You are on page 1of 91

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

REBECA MATOS FREIRE

ALÉM DO “PARAÍSO”: ESTUDO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA CADEIA


PRODUTIVA DO TURISMO EM JERICOACOARA, CE

FORTALEZA

2015
REBECA MATOS FREIRE

ALÉM DO “PARAÍSO”: ESTUDO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA CADEIA


PRODUTIVA DO TURISMO EM JERICOACOARA, CE

Monografia de Graduação apresentada ao


Curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Lea Carvalho


Rodrigues.

FORTALEZA
2015
REBECA MATOS FREIRE

ALÉM DO “PARAÍSO”: ESTUDO SOBRE A CONFIGURAÇÃO DA CADEIA


PRODUTIVA DO TURISMO EM JERICOACOARA, CE

Monografia apresentada ao Curso de


Bacharelado em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Ciências Sociais.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Profa. Dra. Lea Carvalho Rodrigues (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Profa. Dra. Cristina Maria da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________
Profa. Dra. Mariana Mont'Alverne Barreto Lima
Universidade Federal do Ceará (UFC)
AGRADECIMENTOS

Uma vez me disseram que a escrita acadêmica é solitária. Solitária porque é


um exercício do pesquisador que, naquele momento, é escritor da sua pesquisa. Ele
tem a responsabilidade (e o desejo) de pôr no papel, de maneira clara, tudo o que
estudou e compreendeu no seu trabalho. Quando ouvi esta frase, compreendi
alguns sentimentos e constatei um fato: que a vida acadêmica não é solitária. Por
meio das conversas, debates e reflexões em conjunto, nosso conhecimento
enriquece e nos tornamos humildes, por reconhecermos que ainda há muito que
aprender. Não fosse a graduação, provavelmente eu não teria conhecido as pessoas
que fizeram/fazem parte da minha trajetória de vida. Sou muito grata ao que as
ciências sociais me proporcionaram de conhecimento, mas, mais ainda à vida, por
tal experiência.

A minha mãe, Ana, por tudo. Tudo.

Ao meu padrasto, Rebouças, por todo o apoio e atenção.

Às minhas irmãs, Cibele e Jessica, por todo o amor e irmandade que nós
partilhamos, mesmo na distância. Que nossa união prevaleça, sempre.

Ao Matheus, meu companheiro e grande incentivador deste trabalho. Meus


sinceros agradecimentos por sempre ter acreditado que eu seria capaz.

A profa. Lea, por ter dado a oportunidade de conhecer o “mundo” da pesquisa


e por todas as conversas, apoio, orientações e atenção. Muito obrigada pela
confiança depositada, pela amizade construída e por partilhar seu amor pela
antropologia. Foi inspirador.

Às minhas amigas e companheiras de pesquisa, Taciane, Michelly e Neivania,


por todas as conversas, desabafos e por terem florido meu cotidiano com suas
presenças. Também agradeço a profa. Linda Gondim, que tão bem nos acolheu no
Laboratório de Estudos da Cidade (LEC).

Aos meus amigos de graduação, Glauco, Bruna e Lívia, por terem sido tão
companheiros no período em que estivemos juntos. Que a vida nos proporcione
mais encontros.
Ao Cristiano, por dividir as angústias e alegrias que a vida acadêmica
proporciona. Pela cumplicidade que partilhamos na nossa amizade, muito obrigada.

Ao CNPq, pelo apoio concedido através de uma bolsa de iniciação científica.

Ao corpo docente e técnico administrativo do Departamento de Ciências


Sociais.

Por fim, mas não menos importante, aos moradores de Jericoacoara que, por
meio das conversas formais e informais, proporcionaram esta experiência tão rica e
cheia de significados para mim. Muito obrigada.
RESUMO

O tema desta monografia é o turismo, no âmbito das ciências sociais. O objetivo da


pesquisa é, através do mapeamento da cadeia produtiva do turismo em
Jericoacoara, compreender como se dá a relação entre nativos e estrangeiros que
trabalham como comerciantes e prestadores de serviços, no âmbito econômico,
político e social. Jericoacoara é um distrito pertencente ao município de Jijoca de
Jericoacoara, localizada no litoral Oeste do estado do Ceará. A vila tornou-se um
destino turístico consolidado em âmbito nacional e internacional, que recebe um
intenso fluxo de pessoas de diversas localidades do Brasil e do mundo. A presença
de moradores estrangeiros é relatada desde o início do desenvolvimento do turismo
em Jericoacoara, e a convivência desses agentes com os nativos constitui a
problemática da pesquisa, especialmente devido a grande presença de estrangeiros
no comércio turístico, que é a atividade econômica mais importante da vila. A
metodologia é de caráter qualitativo, etnográfico e consistiu em viagens a localidade,
nas quais houve a realização de entrevistas abertas com os donos e empregados de
alguns estabelecimentos da vila. Além dos dados qualitativos, a pesquisa contém
dados de um levantamento de informações referentes à origem destes
comerciantes, realizado no trabalho de campo. As relações estabelecidas entre
nativos e estrangeiros mostram que existe uma preocupação com a economia e a
política local, bem como a reivindicação por melhorias na qualidade de vida da
população. No entanto, essas relações também apresentam problemas, mostrando
que as diferentes formas de interações entre os sujeitos compõem o caráter diverso
das concepções de identidades.

Palavras-chave: Turismo. Antropologia do turismo. Jericoacoara. Identidade.


Projetos de desenvolvimento.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Parque Nacional de Jericoacoara ......................................................... 35


Figura 2 Rota das Emoções ................................................................................ 40
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Comércio turístico em Jericoacoara ........................................................ 56

Tabela 2 Quantidade de estabelecimentos em Jericoacoara por categoria .......... 56

Tabela 3 Administração dos estabelecimentos em Jericoacoara .......................... 57

Tabela 4 Tempo de funcionamento do estabelecimento em Jericoacoara ............ 58

Tabela 5 Estabelecimentos em Jericoacoara por segmento comercial ................. 59

Tabela 6 Residentes e não residentes em Jericoacoara ....................................... 66

Tabela 7 Estabelecimentos próprios e alugados em Jericoacoara ........................ 73

Tabela 8 Propriedade do imóvel comercial em Jericoacoara ................................. 74

Tabela 9 Percentual dos locadores em relação à origem dos locatários ............... 74


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APA Área de Proteção Ambiental


BIRD Banco Interamericano de Desenvolvimento
BM Banco Mundial
BNB Banco do Nordeste do Brasil
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CAGECE Companhia de Água e Esgoto do Ceará
COELCE Companhia Energética do Ceará
EMBRATUR Empresa Brasileira de Turismo
ETE Estação de Tratamento de Esgoto
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IDACE Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará
IPECE Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará
MTur Ministério do Turismo
NUGA Núcleo de Geografia Aplicada de Universidade Estadual do
Ceará
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
Parna Jericoacoara Parque Nacional de Jericoacoara
PIB Produto Interno Bruto
PNT Plano Nacional de Turismo
PRODETURIS Programa de Desenvolvimento do Turismo no Litoral do
Ceará
PRODETUR-CE Programa de Desenvolvimento do Turismo no Ceará
PRODETUR-NE Programa de Desenvolvimento do Turismo na Região
Nordeste
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SEMACE Superintendência do Meio Ambiente do Ceará
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação
SETUR-CE Secretaria de Turismo do Ceará
UNWTO World Tourism Organization
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11

CAMINHOS METODOLÓGICOS .............................................................................. 19

2. JERICOACOARA: A CONSTRUÇÃO DA VILA E SUA TRANSFORMAÇÃO EM


DESTINO TURÍSTICO .............................................................................................. 27

2.1. Histórico da localidade ....................................................................................... 27

2.2. Jericoacoara: um “oásis” cearense? .................................................................. 36

3. A FORÇA DO TURISMO NA CONFIGURAÇÃO ATUAL DO CAPITALISMO


CONTEMPORÂNEO ................................................................................................. 41

3.1. Considerações sobre o turismo no plano mundial .............................................. 41

3.2. Turismo no Brasil: notas sobre as políticas de desenvolvimento, em especial no


Ceará. ....................................................................................................................... 45

4. OS AGENTES QUE COMPÕEM O COMÉRCIO LOCAL: UM CALEIDOSCÓPIO


DE IDENTIDADES .................................................................................................... 49

4.1. As possíveis concepções de nativo e estrangeiro .............................................. 49

4.2. A configuração da cadeia produtiva do turismo local e as relações entre os


agentes ..................................................................................................................... 55

4.3. Perspectivas sobre o modo de vida local ........................................................... 65

4.4. Considerações sobre a propriedade do imóvel comercial em Jericoacoara ...... 73

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 79

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 84

ANEXOS ................................................................................................................... 88

Anexo A - Quadro de entrevistados (Jericoacoara) – 2015 ....................................... 88

Anexo B – Decreto nº 24.881 de 24 de abril de 1998 autoriza a regularização


fundiária em Jericoacoara. ........................................................................................ 89

Anexo C – Mapa da vila de Jericoacoara .................................................................. 90

Anexo D – Modelo de ficha para levantamento de dados sobre os comerciantes e


prestadores de serviços em Jericoacoara ................................................................. 91
11

1. INTRODUÇÃO

O objetivo desta pesquisa é realizar um estudo sobre a configuração da


cadeia produtiva do turismo em Jericoacoara, Ceará. A intenção desse estudo é
compreender como se constituem as relações sociais, econômicas e políticas dos
comerciantes e prestadores de serviços com a localidade. O recorte empírico da
pesquisa será a vila de Jericoacoara, distrito pertencente à Jijoca de Jericoacoara,
que está no litoral Oeste do estado do Ceará. Atualmente, Jericoacoara é um
destino turístico consolidado, que também integra o roteiro turístico Rota das
Emoções.
O turismo é considerado, na contemporaneidade, um mercado promissor
na economia mundial, tido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e
pelo Banco Mundial (BM) como uma importante forma de desenvolvimento
econômico, que abre caminho para investimentos de muitos ramos da economia. De
acordo com Rodrigues (2014), o turismo é um ramo atrativo de desenvolvimento por
conta do seu rápido crescimento e diversificação das atividades, no qual os países
pobres ou em desenvolvimento, principalmente, investem de forma que gere divisas.
A autora aponta que o volume de negócios é igual ou superior a outros mercados,
como a exportação de alimentos e veículos, por exemplo. Rodrigues também
ressalta que o turismo, enquanto atividade econômica realiza feitos que se
denominam como processos transnacionais1.
Lopez e Marín (2010) também falam do mercado turístico, que se
expande por várias partes do mundo e define o desenvolvimento econômico e
formas de reprodução sociocultural nessas localidades. Para eles, não se trata
apenas de um processo da economia política, mas, ao mesmo tempo, de
reorganização socioespacial e transformação cultural. Partindo dessa ótica, eles

1
Rodrigues se vale do conceito de transnacionalidade por meio do artigo de Gustavo Lins Ribeiro, em
“A condição da transnacionalidade” (1997), e Ulf Hannerz, no livro “Conexiones transnacionales:
cultura, gente, lugares” (1998). Segundo a autora, Ribeiro “considera transnacionalidade os
fenômenos – sociais, políticos, econômicos e culturais – que ultrapassam as fronteiras geográficas
do Estado-Nação, expressando a complexidade contemporânea de „representar pertencimento a
unidades sócio-culturais‟.” (RODRIGUES, 2014, p.1). A autora diz que Hannerz considera o
entendimento da noção de cultura necessário para entender os processos transnacionais, porque o
que caracteriza o transnacional é a dificuldade de tratar com exatidão a abrangência da cultura no
espaço social. Para ela, esse conceito se desenvolve fortemente vinculado aos estudos sobre
migração e a conceitos emergentes como o de transmigrante, de Nina Glick Schiller, no livro
“Transnacioality” (2007).
12

concebem o turismo como uma indústria produtora de espaços, significados e


experiências. Eles também dizem que, nos últimos anos, o turismo se colocou como
um dos temas principais das ciências sociais, sobretudo diante da necessidade de
registrar e explicar processos inéditos e grandes transformações que se associam a
expansão turística por todo o planeta. Eles consideram que o turismo representa
uma indústria complexa não só pela composição e articulação com diversos
negócios, mas principalmente por sua natureza como processo mercantilizador de
espaços, culturas e identidades, que produzem novas ordens territoriais, sociais e
formas de representação.
O principal tema desta pesquisa é o turismo, tendo como suporte teórico
obras que compõem a antropologia do turismo. A oportunidade de realizar o estudo
nesse campo da antropologia iniciou em 2012, quando ingressei em um grupo de
estudo que realizava discussões sobre a temática. Posteriormente, me tornei
bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq),
trabalhando no projeto de pesquisa atualmente intitulado “Turismo, parques
nacionais e populações tradicionais: conflitos socioambientais em Jericoacoara, CE”.
O projeto, coordenado pela professora Lea Carvalho Rodrigues, faz parte de uma
trajetória de pesquisa que remonta ao ano 2008, pesquisando os efeitos do turismo
em comunidades do litoral Oeste do estado do Ceará. Em 2013, quando iniciei na
bolsa de pesquisa, a equipe estava começando os trabalhos de campo em
Jericoacoara, e pude acompanhar todo o processo. Nas primeiras viagens
realizadas à localidade, o centro comercial da vila prendeu a minha atenção pela
diversidade de pessoas que trabalhavam nos comércios, pela variedade (e
quantidade) de produtos expostos e pela intensa movimentação que a atividade
atraia para a localidade.
Atualmente, o turismo é a principal atividade econômica da localidade
(Rodrigues, 2015b; Fonteles, 2000; Molina, 2007) e o objetivo desta pesquisa é,
através do mapeamento da cadeia produtiva do turismo em Jericoacoara,
compreender como se dá a relação dos comerciantes e prestadores de serviços no
âmbito econômico, político e social. Para tanto, foram realizadas entrevistas com os
donos e empregados de alguns estabelecimentos da vila, e também um
levantamento de informações referentes à origem desses comerciantes. Todas as
atividades foram realizadas durante a pesquisa de campo, em períodos intervalados
de outubro de 2013 até setembro de 2015. Ao todo, oito viagens foram realizadas a
13

Jericoacoara, com uma duração mínima de três dias e máxima de dez dias. No total,
permaneci 34 dias na localidade.
As motivações que me levaram a estudar Jericoacoara são oriundas da
experiência da pesquisa, com orientações e leituras relacionadas ao tema e de
minha proximidade com espaços turísticos antes de ingressar na universidade. Para
falar sobre a minha experiência anterior com locais turísticos, é interessante também
abordar a metodologia do trabalho, tendo a etnografia como a base que consolidou e
construiu todo o processo, que iniciou na primeira viagem de campo, até a escrita da
última página desta monografia. Ela será um tópico a parte desta introdução.
Para trazer mais solidez e informações pertinentes que justifiquem a
importância desta pesquisa, apresentarei, a seguir, o turismo como tema de estudo
no âmbito das ciências sociais.
A temática do turismo possui um caráter interdisciplinar, uma vez que ele
perpassa diversas áreas de estudo, como a geografia, história, economia, sociologia
e antropologia, sendo que nas duas últimas, em âmbito internacional, já há um corpo
consolidado de conhecimento que forma a sociologia e a antropologia do turismo.
Rodrigues (2015a) e Barretto (2003) ressaltam a importância do turismo como tema
de estudo na antropologia, mas também apresentam outras áreas do conhecimento
que desenvolveram trabalhos cuja temática do turismo era central. Nelson Graburn
diz que a geografia foi a primeira área do conhecimento que explorou o turismo
como pesquisa de campo, nos anos 1950 e 1960, focalizando os impactos
econômicos e sociais. Segundo o autor, Valene Smith foi pioneira em enxergar o
turismo como tema de estudo e Rodrigues (2015a) cita a geógrafa (que se tornou
antropóloga posteriormente) e seu livro “Hosts and Guests”, considerado um
clássico. Barretto (2003) diz que as ciências econômicas detém o maior número de
trabalhos acadêmicos sobre turismo, analisando a movimentação econômica de
capital através da indústria turística, ou seja, pelos negócios ligados ao turismo.
Porém, Barretto ressalta que esta é apenas uma das partes que são investigadas na
atividade turística. Para ela, analisar o fenômeno do turismo apenas pela dimensão
econômica faz esquecer a dimensão socioantropológica, uma vez que a dimensão
econômica estuda o fluxo de dinheiro e enxerga o turista como um simples portador
de moeda. Por outro lado, considera que tratar o turismo apenas na dimensão
socioantropológica e ambiental pode constituir uma visão romantizada, deslocada
das condições históricas. Portanto, diz ela, é importante que o turismo seja estudado
14

de forma abrangente. No que diz respeito aos estudos sobre o turismo pelas
ciências sociais, Rodrigues (2015a) mostra que houve uma resistência dessa área
em reconhecer o turismo como tema de estudo. A autora elenca três aspectos que
mostram a forma como o turismo foi inserido nas ciências sociais, do ponto de vista
dos intelectuais da área: i) ultrapassagem de barreiras internas do campo disciplinar
para aceitação do tema; ii) abordagem periférica do tema; iii) estudo sistemático à
medida que o turismo se coloca como importante atividade na economia mundial
contemporânea. Rodrigues sugere que uma das dificuldades de aceitar o campo do
turismo dentro dos estudos das ciências sociais está no fato do turismo ter um
vínculo direto com o lazer e o ócio, e as ciências sociais, que se desenvolveram sob
o signo do progresso e desenvolvimento da sociedade capitalista, que tem como
principal foco analítico o trabalho e a sociedade industrial. Portanto, o lazer, ligado
ao turismo, situa a pesquisa num campo oposto ao campo do trabalho. Outro fator
que Rodrigues apresenta como dificuldade é a confusão que se faz entre
pesquisador e turista, fazendo com que o pesquisador não fosse levado muito a
sério, uma vez que haveria uma mistura entre o campo do trabalho e o campo do
ócio.
Ela toma como referência para essas reflexões Dennison Nash, com o
livro “Anthropology of Tourism” e ainda diz que sobre a antropologia, em particular,
ainda há outra razão para a dificuldade de incorporação da temática do turismo.
Tendo Nash como referência, a autora diz que para os antropólogos as viagens de
campo implicavam em entrar em contato com sociedades diferentes, em um
ambiente estranho e hostil, para conhecê-las e compartilhar esse conhecimento. De
acordo com ela:

Haveria, portanto, um contraste entre as condições de pesquisa vividas


pelos etnógrafos clássicos – dadas as dificuldade de acesso ao campo e
negociação com as populações envolvidas; os imprevistos, acidentes e
doenças que transformaram essa experiência em um rito de passagem
praticamente obrigatório para tornar-se antropólogo – e, por outro lado, a
situação vivida pelo contemporâneo pesquisador do turismo, que embaralha
as posições (RODRIGUES, 2015a, p.4).

Assim, segundo a autora, o pesquisador do turismo tem a oportunidade


de mesclar pesquisa e lazer, excluindo o caráter místico do sofrimento que o
antropólogo tem que passar, pondo em risco o caráter quase sagrado da pesquisa
de campo.
15

Nelson Graburn (2009), cujo trabalho é referência para análise (Barretto,


2003; Rodrigues, 2015a), fala sobre a resistência de alguns antropólogos em
reconhecer a presença do turismo nos locais de pesquisa, e interagir com turistas,
por exemplo. Ele ressalta que alguns trabalhos da área das ciências sociais foram
fundamentais para os estudos antropológicos em turismo; os conceitos são variados,
mas dentre eles o autor aponta Van Gennep sobre os tipos de rituais, para entender
a estrutura das viagens e a alternância entre férias e vida cotidiana, e Simmel, que
trata sobre a condição do estrangeiro. Graburn diz que os primeiros trabalhos em
que a temática do turismo é apresentada datam da década de 1960, mas o turismo
aparecia como um subproduto da pesquisa principal dos antropólogos. Já de acordo
com Rodrigues (2015a), a década seguinte presenciou o crescimento do turismo na
economia mundial. Esse período coincide com o desenvolvimento do turismo como
tema de estudo e a autora diz que os primeiros trabalhos surgiram do
questionamento que era feito na época sobre a postura do etnógrafo
Segundo Graburn, as duas primeiras décadas de pesquisa em turismo,
por parte da antropologia, foram focadas nas consequências em relação à mudança
social, questões de gênero, artes turísticas, autenticidade, etnicidade, identidade,
entre outros. Na década de 1970 também é importante destacar um livro que se
tornou um clássico das leituras sobre o tema. Rodrigues (2015a) diz que à medida
que as discussões iam ganhando força, devido à representatividade do turismo no
mundo contemporâneo, o estudo ia ganhando maior legitimidade como tema de
estudos nas ciências sociais. Como exemplo, a autora sugere o livro “The Golden
Horde: International tourism and the pleasure periphery”, de Turner e Ash, publicado
em 1975. Rodrigues diz que, na análise deles, o desenvolvimento da indústria do
turismo potencializa as relações entre centro e periferia. De forma inversa as
invasões bárbaras, agora há um deslocamento de milhares de pessoas vindas dos
países industrializados para os países pobres ou em desenvolvimento. Assim,
Turner e Ash dizem que surgem áreas periféricas que reproduzem a tradicional
polarização Norte-Sul, que divide os países ricos dos que estão no chamado terceiro
mundo. Eles consideram o turismo um dos grandes paradoxos do século XX, porque
se por um lado cada um vive seu tempo livre (oposto ao tempo do trabalho), por
outro lado essa atividade é dominada por uma indústria que transforma o tempo livre
em mercadoria.
16

Dando continuidade a apresentação sobre a temática do turismo, Graburn


diz que os primeiros investimentos no turismo pelos países subdesenvolvidos para
obterem divisas e empregos trouxeram questões que foram pontuais nos primeiros
trabalhos etnográficos sobre turismo, que exploraram os “impactos” sociais, culturais
e ambientais, sentidos pela comunidade receptora. Esses primeiros trabalhos
abriram os caminhos para a pesquisa sobre as mudanças sociais e culturais
provocadas pelo turismo, sendo que os trabalhos mais recentes abandonaram o
termo “impacto”, uma vez que ele trazia uma visão simplista de que existiam dois
elementos envolvidos, os “anfitriões” e “hóspedes”, e a presença do turista era o
vetor de mudança ativo, enquanto a comunidade local era o receptor passivo.
Graburn alega que os estudos posteriores mostraram que há ação propositada de
ambos elementos e que o encontro dificilmente é apenas entre os dois lados, ou
seja, tanto o elemento externo como a população local são complexos e variados.
Para o autor, os destinos turísticos normalmente se transformam em espaços
transnacionais, onde se observa a chegada de mão-de-obra migrante dentro e fora
do país, estrangeiros de várias nações e uma população flutuante, além dos turistas.
Além de Turner e Ash, Rodrigues (2015a) apresenta outros importantes
trabalhos sobre o fenômeno do turismo pelas ciências sociais. Ela destaca Dean
MacCannell, autor de “The Tourist: a new theory of the leisure class”, George
Simmel com os títulos “Sociologia do Espaço” e “O estrangeiro” e o sociólogo Erik
Cohen, com o artigo “Toward a Sociology of International Tourism”. Barretto (2003)
também apresenta alguns autores como o economista Jost Krippendorf, que
contribui com conceitos e aspectos sobre a atividade turística, o que ressalta a
abordagem interdisciplinar do tema. De fato, Krippendorf (2009) é referência nos
estudos sobre turismo, por criticar o modelo de turismo de massa praticado na
Europa, na época de sua publicação. Uma dos temas abordados pelo autor e da
relação entre turistas e a população receptora dos espaços turísticos, bem como do
senso crítico desenvolvido pelas populações nativas. Ele também fala sobre a
relação dos indivíduos com o cotidiano e o trabalho, e da criação da necessidade do
descanso e das férias. O lançamento da primeira edição do livro, em 1984, desafiou
a corrente desenvolvimentista do turismo que tomava a Europa, pelas críticas ao
turismo de massa e trazendo uma reflexão sobre a função do “homem-férias” e ao
futuro do exercício do lazer e das viagens.
17

