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Histórias em

quadrinhos
e educação
alimentar: limites e
possibilidades
 Cláudia Sales de Alcântara -
Doutora em Educação Brasileira – UECE
José Arimatea Barros Bezerra -
Doutor em Educação Brasileira/ Pós-Doutor em História – UFC

Resumo: O trabalho analisa as revistas em quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na Cartilha da


Nutrição no Fome Zero, um material educativo abordando a importância de uma alimentação
saudável. O objetivo era inserir no ambiente escolar uma discussão que estimulasse pensar
e adotar práticas alimentares e estilos de vida saudáveis por meio de ações educativas sobre
alimentação. Para o desenvolvimento da pesquisa, foi empregada a Hermenêutica de Profundidade
(THOMPSON, 1995), como um referencial teórico-metodológico, dividindo-a em três etapas:
análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva e interpretação/ reinterpretação. Ao final,
pode-se concluir que apesar das revistas possuírem um conteúdo limitado e prescritivo, elas podem
ser instrumentos de estímulo para o tema alimentação e nutrição, favorecendo o desenvolvimento
da capacidade crítica do professor e dos alunos.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Educação Alimentar; Currículo.

Abstract: The paper analyzes Emilia and the Farm group on Nutrition Primer on Zero Hunger
comics, an educational material addressing the importance of healthy eating. The goal was to
enter the school environment a discussion that stimulates thinking and adopt eating habits and
healthy lifestyles through educational activities about food. For the development of research,
it used the Depth Hermeneutics (THOMPSON, 1995), as a theoretical and methodological
framework, dividing it into three stages: socio-historical analysis, formal or discursive analysis
and interpretation / reinterpretation. In the end, it can be concluded that despite the comic books
having a limited and prescriptive content, they can be stimulating instruments for the subject
food and nutrition, favoring the development of critical ability of the teacher and students.

Keywords: Comics; Food education; Curriculum.

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Este trabalho tem como objetivo Para fazer tal análise, escolhemos a
analisar as revistas em quadrinhos distribuídas EMEIF João Frederico Ferreira Gomes para
gratuitamente pelo Governo Federal às trabalhar com alunos e professores as revistas
escolas estaduais e municipais, intitulada supracitadas. A escola pertence ao sistema
Emília e a Turma do Sítio na cartilha da municipal de Fortaleza, Ceará, localizada
nutrição no Fome Zero. Esse projeto foi em um bairro da periferia da capital, Parque
uma ação do Programa Fome Zero, na qual Genibaú, vinculada à Secretaria Executiva
o MDS – Ministério do Desenvolvimento Regional V. Utilizando a Hermenêutica
Social e Combate à Fome estabeleceu um Profunda (HP) ou de profundidade, como
contrato com a Editora Globo, e contou um referencial teórico e metodológico para
com o apoio técnico do FNDE – Fundo embasar essa investigação (THOMPSON,
Nacional de Desenvolvimento da Educação 1995), o trabalho se dividiu em três etapas:
– e dos Ministérios da Saúde e da Educação análise sócio-histórica, análise formal ou
para produzir um material educativo com as discursiva e interpretação/reinterpretação.
personagens da Turma do Sítio do Pica-pau Na análise sócio-histórica utilizamos
Amarelo, abordando a importância de uma a observação e questionários, elaborados por
alimentação saudável baseada em hábitos e Bezerra em tese de doutorado (2002) com os
produtos regionais, aliada à prática regular alunos do quarto ano da escola EMEIF João
de atividade física como condições essenciais Frederico Ferreira Gomes, para compreender
para a promoção da segurança alimentar e seus hábitos alimentares, a fim de reconstruir
nutricional. as condições sociais e históricas em que vivem
no cotidiano. Conforme Thompson (1995, p.
366), esta fase tem como objetivo “reconstruir
as condições sociais e históricas de produção,
circulação e recepção das formas simbólicas”.
Os questionários foram aplicados apenas
com os alunos do quarto ano do ensino
fundamental, pois esses tinham melhor nível
de leitura, escrita e interpretação de texto.
Durante a análise formal ou discursiva
os professores discutiram como deveriam
utilizar as cartilhas da Emília e a Turma
do Sítio com seus alunos. Foi criado um
curso de extensão intitulado “Alimentação
Saudável de Aprende na Escola” e todos
os professores que quisessem participar do
curso foram bem-vindos. As cartilhas do
Fome Zero são produtos contextualizados
que têm como objetivo dizer alguma coisa
sobre algo (THOMPSON); logo, o curso
nos proporcionou fazer um tipo de análise
diferente, que desnaturalizasse as formas
simbólicas nelas expressas.
Por fim, na etapa de interpretação/
reinterpretação os alunos, juntamente com
Figura 1 - Cartilhas Vitaminas e minerais, Proteína
seus professores, leram e trabalharam com
e carboidratos, O que é educação alimentar e o as cartilhas da Emília e a Turma do Sítio e
caderno do professor
produzindo propostas para um portifólio
nutricional/alimentar – com base nas cartilhas

