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EXCELENTÍSSIMA SENHORA PROCURADORA-GERAL DA

REPÚBLICA Drª. RAQUEL DODGE

IVAN VALENTE, ​brasileiro, casado, Deputado Federal, com


endereço profissional na Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete 716,
Brasília – DF, CEP: 70160-900, vem, respeitosamente, com fulcro no
artigo 5º, inciso XXXIV, alínea ​a​, no art. 127, caput e no art. 129, incisos II
e III, ambos da Constituição Federal, bem como no art. 236, inciso VII da
Lei Complementar nº 75, de maio de 1993, representando a bancada do
Partido Socialismo e Liberdade - PSOL​, apresentar representação em
face de ato praticado pela Presidente da República ​JAIR MESSIAS
BOLSONARO​, pelos fatos e fundamentos que se seguem.

I – DOS FATOS

1
02. No dia 31 de julho de 2019, o Presidente da República ​JAIR
MESSIAS BOLSONARO publicou Decreto não numerado de mesma data
substituindo quatro membros da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, instituída pela Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de
1995.

03. O fato ocorreu uma semana após o colegiado declarar que a morte de
Fernando Augusto de Santa Cruz, pai do atual Presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, durante a ditadura militar
(1964-1985), foi resultado da ação de agentes do Estado brasileiro.

04. A declaração da Comissão contrariou a versão do Presidente da


República que, sem apresentar qualquer prova, declarou que Fernando
Augusto de Santa Cruz teria sido morto por integrantes do grupo político de
esquerda do qual supostamente fazia parte.

05. Conforme mencionamos, a Comissão Especial sobre Mortos e


Desaparecidos Políticos foi criada em 1995. Seu objetivo é proceder ao
reconhecimento de pessoas desaparecidas durante o regime autoritário: a)
que tenham falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou
assemelhadas, por terem participado, ou por terem sido acusadas de
participação, em atividades políticas; b) que tenham falecido em virtude de
repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos
armados com agentes do poder público; e c) que tenham falecido em
decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em
decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura
praticados por agentes do poder público.

2
06. Cabe também à Comissão envidar esforços para a localização dos
corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto
ao local em que possam estar depositados, além de emitir parecer sobre os
requerimentos de indenização que venham a ser formulados pelas pessoas
que tenham sido perseguidas durante o regime autoritário.

07. Diante das competências mencionadas, não resta dúvidas de que a


Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é um dos
orgãos legalmente responsáveis por apurar as circunstâncias das mortes e
desaparecimentos ocorridos durante a Ditadura Militar inaugurada com o
Golpe de 1964, constituindo elemento central da justiça de transição em
nosso país.

08. Com base nessa competência que A Comissão empreendeu uma


apuração técnica, baseada em pesquisas, documentos públicos e
depoimentos de agentes que atuaram naquele período para concluir que a
morte de Fernando Augusto de Santa Cruz, pai do atual Presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, durante a
ditadura militar (1964-1985), foi resultado da ação de agentes do Estado
brasileiro.

09. Apesar da seriedade da investigação promovida pela investigação e


da clareza de sua competência legal, o Presidente da República insiste na
divulgação de versão fraudulenta sobre o desaparecimento e a morte do
então estudante Fernando Augusto de Santa Cruz, pai do atual Presidente
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

3
10. Em sua interminável jornada contra a verdade, o ordenamento e a
própria razão, o Presidente da República decidiu atacar a Comissão em
razão da seriedade do seu trabalho.

11. Mais uma vez, o Presidente da República utilizou os poderes nos


quais foi investido para tentar subordinar a verdade a seus anseios pessoais.
Lançou mão de um Decreto não numerado que substituiu, de uma única
vez, quatro dos sete membros da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos.

12. O Decreto não numerado designou os seguintes membros para


compor a Comissão:

- Marco Vinícius Pereira de Carvalho​, o novo Presidente da


comissão, é advogado filiado ao PSL e assessor especial da
Ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos;
- Weslei Antônio Maretti é coronel da reserva do Exército
Brasileiro;
- Vital Lima Santos​ é tenente-coronel do Exército;
- Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro é deputado federal
do Estado do Paraná, pelo PSL.