Outro autor que Barretto menciona é John Urry, que é recomendado


como um dos pesquisadores com maior número de trabalhos escritos na área. No
livro “O olhar do turista” (2001), Urry refere-se ao turismo como o consumo de bens
e serviços e, segundo a autora, o olhar do turista é construído em relacionamento
com seu oposto, com formas de experiências não turísticas. A base do livro de Urry
detém-se no processo de “afastamento”, ruptura das rotinas e práticas bem
estabelecidas da vida cotidiana e para o autor a construção desse olhar do turista é
fundamental para entender como os grupos sociais influem e interagem, posto que a
constituição desse olhar depende do grupo social inserido.
O estudo do turismo incorporou, ao longo do tempo, novas discussões e
temas, em consequência das mudanças políticas, culturais, econômicas e sociais.
No âmbito internacional, a área de estudos em antropologia do turismo já possui um
campo consolidado, como apontam Lopez e Marín (2010). Para os autores, o
turismo como tema de investigação tornou-se relevante ao longo dos anos, trazendo
um aporte significativo para a análise de aspectos centrais do mundo
contemporâneo, como a mobilidade a viagem, a produção e o consumo cultural, a
mudança social, a territorialidade, a formação de identidades, entre muitos outros.
Para eles, a expansão acelerada e sistemática da indústria turística, especialmente
dos anos 1970 até a atualidade, se torna uma realidade difícil de ignorar, devido à
importância do turismo em nível internacional, nacional e local.
Rodrigues (2015a) também destaca o campo de estudo no ambiente
internacional e diz que as ciências sociais já consolidaram o turismo como tema
central para compreensão de questões como a dinâmica do capitalismo, a
percepção de conflitos e desigualdades, dentre outros. Contudo, a autora ressalta
que pela grande quantidade de temas que o turismo abarca e a complexidade de
questões que envolvem essa atividade coloca o turismo como um campo aberto à
análise e teorias. Na produção científica atual, Graburn (2009) coloca que os
estudos mais recentes apresentam consequências do desenvolvimento turístico
através da inclusão do reforço cultural, como forma alternativa de emprego; outro
exemplo é o desenvolvimento em regiões isoladas que desacelera o êxodo rural. O
efeito dessa ação é visto como um fator de integração, porque ao invés de ser
apontado como uma força externa que interfere no modo de vida local, os turistas e
o turismo em geral podem se transformar como parte integral da cultura, segundo o
autor. Graburn também diz que a pesquisa contemporânea localiza o
18

desenvolvimento do turismo em razão da relação entre o local e o global, mostrando


as interações decorrentes com os turistas, como também as relações pós-coloniais,
que se tornam muito mais complexas em virtude da ampliação das redes
intermediárias e dos circuitos globais de capital simbólico, cultural e econômico.
Rodrigues (2015a) apresenta autores contemporâneos que abordam
questões importantes, como Kevin Meethan na obra “Tourism in global society:
place, culture, consumption”, que vê o turismo como parte de um processo de
mercantilização e consumo ligado ao capitalismo atual, envolvendo fluxos de
pessoas, capital, imagens e culturas e Eve Chambers, com a obra “Native Tours:
The Anthropology of Travel and Tours”, que propõe uma produção intelectual voltada
à complexidade dos agentes e relações que compõem essa experiência social,
articulando local e global. Por fim, Rodrigues diz que as ciências sociais
incorporaram a questão ambiental à discussão, dialogando com a geografia.
No Brasil, Barretto (2003) coloca que o interesse na sociologia e
antropologia do turismo tem crescido a cada ano, e nos dá exemplos de produções
acadêmicas como a coletânea “Olhares Contemporâneos sobre o Turismo”, do ano
2000, organizada por Célia Serrano, Tereza Luchiari e Heloísa Bruhns2.
Por fim, gostaria de destacar a importância das leituras das obras
indicadas, bem como a leitura realizada para a construção desta monografia. As
leituras que constam na bibliografia contribuíram sobremaneira para o
aprofundamento do meu interesse nessa área de estudos e para ter uma noção das
várias temática que estão interligadas aos efeitos do turismo, em localidades que
exercem essa atividade econômica intensamente. Esta breve apresentação pode
servir como um norte para as primeiras leituras, lembrando o caráter interdisciplinar
que o estudo do turismo traz consigo. Portanto, é importante visualizar essa temática
de forma abrangente. A seguir apresento a metodologia de que me vali para realizar
a pesquisa e construir este trabalho.

2
Barretto diz que Heloísa Bruhns não é cientista social, mas ela tem contribuído nos estudos,
primordialmente dentro das ciências sociais aplicadas ao turismo.
19

CAMINHOS METODOLÓGICOS

O fato de esta monografia ter como recorte empírico uma área litorânea
talvez não seja apenas coincidência ou oportunidade. A chance que me foi dada de
participar de uma pesquisa de cunho antropológico me fez refletir, posteriormente,
de onde veio o interesse em realizar esta pesquisa. Acredito que as ciências sociais
nos permitem fazer ligações e pontes com diversas situações, seja como
experiências de vida ou experiências no campo, que contribuam para nosso
exercício enquanto cientistas sociais. Na antropologia, em particular, a sensibilidade
me foi fundamental para compreender o que me motivou, antes mesmo das leituras
sobre a temática do turismo.
Minha trajetória de vida foi marcada pela proximidade com o mar. Alguns
familiares residem em uma pequena cidade litorânea, próxima a capital Fortaleza,
chamada Paracuru. Durante alguns períodos do ano, eu ia até essa cidade passar
alguns dias, especialmente nos feriados. Na infância, eu ouvia que o mar “curava”
algumas enfermidades respiratórias e eu era acometida de algumas delas, como
asma e alergias. Minha mãe tinha um cuidado especial de me levar para banhos de
mar, sempre que íamos a Paracuru. Ainda hoje, quando vou à praia, sinto que serei
curada de algo. Que as enfermidades do corpo, um pouco cansado, vão embora
junto com as ondas. É uma sensação muito boa e foi interessante reviver esses
momentos enquanto refletia sobre minhas motivações. Talvez o banho de mar não
tenha me ligado a pesquisa desta monografia, mas despertou a origem da minha
proximidade com a praia, nunca percebida antes. É particularmente bonito relembrar
esses fatos. No entanto, a mesma lembrança me remete a outras que acredito
serem importantes de destacar. Nos feriados de Paracuru, a mudança no ritmo de
vida da cidade era notória e gerava algumas alterações. Ruas eram fechadas para
facilitar o trânsito de pessoas, e os mercados não conseguiam suprir a necessidade
dos que iam comprar alimentos e bebidas. Eu me incomodava com as praias lotadas
e a música alta que estourava sempre que vinha um feriado no calendário. Eu não
residia próximo ao centro da cidade, mas me perguntava como seria viver próximo a
essas localidades nesses momentos de efervescência e sentia desagrado ao
imaginar tanto movimento e dificuldade de locomoção próxima a uma residência,
20

ainda que por alguns dias. Vale ressaltar que eram pensamentos aleatórios, nada
baseados em pressupostos teóricos ou metodológicos.
Na universidade, aprendi que devemos ter o rigor científico para atender
às metodologias e dar conta das teorias discutidas e pensadas por tantos estudiosos
e pesquisadores. No entanto, o que me encanta na antropologia é poder encontrar
ligações com o que antes não imaginava ser possível, desenvolvendo uma
sensibilidade que tem me surpreendido na trajetória acadêmica. E esta disciplina
tem me proporcionado essas reflexões. Esse trecho da minha trajetória de vida
serviu de pano de fundo para um evento que, definitivamente, despertou os sentidos
para “ver” o turismo como um “problema” de pesquisa. Antes de ingressar no curso
de ciências sociais, cursei história em outra instituição. A turma de alunos realizou
uma viagem com o professor de uma disciplina, para conhecer cidades históricas do
Ceará. O destino, na época, era o litoral leste, até a cidade de Aracati e algumas
localidades próximas. Pude conhecer a praia do Canto Verde, na cidade de
Beberibe, e o turismo comunitário que é praticado na área. No entanto, o que me
chamou a atenção foi a praia de Canoa Quebrada, no litoral de Aracati. Agradeço ao
professor que conduziu a pequena excursão, foi por meio dele que descobri os
conflitos fundiários que envolviam a localidade e soube da luta das famílias locais
para manterem-se na comunidade.
A praia passou a ser vista com outros olhos por mim, e Canoa Quebrada
foi uma experiência que me apresentou o turismo como um sistema que se
desdobrava em vários âmbitos, ainda nebulosos para meu entendimento. Os
caminhos me levaram até o curso que estou concluindo, felizmente. Por meio da
bolsa de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), pude participar do projeto que realiza
pesquisas em Jericoacoara e, através dessa experiência, desenvolver esta
monografia. Minha pesquisa está vinculada a este projeto maior, que atualmente
realiza um estudo etnográfico em Jericoacoara, acompanhando as políticas de
expansão do turismo e questões ambientais que envolvem a localidade. As
articulações que elaborei com a experiência de campo e as experiências pessoais
me remetem ao que Goldman (2003) diz em seu artigo, sobre ser “afetado” pela
pesquisa, através da experiência de campo. Eu havia sido “afetada” antes de iniciar
esta pesquisa, mas a experiência de campo foi importante para perceber essa
sensibilidade e desenvolvê-la ao longo do trabalho.
21

Após apresentar este lado não tão técnico para a pesquisa (mas
fundamental), pretendo apresentar algumas considerações sobre a etnografia.
Leituras que foram primordiais para que eu me posicionasse como cientista, mas
sem ignorar minha posição como sujeito social que interage, continuamente, com o
meio pesquisado. Geertz (1989) foi uma referência para o entendimento da
etnografia como a base para desenvolver a monografia. A contribuição dele foi do
incentivo em deter maior atenção às observações em campo, às ações operadas no
meio. Geertz discute o papel da etnografia e a descrição densa como uma prática
que aperfeiçoa a pesquisa em campo. O etnógrafo relata, observa e transcreve os
fatos acompanhados por ele. Ele defende que a etnografia não deve apenas se
prender ao relato, a observação, mas sim a uma interpretação do local, do
comportamento, ou seja, é necessário um esforço intelectual numa tentativa de
descrever melhor a ação relatada, portanto, uma descrição etnográfica densa.
Mariza Peirano (2014) considera a etnografia como a base da
antropologia, não havendo antropologia sem pesquisa empírica. Da empiria, o
antropólogo consegue não apenas dados, mas questionamentos, o que ela chama
de “fatos etnográficos”. Outras áreas das ciências sociais, como a sociologia, são
críticas em relação à empiria realizada pela antropologia, propondo uma separação
entre teoria e a pesquisa empírica. A autora diz que atualmente não se faz mais a
oposição teoria/empiria e apresenta que através das leituras de monografias
clássicas foi possível perceber que a história da antropologia representa a fonte
teórica. É na pesquisa de campo que o refinamento da disciplina aconteceu (e ainda
acontece) e não num espaço fechado, virtual. A própria teoria se aprimora ao
confrontar-se com novos dados, com novas experiências de campo. Portanto, ela
acredita que o antropólogo reinventa e repensa a disciplina dentro da pesquisa e
que as etnografias não se reduzem a retratos fiéis da realidade estudada, mas sim a
estudos que trazem contribuições no campo teórico da disciplina.
Quanto às monografias, tópico especial que a autora descreve, elas são
resultado de formulações teórico-etnográficas. Para ela, toda etnografia é também
teoria e aponta os benefícios das leituras de monografia clássicas. Dentre os
benefícios, destaco que as monografias nos permitem perceber que a etnografia é
parte do empreendimento teórico da antropologia. A etnografia, dentro de um
questionamento, já possui um caráter teórico, porque a indagação etnográfica é o
que nos faz questionar os pressupostos vigentes. A etnografia, portanto, não entra
22

como detalhe metodológico, mas como a base sólida para o exercício da pesquisa
de campo. Boas etnografias, segundo a autora, respondem três condições:
consideram o contexto da situação, transformam o que foi vivido no campo,
transformando experiência em texto e detecta a eficácia simbólica das ações de
forma analítica. Uma boa etnografia deve ultrapassar o senso comum quanto ao uso
da linguagem, de que é apenas referencial, de “dizer” e “descrever” uma palavra ou
coisa. As palavras trazem consequências, realizam tarefas, comunicam e produzem
resultados. É dessa forma que a pesquisa de campo é escrita, através dos diálogos
vividos. (Peirano, 2014)
Para dar coro às pertinentes explicações de Peirano, tomo como
referencial de leitura e reflexão Cardoso de Oliveira (2000), que nos fala sobre a
dinâmica da tríade mais emblemática do exercício etnográfico: olhar, ouvir e
escrever. As faculdades do entendimento, percepção e pensamento, associam-se
com o olhar, o ouvir e o escrever para ampliar o espectro cognitivo que envolve as
ciências sociais, elaborando o conhecimento próprio das disciplinas sociais. Uma
vez que construímos o saber, as faculdades aparecem para nos prover de um
caráter particular. Assim, enquanto no olhar e no ouvir “disciplinados” (isto é, dentro
da disciplina antropológica) realiza-se a percepção, é no escrever que haverá o
exercício do pensamento.
Segundo o autor, a partir do momento em que nos sentimos prontos para
iniciar a pesquisa empírica, e conseguimos delimitar o objeto de estudo, ele sofre
uma alteração pelo nosso modo de visualizá-lo, ou seja, há um esquema conceitual
que apreendemos no percurso acadêmico (daí o nome de “disciplina”) que forma
nossa maneira de ver a realidade. O objeto, portanto, não está isento de sofrer uma
“refração” por meio desse esquema conceitual, e tal fenômeno acontece em outros
atos cognitivos, mas no olhar ele é mais compreendido.
Entretanto, para dar conta da natureza das relações sociais, apenas o
exercício do olhar não é suficiente, é preciso ouvir para obter mais dados. Como o
ouvir também é pré-concebido (como o olhar), ele elimina ruídos que não façam
sentido dentro do escopo teórico no qual o pesquisador foi treinado. Dentro dos
saberes do ouvir está a entrevista, que pode ser entendida como um “ouvir
especial”. É nas entrevistas que o antropólogo compreende os sentidos para os
sujeitos da pesquisa e da significação que ele construirá por meio do pensamento
antropológico. Cardoso de Oliveira também propõe que se modifique a relação entre
23

“pesquisador/informante”, tornando o informante um “interlocutor”. Estabelecendo


essa relação, ambos tornam-se interlocutores, o pesquisador ouve o entrevistado e
é igualmente ouvido. Também em relação ao ouvir, Cardoso de Oliveira nos fala da
observação participante, que é a interação e aceitação do pesquisador pelos sujeitos
da pesquisa, de modo que ele realize sua etnografia.
Finalizando a tríade, o ato de escrever surge como sendo a conformação
final do produto da pesquisa e nesse caso a questão do conhecimento é ímpar. A
textualização é a transferência de dados vistos e ouvidos para o plano da escrita. O
pesquisador realiza uma interpretação do que foi pesquisado baseado nas
categorias ou conceitos básicos constitutivos da disciplina, mas essa autonomia na
interpretação não está desvinculada dos dados. Portanto, Cardoso de Oliveira
conclui que o olhar e o ouvir constituem a percepção da realidade focalizada na
pesquisa empírica, e o escrever está ligado ao pensamento, uma vez que o
exercício da escrita é paralelo ao exercício do pensamento.
Na discussão pós-moderna da antropologia quanto à coautoria da
pesquisa, Peirano (1995) destaca a hierarquia na pesquisa de campo onde, por
exemplo, ou a pesquisa é aceita pelos nativos ou a pesquisa etnográfica não
acontece. É o campo que vai dizer se o pesquisador poderá realizar sua pesquisa. A
autora diz que a coautoria na relação pesquisador-nativo, por exemplo, já acontece
no âmbito teórico da produção etnográfica, ou seja, a coautoria serve para manter a
fidelidade do pesquisador e suas categorias. Ela também nos diz o quão importante
é a pesquisa etnográfica, porque é na ida ao campo que a teoria antropológica se
desenvolve e consolida, quando a teoria que o pesquisador levou a campo entra em
confronto com o que é encontrado na observação.
Para Goldman (2003), o trabalho de campo representaria para o
antropólogo “um único modo de operar a síntese de conhecimentos obtidos de forma
fragmentada e condição para a justa compreensão até mesmo de outras
experiências de campo”. Segundo o autor, a antropologia elaboraria uma ciência
social do observado. Ele traz uma discussão pertinente sobre a abordagem
contemporânea da antropologia, que apresenta “novos métodos” de pesquisa. O
autor diz que as novas abordagens realizam observação contínua e longos períodos
de estadia seriam substituídos por pesquisas em que a permanência em campo
ocorre num caráter intermitente, intervalado. Essa configuração é apresentada por
ele como uma “etnografia em movimento”, em que o pesquisador não permanece no
24

campo continuamente, mas em períodos menores, só que dentro de um longo


prazo. Contudo, o autor destaca que esse estilo de trabalho de campo não se opõe
e nem dispensa “o tipo tradicional de etnografia à Malinowski” (Goldman, 2003).
Considero que as estadias realizadas em Jericoacoara detém esse
caráter intermitente na pesquisa apontado por Goldman. A equipe permanecia na
vila por alguns dias, e voltava meses depois para continuar as atividades. Quando
não estávamos em campo, procurávamos todos os tipos de informações relevantes
sobre a vila, como notícias e eventos. A etnografia continua para além do campo.
Outra nova abordagem que Goldman (1999) destaca é do verdadeiro
sentido que a observação participante adquire, quando antes a antropologia
tradicional entendia como “observação direta”. É possível exemplificar a observação
participante com um evento que aconteceu durante a pesquisa de campo. Em uma
das últimas viagens da equipe, participamos de um mutirão de limpeza de alguns
becos em Jericoacoara, realizado por um grupo de pessoas que, na época, estava
organizando a criação de uma associação. O ponto importante de destacar neste
evento é o processo de inserção que os membros da equipe experimentaram nessa
ação conjunta. Esse momento marcou a pesquisa de campo, no sentido de que
quando voltamos à vila, meses depois, as pessoas que nos convidaram para o
mutirão nos reconheceram e conversaram conosco, ainda que brevemente.
Por fim, a última nova abordagem que Goldman coloca é que a
observação direta e contínua se torna “observação flutuante”, que tem ligação com a
“etnografia em movimento”, por tratar desse fluxo, de um envolvimento intervalado
na pesquisa de campo. Tais considerações de Goldman foram fundamentais para
entender o caminho que a abordagem contemporânea da antropologia propõe. Ele
diz que o movimento contemporâneo pretende superar os modelos diacrônico e
sincrônico da antropologia clássica e moderna, consecutivamente.
Nesse sentido, Goldman diz que a antropologia pode dedicar-se ao
estudo de tramas em que tempo e espaço não são imprescindíveis, mas um meio
em que a trama acontece. O autor reforça que o objeto de uma investigação
antropológica não pode ser confundido com o lugar ou o período que incide sobre
esse objeto. Esses “objetos”, segundo ele, são processos, tramas e o que ele chama
de “objetivações”. Compreendo que o movimento contemporâneo traz maior fluidez
de ideias, assumindo um caráter dinâmico para pessoas, tempo e lugar. As
abordagens trazidas por Goldman me levaram a um entendimento de como o mundo
25

está conformado por deslocamentos e mudanças constantes. Segundo o autor, não


basta pensar no objeto de investigação “preso” a um período e lugar, mas sim na
capacidade de articulações que esses processos (objetos) podem adquirir em outros
níveis e em relação com outros objetos. Ao longo do trabalho, o leitor entenderá que
Jericoacoara é uma vila que concentra fluxos de pessoas e culturas. No entanto,
quando o pesquisador visualiza os sujeitos da pesquisa sem estar vinculado a um
lugar, percebe que as possibilidades de articulação aumentam, proporcionando um
maior entendimento da realidade, como Goldman coloca. Contudo, o autor também
destaca que espaço e tempo não são totalmente desconsiderados. Ele propõe uma
fluidez de ideias, mas isso não traz a liberdade de se pesquisar qualquer coisa em
qualquer contexto.
As leituras realizadas para pensar a metodologia do trabalho acarretaram
em reflexões sobre a posição que o pesquisador se encontra, diante do campo e de
como ele tratará a riqueza de dados e informações que a trama proporcionou.
Compreendo que a metodologia não se apresenta na explicação do que é
etnografia. A forma como a pesquisa foi realizada, as experiências de campo
relatadas e a construção do trabalho é que compõem a etnografia. Ela finaliza
juntamente com a escrita. No fim, não bastará ter apresentado autores e conceitos
se os exercícios realizados em campo não forem relacionados e perceptíveis ao
longo trabalho, já que “o ato de escrever modifica aquele que escreve. Na
antropologia, a leitura das notas e dos cadernos de campo, a imersão no material
colocado e, principalmente, a própria escrita etnográfica revivem o trabalho de
campo, fazem que sejamos afetados de novo” (Goldman, 2003).
Para concluir a introdução desta monografia, gostaria de apresentar
brevemente o material que a compõe. Foram realizadas entrevistas abertas com
comerciantes e prestadores de serviços da localidade e pessoas que trabalham nos
estabelecimentos (ver Anexo A). Para manter o sigilo, os interlocutores não serão
identificados nas citações que serão apresentadas na monografia, ou seja, os
nomes serão substituídos. Também foi realizado um censo sobre os comerciantes
do turismo na vila, trazendo dados como origem do proprietário do negócio turístico,
administração do negócio, tempo do estabelecimento, residência, e outros dados.
Esse ponto será detalhado no capítulo referente à apresentação dos dados
coletados.
26

O capítulo um tratará da história de Jericoacoara e das impressões de


campo ao longo da pesquisa. O capítulo dois será dedicado a apresentar
brevemente a importância do turismo na configuração do capitalismo
contemporâneo e mostrar dados sobre as políticas de turismo no Brasil,
especialmente no Ceará. Por fim, o terceiro capítulo apresentará os comerciantes e
prestadores de serviços de Jericoacoara, sua posição na cadeia produtiva do
turismo e um estudo sobre as relações que eles estabelecem com a localidade, no
âmbito econômico, político e social.
27

2. JERICOACOARA: A CONSTRUÇÃO DA VILA E SUA TRANSFORMAÇÃO EM


DESTINO TURÍSTICO

Este capítulo é dedicado ao histórico da vila de Jericoacoara, localidade


onde a pesquisa de campo foi realizada. O primeiro tópico tratará sobre a história de
Jericoacoara, até onde a bibliografia me permitiu conhecer. As informações
referentes ao histórico da vila datam do século XVI até os dias de hoje, como a vila
está conformada. O segundo tópico tratará das experiências de campo e impressões
do local, de modo que facilite “visualizar” a vila e entender o contexto em que se deu
a pesquisa de campo.

