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A Complexidade Narrativa de Breaking Bad: o anti-herói como estrutura narrativa1

2
L. L. SATLER
3
Luiz SIQUEIRA
Universidade Federal de Goiás, UFG

RESUMO

As narrativas televisivas contemporâneas têm apresentado um novo modelo


de storytelling, classificado por complexo. Entre as séries de TV dramáticas, um tipo
específico de personagem central, o anti-herói, tem sido recorrente. O presente estudo tem
como questão verificar se há relação entre o anti-herói e a essa narrativa complexa. Para
tanto, analisa o personagem Walter White, do seriado de TV Breaking Bad (Vince Gilligan,
AMC). Tal pesquisa é feita a partir da abordagem metodológica análise fílmica, descrevendo
cenas em que o personagem atua. Tem-se como hipótese que o anti-herói é um elemento
fundamental dessa nova estrutura narrative, na medida em que ele a estrutura, uma vez que,
por sua natureza dual e contraditória, ele possibilita que a mesma seja possível.

PALAVRAS-CHAVE: narrativas complexas; anti-herói; storytelling.

1. Introdução

“Veio a dar com o mais estranho pensamento com que jamais deu algum louco neste
mundo”, diz o narrador de Dom Quixote, que continua,

“fazer-se cavaleiro andante e sair pelo mundo com suas armas e seu cavalo
em busca de aventuras e do exercício em tudo aquilo que lera que os
cavaleiros andantes se exercitavam, desafazendo todo gênero de agravos e
pondo-se em transes e perigos que, vencidos, lhe rendessem eterno nome e
fama” (SAAVEDRA, 2002, p. 60)

1
Trabalho apresentado no GT 7 – Comunicação e Tecnologia no Seminário Alaic Cone Sul Goiânia 2017, realizado nos
dias 22 e 23 de Maio de 2017 na Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás.
2
Orientadora do trabalho. Pós-doutoranda em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ, Doutora em Arte e Cultura Visual –
PPGACV/UFG, docente na FIC/UFG, email: satlerlara@gmail.com
3
Mestrando em Mídia e Cultura no curso de pós-graduação em comunicação – FIC/UFG, Graduado em Publicidade e
Propaganda – FIC/UFG, email: siq.luizc@gmail.com

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É dessa forma que Cervantes convida o leitor a acompanhar seu personagem
principal em busca de aventuras, se deparando na verdade, com as desventuras em série de
um protagonista que, ao lado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, se envolve em muitas
confusões. Dom Quixote quebra um paradigma de personagens que data desde a Antiguidade
clássica, com a Odisseia de Homero. Isso se deve por ser ele, como observa Ian Watt (1997), uma
caricatura dos romances de cavalaria, inspirados nas ordens de cavalaria que tinham por ideais dar
assistência aos doentes e proteção aos peregrinos. Tais romances preservavam a figura do herói como
portador de um código de moral e boa conduta, aos quais Dom Quixote satiriza.
Para Watt (1997), Dom Quixote, que parece então inaugurar nas narrativas
ocidentais um novo modelo de protagonista, é a expressão do individualismo moderno, como
também entende Beale (2014) serem Tony Soprano, um mafioso na série de TV The
Sopranos (David Chase, HBO) e Don Draper, outra espécie de gângster, em Mad Men
(Matthew Weiner, AMC). Para Beale (2014), essa construção contemporânea de personagens
masculinos, brancos e anti-heroicos, faz referência a personagens de filmes do gênero
western que datam da década de 1920.
Com personagens que relatavam suas vidas de dentro de um presídio, exibindo
cenas de muita violência e sexo, A Home Box Office, HBO, com a série de TV Oz (Tom
Fontana, HBO), é considerada por muitos estudiosos como pioneira da complexidade
narrativa na televisão. Isso se deve em parte ao fato das séries de TV terem se tornado um
fenômeno da televisão mundial, a partir da década de 1990, quando se tem início produções
audiovisuais diversificadas com intuito de preencher as grades de programação dos canais de
TV fechada, como relata Brett Martin em Homens Difíceis (2014). E, combinado a isso, uma
crescente parcela da população norte-americana passava a adquirir TV a cabo e tem início a
venda de aparelhos videocassete, formando-se dessa maneira, um público exigente e um
campo de demandas audiovisuais.
No entanto, outros fatores devem ser considerados para o surgimento de
narrativas complexas, como explica Mittell (2016, p. 36), um dos primeiros estudiosos a

