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Quantos anos de solidão?

Violência, assédio moral e paralisia das formas de vida no trabalho1

João Batista Ferreira – Programa de Pós-graduação em Psicologia


Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ

A violência tem o poder de paralisar as formas de vida. Ela


nos faz ficar mudos e estáticos. Nosso silêncio, contudo, é o
seu alimento. Por isso, para reagir é preciso falar, pensar,
entender, denunciar, apontar, indignar-se (SOUSA e
TESSLER, 2004, p. 4).

No conto-parábola Diante da lei, de Kafka (2003), um homem do campo chega ao


local onde teria acesso à lei e se depara com a porta bloqueada por um porteiro. O homem
do campo pergunta se poderá entrar mais tarde. O porteiro responde: “é possível, mas agora
não”. A porta está aberta, mas é como se não estivesse. “O homem do campo não esperava
tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora” (p. 199). O porteiro lhe
diz: “tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso”. E assim passa-
se o tempo de uma vida, paralisada pela espera, paralisada pela impossibilidade do acesso a
uma instância de mediação que poderia ser uma referência para uma vida eticamente
qualificada. Quantos anos ele fica ali, sem ter a quem recorrer? Quantos anos de solidão?
Ao comentar a estrutura dos textos literários, Ricardo Piglia (2004) propõe que os
contos trabalham com pelo menos dois planos narrativos: um plano visível e outro oculto,
secreto, narrado de modo elíptico e, algumas vezes, fragmentário. Os dois planos têm formas
diferentes. O plano secreto é a chave do conto. Com essa compreensão, “Kafka conta com
clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até
transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano" (p. 92).

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Ferreira, J. B. (2016). Quantos anos de solidão? Violência, assédio moral e paralisia das formas de vida no
trabalho. In: Farah, B. L. (org.). Assédio moral e organizacional: novas modalidades do sofrimento psíquico
nas empresas contemporâneas. São Paulo: LTr. O artigo tem como base as pesquisas sobre patologias sociais
do trabalho (violência, assédio moral e servidão voluntária), realizadas e em desenvolvimento pelo autor e pelo
Núcleo Trabalho Vivo de Pesquisas e Intervenções em Saúde do Trabalho, do Programa de Pós-graduação do
Instituto de Psicologia da UFRJ. O presente artigo é a amplificação das apresentações realizadas no III
Congresso Iberoamericano sobre Acoso Laboral e Institucional e no IV Congresso Brasileiro de Psicodinâmica
e Clínica do Trabalho, realizados em 2015, em Florianópolis e Manaus, respectivamente. As presentes
proposições utilizam também pesquisas sobre assédio moral no trabalho realizadas durante Curso de Mestrado
em Psicologia na Universidade de Brasília e em estudos subsequentes.

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O conto Diante da lei possibilita diversas leituras, como já mostraram filósofos,
escritores e pesquisadores. O conto (assim como outros trabalhos do autor, como O
processo2 e A metamorfose) nos remete à paralisia das formas de vida, a partir de uma
situação de violência simbólica, aparentemente sutil, mas nem por isso menos danosa.
Neste artigo, analisamos o poder da violência e do assédio moral de paralisar as
formas de vida no trabalho. Discutimos características das organizações do trabalho privadas
e que cada vez mais vão sendo incorporadas nas organizações públicas, e abordamos
questões que ressoam nas organizações do trabalho do Poder Judiciário. Concluímos
ressaltando as possibilidades e necessidades de ações articuladas que considerem o contexto
da organização do trabalho de forma ampla e possibilidades de enfrentamento e
transformação dessas situações.
Em ressonância com os objetivos deste artigo, assinalamos alguns marcadores e
paradoxos da história de Kafka, que entendemos paradigmáticos para as discussões sobre
violência psicológica e assédio moral no trabalho: um poder abusivo se sobrepõe e desabilita
o acesso a um direito; o abandono de quem busca o exercício de um direito, pois não há
instância de recurso; a paralisia de uma forma de vida por uma situação de violência; a
redução da vida à simples sobrevivência, à vida destituída de si mesma e eticamente
desqualificada (Agamben, 2009); a lei deveria ser acessível a todos e a qualquer hora, mas
não é.

O poder de paralisar as formas de vida

Em contraste com os exuberantes avanços tecnológicos e o discurso da excelência das


ciências da gestão, quando olhamos ao redor - para o tempo que nos foi dado viver - as
paisagens do mundo cotidiano do trabalho são atravessadas por atmosferas sombrias,
marcadas, entre outras tantas adversidades, pela negação do sofrimento, adoecimentos,
banalização da injustiça social, devastação ambiental. As sociedades do controle, do
espetáculo, do consumo e da figuração, no entanto, demandam vigor produtivista, corpos
perfeitos, entusiasmos servis, sorrisos pré-formatados (FERREIRA, 2014).
As intensas transformações do mundo contemporâneo do trabalho - e de seus modelos
produtivos e gestionários - amplificam desafios e riscos para a construção de relações
eticamente qualificadas. O mundo do trabalho é marcado pelos efeitos da alta competição e

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O conto Diante da lei faz parte do livro O processo.

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da especulação, que foram intensificados com a grave e histórica crise econômico-financeira
mundial que alcançou um momento crítico em 2008. Os desdobramentos e reverberações
dessa crise se estendem até nossos dias. Entre outras adversidades, foram amplificados os
processos de flexibilização produtiva, as lógicas produtivistas e as formas de gestão
centradas nestas lógicas que, entre outras consequências, produzem a precarização e a
redução dos postos de trabalho, que já vinham sendo vivenciadas nas décadas passadas.

