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Abstract
Keywords
514 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
por ele iniciada, mas voluntariamente vinculado a qualquer custo, problemas esses que enfrenta-
à narrativa da humanidade, enfrentando grandes mos com dificuldade na academia. Além disso,
perguntas que seu tempo lhe impôs. ele é também um crítico da própria perspectiva
Além de aprofundar vários dos conceitos histórico-cultural, questionando aspectos como o
vigotskianos (e.g. DEL RÍO; ÁLVAREZ, 2007), o dogmatismo, a leitura marxista ortodoxa, a falta
autor propõe novas concepções e ideias tanto de protagonismo na visão de homem, a falta de
no âmbito da psicologia e da neuropsicologia, abertura a outras correntes e ciências e a exclu-
quanto no âmbito da educação. Suas interessan- sividade do pensamento de Vigostki, que não
tes questões sobre o cérebro externo e a neurogê- agradaria ao próprio autor.
nese (DEL RÍO, 1994, 2002) foram um dos tópicos O encontro foi realizado numa manhã de
examinados na entrevista. Sua abordagem da agosto de 2012 na Faculdade de Educação da
educação, extremamente importante para nossa Universidade de São Paulo (FEUSP), durante um
realidade,8 além de envolver problemas que nos intervalo entre as diversas atividades acadêmi-
afligem na atualidade – por exemplo, aqueles re- cas desenvolvidas por Pablo del Río no Brasil.
lacionados à atenção e aos maus usos dos meios Na ocasião, ele encerrava uma pequena jorna-
de comunicação (e.g. DEL RÍO, 2000; DEL RÍO; da de trabalhos na FEUSP,10 após participar de
DEL RÍO, 2008; DEL RÍO, 2010) –, discute temas atividades como professor visitante do Grupo
essenciais, como a validade das teorias psicoló- de Pesquisa Pensamento e Linguagem, sedia-
gicas da educação para todas as culturas e a pos- do na Faculdade de Educação da Universidade
sibilidade de explicar o particular e o universal Estadual de Campinas (Unicamp).11
(DEL RÍO, 2007a, 2007b). Sua ideia de educação Na entrevista, contamos com a presen-
como autoevolução é instigante e tem raízes em ça de duas doutorandas da USP, que posterior-
sua abordagem ecofuncionalista e em sua lei- mente se responsabilizaram, de modo primoro-
tura da obra de Vigotski a partir de influências so, pelo trabalho de transcrição e tradução do
do pensamento espinosano, baseado na ideia de material gravado: Ana Maria Tejada Mendoza
autodeterminação. Nesse sentido, o autor reflete e Ana Paula Carneiro Renesto, que fez também
sobre a possibilidade de outro desenho cultural9 uma primeira competente edição do texto. A
para as novas gerações, o que implica um novo elas fica registrado nosso agradecimento. A edi-
currículo, um novo programa educativo para os ção final, por nós elaborada, foi posteriormente
homens que desejamos formar e, consequente- lida e revista pelo entrevistado.
mente, um novo cérebro. Por último, agradecemos ao Prof. Pablo
A entrevista deixa entrever, ainda, um del Río a convivência breve, mas intensa. Foi
Pablo del Río crítico da psicologia e das ciên- muito bom conhecer mais de perto um homem
cias humanas em sua configuração atual, que simpático, dinâmico, corajoso, apaixonado pelo
apresenta problemas como a despersonalização, que faz e que nos coloca diante de perguntas
o reducionismo, a falta de diálogo entre linhas que infelizmente têm sido raras em nosso meio.
e áreas do conhecimento, o atrelamento à ló-
gica das ciências exatas e à ideologia, o secta-
rismo, o eficacismo e a lógica da produtividade 10 - A visita do Prof. Pablo del Río à FEUSP foi organizada pelos
professores Elizabeth Braga, Teresa Cristina Rego, Manoel Oriosvaldo de
8- As questões exploradas na entrevista acerca de suas ideias e de seu Moura e Marilene Proença. Consistiu em um encontro com grupos de
programa de pesquisa sobre educação serão tema de outra publicação. estudos e pesquisas e na palestra intitulada Difusão e atualidade do legado
9- Segundo o autor, trata-se de uma engenharia exploratória do humano de Lev S. Vigotski: contribuições de Pablo del Río – Educar para o futuro: o
sob a perspectiva de uma neuropsicologia cultural construtiva vigotskiana que fazer hoje com a mudança histórica?.
aplicada à implementação de tecnologias cognitivas e significativas para a 11- Agradecemos às professoras Ana Luiza Bustamante Smolka e Luci
mente das culturas e das pessoas. Banks-Leite a gentileza do convite ao compartilhamento da visita.
ÁLVAREZ, Amelia; DEL RÍO, Pablo. Una introducción a las dos psicologías de Lev S. Vygotski. In: DEL RÍO, Pablo; ÁLVAREZ, Amelia
(Eds.). Escritos sobre arte y educación creativa de L. S. Vygotski. Madri: Fundación Infancia y Aprendizaje, 2007. p. 7-12.
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WERTSCH, James V. (Eds.). Explorations in socio-cultural studies: literacy and other forms of mediated actions. Madri: Fundación
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v. 19, n. 3, p. 231-241, 2007a.
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______. Los efectos de la dieta televisiva y las trayectorias de desarrollo infantil. Algunas reflexiones a partir del Proyecto Pigmalión.