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e da realidade alimentar em que viviam estão ligados à vontade de aprender. Bezerra
os alunos. Ao final dessa fase, tencionava (2002, p. 6 e 7) descreve com clareza em sua
compreender de forma criativa as percepções tese sobre Comer na Escola essa problemática
dos alunos e professores sobre o que é educação que denomina mito da merenda escolar:
alimentar. (...) percebi que tal entendimento
Em síntese, esta pesquisa mostra o da relação entre aluno da escola
espaço escolar, onde se desenvolveu toda pública e merenda ganhara
a investigação, identifica a constituição objetivação no tipo e imagem
do hábito alimentar dos alunos da escola, do “Seu Boneco”, personagem
assim como as leituras que estes realizam, do programa humorístico de
descrevendo os resultados desta prazerosa televisão “Escolinha do Professor
interação: espaço escolar, alunos, professores Raimundo” (primeira versão), de
e pesquisadores. Chico Anísio, veiculado pela Rede
Globo. Distante e desinteressado,
Conhecendo o espaço da pesquisa: os “Seu Boneco” só se interessava
hábitos alimentares dos alunos da EMEIF mesmo pela merenda, repetindo
João Frederico Ferreira Gomes sempre: “E aí, chefia, que hora
A fim de inserir a temática da educação é a merenda?”. Seu aspecto
alimentar no cotidiano escolar por intermédio caricatural relacionado à pobreza
das referidas cartilhas, buscamos primeiramente era bem visível: sujo, barrigudo,
identificar os hábitos alimentares dos alunos dentes cariados e com roupas
da EMEIF João Frederico Ferreira Gomes para remendadas. Em “Seu Boneco”,
reconstituir suas condições sociais e históricas, naturalizava-se tanto uma imagem
pois, segundo Magalhães (1995, p. 12), de criança que freqüenta a escola
“nas comunidades de baixa renda, a comida pública como a suposta razão
aparece como categoria simbólica relevante principal de sua presença nesse
na construção de sua identidade social, o que espaço – a comida.
confere a ela grande importância dentro da
estrutura social onde se insere” (análise sócio- E ainda acentua:
histórica). Como consequência dessa
Para viabilizar esta fase, questionários representação de aluno carente,
foram aplicados às turmas do quarto ano faminto, que iria à escola somente
do ensino fundamental, um total de quatro para comer e das disposições
turmas, 80 alunos, por possuírem um nível práticas decorrentes, desencadeia-
de leitura, letramento e interpretação de texto se a desqualificação da escola em
mais elaborado do que os demais alunos. seu papel de instituição destinada
A esta fase denominamos de análise sócio- ao ensino e à aprendizagem, que
histórica por tentar reaver as condições sociais é secundarizado pela alimentação.
e históricas de produção, circulação e recepção Por quê? Porque quando falta
das formas simbólicas.   merenda, o aluno além de perder
No primeiro contato, percebemos que uma hora de aula, prejudica-
para os alunos a escola é um lugar “legal”, se também pela mudança na
bonito e bom de estar, onde possuem a forma de condução das atividades
oportunidade de estudar, aprender e ler. A pedagógicas. (BEZERRA, 2002,
maioria desses alunos não vai à escola por p. 179 e 180).
causa da merenda escolar; somente um aluno
de um total de 80 mencionou tal motivação, Por mais que a merenda não seja o
mito este muito divulgado, mas os motivos que motivo principal que leve o aluno à escola,
os impulsionam a ir para o ambiente escolar entretanto, quase todos eles se apropriam da

