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NÚCLEO DE SAÚDE
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
PORTO VELHO
2014
NELZIRA PRESTES DA SILVA GUEDES
PORTO VELHO
2014
FICHA CATALOGRÁFICA
G924a
CDU: 159.922.7
À minha amada filha Luna, por suportar, mesmo sem aceitar, minhas
constantes ausências. Você é o que tenho de mais importante.
Aos meus pais, José Guedes e Lindalva, por sempre lutarem pela
educação de seus filhos e lhes transmitirem os mais preciosos valores,
demonstrando que é possível, sim, mudar o mundo. O que sou hoje
devo a vocês.
Aos meus queridos irmãos, Lidiane, José Guedes Jr., Lívia e Felipe,
com quem, mesmo na distância, posso contar para aliviar as tensões
do dia-a-dia.
Antoine de Saint-Exupéry
GUEDES, N. P. S. O adolescente com autismo e escolarização: em busca daquele que não
se vê. 2014. 159f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Rondônia.
Porto Velho, 2014.
RESUMO
ABSTRACT
The goal of this work is to understand the process of educating adolescents diagnosed with
autism. Completed in a city in the state of Rondônia, this is a case study that followed two
adolescents, Thales and Bruno; one was in a regular education school and the other in a
special education school. Using the core perspective of Historical-Cultural Psychology, we
consider the presuppositions of human development, adolescence, disability, education and
learning from this theory. We shared day-to-day school life with the adolescents and the other
players in the educational process, analyzing how relationships are constructed within
pedagogical activities. In addition to gaining experiences as participant-observers, we
analyzed the students' school documents and interviewed their mothers and teachers with the
intent to deepen our understanding of their school realities. Thus, the experiences with Thales
and Bruno allowed us to identify the teaching methods and other means by which the school
has promoted the development of these students' potential. We found that the pedagogical
practices of both schools have been influenced by the students' condition of autism. That is,
the activities are designed from a therapeutic pedagogy with a view toward mechanical,
repetitive and decontextualized activities and based on attitudes that infantilize the students
rather than consider their development. The practices of the regular education school do not
promote Thales' interaction with his classmates; further, there is no systematization of
instruction, which impede more effective partnership between the primary and resource
teachers. The special education school in which Bruno studies uses the TEACCH method by
means of repetitive activities, but also without promoting interaction between Bruno and his
classmates. It was found that both students have been neglected by an educational process that
is, paradoxically, exclusive rather than inclusive. This kind of practice is conducive to
maintaining the status quo of the capitalist society, whose contradictory discourse of inclusion
is evident in educational policies and reflected in the structure and functioning of schools and
also in the training of their teachers. The school has been acting as maintainer of the social
inequalities of the capitalist society, losing their primary role, which is the transmission of the
cultural knowledge of the humanity, in a systematic way. According to the Historical-Cultural
Psychology, students with disabilities can learn and develop since the relations established
with them don’t focus on their disability condition, but established pedagogical practices that
promote their potentials and also ways of compensation. In this way, the school can provide
qualitative developmental leaps to the teenagers with autism, thereby overcoming
stigmatizing conceptions and boosting them into their rightful place as human beings.
Children
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 13
APRESENTAÇÃO
Meu interesse em estudar sobre o autismo surgiu durante meu trabalho como psicóloga
clínica, quando tive a oportunidade de atender algumas crianças com este diagnóstico. Foi um
grande desafio, pois percebi que esta temática foi negligenciada pela academia durante minha
formação. Assim, fui instigada a lidar e buscar bagagem teórica para embarcar neste “mundo
desconhecido”, que simplesmente tomou conta de mim.
Por se tratar de crianças que normalmente são submetidas a tratamentos
multiprofissionais, meus atendimentos propunham uma abordagem interdisciplinar o tanto
quanto possível. Nesta perspectiva, buscava compreender como se estabeleciam as relações
entre estas crianças e os diversos meios em que eram cotidianamente inseridas. A escola,
assim, ganhava destaque na investigação, não apenas por ser o local de maior permanência
diária destas crianças, mas por apresentarem o maior número de queixas em relação a elas.
Percebi que as maiores dificuldades das escolas para ensinar seus alunos com autismo
se davam pelo fato de não saberem lidar com os comportamentos “inapropriados” e com a
falta de comunicação, característicos desta condição, e de terem pouco conhecimento acerca
do próprio autismo. As relações escolares eram estabelecidas a partir da deficiência; portanto,
eram relações baseadas na representação de que são incapazes, de que não possuem
potencialidades como seres humanos.
Para professores e demais membros da escola, a representação da pessoa com autismo
assemelhava-se àquelas propagadas nos diversos filmes que tratam sobre a temática: pessoa
com extrema dificuldade de se relacionar, porém, com desenvolvimento cognitivo
extraordinário1, situação que, na maioria das vezes, não condiz com a realidade enfrentada por
eles. Assim, constata-se que este tema não foi negligenciado apenas em minha formação
acadêmica, mas em tantas outras formações dos vários profissionais que atuam (e atuarão)
com autistas.
A literatura mostra que a educação de pessoas com autismo (assim como de qualquer
pessoa com deficiência) foi oferecida inicialmente por instituições especializadas, criadas
geralmente por pais e familiares (BRAGIN, 2011). Estas instituições passaram a propagar
algumas abordagens educacionais de reconhecimento internacional, baseadas em técnicas
behavioristas de ensino individualizado que objetivam basicamente a diminuição dos
1
As pessoas representadas nos filmes geralmente apresentam síndrome de Asperger .
14
A partir deste propósito, nosso estudo foi organizado de modo que, na primeira seção,
Juntando as peças de um quebra cabeça: desvelando o autismo, fosse apresentado um
panorama sobre o autismo. Por se tratar de uma condição bastante complexa, acreditamos na
necessidade de se fazer um resgate histórico, desde a sua sistematização científica até os dias
atuais, quando ainda nos encontramos em um contexto de contradição e obscuridade,
englobando tanto discussões teóricas quanto práticas.
Na seção 2, Psicologia Histórico-Cultural: o homem e sua natureza social,
discutiremos a respeito da Psicologia Histórico-Cultural, que norteou nossas ações e
percepções no decorrer deste estudo. A Psicologia Histórico-Cultural compreende o ser
humano como um ser transformador, com papel ativo na transformação do mundo e de si
mesmo. Será abordado, neste estudo, tanto a compreensão que esta teoria tem sobre o ser
humano, passando pelo adolescente e pela pessoa com deficiência, quanto as concepções de
educação, que, acreditamos, têm muito a contribuir não só para uma educação democrática,
mas, também, por uma educação que leve à verdadeira transformação social.
A seção 3, O percurso e os percalços da pesquisa, compreenderá a apresentação dos
aparatos instrumentais que proporcionaram o contato com todas as informações que serão
apresentadas neste estudo. Sempre tendo como norte as concepções da Psicologia Histórico-
Cultural e, consequentemente, da fundamentação filosófica do materialismo histórico-
dialético, tais instrumentos foram selecionados prevendo contemplar a complexa realidade do
processo de escolarização do adolescente autista.
Enfim, na seção 4, intitulada O adolescente com autismo e a sua escolarização:
explorando os caminhos percorridos, serão apresentadas e analisadas as experiências e
informações presenciadas e vivenciadas por nós, durante todo o contato com o processo de
escolarização dos adolescentes com autismo e com as pessoas nele envolvidas.
Adentrando neste mundo novo, um verdadeiro labirinto, com muitos caminhos
adversos, caminhos sem fim e caminhos importantes, acreditamos que este estudo possa ser
útil para a promoção de reflexão sobre a concepção de pessoa com autismo e sobre as práticas
educativas desenvolvidas pelos profissionais da educação que trabalham ou que venham a
trabalhar com este público e, inclusive, familiares.
Pensamos que se pode, sim, proporcionar aos autistas, especialmente o adolescente,
uma valorização como pessoa, e uma educação que vise, antes de tudo, as suas
potencialidades, em um processo de ensino que rompa com práticas educacionais
descontextualizadas e que lhes produza sentidos e apropriação do conhecimento
sistematizado, humanizando-os.
16
Eu quero ficar só
Mas comigo só eu não consigo
Eu quero ficar junto
Mas sozinho só não é possível
Rogério Flausino2
2
FLAUSINO, R. Amor maior. Intérprete: Jota Quest. In: MTV ao vivo. Rio de Janeiro: Sony BMG/Chaos e
Epic Records. Faixa 13.
17
3
Para maior compreensão sobre a história e educação de Victor, sugerimos os estudos de Cordeiro (2006), que
discute as contribuições de Itard sobre as relações entre educação, aprendizagem e desenvolvimento na
constituição do homem como ser histórico e cultural. CORDEIRO, A. F. M. Relações entre educação,
aprendizagem e desenvolvimento humano: as contribuições de Jean Marc-Gaspard Itard (1774-1838). Tese
(Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.
4
Idiotia congênita é um termo psiquiátrico da época que se referia à deficiência intelectual.
5
As pessoas com deficiência foram, por muito tempo, renegadas pela sociedade. Ao longo dos anos, sofreram
muitas práticas desumanas, passando pelo abandono, morte, castração, escravidão, internação, dentre outras.
No final do século XVIII, época em que o garoto de Aveyron nasceu, o abandono de recém-nascidos
considerados com algum tipo de deficiência ainda era uma prática muito comum (PESSOTI, 1984). Somente a
partir da Revolução Francesa que estas pessoas passaram a ser alvo de assistência caritativa, advinda
principalmente da Igreja. Não há, porém, nenhuma comprovação de que Victor tenha nascido com alguma
deficiência ou alguma característica que indicasse deficiência.
6
Senhora Guérin foi uma governanta contratada pelo governo a pedido de Itard para que lhe auxiliasse nos
cuidados com Victor, mais especificamente em relação à higiene, alimentação, lazer etc.
18
nomes e à identificação das expressões faciais, com os quais conseguiu se familiarizar. Ele,
porém, reproduzia as expressões de forma isolada e descontextualizada. Para alguns autores
(VAILLANT, 1962; ROSENBERG, 2011), este se trata, também, de mais um caso
documentado de autismo antes de sua descrição científica e sistemática.
Estes relatos, dentre outros existentes, foram feitos, em sua maioria, por estudiosos da
saúde e da educação, que findavam por relacionar seus casos a uma deficiência intelectual ou
a algum tipo de transtorno mental, uma vez que o autismo foi descrito sistematicamente
somente em 1943 por Leo Kanner.
Este psiquiatra americano descreveu uma patologia infantil até então não reportada,
cuja característica fundamental seria a inaptidão no estabelecimento de contato afetivo e
interpessoal (KANNER, 1943). Tratava-se do então distúrbio autístico de contato afetivo,
renomeado por ele como autismo infantil precoce no ano posterior7.
Seu estudo referia-se a onze crianças, oito meninos e três meninas com idades
variando entre dois e onze anos, as quais os pais referiam como “autossuficientes”, que
viviam “como em uma concha”, agindo “como se não houvesse pessoas lá” e “quase como se
estivessem hipnotizadas” (KANNER, 1943, p. 242, tradução nossa).
Para Kanner, apesar de suas singularidades, essas crianças, que foram inicialmente
consideradas “idiotas”, “imbecis” ou esquizofrênicas (p.242), tinham características comuns,
dentre elas: alterações importantes na linguagem, uma vez que muitas eram incapazes de se
comunicarem, permanecendo mudas, e, quando o faziam, era por meio de falas
descontextualizadas e ecolálicas8; uma “extrema solidão autística”, pois ignoravam os
estímulos externos físicos e sonoros como se “não estivessem ali” (KANNER, 1943, p. 242);
a ausência de contato visual; movimentos repetitivos e estereotipados; o apego a rotinas,
apresentando, inclusive, uma limitação no comportamento espontâneo, agindo exatamente da
mesma forma em determinadas situações; distúrbios de alimentação, sendo que a maioria de
seus pacientes tinha severas dificuldades de alimentação desde a mais tenra infância; crises
emocionais, apresentando medos inexplicáveis por objetos ou determinados sons; excelente
7
A palavra “autismo”, que deriva do grego autos (αυτος) e significa “si mesmo”, foi utilizada para se referir a
uma pessoa que “vive em seu próprio mundo”. Foi utilizada, inicialmente, por Eugen Bleuler, em 1916, para
designar um dos sintomas fundamentais da esquizofrenia, caracterizado pela perda do contato com a realidade
e evitação das relações sociais (ASPERGER, 1991; GADIA; TUCHMAN; ROTTA, 2004; VENANCIO,
2010). Foi esta definição que inspirou a utilização do termo por Kanner e Asperger.
8
A ecolalia é um fenômeno linguístico descrito como a repetição em eco de palavras ou frases inteiras. As
repetições podem ocorrer pouco tempo ou imediatamente após a afirmativa modelo (ecolalia imediata), ou
após um tempo significativamente após a sua produção (ecolalia tardia). (SAAD; GOLDFELD, 2009).
20
Neste sentido, Sapia (2013), com base no documentário feito em 2011 pela Comissão
dos Cidadãos para os Direitos Humanos (CCHR) intitulado “Manual de Diagnóstico e
Estatístico: a farsa mais mortífera da Psiquiatria”, questiona como os médicos podem se
basear no DSM para diagnosticar seus pacientes se, até a sua quarta versão, a elaboração deste
manual não se pautou em dados científicos. Em relação à quinta versão, apesar da tentativa de
um rigor científico, tem recebido críticas de vários profissionais da saúde pelo fato de que
comportamentos antes sadios foram agora enquadrados como patológicos.
Sem negar o avanço causado pela busca por sistematização de certas patologias e o
próprio desenvolvimento de medicamentos para seu combate, é necessário que se discuta o
modo pelo qual muitos comportamentos e modos de sofrimentos psíquicos têm sido
diagnosticados indiscriminadamente como patologias, gerando um verdadeiro surto de
patologização da vida cotidiana, nos levando a questionar sobre a real distinção entre os
conceitos de normalidade e anormalidade. Assim,
Tal situação pode ser exemplificada por meio da Figura 1, na qual é apresentado um
quadro com imagens descritivas dos sintomas do autismo baseados nos manuais diagnósticos
que é amplamente divulgado pelos meios midiáticos e pela literatura, principalmente por meio
de publicações de associações e organizações não governamentais que atuam pela causa do
autismo.
Usa as pessoas como Resiste a mudanças de Não se mistura com Apego não apropriado a
ferramentas rotina outras crianças objetos
Não mantém contato Age como se fosse Resiste ao aprendizado Não demonstra medo
visual surdo de perigos
Vale registrar, ainda, uma série de vídeos educativos elaborados por Maurício de
Souza Produções em parceria com a Associação de Amigos do Autista (AMA), na qual os
personagens da famosa “Turma da Mônica” descrevem características de um novo
personagem, André, que é autista, onde encontramos afirmações estigmatizantes do tipo: “Ele
é autista. Autistas não olham nos olhos das pessoas”, “Podem não evitar, mas também não
9
MELLO, A. M. S. R. Autismo: guia prático. 7 ed. São Paulo: AMA; Brasília, CORDE, 2007.
24
procuram outras crianças”, “Crianças assim não apontam para coisas interessantes”, “Ele é
autista e crianças assim quase não falam e nem tem interesse em falar”, “Um autista não imita
outras crianças e também não brincam de faz de conta” (TURMA..., 2007, transcrição).
Tais discursos são altamente difundidos, alcançando pais, professores, alunos, a
sociedade em geral, que os tomam como verdades. Deste modo, este padrão de
comportamento associado aos autistas tem interferido diretamente nas suas relações sociais,
no desenvolvimento de suas potencialidades, e, ressalta-se, em seu processo de escolarização,
que será discutido mais adiante. Definem-se tais características como naturais aos autistas e,
assim, eles, de fato, crescem e permanecem presos a elas, uma vez que as próprias relações
sociais se pautam em tais características. Os discursos homogeneízam os autistas como se eles
se resumissem às características do autismo.
Definir comportamentos ante uma condição patológica e/ou genética é negar seu lugar
no mundo como uma pessoa e suas inúmeras possibilidades de aprendizagem e de
desenvolvimento durante a vida. É percebê-la sob um olhar unilateral, sob o discurso médico
hegemônico, transformando a sua subjetividade na própria condição de deficiência
(AMARAL, 1998).
Deste modo, é necessário que se reflita sobre a criação de um diagnóstico de autismo
que, por ser alcançado por meio de observação clínica, é altamente subjetivo e pautado em um
manual cujas bases científicas são questionáveis e cujo desenvolvimento está diretamente
relacionado ao cenário sociopolítico e econômico capitalista, principalmente no que diz
respeito ao desenvolvimento e ascensão da indústria farmacêutica e do modelo americano de
saúde mental (CECCARELLI, 2010). Cabe discutir, ainda, o crescente número de
diagnósticos de autismo nos últimos anos, fato que pode ser um reflexo deste modelo e que
vale ser discutido, o que faremos a seguir.
10
No ano de 2012, os números de prevalência divulgados pelo CDC foram de um para 88 (CDC, 2012). A
justificativa para o abrupto aumento dos números foi de que, no estudo mais recente, não foi considerado
apenas os dados médicos escolares - como fora no estudo anterior -, mas também dados vindos dos pais.
26
Em todo o grupo, há poucos pais e mães realmente afetuosos. Para a maior parte, os
pais, avós e semelhantes são pessoas fortemente preocupadas com abstrações de
natureza científica, literária ou artística, e limitados no que se refere ao interesse
genuíno nas pessoas. Mesmo em alguns dos casamentos felizes, as relações são
bastante frias e formais. Três dos casamentos [estudados] foram um fracasso. A
questão que surge é se há ou em que medida este fato contribuiu para a condição das
crianças (KANNER, 1943, p. 250).
