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As heterotopias

Existem países, cidades, continentes, planetas, universos “sem lugar”, os quais seria impossível encontrar num mapa, e histórias sem cronologia.
Esses lugares, esses tempos, nascem na cabeça dos homens, nas suas narrativas, nos seus sonhos, no vazio de seus corações. São a doçura das
utopias. Mas eu acredito que existem em todas as sociedades algumas utopias que ocupam um lugar real, um lugar que podemos situar num
mapa, que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir segundo o calendário de todos os dias. É bem provável que cada
grupo humano recorta no espaço onde está lugares utópicos e recorta no tempo momentos “ucronicos” o que quero dizer é que nós não vivemos
nem espaço e num tempo neutro e branco. Não vivemos, não morremos, não amamos no retângulo de uma folha de papel. Vivemos, morremos,
amamos num espaço esquadrinhado, recortado, desenhado, com zonas claras e escuras, com diferenças de níveis, com escadas, portas,
penetráveis e impenetráveis.
Existem as regiões de passagem: as ruas, os trens, os metrôs. As regiões abertas: os cafés, os hotéis, as praias. As regiões fechadas, de repouso: o
lar. Mas entre esses lugares que se distinguem uns dos outros, existem alguns que são completamente diferentes. Lugares que se opõem a todos
os outros, que são destinados a apagá-los, neutralizá-los, purificá-los, são um tipo de “contra-espaços”, utopias localizadas (são por exemplo o
fundo do jardim para as crianças, ou a cama dos pais, que contêm um oceano onde podemos nadar entre as cobertas, o céu, a noite, pois nos
transformamos em fantasmas entre os lençóis…)
Contra-espaços, utopias situadas, lugares reais fora de todos os lugares (como os jardins, os cemitérios…)
Eu sonho com uma ciência que teria por objeto esses outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço onde vivemos. Essa ciência
estudaria não as utopias (porque é necessário reservar esse nome ao que não há verdadeiramente lugar) mas ela estudaria as “heterotopias”, os
espaços absolutamente outros. A ciência em questão teria como nome, e já o tem, de “heterotopologia”. Para essa ciência que está nascendo, um
primeiro princípio: não existe provavelmente uma sociedade que se constitui sem heterotopia, e essas heterotopias são as mais variadas e se
transformam constantemente. Seria mesmo possível classificar as sociedades de acordo com as heterotopias que ela constitui. Como nas
sociedades ditas primitivas, por exemplo em que há contra-espaços destinados aos indivíduos em crise biológica: existem casas especiais para os
adolescentes no momento da puberdade, lugares reservados às mulheres durante a menstruação, outros para mulheres grávidas…
Na nossa sociedade, essas heterotopias para indivíduos em crise biológica quase desapareceram. No sec XIX ainda, existia o serviço militar para
os homens (era necessário que a primeira manifestação da sexualidade viril acontecesse em outro lugar). Para as meninas, eu me pergunto se a
viagem de núpcias não era um tipo de heterotopia e heterocronia. A defloraçao da jovem não poderia se dar na casa onde ela nasceu, era
necessário que essa defloraçao acontecesse em “lugar nenhum”.
Essas utopias destinadas a indivíduos em crise biológica vão sendo substituídas pelas heterotopias destinadas aos “desvios de comportamento”,
aos indivíduos que fogem ao comportamento padrão: asilos, clínicas psiquiátricas, prisões.
Com o passar do tempo, as sociedades podem transformar suas heterotopias, inventar novas ou tentar fazer desaparecer as antigas (como o
esforço para fazer desaparecer as casas de prostituição nos países da Europa).
Um exemplo absoluto de heterotopia é o cemitério, que teve seu papel transformado com o decorrer do tempo. Antes ele ficava ao lado da Igreja
e servia para depositar os corpos que, salvo raras exceções, “repousavam” numa vala comum. Foi no fim do sec XVIII, curiosamente quando a
sociedade começa a se afirmar de mais e mais “ateia” que tem início uma individualização do esqueleto, onde cada um tem direito à uma
pequena caixa para sua decomposição pessoal: Pouco a pouco os cemitérios vão sendo isolados fora das cidades, como se a doença da morte e da
decomposição pudessem contagiar.
As heterotopias têm por regra a capacidade de justapor num mesmo espaço espaços incompatíveis. Como o teatro (que é também uma
heterotopia) tem a capacidade de fazer suceder no retângulo da cena lugares estrangeiros. O cinema mesmo é uma grande sala retangular ao
fundo da qual há uma tela, um espaço bidimensional sobre o qual é projetada uma imagem que o transforma num espaço tridimensional.