Assinala-se a precarização do emprego, a intensificação do trabalho e a redução da


autonomia, certas reestruturações organizacionais, as práticas laxistas ou tirânicas de
gestão, bem como os discursos que mantêm o culto do desempenho em enaltecer o
sobre-investimento no trabalho (LECLERC, 2005).

Com isso, torna-se ainda mais acentuada a deterioração dos laços coletivos e de
solidariedade e amplia-se o individualismo. Tal cenário tem efeitos diversos nas
organizações públicas e privadas, consideradas as suas especificidades, com graves e amplas
consequências para os trabalhadores, organizações e sociedade.
No que se refere à saúde mental, os efeitos deste contexto – apontados em estudos da
Organização Mundial de Saúde e da Organização Internacional do Trabalho – indicavam já
há alguns anos cenários muito desfavoráveis, decorrentes do impacto das novas formas de
gestão do trabalho: predomínio das depressões, estresse, angústias e outros danos psíquicos,
violência psicológica e assédio moral (BLANCH, 2005).
Com essas breves considerações, identificamos aspectos que caracterizam o mundo
contemporâneo do trabalho, que nos levam a pensar que as novas formas de patologias
relacionadas ao trabalho são, em primeira instância, patologias da solidão e do silêncio,
entre as quais estão a violência psicológica e o assédio moral (DEJOURS, 2004;
FERREIRA, 2008).

Violência e assédio moral como patologias da solidão e do silêncio

As situações de violência têm repercussões significativas nas relações de trabalho, na


saúde dos trabalhadores, nas organizações e no âmbito social. A complexidade do tema, suas
múltiplas causas e especificidades dificultam definições e compreensões consensuais. Com
esta perspectiva, ressaltamos a reflexão de Margarida Barreto (2005):

Filósofos e cientistas sempre se debruçaram sobre a violência, visando explicá-la,

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combatê-la e até mesmo justificá-la. Até hoje existe uma forte tendência de associar a
violência a fatores biológicos, concepções religiosas, doença mental, arbítrio dos
sujeitos, questões genéticas e de hereditariedade.

Aceitar a naturalização da violência reduz o terror que ela provoca, produz submissão
aos seus efeitos e não implicação com as possibilidades de sua transformação. A
naturalização da violência dá sinais de diferenças transformadas em desigualdades, do não-
reconhecimento do outro e de situações de dominação; indica processos de coisificação que
atentam contra a dignidade das pessoas. Minayo (1994) identifica na violência uma
“contraposição à tolerância, ao diálogo, ao reconhecimento, como mostram Hegel (1980),
Freud (1974), Habermas (1980)”. Nesta linha, a imposição do silêncio caracteriza um ato de
violência.
As situações de violência em suas formas mais atrozes e mais condenáveis ocultam
outras situações menos escandalosas, que se prolongam e que são protegidas por ideologias
ou instituições de aparência respeitável (DOMENACH, 1991). Situações que se aproximam
do que Foucault (2004) denominou como submissão sem consciência e sem reação ao abuso
psíquico ou social.
A violência aparece naturalizada no discurso da competência e da excelência. Para
Sato e Schmidt (2004) essa forma de violência tem ressonâncias com a ideologia da
vergonha (DEJOURS, 1987), que produz tolerância às adversidades do trabalho, em nome
do corpo útil ao trabalho útil, e que ocultam as formas adoecidas do viver.
Minayo (1994) identifica nas imposições da organização do trabalho uma forma de
violência que caracterizou como estrutural, que causa desconforto, sofrimento, desgaste,
fadiga, adoecimento e pode levar à morte.
A violência no trabalho vem aumentando no mundo. As conclusões são da
Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2003), a partir de estudo realizado em 36
países, no qual identificou a agressão psicológica - entendida como intimidação e
perseguição sem contato físico – como a forma mais grave de violência no trabalho.
Segundo a OIT (2003), a violência no trabalho é caracterizada por todas as formas de
comportamento agressivo, abusivo que possam causar danos físicos, psicológicos ou
desconfortos em suas vítimas, sejam estas alvos intencionais ou envolvidos impessoais ou
incidentais. A violência no trabalho manifesta-se de diversas formas: agressão física,
interferência nos trabalhos, ameaça, intimidação, mensagem agressiva, ofensa,
comportamento hostil, isolamento, perseguição por grupos (bullying), estupro, extorsão,
postura agressiva, gesto rude, provocação (mobbing), grito, roubo, homicídio, silêncio