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caracterizá-las como tal, “difícil atribuir a qualquer um dos processos de desenvolvimento
industrial, criativo, tecnológico e participativo” a sua causa direta, pois juntos “preparam o
terreno para seu desenvolvimento e popularização”. Para o autor, que analisa a TV nos
últimos 20 anos, esse novo modelo narrativo se configura pela ausência da convenção
presente nas narrativas tradicionais, operando de forma variada e proporcionando uma
fruição mais rica e multifacetada, culminando em um leque de possibilidades criativas.
Instala-se assim, uma nova era na televisão norte-americana, “era da experimentação e
inovação narrativa” (2006, p. 31). García (2016) também reconhece uma complexidade
narrativa nas séries de TV contemporâneas, proporcionada por elementos como flashbacks e
flashforwards, o efeito rashomon, a narração em voiceover, entre outros.
Ao se analisar os programas televisivos narrativamente complexos, observa-se
que personagens anti-heroicos têm sido recorrentes, diferindo-se dos moldes de personagens
utilizados nos últimos anos em storytellings tradicionais. O anti-herói é aquele que vai contra
as normas morais ao agir em interesse próprio, ao contrário do herói, que age
desinteressadamente e em prol dos outros, visando a um bem coletivo.
O xerife Rick Grimes, personagem de The Walking Dead (Frank Darabont,
AMC), acorda de um coma no episódio piloto, em um mundo pós-apocalíptico. Rick, embora
apresente características de um herói clássico, por ser um representante da lei, busca o
estabelecimento da ordem em meio ao caos, em uma luta interna que cruza a tênue linha,
nessa nova configuração de realidade, entre o certo e o necessário. A exemplo de Dom
Quixote, ele é a expressão de um mundo que não mais existe.
Penny Dreadful (John Logan, Showtime) entrelaça vários personagens da
literatura que, marginalizados, poderiam ser classificados como anti-heróis. Unificados nessa
mesma narrativa, esses personagens ambíguos indagam sobre o lugar do monstro, que estaria,
por exemplo, na figura de Frankenstein, ou de seu criador, que o tornou quem ele é.
No ano de 2016, Game of Thrones (David Benioff, HBO) se tornou a série de TV
dramática com maior número de Emmys na história da TV. Ao matar Ned Stark, um herói

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clássico, ao fim da primeira temporada, essa série de TV tem se sobressaído pelas contínuas
reviravoltas na trama. Com cenas de muita violência, sexo e nudez, a HBO consagra o anti-
herói como elemento de uma narrativa complexa.
A discussão de Mittell (2006) e García (2016) a respeito das séries de TV
contemporâneas se trata de uma análise estrutural de suas formas narrativas. No que diz
respeito às séries de TV dramáticas, como se depreende das aqui brevemente citadas, parece
percorrê-las um elemento comum, a figura de personagens anti-heroicos como protagonistas.
Desse modo, questiona-se se há conexão entre tais narrativas e a construção destes
personagens, estudo ao qual se propõe esse artigo. Como hipótese, tem-se que o anti-herói é
um elemento fundamental dessa nova estrutura narrativa, na medida em que ele, por sua
natureza dual e contraditória, a estrutura.
Tal estudo é feito tomando-se por base a análise fílmica proposta por Vanoye e
Goliot (1992), no que se refere à sua questão problema, descrevendo cenas em que os
personagens atuam, possibilitando a percepção de como fornecem suporte à narrativa
complexa nos moldes definidos por Mittell (2006) e García (2016).
Nesse sentido, com vistas a elucidar a questão, Walter White, personagem da
série de TV Breaking Bad (Vince Gilligan, AMC), que, ao ser diagnosticado com câncer,
passa a produzir metanfetamina para garantir o futuro de sua esposa grávida e do filho
deficiente, será objeto de análise, escolhido por ser um homem comum que transgride a lei,
diferentemente de personagens heroicos de narrativas tradicionais.