In: FERREIRA, Jorge (Org.). A intervenção psicológica em problemas de educação e de desenvolvimento humano. Lisboa:
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DEL RÍO, Pablo; DEL RÍO, Miguel. La construcción de la realidad por la infancia a través de su dieta televisiva. Comunicar, v. XVI,
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Teresa Cristina Rego é professora associada livre-docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Elizabeth dos Santos Braga é professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
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Queremos agradecer-lhe a disposição em nos explicativa objetiva – à expressiva denomi-
conceder esta entrevista. Para iniciar, gosta- nação que têm proposto alguns vigotskianos
ríamos de saber um pouco de suas análises (Luria, Sacks, Cole): ciência romântica.
sobre a vida e a obra de Vigotski e sobre a Acho que essa é uma pergunta que de-
relação entre elas. Em sua opinião, quais fo- veríamos fazer sobre todos os autores e também
ram as principais motivações que orientaram sobre nós mesmos. No caso de Vigotski, as co-
o programa de pesquisa de Vigotski? nexões entre a vida e a obra são muito especiais.
Em um artigo publicado na revista Estudos de
É difícil falar dos motivos de outra pes- Psicologia (DEL RÍO; ÁLVAREZ, 2007a), analisa-
soa, sobretudo de uma pessoa desaparecida e mos esse tema ao discutirmos o drama da psi-
que já faz parte da história. Sabemos, como des- cologia e a psicologia do drama na perspectiva
tacou Dobkin (1982),1 amigo de Vigotski, que vigotskiana. Lá destacamos que o notável em
um dos temas que mais o preocupava em sua Vigotski é que ele acaba elegendo o tema huma-
adolescência e que era debatido no círculo de no como objeto de sua vida, de sua investigação
estudo de jovens estudantes de que ele partici- e de sua ação, porque se trata de uma espécie
pava era o papel do indivíduo na história. É fá- de busca trágica. Ele é muito trágico e o trágico
cil, a partir desse dado, localizar duas vertentes exige-lhe coerência, de modo que daria no mes-
muito visíveis em sua obra: uma psicologia com mo o ponto de onde começasse. O final estava
forte orientação materialista e hegeliana, e ou- quase prescrito, porque ele não deixaria o pro-
tra com forte raiz literária e trágica. A primeira blema sem buscar suas últimas consequências.
trata de compreender e explicar a determinação Se compreendermos isso, então não pa-
histórica e sociocultural da conduta a partir da rece tão heterogênea ou irrelevante sua déca-
tradição social e coletiva do humano; a segunda da literária (1914-1924) prévia à psicológica
trata de compreender e explicar a determinação (1924-1934). Ele começa nas humanidades, vai
histórica e sociocultural da conduta pessoal a estudar Direito e ao final chega à psicologia
partir da tradição filosófica e moral da auto- porque tinha que chegar a ela. Insere-se na arte
determinação, no rastro de Espinosa, e de uma e na educação porque tem que dar aulas quan-
tradição dramática e trágica do humano que ele do acaba a ocupação alemã em Gomel e precisa
recebe a partir de sua herança literária. Vigotski ganhar a vida. Por ter tido uma formação muito
enfoca seu trabalho futuro numa psicologia que boa durante o ensino médio e o bacharelado,
vai ao encontro de ambos os protagonismos (o está quase condicionado a seguir essa carrei-
coletivo e o individual) e de ambos os deter- ra, como muitos estudiosos de sua época com
minismos (o material e o psíquico) da espécie boa formação. Tal como ocorre a tantos outros,
na filogênese e na história, e do indivíduo nu- Vigotski se converte em educador. Como todo
ma ontogênese voltada para o social e para o intelectual, ele sente paixão pela educação. Ele
humano geral, ainda que em uma história pro- realmente vive a educação.
tagonística pessoal. A intrínseca conexão entre Seu primeiro trabalho sobre arte (a res-
sua vida e sua obra é, então, radical. E monista: peito de Hamlet) é uma pista muito boa para
um mesmo Vigotski é quem procura ambas as entender sua relação vital com a psicologia.
coisas porque necessita de ambas. Poderíamos Hamlet o leva à psicologia porque o inicia no
conectar essa exigência que ele se impõe como trágico. Vigotski responde a Hamlet como a
cientista – a pertinência existencial e subjetiva uma revelação em forma dramática, no sentido
da ciência, além da capacidade epistêmica e que Tolkien (1993) atribui ao conceito de apli-
cabilidade na literatura, em relação a O Senhor
1 - As referências bibliográficas correspondentes às obras mencionadas
foram inseridas posteriormente pelo entrevistado, na ocasião de sua revisão dos Anéis. A obra épica ou trágica com aplica-
da versão final do texto. bilidade existencial funciona como uma visão,
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ímpeto que há por trás da obra. E isso nos leva que estão na memória cultural ou na memória
a conhecer o conteúdo e a investigar mais. As a longo prazo cultural, que são parcial e even-
influências diretas são importantes, porém nem tualmente incorporadas à vida presente como
sempre são possíveis. Eu tive essa sorte quando memória viva, como memória de trabalho, mas
conheci René Zazzo. Por meio dos livros, po- que não se realizam, não se ativam sem uma
rém, meu acesso a grandes mestres se enrique- comunidade existencial de pessoas em cada
ceu. Eu pude receber também outras grandes momento histórico.