2.1. Histórico da localidade

A história do surgimento da vila de Jericoacoara começa antes da sua


nomeação como vila e envolve mudanças nos termos que referem à localidade. Na
tese de Clerc-Renaud (2002), a autora nos diz que na sua pesquisa com moradores
antigos do local, Jericoacoara era denominada “Serrote”. A pesquisa de Clerc-
Renaud foi realizada entre a década de 1980 e 1990 e, de acordo com ela, o nome
“Serrote” foi colocado pelos então habitantes da localidade. Essa explicação nos traz
outras referências no que diz respeito à origem do nome “Jericoacoara”. Os registros
mais antigos que fazem referência a Jericoacoara datam do século XVI e XVII
(Clerc-Renaud, 2002; NUGA, 1985; Lima; Silva, 2004) e de acordo com estes
autores, o nome é de origem indígena, tupi, que significa “baía das tartarugas” ou
“refúgio das tartarugas”, fazendo referência às tartarugas que colocavam seus ovos
na praia da região. De acordo com o Núcleo de Geografia Aplicada de Universidade
Estadual do Ceará (NUGA) (1985), são apresentadas diversas terminologias por
meio das quais os viajantes de outros períodos descrevem a localidade:
Gericoacoara, pelo capitão-mor Alexandre Moura, em 1615; Jaracoara para Gaspar
de Sousa e Diogo de Campo utiliza o termo Geriguaguara.
Clerc-Renaud (2002) descreve que os nativos dão outro significado ao
termo Jericoacoara, além do mencionado, mas que também refere a algum animal.
O primeiro seria um significado próximo de “jacaré em banho de sol” e o segundo
seria referente ao burro, porque a origem do nome Jericoacoara seria do termo
“acuara” e teria uma tradução aproximada de “burro”. Também de acordo com Clerc-
28

Renaud (2002) e Fonteles (2000) Jericoacoara já havia sido mencionada na obra


“Iracema”, de José de Alencar, que se refere ao lugar como “refúgio dos papagaios”.
Podemos perceber a riqueza que o nome “Jericoacoara” carrega no seu histórico de
significados e referências; no entanto, gostaria de destacar a fala de Clerc-Renaud
(2002) quando diz que havia dois nomes para o mesmo lugar. Ela nos diz que o
lugar era conhecido como “Serrote” em referência ao monte rochoso que quebra a
continuidade das praias da região, sendo um diferencial da paisagem. Nas
entrevistas com moradores locais da época da pesquisa de Clerc-Renaud, eles
diziam que o lugar era conhecido como “Serrote”, inclusive nas regiões próximas. A
autora diz que a predominância do termo “Jericoacoara” veio com a chegada do
turismo, na década de 1980; os nativos usavam o nome “Jericoacoara” quando
tratavam com turistas, mas entre eles usaram por muitas vezes o termo “Serrote”.
Para finalizar a explicação de porque o termo “Jericoacoara” ter se
sobressaído sobre “Serrote”, Clerc-Renaud diz que apesar de dados históricos
mostrarem que o nome “Jericoacoara” existe há mais tempo que “Serrote”, o
primeiro não prevaleceu na comunidade local que crescia. O uso do nome
“Jericoacoara” fortaleceu na década de 1980, através de agências e guias de
turismo. Posteriormente, o leitor observará que os termos tratados até o momento
possuem uma conexão com o histórico de ocupação da vila. Por fim, é importante
destacar uma observação que Clerc-Renaud faz no seu trabalho: ela diz que
“Jericoacoara” é um nome que veio de fora, de outros oceanos, através de
historiadores e viajantes; “Serrote” surgiu pelas pessoas que se instalaram no local,
a partir de um período de ocupação.
Passemos, então, a tratar da história de fundação da vila e de como se
deu a sua ocupação. No que diz respeito à fundação da vila, as referências também
são variadas, muitas informações são similares e algumas merecem destaque.
Clerc-Renaud (2002) nos apresenta dados que relacionam os primeiros moradores
da região aos índios Tremembé, que datam do século XVII. Há poucas informações
sobre a ocupação dos índios Tremembé naquela região, o que a autora nos diz
através da sua pesquisa é que os Tremembé faziam parte de um povo instalado
anteriormente no Nordeste, que seguiu para a costa. Também relata a “Guerra dos
Bárbaros”, um período de forte resistência dos índios da nação Cariri contra a
dominação dos portugueses, sendo os Tremembé um subgrupo da nação Cariri. A
autora não detalhou os conflitos desencadeados na segunda metade do século XVII,
29

mas o que é importante de se destacar desse momento histórico é que esses


conflitos chegaram até os índios que estavam na costa cearense. Os que
sobreviveram agruparam-se nos arredores de Camocim, que é município vizinho a
Jericoacoara. Clerc-Renaud (2002) também nos informa que tais acontecimentos do
passado deixaram poucos vestígios na memória local. Quando a autora mencionava
a presença indígena na área, os moradores confirmavam, mas se referiam a um
passado distante, sem ligações.
Continuando a excursão pelo histórico da localidade, em 1613 houve a
construção de um forte que serviu como base para operações militares (NUGA,
1985; Fonteles, 2000; Clerc-Renaud, 2002) em um período turbulento da conquista
portuguesa. A “Jornada do Maranhão”, liderada por Gaspar de Sousa, foi uma
expedição que tinha o intuito de combater os franceses nas costas brasileiras. Um
dos encarregados da expedição, Jerônimo de Albuquerque, fundou o forte de Nossa
Senhora do Rosário, aos pés do serrote. Um ano após a construção do forte, este foi
destruído pelos que o construíram. Clerc-Renaud (2002) relata que houve a
construção de mais um forte, em 1639, pelos holandeses; no entanto, com os
conflitos que resultaram na expulsão da força militar holandesa no Ceará, o forte foi
destruído novamente. Pelo que podemos perceber, o século XVII foi um período
turbulento naquela área; tivemos relatos de conflitos indígenas, conflitos entre
europeus e fundação de um forte na região de Jericoacoara, aos pés do serrote. No
entanto, posterior a esses acontecimentos houve um esvaziamento da localidade.
As referências bibliográficas de que estou me valendo e nas pesquisas sobre o
histórico da vila, não trazem informações sobre o que aconteceu na região entre os
séculos XVII, após a destruição do forte, e o início do século XX. Clerc-Renaud
(2002) acredita que não houve uma continuidade da ocupação humana após a
criação do forte de base militar, fazendo com que o lugar tenha voltado a ser um
ponto de referência e abastecimento de água para os navegadores. Outros autores
também relatam a falta de informações desse período histórico. Fonteles (2000) diz
que após a destruição do forte de Nossa Senhora do Rosário, o lugar ficou
abandonado por dois séculos, e de acordo com Lima e Silva (2004) o povoado ficou
conhecido como Vila do Serrote e manteve-se parado durante séculos. Por fim, de
acordo com pesquisa feita pelo NUGA (1985) não foi possível colher dados
referentes à vila em períodos anteriores, as informações que eles conseguiram foi
através de moradores antigos, que dizem ser os primeiros da vila, a partir de 1910.
30

Assim, gostaria de salientar uma observação que Clerc-Renaud faz ao fim


da explicação desses períodos na história de Jericoacoara. Havia dois nomes que
denominavam o mesmo lugar, “Serrote” para os nativos e “Jericoacoara” para os
que vinham de fora. A autora diz que esses dois nomes estão conectados com duas
etapas históricas da ocupação da localidade. O primeiro momento, já apresentado,
foi marcado por conflitos e a fundação do forte. O termo Jericoacoara está ligado a
esse período da ocupação, o que também explica o fato do termo ter vindo “de fora”,
já que foram registrados por viajantes e historiadores3. O segundo momento de
ocupação está ligado ao termo “Serrote”, denominação que os primeiros moradores
deram a localidade, como Clerc-Renaud (2002) nos diz anteriormente. Findado este
esclarecimento, podemos dar continuidade à história de ocupação da vila, passando
para a segunda etapa e seguindo até a atualidade.
As informações disponíveis sobre a ostensiva ocupação e
desenvolvimento de Jericoacoara datam do fim do século XIX e início do século XX
e são fortemente ligadas ao crescimento da pesca na região. Fonteles (2000) diz
que cinco famílias começaram a habitar a região naquele período: Paulino, Osório,
Francisco Mundaú, José Vicente e Diogo Martins. Clerc-Renaud (2002) também diz
que os primeiros moradores chegaram nesse período. De acordo com a pesquisa
feita pelo NUGA (1985), os moradores idosos da vila diziam que a pesca era a
principal atividade da época. Eles destacam ciclos da pesca, que eram marcados
pelo controle de uma única pessoa. Entre 1921 e 1939, Antônio Zeferino concentrou
a economia do lugar. Além desses dados, é importante salientar que nesse mesmo
período Jericoacoara tornou-se distrito de Acaraú, pela Lei Municipal nº 94, de 29 de
junho de 1923 (NUGA, 1985) e que um farol foi construído no topo do serrote, em
1922, e serve como referência até hoje para embarcações que transitam por aqueles
mares (Clerc-Renaud, 2002). Por fim, Lima e Silva (2004) dizem também que o
povoado foi elevado à categoria de vila pelo Decreto Federal nº 311, de 02 de março
de 1938.
De 1940 até 1950, Bertholdo Alves conduziu a pesca local e até a
primeira metade do século XX o intercâmbio comercial possibilitou que Jericoacoara
tivesse dois armazéns que estocavam farinha e goma, que atendiam a demanda das

3
Além das referências anteriores que dizem que o termo Jericoacoara era encontrado em
documentos históricos do século XVII em diante, Galvão (1995) também diz que o “Jericoacoara”
aparece em mapas da costa brasileira desde o século XVI, em sua forma indígena ou na tradução
portuguesa.
31

embarcações que chegavam à costa da vila (NUGA, 1985). Da década de 1960 até
o fim da década de 1970, Olavo Vasconcelos controlou a pesca no local, de acordo
com NUGA (1985); fato também ressaltado por Fonteles (2000), que diz que a pesca
em Jericoacoara teve um momento de grande desenvolvimento entre 1965 e 1973.
Neste período, havia cinco barcos e sessenta canoas e ali foi instalada uma fábrica
de conserva de peixe. Após a morte de Olavo Vasconcelos, que dominava a pesca
local sendo o dono das lanchas e principal comercializador da produção, essa
atividade começou a declinar em Jericoacoara. Essa informação também pode ser
confirmada atualmente. Nas entrevistas que realizei durante a pesquisa de campo,
um dos interlocutores mencionou esse quadro de ascensão e declínio da pesca,
citando Olavo como um dos principais produtores locais no passado. Um dado
importante trazido por Clerc-Renaud (2002) apresenta que os primeiros turistas que
conheceram Jericoacoara chegaram em 1979 e, de acordo com os moradores que
foram entrevistados, eram estudantes de Fortaleza que vinham em pequenos
grupos.
Por fim é importante destacar alguns detalhes que Rodrigues (2015b)
apresenta. De acordo com ela, até a década de 1970, Jericoacoara era uma
comunidade cujas atividades resumiam-se a pesca e agricultura, tendo prioridade
para a primeira, dado que também foi possível registrar nos relatos dos outros
autores. A infraestrutura da pequena localidade era precária, não havia farmácias,
posto de saúde, escola, posto policial, ou qualquer outro indício da presença do
poder público.
Do período que se estende da década de 1980 até os dias atuais é
possível apresentar dados mais detalhados da localidade e algumas mudanças. Em
1985 a vila passou a pertencer ao município de Cruz; alguns anos depois, Jijoca de
Jericoacoara foi elevada à categoria de município em 1991 e a vila tornou-se distrito
de Jijoca pela Lei nº 11.796, de 06 de março de 1991 (Molina, 2007; Lima; Silva,
2004). No que diz respeito à população de Jericoacoara, as informações recolhidas
datam da década de 1980 em diante. Fonteles (2000) e Galvão (1995) dizem que
Jericoacoara contava com 731 habitantes (354 homens e 377 mulheres) até os anos
1980. De acordo com levantamento feito pelo NUGA (1985), em 1984 este número
reduziu a 580, sendo 48,8% na faixa etária de 0 a 15 anos. No ano de 1989, Galvão
atestou que havia 650 moradores na vila e Molina (2007) apresenta em sua
pesquisa um levantamento que atesta 1650 habitantes na vila em 2003, tendo
32

aumentado em 2006 para 2328 habitantes. Os dados mais recentes sobre a


população de Jericoacoara estão agregados aos dados de Jijoca de Jericoacoara,
que tem 17.002 habitantes, de acordo com o Censo Demográfico de 2010 do IBGE,
como mostra Rodrigues (2015b). A autora diz que o elevado percentual da
população rural de Jijoca (67,3%) mostra que os habitantes de Jericoacoara estão
dentro deste percentual.
Sobre informações no período da década de 1980, temos que no ano de
1984, o Decreto Federal nº 90.379 de 29 de outubro de 1984 tornou a região de
Jericoacoara uma Área de Proteção Ambiental (APA), com 5.480 hectares de
extensão. O decreto que institui a região de Jericoacoara como APA estabeleceu
limites geográficos, medidas para implantação e funcionamento, e as proibições e
restrições ao uso dos recursos ambientais; o mesmo decreto também designou o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
como a instituição responsável pela supervisão, fiscalização e administração da
área. As leis que regem as Unidades de Conservação são importantes para se
entender como se institui determinada localidade para se tornar uma área de
preservação.
No que diz respeito à APA, a Lei nº 6.902 de 27 de abril de 1981 diz que
uma APA tem como finalidade assegurar o bem-estar das populações humanas e
conservar as condições ecológicas locais. Para tanto, a Instrução Normativa nº 04
de 15 de maio de 1992, criada pelo IBAMA, trata do gerenciamento da APA de
Jericoacoara. De acordo com Lima e Silva (2004), esta Instrução Normativa
determinou a divisão da APA em oito Sistemas de Terra. Dentre os Sistemas de
Terra existentes, aquele que será importante para esta pesquisa, ao qual estarei
dando maior atenção, é o Sistema de Terra VIII, que trata da Vila de Jericoacoara,
da parte povoada da APA. O destaque na descrição da Instrução Normativa que
rege a APA de Jericoacoara é que estas instruções proíbem novas ocupações e
assentamentos rurais ou urbanos, exceto no Sistema de Terra VIII. Apesar do rigor
da lei, os resultados não foram alcançados. Lima e Silva alegam que moradores de
maior poder aquisitivo passaram a reivindicar áreas com potencial de investimento, e
as tomaram de forma ilegal.
Outro ponto que considerei importante destacar é que na leitura do
trabalho realizado pelo NUGA (1985), eles apresentam algumas medidas gerais e
aspectos que consideram ser necessário aprofundar em pesquisas futuras. Nessas
33

medidas, o turismo entra como uma atividade que deve ser controlada, mas que
deve ser objeto de desenvolvimento e investimento em infraestrutura, como
pousadas, dentro das condições locais. Esse ponto apresentado pela pesquisa do
NUGA reforça a informação de que naquela época já havia uma movimentação do
fluxo turístico que fez com que a equipe que estudou da localidade destacasse o
turismo como uma atividade econômica importante.
Nesse período que estamos tratando, da década de 1980 e da instituição
da APA, também houve a divulgação da localidade na mídia internacional. De
acordo com Rodrigues (2015b) e Silva, Lopes e Costa (2010) na década de 1980
uma reportagem do jornal americano The Washington Post, indicou Jericoacoara
como uma das mais belas praias do mundo; após a veiculação dessa notícia, a
movimentação para conhecer a vila intensificou e as primeiras pousadas começaram
a se instalar. O crescimento da população local e o aumento no fluxo de turistas na
vila acarretaram na construção de hotéis de grande porte, juntamente com o
desenvolvimento das atividades voltadas ao turismo. Como destaca Rodrigues
(2015b) as atividades turísticas estão articuladas a infraestrutura do modo de vida
local, as ruas não têm calçamento e algumas práticas tradicionais foram mantidas. O
turismo que era praticado naquele momento ainda estava em consonância com o
modo de vida local, tratando-se de um turismo voltado a conhecer as paisagens
naturais da localidade. Outra informação importante diz respeito à criação do
Conselho Comunitário de Jericoacoara, criado em 1989 por nativos da localidade.
De acordo com Fonteles (2000), o objetivo inicial era defender a APA de
Jericoacoara e era formada apenas por nativos. Com o passar do tempo, moradores
da vila que vieram de fora também puderam se associar desde que atendessem a
condição de serem residentes de Jericoacoara por, no mínimo, cinco anos.
Atualmente o Conselho continua ativo e apresenta algumas informações importantes
que serão apresentadas no decorrer desta monografia.
Dando continuidade à apresentação dos fatos importantes sobre
Jericoacoara, a regularização fundiária que ocorreu quando a região ainda era uma
Área de Proteção Ambiental também é um fato relevante a explicar. A Lei 12.760/97
de 04 de dezembro de 1997, regulamentada pelo Decreto 24.881/98 de 24 de abril
de 1998 (ver Anexo B), determinou o registro das terras em nome do Estado do
Ceará, com a criação de uma comissão especial composta pelo Instituto de
Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE) e pela Superintendência do Meio
34

Ambiente do Ceará (SEMACE) para supervisionar os trabalhos, de modo que as


terras fossem regularizadas e os posseiros recebessem os títulos de propriedade de
seus lotes. A comissão especial determinada pelo decreto foi ampliada, passando a
incluir moradores antigos, nativos, representantes do comércio local e estrangeiros
residentes4. Esta comissão fez um levantamento dos lotes, registrando seus
respectivos donos e atestando posse legítima. Assim a regularização fundiária foi
concluída e os posseiros receberam os títulos de propriedade. Para tanto, também
foi realizado um levantamento de dimensão exata de todas as posses existentes na
época, delimitando cada lote existente. Esse processo iniciou em 1998, quando o
decreto para formar a comissão especial foi lançado e findou no ano 2000, quando
todas as marcações foram feitas.
Voltando aos momentos importantes na história da vila, destaco agora a
criação do Parque Nacional de Jericoacoara (Parna Jericoacoara). Como dito
anteriormente, a vila de Jericoacoara fazia parte de uma APA que, segundo o
Decreto Federal nº 90.379 de 29 de outubro de 1984, foi criada com o objetivo de
preservar os ambientes ecológicos, proibir a construção de edificações que
descaracterizassem ou prejudicassem a paisagem natural típica do local, além de
possibilitar a comunidade residente o exercício de suas atividades e a utilização dos
recursos dentro dos padrões estabelecidos, de forma harmônica. Arruda (2007) diz
que apesar dos esforços para que a unidade de conservação fosse utilizada de
modo sustentável, o ambiente encontrou-se seriamente ameaçado pelo uso e
ocupação desordenados. Assim, o Decreto Federal nº 9492 de 04 de fevereiro de
2002 estabeleceu uma recategorização da área, transformando grande parte
daquela região no Parque Nacional de Jericoacoara, sob a gerência do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) (Molina, 2007).
Posteriormente, a Lei nº 11.486, em vigor desde 15 de junho de 2007,
estabelece que os 8.416,08 hectares do Parque ganhem 400 hectares de proteção
legal5. Essa redefinição dos limites do Parna Jericoacoara extinguiu a APA de
Jericoacoara e o Parque Nacional passou a ter uma área total de 8.850 hectares. No
4
Todas as informações referentes à regularização fundiária foram coletadas no website do Conselho
Comunitário de Jericoacoara, bem como o Anexo B, que trata sobre o Diário Oficial do Estado do
Ceará, apresenta a Lei 12.760/97 e o Decreto 24.881/98. Disponível em:
<http://www.jeri.org.br/news/conselho-solicita-reuni%C3%A3o-urgente-com-
superintend%C3%AAncia-do-idace-para-intervir-em-invas%C3%B5es-em-jericoacoara/>. Acesso
em: 27 dez. 2015.
5
Informação disponível em: <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/apa-e-
extinta-e-parque-nacional-tem-ampliacao-1.14161>. Acesso em: 06 jan. 2016.
35

mesmo período de mudanças, as obras de saneamento básico da Companhia de


Água e Esgoto do Ceará (CAGECE) foram executadas, concluindo a canalização
pelas ruas de Jericoacoara. Assim, foi possível construir uma Estação de
Tratamento de Esgoto (ETE) na localidade. De acordo com Arruda (2007), a Lei nº
9.985, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), diz que
os parques nacionais têm o objetivo de preservar os ecossistemas naturais, sendo
possível apenas pesquisa científica, atividades de educação ambiental e turismo
ecológico. Sendo assim, não é permitida a construção de moradias ou mesmo que
pessoas utilizem os recursos dessas áreas para uso direto.
É importante ressaltar que a vila de Jericoacoara não faz parte do Parque
Nacional de Jericoacoara. Como a instituição do parque ocorreu após o surgimento
da vila, houve uma delimitação de sua área. Portanto, para chegar ao vilarejo, é
necessário passar por dentro do parque, em áreas onde é permitido realizar o
trajeto. Através desse caminho todo o abastecimento da vila é realizado, como
alimentos, combustíveis e material de construção, além do intenso fluxo de veículos
que transportam moradores, turistas e pessoas que trabalham na vila diariamente.
Jericoacoara adquire uma característica singular com essa delimitação espacial. Ela
se torna uma “ilha”, estando cercada por uma Unidade de Conservação e,
consequentemente, a expansão da área da vila está impedida. No mapa abaixo, é
possível ver as entradas do parque nacional, sua área de alcance e a demarcação
da vila de Jericoacoara:
Figura 1 – Parque Nacional de Jericoacoara

Fonte: ICMBio
36

Até o momento, o leitor conseguiu ter uma clara noção da trajetória


histórica de Jericoacoara. Apresentei alguns dados sobre a fundação da localidade e
características da vila ao longo das décadas, até chegar aos dias atuais. Contudo,
não apresentei de modo detalhado o turismo que está conformado atualmente na
vila. O objetivo de ter deixado esse aspecto por último é que pretendo apresentar, a
partir de agora, as minhas impressões dentro do campo, que estarão ligadas ao
turismo, pois quando conheci Jericoacoara, sua configuração como um local turístico
estava já bem consolidada.

2.2. Jericoacoara: um “oásis” cearense?

A primeira vez que visitei Jericoacoara foi em junho de 2011, como turista.
Viajei acompanhada e fui ao local passar o final de semana. O trajeto de Fortaleza
até Jijoca de Jericoacoara, município do qual a vila é distrito, dura em torno de sete
horas. A distância entre as cidades é de 320 quilômetros. Depois de chegar à cidade
de Jijoca de Jericoacoara, os passageiros pegam uma condução para chegar até a
vila. Lembro-me que eu estava muito animada. Nunca tinha viajado dessa forma, os
carros que levavam os turistas de Jijoca a Jericoacoara eram carros D20 adaptados
para levar mais pessoas e também havia caminhões menores que foram adaptados
para levar muitos passageiros de uma vez. Não parecia seguro, mas era divertido,
despertava um sentido de aventura. O trajeto dura quase uma hora. Passamos por
uma parte da zona rural de Jijoca, até atravessarmos uma das entradas do Parna
Jericoacoara e entrarmos numa região repleta de árvores grandes, pequenas e um
areal imenso. O caminho entre as árvores era de difícil de tráfego, em razão da areia
fina. Se o motorista não fosse experiente, facilmente atolaria ali. Depois de passar
por esse trecho arborizado, desembocamos numa parte aberta de muitas dunas e
ventos fortes. A praia que surgiu ao lado das dunas era belíssima, conhecida como
praia do Preá. Muitas pessoas, inclusive eu, tentavam tirar fotos da paisagem,
mesmo com o balançar da condução. Algumas vezes pensei que fosse cair, mas
pouca gente manifestava medo, a maioria estava se divertindo bastante. Na
condução também viajava um grupo animado de turistas e todos estavam
empolgados, falando sobre um festival que aconteceria na vila. Eu e minha
companhia não sabíamos desse festival, mas depois descobrimos ser um evento de
música e moda, que tornou a vila bem movimentada.
37