Nelas, por exemplo, substantivos como mãe, bebê e as expressões mãe-bebê, objeto
materno, são usadas, por exemplo, por metonímia, para descrever dinâmicas
inconscientes que ocorrem entre o recém-nascido e seu cuidador, e não contêm
nenhum juízo de valor.
[...] as mães não são culpadas, mas responsáveis pelo destino subjetivo de seus
filhos. Entenda-se aí a mãe em posição de Outro materno, atravessada pela
articulação entre a sua fantasmática e sua posição de falada pelo discurso social, e
que tem diante de si um bebê que se apresenta com uma materialidade que não pode
ser negada. Ora, as mães pós-Kanner foram, ao contrário do que poderia sustentar o
discurso da psicanálise, convenientemente "desculpabilizadas" e
"desresponsabilizadas" pela sociedade de massas, interessada em fazê-las deixar
11
KANNER, L. In defense of mothers: how to bring up children in spite of the more zealous psychologists.
Springfield: Bannerstone House, 1950.
27
seus filhos em creches e diante da televisão para correr atrás de novos valores fálicos
no mundo do consumo. O agente da "desculpabilização" é a psiquiatria biológica,
que atende perfeitamente bem a esses interesses, mais ideológicos do que
científicos.
Sabe-se que os fatores genéticos são múltiplos; portanto, temos diversos genes
envolvidos (modelos poligênico) e, por outro lado, também diversos fatores
ambientais têm sido implicados: intercorrências perinatais na forma de infecções e
outros danos cerebrais, por exemplo.
Schwartzman (2011a) destaca estudos neurológicos que possam indicar fortes relações
etiológicas do autismo, ou, ao menos, entre alterações do sistema nervoso central (SNC) e os
distúrbios comportamentais desta condição, apesar de nenhuma delas ser conclusiva.
Apresentam-se, nesta linha de pesquisa, estudos que sugerem supostas anormalidades no lobo
temporal, no sistema límbico e no córtex cerebral dos autistas (BOLTON; GRIFFITHS;
PICKLES, 2002), bem como estudos sobre alterações neuronais (VAN KOOTEN et al., 2008;
WANG, 2009) e translocações cromossômicas (TARELHO; ASSUMÇÃO JR., 2007).
Outra vertente de estudos postulam fatores ambientais como causadores do autismo ou
de déficits comportamentais a ele associados. Estudos de Ferster (1961) indicaram alterações
ambientais como fatores causais do autismo, lançando bases para a compreensão de que a
manipulação e rearranjo ambiental poderiam prevenir essa condição, o que embasou vários
métodos utilizados com os autistas atualmente, especialmente no ambiente escolar, os quais
serão discutidos posteriormente.
28
12
Equoterapia é um método terapêutico que utiliza o cavalo dentro de uma abordagem interdisciplinar nas áreas
da saúde, educação e equitação, com fins de proporcionar o desenvolvimento biopsicossocial de pessoas com
deficiência. Disponível em: <http://www.equoterapia.org.br/site/equoterapia.php>
31
gastos de uma família com uma criança sem autismo (CDC, 2014), cujos custos anuais com
intervenções comportamentais podem chegar a $60.000,00 por criança.
Diante desta explanação, verifica-se que existem vários modelos e programas de
tratamento específicos para autistas, que preveem uma ação intensiva nos âmbitos da saúde e
da educação especializada, grande parte inacessível para a maior parte da população
brasileira.
Em relação ao processo de escolarização, algumas abordagens, muitas delas
internacionais, tem tido foco no Brasil, sendo aplicadas, especialmente, na Educação Especial.
Com a tendência atual de priorização da inserção do aluno com deficiência no Ensino
Regular, as escolas passam a ter o desafio de encontrar meios para escolarizar os alunos com
autismo, tema que será discutido a seguir.
Por se tratar de uma síndrome relativamente nova, as pesquisas sobre o autismo, desde
a sua descoberta até o ano de 1963, eram voltadas quase exclusivamente para a investigação
de sua etiologia (RIVIÈRE, 2004). Os estudos voltados para a educação dos autistas surgiram
a partir de 1963, quando passaram a ser desenvolvidos procedimentos de modificação de
conduta, terapias comportamentais e programas para ajudar no seu desenvolvimento e na sua
independência.
Um programa que vale ser destacado é o TEACCH, Treatment and Education of
Autistic and Related Communication Handicapped Children, traduzido como Tratamento e
Educação de Crianças com Autismo e Déficits de Comunicação, um dos métodos
educacionais mais difundidos e utilizados mundialmente na educação de crianças e jovens
autistas.
Criado em 1964, época em que a tradição behaviorista tinha grande peso nos Estados
Unidos, este método parte da premissa de que, devido às características do autismo, os
autistas são mais capazes de adquirir aprendizados em uma proposta de atividade estruturada
em vez de uma intervenção terapêutica de caráter mais livre e interpretativo (MARQUES;
MELLO, 2005; LEON; OSÓRIO, 2011).
Fundamenta-se na Análise Aplicada do Comportamento (Applied Behavior Analysis -
ABA), tendo como base conceitos do behaviorismo clássico de Skinner, como os de
condicionamento operante e respondente, de reforço positivo e negativo, de generalização da
aprendizagem e de modelagem; e na Psicolinguística, na qual este método buscou estratégias
32
13
Disponível em: <http://uadarque.wordpress.com/quem-somos/a-nossa-sala-2/sala-teacch/> Acesso em 03 de
maio de 2014.
33
Desta forma, os alunos permanecem em um status quo, mantido pelos métodos de ensino que
desconsidera as realidades do mundo real, descontextualizando as suas vivências e
experiências.
Vygotski (1997) defende a ideia de que todas as crianças podem desenvolver as suas
potencialidades e serem ensinadas, independentemente de sua deficiência, na medida em que
sejam utilizados instrumentos mediadores adequados. Para tanto, a educação deve preceder o
desenvolvimento (VYGOTSKI, 2001), não se limitando àquilo que os alunos são capazes de
fazerem sozinhos, mas focando ao novo, às potencialidades do aluno, que representarão as
mudanças acessíveis a ele. Desta forma, desde que haja uma sistematização da prática
pedagógica, os alunos com autismo podem se apropriar dos conteúdos curriculares e serem
impulsionados ao desenvolvimento.
O arranjo também compreende a estruturação das rotinas diárias, o uso de apoio visual
na realização das atividades e o sistema individualizado de trabalho, combinando diferentes
materiais visuais para organizar o ambiente físico através de rotinas e sistemas de trabalho
(Figura 3). Para tanto, de acordo com Leon e Osório (2011), são utilizadas avaliações para
embasar o planejamento terapêutico e mensurar o estágio de desenvolvimento da pessoa com
autismo ou com transtornos correlatos.
Dentre os instrumentos de avaliação, se destacam o CARS (Classification Autism
Ratting Scale), o PEP-R (Psychoeducational Profile Revised) e o AAPEP (Adolescent and
Adult Psychoeducational Profile). Assim, as diretrizes educacionais no método TEACCH
dependerão da escala de desempenho na avaliação do autista, sendo que para cada área existe
uma série de tarefas a serem realizadas de acordo com o nível de desenvolvimento
identificado na criança ou no jovem. Desta forma, considerando os resultados de um
instrumento avaliativo, os sistemas de trabalho reduzem as chances de todo um potencial a ser
desenvolvido que, porventura, não venha a ser apresentado na avaliação.
Vygotsky e Luria (1996) criticam a padronização de testes psicológicos em razão da
sua dimensão estática e não dinâmica, uma vez que são medidas a quantidade de
conhecimentos ou habilidades, sendo eliminada a dimensão interativa e mediada do
desenvolvimento. Neste sentido, de acordo com Facci, Eidt e Tuleski (2006), os instrumentos
avaliativos no âmbito educacional denunciam o caráter ideológico dos testes psicométricos,
generalizando comportamentos, habilidades e conhecimento a um determinado critério que
desconsidera as desigualdades sociais e culturais de nossa sociedade, como se os próprios
alunos fossem desvinculados de uma realidade histórica e social.
34
14
Disponível em: <http://www.autisme74.com/page_html/definitions/teacch.html>. Acesso em 03 de maio de
2014.
35
[...] a criança com autismo convive em uma sala de aula com mais duas ou três
crianças com o mesmo perfil. A criança exposta a essa situação não tem referencias
sociais que a auxiliem a superar suas dificuldades, as quais costumam ser relatadas
nos critérios diagnósticos, pois seus colegas manifestam as mesmas características
que ela própria apresenta.
Trata-se, portanto, de práticas que consideram o autista uma pessoa de uma cultura
diferente daquela a qual, de fato, está inserido socialmente, e cujo funcionamento psíquico
exige um direcionamento pedagógico diretivo e meramente concreto e visual que vise às
características de sua condição. Desta forma, como seria possível a inclusão escolar no Ensino
Regular dessas pessoas se os estudos predominantes defendem uma metodologia que
privilegie o ensino individualizado e técnicas mecânicas?
O processo de inclusão desses alunos no Ensino Regular é uma problemática recente
que tem levantado inúmeras discussões sobre a temática. O movimento pela inclusão tem
tomado forças nos últimos anos, não só no Brasil, mas em todo o mundo, uma vez que tem
sido visto como uma questão de direitos humanos. Diversas reuniões internacionais foram
feitas a fim de que se discutissem os direitos e se elaborassem documentos em prol das
pessoas com deficiência, grupo social historicamente marginalizado.
Dentre os tratados internacionais, será destacado, neste estudo, a Declaração de
Salamanca, de 1994, que impulsionou as políticas públicas de inclusão no Brasil. Foi
36
principalmente após esta declaração que outras normatizações foram oficializadas no âmbito
nacional, ditando os rumos da educação inclusiva em nosso país.
De acordo com a Declaração de Salamanca:
historicamente implantado pelas classes sociais dominantes, tal como identificou Vygotski
(1997), por outro, este discurso pode representar as mesmas perspectivas do anterior, uma vez
que o diverso se refere a todos aqueles que fogem do padrão idealizado histórico e
socialmente (AMARAL, 1998).
Assim, como discute Bueno (2005; 2008), se forma um cenário no qual as políticas de
inclusão tendem manter as desigualdades no próprio discurso, uma vez que propor uma escola
inclusiva é admitir a eterna segregação.
Apesar desta questão, é fato que as políticas públicas educacionais passaram a definir
mudanças que compreendessem a adequação dos espaços físicos e de práticas pedagógicas a
fim de romper com as barreiras arquitetônicas e sociais que pudessem impedir o
estabelecimento de uma educação para todos, com ou sem deficiência, objetivando atender as
necessidades de cada um. Neste sentido, assegurar a inclusão seria garantir:
Desta forma, a inclusão escolar propôs acesso ao ensino regular de qualquer aluno, e
todos, sem exceções, deveriam ter os mesmos direitos. Os atendimentos, currículos e
avaliações no ambiente escolar deveriam ser diferenciados, de acordo com as limitações,
dificuldades e principalmente, potencialidades apresentadas por cada um desses alunos.
No que trata do autismo, porém, observa-se que faltam ações direcionadas a este
público, uma vez que os programas e ações do Governo Federal, por meio das políticas
públicas de educação inclusiva, têm privilegiado os grupos das deficiências visuais e
auditivas, e o das altas habilidades/superdotação15.
Diante deste contexto, é necessário que se reflita sobre o papel imprescindível da
escola no processo de escolarização do aluno com autismo para que este aluno possa, de
alguma forma, se apropriar do conhecimento de mundo e assim, ter o domínio de si mesmo. A
15
Tais programas são voltados para três centros de formação e recursos da SECADI/MEC existentes: O Centro
de Apoio para Atendimento às Pessoas com Deficiência Visual (CAP), o Centro de Capacitação de
Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS) e o Núcleo de Atividades de Altas
Habilidades/Superdotação (NAAH/S), com vistas a apoiar a formação de professores para o atendimento
educacional especializado a estes públicos e a fomentar a produção de materiais didáticos acessíveis.
38
escola tornar-se-ia forte aliada na tentativa de garantir não só um saber sistematizado, mas um
impulso para a vida de seus alunos autistas, uma vez inseridos em um constante exercício de
socialização e de aprendizagem com seus pares, professores e demais funcionários da escola.
Assim, o contexto da educação teria a oportunidade de conferir-lhes o direito a seu
papel ativo na construção de seu desenvolvimento, a partir de suas potencialidades individuais
de apropriar e internalizar formas sociais do comportamento como participantes de seu
próprio processo de conhecimento, como sujeitos históricos, tal como preconizado por
Vigotski (VIGOTSKI, 1999; 2000; VYGOTSKI, 2000; 2001).
A Psicologia Histórico-Cultural, proferida por este estudioso e por seus colaboradores
– dentre os quais se destacam Luria e Leontiev -, foi o cerne teórico deste estudo, uma vez
que nos auxiliou na compreensão da complexidade dos aspectos relacionados com a
escolarização do aluno com autismo. Esta abordagem teórica será explanada a seguir.
39
O que é o homem?
Para Hegel, é um sujeito lógico.
Para Pavlov, é uma soma, um organismo.
Para nós, homem é um ser social:
um conjunto de relações sociais encarnado no indivíduo
Lev Semenovitch Vygotsky16
16
VYGOTSKY, L. S. Concrete Human Psychology. Vestn Mask Un-ta: Ser 14, Psikologiya, n. 1, p.66, 1986,
tradução nossa.
17
O nome deste teórico, Лев Семёнович Выготский no original russo, possui várias diferenciações de grafia.
Neste estudo, será adotada a escrita “Vigotski”, exceto em caso de citação ou referência, nas quais será
utilizada a grafia nelas utilizada.
18
Defectologuii foi o termo surgido no início do século XX utilizado pelos teóricos russo para distinguir as
crianças designadas “especiais” (NETTO; LEAL, 2013). Por não haver uma tradução adequada para o
português, tem-se mantido o termo em sua tradução espanhola: defectologia.
40
19
Será usado, neste estudo, o termo homem tendo em vista o seu conceito genérico, como ser humano.
41
A partir do final do século XIX, este país vinha passando por inúmeras transformações
sociais, decorrentes do declínio do feudalismo e da ascensão do imperialismo capitalista.
Encontrava-se sob o poder do governo absolutista dos czares e, recém-industrializado, sofria
com os males da Primeira Guerra Mundial.
Uma massa de operários e camponeses tinha sua força de trabalho explorada, com
pouco retorno financeiro, situação que os levou ao descontentamento. De acordo com Tuleski
(2008, p. 75), “as dificuldades econômicas encontradas pela população campesina russa iam
ao encontro das insatisfações do operariado durante a Primeira Guerra, acirrando os ânimos
contra o regime czarista”.
Assim, proletários e camponeses se uniram, caracterizando, uma luta:
[...] tanto contra os resquícios do regime feudal, representado pelo czarismo, quanto
contra o capitalismo imperialista. A luta era contra inimigos internos e externos que
impediam o desenvolvimento da Rússia e condenavam a população àquela situação
de penúria. (TULESKI, 2008, p. 38).
[...] via a escola como um meio de preparar a sociedade sem classes, um meio de
reeducar a jovem geração no espírito comunista. [...] [Lênin] dedicou seu tempo a
elevá-la a um nível superior, tomando por base os escritos de Marx e de Engels
acerca da escola e do trabalho produtivo. (BARROCO, 2007, p. 65)
O homem não serve apenas da experiência herdada fisicamente. Toda nossa vida, o
trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito ampla da experiência que
não se transmite de pais para filhos através do nascimento. Convencionaremos
chamá-la de experiência histórica. Junto disso deve se situar a experiência social, a
de outras pessoas, que constitui um importante componente do comportamento do
homem.
quanto no homem primitivo, inclusive em alguns animais superiores. De acordo com Vigotski
(1999, p. 115), “a evolução biológica do homem já tinha terminado antes que começasse seu
desenvolvimento histórico”. Isto torna a história cultural da humanidade a diferença
primordial entre o homem moderno e o primitivo.
O desenvolvimento do comportamento humano se torna resultado da complexa
dialética entre o processo biológico de evolução e o processo de desenvolvimento histórico; o
homo sapiens, por meio da apropriação de sua história cultural, rompeu com a sua história
natural, saindo do primitivismo para o processo de humanização. Nesta premissa, entende-se
o desenvolvimento do psiquismo humano como um processo não procedente de um padrão
evolutivo, mas revolucionário, marcado por rupturas na continuidade e na emergência
qualitativa de novas formas de funcionamento mental em seu decorrer. Estes saltos ocorrem
pelo fato de que o homem, ser criativo e transformador, criou, no decorrer da história da
humanidade, instrumentos concretos para controlar e transformar tanto a natureza, quanto a si
próprio. De acordo com Vygotski e Luria (1996, p. 179):
Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenômenos
criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo
participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade
social, desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se
cristalizaram, encarnaram nesse mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a
linguagem articulada só se forma, em cada geração, pela aprendizagem da língua
que se desenvolveu num processo histórico, em função das características desta
língua. O mesmo se passa com o desenvolvimento do pensamento ou da aquisição
do saber (LEONTIEV, p. 284, grifo nosso).
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Grande parte da obra de Vigotski utilizada neste estudo provém da coleção espanhola “Obras escogidas”, cuja
tradução para o português é de responsabilidade nossa.