2. O anti-herói como protagonista de narrativas complexas

Em seu artigo “El Protagonista Y El Héroe: Definición Y Análisis Poético de La


Acción Dramática y de La Cualidad de lo Heroico”, Ruth Gutiérrez Delgado (2012), ao
diferenciar o uso frequente e de forma indistinta que se tem feito das denominações herói e
protagonista, explica ser o protagonista aquele que nasce em um contexto conflitivo e

4
entende por herói, qualquer personagem principal de uma história que implica em uma
valorização moral.
Como um personagem pode adquirir qualidades durante a trama que, de acordo
com a autora, o auxiliarão a vencer as dificuldades impostas, não se pode atribuir desde o
início, um heroísmo a um personagem. Conforme conclui Gutiérrez, o herói é tal que possui
“a virtude própria da fortaleza, cuja ação principal consiste em estar disposto a morrer”
(IDEM, 2012, p.58), sendo logo, aquele que atua com desinteresse.
Ao realizar um estudo do gênero docudrama a partir da telenovela brasileira,
Santos (2013, p. 176) constrói um quadro semiótico4 “tomando como exemplo, a oposição
clássica da telenovela representada pela luta do bem contra o mal”. Dessa oposição, o autor
distingue quatro tipos de personagens: o herói clássico, compreendido como aquele que é do
bem e não do mal; o vilão, como aquele que é do mal e não do bem; o anti-herói, que não é
do bem, no entanto, também não é do mal, e por último, o anti-vilão, um vilão humanizado,
caracterizado como um personagem que pertence ao bem e ao mal. Assim, conforme salienta,
“herói e vilão são opostos, ao passo que o vilão humanizado e o anti-herói são contradições”
(IDEM, 2013, p. 177).
Nas narrativas às quais Mittell (2006) denomina complexas, não é o herói ou o
vilão, mas o anti-herói que parece ser predominante, diferindo-se dos moldes de personagens
que têm sido utilizados em storytellings tradicionais. Estes personagens se distanciam do
herói clássico, tal qual a percepção de Gutiérrez (2012) e Santos (2013), mas também não se
aproximam inteiramente do vilão, de forma que algumas vezes agem como herói através de,
por exemplo, atitudes sentimentais, como vendo o público e em outras, se comportam como
vilão, na medida em que defendem interesses próprios em detrimento de outros personagens
ou questionando normas de conduta e moral. O anti-herói é aquele que age contra normas

4
Citando Ugo Volli, o autor explica que o quadro semiótico remonta a Aristóteles, servindo para “determinar e desdobrar
um conceito em relação aos conceitos que lhe são opostos” (SANTOS, 2013, p. 177).

