo como uma das acusações suas ligações com o comunismo.
É claro que muitos assuntos e questões que dizem respeito à relação entre os batistas
brasileiros e a ditadura civil-militar em seus primeiros anos e nos períodos mais violentos do
regime ainda encontram-se em aberto e merecem ser mais profundamente estudados. Porém,
o presente artigo busca compreender como os batistas brasileiros, ou melhor, a CBB e o seu
órgão oficial posicionaram-se nos momentos derradeiros da ditadura militar brasileira, a partir
de 1978 e avançando a análise até 1988, com destaque para a problemática dos direitos
humanos e como os mesmos compreendiam o caráter e as ações políticas dos governos civis-
militares de então.
Principalmente a partir da segunda metade dos anos 1970, os governos militares começaram a
sofrer um forte desgaste de legitimidade e muitas críticas passaram a ser dirigidas a ele, seja a
respeito das violações dos direitos humanos, pelos anseios de maior participação popular nas
decisões do país ou pelo restabelecimento das liberdades democráticas. Dessa forma, muitos
grupos que tinham até então apoiado, cooperado e sido aliados de primeira hora dos militares,
ou mesmo se omitido perante estas questões, passaram a se rearticular e reconstruir seus
discursos e posicionamentos. Destaca-se assim, o crescimento e o fortalecimento das
correntes que se articulavam junto a essas novas demandas democráticas, com destaque para o
que ocorreu em algumas instituições religiosas, como no caso de parte da Igreja Católica e
também em alguns setores das igrejas evangélicas.
1964
Sobre as violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime ditatorial pouco é
discutido no OJB desse período. Porém, a temática pautou um editorial do jornal, por ocasião
da visita do presidente estadunidense Jimmy Carter ao Brasil, em 1978, o qual foi produzido
como resposta a um artigo escrito por um jornalista presbiteriano, que salientava o fato de que
tal presidente, apesar de ser um diácono batista, não tinha ido ao encontro dos seus irmãos
brasileiros, mas sim se reunido com membros da hierarquia católica e de outras igrejas.
Carter, na época como presidente e até os dias de hoje, teve como uma de suas bandeiras de
atuação a defesa dos direitos humanos, desse modo, o jornalista afirmava que a decisão do
presidente norte-americano decorria do fato dos batistas brasileiros não terem feito nenhum
pronunciamento sobre a temática.
Como resposta ao jornalista presbiteriano, o editor José dos Reis Pereira, primeiro justifica o
não encontro com o presidente como algo natural, devido a característica batista de separação
entre Igreja e Estado e da discrição para a relação com as autoridades constituídas. A respeito
da acusação de omissão para com a questão dos direitos humanos, o editor salienta que por
estar próximo de uma viagem não tinha como mostrar uma seleção dos pronunciamentos dos
batistas brasileiros a respeito da temática, porém, ressalta que diferente de outras confissões
religiosas, eles não faziam protestos, passeatas ou tomavam partido político. E cita como
exemplo desse tipo de politização o caso abaixo:
O arcebispo de São Paulo tomou atitude francamente política quando participou de uma
cerimônia ecumênica de homenagem a certo ativista comunista que morreu na prisão dizem
alguns que por suicídio, dizem outros que por tortura. Desde que o caso estava sendo objeto
de investigação falecia autoridade ao arcebispo para fazer um julgamento que, por sinal,
coincidia com o dos comunistas, que sabem bem aproveitar-se desses fatos, embora justiça
na terra do comunismo seja piada de humor negro (PEREIRA, 1978, p. 3).
O fato a que o editor fez referência, não foi um simples episódio, mas ele discorre sobre um
dos casos mais simbólicos de tortura ocorridos na ditadura militar. O ativista comunista citado
na matéria era o jornalista e então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog que
foi morto sob tortura nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, em 25 de outubro de
1975. Já a cerimônia ecumênica citada por Pereira foi um dos mais célebres desagravos feitos
contra a violência impetrada pelos militares, a qual além do arcebispo de São Paulo, D. Paulo
Evaristo Arns, uma das mais importantes lideranças no combate a tortura e a perseguição
política em todo o Cone Sul, contou com a presença de outras lideranças religiosas, tais como
o rabino Henry Sobel e o reverendo presbiteriano Jaime Wright. A morte de Vlado, como era
1965
conhecido, teve repercussões nacionais e internacionais e o ato realizado, mais que uma
simples celebração ecumênica, foi um importante evento articulado pelo Sindicato dos
Jornalistas do Estado de São Paulo, no qual compareceram mais de 8 mil pessoas dentro e
fora da Catedral da Sé de São Paulo. Sendo assim, uma das primeiras grandes manifestações
públicas contra a arbitrariedade do governo ditatorial desde a promulgação do AI-5 e
considerada por muitos como o episódio que deu uma grande guinada para o crescimento do
movimento que defendia a redemocratização do país.
Porém, para Pereira o ato em desagravo à morte do jornalista não havia sido um protesto em
favor dos direitos humanos, mas sim uma ação meramente política do cardeal católico, visto
que segundo ele, como o caso ainda não fora julgado, as autoridades religiosas não poderiam
manifestar-se. Além disso, ele coloca em dúvida as acusações de morte por tortura, dizendo
que esse era o argumento defendido pelos comunistas, que de alguma forma buscavam
aproveitar-se do fato, colocando-se assim, ao lado de uma parte dos militares que tentaram
construir a absurda história de suicídio mediante enforcamento, versão esta descabida e logo
refutada por praticamente toda a sociedade e até por setores do governo e das próprias forças
armadas.
Torna-se importante salientar que o editorial não havia sido escrito logo após a morte e a
realização da cerimônia ecumênica, mas sim três anos depois, quando os próprios militares
pressionados pelos manifestos decorrentes da morte de Herzog e de outras ações violentas,
haviam substituído o comandante responsável pelo II Exército. Dessa forma, o
posicionamento do editor explicitado acima, demonstra de forma bastante clara que o apoio
do OJB à ditadura militar e aos seus desmandos permaneciam inabaláveis, mesmo quando boa
parte da opinião pública e diversos setores da sociedade manifestavam-se contrariamente a
essas violências.
Retornando ao artigo de Pereira, ele finaliza suas considerações dizendo que Carter ao se
encontrar com o arcebispo de São Paulo, estava agindo de forma ingênua e ainda o critica
dizendo que o presidente norte-americano deveria ser mais crítico para com os países do
bloco socialista.
Essa atitude de Carter parece ter abalado a relação entre os batistas brasileiros e o presidente
norte-americano, pois o OJB, que havia feito saudações quando este se elegeu presidente,
quando da derrota deste para Ronald Reagan, em 1980, dois artigos fizeram comentários a
1966
respeito de sua atuação como presidente. Neles coloca-se que Carter apesar de ser um diácono
batista, com boas intenções e defensor dos direitos humanos e dos oprimidos, o seu governo
teria tomado algumas atitudes contraditórias. Nesse sentido, ganha destaque o artigo de
Herezon Dias, onde defende que o verdadeiro motivo da derrota de Carter havia sido “uma
conseqüência natural de seu envolvimento com a idolatria, através da hierarquia do
catolicismo romano” (DIAS, 1981, p. 11), que na prática significava a participação de
representantes do seu governo e dele próprio em solenidades e encontros com católicos no
Vaticano, mas principalmente sua prestigiosa visita ao cardeal de São Paulo, na qual o
político estadunidense teria dado significativa importância. Dessa forma, além de colocar-se
contrário às articulações a favor dos direitos humanos promovidas por Carter e D. Paulo, ele
também condena a atitude do presidente norte-americano para com os católicos, destacando o
forte caráter anti-ecumênico encampado pelo grupo batista dominante desse período.
A questão da tortura e dos direitos humanos no Brasil eram assuntos praticamente ignorados
pelo jornal nesse período de abertura, tanto que apenas mais um editorial, escrito em
novembro de 1985, chamado Tortura: Nunca Mais? retomou o assunto. O editorial referia-se
ao livro recém-lançado, de título homônimo, só que sem a interrogação ao final, o qual teve
grande repercussão, pois foi o primeiro grande trabalho a esquematizar e exemplificar como
se instalou o sistema repressivo na ditadura militar, os locais e métodos de tortura, além de
citar as pessoas e os grupos perseguidos. O livro havia sido organizado por uma equipe que
tinha trabalhado entre os anos de 1979 e 1985 em cima de inquéritos produzidos pelos
Tribunais Militares, num projeto articulado e coordenado pelo arcebispo de São Paulo, D.
Paulo e o reverendo Jaime Wright.
Contudo, em seu editorial, José dos Reis Pereira, ao invés de comentar o conteúdo do livro
que revelava boa parte das práticas e violências cometidas pelo regime militar contra os
direitos humanos, faz a seguinte reflexão: “Observamos, todavia, que há engano em dizer que
a tortura caracterizou o regime inaugurado em 1964. Ela vem de muito antes no Brasil”
(PEREIRA, 1985, p. 3). A partir disso, o pastor cita que houve a prática de tortura em
diversos momentos da história republicana brasileira e que essa prática era antiga e comum
em nossa sociedade, por isso a mesma continuaria a acontecer no país, visto que:
A razão principal é que de homens pecadores não podemos esperar atitudes constantes de
tolerância, de paciência, de boa vontade e, sobretudo, de amor. [...] Enquanto o Evangelho
de Jesus Cristo não dominar a vida brasileira dizer que nunca mais haverá tortura é
excessivo otimismo (PEREIRA, 1985, p. 3).
1967
As conclusões e posicionamentos colocados pelo pastor acima são bastante esclarecedoras e
até estarrecedoras do pensamento de parte dos batistas brasileiros para com a temática dos
direitos humanos. Pois, apesar de no artigo afirmar que a solução dos problemas e atritos
envolvendo opinião e política deveriam ser resolvidos através do debate e de forma pacífica,
nenhuma condenação ou ao menos qualquer tipo de reprovação é feita aos praticantes de
tortura na sociedade brasileira. E mais do que isso, na tentativa de amenizar e relativizar as
violências e o sistema repressivo instalado pela ditadura militar, o religioso usa o argumento
de que essas práticas eram habituais na história do país e constituíam quase que um elemento
cultural congênito da sociedade brasileira, em que apenas a conversão dos homens aos
princípios evangélicos poderia trazer alguma alteração.
“No Brasil vivemos numa democracia”: a compreensão dos batistas acerca do caráter
político do regime militar
Tendo esta declaração como referência vários questionamentos ficam em aberto: por que um
total silenciamento do jornal para com a ditadura militar instalada no Brasil, marcada em
diversos momentos por prisões arbitrárias e num sistema repressivo fundamentado na tortura?
E além dessa omissão, por que, mais do que um respeito às autoridades, o que se via do grupo
dirigente batista era uma complacência para com esses governos e muitas vezes um apoio
direto ou indireto às suas ações?
É claro que a construção de conceitos sobre o que caracteriza uma ditadura ou uma
democracia são bastante subjetivos e até díspares, dependendo de quem lhes dá valor, visto
que cada pessoa carrega em si suas experiências e interesses. Essa observação pode-nos
ajudar a compreender porque os batistas brasileiros tiveram esse posicionamento perante a
ditadura brasileira. Assim, analisando suas declarações políticas no período de abertura
política, percebe-se que para esse grupo o Brasil não vivia num regime ditatorial, mas: “No
Brasil vivemos numa democracia. Adjetivada ou não, é uma democracia. A comprovar isso há
as eleições que temos tido, as casas do Congresso, as assembléias estaduais. Como cidadãos
votamos nas eleições realizadas” (PEREIRA, 1983, p. 3).
1968
Para exemplificar ainda mais essa compreensão da vigência de uma democracia no país, um
editorial de setembro de 1979, destacava que no Brasil, além do funcionamento do Congresso
e da existência de dois partidos políticos, havia liberdade de imprensa, a censura estava
praticamente suspensa, era possível criticar o governo através desses meios e “[...] há a
máxima liberdade religiosa” (PEREIRA, 1979, p. 3). No mesmo sentido, o editor do OJB
num texto sobre as eleições de 1982 fez a seguinte colocação: “Após uma ditadura de quase
15 anos [...]” (PEREIRA, 1982, p. 3); numa declaração importante, pois reconhece que em
algum momento houve ditadura militar no Brasil; no entanto é interessante observar que a
ditadura militar ainda em vigor, segundo ele já teria terminado e havia durado quase 15 anos,
estabelecendo provavelmente o seu final com a revogação do AI-5 em 1978 ou com a
promulgação da Lei da Anistia em 1979.
Partindo disso, torna-se importante destacar que a ditadura militar brasileira, vigente entre os
anos de 1964 e 1985, configurou-se por diferentes contextos e fases, sendo em alguns
momentos marcada pela forte censura, perseguição e instalação de um violento sistema
repressivo, e em outros, por uma maior abertura ou mesmo certa possibilidade de participação
política, como no caso de algumas eleições legislativas. É claro que o desgaste político e as
pressões internas e externas fizeram com que os militares abrissem certas brechas, tais como
no caso da Lei da Anistia e a revogação do AI-5.
Porém, o poder central e os principais órgãos decisórios sempre estiveram em mãos militares
ou de pessoas e grupos ligados a eles, visto que a própria censura permaneceu vigorando até o
ano de 1988. Assim, o malabarismo teórico construído pelo OJB para justificar sua aliança
com os militares e a postura democrática destes, além de ser uma anomalia política conceitual
do que é um regime democrático, ia muitas vezes além do que os próprios ideólogos e
defensores do regime militar tentavam arquitetar para justificar seus feitos.
É importante salientar que praticamente em todos os momentos no qual o OJB defendia a tese
de que no Brasil havia um regime democrático, a questão surgia como resposta ou
contraposição às ditaduras comunistas, citando os países da União Soviética ou Cuba e
comparando a democracia existente entre esses regimes. Ressalta-se assim, que além do apoio
aos governos militares, essa compreensão política mostra que a tradição anti-comunista do
jornal não tinha arrefecido com o passar do tempo, mas permanecia como uma das fortes
características da tradição batista desse período. Interessante notar nesse caso, que apesar dos
batistas brasileiros possuírem uma forte ligação com os Estados Unidos; visto muitas vezes
1969
como exemplo de sociedade a ser implantada por aqui, o modelo democrático instalado no
Brasil, diferentemente do que era feito com as ditaduras comunistas, nunca era comparado
com o sistema político estadunidense, considerado como uma das democracias mais estáveis e
consolidadas do mundo.
Para tentar entender esse constructo teórico-político articulado pelo OJB, acredito que uma
análise mais aprofundada da relação entre o grupo dirigente batista e os governos militares,
principalmente com o do general Figueiredo (1979-1985), pode oferecer alguns subsídios para
tanto.
Porque, nesse período de abertura política, diversos fatos e acontecimentos demonstraram que
a relação entre esses dois grupos foi fortalecida e teve sua proximidade aumentada, sendo tal
fato reconhecido por eles próprios: “Ponderamos que atualmente há da parte daqueles que
estão no governo uma certa abertura para com o povo batista, coisa que não havia há vinte e
cinco anos especialmente em virtude da pressão exercida pela hierarquia católica”
(PEREIRA, 1981, p. 3).
1970
Outro evento foi a participação de Figueiredo e de outras autoridades militares, em agosto de
1982, no aniversário do programa Reencontro apresentado pelo líder denominacional Nilson
do Amaral Fanini, realizado em pleno estádio do Maracanã, o qual teve a presença de
milhares de pessoas e ocorreu num momento bem próximo às eleições que seriam realizadas
no mesmo ano, ato este que foi visto por muitos da época como um comício em apoio aos
grupos que apoiavam os militares. Tal relacionamento entre o pastor e o governo federal
acabou sendo coroado com a concessão de um canal televiso no Rio de Janeiro, em janeiro de
1984.
Considerações finais
Dessa forma, fica claro que a aproximação do grupo que possuía a hegemonia da CBB com os
militares permaneceu bastante estável nesse período, e mais do que isso, deu sinais de que a
abertura política foi o momento mais vigoroso dessa relação, como demonstra a participação
de militares em eventos religiosos e até com a concessão de uma rede televisiva. E mais do
que isso, o discurso explicitado pela elite dirigente batista, veiculado principalmente no OJB,
permanecia em total sintonia com o pensamento articulado pelos militares, onde se tentava
elaborar diversas justificativas político-religiosas para o abafamento das violências cometidas
pelo regime militar e construindo até uma nova periodização histórica para o regime.
Isso mostra que diferentemente de outros grupos e confissões religiosas, que nesse momento
passavam a ter uma posição mais crítica aos desmandos cometidos pelos militares, ou
emergiam grupos que defendiam a volta das liberdades democráticas e uma maior
participação popular nas decisões do país, no caso dos batistas essa mudança de
posicionamento não ocorreu. E se existiam grupos que possuíam uma linha de pensamento
mais crítica perante essas questões, os mesmos, ou foram silenciados e abafados pela corrente
hegemônica ou não conseguiram articular-se ou mesmo apoio para forçar uma maior disputa
de poder na estrutura da CBB e do OJB.
Referências
AGUILERA, José Miguel Mendonza. Um povo chamado batista: um jornal (OJB) a serviço
da formação de uma mentalidade religiosa (1960-1985). Orientação de Prof.º Dr.º Antonio
1971
Gouvêa Mendonça. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Instituto Metodista de
Ensino Superior, São Bernardo do Campo, 1988.
ALMEIDA, Luciane Silva de. “O comunismo é o ópio do povo”: representações dos batistas
sobre o comunismo, o ecumenismo e o governo militar na Bahia (1963-1975). Orientação de
Prof.ª Dr.ª Elizete da Silva. Dissertação (Mestrado em História Social), Departamento de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de
Santana, 2011.
SOUZA, Edilson Soares de. Diálogos (Re) Velados: a trajetória e os discursos político-
doutrinários dos batistas brasileiros. Orientação de Prof.º Dr.º Euclides Marchi. Dissertação
(Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.
Fontes
DIAS, Herezon. Os verdadeiros motivos da derrota de Jymmy Carter. O Jornal Batista, Rio
de Janeiro, 08 fev. 1981, p. 11.
PEREIRA, José dos Reis. Os batistas e os direitos humanos. O Jornal Batista, Rio de Janeiro,
23 abr. 1978, Editorial, p. 3.
__________. Lavagem cerebral. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 18 nov. 1979, Editorial, p.
3.
__________. A ilusão dos cristãos-marxistas. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 07 set. 1980,
Editorial, p. 3.
__________. Favores dos poderes públicos. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 30 ago. 1981, p.
3.
__________. Quando é necessária a contestação. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 24 jul. 1983,
p. 3.
__________. Tortura nunca mais?. O Jornal Batista, Rio de Janeiro, 17 nov. 1985, Editorial,
p. 3.
1972
1973
O cristão frente às autoridades civis: a mentalidade dos
protestantes pernambucanos no Golpe Militar de 1964
Zilma Adélia Soares Lopes1
Introdução
O posicionamento dos cristãos diante das questões do mundo é multifacetado. Esse fato deve-
se justamente por ser o protestantismo no Brasil composto por uma diversidade de segmentos
teológicos, que se fizeram historicamente através dos protestantismos de missão, ou
conversionista, e de imigração. Assim, é difícil estabelecer uma linha tênue entre os
segmentos provenientes dessas variações e, portanto, fica claro que não há um consenso
acerca de como se portar diante de situações sociais complexas, tais como sistemas políticos.
Mas, é possível fazer um balanço historiográfico que se seja capaz analisar e expor o modo
como os protestantes se comportaram nos momentos de efervescência política e social
decisivos para a história do país. Um desses momentos marcantes foi a Ditadura Militar no
Brasil. Este artigo, portanto, visa considerar o contexto do Golpe Militar de 1964 em
Pernambuco e o/os posicionamento/os dos protestantes diante do Golpe, através de uma
pesquisa bibliográfica preocupada com essa questão.
1
Graduanda em História da UFPE. Contato: zilma_adelia@yahoo.com.
1974
Entre 1962 e 1964: contexto sociopolítico
O Brasil, no período anterior ao Golpe, engolfava-se na tensão política que vigia. João
Goulart, presidente da República na época, era compreendido como um político incapaz de
satisfazer os anseios do Brasil, tanto no momento em que atuou na presidência como
posteriormente pela historiografia. Mas, de acordo com a historiografia recente, a correnteza
que arrastou Goulart para fora da presidência está condensada na radicalização das esquerdas
e nas flagrantes conspirações intentadas pelos militares contra o governo de João Goulart que
não toleravam a posição de política conciliatória adotada pelo presidente que agiu no sentido
de levar a cabo seu projeto das reformas de base (FERREIRA, 2011, p. 345-400).
A influência de Cuba foi um dos fatores decisivos para a tomada do poder pelos militares.
Este país “apoiou, concretamente, os brasileiros em três momentos bem diferentes”. Para nós
aqui, vale destacar o primeiro, que “foi anterior ao golpe civil-militar. Nesse momento, os
aliados preferenciais do governo cubano eram as Ligas Camponesas” (FERREIRA;
DELGADO, 2012, p. 60). Perceber a influência da Revolução Cubana nas Ligas Camponesas
faz-se de suma importância para compreender o que se passava em Pernambuco nos anos
anteriores ao golpe, visto que havia um intenso borbulhar de insatisfação no meio rural
pernambucano. Francisco Julião foi o líder que mais se pautou na Revolução Cubana,
servindo como mediador de um intercâmbio entre integrantes do movimento e os
revolucionários cubanos, dos quais aqueles receberam, inclusive, treinamento militar (SILVA,
2010, p. 84-85).
1975
apreensão entre os políticos alinhados ao liberalismo norte-americano, como também aos
Estados Unidos, que temiam o perigo potencial de um levante comunista na região. Para que
se tenha ideia do estado de pobreza extrema vivida em Pernambuco no início da década de
1960, temos a descrição feita por Arthur Schlesinger, um dos assessores do presidente dos
Estados Unidos John F. Kennedy, numa ocasião de visita a esse estado, em 1961: “Eu jamais
vira uma região de tamanho desespero – uma aldeia miserável e estagnada após a outra,
casebres de barro escuro, crianças de pernas tortas e barrigas imensas, onde não se via
praticamente nenhum velho” (SILVA, 2010, p. 84).
Ademais, o governo do estado, a partir de janeiro de 1963, foi assumido por Miguel Arraes,
que se elegeu em 1962 através do Partido Social Trabalhista (PST), apoiado pelo Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e setores do Partido Social Democrático (PSD) 2. Sobre esse
governador e sua política, vale destacar o que Flávio Weinstein Teixeira escreveu, uma vez
que nos dá um panorama geral da situação político-econômico-social do momento:
Miguel Arraes deu um aspecto popular a suas administrações, projetando-se como um líder
de esquerda de dimensões além do meramente regional. Em meio à complexa e polarizada
disputa política que antecedeu a intervenção militar de março de 1964, o nome de Arraes
passou a ser seguidamente lembrado como um candidato de peso à sucessão de João
Goulart. [...] De fato, não havia grandes dificuldades em se trabalhar sua imagem como a de
alguém comprometido com a redenção dos oprimidos e marginalizados. Afinal, fora ele
quem promovera o Acordo do Campo, em 1963, garantindo direitos trabalhistas a
trabalhadores rurais. Fora ele quem enfrentara um lockout e um boicote dos proprietários,
chegando a confiscar mercadorias a fim de assegurar o abastecimento popular. E também
criara o Movimento de Cultura Popular, permitindo o desenvolvimento de um inédito
movimento em favor da educação de jovens e adultos trabalhadores. Além disso, Arraes
urbanizara amplas áreas da cidade de Recife e apoiara irrestritamente a utopia
desenvolvimentista da Sudene, criada no fim do governo JK para concentrar os esforços de
planejamento e investimento públicos no Nordeste. E, enfim, fora ele quem colocara o
poder público como mediador dos conflitos sociais e não mais como um extenso “aparelho
repressor” 3.
Miguel Arraes foi deposto após o Golpe Militar, em 1964, visto que tinha um perfil alinhado à
esquerda e simpático ao PCB, conforme visto acima, o que possibilitou aos seus opositores
2
Miguel Arraes de Alencar. Governo do Estado de Pernambuco. Disponível em
<http://pe.gov.br/governo/galeriadegovernadores/miguel-arraes-de-alencar>. Acesso em 10 ago 2013.
3
O redentor do agreste. Revista de História. Disponível em
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/retrato/o-redentor-do-agreste>. Acesso em 10 ago 2013.
1976
uma visão dele como comunista, apesar de não assumir tal posição. Exilou-se em 1965 e
manteve-se afastado da política até 1979, quando foi anistiado.
O período imediatamente anterior ao Golpe de 1964 foi marcado por um anseio por
revolução, tanto entre as esquerdas quanto pela direita. Esta, representada por alguns grupos
políticos, empresariais e militares, visava tomar o poder a fim de salvar a democracia do
iminente comunismo que supostamente estava sendo introduzido por Jango no Brasil. Devido
à política feita pelo presidente, de boas relações com os países socialistas, a direita junto com
os militares agia no sentido de efetivar suas conspirações através de instituições, tais como o
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), ambas orientadas pela CIA (FERREIRA, 2011, p. 359-360).
Ao passo em que a direita assim procedia, “as esquerdas partiram para a estratégia de
pressionar o governo e mobilizar os trabalhadores nas ruas [...]. Em processo de crescente
radicalização, atacavam o Congresso Nacional e exigiam de Goulart medidas radicais e
imediatas” (FERREIRA, 2011, p. 357) no sentido de concretizar as reformas de base,
sobretudo a reforma agrária, ponto crucial para as esquerdas nessa pauta. No que tange a
questão da democracia, é possível compreender que
como conclui Argelina Figueiredo, a questão democrática não estava na agenda da direita e
da esquerda. A primeira sempre esteve disposta a romper com tais regras, utilizando-as para
defender seus interesses. A segunda, por sua vez, lutava pelas reformas a qualquer preço,
inclusive com o sacrifício da democracia [...]. Entre a radicalização da esquerda e da direita,
uma parcela ampla da população apenas assistia aos conflitos, silenciosa (SOARES;
FERREIRA, 2001, p. 173) 4.
No que se refere ao silêncio por parte de “uma parcela ampla da população”, deve-se refletir
com acuidade. Os protestantes de Pernambuco acabaram por ser heterogêneos nesse sentido.
Houve aqueles que foram prosélitos dos ideais militares para salvar a democracia brasileira
das crises ocorridas que teriam sido provocadas pelos comunistas no Estado, “os protestantes
pernambucanos se aliaram a outros evangélicos do país no Dia Nacional do Jejum e Oração
4
Esta citação do autor Jorge Ferreira é escrita em referência ao pensamento da autora supracitada. Ver
D’ARAÚJO, Maria Celina. Os sindicatos, carisma e poder. O PTB de 1945-65. Rio de janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p. 202.
1977
para que Deus os livrasse do perigo vermelho que rondava a sociedade” (SILVA, 2010, p.
102).
Então, de fato, houve uma aproximação entre alguns protestantes com o regime por que estes
se posicionavam contra o comunismo definitivamente, pois entendiam ser o marxismo uma
teoria diabólica por propagar um ideal ateísta que provocava o temor de uma possível perda
de liberdade religiosa no país. Mas não apenas por isto, também havia o temor de uma
possível guerra civil provocada pelas esquerdas. “Medo da esquerda e simpatia pela direita
parece refletir fielmente a mentalidade protestante majoritária” (REILLY, 1985, p. 315).
Portanto, havia, de fato, evangélicos no período que “apenas assistiam aos conflitos,
silenciosa” (SOARES; FERREIRA, 2001, p. 173): os fieis que, orientados por seus líderes
eclesiásticos,
E após o Golpe, em 1964, os fieis foram convocados novamente para agradecer a Deus pela
vitória militar. Isso levou os militares a enxergarem nos protestantes pernambucanos
importantes aliados que inibiriam eclesiasticamente e politicamente seus fieis.
Segundo João Dias de Araújo (1982), a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), por exemplo,
posicionou-se de modo a instruir os fieis diante da situação de tensão política e social
“perigosa” do comunismo. Este autor destaca que a Igreja Presbiteriana foi a mais envolvida e
a mais comprometida com o Golpe de 1964 por causa das ligações que tinha com a classe
média e por gozar de prestígio nos meios políticos e militares. A participação ativa de líderes
presbiterianos nos acontecimentos políticos e sociais durante o regime militar e antes mesmo
do Golpe se deu ainda durante as tramas para a deposição de João Goulart da presidência.
Vários pastores presbiterianos que apoiaram a tomada do poder pelos militares, demonstrando
que vários setores da IPB se entrosaram com a o Golpe de 64. Por esses motivos entre outros,
Araújo conclui que a IPB identificou-se com o conservadorismo político, condenou os
renovadores como modernistas, mundanos e comunistas e postulou que a Igreja nada tem a
ver com a situação social (ARAÚJO, 1982).
1978
Convém relembrar que o termo que pairava sobre todos na época era revolução, e perceber
que os protestantes também se utilizaram deste termo. Tal fato é interessante de ser observado
e o cientista político Joanildo Burity nos apresenta isso:
O notável não é que falassem em revolução, mas que eles falassem em revolução. Afinal,
lendo-se os jornais, revistas, manifestos e outros documentos da época, o discurso da
revolução é altamente frequente. Fossem indivíduos, partidos, organizações civis ou
militares, de boca em boca, a revolução se repetia. Mas que os protestantes, sabidamente
ausentes e resistentes a qualquer aproximação das coisas do mundo, ou seja, das questões e
problemas sociais e políticos, se pusessem lado a lado com os movimentos sociais e
políticos do período, isto sim, é digno de surpresa (BURITY, 2011, p. 13).
Muitas igrejas protestantes agiram em vista de alertar os crentes no sentido de que a revolução
que deveria ocorrer não seria nos moldes comunistas, mas de acordo com os ensinamentos
bíblicos. Essa preocupação foi evidenciada na Conferência do Nordeste em 1962, cujo intuito
foi o de encontrar soluções para os problemas sociais nordestinos de acordo com os
parâmetros cristãos (CÉSAR, 1962). Para os protestantes, esta Conferência aconteceu no
tempo e no lugar oportuno, pois o Nordeste estava sendo conhecido nacional e
internacionalmente como a Cuba Brasileira ou o Estopim da Revolução e a cidade Recife
como a Moscousinha Brasileira. Estes que assumiram uma posição mais crítica em relação às
questões sociais alarmantes do período assentiam que o Brasil estava em um processo
revolucionário do qual os protestantes não deveriam se esquivar. Por isso, incumbiram-se da
tarefa de levar a Revolução de Cristo para o país e, nesse contexto, para Pernambuco
especificamente (SILVA, 2010, p. 91, 92).
Esses cristãos protestantes que pregavam um evangelho social tiveram seus discursos
confundidos com o discurso das esquerdas e dos comunistas pelos que adotaram uma posição
a favor dos conservadores. Por isso, após o Golpe, muitos deles sofreram perseguições dentro
mesmo das instituições religiosas das quais participavam e dos seminários teológicos delas,
sendo inclusive entregues como subversivos às autoridades civis do período. Foi o caso do
Reverendo e professor do Seminário Presbiteriano do Norte: João Dias de Araújo, autor do
livro Inquisição sem fogueiras: vinte anos de Igreja Presbiteriana do Brasil (1954-1974).
1979
Considerações finais
Após essa análise, é possível considerar que no período anterior a instauração da Ditadura,
houve uma movimentação de diversos setores sociais, inclusive de protestantes. Estes,
especificamente, pregavam a necessidade de se haver reformas sociais, a fim de impedir a
introdução do comunismo. Necessitava-se de uma revolução para tentar conter um levante
comunista no país. Para alguns protestantes conservadores, essa revolução foi a tomada do
poder pelos militares, o que foi visto por estes como uma providência divina, resposta de
Deus às orações do povo. Assim, alguns setores dos protestantes pernambucanos constituíram
um importante e eficiente aliado das forças políticas conservadoras e dos conspiradores que
realizaram o Golpe Militar.
Existiu, portanto, uma oposição entre os prosélitos de um evangelismo social, que defendiam
transformações sociais na estrutura do país, e os adeptos de um protestantismo reacionário,
que defendiam a permanência dessas estruturas sociais vigentes. Assim, alguns setores
protestantes do período podem ser caracterizados a partir de sua identificação com a
permanência da estrutura social e o espírito anticomunista. Estes acabaram sendo
considerados como verdadeiros cristãos, pois supostamente estavam pautados nas afirmações
bíblicas dos apóstolos acerca das autoridades civis. Àqueles que, entretanto, não concordaram
com as posições oficiais de suas lideranças, foram taxados como deturpadores, subversivos,
desobedientes à missão espiritual da Igreja; foram vistos como comunistas, e por isso
sofreram perseguições dentro das igrejas das quais faziam parte.
Referências
ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem Fogueiras: vinte anos de Igreja Presbiteriana do
Brasil (1954-1974) – 2ª Ed. Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos da Religião, 1982.
COSTA SILVA, Carlos Alberto da. O cristão e a autoridade civil a partir de alguns textos
bíblicos. Revista de Teologia e Ciências da Religião (UNICAP), Ano IV, nº 4, Pernambuco,
p. 128 – 143, 2005.
FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge
(org.); DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano. O tempo da
1980
experiência democrática de 1945 ao golpe civil militar de 1964. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, Vol. 3, p. 357.
LIMA JÚNIOR, José Ferreira de. Protestantismo e Golpe Militar em Pernambuco: uma
análise da Cruzada de Ação Básica Cristã. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)
UNICAP, Recife, 2008.
SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge Ferreira (orgs.). A história vai ao cinema.
1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 173. Esta citação do autor é escrita em referência
ao pensamento da autora supracitada. Ver D’ARAÚJO, Maria Celina. Os sindicatos, carisma
e poder. O PTB de 1945-65. Rio de janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 202.
Internet
1981
1982
Presbiterianos e apoio ao governo militar: reação e intolerância
internas
Silas Luiz de Souza1
Introdução
O apoio prestado pela Igreja Presbiteriana do Brasil – IPB, ao governo militar é uma
evidência já aferida. No entanto, muitos estudos sobre a atuação dos presbiterianos e dos
protestantes no período militar ainda devem ser realizados para lançar luz sobre as variadas
nuances das relações entre os diversos atores sociais e seus lugares em determinado período
histórico. Neste momento em que se aproxima o cinquentenário do golpe militar e se espera
ansiosamente o desfecho da Comissão Nacional da Verdade, retornar ao tema e buscar em um
grupo social específico como foi pensado e efetivado a relação com o governo militar ajuda a
conhecer melhor nossa própria sociedade. O apoio oficial que os presbiterianos deram ao
regime militar pode ser entendido como parte da estratégia de luta por espaço no campo
religioso brasileiro. Os protestantes não lutavam mais apenas com a Igreja Católica
Apostólica Romana, mas também com os pentecostais, chegados meio séculos antes, porém
percebidos tanto por católicos como por protestantes tardiamente, quando seu crescimento
começou a preocupar os grupos mais antigos. Usa-se aqui a ideia de campo religioso de Pierre
Bourdieu (2005, p. 27-98), conceito que tem sido amplamente utilizado para entender a
religião na sociedade brasileira, com seu dinamismo e vigor que provoca cada vez mais a
atenção dos estudiosos. Para o intelectual francês nenhum campo certamente é totalmente
autônomo, integrando-se, influenciando-se e modificando uns aos outros. Assim, estudar um
campo lança luz no entendimento da sociedade.
1
Doutor em História pela UNESP/Assis. Mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Licenciado em História
e formado em Teologia. Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e no Seminário Presbiteriano do
Sul. Participa do NUMEP – Núcleo Multidisciplinar de Estudos do Protestantismo (UPM) e do GP “Memória
religiosa e vida cotidiana: interpretações historiográficas e teológico-literárias” (UMESP). Contato:
silasluizdesouza@gmail.com.
1983
simbólica em virtude de sua posição na estrutura do campo religioso, uma instituição como a
Igreja contribui sempre para a manutenção da ordem política.” Dominique Julia procurou
demonstrar a relação estreita entre o campo religioso e os demais campos e como a religião é
afetada pelas mudanças sociais. Suas primeiras palavras em bem conhecido estudo para os
historiadores dessa área são: “As mudanças religiosas só se explicam, se admitirmos que as
mudanças sociais produzem, nos fiéis, modificações de ideias e de desejos tais que os
obrigam a modificar as diversas partes de seu sistema religioso” (JULIA, 1995, p. 106). Em
novas condições sociais, o grupo religioso se esforça para interpretar a sua participação no
mundo a partir de sua experiência de fé e de sua herança teológica. É uma via de mão dupla.
As condições sociais provocam uma leitura teológica específica a partir da herança teológica,
enquanto a teologia é transformada pelas condições sociais, a fim de dar conta da nova
situação. Isso não se dá, no entanto, sem conflitos e oposições internas.
No caso da IPB se houve uma disposição para apoiar os novos mandatários do país, houve
também uma oposição interna cuja visão teológica, embora calcada na mesma herança
calvinista, estaria mais propensa à crítica da situação e não simplesmente a um apoio tão
pronto e decisivo como se fez. Esse grupo foi rechaçado pela liderança denominacional.
Pastores foram despojados, igrejas e concílios foram dissolvidos ou transferidos. Essas
disputas nem sempre eram claras para os membros das igrejas locais ou para os de fora. Essa
disputa pode ser identificada por aquilo que Bourdieu chama de “uma forma particular da luta
pelo monopólio”, que é a oposição entre a ortodoxia e a heresia, abordada assim:
Nas deliberações conciliares e nas reportagens do jornal oficial o conflito aparecia como
teológico, em torno da verdade do evangelho. A defesa da verdadeira doutrina foi a
argumentação usada para o exercício da intolerância contra aqueles que, por sua postura
1984
teológica e ideológica, estariam agindo contra o Evangelho de Jesus Cristo, contra as
autoridades eclesiásticas e contra o governo legalmente estabelecido no país.
O apoio explícito ao governo militar foi apresentado desde as primeiras horas do golpe. A
primeira edição do Brasil Presbiteriano, BP, logo após o estabelecimento do novo governo,
estampou na primeira página a postura que seria tomada pela igreja a partir daquele momento:
“Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão regozijando com os resultados da
gloriosa revolução de março-abril: o expurgo de comunistas e seus simpatizantes da
administração do nosso querido Brasil” (BP, abril de 1964, p. 7). As explicações para esse
pronto apoio são variadas. Dois pontos são importantes. Os presbiterianos tinham atingido os
estratos médios da população nacional e tais grupos se preocupavam com as conquistas
materiais que vinham alcançando, por isso se manifestaram em eventos como a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade. Assim, a ideologia liberal vinda com os missionários, com
sua intransigente defesa das liberdades individuais, especialmente as liberdades de
pensamento, da propriedade e de religião, sempre fez parte do aparato ideológico desse grupo.
Embora o tipo de liberalismo presente na sociedade brasileira e no protestantismo desde o
século XIX possa ser questionado, por parcial e reducionista, não resta dúvida que esses
aspectos liberais contribuíram para uma visão de mundo que lutaria contra todas as forças
consideradas empecilhos para o exercício das liberdades, como o comunismo.
1985
conforme Barr, na manutenção da sã doutrina. A doutrina advém da leitura bíblica, uma forma
particular de leitura, visto que existem muitas interpretações e distintas correntes teológicas
no decorrer do tempo. A leitura particular do fundamentalismo parte da experiência de
conversão e da necessidade de confirmá-la a partir dos dogmas retirados da Escritura. Nesse
momento é que entra a explicação bíblica, dogmática, para apoiar o governo em uma leitura
fundamentalista, na qual o fiel deve ser ordeiro e obediente às autoridades. Essas
características demonstram o caráter cristão e veracidade da conversão. Portanto, o aparato
ideológico e teológico para apoiar o governo militar veio também do fundamentalismo.
Citou-se que o primeiro número do jornal após o golpe militar já apresentava o apoio dos
presbiterianos. Necessário se faz informar que havia uma edição pronta quando o golpe
ocorreu. A mesa diretora da IPB cancelou essa edição e fez publicar outra, informando isso na
nova edição, destacando-se os seguintes itens:
4º) Que se declare que a edição do jornal que traz o Nº 8, do ano VII, 2ª quinzena de abril,
não é publicação da Igreja Presbiteriana do Brasil, nem é seu Órgão Oficial, mas é de
exclusiva responsabilidade do ex-redator; (BP, abril de 1964, p. 1).
No mesmo número, também em primeira página, há uma moção informando-se que ela teria
sido entregue para o “Secretário particular do presidente”:
O Brasil, ilustre Marechal, odeia o comunismo, - mas com a mesma generosidade e altivez
de sentimentos - odeia, igualmente, toda e qualquer forma totalitária ou fascista de governo.
Na certeza irrebatível de que “a justiça exalta as Nações e de que o Pecado é o opróbrio dos
Povos”, - hipotecam, Senhor Presidente, - respeitosa e patrioticamente, enorme soma de
confiança em seu Governo (BP, abril de 1964, p. 1).
A preocupação em lutar contra o comunismo aparece cada vez mais intensamente no BP. As
teorias políticas de esquerda eram consideradas inimigas da fé cristã. Para a leitura
fundamentalista e liberal da Bíblia seria impossível esposar ideias esquerdistas e ser cristão
verdadeiro ao mesmo tempo:
1986
Em 1969, o BP comentou as celebrações do sete de setembro pela IPB em todo o país, com o
corolário: “destaca-se, nas comemorações presbiterianas, a intercessão pelas autoridades e a
afirmação de respeito à lei e à ordem” (BP, setembro de 1969, p.1). As comemorações do
sesquicentenário da independência tiveram participação ativa dos presbiterianos com cultos
por todo o país. Amplas reportagens no BP comentavam que os sermões tratavam da doutrina
da soberania divina sobre nossa pátria, além de incentivarem o respeito à vida, ao trabalho,
aos bens, à reputação, à família e aos concidadãos (BP, agosto e setembro de 1972, p. 1).
Temas presentes no discurso ideológico dos militares. Na leitura fundamentalista o dogma
servia para legitimar o poder político. A consolidação do apoio pode ser destacada com a
decisão, em 1975, de investir em pastores que quisessem cursar a Escola Superior de Guerra.
Pela importância do documento, transcrevo-o em seu inteiro teor:
Considerando a possibilidade de pleitear uma vaga junto à Escola Superior de Guerra para
os pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil no curso de pós-graduação da referida Escola;
b) Que os futuros pastores estagiários sejam indicados pela própria Comissão Executiva do
Supremo Concílio;
c) Que a IPB, através da Fundação Educacional, conceda bolsa de estudo ao estagiário visto
ser o curso de dedicação exclusiva no período de um ano (DIGESTO PRESBITERIANO,
CE-75-070).
No entanto, esse tipo de visão não era da totalidade da IPB. As questões sociais, a crítica às
posturas políticas consideradas opressoras e a defesa de reformas na sociedade estiveram
1987
declaradamente presentes na vida da igreja antes do período militar2, continuaram por algum
tempo depois do golpe, mas foram rechaçadas pela política eclesiástica oficial como heresia.
O grupo que comandava o jornal representava parte da elite intelectual e teológica da IPB,
pois vários deles eram professores do Seminário, além do trabalho e liderança pastoral e ação
missionária. É importante lembrar que a igreja tinha apenas duas escolas teológicas no
2
Para mais informações sobre isso pode ser consultado: SOUZA, 2005.
3
Presbítero é um líder leigo, sem formação teológica, eleito em assembleia dos membros de uma igreja local
para atuar em conjunto do pastor tanto no cuidado pastoral como na administração material daquela comunidade.
1988
período: o Seminário Presbiteriano do Sul e o Seminário Presbiteriano do Norte, visto que um
terceiro seminário durara pouco tempo e fora fechado poucos anos após o golpe militar
acusado de práticas ecumênicas e comunismo. Os professores do Seminário de Campinas
atuantes no JP são: Júlio Andrade Ferreira, que foi Reitor e prolífico escritor; Américo
Justiniano Ribeiro; Waldyr Carvalho Luz, tradutor das Institutas de João Calvino e professor
da Unicamp; Odayr Olivetti, que fora missionário no estrangeiro e tradutor de outra versão
das Institutas; Joás Dias de Araújo, também missionário no estrangeiro e dinâmico plantador
de igrejas. Além desses, todos pastores, deve-se citar o Presbítero Eduardo Lane, o
proprietário do jornal conforme o expediente, também ligado ao Seminário, tendo sido seu
diretor por alguns anos. Lane foi candidato derrotado à presidência do Supremo Concílio 4 da
IPB no mês de julho de 1974, poucos meses antes do lançamento do JP. A importância de seu
nome está no fato de ser neto do primeiro missionário a residir em Campinas e filho de outro
missionário, responsável por doar o terreno onde se construiu o prédio em que funciona o
Seminário, todos com o nome Eduardo.
O JP ecoa por suas páginas posições teológicas que explicam o motivo de serem considerados
inimigos mesmo da igreja e do Evangelho. Uma das acusações que a oposição recebia era o
de comunismo. O discurso de combate à esquerda esteve presente desde cedo na prédica e nos
jornais da igreja. Quando setores da igreja desenvolveram uma teologia que questionava os
desajustes sociais e propunha posturas menos liberais e individualistas houve os que se
preocuparam e manifestaram sua contradição. Esses entendiam que o discurso social se
aproximava, ou mesmo era, discurso comunista. Em 1956 um artigo no antecessor do BP com
4
Supremo Concílio é a assembleia geral da igreja nacional. É constituído de representantes, pastores e
presbíteros, de todos os presbitérios, em número igual, independente do número de membros ou pastores do
concílio. Essa assembleia se reúne a cada quatro anos.
1989
o título A Igreja e o comunismo diz que a ideologia de esquerda é mais facilmente propagada
em países católicos, pois o catolicismo deixa o povo nas trevas da ignorância, mas o
protestantismo forma uma população culta e progressista (O Puritano, 25 de abril de 1956, p.
1). Alguns meses depois do golpe, elogia-se o combate ao comunismo, pois “ninguém, que
verdadeiramente ame este país e aprecie o regime da liberdade, terá deixado de aplaudir, com
entusiasmo, a reviravolta que, de um momento para outro, nos livrou do caos e impediu que o
Brasil caísse nas mãos dos comunistas” (BP, julho de 1964, p. 4). Houve uma identificação da
ação social da igreja com comunismo, como se vê em um texto de 1967 denunciando que “o
evangelho social quer fazer da Igreja casa de pasto ou pensão de amplitude universal, pensão
popular gratuita. Mas a grande comissão dada por Cristo a seus discípulos não inclui esse
estranho meio de evangelização”. Espiritualiza-se a missão da igreja permanecendo no
individualismo liberal:
A tarefa da Igreja de Cristo é pregar o Evangelho para salvação dos pecadores. Os homens
salvos, restaurados no corpo e na alma, sentir-se-ão capacitados para pelejar por um mundo
melhor. Ponha-se o Evangelho nos corações, porque os homens remidos por Cristo irão
dedicar-se também à solução dos problemas sociais. Assim a Igreja estará agindo
socialmente, sem declarar-se socialista (BP, 1º. e 15 de setembro de 1966, p. 7).
Com efeito, o Deus que conhecemos na Bíblia é um libertador que destrói os mitos e as
alienações. Um Deus que intervém na história para quebrar as estruturas de injustiça e
suscita profetas para assinalar o caminho da justiça e da misericórdia.
O que nos diz a Bíblia? A Bíblia vaticina uma era de justiça para os oprimidos, quando o
homem na terra não fará violência; O Senhor fará brotar justiça, e as nações a verão. E que
o Senhor pede de ti, ó homem, senão que pratiques a justiça?