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bebê na tentativa de alcançar um objeto. Quando a mãe acode o filho e interpreta seu
movimento como uma indicação, se estabelece um significado do qual, posteriormente, o
bebê se apropriará e passará a conceituar seu próprio movimento como uma indicação. Deste
modo, “[...] se modifica a função do próprio movimento: de estar dirigido ao objeto, passa a
ser dirigida a outra pessoa, se converte em um meio de relação” (p. 149).
Por meio desta exemplificação se tornam claras as reações do psiquismo aos estímulos
sociais, agindo como um meio de relação social e impulsionando o desenvolvimento de novas
conexões psíquicas. Deste modo é assumida a natureza social do desenvolvimento humano.
As relações mediadoras tornam os homens capazes de superar o determinismo
biológico por meio da criação, recriação e internalização de instrumentos, os quais agem
como dispositivos sociais.
Os instrumentos são, pois, criações artificiais que funcionam, em primeiro plano,
como atividades mediadoras e de adaptação, e que se diferenciam de acordo com a sua
orientação: para fora, como instrumentos técnicos, e para dentro, como instrumentos
psicológicos.
Os instrumentos técnicos, chamados de ferramentas, são instrumentos externos criados
pelo homem para servir como uma extensão de si mesmo a fim de que possa adaptar a
natureza de acordo com as suas necessidades. Segundo Vygotski (2000, p. 94), “por meio da
ferramenta o homem influi sobre o objeto de sua atividade. A ferramenta está dirigida para
fora: deve provocar umas ou outras transformações no objeto. É o meio da atividade exterior
do homem, orientado a modificar a natureza”.
Os instrumentos psicológicos, os signos, são instrumentos de mediação das relações
do homem com a conduta humana, essenciais na constituição do desenvolvimento humano,
levando-o a transformar a própria conduta e a daqueles com os quais convive. Segundo
Vygotski (2000, p. 94), o signo “[...] é o meio de que se vale o homem para influenciar,
psicologicamente, tanto a sua conduta, quanto a dos demais; é um meio para a sua atividade
interior, dirigida a dominar o próprio ser humano: o signo está orientado para dentro”.
Para Vigotski (1999, p. 114), a princípio, o signo é sempre um meio de relação social,
de influência sobre os demais e sobre si mesmo, por meio do qual o homem adquire controle
de sua atividade psicológica e de sua conduta. Neste sentido, o signo toma o lugar de:
não desaparece quando nasce a nova, mas é superada pela nova, é dialeticamente
negada por ela, se transporta a ela e nela existe.
O contato do mundo na consciência se dá, em primeiro plano, por meio das sensações,
cujas bases são essencialmente naturais, tendo como porta de entrada os órgãos dos sentidos.
Apesar de sua base fisiológica, as sensações são condicionadas pela exposição aos estímulos
ambientais, coroando, também, a sua base ontogenética. Neste sentido, de acordo com Luria
(1991a, p. 1), apesar de serem reflexos por natureza, as sensações representam:
[...] os principais canais por onde a informação relativa aos fenômenos do mundo
exterior e ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo o homem
compreender o meio ambiente e o seu próprio corpo. Se esses canais estivessem
fechados e os órgãos dos sentidos não fornecessem a informação necessária,
nenhuma atividade consciente seria possível.
pela adaptação da visão sob as condições de iluminação, a qual se aguça na escuridão e sua
sensibilidade diminui sob forte iluminação, ou mesmo as adaptações da audição, que em
ambientes silenciosos se torna, também, mais aguçada e, mais profundamente, como
exemplifica Martins (2011, p. 100), “[...] o alto grau de refinamento sensorial encontrado nos
degustadores que, pela natureza da atividade realizada, adquirem alto aperfeiçoamento das
sensações gustativas e olfativas”. Deste modo, torna-se correto afirmar que as sensações
representam tanto a fonte principal de vínculo com o ambiente, quanto a condição
fundamental para o desenvolvimento de funções psicológicas superiores mais complexas.
As sensações, porém, são vazias sem as concepções que o homem dá a elas. Somente
tomam sentido, portanto, por meio do processo de percepção, que representa um modo de
organização e unificação de todos os estímulos sensoriais aos quais o homem é submetido.
Segundo Luria (1991a, p. 38), as percepções se tornam mais complexas à medida que o objeto
adquire novos significados:
[...] os processos reais de reflexos do mundo exterior vão muito além dos limites das
formas mais elementares. O homem não vive em um mundo de pontos luminosos ou
coloridos isolados, de sons ou contatos, mas em um mundo de coisas, objetos e
formas, em um mundo de situações complexas; independentemente de ele perceber
as coisas que o cercam em casa, na rua, as árvores e a relva dos bosques, as pessoas
com quem se comunica, os quadros que examina e os livros que lê, ele está
invariavelmente em contato não com sensações isoladas, mas com imagens inteiras.
Ante esta exposição, vale dizer que a precisão da percepção dos complexos estímulos
ambientais são frutos não apenas do funcionamento dos órgãos dos sentidos, mas,
imprescindivelmente, das relações sociais, pelas vias da linguagem, a qual lhe qualifica e dá
significado.
A linguagem está presente no cerne das relações humanas e é fundamental para o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, sendo “[...] a função central das
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Para o autor, o caráter comunicativo assume um caráter de meio que ajuda a criança a
se orientar na situação real e planejar a sua atividade. Nesta perspectiva, Vygotski e Luria
(1996, p. 213), acrescentam que:
diretamente com o pensamento por meio do processo de formação de conceitos – que será
aprofundado posteriormente – e dos significados que lhes são dados. A linguagem passa a se
instituir como instrumento do pensamento. E assim, “tendo compreendido o sentido de uma
palavra, como forma de expressão, como um meio de adquirir o controle sobre as coisas que
lhe interessa, a criança começa a juntar palavras tumultuadamente e a utilizá-las com esse
objetivo” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 210).
Para Vigotski (2001, p. 398), “a palavra desprovida de significado não é palavra, é um
som vazio”. O significado da palavra é a unidade desta com o pensamento, resultante do
estabelecimento de um elo entre os planos inter e intrapsíquicos, os quais requalificam e
transformam o psiquismo. O significado da palavra é caracteristicamente inconstante, mutável
e dinâmico, dependente dos diferentes modos de funcionamento do pensamento e da
organização social. Isto quer dizer que, no ato do pensamento, o significado das palavras
varia, promovendo, consequentemente, transformações nas relações entre pensamento e
linguagem.
Como todas as funções psíquicas, o pensamento e a linguagem operam de modo
complexo e único, apesar de serem processos de origem biopsicológica diferente e de terem
seu desenvolvimento independente. Esta relação é discutida por Vigotski (2001, p. 409),
quando este afirma que:
[...] a relação entre o pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma coisa, mas
um processo; é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao
pensamento. À luz da análise psicológica, essa relação é vista como um processo de
desenvolvimento, que passa por uma série de fases e estágios, sofrendo todas as
mudanças que, por todos os seus traços essenciais, podem ser suscitadas pelo
desenvolvimento no verdadeiro sentido da palavra. Naturalmente, não se trata de um
desenvolvimento etário e sim funcional, mas o movimento do próprio processo de
pensamento da ideia à palavra é um desenvolvimento. O pensamento não se exprime
na palavra, mas nela se realiza.
Com isso, pode-se afirmar que a palavra não é uma mera expressão do pensamento. O
pensamento se realiza na palavra justamente pelo fato de a palavra ser uma representação da
realidade na consciência alcançada somente por meio do significado que lhe é dado.
Assim, se torna correto afirmar que o pensamento se materializa na palavra e vice-
versa e, ao se realizar na palavra, ao se transformar nela, o pensamento também se reestrutura
e se modifica. Seu fluxo se dá de maneira dinâmica e interna, havendo uma constante
transição do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento. Neste movimento,
não só o pensamento é modificado, mas a própria conduta da criança, que passará a se
organizar segundo as formas sociais de conduta.
51
Este processo se torna cada vez mais complexo e, no período de transição para a
adolescência, passa a configurar muitas variações funcionais e estruturais, que culminam na
conquista do pensamento objetivo. Sobre a adolescência e as implicações dessa fase
discutiremos a seguir.
21
Existem diferentes limites cronológicos da adolescência, dependente de qual órgão os define. De acordo com a
Organização Mundial de Saúde, a adolescência contempla o período entre os 10 e os 19 anos, e, de acordo
com a Organização das Nações Unidas, entre os 15 e os 24 anos. Demos ênfase aos critérios do Estatuto da
Criança e do Adolescente por ser uma legislação nacional, cujo âmbito se estende às políticas públicas de
educação, tornando-se assim, interesse de nosso estudo.
52
Para Leontiev (2004, p. 305), as condições de vida da sociedade na qual a pessoa está
inserida foram herdadas pela geração que a antecedeu e, assim, “[...] no decurso do
desenvolvimento da criança, sob a influência das circunstâncias concretas da sua vida, o lugar
que ela ocupa objetivamente no papel das relações humanas muda”. O desenvolvimento é
caracterizado pelo tipo de relação que a criança tem com a sua realidade, dando lugar a
atividade que seja dominante em cada etapa do desenvolvimento, a qual “[...] condiciona as
mudanças nos processos psíquicos da criança e as particularidades psicológicas da sua
personalidade num dado estágio do seu desenvolvimento”. (LEONTIEV, 2004, p. 312).
Deste modo, compreende-se que a passagem da infância à adolescência está ligada à
sua inserção nas formas de vida social que lhes são acessíveis e que definirão o conteúdo de
sua atividade, sendo mutáveis no decorrer do tempo. Neste sentido, de acordo com Leontiev
(2004, p. 312-13, grifo nosso),
É correto afirmar, portanto, que, durante muito tempo, não existia a ideia de infância e
adolescência que se tem atualmente. Buscando compreender o caráter historicamente
construído de adolescência, recorremos à Ariès22 (1981, p. 128), quando este afirma que,
durante muito tempo, crianças e adolescentes faziam parte da vida social sem qualquer
diferenciação com adultos, com livre acesso a todas as atividades e acontecimentos do
cotidiano, quais sejam festas, lutas, execuções, jogos ou ritos. De acordo com este autor, “o
respeito devido às crianças era [...] algo totalmente ignorado. Os adultos se permitiam tudo
diante delas: linguagem grosseira, ações e situações escabrosas; elas ouviam e viam tudo”.
A partir do século XVII, começou a surgir na sociedade um conceito de infância
relacionado, essencialmente, à ideia de dependência. De acordo com o pensamento da época,
“só se saía da infância ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos da
dependência” (ARIÈS, 1981, p. 42), o que caracterizava, assim, duas fases distintas: a
infância e a fase adulta.
Somente no século XIX, com a Revolução Industrial, a adolescência passou a ser
considerada uma condição distinta, alcançada pela valorização da formação e capacitação
22
Apesar de não se tratar de um teórico da Psicologia Histórico-Cultural, convencionamos citá-lo nesta
dissertação por apresentar uma importante contribuição a respeito do conceito histórico de adolescência.
54
Há uma desconexão nas diferentes dimensões que definem a entrada na vida adulta.
[...] Na modernidade, quando se acentuava o caráter preparatório do processo
educativo, a diferença entre criança, adolescente, jovem e adulto estava firmemente
estabelecida. Na sociedade contemporânea, caracterizada pela aceleração, pela
velocidade, pelo consumo, pela satisfação imediata dos desejos, pela mudança das
relações familiares e da relação criança/adolescente/adulto, o processo de
24
socialização é distinto daquele que ocorria anteriormente .
Assim, diante deste breve resgate histórico, identifica-se que as mudanças no conceito
de adolescência são frutos da evolução cultural da humanidade e parte de um processo em
constante transformação. Sem negar as peculiaridades das transformações biológicas
ocorridas em uma pessoa durante seu desenvolvimento, deve-se considerar, antes de tudo, o
peso dado socialmente a tais mudanças, o que pode ser identificado pela análise das
concepções de infância, juventude, adolescência, vida adulta e velhice no decorrer da história
de uma sociedade.
De acordo com Vigotski, durante o desenvolvimento humano ocorrem grandes
mudanças e saltos qualitativos que tornam as pessoas capazes de compreender melhor o
23
Esta concepção de adolescência definiu a maior permanência das crianças e dos jovens na escola, o que
englobava, estritamente, a sociedade burguesa do século XIX. Vale ressaltar que as crianças das classes
camponesas e operárias, tão logo alcançassem uma idade propícia à produção (em torno de oito anos), eram
inseridos no mercado de trabalho (ANJOS, 2013), sendo-lhes, assim, não somente negada a adolescência, mas
encurtada a sua infância.
24
Novamente, esta nova concepção de adolescência, bem como a sua extensão durante o ciclo de vida humano,
tem sido um movimento sentido primeiramente nas classes sociais mais privilegiadas (SALLES, 2008).
55
mundo ao seu redor, assim como a si mesmas. Na adolescência, fase de superação da infância,
tais mudanças são provocadas pelo desenvolvimento dos interesses, o qual Vygotski (2006)
definiu como a chave para o entendimento do desenvolvimento psicológico da adolescência.
Os interesses provocariam reações internas e reconstruções nas atrações, levando a
transformações tanto na consciência quanto na atividade do adolescente.
Neste sentido, a atividade, considerada por Leontiev (2004, p. 333) como via
reorganizadora dos processos psíquicos do ser humano, passa a se reestruturar, respondendo
às novas escolhas que se desenvolvem na consciência. Assim, acrescenta o autor,
[...] o meio mais adequado para conhecer a realidade, porque penetra na essência
interna dos objetos, já que a natureza dos mesmos não se revela na contemplação
direta de um ou outro objeto isolado, mas por meio dos nexos e das relações que se
manifestam na dinâmica do objeto, em seu desenvolvimento vinculado a todo o
resto da realidade. O vínculo interno das coisas se descobre com a ajuda do
pensamento em conceitos, já que elaborar um conceito sobre algum objeto significa
descobrir uma série de nexos e relações do objeto dado com toda a realidade,
significa incluí-lo no complexo sistema dos fenômenos (VYGOTSKI, 2006, p. 78-
79).
[...] que o adolescente adentre em sua realidade interna, no mundo de suas próprias
vivências. A palavra não é somente o meio de compreender os demais, mas,
também, a si mesmo. Para o falante, a palavra significa, desde o princípio, o meio de
se compreender, de perceber as próprias vivências. Assim, apenas com a formação
de conceitos se chega ao desenvolvimento intenso da autopercepção, da auto-
observação, do conhecimento profundo da realidade interna, do mundo das próprias
vivências.
57
iniciar seus estudos, já tem um domínio da gramática sem ter consciência de que o tem. Trata-
se de uma manifestação espontânea, fruto de seus hábitos, desprovida, porém, de uma
estrutura determinada – voluntária, consciente, e intencional. A partir do momento em que
aprende, na escola, a sistematização da língua, ela passa tomar consciência desses
conhecimentos gramaticais e, assim, seus hábitos passam do plano automático para o
voluntário.
De acordo com Vygotski (2001), o acúmulo de conhecimento e o amadurecimento das
funções psicológicas superiores, criados pelas condições de ensino, levam à arbitrariedade
deste novo saber científico e à capacidade de novas aprendizagens. Desta forma, a atividade
intelectual da criança é projetada a níveis cada vez mais elevados, destacando-se os papéis da
educação escolar, cujo trabalho é voltado justamente para os conceitos científicos, e do
processo de instrução, que adquire o lugar de fonte propulsora para o desenvolvimento.
Neste sentido,
Deve-se sempre ter em mente que toda criança com deficiência é, antes de tudo, uma
criança e, somente depois, uma criança deficiente. Não se deve perceber na criança
com deficiência apenas o defeito, os “gramas” de doença e não se notar os
“quilogramas” de saúde que a criança possui. Do ponto de vista psicológico e
pedagógico deve-se tratar a criança com deficiência da mesma maneira que uma
normal.
[...] junto com o defeito orgânico estão dadas as forças, as tendências, as aspirações
à superá-lo ou nivelá-lo. [...] Ainda que, precisamente, elas sejam àquelas que geram
peculiaridades ao desenvolvimento da criança deficiente, são as que criam formas
criativas de desenvolvimento, infinitamente diversas, às vezes profundamente raras,
iguais ou semelhantes às que observamos no desenvolvimento típico de uma criança
normal (VYGOTSKI, 1997, p 15-16).
Esta compensação, porém, não ocorre no nível biológico, uma vez que a natureza não
compensa automaticamente uma grande perda. A compensação da qual trata Vygotski (1997)
se refere à perspectiva de que os órgãos dos seres humanos são, antes de tudo, órgãos sociais,
uma vez que medeiam suas vivências no mundo e suas relações sociais. Assim, não existiria
61
lógica em representações (preconceituosas, vale dizer) do tipo “pessoas com deficiência tem a
sexualidade aflorada”, “todo cego é bom ouvinte”, ou “o autista quase não fala e nem tem
interesse em falar”. Tais afirmações tratam de um dos muitos mitos que permeiam as pessoas
com deficiência (AMARAL, 1998) e que as impedem de se desenvolverem.
Um dos aspectos mais impeditivos é o caráter infantil o qual é atribuído às pessoas
com deficiência, uma vez que é concebido por meio de uma representação de incapacidade.
Neste sentido, de acordo com Maffezol e Góes (2004), a infantilização das pessoas com
deficiência mina as suas possibilidades de um futuro, de realização pessoal e de inserção nos
grupos sociais. Desta forma, não há para estas pessoas novas exigências que as impulsionem
ao desenvolvimento, uma vez que as próprias iniciativas voltadas para elas são geralmente de
cunho infantil e repetitivo, visando capacitá-las para habilidades básicas.
