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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Artes

Fernando Seiji Sagawa

Victor Assis Brasil e suas gravações de canções brasileiras:


relações de sentido entre interpretação instrumental e os
regimes de integração entre melodia e letra.

Campinas
2015
Fernando Seiji Sagawa

Victor Assis Brasil e suas gravações de canções brasileiras:


relações de sentido entre interpretação instrumental e os
regimes de integração entre melodia e letra.

Dissertação de mestrado apresentada ao


programa de Pós-Graduação em Música do
Instituto de Artes da Universidade Estadual
de Campinas como requisito parcial para
obtenção de título de Mestre em Música, na
área de concentração: Música: Teoria,
Criação e Prática.

Orientadora Profª Drª Regina Machado

Este exemplar corresponde à versão final de


Dissertação defendida pelo aluno Fernando
Seiji Sagawa, e orientada pela Profª Drª
Regina Machado

Campinas

2015
       
      
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Agradecimentos

À Regina Machado pela orientação atenta, coesa e ao mesmo tempo sensível e por me fazer
(re)descobrir o lado cantor do saxofone.

Agradeço especialmente a toda minha família pelo suporte e incentivo sempre presentes e
incondicionais. Agradeço em particular: ao meu pai, Jorge, por me ensinar a importância dos
detalhes que extrapolam a funcionalidade; à minha mãe, Ana Rita, pelo exemplo de harmonia
entre força e sensibilidade; e à minha irmã, Juliana, pela parceria e pelos estudos de piano que
me iniciaram no universo musical.

À Laura Françozo pelo companheirismo e afeto e pelas trocas tão produtivas de ideias.

Aos amigos e grandes músicos Gustavo de Medeiros, Dhieego Andrade, Kiko Woiski e
Henrique Cantalogo que construíram comigo o recital e tornaram esta pesquisa mais musical e
interessante.

Ao professor de saxofone e amigo Celso Veagnoli que me apresentou as gravações de Victor


Assis Brasil e mostrou os primeiros caminhos para a descoberta de minha própria voz no
saxofone.

Aos companheiros de som do Grupo Obra-Aberta, Lucas, Marcelo, Fabio, Henrique e Theo,
que tanto me ensinaram sobre musica neste período.

Aos professores Marco Tulio e José Roberto Zan pelas direções apontadas no exame de
qualificação.

Aos professores Sergio Molina e José Augusto Mannis pela leitura atenta do trabalho e pelo
diálogo construtivo durante o recital e a banca de defesa.

À FAPESP – Fundação de Amparo a Pesquisa que financiou este trabalho através de bolsa de
estudos concedida entre julho de 2013 e julho de 2015.
RESUMO

Nesta pesquisa propomos estudar, por meio de abordagens teórica e prática, cinco gravações
do saxofonista Victor Assis Brasil nas quais ele interpreta canções brasileiras. No plano
teórico, a partir de paralelos com o modelo de análise do gesto vocal desenvolvido por Regina
Machado, buscamos relacionar os recursos expressivos, formas de variação da melodia,
estratégias de improvisação e escolhas de arranjo com os significados gerados pela relação
entre melodia e letra das canções interpretadas. Após esse levantamento do projeto
interpretativo de cada gravação, buscamos detectar as recorrências e particularidades na
abordagem desse saxofonista interpretando canções brasileiras. No plano da prática,
apoiando-nos nessa compreensão teórica das gravações, propusemos três maneiras de
assimilação e interação com a performance de Victor Assis Brasil: 1) reinterpretação das
gravações; 2) proposta de projeto interpretativo inédito que utilize características e
procedimentos recorrentes levantados pelas análises; 3) proposta de projeto
interpretativo livremente influenciado pela memória adquirida com a reprodução das
transcrições e incorporando recursos interpretativos detectados nas análises.

Palavras-chave: Victor Assis Brasil; saxofone; práticas interpretativas; Semiótica da Canção;


samba-jazz.
ABSTRACT

In this research, we intend to study through theoretical and practical approaches, five
recordings of saxophonist Victor Assis Brasil in which he plays Brazilian songs. From the
theoretical side our approach will be based on the vocal gesture analysis proposed by Regina
Machado. Using this model implies relating the expressive resources, ways to change the
melody and improvisation and arrangement strategies choices to the meanings generated by
the relation between melody and lyrics of the songs. After this survey of the interpretive
design of each recording, we seek to detect recurrences and peculiarities in this saxophonist’s
approach to Brazilian songs. On the level of practice, supported by this theoretical
understanding of the recordings, we proposed three ways of appropriation and interaction with
the performance of Victor Assis Brasil: 1) reinterpretation of the recordings; 2) proposal of
unprecedented interpretative project using recurring features and procedures raised by
analysis; 3) proposed interpretive project freely influenced by acquired memory with
playback the transcripts and incorporating interpretative resources detected in the analyzes.

Keywords: Victor Assis Brazil; saxophone; interpretative practices; Semiotics Song; samba-
jazz.
Sumário

Introdução ................................................................................................ 1

1 Contextualização .................................................................................... 4
1.1 Breve biografia e revisão da discografia .................................................. 4
1.2 Proposta de periodização da discografia ................................................ 11
1.3 Samba-jazz ............................................................................................. 12
1.3.1 Samba, jazz e Bossa Nova: atrito e conciliação ..................................... 12

2 Considerações sobre a prática ............................................................. 18


2.1 Justificativa para a metodologia ............................................................. 18
2.2 Apresentação dos resultados práticos ..................................................... 24
2.2.1 Reinterpretação ....................................................................................... 24
2.2.2 Projeto interpretativo inédito ................................................................. 27
2.2.3 Projeto interpretativo livre ..................................................................... 29

3 Referências para as análises ................................................................ 30


3.1 Semiótica da Canção e Gesto Vocal....................................................... 30
3.2 Do gesto vocal para o instrumental ........................................................ 38
3.2.1 Nível Físico e as características do saxofone ......................................... 39
3.2.2 Nível Técnico e os recursos idiomáticos................................................. 40
3.2.2.1 Recursos de alteração do timbre............................................................. 40
3.2.2.2 Articulação ............................................................................................. 41
3.2.2.3 Apojaturas .............................................................................................. 42
3.2.3 Nível Interpretativo ................................................................................ 43
3.2.3.1 Timbre manipulado ................................................................................ 43
3.2.3.2 Articulação rítmica................................................................................. 45
3.3 Estrutura geral das análises .................................................................... 46