Esta foi a pregação dos profetas e de Jesus; de Jesus e dos apóstolos. Justiça foi o tema do
Monte,5 onde o Senhor lançou os distintivos do Reino e suas condições de cidadania (JP,
março de 1976, p. 3).
5
Referência ao Sermão do Monte, Evangelho de Mateus, capítulo 5.
1990
O discurso era linguagem semelhante tanto do movimento ecumênico como do movimento
que ficou conhecido como evangelical, este aglutinado na Fraternidade Teológica Latino-
Americana. O movimento ecumênico tem na criação do Conselho Mundial de Igrejas, em
1948, um marco fundamental. Nessa assembleia de organização o Conselho Mundial de
Igrejas estabeleceu claramente o que já se vinha discutindo como a “responsabilidade social
da igreja e do cristão”. A Confederação Evangélica do Brasil organizou, em 1955, o Setor de
Responsabilidade Social da Igreja, ecoando em solo brasileiro as discussões do protestantismo
ecumênico mundial (SOUZA, 2005, p. 120-128). Por outro lado, o movimento evangelical,
que era certa reação ao ecumenismo, também se preocupava com questões sociais e
desenvolveu o conceito de Missão Integral, com importante participação de latino-
americanos. Em 1974, em célebre congresso mundial dos evangelicais, em Lausanne, Suíça,
René Padilha apresentou a conferência “A evangelização e o mundo”, criticando os norte-
americanos e o imperialismo do Primeiro Mundo ao fazer missão. No mesmo evento, Samuel
Escobar falou sobre “A evangelização e a busca de liberdade, de justiça e de realização pelo
homem” desafiando os missionários a lutar por transformações sociais e políticas como
tarefas inalienáveis da missão cristã. Esses dois grupos eram acusados pelos presbiterianos
fundamentalistas ciosos da defesa da fé e do verdadeiro evangelho. Procedeu-se com denodo
e promoveu-se expurgo de pastores, igrejas e presbitérios. Não houve diálogo ou tolerância
para com o cristianismo destoante para a visão dos dirigentes eclesiásticos.
Essa oposição pequena e que ia ficando cada vez mais sem voz dentro da igreja seria a
possibilidade que a IPB teria de ter uma visão mais crítica em relação ao governo militar, pois
sua visão teológica da missão da igreja, da responsabilidade social dos cristãos ou o conceito
de missão integral indicavam posturas políticas mais à esquerda. Foi exatamente de terem
tendências comunistas a acusação que receberam e o motivo da intolerância com sua presença
e as diversas tentativas de expurgá-los.
Exercício da intolerância
1991
texto bíblico para a prédica foi o primeiro livro de Samuel 15. 3 e 186. O texto versa sobre a
ordem divina para a matança dos amalequitas, inimigos de Deus e de seu povo. A aplicação
para a situação do momento foi que a oposição à administração da igreja era de “amalequitas”
que deveriam ser extirpados da IPB. Este evento se tornou folclórico na igreja e exemplo de
mau uso da Bíblia e do sermão.
Um dos mais emblemáticos casos de expurgo ocorreu com João Dias de Araújo. Pastor e
professor no Seminário Presbiteriano do Norte, dedicado à poesia e à música. Dentre os hinos
que compôs, o transcrito abaixo é um dos mais significativos:
6
“Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás
homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos”; “Enviou-te o SENHOR a
este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até
exterminá-los”.
1992
Além disso, outro exemplo de seu pensamento foi a palestra na paradigmática Conferência do
Nordeste, tendo assim se manifestado ao criticar a ação da igreja:
A tarefa da Igreja seria entrar, por exemplo, nos mocambos e dizer: “Jesus é o Salvador”. A
tarefa terminaria na simples proclamação. O resto não compete à Igreja, mas ao governo e
às instituições de caridade. Uma das maiores heresias afirmadas abertamente por muitos
cristãos chamados ortodoxos e fundamentalistas é que a “Igreja nada tem a ver com os
problemas sociais”. Dizer isto é mutilar o Evangelho de Cristo e a mensagem do Reino de
Deus. (CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL, 1962, p. 44).
Como filhos do Reino de Deus somos parte da rebelião dos tempos atuais. Devemos estar
na vanguarda dos movimentos de transformação do mundo contemporâneo. O clima
revolucionário do Século XX é percebido através da revolução marxista-leninista, da
revolução do proletariado, da revolução racista, da revolução nacionalista, da revolução da
autodeterminação, etc. Dentro desse vulcão em ebulição está operando a revolução do
Reino de Deus, isto é, a soberania de Deus sobre a História, dando a diretriz segura para a
humanidade no presente e no porvir. (CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL,
1962, p 57).
O JP publica diversas reportagens sobre o caso de Araújo que havia recorrido à Justiça do
Trabalho depois de ser demitido do Seminário. O próprio pastor se explica:
Fui obrigado pela direção da Igreja. Fui constrangido, fui empurrado, fui forçado porque
certos órgãos da administração da IPB não queriam obedecer às leis de nossa Pátria. Se eu
não levasse a IPB à Justiça do Trabalho, estaria sendo conivente com as injustiças que vêm
sendo praticadas contra professores dos Seminários da Igreja Presbiteriana do Brasil, desde
1966. (JP, fevereiro de 1975, p. 1).
Historiando os acontecimentos desde 1970, afirma que depois de muito esforço conseguiu ser
recebido pela Comissão Especial dos Seminários. Na reunião foi informado “das supostas e
vagas acusações sem provas que levaram a comissão a determinar minha demissão do SPN”
(JP, fevereiro de 1975, p. 1). Essas acusações, embora não explicitadas estão claramente
expressas nos exemplos dados com a música e com o texto da palestra.
Concílios também foram punidos por se colocarem em oposição aos dirigentes da igreja. Em
1975, a Comissão Executiva da IPB decidiu: “Transferir à jurisdição do Sínodo de São Paulo
os concílios eclesiásticos Presbitério de Vitória e Presbitério de Colatina” (DIGESTO
PRESBITERIANO, CE-75E1-001). Um Sínodo é normalmente composto por presbitérios
1993
limítrofes territorialmente de modo que a transferência provocou a estranha situação na qual
um presbitério passou a pertencer a um Sínodo distante de sua própria região. O Presbitério de
Colatina protestou perante a Comissão Executiva e recebeu como resposta: “tomar
conhecimento e encaminhar ao Sínodo de São Paulo, para as devidas providências”.
(DIGESTO PRESBITERIANO, CE-76-047). O Presbitério de Vitória promoveu mudanças
estatutárias para procurar safar-se de medidas como essas. O Sínodo de São Paulo, respaldado
pela Comissão Executiva decidiu excluir o Presbitério de sua jurisdição e da IPB. Ao ser
questionada pelo Presbitério de Campinas, a Comissão Executiva respondeu que “o
Presbitério de Vitória, de fato e de direito, desvinculou-se da Igreja Presbiteriana do Brasil, ao
registrar as alterações de seu Estatuto.” (DIGESTO PRESBITERIANO, CE-76-050),
responsabilizando o próprio Presbitério pela exclusão, embora o estatuto registrasse que “O
Presbitério de Vitória é filiado à Igreja Presbiteriana do Brasil”. O Presbitério de Campinas se
pronunciou dizendo ser “injustificável que resolução tão séria, de eliminar do seio da IPB um
concílio inteiro, com história e tradição formadas, sem que tal ato se baseie sobre um único
artigo da C.I ou do C.D.”7 A Comissão Executiva criticou o Presbitério de Campinas, no qual
“o assunto foi abordado de forma nitidamente parcial.” (JP, março de 1976, p. 8).
Por participar de consulta promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas, o que era falta grave
para aquela época, o Presbitério de Salvador foi punido decidindo-se “transferir o Presbitério
do Salvador à jurisdição do Sínodo de Pernambuco.” Foi determinado que o Sínodo de
Pernambuco “declare dissolvido o Presbitério de Salvador e tome as providências para apurar
a extensão e a natureza da participação de pastores em celebrações ecumênicas, tomando as
providências necessárias” (DIGESTO PRESBITERIANO, CE-74-036).
Um articulista que não era da região de Campinas e não era ele mesmo adepto de práticas
ecumênicas ou de posturas de esquerda criticou a direção da igreja pela intolerância contra os
que tinham tais práticas: “Comissões e concílios, escritores e oradores, agem energicamente
contra os ‘ecumenistas’ e ‘modernistas’. São despojados, ou colocados à margem, ou citados
publicamente, ou atacados rudemente.” (JP, outubro de 1975, p. 4).
Um velho pastor, já jubilado, comenta a crise da igreja e em seu texto irá aparecer, pela
primeira vez, uma declaração clara de que estaria havendo interferência do poder político
externa, do poder militar, na IPB:
7
C.I. – Constituição da Igreja; C.D. – Código de Disciplina da Igreja.
1994
Outros ainda chegam a afirmar que foi o Governo Federal que, há uns dez anos,
recomendou aos líderes das Igrejas protestantes rigorosa fiscalização contra a penetração
sorrateira, nelas, de elementos comunistas, como tem acontecido na velha Europa (JP, maio
de 1975, p. 4).
Considerações finais
Houve intenso combate à teologia distorcida que dava ênfase às questões sociais e deixava de
lado a responsabilidade eminentemente espiritual da igreja. Desse modo, a intolerância levou
aos expurgos de pessoas, igrejas e concílios. Pastores foram despojados, professores dos
Seminários foram afastados, um Seminário foi fechado, igrejas e concílios foram dissolvidos
ou reorganizados. A oposição procurou fazer frente ao grupo dominante e o Jornal
Presbiteriano, foi um dos principais instrumentos de luta. Durante todo o período de governo
militar o mesmo grupo se manteve no poder, não havendo qualquer sombra de mudança de
atitude no decorrer dos anos. A oposição, por sua vez, cada vez mais enfraquecida, pouco
conseguia fazer nos estreitos espaços que lhe sobravam.
1995
Referências
DIGESTO PRESBITERIANO, 1971 – 1984. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
NOVA CANÇÃO. Coletânea de Hinos e Cânticos brasileiros. 2ª. ed. Coord. Norah Buyers.
Campinas: CEBEP, Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais. São Bernardo do
Campo (SP): CAVE, Centro Áudio-visual Evangélico, 1987.
SOUZA, Silas Luiz de. Pensamento social e político no protestantismo brasileiro. São Paulo:
Editora Mackenzie, 2005.
1996
1997
GT18 – O Oriente e suas diversidades
religiosas
Coordenadores
Resumo
1998
A Mesquita da Luz: uma abordagem do islã sunita no Rio de
Janeiro
Janoí Joaquim Mamedes1
Introdução
A presente pesquisa apresenta uma breve história sobre o nascimento do Islamismo, seus
“pilares”, a chegada ao Brasil com o “Islã Afro” e o Islã dos imigrantes, limitando-se ao Rio
de Janeiro e a SBMRJ (Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro), procurando
identificar o nascedouro da instituição com os imigrantes árabes no ano de 1951 e o que
transformou a SBMRJ de uma entidade “sectária” que funcionava em uma sala para uma
divulgadora do Islã com objetivo de conquistar novos adeptos. Um movimento diferenciado,
se comparado com as demais instituições islâmicas do Brasil, sinalizando uma influência do
meio às suas práticas. Na SBMRJ os sermões das sextas-feiras são proferidos em português e
aos sábados encontros de lazer como futebol para os homens e ginástica para as mulheres.
O Nascimento do Islã
2
Muhammad o profeta do Islã nasceu em Meca em 570 (JOMIER, 1992, p. 18) e pertencia a
poderosa tribo dos Coraixitas. Não conheceu o pai e perdeu a mãe quando tinha 6 anos de
idade. Foi criado pelo avô até completar oito anos quando este também veio a falecer. Foi
educado então pelo tio Abu Taled e na idade adulta passou a exercer a função de comércio.
Foi então que conheceu uma viúva chamada Khadija e aos 25 anos de idade casou-se com ela,
apesar dela ter 15 de anos idade a mais que ele. Muhammad casou-se por volta de 595, e em
610 recebeu as primeiras revelações. Muhammad voltou assustado procurou Khadija, que
logo o conduziu ao seu primo Waraqa que afirmou que a visão de Muhammad era de um anjo
enviado por Deus. O profeta recebe as primeiras revelações e dois meses depois começa a
pregar (ARMSTRONG, 2001, p.11). Logo ocorrem as primeiras conversões, algumas pessoas
do círculo mais chegado a Muhammad converteram-se rapidamente à nova fé: Sua mulher
1
Mestrando em Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Participante do NEMAR
(Núcleo de Estudos das Manifestações Religiosas no Brasil). Orientadora: Lídice Meyer Pinto Ribeiro. Contato:
revjanoi@hotmail.com.
2
ELIADE no livro História das crenças e das ideias religiosas destaca que o nascimento foi entre 567 e 572.
1999
Khadija, seu primo Ali e Abu Bakr, o futuro primeiro califa (JOMIER, 1992, p.21), depois
seu filho adotivo Zaid e também o futuro califa Othman. Em 612 tem outra visão a qual lhe
ordenava a tornar pública todas as revelações. A partir daí a mensagem de Muhammad o
trouxe grandes problemas, pois pregava o monoteísmo e antes do Islã, Meca era uma cidade
politeísta, nela estava a Caaba, (literalmente cubo); um edifício retangular que abrigava
diversas imagens e a pedra negra que segundo religiosos islâmicos é de origem celeste. Neste
centro religioso o serviço do santuário estava confiado aos membros das famílias influentes, e
os cargos, possivelmente bem remunerados passavam de pai para filho (ELIADE, 1978, p.85).
Mesmo sendo Allah um Deus reconhecido pelo povo de Meca como o criador, a mensagem
de que “não há senão um Deus”, não foi bem aceita pelos moradores e principalmente pelos
líderes de Meca, especialmente da própria tribo de Muhammad, os Coraixitas, que não
queriam perder o privilégio que o paganismo trazia. Em 616 começa a perseguição a
Muhammad e em 620 os árabes de Yathrib (mais tarde chamada Medina) estabelecem contato
com Muhammad e o convidam para liderar a comunidade (ARMSTRONG, 2001, p.11).
Em 622 ocorre a Hégira, o profeta acompanhado de dezenas de famílias segue para Yathrib,
os anos a seguir retratam guerras e acordos chegando a 630 quando ocorre a derrota voluntária
dos moradores de Meca. Segundo Armistrong (2011), Eliade (1978) e Jomier(1992), não há
derramamento de sangue nem conversão forçada ao Islã.
Os quatro califas
Ao retratarmos, ainda que de forma breve, a história do Islã, não podemos omitir os quatro
primeiros califas, pois além da importância para os reformistas, o conhecimento desta parte da
história nos auxiliará quando tratarmos dos principais cismas. Muhammad morre em 632 e é
eleito o novo califa Abu Bakr, pai de Aisha, uma das esposas do profeta. Abu Bakr consegue
dominar a revolta e unir todas as tribos da Arábia.
Foi nesta campanha que morreram muitos companheiros que sabiam de cor passagens inteiras
do Alcorão. Foi então que a conselho de Omar, Abu Bakr mandou que se colocasse por
escrito, pela primeira vez, a totalidade do Alcorão, com a finalidade de preservar-lhe o texto
(JOMIER, 1992, p.37).
2000
Após a morte de Abu Bakr, assume como califa Omar ibnal-Khattab, que morreu assassinado
após um reinado de dez anos. Dentre as conquistas de Omar estão: Síria e Jerusalém. O papel
de Omar pode ser comparado ao do apóstolo Paulo no cristianismo (JOMIER, 1992, p. 37),
ele deu partida ao movimento que tornou o Islã um Império Árabe.
Omar reinou de 634 a 644, após sua morte assume como califa Othman ibn Affan (644 a 656),
que deu continuidade a política de Omar, aumentando também o espólio de guerra. Riquezas
começaram a fluir para as mãos dos clãs árabes mais favorecidos. As diferenças de renda se
tornaram cada vez mais marcantes e a competição pelo controle do espólio se acirrou
(DEMANT, 2011, p.38). Othman foi assassinado, assumindo então Ali ibn Abi Taled (656 a
661). Ali era genro e primo do profeta, casado com Fátima. Algo marcante deste reinado foi a
disputa com o grupo de Aisha (a esposa do profeta, filha do primeiro califa); tiveram vários
confrontos armados, sendo Ali vencedor na batalha do monte Carmelo em 656. Mais tarde seu
grupo foi enfraquecido possivelmente pelo acordo que fez com o governador da Síria
Moawiya que era parente de Othman o terceiro califa, sendo Ali assassinado em 661.
Os xiitas
3
Segundo Demant (2011, p.230), a revolução iraniana de 1978/1979 é a única revolução islâmica dos tempos
modernos que derrubou um regime secularista e estabeleceu um regime islamista, expressado pela vontade
política da grande maioria do povo. Essa foi também uma das maiores revoluções da história, que só se compara
a francesa, a russa ou a chinesa. Importante destacar que Peter Demant escreve antes dos acontecimentos da
chamada “Primavera árabe”. A expressão Primavera árabe faz referência a uma série de protestos que ainda
ocorrem no chamado “mundo árabe”, compreendendo basicamente os países que compartilham a língua árabe e
a religião islâmica, apesar de etnicamente diversos. As causas já estavam de certo modo presentes, e o
descontentamento em vários países era já latente, pela comum falta de emprego e oportunidades para as gerações
mais jovens, além da repressão política e a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. Assim, já ocorria
mobilização por parte de vários grupos, mostrando que este não era um fenômeno novo na região.
4
Autoridade suprema legítima da umma muçulmana (correspondente ao califa). Para os xiitas, Ali e seus
descendentes.
2001
reconhecem doze imanes são mais numerosos. De uma forma geral os xiitas se subdividem da
seguinte forma: Xiitas Duocedimanos (que reconhecem doze imanes) e os Ismaelitas (que
reconhecem sete imanes), dentre os Ismaelitas existem os musta’li e os Nizari. De uma forma
geral os xiitas caracterizam-se por uma grande devoção à família do Profeta, Fátima, Ali e os
diversos imanes cujos túmulos são lugares de peregrinação. Segundo, Jomier (1992, p.42), os
xiitas perfazem 10% do total de muçulmanos, para Demant (2011, p.220) este número chega a
15%.
Os Sunitas
Este é o maior grupo das divisões do Islã. Para eles o califa deveria ser escolhido dentre os
árabes coraixitas, ou seja, da tribo de Muhammad , assim escreve Jomier (1992, p.42). Já
segundo Pinto, (2010a, p. 74), eles são os que evocam a tradição (Sunna), que não incluía
regras de sucessão, sendo então seus líderes escolhidos através de eleições.Os dois grupos
(sunitas e xiitas) também seguem diferentes coleções de Hadith, as narrativas sobre atos e
palavras do Profeta. Isso porque cada lado confia em narradores diferentes. Sunitas preferem
aqueles que eram próximos de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam ao
grupo de Ali. Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante pelos sunitas e
desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali. No Brasil, assim como a média mundial, o
maior número de muçulmanos é de sunitas.Além do Sunismo e Xiismo existem em número
bem menos expressivo os chamados Caregitas que segundo Jomier (1992, p.42) entendem que
o chefe da comunidade muçulmana deve ser o muçulmano mais digno, seja qual for a sua
origem.
O Alcorão
É resultado textual da recitação da palavra divina por Muhammad entre 610 e 632 a.d.
(PINTO, 2010a, p. 45) Foi recitado oralmente antes de ser escrito. Os textos proclamados por
Muhammad são considerados pelos muçulmanos como mensagens vindas de Deus por
intermédio do anjo Gabriel, O Alcorão é composto de 114 suras (capítulos), cada uma
dividida em ayas (versus). Tem 6.432 versículos, 77.930 palavras. A maior parte do Alcorão é
2002
escrita em primeira pessoa do singular ou do plural (CHALLITA, p.27)5, e contém algumas
histórias da Bíblia e cita vários personagens como: Adão, Eva, Noé, Abraão, Ló, Ismael,
Isaque, Jacó, Moisés, Elias, Eliseu, Jonas, João Batista, Maria e Jesus. O Alcorão é a base de
fé do Islamismo e oferece normas, valores religiosos, morais e legais. De uma forma geral, os
muçulmanos não aceitam o Alcorão traduzido como a Palavra de Alah, e sim como um
comentário ao texto árabe. Para o muçulmano o Alcorão é a Revelação que deve ser seguida
por ser a última das revelações. Apesar de considerar o Alcorão como única e indispensável
palavra de divina, o Islã aceita também outros livros revelados como a Torá (formado pelos
cinco primeiros livros da Bíblia), os Salmos e os Evangelhos, entretanto a medida que a
comunidade muçulmana cresceu e evoluiu, sentiu a necessidade de referir-se não só ao
Alcorão, mas também “as palavras e atitudes dos profeta”. As palavras hadith e suas atitudes;
a sunna. Para o muçulmano ainda se torna imprescindível a prática do que chamamos os cinco
pilares do Islã.
Os 5 pilares do Islã
O Islã possui cinco pilares. São obrigações que o muçulmano deve cumprir no decorrer de sua
estadia na terra, para que assim possa ter êxito na outra vida (ISBELLE, 2011, P.14)6 São
práticas básicas; estruturaram a vida islâmica em Medina, no início e continuam a fazer até
hoje. Segundo Sonn (2011, p.49) em torno dessas práticas e desses valores fulcrais foi criada,
e prosperou, a primeira comunidade muçulmana. O Testemunho (Shahaadah) “Não existe
outra divindade exceto Deus e que Muhammad é o Seu mensageiro”. A Shahada é uma
profissão de fé. Na cerimônia para recepção de novos seguidores, o indivíduo deve recitar a
frase em Árabe7, sendo após a declaração, aceito como membro pela comunidade. As orações
diárias (Salat) Os muçulmanos oram cinco vezes ao dia: na madrugada (fajr), ao meio dia
(zuhud), no meio da tarde (‘asr), ao por do sol (maghrig) e à noite (‘isha). Como as orações
são marcadas pela posição do sol ou da lua no céu, elas não possuem hora fixa, variando de
acordo com a época do ano (PINTO, 2010a, p.56). Para a organização do trabalho no Brasil
5
O comentário de Mansour Challita na tradução que fez do Alcorão pela editora ACIGI, distribuído pela Record
distribuidora não tem data de impressão.
6
Livro: descobrindo o Islam. O autor é membro da liderança da SBMRJ e filho de imigrantes árabes.
7
La ilahila Allahwa Muhammad rasul Allah, pude presenciar tal cerimônia no dia 20 de Julho de 2012 na
Mesquita da Luz no Rio de Janeiro.
2003
entidades como a UNI8, sediada em São Paulo, elaboram calendários com os horários nas
cidades onde se encontram as instituições associadas.
Outro aspecto muito importante para o muçulmano é que as orações devem ser feitas
apontando para Meca.
As esmolas (zakat). Jomier (1992, p.109) chama de imposto social, Sonn (2011, p.48), chama
de dádiva; Pinto, (2010a, p. 109) chama de esmola ou caridade; Isbelle (2011, p.27) chama
pagamento de esmolas anuais. O texto do Alcorão destaca em 2:43, 273-277, que todo
muçulmano deve ajudar os pobres, os órfãos e as viúvas. O beneficiário do zakat deve ser um
muçulmano; desta forma tal prática incentiva a unidade destro da comunidade.
O jejum durante o Ramadan (Sawm). Todo muçulmano que atinge a puberdade deve jejuar
durante o mês Ramadan. Este é o nono mês do calendário lunar muçulmano, é especial, pois
se destaca que neste mês Muhammad recebeu a primeira revelação do Alcorão. Destaca Pinto
(2010a, p.61) que além da revelação no mês de Ramadan ocorreram outros episódios
importantes para os muçulmanos. O nascimento de Hussein, neto de Muhammad e terceiro
iman (líder) para os xixitas; a morte de Ali, quarto califa e o primeiro iman; a morte de
Kahdija, esposa de Muhammad; e a batalha de Badr, onde ocorreu a primeira vitória do
profeta sobre as forças de Meca. O jejum é obrigatório para todo muçulmano que tenha
atingido a puberdade e que goze de perfeita saúde física e mental. A gestante e a lactante, a
mulher menstruada ou em resguardo pós-parto e os enfermos ou em viagem estão isentos do
jejum, devendo repor os dias não jejuados após o término do período que o impossibilita de
jejuar. Esta reposição será feita após o mês sagrado, podendo ser em dias alternados ou
seguidamente, mas terá como prazo o último dia antes do início do próximo mês de Ramadan.
Para o idoso ou portador de uma doença incurável, o jejum deixa de ser uma obrigação,
devendo fornecer uma refeição a um necessitado (ou o valor equivalente) por cada dia não
jejuado, caso tenha condições. O jejum tem início ao amanhecer e termina ao por do sol da
hora local. Em algumas mesquitas como a mesquita da Luz no Rio de Janeiro a quebra do
Jejum é feita em conjunto para aqueles que têm acesso à mesquita todos os dias do mês.
A peregrinação à Meca (Hajj). O muçulmano que disponha de recursos para sua viagem e
para manter sua família e tenha boa saúde, deve fazer a peregrinação à Meca pelo menos uma
vez na vida. Segundo Jomier (1992, p. 118) isto vale também para as mulheres, quando
8
União Nacional das Entidades Islâmicas.
2004
podem ser acompanhadas. A peregrinação obrigatória ocorre no mês islâmico de Dhual-Hijja,
último mês do ano, e reúne, nos dias atuais, mais de 2 milhões de fiéis. Sua origem segundo
Hitti (1973, p.72) retrata um período pré islâmico, originando-se em um equinócio de outono
para fugir do rigoroso domínio do sol na região da Arábia. Na peregrinação obrigatória o
muçulmano, antes entrar no território sagrado, despoja-se de seu traje comum e veste o ihram
(um pano branco enrolado no corpo como túnica para homens e uma túnica de outra cor que
cobre o cabelo e o corpo, mas deixa o rosto descoberto, para as mulheres). Os principais
rituais de peregrinação, todos praticados em Meca são: circuncidar a Caaba no sentido anti-
horário sete vezes; Percorrer as distâncias entre os montes de Al safa e Al Maruá por sete
vezes, relembrando o ato de Agar, ao procurar água para o seu filho Ismael9; arremessar sete
pedras pequenas em três pontos distintos, na cidade de Mina, simbolizando o ato realizado
pelo profeta Abraão quando foi sacrificar o seu filho Ismael 10, seguindo a determinação de
Deus. Satanás então apareceu para ele nestes três pontos e Abraão responde atirando pedras;
depois todos vão para um grande acampamento aos pés do monte Arafat. Para que se tenha
uma ideia da importância desta cerimônia para um muçulmano registram-se as palavras de um
peregrino da mesquita da Luz na Hajj em 2011:
A África foi caminho mais provável dos primeiros muçulmanos que alcançaram o Brasil.
Segundo Jomier (1992, p. 45) grande parte do norte da África foi submetido ao Islã entre os
anos 670 e 700. O islamismo fez sua entrada no continente a partir da África do Norte, do
9
História registrada na Bíblia no livro de Gênesis 21:8-21
10
História contada na Bíblia no livro de Gênesis capítulo 22, sendo com o filho Isaque (o alcorão não registra o
nome do filho).
2005
Egito ao Marrocos, sendo uma das primeiras regiões a ser conquistadas pela expansão inicial
árabe-islâmica (séculos VII e VIII). Dos séculos X a XVI, mercadores muçulmanos
contribuíram para o surgimento de importantes reinos na África Ocidental, que floresceram
graças ao comércio feito por caravanas que, atravessando o Saara, punham em contato o
mundo mediterrâneo ao das estepes e savanas do Sudão Ocidental e África centro-ocidental.
A conversão de certos monarcas africanos fez não só o islã avançar como criou uma
florescente cultura. Assim, cidade de Tumbuktu (no atual Máli) era, no século XIV, um
núcleo urbano conhecido pelo alto nível de suas escolas islâmicas, que atraíam muçulmanos
de várias partes do mundo. Segundo Ramos (1951, p. 316) com exceção dos sudaneses e
bantus, todas as demais populações africanas receberam em grau maior ou menor a
contribuição da cultura islâmica. Lima11 (2009, p.287 Apud Carneiro,1981, p.29), destaca que
os negros bantus, originários do sul da África (Angola, Congo, Moçambique) foram
localizados pelo tráfico no Maranhão, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de onde, em
migrações menores, se estenderam de Alagoas ao litoral do Pará, até Minas Gerais, o Rio de
Janeiro e São Paulo. Os negros sudaneses, vindos da zona do Níger, na África Ocidental,
foram introduzidos na Bahia, de onde se espalharam pelo Recôncavo, utilizados na lavoura.
Os sudaneses eram os nagôs (iorubás), os jejes (ewes), os minas (tshia e gás), os haussás, os
galinhas (grúncus), os tapas, os bornus, etc. Ainda na Bahia, entraram negros fulas e negros
mandês (mandingas), carregados de forte influência muçulmana.
A influência do Islam na África foi e é poderosíssima. Podemos afirmar que, com exceção
de alguns grupos de negros sudaneses e bantus que sempre se mantiveram imunes do
contacto do islam, todas as demais populações africanas receberam em grau maior ou
menor a contribuição da cultura maometana[...]Foi através de vários desses povos que o
Islam chegou ao Brasil. Esses negros maometanos foram chamados Muçulmi ou Malê, na
Bahia, e Alufá, no Rio de Janeiro.
Além de Arthur Ramos a presença dos muçulmanos no Brasil foi documentada por diversos
historiadores e antropólogos, como Nina Rodrigues, Etiènne Brasil, Gilberto Freyre, João do
Rio, Edson Carneiro, Abelardo Duarte e Waldemar Valente. As primeiras lutas pela liberdade
no Brasil foram lideradas por estes muçulmanos que fugiam e ajudavam a organizar os
quilombos.
11
Lima Claudia, Heranças muçulmanas no nagô de Pernambuco: Construindo mitos fundadores da religião de
matriz africana no Brasil, Revista Brasileira de História das Religiões – Dossiê Tolerância e Intolerância nas
manifestações religiosas, Ano I nº 3 283-300, Jan.2009.
2006
Além dos registros acima, estudos em ossos, datados a do século XVI, encontrados no sítio
arqueológico Pretos Novos12, no bairro da Gamboa, próximo ao centro da cidade do Rio de
Janeiro identificaram um indivíduo africano e possivelmente muçulmano; devido desgaste em
algumas partes específicas do osso. Segundo Cavalcanti13 tais desgastes demonstram posições
características de uma parte da oração islâmica, feita cinco vezes ao dia, onde os pés recebem
o peso do corpo sobre os dedos dobrados, provocando desgastes ao longo do tempo.
Apesar de todos os registros acima marcarem a história do Brasil, o Islã somente se solidifica
em solo brasileiro a partir da chegada dos imigrantes árabes. Segundo Pinto (2010b, p. 45)
“Os estudos sobre imigração árabe geralmente colocam a década de 1870 como sendo a dos
primeiros registros de pessoas provenientes do Oriente Médio no Brasil.” Destacando ainda
Pinto (2010a Apud SAFADY 1972, p. 78-79; e RADAWI 1989, p. 48):
Alguns autores afirmam que os irmãos Zacarias, originários de Belém, na palestina, teriam
sido os primeiros imigrantes árabes a se estabelecer no Brasil. Chegaram ao Rio de Janeiro
em 1874 e abriram uma loja de artigos religiosos na Rua da Alfândega. No entanto, a
relevância desta ‘data inaugural’ da imigração árabe deve ser relativizada, uma vez que
existem registros de árabes no rio de Janeiro que são muito anteriores á chegada dos
referidos irmãos. O filólogo Manuel Said Ali Ida nasceu em Petrópolis, em 186, filho de pai
árabe e mãe alemã (SAFADY 1972, p. 78-79). Outro palestino de Belém, hana Khalil
Marcus, é reportado como tendo aqui chegado em 1851 (RADAWI 1989, p. 48).
Há registros da presença de líderes muçulmanos em 1866 como também nos apresenta Pinto
(2010, p.46; apud al-Baghdadi al-dimachqi, 2007).
Em 1866, um navio da marinha otomana aportou no Rio de Janeiro trazendo, além dos
marinheiros, um religioso muçulmano (‘alim, pl. ‘ulama) chamado ‘Abd al-Rahman al-
Baghdadi al-Dimachqi, que sabemos ter nascido em Damasco de uma família originária de
Bagdá. Após desembarcar para conhecer a cidade, ‘Abd al- Rahman foi saudado por negros
muçulmanos, provavelmente ex-escravos ou seus descendentes, que depois foram ao seu
navio para fazerem as orações com os demais membros da tripulação. Ao saberem que era
uma autoridade religiosa os muçulmanos o convidaram para ficar no Rio de Janeiro e
liderar sua comunidade. Ele aceitou e permaneceu no Brasil até 1869, primeiro liderando a
12
Cemitério de escravos encontrado casualmente pela proprietária do local quando resolveu fazer uma reforma
em 1996. <http://www.pretosnovos.com.br> Acessado em 12 de fevereiro de 2013.
13
Professor de história e jornalista, escrevendo ao Nurul Islam, Ano II,- Nº 9, p.6, Abril-junho de 2012.
2007
comunidade muçulmana composta por ex-escravos no Rio de Janeiro, depois como iman
(líder religioso) das comunidades muçulmanas semelhantes ás que existiam em Salvador e
Recife.
Al’Baghdadi não foi um imigrante e sim um imã divulgador da fé islâmica que deixou um
escrito importantíssimo demonstrando que depois da conhecida Revolta Malê continuaram a
existir comunidades islâmicas organizadas no Brasil.
À medida que o Islã Afro entrava em decadência um grande fluxo de muçulmanos chegava
com a imigração de povos de origem árabe, libaneses, sírios, egípcios, que constituem hoje o
grande contingente de muçulmanos no Brasil.
Torna-se importante destacar que deste grupo de imigrantes que vieram fugidos do Império
Otomano14, a maioria era de cristãos, e as comunidades criadas pelos imigrantes árabes
possivelmente nunca se relacionaram com aquelas do “malês”, sendo duas histórias
descontínuas do Islã (PINTO, 2010a, p. 205). A Sociedade Beneficente Muçulmana em São
Paulo foi a primeira a ser fundada no Brasil, em 192915. “Embora essa sociedade fosse
marcadamente sunita, ela foi a principal referencia institucional dos muçulmanos, tanto
sunitas como xiitas, por um longo tempo.” (PINTO, 2010 a, p.205). A Sociedade Beneficente
Druziense foi fundada em Oliveira, Minas Gerais também em 1929 e a Sociedade Alauíta foi
fundada no Rio de Janeiro em 1931.
14
O império Otomano começou a nascer no século XI, quando tribos turcas nômades se fixaram na Anatólia,
região que hoje é parte da Turquia. Tais tribos ajudaram a difundir a religião muçulmana em terras que até então
estavam sob o domínio de outro império, o Bizantino. "O termo otomano deriva do nome Otman, ou, em árabe,
Uthman", diz o historiador inglês Malcolm Yapp, da Universidade de Londres. Osman, ou Otman I (1258-1324),
foi um chefe turco que transformou essas tribos nômades em uma dinastia imperial. Durante os séculos XV e
XVI, o Império Otomano tornou-se um dos estados mais fortes do mundo, englobando boa parte do Oriente
Médio, do Leste Europeu e do norte da África. Além do poderio militar, o que ajudou a garantir essa expansão
foi a tolerância dos otomanos com as tradições e as religiões dos povos conquistados. Foi abolido em 1923,
quando foi proclamada a República da Turquia.
15
Destaca Pinto que na verdade essa instituição foi fundada em 1927 como Sociedade Beneficente Muçulmana
Palestina e refundada como Sociedade Beneficente Muçulmana em 1929, de modo a incorporar o crescente
número de imigrantes muçulmanos de origem síria e libanesa (PINTO, 2005, p.237- REVISTA USP, São Paulo,
n.67, setembro/novembro)
2008
A SBMRJ
A SBMRJ surgiu em 1951, reunindo muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro; nesta época já
existia a sociedade Alauíta16, que foi a única instituição muçulmana no Rio de Janeiro até os
anos 50, porém sua visão sectária impediu a unidade dos muçulmanos no RJ17.
A sede da SBMRJ se instalava em uma sala comercial na Rua Gomes Freire onde
inicialmente dividia o espaço com a Sociedade Beneficente Palestina. Posteriormente a
Sociedade Palestina mudou de lugar e a sala foi comprada ampliando assim o espaço da
SBMRJ, que passou a ser referencia para os muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro. Em 1984
foi construída uma Mesquita em Jacarepaguá e inicialmente as atividades religiosas foram
transferidas para a nova mesquita. Com o tempo a baixa frequência fez a liderança repensar,
pois a nova mesquita estava distante dos locais de trabalho e da residência dos membros que
na maioria moravam no centro, Tijuca e Copacabana. A mesquita de Jacarepaguá foi
desativada nos meados da década de 90; retornando às atividades a mussala18. A partir de
2007, as atividades foram transferidas para a mesquita em construção 19 na Rua Gonzaga
Bastos no bairro da Tijuca. Segundo o secretário da instituição, tanto a escolha do bairro
como o nome da mesquita foi decidido em votação com os membros, incluindo as mulheres.
16
Sociedade Beneficente muçulmana Alauíta, fundada em 1931. Os alauítas constituem uma seita esotérica xiita
existente na Síria, Líbano e sul da Turquia. Os Alauítas não seguem os pilares rituais do Islã, como as orações
diárias nas mesquitas, sendo considerados por muitos muçulmanos sunitas como heréticos.
17
Segundo Pinto, (2010, p.115) os próprios estatutos da sociedade refletem o caráter suprassectário que possuía
neste período.
18
Sala de oração. Quando não existe uma mesquita próxima, um grupo de muçulmanos separa um lugar para
suas atividades religiosas.
19
O projeto de construção está dividido da seguinte forma: Primeiro pavimento - mesquita e banheiros
masculino e feminino; Segundo pavimento - salas administrativas, salas de aula, biblioteca, dois banheiros (um
masculino e um feminino); Terceiro pavimento - Salão de festas, cozinha industrial, pequeno estúdio
audiovisual, auditório reversível; Quarto pavimento – Residência do Iman, área de lazer com parque para as
crianças, salão de jogos e de ginástica.
2009
Figuras 3 e 4 – atual sede da SBMRJ.
Mesmo antes da mudança da sede, para o bairro da Tijuca, a SBMRJ já apontava um caminho
diferente das demais instituições islâmicas do Brasil. Pois como foi documentado por
pesquisadores20, a comunidade do Rio de Janeiro apresenta uma particularidade, a maioria de
seus membros não são árabes e/ou descendentes. Atualmente como pude registrar em uma
entrevista21 com o secretário da instituição, a maioria dos membros é de revertidos.
Possivelmente fruto de uma mudança na visão da liderança a partir da década de 90, segundo
o secretário, mais precisamente a partir de 1993 com uma renovação no quadro de líderes,
filhos de imigrantes que criaram o curso de introdução ao Islã e a língua árabe22 e facilitaram o
atendimento a imprensa, estudantes e pesquisadores, com a finalidade de divulgar o Islã à
sociedade brasileira e carioca. Com o tempo a mussala, não comportava mais o número de
pessoas que apareciam para as atividades tendo que fazer turnos diferentes. Dentro desta visão
observamos outras ações como: a ampliação da literatura sobre o Islã. Foram publicados cerca
de 10 livros sobre o Islã pela editora Qualitymark23 com o selo azam. A criação do jornal
informativo Nurul Islam24 (Luz do Islam) que é publicado trimestralmente com uma de
tiragem de 4 mil unidades. A SBMJ também esteve presente na Bienal do livro no Riocentro,
na Cúpula dos Povos na Rio + 20. Foram criadas atividades no espaço físico da mesquita
20
MONTENEGRO, Silvia, M. Dilemas identitários do Islam no Brasil – a comunidade muçulmana sunita do
Rio de Janeiro. 2000. 334 f. Tese (doutorado em Sociologia), IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2000; PINTO, Paulo
Gabriel Hilu da Rocha. “Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil” in:
revista Usp, nº 67, set/nov, São Paulo; USP, 2005, p.231; CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de
construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008; CHAGAS, Gisele Fonseca.
Identidade religiosa e fronteiras étnicas In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29(2): 152-176, 2009.
21
Entrevista concedida no dia 03 de Agosto de 2012 após a oração das 12 horas, na sede da SBMRJ.
22
A primeira turma teve somente 3 alunos e somente um foi até o final. Já obteve turma com 90 alunos.
23
Editora de um membro da SBMRJ
24
Destaca-se no exemplar de nº 07 uma declaração do Professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto de como
conheceu a SBMRJ e escreveu artigos e passou a enviar alunos de mestrado e doutorado das instituições que
leciona.
2010
como gincanas e um projeto inovador como ginástica para as mulheres. E desta forma a
SBMRJ tem divulgado o Islã e tornando-se conhecida da sociedade carioca.
Considerações finais
Com as notícias que temos hoje sobre o Islã, identificamos que esta forma religiosa é muito
mais que um movimento místico. Pois diferentemente do que presenciamos no mundo
ocidental, o islamismo não se limita a presença somente no nascimento e na morte do
indivíduo, mas controla todo o seu viver. Em sua gênese, nas atuais manifestações no Egito,
ou mesmo, com a chamada Primavera Árabe, presenciamos esta realidade.
A SBMRJ tem uma grande herança de seus antepassados, porém também demonstra uma
adaptação ao meio construindo um espaço “facilitador”, derrubando barreiras para que os
brasileiros e cariocas se aproximem. Sendo assim este espaço se torna uma unidade na
diversidade.
Referências
ARMISTRONG, Karen. O islã. Rio de Janeiro: objetiva, 2001.
ANTES, Peter. O Islã e a política. São Paulo: Paulinas, 2003.
25
Jornal Nurul Islam pag.4, Ano II n° 9, Abril/Junho de 2012.
26
Hoje a SBMRJ não possui Sheik. A liderança é exercida pela diretoria e a parte religiosa fica na
responsabilidade de líderes que cursaram em parte, teologia islâmica.
2011
CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades
Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de
Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008.
CAVALCANTI, Hassan, Evidências da presença islâmica no Brasil colonial. Jornal Nurul
Islam, nº 09 Rio de Janeiro, Abril a Junho de 2012.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
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2010.
JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina; trad. de Luiz João Baraúna. Petrópolis:
Vozes, 1992.
LIMA, Claudia. Heranças muçulmanas no nagô de Pernambuco: Construindo mitos
fundadores da religião de matriz africana no Brasil, Revista Brasileira de História das
Religiões, Ano I, nº 3, Jan.2009, p. 283-300.
O ALCORÃO. Tradução de Mansour Challita. Rio de Janeiro; Record [197-?]
PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Árabes no Rio de Janeiro: Uma identidade plural. Rio
de Janeiro: Cidade Viva, 2010.
__________. Islã: religião e civilização: uma abordagem antropológica. Aparecida: Editora
Santuário, 2010.
__________. Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no
Brasil, In. Revista USP, nº 67, São Paulo, CCSUSP, setembro-novembro 2005, p.228-250.
RAMOS, Arthur. Introdução à Antropologia Brasileira. 1º volume. 2ª Ed. Rio de Janeiro;
casa do Estudante do Brasil, 1951.
RIBEIRO, Lídice Meyer Pinto. Revista USP, São Paulo, n. 91, setembro/novembro 2011,
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SONN, Tamara. Uma breve história do islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2006.
Internet
A data da Hégira ou Hijra. Artigo disponível em:
<http://www.novomilenio.inf.br/porto/mapas/nmcalens.htm>. Acesso em 15 de outubro de
2012.
Pretos Novos. Disponível em < www.pretosnovos.com.br>. Acesso em 12 de fevereiro de
2013.
SBMRJ. Disponível em: <http://sbmrj.org.br/> Acesso em 17 de outubro de 2012.
2012
2013
A prática do dzochen e a tradição vajrayana no budismo tibetano
Igohr Brennand1, Maria Lucia Abaurre Gnerre2
Introdução
1
Graduando em Ciências das Religiões pela UFPB, membro do GP Padma CNPq/UFPB. Contato:
igohr_brennand@hotmail.com
2
Doutora em História pela UNICAMP e Pós-Doutora em Ciências das Religiões pela UFJF. Professora Adjunta
do Departamento de Ciências das Religiões/UFPB e vice-coordenadora do PPGCR/UFPB. Lider do GP Padma
CNPq/UFPB. Contato: marialucia.ufpb@gmail.com.
2014
1. Vajrayāna: a tradição do veículo de diamante
A história da chegada do budismo ao Tibete costuma ser narrada através de duas fases de
transmissão. A primeira fase, geralmente associada ao rei Songtsen Gampo (650 d.C.), foi
marcada pelos primeiros contatos do budismo com o território Tibetano, e também com a
religião nativa, denominada Bön. Esta primeira onda do budismo, segundo Peter Harvey
(Apud LAUMAKIS, 2010) foi marcada pela combinação do budismo Mahayana 3 (de bases
monásticas) trazido inicialmente pelo monge indiano Santaraksita, com as práticas místicas e
tântricas trazidas para o Tibete pelo famoso iogue Tibetano, Padmasambhava4.
A segunda fase de transmissão ocorreu entre meados do século X d.C. e o século XI, sendo
marcada pelo grande influxo de monges e sábios indianos. Nesta fase, a figura de Atisha
(982-1054) adquire grande importância, justamente por ser ele um mestre indiano de grande
erudição, que teria reintroduzido o budismo monástico no Tibete após o período anterior de
3
O termo Mahāyāna significa literalmente “grande (maha) veículo (yāna)”. Trata-se da forma de Budismo que
se desenvolve com o segundo giro da roda do Dharma.
4
Padmasambhava significa “aquele que nasceu do lótus”. Padmasambhava é a figura responsável pela
introdução das práticas tântricas budistas em solo Tibetano. A ele teria sido creditada a incrível façanha de
transformar os antigos demônios da tradição Bön, em sagrados guardiões do dharma. A figura de
Padmasambhava permanece rodeada de mistérios e lendas. A ele seria também creditada a fundação da mais
antiga escola do budismo Tibetano, Nyingma.
5
Iremos discorrer sobre os paralelos entre as práticas da antiga religião Bön e as práticas de caráter tântrico no
item Dzogchen: Encontro do Vajrayāna e a tradição Bön
2015
instabilidade política. Sua presença foi fundamental para o posterior desenvolvimento de
diversas escolas dentro do budismo Tibetano.6
Durante todo o processo de transmissão do dharma dentro do território Tibetano, ao longo dos
séculos, formaram-se diversas escolas de pensamento. Tais escolas divergem e convergem em
alguns aspectos essenciais da filosofia budista e de praticas tântricas. E algumas destas
escolas continuaram utilizando elementos da antiga religião Bön paralelamente às suas
práticas de caráter tântrico. As principais escolas em representatividade são Nyingma, Kagyu,
Sakya e Gelug. Cada escola possui seus próprios monastérios, e suas próprias abordagens do
dharma. Mais adiante iremos analisar uma abordagem prática e característica (porém, não
exclusiva) da escola Nyingma: o dzogchen. Trata-se de um sistema avançado de práticas que
é reconhecido como sendo um destes elementos herdados da tradição Bön pelo budismo
Tibetano. No âmbito deste artigo, nos interessa justamente observar como se dá a interação
entre estas duas tradições - Bön e Vajrayāna. Afinal, é desta interação que resultam
elementos práticos e filosóficos que dão ao Budismo sua face própria no Tibete.