Depois de passar por algumas dunas, a condução seguiu um caminho


aberto, de terra mais baixa e gramado. Fiquei encantada com a diversidade de
paisagens num simples trecho. Nessa parte, já estávamos nos aproximando da vila.
Pude avistar o farol no alto do serrote, alguns animais domésticos e silvestres, como
jumentos e pássaros, especialmente o carcará. Adoro encontrar essa ave, me
lembro de Maria Bethânia e sua canção, “Carcará”. Um pouco mais à frente, avistei
um coqueiral. Disseram que estávamos chegando em “Jeri”. A primeira imagem que
me veio à mente foi de um oásis.
Logo na entrada da vila, vê-se um grande estacionamento. Nesse dia,
estava um pouco cheio. A condução passou rapidamente por um trecho de casas
pequenas e, logo em frente, uma área grande sem árvores ou praça, como um
pequeno areal. Não reparei nesse cenário com detalhes, eu queria chegar logo no
centro e ver a boniteza que muitas pessoas me tinham falado antes da viagem.
Muitas D20 também estavam chegando junto conosco. As impressões que tive
desse final de semana em Jericoacoara foram as melhores possíveis. As lojas eram
muito bonitas e coloridas e a comida era deliciosa. Optei por conhecer um
restaurante de morador local, mas também frequentei restaurantes conhecidos da
localidade. O ambiente noturno estava muito diferente, em razão do festival. Um
palco imenso havia sido montado na beira da praia, e muitas pessoas transitavam
no local. O clima era agradável, de modo geral. Realizei um passeio pelas praias e
lagoas vizinhas, visitei a Pedra Furada (um importante ponto turístico do local), andei
pelo centro comercial da vila a noite e de madrugada. Achei que tinha encontrado
um paraíso e não via a hora de voltar novamente.
Dois anos após essa viagem, em 2013, ingressei em uma equipe de
pesquisa com bolsa de Iniciação Científica (IC) e o projeto tinha Jericoacoara como
uma das localidades a ser pesquisada. Agora, minha perspectiva estava mudando.
Eu sabia que quando fosse à vila novamente, já não poderia mais olhar os cenários
com um “olhar de turista”, mas procurar enxergar os detalhes, o que talvez tenha
passado despercebido por mim na primeira vez. Como pesquisadora, preciso
exercitar o “olhar”, para desenvolver o que Roberto Cardoso de Oliveira (2000) nos
diz também sobre o “ouvir” e o “escrever”, as três ferramentas fundamentais de um
antropólogo.
A primeira viagem que realizei com a equipe de pesquisa ocorreu em
outubro de 2013. Ao todo, viajei oito vezes para Jericoacoara, com uma duração
38

mínima de três dias e máxima de dez dias. O que apresentarei daqui em diante diz
respeito àqueles detalhes que deixei passar despercebidos e informações relevantes
sobre a vila, que contribuam para a descrição do lugar e que permitam ao leitor uma
melhor compreensão do ambiente pesquisado. Na primeira vez que visitei
Jericoacoara, nenhum guia mencionou que transitávamos pelo parque nacional que
circunda a vila. Como mencionei anteriormente, o comércio em Jericoacoara é
diversificado e se concentra na região central da vila, e oferece opções de consumo
para quase todas as condições financeiras. Lá existem desde hotéis luxuosos
pertencentes a empresas internacionais de turismo, como também existem
pousadas mais simples; lojas de grife e comuns; restaurantes refinados e
lanchonetes. A diferença dessa área em relação às áreas mais afastadas é
percebida na estrutura física. A área central, onde circulam o maior número de
turistas, é bem iluminada, as ruas são paralelas e possuem sinalização para que as
pessoas possam se localizar facilmente. Na região mais afastada quase não existe
luz à noite, pela ausência de lojas e mercados que funcionem nesse horário, o que
torna essa área escura à noite. Em Jericoacoara não há iluminação pública, apesar
de existirem geradores da Companhia Energética do Ceará (COELCE). Portanto, a
iluminação das ruas é pela luz externa das casas e estabelecimentos comerciais. As
ruas dessa área da vila também são sinuosas e algumas não têm saída. Quando
viajei a título de pesquisa, a equipe ficou hospedada nessa área mais afastada do
centro e pude ter essa experiência de ficar longe da agitação e do “brilho” do
comércio. Nós ficamos hospedados em uma área que consistia de residências
simples, pouca infraestrutura comercial e onde ficava uma parcela dos moradores
que trabalhavam prestando serviços ao comércio local. Pareceu-me com a
configuração de uma periferia, ainda que pequena, mas grande para as proporções
de Jericoacoara. Existe uma área que é ainda mais afastada do centro, que chega
aos limites da vila com o parque nacional. As casas são mais humildes e quase não
existe comércio, seja mercados pequenos ou bodegas. Essa é a área que mais
contrasta com a zona central da vila, e só é observada por aqueles que voltam seus
olhos para o “escuro”. Os carros de passeio trafegam rapidamente por ali, porque é
necessário para chegar ao “brilho” que a vila oferece.
Nas pesquisas de campo, pude conversar com alguns moradores da vila
e eles mencionaram essa área periférica, a mais afastada, chamada “Nova Jeri”.
39

Também pude constatar essa mesma denominação nas leituras. Lima e Silva (2004)
apresentam essa região como “Nova Jeri”, e dizem que:

[...] se assenta principalmente a população oriunda do crescimento


vegetativo e nativos que comercializaram suas casas na parte antiga da
Vila, prática proveniente do aumento da procura pelo local, somada à
indisponibilidade de novas posses em terrenos da União (LIMA; SILVA,
2004 p. 45).

Essa questão da venda de terras também é destacada por outros autores,


como Rodrigues (2015b) que diz que ao longo dos anos, muitos moradores nativos
venderam suas casas e terrenos, a maior parte por preços pequenos. Das pessoas
que venderam seus terrenos, algumas foram morar na parte mais afastada e outras
se mudaram para regiões próximas à vila. No entanto, de acordo com o decreto que
instituiu a APA de Jericoacoara é proibida a construção que descaracterize ou
prejudique a paisagem natural. Lima e Silva (2004) dizem que a região conhecida
como Nova Jeri estava fora do Sistema de Terra VIII, única área em que podia haver
construção. Após a extinção da APA de Jericoacoara, em 2007, a área da vila se
tornou área urbana. Portanto, não encontrei normas que continuassem a proibir a
construção de casas naquela área do vilarejo. Entretanto, um ponto que preocupa os
autores é que a Nova Jeri está crescendo em um trecho da vila que é um “corredor”
de migração da areia das dunas. Para que as dunas sejam abastecidas com areia,
esse trecho precisa estar livre de muros ou qualquer material que impeça os ventos
de fazer migrar a areia em direção às dunas. Portanto, as construções que
permanecem nessa área podem interromper o abastecimento natural de areia,
acarretando na diminuição (ou até mesmo extinção) de algumas dunas de
Jericoacoara. Apesar de apresentar esses pontos no que diz respeito à formação
desse conjunto de residências no limite da vila, Lima e Silva também destacam que
existem hotéis de grande porte que fecham as ruas de Jericoacoara e ocupam
grandes extensões de praia, bloqueando entradas que deveriam permanecer
abertas, para uso da Marinha, inclusive. Segundo eles, a praia não deve ser
“bloqueada”, e é o que acontece no presente.
Atualmente, Jericoacoara está na rota do turismo nacional e internacional.
Considerada uma das praias mais belas do Brasil, o vilarejo integra o roteiro turístico
Rota das Emoções, criado em 2007 por um convênio celebrado entre o Ministério do
Turismo (MTur), os governos do Ceará, Piauí e Maranhão, o Banco do Nordeste e
as sedes regionais do Serviço Brasileiros de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
40

(SEBRAE). O roteiro é composto por catorze municípios e atravessa três parques


naturais, que são Jericoacoara, Delta do Parnaíba (Piauí) e Lençóis Maranhenses
(Maranhão). Segundo Rodrigues (2015b), em 2009, o Rota das Emoções foi
premiado pelo MTur como melhor roteiro turístico do país.

Figura 2 – Rota das Emoções

Fonte: Google

Para finalizar o capítulo, é importante destacar que Jericoacoara recebe


investimentos do Estado em nível federal e estadual, e também detém a participação
do capital privado. Como podemos observar, a localidade depende intensamente da
atividade turística para manter-se economicamente e as localidades próximas, bem
como o município de Jijoca de Jericoacoara, também participam dessas atividades.
O turismo, portanto, é um tema fundamental para entender a dinâmica local de
Jericoacoara e é um dos principais temas trabalhados nesta monografia. No próximo
capítulo, apresentarei brevemente a importância do turismo na configuração do
capitalismo contemporâneo. Mostrarei dados da World Tourism Organization
(UNWTO) e uma parte da política implementada no Brasil, a partir da criação do
Ministério do Turismo.
41

3. A FORÇA DO TURISMO NA CONFIGURAÇÃO ATUAL DO CAPITALISMO


CONTEMPORÂNEO

Neste capítulo, apresentarei brevemente como se conforma o turismo no


mundo contemporâneo, a partir de dados da UNWTO. Também vou procurar
mostrar como se configura a política voltada ao turismo no Brasil, a partir da criação
do Ministério do Turismo e alguns planejamentos estabelecidos. Por fim, finalizarei o
capítulo apresentando alguns dados sobre a conformação do turismo no Ceará.

3.1. Considerações sobre o turismo no plano mundial

Como foi dito na introdução deste trabalho, o turismo é uma atividade


econômica atrativa a investimentos, devido ao rápido crescimento e à possibilidade
de fomentar o crescimento de outros ramos da economia. Segundo Lopez e Marín
(2010), o turismo, como atividade econômica e fenômeno social, iniciou na
Inglaterra, ainda no século XIX, com o crescimento da Europa e América do Norte,
sendo interrompido apenas pelas guerras mundiais. John Urry (2001) também
coloca o crescimento da América do Norte e da Europa nos últimos cento e
cinquenta anos, destacando que nesse período o turismo de massa se consolidou.
Ele também dá exemplos das primeiras viagens organizadas, que privilegiavam as
elites em razão de seu alto custo.
O massivo investimento no turismo iniciou na segunda metade do século
XX, segundo Lopez e Marín. Eles dizem que um aspecto determinante para a
propagação dessa atividade pelo mundo foi o papel das organizações internacionais,
que desde a década de 1960 promoveram o turismo como uma estratégia de
crescimento econômico e uma forma de investimento. Rodrigues (2014) diz que o
início do investimento na indústria turística data da década de 1970, através do
Banco Mundial (BM) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD), que
incentivaram os países de terceiro mundo que eram dotados de atrativos naturais e
culturais a optarem por esta estratégia de desenvolvimento. De acordo com a
autora:

[...] houve um direcionamento do aporte de recursos para esta atividade, o


que levou países que possuem riquezas naturais e patrimônio cultural
material e imaterial propício ao desenvolvimento das atividades turísticas e
42

voltar-se de forma privilegiada ao investimento neste setor da economia


(RODRIGUES, 2014, p.2).

Urry (2001) avalia que cerca de 40% do tempo livre das pessoas é
ocupado em viagens. Ele destaca que a viagem é uma marca de status, faz parte da
vida moderna como um elemento crucial sentir que a viagem e as férias são
necessárias.
Atualmente, os dados comprovam a força da atividade turística e
continuidade do seu crescimento. Lançado em 2015, o último relatório anual da
UNWTO diz que o turismo internacional cresceu 4,4% em 2014, que significa 48
milhões a mais de turistas em relação a 2013. A previsão de crescimento esperada
era de 3,8% por ano. A organização também afirma que, apesar da crise mundial
iniciada em 2009, é o quinto ano consecutivo que o setor está acima da média. As
receitas do turismo internacional cresceram 3,7% chegando a um valor estimado de
US$ 1.245 bilhões em 2014.
Os dados apresentados pela UNWTO mostram que o turismo, de fato,
gera lucros vultosos. Contudo, existem outros dados que mostram efeitos sobre as
localidades que investem fortemente nessa atividade. Os efeitos desse tipo de
investimento são relatados por Rodrigues (2014), que discorre sobre o caráter
excludente desse modelo de desenvolvimento vigente, porque centraliza os ganhos
da atividade turística e reduz as perspectivas de inclusão por parte das populações
receptoras, no que diz respeito à divisão de ganhos. Um dos primeiros fatos
levantados pela autora é de que o desenvolvimento do turismo em países de terceiro
mundo vem favorecendo grandes investidores estrangeiros. Para exemplificar esse
investimento como não sendo totalmente benéfico, ela saliente que apesar das
aparentes melhorias nos meios de transporte, energia, saneamento básico e
estradas nas localidades “investidas”, muitas vezes a população fica às margens
dessas melhorias, uma vez que ocorrem casos em que os grandes hotéis negociam
com o governo local para construírem sua própria estação elétrica, de tratamento de
água, dentre outras obras de infraestrutura básica.
Outro ponto importante abordado pela autora diz respeito ao investimento
maciço no turismo que tem uma geração de emprego grande e acaba
redirecionando a mão de obra barata, causando um deslocamento de trabalhadores
das áreas rurais para as cidades com atrativos turísticos e “inchando” essas cidades
ao mesmo tempo em que esvazia o campo. Rodrigues diz que a grande geração de
43

empregos se concentra na parte de prestação de serviços de baixa remuneração. O


aumento da violência, prostituição (especialmente a infantil) e o tráfico de drogas
nas áreas turísticas é um dado alarmante que a autora coloca, além do fluxo de
turistas estrangeiros que viajam aos países receptores em busca do usufruto de um
lazer barato, que resulta em pouco retorno financeiro para o produtor artesanal, e
todas as economias locais dependentes desses turistas.
Apesar de trazer reflexões quanto ao aspecto excludente do modelo de
desenvolvimento vigente, Rodrigues também aponta as novas modalidades de
turismo que vem surgindo ao longo dos anos, dentre elas o turismo comunitário, o
turismo cultural e o ecoturismo, que surgem como formas de inclusão social e
preservação ambiental, além de ser uma alternativa diferente do turismo de massa.
No entanto, segundo a autora, mesmo que esse turismo local ou de base
comunitária tenha diversos benefícios às comunidades que realizam as atividades,
como a obtenção de ganhos gerados, preservação cultural e ambiental, e pela
prática cooperativa, ainda existem dificuldades, como por exemplo, a baixa
qualificação de mão-de-obra e pouca variedade de produtos turísticos. Rodrigues
ainda acrescenta a forma desigual como esses empreendimentos se desenvolvem,
em relação ao grande capital turístico, inclusive havendo uma dependência desse
capital, já que esses pequenos empreendimentos surgem geralmente nas
proximidades das grandes áreas do turismo de massa.
Segundo Lopez e Marín (2010), existem duas dimensões de mudança
social que estão diretamente relacionadas com o turismo e sua influência no espaço
social. A primeira dimensão diz que a indústria se apropria dos sentidos culturais,
inventa e produz muitos outros. Isso está relacionado à capacidade simbólica para
direcionar o olhar sobre as vilas, cidades, paisagens, bairros, dentre outros.
Compreendi que isso produz novas simbologias sobre a localidade em que a
atividade turística é desenvolvida. A apropriação dos sentidos culturais pela
indústria, como apontada por Lopez e Marín, levou-me a uma referência a Marshall
Sahlins em seu relato que objetiva trazer uma contribuição para a explicação cultural
da produção. De acordo com ele:

[...] a produção capitalista é, como qualquer outro sistema econômico, uma


especificação cultural, e não uma mera atividade natural e material, pois,
como é o meio para um modo de vida total, ela é necessariamente
produção de significação simbólica (SAHLINS, 2003, p. 211).
44

A segunda dimensão a que Lopez e Marín referem-se incide sobre o


controle dos recursos estratégicos que essa indústria requer de tal forma que, em
termos concretos, vários agentes estão se apropriando do território através do
exercício do poder. De acordo com eles, essa apropriação perturba as formas
sociais, as práticas materiais e a subjetividade, tudo para o controle da indústria e
satisfação dos visitantes. Outro ponto interessante destacado pelos autores é que o
turismo, em seu caráter de produção cultural, se desenrola como um processo em
que, através da expansão global, gera e alimenta a demanda do consumidor por
representações do “outro” e dos “outros”, a partir da imposição de valores e
representações do mundo próprias das classes médias do Ocidente. Isso
certamente implica na decolagem de grandes transformações relacionadas com a
construção social de significados culturais em inúmeras cidades e municípios que
vivem do turismo, que adquirem identidade, não precisamente a partir da
experiência histórica e cultural dos residentes locais, mas sim a partir do imaginário
e da necessidade dos turistas.
Por fim, os autores dizem que o curso geral das transformações
vivenciadas oferece uma perspectiva pouco edificante, diante dos processos de
apropriação territorial, devastação ecológica e pauperização das sociedades locais.
No entanto, o turismo também oferece oportunidades reais de ingressos econômicos
e cria amplas expectativas entre os moradores locais. Lopez e Marín afirmam que
não se trata de considerar o turismo como um malefício, mas compreendê-lo em seu
sentido de produção econômica e cultural, no qual implica reconhecer os âmbitos do
poder que o fazem possível, o tipo de mercadorias que produz e os reais efeitos que
dele derivam, em nível local.
Na perspectiva dos estudiosos, podemos notar que existem efeitos
fortemente vivenciados pelas populações receptoras desse desenvolvimento
turístico. Apesar de ter apresentado os efeitos advindos do desenvolvimento do
turismo neste tópico, é necessário ressaltar que o Brasil utilizou estratégias
semelhantes ao modelo de turismo de massa levado a cabo em outros países
subdesenvolvidos, como coloca Rodrigues (2014).
45

3.2. Turismo no Brasil: notas sobre as políticas de desenvolvimento, em


especial no Ceará.

No que diz respeito ao desenvolvimento do turismo na economia


brasileira, Rodrigues (2014) destaca que este processo iniciou na década de 1960,
com a criação da Empresa Brasileira de Turismo6 (EMBRATUR), em 1966. Contudo,
o estancamento econômico da década de 1980 e o difícil processo de resolução da
crise nos anos 1990 foram pontos negativos ao desenvolvimento da área. O
crescimento só veio a surgir no final da década de 1990. Em 1999, os dados
indicavam 5,1 milhões de chegadas e participação de 33,82% no mercado sul-
americano. A autora também diz que no Brasil as políticas de turismo privilegiaram o
litoral, em especial a região Nordeste, e essa política de turismo é bastante recente,
levando em conta o planejamento e o estabelecimento de mecanismos para a sua
expansão.
A autora continua explicando a trajetória do desenvolvimento do turismo
com a criação do Ministério do Turismo, em 2003, no governo Lula, seguida da Lei
do Turismo, em 2008. A Política Nacional do Turismo considera essa atividade um
mecanismo de desenvolvimento econômico e social. Segundo Rodrigues (2014), os
resultados esperados são a movimentação econômica, geração de empregos,
aumento da arrecadação de impostos e ingresso de divisas. Também é importante
destacar a criação do Plano Nacional do Turismo (PNT), um planejamento
desenvolvido de três em três anos e com diferentes pautas, desde 2003. A autora
diz que o PNT propõe a descentralização e regionalização, de forma que estimule
estados e municípios a planejar as atividades turísticas, para minimizar as
desigualdades sociais e econômicas nas regiões, através da inclusão social.
De acordo com Rodrigues (2015a), o primeiro PNT (2003-2007) priorizou
o turismo como elemento propulsor de desenvolvimento econômico do país,
apontando as regiões naturais como forte atrativo para o desenvolvimento do
turismo. Este plano também destacou a criação de roteiros integrados, que ofertem
um conjunto de produtos turísticos. Neste ponto, destaco a fala de Costa (2009), que
pesquisou o roteiro Rota das Emoções. Na sua tese, a autora destaca que a
roteirização dos destinos turísticos surge como um fruto do Programa de

6
Atualmente, a sigla referencia ao Instituto Brasileiro de Turismo, segundo a autora.
46

Regionalização do Turismo, programa oriundo do PNT (2003-2007), que concentra


projetos para o desenvolvimento regionalizado do turismo no Brasil. Assim, a
roteirização nasce como resultado do processo de regionalização.
O segundo PNT (2007-2010), como coloca Rodrigues (2015a), foi
elaborado em estreita vinculação ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
e apresenta uma atenção maior por parte do Estado, devido ao crescimento de
atividade no país. Portanto, tornou-se uma continuidade do que vinha sendo feito no
PNT anterior, com alguns acréscimos em relação ao desenvolvimento e incentivo ao
investimento. Por fim, o terceiro e último triênio (2013-2016) volta-se para os
megaeventos, com o intuito de firmar o Brasil como terceiro maior Produto Interno
Bruto (PIB) turístico, até 2022, além de continuar a política de desenvolvimento do
turismo numa gestão descentralizada. É perceptível a força dessa proposta pela
quantidade de megaeventos que foram trazidos para o Brasil: Pan-Americano de
2007, Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e os Jogos
Olímpicos de 20167.
Além de destacar que as políticas de turismo privilegiaram o litoral,
Rodrigues (2014) diz que a região Nordeste foi eleita aquela com o maior potencial
de crescimento da atividade turística, uma vez que dos 65 destinos indutores do
turismo, 23 estão nessa região. No que diz respeito à prioridade dada à região
litorânea do Nordeste pelas políticas de turismo, Rodrigues (2014) coloca como um
ponto preocupante a questão dos conflitos fundiários, explicando que os espaços
turísticos são de duas dimensões: espaços-natureza e espaços-patrimônio. Os
espaços-natureza são, em sua maioria, ocupados por comunidades pesqueiras (na
área litorânea) e agricultores de subsistência (nas áreas montanhosas e naturais).
Nas duas condições, é comum que os grandes investidores (quando não, o Estado)
realizem o deslocamento forçado dessas populações que residam nessas áreas foco
para o turismo. A autora apresenta como exemplos a área costeira da Riviera Maya,
no México, e a Costa do Sauipe, na Bahia.
Molina (2007) e Silva, Lopes e Costa (2010) falam da criação dos
programas de desenvolvimento para o Nordeste, especialmente no estado do Ceará.
No planejamento estatal houve a criação do Programa de Desenvolvimento do
Turismo no Litoral do Ceará (PRODETURIS), em 1989, pelo governo do estado do

7
Para mais informações sobre o PNT, consultar Rodrigues (2014) e Rodrigues (2015a)
47

Ceará e financiado pelo BIRD, tendo como órgão executor o Banco do Nordeste
(BNB). Esse programa tinha como objetivo melhorar a infraestrutura básica
(saneamento, transporte, energia), implantar projetos de proteção ambiental e
realizar o planejamento dos territórios turísticos, ao longo do prazo. Por meio desse
programa foi feito um zoneamento territorial no Ceará.
O PRODETURIS foi o antecessor do Programa de Desenvolvimento do
Turismo na Região Nordeste (PRODETUR-NE), que deu continuidade aos
planejamentos e ações anteriores. Criado em 1991, o programa é fruto de um
contrato entre o governo federal e o BIRD, tendo como agente financiador o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Silva, Lopes e Costa
(2010) dizem que o planejamento previu o investimento de US$ 800 milhões ao
turismo no Nordeste. Lima e Silva (2004) dizem que o Programa de
Desenvolvimento do Turismo no Ceará (PRODETUR-CE) é um desdobramento do
PRODETURIS com um programa nacional já existente; o programa concentrou a
atenção na região litorânea, assim como o PRODETUR-NE, considerando as
características e possíveis investimentos. Uma das ações realizadas foi a
implantação da rodovia CE-085, que percorre todo o litoral Oeste do estado, ligando
a capital Fortaleza a cidade de Camocim.
No que diz respeito ao turismo no estado do Ceará, especificamente,
Silva, Lopes e Costa (2010) dizem que o desenvolvimento ocorreu em três etapas:
início dos anos 1970, divulgação do turismo de sol e praia nos anos 1980-1990 e
sua efetivação nos anos 1990-2000. Na década de 1970 houve um pequeno
estímulo. Devido ao período da ditadura militar, que incentivava a indústria como
principal atividade econômica, a implantação do turismo não foi muito difundida. Na
década de 1980, observa-se a atenção ao turismo no “Governo das Mudanças”,
liderado por Tasso Jereissati8. Em 1991, a autora nos diz que no governo de Ciro
Gomes houve o “Pacto da Cooperação”, uma continuação das políticas de incentivo
ao turismo que firmava um movimento informal entre Estado e iniciativa privada.
Essas movimentações ocorriam juntamente aos programas que citei anteriormente.
Em 1995 foi criada a Secretaria de Turismo do Ceará (SETUR-CE). Por fim, a autora
coloca que na década de 1990 ocorreram maiores modificações dos espaços,

8
Segundo Gondim (1995), o “governo das mudanças” foi um novo modelo de gestão implantado por
um grupo liderado por Tasso Jereissati, então eleito governador do estado do Ceará, em 1986.
Rodrigues (2015b) também coloca que a ascensão de um grupo político formado por elites
industriais, na década de 1990, iniciou um investimento massivo no turismo.
48

motivadas pelas atividades turísticas e que a infraestrutura foi fundamental para o


desenvolvimento do turismo.
Atualmente, os dados referentes ao PIB do Ceará mostram que o turismo
tem peso relevante nos índices de crescimento do estado. O Instituto de Pesquisa e
Estratégia do Ceará (IPECE) (2011) aponta que o crescimento do setor de serviços
foi de 7,5% em 2010, e destaca as atividades ligadas ao turismo, como alojamento e
alimentação, que cresceram 7,5% em relação a 2009, contribuindo para o
crescimento do setor. Os dados mais recentes apontam que o turismo no Ceará, em
2014, teve um impacto sobre o PIB de 11,2% e de 15,4% no setor de serviços,
gerando uma renda no valor de quase R$ 11 milhões (SETUR, 2015). Ainda
segundo a SETUR, o município de Jijoca de Jericoacoara recebeu 210.566 turistas
em 2013, e Costa (2009) nos traz dados referentes ao PIB municipal de 2006, onde
o turismo foi responsável por 82,4% do PIB de Jijoca.
Para finalizar o capítulo dois, gostaria de trazer um último aspecto, não
menos importante, que Rodrigues (2014) coloca. A autora levanta a questão da
exigência cabida ao turismo para manter-se, no que tange a manutenção e
recuperação por parte do governo, do patrimônio histórico e arqueológico, o que leva
a investimento continuado e de alto valor. Portanto, em se tratando de países com
baixas condições econômicas, a exigência da continuidade das atividades turísticas
exige o deslocamento de verbas para essa área, em detrimento de áreas prioritárias.
49

4. OS AGENTES QUE COMPÕEM O COMÉRCIO LOCAL: UM CALEIDOSCÓPIO


DE IDENTIDADES

No último capítulo apresentarei os sujeitos que compõem a cadeia


produtiva do turismo em Jericoacoara. Através da pesquisa de campo, busco
compreender como se dão as relações no âmbito político, econômico e social
desses agentes. Para tanto, o material de que me utilizarei para analisar serão as
entrevistas, realizadas em fevereiro de 2015, e os dados de um censo que realizei
na localidade, em setembro daquele mesmo ano, buscando informações básicas
sobre os comerciantes e prestadores de serviço da cadeia do turismo existente na
vila, mas que foram fundamentais para pensar algumas questões e relacionar com
as falas dos interlocutores. Num primeiro momento, explicarei como o estudo foi
realizado, que categorias foram adotadas para melhor compreender a localidade e a
base primordial para o entendimento de como os agentes se concebem naquele
meio social e de como as relações estão conformadas, abordando a noção de
identidade nas ciências sociais, na antropologia em particular. No segundo tópico,
explicarei como o censo foi realizado e quais critérios foram adotados,
apresentando, em seguida, alguns dados sobre o comércio local, relacionando com
as entrevistas. No terceiro tópico, farei uma abordagem sobre os agentes que
residem em Jericoacoara e suas impressões sobre o modo de vida local. No último
tópico, apresentarei as últimas tabelas elaboradas com os dados do censo, que
dizem respeito às percepções dos sujeitos da pesquisa como moradores da
localidade e sobre um dado importante de ser apresentado, que é a propriedade do
imóvel comercial em Jericoacoara.