4 Análises .................................................................................................. 48
4.1 “Minha Saudade” ................................................................................... 48
4.2 "Feitiço da Vila" ..................................................................................... 68
4.3 “Dindi” ................................................................................................... 84
4.4 “Só tinha de ser com você” .................................................................. 102
4.5 “O Cantador” ........................................................................................ 112

Considerações finais ........................................................................... 131


Referências Bibliográficas ................................................................. 136

Anexos.................................................................................................. 141
10

Introdução

Neste trabalho de pesquisa, temos como principal interesse estudar parte da


produção musical de Victor Assis Brasil. Através da aplicação de procedimentos práticos e
teóricos, visamos contribuir na compreensão de sua performance como saxofonista e, a partir
disso, propor maneiras de incorporar sua influência em nossa própria realização instrumental.
Nascido no Rio de Janeiro em 1945, Victor Assis Brasil atuou como saxofonista e
compositor dentro da música popular e da música de concerto. Um dos primeiros brasileiros a
estudar jazz na Berklee School of Music (Boston, EUA), demonstrou influência desse
repertório na maior parte de sua produção musical. Apesar de sua morte prematura, aos trinta
e cinco anos de idade em 1981, deixou uma obra extensa contendo uma infinidade de
composições para grupos de câmara e orquestra, além de oito discos em que participa como
saxofonista, arranjador e compositor e que incluem standards de jazz, versões instrumentais
de canções brasileiras e músicas autorais que colocam em atrito essas e outras referências.
Levando em consideração a impossibilidade de englobar toda a variedade de sua
produção, focamos a atenção deste trabalho nas gravações em que ele interpreta canções
brasileiras adaptadas para o contexto instrumental, sem a presença de um cantor. Dentro desse
recorte, temos como objetivo encontrar características que particularizem Victor Assis Brasil
em relação à sua atuação como saxofonista e propor maneiras de incorporá-las à nossa
performance instrumental. Além disso, a análise das gravações busca esclarecer como sua
interpretação materializa o diálogo entre a performance instrumental – influenciada pelo jazz
e pelo samba-jazz – e o universo da canção brasileira. Com isso temos a intenção de
contribuir para a compreensão do atrito entre os diversos referenciais musicais presentes no
contexto da música popular brasileira de sua época.
Tendo em vista esses objetivos, propusemo-nos abordar a performance de Victor
Assis Brasil de duas maneiras diferentes, que foram desenvolvidas simultaneamente e de
forma complementar. Dentro do plano teórico nos ocupamos de contextualizar a produção
desse saxofonista e desenvolver uma metodologia de análise para suas interpretações de
canções. O plano prático, ao mesmo tempo em que contribuiu no desenvolvimento das
análises, utilizou-se dos resultados teóricos para sintetizar o que podemos chamar de uma
compreensão prática do objeto, através da apropriação e resignificação de suas características
em nossa performance musical.
No Capítulo 1 – Contextualização, apresentaremos, na primeira parte, uma
biografia de Victor Assis Brasil baseada nos trabalhos de Maurity (2006), Linhares (2007),
Pinto (2011) e Rafaelli (1979), teremos como foco a identificação das principais influências
11

musicais presentes em sua produção e localizar em que partes da sua discografia se encontram
as interpretações instrumentais de canção. A construção desse panorama pretende auxiliar a
escolha das gravações que serão analisadas no sentido de possibilitar, ao final do trabalho,
uma visão global de como esse saxofonista abordou o repertório de canção durante sua
carreira. Na segunda parte desse capítulo, apresentaremos considerações a respeito do samba-
jazz, dando especial atenção para sua relação com o jazz e com a Bossa Nova. Como veremos
em sua biografia, Victor Assis Brasil dialogou constantemente com esse repertório e,
consequentemente, uma melhor compreensão de suas características se mostrou útil durante o
desenvolvimento das análises.
No Capítulo 2 – Considerações sobre a prática, buscaremos detalhar os procedimentos
práticos adotados, ressaltando seu caráter de complementaridade em relação à parte teórica da
pesquisa. Inicialmente, abordaremos como o objetivo prático de incorporar características das
interpretações de Victor Assis Brasil na própria performance direcionou escolhas relacionadas
à metodologia de análise. Em seguida, apresentaremos os estágios dessa dimensão prática e
como cada um deles se apoia nas análises formalizadas para dialogar com o objeto estudado.
No final desse capítulo, descreveremos os três modelos de apresentação dos resultados
práticos propostos por esta pesquisa.
O Capítulo 3 contém a descrição das ferramentas e referenciais teóricos utilizados
nesta pesquisa. A partir da adaptação do modelo de análise do comportamento vocal proposto
por Machado, apresentaremos uma proposta de abordagem das gravações dividida em duas
partes: 1) a análise da canção independentemente da interpretação, buscando encontrar os
sentidos contidos em seu núcleo de identidade melodia-letra conforme a proposta da
Semiótica da Canção (TATIT, 2007); e 2) a definição e análise do projeto interpretativo do
saxofonista e de como esse dialoga com os sentidos da canção.
Durante o Capítulo 4, desenvolveremos as análises individuais de cinco gravações de
Victor Assis Brasil: “Feitiço da Vila”, “Minha Saudade”, “Dindi”, “Só tinha de ser com você”
e “O Cantador”. Como descrito no parágrafo acima, buscaremos estabelecer relações de
sentido entre os projetos interpretativos e as canções realizadas. Mais especificamente, cada
análise pretende identificar escolhas de arranjo, maneiras de usar os recursos idiomáticos e
estratégias de variação melódica que apontem para um diálogo da performance do saxofonista
com as particularidades de cada núcleo melodia-letra. De uma perspectiva ainda anterior às
relações de sentido, as análises buscarão também evidenciar o grau de comprometimento de
cada projeto interpretativo com as canções. Em outras palavras, se a gravação demonstra
maior preocupação com aspectos ligados ao repertório instrumental como a improvisação e a
12

interação entre os músicos, ou se ela tem no material cancional a motivação central da