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morais por interesse próprio, ao contrário do herói, que age desinteressadamente e em prol
dos outros, visando a um bem coletivo.
Para García (2016), vários elementos proporcionam uma complexidade narrativa
nas séries de TV contemporâneas, como a presença de universos paralelos em séries de ficção
científica, a exemplo de Fringe (J.J. Abrams, FOX) e Doctor Who, que sustenta a narrativa
ao longo do tempo permitindo que saltos no passado e no futuro sejam coerentemente
possíveis e o uso do efeito rashomon na estrutura narrativa de The Affair (Sarah Treem,
Showtime), de cuja trama se trata de uma relação extraconjugal, apresentada de forma
inovadora ao alternar as visões masculina e feminina do caso como ponto de vista narrativo
ao longo de um mesmo episódio.
Lost (J.J. Abrams, ABC) fez uso recorrente de flashbacks ao mostrar para o
público como era a vida anterior dos passageiros à queda de um voo em uma ilha deserta,
mostrando outro viés de suas personalidades. Após a terceira temporada, essa série de TV
passa a contar com flashforwards, antecipando como será a vida de alguns personagens que
conseguirão sair da ilha vivos. Dexter (James Manos, Showtime), um serial killer que
trabalha como perito forense especialista em sangue na polícia de Miami, narra nos episódios,
em voiceover, o que pensa sobre o mundo ao seu redor, o que possibilita ao espectador
conhecer o personagem em profundidade psicológica.
Dessa forma, as narrativas complexas trabalham com mecanismos que as tornam
um quebra-cabeça a ser montado pelo espectador, decodificando e juntando as suas partes
para uma produção de sentido. Conforme Mittell (2006, p. 36) explica, a construção de uma
narrativa complexa encoraja o público a aderir aos programas de uma forma “muito mais
apaixonada e comprometida do que à maior parte da programação televisiva convencional”.
Isso se dá por que os espectadores assumem “uma estética operacional em que a fruição
estava menos relacionada ao que vai acontecer e mais a ‘o que o motivou a fazer isso?’ ”
(IDEM, Ibidem, p.42).

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A discussão que Mittell (2006) e García (2016) levantam a respeito das séries de
TV contemporâneas, ao realizarem uma análise da estrutura das mesmas, classificando-as por
complexas, levanta uma outra questão, objeto de estudo neste trabalho, a recorrente presença
de personagens anti-heroicos em séries de TV dramáticas. Desse modo, a fim de obter provas
da possibilidade de conexão entre essa estrutura apontada pelos autores como complexa e o
uso de tais personagens, observa-se a narrativa de Breaking Bad a partir do personagem
Walter White, o protagonista do seriado.

3. O anti-herói como estrutura na construção da complexidade narrativa de Breaking


Bad

Uma calça bege voando pelo céu azul em contraste com o marrom das rochas, cai
no chão, sendo atropelada por um motor-home (FIG. 1) em alta velocidade que rompe o
silêncio do deserto. O motorista, um homem de cueca usando uma máscara de gás, olha para
o assento do passageiro, onde se vê outro homem, desmaiado, também de máscara. Na parte
de trás do trailer, dois corpos são arrastados por inércia à medida que o carro avança. Ao sair
da estrada de terra e bater em uma rocha, o motorista desce.

FIGURA 1 - Walter White percorre o deserto no Motor Home, no episódio piloto.


FONTE - Breaking Bad (Vince Gilligan, AMC)

O homem em questão, que se apresenta para uma filmadora que ele pega no
trailer após vestir uma camisa verde, quase do mesmo tom da vegetação do deserto, é Walter
White. Com som de sirene ao fundo, Walter diz às autoridades policiais, olhando para a