4.1. As possíveis concepções de nativo e estrangeiro

Uma forma de classificação corrente em Jericoacoara, que se faz


presente em todas as conversas informais e entrevistas formais, refere-se à
categoria nativo. De forma nem sempre explícita, essa categoria nativo se constrói
na diferenciação ao não-nativo, que aqui denominarei estrangeiro.
Assim, o entendimento das relações que envolvem os agentes que
compõem a cadeia produtiva do turismo em Jericoacoara será realizado diante de
50

duas abordagens: o sentido ético (dado pelo pesquisador) e o sentido êmico (dado
pelos sujeitos da pesquisa) dos termos “nativo” e “estrangeiro”. Isto se deu em razão
de um censo que realizei no comércio local, interessada em saber a origem dos
proprietários dos negócios turísticos, e também se residiam na localidade e se o
imóvel comercial era próprio ou alugado. Essas informações básicas me
proporcionaram a compreensão de algumas falas dos interlocutores que entrevistei
como também me permitiu ter uma visão ampla, mas incompleta, de como está
conformado o comércio em Jericoacoara. Ampla porque, a partir das categorias que
estabeleci para compreender a composição do comércio, obtive alguns dados
importantes. Incompleta, porque foi necessário que eu reduzisse a diversidade de
concepções do que é considerado nativo e estrangeiro em Jericoacoara.
“Nativo” e “estrangeiro”, como acima anunciado, serão tratados de duas
perspectivas: a ética e a êmica. A primeira será usada na apresentação e
interpretação dos dados coletados no censo. A outra, mais importante para o
objetivo desta monografia, será tratada por meio das falas dos interlocutores, no
trato do material das entrevistas, que dizem sobre como eles se relacionam, se
denominam e denominam os outros. Para isso, será necessário trazer a noção de
identidade. Contudo, antes de apresentar esse conceito muito analisado nas
ciências sociais (como em outras áreas do conhecimento), irei apresentar a primeira
forma de conceituar nativo e estrangeiro, a forma adotada pelo pesquisador.
Como “nativo”, considero todo o indivíduo que nasce/nasceu na
localidade, portanto, estou me valendo do sentido ético do termo, na referência ao
indivíduo original da localidade. Ao longo do capítulo, o leitor perceberá as diversas
concepções que surgirão sobre o que e quem é nativo, o sentido êmico do termo,
que diz respeito à interpretação que os agentes locais fazem sobre o que eles
consideram nativo, e isto está intimamente ligado à noção de identidade, que será
apresentada brevemente.
No que diz respeito à categoria “estrangeiro”, utilizo como referência
conceitual George Simmel e a pesquisa de Genlizzie Garibay Munguía, sendo que
esta última escreveu uma dissertação em antropologia sobre o turismo em Zipolite,
no México.
Simmel (1983) propõe uma concepção de estrangeiro que se refere a um
indivíduo que tem a capacidade de mobilidade e fixação, unidas num mesmo
cenário. Para o autor, as relações humanas organizam-se num regime de
51

proximidade e distância em que, para o estrangeiro, as relações possuem uma


forma específica de interação. Simmel explica que o estrangeiro é próximo e
distante, mas o elemento da distância não é mais específico em relação a eles que o
elemento da proximidade, o que significa que o estrangeiro pode adquirir maior
proximidade do que distância, a depender de como as relações se desenvolvem. O
autor diz que os estrangeiros não são entendidos como indivíduos, mas sim como
estranhos, de uma forma particular. Compreendo que a abordagem de Simmel sobre
o estrangeiro diz respeito aos indivíduos que vêm de outras localidades, se instalam
em determinado espaço e passam a fazer parte de um grupo local.
Genlizzie Garibay Munguía realizou uma pesquisa sobre as
transformações socioculturais desencadeadas pelo desenvolvimento do turismo na
cidade costeira de Zipolite, localizada no corredor turístico Puerto Escondido
Huatulco, no México. Na sua dissertação, Garibay (2012) definiu dois grupos de
agentes para estudar as interrelações existentes: os lugareños e os colonos. Os
lugareños constituem todos os zipolitenses nascidos e criados na localidade, além
dos mais idosos da cidade, que chegaram quando eram crianças, vindos de cidades
vizinhas. Os colonos são os estrangeiros, também conhecidos como “los de afuera”.
Garibay classificou como colonos todos os indivíduos que são de fora de Zipolite,
portanto, pessoas de outros países e mexicanos vindos de outras localidades estão
nesta classificação. O conceito de Simmel e a classificação que Garibay
desenvolveu foram fundamentais para pensar na forma de abordar os moradores
atuais de Jericoacoara. Portanto, o estrangeiro será definido como todo o indivíduo
que veio de outra localidade, independente de ser brasileiro ou de outra
nacionalidade. Esse é o sentido ético dado ao estrangeiro.
A proposta de, inicialmente, estabelecer essas duas categorias partiu da
observação feita em campo, entrevistas e leituras. Jericoacoara é uma localidade
onde pessoas de várias partes do mundo e do Brasil residem, além das primeiras
famílias que lá chegaram e seus descendentes. Não é difícil perceber a diversidade
de pessoas que trabalham em todos os segmentos e transitam pela localidade. À
medida que fui realizando as entrevistas, alguns interlocutores mencionavam a
existência de “pessoas de fora” da vila, e outras problemáticas junto com essa
denominação que serão aprofundadas mais à frente. Durante a pesquisa de campo,
percebi que havia muitas formas de classificação, de eles se denominarem nativos
ou de denominarem os outros como “de fora”, por exemplo. Em suma, se trata do
52

sentido êmico dado aos termos nativo e estrangeiro, a forma como os agentes
denominam esses dois tipos e também como dentro dessa tipologia eles se
diferenciam e se classificam. Portanto, é importante que o leitor lembre-se dos dois
sentidos que serão utilizados na explicação e análise dos dados: no sentido ético,
nativo é todo aquele que nasce/nasceu na localidade, e estrangeiro é todo o
indivíduo que vem de fora, não importando a nacionalidade. No sentido êmico, eles
serão denominados segundo a diversidade de interpretações sobre o que é
considerado nativo e estrangeiro, que será analisado nas falas dos interlocutores.
Para chegar a esta apreensão de múltiplas formas de identificação, foi
necessário conhecer a noção de identidade, de forma que eu conseguisse
compreender como as relações são estabelecidas na localidade entre os sujeitos
que compõem a cadeia produtiva do turismo. Em vários momentos eu ressalto a
questão do comércio e da prestação de serviços, porque existem outras
possibilidades empíricas para estudar nativos e estrangeiros em Jericoacoara. É
importante colocar que não descarto a existência de estrangeiros que morem em
Jericoacoara e não tenham nenhuma relação com o comércio e serviços turísticos,
como também pode haver nativos na mesma situação.
A fim de deixar a leitura mais esclarecedora no que diz respeito ao
conhecimento sobre a noção de identidade, mostrarei brevemente como o conceito
se configura nas ciências sociais, na antropologia em particular, a partir de autores
brasileiros como Roberto Cardoso de Oliveira, Manuela Carneiro da Cunha, Suely
Kofes e outros.
Segundo Guillermo Ruben (1988), no âmbito das ciências sociais
contemporâneas, não há um consenso acerca do significado da noção de
identidade. Já Suely Kofes (2001) expõe como a noção clássica de identidade não
dava conta da diversidade e multiplicidade de situações que surgiram nas
pesquisas, com o passar do tempo. De acordo com ela:

[...] a identidade já foi pensada como a expressão de diferenças


particulares, ou mesmo como capaz de, conceitualmente (e politicamente),
combinar múltiplas diferenças. Entretanto, a ênfase em uma perspectiva
diferencialista foi esvaziando a noção de identidade de sua capacidade de
fornecer um quadro de unificação, de totalização ou de substância das
diferenças (KOFES, 2001, p. 28).

A autora diz que a noção clássica tornou-se problemática em razão da


sobrecarga conceitual, mas que desde os primeiros estudos sobre esta noção fica
53

claro que a diferença é um pressuposto básico nos estudos sobre identidade 9,


“porque formular uma identidade implica o reconhecimento de uma semelhança em
um sistema de diferenças” (KOFES, 2001 p.116).
A questão da diferença também pode ser compreendida por meio da
noção de identidade contrastiva, formulada por Roberto Cardoso de Oliveira.
Segundo o autor (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976),

Implica na afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um


grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em
relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade
que surge por oposição (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 5).

Para que as diferenças sejam estabelecidas, é necessário um marcador


ou elemento que diferencie um indivíduo/grupo do outro. Cardoso de Oliveira (2000)
chama esses marcadores de operadores simbólicos, que são caraterísticas que
servem para o contraste entre o nós e o eles. Manuela Carneiro da Cunha (2009)
chama “sinais diacríticos” os tipos de traços culturais que irão garantir a distinção de
um grupo em relação à presença do outro grupo. Os sinais diacríticos, segundo a
autora, devem se opor a outros do mesmo tipo.
Tomando como base esta proposição quanto a uma característica
diferenciadora, é importante perceber que quando estabeleci as categorias nativos e
estrangeiros, de acordo com o sentido ético, entendido pelo pesquisador, utilizei um
operador simbólico: a origem. No entanto, mesmo tendo me valido de uma noção de
identidade, esta já não consegue mais lidar com o que o campo apresenta e posso
mostrar este aspecto por meio de um exemplo prático, para mostrar que a marca da
diversidade de concepções é o que prevalece na discussão sobre identidade, e não
mais em diferenças combinadas que tragam um quadro unificado e homogêneo. O
exemplo que trago diz respeito a duas falas dos meus interlocutores. Um deles diz
que é considerado nativo todo aquele que nasce em Jericoacoara, seja filho das
primeiras famílias, seja filho de estrangeiro, por exemplo. Este interlocutor pertence
a uma das primeiras famílias que chegaram à vila e é bem ativo nas ações de cunho
político da localidade. Já o outro interlocutor, que também é filho de uma das
primeiras famílias, tem a seguinte concepção:

Desde o início tinha em Jericoacoara talvez cinco famílias, talvez, eu não


sei se é tudo isso, muito pouco. Então se eu sair daqui pra fora, eu vou
apontar pouquíssimo pra dizer „olha, esse é de Jericoacoara‟, o resto é tudo
de fora. [...] A única diferença que eu lhe digo, que eu fico muito revoltando,

9
Como também nos estudos de classificação social, segundo a autora.
54

eu tampouco posso fazer alguma coisa, é que se eu for no Mangue Seco,


ou se eu for em qualquer lugar, eu me sinto assim...eu, como eu vou me
comportar aqui...o que acontece é que chega pessoa aqui, passado um
mês, é nativo. É dono de Jericoacoara. [...] Então se você andar em
Jericoacoara, 99% são pessoas de fora, não são nativos (Luís, nativo, dono
de hospedagem de médio porte).

O interlocutor não menciona outra possibilidade de considerar alguém


nativo, a não ser pela ascendência. Este é apenas um exemplo para mostrar como a
diversidade está presente nas concepções dos sujeitos, e certamente estão
atravessadas por sentimentos, mas também por interesses em se colocar nesta ou
naquela categoria.
George Marcus (1991) coloca que é preciso considerar a semelhança e a
diferença entre o global e o local para perceber a diversidade. Ele trata da
construção dos sujeitos de uma etnografia e diz que o maior desafio é entender se
uma identidade pode ser explicada por meio de um discurso de referência quando
vários discursos estão no campo, inclusive o do etnógrafo. Para o autor, “a
identidade do modelo teórico utilizado pelo etnógrafo não deve permanecer intacta,
„sólida‟, se a identidade do objeto „desmancha no ar‟” (MARCUS, 1991, p. 210). O
autor diz que as etnografias mais ousadas se preocupam com a formação e
transformação de identidades que questionam as abordagens analíticas e
descritivas que constroem uma identidade “sólida”, exclusiva de uma estrutura
cultural. Assim, compreendo que não se pode mais pensar em identidade como algo
homogêneo, reduzida a uma unidade que minimiza as diferenças internas a cada
categoria, os conflitos e as desigualdades.
O autor também fala da formação de múltiplas identidades na
configuração local e questiona “quais são as identidades que se aglutinam e em
quais circunstâncias” (MARCUS, 1991, p. 205). Assim, ele traz a visão de uma
identidade que tem múltiplas localizações porque ela é dispersa, pode se formar em
vários contextos sociais, como o local onde se mora, a escola ou os amigos com
quem se convive. Enfim, são várias as possibilidades para a formação da identidade
de um sujeito. Ao longo do capítulo, o leitor perceberá como, por meio das
entrevistas conseguidas, há momentos em que as categorias de que tratei
expressam um sentido que as aglutina e outros que as separam internamente,
constituindo, assim, o caráter heterogêneo que a noção de identidade comporta.
Existem outros aspectos sobre a noção de identidade que serão abordados em outro
momento. Por fim, gostaria de ressaltar que nos tópicos seguintes também haverá
55

discussões sobre a noção de identidade. Juntamente às explicações das


informações recolhidas no censo, virão reflexões sobre a temática apresentada do
ponto de vista dos interlocutores da pesquisa, ou seja, os “nativos” e “estrangeiros”
que compõem as diversas possibilidades de se conceberem, e a “pesquisadora”,
que dialoga com as informações e reflete sobre as interações encontradas neste
meio.

4.2. A configuração da cadeia produtiva do turismo local e as relações entre os


agentes

Para apresentar o resultado do censo que foi aplicado em Jericoacoara,


considero importante ressaltar alguns pontos. A intenção de recolher esses dados se
deu em razão do interesse sobre a zona comercial da vila, particularmente grande e
que concentrava a maior parte dos negócios voltados ao turismo. O mapa (ver
Anexo C) mostra a área que mais concentra a atividade turística em Jericoacoara.
No entanto, é importante destacar que dentro dessa área existem muitas residências
e que fora dessa delimitação também existem alguns estabelecimentos onde
consegui informações. A vila possui, de fato, uma zona central que concentra a
maior parte dos negócios, mas as ruas mais afastadas contêm estabelecimentos
primordiais para compor o censo, como as pousadas e hotéis. Na zona mais
afastada, inclusive, existem pousadas de grande porte, mas não fazia sentido
assinalar toda a área da vila para expor o percurso realizado, porque existem áreas
onde o comércio é predominante e existem áreas que são “transitórias”, ou seja,
onde já não existe muito comércio, mas ainda é uma quantidade suficiente para
assinalar no mapa. O objetivo é mostrar que os negócios voltados ao turismo
encontram-se na maior parte do espaço que compõe os limites da vila de
Jericoacoara, e ressaltar que existem comércios menores, localizados na área mais
periférica da vila e que não possuem ligação direta com as atividades turísticas.
Dada esta explicação, sigamos na apresentação dos resultados.
A realização do censo durou quatro dias e possibilitou que eu cobrisse
toda a zona comercial do centro de Jericoacoara. Até o mês de setembro de 2015
existiam 316 estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços. Na
construção das tabelas que apresentarei a seguir, as categorias que utilizei para
expor as informações foram estrangeiros e nativos, de acordo com a definição
56

explicada no tópico anterior, e a categoria “misto” que constitui um casal formado


pela união de um nativo e um estrangeiro, no sentido ético que estou conferindo aos
termos. A tabela a seguir apresenta o número de estabelecimentos que
responderam às perguntas:

TABELA 1 - COMÉRCIO TURÍSTICO EM JERICOACOARA


ORIGEM QUANTIDADE %
NATIVO 50 16%
ESTRANGEIRO 224 71%
MISTOS 04 1%
NÃO INFORMADO 38 12%
TOTAL 316 100%
Fonte: elaboração própria

Os dados apresentados mostram que os nativos são donos de 16% dos


estabelecimentos comerciais e de serviços. A maior parte deles, portanto, é
administrada por estrangeiros, que detém 71% do total pesquisado. Dos 316
estabelecimentos contabilizados, 12% não responderam. Alguns desses
estabelecimentos estavam fechados quando fui buscar as informações para
preencher as fichas (ver Anexo D) e outros se recusaram a responder. Para as
próximas tabelas, os cálculos serão feitos com os estabelecimentos que
responderam às questões, somando 278.

TABELA 2 - QUANTIDADE DE ESTABELECIMENTOS EM JERICOACOARA POR CATEGORIA


ORIGEM QUANTIDADE %

NATIVO 50 18%
ESTRANGEIRO 224 81%
MISTOS 04 1%

TOTAL 278 100%


Fonte: elaboração própria

O que altera esta Tabela 2 em relação à Tabela 1 é o percentual referente


a cada categoria que se altera. Nas tabelas seguintes, analisaremos dados sobre
quem administra o comércio em questão, qual a origem dos donos, se eles residem
na localidade, quais os segmentos comerciais existentes, há quanto tempo o
estabelecimento funciona e a propriedade do imóvel comercial. Esses foram os
principais dados conseguidos no censo. Devido ao pouco tempo disponível em
57

relação à quantidade de estabelecimentos, a aplicação das fichas precisou ser


rápida e de fácil resolução, não sendo possível acrescentar mais questões, inclusive
em razão da principal fonte de informações serem as entrevistas.
A análise das tabelas e das entrevistas será realizada simultaneamente.
Os temas das tabelas que tiverem aspectos destacados nas entrevistas serão
relacionados. Contudo, é importante levar em consideração que para os
interlocutores, o nativo e o estrangeiro podem ser abordados no sentido êmico, ou
seja, na interpretação que eles têm sobre essas categorias e de que forma isso se
configura nas relações. A Tabela 3 diz respeito a quem é dono do respectivo
estabelecimento, em Jericoacoara:

TABELA 3 - ADMINISTRAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS EM JERICOACOARA


% %
ADMINISTRAÇÃO % QUANT. ESTRAN- QUANT.
NATIVO % % QUANT. MISTO % QUANT. % GERAL
NEGÓCIO GERAL GEIRO GERAL
GERAL GERAL
CASAL
03 6% 6% 44 20% 86% 04 100% 8% 51 18%
GRUPO FAMILIAR
05 10% 50% 05 2% 50% - - - 10 4%
HOMEM
12 24% 12% 87 39% 88% - - - 99 36%
MULHER
28 56% 30% 66 29% 70% - - - 94 34%
SOCIEDADE
02 4% 8% 22 10% 92% - - - 24 9%

TOTAL 50 100% - 224 100% - 04 100% - 278 100%


Fonte: elaboração própria

Dos 278 pontos comércios, 18% são administrados por casais, dos quais
6% são nativos e 86% são estrangeiros. No que diz respeito aos mistos (8%), eles
estão nessa categoria exatamente por serem propriedade de um casal, a união de
um estrangeiro e de um nativo, no sentido ético adotado. As famílias compõem 4%
dos comércios turísticos, sendo dez famílias de nativos e dez famílias de
estrangeiros. É importante destacar que no quesito grupo familiar, também incluí os
negócios que são administrados apenas por irmãos e primos. Os homens detém a
maior parte dos estabelecimentos na vila, que correspondem a 36% do total. Dentre
os 99 homens, 12 são nativos (12%) e 87 são estrangeiros (88%). Dentro do total de
estrangeiros (224), eles também são maioria (39%). As mulheres administram 34%
das atividades, sendo 66 estrangeiras e 28 nativas. Um dado interessante quanto a
este ponto é que dentro da categoria nativo, composta por 50 pessoas, as mulheres
compõem mais da metade (56%). Por fim, os empreendimentos em sociedade
representam 9% do total, sendo duas sociedades realizadas entre nativos e 22
58

formadas por estrangeiros. As sociedades que estabeleci nessa tabela são


referentes aos grupos empresariais que possuem grandes hotéis em Jericoacoara,
como também pequenos empresários que detém seus comércios, ou seja, o mínimo
de duas pessoas já foi considerado como uma sociedade. Também foram
conseguidos dados sobre o tempo de funcionamento do estabelecimento:

TABELA 4 – TEMPO DE FUNCIONAMENTO DO ESTABELECIMENTO EM JERICOACOARA


% % %
ESTRAN- QUANT.
TEMPO COMÉRCIO NATIVO % QUANT. % QUANT. MISTO % QUANT. % GERAL
GEIRO GERAL
GERAL GERAL GERAL

0 a 5 ANOS 22 44% 15% 120 54% 83% 03 75% 2% 145 52%

6 a 10 ANOS 07 14% 12% 50 22% 88% - - - 57 21%

11 a 20 ANOS 10 20% 21% 36 16% 77% 01 25% 2% 47 17%

21 a 30 ANOS 07 14% 44% 09 4% 56% - - - 16 6%

MAIS DE 30 ANOS - - - 01 0% 100% - - - 01 0%

SEM INFORMAÇÃO 04 8% 33% 08 4% 67% - - - 12 4%


TOTAL 50 100% - 224 100% - 04 100% - 278 100%
Fonte: elaboração própria

Na tabela, podemos ver que a maior parte dos estabelecimentos iniciou


as atividades há menos de seis anos, um total de 52% dos 278 locais. Os nativos
detêm 15%, os estrangeiros 83% e a categoria misto, 2%. Houve doze
estabelecimentos (4%) sobre os quais não obtive resposta. Também é possível
notar que quanto maior o tempo de funcionamento, menor o percentual. Assim, 6%
dos estabelecimentos funcionam há mais de vinte anos e apenas uma pousada
funciona há mais de trinta anos.
Por fim, a próxima tabela trata dos segmentos que compõem a cadeia
produtiva do turismo em Jericoacoara. Os estabelecimentos foram divididos em oito
segmentos: Alimentação (restaurante, lanchonete, sorveteria, bar e mercado),
Vestuário (roupas, calçados, acessórios, bolsas e cosméticos), Hospedagem (hotel,
pousada e hostel), Artesanato (produção artesanal local e importada, artigos de
decoração e ateliê), Agência de Viagem (agências que organizam os transportes e
os passeios), Esporte (escolas de kitesurf e loja de produto esportivo), Outros (lojas
de brinquedos, tabacaria, massagem, lojas de eletrônicos, lojas de conveniência,
farmácias e salão de beleza) e por fim Vestuário/Outros, que são as lojas que
vendem itens do vestuário, mas também possuem outros produtos, tornando difícil a
59

definição. O objetivo de separar os estabelecimentos por categorias é poder


visualizar qual ramo é predominante no local e quem o administra:

TABELA 5 - ESTABELECIMENTOS EM JERICOACOARA POR SEGMENTO COMERCIAL


% % %
QUANT. %
SEGMENTO NATIVO % QUANT. ESTRANGEIRO % QUANT. MISTO % QUANT.
GERAL GERAL
GERAL GERAL GERAL

ALIMENTAÇÃO 17 34% 24% 52 23% 72% 03 75% 4% 72 26%


HOSPEDAGEM 10 20% 10% 89 40% 89% 01 25% 1% 100 36%
VESTUÁRIO 12 24% 23% 41 18% 77% - - - 53 19%
ARTESANATO 09 18% 43% 12 5% 57% - - - 21 8%
AGÊNCIA VIAGEM - - - 08 4% 100% - - - 08 3%
ESPORTE - - - 03 1% 100% - - - 03 1%
OUTROS 01 2% 7% 13 6% 93% - - - 14 5%
VESTUÁRIO/OUTRO 01 2% 14% 06 3% 86% - - - 07 3%
TOTAL 50 100% - 224 100% - 04 100% - 278 100%
Fonte: elaboração própria

Como podemos observar, os meios de hospedagem compõem a maioria


dos estabelecimentos em Jericoacoara, totalizando 100 dos 278. Dos 36% que
correspondem às hospedagens, os nativos administram 10 pousadas (10%), os
estrangeiros são donos da maioria, 89 (89%) e “misto”, 1%. O segundo segmento
que possui mais estabelecimentos é o de alimentação, com 72 estabelecimentos
(26%). Os estrangeiros são a categoria que administra a maioria dos negócios em
todos os segmentos detalhados na tabela. Em relação ao total de estrangeiros (224),
a hospedagem ainda é o segmento predominante, com 40% do total.
Existem outras tabelas, referentes a outros dados do comércio, que serão
apresentadas neste trabalho. No entanto, para deixar a leitura mais fluída, sobretudo
em relação à quantidade de dados informados simultaneamente, estes dados
disponibilizados pelas tabelas serão discutidos juntamente com as falas dos
interlocutores que participaram da pesquisa. As próximas tabelas serão
apresentadas e analisadas em outros tópicos.
Ao longo do trabalho, foi possível perceber a importância do turismo como
atividade econômica, principalmente para Jericoacoara. As pessoas que trabalham
no comércio da vila dizem que ela pode ser considerada um centro que “sustenta”
grande parte da área que a circunda, o que mostra o peso que a localidade detém
diante das outras:
Porque assim, primeiro era uma coisa muito difícil que a gente tinha,
principalmente o trabalho, que nós não tínhamos o trabalho... e hoje
Jericoacoara não é só Jericoacoara, é a região toda, sabe. Jericoacoara
60

funciona, a região todinha depende de Jericoacoara, gente. Se Jericoacoara


não tem ninguém, primeiro que cai é Jijoca, sabe. Você chega lá...os
mesmos comerciantes da Jijoca falam pra gente: „Gente, Jijoca tá parada,
Jijoca não funciona, Jijoca só funciona se Jericoacoara funcionar‟. Se
Jericoacoara não tiver ninguém a Jijoca também não tem. O comércio de
Jijoca para porque não tem. E você vê aí, quando amanhece o dia, quantos
carros de gente vem da região pra trabalhar. Muita gente vem de fora pra
trabalhar aqui (Sabrina, nativa, dona de restaurante de pequeno porte).