13. Todos os novos membros nomeados pelo Presidente da República


possuem posições que negam os horrores cometidos por agentes de Estado
durante a Ditadura Militar inaugurada com o Golpe de 1964. Sequer
reconhecem o caráter autoritário e antidemocrático do regime imposto à
população brasileira durante aquele período.

14. O novo Presidente da Comissão é assessor especial da atual Ministra


da Mulher da Família e dos Direitos Humanos, cujas principais medidas

4
relacionadas ao tema da justiça de transição são o desmonte da Comissão
de Anistia, o fim do apoio do Governo Federal à identificação das ossadas
encontradas em valas clandestinas do Cemitério de Perus e a interrupção de
praticamente todas as medidas para o cumprimento das decisões das Cortes
Internacionais para o reconhecimento dos crimes praticados por agentes do
Estado durante a Ditadura Militar e a consequente reparação das vítimas de
de seus familiares.

15. No afã de impor sua visão fraudulenta sobre a Ditadura Militar, o


Presidente da República sequer considerou o critério de reputação ilibada
para a escolha dos novos membros da Comissão, uma vez que o indicado
para a Presidência do órgão responde a processo por ter fraudado concurso
público em benefício de sua esposa e de sua cunhada, além de outra ação
onde é acusado de fraude à licitação1.

16. A mesma relação com a Ministra possui Vital Lima Santos, indicado
por ela como conselheiro da Comissão de Anistia na operação realizada
para desmontar o referido órgão, cuja atuação também é essencial para a
justiça de transição.

17. Quanto à indicação de Weslei Antônio Maretti, podemos resumir a


incompatibilidade de sua trajetória e pensamento com as atribuições da
Comissão com o seguinte trecho de sua autoria:

"Mudanças efetivas no ensino militar, a revisão por parte das


FFAA dos fatos históricos em que houve a participação de
militares e o relacionamento com a tal Comissão da Verdade
somente depende dos militares que estão no comando das

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2019/08/01/novo-presidente-da-comissao-de-desapare
cidos-e-acusado-de-beneficiar-mulher-e-cunhada-em-concurso-de-prefeitura-de-sc.ghtml

5
Forças. Está mais que na hora de mostrarem os dentes. É fácil
brincar com cachorrinhos de madame, mas com cães de
guarda a brincadeira pode ter um desfecho não esperado.
Desempenhar o papel de poodle ou rottweiler é uma opção
para quem está no serviço ativo das FFAA e têm o controle
das armas. Conforme um dito muito ouvido nos quartéis".2

18. O incompatibilidade das posições de Weslei Antônio Maretti com


qualquer iniciativa relacionada à justiça de transição fica ainda mais
evidente quando nos deparamos com sua posição sobre o Coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais saguinários do regime
militar e certamente um dos maiores criminosos daquele período. Segundo
o indicado pelo Presidente Bolsonaro:

O comportamento e a coragem do coronel Ustra servem de


exemplo para todos os que um dia se comprometeram a
dedicar-se inteiramente ao serviço da pátria. Apesar de travar
uma luta de Davi contra Golias, a sua vitória é certa porque
no final o bem prevalece sobre o mal.3

19. O Deputado Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro também possui


posição claramente incompatível com o objeto da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos. Para se ter uma ideia do grau de
incompatibilidade, o Deputado comemorou o Golpe Militar de 1964 em
suas redes sociais4 no último dia 31 de março, ignorando o sofrimento, a

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/01/assessor-de-damares-e-militares-os-no
meados-na-comissao-de-desaparecidos.htm
3

https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/integrante-da-comissao-da-verdade-exalta-ustra-e-d
efende-tiro-para-revidar-cusparada.html
4

https://twitter.com/filipebarrost/status/1112205191221309440?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Et

6
dor e a perda das vítimas do regime militar e de seus familiares, muitos dos
quais têm nos trabalhos da Comissão a última esperança para encontrar os
restos mortais de seus entes queridos.