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câmera, que o vídeo não se trata de uma confissão e que ele fala para a sua família. Ele tampa
a câmera e chora, mas retoma, “Skyler, você é o amor da minha vida. Walter Jr., você é o
meu garotão. Vai ter algumas coisas que vão saber sobre mim nos próximos dias. Só quero
que saibam que, não importa o que pareça, eu só tinha vocês no coração. Adeus.”. Walter
deixa todos os documentos no chão, próximos à filmadora. Ele retira a arma de dentro da
cueca e se põe na estrada de terra, apontando-a para onde parecem vir os sons de sirene.
A cena descrita é como começa o piloto da série de TV Breaking Bad. A partir
daí, uma longa digressão narra o que teria acontecido e como Walter teria chegado ao
deserto, seminu e com uma arma, além dos motivos pelos quais ele faz tal confissão. Esse
recurso pode ser considerado uma marca narrativa do seriado, que nas temporadas seguintes,
passa a fazer cada vez mais seu uso.
O recurso que Vince Gilligan faz uso acima descrito e que também é reconhecido
em The Sopranos, no qual Tony Soprano, no consultório da Dra. Melfi, ao contar a respeito
de seu desmaio, passa a narrar o show, é apontado por Mittell (2006, p. 30) como um
elemento do que ele reconhece por narrativa complexa, um novo modelo de storytelling que
faz uso de uma confluência “das formas episódicas e seriadas que têm caracterizado a TV
norte-americana desde sua origem”. Em ambos os shows, tal recurso e a trama subsequente,
são desenvolvidos por meio de personagens que podem ser caracterizados por anti-heróis.
Em Phoenix, décimo segundo episódio da segunda temporada de Breaking Bad,
Walter faz sozinho a entrega de metanfetamina para o encarregado de Gus Fring, após Jesse
não atendê-lo ao telefone. O desencontro, que aconteceu por que Jesse tinha se drogado na
noite anterior com Jane, a vizinha de quem ele aluga a própria casa e com quem tem mantido
um relacionamento, leva a uma briga entre os dois que culmina em uma ligação de Jane para
Walter, ameaçando-o caso ele não pagasse a parte de Jesse devido à venda, o que White se
negava a fazer enquanto Jesse se drogasse.
Após entregar o dinheiro a Jane, em Phoenix, Walter vai a um bar, alegando a
Skyler por telefone não estar encontrando fraldas para o bebê. Sem saber, ele acaba

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desenvolvendo uma conversa com o pai de Jane, pedindo um conselho, já que ele também
tem uma filha, ao que este responde, “só amá-los. Eles são o que são”. Walter diz ter um
sobrinho já adulto, que não o escuta, referindo-se a Jesse. “O que fazer com alguém assim?”,
questiona. O pai de Jane, envolvida mais uma vez com drogas após dezoito meses “limpa”,
diz serem família. “Não se pode desistir deles. Nunca. Senão, o que mais vai acontecer?”.
Motivado pela conversa, Walter retorna à casa de Jesse, e ao não ouvi-lo
responder, entra pela porta dos fundos, encontrando o casal deitado na cama e ao lado, uma
seringa usada. Ao tentar acordar Jesse, Jane que estava abraçada a ele, desliza para o lado e
começa a vomitar, engasgando-se. Walter corre para socorrê-la, mas para instantaneamente,
assistindo-a morrer com lágrimas nos olhos (FIG. 2). Essa atitude de White, apenas uma entre
muitas outras ao longo de toda a série, o permite ser qualificado como um anti-herói.

FIGURA 2 - Walter White assiste à morte de Jane, em Phoenix.


FONTE - Breaking Bad (Vince Gilligan, AMC)

O tom paternal com que Walter conversa no bar, chamando Jesse de sobrinho no
episódio Phoenix, aliado à sua negativa em entregar a parte de Jesse enquanto ele não parasse
de se drogar, o seu retorno a casa e a forma como Walter se emociona ao permitir que Jane
morra por não socorrê-la, de certa forma atenuam seu ato pela motivação do mesmo, como é
sua própria jornada. Walter precisa de Jane morta, pois assim será mais vantajoso para ele.
Ao permitir que ela morra, ele mantém a produção de metanfetamina em sigilo, da mesma
forma que consegue manter Jesse por perto, uma vez que ele o estava perdendo de controle.

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No entanto, as consequências da morte de Jane percorrem toda essa segunda
temporada e se estendem pelas próximas. O pai de Jane, como consequência de sua morte,
ainda abalado ao voltar para o trabalho como controlador de voos, acaba por cometer um erro
que resulta na colisão de um avião. Os destroços caem no bairro em que moram Walter e sua
família, sendo mostrados em pequenos flashforwards no início de alguns episódios, sem, no
entanto, revelar do que se trata. Apenas no último episódio dessa temporada é possível enfim
compreender as referências que foram feitas a este momento nos episódios que o antecedem.
Nesse momento da narrativa, o quebra-cabeça instalado ao longo da temporada é
enfim, montado. Como explica Mittell (2006, p.47-48), “programas narrativamente
complexos flertam com a desorientação temporária e com a confusão” que para o autor
possibilita que “os espectadores articulem sua habilidade de compreensão através do
acompanhamento de longo prazo e do engajamento ativo”.
Gilligan construiu paralelamente à história central dessa temporada, outra, que foi
sendo contada e mantida em suspensão, revelando aos poucos que algo dará errado, levando
o telespectador a juntar seus pedaços, tentando decifrá-la de modo a estabelecer com a
narrativa da trama principal, alguma conexão (FIG 3). E essa tentativa de relação leva a uma
expectativa e gera uma tensão, pois a ligação que se faz é com Walter e sua jornada.