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merenda escolar, achando-a boa e gostosa. “xilito” (salgadinho industrializado a base
Entre as opções oferecidas pela escola, a de milho) como uma tentativa de dizer “eu
bebida láctea e a sopa aparecem como as mais não preciso da merenda da escola”, ou ainda
consumidas entre os alunos. Em conversa “eu não preciso da piedade dos outros, eu
informal com esse alunos e professores, a não passo fome”. Embora não saiba ao certo
preferência deles é pela bebida láctea, apesar por que ele não aparece como comida, nas
de relatarem que muitas vezes este produto respostas das crianças, o xilito emerge em seu
cheirava mal e fazia com que as crianças significado de elemento de classificação social.
passassem mal durante o período letivo diário,
chegando muitas vezes ao vômito. Desnaturalizando as histórias em
Perguntando sobre os hábitos quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na
alimentares destes mesmos alunos em suas cartilha da nutrição do Programa Fome
casas, constatamos que a maioria desses comem Zero
de três a quatro vezes ao dia – café-da-manhã A segunda etapa da pesquisa ocorreu
ou desjejum, almoço, merenda e janta – sem durante um curso de extensão intitulado
incluir a merenda que estes recebem na escola. “Alimentação Saudável se Aprende na
Se fizéssemos um cardápio com apoio no Escola”, promovido pela Universidade
que estes alunos relataram comer, teríamos o Federal do Ceará; participaram da pesquisa
seguinte: café-da-manhã (desjejum) - café com dez professores que desejavam trabalhar com
pão; almoço – arroz, feijão e a mistura (que seus alunos as discussões feitas sobre educação
pode ser carne, galinha, peixe, ovo, mortadela); alimentar, tento como material de apoio as
jantar - arroz, feijão e a mistura (que pode HQ da Emília e a Turma do Sítio na Cartilha
ser carne, galinha, peixe, ovo, mortadela), ou da Nutrição do Fome Zero (análise formal).
ainda a sopa (aproveitamento do que sobrou Educar no âmbito da segurança
do almoço). Mais uma vez, verifico que a idéia alimentar e nutricional, conforme o Programa
de que a merenda é o principal motivo da Fome Zero, seria propiciar conhecimentos
frequência do aluno à escola não se sustenta. e habilidades que permitem às pessoas
Nas refeições principais do dia, vê-se produzir, descobrir, selecionar e consumir
a predominância do arroz com feijão – os alimentos de forma adequada, saudável e
separados ou juntos (baião) – e a mistura. segura, assim como conscientizar quanto às
Para esses alunos "comida é, basicamente, práticas alimentares mais saudáveis, fortalecer
feijão, arroz e carne”, coincidindo com a culturas alimentares das diversas regiões
idéia de comida dos moradores do conjunto do país e etnias, valorizando e respeitando
habitacional Cidade de Deus, Rio de Janeiro, as especificidades culturais e regionais dos
apresentada no trabalho de Alba Zaluar (1985, diferentes grupos sociais, e diminuir o
p.106), A Máquina e a Revolta, ou seja, o desperdício, de modo a estimular a autonomia
feijão aparece ainda para muitos como “aquilo do indivíduo e a mobilização social.
que coloca de pé”, que dá “sustança” para O primeiro ponto que questionamos
aguentar o dia. Alimentos como frutas, saladas é o propósito de propiciar conhecimentos e
de legumes ou/e verduras não aparecem nas habilidades que permitem às pessoas produzir,
respostas desses alunos, sendo assim, alimentos descobrir, selecionar e consumir os alimentos
secundários, não porque seja algo cultural, mas de forma adequada, saudável e segura. As
por motivos socioeconômicos – a questão do referidas revistas em quadrinhos, quanto a este
acesso limitado pelos baixos salários. assunto, têm um conteúdo muito limitado,
Outro aspecto bem interessante que tendo apenas caráter prescritivo, escondendo
não apareceu nas respostas dos alunos, mas “toda a perversidade dos preceitos do ‘bem
que pode ser observado nas caminhadas pela viver’, imputados àqueles que não os seguem,
escola no horário do lanche e nas conversas não por teimosia ou desconhecimento, mas por
informais com os alunos, foi a presença do ausência de condições concretas para fazê-lo”

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Figura 2 - Trecho da cartilha “Alimentação Saudável”