No entanto, considerando o caráter social do desenvolvimento e a reação de
compensação presente nas pessoas com deficiência, verifica-se a possibilidade de seu
desenvolvimento, da superação da infância e do desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, por meio das forças desencadeantes que provém da vida social. Para tanto, porém,
é necessário que haja condições sociais - nas relações – que impulsionem tal
desenvolvimento, adiantando-se do mesmo e gerando novas exigências a essas pessoas e que
não foquem na sua deficiência, mas na sua condição de ser humano.
De acordo com Vygotski (1997) o desenvolvimento humano segue uma regularidade
comum tanto à pessoa dita normal, quanto daquela com alguma deficiência: primeiramente
sua conduta surge como função coletiva, sob a forma de colaboração ou interação, como meio
de adaptação social; e, posteriormente, como processo interior, como meio de adaptação
pessoal. Trata-se do já discutido percurso interpsicológico para o intrapsicológico.
Independentemente das condições fisiológicas na qual a pessoa se encontra, torna-se
possível o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, pois “o defeito e a falta de
desenvolvimento das funções superiores se encontram em uma relação distinta a do defeito
com o desenvolvimento insuficiente das funções elementares” (VYGOTSKI, 1997, p. 221).
Assim, o desafio está em encontrar formas alternativas para o desenvolvimento de tais
funções e, neste sentido, a coletividade e a instrução se tornam fatores decisivos,
especialmente no que trata do processo de escolarização, o qual discutiremos a seguir.
Ante a esta explanação, pode-se concluir que a Psicologia Histórico-Cultural nos
permite compreender a adolescência como uma fase produtiva, propícia para o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores e para o amadurecimento dos sistemas
conceituais, bem como para a consolidação da personalidade.
62
Conforme Saviani (2011, p. 13), para alcançar seu objetivo, a educação escolar deve
se pautar na produção do saber, incluindo o conhecimento de ideias, conceitos, símbolos,
hábitos e valores que contemplem o conjunto da produção humana, quer trate do saber sobre a
natureza, quer sobre a cultura. Assim, acrescenta,
Saviani (2011, p. 14) acrescenta que a escola deve organizar seu conjunto de
atividades e seus métodos a fim de encontrar uma forma de transmitir o saber sistematizado,
transformando os conceitos espontâneos em conceitos científicos; a cultura popular em
cultura erudita. A transmissão do saber sistematizado se torna o sentido da existência da
escola e a diferencia qualitativamente de todas as outras formas de educação informais e
cotidianas. Assim, a escola deve ser:
[...] uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado. [...]
não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao
conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado
e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular. Em suma, a
escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente saber
metódico, sistematizado.
Esta forma de organização da atividade educativa elege a escola como meio essencial
de desenvolvimento das funções psíquicas superiores. De fato, conforme defende Vigotski, as
funções psicológicas superiores só se desenvolvem com as exigências do meio e, portanto, é
necessário que a escola esteja um passo a frente do desenvolvimento de seu aluno para
impulsioná-lo cada vez mais adiante. Portanto, a instrução escolar, na qual o professor se
constitui como mediador dos conhecimentos científicos, deve concretizar-se por meio do
ensino daquilo que ainda não está formado no aluno, ou, como bem afirma Vygotski (2001, p.
245), “o ensino deve orientar-se não no hoje, mas no amanhã do desenvolvimento infantil”.
De acordo com Vigotski (1999, p. 100), “qualquer tipo de desenvolvimento infantil é
determinado, em grande medida, pela incapacidade da criança de utilizar por si mesma suas
funções naturais e de dominar instrumentos psicológicos”. Cabe à escola ensinar ao aluno o
novo, aquilo que sucede ao seu desenvolvimento, possível por meio do conhecimento das
tarefas as quais ela é capaz de realizar sozinha e daquelas as quais ainda precisa de
amadurecimento; aquelas as quais se encontram na zona de desenvolvimento atual e aquelas
que se encontram na zona de desenvolvimento próximo.
As instruções na escola devem corresponder às relações entre as zonas de
desenvolvimento atual e próximo, visando sempre à superação da primeira rumo à última.
Desta maneira, ainda de acordo com este autor:
determinada tarefa não quer dizer, necessariamente, que houve uma aprendizagem promotora
de desenvolvimento.
No processo de aprendizagem, os aspectos que inicialmente são mecânicos somente
impulsionam o desenvolvimento no ato de sua superação, quando são dominados. Neste
sentido, conforme afirma Saviani (2011, p. 16), o desenvolvimento acontece quando “os
aspectos mecânicos foram negados por incorporação e não por exclusão. Foram superados
porque negados enquanto elementos externos e afirmados como elementos internos”.
Se pensarmos que este desenvolvimento se torna mais efetivo por meio da
colaboração, torna-se imprescindível a figura do professor no processo de aprendizagem. De
acordo com a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, o professor se constitui como
mediador do conhecimento da humanidade, levando o aluno à apropriação deste
conhecimento e ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Uma vez que, na escola, a aprendizagem se constitui como uma fonte de
desenvolvimento dos conhecimentos científicos, a figura do professor, segundo Facci (2003,
p. 183), “[...] domina determinados conhecimentos que o aluno não tem e deve transmiti-los
aos estudantes; ele deve ter autoridade profissional e produzir, de forma deliberada, a
aprendizagem como resultado do ensino”. Assim, ainda de acordo com a autora, para
conseguir a apropriação do conhecimento aos alunos, o professor “[...] deve desenvolver
métodos que conduzam ao desenvolvimento das potencialidades mentais, precisa estabelecer
uma programação de ensino, uma sistematização de conhecimentos que sirva de base para a
formação de um verdadeiro desenvolvimento mental” (p. 179).
Desta forma, o professor tem a possibilidade de desenvolver a trajetória do
desenvolvimento da atividade intelectual de seus alunos por meio da transmissão do
conhecimento, o que dependerá, no entanto, tanto do seu domínio em relação aos conceitos,
quanto de sua prática pedagógica. Nesta perspectiva, Martins (2011) ressalta a importância
das condições da formação inicial e contínua dos professores com vistas à instrumentalização
de seu trabalho pedagógico, direcionando, de modo qualitativamente superior, a prática
educativa.
Os saberes transmitidos na educação escolar devem impulsionar o pensamento teórico,
elevando a mera vivência à condição de consciência da vivência, e, portanto, como apontado
por Saviani (2011), é necessário que o educador brasileiro passe essa transmissão do senso
comum para a consciência filosófica, feito possível em todos os segmentos do ensino.
Diante disto, não podemos deixar de considerar o ensino às pessoas com autismo e
com outras deficiências.
67
Já discutimos o quanto a condição de deficiência é impeditiva não por ela mesma, mas
pelo seu lugar social. Da mesma forma, discutimos o caráter social das funções psicológicas
superiores, que contrariam qualquer indício de homogeneidade e unidade do processo de
desenvolvimento humano e não diferente na educação escolar, uma vez que:
[...] não existe, na natureza, uma criança cujas funções aritméticas amadureçam
espontaneamente [...] Não podemos dizer, portanto, que uma criança de oito anos
aprende a somar e subtrair, e aos nove a multiplicar e dividir, como se essas
operações fossem resultado natural de seu desenvolvimento; se trata, no entanto, de
mudanças externas, procedentes do meio, não sendo, pois, um processo de
desenvolvimento interno (VYGOTSKI, 2000, p. 154).
25
VELOSO, C. Tá combinado. Intérprete: Maria Bethania. In: Maria. Rio de Janeiro: Sony Music/RCA, 1988.
Faixa 6.
26
Vigotski (1999) defendia a construção de uma ciência psicológica baseada no marxismo. No entanto, enfatizou
o perigo da aplicação genérica de conceitos oriundos desta fundamentação filosófica no campo da produção
psicológica, uma vez que essa se volta para o estudo de categorias e de leis próprias da sociologia. Para este
autor, a Psicologia deveria criar o seu próprio O Capital.
70
propício para compreender fenômenos sociais complexos, contemporâneos, que não podem
ser manipulados, como é o caso deste estudo. Para alcançar tal feito, os instrumentos que
julgamos convenientes para compreender as expressões e vivências das pessoas envolvidas no
contexto social da pesquisa foram a análise documental, a observação participante, entrevistas
gravadas em áudio e o diário de campo. É importante que se ressalte o fato de que,
considerando a relação dinâmica com o conhecimento e as interferências que possam ocorrer
durante todo processo de interação com as pessoas no contexto da pesquisa, não nos ativemos,
no decorrer da pesquisa, a uma proposta rigidamente estruturada, mas, como bem defendem
Bogdan e Biklen (1994), buscamos respeitar o percurso que o campo demandou.
Faz-se necessário considerar, ainda, o lugar da pesquisadora, que neste estudo busca
compreender o processo de escolarização e as relações escolares por meio de suas próprias
palavras e significações, sempre atravessadas por ideologias vigentes. É importante que se
tenha clareza de seu lugar como produtora de sentidos e participante da história.
A pesquisa foi realizada em uma cidade do Estado de Rondônia, que será apresentada,
para fins de preservação da identidade dos envolvidos, como Eldorado.
Fonte: Wikipédia27
27
Disponível em
<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/ff/Rondonia_MesoMicroMunicip.svg/819px-
Rondonia_MesoMicroMunicip.svg.png>. Acesso em 13 jan. 2014.
71
Rondônia fica localizado na parte oeste da Região Norte do Brasil, tendo por volta
237.590,547 km² de extensão com 52 municípios, de acordo com dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2013).
Historicamente, a ocupação de Rondônia, assim como de toda a Amazônia, sempre se
deu para fins de extradição, seja em função da exploração de metais preciosos ou para o
extrativismo vegetal (COLFERAI, 2010).
Por ser uma região de fronteira internacional, foi motivo de preocupação
governamental devido aos limites do território brasileiro e alvo de estratégias de ocupação em
diferentes épocas e, por isso, sua constituição se deu a partir de diferentes levas migratórias,
desde as últimas décadas do século XIX (MELCHIADES, 2009; COLFERAI, 2010).
O povoamento desta região começou a partir da exploração da borracha com a
chegada de imigrantes nordestinos, impulsionado, também, pelo início da construção da
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (MELCHIADES, 2009). A partir deste momento histórico,
a região passou a atrair diversos imigrantes de acordo com ciclos econômicos de extradição,
dentre os quais se destacam os imigrantes do centro-sul, impulsionados por incentivos fiscais
e investimentos do Governo Federal em projetos de colonização dirigida especialmente entre
as décadas de 1960 e 1970 (COLFERAI, 2010).
Mais recentemente, com o desenvolvimento do agronegócio e a construção do
chamado Complexo Hidrelétrico do Madeira, foram provocados novos surtos migratórios
nesta região, caracterizando-a como lugar de formação social recente. “Tudo aquilo que já é
dado histórico com relação à formação cultural em outras partes do Brasil, em Rondônia é um
processo em andamento que ainda está no princípio [...]” (COLFERAI, 2010, p. 3).
Rondônia possui, atualmente, uma população estimada em 1.728.214 habitantes
(IBGE, 2013). No tocante às pessoas com deficiência, os dados mais recentes datam de 2010
(IBGE, 2010), quando cerca de 345.580 de pessoas28 deste estado declararam possuir pelo
menos uma das deficiências investigadas, dentre as quais se apresentaram, em graus variados
de comprometimento, a deficiência auditiva, a deficiência visual, a deficiência motora e a
deficiência mental/intelectual29.
28
Na amostra das pessoas com deficiência foram considerados todos aqueles residentes em Rondônia com dez
anos ou mais.
29
Muito tem se discutido sobre as nomenclaturas utilizadas a respeito da deficiência. Apesar de o levantamento
do IBGE utilizar os termos deficiência mental e intelectual como sinônimos, atualmente tem-se utilizado
apenas o termo deficiência intelectual para referir-se ao déficit do funcionamento do intelecto, distinguindo-o
do funcionamento da mente como um todo, bem como fornecendo maior distinção com a doença mental
(SASSAKI, 2005).
72
30
De acordo com a Política de Educação especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), o
público alvo das ações da inclusão escolar é constituído por alunos com deficiência, com transtornos globais
do desenvolvimento e com altas habilidades/superdotação.
73
Diante dos dados acima elencados, fornecidos pelo NAEDI, iniciamos a etapa de
busca pelo adolescente autista nas escolas, considerando os critérios de inclusão de nossa
74
esse público tão adverso. A escola selecionada foi nomeada como Escola Índigo 31. Índigo é
um centro educacional mantido por uma associação de pais. Possui convênio com o Estado,
que cede professores para atuarem nesta instituição. Possui quatro salas de aula e 17 alunos
matriculados, distribuídos aproximadamente quatro por sala. Dentre dois alunos que atendiam
à faixa etária selecionada, foi escolhido o aluno que estava há mais tempo na instituição.
Desta forma, foram selecionados dois alunos, um de cada modalidade de ensino
(Educação Regular e Especial), de acordo com os critérios de inclusão.
Estivemos em “campo” por seis meses, de julho a dezembro de 2013. Neste período,
permanecemos nas escolas durante uma semana a cada mês, totalizando seis intensas semanas
de vivências, pela manhã na escola Turquesa e à tarde na escola Índigo, o que nos possibilitou
conhecer e compreender um pouco das ricas histórias de escolarização de Thales, aluno da
escola Turquesa, e Bruno, aluno da escola Índigo32.
Thales33 tem 13 anos, estuda no 3º ano do Ensino Fundamental, matriculado na escola
Turquesa pelo segundo ano consecutivo. Foi diagnosticado com autismo aos sete anos, após
inúmeras queixas das escolas nas quais estudava e diagnósticos errôneos, sendo a maioria
deles de deficiência intelectual. Desde então, ficou migrando de escola em escola, pois
nenhuma estava, de acordo com as mesmas, preparada para recebê-lo. Após inúmeras
tentativas de conseguir uma vaga, foi aceito na Turquesa. Mora com a mãe, Lurdes, o
padrasto e dois irmãos, dos quais Thales é o mais velho. Sua irmã do meio também tem
autismo e estuda na mesma escola; está na mesma série que ele, porém, foi matriculada em
outra turma. Lurdes é quem o acompanha a todos os tratamentos e por isso, devido às
dificuldades de conciliar esta rotina com o seu trabalho, teve que deixar o emprego, contando
para a subsistência familiar, com o emprego do marido e com os auxílios que os filhos
recebem.
31
A entrada e inserção nas escolas foram devidamente autorizadas tanto pela Secretaria de Educação de
Eldorado quanto pela Direção da escola Índigo (Apêndice A).
32
Vale salientar que, em respeito ao compromisso assumido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(Apêndice B) de manter em sigilo a identidade dos participantes, serão utilizados, aqui, nomes fictícios para
representar as pessoas que participaram deste estudo. Os nomes dos alunos foram inspirados em seus artistas
prediletos e os demais foram feitos a partir de escolhas aleatórias, sem maiores referências.
33
Nome inspirado no cantor evangélico Thales.
76
34
Nome inspirado no cantor internacional Bruno Mars.
77
Por meio da observação participante, nos tornamos parte das relações escolares o que, tal
como pressupõem Lüdke e André (1986), possibilita uma aproximação da perspectiva dos
sujeitos e, portanto, um acesso a dados impossíveis de serem alcançados por meio de outras
técnicas.
Além da participação no cotidiano, esta experiência foi enriquecida com a
contribuição das mães e das professoras, especialmente por meio de entrevistas, as quais
foram extremamente importantes para que pudéssemos compreender o processo de
escolarização dos alunos com autismo pesquisados a partir de seu ponto de vista,
aprofundando-nos, assim, nas relações escolares.
Cinco entrevistas foram realizadas: uma com cada mãe e professora dos alunos,
incluindo uma com ambas as professoras da sala de recursos da escola de Thales. Os
encontros com as mães foram marcados de acordo com o local e horário de sua preferência e,
assim, a entrevista com a mãe de Thales foi feita na escola Turquesa, durante o horário de
atendimento no AEE, e a entrevista com a mãe de Bruno foi feita em sua casa. Já com as
professoras, as entrevistas foram realizadas conforme a sua disponibilidade, durante o tempo
que antecedia as aulas ou durante o intervalo entre aulas, para que as turmas e seu trabalho
não fossem prejudicados. Nenhuma das entrevistas seguiu um roteiro rígido delimitador,
sendo respeitado o curso da conversa, sendo elaborada apenas um roteiro norteador de
perguntas disparadoras que pudessem englobar os objetivos propostos (Apêndices C e D)35.
No caso do aluno com autismo, pretendíamos incluí-los na participação das
entrevistas, a fim de que suas contribuições não fossem negligenciadas no decorrer do estudo.
Porém, infelizmente, isso não foi possível. Fizemos algumas tentativas com Bruno, e, por
mais que tentássemos encontrar meios alternativos de comunicação, as tentativas foram
frustradas. Recorremos à professora e, também, à mãe para mediar a tentativa, mas também
não foi conseguido uma devolutiva da parte de Bruno. Com Thales, o motivo foi por
incompatibilidade de horários e desencontros. Deste modo, a pesquisa não alcançou o
objetivo pretendido de contemplar as concepções dos alunos por meio de entrevistas devido
aos percalços do campo. Porém, vale salientar, que, apesar de ter havido o impasse na
realização da entrevista com os alunos, por meio da observação participante no cotidiano
escolar pudemos estabelecer uma relação com eles e verificar suas reações e dos outros atores
35
Os registros das entrevistas foram feitos por meio de gravação direta em áudio, para posterior transcrição. Para
fins de apresentação, foram feitas algumas alterações na textualidade das entrevistas prevendo a clareza das
ideias expostas pelos colaboradores e a maior facilidade na sua leitura, sendo eliminados, deste modo, vícios
de linguagem e alterados alguns aspectos de concordância, sem, porém, alterar o seu significado.