20. A postura autoritária do referido Deputado é tão explícita que ele não
titubeou em pedir a prisão de jornalista que publicou matéria contrária aos
interesses e posições do governo que defende5, fato que explica um pouco a
naturalização com que trata os horrores praticados por agentes do Estado
durante a Ditadura Militar.

21. Diante do currículo dos indicados, não há dúvidas de que o


Presidente da República substituiu os membros da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos com o claro intuito de inviabilizar os
trabalhos daquele órgão e evitar que a verdade desmascare sua visão
fraudulenta sobre a Ditadura Militar inaugurada com o Golpe de 1964.

22. Mais uma vez, o Presidente da República pratica ato extremamente


grave e atenta contra a Constituição, o ordenamento vigente e diversos

weetembed%7Ctwterm%5E1112205191221309440&ref_url=https%3A%2F%2Fnoticias.uol.com.br%2Fp
olitica%2Fultimas-noticias%2F2019%2F08%2F01%2Fassessor-de-damares-e-militares-os-nomeados-na-c
omissao-de-desaparecidos.htm
5

https://www.metropoles.com/brasil/politica-br/deputado-do-psl-pede-na-pgr-prisao-preventiva-de-gre
enwald

7
tratados e acordos internacionais que o país voluntariamente se
comprometeu a observar.

23. Questionado sobre a mudança, o Presidente Jair Bolsonaro declarou:

"O motivo é que mudou o presidente, agora é o Jair


Bolsonaro, de direita. Ponto final. Quando eles botavam
terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o presidente.
Igual mudou a questão ambiental também".6

24. O Presidente ainda classificou como Balela a confirmação oficial da


Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos sobre o
assassinato de Fernando Augusto de Santa Cruz por agentes de Estado
durante a Ditadura Militar, violando gravemente o seu dever constitucional
de defender as instituições do Estado brasileiro, conforme muito bem
apontou a ex-Presidente da Comissão Eugênia Augusta Gonzaga Fávero:

“Ele (Bolsonaro) está descumprindo o seu dever de

representar o Estado brasileiro e defender os órgãos de

Estado. Na minha opinião (uma declaração)

profundamente ofensiva à moralidade administrativa. A

gente está no campo da moralidade.”

“Não devemos nem pensar se é verdade ou se é

mentira essa versão. Em primeiro lugar existe documento

oficial tratando disso. Negar valor a um documento

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/01/governo-troca-integrantes-de-comissa
o-sobre-mortos-e-desaparecidos.htm

8
oficial sem provas, quando o momento de fazer essa

prova já passou.”7

25. De fato, não é mais segredo para ninguém a dificuldade do


Presidente em enxergar os limites da institucionalidade e isso ficou
evidente mais uma vez com a edição do Decreto não numerado que
substituiu os membros da Comissão Especial sobre e Mortos e
Desaparecidos Políticos. Trata-se de conduta que corrobora a fala do
Ministro Celso de Melo proferida no último dia 01 de agosto, na sessão
onde foi julgada a constitucionalidade da reedição de Medida Provisória
que viola direitos dos dos povos indígenas:

“É preocupante essa compreensão pois torna evidente que


parece ainda haver, na intimidade do poder hoje, um resíduo
de indisfarçável autoritarismo, despojado sob tal aspecto,
quando transgride a autoridade da Constituição, de qualquer
coeficiente de legitimidade ético-jurídica.”8

26. Diante do esforço de se impor à população versões fraudulentas da


história Em tempos de É sempre Afirmamos isso porque a Constituição de
1988 reconheceu os horrores do período que o Presidente insiste em
enaltecer e estabeleceu as bases para implementação de nossa justiça de
transição, cujo conceito, sempre é importante repetir já foi sintetizado por
Vossa Excelência nos seguintes termos:

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/eugenia-gonzaga-fala-de-sua-exoneracao-da-comi
ssao-de-mortos-e-desaparecidos-politicos-assista/
8

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/por-unanimidade-stf-derrota-bolsonaro-e-mantem-de
marcacao-indigena-na-funai.shtml

9
Todavia, não importa onde se concretize, a verdadeira justiça
de transição só se realiza quando traz justiça para as vítimas.
O cerne do conceito de justiça de transição, criado há poucas
décadas, inclui, a um só tempo, acesso das vítimas à verdade,
à justiça penal e à reparação, daí derivando o conjunto de
medidas que, no âmbito daquela sociedade, propiciam a
conciliação, a paz, a democracia e o Estado de direito.9

27. Além de restabelecer e proteger mediante cláusula pétrea os direitos


e garantias constitucionais essenciais à proteção da dignidade humana e das
instituições democráticas, a Constituição de 1988 reconheceu
expressamente o direito à indenização de todos aqueles atingidos por atos
de exceção por motivação política, especialmente aqueles cometidos por
agentes do Estado, conforme dispõe o art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.

28. Entre as medidas adotadas no contexto de nossa justiça de transição,


importante destacar o papel da Comissão da Verdade. No contexto da
justiça de transição, as Comissões da Verdade possuem papel central para a
reconciliação em países que passaram por regimes de exceção. Trata-se de
mecanismo destinado a esclarecer e pacificar de forma definitiva os fatos
ocorridos durante esses períodos, de maneira a afastar controvérsias e
permitir uma conciliação nacional que permita à sociedade seguir adiante.

29. Nesse sentido, vale destacar trecho da Exposição de Motivos do


Projeto de Lei do Poder Executivo que deu origem à lei que criou a
Comissão Nacional da Verdade do Brasil:

http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/coordenacao/comissoes-e-grupos-de-trabalho/justica-tr
ansicao/relatorios-1/Relatorio%20Justica%20de%20Transicao%20-%20Novo.pdf

10
No mundo todo, foram constituídas mais de 30 Comissões da
Verdade, em contextos de transição política, superação de
conflitos armados internos ou de períodos ditatoriais, uma das
ferramentas daquilo que é denominado “justiça transicional”.
Apesar dos diferentes contextos históricos, políticos, sociais,
legais e culturais e das diferentes dinâmicas e formatos
adotados, todas as Comissões tiveram como objetivo principal
promover a reconciliação nacional, por intermédio da
revelação, registro e compreensão da verdade sobre o
passado de violações de direitos humanos nos respectivos
países.10

30. A Comissão Nacional da Verdade foi instituída entre nós pela Lei nº
12.528, de 18 de novembro de 2011 e seus relatórios constituem a versão
oficial dos fatos ocorridos durante a ditadura militar e os referidos
relatórios reconheceram a responsabilidade de agentes do Estado pela
morte de Fernando Augusto de Santa Cruz.11

31. A Comissão Nacional da Verdade reconstituiu parte de nossa história


a partir de documentos oficiais, da oitiva de militares da reserva, de vítimas
e de familiares de pessoas desaparecidas e mortas durante o regime militar,
bem como da colaboração de instituições que atuaram ou que pesquisaram
aquele período.

32. Os relatórios da Comissão da Verdade tornaram oficiais os horrores


praticados por agentes do Estado durante o período de exceção inaugurado
em 1964 e encerrado em 1985. Perseguição de opositores e mesmo de

10
​https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=771442
11

https://oglobo.globo.com/brasil/para-comissao-da-verdade-corpo-do-pai-de-presidente-da-oab-foi-inci
nerado-ou-enterrado-por-militares-23840950

11
pessoas que sequer possuíam alguma militância política foi a marca do
regime militar. Milhares de pessoas foram presas arbitrariamente12 e 434
foram mortas ou estão desaparecidas.13

33. Conforme constatou a Comissão da Verdade, a prática da tortura e de


outras graves violações de direitos humanos com motivação política foi
adotada sistematicamente como política de Estado a partir do golpe militar
de 1964. A tortura teve como vítimas homens, mulheres e foi
constantemente testemunhada por crianças. Entre as práticas de violência, a
violência sexual se destacava nos porões do regime que o Presidente da
República e as pessoas indicadas para compor a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos insistem em enaltecer14.