performance.
Com o desenvolvimento das cinco análises e a comparação de seus resultados,
pudemos dividir as gravações estudadas em dois grupos diferentes: aquelas que propõem uma
relação mais direta com a performance instrumental e as que voltam a atenção para os
sentidos das canções interpretadas. Além disso, o emparelhamento das análises possibilitou a
identificação das marcas identitárias do saxofonista estudado, presentes no recorte desta
pesquisa, ou seja, as suas escolhas interpretativas recorrentes nas cinco gravações e que
materializam sua relação com a melodia e com a letra. Por sua vez, as marcas identitárias
foram intensamente utilizadas no estágio prático final da pesquisa, que envolve a síntese de
uma performance instrumental diretamente influenciada pela compreensão das interpretações
instrumentais de canção de Victor Assis Brasil.
A partir desta experiência, expandimos nosso conjunto de ferramentas e estratégias
usadas para interpretar a melodia de uma canção/composição, bem como experienciamos
maneiras de associá-las também a melodias improvisadas. De um ponto de vista ainda mais
geral, ao nos aprofundarmos em projetos interpretativos de um saxofonista consagrado,
esperamos ter melhorado nossa percepção em relação aos detalhes que tornam uma
performance instrumental única.
De forma resumida, pretendemos com esta pesquisa contribuir para a
compreensão de uma parte da realização musical de Victor Assis Brasil e ressaltar sua
importância dentro do contexto musical brasileiro. Buscamos também, no campo das Práticas
Interpretativas, apontar um modelo de integração entre os estudos prático e teórico levando
em consideração particularidades do repertório de música popular como a presença de
improvisação, a ausência frequente de registros em partituras e o intenso atrito entre
referenciais musicais diversos.
13

1. Contextualização

1.1. Breve biografia e revisão da discografia

Victor Assis Brasil nasceu no Rio de Janeiro em 28 de agosto de 1945, junto com
seu irmão gêmeo João Carlos Assis Brasil, com o qual, futuramente, compartilharia a mesma
escolha profissional: a carreira de músico. Aos doze anos, começou a tocar bateria e gaita-de-
boca sendo que nessa última, segundo Raffaelli, ele já demonstrava interesse pelo repertório
do jazz ao copiar solos de saxofonistas e trompetistas das gravações a que tinha acesso. Aos
dezessete anos ganha um saxofone alto e segundo diversas fontes (RAFFAELLI;
LINHARES, 2011; MAURITY, 2006), inicia o aprendizado desse instrumento com Paulo
Moura1.
Pouco tempo depois, em meados dos anos 1960, o saxofonista passou a frequentar
as jam sessions que aconteciam no que ficou conhecido como Beco das Garrafas – quarteirão
do Rio de Janeiro que nessa época era famoso pelo grande número de casas noturnas com
música ao vivo. Ambiente de efervescência cultural, o Beco das Garrafas é entendido hoje
como importante espaço de experimentação e consolidação da Bossa Nova e principalmente
do que seria, posteriormente, chamado de samba-jazz. Em 1965, ao tocar no “Clube do Jazz e
da Bossa” causa boa impressão no maestro e pianista Friedrich Gulda, que o convida a
participar do Concurso Internacional de Viena2 no ano seguinte (PINTO, 2011). No mesmo
ano de 1966, já na Europa, participa também do Festival de Berlim, ficando em primeiro lugar
na categoria saxofone (Ibid.).
De volta ao Brasil, ainda em 1966, o saxofonista carioca grava seu primeiro disco
intitulado Desenhos. Naturalmente, esse registro apresenta de forma marcante as
características do meio musical no qual Victor estava inserido no Beco das Garrafas – a
saber, a grande proximidade e tensão entre repertórios e procedimentos associados ao jazz, à
Bossa Nova e ao samba. No disco notamos a divisão meio a meio entre composições do
próprio Victor e canções de compositores ligados à Bossa Nova – dentre eles João Donato,
Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Marcos Valle. Nas composições autorais, ouvimos uma
proximidade maior com o jazz no que diz respeito à rítmica e ao acompanhamento – que,

1
Nenhuma das fontes consultadas afirma com precisão durante quanto tempo e nem quantas foram as aulas de
Victor Assis Brasil com Paulo Moura.
2
(Internationaler Wettbewerb für Modernen Jazz Wien 1966)
14

entre outras coisas, aparecem em sua maioria com swing3 de colcheia característico desse
gênero (ouvir, por exemplo, “Dueto”, faixa seis do disco Desenhos). Nas versões
instrumentais das canções brasileiras, a acentuação jazzística abre espaço para a subdivisão
em semicolcheias e acentuações mais características do samba e da Bossa Nova (ouvir, por
exemplo, “Minha Saudade”, faixa nove do disco Desenhos).
No entanto, uma divisão clara entre essas duas influências – brasileira e norte-
americana – é apenas aparente. Assim como no Beco das Garrafas, o disco de estreia de
Victor Assis Brasil apresenta elementos desses repertórios diversos em intensa interação
dentro de cada uma das faixas, independente de sua autoria. Adotando o procedimento que
hoje é entendido como comum à época, as músicas tiradas do repertório de Bossa Nova são
ouvidas em uma abordagem, no geral, jazzística. No caso específico de músicas como
“Primavera” e “Minha Saudade”, podemos ouvir o referencial rítmico do samba – bem como
um referencial melódico associado à música brasileira – trabalhados a partir de modelos de
improvisação e interação comuns ao jazz pós anos 19404.
Já aparente na audição de Desenhos, a presença em maior ou menor grau dessas
duas influências principais não aparece sempre na mesma proporção. Como será apresentado
mais adiante, Victor Assis Brasil ora se aproxima mais de elementos e procedimentos da
Bossa Nova e do samba – demonstrando por vezes um comportamento que poderíamos
chamar de cancional – ora de elementos e procedimentos do jazz, focando sua performance
mais no caráter de instrumentista improvisador.
Dois anos depois de Desenhos, a saxofonista carioca lança seu segundo disco
intitulado Trajeto (1968). Participam da gravação o trompetista Claudio Roditi, o pianista
Aloísio Aguiar, Sérgio Barroso no contrabaixo e Claudio Caribe na bateria – sendo esse
quinteto um dos dois grupos fixos que o saxofonista liderava nesse período.5 Em Trajeto
ouvimos também a primeira participação de Hélio Delmiro em gravações do saxofonista –
sendo que o guitarrista se tornaria uma participação constante em vários discos seguintes de
Victor Assis Brasil.
Esse segundo disco, de 1968, não apresenta – ao menos não explicitamente – a
influência do samba-jazz ou de outros ritmos brasileiros. O repertório é composto