(PEREGRINO, 2000, p. 64). a simples menção dos preceitos


Elas contentam-se apenas em discorrer individuais sem que se discuta na
em mudanças de hábitos alimentares, mesma intensidade por que nem
substituindo alimentos que possuem muito sal, todos têm acesso aos mesmos, a
gordura e açúcar por alimentos com bastante indicação de práticas individuais,
vitaminas, minerais, proteínas e carboidratos. desconectadas da análise efetiva
No entanto, não ensinam como as crianças das condições de vida de nossas
devem fazer para observar a qualidade dos crianças, tudo isso poderá dar-lhes
produtos comercializados e assim escolher, unicamente a “consciência” de sua
com conhecimento e habilidade, os alimentos inadequação para a vida saudável,
que vão parar em suas mesas (como escolher e mais nada! (PEREGRINO,
frutas e legumes frescos, atentar para prazo de 2000, p. 66 e 67)
validade dos produtos – enlatados, congelados,
ensacados – como escolher uma carne ou peixe, Outro aspecto questionável é a
etc.). Não tratam de cuidados de higiene para conscientização quanto às práticas alimentares
um consumo saudável e seguro de tais alimentos mais saudáveis. Para isso, devemos ter em
(lavar as mãos, lavar cuidadosamente e em mente que a conscientização é o processo
água corrente as frutas e vegetais que forem de fazer com que a comunidade conheça
consumidos crus, manter os alimentos fora do seus direitos e deveres, praticando-os em
alcance de insetos, roedores e outros animais, sua plenitude. Paulo Freire (1980) entendia
cozinhar bem os alimentos e, de preferência, conscientizar como sendo o ato de responder
consumi-los logo após o preparo, etc). aos desafios; resposta esta que exige reflexão,
Mas a simples listagem dessas crítica, invenção, eleição, decisão, organização,
práticas, desacompanhadas das ação, fazendo com que o ser humano não seja
condições efetivas para aplicá-las, um ser somente adaptado à realidade e aos

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outros, mas integrado à realidade. Mais uma que este material tem de fortalecer culturas
vez, as revistas supracitadas se limitam ao alimentares das diversas regiões do país
caráter prescritivo, apenas citando os alimentos e etnias, valorizando e respeitando as
saudáveis, sem fazer uma reflexão do porquê especificidades culturais e regionais dos
tais alimentos não fazem parte, na maioria diferentes grupos sociais. Aí vem uma das
das vezes, do seu cardápio diário (questões maiores críticas a este material: como posso
econômicas, sociais, políticas e culturais). valorizar as especificidades culturais e regionais
As revistas também não esclarecem sobre o se o material é único para toda a extensão do
direito universal à alimentação de qualidade, território brasileiro?
em quantidade suficiente, sem comprometer o Diante das diversas culturas espalhadas
acesso a outras necessidades essenciais (política pelo Brasil, nos deparamos com um material
de segurança alimentar). de conteúdo homogeneizado e caricato.
É questionável também o propósito Como afirma Bezerra (2008, p. 9 e 10) em

Figura 3 - Trecho da cartilha “Proteínas

e Carboidratos”

sua pesquisa sobre educação alimentar nos e a mobilização social. Autonomia vem do
livros didáticos: grego e significa autogoverno, governar-se
Verificou-se a postura dos autores a si próprio. Nesse sentido, um indivíduo
apresentarem os conteúdos, autônomo deve ser capaz de deliberar sobre
gravuras e exercícios como se o seus objetivos pessoais e de agir na direção
conhecimento sobre alimentação desta deliberação. O respeito a autonomia
fosse neutro e possível de seria então valorizar a consideração sobre
generalizar para toda a realidade as opiniões e escolhas, evitando, da mesma
brasileira que é marcada pelas forma, a obstrução de suas ações, a menos que
diferenças culturais, fato que elas sejam claramente prejudiciais para outras
leva ao reforço da cultura de pessoas. O desrespeito a autonomia de um
segmentos sociais dominantes indivíduo acontece quando é desconsiderado
em detrimento da realidade e da seus julgamentos, negando-lhe a liberdade
cultura alimentar das camadas de agir com base em seus próprios critérios,
populares e dos alunos de escolas ou ainda, quando se omite informações
públicas do Nordeste, do Ceará e necessárias para que este faça um julgamento,
de Fortaleza. quando não há razões suficientes que o
convençam a fazê-lo.
Por fim, analisamos o propósito, das Nesse contexto, as revistas em
cartilhas citadas, de diminuir o desperdício, de quadrinhos Emília e a Turma do Sítio na
modo a estimular a autonomia do indivíduo cartilha da nutrição no Fome Zero não