FIGURA 3 - Aos poucos, os elementos que iniciam cada episódio, são montados, como um quebra-cabeça.
FONTE - Breaking Bad (Vince Gilligan, AMC)

À essa estranheza da morte de Jane, Walter está a salvo, pois sua natureza é
contraditória, dual, e isso molda a narrativa que é construída com a sua jornada. A proteção à

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sua família legitima Walter a permitir que Jane morra, da mesma forma que essa justificativa
o salvou da morte que seria causada por Emílio, foi forte o suficiente para matar Krazy-8 e na
tentativa de envenenar Tuco, personagens da série. No entanto, um ponto de conflito como
contrapeso é instalado, a possibilidade da descoberta desse ato por Jesse. A partir desse
episódio, tal ocorrência é mantida em suspensão, mas a sua espera é aguardada. O que chama
atenção é como isso vai acontecer, em que momento ele descobrirá e como isso se dará.
As sucessivas tentativas de Jesse de reanimar Jane no episódio seguinte, ABQ,
seu notável desespero e estado de choque ao não repetir as instruções de Mike, chamado por
Saul a pedido de Walter, sobre o que dizer à polícia, apenas evidencia um vislumbre do que
pode vir a ser esse ponto de conflito que é instalado. Ao ser encontrado e socorrido por
Walter após dias sumido, Jesse diz que amava Jane.
A construção da sensibilidade de Jesse e da demonstração de uma fragilidade,
apesar do jeito desleixado claramente percebido por suas roupas largas e em cores vivas, tem
início em Cancer Man, quarto episódio da primeira temporada, no qual Jesse põe os talheres
na mesa, após ter dormido por horas, enquanto seus pais se questionam sobre deixá-lo ficar.
O episódio ilustra a difícil relação que ele tem com os pais devido às drogas, mas o faz com
rara sensibilidade pelo desejo de Jesse em permanecer e pelo pedido dos pais para que saia.
No episódio intitulado Peekaboo, o sexto da segunda temporada, Jesse procura o
casal de viciados que roubara a metanfetamina de Skinny Pete. Visivelmente nervoso
portando uma arma, ele invade a casa do casal, mas é surpreendido por uma criança, de
aspecto sujo que, ao sentar no sofá ao seu lado e após ligar a TV, diz estar com fome. A cena
é encerrada com essa fala, algo recorrente no seriado, elevar a tensão do momento
interrompendo a narrativa em diálogos-chave. Jesse o alimenta e quando os pais chegam, ele
não hesita em questionar a mulher, perguntando que tipo de mãe ela é.
O cuidado que Jesse tem com a criança, se certificando que a mesma dormia
antes de agir contra o casal, e após a morte do marido pela mulher, ao chamar a polícia
retirando-a do local, demonstram seu cuidado em preservar a inocência da criança. No