3
O termo swing aqui se refere a uma maneira específica de tocar determinados ritmos no repertório jazzístico.
Tal comportamento pode ser resumido na forma irregular de se tocar a figura rítmica de colcheia. Ao invés de
duas colcheias dividirem um tempo exatamente ao meio, a primeira passa a ser mais longa e a segunda
proporcionalmente mais curta.
4
A análise da interação/fricção entre os elementos e procedimentos do jazz e da música brasileira, bem como a
discussão em torno da definição do termo samba-jazz, será mais aprofundada adiante.
5
Segundo Pinto (2011), além desse quinteto, Victor monta nesse período (1966-68) um sexteto formado por:
Haroldo Mauro Júnior (piano), Ricardo Santos (contrabaixo), Ion Muniz (sax alto), Alfredo Gomes (bateria) e
Cláudio Roditi (trompete).
15

exclusivamente por temas de jazz. As únicas duas faixas que fogem a essa regra (“Stolen
Stuff” composta pelo próprio Victor Assis Brasil e “Plexus” por Aloísio Aguiar) não destoam
no repertório já que estão claramente referenciadas também no repertório jazzístico6. A
presença de standards na gravação de um conjunto de músicos brasileiros indica um
posicionamento bastante específico da parte de Victor. Como o nome e seu repertório
sugerem, o disco Trajeto apresenta uma incursão de Victor e seus colegas no repertório do
jazz – sendo essa imersão um posicionamento incomum à postura predominante dos músicos
brasileiros da época que buscavam estabelecer diálogos entre esse repertório norte-americano
e a música brasileira (MAURITY, 2006, p. 19).
Esse posicionamento de Victor Assis Brasil faria especial sentido um ano mais
tarde (1969), quando ele, tendo recebido uma bolsa de estudos, parte para a Berklee School of
Music, em Boston – a mais antiga escola de jazz dos EUA. No entanto, o que poderia ser um
caminho sem volta em direção à influência jazzística e um abandono à influência da música
brasileira, não se concretiza nesses termos extremos. Como foi analisado de forma mais
aprofundada por Pinto em “Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School
of Music (1969-1974) em seu estilo composicional”, dois fatores apontam para a continuidade
da dicotomia entre jazz e música brasileira na produção de Victor mesmo durante e após seu
período na Berklee. A partir de depoimentos de outros músicos brasileiros, que também
estudaram na Berklee nesse mesmo período – dentre eles Nelson Ayres, Célia Vaz e Cláudio
Roditi –, Pinto propõe uma reconstrução das experiências musicais de Victor nos EUA.
Segundo o autor, a ausência do saxofonista brasileiro nas aulas de saxofone e nas aulas
teóricas sobre jazz reflete uma questão mais profunda que apenas uma dificuldade de acordar
pela manhã. No depoimento de seus colegas, ao chegar aos EUA, Victor foi considerado já
proficiente em seu instrumento pelos professores norte-americanos, o que teria gerado seu
desinteresse pelas aulas e ao mesmo tempo o seu interesse por outras atividades. O
saxofonista frequentava a escola no período da tarde para tocar com os alunos e professores,
além de se aproveitar do considerável número de big bands e orquestras para fazer
experimentações no campo da composição e do arranjo, tanto na linguagem da música
popular como na da erudita (PINTO, 2011, p. 53).
6
Em “Stolen Stuff” e “Plexus”, ouvimos uma série de características que poderíamos destacar como referências
ao jazz. Durante a exposição e reexposição do tema (principalmente em “Stolen Stuff”), ouvimos um
acompanhamento baseado em ostinato e a abertura de vozes para os sopros em referência a sonoridade de bandas
de jazz dos anos 1950 como o The Jazz Messengers, por exemplo. Os ataques rítmicos convencionados na
cozinha e breques combinados de toda a banda também são bastante característicos de gravações de jazz desse
período. Nas duas faixas, ouvimos claramente nas seções de improviso a bateria tocando variações da “rítmica
do prato de condução” (ride cymbal beat) característica do jazz pós-1940 (MONSON, 1998, p. 54-57); além
disso, o baixo sustenta o acompanhamento a partir do procedimento de walking bass e o piano interage com os
solistas em um tipo característico de acompanhamento chamado comumente de comping (esse último conceito
será melhor discutido adiante).
16

Além de experienciar um repertório variado e de não estudar o jazz de maneira


formal, entendemos que outro fator também contribuiu para manter a variedade de influências
no repertório de Victor Assis Brasil. Logo depois de chegar a Boston, Victor se junta a Nelson
Ayres, Claudio Roditi, Zeca Assumpção e Buss Blackledge – sendo os três primeiros
brasileiros que também estudavam na Berklee – e forma o quinteto Os Cinco. Segundo Pinto
(2011, p. 52), o grupo se destacou nesse ambiente escolar graças a seu grande entrosamento, a
utilização de instrumentos incomuns ao jazz como o berimbau e a presença de composições
inéditas que incorporavam elementos da música brasileira. Entendemos que a valorização
desses elementos da música brasileira por parte dos músicos norte-americanos tenha
reafirmado, ou apenas confirmado, a importância desse referencial musical para o saxofonista.
No período de férias escolares do ano de 1970, Victor Assis Brasil passa boa parte
do mês de agosto gravando seus dois próximos discos: Jobim e Esperanto (reeditado em 1990
com o nome de The Legacy). Assim como em seus dois primeiros discos, Desenhos e Trajeto,
o saxofonista reitera sua dualidade entre música brasileira e o jazz e dedica cada um dos dois
novos discos a um desses repertórios. No entanto, apesar de um deles se voltar mais para o
repertório brasileiro e o outro para o do jazz, podemos dizer que procedimentos e elementos
dos dois lados se fazem presentes tanto em um disco quanto no outro.
Em Jobim, notamos um diálogo com Desenhos em relação à escolha do repertório
e na presença de características que remetem ao samba-jazz. Fazendo jus ao nome, o disco
Jobim apresenta quatro músicas desse compositor carioca: “Wave”, “Só tinha de ser com
você”, “Bonita” e “Dindi”. Todas elas foram gravadas e lançadas pela primeira vez entre 1965
e 1967, e apresentam características emblemáticas da Bossa Nova, como o maior número de
tensões incorporadas à melodia e harmonia e a estilização da rítmica do samba tal como foi
apresentada por João Gilberto.
O segundo disco gravado em 1970, Esperanto, é majoritariamente autoral – sendo
que apenas a primeira faixa, “Gingerbread Boy”, não é uma composição de Victor Assis
Brasil. Assim como Jobim se alinha com Desenhos em termos de repertório, Esperanto pode
ser colocado ao lado de Trajeto por ser um disco fundamentalmente de jazz.
Apesar de as propostas de repertório de Jobim e de Esperanto darem continuidade
ao repertório dos discos anteriores, a escuta desses dois discos de 1970 nos revela diferenças
de abordagem em relação a esses repertórios. Considerando a ida de Victor para os EUA,
mais especificamente para estudar jazz na Berklee, podemos inferir que o saxofonista teve
durante esse período um contato intenso com uma maior diversidade do repertório desse
gênero. Como possível consequência, podemos apontar a presença de alguns procedimentos
jazzísticos que não estavam presentes em seus dois primeiros discos.
17