O jardim é uma das heterotopias mais notáveis na historia, uma ideia de justapor os quatro elementos da natureza, e plantas de diversos lugares
do mundo. Os tapetes orientais seriam mais tarde a substituição dos jardins, e que maravilha um “tapete voador”, uma heterotopia que muda de
lugar…
As heterotopias são ligadas frequentemente a decupagens singulares do tempo, são parentes das “heterocronias”. O cemitério por exemplo, é o
lugar de um tempo que não passa, não circula mais. Numa sociedade como a nossa, podemos dizer que existem heterotopias do tempo, quando
ele se acumula ao infinito: os museus e as bibliotecas por exemplo. A ideia aqui é de acumular tudo, de parar o tempo e deixá-lo se depositar ao
infinito sobre um espaço privilegiado. Ideia de construir um arquivo geral de uma cultura, a vontade de fechar num lugar todo o tempo, todas as
épocas, formas e gostos. Ideia de construir um espaço de todo o tempo, como se esse espaço pudesse estar ele mesmo fora do tempo. Essa é uma
ideia tipicamente moderna. Museu e biblioteca são heterotopias próprias à nossa cultura. Há também as heterotopias que são ligadas ao tempo
não sobre o modo de “eternidade”, mas sobre o modo das festas. São heterotopias não “eternais” mas “crónicas”. O teatro e as feiras, que uma ou
duas vezes por ano se instalam nas cidades. Mais recentemente na historia de nossa civilização surgiram as “cidades de férias”, penso aqui nas
cidades polinésias que oferecem aos seus visitantes 3 ou 4 semanas de nudez primitiva e eterna. Estas, assim como os museus e bibliotecas, são
heterotopias ligadas à ideia de eternidade, mas ao contrário deles não pretendem acumular o tempo e sim voltar a um tempo da “inocência”,
nudez, o tempo do primeiro pecado.
Há também heterotopias ligadas à passagem , à transformação (como os colégios do sec XIX, que deveriam fazer das crianças adultos).
Quinto princípio da heterotopologia: as heterotopias têm sempre um sistema de abertura e de fechamento que as isolam do espaço em torno.
Entramos numa heterotopia porque somos obrigados (é o caso das prisões), ou porque nos submetemos a um rito. Há mesmo algumas
heterotopias consagradas a ritos de purificação. Purificação da alma e purificação higiênica como os “hamams” muçulmanos.
Existem também heterotopias que são completamente abertas ao mundo exterior, que todos têm acesso, mas uma vez que lá estamos temos a
impressão de ter entrado em “lugar nenhum”. Uma heterotopia que é um lugar aberto mas que tem essa propriedade de nos manter “fora”, é o
quarto destinado ao visitante de passagem (costume durante muito tempo na América), neste quarto qualquer viajante pode entrar livremente,
mas ele não pode entrar na vida da família que o recebe. Podemos comparar a essa heterotopia o quarto de motel onde se entra de carro com a
amante para uma sexualidade permitida, mantida à distância.
E existem as heterotopias que parecem abertas mas nas quais entram apenas as pessoas já iniciadas.
O que há de mais essencial nas heterotopias é o fato de serem a contestação de todos os outros espaços. Essa contestação pode se exercer de duas
maneiras: ou nas “casas fechadas” (como as casas de tolerância), que criam uma ilusão que o mesmo tempo denuncia todo o resto da realidade
como ilusão, ou bem ao contrário criam realmente um outro espaço real, tão perfeito, meticuloso, organizado, como o nosso é bagunçado e
desordenado. Foi assim que funcionou no projeto dos homens, no sec XVIII sobretudo, as colónias, que tinham certamente uma grande utilidade
económica, mas também valores imaginários que estavam a elas ligados. Nesse sentido, nos séculos XVII e XVIII as sociedades puritanas
inglesas tentaram formar na América sociedades perfeitas. Uma dessas iniciativas mais notáveis foi também o projeto dos jesuítas no Paraguai.
Com as colônias temos heterotopias suficientemente ingénuas para querer realizar uma ilusão; com as “casas fechadas” temos heterotopias
suficientemente sutis ou hábeis para querer dissipar a realidade com a força de uma ilusão.
Ainda no sec XIX, os grandes navios, um pedaço de espaço flutuante, um “lugar sem lugar”, fechado sobre ele mesmo, foram durante muito
tempo o maior instrumento económico e a maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia por excelência.

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