78
escolares diante das diversas situações presentes na escola, adquirindo, também, ricas
vivências e informações a respeito de seu processo de escolarização.
Além disso, o acesso às pastas individuais dos alunos com relatórios e histórico
escolar também nos permitiu encontrar informações relevantes para a compreensão da
escolarização dos alunos, especialmente no que diz respeito à sua história.
Nesta seção, nos dedicaremos à apresentação e análise dos fatos vivenciados durante o
percurso deste estudo, no que tange à escolarização do aluno adolescente com autismo.
Considerando os propósitos de nossa pesquisa e, diante de todos os percalços e dificuldades
que encontramos, talvez o mais intrigante tenha sido o fato de que não há, em Eldorado, um
levantamento confiável sobre os alunos matriculados com deficiência, como discutimos na
metodologia desta dissertação. Isto sugere certo grau de informalidade com o trato dos dados
em relação aos alunos matriculados na rede básica de ensino, uma vez que não se pode pensar
em ações e investimentos a um público sobre o qual se desconhece o perfil.
Deste modo, não dispusemos de informações necessárias a respeito do público com
autismo na rede de ensino de Eldorado, impossibilitando que tivéssemos um panorama da
educação para o autista nesta cidade, em especial o adolescente.
Diante do exposto, nosso propósito se segue com a descrição e análise dos métodos de
ensino das escolas dos alunos selecionados para este estudo, de modo a verificar como elas
têm proporcionado a eles o desenvolvimento de suas potencialidades.
Assim, organizamos esta seção de modo que, inicialmente, apresentemos a história de
vida escolar de cada um deles para que, posteriormente descrevamos os métodos de ensino
utilizados para a sua educação escolar e, por fim, analisemos como a escola tem promovido o
desenvolvimento das potencialidades desses jovens.
É importante que se ressalte que os fatos apresentados contemplam tanto as entrevistas
feitas com as mães e as professoras dos alunos, incluindo as conversas informais com elas e
com outros atores escolares, quanto as observações das situações presenciadas e vivenciadas
durante o período de inserção no cotidiano escolar dos alunos.
36
ANTUNES, A.; BROWN, C.; MONTE, M. Infinito Particular. Intérprete: Marisa Monte. In: Infinito
Particular. Rio de Janeiro: Phonomotor Records/EMI, 2006. Faixa 1.
80
Adentraremos, a seguir, nas histórias e nos cotidianos escolares dos dois alunos,
Thales e Bruno, em busca da compreensão do processo de escolarização de cada um.
Toda a vida escolar de Bruno foi vivenciada na escola Índigo, na qual está matriculado
desde os dois anos e meio, quando foi diagnosticado com autismo. Esta instituição de ensino
trabalha com o método TEACCH (Tratamento e Educação de Crianças com Autismo e
Déficits de Comunicação), que, como já apresentado, se trata de um sistema individualizado
de ensino que se baseia na organização do ambiente por meio de rotinas e sistemas de
trabalho, de modo a adaptá-lo às condições do autista e com vistas a torná-lo mais
compreensível para ele (LEÓN; OSÓRIO, 2011).
Por se tratar de um método individualizado de ensino no qual o planejamento é feito
com bases nas necessidades individuais do aluno, não há uma sistematização do conteúdo por
idade e/ou por série, e os avanços nos conteúdos dependerão exclusivamente do nível de
adaptação do aluno ao conteúdo anterior, identificados por meio do PEP-R (Perfil
Psicoeducacional Revisado), conforme León e Bosa (2005).
Deste modo, toda a prática pedagógica em relação à atividade educativa de Bruno está
pautada nas avaliações feitas por meio do PEP-R, as quais foram aplicadas ao longo de sua
permanência nesta instituição e nas quais foram identificadas as chamadas habilidades
emergentes - aquelas as quais ainda passaram pelo processo de acomodação.
Estas avaliações, porém, apesar de identificarem tais habilidades, não constam os
avanços em relação ao processo de escolarização, bem como os percursos de sua
aprendizagem ao longo de cada ano. Assim, as informações dependem de um sistema
avaliativo que não é necessariamente aplicado todos os anos e que tem um foco muito
específico em tais habilidades. Isto dificultou, de certa forma, o resgate da história escolar de
Bruno, aliado à rotatividade de professores e da equipe gestora desta instituição filantrópica.
Sabe-se que, ao longo de sua escolarização, a mãe de Bruno decidiu experimentar a
sua inclusão escolar, matriculando-o na escola Anil, uma escola de ensino regular de
Eldorado. Na época, Bruno estava com oito anos e frequentou a turma de quatro anos. Com
esta experiência, de acordo com Demétria:
é isso que mais atrapalha a vida deles. [...] Foi ótimo. Ele ia para o
lanche, interagia com as crianças, cantava parabéns, ele aprendeu a
bater palmas [...]. Mas, infelizmente, autismo e uma sala de aula... O
que eu via era que o Bruno atrapalhava a aula. Porque quando ele
chegava, as garotinhas, as crianças iam todas para cima dele,
abraçar. Não tinha aula! [risos] O dia em que ele ia para essa escola,
terça e quinta, praticamente não tinha aula. Não por ele bagunçar,
ele ficava quieto. Mas ele tirava a atenção das crianças.
Por meio do relato de Demétria, pode-se dizer que a presença de Bruno alterava todo o
cotidiano daquela turma. No entanto, como pode ser observado por meio de sua explanação, a
presença de Bruno era recorrente, que acontecia duas vezes durante a semana, ou seja, ele não
foi inserido como parte da turma, mesmo porque não houve oportunidade para que o fosse.
Ainda assim, identificou-se que a experiência de inclusão escolar a qual Bruno vivenciou o
levou a saltos qualitativos em seu desenvolvimento, alcançados graças às relações com os
pares.
82
De acordo com o relatório da escola Anil que constava nos dados escolares de Bruno
da escola Índigo, ele era um aluno que, inicialmente, sempre saía de sala e não participava dos
momentos propostos. Porém, durante o processo em que permaneceu nessa instituição, passou
a participar de algumas atividades, criando, ao seu modo, laços afetivos com os colegas da
classe:
Além disso, como explicitado por Lurdes, a mesma professora que o acompanhava na
escola Índigo pela manhã, o acompanhava durante as tardes na escola Anil. Apesar de não
haver informações suficientes sobre como se acontecia o processo de escolarização nesta
experiência de inclusão, há de se refletir a respeito do papel da professora que, em uma sala
de vinte alunos, contava com uma auxiliar e uma professora exclusiva para o Bruno. Não se
deve, neste contexto, desconsiderar o papel primordial de uma instituição de ensino, qual seja
a transmissão sistemática das formas de saber culturais da humanidade. De acordo com
Saviani (2011, p. 17), a escola só dispõe seu papel quando há a transmissão do saber
sistematizado. Para tanto, acrescenta, “é necessário viabilizar as condições de sua transmissão
e assimilação. Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe
gradativamente do seu domínio ao seu não domínio”.
Neste sentido, Martins (2011) identifica a dificuldade que a educação infantil
enfrentou e ainda tem enfrentado na sistematização de conteúdos científicos, padecendo da
prática de conteúdos cotidianos nos segmentos do ensino. Assim, questiona-se a respeito de
como essa transmissão poderia ser passada para Bruno, considerando-se, ainda, o lugar social
que a condição de deficiência impõe nas relações escolares, que, tal como proposto por
Amaral (1995; 1998) tem sido reservado ao aluno com deficiência um lugar de incapacidade.
Deste modo, o aluno com autismo, por carregar sobre si a representação de ser incapaz de
interagir socialmente, torna-se, consequentemente, incapaz de se apropriar dos bens culturais,
uma vez que suas relações escolares se tornam prejudicadas por serem mediadas pela
deficiência, como discute Vigotski (1997).
Vale destacar o fato de que Bruno tinha oito anos quando foi inserido em uma turma
de quatro. De acordo com Demétria, apesar de a escola querer inseri-lo em uma turma
compatível com a sua idade, de acordo com o seu tamanho e “não pela mentalidade dele”,
deixaram-no escolher a sala em que gostaria de ficar – que foi a de crianças de quatro anos.
Com isso, ele era diferente para a turma de todas as maneiras possíveis, por ser autista, maior
e mais velho.
Não há como comparar a sua vivência com a de uma criança de quatro anos, mas é
desta forma como Bruno é percebido, uma vez que foi na crença em sua “mentalidade” que
foi aceita a sua escolha por esta turma. Tal conjuntura evidencia a tendência de nossa
sociedade em cristalizar a imagem infantilizada da pessoa com deficiência, como enfatiza
Januzzi (1992, p. 56-57):
84
[...] se tem observado que existe uma “infantilização” do “deficiente”, tanto que é
comum encontrar-se em instituições escolares que trabalham com adolescente a
prática de cânticos, de atividades completamente em desacordo com os muitas vezes
robustos e desenvolvidos corpos. Isto também ocorre com as famílias, e desta forma,
embora de camadas sociais que necessariamente ingressam mais cedo no mercado
de trabalho, em relação aos “deficientes” há o prolongamento da infância.
Foi vendo quais os alunos que podem estar em uma sala juntos, para
não ocorrer atrito, da crise de um afetar o outro. Então a distribuição
é feita mais ou menos neste sentido. Aqui [na sala de Bruno] nós temos
os alunos que são considerados mais leves, que tem o aprendizado
melhor.
Na sala de Bruno também estudam mais três alunos, os quais chamaremos por José,
Ricardo e Pedro, todos acompanhados pela professora Lurdes e por uma auxiliar, que é
voluntária. Eles foram agrupados na mesma turma por possuírem, mais ou menos, o mesmo
nível de aprendizagem e, principalmente, de acometimento do autismo. Assim, a partir da
organização da escola Índigo, identifica-se uma reestruturação com vistas à homogeneização
das classes e à facilitação da atuação do educador em sala de aula.
85
É importante que se ressalte a delicada condição das auxiliares nas salas de aulas.
Trata-se de voluntárias, normalmente parentes dos alunos, as quais participam ativamente da
prática educativa sem, no entanto, haver uma capacitação para que o faça de modo científico.
Ao mesmo tempo em que interfere na prática educativa, não há, em seu trabalho, uma
sistematização que vise o planejamento pedagógico. Ainda, vale dizer, é uma presença que
pode, a qualquer momento, se ausentar, deixando de participar do cotidiano escolar da
instituição e que nada se poderia fazer a respeito, uma vez que o trabalho é voluntário. Seu
papel desmascara, deste modo, as facetas da organização de uma instituição formada e
dirigidas por pais.
De acordo com D’Antino (1988), esse tipo de instituição são determinadas por uma
estrutura muito próxima à familiar, e, tal como postulado por Bleger (2003, p. 55, grifo do
autor), neste tipo de formação há:
Deste modo, conforme aponta D’Antino (1988, p. 50), estas instituições se tornam
entidades familiares nas quais sua própria organização se espelham na representação da
deficiência, e sua função social “[...] percorre caminhos que parecem mais próximos de tornar
distante o deficiente da comunidade em que vive pela forma segregada de funcionamento
institucional do que efetivamente o de inseri-lo no espaço social”.
Na escola Índigo, a família dos jovens convive cotidianamente com eles, dentro e fora
da instituição. Estão diretamente envolvidas com os alunos em uma relação que pode levá-los
a comportamentos de dependência, uma vez que são constantemente infantilizados. De acordo
com Vygotski (2006), a chegada da adolescência pressupõe uma modificação da participação
social da criança, mudando o lugar em que ela ocupa na sua vida cotidiana ao se envolver em
atividades que não sejam mais de caráter infantil. Nesta perspectiva, verifica-se que, a partir
do momento em que os alunos da escola Índigo não são percebidos como adolescentes, não
lhes são oportunizadas tarefas que impulsionem o avanço de seus processos intelectuais. As
relações necessárias ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores nos alunos dão
lugar à estruturação de atividades mecânicas, artificiais e repetitivas.
Existe, ainda, uma identificação de parentesco com os profissionais que nelas atuam e,
deste modo, é necessário que se questione sobre a atuação da professora em sala de aula, uma
86
vez que tem servido como instrumento de manipulação do ambiente, sem, no entanto,
participar efetivamente do processo de mediação do conhecimento elaborado.
Segundo os defensores do TEACCH (LEON; BOSA, 2005; MARQUES; MELLO,
2005; LEON; OSÓRIO, 2011), o professor é entendido como um mediador, que irá organizar
o ambiente de acordo com o perfil do aluno e da proposta de estruturação rígida e sistemática,
e orientá-lo em relação à atividade que fará e por quanto tempo a fará, dando dicas quando
necessário, caso o aluno tenha dificuldades em terminar determinada atividade.
Nesta chamada mediação, diferente do conceito atribuído pela Psicologia Histórico-
Cultural, o professor aplica uma tarefa a um aluno, conduzindo a sua mão para a efetivação da
atividade. É feito um contínuo direcionamento da ação do aluno até que este se demonstre
capaz de realizar sozinho a atividade proposta, porém, sempre com o uso de recursos visuais.
Assim, a prática do professor nesta metodologia se torna vazia de significado, uma vez que
atua como um modelador de comportamento. Desta forma, se caracteriza o que Facci (2003)
identificou como esvaziamento do trabalho docente, uma vez que ocorre a desvalorização de
seus conhecimentos e do conteúdo que transmite aos alunos, o qual é desvinculado da prática
social.
Vygotski (1997) defende a valorização das relações de colaboração entre o professor e
seus alunos e do seu papel como responsável pela sistematização dos conteúdos de modo que
proporcione nos alunos a apropriação dos saberes escolares. Destaca, ainda, a importância das
relações de cooperação entre os colegas para o desenvolvimento de suas aprendizagens. Neste
sentido, da mesma forma como explicitamos em relação à inclusão escolar de Bruno, na
escola Índigo, os alunos com o autismo dito mais leve poderiam contribuir para o
desenvolvimento daqueles mais acometidos pelo autismo, uma vez que pode impulsionar o
processo de compensação, tal como proposto por Vygotski (1997). Porém, a própria estrutura
metodológica desta instituição não permite que isto aconteça, uma vez que o foco está no
ensino individualizado e, desta maneira, a troca de experiências e a valorização do aluno e da
sua cultura tendem a serem desvalorizadas no processo pedagógico.
A história escolar de Bruno, por ter todo o seu percurso desenvolvido na escola Índigo,
acabou se tornando uma repetição da mesmice, se tornando enjoativo para ele, segundo a sua
mãe. Mesmo tendo-o mudado de turno (em 2013 passou a estudar à tarde), ele ainda tem se
mostrado insatisfeito:
87
O Bruno está em uma fase – ele tem catorze anos - que ele já passou
por tudo ali dentro [da Índigo]. Então, para ele, já está defasado
(Demétria).
O Bruno está em uma fase que para ele lá está enjoativo, ele quer
coisas novas. E colocar ele em outra escola, pois já fui a várias,
também, e eles não estão preparados para receber, algumas escolas
particulares daqui. Não deu certo porque eles não têm profissionais
para receber ele lá. Como mãe, eu acredito que eles também não vão
prestar atenção nele. Por exemplo, se vai ter uma aula de História,
ele vai sentar lá, só ficar sentado, mas ele não vai absorver nada
daquilo ali.
mais amplo dos caminhos à superação do defeito, à sua supercompensação. Para isso
necessitamos assimilar a orientação social destes processos.
Mesmo que a inclusão em uma escola regular seja uma possibilidade, de acordo com a
mãe de Bruno, não há uma que tenha estrutura para receber um aluno com autismo. Pelo
menos foi esse o posicionamento das escolas pelas quais passou com o intuito de matriculá-lo:
As escolas públicas não são uma opção para eles, pois julgam que, se na escola
particular não há uma estrutura, tampouco haveria na escola pública, cujas mazelas alcançam
a todos os alunos, o que se diria a um autista. Segundo Demétria:
portanto, uma secundarização do ensino dos conteúdos científicos como se a reflexão sobre
suas experiências em sala bastassem. Na teoria do Construtivismo, existe a concepção de que
a realidade é construída em nível individual e que o aluno deve dirigir o seu ensino, sendo
agente de seu próprio conhecimento. Tais perspectivas, segundo a autora, direcionam à
manutenção das relações de classe, não permitindo que o professor e o aluno se desenvolvam
plenamente, uma vez que são impossibilitados de se apropriarem dos conhecimentos mais
elaborados e gerando uma desvalorização do papel da escola como transmissora da cultura
humana.
A escola perdeu seu valor de tal modo, que Demétria prefere contratar um
psicopedagogo, profissional que no Brasil é formado em cursos de especializações com viés
clínico, como discutido por Tada, Sápia e Lima (2010), o que pode contribuir para o foco nas
atividades que privilegiam as funções psicológicas elementares em detrimento das superiores.
Além disso, contratar este profissional para atender seu filho em casa, sem considerar a
importância do processo educativo para seu desenvolvimento, pode contribuir para reduzir
suas oportunidades interativas, desconsiderando-se que para Vygotsky (2000) toda a função
psicológica superior, a princípio, é social, ou seja, interpsíquica, para, depois, surgir no plano
psicológico, intrapsíquico. Ainda, observa-se em sua fala o foco na condição de deficiência de
Bruno, pois, da mesma maneira como a escola não tem estrutura para autistas, ele não tem
condições para acompanhar uma turma em uma escola regular; nega-se a Bruno, desta forma,
as possibilidades para que se desenvolva, crença essa historicamente construída com relação
aos alunos com deficiência (JANUZZI,1992; VYGOSTKY, 1997).