34. São esses horrores que a Constituição obrigou o Estado brasileiro a


reparar, obrigação que o país se comprometeu a cumprir perante diversas
organizações internacionais, assegurando que nunca mais se repetiriam.

35. É exatamente no contexto do cumprimento dessa obrigação que foi


criada a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, instituída pela
Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, com o objetivo de reparar as
famílias de pessoas desaparecidas e empreender esforços na localização de
restos mortais de pessoas desaparecidas em razão da atuação de agentes do
Estado durante a Ditadura Militar.

36. Nesse sentido, o uso do poder para indicar membros para o referido
órgão com o intuito de inviabilizar seu funcionamento constitui conduta

12
​http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf

13

http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-12/comissao-reconhece-mais-de-200-d
esaparecidos-politicos-durante

14
​http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf

12
absolutamente abusiva e afronta diretamente a Constituição, conforme
passaremos a expor.

II - DO DIREITO

37. A Constituição Federal de 1988 consagrou a República Federativa do


Brasil como Estado Democrático de Direito, baseado na soberania popular
e com eleições livres e periódicas.

38. O texto constitucional é claro no sentido de que a República


Federativa do Brasil tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da
pessoa humana e o pluralismo político e se rege em suas relações
internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 1º, I,
III e VI, e 4º, II).

39. A Constituição Federal de 1988 restabeleceu a democracia após o


período entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, durante o qual o
país foi presidido por governos militares, com supressão das eleições
diretas e dos direitos decorrentes do regime democrático, como direitos de
reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

40. O período inaugurado pelo Golpe Militar de 1964 também é marcado


pela disseminação da prática da tortura por agentes de Estado nos mais
diversos órgãos, prática repudiada pela Constituição Federal e considerada
crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLIII).

41. A Constituição Federal também reconhece, em seu art. 8º dos Atos


das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), expressamente a
prática de atos de exceção pelo Estado Brasileiro durante o regime
inaugurado em 1964 até a promulgação da Constituição Federal de 1988.

13
Por sua vez, o art. 9° da ADCT se refere expressamente à cassação e
suspensão de direitos políticos no período de 15 de julho a 31 de dezembro
de 1969.

42. É com base nesses fatos que a Constituição lança as bases dos
instrumentos que formariam nossa justiça de transição, entre eles a
Comissão de Anistia, a Comissão da Verdade e a Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos.

43. Nesse sentido, o Estado Brasileiro, por meio da Lei n° 9.140 de


1995, reconheceu como mortas as pessoas que tenham participado, ou
tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período
de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo,
tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, desde então,
desaparecidas, sem que delas haja notícias. Foi exatamente este diploma
que instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos,
com o objetivo de encontrar as vítimas do regime exceção.

44. Conforme já mencionamos, por meio da Lei n° 12.528, de novembro


de 2011, o Estado Brasileiro criou a Comissão Nacional da Verdade para
apurar graves violações a direitos humanos no período previsto no art. 8º da
ADCT, com poderes para reconhecer, em seu relatório final, a prática de
graves violações aos direitos humanos no período entre 1946 e 1988 pelo
Estado Brasileiro, deixando absolutamente claro o caráter autoritário dos
governos impostos, referindo-se expressamente ao regime inaugurado em
31/03/1964, com o golpe contra a democracia formalizado pelo Ato
Institucional n° 1, de 09 de abril de 1964.

45. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade restou comprovado


que o regime autoritário que se seguiu ao Golpe de 1964 foi responsável

14
pela ocorrência de graves violações de direitos humanos, perpetradas de
forma sistemática e em função de decisões que envolveram a cúpula dos
sucessivos governos do período.