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Figura 4 - Trecho da cartilha “O que é educação alimentar”

colaboram para a construção da autonomia, interesse público. A comunicação é um fator


uma vez que não deixam espaço para uma indispensável para a existência de um processo
construção do conteúdo pelo leitor (as mobilizador; logo, o processo de mobilização
cartilhas já vêm acabadas, concluídas), além social é comunicativo, e se este não acontece
de omitirem informações preciosas, de ordens fica comprometida a mobilização dos sujeitos.
política, social, econômica e cultural – tais Esta comunicação tem que levar em conta não
como saneamento, educação, saúde, trabalho, somente o saber científico, mas também o saber
lazer, etc – que inf luem diretamente na popular adquirido a partir de experiências,
questão alimentar. Ainda sobre autonomia, das vivências, percebendo que este saber não é
Charlesworth (1996, p.131) afirma que: inferior, apenas diferente. Como afirma Valla
Ninguém está capacitado para (2000, p. 15 e 16):
desenvolver a liberdade pessoal É provável que dentro da
e sentir-se autônomo se está concepção de que os saberes dos
angustiado pela pobreza, privado profissionais e da população
da educação básica ou se vive são iguais, esteja implícita a
desprovido da ordem pública. ideia de que o saber popular
Da mesma forma, a assistência à mimetiza o dos profissionais.
saúde básica é uma condição para Se a referência para o saber é o
o exercício da autonomia. profissional, tal postura dificulta
a chegada do outro. Os saberes da
Em relação à mobilização população são elaborados sobre a
social, podemos conceituá-la como a experiência concreta, a partir das
reunião de sujeitos que definem objetivos e suas vivências, que são vividas de
compartilham sentimentos, conhecimentos uma forma distinta daquela vivida
e responsabilidades para a transformação de pelo profissional. Nós oferecemos
uma dada realidade, movidos por um acordo o nosso saber por que pensamos
em relação a uma determinada causa de que o da população é insuficiente,

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e por esta razão inferior, quando, mesma sociedade.
na realidade, é apenas diferente.
Além de não levarem em conta o
Neste outro aspecto, as cartilhas saber popular, elas atribuem ao próprio
apresentam problemas, pois, em nenhum povo a responsabilidade na construção
momento elas priorizam o saber das classes de uma sociedade mais saudável, menos
populares, priorizando o conhecimento miserável, menos atrasada, reafirmando a
profissional (científica), além de não sugerir “incompetência e inadequação para o viver
que a comunidade endereçada se reúna saudável” daqueles que não a cumprirem.
para discutir seus direitos a uma política de Neste sentido, as cartilhas tratam da questão
segurança alimentar. Segundo Valla (2000, alimentar como se dependesse unicamente da
p.12), os profissionais têm: consciência e da “boa vontade” de cada um.
(...) dificuldade em aceitar que Vale esclarecer, que as histórias em
as pessoas “humildes, pobres, quadrinho da Emília e a Turma do Sítio
moradoras da periferia” são capazes não foram o único material utilizado no
de produzir conhecimento, são curso de extensão; todos os recursos que os
capazes de organizar e sistematizar professores desejassem utilizar para ajudar no
pensamentos sobre a sociedade, trabalho – músicas, outras revistas, jornais,
e dessa for ma, fazer uma vídeos, cartazes – poderiam ser empregados,
interpretação que contribui para mas sem esquecer de socializar as revistas da
a avaliação que nós fazemos da Emília com os alunos.

Figura 5 - Anexo da cartilha “O que é obesidade”

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Figura 6 - Cartaz confeccionado por professores Figura 7 - Cartaz confeccionado por professores

Figura 8 - Painel confeccionado por professores Figura 9 - Painel confeccionado por professores

Figura 10 - Painel confeccionado por professores

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Foi solicitado aos professores que este Durante esse período, atividades ricas,
conteúdo deveria ser trabalhado de modo significativas e criativas aconteceram. Livros de
interdisciplinar, ou seja, a aplicação dos receitas eram trazidos pelos alunos; pesquisas
conteúdos deveria ser realizada nas aulas de de preços em aulas de Matemática; formulação
Português, Matemática, Ciências, História de um alfabeto a partir de nomes de frutas,
etc, e transdisciplinar, ou seja, não somente legumes, verduras e hortaliças durante as aulas
nas disciplinas citadas, mas através delas, de Português; atividades de colorir e recortes
tentando superar a separação dos saberes. com os alunos da educação infantil; a criação de
A proposta não era reservar um momento uma pirâmide alimentar nas aulas de Ciências;
da aula para abordar os assuntos sobre criação de adivinhações, paródias e peças teatrais
alimentação, mas trabalhá-los durante as nos momentos de arte; além de transformarem
aulas, tentando quebrar a rigidez do currículo a sala de aula em uma extensão da cozinha com
formal. a preparação de saladas coletivas.