heranças intelectuais e humanas. Bom, se todo esse processo for olhado
Os livros são, enquanto livros, vigotskianamente, socioculturalmente, a ciên-
mediadores instrumentais; mas, enquanto obras cia é um sistema de conhecimentos, mas co-
de pessoas, são também mediadores sociais. nhecimentos de alguém: um sujeito distribuído
Durante sua vida, Vigotski esteve acompanhado que toda uma comunidade compartilha; uma
de dois livros que estavam com ele em todas cultura, uma humanidade. Você não pode, por-
as partes: Ética e Hamlet, os quais, por sua tanto, tirar a palavra sujeito da ciência, que é o
vez, configuravam a companhia de Espinosa que se tem feito. Ou seja, continua havendo na
e de Shakespeare. Assim, os livros não nos ciência um protagonismo, uma ação histórica,
aportam apenas num novo conhecimento, mas social, mas também pessoal. E, ao utilizar todo
também no sentido, no para quê humano desse esse tipo de disfarce e de ocultações no pro-
conhecimento. Em qualquer autor que lemos, cesso de comunicação e de produção científica,
capta-se sempre o personagem. É impossível acabamos por ignorar as grandes perguntas que
ocultar-se por trás do escrito, embora muitos intrigam o cientista, os grandes desafios do hu-
tentem fazê-lo. Como dizia Unamuno, existem mano. Em física, por exemplo, posso não me
pessoas que falam como livros, mas também fazer perguntas existenciais, mas ainda assim
livros que falam como pessoas. todos nos apaixonamos quando tentamos en-
Uma das coisas que a retórica científica tender o que acontece com o Big Bang. E agora,
nos ensina é a retórica da ocultação. A gente com a descoberta das subpartículas e tal, com
nunca deve falar “Penso”, mas sim “Poder-se-ia a aproximação de um entendimento da origem
pensar que”. E a gente nunca diz “Acontece tal do universo, todos vibramos com isso. E como
coisa”. Tudo se põe na voz passiva, tudo se diz não? Como não vibrar com nossa própria ori-
entre muitas aspas, o que é aceitável e positivo, gem, com nosso próprio destino? Essa redução
por um lado, porque demonstra a humildade e que os físicos não fizeram, tendo eles um objeto
o cuidado de saber até que ponto a gente pode mais inerte, nós, psicólogos, fazemos com um
afirmar coisas. Mas o lado negativo é a des- objeto tão mais vivo. Nós, que estamos diante
personalização da ciência, o que causou mui- de um sujeito com muito maior capacidade de
to dano e acabou por lhe tirar o impulso vital. liberdade, de pergunta existencial, temos um
Afinal, a memória da ciência é a memória dos exercício científico muito mais autolimitado.
cientistas, o pensamento da ciência é o pensa-
mento dos cientistas, o sentimento da ciência Isso nos remete a uma frase de Vigotski no
é o sentimento dos cientistas. E parece que a Manuscrito de 1929: “Pensa não o pensamen-
ciência existe sem sujeito e que não é nada mais to, pensa a pessoa”.
do que pensamento distribuído e compartilha-
do de sujeitos. Ou seja, se fizermos psicologia Sim, e o sujeito está sendo deixado de lado.
sobre a própria ciência, concluiremos que a ci-
ência não é outra coisa senão um complexo de A análise da trajetória intelectual e da obra
mediações distribuídas, localizadas na cultura, de Vigotski nos faz pensar no jogo dialéti-
em parte vivas e em parte herdadas; mediações co presente entre o protagonismo individual
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de Hegel e de Espinosa. Esse último tratava de físico e o dramático, o intelectual e o diretivo,
tomar distância do delírio ou da visão antro- a determinação material e a autodeterminação
pocêntrica do ser humano que se vê como ab- mediada ou poética. E essa unidade tende a
solutamente livre e independente da natureza, perder-se em muitas das análises de sua obra.
fazendo um chamado à objetivação de nossa Contemplar sua vida e sua obra juntas possibi-
determinação material, à racionalidade. É a esse lita não somente percebê-lo, mas também al-
chamado que atende o materialismo histórico ao cançar com maior precisão o coração teórico de
considerar o homem como objetivamente sujeito sua proposta.
à evolução da matéria. Mas a segunda preocupa- Conforme destacamos no artigo já men-
ção espinosana era a de explicar que, sendo isso cionado (DEL RÍO; ÁLVAREZ, 2007a), a partir
certo, o ser humano pode e deve alcançar deter- de uma dupla busca – científica, social e histó-
minado nível de consciência para poder autode- rica, mas também poética, pessoal e existencial
terminar-se, para poder afrontar materialmente –, Vigotski procura investir a ciência psicoló-
– mas com certa capacidade de ação consciente e gica de autodeterminação, talvez porque, pa-
voluntária – os condicionamentos de seu mundo ra estar em concordância com seu objeto (que
material. Vigotski postulou um modelo para unir é, ao mesmo tempo, sujeito), tal ciência deve
as exigências de explicação racional de Espinosa assumir a entidade não só de analista, mas de
e de Hegel à compreensão psíquica dos processos personagem, de consciência coletivamente au-
de transformação dramática da alma que procu- todeterminada. A ciência psicológica – leia-se:
rava Espinosa e que descrevia Aristóteles em seu os cientistas ou os psicólogos investigadores –
livro Poética. parece a Vigotski um relevante personagem do
Um elemento básico no modelo da me- drama histórico com o encargo maiêutico de
diação vigotskiana é a contribuição dos pro- desvelar a consciência, de esclarecer cientifica-
cessos sociais e instrumentais na construção mente o sentido da vida e de clarear os cami-
dos processos conscientes, contribuição que ele nhos para criar e desenvolver mais consciência,
recebe, em grande parte, da tradição do mate- do mesmo modo que a arte – leia-se: os artistas,
rialismo histórico. Mas existe outro elemento, os criadores – cumpriria seu propósito tentan-
que, como assinala Jean-Paul Bronckart (2004), do desvelar dramaticamente o sentido da vida e
leva-o a articular a exigência explicativa da criando um tipo de consciência, de operadores
ciência com a exigência compreensiva da her- culturais sobre ela.