A palavra Vajrayāna significa, literalmente, “veículo (yana) do diamante (vraja)”. Esta forma
de budismo deriva da associação do budismo Mahāyāna, com o tantra indiano, e
posteriormente com algumas práticas da religião Bön. O surgimento do Vajrayāna é visto por
mestres e estudiosos do budismo como sendo a terceira volta da roda do dharma. A primeira
volta da roda do dharma teria acontecido no momento em que o buda histórico, O buda
Sakyamuni, teria proferido seu primeiro sermão após a iluminação, dando origem às escolas
budistas mais antigas, das quais a Theravada é a principal representante. Posteriormente, por
volta do século IV d.C., através de estudiosos e filósofos do budismo e principalmente através
da filosofia contida no Prajnaparamitra Sutra, (atribuído a figura de Nagarjuna que teria
vivido no século II d.C), surge o chamado Budismo Mahāyāna , considerado como a segunda
volta da roda do dharma. Para os budistas que seguem as escolas Mahāyāna, que significa
“grande veículo”, as escolas mais primordiais do budismo são vistas como Hinayāna,
6
Outro mestre fundamental para o do Budismo Tibetano foi Milarepa, discípulo de Marpa, que viveu no século
X d. C. Sua trajetória é tão importante para o desenvolvimento do Dharma na região, que será analisada de forma
mais detalhada no item 2.3 do presente artigo.
2016
“pequeno veículo”. Foi o budismo Mahāyāna, também chamado de budismo do norte, a forma
que floresceu mais fortemente em solo Tibetano.
A partir do nascimento do Vajrayāna, diz-se ter tido início a terceira volta da roda do dharma.
O termo “tantra”, que está relacionado às palavras “fio” e “tecer”, refere-se aos textos que
contém instruções rituais e práticas em si. Uma forma especialmente clara e útil de pensar a
respeito dos textos e práticas tântricas é vê-los como diversas maneiras e métodos de
“tecer” uma nova visão, uma nova experiência ou uma nova compreensão da realidade.
Este termo está relacionado também com a noção de tessitura, e, de uma forma metafórica,
com o próprio conceito de “teia”, ou de uma totalidade em que todas as partes estão
conectadas. Como nos lembra Gavin Flood (2006), o termo deriva da raiz sânscrita tan (que
que conforme dissemos acima se relaciona ao conceito de fio ou tessitura) mas que também
pode ser traduzido como estender ou esticar. E, além disso, a raiz tan se conecta ao termo
Tanu, que significa “o corpo”. Destes dois conjuntos de sentidos, advém uma noção que
2017
norteia todas as práticas tântricas: a de “tecer” ou “conectar” através do corpo, um estado de
“absoluta ausência do eu” (FLOOD, 2006, p. 149).
Assim, o Tantra não se refere apenas à textos, ou conceito, mas é um sistema complexo que
envolve múltiplas partes, e inclui rituais esotéricos, práticas e acima de tudo, as revelações
feitas diretamente dos mestres aos discípulos. Porém, no âmbito deste artigo, é justamente
com a dimensão textual do tantra que poderemos trabalhar.
As coleções de textos tântricos, dentro do Vajrayāna, podem ser divididos em pelo menos três
categorias: Tantras Kriya (ação); Tantras Carya (desempenho); Tantras Yoga (união);
Tantras Anuttara Yoga (união incomparável).
Uma das ideias básicas do Tantra é proporcionar a seus praticantes, através de seus textos e
rituais, um caminho mais curto e eficaz para compreender e experimentar a natureza
fundamental da realidade. Dentro das práticas do Vajrayāna, os textos e rituais buscam
oferecer um método mais eficaz e direto para alcançar o domínio da mente, e, posteriormente,
realizar-se na natureza de buda, alcançando assim a libertação da natureza egoíca individual e
a realização do estado de “ausência de eu”, onde a experiência budica se torna efetiva.
Um clássico exemplo de tais concepções, dentro do Vajrayāna, pode ser ilustrado na figura do
famoso yogi Tibetano, Milarepa (1050-1135 d.C.). Discipulo de Marpa (1012-1097),
Milarepa é conhecido como o mais famoso e inspirador dos yogis Tibeteanos, e a sua própria
história pessoal serve como referencia para ilustrar a importância e, até mesmo, os poderes
que podem advir através das práticas tântricas. Milarepa, nascido em 1040, teria ficado órfão
2018
de pai ainda criança, e as terras de sua família teriam sido expropriadas por um tio, que deixou
sua mãe na pobreza total. Assim que atinge a maturidade, ele é incentivado pela mãe a
aprender a arte da magia com um lama Nyingma, com o objetivo de se vingar do tio e da
família. Depois de estudar com afinco, Milarepa utilizou seus feitiços para matar 35 pessoas
da sua família, provocando o deslizamento de uma casa onde estavam reunidos para um
casamento.
Algum tempo após os acontecimentos, Milarepa se veria tomado pela angústia da memória de
tais atos, e teria, então, buscado o budismo como uma via para seu crescimento espiritual, e
também para tentar purificar-se do karma negativo que ele havia sido acumulado durante o
período em que teria usado magias e feitiços para fazer mal a outros.
Ele encontra então, em Marpa, a figura do guru que seria responsável por passar-lhe tais
ensinamentos. Após uma serie de provações físicas, Milarepa começou, finalmente, a receber
os ensinamentos espirituais de seu mestre. Durante um período de longos anos (cerca de 13
anos), Milarepa se dedicou, quase que exclusivamente, à prática da meditação e do tantra,
tendo assim, segundo as lendas Tibetanas, atingido a iluminação e a libertação em apenas uma
só vida (PEACOCK, 2009).
O termo tantra pode ser compreendido como uma manifestação filosófica, cultural, ou até
mesmo um estilo de vida, sendo fortemente enraizado na cultura indiana, tanto dentro das
diferentes formas de hinduísmo, quanto nas diferentes escolas do budismo mahayana. Os
textos e práticas tântricas influenciaram fortemente as tradições não-tântricas, embora muitos
praticantes destas tradições pensem, ou defendam o contrário.
Segundo autores como Feuerstein (1998), seria mais fácil realizar um estudo do tantra tendo
como base as tradições do Vajrayāna, devido ao fato de que seus textos e ilustrações práticas
foram compilados de forma sistemática pelos monges. No entanto, em oposição ao Vajrayāna,
o tantra dentro do hinduísmo teria sido transmitido de uma maneira mais direta, oral, sendo as
fontes escritas mais escassas.
2019
Por outro lado, podemos reconhecer muitos pontos em comum entre estas duas tradições
tântricas, como por exemplo: o estudo dos corpos sutis e de sua energia vital (Prāṇ ā), que se
manifesta nos cakra (“roda” em sânscrito), na poderosa kuṇ ḍ alinī-Śakti (o “poder da
serpente” que repousa no cakra básico), nos Nādī (canais) e bindus ( pontos de concentração).
Todos estes termos são referenciados no elaborado mapeamento dos corpos sutis
desenvolvido dentro do tantrismo (GNERRE, 2011). A geografia dos corpos sutis e de seus
canais de energia é algo absolutamente fundamental dentro desta tradição que se desenvolve
tanto na Índia quanto no Tibete. Afinal, é justamente o conhecimento da geografia destes
canais de circulação da energia (Nādī) e de seus “centros de distribuição” nos cakra, que
permite a ascensão da kundalini shakti através do canal central – o suśumṇ a-nādī. Este é o
objetivo supremo dos yogues, seja na Índia ou no Tibete: o despertar da energia que permite a
própria dissolução do ego e da mente ordinária do praticante, e que sobe ao longo da coluna
abrindo caminho para a própria experiência búdica.
Figura 1: representação artística Tibeteana dos cackras com seus respectivos elementos e da kundalini
enrodilhada na base da coluna7
7
Fonte:
http://store.shakyahandicraft.com/images/LP054%20%20Samadhi%20Chakra%20Thangka%20%203.JPG
2020
Outros importantes pontos de intersecção entre as tradições tântricas na Índia e Tibete são as
práticas de visualização, que incluem visualizações de deidades e visualizações de gurus e
meditações em Yantras (“instrumentos” de meditação, geralmente elaborados na forma de
desenhos geométricos concêntricos) e Mandalas (“circulo” em sânscrito). Estas últimas
representam um dos elementos tântricos mais fortes e característicos do tantrismo que se
desenvolve no Tibete:
No Budismo Tibetano, tais mandalas podem ter representações pictóricas complexas. Mas,
seja simples ou complicado, o mandala representa sempre um espaço consagrado e é,
supostamente o corpo da divindade (ishta-devata), escolhida pelo praticante. O mandala é
usado para adorar essa divindade e, através de complexas práticas de visualização, tornar-se
um com ela (FEUERSTEIN, 2005, p. 145).
Desta forma, o mandala serve para o praticante como um instrumento de unidade com a
divindade ali representada. E, nestas representações de deidades pode-se notar também outra
importante característica do trantrismo em geral que é a forte presença do aspecto sagrado
feminino – a shakti, que no Tibete se manifesta nas diversas representações de Tara. Além
disso, temos também no Tibete importantes práticas de entoação de mantras, sons sagrados
que no contexto meditativo funcionam também como ferramentas para a transcendência. São
geralmente entoados em associação com os mudrás – gestos com as mãos que “selam a
energia do corpo e a direcionam” (GNERRE, 2011). Assim, podemos dizer que a “leitura” de
todo este conjunto de elementos tântricos que é feita no contexto da rica cultura que já
existente no Tibete antes da chegada do budismo, será constituinte da própria identidade que o
Budismo Vajrayana adquire naquela região.
(Fig. 2: mandala Tibetana com imagem da Tara branca ao centro e mantras inscritos) 8
8
Fonte: http://www.exoticindia.com/buddha/white_tara_mandala_with_syllable_mantra_tq05.jpg
2021
2. Dzogchen: Encontro do Vajrayāna com a tradição Bom
Bön é a tradição religiosa pré budista nativa do Tibete, ainda praticada nos dias atuais por
Tibetanos e habitantes do norte da Índia. A tradição mitológica Bön conta que a religião
nativa Tibeteana teria sido fundada por Tonpa Shenrab Miwoche. Segundo Tenzin Wangyal
Rinpoche (2011, pg. 47):
De acordo com a literatura mitológica Bön, houve três ciclos de disseminação da doutrina
Bön, em três dimensões: a dimensão superior dos deuses, ou devas (lha), a dimensão média
dos seres humanos (mi) e a dimensão inferior dos nagas (klu).
Tenpa Shenrab seria o disseminador da doutrina Bön no mundo dos homens. Nasceu como
um príncipe, filho do rei Gyal Tokar e da rainha Zanga Ringum em uma terra chamada Tagzig
Olmo Lung Ring, aonde os estudiosos acreditam ser uma região nos arredores do Monte
Kailash. Quando ainda era jovem, casou-se e teve filhos, porém, por volta dos trinta anos de
idade, decidiu abandonar a vida de príncipe e dedicou-se à prática de austeridades e passou a
ensinar a doutrina Bön. Segundo os relatos míticos, Tenpa Shenrab Miwoche teria ido apenas
uma única vez ao Tibete, aonde encontrou um povo que praticava sacrifícios rituais. Tenpa
Shenrab então disseminou a doutrina Bön, ao passo que pacificou os demônios locais e deu
instruções de como proceder na vida diária de acordo com os preceitos da doutrina Bön.
A história do Bön se desenvolve linearmente até a chegada do budismo ao Tibete, até que o
primeiro monastério budista é fundado no reinado de Trisong Detsen. Justamente essa
disseminação inicial do budismo iria instigar uma grande repressão ao Bön. No entanto,
alguns mestres da época, embora tivessem oficialmente abraçado o budismo como religião
oficial, continuaram a praticar o Bön secretamente, afim de poder transmitir, preservar e
perpetuar os seus ensinamentos. Para serem salvos da repressão, e de uma possível destruição,
muitos textos da doutrina Bön foram escondidos com o propósito de serem descobertos
futuramente, em épocas mais propícias, como termas.
Durante os séculos IX e X, o Bön sofreu por muitas ondas de repressão por parte das
autoridades estatais, porém, os seguidores da doutrina conseguiram preservar as escrituras até
o século XI, época de um forte ressurgimento do Bön. Este ressurgimento foi em grande parte
2022
provocado pela redescoberta de diversos textos por Shenchen Luga, que acredita-se ter sido
descendente de Tenpa Shenrab Miwoche. Shenchen Luga teve muitos seguidores, os quais
foram responsáveis pela fundação dos primeiros monastérios Bön no Tibete. Posteriormente,
em 1405, foi fundado pelo mestre Bön, Nyamed Shenrab Gyaltsen , o monastério de Menri. O
monastério de Yundgrung Ling e o de Menri tornaram-se os monastérios Bön mais
importantes (WANGYAL RINPOCHE, 2011).
O dzogchen é considerado pelos praticantes Bön como a tradição espiritual mais elevada da
sua doutrina. Nos relata Tenzin Wangyal Rinpoche (2011, pg. 55):
De acordo com o Bön, as cinco paixões – ignorância, apego, raiva, inveja e orgulho são as
principais causas de todos os problemas desta vida e da transmigração no samsara. Eles
também são chamados os cinco venenos, porque matam as pessoas. Estas são as paixões
que devemos superar através da prática. De acordo com a visão do Sutra, leva muitas
existências para purificar as paixões e alcançar a iluminação, ao passo que de acordo com a
visão tântrica e a visão Dzogchen, o praticante pode obter a iluminação nesta própria
existência.
Notamos aqui uma forte semelhança com os preceitos budistas, sobretudo com relação à
forma como a libertação do ciclo samsárico é visto pelo caminho do tantra, sendo possível,
através da prática do tantra e a visão do Dzogchen, alcançar a iluminação em uma existência.
Muito embora tenha havido praticantes do Dzogchen nas mais diversas escolas do budismo
Tibetano, como Kagyu, Sakya e Gelug, as linhas de ensinamentos mais importantes se
encontram no Bön e na escola Nyingma (a escola budista mais antiga do budismo Tibetano).
Ambas as tradições dividem os seus ensinamentos em Nove Veículos, caracterizados como
caminhos e práticas que conduzem à iluminação. Nas duas tradições o Dzogchen é
considerado como o mais elevado dos veículos.
O Dzogchen é descrito como sendo composto de três aspectos: base, caminho e fruto. Base
pois o fundamento do Dzogchen reside no estado primordial do indivíduo, caminho porque o
Dzogchen é considerado o caminho supremo pelo qual se alcança a realização, e fruto porque
ele é a consumação da iluminação. Segundo a tradição, através do Dzogchen, se faz possível a
2023
libertação do ciclo de transmigração samsárico em apenas uma vida. Conforme nos expressa
Tenzin Wangyal Rinpoche (2011, pg. 58):
De acordo com o ensinamento Dzogchen, a essência (ngobo) da base de tudo (kun gzhi) é
vazia (ston pa nyid) e primordialmente pura (ka dag); a natureza (rang bzhin) da base é
claridade (gsal ba) que é espontaneamente perfeita (lhun sgrub); a união inseparável (dbyer
med) da essência primordialmente pura e da natureza espontaneamente perfeita é o fluxo
não-obstruido (ma ‘gag pa) da energia e da compaixão (thugs rje). Na mente individual,
esta base é o estado natural (gzhi) e é a fonte do samsara para a mente deludida (ma rig pa)
e do nirvana para a mente na qual o conhecimento (rig pa) está desperto.
Dentro da tradição Bön, o Dzogchen é tido como um ensinamento muito elevado e poderoso,
e, devido à sua natureza, nos tempos passados poucos eram os mestres que conheciam e
praticavam o Dzogchen, pois eram mantidos de forma secreta e poucos mestres se
habilitavam a passar tais ensinamentos a seus estudantes. Atualmente, esta transmissão se dá
de maneira mais frequente, mais livre e aberta, pois os mestres Bön têm hoje uma visão de
que é preciso que estes ensinamentos sejam transmitidos, para que não se corra o risco de
perde-los devido à diáspora Tibetana e outro fatores.
Dentro da tradição Bonpo, os ensinamentos do dzogchen são precedidos por uma serie de
práticas preliminares, chamadas de ngondro e powa que tem por função purificar a mente do
aluno, e poder prepara-lo para o teor altamente desenvolvido dos ensinamentos. Estas práticas
preliminares se dividem em nove, e são classificadas em: gerar compaixão por todos os seres
sencientes; tomar refúgio; oferecer a mandala; meditar sobre a impermanência; confessar as
transgressões; fazer prostrações; guru yoga: fundir a mente com a mente iluminada do guru
visualizado à sua frente; oferecer preces; receber bênçãos. Estas práticas estão descritas no
Nyams rgyud rgyal ba’i phyag khrid.
9
Uma boa definição de Rigpa nos é dada pelo mestre Sogyal Rinpoche: “Rigpa é uma palavra Tibetana, o que
em geral significa 'inteligência' ou 'consciência'. No Dzogchen, no entanto, os mais altos ensinamentos da
tradição budista do Tibetee, rigpa tem uma conotação mais profunda, ‘a natureza mais profunda da mente’. Todo
o ensinamento de Buda é direcionado a perceber isso, nossa natureza última, o estado de onisciência ou
iluminação - uma verdade tão universal, tão primordial que vai além de todos os limites, e além até mesmo a
própria religião” (RINPOCHE, 2013). Tradução nossa à partir do texto original em inglês disponível em
http://www.rigpa.org/index.php/en/about-rigpa
2024
O dzogchen se divide em três correntes dentro da tradição Bön, conhecidas como Ati,
dzogchen e Zhang Zhung Nyan Gyud. As duas primeiras são tradições baseadas em termas, ou
seja, em textos que foram escondidos para serem protegidos, e foram posteriormente
redescobertos, estudados e difundidos. A tradição do Zhang Zhung Gyan Nyud é uma tradição
oral, que se baseia na transmissão contínua e direta por uma linha ininterrupta de mestres.
Apesar destas três tradições terem as suas particularidades quanto à própria prática, a essência
e a finalidade se configura como sendo a mesma, a introdução ao estado natural de dzogchen
(WANGYAL RINPOCHE, 2011).
2025
dissolve their mortal bodies at death without leaving behind any remains, which is a sign
that they have attained the fully enlightened state, Buddhahood .10
A escola Nyingma, assim como a tradição Bön divide os seus ensinamentos do dzogchen em
nove veículos. Estes nove estágios, estão por sua vez, divididos em três diferentes grupos. Os
nove veículos são conhecidos como: Shravakayana; Pratyekabuddhayana; Bodisattvayana;
Kriya Tantra; Charya Tantra; Yoga Tantra; Maha Yoga; Anu Yoga; Ati Yoga (Dzogchen).
Cada veículo possui sua particularidade, e, dentro da tradição do dzogchen, começa-se a
prática através do Shravakayana, tendo como objetivo chegar ao ultimo estágio, o estágio do
Ati Yoga.
Podemos evidenciar um dos aspectos mais peculiares do dzogchen através da descrição de S.S
o Dalai Lama (2006, pg. 168):
Agora poderíamos nos perguntar: se essas várias abordagens das diferentes tradições vão
enfim chegar todas na mesma experiência ou no mesmo ponto, porque se diz que o
Dzogpachenpo ou Atiyoga é o pináculo dos novo yanas ? A característica singular dessa
abordagem, conforme já mencionei, é que no sistema de meditação do Dzogchen não se
emprega os níveis grosseiros da mente, tais como pensamentos discursivos e conceituais.
Em vez disso, desde o começo, faz-se a experiência da clara luz manifesta, quase como se
fosse algo tangível – uma experiência direta, desnuda, de clara luz.
A introdução ao estado de clara luz (rigpa) é um aspecto essencial da prática dzogchen, daí a
primordial importância da transmissão dos ensinamentos, e consequente introdução ao estado
de rigpa por um mestre qualificado e realizado, capaz de induzir diretamente a mente do
discípulo ao estado primordial. A comunicação dos ensinamentos através do mestre difere
amplamente daquela realizada através de livros. Após haver ocorrido a introdução ao estado
de base da mente, o estado da clara luz extremamente sutil e absoluta, faz-se necessário a
10
“Nyingmapas são os menos interessados em estruturas organizacionais, em formalidades hierárquicas e
dialética teóricas. Eles estão mais interessados em dedicar suas vidas para serem simples e naturais, e enfatizam
a aplicação para suas próprias mentes de tudo o que eles têm estudado. O ensinamento mais simples, mas mais
alto e mais profundo praticado no Nyingma é a grande meditação da Perfeição, conhecida em tibetano como
Dzog chen, uma meditação para trazer a mente para a “facilidade final”, o estado natural e sem ilusões. É o meio
mais rápido e mais extraordinária para dissolver os fenômenos da fabricação mental sobre a natureza absoluta, o
estado de Buda. Grandes praticantes da Perfeição são notáveis por sua capacidade de alcançar este resultado: eles
são treinados através de meios naturais para alcançar o último estado natural um curto espaço de tempo. Aqueles
que são treinados e aperfeiçoados nesta prática, além de ser normal, simples e fácil de ser realizada, possuem o
do da clarividência, poderes miraculosos, e sabedoria que os leva a suprema bem aventurasse a e vacuidade.
Muitos dos que atingiram a realização desta prática dissolveram seus corpos mortais com a morte sem deixar
para trás qualquer vestígio, o que é um sinal de que atingiram o estado totalmente iluminado, o estado de Buda”
(TULKU THONDUP, 1986, pg. 41-Trad. nossa).
2026
continuidade da prática, tendo como objetivo manter este estado de rigpa nos processos de
pós meditação.
Considerações finais
Vimos através de uma perspectiva histórica, como o budismo chega ao Tibete, e se depara
com uma tradição espiritual bem estabelecida. Durante três ou quatro séculos o budismo passa
por diferentes fases de transmissão, e a peculiaridade de cada uma destas fases influencia
profundamente a maneira como o budismo viria a se desenvolver nas mais diversas escolas do
budismo Tibetano. Após analisar este percurso feito pelo dharma através das terras do Tibete,
notamos uma profunda influencia das práticas da religião Bön no progresso da doutrina
budista. Diferentes aspectos podem ser ressaltados como de fundamental importância para as
práticas do budismo Tibetano. O dzogchen é um deles. Com a assimilação do tantra indiano
pelo budismo, temos então o nascimento do Vajrayāna, o veículo diamante, que, devido à
diáspora do povo Tibetano decorrente das invasões chinesas, se faz particularmente presente
no mundo ocidental moderno.
Muitos aspectos entre a religião Bön e o budismo podem ser relacionados. Este fator suscita
importantes questões acerca da doutrina que se desenvolveu, durante muitos séculos,
paralelamente ao budismo. Segundo os relatos a que tivemos acesso da tradição Bön, muitos
preceitos ditos como budistas já se encontravam na doutrina Bön há vários séculos. Podemos,
até mesmo, perceber a figura do fundador do Bön, Tempa Shenrab Miwoche, como nos relata
os mitos fundadores, como sendo também um buda histórico, que teria vivido onde hoje se
identifica como Tibete ocidental, há cerca de dezessete mil anos. As semelhanças da narrativa
mítica do buda histórico, Siddharta Gautama, e aquela de Tenpa Shenrab Miwoche, se
mostram de maneira evidente, e levantam algumas questões. A principal questão que nos
colocamos é: Teria o Bön, através de um forte sincretismo religioso, incorporado diversos
elementos do budismo, ou, se tais elementos já estavam presentes na tradição religiosa
autóctone do Tibete antes mesmo da chegada, e consequente contato com as doutrinas
budistas?
Este é um tema que incita pesquisas posteriores, porém que permanecerá em aberto neste
artigo, onde objetivo central era justamente estabelecer estes paralelos e congruências entre as
práticas da tradição Bön e do Budismo tântrico do Tibete.
2027
Referências
DALAI LAMA, SS. Dzogchen: A essência do coração da grande perfeição. São Paulo: Gaia,
2006.
FLOOD, Gavin. The Tantric Body. The Secret Tradition of Hindu Religion. New York: I.B.
Tauris & Co. Ltd., 2006
GNERRE (c), M. L. A. Religiões Orientais: uma introdução. João Pessoa: Ed. Universitária
UFPB, 2011.
LAUMAKIS, Stephen J. Uma introdução à filosofia budista. São Paulo: Madras, 2010.
2028
2029
Diversidade étnica e dificuldades de integração no Catolicismo
contemporâneo japonês
Antonio Genivaldo C. de Oliveira1
Introdução
Inicialmente, trabalharemos com dados estatísticos para mostrar como em alguns lugares o
número de fiéis estrangeiros sobre passa o número de fiéis japoneses como no o caso da
Paróquia de Toyohashi. Posteriormente, buscaremos mostrar a situação conflituosa entre as
diretrizes pastorais da Igreja e a com a realidade destas comunidades tão diversas destacando
os sinais de resistências e de intolerâncias.
2030
Figura 1. Entradas anuais de população estrangeira - países que mais recebem. Fonte: OECD (Organization for Economic, Co-operation and
Development).
O Japão oficialmente não permitia a entrada de mão-de-obra não qualificada. Porém em vista
das demandas foram criadas várias possibilidades de entrada no país pelas chamadas "side-
doors" que permitiram um grande número de imigrantes entrar no país com vistos de
"entertainers"2, "estagiários" e "estudantes".
governo japonês, que adere ao mito do Japão ser uma nação etnicamente homogênea e que
não é e nunca foi um país de imigração, [...] provavelmente fez o mínimo para integrar
socialmente seus imigrantes residentes e promover seus direitos de cidadania (TSUDA,
2006, p. 13).
2
Pela atuação destes profissionais, em português será mais bem traduzido por "acompanhantes". Em muitos
casos este tipo de visto funciona como fachada para a prostituição e tem gerado forte pressão internacional como
parte do combate ao tráfico de mulheres.
2031
Ele prossegue dizendo que as tentativas de ser mais receptivos aos estrangeiros no Japão, são
mais "para evitar prejudicar a reputação internacional do Japão" (TSUDA, 2006, p. 28). Outro
autor afirma que "desde a Segunda Guerra Mundial, a postura geral do Japão em relação aos
residentes estrangeiros tem sido de evitá-los e se possível, manter uma política de não-
integração quando a exclusão é impossível" (GWROWITZ, 2006, p. 154).
Uma vez que este paper tem como foco a imigração no contexto católico nos concentraremos
nos grupos de imigrantes ligados diretamente com a Igreja Católica no Japão. A maioria
destes imigrantes é formada pelos Nikkeis brasileiros, porém há ainda os Nikkeis vindos do
Peru, Bolívia, Argentina entre outros países de maioria católica. No entanto, a aparente
proximidade linguística e cultural não é suficiente para gerar a desejada integração destes
grupos. Uma paróquia que tenha missa em espanhol, por exemplo, não será suficiente para
reunir os fiéis das proximidades que falam o mesmo idioma. Com as devidas exceções, o
caso, é mais de comunidades que se reúnem por laços nacionais em diferentes paróquias.
2032
O outro grupo de imigrantes que impactou a Igreja Católica no Japão foi o de filipinos3,
também eles vindos de país com maioria católica. O grupo é composto majoritariamente por
mulheres, muitas das quais entraram no Japão como "entertainers". Também são muitos os
que entram no Japão com visto de "estagiário" para atender a demanda das empresas de
pequeno é médio porte recebendo apenas "mesadas" (de um quarto até a metade do salário
médio de um trabalhador japonês). Outra parte entra no Japão com visto de estudante, aos
quais é permitido fazer alguns "bicos".
Na comunidade católica filipina, a diversidade vai além dos tipos de vistos. No geral este
grupo se reúne nas missas em inglês e em tagalo, porém dificilmente podemos dizer que se
trata da mesma comunidade filipina. A diversidade étnica e linguística interna das
comunidades de imigrantes acaba fragmentando ainda mais a diversidade católica no Japão.
Desde o começo desta nova onda de imigração no Japão na década de 1980, as igrejas foram
afetadas e tentaram responder. A solidariedade inicial foi sendo suplantada aos poucos pelas
dificuldades de acomodação das várias comunidades étnicas que iam se agregando nas
paróquias já existentes. Embora este processo já leve mais de três décadas há várias
dificuldades em considerar estes fiéis como "membros" de fato da comunidade católica no
Japão.
2033
japoneses todos tinham que se registrar e anualmente renovar o certificado em um templo
budista. Tal sistema visava assegurar a não proliferação do Cristianismo considerado uma
ameaça aos planos de unificação política do país.
Os fiéis imigrantes, em sua quase totalidade desconhecem e não estão registrados neste
sistema ficando fora do número oficial de fiéis publicado todos os anos pela Igreja Católica.
Em razão disso, os fiéis imigrantes são vistos geralmente como "irregulares", considerados
apenas como fieis "visitantes" e não como "membros" da igreja mesmo que sejam atuantes
nas suas comunidades por muitos anos. Esta ambiguidade no entendimento de pertença à
Igreja é algo difícil de ser resolvido.
Em 2005, a Comissão Católica do Japão para Migrantes, Refugiados e Itinerantes fez uma
estimativa do número total de fiéis católicos no Japão combinando o número de estrangeiros
residentes no Japão de acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça e dos registros nos
governos locais (Gaikokujin Toroku), e a porcentagem de Católicos no país de origem dos
migrantes baseado nos números do Vaticano (Cf. figura 3).
2034
Hiroshima 21.702 18.106 39.808 55% 45%
Figura 3. Fonte: 日本の教会。共に生きる教会。信徒数統計 [A Igreja do Japão. Uma Igreja que convive. Estimativas do número de
fiéis].
Estas estimativas sofreram várias refutações. Alguns bispos católicos alegaram o fato de que
muitos dos que se declaram católicos nas estatísticas oficiais com frequência são apenas
católicos "nominais", portanto, o número de fiéis estrangeiros não poderia ser tão alto.
Cremos que para além das questões técnicas, que a maior dificuldade está em admitir a
grandeza do desafio que estas estimativas representariam.
O fato é que muitos imigrantes foram se juntando nas paróquias mais receptivas, não
necessariamente as mais próximas de suas residências. A motivação inicial pode não ter sido
necessariamente religiosa. Muitos viram na Igreja, no mínimo um espaço onde pudessem falar
sua própria língua, compartilhar ideias, fazer amigos e até achar contatos para trabalho.
2035
Paróquias com missas em língua estrangeira de acordo com a Diocese4
Diocese Línguas
Sapporo Inglês 3
4
O número de missas é maior já que muitos destes lugares têm mais de uma missa por língua todos os meses.
2036
Para as comunidades brasileiras se imaginou que padres de descendência japonesa, poderiam
responder melhor as necessidades pastorais dos fiéis. Tanto os padres como os fiéis tentaram
transplantar organizações pastorais do Brasil que passavam a funcionar no Japão como
"filiais" do Brasil. Os atritos não tardaram a surgir.
Os seguintes carimbos podem ilustrar o pensamento comum do clero e dos fiéis. Inicialmente
tentou se implantar a PANIB (Pastoral Nipo-Brasileira) como uma continuação da
organização criada no Brasil para o cuidado pastoral dos japoneses e seus descendentes. O
mesmo aconteceu com a Renovação Carismática Católica (RCC) levada pelos leigos e,
incialmente tinha uma organização no Japão "afiliada e orientada" pela coordenação do
movimento no Brasil. Em ambos os casos, esta filiação no Brasil acabou se chocando com as
diretrizes e a organização da Igreja no Japão, levando a contestação destas iniciativas.
Figura 5
2037
No Japão, o sociólogo Kyomi Morioka no livro Religion in Changing Japanese Society
apresenta um instrumental que pode ser aplicado para a obtenção de dados mais próximos da
realidade destas comunidades. Para ele, um estudo sociológico deste tipo deve lidar com o
crescimento da igreja em termos humanos utilizando-se de indicadores externos como a soma
das ofertas, os tipos e frequência de encontros, o número de crianças na catequese, o número
de membros comungantes, os números das mudanças de fiéis que chegam ou saem da
paróquia, e especialmente os números de batismos e funerais (Cf. MORIOKA, p. 1975, p.
138).
1992 10 05 01 01**
1993 03 09 03 07*
1994 10 01 12 04 03*
1995 06 01 09 02 01
1996 07 01 13
1997 12 03 32 08 07 1(Chile)
1998 13 06 17 02 04
1999 05 06 61 02 03
2038
2000 14 42 02 05 1 (Coreano)
2001 06 02 14 04 05
2002 02 01 23 01 01
2003 09 08 15 04 08
2005 03 25 02 04 3 (Coréia)
2006 02 02 49 09
2008 05 06 55 07 17 2 (Bolívia)
2009 08 08 38 04 12
Figura 6
* Cidadania japonesa, mas com pais de diferentes nacionalidades. Alguns têm dupla nacionalidade.
** País desconhecido.
2039
Figura 7
Figura 8
2040
Estes dados mostram claramente como o desafio de uma paróquia como esta vai além da
diversidade étnica e linguística. Além das diferenças culturais, o tamanho das comunidades de
imigrantes acaba por se sobrepor ou sobrecarregar a comunidade local japonesa que se vê
forçada a reencontrar o seu espaço em uma paróquia que antes era exclusivamente sua. Deste
modo, muitos fiéis japoneses passaram a perceber a presença dos imigrantes como um
"problema".
Esta mudança tem uma séria implicação no contexto sócio-religioso do Japão, que ao nosso
ver tem passado despercebida. Como um todo o "Cristianismo é frequentemente considerado
como uma religião 'estrangeira' ou 'Ocidental'" (MULLINS, 1998, p. 9). Esta visão é agora
agravada pela presença de um grande número de fiéis estrangeiros que está modificando a
face católica do Cristianismo. Além de ser vista como uma "religião estrangeira", o novo
contexto migratório faz com que esta pode ser vista também como uma "religião de
estrangeiros".
Sociologicamente, cremos que é possível dizer que a percepção dos imigrantes como maioria
na Igreja, pode gerar um sentimento de ameaça à identidade dos fiéis japoneses. Certamente,
este é mais um exemplo em que a religião se torna o centro do estresse para a toda uma
sociedade (Cf. GEERTZ, 1973, p. 87-125). Isto pode apontado a partir de alguns sinais de
resistência ou até mesmo de intolerância verificados em algumas comunidades.
Outro aspecto desta resistência pode ser notado na diferença de acolhida nas diferentes
paróquias. Nakagawa especifica que o fato de uma paróquia ser mais receptiva aos imigrantes
2041
não pode ser usado para generalizar toda a Igreja Católica no Japão. E, mais especificamente
diz "que a realidade multicultural na igreja não foi desejada pela Igreja Católica, ao invés
disso foi a presença extraordinária de estrangeiros, o número crescente de missas em línguas
estrangeiras e vários outros desafios que empurraram a Igreja Japonesa para algum tipo de
revitalização" (NAKAGAWA, 2003, p. 138).
Para os imigrantes que decidem permanecer na Igreja Católica, canais de resistência precisam
ser encontrados para garantir a distinção de cada grupo. Porém, é fato de que muitos não
encontrando este espaço nas paróquias católicas migram para outras igrejas. No Japão, muitos
dos que se declaravam católicos preferem ir à outra igreja cristã que mantém o caráter étnico
da comunidade.
Outra forma de resistência pode ser notada também na retomada do contato com a religião de
seus ancestrais. Este contato traz de volta alguns elementos budistas fazendo com que muitos
imigrantes passem a viver a experiência de uma identidade religiosa "dupla" ou em alguns
casos "tripla" muito comum no contexto sócio-religioso japonês.
2042
A abordagem multiculturalista da Igreja Católica
A Igreja Católica no Japão vem tentando lidar de modo oficial com estas questões por meio
da "Comissão Católica do Japão para Migrantes, Refugiados e Itinerantes". Na busca de
norteadores esta comissão incorporou o multiculturalismo como base de suas ações pastorais.
Baseado neste entendimento, um dos bispos que coordenou a comissão por muitos anos
defendeu várias vezes que a Igreja Católica pudesse se tornar um modelo de integração para
toda a sociedade. Segundo ele, "esta realidade multicultural nos chama como igreja a interagir
com estes Católicos, para encontrar novas maneiras de integração uns com os outros. Dá-nos
a chance de liderar toda a sociedade do Japão" (Seminário Let's Walk Together, Hamamatsu,
11 de setembro de 2004). Em outro encontro defendeu como papel da Igreja "tornar-se um
modelo pioneiro de integração e convívio mútuo"
(Tani日本の移住者の受け入れはこれからどうなるのか?Comissão de Agentes de Pastoral de
2043
oficial do termo, o Japão introduziu e adotou o multiculturalismo como a espinha dorsal
ideológica da política pública japonesa, da diversidade e das trocas interculturais. Porém, a
introdução do multiculturalismo no Japão não tem sido tranquila e "pode ser vista mais como
algo imposto ao invés de algo que ocorreu através de um processo de discussão e adoção.
Como resultado disso, as políticas de multiculturalismo toma uma forma diferente do que em
outras partes do mundo" (GRABURN, 2008, p. 23).
A pesquisa conduzida por Hiroshi Komai mostra que há três locais críticos que desafiam o
Japão a enfrentar o multiculturalismo: as grandes companhias industriais, as universidades e
as igrejas, mais especificamente a Igreja Católica. Para outro pesquisador "aqui também surge
um desafio crucial surge: estas comunidades conseguirão incorporar tal diversidade ou ao
invés disso irão ignorá-la ou removê-la?" (LIE, 2001, p. 23-24).
2044
Felizmente, a Igreja Católica tem sido vista sob uma luz positiva no Japão embora tenha
certamente fracassado em se tornar o pretendido modelo multicultural que liderasse toda a
sociedade japonesa.
Considerações finais
O novo contexto de imigração tem trazido novos desafios que mostram a dificuldade dos
vários segmentos da sociedade em lidar com a questão, entre eles a Igreja Católica.
Acreditamos que ao escolher e promover uma Igreja "multicultural", a Igreja no Japão
reproduziu o mesmo cenário que tem afligido a sociedade japonesa, ao invés de tornar-se o
desejado modelo de integração social. Além disso, parece ter havido certo esquecimento da
sua "catolicidade" no sentido mais original.
com a conotação pejorativa que o termo pode carregar. Porém, o desafio continua em
diferentes paróquias já que as mudanças em um nível racional não são imediatamente
assimiladas no nível prático.
Finalmente, o contexto apresentado nos coloca diante do desafio das várias religiões e suas
diferentes expressões que são confrontadas e renegociadas ao terem que dividir o mesmo
espaço. Quando vivida em contextos e lugares diferentes, a diversidade gerada por uma
2045
mesma religião é vista em seu aspecto positivo, como aponta Lindbeck: "uma e mesma
religião praticada em Constantinopla e nas catacumbas, as afirmações feitas e os sentimentos
vividos podem ser fantasticamente diferentes" (Cf. LINDBECK, 1984, p. 84). Contudo, no
novo contexto de imigração esta diversidade se revela bastante problemática e até mesmo
conflituosa. Esta situação tem se verificado com o Islã na Europa, com o Judaísmo nos
Estados Unidos e como demonstrado também está se processando em muitas paróquias
católicas no Japão atualmente, gerando atitudes de resistência e de (in)tolerâncias que
precisam ser melhor entendidas.
Referências
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. New York: Basic Books, 1973.
GRABUM, Nelson. Multiculturalism in the New Japan: Crossing the Boundaries Within.
Asian Antropologies. Volume 6. New York: Berghahn Books, 2008.
GWROWITZ, Amy. Looking Outward: International Legal Norms and Foreign Rights in
Japan. In. Tsuda, Takeyuki. Local citizenship in recent countries of immigration. Lanham:
Lexigton Books, 2006, p. 153-170.
LINDBECK, George A. The nature of doctrine. Religion and theology in a postliberal age.
Lousville/London: Westminster John Knox Press, 1984.
OLIVEIRA, A.G. C.. Contemporary migration in Japan and the Catholic Church.
Dissertação de Mestrado em Pensamento Cristão. Nanzan University, Nagoya, 2011.
2046
PHILIPS, Anne. Multiculturalism without culture. Princeton: Princeton University Press,
2007.
TANI, Daiji. 谷 大二. 移住者と共に生きる教会 [Uma Igreja que convive com os Imigrantes].
Tokyo, 女子パウロ会, 2008.
Internet
2047
2048
Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da
tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng
Matheus Oliva da Costa1
Em uma direção diferente do grupo estudado por Bizerril (2007), há no Brasil a linhagem
taoísta do mestre e sacerdote Wu Jyh Cherng (1958-2004), fundador da Sociedade Taoísta do
Brasil em 1990. Observando o site dessa instituição e em obras deste mestre descobrimos que,
o mestre Cherng da Sociedade Taoísta do Brasil (STB) havia dado uma importância
significativa a traduções de textos sagrados taoístas e a materiais escritos em português sobre
taoísmo.
Assim, como um primeiro passo em nossa pesquisa sobre a STB, vamos analisar um dos
primeiros textos publicados por Cherng: a tradução do daodejing (Tao Te Ching). Faremos
isso não como uma exegese, até por que essa função é uma demanda interna da tradição.
Vamos ler os contornos dessa obra taoísta numa perspectiva interpretativa, objetivando
encontrar pistas sobre os modos de divulgação do taoísmo em seu processo de transplantação
ao Brasil – nosso objeto de estudo – e tecer alguns apontamentos sobre a temática. Trata-se de
uma leitura sociocultural da divulgação da tradição taoísta no Brasil, e por isso, buscamos
responder: quais foram os recursos usados por Cherng para divulgação do taoísmo? Quais
meios ele utilizou? Qual o objetivo da sua retórica? Por que ele teria traduzido essa obra?
1
Graduado em Ciências da Religião pela Unimontes. Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP.
Pesquisador bolsista do CNPq. Orientador: Frank Usarski. Contato: matheusskt@hotmail.com.
2049
Observando o caminho – contextualizando a pesquisa e a tradição
Isabelle Robinet (1997) em Taoism: Growth a religion estudou a tradição taoísta por fontes
empíricas e documentais. Sob esta perspectiva, ela buscou a historia e a definição do taoísmo,
e em sua proposta ela nos atinou para uma importante pista que inspirou essa comunicação:
“Um caminho para definir os seus limites é por meio do Canon Taoísta (Daozang)”2
(ROBINET, 1997, p. 2). A autora alerta que os textos sagrados taoistas são somente uma
parte dessa tradição. Entretanto, ela mostra em seu livro como o canon taoísta expressa de
forma significativa, ao mesmo tempo, a rica complexidade cultural dessa tradição e também
como o taoísmo é um todo coerente, um sistema.
O pioneiro na pesquisa do taoísmo como tradição viva no Brasil, José Bizerril (2007, p. 187),
chama a atenção também para a forma como essa tradição é transmitida ao público brasileiro:
“para compreender como práticas baseadas em conceitos tão estranhos [...] às formas
hegemônicas de cultura brasileira, é preciso prestar atenção à maneira como é feito o
aprendizado”. Ou seja, dentro do processo de transplantação ou transnacionalização, como as
pessoas que difundiram a tradição o fizeram? Antes de responder a indagação, esclarecemos
aqui o que entendemos com o termo transplantação: em poucas palavras, trata-se de um
processo de difusão e divulgação de uma tradição a um local geograficamente distinto.
2
Na versão traduzida para o inglês: “One way to define its boundaries is by means of the Taoist Canon
(Daozang)” (ROBINET, 1997, p.2).
2050
O mestre Cherng tem uma lista relativamente extensa de publicações sobre teorias e artes
taoizantes. Ainda vivo publicou três livros de sua autoria, Tai Chi Chuan – Alquimia do
movimento (1989), I Ching – A Alquimia dos Números (1993. Ambos pela editora Objetiva) e
Iniciação ao Taoismo (2000, pela editora Mauad, que posteriormente editou também os dois
primeiros). Também traduziu diretamente do mandarim (chinês) uma das mais importantes e
mais conhecidas obras do taoísmo: o daodejing (grafado como Tao Te Ching, em 1998 pela
editora Mauad), além de outras publicações escritas (jornal Tao do Taoismo ou entrevistas,
por exemplo). Houveram também cinco livros publicados após seu falecimento em 2004,
compilados e editados por discípulos e discípulas3. No momento, nos interessa especialmente
a versão comentada pelo mestre Cherng do daodejing, publicada em 2011 também pela
Mauad. Na apresentação dessa versão, sua discípula Marcia Coelho de Souza (Em: CHERNG,
2011, p. 15) comenta:
Na juventude, quando abraçou o Caminho Espiritual Taoista, Wu Jyh Cherng fez um Voto
de difundir o Taoismo no Brasil. Para iniciar sua trajetória se vida devocional aplicada à
doação do conhecimento que se preparava para fazer ao mundo, escolheu, por orientação
dos seus mestres chineses que viviam em Taiwan, o Dáo Dè Jing, o Livro do Caminho e da
Virtude, como o texto base de divulgação daqueles ensinamentos.
Podemos perguntar: a citação acima já não deixa explicito que havia um projeto de
divulgação do taoísmo no Brasil? Há pouco tempo tentamos mostrar4 como a situação
econômica internacional é propicia a esse intercâmbio cultural entre o Brasil, a República
Popular da China (China comunista) e a República da China (Taiwan), devido a aproximações
econômicas e políticas entre estes países nas ultimas décadas. Mas pensar sobre como se dá
esse projeto de divulgação dentro de todo este quadro sociocultural cria ainda mais
indagações. Como um exemplo empírico de uma ferramenta usada para a divulgação da
tradição, vamos agora interpretar a tradução do daodejing feita por Cherng (1998).
3
Estes títulos podem ser vistos em uma pagina no site da STB: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-
taoista/livros-e-publicacoes/.
4
Ao dia 7/06/2013 apresentamos uma comunicação intitulada Taoísmo no Brasil: presença e modalidades de
sua transplantação no século XX no II Encontro de Pesquisa em História da UFMG - EPHIS, realizado entre os
dias 04 e 07 de junho de 2013 UFMG (Belo Horizonte-MG). Os anais do evento ainda não estão disponíveis.
2051
O daodejing, ou Tao Te Ching como é normalmente grafado no Brasil, já é conhecido pelos
leitores brasileiros a um bom tempo. Um dos seus primeiros tradutores, Humberto Rohden
(2003, p. 12), afirma que “essa obra imortal recebeu várias traduções” no Brasil, tendo início
já nos anos 1970. Seus primeiros tradutores foram: um monge budista (!), tradutores
anônimos de grupos macrobióticos, e o próprio Rohden, que traduziu acrescentando
comentários filosóficos e ilustrações. Existiram outras traduções, algumas bilíngues na década
de 1980, e várias que traduziam somente trechos. Rohden ainda afirma que “todas estas
edições [...] se encontram à disposição dos leitores nas livrarias brasileiras” (ROHDEN, 2003,
p.13), fato que pode ser facilmente comprovado em uma busca na internet.
Interessante perceber que foi exatamente nos anos de 1970 que dois mestres taoístas chineses
chegaram ao Brasil: Liu Pai Lin que veio visitar uma filha em 1975 e acabou morando em
São Paulo (BIZERRIL, 2007). Wu Jyh Cherng nasceu em Taiwan em 1958, e em 1973
mudou-se com seus pais para o Brasil, onde foi viver no Rio de Janeiro. É filho do também
mestre de taijiquan Wu Chao Hsiang, este último vindo da China continental mudou-se para
Taiwan na metade do século XX. Posteriormente, em 1987 Cherng tornou-se sacerdote
Taoísta em Taiwan, voltando ao Brasil logo em seguida, onde fundou a organização
denominada Sociedade Taoísta do Brasil ligada à tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa
Unitária). Assim, se já existiam traduções do daodejing no Brasil antes mesmo da chegada de
Cherng, porque ele desejou realizar esta tradução? Vamos ao próprio Cherng para descobrir.