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deliberado, insinuação, xingamento, assédio moral (incluindo sexual ou racial) e outras
(CHAPPELL & DI-MARTINO, 2000).
As pesquisas sobre assédio moral avançaram de modo significativo nos últimos anos,
com a compreensão da influência do contexto organizacional (mudanças organizacionais,
formas de gerenciamento, organização do trabalho) e dos efeitos para as pessoas assediadas,
testemunhas e organização. Há abordagens e análises centradas nas pessoas, no contexto
organizacional e social; e abordagens que articulam essas dimensões. Com o tempo,
desenvolveu-se ainda mais a compreensão do assédio moral como situação de violência
produzida por múltiplas causas (SOARES, 2012) e que demanda composições de olhares e
abordagens interdisciplinares para sua compreensão, perspectiva adotada neste artigo.
Os indicadores das pesquisas evidenciam a relevância do tema do ponto de vista social,
político, jurídico, cultural, econômico, organizacional e psicológico. A incidência varia entre
5 e 25% dos trabalhadores, dependendo dos critérios de avaliação utilizados. Pesquisa da
Organização Mundial da Saúde (OMS) na União Europeia mostrou que 8% dos
trabalhadores (12 milhões) convivem com o tratamento tirânico de seus chefes.
Os estudos iniciais sobre hostilidade no trabalho são atribuídos a Brodsky, que propôs
o conceito de harassed worker nos anos 70. Heinz Leymann utilizou o termo mobbing no
universo trabalhista sueco nos anos 80. Outros termos empregados: bullying e harassment
nos EUA; psicoterror ou acoso moral na Espanha; harcèlement moral na França e Ijime no
Japão (SOARES, 2006). Acompanhamos a proposição de Soares (2012) e de Glina e Soboll
(2012) de que estas denominações sejam todas entendidas como assédio moral.
O assédio moral pode ser entendido como:

Exposição prolongada e repetitiva a condições de trabalho que, deliberadamente, vão


sendo degradadas. Surge e se propaga em relações hierárquicas assimétricas,
desumanas e sem ética, marcada pelo abuso de poder e manipulações perversas
(BARRETO, 2000).

Qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras,


atos, gestos, escritos que possa trazer dano à personalidade, à dignidade ou à
integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar
o ambiente do trabalho (HIRIGOYEN, 2002).

Entre os objetivos do assédio moral estão desestabilizar, prejudicar ou destruir


psicológica e profissionalmente a vítima, obtendo algum outro efeito desejado, como:
fortalecimento da própria auto-estima, demonstração de poder, prevenção de “risco”,

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redução de ameaça e autoproteção.
Há uma tendência recorrente das organizações em atribuir as causas do assédio moral
ao âmbito individual (LECLERC, 2005; ESPINDULA, 2006), expressas em frases do tipo:
"fulano é assediador porque é problemático". Tal concepção retira o foco da organização do
trabalho, o que dificulta as ações sobre as causas do assédio, que permanecem ocultas, e
contribui para a naturalização dessas situações e para a descrença das vítimas na efetividade
das apurações.
O assédio moral se apresenta de diversas formas dependendo do ambiente,
participantes, características e consequências para as pessoas e organizações. Pode ser
identificado quando ocorre reiteração de uma ou mais das seguintes situações: isolamento e
incomunicabilidade física; proibição de conversar com os companheiros de trabalho;
exclusão de atividades sociais da organização; comentários maliciosos e desrespeitosos;
atitudes e referências maldosas sobre aspectos físicos, caráter, costumes, crenças, condutas,
família e outros; responsabilização por erros de outras pessoas; transmissão de informações
erradas ou ocultação de informações para prejudicar o desempenho profissional; divulgação
de rumores sobre a vida privada; designação de tarefas pouco importantes, degradantes ou
impossíveis de serem cumpridas; mudança de mobiliário sem aviso prévio; mudança
arbitrária do horário do turno de trabalho; manipulação do material de trabalho como apagar
arquivos do computador; colocação de um trabalhador controlando o outro, fora do contexto
da estrutura hierárquica da empresa; violação de correspondência; rebaixamento de função
injustificada; contagem do tempo ou a limitação do número de vezes e do tempo em que o
trabalhador permanece no banheiro; advertência em razão de atestados médicos ou de
reclamação de direitos, entre outros (HIRIGOYEN, 2002; FERREIRA, 2006; SOARES,
2006). Esta relação, no limite, nunca poderá ser completada, pois sempre podem surgir novas
formas de assédio.
É mais frequente nas situações de assimetria de poder, mas ocorre também entre
pessoas com o mesmo poder na hierarquia. Por medo, os colegas que presenciam o assédio
costumam não se manifestar. Comportam-se como se a situação fosse normal e podem
chegar a desprezar ou ignorar o assediado, por receio de serem demitidos ou assediados.
Para Dejours (2007), o medo se torna uma arma do assediador, que acaba ampliando
o isolamento e a solidão. O autor descreve relatos de vítimas que consideram a falta de
solidariedade dos colegas e o isolamento como situação mais difícil de ser enfrentada do que
as situações de assédio. Olhar para o lado e perceber a indiferença dos colegas em momento