menêutica. A análise dos processos psíquicos Embora a ciência tenda a ver seu proces-
subjetivos que permitem a ação dramática da so de busca como algo objetivo, como história
linguagem interior responde à segunda exigên- do conhecimento, excluindo-se dos processos
cia; a análise dos processos psíquicos objetivos narrativos de protagonismo humano, ela não
que permitem a ação material responde à pri- deixa de sucumbir à narrativa protagonizada
meira. Nesse sentido, Vigotski caracteriza as por heróis e mitos, tal como demonstrou Jaan
funções superiores por seu caráter voluntário Valsiner (1994). Ainda que, por meio de cate-
e determinado. Por isso, no estudo dessas fun- gorias muito absolutas e abstratas, julguemos
ções, ele aborda não apenas os aspectos inte- as épocas, as sociedades e o pensamento dis-
lectuais (hoje diríamos cognitivos), mas também tribuído, sempre são contingentes das culturas
os intencionais e voluntários. Luria investigará momentos em que as ações dos indivíduos –
esses processos diretivos em seus experimentos sobretudo as ações estratégicas e continuadas –
sobre a ação voluntária, adotando expressões têm um papel limitado, mas às vezes profundo
como função diretiva e função executiva. e disparador nos processos culturais. Penso que
Para mim, o traço mais característico do há desvios na história das ideias, bem como na
pensamento de Vigotski é a conexão entre o história material das culturas e das economias.
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(não me refiro ao marxismo como modelo geral covardia diante do desafio do trágico. Peço
da dialética histórica). E ele é marxista na dia- perdão pelo termo covardia: eu o estou utili-
lética histórica geral, mas não o é no sentido de zando epistemicamente sem pretender julgar
pensar que a psicologia deve subordinar-se à intenções; não quero aplicá-lo a pessoas, mas
economia. Esse é um debate muito grande. sim à posição perante a ciência. Adotar tal
posição não tem a ver com virtudes pessoais,
Sabemos que Vigotski teve que lutar contra as mas com a interiorização de uma maneira de
pressões da ortodoxia marxista. E atualmente? compreender a psicologia, maneira esta que,
Em sua opinião, essas pressões ficaram no creio, causa-nos danos.
passado ou ainda estão presentes hoje?
Vigotski foi um autor que o ajudou a se orientar
Creio que elas não ficaram no passado. Em no sentido das perguntas existenciais?
minha própria experiência, quando me encontrei
com o eurocomunismo na Europa, assim como É claro que a pessoa se orienta pelos
muitos profissionais e uma série de intelectuais, autores que lhe parecem abordar certas coisas
enfrentei a ortodoxia marxista. Sustentávamos com mais profundidade. E se me inspirei em
que a cultura e a psicologia não são redutíveis a Vigotski, Unamuno, Zazzo e outros, foi por esse
um modelo ideológico de marxismo. motivo. A pessoa se orienta pelos autores que
Vigotski pensava que a psicologia po- ela intui que não estão debruçados somente so-
deria nos iluminar. Talvez ela pudesse ilumi- bre o problema cognitivo, intelectual, mas tam-
nar-nos se estivesse mais preocupada com a bém sobre o problema que podemos denominar
pergunta existencial. Mas a psicologia se fez existencial, do ponto de vista da filosofia, ou
muito pouco existencial; vive na miragem simplesmente evolutivo ou evolucionista, do
dos botões, na miragem mecanicista segundo ponto de vista da biologia, das ciências da vida.
a qual cada coisa está em sua caixa e todas Trata-se de uma ciência não inerte que entende
as caixas estão ordenadas de modo que so- os grandes movimentos do cosmos, e nós esta-
mente temos que abri-las e desvelá-las aos mos envolvidos nesses movimentos.
poucos com a pesquisa, uma a uma, e tudo
já está escrito, já está assentado no genoma, Você falou agora de evolucionismo. Como
na física ou na química. Em outros termos, você vê o evolucionismo na obra de Vigotski?
as explicações racionais seguem por esse ca-
minho reducionista e as explicações existen- É difícil. Vigotski era uma pessoa que
ciais são esquecidas porque não se aceita a tinha muito apetite intelectual e, portanto, lia
pergunta, o desafio. A pergunta trágica não de tudo. Nota-se nele uma vasta diversidade
existe, não temos sentido. Somos mais um de fontes. Primeiro, ele tem uma grande for-
animal que vai morrer, e há o acaso e o caos mação com preceptores em sua casa, uma for-
como modelos inconscientes por trás disso, o mação literária humanista tradicional e uma
que no fundo significa que há uma renúncia a formação filosófica muito boa, muito hegelia-
entrar nos grandes problemas de investigação na. Mas, ao final, seu autor não vai ser um
da psicologia. E isso se converte quase num Hegel: é Espinosa. Portanto, há em Vigotski,
paradigma, pois a psicologia segue sendo es- de um lado, uma influência humanística que
crava da física e da química; pensa que não é muito grande: a arte, o drama, o teatro, a
deve sair daí para não deixar de ser científica. poesia. Mas há também outra forte influên-
Há ainda um grande complexo de inferiorida- cia filosófica, que em última instância seria
de das ciências humanas e, ao mesmo tempo, o materialismo histórico e o pensamento dia-
uma reação aexistencial, antiexistencial, de lético, a influência espinosana. E por que as
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Seria interessante se você pudesse fazer uma teoria do cristal: minhas experiências em meu
reflexão sobre as leituras às vezes dogmáticas cérebro se estruturam sobre as redes neuronais
e ideológicas que são feitas do próprio legado que tenho, e as redes que se desenvolveram on-
vigotskiano ou daquilo que é, de certo modo, togeneticamente são distintas entre as pessoas.