Na sua versão do daodejing, Cherng (1998) já na contracapa afirma que se trata de uma
tradução “diretamente do chinês para o português”. Esta qualidade parece ser um motivo
especial para que este autor não só a use como recuso de marketing, mas também como
autopromoção da própria tradição, pois acredita que assim “resgata a tradição taoísta e oferece
a decifração necessária de conceitos fundamentais, respeitando a estrutura original do texto
em chinês clássico em detrimento de frases mais convencionais em língua portuguesa”.
Notem que a expressão resgata a tradição parece, justamente, querer contrapor a outras
traduções que, talvez, não fizeram jus à tradição tal como deveria ter sido.
2052
No que concerne à capa (imagem à esquerda5) temos considerações que valem para todo o
texto: 1) o “chinês clássico”, como disse Cherng, usa de ideogramas, e não letras. Dessa
forma, o tradutor escolheu o sistema chamado de Wade-Giles para transcrição fonética.
Acreditamos que possivelmente isso ocorreu por Cherng e sua família serem de Taiwan.
Neste país o sistema pinyin de transliteração criado da China continental ainda não era muito
usado, pelo menos até a época desta tradução. O próprio nome “Cherng” é uma forma de
grafia “livre”, em pinyin seria Chéng;
Além disso, 2) tanto o uso do sistema Wade-Giles, que fez o título道德经 (chinês
simplificado) ser transliterado como “Tao Te Ching”, como a tradução “O Livro do Caminho
e da Virtude” não se difere de outras tentativas de tradução presentes no Brasil, com exceção
de traduções um tanto distantes do sentido original. Por outro lado, como veremos, existem
características singulares a esta edição do daodejing. Ainda sobre a capa, acreditamos que o
uso de ideogramas já na capa é também uma forma de legitimação, no sentido de mostrar um
elemento tradicional chinês para o(a) leitor(a).
5
Imagem retirada no site: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-taoista/livros-e-publicacoes/.
2053
pertencimento a um grupo, e é uma forma de tradição, e a tradição, por sua vez é uma
memória autorizada. Conectando esta perspectiva teórica com a tradução que estamos
estudando, após a dedicatória ao mestre aparece nos agradecimentos a brasileiros que
revisaram o texto. Se a tradição segue uma linhagem, além de raízes, existem também seus
ramos, a continuação da linhagem. Então já na dedicatória e agradecimentos encontramos o
registro da linhagem transplantada ao Brasil por Wu Jyh Cherng com suas transformações e
inovações do taoísmo longe da sua terra natal.
imagem (老君) não são os ideogramas exatos de Laozi (老子), não sabemos o motivo, mas
Na primeira pagina da introdução, Cherng (1998, p.9, grifo nosso) usa um termo no mínimo
curioso para descrever a profundidade o daodejing: “a profundidade é o próprio caminho do
mistério, a experiência do sagrado que corresponde à vivencia espiritual”. Acreditamos que
qualquer cientista da religião que acompanha os últimos debates dessa área deve-se perguntar
o porquê do uso dos termos experiência e sagrado. Como esclarecimento para o leitor e
leitora: em uma das principais palestras do XII Simpósio Nacional da ABHR em Juiz de Fora
- MG, com o cientista da religião canadense Steven Engler, este teórico fez duras criticas ao
conceito de experiência nos estudos das religiões, inclusive convidando os ouvintes a não usa-
lo. Interessante é que experiência religiosa era justamente o tema desde evento; Sobre o termo
2054
sagrado, Frank Usarski (2006, p.32) em seu livro Constituintes da Ciência da Religião
também tece criticas ao que ele afirmou ser “o uso inflacionário ou mesmo aleatório da
palavra sagrado” para designar algo que “tem (mais ou menos) a ver com religião”.
Essas são críticas acadêmicas, mas, de certa forma, também são registros históricos do uso
desses termos para se falar em religião no Brasil. Curiosamente, o “uso inflacionário” do
termo sagrado foi confirmado no trecho mostrado acima. Mas aplicado ao nosso objeto de
estudo, o mestre Cherng usou de termos próprios dos meios cristãos (e, por que não, dos
meios esotéricos) para se referir à religiosidade taoísta. Para quem vive no Brasil ou em outro
país de maioria cristã, certamente os termos santo, santíssimo, sacro ou sagrado já foi ouvido
alguma vez, todos em um mesmo parentesco semântico. Sendo assim, podemos dizer que
Cherng realizou um processo de acomodação religiosa, ou seja, há uma utilização de termos
nativos para abordar uma mensagem estrangeira (BURKE, 2003, p. 46). Nesse processo tanto
o emissor como o receptor da mensagem são influenciados, de forma que a mudança cultural
acontece “por acréscimo e não por substituição” (BURKE, 2003, p. 47).
O processo de acomodação que com certeza está acontecendo em outros locais de expansão
taoísta, é talvez inédito para o taoísmo. Segundo Robinet (1997) a tradição taoísta se
desenvolveu tomando de empréstimo elementos de outras tradições, como o budismo,
adaptando-os aos próprios eixos e conectando-os em seu sistema de sentido. Mas o que
estamos observando aqui é exatamente o movimento contrário: não se trata de adaptar
elementos estrangeiros ao próprio sistema dentro da cultura de origem, trata-se sim da
mudança de discurso para que o outro possa compreender em seus próprios termos o meu
sistema cultural religioso.
O próximo ponto a ser destacado usa de uma retórica relativamente famosa do taoísmo.
Cherng (1998, p.9, grifado no original) escreveu que “a leitura do Tao Te Ching implica um
desafio: esvaziar-se e ser natural como a água que flui no vale”. Logo após usar termos
próprios do ambiente brasileiro e cristão (experiência religiosa), Cherng retorna aos recursos
retóricos taoistas e convida o leitor a vivenciar uma leitura sem julgamentos prévios. Isso,
obviamente, também está fazendo menção à carga cultural que o leitor traz consigo e que
poderia talvez bloquear a leitura dessa obra. Poderíamos arriscar aqui que se trata de esforço
por proselitismo taoísta? Talvez sim.
2055
Mas voltemos à questão do “esvaziar-se”. Na passagem de página Cherng (1998, p. 9-10)
chega a afirmar que se o texto não parecer claro por quem o lê, deve ser pelo fato de que a
sociedade atual excessivamente pensante dificulta a “ampliação da consciência”. Na mesma
página escreve: “Nesse contexto, a contemplação já é em si um ato transgressor”. Seria isso
um convite a cultura taoizante? Afinal, transgredir uma sociedade dominada pelo excesso de
racionalidade parece ter uma conotação positiva, e como ele mesmo disse, o taoísmo possui
ferramentas para isso (a contemplação, por exemplo).
Novamente Cherng afirma as vantagens de uma tradução direta do chinês, com um texto
idêntico ao da contracapa. E continua afirmando que o daodejing é uma “escritura sagrada”
que revela mistérios, expressando “uma tradição que íntegra filosofia, ciência e religião à
experiência” (CHERNG, 1998, p.10 e 11). Essa última sentença reafirma o que Robinet
(1997) havia dito sobre o Canon Taoísta enquanto expressão da riqueza e integralidade da
tradição taoísta. Cherng (1998, p.11, grifo no original) segue explicando a etimologia do
termo taoismo (daojiao ou tao diao): literalmente significa ensinamento (jiao) sobre a origem
(dao), e “por isso, o Caminho da Imortalidade, objetivo dos taoístas, é denominado Via do
Retorno”.
Em continuação, este mestre alega que a escola taoísta segue três obras, sendo o daodejing
uma delas e a estrutura central dessa tradição. A seguir aborda uma pouco da historia de Laozi
segundo a tradição taoizante. Deste trecho, que pouco se difere da lenda de Laozi encontrada
em outras fontes, a não ser por datas mais antigas e riqueza de detalhes, chamamos a atenção
para um termo usado por Cherng (1998, p.12) durante a história, que chegou a merecer uma
nota explicativa: “transparência sublime”. A nota dois (2) afirma que este termo (em chinês:
Tai Chin) é um “conceito teológico de Absoluto taoísta” juntos com Yü Chin e Sao Chin. Até
onde sabemos a ideia de uma teologia taoísta ainda não é algo desconhecido por
brasileiros(as). Vemos aqui outra forma de proselitismo: através de termos esotéricos que
eventualmente chamam a atenção do leitor curioso – mesmo que ele seja um pesquisador.
Mas, também, ao mesmo tempo, evocam-se termos da tradição autorizada (HERVIEU-
LÉGER, 2008), sendo um elemento singular dessa tradução.
Na tradução dos versos do daodejing propriamente dito pode ser vista essa estruturação de
notas explicativas de termos herméticos, variando entre explicações teológicas, intertextuais
(com o Yi jing) e ainda explicações etimológicas. São no total 44 notas explicativas, sendo
que 27 dos 81 poemas dessa tradução do daodejing contêm notas. Nessa tradução, ao invés de
2056
explicações filosóficas presente em outras traduções brasileiras optou-se apenas por notas
explicativas. Sendo um empreendimento inicial da transplantação da tradição taoista dessa
linhagem ao Brasil, percebemos novamente o uso da acomodação (BURKE, 2003) como
modelo retórico, menos pelos termos, e mais pela forma sutil de proselitismo. Essa forma
sutil, acreditamos, será a forma predominante de divulgação dessa tradição, a menos que
mude a linha de raciocínio do daojiao.
Ao final do livro pode-se encontrar um convite: “Se você estiver interessado em conhecer
mais sobre taoísmo ou conhecimentos afins, entre em contato com a Sociedade Taoísta do
Brasil” seguido de endereço no Rio de Janeiro e telefone (CHERNG, 1998, p. 141). Se por
um lado, o convite explícito para visitar a STB parece ser mais direto, os termos
“conhecimentos afins” e “se você estiver interessado” reafirmam o caráter sutil do
proselitismo taoísta frente o público brasileiro. Também observamos mais uma vez a
autoqualificação de tradição autorizada, já que a STB se apresenta como fonte de
ensinamentos taoístas ao leitor(a). Depois, ainda temos a indicação de obras do mesmo autor
publicadas pela editora, novamente fazendo propaganda aos livros do mestre Cherng.
Em segundo lugar, gostaríamos de expor nossa consciência dos limites deste ensaio, e já
apontar para outros horizontes: “Textos sagrados são mais importantes para sacerdotes do que
para leigos, mas nem estes, nem aqueles contentam-se com eles. Sua vida religiosa é mais
abrangente do que apenas a doutrina e sua interpretação” (GRESCHAT, 2005, p. 63). Ou seja,
2057
resta-nos agora saber: como o proselitismo contido numa tradução e apresentado neste ensaio
é recebido por adeptos da Sociedade Taoista do Brasil? Quais são os elementos da vida
religiosa taoísta que não são encontrados em suas escrituras sagradas?
Referências
BIZERRIL, José. Retorno à raiz: tradição e experiência de uma linhagem taoísta no Brasil.
São Paulo: Attar, 2007.
LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
ROBINET, Isabelle. Taoism: growth of a religion. Stanford: Stanford University Press, 1997.
2058
2059
GT19 – Pentecostalismos brasileiros: novas
perspectivas
Coordenadores
Resumo
Em 2010, o fenômeno pentecostal fez cem anos no Brasil. Em 1910, eram apenas 40 pessoas,
atualmente são mais de 25 milhões de brasileiros. Surgiu na região sudeste a partir de uma
igreja étnica e calvinista a Congregação Cristã no Brasil, mas também na região norte com
um grupo miscigenado e arminianista as Assembleias de Deus, ambas fundadas por migrantes
europeus vindos dos EUA, mas sem vínculos institucionais com os pentecostalismos
norteamericanos. Os grupos se fracionaram acompanhando os processos migratórios internos
e externos do país, estando atualmente pulverizados em milhares de grupos diversos e
divergentes numa polissemia religiosa nas mais diferentes configurações. Qual conceito,
taxonomia ou hipótese é capaz de dar conta de tão imensa complexidade? Esse GT pretende
promover o diálogo com pesquisas em desenvolvimento sobre o fenômeno dentro de uma
problematização ampla que evita leituras exclusivistas a partir de um único marco teórico e
hipótese generalizante e se abre para novas etnografias e abordagens. Os pentecostalismos
(sim, no plural), em diálogo com a cultura brasileira, ainda estão se inventando e sendo
reinventados em suas práticas.
2060
A confissão positiva: o movimento de cura no Brasil e suas
fundamentações teológicas
Emmanuel Roberto Leal de Athayde1331
Introdução
Basta ligar a televisão em certas emissoras brasileiras em qualquer horário, para se deparar
com programas diários de pregadores, que professam uma fé cristã de vertente que
convencionou-se por inúmeros pesquisadores classificar de neopentecostal (MARIANO,
2005, p.33), onde proclamam seus ensinamentos através de seus discursos característicos e
específicos, que os diferem de outros grupos cristãos evangélicos.
Sob esse contato diário com esses pregadores midiáticos nasceu o interesse em abordar sobre
uma de suas marcas características, a saber, a ênfase dada à cura divina, no que diz respeito as
manifestações de milagres relacionados aos males físicos, desde uma simples dor de cabeça
até casos complicados, como câncer, paralisias entre outras.
Claro que o discurso desses não se limita apenas a tratar de curas, pois além deste tema, os
pregadores também enfatizam a prosperidade financeira, o que rendeu a alcunha de teologia
da prosperidade, como é mais conhecida popularmente, porém nesse trabalho, buscaremos
focar nas manifestações de curas que esse movimento defende como um fator legitimador de
seu discurso, embora, esses assuntos se entrelacem nas suas pregações.
1. A origem do movimento
A Confissão Positiva representa um fenômeno religioso que surge a partir das igrejas
pentecostais em meados da década de 40 nos EUA sob os nomes de Health and Wealth
1331
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Orientado pelo professor Dr. João Décio Passos. Capes –
Prosup. Contato: emmanuel.junior@gmail.com.
2061
Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines, Positive Confession, se constituindo
efetivamente a partir da década de 1970 (MARIANO, 2005, p.151). Diante dessas inúmeras
nomenclaturas, nesse trabalho adotar-se-á o termo Confissão Positiva.
Estudos realizados por D. R. McConnell,1332 demonstram que Essek William Kenyon, tido
como o “pai” da Confissão Positiva, teve forte influência dos ensinos de Mary Baker Eddy,
fundadora da Ciência Cristã, através de sua obra Ciência e Saúde com a Chave das
Escrituras, assim, pode-se entender a origem da grande ênfase dada por esse movimento as
curas divinas.
Um outro nome que aparece como um dos fundadores é o de Kenneth Hagin que acabou se
tornando o porta-voz do movimento, sendo mais comumente reconhecido como o seu
idealizador. Percebe-se que utilizou-se das ideias e escritos de Kenyon, e de acordo com
Romeiro (2005, p.92) “Hagin plagiou boa parte dos escritos de Kenyon”, declarando em um
dos seus livros, que recebera a “licença” para o plágio da filha de Kenyon, Ruth.
Kenneth Hagin nasceu em 20 de agosto de 1917, no Texas, EUA, com graves problemas
cardíacos. Antes de completar dezesseis anos, a saúde física de Hagin piorou, confinando-o
em sua cama por vários meses. No seu livro A respeito dos dons espirituais ele narra como
obteve a cura para a sua enfermidade:
Quando recebi a cura para meu corpo, ninguém impôs as mãos em mim. [...] Mas como
menino batista no leito da enfermidade, fiquei lendo a Bíblia metodista da minha avó, e fui
curado – não simplesmente porque acreditava necessariamente na cura divina; mas, sim, fui
curado ao pôr em prática Marcos 11.24 firmando-me nisso: ‘[...] tudo quanto em oração
pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco’. Orei, portanto, e comecei a dizer:
‘Creio que recebo a cura para meu coração deformado [...]’. E, então, o poder de Deus para
curar foi manifestado no meu corpo (HAGIN, 2012, p.105).
De origem batista, passou a se afeiçoar aos pentecostais, onde em 1937 teve a sua experiência
com a glossolalia, marca característica das crenças pentecostais que testifica a experiência da
1332
Como se vê em sua obra A different gospel: a historical and biblical analysis of the Modern Faith Moviment,
Massachusetts, EUA. Hendrickson Publishers, 1988.
2062
conversão do fiel. Anos mais tarde, associou-se a diversos pregadores independentes de cura
divina (a chave de seu ministério, embora apregoasse também a libertação da pobreza), como
Oral Roberts, Tommy Lee Osborn, William Branham, entre outros. O ministério de Hagin,
mesmo depois de sua morte em setembro de 2003, continua crescendo e se espelhando ao
redor do mundo.
Além desses nomes, diversos outros surgem como propagadores dos preceitos de Hagin,
como: Marilyn Hickey, Kenneth Copeland, Robert Schüller, Benny Hinn, Joyce Meyers,
Jorge Tadeu, Peter Wagner, entre outros. Esses têm como lema a vitória sobre todo e qualquer
sofrimento, já que o diabo, principal opositor que busca atrapalhar a vida dos crentes,
encontra-se sob as determinações dos fieis, como um inimigo já vencido, e dentro das
principais conquistas adquiridas pelos crentes encontra-se: a cura de todos os males físicos e a
prosperidade financeira.
Através das pregações desses pastores, nos inúmeros Congressos e Conferências promovidos
frequentemente em diversas partes do mundo, além da vasta utilização dos principais meios
de comunicação, rádio e televisão, meios esses que os religiosos se utilizam bastante para
expandir suas crenças, assim, suas mensagens foram se popularizando e ganhando de milhares
de novos adeptos e outras novas frentes, em diversos outros países, como no Brasil por
exemplo, que acabou se tornando um dos principais centros de suas doutrinas.
Segundo dados históricos, no país “a primeira concentração de cura divina, (se deu) em
Curitiba em outubro de 1967” (LEITE FILHO, 1994, p. 138), mas a partir da década de 70,
começa a se consolidar no Brasil efetivamente tais manifestações, trazendo consigo uma nova
abordagem sobre a fé cristã. Para se obter prosperidade física, financeira e espiritual, bastava
crer, ter fé, pois os crentes detém poder devido ao sacrifício de Jesus na cruz, e todos aqueles
que creem, basta apenas declarar, com fé, determinar em voz audível no nome de Jesus para
mudar qualquer realidade má em bem, pois, segundo Osborn (2004, p.38): “sua linguagem
passa a ser como a de um super-homem, Você fala como alguém de outra raça ou de outro
reino, como de fato somos – geração eleita, sacerdócio real”, contudo, além desse poder nas
palavras, o adepto deve expressar seu amor a Jesus, primordialmente, sendo fiel ofertante e
dizimista a igreja.
2063
No Brasil, podemos encontrar como os principais expoentes dessa crença: Walter Robert
McAlister, fundador da Igreja Nova Vida no Rio de Janeiro, de onde saíram o Bispo Edir
Macedo: Da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e da Editora Universal Produções e o
Missionário R.R Soares: Da Igreja Internacional da Graça (uma divisão da Igreja Universal do
Reino de Deus) e também da Graça Editorial (a maior publicadora dos livros dos Movimentos
da Fé no Brasil) que publica os livros de Kenneth Hagin, T.L. Osborn e outros. Pode-se
destacar também: Valnice Milhomes que estudou na Escola de Hagin, do Ministério Palavra
da Fé e da Igreja Internacional do Senhor Jesus Cristo; Cássio Colombo: Do Ministério Maná
Cristo Salva ligado as Igrejas Maná de Portugal do Ap. Jorge Tadeu; Gerônimo Onofre da
Silveira: Pastor do Templo dos Anjos, entre outros.
A Confissão Positiva surge através de pessoas que vieram de outras igrejas evangélicas tanto
de tradição histórica (Batistas, Presbiterianas, Metodistas, etc) como também de igrejas
pentecostais (Assembléia de Deus e outras). Além desses nomes citados acima, que fazem
parte do surgimento histórico da Confissão Positiva no Brasil, há outros nomes que se
destacam mais recentemente como: o casal Hernandes, fundadores da Igreja Renascer em
Cristo e o Apóstolo Valdemiro Santiago, dissidente da IURD, fundador da Igreja Mundial do
Poder de Deus (IMPD), além de inúmeras outras igrejas que surgiram e nascem quase que
diariamente no país a partir das crenças da Confissão Positiva.
Não há uma sistematização em seus dogmas, como se encontra na Confissão Reformada por
exemplo, que tem seus catecismos e diversas obras teológicas sistemáticas escritas a respeito,
há obras que falam de suas bases, porém, não na forma de compêndio teológico.
Além das diferentes abordagens dadas pelas igrejas que propagam tal crença, como se percebe
ao comparar a IURD e a IMPD, pois observa-se que ambas trabalham com enfoques
semelhantes em alguns aspectos, como, a utilização de pregações voltadas à cura física e
prosperidade, uma forma de manifestação de poder por parte dos pastores, como também com
aspectos diferentes, por exemplo, no que diz respeito à ênfase à exorcismos e prosperidade,
mais presentes na IURD.
2064
opositores, como se observa no relacionamento entre líderes da IURD e IMPD,
especificamente, onde há uma relação tensa entre eles e tem se agravado mais recentemente.
Esses embates estão presentes desde os discursos proferidos nos cultos religiosos, como se
observa no caso da entrevista que o bispo Edir Macedo fizera com uma pessoa supostamente
“possessa com um espírito maligno”, onde revela a sua relação direta com o apóstolo
Valdemiro através de seu trabalho realizado em sua igreja.1333
A Confissão Positiva tem por bases fundamentais as seguintes doutrinas: o direito a saúde e a
prosperidade financeira a todos os crentes, entre outras crenças. Contudo, como dito antes,
não vou me ater a prosperidade financeira, que é uma marca característica da crença desse
movimento, mas as curas.
Segundo Osborn (1999, p.14): “os cristãos não precisam ficar doentes nunca [...] sempre é da
vontade de Deus curá-los”. Essa é a crença fundamental desse movimento, de que as doenças
não devem fazer parte da vida daqueles que creem em Jesus, pois, segundo a interpretação
dada pelo movimento, remetendo a algumas passagens bíblicas, dos quais comumente é citada
1333
A entrevista encontra-se disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=eHuBrDcjcvc>. Acesso em 06
de jun. 2013.
1334
Tal depoimento encontra-se disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=5st1i-vm6BM&feature=
related>. Acesso em 06 de jun. de 2013.
1335
A entrevista encontra-se no site <http://www.youtube.com/watch?v=GyDJg8ZMjMs&feature=related>.
Acesso em 06 de jun. 2013.
1336
Ver <http://www.youtube.com/watch?v=iB1LWJ35azo>. Acesso em 06 de jun. 2013.
1337
Ver <http://www.youtube.com/watch?v=kLexHrGQ5Zo&feature=related>. Acesso em 06 jun. 2013.
2065
a profecia de Isaías (53.4).1338 A partir desse texto que remete a vinda do Messias, na
perspectiva cristã na grande maioria das confissões, segundo a Confissão Positiva, todo
aquele que crer em Jesus, tem a garantia de não sofrer mal físico, e caso não obtenha a cura, o
problema jaz na fé do indivíduo que é débil, que ainda é dependente da fé de outras pessoas
para obter vitórias no âmbito da cura, assim, ou o adepto não tem fé suficiente ou vive em
pecado, algo que atrapalha um relacionamento íntimo com Deus.
A obsessão em relação à fé, como veículo para obtenção dos milagres, é tão grande, que,
quando o cristão orar para pedir algo a Deus deve-se tomar cuidado com suas palavras, pois
não basta simplesmente orar pedindo a cura, mas antes, não se pode orar, dando a entender
que a cura depende da vontade de Deus, dizendo: “Se o Senhor quiser, me cure”, conforme
afirma Hagin (1987, p.78), pois nestas orações: “não se pode colocar o ‘se’ no meio e ainda
esperar se obter uma resposta. Neste tipo de oração, o ‘se’ indica descrença – ‘se’ é distintivo
de dúvida”, algo que é inadimissível, sendo assim, a dúvida, é a causa dessa falta de fé tão
combatida no movimento. Na verdade, os adeptos são orientados a orarem não para pedir,
mas determinar aquilo que eles têm direito por serem filhos do Altíssimo.
No que diz respeito à crença em Jesus, ela chega a ultrapassar a pessoa do próprio messias,
pois crêem que os crentes é que têm autoridade para obterem agora as benesses da sua fé ao
vencerem seu opositor, fruto da autoridade que eles gozam, refletindo na operação dos
milagres. Utilizam alguns versículos, como Efésios 1.20 “fazendo-o sentar à sua direita em
lugares celestiais”1339 para explicarem que, uma vez que Cristo está sentado, seus atos estão
limitados, cabendo aos crentes pelejarem contra o diabo em busca de suas vitórias, derrotando
suas obras na terra, o que Jesus não pode fazer, segundo afirma Hagin (2002, p.25):
O ato de Cristo estar sentado implica em que, por enquanto, certos aspectos de sua obra
estão suspensos. Toda a autoridade que foi dada a Cristo pertence a nós, por meio dEle, e
podemos exercitá-la. Nós o ajudamos realizando a sua obra na face da terra. E um aspecto
de sua obra que a Palavra de Deus nos fala que façamos é derrotar o diabo! De fato, Cristo
não pode fazer sua obra na terra sem nós! (HAGIN, 2002, p. 25).
Por causa de sua condição atual, de encontrar-se sentado, Jesus carece da ajuda das pessoas
para realizar suas obras. Utilizando o texto de Efésios 4.15-16, onde o apóstolo Paulo afirma
1338
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
1339
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
2066
que Cristo é a cabeça e os cristãos o corpo da Igreja, tal pregador alega que a cabeça não
realiza ações, ou “possui qualquer autoridade, seja onde for, a não ser através de seu corpo”
(HAGIN, 2002, p.40), e continua Hagin (2002, p.41) no seu pensamento, “você não ora para
que Jesus imponha as mãos sobre o enfermo; você o faz. Observe também, que as mãos não
estão localizadas na Cabeça; as mãos estão no corpo”. Jesus então, depende necessariamente
dos fieis para atuar na terra, algo contrário a Confissão reformada, por exemplo, que diz ser
Jesus soberano, onde necessariamente é a criação que depende Dele, e não o contrário.
Para Kenneth Hagin (1992), a raiz das doenças que sobrevém a todos os seres humanos é de
origem satânica:
Deus não é o autor da doença. Os homens só ficaram doentes depois que deram ouvidos ao
Diabo. [...] A doença e a enfermidade são do Diabo. Deixe que a verdade desta afirmação
entre profundamente em seu espírito. Então siga os passos de Jesus e trate com a doença da
forma que Jesus tratou. Trate a doença e a enfermidade como um inimigo, e nunca as tolere
em sua vida (HAGIN, 1992, p. 225).
Não é da vontade de Deus que fiquemos doentes. Nos dias do Antigo Testamento, não era
da vontade de Deus que os filhos de Israel ficassem doentes, e eles eram servos de Deus.
Hoje, somos filhos de Deus. Se sua vontade era que nem sequer seus servos ficassem
doentes, não pode ser sua vontade que seus filhos fiquem doentes! As doenças e as
enfermidades não provêm do amor. Deus é amor (HAGIN, 1990, p.19).
E para justificar seu discurso, utiliza-se de versos da Bíblia, como: João 10.10 que diz: “o
ladrão (Satanás) vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a
tenham em abundância”.1340 Assim, para a Confissão Positiva, todos os males da vida são
oriundos de espíritos malígnos, que devem ser expulsos, para que o indivíduo tenha a vida
perfeita, ou seja, o céu, não simplesmente num sentido transcendente, mas a partir da vida
aqui na terra. Logo, o autor conclui que, as doenças são enviadas pelos demônios e não por
Deus, pois Ele não quer ver ninguém doente, mas com vida abundante.
Os pregadores da Confissão Positiva fazem distinção da palavra grega “oração”, pois dizem
que em alguns momentos na Bíblia, ela significaria “pedir”, mas em outros, seu significado
seria “exigir”, como apresenta Hagin (2013):
1340
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
2067
Pedro na Porta Formosa não orou pelo aleijado, ele ordenou que este fosse curado (Atos
3.6). Você não está exigindo de Deus quando cobra seus direitos está fazendo-o ao diabo.
Jesus fez esta afirmação em João 14: “E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei [...]
Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei” (versos 13 e 14). Aqui ele não está
se referindo à oração. A palavra grega aqui é “exigência” e não “pedido”. [...] De fato o
texto grego diz: “Tudo o que você exigir como seus direitos e privilégios...”. Você precisa
saber quais são os seus direitos (HAGIN, 2013, , pp.30-31).
Desta forma, os crentes não precisam pedir para serem curados, pois não são “pedintes”,
como afirma Osborn (1999, p.35), mas podem dizer que, como isto foi uma promessa de
Deus, seria ignorância não reclamá-la para si, com confiança, exigindo o que é seu, por
direito. Hagin (2002, p.30) afirma que ele havia descoberto o modo eficaz de orar: quando
requer seus direitos, exigindo-os.
A Confissão Positiva chega a ser contra seus adeptos tomarem remédio para se tratarem,
como afirma Hagin (1990):
Fico perplexo quando as pessoas tomam remédios e fazem tudo quanto é possível para
sararem, mas se sugerimos que peçam que alguém ore pela sua cura, dizem: “Talvez não
seja da vontade de Deus curar-me”. Por que não levantaram a questão da vontade de Deus
logo de início? Se não for da vontade de Deus que sarem, não devem tomar remédios nm
receber tratamentos. A tentativa de sarar seria contra a vontade de Deus! (HAGIN, 1990,
p.23)
Essa portanto é a crença da Confissão Positiva em relação as doenças, por isso entende-se a
ênfase que é dada aos milagres por seus pregadores, como uma forma de salientar a situação
da pessoa em relação a sua fé, por isso, quando uma pessoa crente encontra-se enferma é visto
como algo inaceitável, por ser fruto de uma obra satânica. Porém, isso pode acontecer devido
a algum pecado, pois assim, o crente daria “legalidade” para que o diabo se aproveite e atue
em sua vida. Portanto, pelo fato do crente se encontrar livre do poder do pecado,
consequentemente do diabo, deve reivindicar todas as promessas de Deus para a vida, das
quais destaca-se uma vida livre completamente das doenças.
2068
4. A obtenção da cura
Os pregadores estabelecem algumas premissas básicas para receber a cura divina, vale notar
que o milagre da cura, primordialmente, parte daqueles que possuem um dom específico
recebido por Deus, “ungidos” por Ele, para efetuarem tais manifestações.
A pessoa ao se converter a fé, se torna um bebê na fé e Deus, então, permite que outras
pessoas orem por eles e os carreguem na fé, sendo assim sempre curados. Hagin (2002)
explica como ocorre o crescimento na fé do fiel:
Deus espera que esse nenê cresça, ande e comece a fazer as coisas por si mesmo [...] Há um
grande número de pessoas que ainda querem continuar como bebês e pedem a uma outra
pessoa que ore por elas o tempo todo. Queremos ajudar os que necessitam, mas precisamos
ensinar às pessoas que elas podem crescer e exercer sua autoridade, porque o tempo virá
quando terão que usa de sua própria autoridade, se quiserem ter suas orações respondidas
(HAGIN, 2002, p. 43).
Caso não se torne maduro na fé, o cristão não conseguirá receber a cura, pois a maturidade
virá quando o cristão conhecer, ou melhor, “tomar posse”, termo comumente usado pelos
adeptos, da promessa de Deus em curar a todos, estando firmemente convencido de que esta
promessa foi feita para cada um dos crentes de forma pessoal, como se observa no comentário
de T.L. Osborn (1999):
As promessas que você lê na Bíblia são Deus falando pessoalmente com você. Elas são tão
suas quanto um cheque preenchido em seu nome. Você pode descontar esse cheque no
banco porque é seu, e você pode exigir, na oração, o cumprimento daquelas promessas
porque são suas, do mesmo modo (OSBORN, 1999, P. 11).
Para fundamentar biblicamente essa crença, se utilizam, para tal argumento, algumas
passagens bíblicas, como Êxodo 15.26: “Eu sou o Senhor que te cura”; 1ª Pedro 2.24: “Por
suas chagas vós fostes sarados”,1341 entre outras.
Além disso, os pregadores explicam que as doenças não vem senão do diabo e que são
espíritos malignos, como visto acima. Assim as doenças não fazem parte da vontade de Deus,
uma vez que Ele quer que os cristãos sintam-se sempre bem. Osborn (1999), revela que
1341
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
2069
Enquanto você pensar que Deus possa ter um propósito na sua moléstia, você não a
resistirá. Mas quando você entender que as Escrituras ensinam de modo tão claro que a
enfermidade é de Satanás, você então a resistirá, a repreenderá, a recusará ela será
destruída mediante as suas orações. Os médicos podm chamar de artrite ou de reumatismo a
moléstia que tira a mobilidade das juntas, mas a causa real é um espírito encarcerador do
diabo (OSBORN, 1999, p.20).
Satanás coloca nas pessoas os seus “espíritos de enfermidades” (OSBORN, 1999, p. 20) e os
cristãos, por possuírem toda a autoridade de Cristo sobre a terra, tem o direito de repreender
as doenças, para que elas sumam. E a pessoa, imediatamente, pode se sentir curada, mesmo
que os sintomas ainda demorem para desaparecer, como se vê no comentário de Osborn
(1999, p.21), “Talvez os sintomas [...] não desapareçam imediatamente, mas se orarmos com
fé e repreendermos a doença, sabemos que a moléstia foi destruída pela raiz e que os sintomas
tem que desaparecer”.
Assim, o cristão precisa determinar em oração a cura de suas doenças e crer, enquanto ora,
que recebeu aquilo que foi pedido. Chamam isto de fé. Em outras palavras, Osborn explica
que, mesmo depois da oração, se os sintomas da enfermidade ainda permanecerem, o cristão
deve ignorá-los e apenas crer na Palavra de Deus, ou seja, “não deve dar atenção ao que vê e
sente, mas atentar unicamente para o que Deus diz na sua Palavra” (OSBORN, 1999, p.39). O
texto bíblico que utilizam para esta premissa encontra-se em Provérbios 4.20-221342.
Depois disso, o cristão deve colocar a sua saúde “em ação”, ou seja, viver como se já
estivesse curado, pois, “a verdadeira fé significa que você está tão convencido de que as
promessas de Deus são cumpridas que você o louva, pelo seu cumprimento, e age de acordo
com elas, mesmo antes de vê-las cumpridas. Isso faz com que Deus aja, cumprindo-as”
(OSBORN, 1999, p.51).
Portanto, percebe-se que T. L. Osborn, diz que quando o cristão põe em prática a sua fé,
apesar de todos os sintomas apresentarem-se contrários, Deus cumpre a sua palavra. Desta
forma, se o indivíduo não é curado, a culpa reside exclusivamente na sua falta de
manifestação da fé, pois Deus já decretou a cura. Assim, quando não há fé, não há cura, pois,
“mesmo que você já tenha sido curado, é muito provável que a doença volte, se você deixar
de aprender o segredo de agir segundo a Palavra de Deus” (OSBORN, 1999, p.61).
1342
SAGRADA, A Bíblia. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no
Brasil. 2° ed. Barueri – SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
2070
Por fim, segundo a crença da Confissão Positiva, o fiel deve-se colocar acima das suas
próprias dúvidas e temores, buscando provar a sua fé por suas ações, fazendo coisas que
antes, devido a enfermidade, não conseguia. Dessa forma, Deus cumpre sua promessa e o
cura.
Inicialmente vale destacar o fato do Brasil ser um país com bastante carências sociais, que
aparece na má qualidade nos hospitais no que diz respeito ao atendimento à classe baixa, além
da falta de emprego, e inúmeras outras necessidades assistenciais que carecem o povo
brasileiro. Por isso, o movimento de cura divina acaba sendo visto como algo que gera
“esperança para os desenganados e pobres que não possuem recursos para resolver seus
problemas de saúde: desnutrição, falta de assistência básica sanitária e médica” (LEITE
FILHO, 1994, p. 54). Diante disso, entende-se que o viéis social, as carências de um povo
acaba sendo uma porta de entrada para a Confissão Positiva, pois ao observar os países mais
ricos e até mesmo nas regiões mais nobres do Brasil, percebe-se que há poucas igrejas, como
também a não realização das concentrações de milagres, como acontece nos lugares mais
pobres.
Além disso, percebe-se que sob as forças de mercado, através das tecnologias atuais que
fomentam o consumismo e imediatismo, condicionam esta geração a conseguir o que lhe
interessa através do dinheiro e de forma instantânea, assim, esses conceitos acabaram
influenciando a fé, gerando uma confissão religiosa com características de mercado, que visa
resultados imediatistas de acordo com as suas crenças e numa terra onde há carência de
dignidade, de bom atendimento médico, de empregos, enfim de justas condições de vida, tal
abordagem acerca da fé cristã acaba encontrando aceitação certamente.
Além desse problema social que contribui para o aumento dessa crença doutrinária, há uma
concepção mágico-religiosa do povo brasileiro, fruto do sincretismo religioso do país. Por ser
um povo que abraça o misticismo facilmente graças a pluralidade sincrética de suas crenças,
valoriza as manifestações sobrenaturais, o que é comum nas igrejas que pregam tais doutrinas.
Há ainda a necessidade dos líderes manterem seus status de homens ungidos, usados por
Deus, o que legitima o seu discurso e garante a perpetuação e crescimento de suas igrejas,
2071
pois o pastor detém o poder “mágico” da operação dos sinais de Deus e para que não haja
uma debandada dos fieis, pois grande é a concorrência, o líder dessas igrejas têm que mostrar
o seu valor aos ouvintes, tomar a centralidade nesse processo, como agente fundamental para
o alcance da graça buscada, assim, enquanto Hagin, como vimos antes, enfatizava a
autoridade fiel do crente, nas novas resignificações que vem passando a Confissão Positiva,
prende-se cada vez mais o fiel à igreja local e ao pastor, como o ungido de Deus capaz de
dispensar as bençãos de curas para o povo, pois, com a perda de fieis, cai-se necessariamente
as receitas, o que seria muito prejudicial as igrejas que se utilizam bastante de mídias para
propagarem a sua fé. Com isso, os líderes dessas igrejas midiáticas que professam a Confissão
Positiva, investem pesado em eventos e aberturas de novas igrejas, valendo-se de discursos
manipulatórios, que legitimam suas pregações com as manifestações de milagres, como
resultado de todo o investimento empregado pelo fiel e a exposição de seu status de homem
usado por Deus, pois as curas é uma forma de mostrar que a mão de Deus está com eles.
Assim, devido aa crescimento de concorrentes, pois tais igrejas se veem assim, refiro-me as
de maiores expressão, como a IURD, a IMPD, a Internacional da Graça, principalmente, esses
pastores se aproveitam para manterem sua hegemonia através da televisão, rádio, internet,
sendo cada vez comum a participação desses religiosos nesses ambientes e sempre com uma
palavra, um discurso visando preencher o vazio do homem moderno, que busca
desesperadamente resolver-se interiormente, obtendo aquilo que gera bem estar. E quando
esses sinais não acontecem, eles procedem da forma como comentou o pastor Josué Alves de
Oliveira: “Contudo, esta é a válvula de escape dos charlatães de hoje. Quando se sentem
frustrados nas suas operações inescrupulosas, anunciam: “O milagre não se deu porque o
doente não tinha fé” (OLIVEIRA, 1984, p.121).
Esses portanto, são alguns fatores observados que podem explicar a multiplicação dessas
igrejas que tem no movimento de curas divina seu fundamento principal em suas pregações.
Considerações finais
Considero a observação de Leite Filho pertinente e coerente com a realidade atual no que diz
respeito aos discursos religiosos:
2072
Temos observado em nossos dias que grande variedade de experiências pode ser adquirida
pelo dinheiro (não somente a cura divina): compra-se tranqüilidade de espírito
(tranquilizantes); compra-se a cura de angústia (terapia); compra-se o exótico (turismo);
compra-se experiências místicas (parapsicologia); compra-se a cura de doenças
(neopentecostalismo). Ao cliente pouco importante compreender o que está acontecendo; o
importante é que funciona. A cura divina é mais um produto natural da sociedade
empresarial, capitalista (LEITE FILHO, 1994, p.92).
Por conta desses resultados imediatos, isso diz respeito não apenas a cura, mas também a
prosperidade, prestígio e muitos outros bens, procura-se negociar com o divino através dos
dízimos e ofertas as bênçãos e o que se vê é um “curandeirismo” mercadológico. Para que
isso aconteça utilizam-se de diversas técnicas psicológicas, através da persuasão, do
emocionalismo, sensacionalismo, tudo graças a credulidade de um povo sofrido e carente.
Estamos diante de um fenômeno religioso que surgiu a pouco tempo e ainda requer bastante
reflexão, um movimento que tem ganho novas vertentes e resignificados constantemente,
através dos seus agentes que se proliferam com tamanha rapidez. É um grupo complexo que
envolve técnicas de mercado, discursos com apelos psicológicos, além de apresentar um
poder midiático expressivo. Mas para que tudo isso aconteça, se torna importante, por que não
fundamental, conhecer suas bases teológicas que alicerçam seus discursos capazes de
influenciar a grande massa.
Claro que nessa reflexão não é possível esgotar o assunto, mas tentou-se apresentar algumas
das bases doutrinais de uma das vertentes da Confissão Positiva, que acredito ser um dos
carros chefes de tal crença, o movimento de curas divinas. E diante de uma massa passiva,
que simplesmente acolhe os discursos manipulatórios de um grupo que apelam à fé e da
fragilidade de um povo carente, que são estorquidos financeiramente através de tais artifícios,
cabe perguntar: será que esses princípios pregados por esses religiosos para a obtenção de
curas, onde responsabiliza totalmente o fiel e quando não alcançadas, logo são acusados de
lhes faltar fé, e ainda, a obrigatoriedade de ofertarem altas quantias de dinheiro as igrejas
também lhe são exigidas? Será que os esses e os seus tomam remédios e são tratados em
hospitais de algum mau? São perguntas que nos levariam a uma investigação e acredito que as
respostas decepcionariam muitos fieis.
2073
Referências
HAGIN, Kenneth. O que fazer quando a fé parece fraca e a vitória perdida. Rio de Janeiro:
Graça Editorial, 1987.
__________. A respeito dos dons espirituais. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 2012.
__________. Seguindo o plano de Deus. Rio de Janeiro. Editora: Graça Editorial, 2013.
McCONNELL, Dan. R. A different gospel: a historical and biblical analysis of the Modern
Faith Moviment. Massachusetts, EUA: Hendrickson Publishers, 1988.
OLIVEIRA, Josué Alves de. Milagres e charlatães. 2° edição. Santos, SP. Impressa na
Oficina de A Tribuna de Santos – Jornal e Editora Ltda, 1984.
2074
2075
A estrutura ritualística do culto adventista realizado na
comunidade quilombola Dezidério Felippe de Oliveira em
Dourados/MS
Gabrielly Kashiwaguti Saruwatari1
Introdução
As informações contidas neste trabalho foram obtidas através do método etnográfico, cuja
observação participante se fez fundamental para a compreensão de alguns elementos que
permeiam a vida religiosa do grupo estudado. A pesquisa iniciou-se no ano de 2012, mas foi
no início do ano de 2013 que o trabalho de campo começou efetivamente a ser feito.
Minhas idas à comunidade aconteceram, principalmente, nos dias de sábado, pois o grupo
familiar em que venho desenvolvendo minha pesquisa dentro da comunidade pertence à Igreja
Adventista do Sétimo Dia e, uma das particularidades desta igreja é a guarda do sábado, mais
especificamente do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado.
Procuro mostrar no decorrer do texto como são realizados os cultos da Igreja Adventistas do
Sétimo Dia dentro da comunidade. Além disso, cumpre observar que a realização do culto
tem implicações diretas na organização social e política do grupo familiar que aderiu a esta
religião.
1
Graduada em Ciências Sociais pela UFGD. Mestranda em Antropologia pela mesma universidade. Orientada
pelo Prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior. Bolsista CAPES. Contato: gabbi_ks@yahoo.com.br .
2076
protestantes, pentecostais e neopentecostais. Diante dessa mudança nas práticas religiosas a
pesquisa também buscou entender como atuam essas igrejas para conquista de novos fiéis.
Atualmente, vivem nesta comunidade quilombola 40 pessoas. Em geral, elas possuem baixa
escolaridade e, os que trabalham, a maior parte se mantém economicamente realizando
trabalhos como lavradores e pequenos serviços na universidade próxima à comunidade. Entre
os membros dessa comunidade 25 se tornaram evangélicos e os outros 15 continuam na
religião católica. Entretanto, 8 dos católicos são considerados “não praticantes”, enquanto no
grupo evangélico, de fato, há uma vivência religiosa e compromisso com as suas igrejas.
Nesse sentido, ressalta Ricardo Mariano (2001, p. 22), possui doutrinas e interpretações
bíblicas que a difere das demais igrejas protestantes. A exemplo disso “observa tabus
alimentares, enfatiza a guarda do Sábado em obediência ao quarto mandamento do Velho
Testamento, adota perspectiva exclusivista, age como uma igreja cristã à parte das demais e é
por elas tratada como tal”. Acrescenta-se ainda, segundo Oliveira Filho (2004), a tríplice
mensagem, a doutrina do santuário, a mortalidade da alma, o Espírito de profecia (as
mensagens recebidas por Ellen White) e a reforma da saúde.
Entretanto, devemos lembrar também que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é considerada
protestante, pois possui elementos que podem ajudar a classificá-la como tal, isto é, comunga
de algumas doutrinas fundamentais do protestantismo. A respeito disso, ela possui a Bíblia,
que é, de acordo com Mariano (2001), a mesma versão adotada pelos protestantes, como
2
Por muito tempo as igrejas oriundas do movimento adventista foram tratadas não como igrejas, mas como
seitas, para conhecer mais detalhes consultar o artigo de Oliveira Filho (2004), intitulado “Formação Histórica
do Movimento Adventista”.
2077
“única regra de fé e prática, crê na Trindade, na salvação por meio da expiação de Jesus Cristo
e pratica o batismo por imersão” (MARIANO, 2001, p. 22).
Nas estudos elaborados por Antoniazzi (1994, p. 20) em meados da década de 1980, mesma
época em que as igrejas pentecostais começam a ter destaque no cenário religioso brasileiro e
também mesmo período em que chegam à comunidade quilombola, o autor salienta que os
principais católicos a se afastarem do catolicismo são exatamente aqueles católicos
tradicionais, isto é, aqueles cuja cultura está atrelada a devoção aos santos, mas pouco
“envolvida nas comunidades católicas dirigidas pelo clero e com escassa formação
doutrinária”. Tal como percebi na fala daqueles se converteram a Igreja Adventista do Sétimo
Dia, eles mesmos observam que na religião católica sempre foram “não praticantes”, mas
gostavam de participar da Festa em homenagem a São Sebastião3, o então padroeiro da
comunidade.
Nesse sentido, uma consideração feita por Antoniazzi (1994) sobre a Igreja Católica é muito
interessante, porque elucida bem o catolicismo no Brasil ainda hoje. Segundo o autor, se
analisarmos a Igreja Católica num sentido macro, ou seja, olhando ela como uma grande e
3
Os dois trabalhos de Santos (2007, 2010) elucidam bem a trajetória desta comunidade quilombola e também
trazem ricas referências sobre essa festa, que há pelo menos 13 anos não acontece mais devido à saída
compulsória dos membros, morte dos foliões da festa e falta de recursos. Em nenhum momento foi citada as
novas religiões como um impeditivo para a realização dos festejas, aliás, observa-se um sincretismo, que não
será aprofundado neste momento.