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tão difícil pode ter um efeito devastador. Em última e primeira instância, todos são atingidos,
pois as situações de assédio são sinalizadores do que acontece com quem não se submete, e
acabam operando um efeito conformador que se entranha na subjetividade dos trabalhadores.
Menos frequente é a situação com o assediador em nível hierárquico inferior, que pode
ser identificada nas chantagens ou outras formas de pressão envolvendo informações que
possam desqualificar o assediado.
As vítimas preferenciais costumam ser pessoas questionadoras, representantes dos
trabalhadores ou representantes sindicais; pessoas que se diferenciam pela competência ou
capacitação; que podem gerar desconforto aos superiores ou colegas de trabalho; mulheres
com filhos pequenos; maiores de 45 anos; pessoas com jornada parcial em função de
tratamentos médicos, como DORT (HELOANI, 2003). De modo geral, dependendo do
ambiente de trabalho, apresentar-se como diferente das referências estabelecidas pode ser
omotivo deflagrador das situações de assédio.
Com essa caracterização, procuramos marcar como o assédio moral é influenciado pela
estrutura organizacional e pelo contexto sociolaboral. As características do contexto
sociolaboral que propiciam tais situações são inúmeras: organizações hiper-rígidas
(burocratizadas) e hiper-flexíveis (desreguladas, instáveis, precárias, imprevisíveis, carentes
de políticas coerentes); organizações que tendem às relações competitivas, conflituosas e
marcadas pela falta de solidariedade; crises no mercado de trabalho; condições de trabalho
estressantes; individualismo; ideologia da lei da selva ou vale tudo; preconceitos e
estereótipos sociais; liderança autoritária; gestão mediante estresse; mentira ou perseguição
visando forçar a demissão voluntária (como medida de contenção de gastos por dispensa
sem justa causa); falta de ética empresarial (impulsora da precarização das redes de apoio
social); trato despersonalizado e clima organizacional ruim, além da estratégia do avestruz
que negar ou oculta os problemas (FERREIRA et. Al, 2006; FERREIRA, 2009).
Para Chantal Leclerc (2005, p. 70), "o assédio tem quase sempre origem na
organização". Nossa perspectiva está em sintonia com a descrição da autora, pois as
pesquisas que desenvolvemos e diversas pesquisas que analisamos sobre o tema indicam que
as adversidades das organizações contemporâneas, públicas ou privadas, tendem a criar
ambientes que propiciam o desrespeito entre as pessoas. Por outro lado, organização é
também responsável por identificar e interceder em situações de desrespeito. Quando se
omite, torna-se também participante indireta das situações de assédio.
Com estas considerações, ressaltamos a importância de que as análises sobre o tema

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considerem a utilização da noção de assédio moral organizacional:

A prática sistemática, reiterada e frequente de variadas condutas abusivas, sutis ou


explícitas contra uma ou mais vítimas, dentro do ambiente de trabalho, que, por meio
do constrangimento e humilhação, visa controlar a subjetividade dos trabalhadores. O
controle da subjetividade abrange desde a anuência a regras implícitas ou explícitas da
organização, como o cumprimento de metas, tempo de uso do banheiro, método de
trabalho, até a ocultação de medidas ilícitas, como sonegação de direitos (registro em
Carteira de Trabalho, horas extras, estabilidade no emprego) ou o uso da corrupção e
poluição pela empresa. Essa prática resulta na ofensa aos direitos fundamentais dos
trabalhadores, podendo inclusive resultar em danos morais, físicos e psíquicos”
(ARAÚJO, 2009, p. 64).

A violência e o assédio moral podem resultar em graves consequências para as vítimas,


manifestando-se em sintomas psicossomáticos e psicológicos como: cefaléias, transtornos
digestivos e cardiovasculares, fadiga crônica, insônia, irritabilidade, ansiedade, estresse,
obsessões, fobias, apatias, mal-estar geral, crises de choro, dificuldades de atenção e de
memória, sentimento de indefesa e culpabilidade, vergonha, injustiça e desconfiança,
perplexidade, confusão e desorientação, crises de auto-estima, aumento de peso ou
emagrecimento exagerado, aumento da pressão arterial, problemas digestivos, tremores e
palpitações, redução da libido, sentimento de culpa e pensamentos suicidas, abuso de fumo,
álcool ou outras drogas, pensamentos negativos, desesperança e pessimismo (BARRETO,
2000; HIRIGOYEN, 2002; FERREIRA, 2006; SOARES, 2006).
Entre as consequências para as organizações encontramos: ampliação do absenteísmo
e dos acidentes de trabalho, redução da produtividade, da competitividade organizacional,
na qualidade de produtos e serviços, deterioração da imagem da empresa, ruptura do contrato
psicológico, sanções econômicas.
Para a sociedade, o assédio moral resulta na precarização das condições de qualidade
de vida, crises de relações familiares e comunitárias, custos sociais por enfermidade,
aumento do mal-estar, riscos de suicídio, de aborto e divórcios, além do desemprego.

O poder de sentir, de pensar e de inventar?

Uma das abordagens que possibilita pesquisar e produzir subsídios para intervenções
nas situações de violência e assédio moral é a psicodinâmica do trabalho, que investiga as
possibilidades e adversidades relacionadas ao trabalho, as vivências de prazer e sofrimento,
as ações mobilização, transformação e de saúde e também as formas de adoecimento das