A movimentação na vila chegou a tal intensidade, que muitos


interlocutores afirmam a quase inexistência de baixa temporada em Jericoacoara.
Mesmo quando o movimento é menor:

O comércio tá bombando né... mas às vezes não é tudo de mais importante.


A gente precisa, que fique claro, mas em relação ao turismo, negócio em
Jericoacoara, tá só pra cima. Tem visível melhoria assim, antes, na baixa
estação a gente não fazia o dinheiro nem do aluguel. Hoje... ou passava
uma semana sem passar ninguém na loja, sem vender nada. Hoje em dia
pelo menos qualquer coisinha todo o dia você vai vender (Catarina,
argentina, dona de loja de pequeno porte).

No que diz respeito ao desenvolvimento do turismo em Jericoacoara, já


sabemos que está consolidado, em acordo com dados institucionais e pela
quantidade de estabelecimentos que existem na localidade. No entanto, algumas
falas dos entrevistados foram importantes para pensar na configuração
socioespacial da vila. Na pesquisa de campo, pude perceber que dentre os
segmentos comerciais e de serviços, a variedade de opções atende a pessoas de
várias condições financeiras. Existem de lojas simples até lojas de grife, hotéis de
luxo e pousadas menores, restaurantes com cardápio internacional e restaurantes
locais. Dentro dessa variedade, é importante destacar que a maior parte dos
grandes empreendimentos, sejam hotéis, lojas ou restaurantes é administrada por
estrangeiros. No entanto, existem algumas lojas grandes e pousadas renomadas
que são de nativos. É interessante observar que nas falas de alguns nativos eles se
diferenciam dos estrangeiros quanto à origem e comentam sobre a zona central da
vila, que concentra a maior parte dos negócios:

E é gente do mundo todo que tá aqui dentro hoje, sabe. Não é só a região,
né... muita gente de fora, a maioria das pousadas aqui, tudo é de gringo.
Jericoacoara quase toda é de italiano. Outro dia nós estávamos falando
aqui com os meninos, eles diziam assim: eu não sei se eu tô no Ceará, ou
se eu tô em outro país, porque só fala gringo. [...] Então, nós estamos no
meio deles aqui. [...] Porque nativo nessa parte aqui tem pouco, e o resto só
são eles. Mas aqui tu vai, tu conta no dedo os nativos que tem (Sabrina,
nativa, dona de restaurante de pequeno porte).
61

Um dos interlocutores nativos menciona que uma das motivações para


construir sua pousada era de que ele gostaria de ajudar a família a não trabalhar
para “os outros”. Muitos dos nativos que participaram da pesquisa possuem ligação
com o comércio e colocam que a família também trabalha na atividade turística, em
algum segmento. A participação de nativos na prestação de serviços é grande, mas
também existem estrangeiros que realizam as mesmas atividades e são críticos em
relação à forma como o comércio se configura na área e das relações de trabalho:

[...] É verdade que o estrangeiro chegou pra cá, no começo...dá trabalho pra
todo mundo, botou dinheiro pra todo mundo, a fazer conhecer esse
lugar...mas também explora muito as pessoas, muito. Aqui paga muito
pouco, você trabalha muitas horas, algumas dessas as pessoas não ficam
tratando bem os funcionários... eu sei disso (Emília, italiana, trabalha em
hospedagem de estrangeiro).

Por outro lado, existem falas que mostram uma concepção diferente no
que diz respeito às concessões de emprego aos moradores da localidade,
especialmente aos nativos:

Pois é, tem muito estrangeiro que é dono de estabelecimentos e esses,


realmente, você não vai ver porque eles estão mais administrando mesmo
e, por sorte, que colocam gente da terra pra trabalhar (Íris, brasileira, dona
de restaurante e hospedagem de pequeno porte).

Em outro depoimento, o interlocutor entende que os nativos têm


“resistência” em aceitar a presença de estrangeiros no local. Inclusive, ele se
diferencia quando menciona ter uma política de só contratar nativos no
estabelecimento comercial que administra. Ele exemplifica onde vê as
manifestações de insatisfação e comenta:

[...] a mesma pessoa que escreve no Facebook chamando a gente de „os de


fora‟ é o que tem três casas de aluguel, e aluga pra gente que é de fora. [...]
Reclama dos „de fora‟, mas é o que tá contratando os filhos deles pra
trabalhar nas pousadas, nas lojas, então é bem... a gente fica pensando...
mas a gente percebe uma revolta deles (Adolfo, brasileiro, dono de loja e
hospedagem de médio porte).

Podemos ver que há diversas formas de conceber essa relação


empregatícia, diante dos agentes que a compõem. Por fim, é importante ressaltar
que Rodrigues (2014) afirma em seu estudo que nos espaços turísticos a geração
de emprego se concentra nos serviços de baixa remuneração, que são ocupados
por grande parte da população local, o que talvez explique a crítica e insatisfação
referida pelo entrevistado.
62

Ainda sobre a avaliação da atividade turística em Jericoacoara por parte


dos comerciantes e prestadores de serviços, eles mostram diferentes posições no
que diz respeito ao tratamento que o poder público confere ao local. Um assunto que
está ligado a esse ponto é o anúncio de uma parceria público-privada em 2013, pelo
ICMBio, que gerou polêmica entre os moradores10. Em relação aos sujeitos da
pesquisa, muitos relacionam essa proposta ao descaso do poder público e alguns
alegam que o Estado é incapaz de administrar o local, mostrando a descrença de
que essa proposta trará algum benefício para a vila:

Jericoacoara virou um modo de arrecadação e esse parque vai ser um


modo de arrecadação, não vai ser um modo de beneficiar a cidade, que não
vai ter benefício nenhum pra cidade. Nenhum! [...] Se não for aprovado é
porque eles não quiseram e se for aprovado é porque eles quiseram. A
população não decide (Abelardo, brasileiro, dono de hospedagem de
pequeno porte).

Outros são positivos em relação à proposta e se preocupam com a


preservação da vila para os moradores, visando que a parceria será benéfica em
termos de melhorar a qualidade de vida:

A gente que é morador, se tivesse que pagar, tá todo mundo fazendo


dinheiro em Jericoacoara, entende? Então se a gente, „Ah, vão me tirar 10
reais do bolso‟ quando está todo mundo fazendo milhões... tem muita gente
que faz muito dinheiro e não é só isso que interessa...o que interessa é que
a gente preserve isso daqui. Por que se não... daqui a quatro, cinco, dez
anos isso é...sei lá, Canoa Quebrada...tem um monte, não sei, acho que
vocês estudam, tem um monte de exemplos de lugares turísticos que eram
paradisíacos e depois que queimaram o filme, detonaram, sujaram, ficou
perigoso e o turismo não foi, e então e aí? Eu quero fazer dinheiro aqui a
uns dois, três anos, ou quero pensar em longo prazo, querendo ficar aqui
mais tempo? (Catarina, argentina, dona de loja de pequeno porte).

Dentre os estrangeiros, percebem-se diferenciações no modo de lidar


com possíveis mudanças na configuração da vila. Alguns que são favoráveis à
implantação do projeto visam melhorias para a população e não colocam o turismo
como prioridade para os benefícios que essa parceria poderia trazer. Inclusive,
alguns interlocutores apresentam críticas em relação a empresários de grandes
hotéis que, segundo eles, exploram o local e não se envolvem nos movimentos

10
Segundo Rodrigues (2015b), a intenção do governo é conceder à iniciativa privada a gerência do
Parna Jericoacoara para manter a infraestrutura e serviços, posto que o ICMBio, órgão gestor do
parque, alegou não ter recursos financeiros e humanos para gerenciar a área. Alguns pontos
polêmicos do projeto previam a cobrança de uma taxa para entrar no parque e também a
construção de um hotel e restaurante em áreas do parque proibidas para construção, segundo a lei.
Para mais detalhes sobre o caso, consultar Rodrigues (2015b).
63

organizados na vila que visam tratar de problemas cotidianos, como a questão do


lixo11. Um interlocutor resume as críticas ouvidas nas entrevistas:
Eu falei: ó, vocês exploraram muito esse lugar e ganharam muito dinheiro...
agora é o tempo de dar outra coisa pra esse lugar... ou esse lugar chega um
dia que vai acabar... Vai acabar (Emília, italiana, trabalha em hospedagem).

No que diz respeito aos nativos, muitos entrevistados mostraram


preocupação em detalhes do projeto, como o suposto pagamento de uma taxa de
entrada. Alguns se mostraram desfavoráveis à parceria público-privada, e muitos
criticaram a administração do poder público, da mesma forma que os estrangeiros.
O que pude perceber dessas falas é que existe um sentimento de
insatisfação direcionado ao poder público, especificamente o municipal, e é um
sentimento que perpassa a estrangeiros e nativos, o que leva alguns a verem a
aceitação de uma parceria público-privada uma forma de resolver ou minimizar os
problemas que o Estado não toma a iniciativa de resolver. No entanto, o sentimento
de insatisfação varia conforme quem fala. Existem aqueles que criticam a ausência
do Estado para suprir as necessidades básicas da população e há aqueles que
criticam a ausência do poder público quanto às providências que deveriam ser
tomadas em relação ao turismo. É importante destacar que todos os entrevistados
moram na vila e a grande maioria defende melhorias para Jericoacoara. No entanto,
na sutileza de algumas falas é possível perceber uma maior atenção a melhorias
para a atividade turística, e não a melhorias para a população em geral.
Nas entrevistas, alguns interlocutores dizem que ajudam de alguma forma
nos movimentos que tenham como proposta melhorar Jericoacoara, como a criação
de uma associação organizada pelos empresários dos negócios turísticos que tem
como proposta ações em benefício da vila, como a limpeza de ruas e becos, e a
reciclagem do lixo. O movimento iniciou em 2015, e não foi possível adquirir muitas
informações sobre a associação. O que é importante destacar é que as ações
referentes à reciclagem do lixo produzido na vila estão surtindo efeito. Alguns
entrevistados são engajados e acreditam que esta é a melhor forma de trazer
benefícios para a vila, e há a justificativa de que o poder público não dialoga com as
necessidades que a localidade demanda. Entretanto, percebemos divergências

11
Na pesquisa de campo e também por meio do acompanhamento de notícias referentes a
Jericoacoara, a questão do lixo foi um problema percebido pela equipe de pesquisa e muitos
interlocutores deram depoimentos sobre o acúmulo do lixo na vila. Disponível em:
<http://www.opovo.com.br/app/ceara/jijocadejericoacoara/2014/11/11/notjijocadejericoacoara,33464
88/moradores-denunciam-acumulo-de-lixo-em-jericoacoara.shtml>. Acesso em: 31 jan. 2016.
64

quando se fala em associativismo. Nas entrevistas, as falas de alguns interlocutores


são indiferentes a esses movimentos, às vezes mesmo por desacreditarem que uma
associação possa funcionar, por exemplo. Alguns dos interlocutores contribuem,
mas não estão diretamente envolvidos em associações e não concordam com
algumas ações. Inclusive, abordam o mesmo aspecto que o interlocutor anterior, o
qual criticou os grandes empresários que não se envolvem nos movimentos da vila:

Então tem gente que tem bastante dinheiro... não precisava depender dos
outros pra fazer mutirão pra limpar. Então, tem umas coisas... vamos fazer
na periferia lá, mais afastado que é aqueles nativos „xuco‟, que é uma zona
né...é uma coisa. Mas fazer aqui que é centro da cidade, pessoal que tem
dinheiro, e eles mesmos nem se mexem. [...] Eu colaboro no que dá. Não
vou fechar minha loja pra fazer mutirão, sabe, não... dinheiro, dependendo
do que tem pra empregar... tô a fim de colaborar, mas engajar não. Não...
tem umas coisas que eu sou contra. [...]... mas eu acho muito válido, já que
infelizmente os políticos aí não fazem nada mesmo...então a gente tem que
se reunir, conversar pelo menos (Emerson, brasileiro, dono de loja de roupa
de pequeno porte).

Apesar de contribuir financeiramente, o interlocutor também critica


algumas posturas dos movimentos, como não priorizar a periferia do vilarejo para os
cuidados de limpeza da cidade. Ele mostrou, nas falas, um apoio a ações que
melhorem a qualidade de vida da população residente. No que diz respeito a outras
associações, alguns interlocutores também não mostraram muito interesse em
participar dos movimentos, apesar de já terem se engajado em algum momento da
sua trajetória de vida.
Assim, podemos notar que quanto ao associativismo existem opiniões
diferentes, mas que, independente de participarem dos movimentos ou não, a
grande maioria dos entrevistados se diz preocupada em como o poder público
administra a vila e são muito críticos quanto a este modelo de administração pública.
O que podemos perceber de divergências nas preocupações, por exemplo, é que há
o interesse, por parte de alguns interlocutores, em direcionar as possíveis melhorias
da vila ao turismo, como uma das principais pautas. Já outros argumentam e
reivindicam melhorias para quem reside na localidade, mesmo que se preocupem
com a forma que o turismo é praticado no local e também esperem melhorias para a
atividade.
Para concluir o tópico, é importante destacar que a maneira de encarar as
ações e os projetos que o poder público tenta pôr em prática mostra que os donos
de estabelecimentos ora aglutinam-se em defesa de causas comuns e separam-se
65

internamente em outros momentos. Pudemos observar críticas entre eles quanto à


postura e atuação na localidade, mas que a maioria reivindica causas em comum,
como melhorias na infraestrutura básica da vila, ainda que alguns ponham o turismo
como pauta prioritária em seus discursos.
O objetivo deste tópico foi apresentar a configuração da cadeia produtiva
do turismo no local e as relações entre os agentes, que perpassou o âmbito político,
econômico e social, destacando momentos de sincronia de ideias entre eles e
momentos de oposição de posturas e pensamentos. Alguns aspectos foram
analisados, como a opinião em relação à administração pública que é responsável
pela vila, os movimentos de cunho social e suas pautas, bem como algumas
turbulências nas relações entre nativos e estrangeiros, e entre estrangeiros também.
O próximo tópico abordará um aspecto importante para melhor compreender as
relações que se configuram em Jericoacoara, as impressões dos agentes sobre o
modo de vida local.

4.3. Perspectivas sobre o modo de vida local

A atual configuração socioespacial de Jericoacoara nos remete a


reflexões sobre os diversos âmbitos que compõem o meio social. Na pesquisa de
campo, por meio das entrevistas, os depoimentos sobre o modo de vida local
apresentam quadros de rejeição e aceitação entre os moradores, tanto nativos,
como estrangeiros. Cada vez mais fui compreendendo que a formação de
identidades assume múltiplas possibilidades, na direito do sujeito “vir a constituir-se”,
como afirma Mary Garcia Castro (2000). A autora se vale dos termos
“desidentidades”, de Judith Butler em “Corpos em Questão” (1993) e “não-
identidades” de Terry Eagleton em “A ideologia da Estética” (1990), e explica que o
processo de desidentificação requer que o sujeito “deixe de constituir” a identidade
imposta a ele em situações de subalternidade. Além das identidades formadas e
impostas ao sujeito, Castro coloca que ele transita por fronteiras e margens, para
então questionar a formação das identidades e “constituir-se” sobre o que ele virá a
ser. Para ela, “não se trata somente de uma questão de respeito pelas
individualidades, pelas diferenças, mas sim, de um questionar fundador sobre as
possibilidades de desidentificação, as possibilidades das não-identidades nas
identidades” (CASTRO, 2000, p. 162).
66

A heterogeneidade que se configura na vila é percebida em alguns


detalhes, e o pesquisador precisa estar atento a eles. Antes de discutir sobre as
perspectivas dos agentes locais sobre as vivências e experiências de residir em
Jericoacoara, apresento a tabela com informações sobre a residência da maioria dos
donos de estabelecimentos locais:
TABELA 6 - RESIDENTES E NÃO RESIDENTES EM JERICOACOARA
% % %
QUANT.
RESIDÊNCIA NATIVO % QUANT. ESTRANGEIRO % QUANT. MISTO % QUANT. % GERAL
GERAL
GERAL GERAL GERAL
RESIDEM NA
47 94% 21% 167 75% 77% 04 100% 2% 218 78%
VILA
NÃO RESIDEM
02 4% 5% 40 18% 95% - 0% - 42 15%
NA VILA

TEMPORADA - - - 17 8% 100% - - - 17 6%
SEM
01 2% 100% - - - - - - 01 0%
INFORMAÇÃO
TOTAL 50 100% - 224 100% - 04 100% - 278 100%
Fonte: elaboração própria

Dos 278 estabelecimentos existentes em Jericoacoara, 78% (218) dos


proprietários residem na localidade. Dentre os 218 residentes, 21% correspondem a
nativos, 77% dos estrangeiros residem na vila, assim como todos os casais que
correspondem à classificação como estabelecimentos mistos, que correspondem a
2% do total de residentes. Dos empresários que não residem na vila, os estrangeiros
são a maioria. Dentre os 42 não residentes, 40 são de outra localidade. Por fim,
apresento um dado importante a considerar. Além dos comerciantes e prestadores
de serviços que residem e os que não moram em Jericoacoara, existem os
empresários que passam temporadas na vila, podendo ser dias a meses de
permanência. É importante destacar a forma como os respondentes deram esta
informação. Toda a resposta foi dada espontaneamente, e muitas vezes eles diziam
que os donos passavam dias, ou vinham duas a três vezes por ano em Jericoacoara
e permaneciam um tempo. Todos que responderam desta forma (e de outras formas
semelhantes) constam neste percentual de 6%, correspondendo a 17 empresários
que transitam de um local a outro. Este aspecto é importante para apresentarmos
uma terminologia que denomina pessoas que estão em trânsito, que residem em
mais de um local, os transmigrantes. Na discussão sobre a noção de identidade,
Schiller e Fouron (2000) dizem que na condição de transmigrante, os indivíduos:

[...] constroem campos sociais transnacionais. São pessoas que fazem mais
do que manter ligações sentimentais: tomam decisões cotidianas, mantêm
relações familiares, praticam atividades religiosas, tratam de assuntos
67

financeiros e organizam atividades políticas dentro de uma rede de relações


sociais que se estende para além das fronteiras nacionais. (SCHILLER;
FOURON, 2000, p. 52).

A situação em que o transmigrante se encontra remete à ideia de fluxos


de pessoas, culturas, divisas, e também ao descentramento do espaço e tempo,
discutido por Goldman (1999) quando apresenta as novas abordagens da
antropologia contemporânea. O transmigrante é um exemplo de que a antropologia,
assim como as outras áreas do conhecimento, precisa repensar os métodos de
pesquisa e as teorias das quais a disciplina é responsável. Não seria possível
pensar em transmigrantes sem repensar a noção de identidade.
Um dos interlocutores que concederam entrevista pode ser considerado
transmigrante. Até a época da entrevista, realizada em 2014, ele residia seis meses
em Jericoacoara, onde mantinha o seu negócio, e os outros seis meses passava em
seu país de origem, na Europa, onde mantinha uma pousada. No que diz respeito ao
turismo na Europa, ele define sua estadia pelas temporadas em que a atividade está
em alta:

Primavera é alta temporada. E então, quando chega outubro, todas as


pessoas que trabalham com turismo, elas fecham. Seja restaurante... tudo
que tá ligado ao turismo. Todo mundo fecha, até grandes hotéis, fecham.
Ninguém vai ficar parado... os hotéis abertos, com despesa, na baixa
temporada (Luan, português, aluga casa para turistas em Jericoacoara).

O interlocutor define a movimentação que realiza entre os países por


meio da sazonalidade do turismo. Isso reforça o argumento de Schiller e Fouron
(2000) sobre as movimentações e interações que o transmigrante tem em mais de
um local.
No que diz respeito às impressões sobre a localidade, os estrangeiros
entrevistados detêm, na maioria das conversas, o discurso de que houve um
encantamento inicial com a localidade:

E você percebe que no começo é assim, você acha que todo mundo é
amigo, que aqui tem liberdade absoluta de todo mundo, você pode chegar
na rua sem colocar nada demais, sem sapato, sabe... Acho que essa coisa
que num primeiro momento você... Pra mim, que sou estrangeira, tem um
impacto muito forte. Tem um sentido de liberdade, liberdade grande que
você tem aqui... [...] Quando você vai na praia, no pôr-do-sol, você olha todo
mundo que brinca...porque é como se a praia fosse o lugar da vida desse
lugar [...] E a gente não tá acostumada... Você chega aqui, olha tudo isso,
fica: Uau! Acho que isso não é só pra mim, é pra todo o estrangeiro (Emília,
italiana, trabalha em hospedagem).
68

Esse sentimento de encantamento perpassa a maioria dos depoimentos


dos estrangeiros que concederam entrevistas. O interlocutor “transmigrante” teve um
discurso semelhante a outros entrevistados, mostrando-se encantado com
Jericoacoara, dizendo que pensou ter encontrado ali o “paraíso”, quando conheceu o
local. Além do encantamento, outros estrangeiros colocam que buscavam qualidade
de vida, e alguns aliavam a qualidade de vida a investir em seus negócios. Os
depoimentos também revelam um sentimento de “fuga” das atribulações dos
grandes centros urbanos, como motivo a fazer morada na vila:

Me parece que aqui... tem que haver qualquer coisa aqui, porque as
pessoas que vem pra cá, elas também se alheiam dos problemas, da
cidade, de tudo e aqui ela esquece um pouquinho de tudo. Já vem porque é
longe, pela tranquilidade, pela beleza natural. E talvez alguma coisa atraia
essas pessoas pra cá. É... tá ficando grande a cidade, me parece que
também pode acontecer que isso possa perder um pouco dessa aura que tá
em volta da cidade, mas eu acho que continua, pelo menos eu continuo a
sentir essa tranquilidade e a vontade de morar pra cá (Luan, português,
aluga casas para turistas).