legitimado pelo paradigma histórico-cultural. Portanto, meu cântaro é distinto do seu cânta-
Como se estabelece a relação entre ideologia ro. O fato de que as estruturas prévias condi-
e ciência? cionam é algo que precisamos levar em conta.
Às vezes, durante sua vida, a pessoa chega a
Para se fazer ciência é necessário libe- romper uma estrutura prévia e a reconstruí-la,
rar-se da ideologia. Lembro que quando René o que é muito difícil. O habitual é que a nova
Zazzo moderava as discussões no laboratório e, geração científica o faça: “Bom, estes fizeram
diante de um tema, alguém invocava um ar- isto, aplicando uma estrutura muito regular; é
gumento ideológico – ele era comunista e to- preciso rompê-la e criar outra mais potente”.
dos sabiam disso, o que gerava um pouco de Nós, vigotskianos, seguramente so-
cumplicidade por parte da esquerda e o recurso mos prisioneiros de muitas dessas estruturas.
à ideologia marxista como um argumento de Vigotski teria rejeitado profundamente que os
autoridade –, ele ficava frenético: “Estamos fa- psicólogos histórico-culturais fizessem uma
lando de ciência e aqui não se aceita nenhum psicologia somente vigotskiana e não seguissem
argumento que não se embase cientificamente”. as outras linhas da psicologia, porque ele dizia
O fato de que ser marxista o leve a ter que só há uma psicologia. Ou seja, se o mode-
uma maior preocupação com a justiça social, lo histórico-cultural ou da mediação é potente,
com a defesa de que um menino trabalhador terá que se integrar ao restante da psicologia, e
não receba um tratamento discriminatório em o restante da psicologia terá que reconhecê-lo e
seu desenvolvimento, é formidável. Mas, ao integrar-se a ele.
analisar as coisas cientificamente, você não po- Este é um problema-espelho: os cogni-
de invocar um argumento de autoridade pela tivistas pensam que dos vigotskianos não pode
ideologia. E isso está acontecendo porque se vir nada útil, então não os leem ou não sabem
está impondo uma leitura de Vigotski como lê-los. Estabelece-se uma dupla rejeição: quan-
se houvesse um único Vigotski legitimado por do você é rejeitado por uma pessoa, você a re-
uma ortodoxia científica materialista histórica, jeita também, e assim se produz um desconhe-
o que implica certo argumento de autoridade cimento cada vez maior. Isso está ocorrendo e
ideológico, um tribunal implícito (e não esque- é uma tragédia, porque a psicologia cognitiva
çamos que, na época, houve ditames explícitos tem muitas coisas positivas, mas eles não co-
e Vigotski foi censurado). Todos nós somos in- nhecem e não entendem, por exemplo, o mode-
clinados a este tipo de pensamento: deixar as lo das funções superiores.
ideias claras, encontrar um Vigotski mais orto-
doxo do que ele realmente foi. Isso é um equí- O que você diz aplica-se não apenas às di-
voco, pois Vigotski é muito contraditório em ferentes escolas e linhas internas da psico-
certos momentos. Ele próprio supera alguns de logia, mas também ao diálogo da psicologia
seus a prioris e outros não; e consegue romper com outras áreas do conhecimento. Isso era
com grande lucidez outros a prioris de seu tem- algo que Vigotski fazia e que nós ainda não
po, como a normalização das funções. De algu- sabemos fazer.
ma maneira, nós construímos sobre estruturas
cerebrais herdadas e, portanto, somos prisionei- Sim. Faustino Cordón, outro de meus
ros dessas estruturas. É o que Luria, em termos professores, era um biólogo ecofuncionalista.
de neurologia, chama de teoria do cântaro ou Não sou biólogo, mas aprendi muitíssimo num
526 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
Activity Research), o que exigiu um esforço de tradicionais do ecofuncionalismo e, por ou-
diálogo e convergência para que os objetivos de tro, ao estudo vigotskiano dos mecanismos de
continuidade e abertura confluíssem. mediação inseridos nas culturas. Acredito que
Embora minhas próprias circunstâncias Bronfenbrenner buscou fazer uma descrição
pessoais tenham condicionado minha atividade ordenada, categorial dos contextos de desen-
e me mantido um tanto afastado de congressos volvimento, o que em parte satisfaz os esforços
nos últimos anos, o que me impede de ter in- atuais da psicologia evolutiva, considerando-se
formação atualizada, preocupa-me que a orien- o que a palavra contexto – a mais usada – im-
tação intercultural e interlinguística – e, talvez, plica como condicionante do desenvolvimento
a interdisciplinar – tenha perdido vitalidade. infantil. Além disso, a expressão contextos de
Talvez nós, vigotskianos, tenhamos nos con- desenvolvimento denota um enfoque demasiado
vertido em mais uma área temática, em mais circunstancial, pois secundário. Nossa preocupa-
uma parcela autolimitada da comunidade cien- ção está dirigida a uma análise mais funcional
tífica, ficando também submersos, como todos, da cultura em que se desenvolve a criança, pois a
no processo de fragmentação, parcelamento e entendemos como submersa não apenas em um
subordinação da ciência. Talvez como efeito de contexto ou outro, mas numa rede extracortical
ainda nos centrarmos demasiado em um legado de funções compartidas e inseridas na cultura.