Já na primeira faixa do disco Jobim, intitulada “Wave”, podemos notar a


alternância entre uma abordagem harmônica tonal, presente na composição, e uma abordagem
harmônica modal. O segundo caso, que ainda não fora ouvido com esse destaque nos discos
anteriores de Victor, alinha-se a uma maneira de pensar composição, improvisação e interação
que obteve sua consagração dentro do repertório jazzístico através do disco Kind of Blue
(1959), idealizado pelo trompetista Miles Davis e pelo pianista Bill Evans. Tal abordagem,
comumente chamada de jazz modal, foi resumida por Monson em duas características
principais: “um número menor de acordes (se comparado a standards de jazz ou composições
de bebop) e (consequentemente) maior liberdade na seleção de notas e escalas...”
(MONSON, 1998. p. 150).7
A alternância entre modal – presente na introdução e nas seções de improviso – e
tonal – na exposição e reexposição do tema – materializam um resultado sonoro que evidência
a tensão entre as influências do jazz e da música brasileira. Quando os músicos passam de
uma seção modal para uma tonal, não apenas o material harmônico se altera, mas também a
maneira como acompanham, interagem e improvisam. O que ouvimos é uma música do
repertório da Bossa Nova se revezando com um procedimento do jazz contemporâneo à
época. Podemos entender “Wave” como uma experiência bastante particular de Victor em
relação ao samba-jazz, experiência essa, na qual o referencial jazzístico é expandindo – para
além do Bebop e do Hardbop – e que os elementos da música brasileira e norte-americana
aparecem lado a lado, em alternância e não misturados.
Outra característica ouvida em Esperanto e que também se relaciona com os anos
vividos nos EUA é a presença de procedimentos e sonoridades associados à música clássica
ou de concerto. Como apontado por Pinto (2011), quando na Berklee, Victor se depara com a
possibilidade de escrever para formações instrumentais maiores – de big bands a orquestras –
o que teria aumentado seu interesse pela música de concerto e por sua mistura com o jazz.
Segundo depoimento do próprio Victor (SOUZA, 1974), e de colegas que também estudaram
na Berklee (PINTO, 2011. p. 53), o saxofonista aproveitou a estrutura da escola para praticar e
experimentar no campo da composição e da orquestração de maneira bastante livre.
Na última faixa de Esperanto, ouvimos “Quartiniana” composta pelo próprio
Victor Assis Brasil8. Notamos a ausência do acompanhamento rítmico e harmônico executado
pelo contrabaixo e pela bateria e presente em todas as outras músicas do disco; ao invés disso

7
No original: “The therme modal jazz has come to be associated with these two musical characteristics: fewer
chords (than jazz standards or bebop compositions) and (consequently) greater freedom of note (and scale)
selection […]”. MONSON, Ingrid. In the Course of Performance: Studies in the World of Musical
Improvisation. University of Chicago Press, 1998. p. 150.
8
Na ocasião da reedição em CD dos discos do Victor Assis Brasil, “Quartiniana” foi lançada no disco Jobim e
não mais em Esperanto.
18

ouvimos um acompanhamento de órgão, violão e contrabaixo que – se não escrito – é tocado


de maneira mais fixa, sem interação improvisada entre os instrumentos. Por sua vez, as
melodias improvisadas surgem como elementos internos da estrutura da música e não em
posição de destaque como no repertório jazzístico. Levando isso em conta, entendemos que o
material que cada músico executa e a maneira como o faz foram mais delimitados pelo
compositor, planejados anteriormente à performance. Como resultado, ouvimos sonoridades e
formas de interação diferentes das esperadas para um quarteto de jazz e que se aproximam,
por exemplo, de um grupo de câmara. Sob essa perspectiva, a presença de “Quartiniana” no
disco Esperanto pode ser interpretada como consequência desse contato que Victor Assis
Brasil teve nos EUA com a composição e escrita para grupos de câmara e orquestras.
Depois de mais uma temporada em Boston, estudando e tocando na Berklee e seus
arredores, Victor Assis Brasil retorna definitivamente para o Brasil em 1974. Ao final desse
mesmo ano lança o disco Victor Assis Brasil Ao Vivo, registro de uma apresentação no Teatro
da Galeria no Rio de Janeiro. Na formação de quinteto – saxofone, trompete, piano, baixo e
bateria – Victor apresenta um repertório de quatro faixas, sendo uma delas um standard de
jazz, “Somewhere” e as outras três de sua autoria: “Waving”, “Pro Zeca” e “Puzzle”.
Nessa gravação notamos a consolidação de alguns recursos já utilizados nos
discos gravados em 1970. Dentre eles, podemos citar a presença de longas seções em rubato,
nas quais a velocidade de mudança dos acordes acontece baseada em como o saxofonista
interpreta a melodia e não em cima de um andamento regular. Tal recurso já fora ouvido nos
arranjos de “Wave” e “Dindi” e é incorporado como recurso composicional em “Puzzle”.
Além disso, podemos apontar também a presença marcante de seções modais em Victor Assis
Brasil Ao Vivo. Anteriormente ouvida em oposição a seções tonais no arranjo de “Wave”, a
abordagem modal aparece agora totalmente incorporada nas composições “Pro Zeca” e
“Puzzle” – nessa última, os improvisos ocorrem sobre a alternância entre dois acordes
menores distantes uma segunda menor, e que podemos associar diretamente a harmonia da
música “So What” do já citado álbum Kind of Blue, emblemático do jazz modal.
Outra característica marcante do disco Victor Assis Brasil Ao Vivo reside no fato
de a faixa “Pro Zeca” se utilizar de elementos do gênero baião, fato inédito até então nas
gravações do saxofonista. Como apontado por Linhares (2007), em sua dissertação “Pro Zeca
de Victor Assis Brasil: Aspectos do hibridismo na música instrumental brasileira”, tanto na
composição como nos recursos interpretativos e de improvisação encontramos elementos
como: rítmica característica do baião na melodia e no acompanhamento; harmonia e melodia
fundamentadas nos modos mixolídio, lídio e em combinações dos dois; acentuação rítmica e
padrões de articulação característicos. O uso desse referencial do baião aponta para um
19