2078
importante parte da estrutura da sociedade brasileira chegar-se-á conclusão de que ela possui
uma atuação significativa, “um status” e é considerada uma das instituições mais confiáveis
do país. Entretanto, ao voltarmos nossos olhos para sua atuação em nível micro, que diz
respeito às experiências individuais de seus fiéis, nesse quesito ela deixa a desejar, pois “no
plano dos problemas imediatos que a população sofre na carne – fome, falta de saúde,
desorientação espiritual, desavenças familiares ... – a Igreja Católica parece menos ágil e
menos atenta”. E é sob essa fragilidade que pentecostalismo vai ganhando seu espaço
(ANTONIAZZI, 1994, p. 21).
Segundo Freston (1994), que foi o primeiro a sistematizar a expansão pentecostal no Brasil
por ondas, classificando-as histórico-institucionalmente, há segundo ele, três fases distintas
dentro do próprio pentecostalismo. A terceira onda, nomeada posteriormente como
neopentecostal por autores como Ricardo Mariano (2012) e Antônio Gouvêa Mendonça
(2008), possuem as igrejas que mais se afastam e se diferem das doutrinas da Igreja
Adventista, a começar por sua pregação, cujo foco está voltado para as grandes massas. Além
disso, utilizam-se intensamente dos meios de comunicação como a televisão e o rádio como
instrumentos de evangelização. Os cultos são menos comedidos assim como as manifestações
espirituais de seus fiéis. Combatem o diabo com sessões de exorcismo e todos demais males
do mundo são atribuídos a ele.
Quando Freston (1994) descreve as características marcantes das duas primeiras ondas ele
chama atenção para o perfil socioeconômico de seus adeptos, isto é, geralmente, são
frequentadas por pessoas de baixa renda e com pouca escolaridade, características igualmente
encontradas na comunidade quilombola em questão quando a Igreja Adventista chegou em
seu território. Essas igrejas presentes na primeira e segunda onda tem como alvo grupos
menores como comunidades e bairros periféricos (característica comum as igrejas adventistas
também). Além disso, as igrejas dessas ondas também possuem um perfil mais conservador,
assim como ainda atua a igreja adventista em certos aspectos.
2079
Dessa forma, essas igrejas são voltadas para as camadas mais pobres, pois estes tendem a se
tornar um público mais fiel. Priorizam, portanto, “circuitos de relações com um perfil mais
comunitário construídos em torno dos templos e redes familiares e de vizinhança”, sendo
atrativas para esses pequenos grupos, pois “estabelece vínculos sociais que atenuam a
situação de vulnerabilidade social” (ALMEIDA, 2011, p. 121).
A Igreja Adventista do Sétimo Dia chegou até a comunidade em questão no início dos anos de
1980, por intermédio de um dos anciões dessa igreja. Quando essa igreja chega à comunidade,
esse grupo ainda não é reconhecido como remanescentes dos quilombos, aliás, nessa época
nenhum deles sabia o que era ser quilombola, também pudera, nessa época pouco ou quase
nada se falava sobre isso. Tanto que, só em 1988 as comunidades quilombolas conquistaram
seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos específicos na constituição federal, que se
deu a partir do Artigo 68 do ADCT que designava “aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
2080
Em tempos de incertezas, de golpes dados por pessoas “letradas” interessadas na terra, de
esvaziamento da comunidade, de dificuldades socioeconômicas a igreja adventista ofereceu
ajuda espiritual, mas acima de tudo, mostrou-se interessada por essa família. Devemos
ressaltar que, se hoje ainda é difícil chegar até as casas da comunidade, porque cerca da
metade do caminho ainda não é asfaltado. Há mais de vinte anos atrás essa situação era ainda
pior, pois não havia asfalto nenhum até o trajeto que nos leva ao distrito da Picadinha, onde
fica a comunidade. A Igreja Adventista pisou pela primeira vez na comunidade através da
figura de um colportador, que até hoje, mesmo com a idade avançada, visita com frequência
seus “irmãos da Picadinha”.
Foi através do trabalho etnográfico que eu me deparei com a certeza da importância do culto
realizado nas varandas das casas. Este ritual, que é repetido todos os sábados, se mostrou o
elemento central da vida religiosa do grupo adventista desta comunidade quilombola. Todas
as demais ações e visões de mundo são uma extensão dessa vivência religiosa. O culto é um
ritual comunicativo e ao mesmo tempo coletivo, portanto, como salienta Peirano (2002, p.9),
“focalizar rituais é tratar da ação social”.
Obviamente que, quando Peirano (cf. 2002, 2003) dialoga sobre rituais, ela não está fazendo
referência exclusivamente aos de cunho religiosos, mas sim a toda sorte de eventos sociais4
considerados especiais dentro de uma sociedade ou grupo. A autora nos lembra que não há
definição rígida para “rituais”, pois a compreensão de um ritual em si deve ser apreendida por
meio do trabalho etnográfico e em parceria com o grupo pesquisado, isto é, “sua definição só
pode ser relativa – nunca absoluta ou a priori; ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade de
detectar o que são, e quais são, os eventos especiais para os nativos” (PEIRANO, 2002, p. 9).
4
De acordo com Peirano (2003, p. 9) estes eventos podem ser “profanos, festivos, formais, informais, simples ou
elaborados”.
2081
Saliento que trago a concepção de ritual para este trabalho exatamente porque considero o
culto realizado na comunidade como um ritual extremamente importante para a produção e
reprodução sociocultural desse grupo adventista. E localizo nesta atividade semanal uma
organização singular, “uma ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo
propósito é coletivo, e uma percepção de que eles são diferentes” – em dois sentidos para este
grupo: doutrinários por serem adventistas e étnicos por serem quilombolas (PEIRANO, 2002,
p.8).
Um ritual, qualquer que o seja, quando realizado, pressupõe a existência de um grupo e este
mesmo grupo também faz parte de uma sociedade maior que possui lá suas regras, valores e
formas de classificar as coisas do mundo. Por isso, deve-se levar em conta que os elementos
presentes num ritual podem ser localizados também no cotidiano das pessoas. Assim,
“consideramos o ritual um fenômeno especial da sociedade, que nos aponta e revela
representações e valores de uma sociedade, mas o ritual expande, ilumina e ressalta o que já é
comum a um determinado grupo”. E ao acompanhar os cultos realizados pelo grupo familiar
de seu Desidério e dona Efigênia, pude constatar, como escreveu Peirano, que eles “são bons
para transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver conflitos e
reproduzir as relações sociais” (PEIRANO, 2003, p. 10).
A estrutura do culto adventista realizado dentro da comunidade pela família de seu Desidério
e dona Efigênia é muito singular. Não há nenhuma Igreja Adventista no distrito da Picadinha
e nem mesmo dentro da comunidade. Não há um púlpito, onde os pastores possam fazer suas
pregações, aliás, não há pastores para presidirem o culto. São os próprios adventistas da
comunidade que o fazem. A igreja deles é imaterial, mas as varandas das casas se tornam
verdadeiros templos de oração e reflexão nos dias de sábado. Não há uma hierarquia entre
pastores e fiéis, cujo primeiro fala e os demais o escutam. No culto realizado por eles, todos
falam, quando querem, todos escutam, atenciosamente.
A vivência do grupo no dia de sábado é intensa, pois ao mesmo tempo em que cuidam do lado
espiritual, também socializam problemas e acontecimentos diários, plenamente terrenos. O
culto, dessa forma, atua como um revigorante da vida social deste grupo, pois é através dele e
de sua realização, há tantos anos, que se estreitam os laços entre a família e onde são
reforçados os elementos que a comunidade considera boas para ela. Aliás, ressalta Peirano
(2003, p. 19). “para sua sobrevivência [do culto], é necessário um grupo de pessoas, uma
comunidade moral relativamente unida em torno de determinados valores”, assim como
2082
visualizamos nesta família, cujo ritual semanal colabora para a manutenção de laços sociais
duradouros.
Essa família encontrou nos cultos realizados em casa, uma alternativa para viverem a sua fé,
unidos, sem a necessidade de ir até uma igreja física. E nesse caso, eles tiveram o apoio da
Igreja Adventista, que foi e continua ir até eles com freqüência, oferecendo suporte espiritual
e até mesmo social para o grupo. Portanto, é muito provável que essa seja umas das razões
pelas quais o catolicismo não prosperou dentro desta comunidade, ao contrário das igrejas
evangélicas, que se mostraram muito mais próximas e acolhedoras.
Outro aspecto interessante é que o dono da casa, onde o culto está sendo realizado, fica
encarregado de oferecer o almoço para aqueles que estão presentes. Ele compartilha sua casa
e seus alimentos, independente do número de participantes do culto no dia. Nota-se que essa
organização não se dá por acaso e está baseada em seus preceitos religiosos, principalmente
no que diz respeito à guarda do dia de sábado. Com o revezamento, é possível que se trabalhe
sem que se esteja contrariando a bíblia, pois suas atividades, limpar a casa e cozinhar,
estariam voltadas para a realização do culto e não em prol de si mesmo.
O culto possui dois momentos, o primeiro é realizado pela Ramona, filha de seu Desidério e
dona Efigênia e; o segundo momento é ministrado por Ramão, filho mais velho do casal.
Cada um deles prega a palavra bíblica por aproximadamente 1 hora, podendo estender esse
tempo conforme o desenvolver dos diálogos com o grupo. Ambos possuem a missão de
estudar anteriormente o que vai ser discutido a cada sábado e também elaboram questões para
serem refletidas em conjunto. Nem ele é pastor, nem ela pastora, mas durante o culto fica a
cargo deles organizar e guiar as discussões. Como não há pastor, o empenho dos fiéis tem que
ser maior, pois não basta apenas ouvir, o importante é participar.
Na comunidade, o grupo faz questão que suas reflexões estejam conectadas aos estudos da
Escola Sabatina, por isso, todos os sábados eles não deixam de realizar esta atividade. Os
estudos feitos durante a Escola Sabatina também tentam ser incorporados o máximo possível
2083
para a atualidade dos acontecimentos que ocorrem no Brasil e no restando do mundo. Nesse
momento, todo o grupo é convidado a expor suas opiniões, a dar exemplos vividos, enfim,
participar de fato da conversa.
Quando o grupo começa a conversar sobre o que foi estudado no dia, os assuntos não seguem
uma ordem fixa, até porque os diálogos vão se relacionando com outros temas e, assim,
sucessivamente. Nos cultos em que estive presente notei a diversidade de diálogos que
acontecem entre eles. Alguns assuntos se concentram bastante na bíblia como amor ao
próximo, bondade, família, casamento, filhos, adultério, perdão, devoção, espiritualidade,
pecados (de maneira geral) entre outros tópicos.
Entretanto, eles sempre buscam atualizar o contexto bíblico tanto para a realidade deles,
quanto para a sociedade de uma forma em geral. Nesse sentido, vi-os fazendo discussão sobre
reforma agrária, sobre educação, sobre hábitos alimentares, sobre fome, sobre violência (dos
mais variados tipos), sobre aborto, sobre eutanásia, sobre programas televisivos, entre muitos
outros assuntos. Percebi que as manhãs de sábado são utilizadas para uma intensa troca de
ideias e valores entre essa família - tal como explicitou Peirano (2003) ao falar dos rituais de
uma forma geral.
Outro ponto interessante que torna o culto deles ainda mais significativo, enquanto um ritual
extremamente bem organizado é a preocupação que eles têm com suas crianças. Elas
participam dos primeiros cânticos e orações, mas logo em seguida são levadas para a
“escolinha”, geralmente, o local é a casa de Lurdes, filha de seu Desidério e dona Efigênia. As
crianças possuem suas próprias bíblias, que são especialmente elaboradas para o público
infantil. Ali, elas aprendem sobre a bíblia pintando desenhos, assistindo vídeos e ouvindo
histórias.
Vemos que essa escolinha possui uma função social muito importante, pois antes mesmo das
crianças ingressarem nas escolas, elas mantêm um intenso convívio com os primos, o que
resulta em uma maior socialização dessa criança, além de exercitar sua coordenação motora, a
criatividade e o interesse pela leitura.
Antes de finalizar o culto, novamente eles cantam e oram de mãos dadas. E este só termina
quando todos desejam “um restante de sábado feliz!”. Depois que o culto é finalizado, todos
almoçam juntos.
2084
Percebe-se que o almoço e a tarde em que eles passam juntos é, na verdade, uma extensão do
culto, porém, com mais liberdade para todos os tipos assuntos. A hora do almoço se torna
uma verdadeira confraternização aos sábados, pois, se durante o culto temos, em média, 15
participantes, quando o almoço é servido esse número sobe para, pelo menos, 21 pessoas. Isso
ocorre porque alguns homens que não freqüentam os cultos e os jovens que o freqüentam
esporadicamente aparecem para almoçar junto com a família. Apesar de ser um grupo
extremamente religioso, eles não mantém uma cobrança sobre os demais que não participam
ou participam pouco da vida religiosa. O culto é feito para todos, mas participa dele apenas
quem quer e sente vontade de estar lá.
Esse é o dia em que a família se reúne e conversa sobre os acontecimentos da semana. Como
qualquer outra família eles se divertem, brincam com seus filhos, contam as novidades para os
irmãos, discutem os problemas no trabalho, desabafam quando estão passando por alguma
dificuldade pessoal, enfim, esse é o dia em que os laços familiares são reforçados. Nesse
aspecto observamos o quanto à relação entre os membros dessa família é harmoniosa,
obviamente, que há entre eles alguns desentendimentos, mas estes não perduram por mais de
um dia.
Depois que se converteram é consenso entre o grupo familiar que a vida veio a se tornar
melhor. Em nome da nova religião muitos vícios como cigarro e álcool foram abandonados, já
que na doutrina adventista estes só servem para prejudicar o corpo e a alma de quem os
consome. É interessante notar que, como na comunidade muitos professam uma fé cristã não-
católica, quando há algum evento ou outras festividades, ninguém leva bebida alcoólica em
respeito aos parentes evangélicos que ali vivem.
Eles relatam que também obtiveram melhoras em relação à saúde, haja vista que esta é uma
das grandes preocupações da doutrina adventista, a atenção dada a saúde do corpo e da alma.
A partir dos conselhos de Ellen White, que são considerados mensagens enviadas por Deus,
eles passaram a seguir uma alimentação mais saudável. Passaram a consumir mais legumes e
frutas e diminuíram carnes gordurosas e não comem, por exemplo, carne de porco.
2085
Através da igreja o grupo também aumentou sua rede de relações sociais por meio da
interação social com outros grupos de fora da comunidade, pois em determinadas datas eles
recebem pessoas da igreja da cidade para realizarem vigílias estreitando os laços com os
“irmãos de fé”. Esse sentimento de acolhimento e pertença não era sentido quando os mesmos
ainda eram católicos. De certa forma, a aproximação da igreja evita que eles se afastem, pelo
contrário, os motiva mais a continuarem nesta religião.
Durante um dos cultos o grupo tentou me explicar de que forma eles viam conexão entre a
religião que professam e as questões políticas em torno da retomada das terras da
comunidade. Para eles, a religião é algo fundamental para o grupo, pois mantém-os unidos
nessa luta e também os ajuda a viver em harmonia. Além disso, a religião também os ajuda a
viver pacificamente com os demais proprietários rurais, que hoje são donos das terras que o
grupo reivindica, já que um dos principais mandamentos é amar ao próximo, independente de
quem o seja.
2086
No entanto, uma das grandes contribuições da igreja para vida deste grupo se deu no âmbito
da educação, que nada tem haver com a escolar ou com a forma “culta” de se portar. A
vivência religiosa e a realização dos cultos toda semana fizeram com que o grupo tomasse
gosto pelo hábito da leitura, que não fica restrita apenas aos conteúdos bíblicos, mas que se
estendem conforme o interesse e a curiosidade de cada um.
Durante os cultos algo me chamou atenção, quando Ramão5 pregava sobre alguma passagem
bíblica e se deparava com alguma palavra cujo sentido ele desconhecia, sua primeira ação
sempre foi recorrer ao dicionário de língua portuguesa para apresentar ao grupo um sinônimo.
A Bíblia não é um livro fácil de ser lido, exige dedicação e paciência daqueles que a estudam.
2087
que ele obteve da própria igreja em seu aperfeiçoamento enquanto fiel. A ocupação dele em
cargos de importância não foram feitas aleatoriamente, mas ele foi escolhido exatamente
porque os indivíduos enxergam nele um homem preparado para lidar com uma sorte de
situações e, mesmo em meio as dificuldades, não desiste de lutar pelo o que considera justo.
Logo, entendemos que essa igreja, de várias maneiras, colaborou para a manutenção do estado
grupal e para formação da liderança política. Desse modo, uma igreja que os ensina a ter o
interesse por conhecimento, desenvolve um papel que é capaz de mudar a vida desses
indivíduos, que perpassa desde a saúde até a luta pela terra enquanto remanescentes dos
quilombos.
Considerações finais
Quando relatamos que uma comunidade tradicional seja ela indígena, quilombola ou caiçara
se converte a outra religião, deixando de lado sua religiosidade tradicional, logo surgem
questionamentos sobre percas culturais. Obviamente, como constatou Abumanssur (2011),
com a entrada de uma nova religião, principalmente se for do ramo pentecostal, podem haver
rupturas com antigas tradições como festas em devoção aos santos e até mesmo a negação e a
abominação com relação às praticas religiosas dos antepassados em se tratando,
especialmente, de cultos de matrizes africanas.
Entretanto, cumpre observar que as comunidades tradicionais não são e nem podem
permanecer estáticas, assim como a sociedade ao seu redor passa por transformações, nelas
também ocorrem mudanças. E dentro dessas mudanças as escolhas individuais devem ser
levadas em conta, pois ninguém escolhe mudar de religião se esta não lhe oferece nada de
melhor ou não responde a nenhum de seus anseios.
Acompanhar a rotina da família de seu Desidério e dona Efigênia, durante vários encontros
aos sábados, me possibilitou perceber que, a realização do culto dentro da própria
2088
comunidade, é uma peça essencial para compreender alguns elementos fundamentais na vida
social e política destes indivíduos que frequentam a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ao
elencar durante o texto o papel social e a influência, mesmo que indireta na vida política, que
essa igreja teve e tem na existência deste grupo, serve também para elucidar os caminhos que
várias igrejas ditas evangélicas utilizaram para conquista de seus fiéis, principalmente no que
diz respeito às comunidades tradicionais.
Referências
PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
2089
SANTOS, Carlos Alexandre Barbosa Plínio dos. Fiéis descendentes: redes-irmandades na
pós-abolição entre as comunidades negras rurais Sul-Mato-Grossenses. Orientação de Ellen
Fensterseifer Woortmann. Tese (Doutorado em Antropologia), UNB, Brasilia, 2010.
2090
2091
A Igreja Presbiteriana Renovada e a sua inserção no campo
religioso brasileiro
José Rômulo de Magalhães Filho1
Introdução
A Igreja Presbiteriana Renovada é uma igreja evangélica de origem brasileira que surge da
união de grupos dissidentes de duas igrejas protestantes históricas: A Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil e a Igreja Presbiteriana do Brasil. Sua origem é do início da década de
1970 do Século XX, e está envolta em uma atmosfera de busca por um modelo de
espiritualidade bastante difundida no meio das comunidades protestantes entre as décadas de
1960 e 1970 que foi o chamado movimento pentecostal que atingiu as igrejas históricas.
1
Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN. Bolsista da CAPES. Contato: jrmf.pro@gmail.com.
2092
As Origens do Presbiterianismo Brasileiro
O Presbiterianismo brasileiro recebeu desde sua implantação forte influência das questões
sociopolíticas norte-americana. A Igreja Presbiteriana Americana em 1857 passou por uma
divisão devido aos conflitos (questão escravagista) que culminaram na Guerra da Secessão
(1861-1865). A Igreja Americana foi dividida em Igreja do Norte e Igreja do Sul. Simonton
foi enviado ao Brasil pela Igreja do Norte, o chamado Board de Nova Iorque.
A crise vivida pelo presbiterianismo americano foi ideológica, e transitou pela chamada Nova
Escola Teológica, mais liberal, com a defesa por igualdade racial e um envolvimento com os
problemas da sociedade. E uma Velha Escola, ligada à chamada Teologia da Igreja Espiritual.
Segundo Mendonça (1995), Simonton humanamente tendia para a Nova Escola corroborando
com a tendência da missão que o enviou ao Brasil, sendo contra uma sociedade escravocrata.
Entretanto sua prática pastoral tendia para a outra escola.
O protestantismo que se estabelece de forma plena no Brasil tem como característica básica o
conservadorismo e o proselitismo, no dizer de Santos (1999, p.22): “portava uma teologia
conservadora e alienante”. O que reflete o individualismo teológico difundido pela igreja
norte-americana. O presbiterianismo no Brasil vai seguir esta tendência, dando mais ênfase a
Teologia da Igreja Espiritual. Os missionários americanos apresentavam um discurso
conversionista, com base na emoção e na experiência religiosa, levando o prosélito a adotar
um estilo de vida pautado na moral rígida e numa ética calvinista além de influenciados “pela
doutrina da Igreja Espiritual, que buscava distinguir a fé dos negócios humanos”
(MENDONÇA, 2007, 171).
2093
O Presbiterianismo no Século XX – da independência a renovação carismática.
Houve uma queda na qualidade dos missionários americanos, não de ordem religiosa, mas no
que se refere às perspectivas teológicas e intelectuais. Com um ensino religioso rígido, o
ensinamento se limitava aos sermões e à vida prática, cheia de moralismos. A igreja tornou-se
pragmática. (MENDONÇA, 2007). Os pastores nacionais passaram a confrontar esta fraqueza
intelectual dos missionários, com sermões, textos escritos em jornais e debates em reuniões
oficiais das igrejas. Neste momento histórico, o presbiterianismo nacional já tinha seus
próprios líderes.
Entre eles Eduardo Carlos Pereira (1855-1923), que foi ordenado ministro presbiteriano em
1881. Desde cedo no seu ministério, mostrou-se preocupado com o evangelho em terras
brasileiras. Cada vez mais alcançando espaço nas reuniões conciliares passou a questionar a
liderança norte-americana no que se referia ao redirecionamento de verbas para a educação
secular, e não no investimento na formação de pastores brasileiros e da evangelização.
Pereira tinha forte posição proselitista, buscava em seus sermões e textos publicados a
conversão de católicos à fé protestante. Fundou em 1883, a Sociedade Brasileira de Tratados
Evangélicos “com o objetivo de produzir literatura evangélica em linguagem bem trabalhada
e acessível ao povo dentro do contexto nacional” (MENDONÇA, 1995, p. 87).
Com a visão de uma autonomia para a Igreja Presbiteriana Brasileira, Pereira concebe o que
foi chamado de Plano de Missões Nacionais, que tinha como objetivo acelerar o processo de
independência financeira para sustentar pastores, missionários e professores brasileiros.
Aliado a questão da evangelização do território nacional, mais duas grandes questões foram
levantadas por Pereira e que serviram de estopim para o cisma presbiteriano que veio a
2094
ocorrer em julho de 1903: as questões dos seminários e maçônica. O referido cisma gerou a
Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB). No começo a Igreja Independente,
impulsionada pelo discurso nacionalista e antimaçônico desenvolveu-se bem, superando as
expectativas.
No final da década de trinta do Século XX a IPIB sofre uma crise, não de nacionalismos, mas
doutrinária. Algumas comunidades e pastores mais conservadores alegaram que a escola de
formação de pastores (o seminário) havia sido invadido por ideais liberais, e deixaram a
denominação fundando a Igreja Presbiteriana Conservadora em fevereiro de 1940.
Semelhantemente, na década de 1950 a Primeira Igreja Presbiteriana de Recife instituiu uma
empreitada contrária ao Seminário Presbiteriano do Norte, acusando também de influência
liberal. Esta crise fez nascer a Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil.
A partir da segunda metade do Século XX, uma nova preocupação passa a ser real às igrejas
históricas. A chamada renovação espiritual. A expressão renovada está diretamente ligada a
um novo modo de ver a espiritualidade cristã. A Igreja protestante a partir do Século XIX
atravessou um momento chamado de Avivamento Espiritual, que culminou em experiências
de renovação espiritual. Esta renovação trouxe para a Igreja Protestante um impulso
missionário, uma prática de vida mais piedosa, e consequentemente um alinhamento com a
política ocidental de obediência ao Estado. Havia um desejo de se viver experiência
semelhante no Brasil.
2095
pentecostalismo que chegam ao Brasil em meados do século XX, encontra-se um grupo vindo
campanhas evangelísticas no hemisfério norte principalmente dos Estados Unidos da América
(FRESTON, 1996) que se apresentam como proselitistas e de fácil adaptação às mudanças
que a sociedade norte-americana vinha enfrentando. Há um crescimento deste segmento,
devido ao uso do rádio, como meio de divulgação da fé. A influência deste novo ramo do
pentecostalismo fez com que segmentos das igrejas protestantes históricas aderissem ao
movimento, o que levou a cismas em algumas delas.
Um pentecostalismo com forte presença na mídia, com ênfase em uma moral pietista, mas
com tolerância aos usos e costumes que iria servir de estratégia na aproximação das camadas
com maior poder aquisitivo e de maior formação escolar. Nesta nova onda pentecostal, as
Igrejas Presbiterianas sofreram forte influência. Segundo Lima (1996), a Igreja Presbiteriana
Independente, foi a mais atingida pelo pentecostalismo, sendo o primeiro conflito ainda nos
primeiros anos da Igreja.
O primeiro contato dos independentes com o pentecostalismo deixou um saldo negativo, não
em números, mas na relação entre a igreja e o movimento pentecostal. O Pastor da IPI de
Belém – PA, na época o Rev. Manoel Machado, sem conhecer o que seria o movimento
pentecostal, percebeu o interesse do movimento em levar toda a IPI esta prática. Isso
impulsionou o Rev. Machado escrever uma série de artigos no jornal da denominação (O
Estandarte) sobre a Invasão Pentecostista (LIMA 1996), onde condena e aponta para os
perigos de tal prática.
Já na segunda onda pentecostal, a IPIB tem outra experiência marcante com o movimento. A
Igreja do Evangelho Quadrangular chega ao Brasil em 1949. No mesmo ano, membros da IPI
do Cambuci, na capital paulista, tiveram contato com a missão recém-chegada. Houve por
parte da liderança e da membresia em geral, um encanto com a mensagem de renovação e
práticas de cura divina. A igreja tornou-se muito próxima da Missão Quadrangular. Esta
presença de missionários americanos ligados à missão levou na década de 1950 a divisão da
IPI do Cambuci. Saindo o pastor e a maioria da liderança, permanecendo fiel ao
presbiterianismo apenas treze membros. Mais uma vez a IPIB sofre com a presença
pentecostal, e passa a tratar o pentecostalismo como um inimigo, e “sua doutrina, como uma
heresia. Aqueles que se ligassem deveriam abandonar a IPI ou dela serem desligados”
(LIMA, 1996, p. 247).
2096
O duro golpe no presbiterianismo brasileiro se deu de fato nos fins da década 1960 e início
dos anos 70, quando, tanto a IPB quanto a IPIB passaram por divisões ligadas diretamente a
renovação carismática. É a partir da experiência de renovação espiritual em igrejas locais (no
Paraná e em São Paulo) destas denominações que surge a Igreja Presbiteriana Renovada do
Brasil em 1975.
Simonton mesmo ligado ao Board de Nova Iorque trazia consigo uma forte influência da
teologia conservadora presente na Igreja do Sul. Seu discurso era polido em relação à Igreja
Católica Romana, entretanto carregado de um pietismo fruto do avivamento que ocorrera nos
Estados Unidos no Século XVIII, ele chega a escrever no seu diário: “O mundo apela para o
que é sensual... Para viver é necessário elevar-se a outra atmosfera, absorvendo todo o poder
de um mundo desconhecido da vista, e de Jesus, o Salvador invisível”. (SIMONTON, apud
MENDONÇA 1995, p. 180).
Este legado espiritual sempre foi de alguma forma reivindicado pelos membros das igrejas
presbiterianas. Estava presente em Pereira, e esteve na expansão da IPIB. E se percebe nos
crentes do Cambuci, ao se deixarem influenciar pelo discurso pentecostal. O presbiteriano
brasileiro, mesmo com ares de intelectualidade (baseado na formação dos seus pastores),
sempre esteve desejoso de uma vida espiritual mais piedosa, marcada pela reflexão bíblica e
vida de oração. Com o passar do tempo a racionalidade afasta sua liderança destas práticas
religiosas.
2097
Além deste despreparo, Lima (1996, p. 248) diz que “a própria linguagem pietista e avivalista
corrente na Igreja favorecia uma aproximação com a pregação pentecostal, especialmente no
que toca a santidade cristã”. O pentecostalismo foi confundido com avivamento. Como na
prática diária, os pentecostais tinham comportamento e mensagem que condizia com o
discurso avivalista, a confusão entre avivamento e prática pentecostal foi inevitável.
Alguns pastores e leigos, procuraram se organizar para ocuparem cargos de destaque na Igreja
Presbiteriana Independente, com o objetivo de direcionar as decisões conciliares favoráveis ao
movimento avivalista. Gerou uma divisão interna entre os tradicionais (defensores da ordem
da Igreja) e os avivados (desejosos de mudanças).
[...] se caracterizava pelo controle e combate a algumas condutas externas, que eram
consideradas como influenciadas pelos “modismos” da época, tais como, cabelos curtos
para as mulheres, pinturas pronunciadas nos olhos, lábios e unhas das mãos, vestidos
decotados e curtos, “que tiram a naturalidade e os movimentos comuns e naturais à mulher,
bem como o uso de calças compridas no recinto do templo”. Quanto aos homens, combatia-
se o uso de cabelos compridos e “roupas não condizentes com a sobriedade própria do
cristão”, controle e combate ao uso de bebidas alcoólicas, do cigarro e “outros vícios
condenados pela moral cristã”.
As celebrações passaram a ter um caráter mais informal, com a introdução na prática litúrgica
de cânticos de fácil assimilação, e que traziam letras que apontavam para elementos
doutrinários do movimento pentecostal. Introduziram-se as palmas durante as celebrações, e a
os testemunhos de vida, intercalados com expressões como: aleluia, glória a Deus, amém,
típicos das igrejas pentecostais.
Era a busca por uma prática cristã realmente renovada, não só no sentido de renovação
espiritual, considerando a doutrina pentecostal do Batismo com o Espírito Santo e a evidência
de falar em línguas estranhas, mas acima de tudo de uma vida cristã renovada. “Os crentes,
2098
através de uma diligente e diária busca de “renovação” de suas atitudes, procuravam atingir o
modelo perfeito, Jesus Cristo, configurando-se assim uma das únicas formas que a
comunidade poderia se apropriar de uma posição no todo da sociedade” (CARVALHO, 1985,
p. 95). Desta forma os crentes se sentiam verdadeiramente cristãos, no entanto separados para
uma ação específica, e para isso não poderiam medir esforços.
Entretanto esta, que na visão dos renovados deveria ser o verdadeiro caminho da igreja, sofreu
por parte da instituição maior, retaliação e censura. A confusão entre avivamento e
pentecostalismo, e a busca dos renovados de levar a renovação pelo viés político foram os
vilões de sua derrota institucional. Na reunião do Supremo Concílio da IPIB em 1972, o
grupo não alcançou êxito. “Além de não conseguir fazer o presidente, [...] foram tolhidos
oficialmente por decisões do próprio Supremo Concílio, que resolveu agir duramente para
coibir o avanço pentecostal na Igreja” (LIMA, 1996, p. 248).
Até junho de 1972, pelo menos 10 pastores haviam deixado a Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil (GINI, 2010) na cidade de Assis – SP, e no dia 8 de julho organizaram
a Igreja Presbiteriana Independente Renovada – IPIR. Que em 08 de janeiro de 1975 é
oficialmente organizada a Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil (IPRB), com 34 pastores
oriundos da IPIB e 25 da Igreja Cristã Presbiteriana (ramo pentecostal oriundo da Igreja
Presbiteriana do Brasil). A IPRB na atualidade é a segunda maior denominação presbiteriana
do Brasil, com 131.972, segundo dados de 2011.2
O ramo presbiteriano brasileiro sofre mais uma divisão. Dos dois ramos do início do século
XX, o presbiterianismo independente foi o que mais sofreu com a influência do
pentecostalismo. A ponto de institucionalmente se fechar, impedindo inclusive a discussão da
temática nos seus encontros oficiais. A Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil surgia então
como uma retomada de ideais pietistas, presentes no fundador do presbiterianismo brasileiro.
Mas com um novo elemento, a doutrina pentecostal como fonte inspiradora da renovação
espiritual proposta pelos membros fundadores da denominação.
2
Disponível em <http://www.iprb.org.br/estatistica/2011/estat_geral2011.htm>.
2099
surgimento de novos grupos, em nome da verdade por eles defendida. Foi assim com os
independentes em 1903, com os conservadores em 1940 e com os renovados em 1972.
Após o nascimento do novo ramo presbiteriano, e o fim das adesões em 1975, a IPRB
procurou desenvolver seu próprio projeto de crescimento. Em outubro de 1975 é fundada a
Missão Priscila e Aquila, sendo em 1979 transformada em Junta Missionária da denominação.
O trabalho em Aracaju iniciou-se entre 1979 e 1980 com o Pastor Darci da Silva Lima. Por
motivos de saúde, o pastor Darci não pode continuar, e a Missão Priscila e Aquila encaminha
um jovem casal de missionários (ele pastor e sua esposa missionária), são enviados para
reforçar o trabalho, Dez anos depois do início da denominação. Na época ele tinha 22 anos e
ela 19 anos. Em entrevista o referido pastor afirma que necessitou exercer além do trabalho
religioso, outras funções que possibilitasse o sustento do casal. Após 28 anos de atividades
ininterruptas do casal, a Igreja Presbiteriana Renovada de Aracaju conta hoje com 04 igrejas
na cidade de Aracaju, e duas no interior do Estado de Sergipe.
Este comportamento aliado ao crescimento da igreja foi um dos fatores motivadores para a
recente mudança de endereço. Há aproximadamente três anos saiu de um pequeno templo no
centro da cidade, para um espaço maior, numa região de expansão da cidade, ao lado de um
Shopping Center. O que revela o espaço midiático que a mesma tem alcançado.
2100
igreja, que conta com um grande número de jovens, muitas famílias e mulheres
desacompanhadas.
Uma das visitas realizadas se deu em um culto de batismo, onde novos membros seriam
recebidos na Igreja. Durante 10 minutos foi mostrado um vídeo com entrevistas de alguns
destes novos membros, e um dos destaques era a receptividade da igreja logo que se chega
pela primeira vez.
Em entrevista realizada com um dos membros da IPRA, o mesmo afirma que a igreja através
das palestras, das celebrações (chamada pelo entrevistado de liturgia do culto) apresenta uma
proposta de vida que leva a pessoa a “buscar Deus” (Entrevistado). Na fala é revelado que
para ser membro da igreja é preciso participar dos estudos específicos. Isto, segundo ele,
revela organização. Um dos detalhes que apontam já para um projeto ético-político é a
presença de uma liderança específica. Esta liderança é salientada pelo entrevistado como algo
bom, são “pessoas disponíveis e comprometidas”. Está sob a liderança de alguém é
importante para uma sociedade organizada. O que revela como a igreja se preocupa em
ensinar seus membros, pois os mesmos precisam se adequar ao estilo de vida renovado. Esta
perspectiva hierárquica aponta para um princípio claro dentro do projeto ético-politico: a
obediência.
Entende-se aqui projeto ético-político renovado, como a construção uma sociedade que tem
princípios em uma interpretação das escrituras sagradas do cristianismo, onde a família é vista
como centro da sociedade, e na centralidade da família está o homem. Segundo um dos
entrevistados o tema família é tratado com seriedade pelos pastores da igreja, não aceitando
como membros efetivos da igreja pessoas que não tenham sua vida conjugal regularizada,
com o estabelecimento do casamento civil formal.
Nas palavras deste entrevistado, “eles são muito fieis, ele [o pastor] não dá vazão para casais
que vivem juntos, mas no papel não são casados. Não participa de nenhum grupo, não
participa da ceia. [...] ele coloca isso, o homem é o chefe da família [...] o homem tem que
viver para a mulher e a mulher para o homem. [...] como a Bíblia fala”.
2101
Esta ideia de vida renovada relacionada com um projeto familiar maior é percebida na fala
dos seus membros. No mural de recados da igreja, disponibilizado no sítio da igreja na
internet encontra-se postado:3
A família do pastor é vista como um exemplo por algumas pessoas. O pastor se coloca a
disposição para orientar os casais, é o que revela os entrevistados. Na igreja há duas
atividades voltadas para a orientação da vida conjugal. Semanalmente a pastora (como é
chamada a esposa do pastor) reúne-se com as mulheres e uma vez por mês à noite o pastor
com os homens.
Considerações finais
3
Disponível em: http://www.vidarenovada.com.br/ em 24 de abr. de 2012. Manteve-se a grafia original da
postagem no sítio da igreja.
4
Nas normas da IPRB (IGREJA PRESBITERIANA RENOVADA DO BRASIL, 2002),
2102
Art. 72. No ato de admissão, o novo membro deverá afirmar que: I. obedece a Deus e
sujeita-se à Igreja, enquanto esta for fiel à Bíblia; II. mantém sua vida em estado de
santificação, conforme os ensinos bíblicos [...]; III. busca com interesse o batismo com o
Espírito Santo e os dons espirituais, conforme [...]; IV. acha-se liberto de todos os vícios e
de tudo que provoque sensualismo [...]; V. abstém-se de todos os negócios inconvenientes
especialmente os relacionados a vícios, a loterias, a rifas, etc. [...]; VI. abstém-se das coisas
sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne sufocada e da fornicação [...]; VII. acata as
deliberações da IPRB, tomadas por seus órgãos administrativos.
Há necessidade de identificação com o público alvo, tanto por parte da pastora, quanto do
pastor. O público deve perceber que há na liderança um comportamento semelhante ao dele,
comportamento de alegria e satisfação, pois isso também é doutrinador. É como se esta fosse
uma mensagem silenciosa, mas enfaticamente comunicada neste momento.
Além dos discursos, as outras falas (cânticos, gestos, orações, avisos etc.) mantêm a mesma
perspectiva. Sem uma reflexão, sem levar a questionamentos que possibilitem uma interação
com a sociedade. Os discursos são personificados, pessoais. Tratam da relação individual com
o divino, com a igreja e com a família. Não há uma preocupação com a sociedade como um
todo.
É um discurso individualizante, como se espera dos discursos aos segmentos médios urbanos,
que mantém a intersubjetividade distante, expondo um individualismo, que se apresenta a
partir de um discurso que valoriza apenas a relação com a divindade e a necessidade de uma
2103
vigilância constante para não cair em pecado. Qualquer expressão de coletividade é exposta
dentro de um projeto maior de individualização.
Em nenhum momento desta observação, houve um discurso que mostrasse uma relação de
igualdade entre homens e mulheres, ou que estabelecesse uma superioridade masculina de
forma explícita. Entretanto pude perceber mesmo não havendo uma exposição específica,
gestos, atitudes, comportamentos revelam uma mulher submissa, recatada, que espera ser
chamada à cena para desempenhar seu papel.
Como já foi dito, a presença feminina durante os cultos é marcante. Tanto na recepção dos
visitantes, como na própria plateia. Ao ouvir os depoimentos de pessoas que iriam se batizar
no telão, e depois em vídeos postados na internet, percebe não só a presença feminina, como a
influência delas no processo de captação de novos membros. Dois dos depoimentos
observados mostraram que os maridos foram levados para a igreja pelas suas esposas, durante
uma crise no casamento. É o foco na reestruturação familiar.
E esta é uma tônica muito forte no discurso da pastora da Igreja. Em entrevista cedida a um
programa de televisão local5 em março de 2010, ela fala da sabedoria da mulher em “construir
sua casa”, colocando nas mãos da própria mulher a responsabilidade de manutenção do
casamento. Ela afirma falando diretamente a mulheres: “Busque em Deus o seu bem estar,
você está completa, por que aí você vai fazer do seu casamento não uma rotina, mas uma
novidade diária” (ANDRADE, 2010).
A presença nos cultos como auxiliar, revela um lado genuinamente maternal. A atitude de
companheira presente que está sempre disposta a servir seu marido. Durante um dos cultos a
pastora se aproximou do seu marido para arrumar a sua roupa (gravata). Como a própria
pastora havia dito na entrevista dada a um programa local de televisão (entrevista citada
anteriormente), há uma necessidade de a mulher cuidar da sua casa, o que a faz sábia, e cuidar
da aparência do marido faz parte desta sabedoria. Foi uma manifestação de carinho e cuidado
com o esposo em público que revela a “sabedoria da mulher”. Este modelo construído de
mulher líder (ideia de chefia) passa a ser observado pela comunidade, e de alguma forma é
reproduzido por outras mulheres.
Algumas pistas se apresentam neste estudo que merecem atenção mais específica. A crença
de uma natureza feminina presente no discurso e na prática da Igreja Presbiteriana Renovada,
5
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=kYnbZRUuv9s&feature=related
2104
o que demonstra claramente que dentro do projeto ético-político não há espaço para igualdade
de gênero. Outro ponto que merece destaque é a centralidade na figura masculina que reforça
o discurso e a prática de uma dominação masculina, fazendo da mulher uma protagonista por
aproximação, neste processo de estabelecimento de uma sociedade renovada.
No projeto ético-político deste modelo de pentecostalismo há espaço para a família, para uma
família que vive um estilo de vida específico. Estabelecido a partir de um discurso
individualizante que aponta para uma sociedade melhor de se viver. Uma grande família,
liderada por pessoas sábias e preparadas para tal ação. Esta liderança, escolhida por Deus é
quem podem orientar todos no caminho da felicidade.
Um projeto arriscado, mas que vem ganhando muitos adeptos. Não só de pessoas não
oriundas de igrejas evangélicas, mas também a presença maciça de cristãos evangélicos que
tem migrado para a Igreja Presbiteriana Renovada, em busca de uma vida renovada.
Referências
ANDRADE, Cláudia Helena Josepetti. Família. Programa Você em Dia. Aracaju, Março de
2010. Entrevista concedida a Tamires Franci. Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=kYnbZRUuv9s&feature=related>. Acesso em 05 de mai.
2013.
2105
ANPUH, Ano III, n. 8, Set. 2010, p. 121-164. Disponível em:
<http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf7/08.pdf> . Aceso em: 20 de dez. 2012.
________. Protestantismo no Brasil: um caso de religião e cultura. Revista USP, n.74, São
Paulo, p. 160-173, 2007. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/74/12-
antoniogouvea.pdf>. Acesso em 23 de mai. 2013.
SANTOS, Leontino Farias. Educação: libertação ou submissão. São Paulo: Simpósio, 1999.
2106
2107
A religião, a racionalidade protestante e a sociedade de Fausto
Carlos Antonio Carneiro Barbosa1
Introdução
1
Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Mestre em Ciências da Religião pelo Mackenzie. Membro
do GEstudos do Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP) da PUC/SP. Orientado pelo Prof. Dr. Edin Sued
Abumanssur. Contato: carlosantoniobarbosa.doutorado@aol.com.
2108
À figura histórica de Johann Georg Faust agregam-se, na Alemanha do século XVI,
características bastante peculiares de homens como Agrippa von Nettesheim e Paracelso,
ambos alquimistas e seus contemporâneos, gerando o substrato lendário do mito. Após a
publicação em 1587 do Faustbuch2 (SPIES; SCHWENGBERG, 1885), registro não
totalmente verídico acerca das façanhas e profanidades de Georg Faust, o mito incipiente
chega à Inglaterra agregando desta vez traços personais do mago elisabetano Doutor John
Dee. Dessa mescla entre o mito alemão e o mago inglês nasce o Fausto literário por meio da
peça escrita entre 1588 e 1589 por Christopher Marlowe, A história trágica do Doutor Fausto
(MARLOWE, 2006). Popularizada, a história ganha as feiras europeias adaptada para o teatro
de marionetes. E foi assim nesse formato que o mito chegou ao conhecimento de Johann
Wolfgang von Goethe, poeta, dramaturgo e filósofo alemão. Autor de Fausto: uma tragédia –
primeira parte (GOETHE, 2004) e Fausto: uma tragédia – segunda parte (GOETHE, 2011)
— 1808 e 1832 —, foi o responsável pela consolidação e universalização do mito, sendo
considerado seu principal expoente. Trabalho de toda uma vida, o Fausto goethiano foi
amplamente explorado por Carl Gustav Jung, fazendo parte considerável de seus estudos
sobre a psicologia arquetípica do inconsciente.
Dentro deste escopo, pode-se pensar na seguinte evolução da imagem do Dr. Fausto: (1)
personagem histórico que viveu na época da Reforma; (2) personagem lendário; (3)
personagem literário e, finalmente, (4) adquire o status de símbolo do homem contemporâneo,
passando a gerir ideologicamente o seu discurso. Este sentido acerca do Fausto adquirido
através da história fala ao homem contemporâneo enquanto sujeito e o interpela, “mostrando
que se encarnou na criatura humana, com todas as consequências decorrentes de uma tal
dominação” (JUNG, 2011d, p. 69).
2
O Faustbuch — Das Volksbuch von Doktor Faust —, impresso originalmente em Frankfurt, contém o relato
acerca das origens do Doutor Fausto. Advindo sobretudo da tradição oral, o mito nasce fruto da ampla polêmica
surgida em torno da figura do mago e alquimista Johann Georg Faust, o Fausto Histórico, suscitando as mais
imprevisíveis associações no imaginário popular as quais, amalgamadas, dão corpo ao Fausto Lendário,
perpetrado na obra editada e impressa em formato popular — Volksbuch — por Johann Spies.
2109
psicologia profunda junguiana no que tange, sobretudo, à dominação pela sombra e às demais
categorias relacionadas à fenomenologia arquetípica faustiana, em suas relações com o
fenômeno religioso contemporâneo — os resultados de nossa pesquisa encontram-se também
publicados no livro O Deus sensual – psicologia simbólica e religião: o mito de fausto e a
representação do sagrado na religião de mercado (BARBOSA, 2013) e na obra Religião e
psique – psicologia social: estudos de religião e protestantismo (GOMES; BARBOSA,
2012), no capítulo intitulado Fausto e a Noite de Walpurgis: o mito do Fausto, a sombra e a
psicologia junguiana.
Ao primeiro alvor da Igreja Cristã, a rejeição do status quo foi motivo fulcral para que a ética
religiosa racional viesse a fincar suas raízes positivas e primárias no solo das camadas sociais
de menor evidência atraídas por promessas proféticas a um movimento religioso de caráter
ético, no caso, o cristianismo matricial, portador da ética do Sermão da Montanha, pois,
conforme descreve Max Weber, é neste sermão que se encontra a mais pura expressão da
ética absoluta do Evangelho:
O cristianismo, assim, surge como uma compensação à religião romana, frente à degradação
do império e assim o arquétipo cristão constela-se e permanece praticamente incólume como
ordenador do Ocidente até o advento da modernidade. Com o surgimento dos alquimistas por
volta do século X, os quais exaltam a natureza e por meio da gnose buscam meios de
desvendar os seus mistérios, a matéria ganha o status alquímico que a nivela com o espírito,
extinguindo conceitualmente a separação entre as coisas terrenas e as celestiais, conforme
propunha o dogma cristão. Entretanto, tal proposta só colheria seus primeiros frutos durante a
Renascença que marca o início do heliocentrismo moderno que, a despeito dos antigos mitos
2110
solares, fundamenta-se na racionalidade não fugindo, entretanto, do retrocesso ao arquétipo
pré-cristão presente nos mistérios de mitra da religião romana.