histórico, mais do que em suas insuficiências,
tenhamos caído nas limitações das parcelas dis- É muito interessante esse conceito e tam-
ciplinares convencionais e em sua incapacidade bém o modo como você vê a mudança, a
de afrontar os grandes problemas evolutivos e evolução sócio-histórica, a evolução em
epistemológicos das ciências humanas. aberto, a fragmentação... Enfim, sua abor-
Pessoalmente, preocupa-me que as co- dagem psicoecológica.
munidades de pesquisadores possam recolher
e reeditar hoje os desafios a que se propunha Para mim, os modelos de exossistema ou
Vigotski há quase um século: o que é a espécie macrossistema, ainda que aceitáveis em termos
humana e suas culturas?; de onde viemos?; e, de descrição abstrata, sempre me pareceram
sobretudo, para onde vamos, para onde pode- um tanto indefinidos na hora da intervenção,
mos ir? Como podem afrontar a ciência – toda quando você necessita fazer desenhos e atua-
a ciência, incluindo nela o legado vigotskiano ções sobre atividades e funções mais ligadas
– os desafios de investigação sobre nossa evo- aos instrumentos tradicionais do psicólogo
lução histórica como um processo aberto e, em (provas diagnósticas e ferramentas de mediação
parte, acessível às nossas capacidades de auto- para reeducação ou desenvolvimento). Algumas
determinação e desenho? vezes, conceitos válidos como categorias expli-
cativas ou compreensivas não resultam opera-
Vamos conversar um pouco sobre as implica- cionais, operativos, no diagnóstico ou no dese-
ções desse seu campo de pesquisa e estudo para nho. Isso acontece com o trio atividade, ação e
a educação? Foi você quem desenvolveu a no- operação, de Leontiev.
ção de marcos culturais de desenvolvimento? Quando ensino a atividade aos alunos,
utilizo Leontiev e o exemplo da escrita de uma
Desenvolvi essa noção com Amelia carta de amor. Nesse caso, pressionar uma tecla
Álvarez (1996). Embora tenhamos conhecido é a operação, escrever à máquina é a ação e
e trabalhado com Urie Bronfenbrenner, a ideia escrever uma carta de amor é a atividade. E eles
corresponde apenas parcialmente aos sistemas entendem perfeitamente o sistema de atividade.
postulados por ele. O conceito de marco é um O modelo de Leontiev é muito bonito, funcio-
pouco mais ligado, por um lado, aos modelos na muito bem quando você o explica. Quando
528 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
Sim. Acusaram-no de ser incoerente por- as quais lhe permitiam abordar o problema em
que não tinha a mesma unidade de análise, o camadas distintas de solução ou de aproxima-
mesmo objeto de análise. Mas todos nós temos ção: num momento, Vigotski desvela o papel
que ser livres, e ele também o era. Agora me da mediação, grosso modo, da arte; em outro,
interessa o sentido tal como começa a ser tra- leva em conta o signo, os operadores; depois,
tado por ele em Psicologia da arte; depois, ao os operadores já não são operadores artefato-
estudar o primeiro degrau da mediação semió- -objetais, mas operadores de significado – é o
tica, vem o signo, em exemplos como o osso, conceito; por fim, já não é o conceito que es-
as funções vestigiais, o anel trocado de mão ou tá em questão, mas de novo o sentido, agora
o lenço. Ao analisar a mediação semiótica no elaborado com base em conceitos e não mais
segundo degrau, ele trata do significado e logo no sentido inicial – o amor, a morte. É preciso
volta ao sentido, no fim do último capítulo de compreender, assim, o modo como Vigotski vai
Pensamento e linguagem. Na realidade, a todo descascando sua cebola. Ele escrevia certo por
momento é a mediação que está em pauta. O linhas tortas seu modelo de evolução cultural,
que acontece é que ele vai tratando níveis dis- de mediação, de construção desse sentido, des-
tintos de mediação. Quando Vigotski aborda o se mundo, desse drama na mente, e mostrava
significado, há uma passagem em que diz algo com que elementos o ia construindo. Às vezes,
assim: “No princípio me interessava o papel re- os elementos se sustentam; outras vezes, caem
ferencial, o que o signo substituía, a coisa; in- porque ele se equivocou, porque forçou algo.
teressava-me, portanto, o significado externo, Mas o modelo fica de pé: embora ele não o vis-
mas agora não me interessa. Ou seja, interessa- se bem, fez o caminho como pôde, tal como
-me o que gera na mente a visão da situação e a fazemos todos. Então, é muito importante cap-
postura ante a ação, as ideias, os sentimentos”. tar o sentido em Vigotski, mais do que o signi-
É o que ele denominava nível fásico perante ficado. Os debates de ortodoxia são debates de
o nível semântico. Com isso, volta ao sentido, significado? A convicção perante um modelo
mas não é o sentido presente no princípio de teórico é um problema de sentido, e é no nível
Psicologia da arte; dez anos depois, Vigotski do sentido que eu me considero vigotskiano.