Figura 11 - Salada de frutas feita por professores Figura 12 - Músicas utilizadas durante o projeto

Figura 13 - Cartaz confeccionado por alunos Figura 14 - Cartaz confeccionado por alunos

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Figura 15 - Cartaz confeccionado por alunos Figura 16 - Alunos lavando as mãos

HQ GERA HQ: interpretando os achados mais importante é que o aluno


da pesquisa a partir da história em mudou a visão a respeito das
quadrinhos “A festa das frutas” verduras, pois durante todo o mês
Das atividades realizadas se destacou, de agosto conversamos sobre a
por ter sido produto de uma elaboração merenda escolar e principalmente
coletiva, uma história em quadrinhos a sopa oferecida na escola, daí a
intitulada A festa das Frutas. Esta atividade aceitação dos alunos em comer
foi desenvolvida por alunos do 2º ano, turma as verduras para ficarem fortes e
D, com a orientação de sua professora. saudáveis. O que percebi é que
Como aconteceu essa elaboração coletiva? A depois de ter dado ênfase a este
professora relata como se deu: projeto, as crianças ficaram felizes
Na primeira parte foi explicado pois aprenderam o nome das frutas,
ao aluno o projeto alimentação o seu valor nutritivo e também
saudável, o que foi maravilhoso houve o incentivo dos pais, pois
porque através das informações os mesmos colaboraram com as
teve efeito pois pude perceber receitas. A história produzida
que as crianças trocavam seus pelos alunos do 2º ano D foi:
lanches por frutas trazidos de A festa das Frutas. Além desse
casa, ao invés dos xilitos. No material eles produziram um
envolvimento de todos foram livrinho de receitas caseiras. Foi
pesquisados e produzidos muitos maravilhoso o aluno ter manuseado
cartazes sobre as vitaminas e seus o material das revistinhas sobre
valores nutricionais. Em sala alimentação saudável, pois o aluno
de aula foi produzido painéis, leu prazerosamente.
salada de frutas e uma historinha
em quadrinho pelos alunos. O (Relatório entregue à pesquisadora).

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Figura 17 - A festa das frutas página 1 Figura 18 - A festa das frutas página 2

Figura 19 - A festa das frutas página 3 Figura 20 - A festa das frutas página 4

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Figura 21 - A festa das frutas página 5 Figura 22 - A festa das frutas página 6

Figura 23 - A festa das frutas página 7 Figura 24 - A festa das frutas página 8

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Figura 25 - A festa das frutas página 9 Figura 26 - A festa das frutas página 10

Figura 27 - A festa das frutas página 11 Figura 28 - A festa das frutas página 12

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Figura 29 - A festa das frutas página 13 Figura 30 - A festa das frutas página 14

Figura 31 - A festa das frutas página 15 Figura 32 - A festa das frutas página 16