Essa psicologização do novo culto ao Sol leva o homem de volta à terra, após um longo
período em que só tinha olhos para o céu, para o porvir. A natureza e toda a sua exuberância é
redescoberta, a primeira viagem de circum-navegação do globo vem provar que os abismos e
os monstros das extremidades da terra eram meramente ficcionais; os fundamentos da ciência
são lançados e até a arte substitui a temática religiosa e passa a retratar o mundo visível;
quebrando tabus em típicos retratos pré-freudianos: eros e thanatos, na expressão de toda a
nudez não mais castigada e na dissecação de cadáveres em nome da ainda incipiente medicina
moderna: “a arte [...] foi dominada pela multiplicidade de aspectos da terra, por seus
esplendores e horrores, e tornou-se o que fora a arte gótica: um verdadeiro símbolo do espírito
da época” (JUNG, 2008, p. 329).
Ainda segundo Jung (2011i), apesar de todas as inovações renascentistas, ocorridas nos
campos das artes, filosofia e ciências, é bastante significativo que a representação artística do
símbolo cristão, a cruz, não foi alterada, demonstrando a desvalia não sofrida pelo homem
religioso frente ao homem da terra: permanecem os dois modelos, entretanto, ciência e fé
prosseguem nessa rota de crescente distanciamento chegando ao presente século na expressão
de um Zeitgeist caracterizado pela cisão psicológica coletiva e a um passo da total
desagregação da dominante cristã.
Os magos, do alto clero, de pronto atendem às classes mais abastadas, pois em sua grande
maioria, têm sua origem na nobreza ou são detentores de grande cultura e erudição — nobres,
clérigos, filhos de comerciantes —, ou enquadram-se em ambos os casos. A presença dos
magos do alto clero na corte real era fato: consultorias sobre questões científicas envolvendo
agricultura, geometria, cosmografia náutica, sucessão real, guerra ou aliança entre reinos ou
2111
questões hermético-alquímicas — menos nobres, mas não menos importantes à época —
como as artes divinatórias, as chamadas mancias, prognósticos, horóscopos, poções e venenos
poderosos. Nos palácios — mas também nos tugúrios, na atuação dos magos do baixo clero
—: o caos é organizado!
Como única opção para evitar ou eliminar suas mazelas, sobretudo a enfermidade, o
indivíduo, enquanto indivíduo e não no escopo da coletividade, começou a buscar no
feiticeiro seu conselheiro pessoal e espiritual. Alcançando prestígio e contando com a
proteção de agrupamentos humanos e tribos, em virtude da prática milagrosa realizada
mediante a invocação dos seus espíritos e divindades particulares, os magos passaram a
formar, em condições favoráveis, comunidades religiosas, expandindo-se além dos limites
regionais e associações puramente étnicas, às dinastias hereditárias de mistagogos como as
dos mistérios, gnose e sociedades secretas. Tais mágicos particulares prometiam livrar o
indivíduo, solo, das enfermidades, da pobreza e doutras formas de sofrimento e infortúnio.
2112
A concentração da energia dos arquétipos e as ações coletivas
Naquela época, o povo alemão vivia o caos e a desorganização do seu mundo há anos; é
quando o reflexo dessa crise insolúvel passa a incidir sobre as pessoas desorientando-as
psiquicamente. Para compensar o fato, emergem do inconsciente coletivo os arquétipos da
ordem que encontram na consciência alienada do povo o solo fértil de onde irromperiam os
instintos de massa: “o ataque tempestuoso das forcas arcaicas foi quase universal [...] a
principal diferença residia na própria mentalidade alemã que, em razão de sua extraordinária
tendência para a massificação, mostrou-se mais propícia” (JUNG, 2011a, p. 53).
Por meio da adoção de todo um aparato cênico-religioso firmado nos mitos teutônicos
redivivos com o fim de arregimentar o povo para a sua causa e pelo emprego de ritos e outras
técnicas de psicologização das massas, sabiam como a energia dos arquétipos poderia ser
concentrada levando o exército, as tropas e multidões inteiras a ações coletivas, na adoção dos
mitos ancestrais adormecidos como símbolos do partido dos trabalhadores e na consequente
constelação dos arquétipos do panteão nórdico no inconsciente coletivo: “este fenômeno
acontece no indivíduo como revolução psicológica, mas pode também manifestar-se sobre a
forma de fenômeno social” (JUNG, 2011c, p. 21).
Procedendo desse ponto o trespassing, temos que Max Weber em seu ensaio A Psicologia
Social das Religiões Mundiais (WEBER, 2008, 189-211), explica o momento psicológico-
2113
histórico, no qual os feiticeiros e magos passaram a ser valorizados e consultados por
indivíduos em busca de soluções para seu sofrimento pessoal. Paralelamente para Jung
(2011g), o Fausto alude a uma imagem originária correspondente à figura do médico,
professor que, por outro lado, é o bruxo, um feiticeiro tenebroso. Dois arquétipos aqui são
levados em conta: o arquétipo do sábio — portador de auxílio e salvação — e o do mágico,
ilusionista, sedutor, enganador, diabolos. Tal imagem dormita no inconsciente coletivo até ser
despertada em um dado momento crítico em que a humanidade costuma buscar por
menestréis de uma nova história da realidade humana, os Führers, os mestres, os médicos-
monstros, os quais representam o médico mítico e a força dos opostos do doutor cura-feridas,
o qual, portador de uma grande ferida, costuma transferi-la de pronto aos seus seguidores: “as
palavras substituem coisas, são palavras de força. Surge simplesmente um mágico da palavra,
pelo qual nos deixamos impressionar demais, porque aquilo que nos é estranho é tomado
como algo particularmente profundo e importante” (JUNG, 2011h, p. 111).
[A] libido de uma atividade espiritual passa a um interesse essencialmente material, sendo
que o indivíduo acredita erroneamente que a forma nova seja de natureza espiritual. Em
princípio, tal conclusão é falsa, pois leva em conta somente a relativa semelhança das duas
formas, mas ignora a sua diferença tão essencial quanto a semelhança (JUNG, 2011b, p.
31).
Podemos falar aqui de categorias, em uma análise do discurso que leva em conta a
metalinguagem, tomando o proposto Templo de Salomão como duas palavras containers:
templo e Salomão. Em uma análise ainda inicial, incipiente, abordaremos a palavra templo.
Templo é uma palavra container cujo conteúdo exprime toda uma gama ideológica, um leque
de referenciais e de representações objetivas e subjetivas, contemporâneas e do passado.
Como o enigma é decifrado nas camadas do inconsciente? Como é entendido o signo pela
pessoa simples, culta, religiosa, ateia, pelo moço, pelo idoso, pelo homem, pela mulher, pela
2114
criança? Templo expande-se psicofilologicamente em contemplo (minha atitude diante de
Deus). Psicoauditivamente em Tempo (para Deus) e Tempo (é dinheiro) ou; também: Tento —
de tentativa — o templo é o lugar da tentativa da fé, da mudança, de encontrar a Deus; é onde
“eu tento isto” ou “tento aquilo”. Psicoauditivamente por aproximação silábica,
desconhecimento do significado em Tem pró (s) (e contras). Psico-historiograficamente em
Templários, os cavaleiros que defendiam o templo:
É fato comprovado que as associações não estão ligadas entre si apenas por meio do
sentido, ou respectivamente pelas leis fundamentais da associação — contiguidade e
semelhança — mas também por certos princípios puramente externos e acústico-motores
[por exemplo] ressemblance phonétique, ressemblance graphique, ressemblance syllabique
(JUNG, 2011f, p. 47).
O dote desse legado, dessa palavra container, Salomão; é, segundo nos informa a tradição
judaico-cristã, o dom de se tornar o homem mais rico de todos os tempos e,
consequentemente, de ser o homem mais poderoso. O dom da riqueza, nesses termos, “pode
ser transmitido aos fiéis por profecia“ (BARBOSA, 2013, p. 181) que, assim, são convidados
à aventura da luta, da revolta contra a miséria, do esforço e do sacrifício, pois dessa forma
atrairão para si as riquezas de Salomão.
Tal chamado à aventura, não esboça psicologicamente uma jornada da fé, senão um mergulho
aos palcos do inconsciente coletivo, nascedouro de uma religiosidade não originada da Imago
Dei, mas sim da sombra (BARBOSA, 2013), daquele lado mais obscuro da personalidade
humana, cenário propício para o surgimento de forças inconscientes incontroláveis, na
emergência de um sistema de culto que, inconscientemente, privilegia a sombra como ponto
3
O corpus inicial da pesquisa reúne sermões e pronunciamentos proferidos entre julho de 2010 a fevereiro de
2011, transmitidos originalmente ao vivo e disponibilizados no site IURDTube pela própria Igreja Universal do
Reino de Deus. IURDTube. Disponível em: <www.iurdtube.com.br>. Acesso em: 19 fev. 2011.
2115
de referência para o seu desenvolvimento e adoração, na mais tácita expressão de formas
elementares de vida religiosa, como a própria religião de mercado e seus derivados.
Considerações finais
“A solução que Goethe deu ao problema ainda era medieval. No entanto correspondia a
uma atitude anímica, que dispensava a proteção da Igreja. Goethe era moderno e
imprudente. Nunca entendera bem o que o dogma cristão protegia na Noite de Walpurgis do
Espírito” (JUNG, 2011e, p. 119).
Referências
BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro. Faust’s Society. Os Três Pilares. 1ª edição. São Paulo:
MHW, 2007.
__________. Fausto e a Noite de Walpurgis: o mito do Fausto, a sombra e a psicologia
Junguiana. In: GOMES, Antonio Maspoli de Araujo; BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro
(orgs.). Religião e psique – psicologia social. Estudos de religião e protestantismo. 1ª edição.
São Paulo: Reflexão, 2012, p. 143-180.
________. O Deus sensual – psicologia simbólica & religião. O mito de Fausto e a
representação social do sagrado na religião de mercado. 1ª edição. São Paulo: Reflexão, 2013.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. Uma tragédia – primeira parte. Tradução de Jenny
Klabin Segall, 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2004.
________. Fausto. Uma tragédia – segunda parte. Tradução de Jenny Klabin Segall, 3ª edição.
São Paulo: Editora 34, 2011.
4
A Noite de Walpurgis, na concepção de Goethe, equivale de certa maneira às saturnais ou bacanais da
antiguidade e tem seu respaldo nas descrições obtidas pela vasta pesquisa empreendida pelo poeta acerca das
missas satânicas na Idade Média. É na Noite de Walpurgis que se dá o descensus ad inferis de Fausto, pois a sua
busca orgiástica não finda e termina por absorvê-lo.
2116
GOMES, Antonio Maspoli de Araujo; BARBOSA, Carlos Antonio Carneiro (orgs.). Religião
e psique – psicologia social. Estudos de religião e protestantismo. 1ª edição. São Paulo:
Reflexão, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo. Tradução de Márcia C. da Sá
Cavalcante, 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011a.
________. A energia psíquica. Tradução de Maria Luiza Appy, 11ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011b.
________. Civilização em Transição. Tradução de Lúcia Orth, 4ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011c.
JUNG, Carl Gustav. Escritos diversos. Tradução de Mateus Ramalho Rocha e Lúcia Orth, 2ª
edição. Petrópolis: Vozes, 2011d.
________. Estudos alquímicos. Tradução de Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva e Maria
Luiza Appy, 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011e.
________. Estudos experimentais. Tradução de Lúcia Orth, 2ª edição. Petrópolis: Vozes,
2011f.
________. O espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros, 6ª edição.
Petrópolis: Vozes, 2011g.
________. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho, 2ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
________. O Símbolo da transformação na missa. Tradução de Mateus Ramalho Rocha, 6ª
edição. Petrópolis: Vozes, 2011h.
________. Psicologia e alquimia. Tradução de Maria Luiza Appy, Margaret Makray e Dora
Mariana Ribeiro Ferreira da Silva, 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 2011i.
MARLOWE, Christopher. A história trágica do Doutor Fausto. Tradução de Adolfo de
Oliveira Cabral, 1ª edição. São Paulo: Hedra, 2006.
SPIES, Johann; SCHWENGBERG; Maximilian. Das Spies'sche Faustbuch und seine quelle.
1ª edição. Berlin: O. Parrisius, 1885.
WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de José Marcos
Mariani de Macedo, 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
________. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra, 5ª edição. Rio de Janeiro:
LTC, 2008.
________. Ciência e política. Duas vocações. Tradução de Jean Melville, 2ª edição. São
Paulo: Martin Claret, 2009.
Internet
IURDTube. Disponível em: <www.iurdtube.com.br>. Acesso em: 19 fev. 2011.
2117
2118
A teologia da prosperidade e Igreja Universal do Reino de Deus
Fernanda Vendramini Gallo1357
Introdução
Questões metodológicas
A ciência, no estudo da religião, para Oliveira (1998), é a responsável por traduzir em códigos
científicos a linguagem, as metáforas, analogias e as experiências emocionais, sem cair, como
muitas vezes acontece, em um reducionismo empobrecedor. É fundamental entender o
discurso do crente de maneira a traduzi-lo corretamente, sem pré-conceitos.
A metodologia da Análise de Discurso (AD), que ao mesmo tempo se faz teoria, desenvolvida
por Pêcheux é constituída por uma reflexão feita a partir da linguagem, sujeito, ideologia e a
1357
Mestranda em Sociologia pela UEL. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela mesma universidade.
Bolsista Cnpq. Orientado pelo Prof. Dr. Fabio Lanza. Contato: nanda-gallo@hotmail.com.
2119
história, colocando em evidência o papel da interpretação. De acordo com Eni Orlandi (1999,
p. 09), “não temos como não interpretar”, ou seja, sempre estamos sujeitos a interpretar o que
está à nossa volta, seja uma imagem, uma música, um texto e tudo o mais que nos é
apresentado, de maneira que os sentidos nunca estão soltos. Na AD, a linguagem não é
entendida como um sistema abstrato, mas enquanto discurso, como maneira de dar
significado, de produzir sentidos.
A palavra é um signo social. Sua análise permite compreender seu funcionamento como
instrumento da consciência, pois ela acompanha todo ato ideológico. “A palavra está presente
em todos os atos de compreensão e em todos os atos da interpretação” (BAKHTIN, 1986, p.
38).Toda esfera ideológica reage às transformações da realidade. A palavra é o elemento que
permite registrar as mudanças sociais e suas fases transitórias, pois “são tecidas a partir de
uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios” (BAKHTIN, 1986, p. 41).
A concretização deste trabalho foi possível a partir da coleta de informações, por meio da
pesquisa participativa e da realização de uma entrevista com o bispo e pastor (sob o
pseudônimo de) João Silva1358 da Igreja Universal na Rádio Atalaia na cidade de Londrina.
Antes vinculado a Igreja Católica e ao espiritismo, o bispo Silva em busca de solucionar
problemas familiares recorreu à IURD aos dezenove anos e converteu-se. Após exerce doze
1358
João Silva nasceu em vinte e sete de junho de 1960, na cidade do Rio de Janeiro, formado em teologia e
membro da Igreja Universal do Reino de Deus desde 1979.
2120
anos como pastor, foi consagrado bispo em 1985, correspondendo a vinte e quatro anos com
este título até 2009, ano em que foi realizada a gravação1359. A pesquisa participativa
acompanhada da elaboração de um caderno de campo foi realizada ao longo dos anos 2009,
2010 e 2011 nos cultos, com maior atenção às segundas-feiras, dia destinado pela IURD
exclusivamente à prosperidade financeira.
A partir da década de 1990, a sociedade brasileira passou a difundir com mais ênfase pelos
meios audiovisuais e impresso os valores capitalistas do empreendedorismo neoliberal. No
período, merece destaque o papel do desempenho individual nas conquistas materiais (LIMA,
2009).
A Teologia da Prosperidade pode ser entendida a partir da busca pelo sucesso pessoal como
vontade do fiel e compromisso de Deus. Não mais movidos apenas pelas suas necessidades,
os indivíduos da sociedade contemporânea guiam suas ações em busca da satisfação de seus
desejos. Constitui-se assim uma nova identidade, construída a partir do consumo dos bens que
possuem e que podem possuir.
A gente usa a prosperidade como dom de Deus. Nós vemos vários versículos em Isaias em
outros livros da Bíblia, Deus dizendo que é dom dele que nós comamos, que nós bebamos,
que nós tenhamos o melhor. Como eu disse para você a pouco, Deus é pai e um pai que tem
prazer. Ele tem prazer em nos dar o melhor. Então, por isso, nós somos muito enfáticos
quando falamos isso para as pessoas em nossas reuniões (SILVA, 2009).
Este ideal de vida contemporâneo - caracterizado pela busca da felicidade por meio do
dinheiro, saúde e bem-estar - é notado em todo discurso iurdiano. Diz um pastor em Londrina
1359
Esta entrevista será doada ao Centro de documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) na Universidade
Estadual de Londrina- PR.
2121
É inadmissível eu seguir esse Deus e viver uma vida de miséria, ser pisado pelos outros.
Deus quer que você tenha um bom testemunho. Eu sei que o Senhor tem mais que me dar
do que esse meu salário aqui no altar (Informação verbal). 1360
A Igreja Universal usa os bens de consumo e bem-estar físico e emocional como requisitos
para demarcar as distinções sociais. Ela determina, de forma paradigmática, o que é ser rico
ou pobre na sociedade atual.
No que consiste uma vida abundante? É você comer o melhor, é você ter o seu carro zero
quilômetro... já pensou você ter um carro velho quebrando todo dia na rua... Poxa, que vida
é essa? Poxa... Meu carro me dá problema todo o dia. É você olhar para sua família e lá em
casa ta tudo doente. É você olhar pra sua casa, sua casa como se costuma dizer chove mais
dentro do que fora. Quer dizer, o meu Pai é rico, é dono de tudo. Ele diz minha prata, meu
ouro. E eu, no entanto, vivo uma vida miserável, meu carro quebrando, o meu salário mal
dá para pagar minhas despesas básicas, eu não tenho um lazer com minha família, eu não
tenho uma vida próspera (SILVA, 2009).
Longe de seguirem uma orientação utilitarista, as escolhas por certos bens e serviços são
eticamente justificadas pela Teologia da Prosperidade (MESQUITA, 2007). O consumo passa
a ter sentido religioso.
[...] eu considero uma pessoa próspera, aquela pessoa que ela olha pro seu cônjuge, marido
ou esposa e diz assim: você é feliz comigo?. Eu sou feliz com você, eu te amo, você me
ama?Eu te amo. Olha pros filhos e diz, olha assim pros filhos e todos saudáveis. Tudo bem.
Olha pra conta bancária, nunca no vermelho. Pros bens, eu tenho meu carro importado,
minha esposa tem o carro dela importado. Ah... nas férias eu viajo pra Disneylândia, vou
conhecer a Europa, Paris, etc., etc... eu olho pra dentro de mim tenho paz interior. Então a
pessoa próspera consiste... a prosperidade, eu, eu, eu abro esse leque, eu abranjo tanto a
vida financeira, como a vida familiar, física e a espiritual (SILVA, 2009).
Essa vida dada por Deus é conquistada no renascer no Espírito Santo. A experiência do
Pentecostes que acontece diariamente na IURD motiva o fiel a abandonar sua antiga vida e
hábitos, considerados do Diabo e adotar esse novo modo de viver a fé. A partir da Teologia da
1360
A expressão Informação verbal será usada ao longo do texto para referenciar os discursos proferidos em
cultos que aconteceram nas segundas-feiras do outubro de 2011 na Igreja Universal na cidade de Londrina, dia
destinado à prosperidade financeira.
2122
Prosperidade, o contrato com Deus passa a ser permitido. Ao ofertar um bem material
cobrando a resposta, os fiéis transformam-se em consumidores do poder de Deus. A eles são
disponibilizados nos cultos uma gama de bens simbólicos de salvação, que prometem livrar
sua casa, seu negócio, ou até mesmo sua vida, de toda influência e presença do Diabo, que o
impede de prosperar.
[...] nós procuramos mostrar ao povo que Deus quer que nós tenhamos essa vida abundante,
tanto é que Jesus... Ele diz lá em João 10,10 eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância, quer dizer, ele vem nos trazer vida (SILVA, 2009).
Esse método racional de se relacionar com Deus por meio das ofertas e compra de bens
simbólicos, estabelece um novo paradigma de salvação. O Reino dos Céus está agora na Terra
ao alcance de todos. A vida sofrida que tinha como esperança o gozo do Paraíso prometido é
desprezada e considerada obra do Diabo.
Igrejas como a IURD são verdadeiros hospitais espirituais, centros de ajuda para ajudar a
quem sofre. A Teologia da Prosperidade é o antídoto desenvolvido para combater o mal.
Problemas de saúde, brigas familiares, vícios, falta de dinheiro, são solucionados a partir do
sacrifício ofertado a Deus.
Então por isso que hoje, nós temos na igreja ex-mendigos, que chegaram na igreja
mendigos, maltrapilhos, fétidos. Como a Igreja Universal está de portas abertas tanto para o
milionário, quanto o mendigo. Então a pessoa sentou lá no cantinho dela e começou a ouvir
o pastor ou bispo, tanto faz pastor ou bispo pregar, que Deus é rico, que Deus quer que nós
tenhamos o melhor, que Deus quer que nós tenhamos uma vida farta, abundante. Aí então
essas pessoas assim... poxa, quer dizer que eu sou mendigo e Deus não quer que eu viva
assim, Deus é um pai que quer que os filhos sejam ricos. Ah não, eu vou me tornar um
dizimista. Dos papelões que eu vendo eu vou tirar o dízimo. Que é a décima parte do que a
pessoa recebe que a Bíblia ensina, não é a igreja Universal, não são as igrejas evangélicas
que ensinam, mas a Bíblia ensina isso... Vou começar a tirar o dízimo e vou fazer isso e vou
fazer aquilo. Então essas pessoas começaram a se revoltar com a situação e não com Deus.
Muitas pessoas infelizmente veem a situação dificílima e se revoltam com Deus, Deus me
deixa nessa vida, Deus não quer... Deus não me ama. Não! A culpa é da pessoa, a pessoa
que procurou de uma maneira ou de outra essa vida (SILVA, 2009).
2123
Deus quer distribuir sua herança, a igreja ensina os métodos para conquistá-la e a seleção e
interpretação de trechos da bíblia legitima as falas do pastor. Seguindo essa lógica, a culpa
daquele que não prospera é sempre individual.
Na procura por melhores condições econômicas, como afirma Lima (2010), os fiéis são
motivados a acreditarem no seu potencial para o comércio, para o negócio próprio. A Igreja
Universal incentiva o empreendedorismo individual. Livrando-se da figura do patrão e do
risco do desemprego, o indivíduo passa a depositar toda sua confiança em sua fé e orientações
da igreja.
Para que a prosperidade possa ser efetivada, o fiel deve ser pontual com seu dízimo e realizar
os sacrifícios, ou seja, o contrato com Deus.
Segundo os iurdianos, muitos são os que tentam impedir a pessoa de prosperar. Em diversos
cultos e durante a entrevista foi possível colher acusações dos pastores de que a mídia, os
familiares, ou até mesmo as universidades, são inimigas da prosperidade. Os que sofrem mais
acusações, contudo, são as religiões espíritas, católicas e, principalmente, as de origem
africanas. Para a Igreja Universal, o Mal está presente nesses segmentos religiosos.
2124
No início a igreja era muito perseguida por pessoas religiosas que cultuavam os espíritos, as
entidade, e por nós combatermos não a religião em si, mas os espíritos enganadores que
atuavam naquelas pessoas de uma forma direta ou indireta que destruindo vidas. Se você
me perguntar, vou ficar aqui até amanhã dizendo com quantas pessoas eu já conversei e
estavam com espíritos em suas vidas, fazendo-as é... pensar em morte, em tirar a vida de
alguém, coisas desse gênero. Então, quantas pessoas nós já vimos nesses 30 anos na Igreja
Universal? Muitas, mas por quê? Por que essas pessoas usadas pelas forças do mal, queriam
fazer coisas negativas. Quando uma vez expulsa esses espíritos, quando eu dizia em nome
do Jesus, sai! Eles saiam, obedeciam o nome de Jesus, saíam, e as pessoas se libertavam e
passavam a ter outra mente... Quer dizer, a cabeça da pessoa mudava completamente,
porque o que fazia ela pensar negativamente era o espírito. E aquele espírito uma vez
expulso de dentro dela, pronto. Ela ficava livre dele e usava do pensamento dela, que era
bom. Então por essa razão que a gente vê essa perseguição até hoje. Os espíritos usam as
pessoas contra a gente, pra tentar impedir o crescimento da Igreja (SILVA, 2009).
As outras religiões são usadas pelo Demônio, de maneira direta ou indireta. As divindades são
consideradas como mais uma designação do Mal, que enganam o crente e o impede de possuir
a vida prometida por Deus. Vários são os testemunhos, inclusive do líder Edir Macedo, de
participar de outras religiões e as consequências disto. Na entrevista, o bispo João afirma:
Até os meus 20 anos, aos 19 anos eu fui católico-macumbeiro... Enfim, muitos problemas
de ordem familiar que me levaram a procurar a Igreja Universal. Alias, antes disso, então
nós mesmos católicos, nós procurávamos os centros espíritas lá no Rio de Janeiro, na
Baixada Fluminense, procurando solução pros nossos problemas, e a cada dia mais a
situação se agravando dentro de casa... E a minha mãe então, procurando depois de fazer
promessas e tanto as missas não via resultado. Disseram pra ela: procura um centro
espírita, isso deve ser trabalho, e ela foi fazer os trabalhos que eram mandados fazer e
esses trabalhos não adiantavam de nada, muito pelo contrário, parecia que ela estava cada
dia pior (SILVA, 2009).
Da mesma forma que não encontramos referências sobre um Paraíso além mundo, nos cultos
da Igreja Universal, a relação com o Diabo também não está ligada à ideia de inferno ou a
condenação após a morte, mas sim aos problemas enfrentados no cotidiano. Essas afirmações
resultam em um sentimento dúbio de conforto e culpa ao fiel. Ao mesmo tempo, ele passa a
possuir uma força contra o Mal que outrora não possuía, podendo resolver seus problemas,
por meio de instrumentos que estão ao alcance de suas mãos. Por outro lado, a não superação
é carregada da ideia de culpa e fracasso pessoal.
2125
Em um culto na Igreja Universal de Londrina, o pastor revela como superar o Mal. “Deus te
dá autoridade sobre o Devorador. Você que é dizimista têm a autoridade sobre o Diabo”
(Informação verbal). Seguindo o raciocínio de que o sacrifício (material) perfeito corresponde
à materialização da fé, o pastor evidencia que ao “colocar a vida nas mãos de Deus” o fiel
consegue “convencer o Diabo que todas as áreas de sua vida não pertencem à Ele”
(Informação verbal).1361
É no sacrifício, caracterizado pelo contrato estabelecido com Deus pelo qual é necessário dar
para receber, onde encontramos a maior evidência da Teologia da Prosperidade na valorização
do individualismo. “A sua vida será o seu sacrifício” (Informação verbal), diz o pastor.
Quanto maior o sacrifício, melhor sua vida, pois o “sacrifício é o caminho mais curto entre o
querer e o sonho realizado”. E ele acrescenta. “Vejo o apartamento que eu sonho, vejo o carro
que eu sonho. Seu sacrifício vai ter que realizar seu sonho” (Informação verbal). A riqueza,
portanto, é fruto da conquista individual.
Então você vê que há pessoas baixas, altas, magras, gordas, assim como na Igreja
Universal. Há pessoas que dizem assim, não... eu me contento, olha eu cheguei na igreja
desempregado e tal. To usando como se uma pessoa tivesse falando. Cheguei
desempregado na Igreja Universal, doente, perturbado. Poxa hoje eu ganho um salário de
um mil e 500 reais onde eu trabalho hoje, eu tenho saúde, não me falta nada, eu to bem.
Graças a Deus eu to bem sim. Outros já diz não, eu quero mais, eu não aceito essa
situação, se eu posso ter uma vida arregalada, seu eu posso comer do bom e do melhor, se
eu posso conhecer o mundo, conhecer o Brasil do Oiapoque ao Chuí, pois se eu posso ter
esse privilégio de levar minha família, eu com mil e quinhentos reais vou fazer isso nunca,
mas se eu ganhar 50 mil reais por mês, eu farei (SILVA, 2009).
Considerações finais
2126
Universal torna aceitável aos seus fiéis suas práticas de arrecadação e com isso, financia seu
projeto de expansão.
A partir da dupla via de pregação, caracterizada pelo recebimento da benção por meio da
doação à Igreja, a Teologia da Prosperidade torna-se elemento fundamental para a
compreensão do sucesso desta instituição. Na busca por legitimidade, a IURD organizou-se
de tal maneira que suas influências estenderam-se para além do campo religioso e hoje
atingem a esfera política, assistencial e até mesmo comercial no Brasil e em outros países que
foram incorporados em sua estratégia de expansão.
Referências
LIMA, Diana Nogueira de Oliveira. Anticalvinismo brasileiro. Folha de São Paulo, São
Paulo, 12 jul. 2009. Caderno MAIS, p. 6.
__________. Alguns fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. Mana. [online] v. 16, Ano.
2, p. 351- 373, 2010.
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de. Estudos da Religião no Brasil: um dilema entre academia e
instituições religiosas. In: SOUZA, Beatriz Muniz; GOUVEIA, Eliane Hojaij Gouveia;
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
2127
2128
Estevam Ângelo de Souza: Pastor, escritor e liderança carismática
no Maranhão (1957-1996)
Elba Fernanda Marques Mota1
Introdução
Nossa metodologia consiste na análise das obras e dos artigos escritos por Estevam Ângelo de
Souza, pastor da Igreja Assembleia de Deus, no Estado do Maranhão. O recorte temporal data
do ano de 1957 ao ano de 1996, período em que o mesmo esteve à frente da Convenção Geral
desta denominação, ocupando o cargo de pastor presidente por 39 anos. Por ser um sujeito
histórico com grande participação na estrutura interna e externa assembleiana maranhense,
Estevam é considerado o mais importante líder da igreja durante o século XX. O que
contribuiu para isto foi a sua marcante atuação religiosa, carismática e política, resultando em
uma liderança centralizadora.
1
Mestra em História Social pela UERJ e doutoranda em História pela UNIRIO. Bolsista da CAPES. Contato:
elbamota22@yahoo.com.br.
2129
Estevam assumiu a liderança da Igreja Assembleia de Deus no período final do vitorinismo2
no Maranhão e da ascensão da liderança política de José Sarney. Quando chegou a São Luís, a
Igreja contava somente com três congregações, alguns obreiros e um número pequeno de
seguidores. Esse número foi multiplicado para o total de 167 congregações e 23 mil membros
congregados, só na capital do Estado, em 1996, ano de seu falecimento. Em 2010, a Igreja
O pastor foi a liderança que mais tempo permaneceu à frente dos principais cargos da Igreja.
Ele personificou e colocou em prática as características de um líder pentecostal, dentre as
quais está o carisma e o poder, caracterizados na direção centralizada com acúmulos de cargos
e funções e a proximidade no trato com os fiéis.
Em São Luis, a Igreja era autônoma em relação à Convenção Estadual, mas uma tradição
estabelecida era a de que o pastor da Igreja da capital seria o presidente da Convenção
Estadual. Por isso, embora reiterasse nas assembleias a disposição de deixar a presidência,
Estevam era reconduzido automaticamente. A perpetuação na presidência se dava pelo pacto
já previamente firmado por parte de outras lideranças e fiéis, pela negociação consentida de
sua liderança e pela força do seu carisma pessoal. O estilo pessoal de realização das tarefas
está claro neste depoimento (SILVA, 2001, p.89-90):
De janeiro de 1954 a abril de 1965, para todo e qualquer trabalho, dependia dos poucos
ônibus precários e dos velhos bondes, num período em que energia elétrica em São Luís
deixava muito a desejar. Em abril de 1965, habilitado para dirigir veículo passei a trabalhar
2
Período político que caracteriza os anos de liderança política do pernambucano Vitorino Freire (1908-1977),
eleito inicialmente deputado federal em 1946, e posteriormente senador por três mandatos consecutivos de 1947
a 1971 pelo Estado do Maranhão.
2130
num jipe de segunda mão que a igreja comprara. Durante 25 anos fui o motorista da igreja,
para todo e qualquer serviço, inclusive nas viagens em evangelização no interior do Estado.
Em uma Rural verde, 0 km, do ano de 72, fiz várias dessas viagens a partes mais
longínquas e até ao extremo Sul do Maranhão, viagens de semanas inteiras nos lameiros ou
sob nuvens de poeira, quando não tínhamos um só quilômetro de estrada asfaltada, exceto a
BR São Luís – Teresina. Dezoito anos depois que a Rural foi vendida, frequentemente as
pessoas me dizem: “eu lhe conheci dirigindo uma Rural verde.
A vocação pela itinerância permaneceu no seu modelo ministerial, agora contando com
veículos da própria Igreja. Neste período, foi prática constante sua ausência prolongada em
missões pelo estado, lidando pessoalmente com as questões eclesiásticas, administrativas e
missionárias. As condições precárias dos transportes e dos deslocamentos não impediam as
viagens que serviam para inaugurar igrejas e templos, ordenar pastores e nomear obreiros,
batizar, casar, tratar de problemas, conciliar tensões e conflitos, participar de campanhas
missionárias e construir uma rede de contatos pessoais. Esta rede era também de solidariedade
nas hospedagens nas casas dos crentes do interior, um sistema de ajuda informal estabelecido
entre as comunidades pobres.
Ao mesmo tempo, conforme depoimento da esposa Gizeuda, a casa da família em São Luis
servia como posto de prestação de ajuda de todo tipo a pessoas que vinham do interior do
estado. Vinham para tratamento de saúde (tuberculosos, leprosos, sifilíticos e portadores de
outras doenças), em busca de emprego ou para auxílios de outras formas, utilizando a casa
pastoral como lugar de hospedagem, alimentação e cuidados da saúde, estadias que duravam
às vezes semanas. Parte do trabalho da esposa e da família era o de cuidar deste contingente
migrante em busca de lugar na cidade.
3
Em entrevista concedida em 2008, Giseuda Souza nos relatou que um de seus arrependimentos, foi não poder
ter viajado mais em campanhas missionárias, tendo em vista o cuidado com os filhos em São Luís.
2131
Igreja precisava se organizar e estruturar-se a partir da criação de instituições que
expressassem a vida da Igreja e respondessem a uma demanda de serviços e necessidades. As
esferas de atuação da Igreja se ampliaram para a assistência social, a educação, o ensino
teológico e a comunicação.
Como pastor presidente da Convenção das Assembleias de Deus, Estevam alcançou projeção
nacional e chegou a participar de eventos internacionais pela igreja. Foi à Conferência
Mundial Pentecostal em Londres, Inglaterra, em1976, e em Jerusalém, em Israel, em 1995.
Visitou países da Europa e da Ásia e também os EUA. Segundo relatos de fiéis e familiares, o
mesmo era incansável no seu trabalho pastoral, a respeito disto, o mesmo pensava da seguinte
forma (SOUZA, 1994, p.33):
Iniciei as atividades ministeriais em 1946, com 24 anos de idade e de lá saí para São Luís
com 31 anos, em pleno vigor juvenil. Podia pregar cinco vezes aos domingos, ou 4 horas
em estudos bíblicos. Creio que a divina saúde tem preservado a resistência. Hoje, com
setenta e dois anos sinto-me bastante forte para os muitos trabalhos que Deus tem posto sob
a minha responsabilidade nesta fase da vida. Entretanto, de duas coisas estou certo. O que
fazia naqueles anos no Piauí, não poderia fazer hoje, e, o que pela graça de Deus, faço hoje,
em São Luís, no Maranhão e no Brasil não faria naquele tempo.
Ele observa isto através das mudanças por que passou a cidade, com melhoramentos da
urbanização, mas principalmente, com a chegada da idade, alcançados seus setenta e dois
anos. Estevam deixou claro, como justificativa para suas ações, que “Nos meus quarenta anos
em São Luís, as atividades ministeriais, tanto mudaram, como se multiplicaram, requerendo
cada uma delas, nova maneira de servir. Para mim, nenhum serviço da igreja é pesado demais,
nem humilhante” (SOUZA, 1994, p.34).
Aqui um aspecto deve ser analisado, o sentido do verbo servir. Este termo é constantemente
usado por Estevam em sua autobiografia e nos seus artigos publicados, no sentido de explicar
o porquê do acúmulo de cargos, e especialmente, a quantidade de trabalhos manuais, como
pedreiro nos mutirões da igreja. Na linguagem pentecostal a palavra servir assumiu o sentido
de executar tarefas eclesiásticas e mobilizar-se para cumprir deveres religiosos considerados
pela comunidade como necessários para a salvação da alma e da “aprovação de Deus”.
2132
Neste sentido, (SILVA, 2006, p.6) defende que “o pastor Estevam fundou, para a
configuração do pentecostalismo assembleiano maranhense, de um ponto de vista filológico e
da representação à qual se encerra; a era do servir”. Visto saber-se que a elaboração dos
sentidos na linguagem, numa dada cultura, obedece a fatores históricos aí concorrentes, faz-se
necessário entender os efeitos e a aplicação ideológica desse artifício na composição do poder
religioso. De acordo com esse princípio, não há hierarquia entre serviços religiosos: entre
cargos, funções ou papéis. Todos são convidados a servir.
No entanto, basta observar com um olhar mais atento a estrutura da Assembleia de Deus
maranhense e perceber uma contradição na fala do pastor Estevam, posto que na prática esta
hierarquia seja visível no cotidiano da Igreja, iniciando-se pela própria administração. A
centralização burocrática e administrativa que conseguiu reter em suas mãos foi resultado de
uma construção representacional de sua imagem, baseada principalmente no paternalismo,
respaldado por suas ações carismáticas, legitimadas no espaço do sagrado.
Desta forma, cabe ressaltar que utilizamos a concepção de carisma conforme a formulada por
(WEBER, 1994, p.159):
Características que notamos, foram atribuídas a Estevam Ângelo de Souza ainda em vida,
através da sua liderança construída, mas, principalmente por sua imagem no sentido de ser
extraordinário, que vivia o que pregava e era tido como exemplar pelos demais. Figura
carismática que fazia questão de justificar suas ações através das ações de Deus e Jesus
Cristo, muitas vezes se autodenominando como enviado, e especialmente, eleito para todas as
suas ações realizadas.
2133
à eleição de pastores na Assembleia de Deus maranhense, como pontuado pelo mesmo
(SOUZA, 1994, p.36):
Não julgo falta de modéstia afirmar ter tendência conservadora, mas tão logo assumi a
presidência da Convenção das Assembleias de Deus no Maranhão, à luz da doutrina e com
o apoio unânime de todos os convencionais, alteramos um sistema antigo no Maranhão. A
regra era esta: o obreiro era autorizado a exercer atividades ministeriais, como batizar e
celebrar a santa ceia, etc. Algum tempo depois era consagrado evangelista, e daí, há cinco
ou dez ou doze anos depois, era então, “consagrado a pastor” (ordenado ao ministério). (...)
Exposto o assunto com a devida clareza, todos os convencionais concordaram em mudar o
sistema, tendo em vista, à luz da Bíblia, que os dons ministeriais são dados por Cristo, nada
dependendo de uma decisão convencional. A nós, segundo concluímos, cabe-nos
reconhecer, a presença do dom divino naquele a quem o Senhor chama para a sua obra.
Assim decidimos e à partir de então, à título de experiência, o elemento é autorizado e,
evidenciada a sua chamada e vocação divina é ordenado definitivamente ao santo
ministério.
Sua atuação também foi marcada pela construção de templos, quando pessoalmente
participava das obras em mutirões, dando exemplo para os demais seguidores. A construção
de templos foi um dos traços típicos do pentecostalismo assembleiano, utilizando a mão de
obra espontânea e numerosa dos próprios membros, alguns notáveis mestres de obras.
O voluntarismo dos fiéis servia como combustível para a construção de templos que seguiram
um padrão estético nas fachadas com a cor azul, as faixas brancas e o nome da igreja. Na
parte interna, a divisão entre os bancos para os fiéis e a área ao fundo com o púlpito
centralizado, onde atrás seguiam cadeiras para que os obreiros sentassem segundo a ordem de
importância de cada um. Rapidamente um novo templo se erguia e com pouco custo, as áreas
2134
escolhidas eram bairros próximos ao centro como João Paulo, Anil; ou mesmo vilas e
invasões4 distantes da área central da cidade.
A filantropia foi um dos principais campos de atuação do pastor Estevam, com a constituição
de um trabalho educacional, primeiramente com a alfabetização de adultos, a fim de que
pudessem ler a Bíblia, finalizando com a construção das escolas de nível fundamental. A
fundação da Sociedade Filantrópica do Maranhão (SOFEMAR), em 1959, serviu a este
propósito. Ela foi responsável pelos colégios Bueno Aza e Nels Nelson (homenagem a
missionários pentecostais pioneiros no Maranhão), dando-se a unificação em 1978, tornando-
se o Colégio Evangélico Bueno Aza.5 Posteriormente, o colégio foi fechado, mas o interesse
pela educação continuou através dos seminários evangélicos, criados pela Igreja Assembleia
de Deus, como a FATEAD (Faculdade de Teologia da Assembleia de Deus), oriunda do
IBPM (Instituto Bíblico Pentecostal do Maranhão), fundado em 1991.
As cenas dos mutirões causaram impacto nos moradores. Aquelas cenas despertavam espanto
para as pessoas daquele bairro, considerado de classe média, com estas ações a Igreja teria a
oportunidade de demonstrar sua força de mobilização. O conceito de crente é assim,
ressignificado (SILVA, 2006, p.8). No sentido de ainda que a imagem de desconfiança
perdure, agrega-se a esta a de um grupo com grande poder de evangelização, ou seja, no
4
Invasão na cidade de São Luís é o equivalente a favela na região Sudeste. Caracterizada pela pobreza, tem esse
nome por ter sido invadida pelos moradores que construíram bairros em amplos espaços territoriais.
5
As escolas totalizaram um total de 450 alunos. Cabe ressaltar que a maioria do copo docente era formada por
evangélicos (as).
2135
sentido de arregimentação de um grande contingente populacional para a realização de um
objetivo, especificamente, de cunho religioso. Há um novo significado para a reunião de
crentes, agregando-se uma postura positiva desta ação.
Este aspecto vale ser pontuado pela escolha do bairro do Vinhais, e por ser perceptível o
desconforto por parte da Assembleia de Deus, passados os anos iniciais de expansão, com a
não evangelização da classe média brasileira. O próprio Estevam, entrevistado pela revista A
Seara, em 1980, atesta, em sua opinião, os motivos para isto, segundo ele: “Faltou penetração
do Evangelho, nesta classe, pela pregação. Penso que os crentes de mais influência social não
pregam por questões de respeito humano enquanto os mais humildes ficam acanhados” (A
SEARA, 1980, p.8).
Para ele, a questão se resumia ao respeito humano que o público com melhor nível intelectual
possuía. No entanto, pensamos ser o acanhamento que ele atesta aos mais humildes, a
possível causa. É de conhecimento que geralmente quem faz este trabalho de visitação nos
bairros, são os membros mais humildes da Igreja, especialmente, as mulheres do grupo
Círculo de Oração (MOTA, 2009). Notamos assim, mas um exemplo da hierarquia de
atividades no âmbito da Assembleia de Deus.
Outra área de atuação do pastor Estevam, foi o esforço de evangelização pela conversão de
indígenas. Visitas missionárias foram realizadas às aldeias dos índios Grajaú, Guajajaras e
Canelas, localizadas em Barra do Corda, no interior do Estado. O resultado foi a construção
de um pequeno templo da Assembleia de Deus e o batismo de cerca de 600 índios que
aprenderam a ler a Bíblia em português; alguns trabalharam como missionários (SILVA,
2006, p. 54). Como ressaltado pela viúva do pastor, Gizeuda Souza (A SEARA, 1998, p.35):
Pastor Estevam tinha um amor especial por missões entre as selvas indígenas – até
costumava dizer que, quando estava na aldeia, se sentia mais crente. Não foi por acaso que
tomou o jovem Edilson, da aldeia Guajajara, e resolveu educá-lo para obra missionária
entre os próprios nativos.
Concordamos com a sua viúva, definitivamente, não foi por acaso, tendo em vista, notarmos
aqui, a estratégia do pastor em preparar um indivíduo da própria aldeia para agir como
missionário. Alguém que já era do grupo, conhecido dos demais e, especialmente, detentor de
confiança por parte dos membros. Notamos aqui, ainda que em novas formas, e com outro
2136
contexto histórico e temporalidade específica, final do século XX, o fenômeno da
aculturação.6 Com o contraponto que este se deu de forma pacífica, por este motivo, com
maior poder de eficácia. Resumindo-se o processo com viagens iniciais para entrega de
bíblias e orações. Com o aumento constante desta prática, após a morte do pastor, sua esposa
continuou as visitas, com inauguração de novos templos. Hoje, existem 4 Igrejas da AD nas
imediações da tribo.
Exerceu ainda importantes funções junto à CGADB (Convenção Geral das Assembleias
de Deus no Brasil) e EETAD (Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus),
além de ter trabalhado, durante vários anos, como Conselheiro da CPAD (Casa Publicadora
das Assembleias de Deus), tendo contribuído como articulista de seus periódicos e
comentador das Lições Bíblicas da Escola Dominical.7
Quatro foram os sonhos de Estevam em sua vida voltados para a Igreja: uma rádio, um centro
de convenções, um instituto bíblico e o envio de missionários para áreas distantes. Nem todos
foram realizados em sua totalidade. No entanto, ele foi um semeador de outros sonhos em
meio aos dramas de sua existência e trajetória de vida, suas ligações políticas e outras
realizações.
Sua relação próxima com a política foi avaliada em vários momentos, inclusive, quando em
1968, José Sarney subiu ao púlpito da igreja Assembleia de Deus, o que levantou a hipótese
de um possível apoio ao então governador do Maranhão.
6
Ação de mudança na cultura de um grupo social sob a influência externa de outra pessoa, ou grupo com quem
entra em contato.
7
Disponível em <http://www.assembleiadedeus100.org.br/htm/pioneiros/6.htm>. Acesso em 28 de maio de
2012.
2137
A eleição constituinte de 1986 possibilitou a constituição de uma bancada evangélica
composta de 33 deputados, a maioria era porta-voz dos interesses de suas igrejas e
denominações e de postura conservadora na política e na religiosidade. A Igreja Assembleia
de Deus teve entre 1987 e 1990 13 deputados no Congresso Nacional (BAPTISTA, 2009:21),
instituindo um novo patamar de negociação política e projetando a Igreja como força política
e eleitoral no país. Um dos deputados federais eleitos foi o maranhense Costa Ferreira, ligado
à AD e à oligarquia Sarney.8
Naqueles tempos de Sarney na presidência da República e de sua disputa pelo quinto ano de
mandato, ganharam força as práticas clientelistas no Congresso Nacional. Um deputado
ligado à AD, Matheus Iensen propôs a emenda da prorrogação do mandato de quatro para
cinco anos e 76% dos deputados evangélicos contribuíram para sua permanência. O governo
Sarney utilizou concessões de meios de comunicação como “moedas de troca” para os
constituintes e uma porcentagem de evangélicos foi beneficiada com elas. (BAPTISTA, 2009,
p.175-176).
Esta era a conjuntura política formada para a concessão de um canal para a transmissão de
programa de rádio, juntamente com a atuação de políticos ligados à Igreja. A fim de alcançar
esta massa crescente e de modernizar a comunicação, Estevam foi o idealizador e fundador da
Rádio FM Esperança. O projeto de uma rádio correspondia ao momento em que as grandes
igrejas evangélicas do país se lançavam na utilização mais intensiva da mídia, sobretudo a
televisiva, seguindo o modelo até então importado dos tele-evangelistas norte-americanos.