Foi neste contexto, o qual tentamos apresentar aqui, que nos inserimos no cotidiano
escolar de Bruno, cuja família busca, com dificuldades, por melhores possibilidades de
escolarização em Eldorado. Assim permanecem na escola Índigo, onde ainda é percebido de
forma infantilizada, desconsiderando sua condição de adolescente, cujo conforto de sua mãe
se encontra no fato de que “ainda bem que ele está indo feliz, ainda”. Porém, vale ressaltar,
felicidade não quer dizer que Bruno está apropriando-se do conhecimento construído pela
humanidade, aqui parece ter um sentido de alienação, de ele estar preso à sua condição de
autista em uma sociedade que ainda não sabe lidar com a diversidade humana, apesar dos
esforços solitários de sua mãe.
4.2 - Quando “até uma vaga para colocar ele na escola é difícil”: a história escolar de
Thales
90
Como o título deste item indica, Thales teve uma vida escolar difícil, caracterizada, em
parte, por rejeições e, mesmo, negligência, até a sua inserção na Escola Turquesa. Seus
primeiros anos de escolarização foram de uma verdadeira luta para a sua mãe, sempre em
busca, minimamente, de um lugar em que ele pudesse estudar.
Começou a estudar aos cinco anos, quando ainda não se sabia que era autista. Na
escola, sua mãe passou a perceber que ele tinha alguma dificuldade, em relação a outras
crianças:
Selena sempre procurava acompanhar os estudos de Thales, seja chegando mais cedo e
observando as classes ou conversando com os professores. E o que percebia era que, de
alguma forma, seu filho era, muitas vezes ignorado pelos colegas e pelos professores,
caracterizando uma difícil situação de exclusão:
Por esta época, Thales sofreu uma convulsão, quando foi hospitalizado por alguns
dias. Devido a este acontecimento, foi submetido a um acompanhamento com neurologista,
quando foi indicado que ele teria algum tipo de deficiência:
[...] a diretora me chamou, no final do ano, e disse que ele não tinha
condições de ele estudar lá, que a escola não tinha estrutura. [...] No
final do ano eles não querem ter trabalho, na realidade.
se pode constatar por meio de análise do artigo 58 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB): “Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade
de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos
portadores de necessidade especiais” (BRASIL, 1996, grifo nosso).
As leis e decretos brasileiros que tratam da educação e, sobretudo, da educação
especial, optam por enunciar o direito a um atendimento às pessoas com deficiência
“preferencialmente” na rede regular de ensino, silenciando, deste modo, um discurso que
poderia contemplar o atendimento a todos. O que se identifica é que o uso do termo
“preferencialmente” tende a funcionar como uma brecha para a não inclusão. Neste sentido,
de acordo com Bueno (2005), a própria ênfase no termo “inclusão” dada aos documentos
oficiais brasileiros se baseia em uma perspectiva de manutenção das desigualdades sociais,
uma vez que, no discurso, a inclusão é sempre um porvir, e a sociedade jamais incorporaria a
todos, pois sempre seria inclusiva.
Legitimando este posicionamento, a própria LDB, ainda no artigo 58, inciso 2º, aponta
que: “O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados,
sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua
integração nas classes comuns de ensino regular” (BRASIL, 1996, grifo nosso), tornando
clara a possibilidade de que não haja inclusão, o que dependeria das “condições específicas
dos alunos”.
De modo implícito, tal posicionamento pressupõe a impossibilidade de inclusão
escolar devido apenas à condição do aluno, à sua própria “capacidade”, ou não, de integração.
Desconsidera, pois, quaisquer outras influências externas a esse alunado, atribuindo apenas a
ele a possibilidade, ou não, de ter o direito de uma matrícula em uma escola regular.
Diante disto, vem à tona o questionamento sobre quais seriam as “condições
específicas do aluno” que não permitiriam a sua inclusão no ensino regular.
As legislações, de fato, não especificam tais condições, deixando uma interpretação
muito ampla e subjetiva, que atinge diretamente nos direcionamentos das práticas educativas.
Ainda, como já discutido anteriormente, as ações governamentais, no que tange à educação
especial, têm privilegiado o público com deficiência visual, auditiva e das altas habilidades.
Assim, implicitamente, as pessoas com deficiência intelectual e com autismo, por se tratarem
de condições mais complexas, tendem a serem desprivilegiadas no processo de inclusão
escolar, dentro de um contraditório discurso de deficiências mais, ou menos, “integráveis”,
considerando “[...] que determinadas ‘categorias’ de necessidades educativas especiais
94
possam ser incluídas, enquanto outras não” (BUENO, 1999. p. 10) e reforçando a prática a
qual Thales vivenciou desde o início de sua escolarização.
Após negarem a Selena a rematrícula de Thales, com o diagnóstico do autismo em
mãos, foi travado por ela uma verdadeira luta pela escolarização de seu filho. A cada ano
Thales estudou em uma escola diferente, pois sempre, ao final do ano letivo, as escolas lhe
negavam a rematrícula pela mesma justificativa de não terem estrutura adequada para ele.
Muitas foram as escolas que lhe negaram a matrícula:
Fui em todas as escolas, fui nas escolas especiais [...]Eu fui a outras
escolas e, aonde eu ia, não tinha vaga, ninguém queria aceitar,
porque diz que toma a vaga de cinco crianças.
Ainda assim esta é uma prática que tem sido exercida nas escolas de Eldorado. De
acordo com as professoras do AEE que acompanham Thales na escola Turquesa, a sua turma,
que comportaria 30 alunos, por ter um aluno com deficiência incluído, deve ter, no máximo,
26. Caso tivesse mais um aluno com deficiência, poderia ter, no máximo, 22 alunos, e assim
por diante. Essa lógica interfere não apenas na organização das salas de aula, mas em toda a
organização escolar - questões as quais discutiremos posteriormente -, além de, como
observado na história escolar de Thales, servir como justificativa para a não aceitação de
alunos com deficiência.
Assim, o autismo de Thales passou a ser um empecilho para o seu próprio processo de
escolarização. Como se não bastassem as dificuldades da sua própria condição, as escolas as
quais sua mãe pleiteou uma vaga mostraram-se muito resistentes em cumprir o seu direito
básico, que é o de estudar:
com barbante), entre outros. Na medida em que termina uma, o aluno se direciona ao armário,
guarda-a e inicia uma nova atividade.
Algumas vezes, antes ou depois do intervalo, Bruno se exercita em uma das bicicletas
ergométricas que ficam no pátio da escola. O lanche é feito em área externa da escola e,
posteriormente, os alunos costumam sentar-se em um canteiro de um dos muros da escola e
permanecem até que o intervalo termine sem que, de fato, interajam entre si, ou brinquem ao
ar livre, quando retornam às salas e retomam suas atividades. Todos os dias, cerca de vinte
minutos antes do término das aulas, os alunos, cada um com um professor ou voluntário,
caminham nas ruas em torno da escola, e, por duas vezes na semana, todos vão a um clube
próximo à escola para praticar natação, exceto nos dias em que chove. Assim se estrutura a
rotina de Bruno, que somente é alterada em casos excepcionais.
A importância dada à estruturação da rotina pelo programa TEACCH se justifica pelo
fato de haver a crença de que por meio dela o aluno autista encontra estabilidade em seu
comportamento, propiciando a aprendizagem gradual dos modos de comportamento
apropriados (LEON; BOSA, 2005). De acordo com Leon e Osório (2011, p. 265, grifo nosso),
este modelo está baseado na concepção de que o crescimento é sinônimo de desenvolvimento
e, deste modo, acredita-se que:
[...] a criança nasce com um sistema nervoso complexo que reflete a imensidão de
seu passado evolucionário, incorporando, dessa forma, os potenciais de
desenvolvimento. A partir disso, os bilhões de neurônios se organizarão e
mediarão o perfil comportamental de cada criança pelo resto de sua vida.
Considerando esses fatores inatos, Gesell postula o seguinte: primeiro, que cada
indivíduo se desenvolve de acordo com um padrão único de desenvolvimento e,
segundo, que esse padrão é uma variação de um plano básico que é mais ou menos
característico da espécie humana.
representação social de que resiste à interação e ao contato visual (APA, 1995; MELLO,
2007), se torna bastante delicada, uma vez que as relações não são estimuladas justamente
pelo fato de haver esse tipo de representação. Não há, no cotidiano de Bruno, qualquer
resquício de instigação à sua interação com os pares. Mesmo no circuito diário, onde cada
aluno percorre as ruas ao redor da escola junto a um dos professores ou auxiliares voluntários,
não há comunicação entre eles durante a caminhada.
Como já discutido anteriormente, para Vygotski (1997) a condição de deficiência é
incapacitante não pelos déficits que dela são provenientes, mas pelo seu significado ante a
sociedade e a organização social. No caso dos autistas, por ser uma condição caracterizada
como persistente e permanente, as próprias práticas educativas a eles voltadas se estruturam
no estigma de que nada, ou quase nada, pode ser feito por eles (ORRÚ, 2012), focando
meramente na diminuição dos comportamentos inadequados, em prol da aquisição máxima de
comportamentos que os levem mais próximo à independência (BASTOS, 2005).
Como já dito, é por meio do PEP-R que se registram as aprendizagens acomodadas e
as aprendizagens emergentes para que sejam feitos os planejamentos pedagógicos (LEON;
OSÓRIO, 2011). Na escola Índigo, o curso de sua evolução educativa se baseia unicamente
na identificação ou não das formas de comportamentos apontadas por este instrumento
avaliativo sem haver, no entanto, uma reflexão sobre a evolução do aluno ou mesmo uma
consideração sobre as potencialidades do aluno observadas nas próprias relações escolares.
Tal conjuntura propicia um quadro de remissão do processo educativo, tal como observado no
posicionamento de Lurdes, professora de Bruno, quando afirma que, pelo fato de não ter
acompanhado a aplicação do PEP-R, não tem como avaliar a sua evolução escolar:
Assim Lurdes identificou que, apesar de Bruno ser bastante tranquilo, tem apresentado
resistência a algumas atividades, especialmente no que trata da apostila didática que foi
inserida por meio da avaliação do PEP-R. De acordo com ela,
A resistência que a professora cita é o fato de Bruno não fazer as atividades com
independência, querendo apenas copiá-las. Por isso, Lurdes tem considerado revisar a
continuidade do trabalho com essas apostilas. As atividades as quais Bruno não tem
apresentado resistência alguma são aquelas as quais faz automaticamente, principalmente as
atividades concretas:
37
Caderno do Futuro é uma coleção de livros didáticos da Editora IBEP que contempla conteúdos de Língua
Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia do Ensino Fundamental.
38
Do Ensino Fundamental.
100
Ele lê, pode compreender a figura, de mostrar uma figura e ele saber
o que é aquela figura, porque está sendo trabalhado. No caso, coloca
a figura de uma cobra e ele fala cobra, uma figura de um peixe e ele
fala peixe. Mas, acredito, que a compreensão da frase ele não faz. Ele
lê, mas compreender mesmo, não.
A fixação dos conteúdos tem sido feita por meio da associação: uma imagem de uma
cobra é relacionada à palavra cobra, sem, porém, haver neste processo a apropriação de seu
significado. De acordo com Vygotski (2001, p. 398), “a palavra desprovida de significado não
é palavra, é um som vazio”. Desde as primeiras relações vivenciadas pela criança, são
formadas as bases para a significação do mundo que a cerca, ancorando o desenvolvimento
dos processos de aquisição da linguagem e da escrita. Porém, antes do desenvolvimento da
linguagem escrita, a criança passa por uma série de simbolismos de primeira ordem, que se
manifestam nos gestos, nas brincadeiras, nos desenhos e na fala. É no domínio deste
complexo sistema de signos que são fornecidos novos instrumentos de pensamento,
representando um novo e considerável salto no desenvolvimento da pessoa.
101
O objetivo da escola, no fim das contas, não consiste em adaptar-se ao defeito, mas
em superá-lo. A criança atrasada necessita mais do que a criança normal que a
escola desenvolva nele os rudimentos do pensamento, posto que, abandonado à sua
própria sorte, não pode ter sucesso em dominá-lo.
As atividades propostas para Bruno estão defasadas, algo que ele mesmo tem sentido -
como já exposto anteriormente por sua mãe. Os jogos de palavras, jogos de memória, quebra-
cabeças e tantas outras atividades sensório-motoras, não contribuem para que ele compreenda
o mundo que o cerca, pois nenhuma destas atividades tem apresentado um caráter mediativo e
emancipatório. Neste sentido, Vygotski (1997, p. 185) aponta que a educação aos alunos com
ou sem deficiência deve estar voltada à transmissão dos conceitos científicos. No caso dos
102
alunos com deficiência, deve criar “[…] uma técnica artificial, um sistema especial de signos
e símbolos culturais adaptados às particularidades da organização psicofisiológica da criança
anormal”. Assim, o professor deve buscar uma prática que leve o aluno com deficiência à
emancipação, sendo alcançado pela cooperação sistemática entre professor e aluno,
juntamente com outros adultos e colegas mais experientes que interajam com ele. Na escola
Índigo, porém, as relações entre os pares são praticamente inexistentes e as atividades em
grupo não possuem um foco educativo.
De acordo com a professora Lurdes:
O que posso dizer das atividades em grupo, são todos juntos, ou que
cantam uma música, ou na espera de alguma atividade, na festa de
família, também, é feito para tentar trazer o convívio dos alunos.
Festa das crianças nós temos também. Então, são coisas que são
feitas para tentar estimular essa questão da interação social entre
eles. Mas é muito difícil, porque é mesmo típico do autismo.
Lá na escola dele, que é a Índigo, eles não interagem entre eles, não.
Eles não conversam, não brincam, nem nada. É cada um por si, cada
um sozinho. Ele chega, ele vai para trabalhar na pasta dele, ele faz as
atividades. Cada um tem uma.
Ele chegou tímido, não falava. Ele pouco interagia com a gente.
Pouco respondia aos estímulos que a gente procurava dar para ele.
educação especial, o que pode contribuir para um processo de inclusão escolar de fachada
como discute Bueno (2008) quando a elaboração de políticas educacionais destoa da realidade
escolar. Esta prática parece ser recorrente, como observado na fala da professora Arlete ao
relatar o caso de outro aluno, que tinha síndrome de Angelman 39 e que havia sido
acompanhado em 2011:
Ele tinha sete anos e foi o primeiro aluno mais ou menos parecido
com o autista que a gente recebeu. A gente começou a se organizar
depois do meio do ano, conhecer o aluno [...] Quando a gente
conseguiu se organizar, conhecer o aluno para o ano dois mil e doze,
atender ele com tudo que ele necessitava, a mãe tirou ele da escola.
39
De acordo com a Associação Síndrome de Angelman, trata-se de “[...] um distúrbio neurológico que causa
retardo mental, alterações do comportamento e algumas características físicas distintas”, tais como atraso na
aquisição motora (sentar, andar etc.), ausência da fala, falta de atenção e hiperatividade, andar desequilibrado,
natureza afetiva e risos frequentes, dentre outros sintomas. Disponível em: <http://angelman.org.br/>
106
planejamento das ações pedagógicas para Thales, o que pode ser verificado no discurso de
Arlete:
Assim que ela [professora Cleonice] chega na escola, ela vem direto
aqui: “Olha, o Thales veio. Quero isso, isso e esse material”, e leva
para a sala dela. Ou então ela já fala assim: “Amanhã eu vou
trabalhar tal coisa, então vocês separam para mim, já me dá...”, e a
gente pesquisa atividade para ele. É assim, tem essa parceria.
Eu tenho trabalhado com ele assim, a questão é que ele gosta muito
de bichos. [...] Então, a gente está desenvolvendo, desenvolvendo não,
pesquisando o alfabeto dos bichos. Dessa forma que vai chamar a
atenção dele para aprender as letras. Porque, ainda hoje, ele
confunde muito os números com as letras. Então, para trabalhar essa
parte com o Thales, vamos chamar a atenção para quê? Para o lado
dos animais, dos bichos que ele gosta. O alfabeto com o Thales é a
letra “a” com um bichinho, um animalzinho que comece com a letra
“a”. Para ele poder o quê? Memorizar, aprender, para que chame a
atenção dele. O “b” teria que ser o quê? Um boi. Porque o Thales é
apaixonado por boi. Apaixonado mesmo.
potencialidades de Thales, e a prática pedagógica perde seu significado, qual seja, como
defende Saviani (2011), a transmissão do saber escolar.
Desta forma, tal como preconizado por Vygotski (1997) em relação à escola especial,
o acompanhamento pedagógico da escola Turquesa tem seguido a linha da menor resistência,
com foco no método visual-direto e no concreto, adaptando-se à deficiência do seu aluno,
quando deveria transmitir a ele conhecimentos cada vez mais ricos e desenvolvidos. O papel
do professor, neste sentido, se constitui como mediador dos conteúdos já elaborados pelos
homens aos seus alunos, fazendo movimentar suas funções psicológicas superiores (FACCI,
2003), prática que não vem ocorrendo na escola Turquesa.
Pelo fato de Thales não ser alfabetizado, sua expressão escrita tem caráter bem
rudimentar, e qualquer atividade que realize de forma independente faz apenas bolinhas:
Ele faz muita bolinha. Ele pega o livro, e começa a fazer bolinha
como se estivesse escrevendo (Cleonice).
De acordo com a professora Eurides, Thales tem uma fixação nas bolinhas, e tudo o
que identifica, representa com bolinhas.