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relações de trabalho, como a violência e assédio moral.
Como abordagem interdisciplinar, a psicodinâmica busca compreender as relações
interdependentes e as influências dos contextos individual, grupal, organizacional e social
sobre a saúde e o trabalho. Para isso, considera também as dimensões formais e informais
das relações, condições e organização do trabalho. Tais influências são recíprocas, não
deterministas, muitas vezes sutis e não perceptíveis, e muitas vezes ficam encobertas pelo
campo de interesses, forças e relações de poder que operam nas organizações.
O trabalho é entendido pela psicodinâmica do trabalho como “saber-fazer, um
engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar
e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar” (DEJOURS, 2004b). O
trabalho é ação de transformação do mundo e do próprio sujeito, que se viabiliza quando são
possíveis reconfigurações permanentes do campo normativo das relações e dos processos de
trabalho e transformações dos contextos nos quais se inserem. Quando é possível fazer a
experiência do poder constituinte do trabalho desta forma, o trabalho se torna atividade vital
- trabalho vivo - eticamente qualificado, que possibilita o que denominamos formas de vida
no trabalho.
Quando não é possível este movimento constituinte, o trabalho torna-se produtor de
mortificação dos sujeitos e dos coletivos, torna-se trabalho morto. O trabalho morto é
caracterizado pela subtração da capacidade inventiva das pessoas, por vivências de
silenciamento e de solidão. A vida ganha a opacidade simbólica e vivencial de um resto no
silêncio - se resgatarmos a célebre fala de Hamlet (FERREIRA, 2009). A vida deixa de ser
vida. Torna-se morte em vida. Um zero, sem lado nem avesso. Vida ética e politicamente
desqualificada, paralisia das formas de vida no trabalho. Entre as formas significativas de
produção do trabalho morto estão a violência e o assédio moral.
Um dos principais operadores de análise das relações entre trabalho e saúde desta
abordagem é a discrepância entre o trabalho prescrito e o real do trabalho. O trabalho
prescrito é composto por regras, normas, técnicas e conhecimentos ligados às lógicas
normativas que disciplinam o fazer no trabalho. Quando assume configurações
hierarquizadas, burocráticas e coercitivas, o trabalho prescrito reduz a capacidade de
mobilização e criação das pessoas, condenando-as a vidas aprisionadas em circuitos
alienados. O trabalho se torna vazio, desumanizado - o que nos remete ao mito de Sísifo,
aprisionado em atividades repetitivas e sem sentido.
Por outra via, o trabalho prescrito que se configura como desestruturado ou não

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estabelecido também contribui para inviabilizar a realização do trabalho. Quando as
normatizações do trabalho não estão minimamente estabelecidas ou são desarticuladas,
também há redução da capacidade de ação das pessoas. Isso pode levar a inúmeros
retrabalhos, erros, dificuldades de comunicação, confusão e relações de trabalho
conflituosas, pela ausência de procedimentos e mediações estruturadas com base em acordos
ética e coletivamente construídos.
Todas essas configurações do trabalho prescrito podem resultar em vivências de
sofrimento e se desdobrar em adoecimentos mentais, físicos e das relações de trabalho, que
vão caracterizar as patologias sociais do trabalho, entre as quais se incluem a violência, o
assédio moral e a servidão voluntária no trabalho (FERREIRA, 2009).
As pesquisas com base na psicodinâmica do trabalho indicam que as relações
utilizadas para investigar a influência das adversidades do trabalho no adoecimento eram
muito mais complexas do que se pensava (DEJOURS, 2012). A constatação de que a maior
parte das pessoas não adoecia no trabalho levou à reformulação da noção de normalidade,
que passou a ser entendida como situação produzida no jogo social de tensões entre os
movimentos vitais das pessoas e os objetivos das organizações - e não mais como ausência
de doença. Jogo instável, muitas vezes no limiar do adoecimento. A normalidade, assim,
ganhava formas ainda mais enigmáticas, podendo ser ela mesma uma forma patológica e
naturalizada de produção subjetiva e identitária. Tal mudança de compreensão deslocou o
foco das doenças causadas pelo trabalho para as vivências de prazer e sofrimento e para as
defesas produzidas contra o sofrimento.
Com a compreensão da psicodinâmica, vemos que não reagimos passivamente às
pressões organizacionais, mas nos protegemos dos sofrimentos e das consequências nocivas
à saúde utilizando estratégias defensivas individuais e coletivas. Tais estratégias são
entendidas como formas de proteção subjetiva que tentam diminuir a intensidade e o
desconforto produzidos por afetos como sofrimento, angústia, insatisfação. Entre as
estratégias defensivas mais utilizadas, identificamos a negação, a racionalização e a
naturalização (DEJOURS, 2012).
O real do trabalho, por sua vez, é caracterizado por situações imprevistas que
ultrapassam o domínio técnico, o conhecimento científico e as referências normativas e de
procedimentos que regulam o trabalho. A experiência do real do trabalho evidencia o
fracasso dessas prescrições diante dos inesperados do real, que apresentam desafios
constantes à compreensão e ao fazer humanos. Nesta linha, a ação de trabalhar não se reduz

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às relações sociais que a conformam, aos salários, às relações de poder ou normas e
procedimentos que a prescrevem.
O real do trabalho é a parte da realidade que, por sua contínua transformação
temporal e material, implica intermináveis reconfigurações subjetivas e sociais e, assim,
apresenta grandes desafios à compreensão humana. Tal observação permite marcar a
distância irredutível entre o real do trabalho e as prescrições e procedimentos prescritos, que
se revela pela resistência aos procedimentos, ao saber-fazer, à técnica, ao conhecimento e
também às construções identitárias.
O trabalhador, no entanto, não enfrenta somente a resistência que chega do exterior,
mas aquela que provém de si mesmo, denominada real do inconsciente. Nem sempre é fácil
distinguir a resistência da realidade material daquela que resulta do real do inconsciente. O
real do trabalho faz surgir, quase inevitavelmente, a dimensão do inconsciente (DEJOURS,
2012).
Mas trabalhar é também compartilhar atividades com os demais trabalhadores, o que
aponta uma segunda dimensão do real - o real das relações sociais e de trabalho que pode
alcançar a condição de real das relações de dominação. As resistências produzidas pelas
relações sociais de gênero, por exemplo, são marcadas pela dominação dos homens sobre as
mulheres; e as resistências produzidas por diversas formas de preconceitos também.
Há uma forma muito significativa de real da dominação que identificamos no abuso
do poder diretivo. Dependendo da cultura da organização, o real da dominação pode se
transformar em mandamento gestionário naturalizado que funciona como dispositivo
primordial e ordenador do campo normativo das organizações – um princípio de
conformidade ao instituído que, paradoxalmente, se transforma em um prescrito do
trabalho, que denominamos prescrito soberano (FERREIRA, 2009).
Assim, o real da dominação e o prescrito soberano se confundem. Em seu nome, é
amplificado de modo desmesurado e fora de princípios éticos e legais o domínio da gestão,
que ultrapassa o poder diretivo das organizações e se configura como prática de dominação
(PÉRILLEUX, 2013)3. Tais práticas são o fundamento das culturas organizacionais que