distanciamento, por parte de Victor, do referencial até então bastante presente do samba-jazz
– que como o próprio nome explicita, dá preferência à utilização de elementos musicais
característicos do samba. No entanto, como veremos a seguir, tal distanciamento não se
confirma nos discos seguintes do saxofonista.
Um ano depois das seções no Teatro da Galeria que resultaram no disco Victor
Assis Brasil Ao Vivo, o saxofonista participou com quatro composições – inclusive o tema de
abertura – da trilha sonora da telenovela “O Grito”. Em 1976, estreia sua “Suíte para Sax
Soprano, Piano e Cordas” (PINTO, 2011. p. 45-6) e em 1978 participa do Festival de Jazz de
São Paulo, no qual foi aclamado pelo público, crítica e por músicos internacionais que
também se apresentaram no evento (RAFFAELLI, 1979).
Nesse entremeio, mais especificamente em 1977, Victor se apresenta junto ao
pianista Luis Eça no Museu de Arte Moderna, sendo que o registro dessa apresentação seria
lançado em disco postumamente (1997). Nessa gravação, os dois instrumentistas se mostram
extremamente à vontade, assumindo riscos como improvisar fora da Forma do tema, trabalhar
texturas longamente e acrescentar materiais e ideias musicais totalmente distintas dos
presentes nas composições. Por parte do Victor, notamos também, com frequência maior do
que nas gravações anteriores, o uso de efeitos como glissandos, trinados e frases inteiras com
a articulação em stacato.9
Próximo ao final precoce de sua carreira, Victor Assis Brasil lança mais dois
discos – Quinteto em 1979 e Pedrinho em 1980 – e mais uma vez dedica um deles ao jazz e o
outro à interação desse gênero com o repertório da música brasileira.
Quinteto é o único disco de Victor Assis Brasil totalmente autoral com cinco
composições do saxofonista, sendo uma delas em homenagem a Phil Woods, “Waltz for
Phil”, e outra dedicada a John Coltrane, “Waltz for Trane”. A declaração de admiração aos
dois saxofonistas norte-americanos – que começaram sua produção a partir do final de 1950 –
corrobora para a ideia de que Victor, após sua estada nos EUA, buscou atualizar sua
referência de jazz para além dos anos 1940-50. Apesar de todas as músicas do disco
remeterem às características do jazz – em termos de melodia, ritmo, harmonia e interação
entre os músicos – o saxofonista carioca demonstra, principalmente nas duas músicas mais
lentas (“Balada para Nádia” e “Waltz for Trane”), uma abordagem bastante interessante em

9
Glissando: Termo normalmente usado como uma instrução para executar uma passagem em movimento rápido
e contínuo. (Verbete Glissando do Dicionário Grove de Música. Versão online, último acesso em 08/06/2015).
Trinado: alternar entre duas notas rapidamente sendo o intervalo entre as duas notas normalmente pequeno.
Stacato: terminologia da música clássica que designa, no caso do saxofone, um ataque de língua no início da
nota e a diminuição da sua duração; pode vir ou não acompanhado de uma acentuação. A definição de staccato
será mais bem discutida no Capítulo 3, item 3.2.2.2.
20

relação ao swing feel10, variando a proporção de durações entre a colcheia do tempo forte e a
do tempo fraco – e, por vezes, até mesmo negando o swing feel e tocando todas as colcheias
com a mesma duração.
Pedrinho, assim como Desenhos e Jobim, reafirma mais uma vez a presença
concomitante do jazz e da música brasileira em toda a produção musical de Victor Assis
Brasil. Em relação ao repertório, podemos dizer que o último disco de sua carreira resume e
exemplifica toda a discografia do saxofonista já que nele ouvimos temas de jazz (“It’s all right
with me”, “’S Wonderfull” e “Night and Day”), músicas do cancioneiro brasileiro (“Nada
Será Como Antes” e “O Cantador”) e duas composições autorais (“Pedrinho” e “Penedo”).
Após o lançamento de seu último disco em 1980, poucos são os registros
biográficos a respeito de Victor Assis Brasil. O saxofonista, arranjador e compositor morreu
em 1981 de periartrite nodosa, rara doença do sistema nervoso, e encerrou precocemente sua
carreira aos trinta e cinco anos de idade.