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entanto, apesar de ser uma vítima de seu vício e daí a complicada relação com a família, Jesse
alimenta o mercado de drogas ao cozinhar, algo sobre o qual ele não parece refletir.
Se por um lado, assiste-se a uma espécie de conversão dantesca às avessas de
Walter White ao anti-heroísmo, por outro, Jesse é enriquecido sentimentalmente ao longo dos
episódios de forma ascendente. O personagem, ex-aluno de White, aparentemente sem futuro,
ligado ao tráfico e usuário de drogas, que se relaciona com prostitutas também viciadas, passa
a ganhar profundidade que culmina em afeição.
Tal como em Phoenix, Walter se mostra ainda mais manipulador e cruel ao fim
da quarta temporada. No episódio End Times, que tem sua continuidade narrativa em Face
Off, ao saber que Brock, filho de Andrea, com quem tem mantido uma relação, está internado
sem que se saiba o motivo, Jesse corre para o hospital. Ao deixá-lo, pegando o maço de
cigarros no bolso, Jesse se desespera diante da possibilidade de Brock estar na realidade
envenenado pela ricina, veneno preparado por White para que matassem Gus Fring.
Acreditando que White é o responsável pelo estado do menino, Jesse o procura,
mas é convencido de que o verdadeiro culpado é Gus, que teria motivos para tal uma vez que
assim, usaria Jesse para matá-lo, pois ele tem impedido Gus de fazê-lo. Dessa forma, a
armadilha que juntos preparam novamente para Gus ao atraí-lo para o hospital, não dá certo,
e White se alia a Héctor, o tio paralítico de Tuco, para esse fim.
Ao final deste episódio, Jesse revela a Walter que segundo os médicos, foram
frutinhas vermelhas de lírios do vale as responsáveis pelo envenenamento de Brock e não a
ricina. Mas Walter o certifica de que Gus tinha que morrer. Ao falar com Skyler pelo
telefone, que lhe pergunta se foi ele quem matou Gus, Walter diz “eu venci”. A temporada
termina com uma cena que mostra o quintal da casa de White, e em close, um jarro com lírios
do campo, revelando que tudo foi planejado por White.
Dessa forma, Gilligan faz uso dos mecanismos que Mittell (2006) e García (2016)
citam como elementos de uma narrativa complexa para estruturar Breaking Bad. Mas ele o
faz se apoiando na figura de um personagem específico, o anti-herói, seja com o protagonista

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ou com personagens secundários, como o faz quando Skyler encobre as sonegações de
imposto de seu chefe Ted, tendo um caso com ele depois ou quando Marie, irmã de Skyler,
passa a se dedicar ao marido Hank após seu acidente, tida antes como fútil por ter sido
apresentada como uma cleptomaníaca.
Desta forma, os mecanismos das estruturas narrativas complexas citadas por
Mittell (2006) e García (2016), são amparados pela figura do anti-herói. Walter é utilizado
como pano de fundo para a construção de uma complexidade narrativa, ao criar e solucionar
conflitos interpostos na mesma, em diálogo com sua forma, flexibilizando-a. Assim, o
quebra-cabeça citado por Mittell (2006), é possível através desse tipo de personagem.
Por meio do anti-herói, o showrunner pode expandir papéis ou torná-los
secundários, instalar novos pontos de conflito ao mesmo tempo em que soluciona antigos, dar
novo fôlego à narrativa ou redirecioná-la, aprofundar relações ou estabelecer novas, podendo
ainda, nos fazer reavaliar conceitos. Personagens anti-heroicos moldam a narrativa,
permitindo seu uso criativo, aumentando a tensão na história. É devido à sua natureza dual e
contraditória, como expressão do individualismo moderno e pela jornada a que dá início, que
o anti-herói permite estruturas narrativas complexas.

4. Considerações finais

Uma nova forma de storytelling tem surgido nos últimos anos por meio das séries
de TV, uma forma de entretenimento relativamente recente. Essas narrativas possuem
estrutura reconhecidamente complexas como alternativa às formas seriadas e episódicas. A
partir da análise da série de TV Breaking Bad, buscou-se verificar se é possível estabelecer
alguma relação entre personagens anti-heroicos e esse novo modelo de storytelling.
A fim de realizar tal estudo, a metodologia de análise desenvolvida foi tal como
proposta por Vanoye e Goliot (1992), considerando as significações e a consolidação ou
invalidação da hipótese, pela descrição de cenas em função da questão-problema da análise,
com foco nas atitudes que os personagens tomam.