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Na análise destas situações, identificamos ressonâncias com as noções de poder soberano e estado de
exceção utilizadas por Agamben (2009)3. O soberano decide sobre a aplicação ou não das regras e, assim,
instaura um estado de exceção, entendido como não lugar do direito, como zona de indistinção entre violência
e direito, que identifica em diversos âmbitos da contemporaneidade e que aqui encontramos no mundo do
trabalho. A partir destas referências, caracterizamos o prescrito soberano como aquele capaz de instaurar
o que denominamos aqui como situações de exceção, nas quais valem as regras que, simbólica e
efetivamente, desabilitam, de modo circunstancial e atendendo determinados interesses, o ordenamento

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“aceitam” e naturalizam a violência e assédio moral no trabalho, em nome do controle da
subjetividade e da adesão a essa cultura, mas que jamais admitem praticar esta forma
perversa de gestão, como veremos a seguir.
No artigo Violence ou domination? Dejours (1999) investiga os instrumentos de
dominação nas organizações, mas que não se traduzem diretamente em situações de
violência. Um exemplo disso é o estabelecimento de metas, que costumam receber
incrementos progressivos em nome de vários fatores, e podem se tornar impossíveis de ser
alcançadas. Em nome da gestão pela excelência, há uma contínua produção de tolerância à
injustiça e ao sofrimento. Assim, tais instrumentos “não-violentos” são amplificados por
sofisticados processos de comunicação interna e externa, que operam uma distorção
comunicacional a serviço da dominação simbólica, voltada para a contenção da violência
“condenada” pelas organizações de trabalho, mas que é produzida pelas próprias
organizações.
A eficácia desses métodos de gerenciamento produz uma situação paradoxal: a
responsabilidade moral e jurídica recai sobre quem, em última instância, comete atos
violentos e não sobre quem induz sua produção, muitas vezes solicitando o cumprimento de
metas impossíveis. A dominação simbólica operada por estas formas de gerenciamento
dificulta e às vezes impossibilita a imputação de responsabilidade pela violência à
organização. Como consequência, aqueles que cometem atos de violência no trabalho, nesta
lógica, passam por culpados e não por vítimas de uma estrutura organizacional que induz
situações de violência.
Com esta perspectiva, entendemos que é amplificada a compreensão das estratégias
de gerenciamento aparentemente sofisticadas dessas organizações. Tais métodos de
gerenciamento, mais perversos que violentos, resultam em violências decorrentes das
omissões das organizações na identificação dos efeitos que produz com estes modelos.
Desta forma, o abuso do poder diretivo torna-se naturalizado e contribui de modo
significativo para a violência e o assédio moral nas organizações.
O prescrito soberano produz referências normativas que são internalizadas e
reproduzidas pelos trabalhadores como, por exemplo, no controle que exercem sobre os
colegas no “(des)cumprimento” da jornada de trabalho. Foram necessárias décadas de lutas
dos trabalhadores para o estabelecimento das jornadas de trabalho das diversas categorias.

ético-jurídico que regula, por exemplo, os direitos fundamentais dos trabalhadores. O prescrito soberano
resulta em vidas ética e politicamente desqualificadas e em paralisias das formas de vida no trabalho.

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Não é incomum que um trabalhador que sai do trabalho horário no estabelecido, depois de
cumprir diligentemente suas atividades, seja constrangido pelos colegas ou chefias com
comentários do tipo: “vai sair agora?... você está desmotivado?”.
As situações da exceção decorrem do prescrito soberano (ou real da dominação), e
são marcadas por ambivalência e/ou contradição entre o discurso e a prática (a organização
sinaliza participação nos processos decisórios, inclusão e oportunidades, mas predomina a
exclusão sutil ou explícita). Com isso, caracteriza-se uma prática perversa do tipo só-que-
não (sim no discurso e não na prática), e são produzidas formas de subjetivação só-que-não
(proposta aqui com base nos marcadores paradigmáticos anteriormente identificados no
conto Diante da lei, de Kafka).4
As situações de exceção também podem ser utilizadas como “instrumentos de
gestão” que dissimulam a lógica dos fins que justificam os meios, e são reforçadas, como
vemos na psicodinâmica do trabalho, por ideologias defensivas, dominação simbólica e
distorção comunicacional.