Se você quer tirar alguma coisa dele, você tem que pedir para ele
desenhar. Mas ele só faz bolinha. [...] se eu falar do gato, tem que
mostrar o gato. Porque se eu pedir para ele desenhar, ele vai
desenhar a bolinha que aquilo ali significa o gato.
É como se ele dissesse isso para mim: “Faz isso para mim”. Porque
às vezes ele pede se ele tem a compreensão que aquilo que ele está
fazendo não está saindo do jeito que ele vê por aí. Porque ele vê
muita imagem, ele tem muita informação. Então ele está vendo que
aquelas bolinhas não significam um desenho, não significam coisa
alguma. Ele sabe disso.
Verifica-se que o desenho de bolinhas é o meio que Thales encontrou para expressar
as suas representações. Existe uma compreensão, sim, da atividade proposta. O que lhe falta é
110
que lhe sejam transmitidos meios mais elaborados para que alcance uma forma de
representação dos objetos que sejam compreendidos pelos outros. A bolinha representa o
gato, e este é o primeiro passo para a apropriação de seu significado de forma conceitual,
quando passa de uma ação sinalizadora para uma ação significativa, tal como postula
Vygotski (2001).
Não se pode dizer, portanto, que as bolinhas que Thales faz não têm nenhum
significado; elas claramente representam algo. Em atividades direcionadas, por exemplo,
quando feitas com a colaboração da professora, Thales consegue realizá-las de modo
satisfatório, com pouco uso de bolinhas. Ainda que as tenha, é porque ainda não se apropriou
da forma socialmente correta de representar o objeto do qual trata a correspondente atividade.
Para tanto, é necessário a sistematização do saber escolar, para que este seja transmitido de
forma que ele adquira o seu domínio, como propõe Vygotski (1997; 2001).
Neste sentido, segundo Vygotski (2001, p. 184, grifo nosso):
como resultado do ensino”. O ensino da escrita do nome de forma errada pode gerar danos
futuros a Thales na apropriação de outros conhecimentos.
Ressalta-se, neste momento, uma das atribuições do professor do AEE é:
Apesar de seu esforço, o que se percebe é que na maior parte do tempo Thales fica à
espreita durante as aulas, sem qualquer acompanhamento ou parceria de seus colegas. Não só
ele, mas a maioria dos alunos.
Neste sentido, é necessário que se considere o papel do professor no trato com uma
turma heterogênea. Este terceiro ano da escola Turquesa tem alunos de idades variadas e de
níveis de conhecimento também variados:
Enquanto uns estão bem lá na frente, que sabem ler, que sabem
escrever bem, que sabem produzir, tem uns que estão lá atrás, que
não são nem alfabetizados, ainda. Então é aluno especial, é aluno que
não está alfabetizado, é aluno que já está bem lá na frente: “Tia,
passa outra atividade. Quero mais.” “Tia, isso aqui está muito fácil”,
e faz em tempo recorde. E daí? Tem que ter três professores, um pra
cada nível (Cleonice).
113
Não há, de um lado, um apoio à professora, que tem que dar conta de transmitir um
conhecimento a essa diversidade de alunos e, por outro lado, não há um tato de sua parte para
o desenvolvimento das potencialidades de seus alunos, talvez por falta de uma formação
continuada (MARTINS, 2011), ou por uma desvalorização de seu saber docente (FACCI,
2003).
Considerando a diversidade, caráter ideológico das escolas e da sociedade inclusiva, é
necessário que se tenha em mente que o salto no desenvolvimento, rumo à formação de
conceitos é alcançado por meio da direção fornecida pelo professor e, neste sentido “[...] a
criança pode fazer sempre mais e resolver tarefas mais difíceis em colaboração, sob a direção
de alguém e com sua ajuda, do que atuando por si mesma” (VYGOTSKI, 2001, p. 239). Desta
forma, a colaboração entre os pares já seria propulsora de uma mudança no desenvolvimento
não só de Thales, mas de toda a turma.
É necessário que se destaque o fato de que, desde a sua inserção na escola Turquesa,
Thales tem acompanhado a mesma turma, passando por média em todas as disciplinas. O
critério de avaliação ao aluno com deficiência se dá a partir do preenchimento de um
relatório, cujo objetivo é registrar os “[...] comportamentos e habilidades observados durante
as atividades individuais, servindo como base para ponderamento de médias bimestrais no
decorrer do ano letivo [...]”. Neste relatório são analisados sete aspectos: I) Intelectual; II)
Emocional; III) Social; IV) Linguagem; V) Psicomotor; VI) Lógicos e matemáticos e; VII)
Atividades diárias.
Durante nossa inserção no cotidiano escolar, no segundo semestre do ano, este
relatório ainda não havia sido preenchido pela professora Cleonice, que alegou sequer saber
como preenchê-lo, uma vez que, segundo ela, Thales faltou tanto às aulas que não é possível
definir o seu desenvolvimento escolar. Quando questionamos as professoras do AEE a
respeito do critério de avaliação do desempenho escolar de Thales, elas afirmaram que,
independentemente da evolução acadêmica do aluno, a tendência é passá-lo de ano, uma vez
que é necessário que se mantenha apenas um aluno com deficiência por sala já que paira na
organização escolar uma lógica de que a matrícula de um aluno com deficiência equivale a
cinco vagas de alunos normais. Isto alteraria toda a organização escolar, afetando na
distribuição dos alunos nas salas de aula e, principalmente, na oferta de vagas da escola.
As professoras justificam, ainda, que é mais viável que Thales esteja junto com a
turma que iniciou, uma vez que uma mudança geraria um novo processo de adaptação que
emanaria um trabalho de integração por parte das professoras, tanto do AEE quando da sala
comum. Neste sentido, conforme aponta Freitas (2004, p. 20), o destino dos alunos, para o
114
sucesso ou para o fracasso, é tratado pelos professores conforme os juízos de valor que vão
fazendo deles, de modo puramente informal. Assim, “as estratégias de trabalho do professor
em sala de aula ficam permeadas por tais juízos e determinam, consciente ou
inconscientemente, o investimento que o professor fará neste ou naquele aluno”.
Identifica-se, ainda, um caráter de funcionamento da escola com vistas nos números de
matrícula, sem, no entanto, primar pela qualidade do ensino, tal como aponta Bueno (2001). A
escola perde o seu sentido de transmissão do saber escolar, para cumprir o mero papel de
atendimento às exigências das legislações que tratam da educação inclusiva. A escola
Turquesa aceitou o desafio de matricular Thales, ao contrário de todas as outras que lhe
negaram o direito de estudar. Porém, ainda falta desempenhar seu papel básico, que é o
desenvolvimento, em seus alunos, do conhecimento acadêmico.
Por meio do exposto, pode-se concluir que Thales, em seu processo de escolarização,
tem inúmeras possibilidades de desenvolvimento que, aliadas à motivação que demonstra
constantemente, podem elevar de maneira surpreendente a sua atividade intelectual. Resta-lhe
uma direção para que supere a si mesmo.
O que circula nestas literaturas é que as condutas sociais dos autistas se desenvolvem
de maneira inadequada para a sua cultura, principalmente no que diz respeito aos
comportamentos de interação, devido à dificuldade de estabelecê-la ou mesmo à sua ausência.
Tal conjuntura agrava-se pelos déficits de comunicação, também característicos desta fase
(APA, 2013).
De acordo com Vygotski (1997; 2000; 2001), não há desenvolvimento sem a relação e
não há relação sem comunicação. É por meio da comunicação que a pessoa interage social e
culturalmente, avançando em seu desenvolvimento e definindo sua própria identidade e
conduta. Vigotski identifica que, por meio da linguagem, ocorre na pessoa a significação e
ressignificação do mundo que a cerca, a qual evolui para sistemas mais complexos que
contribui para o seu ajustamento e participação social.
Pelo fato de, no autismo, os déficits serem justamente as condições necessárias para o
desenvolvimento humano - comportamento, comunicação e interação social -, as relações
estabelecidas com o autismo tendem a serem fragilizadas, uma vez que, tal como identifica
Vygotski (1997), a deficiência se torna uma condição básica necessária para a exclusão social,
por se basear no preconceito historicamente formado e por desmerecer os aspectos
socioculturais próprios da condição humana. Da mesma forma, as práticas educativas tendem
a se tornarem excludentes, uma vez que se baseiam em concepções estigmatizadoras que
rotulam os alunos com deficiência no ambiente escolar.
116
Não diferentes são as práticas nas escolas Índigo e Turquesa, as quais permeiam uma
postura de adequação aos sintomas do autismo, desconsiderando, consequentemente, seus
alunos como seres sociais, participantes da história constituídos pelo mundo cultural. Em
relação a esta prática, Orrú (2012, p. 50, grifo da autora) afirma que:
Bruno e Thales, durante a maior parte do tempo, permanecem sozinhos, sem contato
social com os pares e com contato superficial com as professoras. A exclusão dos alunos se
justifica pelo fato de se tratar justamente de um sintoma do autismo e, deste modo, se torna
uma característica própria de todo autista, tal como observado nas falas das professoras:
[...] são coisas que são feitas para tentar estimular essa questão da
interação social entre eles, mas é muito difícil, porque é mesmo típico
do autismo (Lurdes, escola Índigo).
Existe uma representação incapacitante de autismo que não permite que sejam
promovidas práticas para a promoção de seu pleno desenvolvimento, em uma relação dialética
na qual “[...] o estigma cria o estereótipo do estigmatizado” (AMARAL, 1995, p. 121).
Nesta perspectiva, as atividades educativas tanto da escola Índigo quanto da escola
Turquesa priorizam as condições “típicas” do autismo, visando aspectos comportamentais e,
40
Lucinda é uma aluna autista que também estuda na escola Índigo.
117
[...] foco muito nessa questão de mostrar no concreto para ele como
é, porque senão ele nem se comunica. Ele fica parado, não fala, não
age (Eurides).
[...] apresentam dificuldades para estabelecer relações entre pessoas e seus papéis e
entre objetos e sua função de modo dinâmico e compreensivo. Comumente, as
associações são baseadas em experiências concretas que tendem a se repetir de
modo rígido. Isto é, a associação decorre predominantemente de sua ocorrência,
e não do seu significado (LEON; OSÓRIO, 2011, p. 265, grifo nosso)
A solidão não existe sem que haja socialização; o isolamento só existe a partir do
momento em que alguém se afasta do outro. E esta relação dialética mostra que na própria
solidão há um quê de socialização: sozinho, não consigo ficar só.
Convencionou-se que os autistas se afastam das relações sociais, preferindo o
isolamento à relação. Porém, se de fato existe neles uma dificuldade nata (ou não) de
estabelecer vínculos, há uma grande dificuldade das pessoas ao seu redor em descobrir e
resgatar neles uma forma de se relacionar, uma vez que as relações tendem a se basear na
condição de autismo e nas suas características. Segundo Orrú (2012), a falta de reciprocidade
e de compreensão na comunicação afetam as condutas simbólicas que dão significado às
interpretações das circunstâncias socialmente vividas, dos sinais sociais e das emoções nas
relações interpessoais. Se pensarmos em uma dos sintomas desta condição, a de buscar a mão
do outro para pegar algo que deseja, havemos de convir que isto, por si só, é uma via de
relação e de comunicação.
Concretiza-se, portanto, a premissa básica postulada por Vygotski (2001) de que a
comunicação prima pelo suprimento dos desejos a fim de que, a partir da relação, passe a ter
significado e a significar os fenômenos e os objetos que o cercam. O que falta ao autista é a
oportunidade de conhecer o mundo, e nós, a busca por meios de proporcionar nele uma forma
de aprendizagem.
Desta forma, o “ficar só” do autismo faz parte de toda uma convicção construída
socialmente, e para “ficar junto” é necessário que sejam criadas condições para que saia deste
lugar de isolamento, a partir de formas de interação e de comunicação, dentro de suas
especificidades, uma vez que, parafraseando a música supracitada, ficar junto, só, não é
possível.
41
FLAUSINO, R. Amor maior. Intérprete: Jota Quest. In: MTV ao vivo. Rio de Janeiro: Sony BMG/Chaos e
Epic Records. Faixa 13.
122
De acordo com Pletsch (2009, p. 148), são comuns aos professores da sala regular
sentimentos de incapacidade e medo ante o ingresso de um aluno com algum tipo de
deficiência. Isto pode afetar a prática pedagógica do professor, uma vez que “[...] muitas
vezes, a falta de preparo e informação impede o professor de desenvolver uma prática
pedagógica sensível às necessidades do aluno especial incluído”. Da mesma forma, o
desconhecimento sobre o autismo afetou diretamente a prática educativa da professora
Cleonice, uma vez que tem sido baseada em conhecimentos advindos da internet, como
analisamos anteriormente, a fim de ter informações sobre esta condição. Assim, sua
metodologia em sala não tem um segmento estruturado que considere as especificidades de
Thales, mas tem se embasado nas especificidades da condição de autismo.
Em relação à professora Eurides, que é quem acompanha Thales na sala de recursos,
sabe-se que não recebeu capacitação para o trabalho no AEE, sendo convidada para participar
da equipe devido à sua experiência como mãe de um autista. Essa experiência pessoal têm
delineado suas práticas educativas, também sob uma perspectiva homogênea da condição de
autismo, com atividades descontextualizadas da realidade de Thales.
Essas práticas acima analisadas corroboram para um foco no ensino dos conceitos
cotidianos, sem, portanto, priorizar a transmissão sistemática dos conceitos científicos, como
defende Vygotski (2001). Assim, cabe o questionamento a respeito da formação oferecida aos
professores para atuarem na perspectiva da educação inclusiva, uma vez que pulsa a
necessidade de que lidem com as diferenças, as singularidades e a diversidade de todos os
alunos, de modo que se supere o modelo de homogeneidade.
124
Então é aluno especial, é aluno que não está alfabetizado, é aluno que
já está bem lá na frente. [...] Tem que ter três professores, um pra
cada nível.
De acordo com Bueno (2001, p. 3), o acesso generalizado às escolas tem gerado um
grave problema decorrente da ampliação da quantidade de alunos sem uma política
educacional que privilegie a qualidade de ensino. Assim, a escola passa a cumprir “[...] o
papel de reprodutora das relações sociais e de apoio à manutenção do status quo”. Segundo o
autor, a diminuição significativa da reprovação e da consequente repetência escolar tem
provocado regressos na aprendizagem dos alunos, cuja prova é a quantidade de analfabetos
funcionais.
De fato, poucos alunos da turma de Thales são alfabetizados, sendo que a maioria
desconhece as letras, apesar de saber copiá-las.
126
alunado uma inserção social com fins de impulsioná-los ao desenvolvimento, como propõe
Vygotski (1997).
Segundo Mazzota et al. (2007), a própria condição de deficiência afeta os níveis de
percepção, de conhecimento e das emoções dos profissionais que atuam diretamente com este
público, interferindo, deste modo, a relação entre ele e a pessoa com deficiência. Por se tratar
de uma escola especial, existe uma questão muito mais complexa, no que trata da própria
organização institucional, tal como aponta D’Antino (1998, p 49) e a qual já discutimos
anteriormente. Pairam neste tipo de instituição uma identificação e um funcionamento muito
próximo ao da estrutura familiar, na qual:
Desta forma, os profissionais que atuam na escola Índigo incorporam para si e para a
sua prática uma perspectiva emocional, frente a um espírito humanitário de comunidade:
[...] para estar na Índigo você tem que gostar. Não adianta, porque
aqui você está sujeito a dar um banho [nos alunos], a ter um contato
mais com o aluno, coisas que em uma escola dita normal, você só dá
a sua aula. E aqui, não, você tem que estar o tempo todo tentando ver
o que o aluno tem, perceber se ele está com alguma dor. Então você
tem que gostar. (Lurdes).
Neste sentido, como discute D’Antino (1998, p. 59), apesar de ter um conhecimento
técnico detentor de um saber específico na área, isto “[...] não é suficiente para que possa
exercer uma função com isenção da piedade humana em relação à sua clientela”, sendo que o
profissional, ainda, não está imune aos preconceitos e estereótipos históricos em relação à
deficiência. Na escola Índigo esta conjuntura é identificada pelo fato de que, como relatou
Lurdes, as professoras desta instituição estão sujeitas a realizar cuidados básicos no aluno,
como alimentar e limpar. Muitos destes aspectos transgridem o objetivo primo da educação,
que é a sistematização do conhecimento de mundo, de modo que proporcione ao aluno com
128
Portanto, não se pode culpar os professores por não saberem lidar com o aluno autista.
Sob a perspectiva da educação inclusiva, o professor tem que ser polivalente, sem, no entanto,
lhe serem fornecidos os instrumentos necessários para estruturarem o seu trabalho pedagógico
de modo que direcione, de forma qualitativamente superior, sua prática educativa. Em suas
mãos está imposta a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso dos alunos – com ou sem
deficiência -, em uma política educacional que evidencia a centralidade na sua pessoa para
que se efetive a inclusão.
É necessário, portanto, que o poder público supere a etapa das intenções para que
sejam feitas ações que incluam melhores condições de trabalho ao professor e da estrutura
escolar (melhores salários, acompanhamento pedagógico, número reduzido de aluno nas salas,
recursos didáticos adaptados ao alunado, etc.).
Considerando a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural de que o psiquismo
humano não nasce pronto, mas se constitui no processo de aprendizagem, da mesma forma, o
professor não se constitui apenas por ter um diploma ou inúmeros cursos de capacitação, mas
de sua vivência junto à realidade escolar, percebendo de forma crítica o seu papel no processo
de construção social, dando significado à sua prática e transmitindo-a aos seus alunos de
modo que proporcione a eles os saltos qualitativos em seu desenvolvimento, como discute
Vygotsky (1997).