1.2. Proposta de periodização da discografia

A partir da revisão de sua biografia e dos apontamentos a respeito do repertório e


das principais características musicais de cada álbum, apresentamos uma proposta de
periodização da discografia de estúdio de Victor Assis Brasil. Como marco de divisão,
adotamos o período em que o saxofonista esteve nos EUA, por entender que esse período de
formação acrescentou novos referenciais à sua produção musical. De maneira esquemática,
temos:

1ª Fase: anterior ao período nos Estados Unidos


Discos: Desenhos (1966) e Trajeto (1968)

2ª Fase: durante o período nos Estados Unidos


Discos: Jobim (1970) e Esperanto (1970)

3ª Fase: após o retorno dos Estados Unidos


Discos: Quinteto (1979) e Pedrinho (1980)

10
O termo swing feel é aqui usado para se referir à duração irregular das figuras rítmicas de colcheia, observável
em parte considerável do repertório jazzístico.
21

Como característica comum, cada uma das fases engloba um disco totalmente
direcionado para o repertório de jazz (Trajeto, Esperanto e Quinteto) e outro com conteúdo
mais diversificado, incluindo além de temas de jazz, composições autorais em outros gêneros
e versões instrumentais de canções brasileiras (Desenhos, Jobim e Pedrinho). Considerando o
foco deste trabalho, nos propusemos a analisar gravações das três fases de sua discografia
com o intuito obter uma visão global de como o saxofonista abordou o repertório de canção
durante sua carreira. Mais especificamente, foram selecionadas: “Feitiço da Vila” e “Minha
Saudade” do disco Desenhos (1ª. Fase), “Só tinha de ser com você” e “Dindi” do disco Jobim
(2ª. fase) e “O Cantador” do disco Pedrinho (3ª. Fase).

1.3. Samba-jazz

A difícil definição e localização do samba-jazz em meio a outros gêneros


musicais tem sido alvo de reflexão no meio acadêmico que se volta para música popular. Sua
característica híbrida, sugerida pelo próprio nome, aponta para a confluência de dois gêneros
distintos, o que contribui para a dificuldade em delimitar suas fronteiras. Além disso, a sua
proximidade com a Bossa Nova e a concomitância com importantes processos sociais e
políticos do Brasil, nos anos 1960, tornam sua discussão ainda mais complexa.
Tendo isso em vista, a intenção desta parte do trabalho não é de encerrar essa
discussão, mas de ressaltar aspectos importantes desse repertório que contribuam para a
compreensão do objeto estudado – as gravações instrumentais de Victor Assis Brasil
interpretando canções brasileiras.

1.3.1. Samba, jazz e Bossa Nova: atrito e conciliação

Com o início das jam sessions em 1954 (SARAIVA, 2007, p. 37), o cenário
musical já bastante diverso de Copacabana ganha mais um elemento. A partir desse ponto, a
atenção do público das boates da zona sul do Rio passaria a se dividir entre boleros, sambas-
canção, tangos, foxtrotes, sambas e a nova “sensação do momento”: o jazz. A imagem de
“modernidade” atribuída a esse gênero norte-americano e a noção de que a sua influência
seria capaz de modernizar outras músicas transformou o jazz em sinônimo de “sofisticação” e
“bom gosto” (Ibid., p. 22).
22

Nesse contexto, logo se iniciaram experimentações de aproximação entre o jazz e


a música brasileira. Com seu rótulo de autenticidade, o samba logo se torna a principal fonte
de material para essas experimentações. Dentro desse contexto, e se tratando de música
instrumental, Saraiva (2007, p. 78) delineia quatro tipos de interação entre jazz e samba nesse
cenário de final dos anos 1950 e início de 1960 em Copacabana: a “tentativa [por parte de
brasileiros] de tocar jazz mesmo”; “tocar jazz como se fosse samba”; “tocar samba como se
fosse jazz”; e, por fim, “tocar samba com características consideradas jazzísticas”. Mas em
meio a todas essas experimentações, onde se encontra o samba-jazz?
Como o apresentado por Saraiva e Gomes, delimitar o alcance do termo samba-
jazz enfrenta primeiramente a não consonância de seu uso em dois períodos distintos. O termo
foi usado pela primeira vez no início de 1960 por críticos de música ao se referirem –
geralmente de forma pejorativa – a aproximação entre samba e jazz presente em discos de
músicos norte-americanos como Cannoball Adderley, Stan Getz e Charlie Byrd e em alguns
discos de brasileiros que apresentavam uma junção “não resolvida” entre essas diferentes
musicalidades (SARAIVA, 2007, p. 95-9). De maneira bastante geral, esses discos se
encaixam na segunda categoria de interação entre samba e jazz citada acima – “tocar jazz
como se fosse samba”. Mais recentemente, o termo samba-jazz foi resignificado “como
subgênero do mercado fonográfico” (Ibid., p. 103) e passou a abarcar a produção musical que
se encaixa no quarto tipo de interação entre samba e jazz apontado por Saraiva: “tocar samba
com características consideradas jazzísticas”. Indo além disso, a atual ressignificação do
termo transforma a tensa aproximação entre samba e jazz – considerada anteriormente
contraditória e desestabilizadora – em “característica positiva e definidora do gênero” (Ibid.,
p. 103).
No entanto, por que esse repertório instrumental dos anos 1960 passa pelo
processo (ou tentativa) de legitimação tanto tempo depois de suas primeiras manifestações se
comparado à Bossa Nova – que se consolida e consagra enquanto marco de modernidade na
história da música popular na mesma época e lugar? Segundo Saraiva (2007, p. 74-76), a
Bossa Nova apresenta em sua aproximação do samba com jazz a ideia de síntese entre essas
musicalidades, característica que, como veremos adiante, não se concretiza completamente no
samba-jazz. A autora especifica que, na Bossa Nova, a síntese do ritmo do samba, atribuída a
João Gilberto, e a apropriação e adaptação da linguagem harmônica do jazz para o repertório
temático e melódico “locais” deu conta de modernizar o samba e ao mesmo tempo respeitar o
ideário de legitimidade construído para música popular brasileira até então. Nesse ideário,
características como “a mestiçagem” ou “a presença de influências culturais diversas” e a
23