Este depoimento sobre as impressões do local revela um aspecto que foi


ressaltado em outras entrevistas, especialmente fornecidas por estrangeiros. O
interlocutor acima menciona que o crescimento de Jericoacoara poderia trazer
mudanças para o modo como eles veem o local. Em outros depoimentos, esse
sentimento também foi expresso. Alguns alegaram que é difícil residir em
Jericoacoara, que é outra perspectiva quando o indivíduo volta para morar e não
como turista. Outros disseram que nos últimos cinco anos sentiram muitas
diferenças na configuração do local, que já não era tão bonito como quando
chegaram. Isso nos faz pensar sobre os efeitos do crescimento do local e como os
moradores se sentem em relação a essa nova conformação.
A maioria dos estrangeiros que concederam uma entrevista disse que
conheceram Jericoacoara enquanto estavam em férias. O encanto pela localidade
os fez retornar e investir em pousadas, restaurantes, lojas ou trabalhar prestando
serviços, além de buscar a residência. Esse aspecto remete às afirmações de
Krippendorf (2009) sobre as necessidades que condicionam o homem que trabalha
e precisa de descanso. Ele mostra que no “mundo industrial” o termo cotidiano já
carrega um aspecto negativo. Relacionamos a palavra ao cansaço, sujeira, tumulto,
trabalho. Relacionamos ao cinza, ao monótono, ao triste. Viajar, então, torna-se o
caminho para suportar o cotidiano, para pintá-lo de cores vivas e alegres. O autor diz
69

que as viagens são importantes para os indivíduos, uma vez que as viagens
reconstituem, trazem forças vitais e sentido à vida.
É interessante perceber que os donos de estabelecimentos e prestadores
de serviços que decidiram morar na mesma localidade em que foram passar as
férias agora têm aquela localidade como o seu cotidiano. Eles buscaram um modo
de vida diferente do anterior e as falas refletem essa visão:

Hoje eu me considero parte da comunidade, eu não vim só pra explorar o


turismo ou o comércio. Pra falar a verdade a gente depende do turismo pra
sobreviver, mas é uma das épocas que a gente menos gosta, quando tá
muito cheio, que é como se a gente tivesse perdendo um pedaço da nossa
casa, sendo invadido por outras pessoas, então, quer dizer, foi além de uma
escolha comercial vir pra cá. Por uma qualidade de vida, por considerar aqui
um lugar muito bom pra se viver. [...] Então assim, nós não somos aquele
pessoal que veio aqui só pra ganhar dinheiro, em primeiro lugar por uma
opção de vida, entendeu? (Adolfo, brasileiro, dono de loja e hospedagem de
médio porte).

Neste depoimento, além do interlocutor se diferenciar de outros


estrangeiros, no que diz respeito a gerar lucros para seu negócio, ele também
mostra uma nova perspectiva sobre a localidade, uma vez que ele decidiu residir em
Jericoacoara. Quando o sujeito se torna morador, ele adquire uma nova percepção
do local como, por exemplo, uma nova visão sobre a atividade turística a qual,
mesmo dependendo da movimentação de pessoas, gera um sentimento de
contrariedade porque, nesta nova percepção, Jericoacoara é a casa dele. É
interessante perceber essas mudanças por parte dos agentes e sobre como eles
expressam um sentimento de pertencimento ao local e preocupação com possíveis
mudanças e efeitos advindos do turismo que ali é praticado, apesar de todos os
entrevistados dizerem que a atividade é importante.
Em relação aos nativos, estes quando comparam a vila atual com os
tempos anteriores, quando o turismo ainda era incipiente, apresentam um discurso
que caminha no sentido de afirmar o pertencimento à localidade, o que ficará mais
nítido quando discutirmos sobre os imóveis comerciais e seus donos.
Alguns nativos colocaram que em décadas anteriores, quando havia
maior dificuldade para residir na vila, eram épocas felizes. Outros alegam que
mesmo com alguns problemas pelos quais a localidade passa atualmente, devido ao
crescimento e à grande movimentação de pessoas, dizem-se contentes com a vida
que levam:
70

[...] aqui tá muito bom, mas acontece as coisas.... porque entra muita gente
que você não conhece, entende? [...] Eu gosto muito do meu lugar gente.
Gosto. Eu não saio daqui pra morar em outro canto. Eu vou conhecer, mas
morar só aqui mesmo (Beatriz, nativa, trabalha em restaurante de pequeno
porte).

No que diz respeito às perspectivas de residência na vila e das relações


que se desdobram no modo de vida local, alguns nativos entrevistados não
mencionam aspectos negativos como consequência de estrangeiros morarem na
vila, a princípio. As críticas maiores são ligadas à questão comercial, de que eles
detêm a maior parte dos estabelecimentos, como vimos no tópico anterior, também
veremos algumas críticas mais à frente. Os estrangeiros entrevistados também
colocam que têm boas relações com os nativos e demais moradores. Entretanto, ao
mesmo tempo em que falam sobre as boas relações, também relatam dificuldades
de interação com moradores locais, especialmente devido à concepção êmica do
estrangeiro. Um exemplo encontrado nas entrevistas é de que se o indivíduo é
estrangeiro ele possui dinheiro. É importante lembrar que a perspectiva êmica pode
significar estrangeiros de outros países, brasileiros de outros estados, ou outra
situação, isto depende sempre do contexto da fala do interlocutor. Os depoimentos
mostram que a concepção de que o estrangeiro é alguém que tem dinheiro é
direcionada aos estrangeiros vindos de outro país:

E seguramente você é gringa, seguramente você tem dinheiro, ok? [...]


Também por que aqui quase... mais ou menos todos os italianos que
moram aqui tem pousada, tem restaurante, tem algumas coisas sabe...eu
sou uma das poucas que não tenho nada [risos]. E depois de um tempo
quando ele [nativo] vê que você tá trabalhando com eles... que você mora
na casa de um nativo, como eles...tem um pouco de... a gente começa a
olhar você diferente, começa a falar com você, agora quando vai no
mercado, a gente cumprimenta, a gente fala...mas antes não era assim
(Emília, italiana, trabalha em hospedagem de grande porte).

Em outro depoimento, o interlocutor faz uma ligação entre as relações


que eles têm com os nativos e o desenvolvimento do turismo na localidade:

Naquela época era mais fácil a relação com os nativos, sabe. Dez anos
atrás, porque não tinha tanto essa energia do dinheiro. Hoje o estrangeiro
que chega é... é dinheiro né. É o primeiro que o pessoal quando olha pra
mim, pensa em grana, assim né, que lucro a vila te dá (Catarina, argentina,
dona de loja de pequeno porte).

Além dos depoimentos que nos falam sobre as dificuldades de interação e


a mudança na forma como os outros veem os estrangeiros, também há depoimentos
que contém caráter discriminatório. Um dos estrangeiros relata a dificuldade de se
71

relacionar com os nativos, mas compreende como sendo uma ação que também
parte dos estrangeiros:

Tem um pouco de discriminação, mas também muitos italianos falam que


aqui nativo se parecem com macaco... entende? Não é legal, eu, quando
escuto essa coisa não é legal...eu falo sempre: „Ah, e por que você mora
aqui, com macaco‟? (Emília, italiana, trabalha em hospedagem).

O depoimento de um nativo também retratará esse quadro também nos


caso de brasileiros vindos de outros estados do país:

Tem muito estrangeiro que critica nativo... tem muito, que mora aqui, que
comprou aqui barato, eles criticam. Tem sim, tu sabe que o estrangeiro, tem
uns cariocas né, que vêm aqui... nós somos nordestinos, cearense... eles
discriminam (Beatriz, nativa, trabalha em restaurante de pequeno porte).

Nos relatos de estrangeiros, alguns mencionam que nativos evitavam


interagir com eles, quando se mudaram para a vila, e apesar de alguns depoimentos
mostrarem uma dificuldade dos nativos aceitarem estrangeiros, os próprios
estrangeiros também mostram a mesma dificuldade em relação a pessoas que vêm
de outro país, ou brasileiros, e criticam aqueles que têm uma postura diferente
quanto ao envolvimento com o modo de vida local:

Os estrangeiros vivem num mundo paralelo, então a impressão que passa é


que são poucos que se envolvem nos movimentos de Jeri, mas muitos
estão aqui. Assim... talvez não seja isso, a realidade não seja essa, é a
impressão que passa, é que estão vivendo num mundo paralelo, fazendo a
exploração do local. Enquanto aqui tiver vida útil e comercial, eles estão
aqui. [...] Enquanto eles tiverem alguma coisa pra tirar o ganho, eles
permanecem. Se um dia acabar isso aqui, pega as coisas e vão embora.
Mas tem muitos que são muito gente boa, mas assim, eles vivem nesse
mundo paralelo „eu sou do Brasil, mas eu não sou brasileiro. Eu não quero
ter participação, eu não quero ter contato‟ (Adolfo, brasileiro, dono de loja e
hospedagem de médio porte).

Em outros depoimentos, percebemos como alguns estrangeiros se


mostram engajados em preservar o local para os moradores. Eles são muito críticos
em relação a outros estrangeiros e também reivindicam melhorias para a vila:

Essa é a coisa de Jeri... gente quer só ganhar... não importa pra aqueles
que são donos de tudo... ele fica mal, pega um carro e vai pra Fortaleza...
mas e os nativos que não tem dinheiro? Eu, meu filho, que não posso pegar
um carro e ir... não dá... agora... que vai fazer? Eu tenho uma prioridade,
mas se pra você não é prioridade... mas eu vou no posto de saúde quando
precisa, eu vejo aí quantos nativos ficam com crianças em atendimento, eu
não vou pra Fortaleza (Emília, italiana, trabalha em hospedagem).

Em alguns depoimentos fica claro a aproximação entre as percepções de


estrangeiros e nativos, por viverem em condições semelhantes, ou por terem
72

interesses em comum. Apesar dos relatos dizerem que existem boas relações entre
os agentes da pesquisa, percebe-se conflitos e turbulências nas relações dentro da
localidade. Nativos e estrangeiros aproximam-se em determinadas situações sociais
e também se diferenciam, assim como existem estrangeiros que se diferenciam de
outros estrangeiros.
Até onde pude compreender, a classificação que eles estabelecem está
além de origem de nascimento, é algo bem mais complexo e profundo. Tem a ver
com o envolvimento no cotidiano, nas lutas por melhorias na vila, interesses em
comum, a convivência entre eles. Isso também remete ao modo como alguns
moradores se concebem nativos sem terem nascido na localidade, por exemplo. Em
algumas entrevistas, e também na pesquisa de campo, a equipe de pesquisa ouvia
que, passado algum tempo de estadia na vila, muitas pessoas se consideravam
nativos. Quando realizei o preenchimento das fichas correspondentes a cada
estabelecimento, houve casos em que o proprietário se considerou nativo, mas não
era da localidade. Esses aspectos remetem ao pensamento de George Marcus
(1991), quando este menciona os diversos contextos sociais nos quais a identidade
de um indivíduo se forma:

A identidade de alguém, ou de algum grupo, se produz simultaneamente em


muitos locais de atividades diferentes, por muitos agentes diferentes que
têm em vista muitas finalidades diferentes. A identidade de alguém no local
onde mora, entre vizinhos, amigos, parentes ou pessoas estranhas, é
apenas um dos contextos sociais, e talvez nem seja o mais importante na
formação de uma identidade (MARCUS, 1991, p. 204).

Segundo o autor, portanto, a formação de identidades perpassa diversos


âmbitos que podem influenciar na sua formação. Trajetória de vida, experiências
fora do local onde mora, vizinhança, local de trabalho, são alguns dos contextos de
que podemos nos valer para pensar a noção de identidade como um conceito que
comporta a heterogeneidade, que adquire múltiplas formas.
Dando continuidade a esta exposição textual, o próximo aspecto que me
interessa abordar é sobre como se configura a propriedade do imóvel em
Jericoacoara. É importante lembrar que para as informações obtidas pelas respostas
das fichas considerei o sentido ético inicialmente apresentado, para nativos e
estrangeiros. Portanto, vamos a elas.
73

4.4. Considerações sobre a propriedade do imóvel comercial em Jericoacoara

A tabela seguinte apresenta quantos pontos comerciais em Jericoacoara


são próprios e quantos são alugados, ou seja, quando o ponto comercial é próprio
significa que o dono do estabelecimento é proprietário do imóvel comercial e do
negócio que funciona nele. Quando o ponto comercial é alugado significa que o
dono do estabelecimento aluga aquele espaço de outra pessoa, não sendo
proprietário do imóvel, apenas do negócio:

TABELA 7 - ESTABELCIMENTOS PRÓPRIOS E ALUGADOS EM JERICOACOARA


% % %
IMÓVEL QUANT. %
NATIVO % QUANT. ESTRANGEIRO % QUANT. MISTO % QUANT
COMERCIAL GERAL GERAL
GERAL GERAL . GERAL
PRÓPRIO 35 70% 30% 80 36% 68% 02 50% 2% 117 42%
ALUGADO 15 30% 9% 143 64% 89% 02 50% 1% 160 58%
SEM
INFORMAÇÃO - - - 01 - - - - - 01 0%

TOTAL 50 100% - 224 100% - 04 100% - 278 100%


Fonte: elaboração própria

Do total de 278 estabelecimentos, 42% têm seus donos como


proprietários do imóvel, dos quais 35 são nativos (30%), 80 são estrangeiros (68%) e
dois estão na categoria misto (2%), totalizando 117 imóveis comerciais e de
serviços. No que diz respeito aos estabelecimentos que pagam aluguel pelo imóvel,
correspondem a 58% dos 278 comércios, ou seja, 160 comerciantes pagam aluguel
pelo imóvel comercial que utilizam. Dos 160 imóveis que são alugados, existem
quinze comerciantes nativos que pagam aluguel (9%), 143 são estrangeiros (89%) e,
por fim, dois estão na categoria misto (1%). Podemos observar que os estrangeiros
ainda mantêm a maior parte dos estabelecimentos que são próprios, ou seja, são
donos do negócio e do imóvel. Por outro lado, os estrangeiros também formam a
maioria dos que pagam aluguel pelo prédio do imóvel comercial.
Por meio das informações contidas na tabela, chegamos à constatação
de que em mais da metade dos estabelecimentos em Jericoacoara os donos dos
negócios não detêm a propriedade do imóvel comercial, o que significa que por trás
dos 160 donos de negócios na vila, existem locadores em número que pode chegar
a 160, entre nativos e estrangeiros. Isso nos passa para a próxima tabela, que trata
especificamente sobre a propriedade do imóvel em Jericoacoara. Lembrando que as
74

informações sobre a origem dos locadores foi conseguida durante a aplicação das
fichas, e foram fornecidas pelos próprios respondentes.

TABELA 8 - PROPRIEDADE DO IMÓVEL COMERCIAL EM JERICOACOARA


Sem
LOCADORES % PROPRIETÁRIOS % TOTAL %
informação
NATIVOS 102 64% 35 30% - 137 49%
ESTRANGEIROS 47 29% 80 68% - 127 46%
MISTOS - - 02 2% - 02 1%
NÃO INFORMADO 11 7% - - 01 12 4%
TOTAL 160 100% 117 100% 10 278 100%
Fonte: elaboração própria

A tabela foi dividida em duas categorias, locadores e proprietários. Os


locadores são os donos do imóvel comercial que alugam para outras pessoas, que
totaliza 160 imóveis. Dos 160 imóveis alugados, 7% (11) não souberam informar a
origem do locador. O objetivo desta tabela é mostrar quantos nativos e estrangeiros
detêm a propriedade do imóvel comercial na vila, cruzando os dados sobre os
proprietários do imóvel que o utilizam para terem seus negócios (totalizando 117
proprietários) com os dados sobre os locadores, que alugam o prédio comercial para
outras pessoas (totalizando 160 locadores).
Os dados apontam que dos 160 locadores de imóveis comerciais, 64%
correspondem a nativos (102) e 29% a estrangeiros (47). Se cruzarmos esses dados
com os referentes aos empresários nativos e estrangeiros, teremos que a maior
parte dos imóveis comerciais em Jericoacoara encontra-se em mãos de nativos,
contabilizando 49% dos 278 pontos comerciais existentes. Os estrangeiros detêm
46% das propriedades, o que igualmente inclui os empresários que são donos do
imóvel comercial e os locadores que alugam para outros.
Por fim, a última tabela informativa também foi um cruzamento de dados.
Ela apresenta o percentual de nativos e estrangeiros que alugam seus imóveis, seja
para nativos ou estrangeiros:
TABELA 9 - PERCENTUAL DOS LOCADORES EM RELAÇÃO À ORIGEM DOS LOCATÁRIOS
LOCADOR
LOCATÁRIO
NATIVO % ESTRANGEIRO % NÃO INFORMADO TOTAL %
ESTRANGEIRO 89 87% 44 94% 10 143 89%
NATIVO 11 11% 03 6% 01 15 11%
MISTO 02 2% - - - 02 1%
TOTAL 102 100% 47 100% 11 160 100%
Fonte: elaboração própria
75

A Tabela 9 é referente apenas aos imóveis alugados. O objetivo é saber


para quem os nativos e estrangeiros alugam seus imóveis. Dos 102 locadores
nativos, 87% alugam para estrangeiros. 11% correspondem a nativos que alugam de
nativos, e 2% são os negócios de propriedade dos casais mistos (nativo e
estrangeiro). Dos 47 locadores estrangeiros que detém a propriedade do imóvel
comercial, 94% dos espaços são alugados para estrangeiros, e 6% para nativos.
Estas tabelas trouxeram informações fundamentais para pensar na
atuação de nativos e estrangeiros no comércio local. A questão da propriedade da
terra foi levantada por muitos entrevistados. A maioria dos estrangeiros aborda o
tema de acordo com o que vivenciaram na localidade, porque alguns entrevistados
moram na vila há muitos anos (alguns há mais de 25 anos) e viram todo processo de
aquisição das terras e do desenvolvimento da vila. Outros interlocutores moram há
poucos mais de sete anos e já vivenciaram outros aspectos, como poderemos
conferir nos depoimentos. Alguns abordam o assunto de forma crítica, ligando este
aspecto à dificuldade de aceitação de estrangeiros por parte de nativos:

O que eu percebi é que parece que eles se sentem roubados, parece que
12
invadiram uma área que é deles. Isso... existe o „Mural de Jericoacoara‟ ,
agora que tá tranquilo, mas direto no „Mural de Jericoacoara‟, tinha várias
agressões. Na verdade nós somos chamados de „os de fora‟. „Os de fora
que chegam aqui pra tirar a nossa terra, pra tirar aquilo que é nosso‟, existe
uma revolta muito grande. Tem muitos que são esclarecidos, mas a grande
maioria olha pra gente com olho muito ruim... de não querer a gente aqui.
[...] Agora o fato é que ninguém chegou invadindo a terra de ninguém. Eles
eram os donos da terra, se um dia eles não têm essa terra é porque eles
venderam, trocaram. Não sabiam o valor que tinha e trocou, ou deu de
graça (Adolfo, brasileiro, dono de loja e hospedagem de médio porte).

Outros abordam aspectos referentes a décadas anteriores, quando era


difícil habitar na localidade, como vimos nos capítulos anteriores, e o interlocutor
também expõe que a terra, naquela época, não tinha valor monetário:

[...] eles saíram daqui porque aqui começou a ficar um negócio difícil. Não
tinha óleo pra comprar, não tinha água, a cacimba que tinha era longe.
Jericoacoara era uma vila de sete, oito casas. [...] Então, todo mundo
começou a vender, sair, abandonar, ir embora... Porque se tem um lugar
onde você não tem uma lata de óleo pra você comprar, porque o nativo não
tinha mais de onde tirar o dinheiro. Começaram a fazer as trocas, de pesca
por tapioca, por tudo... Pessoal do Mangue Seco, pessoal do Guriú... Então,

12
O “Mural de Jericoacoara” é um grupo criado na rede social Facebook, onde os turistas colocam
depoimentos do que vivenciaram em Jericoacoara. Os moradores também utilizam a página para
divulgar produtos dos seus negócios e falar sobre assuntos concernentes a vila, como eventos em
Jericoacoara e até assuntos mais sérios, como roubos e furtos de objetos. Tornou-se um espaço de
interação entre moradores, pessoas que visitaram o local e outras que têm interesse em conhecer
Jericoacoara.
76

eles foram se extinguindo, aí começou a chegar o turismo. [...] Então essa


cultura do nativo sair foi criada por eles, porque se o terreno não tinha
valor... Aí o pessoal fala 'ah, eles foram oprimidos'. Não, eles venderam.
Infelizmente eles trocaram por um buggy, que logo em seguida o filho
quebrou, vendeu, trocou por um litro de cachaça... Porque não tinha valor
(Abelardo, brasileiro, dono de hospedagem de pequeno porte).

Alguns estrangeiros colocam que existem muitos nativos no comércio


local, e que muitos não venderam suas terras. Mas também estabelecem diferenças
entre os nativos:

Não existe êxodo aqui, não existe. Só tem pessoas chegando, gente
embora... Acho que conheço três famílias que trocaram a vida de
Jericoacoara por Jijoca, por Preá, mas poucas, poucas. E os nativos, eles
venderam muitas terras sim, mas muitos também não venderam. Então tem
muitos, muitos na cidade que... que pertencem aos nativos. Eles estão
trabalhando com turismo, os filhos estão estudando. Tem muita gente daqui
estudando em Sobral, na faculdade. O nativo daqui ele não quer ser
empregado. Ou você tem aquele que não quer fazer nada, né, o porco, o
sujo, o ignorante e ele não quer evoluir, e ele não evoluiria em qualquer
lugar porque ele não quer mesmo, né? Ele vendeu a terra dele porque ele
foi ser... ficar à margem, gastou o dinheiro, bebeu tudo. Ele não quer nada
com nada, que é um tipo de gente mesmo. E tem o outro que correu atrás e
tá aí (Íris, brasileira, dona de restaurante e hospedagem de pequeno porte).

A partir destes depoimentos e dos dados apresentados nas tabelas, é


possível confirmar que a maior parte da propriedade do imóvel comercial está nas
mãos de nativos. Entretanto, no que diz respeito a quem detêm mais imóveis
comerciais, a diferença entre nativos e estrangeiros é pequena, apenas 3% (ver
Tabela 8). Isso também nos ajuda a compreender as falas de alguns nativos, que
não concordam com a configuração atual da vila e alegam que os estrangeiros
possuem a maioria das propriedades comerciais. A fala de um empresário nativo
mostra um forte sentimento de pertencimento à localidade, além de discordar de
como a vila está conformada atualmente:

A maioria dos nativos, que eram poucos, venderam tudo o que tinha e hoje
Jericoacoara na verdade tá na mão de pessoas que não são daqui. Os
nativos já não têm voz, vamos dizer assim, tá tudo afastado ali próximo do
estacionamento, uns de aluguel outros de casa própria, mas... Vamos dizer,
perderam o que tinha, hoje trabalham pros outros, na verdade não havia
essa necessidade. Eles deveriam hoje ter seus imóveis alugados ou vice-
versa e viver melhor do que vivem hoje. Não quer dizer que vivem pior do
que antes, por que hoje tem mais...mais possibilidade, a renda é realmente
distribuída para todos, mas por nativo mesmo, eu acho que perdeu bastante
pelo o que Jericoacoara é hoje, deveria ser melhor pra eles do que pras
pessoas que vieram pra cá (Luís, nativo, dono de hospedagem de médio
porte).