129
No que trata da pessoa com deficiência, Vygotski (1997) identificou que nelas existe
uma reação à condição de deficiência, que as impulsiona a compensá-la por outras vias. A
educação escolar, neste sentido, tem um papel primordial para impulsionar formas alternativas
de desenvolvimento por meio de métodos diferenciados, a partir das especificidades do aluno.
Nesta perspectiva, Leontiev (2004) ao definir que a atividade governa as mudanças mais
130
Vale salientar que o papel da escola não é adaptar-se à condição de deficiência de seu
aluno, mas de superá-la (VYGOTSKI, 1997), na perspectiva de que a deficiência provoca
uma reação de compensação graças às experiências sociais, na convivência cooperativa entre
pessoas com deficiência e sem deficiência, e, neste sentido, a experiência escolar pode
impulsionar seus alunos a um patamar psíquico qualitativamente superior. Deste modo, a
educação escolar salta cada vez mais do plano sensorial em direção ao racional, como
postulado por Luria (1991a).
Outra questão observada nas práticas pedagógicas das escolas é a infantilização dos
alunos, caracterizadas pelo estigma que permeiam as pessoas com deficiência (AMARAL,
1995). Neste aspecto, existe uma clara diferença entre Thales e Bruno, relacionada
diretamente à prática educativa das escolas.
Na escola Índigo predomina um caráter típico das escolas especiais gerenciadas por
pais de alunos, com teor paternalista atrelado à benemerência e à filantropia, como identificou
D’Antino (1998) em sua análise sobre as instituições especializadas. Diante de sua concepção
estigmatizadora, que ignora qualquer possibilidade de atuação e de interação social de forma
autônoma e independente, pairam sobre essas instituições a infantilização de seu alunado. À
Bruno são delegadas atividades de quebra-cabeças, jogos de palavras, todas com temáticas
infantis e, durante o momento em que os alunos terminam suas atividades, a professora coloca
músicas – também infantis - para escutarem enquanto aguardam pela hora do intervalo.
Da mesma forma, na escola Turquesa, verifica-se uma ênfase dada a atividades
pedagógicas comumente destinadas à infância. Neste sentido, Meletti (2006, p. 96), destaca
que existe na educação ao aluno com deficiência:
O Bruno está em uma fase – ele tem catorze anos - que ele já passou
por tudo ali dentro. Então, para ele, já está defasado.
133
De acordo com a mãe de Thales, o convívio com alunos mais ou menos da sua idade
estão influenciando-o a realmente, como afirma, ter a sua idade. Desta forma, identificou que:
Ele está na idade difícil. Ele já tem vontade de namorar. Ele já tem
vontade [risos]. Ele fala. Ele acha que é bonita [uma menina], ele
fala.
Amaral (1994, p. 77) discute que as leituras das representações da sexualidade nas
pessoas com deficiência, permeiam-se pela a-sexualidade ou pela hiper-sexualidade,
sexualidade “angelical” ou “selvagem”. Estas representações estão relacionadas ao modo pelo
qual se concebe, socialmente, a condição de deficiência: por um lado, a perspectiva de
incapacidade e de ausência de autonomia e, consequentemente de se desenvolver
sexualmente; por outro, a concepção estigmatizadora e preconceituosa de que pulsa nas
pessoas com deficiência uma sexualidade irreprimível que as levam ao exibicionismo, à
masturbação e ao voyeurismo.
Estas concepções a respeito da sexualidade das pessoas com deficiência podem advir,
como aponta Amaral (1994, p. 78), do temor e da descrença de que possam adquirir uma vida
independente. Em relação aos pais, existe, ainda, a ambivalente concepção de que “[...] se, por
um lado, o filho deficiente não é o filho idealizado, por outro ele pode ser o filho ideal, pois
‘não crescerá’, ficando sempre aos seus cuidados e na dependência deles”.
Neste sentido, Tada (2005) discute que as representações acerca do adolescente com
deficiência intelectual é feita a partir de associações feitas entre sexualidade e capacidade
cognitiva, como se isto afetasse na pessoa a sua capacidade de estabelecer vínculos afetivos e
de desenvolver uma vida sexualmente ativa. As consequências destas concepções são a
ausência de orientações ou orientações incompletas aos jovens com deficiência, o que pode
acarretar modos socialmente inadequados de expressar a sua afetividade. Vale salientar que
nas escolas a orientação sexual é um dos temas transversais definidos pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, com fins de refletir os pontos de vista, valores e crenças existentes na
sociedade para auxiliar o aluno a encontrar um ponto de autorreferência, constituindo “[...] um
processo formal e sistematizado que acontece dentro da instituição escolar, exige
planejamento e propõe uma intervenção por parte dos profissionais da educação.” (BRASIL,
1997, p. 83).
Considerando as possibilidades de Thales e Bruno, sem aprisioná-los no estigma de
incapacidade, verifica-se que eles podem chegar à adolescência em seu sentido social, ante o
134
caráter social do desenvolvimento humano, como postulado por Vygotski (2000). A chegada
à adolescência se dá, segundo Vygotski (2001) pelo aperfeiçoamento de novas formas de
domínio das próprias operações psíquicas, por meio de influências das circunstâncias
concretas de sua vida. Para Leontiev (2004, p. 313), que considera a atividade como
propulsora da ação humana, “[...] não é a idade da criança que determina, enquanto tal, o
conteúdo do estágio de desenvolvimento, mas, pelo contrário, a idade da passagem de um
estágio para outro depende do seu conteúdo e que muda com as condições sócio-históricas”.
Percebe-se nesses alunos um impulso ao crescimento, uma vez que passaram a desenvolver
características próprias daqueles que os cercam – Thales com os colegas de turma e Bruno
com o irmão, pois na escola não há sequer contato entre os pares.
Tendo em vista a importância das relações para o desenvolvimento humano, Vygotski
(1997, p. 222) defende que:
[...] quando se formam coletividades livres, podem incorporar-se a elas crianças com
atraso profundo e com diverso nível de desenvolvimento mental. Esta é uma das
condições fundamentais para a existência da coletividade. As coletividades
compostas por crianças com diferentes níveis de atraso são mais frequentes, estáveis
e duradouras.
À escola cabe sistematizar seus conteúdos de forma condizente que considere a sua
idade, os seus interesses, a suas especificidades e, acima de tudo as suas potencialidades.
Longe de cristalizar a imagem infantilizada, incapacitada e assexuada do autista e de todas as
pessoas com deficiência, por meio da transmissão sistematizada do saber a escola pode
impulsioná-los a um modo de atividade intelectual qualitativamente superior.
da sociedade capitalista, como aponta Bueno (1999; 2001; 2008). Atendendo aos preceitos do
capitalismo, a escola não tem conseguido superar os problemas que está historicamente posto
a ela, qual seja, ensinar todas as crianças e os jovens, princípio máximo das políticas
educacionais de inclusão escolar.
De acordo com Bueno (2005), a própria ênfase das políticas educacionais no termo
“inclusão” torna a sua efetivação um eterno porvir, uma vez que se mantém na sociedade seu
aspecto excludente e as desigualdades sociais. Deste modo, pode-se dizer que, quanto mais se
fala em inclusão, mais se legitima a exclusão e na escola se forma o seguinte panorama: a
escola que exclui é a mesma escola que inclui e que integra, em uma dialética relação onde a
inclusão e a exclusão escolar são reflexos do funcionamento social da sociedade capitalista.
Neste ciclo perverso não estão incluídos apenas os alunos autistas, os alunos com
deficiência, mas todos aqueles que ficam à margem dos objetivos deste tipo de organização
social: a grande massa das camadas populares. Estes são renegados e excluídos do processo
educativo sem qualquer camuflagem, como ocorre com os alunos com deficiência. Se
pensarmos na escola Turquesa, por exemplo, Thales tende a ser mais privilegiado que os
outros colegas de sua turma, os quais também não se apropriaram do saber escolar e também
sofrem pelas mazelas do processo de escolarização. A ele é dado o direito de um atendimento
especializado com professoras que trabalham (ou, pelo menos, tentam) ante as suas
especificidades, com fins de suplementar as práticas educativas da sala de aula comum. A
escola, que, como proposto por Saviani (2011) deveria promover a emancipação, funciona
como meio de manutenção das relações alienantes da sociedade capitalista. Neste sentido, de
acordo com Tragtenberg (2004, p. 67-68):
No caso dos alunos com deficiência, a educação pode funcionar como atividade
mediadora da prática social ao passo que impulsiona estes alunos à apropriação da cultura,
visando seu desenvolvimento integral e a sua emancipação como ser humano e de todos os
alunos como coletividade (VYGTOSKI 1997). Fortes investimentos governamentais na
educação são, sim, necessários, mas é necessário, antes de tudo, que se restituam as práticas
pedagógicas para que sejam alcançados estes objetivos. Tais mudanças e seus reflexos no
desenvolvimento do aluno com deficiência são discutidas em diversos estudos.
Tada et al. (2012) relatam uma intervenção psicológica com cinco pessoas com
deficiência em situação asilar com fins de favorecer o desenvolvimento de suas funções
psicológicas superiores (atenção, memória, comunicação gestual e verbal e concentração) por
meio de passeios mediados por graduandos de Psicologia. Esta intervenção possibilitou que
estas pessoas fossem desafiadas com as diferentes situações que passaram a vivenciar,
rompendo com a rotina repetitiva e desestimulante que fazia parte de seu cotidiano e que em
nada contribuem para que se apropriem das condutas e normas sociais e, consequentemente,
para o desenvolvimento de seu processo de humanização.
Nesta mesma perspectiva, Padilha (2000, p. 207), diante de Bianca, uma jovem de 17
anos que nasceu com agenesia do corpo caloso42 e que apresentava dificuldades de
simbolização, desenvolveu um trabalho sistemático que consistia em valorizar suas
potencialidades e não a sua deficiência, o que gerou mudanças significativas em sua atividade
intelectual. Por meio desta atividade educativa, “[...] Bianca passou a ocupar lugares
discursivos e a viver práticas sociais, também discursivas. Alterações importantes, portanto,
na relação entre pensamento e linguagem”.
No tocante à educação especial, vale destacar o trabalho realizado pelo Instituto de
Defectologia de Moscou com crianças e jovens surdo-cegas, retratado no documentário
produzido em 1963 pela BBC de Londres “Borboletas de Zagorski”. A partir dos pressupostos
vigotskianos de que a aprendizagem promove o desenvolvimento e de que os conhecimentos
são constitutivamente históricos e essencialmente sociais, desenvolviam avaliações que não
prezavam apenas a identificação e medição da deficiência, mas a investigação de formas de
superá-la. Ainda, davam prioridade à comunicação como meio essencial para a socialização
dos alunos, por isso eram-lhes inseridos métodos alternativos de comunicação, com o intuito
de, o quanto antes, inserir a eles os signos sociais da linguagem.
42
Agenesia do corpo caloso é uma má formação congênita caracterizada pela ausência do corpo caloso, parte do
cérebro responsável por ligar o hemisfério esquerdo ao hemisfério direito.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
43
RUSSO, R.; VENTURINI, F. Mais uma vez. Intérprete: Renato Russo. In: Presente. Rio de Janeiro: EMI,
2003. Faixa 1.
140
este contexto que se encontram Thales, Bruno, Lurdes, Eurides, Cleonice e todos os tantos
atores escolares envolvidos na educação do aluno com autismo.
Por meio da superação da expectativa de incapacidade que a sociedade impõe ao
autista a educação pode levá-lo ao domínio de si e à compreensão do mundo que o cerca,
tornando-se um processo emancipatório, e não aprisionante. Pouco importaria se fosse um
ensino regular ou especial, uma vez que seu objetivo privilegiaria metodologias que
considerem as especificidades de cada aluno para transmitir a eles o conhecimento científico
por meio de atividades que lhes traga, de fato, significado cultural, considerando a
importância das relações sociais para a humanização das pessoas sem ou com deficiência.
A perspectiva da teoria vigotskiana deu às pessoas com deficiência uma chance de
desenvolvimento ao substituir a ideia de falta pela de funcionamento diferente com vistas à
compensação (VYGOTSKI, 1997). Considerou nelas, portanto, uma reação às consequências
da condição de deficiência e inúmeras possibilidades de concretizar as suas potencialidades.
Esta forma alternativa de compreensão mobiliza, na educação, diferentes formas de atuação
frente aos limites orgânicos por meio de ações coletivas que promovam a sua formação
pessoal. Deste modo, a educação escolar atua diretamente sobre o desenvolvimento dos
alunos, levando-os a se apropriarem dos conhecimentos elaborados até aqui e impulsionando-
os a planos mais elevados de humanização, como postula Vygotski (1997; 2000; 2001). É
uma educação que, por meio dos conteúdos sistematicamente transmitidos, transforma, e,
parafraseando o filme “Borboletas de Zagorski”, metamorfoseia, representando a saída do
casulo, do isolamento, rumo à apropriação dos instrumentos educacionais.
No adolescente com autismo, a quem a educação tradicional prende em
estigmatizantes práticas educativas que visam o aprendizado direto e dependente de estímulos
concretos e materiais, pode ser desenvolvida uma escolarização que contribua para que
superem as funções elementares, de reações instintivas e imediatistas e que desenvolvam um
funcionamento psicológico cada vez mais sofisticado, voluntário e intencional, tal como
defende Vygotski (1997) em relação ao aluno com deficiência.
Vigotski (2000), partindo da premissa de Marx de que “a anatomia do homem é a
chave para a anatomia do macaco” 44, destacou que a interação entre o menos desenvolvido e
o mais desenvolvido gera o desenvolvimento, especialmente ao primeiro. Nesta perspectiva
indicamos a importância da promoção de atividades direcionadas à atividade coletiva e de
44
De acordo com Marx (1978, p. 120): “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas
espécies inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se
conhece a forma superior”.
141
cooperação entre os alunos das escolas Turquesa e Índigo. Quanto mais intensas e frequentes
as vivências no coletivo, maiores são as possibilidades de desenvolvimento tanto de Thales,
quanto de Bruno. A socialização de Thales com os colegas para a colaboração poderia
impulsioná-lo a novas aprendizagens e o uso de materiais diferenciados da sala de recursos
poderiam promover não só a sua aprendizagem, mas de muitos colegas de sua turma que
sequer são alfabetizados. Na escola Índigo poderiam ser proporcionados momentos de
socialização que promovessem a transmissão do saber escolar. As músicas, grande interesse
de Bruno, poderiam ser utilizadas de modo que as infantis dessem lugar àquelas de interesse
dos alunos com fins de transmitir o saber; a socialização entre os alunos, inexistente nesta
instituição, poderia impulsioná-los ao desenvolvimento.
Assim, tal como defende Leontiev (2004), as relações que o aluno estabelece com as
pessoas ao seu redor irão orientar o seu lugar na vida, o seu papel social, tanto do presente
quanto do futuro. A escola, os professores e os demais companheiros de sala de aula podem
contribuir para os rumos tomados pelo aluno em sua vida particular e na prática social.
Verifica-se que, para tanto, ainda que sejam necessários grandes investimentos na
educação, o processo educativo pode acontecer a partir do momento em que se percebam as
potencialidades de cada aluno e de como cada um pode auxiliar no desenvolvimento do outro.
Neste sentido, o papel da escola é de oportunizar aos adolescentes com autismo que se
desenvolvam e se estruturem em seu próprio contexto, por meio de uma educação que não se
detenha diante das imposições dos fatores biológicos de sua condição, mas que reconheça
neles a capacidade de se transformar, e de transformar o mundo que os cerca, em uma
existência em que a relação e a comunicação desempenhem um papel constitutivo. Desta
forma é possível à escola construir uma prática pedagógica social e crítica, transformadora e
emancipadora.
A luta é difícil, pois demanda tempo e compromisso. Mas é necessária para que sejam
promovidos saltos qualitativos não só na vida de cada um desses alunos, mas na própria
estrutura da educação brasileira, para que alcance uma verdadeira transformação social.
142
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Nature, v. 459, n. 7246, p. 1-10, mai. 2009.
Venho, por meio desta, solicitar a Vossa Senhoria a colaboração necessária para a
realização da pesquisa intitulada “O adolescente com autismo e escolarização: em busca
daquele que não se vê” nas escolas do município de Eldorado. O objetivo da pesquisa é
compreender o processo de escolarização do adolescente com autismo.
A coleta de dados será realizada por meio de análise documental e entrevistas
individuais com profissionais que trabalham nas escolas e que estejam envolvidos no processo
de escolarização deste aluno em um horário que não traga prejuízos ao seu funcionamento.
A participação dos profissionais será voluntária mediante autorização por escrito no
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cuja cópia se encontra em anexo para o seu
conhecimento.
Na oportunidade, assumo o compromisso de preservar o nome dos participantes e das
escolas em publicações ou apresentações de trabalho, bem como me comprometo a
encaminhar os resultados da pesquisa à Secretaria. Desse modo coloco-me à disposição para
quaisquer esclarecimentos que se fizerem necessários.
Atenciosamente,
AUTORIZAÇÃO
_______________________________
Eu, ________________________, após ter lido e discutido com a pesquisadora os aspectos contidos
no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e após estar convenientemente esclarecido(a), declaro
que concordo em participar voluntariamente da presente pesquisa e não ter recebido nenhuma forma
de pressão para tanto. Declaro, também, ter recebido uma cópia do presente Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
Eldorado, ____/____/2013.
______________________________
Assinatura do Participante
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