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A feitura dessa história em quadrinho Não são observadas na história
aconteceu em um momento intitulado hora do expressões do tipo “faça isso”, ou “coma
conto que possuía o objetivo de desenvolver aquilo”; aqui, nada acontece no imperativo,
a linguagem e o vocabulário e estimular a mas sim pela aceitação do convite; mediante
escrita. Durante este momento, os alunos, os diálogos, tentam mostrar por que é tão
organizados em roda, escutam uma história importante a presença de todos – não somente
da professora, folheiam revistas, discutem o as frutas e verduras, mas alunos e professores
que está acontecendo com as figuras e o que também.
eles acham que vai acontecer em seguida. Ao Alguns erros de ortografia e conceituais
final da conversa as crianças, juntamente com – como chamar tomate de verdura, em vez
a professora, devem criar uma história coletiva de fruta – aparecem na história, mas sem
com base em tudo o que foi visto, registrando-a comprometer o resultado final e o objetivo
em papel (fase interpretação/reinterpretação). que ela se propõe, que é o de “aprender que
A HQ A Festa das Frutas conta a é preciso saber equilibrar frutas e verduras
história de uma festa que a Dona Laranja vai para uma alimentação saudável” (A Festa das
promover na EMEIF João Frederico Ferreira Frutas); o desenvolvimento da capacidade de
Gomes. Ela, juntamente com Dona Banana e articulação de saberes, de síntese.
Acerola saem para convidar todas as frutas para
a festa: uma salada saborosa. Além das frutas, Considerações finais
as verduras também foram convidadas, pois, A pesquisa buscou analisar as HQ da
juntamente com a salada, vai haver também Emília e a Turma do Sítio na Cartilha do
sopa, alimento este distribuído às crianças da Programa Fome Zero, do projeto "Criança
escola no momento da merenda escolar. saudável - educação dez" como material
Nesta pequena história pode-se observar didático, a fim de sensibilizar os alunos
o esforço da professora em ensinar não apenas das séries iniciais do ensino fundamental à
o valor nutritivo de alguns alimentos, mas temática da educação alimentar e nutricional.
também o de inserir no enredo frutas típicas do Percebemos, no entanto, que as
Nordeste e de conhecimento dos alunos – tais revistas em quadrinhos Emília e a Turma
como acerola, banana, laranja, limão, abacaxi, do Sítio na cartilha da nutrição no Fome
sapoti, jambo, goiaba, caju etc. – fortalecendo a Zero não se propõem a discutir com o leitor
cultura alimentar da nossa região, valorizando o que seja educação alimentar e nutricional,
e respeitando as especificidades culturais e pois consideram o alimentar-se bem as
regionais das crianças. Foi um momento ações restritas de comer frutas, verduras e
de síntese que superou o problema da falta legumes, plantados na horta, e nos horários
de inserção da cultura alimentar local, que considerados corretos; bem como comer sem
marca as matérias didáticas que discutem exageros e evitar o desperdício.
alimentação. A investigação mostrou que essas
A história, ao inserir as verduras – tão HQs têm um conteúdo muito limitado,
rejeitadas pelas crianças, de um modo geral – caracterizando-se pelo caráter prescritivo, que
por intermédio da merenda escolar, de uma imputa aos seus leitores os preceitos do ‘bem
realidade vivenciada diariamente por eles, viver’, não os esclarecendo do direito universal
propicia ainda a conscientização quanto às à alimentação de qualidade, em quantidade
práticas alimentares mais saudáveis, uma vez suficiente, sem comprometer o acesso a outras
que os alunos conseguem, na reflexão, crítica, necessidades essenciais (política de segurança
invenção, eleição, decisão, organização e ação, alimentar). Desta forma, não colaboram para a
responder a questões apresentadas em seu conquista da autonomia de seus leitores, além
contexto de vida. Supera o caráter prescritivo de omitirem informações preciosas, de ordem
e higienista que marca as produções didáticas política, social, econômica e cultural – tais
sobre o tema. como saneamento, educação, saúde, trabalho,

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lazer etc – que influenciam, diretamente, as 20 maio 2015.
questões alimentares. CONSEA. Conselho Nacional de Segurança
Já a elaboração da cartilha A Festa das Alimentar. Lei Orgânica. Brasília, DF:
Frutas teve grande significado para o grupo CONSEA, 2006.
(professora e alunos do 2º ano D), uma vez que Instituto da Cidadania. Projeto Fome Zero:
essa produção percebe e valoriza a cultura local, uma proposta de política de segurança
que passou a integrar a atividade curricular; alimentar para o Brasil. São Paulo; 2001.
além de conseguir mediar o processo de LIMA, Eronides da Silva. Gênese e constituição
construção e desconstrução de naturalização da educação alimentar: uma síntese. Physis, v.7,
do saber escolar aproximando-o do saber n.2, p. 9-29, 1997. Disponível em: http://
popular, valorizando este último. www.scielo.br/pdf/physis/v7n2/02.pdf.
Mediante a produção desse material, um Acesso em: 20 maio 2015.
assunto constituído e naturalizado, como o do MAGALHAES, Clarissa. Comida de Comer
acesso a alimentação/nutrição, pode ser posto Comida de Pensar. Revista Cadernos de
em xeque, desnaturalizado e reconstituído Debate - Núcleo de Estudos e Pesquisas em
por intermédio de uma análise acadêmica, Alimentação. Campinas, SP: Universidade
emergindo desse processo o desenvolvimento Estadual de Campinas. UNICAMP, v. 3, p.
da capacidade crítica do professor e dos alunos; 29-57, 1995.
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9ª Arte  São Paulo, vol. 4, n. 1, 1º semestre/2015 87

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