46. Vale ressaltar que as próprias Forças Armadas admitiram, em


19/09/2014, por meio do Ofício nº 10944/GABINETE, do Ministro de
Estado da Defesa, a existência de graves violações de direitos humanos
durante o regime militar, registrando que os Comandos do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica não questionaram as conclusões da Comissão
Nacional da Verdade, por não disporem de “elementos que sirvam de
fundamento para contestar os atos formais de reconhecimento da
responsabilidade do Estado brasileiro” por aqueles atos.

47. Ao ser submetido a julgamento da Corte Interamericana de Direitos


Humanos, no Caso Gomes Lund e Outros, o Brasil foi condenado por
unanimidade pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos
direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade
pessoal e à liberdade pessoal, sendo obrigado a adotar medidas de não
repetição das violações verificadas.

48. Ainda durante a tramitação do caso Caso Gomes Lund e Outros, o


Estado Brasileiro assumiu oficialmente sua responsabilidade pelas mortes e
desaparecimentos forçados ocorridos durante o período do regime militar e,
em sua contestação perante a Comissão Interamericana, reconheceu o
sofrimento das famílias das pessoas desaparecidas na Guerrilha do
Araguaia, em razão de não poderem exercer o seu direito de enterrar seus
mortos, fato que reforça a importância da Comissão Especial sobre e
Mortos e Desaparecidos no contexto da Justiça de Transição.

15
49. Ainda no âmbito internacional, o Estado Brasileiro reconheceu
perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua contestação
no Caso Vladmir Herzog, sua responsabilidade pela detenção arbitrária,
tortura e assassinato de Vladimir Herzog por agentes do Estado no
DOI/CODI do II Exército, em 25 de outubro de 1975.

50. Diante de todo o exposto, constitui clara violação a todo arcabouço


que sustenta nossa justiça de transição a nomeação de pessoas que negam a
versão oficial sobre o caráter autoritário, os crimes e os horrores cometidos
pela Ditadura Militar para a composição dos órgãos responsáveis por
investigar e apurar esses crimes, notadamente o caso da Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

51. Nesse sentido, manifestou-se o ​parquet ao questionar medida


idêntica adotada pela Ministra Damares Alves para desestruturar os
trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Anistia nos autos da Ação civil
Pública destinada a anular a Portaria editada pela autoridade mencionada.15

52. Conforme destaca muito bem o Ministério Público Federal na


referida ação:

“Das provas que acompanham esta Petição, vê-se que 07


membros nomeados para a nova composição do Conselho da
Comissão de Anistia são agentes de carreiras ou têm histórico e
postura públicos que são INCOMPATÍVEIS com a função do órgão,
seja por manifesta contrariedade à política pública de reparação
das vítimas de Estado ou devido à atuação judicial contrária à
política de reparação, ou ainda por se posicionarem contrários à

15

http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/noticias-df/mpf-aciona-justica-e-questiona-a-nomeacao-de
-membros-para-a-comissao-de-anistia

16
instauração da Comissão Nacional da Verdade, seja porque
integram as forças coercitivas do Estado.”16

53. A inicial apresentada pelo Ministério Público Federal ainda destaca,


baseando-se em documento produzido pelo Centro Internacional para la
Justicia Transicional:

“Estudos internacionais especializados em transições


democráticas enfatizam que a escolha dos membros das
comissões não judiciais competentes para enfrentar os
legados de violações sistemáticas de direitos humanos é um
dos pontos de maior relevância, como refere Priscilla B.
Hayner, “talvez mais do que qualquer outro fator singular, a
pessoa ou pessoas selecionadas para gerenciar uma comissão
da verdade vai determinar, em último análise, o seu sucesso
ou fracasso”.