Em 1988, foi criada a Fundação Cultural Pastor José Romão de Souza que, a partir de 1990,
passou a ser a controladora da Rádio FM Esperança, inaugurada em 11 de abril daquele ano,
8
Oligarquia é um termo que tem origem na palavra grega "oligarkhía" cujo significado literal é “governo de
poucos”. Oligarquia é um sistema político no qual o poder está concentrado num pequeno grupo pertencente a
uma mesma família, um mesmo partido político ou grupo econômico. Este controla as políticas sociais e
econômicas em benefício de interesses próprios.
2138
depois de mutirões para a construção de sua sede e pedido de muitas doações aos fiéis por
parte de Estevam Ângelo de Souza. Ainda no mesmo ano, o presidente Fernando Collor de
Melo assinou a concessão da Rede de Televisão Record à Igreja Universal do Reino de Deus
(MOTA; SANTOS, 2011). Graças á ameaça de Impeachment, o até então presidente, se
utilizou de “moedas de troca” com a “bancada evangélica” o que possibilitou concessões de
muitas rádios evangélicas. O que não foi o caso da FM Esperança, que conseguiu a concessão
para funcionamento, com a intercessão direta do então deputado federal Costa Ferreira, junto
ao presidente José Sarney, o que foi outorgado nos últimos momentos de seu mandato
presidencial (FRESTON,1993).
Com instalações no bairro Pindorama, tornou-se a primeira rádio evangélica em São Luís. A
rádio sempre entrava no ar entre 6 horas da manhã até meia-noite, pois a emissora só tinha
equipamentos que a mantinham menos tempo (até 18 horas), por correr o risco de dar defeito
se ultrapassasse o tempo determinado do que era estipulado. Cabe ressaltar que ela aceitava
programas de outras denominações em sua programação, como Igreja Batista, Igreja do
Evangelho Quadrângular e Presbiteriana.
Na época da entrada no ar, através do sinal da rádio, alcançava os três municípios da ilha de
São Luis: São José de Ribamar, Rosário e Paço do Lumiar e 20 municípios maranhenses.
Hoje o sinal alcança quatro municípios da ilha, que foi transformada em Grande São Luís e 32
municípios, devido à criação de novos municípios, ocorrida entre 1994 a 1995. Em 2000,
quando ocorreram as comemorações de 10 anos no ar, foi anunciada a compra de modernos
equipamentos, que praticamente substituíram os antigos desde a época em que a emissora
iniciou suas transmissões. Entre estes estão os que mantêm a emissora em atividade por 24
horas sem interrupção. Em 2005 se afiliou à Rede Transmundial9, transmitindo a programação
por seis horas (meia-noite até 6 da manhã) e o restante da programação (das 6 horas da manhã
até meia-noite) sendo apenas local.
Em 2010, a emissora completou vinte anos de fundação. E este ano, refente ao seu aniversário
de 22 anos, houve uma solenidade na Câmara Federal, com o pronunciamento do deputado
Costa Ferreira e municipal, presidida pela deputada estadual, Elisiane Gama, também
9
A rede Transmundial, pertence à um projeto mundial, a Trans World Radio que reúne mais de 225 línguas e
dialetos, com 2700 estações locais e transmite o sinal de rádio através de 14 antenas ao redor do globo, com um
conteúdo cristão. A representante nacional possui três antenas, em Santa Maria - RS; mais de 30 afiliadas e 7200
horas mensais de programação ininterrupta. O objetivo é levar através do rádio, a mensagem evangélica ao maior
número de ouvintes possíveis, corroborando, assim, para o processo de conversão e consequente, expansão, das
distintas denominações que fazem parte do grupo.
2139
assembleiana e antiga locutora da rádio em que a viúva do fundador da rádio, Giseulda Lima
de Souza recebeu uma placa comemorativa pelos 22 anos da Rádio FM Esperança, ofertada
pela Assembleia Legislativa do Maranhão.10
A postura política de Estevam foi a de manter a devida equidistância entre a política oficial e
a Igreja. Ele não permitia a utilização do espaço do templo para propaganda política eleitoral
e não indicava candidatos oficiais da Igreja. Entretanto, a perspectiva teológica conservadora
de submissão ao Estado e de respeito às autoridades instituídas por Deus era parte da sua
visão de mundo. Sobre esta participação de políticos no púlpito, sua esposa Gizeuda afirmou
que políticos o (MOTA, 2009, p.89):
Procuravam, mas ele não deixava vir pra dentro da Igreja, falava-se fora. João Castelo
[candidato á prefeito na época] mesmo foi uma vez querer tirar uma foto com ele, aí [...] ele
[perguntou]: o senhor vai querer botar essa foto no jornal? Ele não ia deixar, não tinha esse
negócio que tinha hoje, ele não determinava em quem votar. Hoje não, os políticos vão pro
templo e falam o que querem.
A amizade de Sarney com o pastor Estevam, entretanto, remonta à década de 1960, quando
aquele ainda era deputado em início de carreira. Entre os dias 4 a 8 de setembro de 1968, a
Igreja Assembleia de Deus em São Luis hospedou a Convenção Estadual dos obreiros
(missionários, evangelistas e pastores) maranhenses assembleianos. O encerramento contou
com a presença do então governador José Sarney, que destacou a inauguração do segundo
monumento à Bíblia no Brasil realizado na cidade de Caxias, interior do estado. Monumentos
à Bíblia foram espalhados pelo país como símbolos da presença evangélica na sociedade e de
sua emergente capacidade de negociação política.
No ano seguinte, 1969, Sarney assinou a Lei de Terras no Maranhão, redefinindo o estatuto de
propriedade da terra, favorecendo os latifundiários, leiloando terras públicas do estado. Desde
a década de 1950, o interior do estado vivia crescentes tensões em torno das questões de
terras. De alguma forma, as comunidades evangélicas e pentecostais compostas de lavradores
estavam inseridas nestes conflitos, à semelhança de outros estados como Pernambuco, onde
foram organizadas as ligas camponesas. Lideranças pentecostais despontaram na condução de
organizações sindicais e populares.
10
Disponível em: <http://folhamaranhao.com/noticias/politica/sessao-solene-faz-homenagem-aos-22-anos-da-
radio-fm-esperanca-13788.html>. Acesso em: 25 nov. 2012.
2140
Considerações finais
No caso assembleiano, este atrelamento se fez presente ao longo da história inicialmente com
o coronelismo, que influenciou a ação dos primeiros pastores suecos através de ações
centralizadoras e personalistas. Em seus primeiros anos no país se configurou uma de suas
principais características, construída em cima de personalidades e não da instituição; toda a
sua organização girava em torno de nomes.
Principalmente, “grandes nomes”, sejam dos pioneiros, Gunnar Vingren e Daniel Berg; ou de
grandes líderes estaduais que conseguiram visibilidade nacional, como foi o caso do pastor
Estevam Ângelo de Souza. Todos estes homens foram pastores, que na Assembleia de Deus,
muito além de ter e exercer poder representa o próprio poder!
Homem religioso, pastor, marido, pai, autor, líder carismático, estas são algumas das nuances
deste objeto de estudo, que deve ser compreendido dentro do lugar do qual ele fez parte, a
2141
Igreja Assembleia de Deus. O seu objetivo principal, pelo que podemos constatar em nossa
pesquisa foi o fortalecimento da Igreja, com sua posterior expansão pelo Estado do Maranhão.
Fato conseguido, ao deixar no ano de seu falecimento em 1996, a Igreja com 167 templos
somente em São Luís, capital do Estado do Maranhão. Episódio considerado de grande
representatividade, em virtude de assumir apenas com 3 templos em 1957. Temos consciência
das estratégias instituídas por este pastor, e especialmente, acordos e associações com
representantes do poder público do Estado, como, o exemplo demonstrado em nossa pesquisa,
com o então recém eleito governador José Sarney.
Entendemos em nosso estudo, Estevam Ângelo de Souza enquanto homem público e político
atrelado à sua vivência enquanto pastor e religioso. Que percorreu caminhos por vezes
destoantes, mas justificados, em sua concepção, para alcançar o seu objetivo, uma melhor
propagação da mensagem pentecostal no Maranhão, e no Brasil, com a publicação de seus
livros.
Referências
A SEARA, 1980.
2142
__________; SANTOS, . O apóstolo da simplicidade evangélica: Estevam Ângelo de Souza e
o pentecostalismo no Maranhão In. COSTA, Yuri; GALVEZ, Marcelo C (orgs). Maranhão:
ensaios de biografia e história. São Luís: café e lápis; Eduema, 2011.
SOUZA, Estevam Ângelo de. Nos Rastros de um Servo. 1994. (Autobiografia não Publicada).
Internet
2143
2144
Pentecostalismos e questão social: novas formas de
enfrentamento?1
Edson Elias de Morais2, Luiz Ernesto Guimarães3
Introdução
Antes de continuar, é importante destacar, como o fez Ianni (1991), que a questão social é um
tema e um desafio permanente na sociedade brasileira, tanto para os governantes como para
os estudiosos de diferentes áreas do conhecimento, determinando práticas e pensamentos com
o propósito de controlar, equacionar, minimizar ou erradicar a origem desta questão ou ao
menos as suas conseqüências.
Conforme Iamamoto (1990, p. 78), a questão social refere-se a uma “sociedade dividida em
classes sociais e a luta pela apropriação da riqueza socialmente produzida”; uma sociedade
que produz um conjunto de desigualdades e profundos antagonismos “fruto do
1
O trabalho a seguir foi elaborado de forma coletiva, a partir dos estudos e pesquisas do Laboratório de Estudos
sobre Religiões e Religiosidades da UEL, com os professores Dr. Fabio Lanza e Dra.Cláudia Neves da Silva.
2
Mestrando em Ciências Sociais pela UEL. Pesquisador do LE sobre as Religiões e as Religiosidades (LERR).
Bolsista CAPES. Contato:edson_londrina@hotmail.com.
3
Prof. Colaborador do Dep. de Ciências Sociais da UEL. Doutorando em Ciências Sociais pela Unesp/ Marília.
Pesquisador do LE sobre as Religiões e as Religiosidades (LERR). Contato: pr.ernesto@gmail.com.
2145
desenvolvimento das forças produtivas, da divisão do trabalho e a sua consequente
potenciação” no sistema capitalista. São problemas e situações que foram constituídas em
decorrência das modernas condições de trabalho, nos meios urbano e rural, e que não podem
mais ser ignoradas ou tratadas apenas como disfuncional pela burguesia e pelo Estado, já que
com o crescimento, organização e luta dos trabalhadores na defesa de seus interesses e
necessidades imediatas, as respostas à questão social não podem mais se reduzir à repressão
as organizações sindicais e aos movimentos populares, mas se expressam na garantia de
alguns direitos sociais, como saúde, educação, habitação, assistência social, os quais, não
obstante, sofrem alterações em momentos de crise econômica.
Diante do exposto, acreditamos que as precárias condições econômicas e sociais de seus fiéis
obrigaram as Igrejas latino-americanas de diferentes denominações a voltarem sua atenção
para a questão social, promovendo a readequação de sua teologia e de seus discursos, que
passaram a enfatizar aspectos como pobreza, crise moral, direitos sociais, organização política
e social.
Nesse processo, a atividade assistencial das Igrejas representou a continuidade, sob novas
bases e motivações, de uma prática que possibilitou aproximar-se daqueles que se encontram
abaixo do mínimo indispensável para a sobrevivência, não limitando suas atividades ao
interior do templo – ao culto – e ao rigor ético comportamental, mas adotaram ações
diversificadas, como por exemplo, a assistência social.
2146
ExpoCristo-Curitiba), procuramos entender como elas responderam à questão social que se
apresentou no interior de seus templos, gerando em seus líderes religiosos a adoção de
diferentes discursos.
O segmento religioso selecionado que também respondeu aos problemas que emergiam
cotidianamente da realidade de seus fiéis, foi o das Igrejas Evangélicas Pentecostais, que
conheceu significativo crescimento no período em questão, revelando-se uma concorrente
importante no mercado de bens simbólicos, porque arregimentava fiéis junto às fileiras das
Igrejas tradicionais. Tais Igrejas foram frutos de movimentos de cunho espiritual, cujas
origens remontam ao final do século XIX, nos Estados Unidos.
2147
guarda características comuns, como a sua teologia fundamentada na bênção do Espírito
Santo e a ênfase nos dons da cura e da libertação. Quanto à ênfase na teologia da prosperidade
e à guerra espiritual, são marcas distintivas do neopentecostalismo, porque renova e reforma
características do chamado pentecostalismo clássico. Como relata Campos (1996, p. 55): “O
‘neopentecostalismo’, dos anos de 1980, colocou em primeiro lugar a saúde do corpo, a
prosperidade e a solução dos problemas psíquicos, colocando-as como resultado imediato à
busca do sagrado”.
As novas Igrejas Evangélicas Pentecostais brasileiras, com novas práticas religiosas, também
apresentaram uma nova teologia, aqui entendida como uma formulação conceitual (de
questões relativas ao conhecimento de Deus) e sistemática de uma doutrina (um conjunto de
normas e princípios que regem o pensamento e o modo de agir do fiel).
2148
Fé e emoção: a base da teologia pentecostal
Essa teologia tem por base a bênção do Espírito Santo e o seu sinal, a glossolalia (falar em
línguas estranhas), assim como a cura e a libertação das forças malignas. Uma teologia que
deve ser compreendida nos testemunhos daqueles que compartilharam o encontro com o
Espírito Santo.
Na visão de mundo pentecostal, a força do mal é uma realidade concreta, porque habita no
mundo, manifestando-se no dia-a-dia daqueles que não crêem e também daqueles que crêem,
como a falta de emprego, as enfermidades físicas e mentais, a violência doméstica. Na guerra
contra o mal, as armas são as vigílias, a oração e o jejum. Não combater o mal, isto é, o
demônio, representa a vitória do caos e da desordem na vida pessoal, trazendo doenças,
desemprego, brigas e separações, bem como caos e desordem na coletividade. (ORTEGA,
1996).
E é no culto que se dá a expressão coletiva de fé e louvor, o qual é regido por forte emoção,
com hinos alegres e vibrantes que mexem com todo o corpo – as mãos, os braços, as pernas,
os quadris – e cujas letras simples, com refrões repetitivos e compreensíveis, falam do poder
de Jesus Cristo e da fé, conclamando todos à entrega a um Deus triunfante, preocupado e
interessado em cada um em particular, porque conhece seus problemas, suas dificuldades,
suas ansiedades, e se compadece como um pai atencioso e amoroso, que não julga e muito
menos condena seus filhos.
Os fiéis esperam que a religião lhes forneça as respostas de como enfrentar as constantes
dificuldades materiais e financeiras. Se a busca para enfrentar as agruras cotidianas se dá no
plano espiritual, porque depende da fé de cada um em um Deus poderoso e onipotente, as
razões para existirem homens e mulheres em situação de extrema pobreza também não
estariam fora deles, mas em uma esfera interna que somente cada indivíduo poderia superar.
A pobreza material poderia ser decorrência da pouca fé em Deus, da desobediência às suas
determinações.
A pobreza para aqueles que compartilham essa concepção de mundo, decorre de uma situação
individual, tanto do que tem mais, porque movido pelo egoísmo, pelo anseio do ganho fácil,
que o leva a explorar seus empregados, pagando-lhes salários injustos e a não ajudar os mais
necessitados, quanto do que nada tem, porque uma força fora deste mundo, maligna, o estaria
impedindo de prosperar, de ter um emprego e, a casa própria. Somente pela fé em Deus e
2149
Jesus seria possível superar esta força que estaria dominando a vida do crente.
A postura reencantada tem maior aceitação popular que a Teologia da Libertação, e outras
teologias progressistas. Então percebemos um declínio dessas propostas a partir da década de
1990 e ascensão de uma religiosidade mais descaracterizada de uma identidade histórica e
doutrinária se configurando uma religiosidade híbrida5 e, ao mesmo tempo, no campo político
econômico houve o declínio das propostas socialista-comunistas, principalmente após o fim
da Guerra Fria em 1989, concomitante a ascensão do neoliberalismo. Essa mudança no campo
religioso pode ser entendida como resultado do processo iniciado pelo pentecostalismo
clássico durante o século XX, e sobre esse período Maria Lucia Montes nos informa que
Temos, portanto, uma globalização do capitalismo que influenciou as relações sociais por
meio do consumismo global, e que por sua vez, influencia as ações individuais em seu
cotidiano, fragmentando, assim, toda e qualquer identidade, seja cultural, religiosa ou
individual, ou até mesmo institucional.
5
Conforme a argumentação de Stuart Hall acerca das “culturas híbridas” (HALL, 2003, p.89). Segundo Hall, a
modernidade tardia tem proporcionado as migrações e, além disso, maior contato cultural, forçando os
indivíduos a “negociar com novas culturas”.
2150
É diante dessa conjuntura religiosa e social que percebemos a relação existente entre a
ascensão do neoliberalismo com toda modificação político-social-cultural, e o
desenvolvimento de uma religiosidade que tem no neopentecostalismo seu modelo tácito,
portanto uma relação contínua entre valores sociais, mudanças político-econômicas e
religiosidade como vetores da ideologia hegemônica. É possível perceber, também, uma
mudança significativa no campo religioso brasileiro, mudança que tem proporcionado o
crescimento numérico de fiéis evangélicos dos mais distintos segmentos, porém com
características peculiares, que representam a “matriz religiosa brasileira” (BITTENCOURT
FILHO, 2003).
Religiosidade neopentecostal
6
Sobre esse processo de esvaziamento das igrejas tradicionais ver: VELASQUES FILHO, Prócoro. Declínio do
cristianismo tradicional e ascensão das religiões do espírito. In: VELASQUES FILHO, P.; MENDONÇA, A. G.
Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 249-263.
7
Conforme conceito desenvolvido por Richard Sennett em “A Corrosão do Caráter”.
2151
Diante desses fatos percebemos uma concorrência entre as instituições religiosas sendo cada
vez mais acirrada, diante de grande demanda, onde a oferta deve ser satisfatória aos interesses
dos clientes, sendo essa a lógica do mercado. E testemunhamos entre as igrejas de matriz
protestante as principais transformações nas últimas décadas, primeiramente com a
emergência do movimento pentecostal por volta de 1910 e sua institucionalização a partir da
década de 1950, posteriormente o neopentecostalismo a partir da década de 1970 e depois da
década de 80/90 do mesmo século, acontece uma multiplicação de novas igrejas com
eclesiologias que se distanciam cada vez mais das igrejas históricas, denominadas de
Comunidades.
Para captar a ideologia dos valores contemporâneos proposto pela liderança religiosa
neopentecostal, apresentaremos objetivamente fragmentos de um sermão do pastor Marcos da
IURD de Londrina, e também de um pastor da Assembleia de Deus Tempo de Avivamento
que assume a Teologia da Prosperidade, o pastor, e também Deputado Federal, Marco
Feliciano, que encerrou a ExpoCristo em Curitiba-PR.
Na IURD,8 a tônica do pastor Marcos foi elencar inúmeros problemas da vida quotidiana e
relacioná-los como sendo ações do Diabo se seus demônios, e em sua primeira lista estavam:
miséria, vírus, bactérias, dores. E para libertá-los seria necessário “participar da campanha” e
“ser fiel”, “porque Deus não gosta de crente melindroso, e fraco na fé”. O pastor Marcos
instruiu, por meio de alguns versículos bíblicos que “o crente deve ficar revoltado com a
injustiça e com a má situação”, e em alta voz continuou: “vocês sabem qual é a maior
injustiça? sabem? pois eu vou falar... a maior injustiça é a igualdade!” e perguntou para o
povo “E Deus, tem seus preferidos? sim, Deus tem seus preferidos, por que Deus não
participa de injustiça, por que a intimidade do Senhor é para os que temem, ou vocês não
acham uma injustiça esse monte de endemoninhado ter riquezas, tranquilidade, ter o melhor, e
você filho de Deus, servo do Senhor, ficar padecendo, ter um monte de problemas? Então se
você está revoltado venha no culto de domingo, eu já falei, vou vir de preto dos pés a cabeça!
8
A observação foi feita na Igreja Universal do Reino de Deus, localizada na rua Benjamim Constant, n°1488,
Londrina-PR. nos cultos de terças e quintas-feiras, denominados: Sessão do Descarrego. A observação aconteceu
no dia 21 de junho de 2011, ás 19:30 horas.
2152
você também venha nem que seja com uma peça de roupa preta para simbolizar sua revolta,
porque estou até o pescoço de revolta! E por que usar o preto? Por que o juiz se veste de
preto, e devemos reivindicar justiça”.
Depois das orações e exorcismos coletivos o referido pastor disse: “é errado pedir dinheiro na
igreja?” o povo respondia que não! “tem muitas pessoas que fazem bico quando peço
dinheiro, mas eu não ligo, porque é Deus quem honra, ninguém é obrigado a dar, dá quem
quer, e quem tem! É ou não é?” o povo respondia: “é!”.
O pastor Marcos chamou um dos obreiros para dar um testemunho, e o mesmo disse que na
semana anterior, foi por volta da meia noite na igreja para o pastor orar por uma dívida que
tinha que receber. No dia seguinte ele ofertou “na casa de Deus”, e no final da semana ele
recebeu a dívida, que era de R$ 22.000,00. O Pr. Marcos disse que Deus tinha escolhido
alguns naquela noite para ofertar R$ 100,00, orou, e levantaram-se oito pessoas, depois mais
sete para ofertar R$ 20,00, e mais vinte e seis pessoas ofertaram R$ 10,00. Ele afirmou que a
hora da maior benção é a hora das ofertas, e disse que aquelas pessoas que não tinham nada
para ofertar estavam também abençoadas, e que no final do mês teriam muito dinheiro para
ofertar na casa do Senhor. No momento das ofertas, foi posto a porta em desenho de chave
para as pessoas serem abençoadas financeiramente, ele sempre dizia: “o pastor pode pedir
dinheiro ou não pode?!” as pessoas diziam: “é claro que pode”, “ninguém é obrigado a dar!”,
mas todos davam!
O pastor e Deputado Federal Marco Feliciano foi convidado para encerrar a feira de
exposição de produtos evangélicos denominada ExpoCristo9 em Curitiba-PR. O conteúdo do
sermão foi, segundo ele, “tipicamente pentecostal”, relacionado à intimidade com Deus,
adoração, e compromisso cristão de obedecer aos chamados de Deus. O mais significativo de
sua performance foi após o sermão ao contar seu próprio testemunho de “obediência e
renuncia”.
Ele conta que logo que se casou, batalhou muito para juntar um determinado valor financeiro
e comprar um pequeno apartamento, mas logo em seguida “Deus me mandou dar o
apartamento para uma pessoa necessitada. E o que você faria numa situação dessas? Você
daria? Daria nada!!! Mas EU dei!!!”. Segundo o pastor, dias depois ele foi presenteado com
uma casa e a medida que o tempo foi passando Deus honrou a sua obediência a ponto de hoje
9
A feira ocorreu nos dias 14 à 17 de julho de 2011, nas instalações da FIEP-SESI em Curitiba-PR.
2153
ter uma casa de 1.100 M2 de área construída, com um “pequeno castelo” no fundo para as
suas duas “princesas” e um lago no jardim. Segundo o pastor Marco Feliciano as famílias
mais ricas de sua cidade pedem para entrar em sua casa e admirar, pois é referencia de luxo e
conforto da cidade.
Toda essa história foi contada para ele “dar a oportunidade de todos serem abençoadas por
meio da oferta”, porque “dando que se recebe”. E disse: “quero ver se tem algum crente
corajoso que está com sua conta no vermelho, mas com fé vai dar um cheque pré-datado e
esperar até o final da próxima semana e ver o milagre de Deus”, e apareceram dois homens
que levantaram suas folhas de cheque e ofertaram. Ao lado do palco estavam duas moças com
máquinas de débito/crédito da Cielo, para aqueles que estavam sem dinheiro, mas possuíam
Cartão de Crédito, e naquela noite de domingo, a grande maioria ofertou com seu dinheiro,
cheque pré-datado ou Cartão, no intuito de serem obedientes e receber a benção de Deus, ou
seja, uma qualidade de vida, semelhante a que o Marco Feliciano narrou, com muita
prosperidade.
Considerações finais
2154
pequeno porte.
A religião seria o meio e a igreja o local onde se poderia reviver, em parte, os sentimentos tão
presentes nos tempos que morava em pequenas cidades ou vilas e as relações que se
estabeleciam com os vizinhos eram baseadas no respeito, na solidariedade, na amizade, na
empatia.
Os problemas que porventura surgiam, usualmente eram atenuados com a ajuda de vizinhos
ou parentes. Porém, com a industrialização, o crescimento das cidades, as relações sociais
passaram a ser mediadas por comportamentos e atitudes baseadas no imediato e na
superficialidade das emoções e sentimentos, insensíveis e indiferentes às crianças, idosos,
homens e mulheres que vivem em condições inferiores ao seu mínimo necessário para a
sobrevivência, porque seriam considerados “efeitos colaterais” ou sacrifícios inevitáveis do
desenvolvimento econômico.
Diante dessa nova realidade que se descortinava, as igrejas tiveram que se readequar, já que
seus fiéis traziam para o interior dos templos novas situações e novas demandas, exigindo,
portanto, novas respostas. Como não era mais possível ficar indiferente ao que se passava no
plano terreno, as igrejas se viram compelidas a reformular e ampliar seu papel em uma
sociedade industrial, urbana, centralizada na modernidade, na tecnologia e no consumo. E as
estratégias adotadas foram definidas de acordo com a doutrina e a teologia de seus líderes
religiosos.
2155
simbólicos, sacralizando o secular e secularizando o sagrado.
Referências
ALMEIDA, Ronaldo de; MONTERO, Paula. Trânsito Religioso no Brasil. São Paulo em
perspectiva, v.15, n°3, 2001, p. 92-101. Disponível em: <http://www.scielo.
br/pdf/spp/v15n3/ a12v15n3.pdf>. Acesso em: 08 fev. 2001.
IANNI, Octávio. A questão social. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação SEADE,
v. 5, n. 1, pp. 2-10, jan./mar, 1991.
MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAIS,
Fernando A. (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil:
Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 63-171.
2156
2157
Neopentecostalismo e as mudanças na concepção escatológica das
Assembleias de Deus
Ismael de Vasconcelos Ferreira1
Introdução
Esta comunicação é fruto de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ela objetiva
analisar e discutir as mudanças que vêm ocorrendo nas Assembleias de Deus, notadamente
em suas doutrinas escatológicas. Para tanto, utilizou-se como fonte primária os periódicos e
livros que são publicados pela denominação. A título de comparação, foram observadas as
pregações proferidas durante o Congresso dos Gideões Missionários da Última Hora
(GMUH) de 2012, buscando encontrar pontos que ressaltassem a adequação ou não às
convicções já consolidadas pela denominação.
Outro aspecto a ser ressaltado é a comparação que é feita entre a ênfase escrita e oral.
Acredita-se, baseado nos teóricos que afirmam que a oralidade tende a ser mais evidente que a
escrita em certas culturas (ONG, 1998; GOODY, 2012), que o pentecostalismo, por ser um
misto das duas, vem sendo bem mais influenciado pela oralidade, deixando a escrita para
segundo plano ou mesmo reinterpretando-a, a partir dos novos conceitos que são emanados
pelas pregações.
Esta dinâmica acaba por beneficiar um movimento que vem crescendo no Brasil e que
prescinde de manuais teológicos ou regras doutrinárias preestabelecidas, embasando-se
essencialmente no pragmatismo e na afirmação do tempo presente: o neopentecostalismo.
1
Mestrando em Ciência da Religião pela UFJF. Membro do NE em Protestantismos e Teologias (NEPROTES).
Bolsista CAPES. Contato: ismaelvasconcelos@yahoo.com.br
2158
E assim, as Assembleias de Deus, considerada a representante por excelência do
pentecostalismo clássico brasileiro, ao adequar-se a essas novas convicções emanadas pelo
neopentecostalismo, deixaria de ser caracterizada como clássica (ou mesmo pentecostal) e
passaria a compor esta nova caracterização, neopentecostal.
Através de breves relatos e discussões, pretende-se analisar e discutir esse fenômeno nesta
comunicação, sendo que os apontamentos aqui trazidos constituem apenas uma amostra do
que vem sendo desenvolvido na pesquisa outrora referida. Outrossim, este texto caracteriza-se
por um aspecto experimental, devendo ser aprimorado a partir de novas leituras ou mesmo de
contribuições dos pares que já vêm desenvolvendo pesquisas na área.
As relações entre o pentecostalismo clássico e sua identificação com o mundo passam por
concepções que foram elaboradas a partir da doutrina escatológica que lhe legou um notório
desinteresse por valores e vivências do/no mundo. Essas concepções foram sendo mantidas e
fortalecidas a partir de meios de formação que buscavam a consolidação de doutrinas que
serviriam para caracterizar um modelo ascético e sectário que era embasado numa esperança
transcendente em detrimento de uma realizável materialmente.
Teve (e ainda têm) importante papel na transmissão desse código de doutrinas a Escola
Bíblica Dominical (EBD). Esta Escola, que adota uma programação específica, sendo
realizada normalmente aos domingos pela manhã em todas as Assembleias de Deus no Brasil,
utiliza um material próprio (comumente chamado de “revista da EBD”), que contém o teor
das doutrinas da denominação em forma de comentários que são repassados por um professor
2159
aos alunos. Cada aluno dispõe de uma revista que normalmente é menos detalhada, se
comparada a do professor. Porém, o teor da mensagem principal é sempre o mesmo.
Em uma análise feita nas “revistas” publicadas no período de 1970 a 2012, priorizando
aquelas que abordavam o tema aqui delimitado que é escatologia, foi possível constatar que o
ideal defendido ainda na década de 1970 continua sendo o mesmo na época atual. Não se
observou, por exemplo, um arrefecimento na repetição desse tema. Pelo contrário, pelo menos
em cada edição desses periódicos há uma referência às últimas coisas que, acreditam os
pentecostais, deverão acontecer a si próprios e ao mundo.
Aqui se ressalta o papel formador e “doutrinador” que as Assembleias de Deus ainda mantêm,
tendo como ferramenta principal a EBD, seus voluntários (professores) que agem como
repetidores desses dogmas e os alunos que ouvem tais ensinos e fortalecem as convicções já
conhecidas por eles.
Esta EBD atuaria, portanto, como mantenedora dos mitos que identificariam as Assembleias
de Deus como uma denominação que ainda mantém um discurso escatológico, defensor de
concepções que apontariam para uma esperança futura e transcendente que denotaria um
2160
cuidado com a vida eterna em detrimento de uma vida terrena efêmera e sujeita a males e
perdas condizentes à sua temporalidade.
Contudo, apesar desse discurso consolidado, até cristalizado, através dos registros escritos,
surge um fenômeno que tende a alterá-lo, ou mesmo invalidá-lo. Trata-se do que será
discutido no item seguinte que é pregação e sua prevalência na formação doutrinária do fiel
pentecostal das Assembleias de Deus, sendo esta bem mais eficaz e pragmática em suas
aplicabilidades.
Sendo um congresso em que seu próprio nome traz à memória uma herança do
pentecostalismo clássico, que era essencialmente preocupado com a pregação proselitista,
haja vista acreditarem que Jesus Cristo estaria às portas e quanto mais cedo os fiéis
evangelizassem aqueles que não conheciam a salvação, menos pessoas estariam condenadas e
mais pessoas teriam acesso aos céus, agora parece haver um interesse não mais por esse
aspecto futuro da pregação pentecostal, mas sim por uma realização ainda hoje, palpável a
ponto de ser usufruída, de benesses que poderiam ser recebidas em uma vida futura, mas que,
de acordo com as pregações analisadas, teriam data e hora marcadas para acontecer.
Dentre as convicções que vêm sendo apregoadas nesse Congresso estariam aquelas que
buscam remediar situações já bem definidas no pentecostalismo clássico, como a questão do
sofrimento. Enquanto este pentecostalismo acreditava que tal situação acarretaria em uma
maior aproximação do fiel ao seu Deus, inclusive ressaltando sua permissão a fim de torná-lo
mais forte e convicto de sua fé, esse sofrimento é praticamente rechaçado durante as
pregações, sendo substituído por apelos de uma vida triunfante e próspera, associando esta
condição a uma aprovação divina, enquanto que a outra estaria mais próxima de uma
2161
influência inimiga, ocasionada pela atuação maligna do diabo, personagem muito mencionado
nas pregações do referido Congresso.
O caso do Congresso dos GMUH seria relevante para esta comparação, pois ele representaria
uma porção de fiéis pertencente às Assembleias de Deus que colaboram com o evento, já que
há a participação de pregadores procedentes das mais diversas regiões do País e de pessoas
também procedentes dessas regiões. Uma análise feita a partir das caravanas cadastradas no
evento deste ano (2013) permitiu constatar que existia pelo menos uma representação de cada
Estado do Brasil e que cada representação estava responsável por um ônibus com uma média
de 40 pessoas. Em Estados como Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo houve uma
maior participação, contabilizando-se mais de uma dezena de ônibus em cada um desses
Estados.
2162
Neopentecostalismo
Não se tem conhecimento, até agora, de um documento que indique uma sistematização
teológica das crenças do neopentecostalismo, estando ele amparado exclusivamente nas
convicções que são emanadas em momentos cruciais dos cultos como as pregações. Pode-se
afirmar que se trata de uma convicção basicamente oral e que ganha aceitação a partir do
momento em que é transmitida (ou repetida).
Uma vez que o neopentecostalismo ressalta uma forte afirmação do tempo presente,
concretizada através de discursos que trazem um apelo embasado na teologia da prosperidade,
esses discursos vêm sendo cada vez mais repetidos nas pregações em pequenas porções destas
ou mesmo integralmente. Ressalte-se que a aceitação do público a referidas falas é bem mais
2163
significativa do que quando se faz menção de outros aspectos do pentecostalismo clássico, já
consagradamente aceitos pela denominação.
Tais convicções, apesar de terem sido constatadas somente no Congresso dos GMUH, podem
ser facilmente encontradas nas Assembleias de Deus espalhadas pelo Brasil. A princípio,
essas convicções não representariam o discurso oficial da denominação, já que ainda é
relevante a doutrinação escrita, sendo inclusive criticada e combatida qualquer ação que se
assemelhe às convicções neopentecostais. Contudo, em uma observação mais acurada, é
possível identificar essas convicções tanto nas pregações que ritualmente são ministradas,
quanto em outros momentos que compõem a liturgia dos cultos, como nas músicas e nas falas
dos ministrantes que presidem as reuniões.
Considerações finais
Se o pentecostalismo clássico, que além da ênfase nos dons espirituais e no rigor com que
doutrina seus membros quanto aos usos e costumes, ansiava pelo retorno iminente de Jesus
Cristo, as duas primeiras ênfases ainda podem ser constatadas nas Assembleias de Deus,
sendo inclusive defendidas pela liderança e pelos membros. Já a última, apesar da sua
consolidação doutrinária, por meio da escrita, vem perdendo espaço para uma esperança
realizável ainda e definitivamente neste mundo.
A ênfase na oralidade, nessas denominações, vem sucumbindo a cultura escrita ainda mantida
oficialmente, mas sem tanta proeminência quanto o discurso oral, a pregação. E por ser uma
oportunidade considerada máxima no culto, esta pregação vem acarretando novas convicções
dentro do pentecostalismo das Assembleias de Deus. E essas convicções, conforme é
discutido neste trabalho, implicariam em uma neopentecostalização, ou afirmação do tempo
2164
presente, ou valorização do pragmatismo, ou mesmo anulação da “viva esperança” que nutria
os primeiros cristãos, que era a parusia.
Com isto, é possível compreender, por exemplo, a incursão dos pentecostais na política
partidária e nos movimentos de apelo ao retorno de uma moral baseada em preceitos
considerados bíblicos. Seria uma forma de tornar o mundo mais parecido com o céu que os
pentecostais acreditam que um dia irão viver ou, de um modo mais pragmático (e
neopentecostalizado), tornar o mundo o próprio céu dos pentecostais.
Referências
GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral. Tradução de Vera Joscelyne. Petrópolis: Vozes,
2012.
2165
2166
O diálogo inter-religioso nas Assembleias de Deus: desafios e
possibilidades
Adriano Sousa Lima1
Introdução
1
Mestrando em Teologia pela PUC/RS. Membro do GP Teologia e Libertação Bolsista. PROBOLSAS -
Programa de Bolsas mestrado e doutorado PUC/RS. Orientado pelo Prof. Dr. Luis Carlos Susin.
Contato:adriano.lima.66@hotmail.com
2
ALENCAR, 2010.
3
Tendência entre igrejas cristãs em desenvolverem atividades conjuntas no sentido de formar uma
universalidade.
2167
postura dessa denominação. Os traços que caracterizam as outras tradições religiosas devem
ser respeitados e reconhecidos.
Nas primeiras décadas do século XX, aportam no Brasil os primeiros missionários oriundos
dos Estados Unidos. Com a sensação de terem sido chamados, Daniel Berg e Gunnar Vingren
chegam à capital paraense em 1910. Os missionários encontram um Brasil “tropical e
abençoando por Deus”. Belém, no início do século 20, exportava borracha para várias partes
do mundo. As diferentes religiões estavam instaladas na cidade. Na época, o catolicismo, os
indígenas e os cultos afros já estavam vivenciando suas práticas religiosas por aqui. Os suecos
encontraram não apenas um país sincreticamente religioso, mas também de com a presença
consolidada de igrejas protestantes (batistas, metodistas, presbiterianas e luteranas). O
momento era de efervescência na economia e na religião. E é nesse ambiente que Berg e
Vingren começam a fazer reuniões de oração.
4
ARAUJO, 2007, p. 900.
5
ALENCAR, 2012.
6
BITTENCOURT FILHO, 2003.
2168
A diversidade religiosa presente no Brasil, especialmente na capital paraense, apresentou-se
como um grande desafio para o pentecostalismo. As igrejas protestantes e também católicas
― antes inimigas ― perseguiram de forma veemente a “nova seita”. Esse fato é fundamental
para compreender a postura atual dessa igreja, rejeitando até ser incluída no movimento
ecumênico (algo já superado pelo catolicismo e pelo protestantismo).
Nos seus momentos iniciais, a AD teve um discurso de aversão (aversão à educação teológica
formal, aversão à organização, aversão às práticas sociais etc.), o que influenciou
negativamente sua postura ao longo dos seus 100 anos. As marcas do pentecostalismo eram
glossolalia (falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo), cura
divina e forte escatologia pré-milenista. A moral individual puritana predominava (e ainda
predomina) no discurso assembleiano. Dessa forma, foi difundindo-se um pequeno grupo, que
mais tarde seria considerado como o mais importante fenômeno religioso do século 20.
Conforme Alencar,7 conhecer um pouco do que era a Suécia antigamente nos ajuda a
compreender as AD.
A Suécia em 1910 tinha 5.522.403 habitantes, dos quais 75% eram de zona rural. Era um país
agrícola e falido, um país estagnado com pouca diferenciação social. Esse era o ambiente
onde, antes, viviam os missionários. Os suecos de 1910 eram pobres. Não tinham dinheiro
para investir em terrenos, livros, cursos, professores etc.
Já no Brasil, por exemplo, Berg trabalhava durante o dia para pagar o curso de português para
Vingren. Esse contexto ajuda a compreender que a aversão ao intelectualismo não era gratuita
(embora também não se justificasse). A situação socioeconômica era desfavorável, o que não
acontecia, por exemplo, com os missionários protestantes que eram enviados com dinheiro
para investimento.
1.2 A questão sociopolítica
7
ALENCAR, 2012, p. 82.
2169
Um pouco de conhecimento do contexto político em que a AD nasceu e se desenvolveu é
fundamental para entender um pouco do seu conservadorismo. Para Alencar,8 o estilo de
liderança do então presidente, Getúlio Vargas (1882-1945), definitivamente influenciou a AD.
O conservadorismo assembleiano espelhou-se na centralização personalística da figura de
Getúlio. Durante seus primeiros anos, a AD apresentou um estilo moderno na sua
comunicação. Mas, no final de 1950, ela era uma igreja conservadora e resistente a mudanças.
O cientista da religião assembleiano (Alencar) com perspicácia percebe certo “getulismo” no
modelo de liderança das AD. Nesse caso, percebe-se como se formaram alguns traços
característicos dessa igreja, como, por exemplo, seu fechamento, principalmente no que diz
respeito às outras tradições religiosas.
O Brasil, após o primeiro centenário das AD, exige uma nova postura de sua maior igreja
evangélica. Os assembleianos, por sua vez, precisam afirmar a identidade pentecostal num
8
Ibidem, p. 85.
9
Essa proposta certamente é vista como heresia nos meandros assembleianos e somente quem acredita em
“milagres” pode imaginar que um dia a AD se disponha a ser uma igreja aberta ao diálogo inter-religioso.
2170
país cultural e religiosamente multifacetado. Isso pressupõe um novo olhar em direção ao
outro. Se a maior igreja evangélica brasileira deseja uma identidade profunda, ela necessita
urgentemente encarar os desafios que lhe são postos pela “modernidade líquida”.10
A Bíblia é lida e interpretada de forma literal no meio pentecostal. Uma nova interpretação
das Escrituras é o primeiro grande desafio que a AD precisa enfrentar para a abertura ao
diálogo inter-religioso. A mensagem bíblica deve ser traduzida para uma linguagem
atualizada e compreensiva ao homem pós-moderno. Se a afirmativa do teólogo Mário de
França Miranda ―11 de que a crise do cristianismo em grande parte é uma crise de linguagem
―, estiver correta, eis aí uma tarefa missionária! Evidentemente, a interpretação literal
(muitas vezes praticada de forma inocente) pode ter trazido benefícios para a denominação em
determinado momento histórico, mas é necessária uma atualização na interpretação das
Escrituras. A compreensão profunda da mensagem bíblica é pressuposto indispensável para
uma identidade pentecostal forte.
Num país multicultural e plurirreligioso como o Brasil, não é mais suficiente dizer que a
Bíblia é “a inerrante, infalível e completa palavra de Deus”. Niebuhr12 disse que “doutrinas e
práticas mudam com as transformações da estrutura social e não vice-versa”. É necessária
uma interpretação atualizada das Escrituras. A compreensão adequada, por sua vez, amplia os
horizontes e nos faz olhar a realidade de forma diferente, possibilitando abertura ao outro.
Parafraseando o teólogo Paul Knitter,13 a primeira razão pela qual os assembleianos devem
estar abertos ao diálogo inter-religioso é bastante evangélica: porque é o que diz a Bíblia. Na
concepção de Knitter, “a imagem do verbo de Deus encontrando voz ativa antes e depois do
Jesus histórico foi percebida nos primeiros séculos da Igreja pelos primeiros teólogos,
chamados pais da Igreja; eles claramente reconheceram que a capacidade e o desejo de Deus
de exprimir-se não podem limitar-se aos círculos cristãos”.14
10
BAUMAN, 2001.
11
MIRANDA, 2004.
12
Citado por Alencar em “Protestantismo tupuniquim”.
13
KNITTER, 2008.
14
Ibidem, p.63
2171
2.2 Engajamento no mundo
A igreja Assembleia de Deus tem uma dívida alta com a sociedade brasileira no que diz
respeito ao seu comprometimento com as questões sociais. A AD já é a maior Igreja
evangélica brasileira há algumas décadas, mas tem feito pouco ou quase nada pelo país em
termos concretos. A igreja será verdadeiramente seguidora de Jesus no momento em que se
comprometer com a sociedade. A AD precisa rever e atualizar seus conceitos. O verdadeiro
pentecostes é aquele que está engajado e comprometido com a transformação da sociedade
atual. Esse é o verdadeiro e urgente avivamento de que essa igreja precisa.
A pessoa de Jesus de Nazaré é exemplo de comprometimento por uma sociedade mais justa.
A vida de Jesus foi caracterizada pelo serviço, diálogo e respeito ao diferente. No homem de
Nazaré, não encontramos arrogância, prepotência, superioridade ou opressão. O estudo
aprofundado da Cristologia abre caminhos mais fecundos que respeitam as exigências de um
diálogo profundo com o diferente, sem abrir mão da nossa própria identidade.
15
MESQUIATE, 2011.
16
CARVALHO, 2010.
2172
O engajamento da Igreja com o mundo reacende o compromisso com a transformação social e
uma continuidade desafiadora e esperançosa entre o mundo e o reinado de Deus. 17 Ser
pentecostal é ser interpelado e comprometido com esse mundo.
A principal doutrina das AD é a pneumatologia. Essa igreja nasceu através de uma ação do
Espírito Santo. O traço característico de um pentecostal é, sem dúvida, a glossolalia. 18
Conforme Alencar,19 com exceção da doutrina da contemporaneidade dos dons do Espírito
Santo, a AD não carrega mais elementos que lembram a antiga igreja. A
atualização/contextualização da mensagem pneumatológica é o desafio posto às ADs no
Brasil hodierno.
Nesta terceira parte do artigo, o objetivo é relacionar a principal doutrina assembleiana com o
paradigma emergente do diálogo inter-religioso e mostrar que, embora os assembleianos
desconheçam, ambos estão em harmonia.
Ao longo dos anos, as AD não ficaram conhecidas pelo rigor intelectual de seus líderes e
menos ainda por superioridade teológica.20 Alencar21 lembra que a AD nunca teve um teólogo
erudito, mas foi a igreja que mais cresceu. A valorização à pneumatologia é o fio condutor
dessa Igreja. A manifestação dos dons espirituais é tida como prioridade na comunidade
assembleiana. Mesquiati22 chama atenção para o fato de que o Espírito Santo produz união e
não provoca dissensão. Nesse sentido, concordamos com William e Robert Menzies na
opinião de que o pentecostalismo está diante de oportunidades ímpares de reflexão
teológica.23
17
MESQUIATI, 2010.
18
Ato de falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo.
19
2010, p.39.
20
MENZIES, 2002.
21
ALENCAR, 2010, p.20.
22
MESQUIATI, 2011 p. 7
23
MENZIES, 2002.
2173
Como uma igreja que sempre valorizou a pneumatologia, a AD precisa buscar a cada dia uma
melhor compreensão do papel do Espírito Santo. A atuação permanente do Espírito na vida de
Jesus é uma chave hermenêutica fundamental para ampliar os horizontes pentecostais no que
diz respeito ao diálogo inter-religioso. A cristologia pneumatológica possibilita a
compreensão de que existe revelação de Deus fora da esfera religiosa e cristã. O teólogo
alemão Paul Tillich lembra que existe muita coisa na religião que não é revelação.24
O Espírito Santo, cuja doutrina é fundamental para as AD, é, para Comblin, o promotor da
unidade. É “a busca da unidade para além da maior multiplicidade”. E, de forma clara e
concisa, Comblin afirma: “não existe nenhum caminho já traçado antecipadamente. O único
caminho é o que o Espírito dispõe a cada instante, como que uma nova criação para cada um
dentre nós. Não existe um caminho único; existem milhões de caminhos e o Espírito Santo é a
unidade de todos eles”.26
A concepção de Tillich clareia a compreensão sobre “os milhões de caminhos” dos quais
falou José Comblin.
Dessa forma, a AD deve ser, a cada dia, uma Igreja com mais vitalidade espiritual, deixando
que o Espírito Santo lhe conduza pelos caminhos do diálogo com o outro, do respeito às
outras tradições religiosas e de uma missão transformadora e não proselitista.
24
TILLICH, 2005.
25
Citado por Paul Knitter, 2008 p. 71
26
COMBLIN, 1982.
2174
Não é muito insistir que o Espírito Santo é a força motivadora das AD. Por essa razão, o
presente trabalho toma a pneumatologia como ponto de partida para fundamentar o diálogo
inter-religioso nas AD. A revelação que é dada pela Bíblia mostra que Deus é Espírito e este
não é dado somente à Igreja, mas à humanidade e a toda criação.27
O Espírito que agiu de forma mística no início das AD em Belém do Pará não ficou restrito
àquele espaço religioso, sendo o mesmo Espírito que produz vida sobre toda a criação.