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Nesse sentido, buscou-se, pela descrição de algumas cenas da série de TV
Breaking Bad, obter a maneira pela qual personagens anti-heroicos estruturam esse novo
modelo de storytelling. No piloto do show, uma longa digressão é utilizada para se contar
uma história pregressa, maneira pela qual se conhecem os demais personagens e a temática
central, mesmo artifício pode ser observado em The Sopranos.
Ao permitir que Jane morra no episódio Phoenix, Walter White, ao mesmo tempo
em que soluciona um conflito, Jane se configurava como uma ameaça potencial e o afastava
de Jesse, estabelece outro, a possibilidade de Jesse descobrir que sua omissão culminou na
morte de Jane. Esse fato tem consequências trágicas, ilustradas ao longo dessa temporada por
flashforwards, um vislumbre do ato de White no futuro, como uma trama paralela à principal.
Em End Times, último episódio da quarta temporada, White usa o filho de Andrea, mulher
com quem Jesse tem mantido um relacionamento, para se unir a ele e assim matar Gus Fring.
A forma como White arquitetou tudo só é revelada ao fim do episódio, apresentando o
mesmo sob uma nova perspectiva.
Desse modo, os mecanismos que são percebidos como estruturantes de narrativas
complexas, apontadas por Mittell (2006) e García (2016), são sustentados nas séries de TV
dramáticas, por personagens anti-heroicos, que dialogam com tal estrutura.
Na ficção científica, tudo é factível de acordo com o estabelecido dentro do
universo da história. Em uma série de TV dramática, isso não ocorre. No entanto, uma
liberdade criativa é adquirida ao se fazer uso de personagens anti-heroicos, que por serem
incoerentes, o que condiz com suas construções, permite uma complexidade narrativa, tal
qual foi demonstrada na série de TV aqui descrita e a qual é também possível de ser
percebida em outras séries de TV, ainda em exibição atualmente.

REFERÊNCIAS

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Bernstein. AMC: 2010. DVD.

14
BEALE, JAMES. The Strong, Silent Type: Tony Soprano, Don Draper and the construction of
the White male antihero in contemporary television drama. Ohio: 2014. Disponível em
<https://etd.ohiolink.edu/pg_10?0::NO:10:P10_ACCESSION_NUM:bgsu1395641750>. Acesso em:
26 set. 2016.

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Jim Mckay. AMC: 2009. DVD.

DELGADO, Ruth Gutiérrez. El Protagonista y el héroe: definición y análisis poético de la acción


dramática y de la cualidad de lo heroico. España: Âmbitos, 2012, nº 21, p. 43-62.

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Thomas Schnauz e Moira Walley-Beckett. AMC: 2010. DVD.

FACE OFF. Breaking Bad: The Complete Fourth Season. Escrito por Vince Gilligan. Dirigido por
Vince Gilligan. AMC: 2012. DVD.

GARCÍA, Alberto N. A Storytelling machine: the complexity and revolution of narrative television.
Forms, Strategies and Mutations of Serial Narratives, Eds. A. Bernardelli – E. Federici – G. Rossini,
Between, VI. 11 (2016). Disponível em:<http://www.betweenjournal.it>. Acesso em: 24.set.2016

MARTIN, Brett. Homens Difíceis: Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família
Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. Tradução Maria Silvia Mourão Netto. 8ª
edição, São Paulo: Aleph, 2014.

MITTELL, Jason. Complexidade Narrativa na Televisão Americana Contemporânea. São Paulo:


Matrizes, 2012, Nº 2, p. 29-52.

PEEKABOO. Breaking Bad: The Complete Second Season. Escrito por J. Roberts e Vince Gilligan.
Dirigido por Peter Medak. AMC: 2010. DVD.

PHOENIX. Breaking Bad: The Complete Second Season. Escrito por John Shiban. Dirigido por Colin
Bucksey. AMC: 2010. DVD.

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