No decorrer dos depoimentos de nativos apresentados neste capítulo, em


diversos momentos existe um sentimento de insatisfação, por parte de nativos, pelo
77

fato de que a maioria dos negócios turísticos está nas mãos de estrangeiros. Como
dito anteriormente, a maior parte dos imóveis comerciais em Jericoacoara está em
mãos de nativos (ver Tabela 8). Entretanto, os estrangeiros detêm 81% dos
negócios turísticos na localidade. Mesmo que a maior parte dos imóveis seja de
nativos, que ganham com o aluguel, são os estrangeiros que movimentam o local,
em termos da circulação de dinheiro e empregabilidade, possuindo um maior
controle sobre a geração de empregos e sobre o comércio, de modo geral.
A diversidade de informações e interpretações que os sujeitos
apresentaram nas entrevistas e nas conversas informais me remeteu a Goldman
(2003) quando ele diz que o etnógrafo deve articular os diferentes discursos e
práticas que observa, sem jamais atingir uma totalização ou síntese completa. No
caso desta monografia, o saber de quem realizou a pesquisa e agora escreve um
texto que expõe os resultados não é mais verdadeiro do que os discursos que foram
surgindo no trabalho de campo.
As interpretações que os agentes do comércio dão para as situações
discutidas mostra claramente a diversidade de composições que surgem nos
arranjos efetuados pelos moradores locais. Alguns discursos procuram legitimar
fortemente que os nativos são filhos da terra, atribuindo a propriedade da localidade
a eles, e outros discursos criticam essa tentativa de legitimação, como os
estrangeiros que defenderam a concepção de que as terras não foram retiradas dos
nativos, mas que eles venderam porque quiseram, ou seja, é uma interpretação
diferente do pensamento retratado pelos nativos, mas se referem a acontecimentos
constatados pela pesquisa. Isso foi um aspecto de diferenciação entre nativos e
estrangeiros, bem como outros depoimentos que relataram a dificuldade de
aceitação dos estrangeiros por parte de nativos, bem como nas interações que se
seguiram.
No entanto, houve contextos em que eles se aproximaram, quando
abordei as relações com o poder público, onde a maioria dos entrevistados é
insatisfeita com a administração da Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara, município
ao qual a vila pertence. Encontramos casos de estrangeiros residentes que se
aproximam da realidade de muitos moradores, que não são empresários e vivem “à
margem” no local, com péssima assistência por parte do poder público e que
reivindicam melhorias quanto a esse aspecto. Também encontramos diferenciações
entre os estrangeiros, no que diz respeito ao engajamento em movimentos de cunho
78

social na vila, e que, enquanto moradores, também reivindicam melhorias na


qualidade de vida da localidade.
Como foi dito anteriormente, as identidades se configuram em acordo
com os diversos contextos sociais em que os sujeitos estão inseridos. Portanto, é
possível encontrar estrangeiros que não se denominem como “pessoas de fora”, e
tenham um sentimento de pertencimento ao local, como também é possível
encontrar moradores que não são nativos, mas se denominam como nativos,
literalmente. As situações encontradas foram diversas, e pude perceber que as
diferentes formas como eles se caracterizam diz muito sobre as relações
estabelecidas em Jericoacoara, configurando um caleidoscópio de formação de
identidades, que enaltece o caráter heterogêneo daquele meio social. Isso só reforça
a incapacidade de criar categorias homogêneas e simples, quando se trata de
identidades. Para a pesquisa, foi necessário que eu estabelecesse essas categorias,
mas tendo ciência de que isso teria de ser esclarecido ao longo do trabalho. Porque,
como Goldman diz, estamos tratando “pessoas muito concretas, cada um dotada de
suas particularidades e, sobretudo, agência e criatividade” (GOLDMAN, 2003, p.
456).
79

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta monografia objetivou realizar um estudo sobre a configuração da


cadeia produtiva do turismo em Jericoacoara. Inicialmente, apresentei o turismo
como uma das principais temáticas de estudo deste trabalho, porque é um tema que
tem crescido dentro das ciências sociais e porque Jericoacoara está consolidado
como um espaço turístico. Não seria possível compreender alguns aspectos da vila,
como a que me propus estudar, sem considerar o turismo que é praticado na área. A
metodologia também foi fundamental para pensar o trabalho de campo e
desenvolver a escrita, contribuindo sobremaneira para que eu transmitisse, ainda
que de maneira simples, minhas impressões sobre o campo.
No capítulo um, escrevi sobre a trajetória da vila, no que diz respeito a
sua fundação, importantes acontecimentos que marcaram a história da localidade, e
como ela tornou-se conhecida em âmbito nacional e internacional. A importância
deste capítulo está em conhecer o local onde a pesquisa foi realizada e
compreender que a trajetória do crescimento da vila, nas últimas décadas, está
conectada com a atividade turística. Este capítulo cumpriu seu papel de tornar-se o
palco para o desenvolvimento da monografia, tanto no que diz respeito a apresentar
minhas impressões, como em preparar o leitor para a apresentação dos sujeitos da
pesquisa, que compõem a cadeia produtiva do turismo.
O capítulo dois foi pensado para abordar o turismo como atividade
econômica e seus efeitos. A breve apresentação sobre algumas estratégias de
desenvolvimento demonstrou a força que o turismo carrega na configuração do
capitalismo contemporâneo, bem como os efeitos desse desenvolvimento,
especialmente nos países mais pobres. É um capítulo importante para pensar “o
outro lado” do turismo, o que ele traz para as comunidades receptoras além da
geração de empregos e divisas.
O terceiro e último capítulo trouxe o objetivo principal da pesquisa, a
configuração do comércio em Jericoacoara através dos sujeitos que compõem a
cadeia produtiva do turismo no local. As questões que me moveram a pensar nesses
atores estavam relacionadas a compreender como se dão as relações no âmbito
político, econômico e social. Por meio das entrevistas, acredito ter apresentado a
diversidade de relações estabelecidas entre eles e como as interações fluem entre
os sujeitos e quebram categorias. A maioria dos interlocutores preocupa-se com a
80

economia e a política local, mas muitos também discursam sobre as interações que
são turbulentas em alguns momentos e harmoniosas em outros.
Após ter apresentado a noção de identidade e dizer, no fim do capítulo
três, que não é possível fechar em grupos a diversidade que Jericoacoara detém no
que diz respeito aos sujeitos da pesquisa, não cabe mais apresentar as relações
partindo de estrangeiros e nativos. Eles são interlocutores que interagem,
reivindicam causas e levantam bandeiras que os une e os separa, em vários
momentos. Assim, é possível perceber que eles se mostram preocupados com a
política local e são muito críticos em relação à administração do poder público
municipal. No entanto, os movimentos que alguns realizam para cumprir
responsabilidades que são do poder público não seduzem todos a se unirem e
participarem.
Alguns são descrentes que a criação de associações poderá funcionar,
alegando que não seja possível gerenciar as práticas em benefício de todos, e de
que há conflitos internos que atrapalham o bom funcionamento de uma entidade.
Outros já consideram que a atitude é válida e merece ser continuada e alguns são
indiferentes a isso. O que pude perceber é que há uma preocupação na forma como
a vila é administrada pelo poder público porque isso pode trazer efeitos negativos
para a atividade turística. É importante destacar, neste ponto, que para a população
residente, inclusive os comerciantes e prestadores de serviços, a infraestrutura
básica, que é responsabilidade do Estado, não tem melhorias significativas.
Portanto, o que foi possível identificar nesta pesquisa é que, para muitos
entrevistados, existe a urgência do turismo como o primeiro item a ser beneficiado
com as melhorias para o local. No entanto, outras questões que afligem os
interlocutores como a violência, o tráfico de drogas e a saúde também são
percebidas nas falas. Nos discursos de alguns interlocutores, é mais importante
pensar na qualidade de vida em Jericoacoara, do que pensar no turismo e nos
lucros advindos com a atividade. São ideias que perpassam o discurso de vários
sujeitos, não é algo isolado. Muitos dos entrevistados são engajados e preocupados
com o quadro que Jericoacoara apresenta atualmente, como um local que não tem a
atenção do Estado, no sentido de que não há uma boa administração pública, e
onde transitam muitas pessoas. O discurso favorável sobre a parceria público-
privada parte dos que acreditam que este projeto beneficiará a qualidade de vida
dos moradores, não diretamente ao turismo.
81

Ainda que consideremos a diversidade de formas como os sujeitos da


pesquisa constroem suas identidades, alguns temas trouxeram aspectos que
delinearam posições mais homogêneas entre as categorias nativo e estrangeiro,
como é o caso da questão da propriedade do imóvel. Este tema destacou a
diferença entre nativos e estrangeiros. Nativos discursaram sobre um sentimento de
pertencimento àquelas terras e estrangeiros questionaram a pauta sobre as terras.
Há o fortalecimento de pertencer ao local por ser nativo e há uma desconstrução
desse pertencimento por parte de alguns estrangeiros. Em contrapartida, alguns
interlocutores estrangeiros discursaram sobre o sentimento de pertencimento ao
local e exemplificam que estão envolvidos em movimentos para melhorar o local
onde eles vivem.
Esse caleidoscópio de arranjos na forma como os sujeitos se identificam
me remete a Suely Kofes (2001) que, em sua pesquisa, adota a noção de identidade
como “um campo de reconhecimento sociocultural estruturalmente disponível para o
auto-reconhecimento dos atores sociais” (KOFES, 2001, p. 28). Por meio dessa
definição, compreendo que a identidade é desenvolvida nesse campo de
reconhecimento sociocultural e, nesta monografia, os sujeitos da pesquisa
demonstraram com primazia os momentos em que eles se “auto-reconhecem”. Não
pretendi me valer especificamente da noção de identidade de Kofes como base para
o trabalho, mas valorizar a forma como a autora desenvolve esse conceito confirma
o caráter diverso que a definição de identidade pode tomar.
As diversas formas de comerciantes e prestadores de serviço se
conceberem são importantes para a pesquisa porque é a partir dessa visão que o
sujeito tem sobre si e sobre os outros que se revelam as relações sociais em
Jericoacoara. É relacionando-se com o outro que a diferença entre os sujeitos é
destacada e, como vimos, a diferença é um pressuposto básico nos estudos sobre
identidade e, por que não dizer, da própria antropologia.
A metodologia aplicada à escrita e às experiências de campo, juntamente
com as orientações para o desenvolvimento desta monografia me ajudaram a
perceber que uma pesquisa mostra ramificações, outras possibilidades de continuar
a estudar em Jericoacoara, na tentativa de responder questionamentos que surgiram
na construção do trabalho e que não puderam ainda ser compreendidas. Nas
conversas, os interlocutores apresentavam um posicionamento firme diante da
propriedade do imóvel comercial, eles diziam o que pensavam a respeito da grande
82

presença estrangeira no local e as falas entravam choque, por cada um ter uma
posição em defesa de seus interesses na configuração local do turismo. As falas têm
valor, como diz Goldman (2003), e a partir desse posicionamento apresentado pelos
sujeitos da pesquisa, a questão da propriedade da terra foi um aspecto que me
chamou a atenção. Como eu tratei apenas da propriedade do imóvel comercial, falta
voltar os olhos para as residências, para a constituição dos terrenos na vila.
No início da monografia, eu havia mencionado sobre a regularização
fundiária pelo IDACE, momento que a área foi dividida em lotes e se concedeu a
terra aos posseiros. No documento oficial que regulariza essas terras (ver Anexo B),
foram estabelecidas regras para que a distribuição dos lotes fosse realizada. No
período em que a regularização aconteceu, o turismo já era praticado em
Jericoacoara e estrangeiros residiam na localidade. Portanto, surgiu a questão de
como se constituiu a propriedade da terra na vila, uma vez que não foram apenas
nativos que adquiriram os lotes por direito. Quem são os sujeitos que detêm as
terras? Há concentração de terras nas mãos de nativos? Por meio dos discursos
que revelam um sentimento de pertencimento forte em relação ao local, indago,
ainda, como outros nativos se sentem em relação a esse aspecto, os nativos que
não estão inclusos no circuito produtivo do turismo.
Outra questão que surgiu ao longo da pesquisa de campo refere-se às
relações de trabalho na localidade. Nesta monografia, pude abordar brevemente
algumas falas que apresentavam uma “relação empregatícia”, mas é um tema que
pode ser aprofundado. Os interlocutores falam, em algumas entrevistas, sobre o
trabalho informal que existe nos estabelecimentos da vila e que o Ministério do
Trabalho não consegue realizar a efetiva fiscalização. É importante ressaltar neste
ponto Rodrigues (2014), que ao falar sobre a geração de empregos em espaços
turísticos, diz que a maioria dos empregos ligados à prestação de serviços na quase
totalidade dos países ditos em desenvolvimento quando destinada à população
local, diz respeito a atividades de baixa qualificação e remuneração. Por fim,
gostaria de ressaltar uma referência comum que encontrei em várias entrevistas, o
“sítio do Papai Noel”, uma casa localizada numa área de coqueirais da vila, onde
morava um senhor vindo da Espanha, que comprou o lote. O interessante disso é
que vários entrevistados mencionaram o sujeito, disseram que já moraram no sítio
ou que já trabalharam no local. Nas entrevistas, eu não atentei para esse ponto, mas
na análise das falas percebi que se tratava da mesma pessoa. Interessou-me saber
83

mais sobre esta pessoa, qual posição ela ocupa/ocupava na vila e qual era a relação
que tinha com a localidade.
Estes foram alguns dos indicativos e questões que surgiram no decorrer
da pesquisa, e que talvez seja interessante retomá-las e aprofundá-las futuramente.
Para findar este trabalho e a etnografia que se construiu por esse caminho marcado
por viagens, pensamentos e escritas, é interessante perceber que houve um
processo de desconstrução da imagem de Jericoacoara para mim, que se constitui
como um local transnacional, onde circulam pessoas, ideias, culturas e esses
elementos ultrapassam as fronteiras geográficas. Ela não deixou de ter os seus
encantos, mas passei a vê-la com outros olhos, mais críticos e atentos aos
acontecimentos, posturas e problemáticas.
Por fim, finalizo este trabalho com a certeza de que é preciso traçar um
longo caminho para compreender e assimilar a profundidade com o que a
antropologia trata os fenômenos socioculturais, apresentando um trecho que reflete
bem esse sentimento, de autoria de Mariza Peirano:

A emergência de novas pesquisas, sendo uma constante, deve nos levar a


uma igualmente constante recomposição da antropologia, de quem somos,
e do mundo como o entendemos. Se essa lição da antropologia for mais
partilhada, teremos menos certezas, mais dúvidas e, com sorte, mais
liberdade. (PEIRANO, 2014, p. 389).

Na minha experiência, ainda inicial, do exercício da etnografia, percebo


como o olhar antropológico foi fundamental para perceber as relações sociais
estabelecidas pelos sujeitos da pesquisa e, ao compreender o que eles defendem e
reivindicam, produzir um melhor entendimento da dinâmica do turismo em
localidades originalmente habitadas por populações tradicionais.
84

REFERÊNCIAS

APA é extinta e Parque Nacional tem ampliação. Diário do Nordeste, Fortaleza, 22


jun. 2007. Disponível em:
<http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/apa-e-extinta-e-
parque-nacional-tem-ampliacao-1.14161>. Acesso em: 06 jan. 2016.

ARRUDA, Maíra Gomes Cartaxo. Parque Nacional de Jericoacoara: zoneamento


para o plano de manejo. 2007. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Centro de
Ciências, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.

BARRETTO, Margarita. O imprescindível aporte das ciências sociais para o


planejamento e a compreensão do turismo. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 9, n. 20, p. 15-29, outubro de 2003.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São


Paulo: Livraria Pioneira, 1976.

______ Os (des)caminhos da identidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais,


v. 15 nº 42, 2000.

______ O trabalho do antropólogo. 2 ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo Editora
UNESP, 2000.

CASTRO, Mary Garcia. Transidentidades no local globalizado. Não-identidades,


margens e fronteiras: vozes de mulheres latinas dos E.U.A. In: Identidades:
estudos de cultura e poder. São Paulo: HUCITEC, 2000.

CEARÁ. Secretaria do Turismo do Estado do Ceará. Indicadores turísticos


1995/2014. Fortaleza, fev. 2015.

CLERC-RENAUD. Agnès. L’ici-bas et l’au-delà dans un village du nord Ceará


(Brésil). Ébauche d’un système cosmogonique et changemente social. 2002.
Tese (Doutorado em Antropologia Social e Etnologia) – Ecole des Hautes Etudes em
Sciences Sociales, 2002.

CONSELHO solicita reunião urgente com superintendência do IDACE para intervir


em invasões em Jericoacoara. Conselho Comunitário de Jericoacoara, 07 fev.
2013. Disponível em: <http://www.jeri.org.br/news/conselho-solicita-reuni%C3%A3o-
urgente-com-superintend%C3%AAncia-do-idace-para-intervir-em-invas%C3%B5es-
em-jericoacoara/>. Acesso em: 27 dez. 2015.

COSTA, Helena Araújo. Mosaico da sustentabilidade em destinos turísticos:


cooperação e conflito de micro e pequenas empresas no roteiro integrado
Jericoacoara – Delta do Parnaíba – Lençóis Maranhenses. 2009. Tese
(Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) – Centro de Desenvolvimento
Sustentável, Universidade de Brasília, 2009.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Etnicidade: da cultura residual mais irredutível.


Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
85

FONTELES, José Osmar. Jericoacoara, turismo e sociedade. Sobral: Edições


UVA, 2000.

GALVÃO, Alessandro Gagnor. Jericoacoara Sonhada. São Paulo: ANNABLUME,


1995.

GARIBAY MUNGUÍA, Genlizzie E. El paraíso de los bajos fondos: turismo y


cambio sociocultural (1970-2011) em Zipolite, Costa de Oaxaca. 2012.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Centro de Investigaciones y estudios
superiores em antropologia social, México, 2012.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC S.A., 1989.

GOLDMAN, Marcio. Alguma antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo


de Antropologia da Política, 1999.

______ Os tambores dos mortos e os tambores dos vivo: etnografia, antropologia e


política em Ilhéus, Bahia. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 46, nº 2, p.
445-475, 2003.

GONDIM, Linda. Os “governos das mudanças” no Ceará: um populismo weberiano?


In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E
PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 19, 1995, Caxambu. Anais... Caxambu:
ANPOCS, p. 101-124, 1995.

GRABURN, Nelson. Antropologia ou antropologias do turismo? In: Turismo e


antropologia: novas abordagens. Campinas, SP: Papirus, 2009.

INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONÔMICA DO CEARÁ. Estimativa


do PIB Cearense em 2010 e seu Desempenho Setorial. IPECE Informe, n. 02,
março de 2011.

KOFES, Suely. Mulher, mulheres: identidade, diferença e desigualdade na


relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2001.

KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo: para uma nova compreensão do


lazer e das viagens. 3 ed. São Paulo: Aleph, 2009.

LIMA, Luiz Cruz; SILVA, Ângela M. Falcão da. O local globalizado pelo turismo:
Jeri e Canoa no final do século XX. Fortaleza: EDUECE, 2004.

LOPEZ SANTILLÁN, Ángeles; MARÍN GUARDADO, Gustavo. Turismo, capitalismo y


producción de lo exótico. Una perspectiva crítica para ela estúdio de la
mercantilización del espacio y la cultura. Relaciones, 123, vo. XXXI, p. 219-258,
2010.
86

MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para


etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial. Revista de
Antropologia, São Paulo, USP, n. 34, p. 197-221, 1991.

MOLINA, Fábio Silveira. Turismo e produção do espaço – o caso de


Jericoacoara, CE. Dissertação (Mestrado em Geografia) – São Paulo: Universidade
de São Paulo, 2007.

MORADORES denunciam acúmulo de lixo em Jericoacoara. O Povo, Fortaleza, 11


nov. 2014. Disponível em:
<http://www.opovo.com.br/app/ceara/jijocadejericoacoara/2014/11/11/notjijocadejeric
oacoara,3346488/moradores-denunciam-acumulo-de-lixo-em-jericoacoara.shtml>.
Acesso em: 31 jan. 2016.

NUGA/UECE. Área de Proteção Ambiental “Jericoacoara”: contribuição ao


estudo de bases e perspectivas para o desenvolvimento integrado. Fortaleza,
1985.

PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. In: A favor da etnografia. Rio de Janeiro:


Relume-Dumará, 1995.

______ Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano


20, n. 42, p. 377-391, jul/dez, 2014.

RODRIGUES, Lea Carvalho. Turismo como estratégia de desenvolvimento na


América Latina: dilemas e perspectivas de um modelo excludente. In: Brasil e
América Latina: percursos e dilemas de uma integração. Rede Universitária de
Pesquisadores sobre a América Latina – RUPAL. Edições UFC, 2014.

______ O debate internacional sobre turismo: subsídios às discussões sobre o tema.


In: GONÇALVES, Alícia Ferreira e RODRIGUES, Lea Carvalho (Orgs.), Políticas de
turismo, meio ambiente e desenvolvimento. João Pessoa: EdUFPB, 2015a (no
prelo).

______ Turismo em espaços urbanos: processos de turistificação no Nordeste


brasileiro e no Caribe Mexicano. Revista Iberoamericana de Turismo – RITUR,
Penedo, Vol. 5, Número Especial, p. 81-104, abr. 2015b.

RUBEN, Guillermo Raul. Teoria da identidade: uma crítica. Anuário Antropológico.


Brasília: Universidade de Brasília, 1988.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SCHILLER, Nina Glick ; FOURON, Georges. “Laços de sangue”: os fundamentos


raciais do Estado-nação transnacional. In: Identidades: estudos de cultura e
poder. São Paulo: HUCITEC, 2000.

SILVA, Débora Raquel Freitas da; LOPES, Jéssica Girão; COSTA, Maria Clélia
Lustosa. As contradições na vila de Jericoacoara no processo de formação da
87

imagem turística. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS, 16, 2010, Porto


Alegre. Anais... Porto Alegre: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2010.

SIMMEL, George. O estrangeiro. In: Moraes Filho, Evaristo (org.), Simmel. São
Paulo: Ática, 1983.

URRY, John. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades


contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel: SESC, 2001.

WORLD TOURISM ORGANIZATION. UNWTO Annual Report 2014, Madrid, 2015.


88

ANEXOS

Anexo A - Quadro de entrevistados (Jericoacoara) – 2015

ORIGEM/ TEMPO DE
NOME SEXO IDADE PROFISSÃO
RESIDÊNCIA NA VILA
Luís homem 36 Dono de hospedagem de médio porte Jericoacoara/ 36 anos
Sabrina mulher 52 Dona da restaurante de pequeno porte Jericoacoara/ 52 anos
Abelardo homem 42 Dono de hospedagem de pequeno Brasil/ 25 anos
porte
Emerson homem Não Dono de loja de roupa de pequeno Brasil/ 2 anos
informado porte
Adolfo homem Não Dono de loja e hospedagem de médio Brasil/ 6 anos
informado porte
Catarina mulher 31 Dona de loja de pequeno porte Argentina/ 10 anos
Luan homem Não Aluga casas para turistas Portugal/ 16 anos
informado
Íris mulher 49 Dona de hospedagem e restaurante Brasil/ 23 anos
Beatriz mulher 32 Trabalha em restaurante de pequeno Jericoacoara/ 32 anos
porte
Emília mulher Não Trabalha em hospedagem de grande Itália/ 4 anos
informado porte
89

Anexo B – Decreto nº 24.881 de 24 de abril de 1998 autoriza a regularização


fundiária em Jericoacoara.
90

Anexo C – Mapa da vila de Jericoacoara


91

Anexo D – Modelo de ficha para levantamento de dados sobre os comerciantes


e prestadores de serviços em Jericoacoara

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Ficha sobre comércio em Jericoacoara:

Estabelecimento: ________________________

Tempo do estabelecimento: _____________

Origem dono: _________________________

Idade: _____ Sexo: ____

Vive em Jericoacoara? ______ Se sim, há quanto tempo: ______________

Local: Próprio ( ) Alugado ( ) Se alugado, origem do locador: ___________

Residência:__________
__

You might also like