tem uma arquitetura mediacional sobre a qual Não me considero vinculado a nenhuma das
sustentar o sentido. propostas específicas em termos de significado,
Akhutina e Luria postulam que, no fun- ou seja, não assinei uma ortodoxia ou um che-
do, ele não saiu nunca desse mesmo eixo da que em branco.
mediação, mas foi se fixando em aspectos dis-
tintos e tendo, portanto, que mudar o objeto de Além do dogmatismo, da falta de abertura
análise para trazer tal processo à luz. Ou seja, para o diálogo interdisciplinar, as condições
o objeto de análise consiste justamente em as- de pesquisa hoje não favorecem o desenvol-
pectos distintos da mediação. Na realidade, se vimento de pesquisas longitudinais (como os
temos sentido, signo, significado e sentido, não estudos sobre memória que Luria desenvolveu
há tanta mudança. Mas alguns dos debates têm acompanhando sujeitos ao longo de décadas),
sido muito escolásticos, supondo um único e não é? Será que os desafios impostos para a
atemporal legado vigotskiano – e não um pro- construção de programas de investigação que
cesso com diversas transformações – e preten- nos permitam estudar a condição humana são
dendo encontrar um modelo articulado comple- maiores nos dias atuais?
to e unívoco. Concordo com Akhutina e Luria
em que Vigotski foi coerente nessa transição. E Nesse sentido, quanto ao diálogo inter-
não é que ele estivesse fazendo coisas contra- disciplinar, ao diálogo dentro da própria pers-
ditórias entre si, mas sim coisas consecutivas, pectiva vigotskiana e à abertura da ciência,
530 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
descobrindo mais coisas? Num estudo realizado neuropsicologia, na perspectiva do modelo das
por Amelia Álvarez entre cientistas diretores e funções distribuídas no exterior da mente, re-
avaliadores de revistas científicas, vários deles jeitaram-no. Avaliaram-me três vezes seguidas.
assinalaram a existência de muito empirical Soube que, quando viu a rejeição e o projeto, o
stuff, isto é, de artigos que têm todas as medi- diretor da instituição de avaliação questionou:
ções do aparato de accountability, de produtivi- “Como puderam rejeitar isto?”. Pareceu-lhe
dade, mas não contribuíram com praticamente que a rejeição não era coerente; reenviou du-
nada para a investigação. E a grande maioria as vezes o projeto para outros dois avaliadores
dos trabalhos publicados é desse tipo. Os polí- e voltaram a rejeitá-lo. Claro, as correntes da
ticos têm a pretensão de medir imediatamente neuropsicologia espanhola são muito conven-
com instrumentos simples o que só é mensurá- cionais: não aceitam a neurogênese e não acei-
vel em um processo longo e com instrumentos tam a extracorticalidade.
complexos. Lembro-me de que, quando fiz par- Não é fácil viabilizar a pesquisa em neu-
te de comissões de investigação, as diretrizes ropsicologia sem recursos. Temas como a neu-
de avaliação de projetos e pesquisadores busca- rogênese, sobre o qual eu queria buscar evidên-
vam garantir que se descobrira algo inovador e cias empíricas, são muito difíceis de investigar
relevante, mas, ao mesmo tempo, assegurar-se se você não tem recursos e acesso a hospitais.
de que o investigador estava atualizado e segui- Também quando postulamos a construção ou
ra os autores que tivessem feito avanços mais a destruição cultural da atenção, rejeitaram
recentes no tema. Em última instância, o que o projeto novamente, argumentando: “Como
pedem é a garantia de que o trabalho avaliado nós vamos sustentar que a atenção não é um
tenha homologado perfeitamente o que já exis- processo inato? Não há evidências de que isso
te, de modo que não sai nada novo dali. suceda”. Não é verdade que não há evidências.
Todos os argumentos dos avaliadores eram per-
Sem dúvida, vivemos um momento muito feitamente discutíveis, pois as evidências acu-
sombrio, e todo esse contexto provavelmente mulam-se na outra direção. Contra-argumentei,
afetou sua produção. Você, que tem uma longa mas não financiaram o projeto.
e relevante carreira acadêmica, poderia nos Embora tenhamos conseguido homolo-
dizer qual é saída para esse estado de coisas – gar na Espanha certos procedimentos que são
se é que ela existe? saudáveis, sempre há sectarismos: um condu-
tista rejeita um freudiano, um freudiano rejeita
Não penso que minha carreira seja re- um condutista, um condutista e um freudiano
levante. Quero acreditar que minha busca e rejeitam um cognitivista, e vice-versa. No que
minhas intuições o são, mas minhas investi- podia e sabia, sempre que avaliei, tomei cuida-
gações empíricas têm sido muito afetadas por do para não me deixar influenciar pelo traba-
todo tipo de condicionantes. Muitos deles são lho realizado do ponto de vista de determinada
consequência de minhas próprias opções e li- orientação, mas devo dizer que, nas avaliações
mitações; outros talvez se devam às constrições de muitos colegas, eu via operarem posições
e deformações institucionais. Em geral, tenho epistêmicas, metodológicas e, inclusive, insti-
me afetado e sensibilizado ante a maquinaria tucionais e ideológicas. Quando alguém está
institucional, em grande parte responsabilidade trabalhando de maneira produtiva e legítima,
coletiva de nós mesmos, os próprios acadêmi- qualquer que seja a perspectiva, isso pesa mui-
cos. Por exemplo, quando comecei a investigar to. Ninguém está vacinado contra o sectarismo,
o cérebro externo – que é o que percebo como e a pretensão de que exista apenas uma régua
mais relevante de minha busca – e apresentei de medir é hoje tão perigosa quanto a ortodoxia
o projeto do que poderíamos denominar exo- marxista o foi com Vigotski. Neste momento,
532 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
Daí também a explicação sobre cres- Os neurologistas e os biólogos estão fa-
cimento em camadas e sobre deteriorações, a zendo investigações sobre neurogênese. Bauer
qual se manteve em toda a neuropsicologia das e Altman demonstraram a neurogênese em
recuperações e foi desenvolvida pela escola de animais nos anos 1970, mas suas publicações
Luria: a hipótese de que a construção de no- não foram levadas a sério até os anos 1990.