Quando as comunicações no trabalho são bloqueadas, quando o silêncio se impõe ou


a mentira impera, quando não há espaço para discutir abertamente o que acontece
nos locais de trabalho, a situação se deteriora e o sofrimento humano assume formas
incontroláveis, que vão desde o puro cinismo até as manifestações de violência
individual e social (DEJOURS, 1999, p. 11).

Com base nestas considerações, em sintonia com a psicodinâmica do trabalho, o


desenvolvimento de ações que possibilitem dar visibilidade e possibilidades de
transformação a essas situações demanda a atuação simultânea e de forma integrada em
várias frentes (LECLERC, 2005; DEJOURS, 2013; FERREIRA, 2009), considerando, entre
outros aspectos:
a) a interdependência complexa das dimensões individuais, interpessoais, grupais,
organizacionais e sociais;
b) os campos de forças, interesses e relações de poder formal e informal;
c) as causas para além das situações individuais;
d) a articulação de áreas, processos e informações (clima organizacional, motivos dos

4
Subjetivação só-que-não: forma de subjetividade produzida por um poder que se sobrepõe e desabilita o
acesso a um ou mais direitos; não há instância de recurso para o exercício de direitos; forma de vida paralisada
por uma situação de violência; forma de vida transformada em vida de sobrevivência, em vida eticamente
desqualificada (Agamben, 2009) – em vida fora do mundo; o exercício de direitos deveria ser acessível a todos
e a qualquer hora, mas não é.

13
afastamentos, inquéritos administrativos, ouvidoria, pesquisas com grupos,
clínicas do trabalho, entrevistas de desligamento);
e) abordagens específicas para cada caso;
f) ações articuladas de curto, médio e longo prazo;
g) a demora no encaminhamento de ações de intervenção pode produzir sérios e
amplos contágios;
h) construir espaços de fala e de discussão, o que é fundamental para a compreensão
dos fatores que produzem o não dizer, o efeito paralisante do medo.

Apontamentos sobre a organização do trabalho no Poder Judiciário

As pesquisas realizadas no âmbito do Poder Judiciário, destacadas a seguir, oferecem


referências importantes para ilustrar nossa discussão. Magnus (2015) identificou situações
de individualismo e competição, impostas pelo mundo do trabalho contemporâneo, e que
influenciam o modo de constituição do trabalho dos servidores e dos coletivos também no
Poder Judiciário. Destacou que organização do trabalho estudada do Poder Judiciário é
marcada pela hierarquia e por relações de poder. A implementação de recursos tecnológicos
tornou os processos mais ágeis, mas também ampliou a pressão e a cobrança aos servidores.
O estabelecimento de metas e rankings para o desenvolvimento das atividades, resultou na
aceleração dos ritmos de trabalho, além da necessidade de adaptação aos novos recursos e
processos e à reconfiguração dos procedimentos derivados da informatização.
Tais características aparecem também na pesquisa de Arenas (2013), que analisou
situações de assédio moral em um juizado especial federal. A pesquisa investigou situações
de assédio moral, articuladas às dificuldades vivenciadas pelos servidores produzidas pela
organização do trabalho, que resultou na seguinte caracterização:

O Poder Judiciário é um órgão tipicamente burocrático, com hierarquia rígida, diversos


níveis de autoridade, onde a disciplina, respeito, obediência, o controle e a
subordinação fazem parte do comportamento, em uma relação formal entre chefia e
subordinados, que é bem definida em sua maior parte por meio e normas e
regulamentos, dos quais se espera o cumprimento pelo servidor, e quando este se
rebela contra os atos de assédio de um superior hierárquico é considerado como
insubordinado (p. 250).

A investigação da autora assinalou que os atos hostis como humilhação, diminuição,


desrespeito, fazem com que o servidor se sinta “envergonhado diante das situações vividas,

14
e as ameaças verbais deixam claro que o agressor quer ver sua vítima longe, o que corrobora
as pesquisas de Leymann (1996a, 1996b, 1996c). Einarsen (2005), Hirigoyen (2005, 2009),
Barreto (2006), Freitas, Heloani e Barreto (2008), Soboll (2008) e Guedes (2008)” (p. 249)”.
O isolamento e a recusa de comunicação tinham como objetivo desestabilizar a vítima e
induzi-la a abandonar o emprego.
Nos atos hostis relatados, destacam-se a pressão e o controle sobre o servidor quanto
à produtividade, visando cumprimento das metas estipuladas, além da sobrecarga de
trabalho. Pressão identificada pela autora a partir das determinações do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) que visa agilizar os julgamentos dos processos.
Os atos hostis que se evidenciaram na pesquisa da autora estavam em sintonia com a
classificação proposta por Hirigoyen (2009) e com as indicações apresentadas no presente
artigo:

i) deterioração proposital das condições de trabalho, foram controle e pressão sobre o


servidor, transferências forçadas, pressão no cumprimento de metas, obrigar a
trabalhar longos período fora do horário de expediente impedir e ignorar os seus
direitos, sobrecarga de trabalho, críticas exageradas; ii) quanto ao atentado à
dignidade, os de maior relevância foram desqualificar; desrespeitar e humilhar o
servidor, fazer insinuações desqualificativas ou desdenhosas; iii) isolamento e recusa
de comunicação, sendo as mais relatadas comunicação agressiva e ignorar o servidor,
e por fim iiii) ameaças verbais, físicas e sexuais, sendo do maior relevância as ameaças
profissionais, insultar e falar aos gritos (ARENAS, 2013, p. 249).