Conforme Bingemmer28 a vida é o ponto comum de onde o Espírito pode conduzir um
diálogo entre diferentes religiões. O Espírito que produziu o avivamento da rua Azuza, 312,
em Los Angeles, no início do século 20, batizou a irmã Celina de Albuquerque na capital
paraense nos primeiros cultos da nova denominação (AD), é o mesmo que deseja conduzir a
AD pelos caminhos do diálogo inter-religioso nos dias atuais.
O Espírito Santo que impulsionou os missionários suecos, americanos e brasileiros para sair
anunciando o evangelho por esse Brasil deseja agora, no início do século 21, que os
assembleianos saiam de si mesmos e movam-se em direção aos outros. Saiam de seus
interesses proselitistas e se tornem uma igreja aberta, comprometida com o bem comum.
O Espírito Santo que usou Berg e Vingren para pregar o evangelho na bela capital paraense,
agora quer usar a nova safra de assembleianos para anunciar, e fazer acontecer, a crença mais
fundamental e comum a todos o seres humanos: a fé na vida, o maior de todos os dons, o bem
mais precioso.
27
MOLTMANN, 2010.
28
TEIXEIRA, 1993.
2175
Dessa forma, o Espírito Santo convida a maior igreja evangélica brasileira para repensar seus
conceitos de missão e salvação. A missão integral e transformadora29 que pelo Espírito produz
vida com abundância a todos os seres humanos é o novo paradigma da teologia da missão. E,
nesse novo paradigma, o Espírito Santo (que é Deus) não está preso a nenhuma igreja em
particular, mas está em missão, atuando nos membros de outras tradições religiosas e
influenciando-os de maneira misteriosa. Deus não pertence a nenhuma tradição religiosa, mas
se doa ao máximo em todas elas.30
A igreja evangélica Assembleia de Deus é convidada pelo Espírito Santo a contribuir para o
desenvolvimento e transformação da sociedade brasileira através do testemunho e do serviço,
da coerência e da convicção da proclamação do Evangelho, da humildade para unir-se às
outras tradições religiosas nesse país, em diálogo profundo, para que juntas possam fazer o
que Jesus mandou: edificar a paz.
Considerações finais
A tese do teólogo alemão Hans Küng31 de que não haverá paz no mundo se não houver paz
entre as religiões ― e só haverá paz entre as religiões se estas dialogarem entre si ―,
constitui um grande paradigma nos dias atuais. A AD, que nasceu em um contexto de muita
espiritualidade, deverá ampliar seu horizonte de compreensão e pensar numa nova categoria
espiritual: o diálogo inter-religioso.
A AD, que sempre anunciou com muito entusiasmo o Deus da vida, deverá se unir com as
demais tradições religiosas e assumir conjuntamente desafios maiores, as causas humanas
que, para Edward Schillebeeckx, são também as causas de Deus.32 A verdadeira
espiritualidade exige esse comprometimento rumo a uma melhor convivência humana.
O intuito do presente artigo é mostrar que não é mais possível pensar a espiritualidade fora do
imenso desafio significado pelo diálogo inter-religioso, que é também o desafio inelutável da
nossa fé. Conforme assinalado anteriormente, a compreensão do pentecostalismo e mesmo a
construção da identidade assembleiana, não serão possíveis prescindindo das demais religiões.
29
BOSCH, 2002.
30
TORRES QUEIRUGA, 2007.
31
KÜNG, 2004
32
SCHILLEBEECKX, 1994.
2176
A identidade assembleiana se afirma na relação de diálogo, cooperação e mútuo
enriquecimento com os outros.
Referências
COMBLIN, José. O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes,
1982.
KÜNG, Hans. Religiões do mundo. Em busca dos pontos comuns. São Paulo: Verus, 2004.
2177
MIRANDA, Mário de França. A Salvação de Jesus Cristo. A doutrina da graça de Deus. São
Paulo: Loyola, 2004.
SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994.
TORRES QUEIRUGA, Andrés. Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo:
Paulinas, 2007.
2178
2179
Os protestantes da Amazônia: uma análise da onda evangélica na
cidade de Juína no noroeste do estado do Mato Grosso
Renato da Silva1414, Marina Silveira Lopes1415
Introdução
Com interesses díspares, os imigrantes que, aqui chegaram, travaram lutas com esses grupos
étnicos, assim, nos anos 1980 a Superintendência do Desenvolvimento do Centro Oeste
(SUDECO) criou o Projeto Polonoroeste com intuito de amenizar esse impacto. E trazer
progresso para a região. Isso trouxe um incentivo ainda maior para vinda de migrantes. O
noroeste do estado atraiu várias pessoas para os lugares mais inóspitos e de difícil acesso.
Juína tornou-se a cidade polo desse zoneamento. Nessa época chegar à cidade, levava em
média uma semana de viagem, no período das chuvas. Ela dista 720 km de Cuiabá.
A onda migratória para Juína exigiu a demarcação de um território sagrado, assim, em 1976,
tivemos o embrião da paróquia Sagrado Coração de Jesus de Juína. Inicialmente, dois padres
vinham de outras cidades distantes para a evangelização e conforto espiritual do colonos.
Somente em 1981, um ano antes dela se tornar município, o padre Duílio Liburti assumiu a
paróquia.
Esses migrantes, em sua maioria, sulistas, trouxeram além de mais católicos pela ascendência
italiana, as igrejas protestantes, como a luterana de ascendência alemã.
Procuramos aqui, mostrar como se deu o processo histórico da chegadas das igrejas
evangélicas na região Noroeste 1 do Mato Grosso, principalmente na cidade polo de Juína. A
pesquisa de campo foi feita nos bairros: Módulo I, II, III, IV, V e VI, Centro, Padre Duílio,
São José Operário, Setor Industrial, Setor Chácaras e Palmitera. Pretendeu-se, assim,
1414
Graduando do I Termo de Direito da AJES – Faculdades do Vale do Juruena. Contato:
renato.r.1@hotmail.com
1415
Profa. de Antropologia e História do Direito da AJES. Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP.
Agência de Fomento: FAPEMAT – Projeto Atlas. Contato: marinaslopes@terra.com.br.
2180
conhecer a divisão da territorialidade da igreja católica com as igrejas evangélicas, entender a
espacialidade decorrente disso e comparar os dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) após três anos, para averiguação do trânsito religioso.
Notamos durante a pesquisa, que a região e a cidade é carente de documentação histórica,
além do desencontro nas informações daquelas que conseguimos levantar.
Para dar suporte à pesquisa buscamos os aspectos histórico no estado do Mato Grosso, do
zoneamento Noroeste 1 e a cidade polo de Juína e as suas consequentes territorialidades
religiosas.
Pelo tratado de Tordesilhas cerca de 70% do atual território do Mato Grosso pertencia à
Espanha. As primeiras incursões, nessa região, ocorreram por volta de 1525, com a tentativa
de Pedro Aleixo Garcia chegar até ao território atual da Bolívia. Durante 200 anos tivemos
conflitos entre Portugal e Espanha por causa dessa divisão territorial. O tratado de
Tordesilhas só foi revogado pelos de Madrid (1750) e Santo Idelfonso (1777) que
estabeleceram e ratificaram uma nova demarcação, acordos esses impulsionados por vários
episódios históricos que ocorreram nas colônias.
O Mato Grosso, passou a ser uma região interessante para a coroa portuguesa com a
descoberta de ouro, em 1719, pelo paulista Pascoal Moreira Cabral Leme, que fazia uma
bandeira para o aprisionamento de indígenas locais para trabalho escravo. A descoberta do
veio aurífero no Rio Coxipó, na confluência com o Rio Cuiabá, redimensionou as investidas
das bandeiras nesse território. Foi, fundado, assim, o arraial de Forquilha abençoado com a
missa do padre Jerônimo Botelho, na primeira igreja, consagrada à Nossa Senhora da Penha
de França. (IBGE, 2013).
O arraial de Forquilha passou a se o arraial de Cuiabá. Com o fluxo migratório intenso, nesse
período, Cuiabá foi elevado à categoria de vila em 1727, pelo capitão general de São Paulo,
Dom Rodrigo César de Menezes, que estava no local para impor medidas pesadas de
arrecadação dos quintos de ouro para a metrópole portuguesa. As terras de Mato Grosso eram
administradas pela capitania de São Paulo (COSTA E SILVA, 2013).
2181
As altas taxas tributárias fizeram com que os garimpeiros se embrenhassem cada vez mais
para o interior, em direção à bacia do Guaporé, deixando praticamente despovoada a Vila
Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Com essa demanda Mato Grosso e Cuiabá ficaram
difíceis de ser administrados pela capitânia de São Paulo, sendo, desanexados, e em 1748. A
nova capitania ganha a Vila Bela da Santíssima Trindade, como capital em 1752. Entretanto,
mesmo destituída de foro de capital, a Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá pela sua
localização geográfica manteve sua hegemonia sendo elevada à categoria de cidade em 1818 e
foi oficialmente declarada Cuiabá, que passou à capital em 1835. (IBGE, 2013).
Esta capitania foi criada por uma questão de segurança devido a relação de divergência na
fixação dos limites da região, por isso a capital da Capitania foi Vila Bela da Santíssima
Trindade, que ficava nas margens do rio Guaporé e não em Cuiabá como queria o primeiro
Governador Antônio Rolim de Moura Tavares (LOBATO, A. da S, et ali, 2013,p.4).
Segundo LOBATO et ali (2013) em meados do século XVIII a fronteira na zona ribeirinha do
Guaporé foi ameaçada pelos castelhanos incentivados pelo vice-rei do Rio da Prata (atual
Paraguai) subordinados ao reino da Espanha. Com essas disputas percebemos que o processo
histórico de consolidação de fronteiras do estado brasileiro, na porção ocidental foi muito
conflituoso, onde o Mato Grosso ocupou uma posição estratégica.
As mudanças territoriais do estado passaram por guerras e mais conflitos. Assim, no início da
república o território matogrossense abrangia os atuais estados do Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Rondônia. Na divisão de 1943 surgiu o Território de Guaporé (atual RO) e a última
divisão territorial, em 1990, já eram fronteiriços os Estados do Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul, cuja separação ocorreu em 1977.
Segundo o censo de 2010 do IBGE, o Estado do Mato Grosso ocupa uma área de 903.366,192
km2 dividido em 141 municípios, com uma densidade demográfica de 3,36 hab/km2. Esse
território foi divido em 22 microrregiões.
2182
3 Nordeste Vila Rica
4 Leste Barra do Garça
5 Sudeste Rondonópolis
6 Sul Cuiabá e Várzea Grande
7 Sudoeste Cáceres
8 Oeste Tangará da Serra
9 Centro-Oeste Diamantino
10 Centro Sorriso
11 Noroeste 2 Juara
12 Centro-Norte Sinop
Essa proposta de integração foi intensificada na década de 1980. De acordo com MORENO
(2005) o Polonoroeste – Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil teve
um período de 8 anos (1980-1988), criado para financiar obras de infraestrutura e implantar
projetos colonizadores ao longo da BR 364 - Cuiabá-Porto Velho. Previa reconstruir e
pavimentar a rodovia, aumentar a malha viária e colonizar o Mato Grosso e Rondônia, bem
como a regularização das terras indígenas, com vista às melhoraria da qualidade desses povos,
promovendo à atenção especial ao meio ambiente.
Contudo, com essa promoção e incentivo, por parte do governo federal, acelerou a vinda de
grupos empresariais interessados na exploração da terra e da madeira. Foi um período
extremamente lucrativo com a exploração de madeira e desastroso para o meio ambiente e
para as populações indígenas. Junto com a chegada desses empresários o fluxo migratório foi
intensificado, principalmente, os sulistas. Isso fez com que os projetos já existentes na década
de 1970 fossem viabilizados, entre eles o Projeto Juína.
1416
Fonte: MORENO, G. et. ali (2005)
2183
OLIVEIRA (2010) coloca que o Projeto Juína foi idealizado pela SUDECO
(Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro Oeste) entretanto o projeto de
colonização, foi dirigido pela CODEMAT (Companhia de Desenvolvimento de Mato
Grosso). Juína nasceu legalmente 09.05.1982, amparada pela lei Estadual 4.456 com área de
26.350 Km2.
O povoamento de Juína já vinha ocorrendo desde 1978, com a chegada dos primeiros colonos
oriundos de diversos estados brasileiros, que compraram suas terras da própria empresa
colonizadora em prestações anuais, facilitando assim, o acesso dos colonos e a compra de
suas terras. Entretanto a população maior veio do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
nesse ordem.
Nessa época coube ao Padre Angelo Spadari e ao Padre Pio, ambos salesianos e residentes
fora do município, a orientação religiosa do grupo que se fixava. Os párocos vinham com uma
certa frequência para a evangelização dos colonos, quando em fevereiro de 1981 assumiu o
Padre Duílio Liburdi, da Congregação dos Oblatos de São José, como padre da Paróquia do
Sagrado Coração de Jesus em Juína. (CATEDRALJUINA, 2013). Com a consolidação da
Paróquia de Juína ocorreram os desdobramentos para as demais paróquias das cidades que
formavam a região noroeste do Mato Grosso. Entretanto, ao longo desse processo vários
párocos foram mortos em conflitos por posse de terra e outros interesses de grupos
específicos. (REOCITIES,2013).
2184
Ou seja, a dinâmica das desigualdades sociais, poderes ideológicos, ou influenciadores
políticos, econômicos e sociais, como execução de uma territorialidade ou um poder sobre
determinado espaço físico determinado.
Entretanto, essa territorialidade evangélica ficou muito bem demarcada no município e região,
tanto nas questões econômicas quanto na vida social, por exemplo, na celebração de feriado
evangélico em seis municípios da região, em datas diversas. Essas datas variam desde a
homenagem à chegada do primeiro presbítero ao Brasil (12.08) até 31.10, data na qual
Martinho Lutero, em 1517 pregou suas 95 teses na porta da Igreja de Wittemberg
(Alemanha). Aripuanã (31.10), Castanheira (12.08), Colniza (30.09), Cotriguaçu (29.05),
Juína e Juruena (31.10) e Rondolândia não celebra feriado evangélico.
1417
O geossímbolo pode ser definido com “um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas,
políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que
fortalece em sua identidade”. (BONNEMAISON, 2002, p.109).
2185
território corresponde uma territorialidade, mas nem toda territorialidade implica existência de
um território”, ou melhor, “pode ser a dimensão simbólica, o referencial (simbólica) para a
construção de um território, que não obrigatoriamente existe de forma concreta”.
(HAESBAERT, 2007, p.7), sendo a territorialidade dinâmica e diversa em cada território.
Em 1979, três anos depois da instalação da paróquia juinenese, a onda protestante chegou
com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. A partir daí, iniciou-se a entrada de
outras igrejas protestantes, impulsionada fluxo migratório. As características sulistas
propiciou uma história de ocupação, cuja espacialidade atrelou-se aos tipos de moradia, aos
costumes e as religiões. É dentro dessa espacialidade, que procuramos entender a história
religiosa do município, contribuindo para a dinâmica da construção e reconstrução do espaço.
Esse processo é nítido junto às igrejas evangélicas que distribuídas nos 10 bairros1418
ergueram-se em cerca de 53 templos1419 das mais variadas arquiteturas, desde casas de
madeiras às construções faraônicas. Vide tabela 02.
IGREJA Nº de Bairro
Fiéis
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO BELÉM 2000 Centro
CONGREGAÇÃO CRISTÃ DO BRASIL 1173 Centro
PRESBITERIANA DO BRASIL 1147 Módulo 2
DE ORIGEM PETENCOSTAL – OUTRAS 1010 Todos
PRIMEIRA IGREJA BATISTA DE JUINA 358 Módulo 1
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ 284 Módulo 3
ASSEMBLEIA DE DEUS NOVA ALIANÇA 250 Módulo 2
UNIVERSAL DO REINO DE DEUS 250 Centro
EVANGELICA LUTERANA DO BRASIL 221 Módulo 4
PENTESCOSTAL DEUS É AMOR 166 Módulo 4
ADVENTISTA SÉTIMO DIA 164 Módulo 2
1418
Excluíndo os bairros: Industrial e Setor Chácara
1419
Não foram mencionadas todas as igrejas, as menores mantém seus cultos nas casas dos fiéis
2186
ADVENTISTA DA PROMESSA 163 Módulo 5
SEGUNDA IGREJA PRESBITERIANA DO 130 Módulo VI
BRASIL RENOVADA
INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS 100 Centro
EVANGELICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO 75 Módulo 2
BRASIL
BATISTA NACIONAL DE JUINA 70 Módulo 5
DO EVANGELHO QUADRANGULAR 60 Módulo 4
PRESBITERIANA DO BRASIL RENOVADA 50 Padre
Duílio
CRISTÃ EVANGÉLICA CASA DE ORAÇÃO 50 Centro
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO PERUS 40 Bairro
Palmiteira
O BRASIL PARA CRISTO 31 Módulo 5
SEGUNDA IGREJA PRESBITERIANA DO 30 Vila São
BRASIL RENOVADA José
Operário
METODISTA 30 Módulo 3
CASA DA BENÇÃO 7 Centro
ASSEMBLEIA DE DEUS MINISTÉRIO 80 Módulo 4
MADUREIRA
PENTECOSTAL VOZ DA VERDADE 30 Módulo 5
PENTESCOSTAL JESUS CRISTO É O 20 Centro
SALVADOR
TOTAL 7939
Tabela 02: igrejas evangélicas em Juína/MT1420
SANTOS (1997) define espacialidade como um processos geográficos que por meio dos
movimentos das propriedades espaciais e das relações sociais viabilizam a produção contínua
do espaço geográfico. A espacialidade implica num movimento contínuo e estrutural, no qual
há uma ação direta do ser humano que constrói e altera um determinado espaço. Trata-se da
“incidência da sociedade sobre um determinado arranjo espacial” (SANTOS, 1997, p.74).
As dificuldades no início da imigração foram inúmeras. Elas não foram apenas por causa do
isolamento geográfico, do transporte, da alimentação, da escola, da comunicação mas
também no campo religioso. Já tinham os fiéis, na região, mas os sacerdotes precisavam viajar
dias para atendê-los, viam para a pregação de tempos em tempos atravessando as barreiras
naturais impostas pela floresta. Como, por exemplo, o pastor da Igreja Luterana, a pioneira,
que em 1979, precisava vir da cidade de Cacoal (RO) a 880km de distância para a celebração
1420
Fonte: SILVA, R. da, 2103 adaptada do IBGE (2010)
2187
do culto. Esses, ainda, realizados nas casas dos fiéis, nesse período. Três décadas se passaram
e, ainda existem problemas de locomoção entre as cidades do Noroeste 1.
Percebemos que de maneira geral a região Noroeste 1 do Mato Grosso traz em sua maioria
católicos e evangélicos. Tabulação curiosa se dá com o município de Colniza, pois tendo
praticamente o número de católicos e evangélicos é o município que apresenta o maior
número de ateus e de pessoas sem religião. Esse município está cerca de 500 km ao norte da
1421
IBGE – Censo de 2010.
2188
cidade de Juína, considerado o mais violento da região e com migração praticamente de
gaúchos.
Rondolândia também nos chama atenção, por ser o município mais isolado da região ter
praticamente o mesmo número de católicos e evangélicos, e celebrar somente os feriados
católicos.
Cabe uma pesquisa de campo mais efetiva na região e no município de Juína, para
verificarmos quais as religiosidade essas pessoas sem religião são praticantes.
Considerações finais
A história do Mato Grosso foi embasada nas tradições católicas desde o período da
colonização. No século XX estudiosos e missionários adentraram nesse território, uns com o
objetivo de estudo da fauna, flora e das etnias indígenas e outros com a missão de
evangelização. Já na década de 1940 foi instituído o Posto Missionário de Utiariti em
Diamantino-MT com a função de internato para as crianças órfãs indígenas sob os cuidados
da ordem jesuíta, outros missionários se fizeram presente em território mato-grossense,
delimitando suas territorialidades.
Todavia na 1970 e 1980, a hegemonia da igreja católica vai em direção à região Noroeste 1
desse estado, colocando toda sua fé à disposição dos imigrantes que lá chegavam para integrar
a área com as demais regiões do Brasil. Mas, esses imigrantes também trouxeram sua fé
protestante, dividindo assim as territorialidades. O processo histórico de Juína e região foi
conflituoso, pois além das religiões cristãs que dividiram suas territorialidades existiam as
religiões nativas.
Durante mais de 30 anos elas imprimiram uma espacialidade na cidade. Seus maiores templos
se localizam nos bairros mais ricos da cidade como Módulo I,II,III e IV. No início da
imigração as igrejas protestantes ordenavam os fiéis foram os históricos e para o final da
década de 1980 os pentecostais angariaram mais fiéis. Podemos verificar que a Assembleia de
2189
Deus é detentora do maior número de membros participantes e pagantes. A neopentecostal
Universal do Reino de Deus ou mesmo outras não abarcaram muitos fiéis.
A cidade pelo seu isolamento, por alguns anos, pareceu preferir a confissão evangélica mais
tradicional e rigorosa, o que gerou um preconceito generalizado mediante outras religiões. A
tentativa de redimensionarmos os evangélicos com os dados do censo de 2010 serviu para
mostrar-nos o quanto é difícil pesquisar sobre o campo religiosa da cidade. Os números
coletados no campo foram diferentes aos do censo de 2010, isso não nos mostrou um trânsito
religioso, mas sim, que as pessoas e até mesmo as igrejas, não gostam de manisfetarem-se e
carecem de dados históricos.
Referências
2190
SACK, Robert D. Human Territoriality: Its Theory an History. Cambridge: Cambridge
University Press. 1986.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 4.ed. São Paulo: Editora Hucitec.
1996.
SILVA, R. et. ali. Territórios e Identidades: mapeamento dos grupos sociais do Estado de
Mato Grosso-Brasil. Disponível em <www.scielo.br/pdf/asoc/v113n2/v13n2a04.pdf>. Acesso
em 05 ago. 2013.
Internet
Disponível em <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/matogrosso/cuiaba.pdf.>.
Acesso em 03 ago. 2013.
Disponível em <http://www.estatisticasmt.com.br/index.php?option=com_content&view=
article&id=282:microrregioes&catid=49:microrregioes-de-mato-grosso&Itemid=130>.
Acesso em 03 ago. 2013.
2191
Terceira Face do Pentecostalismo no Brasil
Samuel Pereira Valério1422
Introdução
Após pouco mais de cem anos no Brasil o Pentecostalismo continua sendo fonte de muitas
pesquisas. Quando chegou ao Brasil encontrou um campo religioso muito homogêneo, o
catolicismo predominava amplamente. Mesmo diante deste quadro adquiriu forças e cresceu
demasiadamente em seus primeiros anos. A chegada da Congregação Cristã1423 no Brasil,
através de Louis Francescon, em 1910, nasceu em meio a imigrantes italianos, no Brás, São
Paulo. Já em Belém – PA surgiu a Missão da Fé Apostólica em 1911, através de Daniel Berg
e Gunnar Vingren, e, em 1918 passa a chamar-se Assembleia da Deus.1424 Em 1912 chegou
ao Brasil, em Guarani – RS a Igreja Batista Sueca1425 trazida por Erik Jansson missionário
sueco enviado pela Örebromissionen – ÖM.1426 Esta terceira igreja é objeto de nossa pesquisa
no mestrado, e este artigo representa alguns elementos da mesma.
Durante o período de 1880-1893 cerca de 7,3 milhões de pessoas imigraram para os EUA
entre eles estavam grupos como os irlandeses, ingleses, escoceses, alemães e escandinavos
(LJUNGMARK, 1969, p. 6-7). A imigração foi motivada pela fome, desemprego, doenças, e
falta de liberdade religiosa. Além dos EUA, alguns milhares de suecos tiveram como destino
o Brasil. Em São Paulo, Belém e Guarani havia representação sueca.
1422
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC/SP. Bacharel em Teologia pelo Mackenzie. Membro do
GEPP – Grupo de Estudos de Protestantismos e Pentecostalismos. Orientado pelo Prof. Dr. Edin Sued
Abumanssur. Bolsista CAPES. Contato: samuelpv@ig.com.br
1423
Chamaremos de CCB para simplificar a nomenclatura utilizada.
1424
Chamaremos de AD para simplificar a nomenclatura utilizada.
1425
Chamaremos de IBS para simplificar a nomenclatura utilizada.
1426
Missão de Örebro, uma agência missionária paraeclesiástica subordinada a Igreja Filadélfia de Örebro.
Atualmente Interact, com sede em Örebro, não está subordinada a Filadélfia de Örebro. Esta denominação é
interdonominacional, pois abarca como membros da organização várias igrejas livres suecas.
2192
John Ongman
Entre os imigrantes para os EUA gostaríamos de destacar o sueco John Ongman (1944-1933),
não só por seus ideais, mas também por sua aparência. Ongman era alto e usava uma longa
barba. Em 4 de março de 1864 ele é batizado nas águas 1427 pelo pastor batista Sven Jonsson
em Kovra, Suécia, em um buraco aberto no lago congelado, o que para um sueco não é
obstáculo. Foi marcado por uma experiência no batismo, como ele descreve: “o Espírito
Santo desceu sobre mim e encheu toda a minha vida com amor de Deus e paz e
contentamento em Deus” (MAGNUSSON, 1932, p. 22), e isto fica evidenciado em seu
ministério. Viveu nos EUA entre 1868 a 1889, e lá foi consagrado pastor em 1868. Em 1870
foi convidado para pastorear os colonos suecos, e entre eles trabalhou até 1873 quando fundou
a igreja Batista de St. Paul. Suas ideias foram importantes, pois iam além da visão e teologia
dos batistas da época. Na Suécia Ongman desenvolveu um grande trabalho, tendo sido
responsável pela fundação da Örebromissionen – ÖM em 1892 e da Örebro Missionsskola1428
em 1892, que posteriormente tornou-se o Örebro Teologiska Högskola1429 em 1908. Enquanto
os pastores seguiam o que a convenção Batista sueca propunha, Ongman trazia inovações, e
acabou tornando-se conhecido na Suécia.
Natural de Skövde, Suécia, viveu nos EUA, e em 1904 se converteu a fé evangélica em Los
Angeles, em 1905 foi batizado nas aguas em San Pedro, Califórnia. Até 1906 trabalhava como
colportor e viajava para pregar, testemunhar, entregando folhetos, vendendo livros e jornais.
No mesmo ano encontrou William J. Seymour em um culto. Seymour havia testemunhado1430
e pregado, e Johnson ficou cativado por sua devoção.
1427
nas águas. É importante ressaltar que o batismo Batista é por imersão, diferentemente do batismo Luterano e
Católico que são por aspersão.
1428
Escola de Missões de Örebro.
1429
Seminário Teológico de Örebro.
1430
Testemunhado ou dar um testemunho é uma participação especial de um pregador ou outro membro da igreja
Pentecostal contando suas respectivas experiências espirituais como: cura, exorcismos e manifestações de dons
espirituais, por exemplo.
1431
Conforme o relato bíblico de Atos 2, seria o dia em que o Espírito Santo desceu sobre os discípulos.
1432
Lucy Farrow(1851-1911) mulher que participou do Movimento Pentecostal em Azusa Street.
2193
foram chamados à casa de Ed Närkerd Lee, que se sentia doente e queria que orassem por ele.
E assim o fizeram. Seymour o ungiu com óleo, de acordo com a instrução bíblica de Tiago
5:14.1433 Após a oração, ele teria sido imediatamente curado. Alegre pela cura ele pediu para
que orassem para que ele fosse batizado no Espírito Santo.1434 Desejava ser batizado como
Seymour ensinava, de maneira como ninguém na cidade ainda tinha experimentado. Farrow
impôs suas mãos orou por ele, ele caiu da cadeira que estava sentado e teria começado a falar
algumas palavras em línguas. (STÄVARE; WASSERMAN, 2008. p. 23-24).
Perto dali, em 214, North Bonnie Brae Street, o culto já havia começado. Seis pessoas
estavam ajoelhadas e oravam. Lee entrou, levantou suas mãos e compartilhou o que havia
acontecido. Ele tinha sido batizado no Espírito Santo! Uma grande alegria e emoção se
espalharam entre eles. Cantaram uma música e Seymour começou a falar sobre Atos 2:4.1435
Ele não conseguiu terminar seu sermão; o Espírito Santo teria começado a se manifestar sobre
os que estavam reunidos. Muitos teriam começado louvar a Deus em línguas. Passado algum
tempo, o grupo cresceu e alugaram uma Igreja Metodista, um dos endereços mais famosos na
história da Igreja: 312, Azusa Street.
No mesmo ano Johnsson, Lucy Leatherman e Louise Condit viajaram para Jerusalém, mas
quando chegam a Nápoles, se separam, e sem dinheiro, não chegaram ao destino. Johnsson
conseguiu passar por Nápoles, Genova, Inglaterra e chegar a Suécia em 16 de novembro de
1906 (STÄVARE; WASSERMAN, 2008. p. 32).
1433
“Entre vocês há alguém que está doente? Que ele mande chamar os presbíteros da igreja, para que estes
orem sobre ele e o unjam com óleo, em nome do Senhor”. (Nova Versão Internacional – NVI).
1434
batismo no Espírito Santo é o termo usado para manifestações espirituais no culto pentecostal.
1435
“Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito os
capacitava”. (NVI).
1436
Igrejas livres significa não pertencer a igreja oficial do Estado, no caso, a Luterana. Desde ano 2000 a Suécia
tornou-se um país laico.
2194
Na cidade de Örebro houve manifestações semelhantes. Nas últimas décadas do século XIX a
Igreja Filadélfia esteve à frente deste movimento, e a Örebro Missionsskola era um centro de
reuniões e discussões sobre o tema.
A experiência abaixo citada é de uma pessoa que supostamente estava vivendo o mover do
Espírito Santo em Örebro, no final da década de 1880: (Magnusson, 1932. p. 170 a 184).
“(...) Os cultos têm ficado cheios de pessoas e o Espírito Santo tem estado presente
poderosamente. O Senhor tem falado conosco como nunca antes – especialmente aos
crentes. (...) cremos que é o Espírito Santo que tem trabalhado nos cultos. (...)”
Chegando a Suécia, Johnsson hospedou-se na casa de sua mãe em Skövde e buscou contato
com os fiéis na Igreja Batista Elim, procurando se aproximar do movimento cristão que teve
mais afinidade. Trabalhou para divulgar as novas descobertas sobre o batismo no Espírito.
Após um mês como missionário pentecostal na Suécia, dia 15 de dezembro ele enviou seu
primeiro relatório de trabalho à base em Azusa Street:
Em 1906 o novo movimento como veio a ser chamado era um fenômeno relativamente local
na Igreja Batista de Skövde, mas a notícia dos fatos se espalhou rapidamente. A pergunta
óbvia era: Isto é de Deus ou não? Alguns optaram por dizer como Gamaliel.1437 Entre eles o
pastor da Igreja Elim em Skövde, Carl Victor Hugo, que se aproximou de Ongman para
1437
“Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará”.
2195
receber ajuda e analisar os novos fatos que estavam ocorrendo na igreja. Em janeiro de 1907,
Ongman foi à Skövde e observou o culto, especialmente Johnsson, que não teve nenhum
contato anterior com a igreja sueca livre, não conhecia Ongman e muitos dos presentes àquela
reunião. Em sua visita a Skövde Ongman viu “como o Espírito Santo caía e como eles
falavam em línguas, cantavam e jubilavam” por isto “percebeu imediatamente ser um
trabalho de avivamento que emergia. Ongman não precisava mais estar hesitante sobre o que
acontecia naquela igreja” (SUNDSTED, 1969, p. 197).
Ongman convidou Johnson para ir à Filadélfia em Örebro, pois ficou satisfeito com o que viu
e experimentou. Ongman partilhou as experiências com diferentes colegas batistas, direta ou
indiretamente, até mesmo através do Jornal Batista Wecko-Posten.
Este jornal foi o primeiro veículo que oficialmente confirmou que o avivamento pentecostal
havia chegado à Suécia. Em 24 de janeiro de 1907, há uma notícia não assinada afirmando:
O novo movimento se espalhou por muitos lugares, e através de Ongman e Johnsson chegou a
Örebro. Johnsson nunca foi um grande orador público, era bom em testemunhar e orar por
pessoas para terem experiências espirituais. Havia aprendido a orar pelas pessoas com Farrow
em Azusa Street, e este método e habilidade é chamada teologia prática.
O irmão A. G. Jansson de Sköfde está atualmente visitando Örebro. Ele tem participado em
algumas reuniões na Igreja Filadélfia e falado e cantado em uma variedade de línguas que
1438
Atual Oslo, Noruega.
1439
O artigo no Wecko Posten não está assinado. Mas no Dagens Nyheter também há uma nota, alguns dias
antes, dizendo que um pastor Hellström de Gotemburgo visitou Kristiania e Skövde para ouvir Jansson.
2196
Deus lhe deu. Dá a impressão de estar cheio de paz e alegria. Em seu testemunho sempre
fala sobre a beleza da salvação.1440
Em 1907 surgiu um novo elemento no relatório dos evangelistas: “o fogo de Deus começou a
queimar” mais que antes, e “alguns receberam o dom de falar em línguas estranhas”. Os
novos fenômenos eram experimentados em muitos lugares e difundidos por meio dos
evangelistas da ÖM (KAPPAUN, 2012. p. 25).
Após janeiro de 1907, Örebro era o centro emergente do avivamento pentecostal na Suécia.
Ongman compreendeu que este novo fenômeno deixaria uma boa herança para sua igreja. O
avivamento encontra boa acolhida, não por acaso, pois para a Igreja Filadélfia e a Örebro
Missionsskola a busca pelo transcendente era natural, e este suporte foi importante para o
estabelecimento do Pentecostalismo na Suécia.
O sueco Johan Åsblom emigrou para o estado de São Paulo em 1885. O trabalho e as
dificuldades nos primeiros anos suprimiram as suas forças, mas o pior sentimento era o de
isolamento referente aos seus irmãos de fé. Em 1892 ele escreveu uma carta para
Evangeliskafosterlandsstiftelsen,1441 pedindo que enviassem um pastor missionário para
cuidar das necessidades espirituais dos colonos. (JANSSON, 1941. p. 25).
Dentro do contexto do proto Pentecostalismo sueco havia um jovem chamado Adolf Larsson
que cursava a Örebro Missionsskola em 1892, que se candidatou para ser missionário no
1440
A primeira notícia foi publicada no Närkesbladet dia 29 de Janeiro de 1907. Mais entrevistas foram
publicadas no Närkesbladet dia 1 de fevereiro e no Svenska Tribunen dia 7 de fevereiro.
1441
Fundação Evangélica em prol da Terra Natal, organização missionária sueca.
2197
Brasil. Sua oferta foi aceita pela Örebro Missionförening e, no mesmo ano, ele partiu rumo a
São Paulo. Contudo sua missão foi interrompida pela febre amarela que o atingiu fatalmente
logo após sua chegada ao Brasil. (JANSSON, 1941, p.25-26).
Um Clamor Macedônio
(...) Muitos suecos chegaram esses dias aqui. São mais de 300, todos com saúde e felizes
pela chegada. Contam que muitos outros virão. Eles são de Kiruna e tomarão posse de
terras aqui no Brasil. Aqui tem isso, que é suficiente para milhares de pessoas, e os
colonos recebem ajuda até a colheita e podem trabalhar independentes...
Agora outra coisa. Vários suecos saúdam e perguntam se vocês aí em Örebro não
poderiam mandar um missionário até nós. Nós não temos nenhum líder que fale do
Evangelho. Quando viajamos ao Brasil, muitos eram crentes, mas agora não são nada.
Com isso as crianças aqui são criadas numa grande escuridão e paganismo. Nós cremos
que se viesse alguém aqui e começasse um movimento espiritual, o Senhor levantaria o
povo que voltaria a si novamente. Nós vimos no jornal que vocês mandam missionários
para lugares muito mais selvagens do que o Brasil, como a Índia e a África... Queridos
amigos, quando forem mandar pregadores do Evangelho, não esqueçam do Brasil”. (...)
Erik Jansson
Em maio de 1912, Jansson iniciou sua viagem ao Brasil chegando ao Porto de Santos em 8 de
junho, e continuou para Porto Alegre, onde chegou em 15 de junho. Sem dinheiro para
1442
Esta frase faz menção à visão do Apóstolo Paulo em Atos 16.9: “Durante à noite Paulo teve uma visão, na
qual um homem da Macedônia estava em pé e lhe suplicava: ‘Passe à Macedônia e ajude-nos’“.
2198
prosseguir até Guarani, permaneceu ali por dois meses e meio, na casa de um missionário
batista dos EUA, reverendo Albert L. Dunstan. Neste período, manteve contato por
correspondência com os irmãos em Guarani. Chegou a casa de Andersson, autor da carta que
deu origem à sua chamada para o Brasil em 12 de setembro de 1912. Muitos esperavam ajuda
da Suécia, mas tinham perdido a esperança de que alguém viesse de tão longe para aquele
lugar.
Em 1911, a enchente do rio Uruguai destruiu a maior parte do que havia sido plantado e
tiveram de recomeçar o trabalho. Os emigrantes suecos dependiam dos empréstimos
governamentais para estabelecer uma lavoura que os pudesse sustentar (KAPPAUN, 2012. p.
37-38).
Jansson narra sua experiência da seguinte forma: “Meu primeiro culto para os suecos em
Guarani aconteceu em 15 de setembro sob a sombra de uma árvore de mate no quintal dos
Andersson” (JANSSON, 1941. p. 48). O objetivo era dar aos suecos uma base cristã para a
vida.
Jansson se tornou a força aglutinadora que a comunidade em Guarani precisava. Ele não só
realizava cultos, mas também promovia festas e comemorações. O Natal de 1912 foi
comemorado pela primeira vez em comunidade e a bandeira sueca foi hasteada na Colônia.
Relatos da época dizem que o sentimento de comunidade e até de valor humano foi
restabelecido com a sua chegada (KAPPAUN, 2012. p. 38).
As primeiras igrejas
Alguns recorriam a Jansson nas necessidades. Mas como pastor batista entendia que o
batismo deve ser precedido da fé em Cristo Jesus. Por isso, pregava a necessidade de
arrependimento e batismo nas águas. A resistência dos colonos suecos era grande e o
resultado demorou a aparecer. Em 17 de janeiro de 1914, no entanto, Jansson realizou o
primeiro batismo em Guarani. Os novos convertidos eram Oscar e Emma Beckman. Um mês
depois, outro batismo: Johana Persson.
Em junho de 1914 chegou da Suécia Anna Malm, noiva de Jansson, juntamente com Carl
Svensson. Este último, em pouco tempo, decidiu se mudar para Ijuí. Naquele mesmo ano a
primeira a Igreja Batista sueca (JANSSON, 1941. p. 74; EKSTROM, 2008. p. 49-51). A
2199
segunda Igreja foi fundada por Svensson em Ijuí em 3 de janeiro de 1915, marcada pelo
batismo de sete suecos (JANSSON, 1941. p. 75). Em 1919 haviam 6 igrejas as quais
constituíram a Convenção Evangélica Batista Sul Rio-Grandense (KAPPAUN, 2012. p. 39).
Daniel Berg e Gunnar Vingren vieram de Chicago, EUA, onde teriam recebido o batismo no
Espírito Santo. Chegaram a Belém – PA, e logo procuraram uma igreja Batista para se
tornarem membros, mas após algumas reuniões de oração onde teria havido a manifestação
dos dons espirituais, foram convidados a se retirarem, e acabaram fundando a Missão Fé
Apostólica, em 1911. Em 1918 deram um novo nome: Igreja Assembleia de Deus. Nos
primeiros anos de trabalho eram menores numericamente que a CCB, mas já na década de
1920 ultrapassaram e se tornaram a maior denominação Pentecostal brasileira, e até hoje
detém esta posição (FRESTON, 1994. p. 70-71).
Os suecos trouxeram ao Brasil consigo seus costumes, hábitos, e o mais relevante para nós,
suas crenças. Suas práticas religiosas ficaram comprometidas, pois os luteranos precisam de
um sacerdote para a prática dos sacramentos, e como nenhum sacerdote fora enviado com
aquele grupo, ficaram muito tempo sem realizar celebrações religiosas. Apesar do
2200
distanciamento, muitos deles tinham desejo de reatar os laços espirituais que haviam sido
aprendidos na Suécia. A IBS instala-se no Brasil com o propósito de tira-los dessa escuridão
espiritual. Ser luterano na Suécia da virada do século XIX para o século XX representava
fazer parte da igreja estatal, ser subsidiado por ela, e ainda, fazer parte do clérigo luterano
certamente abria algumas portas. Ser Batista neste mesmo período representava um
separatismo espiritual, dependência financeira da igreja local, e no inicio as igrejas livres na
Suécia eram vistas com desconfiança. Este foi um dos motivos, entre outros, que trouxeram
suecos ao Brasil, pois encontram fora do país maior liberdade de expressão e crença. As
igrejas livres na Suécia haviam alcançado alguns progressos, mas ainda existia pressão da
igreja estatal, e de certa forma, sufocava parte da população que divergia desse pensamento.
Os imigrantes suecos permaneceram bem fechados durante algum tempo, mas a chegada de
Jansson, e com a implantação da IBS, se iniciou um novo período, onde puderam retomar as
práticas religiosas e, posteriormente, expandir aquilo que agora passaram a viver.
O conceito de Pentecostalismo de Migração parece ser adequado para definir este tipo de
Pentecostalismo na medida em que ressalta uma característica interna desses grupos
religiosos: sua homogeneidade étnica. Contudo, parece ser difícil demonstrar essa
homogeneidade em termos históricos, a não ser em grupos muito pequenos e específicos. A
IBS se insere no contexto deste Pentecostalismo étnico e permanece assim durante anos.
Fazer uso de conceitos genéricos e abrangentes para descrever a relação entre religião e etnia
nos parece muito mais complexo. Antes é preciso explicitar essa relação em cada caso
específico. “A importância e a significação que tem a dimensão religiosa na definição da
identidade étnica varia consideravelmente de um grupo para outro e dentro de um mesmo
grupo, e de um momento para outro” (WIRTH, 1998, p. 156-172). Este movimento se
assemelha muito ao que o protestantismo de migração propôs como uma forma de
evangelização dentro do campo religioso brasileiro. O Pentecostalismo de migração traz como
cerne da mensagem o Avivamento Pentecostal, ainda que seus primeiros passos já haviam
sido difundidos pela CBB e pela AD, a IBS manteve seus traços étnicos por um período muito
mais longo, talvez o maior entre as três citadas acima. A ÖM foi responsável pela fundação de
uma escola onde filhos de colonos suecos aprendiam português e o sueco. Isto foi muito
importante para a preservação da identidade cultural, e ao mesmo tempo restringia a adesão
de pessoas de outras etnias, talvez este tenha sido o principal obstáculo no início da IBS no
Brasil. O isolamento em si mesmo na tentativa da preservação da cultura sueca pode ter sido
um dos fatores para o pequeno crescimento, comparando o mesmo período da CBB e da AD.
2201
A Construção do Mito Fundante
A iluminação do carisma tem relação direta com o que aconteceu com Ongman em Örebro.
Era um homem sério, mas carismático, o que se torna evidente nos EUA, é consagrado pastor
e eleito presidente da Convenção Batista Sueca nos EUA. Após seu retorno a Suécia, assume
a Igreja Filadélfia de Örebro. Seu carisma fazia com que ele ganhasse cada vez mais espaço
entre os batistas suecos. Influenciado pela teologia holiness, traduziu músicas do inglês para
sueco, o que facilitou sua aceitação do novo movimento. É considerado um personagem
fundamental para o desenvolvimento do movimento Pentecostal sueco, pois sua influência
serviu como plataforma para o fortalecimento do movimento, legitimando assim seu carisma.
Johnsson, outro importante personagem no Pentecostalismo sueco, apoiado por Ongman
conseguiu desenvolver sua mensagem e conceitos teológicos, através da legitimidade
reconhecida em Ongman, destacou-se por ter seu carisma reconhecido. A historiografia da
2202
CIBI1443 reconhece a importância de Ongman e Jansson, mas não faz menção de Johnsson,
talvez este último não tenha a importância institucional dos outros quanto à implantação
missionária. Nossa pesquisa leva em consideração a influência Pentecostal sobre a Igreja
Filadélfia, e neste enfoque o nome de Johnsson ganha força.
O Pentecostalismo na Suécia se depara com igrejas que Weber vai chamar de dominação
racional. Está evidenciada no preparo teológico dos missionários da ÖM, pastores e
missionários que recebiam salários, a participação de mulheres que eram enviadas como
evangelistas dentro da Suécia e outros para outros países, são alguns exemplos. É uma das
peculiaridades desse movimento, ele encontra resistência a sua anarquia, e tem de se adequar
a essa dominação racional. Em contrapartida, desponta dentro dessas mesmas igrejas a
dominação carismática, que trás consigo a nova mensagem estabelecendo novos rumos para
as igrejas que se engajaram no movimento chegado dos EUA, encontra uma igreja que tem
desejo por uma experiência espiritual mais profunda, desejo oriundo do avivamento do País
de Gales e da Convenção de Keswick. Isto fica evidenciado nos cultos lotados que ocorreram
logo após a chegada de Johnsson com a mensagem Pentecostal e com a multiplicação do
movimento naquele país. A rotinização do carisma (ALENCAR, 2012. p. 61) já se dá quase
que imediatamente, pois o movimento se adequou as igrejas que aderiram a ele.
Legalidade do poder
A legalidade do poder é dada pelos fiéis e pela própria instituição religiosa quando reconhece
no líder características que possam nortear suas vidas. Pensando no Pentecostalismo trata-se
de se legitimar alguma liderança para dirigir o povo e leva-los a ter contato com o novo
movimento e a nova doutrina. Fica muito evidenciado no movimento Pentecostal de migração
que este aspecto é tratado de forma bem peculiar. Esta legalidade foi entregue pela própria
instituição, e não apenas pelos fiéis, mas influenciou e deu legitimidade ao reconhecimento
conquistado em todo território sueco e posteriormente no Brasil.
1443
CIBI – Convenção das Igrejas Batistas Independentes. Esta denominação é um cisma da Convenção Batista
Rio-Grandense do Sul, ocorrido em 1952, e herda a história da Igreja Batista Sueca no Brasil.
2203
Características específicas
Ethos sueco
Weber trata de igreja e seitas, a primeira neste momento histórico é estatal, a segunda não
estatal, e, portanto, representa a contestação do Estado e subversão de um Estado político
(ALENCAR, 2012. p.121). A representação da Igreja Batista em território sueco no século
XIX representa uma ameaça a hegemonia luterana. Ao mesmo tempo, a fragmentação entre
os Batistas diminuía o trabalho da igreja estatal. Com a chegada do Pentecostalismo, muitas
igrejas livres, entre elas, muitas igrejas Batistas aderiram ao novo movimento, tornando as
lutas políticas mais constantes. Ser Batista representa trabalhar de forma autônoma, portanto a
convenção Batista não pode interferir nas decisões das igrejas locais em aderirem ou não ao
movimento. Em certo sentido isto deu uma maior coesão aos que não aderiram, mas, ao
mesmo tempo, os que aderiram acabaram se distanciando da convenção Batista, como é o
caso da Igreja Batista de Estocolmo, do pastor Lewi Petrus, o qual foi pastor de Berg e
Vrigren. Alencar nos afirma que já havia presença sueca (Alencar, 2012. p. 26) no Brasil
antes da chegada dos missionários citados acima. No RS