Segundo o Centro Internacional para a Justiça de Transição,


a escolha dos membros deve contar com critérios compatíveis
com a promoção da memória, da verdade e da justiça. Para
isso, são imprescindíveis: qualificações pessoais e registros
impecáveis com competência em matéria de direitos humanos
e livres de quaisquer envolvimentos com violações dessa
natureza.”17

54. Diante desse contexto, deve-se atentar que a Lei nº 8.429/1992, Lei
de Improbidade Administrativa, prevê em seu art. 11 que constitui ato de
improbidade a prática de ato que atente contra os princípios da

16
​http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/peticao-acp-portaria-da-damares
17
​http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/peticao-acp-portaria-da-damares

17
administração pública da moralidade, da legalidade e da lealdade às
instituições, e notadamente a prática de ato visando a fim proibido em lei
ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência,
sujeitando seu autor, servidor civil ou militar, à pena de perda da função
pública, suspensão dos direitos políticos e multa civil de até cem vezes o
valor da remuneração.

55. Por sua vez, a Lei nº 4.717/65 estabelece que são nulos os atos que
atentem contra o patrimônio histórico nacional, em especial aqueles
praticados em claro desvio de finalidade, assim concebido o ato praticado
objetivando fim diverso daquele previsto na regra de competência.

56. Conforme aponta Edmir Netto de Araújo, a violação da finalidade se


constata quando o agente público persegue um fim proibido em lei ou que
não seja de interesse geral.18

57. No presente caso, resta evidente que o Presidente da República ao


editar o Decreto não numerado para substituir os membros da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos para satisfazer sua posição
pessoal sobre os horrores da Ditadura Militar violou todo o arcabouço
constitucional que obriga o Estado a implementar uma justiça de transição.

58. Violou também a legislação que institui e regulamenta os


instrumentos da justiça de transição, incorrendo em clara situação de
improbidade administrativa.

59. Mais evidente ainda é o desvio de finalidade contido na conduta,


uma vez que a finalidade almejada não é o interesse geral e a visão
histórica que o Presidente tentar impor por meio da substituição dos
membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é

18
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 460.

18
absolutamente contrária ao texto constitucional e aos documentos oficiais
produzidos pelos órgãos legalmente competentes.

60. A conduta fere ainda os princípios básicos que regem a


administração pública abrigados no art. 37 da Constituição Federal, como o
da moralidade e o da legalidade.

61. Tal situação exige a imediata atuação das instituições responsáveis


pela preservação dos limites constitucionais estabelecidos para o Exercício
do Poder Executivo.

62. O Presidente agiu para retaliar e inviabilizar a atuação da Comissão


Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, peça central da justiça de
transição em nosso país e cujo trabalho é imprescindível para amenizar o
sofrimento dos familiares de mortos e desaparecidos políticos.

63. Trata-se de verdadeira operação de sabotagem dos trabalhos da


Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos com o intuito
de fazer prevalecer uma visão histórica fraudulenta e contrária à
Constituição e ao ordenamento jurídico.

64. Ao agir dessa forma, o Presidente cometeu ato de improbidade e agiu


em abuso de poder, conduta que, infelizmente, vem se tornando corriqueira
desde a sua posse, aumentando ainda mais a responsabilidade do Ministério
Público, do Poder Judiciário e do Legislativo.

III - DO PEDIDO

65. Nesse sentido, requer-se, sem prejuízo de outras medidas que esta
Procuradoria entender cabíveis:

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I - a urgente instauração de procedimento por esta
Procuradoria-Geral para exigir a declaração de nulidade do Decreto não
numerado de 31 de julho de 2019 que substituiu os membros da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos;

II - a adoção de procedimento para apurar a responsabilidade do


Presidente da República ao persistir na violação dos dispositivos
constitucionais e legais que reconhecem os horrores da Ditadura Militar
inaugurada com o Golpe de 1964;

III - a adoção de medidas pelo órgão específico para acompanhar o


desenvolvimento das ações relacionadas à justiça de transição no âmbito de
todo o Governo Federal.

Brasília, 02 de agosto de 2019.

IVAN VALENTE

Deputado Federal PSOL-SP

Líder da Bancada do PSOL na Câmara dos Deputados

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