O medo apareceu em diversos relatos. Os servidores que se sentiram assediados


relataram que além do receio dos prejuízos na carreira e das perseguições, tinham medo de
reagir, em função de históricos de impunidade dos assediadores. O medo estava relacionado
também ao receio da ampliação do assédio e de tornar-se a próxima vítima. Para os
detentores de cargos de confiança, havia o medo de perder a gratificação.
O medo era amplificado pela demora, por anos, nos processos de apuração dos fatos,
muitas vezes arquivados sem que fossem ouvidas as testemunhas e as vítimas. Para
Hirigoyen (2009), no serviço público o assédio costuma ser mais cruel devido ao longo
tempo de sofrimento a que a vítima é submetida. A impunidade do assediador, aliada ao
comportamento permissivo por parte da alta administração, fazem com que essas situações
se propagem, ficando para as vítimas a sensação de impotência.
O medo também estava ligado à percepção dos servidores de que ficariam marcados
em suas carreiras. Denunciar as chefias por assédio moral podia ter como consequências:
não ser convidado a ocupar outros cargos, não participar de projetos e outros trabalhos de

15
destaque. A investigação de Areans (2013) também indicou que as relações de poder
contribuem para a ocorrência do assédio moral; e que a origem do assédio moral está
intimamente ligada ao abuso de poder. Em alguns casos, o superior hierárquico reduzia a
vitima a uma posição de impotência, sem que ela pudesse se defender (DEJOURS, 1994).
Arenas (2013) enfatiza também que a causa da reduzida quantidade de denúncias por
parte dos servidores resultava da percepção da omissão do setor de gestão de pessoas e da
alta administração, o que contribuía para impunidade dos agressores.
Foram apontadas como práticas de assédio mais comuns pelos respondentes:
sobrecarga de trabalho, controle e a pressão sobre os servidores, cumprimento de metas
(quantidade de processos a serem julgados) identificada como decorrência das exigências
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que as define como parâmetro de produtividade a
ser alcanças por ano. As metas também são divulgadas anualmente nas publicações
estatísticas no site do CNJ e são consideradas para as promoções dos magistrados e, por
vezes, na disputa por prestígio e promoções.
A conclusão do estudo de Arenas (2013), está sintonia com outras pesquisas, que
indicam que organização do trabalho, no âmbito do Poder Judiciário, contribui para as
situações de assédio moral, tendo em vista a rigidez hierárquica e a relação de subordinação
que sempre existiu, além da fiscalização do CNJ, que atinge todos os níveis hierárquicos, o
que propicia situações que, mesmo não identificadas ou reconhecidas como de violência ou
assédio moral, contribuem para os abusos de poder relatados pelos participantes da pesquisa.
Os aspectos apontados nestas pesquisas sobre as incidências da organização do
trabalho nas situações de violência e assédio moral têm ressonâncias com as proposições
apresentadas neste artigo, como a configuração de abusos de poder com base em um
prescrito soberano, situações de exceção, a paralisia das formas de vida, trabalho
mortificado, subjetividade só-que-não. Em síntese, identificamos nestas situações
ressonâncias com marcadores e paradoxos apontados na história de Kafka, que aqui
resgatamos: um poder abusivo se sobrepõe e desabilita o acesso a um ou mais direitos; o
abandono de quem busca o exercício de um direito, pois não há instância de recursos; a
paralisia de uma forma de vida por uma situação de violência; a redução da vida à simples
sobrevivência, à vida destituída de si mesma e eticamente desqualificada (Agamben, 2009);
as referencias legais e éticas deveriam ser acessível a todos e a qualquer hora, mas não são.

16
Quantos anos de solidão?

As semanas ou meses de quem vivencia sofrimento no trabalho são experiências de


um tempo que não cabe nos relógios ou nas marcações serializadas dos calendários. Como
as situações de assédio moral no serviço público podem se arrastar por anos, são produzidas
situações de abandono, de quem habita um não lugar, de vidas destituídas de uma condição
eticamente qualificada.
O desamparo de quem vive essa forma de solidão, sem poder compartilhar
desassossegos, desconfortos, angústias - por vergonha, medo e isolamento de quem não
encontra acolhida para o sofrimento. Situação que pode ser ainda mais difícil de enfrentar
do que os atentados à dignidade provocados pela violência ou assédio moral.
O enfrentamento dessas situações é complexo e só pode ser construído com
perspectivas de longo prazo, com o envolvimento de todos, principalmente com o
envolvimento da alta administração, com a perspectiva da ampla informação e de ações
contínuas de mobilização, que estejam voltadas de modo permanente para a construção de
uma cultura que mantenha vivos canais e espaços para que as vítimas ou testemunhas sintam-
se seguras para dizer ao assediador que o comportamento é inaceitável ou para recorrer às
instâncias competentes, quando necessário.
Afirmar a vida é um ato ético-político. Isso implica produzir ações de resistência,
mobilização e enfrentamento dessas situações tão graves, que se configuraram como sérias
ameaças e paralisias às formas de vida no mundo do trabalho. Isso implica o permanente
movimento de construção de uma ética viva, de uma ética na qual as ações estejam voltadas
efetivamente para a proteção da vida - e não declarações vazias jogadas nos códigos de ética
e de conduta ou nos belos discursos. Um fazer ético que qualifique os espaços de fala e de
transformação, nos quais as vidas não se percam em tantos anos de espera, silêncio e solidão.

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