vas camadas corticais tem uma lógica na cons- Nesse momento, Altman já é reconhecido co-
tituição das funções superiores de tal maneira mo uma figura histórica no desenvolvimento
que, se há lesões nas camadas profundas ou nas da neurologia. Aqui há duas coisas: a neuro-
externas, as consequências no desempenho da gênese é um mecanismo natural em animais
função superior serão distintas. Portanto, essa cujo cérebro está em mutação. Se unirmos isso
hipótese supõe que há neurogênese. E Luria aí ao que Bruner, baseado na investigação de De
mantém com Vigotski uma lealdade de autoria Vore sobre a prematuridade do parto huma-
sobre a hipótese do crescimento cerebral. Com no no processo filogenético ou aborto filoge-
base nisso, Luria e boa parte de seus colabora- nético, denomina hipótese da imaturidade, é
dores trabalham com a ideia de que as funções possível compreender que Vigotski tinha razão
superiores supõem um crescimento cerebral, a e que boa parte do crescimento cerebral de-
emergência de novas zonas corticais, algo que pois do parto é neurogenético, provocado pela
foi demonstrado. E, para eles, essas zonas não incorporação das funções superiores. Ou seja,
são caracterizadas por um localizacionismo tra- boa parte de nossa neurogênese não é fruto
dicional, mas sim por um desenvolvimento de de um sistema puramente natural, mas de um
mecanismos. Aquilo que nós chamamos de ope- sistema combinado de desenvolvimento bioló-
radores de mediação instrumental – o ábaco, por gico mediado pela cultura.
exemplo – na neuropsicologia de Luria converte- Nós distinguimos três sistemas de me-
-se em mecanismos neurológicos. Tais mecanis- mória; os dois primeiros são: o sistema gené-
mos têm localizações e podem ser rastreados em tico (genoma), que influi na conformação do
trabalhos da neurologia e da neuropsicologia, cérebro; e o sistema nervoso, por meio do qual
mas basicamente estão integrados em sistemas o cérebro incorpora conhecimento. Quando o
muito articulados. Isto Vigotski também já di- organismo morre, o conhecimento proporcio-
zia: as funções quase sempre reverberam em boa nado pelo segundo desses sistemas desaparece,
parte do cérebro, e não num lugar único. mas o do genoma continua. Assim, ambos os
Toda essa arquitetura do cérebro em que sistemas se complementam: um deles (o cére-
Vigotski avança leva, em Luria, à evidência da bro) é muito flexível e o outro é muito rígido;
neurogênese. Trata-se, porém, de pesquisas so- um é muito estável e o outro é muito instável.
viéticas que apenas se difundem no Ocidente. A Esses dois sistemas trabalham muito bem, mas
partir do que conheço da obra de Luria, tenho cer- Vigotski aponta a existência de um terceiro: a
teza da existência da neurogênese e de que essa cultura, que exerce mediações sociais e instru-
é a única via. As evidências sobre a neurogênese mentais. Realmente, do ponto de vista funcio-
vêm se acumulando nos últimos cinco anos. Há nal e psicológico, há funções que são exercidas
investigações sobre como aparecem novas zonas na cultura. E, se a neurogênese está certa, tal
corticais nos monges budistas depois de dez anos sistema incorpora-se ao segundo, atuando de
de meditação ou nos famosos taxistas de Londres fora e reestruturando o sistema cortical.
depois de anos exercendo a profissão. Essa notícia é tremendamente impor-
tante, pois supõe que o sistema de evolução
Podemos afirmar que a neurogênese está con- humano é constituído de três partes e que o
solidada como um campo de estudos? Como es- cérebro responde ativamente tanto aos reque-
tão as pesquisas mais recentes sobre o assunto? rimentos do genoma quanto aos da cultura (do
534 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
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536 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
2. Educação a partir da perspectiva histórico-cultural
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proyecto).
538 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...
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No prelo
DEL RÍO, Pablo. Los dos acercamientos de Vygotski a la mente humana: comentarios sobre la obra de las funciones superiores.
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DEL RÍO, Pablo; ÁLVAREZ, Amelia. El desarrollo cultural y las funciones superiores: del pasado al futuro. In: SMOLKA, Ana L.
Bustamante; NOGUEIRA, Ana L. Horta (Orgs.). Estudos na perspectiva de Vigotski: gênese e emergência das funções
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540 Entrevistadoras: Teresa Cristina REGO; Elizabeth dos Santos BRAGA. Dos desafios para a psicologia histórico-cultural à reflexão...