“incorporação dessas influências através de sua transformação e adaptação para o contexto


local” seriam garantidoras dessa legitimidade.
A frequente aproximação do que hoje chamamos samba-jazz com a Bossa Nova,
através de termos como bossa nova instrumental sugere, a partir de uma suposta proximidade
de características musicais, a busca por legitimidade e até mesmo por um espaço
mercadológico. No entanto, como apresentado por Gomes (2010) em sua tese de doutorado,
esse repertório instrumental propõe uma interação entre samba e jazz que ao mesmo tempo
dialoga com a Bossa Nova e difere da mesma. Em termos musicais mais específicos, esse
autor aponta para a matriz rítmica do samba como um elo de semelhança marcante entre os
dois repertórios. Contudo, trabalhando com a distinção entre procedimento musical e
elemento musical, Gomes aponta para diferenças de abordagem no samba-jazz e na Bossa
Nova em relação a essa matriz rítmica do samba e em relação a características advindas do
jazz.
Segundo Gomes, procedimentos musicais são “estratégias de ação musical que,
embora possam ser recorrentes em um dado estilo ou gênero, a princípio poderiam ser
adotadas por qualquer estilo ou gênero” (GOMES, 2010, p. 37). A partir dessa definição,
podemos destacar alguns procedimentos do jazz que foram incorporados na produção musical
de final dos anos 1950 até 1960: uma abordagem específica da improvisação, um tipo de
acompanhamento baseado na interação com o solista e a utilização frequente de acordes com
extensões. No entanto, a incorporação de tais procedimentos se deu de forma diferente nos
repertórios do samba-jazz e da Bossa Nova.
Como colocado anteriormente, a Bossa Nova incorpora a abordagem harmônica
do jazz, que, entre outras coisas, acrescenta mais extensões aos acordes, e a adapta em função
do universo melódico “local”. No caso do samba-jazz notamos também a incorporação desse
procedimento harmônico, mas nesse caso entendemos que ela é feita no intuito de expandir as
possibilidades de atuação de outro procedimento, o solo improvisado sobre a progressão
harmônica do tema. Por sua vez, essa abordagem jazzística de improvisação aparece com
papel central no repertório instrumental ao passo que, na Bossa Nova, tal procedimento
aparece de forma adaptada e subjacente – sendo por vezes até considerada “inadequada” a
esse universo focado na interação entre melodia e letra e, consequentemente, na atuação do
cantor (TATIT apud GOMES, 2010, p. 84).
Além das formas diferentes de se assimilar procedimentos advindos do jazz,
Gomes também aponta para diferenças entre samba-jazz e Bossa Nova em sua relação com a
matriz rítmica do samba. Segundo o autor (GOMES, 2010, p. 42-43), o que ficou conhecido
como a “batida de João Gilberto” pode ser entendida como o resultado de um processo de
24

“diluição”, de uso conciso do que Sandroni (2001) definiu como “paradigma da Estácio” (ver
Figura 1) – uma figuração rítmica específica que se repete ciclicamente11 e que se torna
“denominador comum nacional do que se vai entender por samba” (GOMES, 2010, p. 41).
Essa utilização concisa da matriz rítmica do samba, característica da Bossa Nova, aparece
nesse repertório no acompanhamento executado por instrumentos como o violão e o piano e
de forma geral, mantém a noção de ciclo presente no “paradigma da Estácio” (Ibid., p. 44).

Figura 1 – a) Exemplo da figuração rítmica chamada por Sandroni de “paradigma da Estácio”; b) e c) Exemplos
apresentados por Gomes (2010, p. 42-43) de uso conciso da matriz rítmica do samba no repertório da Bossa
Nova.

Como colocado por Saraiva (2007, p. 95-99; p. 100-101), o repertório sob o rótulo
de samba-jazz é aquele que se comunica com o samba através do processo de síntese
desenvolvido pela Bossa Nova. Dessa forma, a ideia de uso conciso da matriz rítmica do
samba também se faz presente no samba-jazz tanto no acompanhamento como nas melodias
escritas ou improvisados. Porém, no caso do acompanhamento, de maneira geral, essa matriz
rítmica perde o caráter de repetição cíclica e passa a ser usada livremente. Mais
especificamente, podemos ouvir no samba-jazz um desprendimento de instrumentos como o
piano e, por vezes, a bateria da função de “manter o ritmo” ou a “levada”. Ainda apoiados
sobre a matriz rítmica do samba, esses instrumentos se aproximam de um procedimento
jazzístico comumente chamado de comping em que os acompanhadores interagem de maneira
improvisada com o solista, ora respondendo aos estímulos desse, ora o provocando ou
preenchendo os espaços vazios (LEVINE, 1995).
Além dessa nuance em relação à apropriação de procedimentos do jazz pela Bossa
Nova e pelo samba-jazz, Gomes acrescenta mais uma diferença marcante entre os dois

11
Entendemos que apesar de tal figuração rítmica sofrer variações de uma música para outra ou dentro de uma
mesma música, a ideia de ciclo sempre se mantém através da manutenção da métrica (compassos de 2/4 com
predominância da subdivisão de semicolcheia), da duração das frases rítmicas (dois compassos de 2/4) e da
colocação das acentuações dentro dessas frases.
25

repertórios. Enquanto o primeiro incorpora tais procedimentos e os adapta ao seu universo de


concisão e intimismo, o segundo não apenas se utiliza mais diretamente desses procedimentos
como, ao fazê-lo, acaba por assimilar também elementos de estilo. Dentro do repertório do
samba-jazz podemos notar com alguma frequência a presença de frases, padrões melódicos e
figuras rítmicas advindos do jazz e a utilização do trio piano, baixo, bateria como base da
instrumentação (sendo a ausência do violão um aspecto de diferenciação importante em
relação à Bossa Nova) (GOMES, 2010, p. 62). A presença literal desses elementos do jazz no
repertório do samba-jazz possibilita a distinção das características de cada musicalidade
envolvida, distanciando-se assim da ideia de síntese presente na Bossa Nova e evidenciando o
atrito entre as influências envolvidas (PIEDADE, 2011).
Outra distinção comumente levantada em relação a essas duas manifestações do
samba em contato com jazz diz respeito justamente a qual parte do repertório do gênero norte-
americano cada uma delas faz referência. A forma de cantar de João Gilberto, centrada no
detalhe e com a projeção próxima a da fala, é constantemente relacionada à de Chet Baker;
em consonância a isso, o caráter de intimismo e suavidade atrelados ao esmero da execução
musical da Bossa Nova se associam ao cool jazz12. De forma contrastante, a “execução
vigorosa, franca e brilhante” (GOMES, 2010, p. 60) do samba-jazz sugere um diálogo maior
com o hardbop e seu enfoque maior na improvisação. No entanto, como apontado pelo
próprio Gomes (2010, p. 59), tais diferenciações são muitas vezes questionáveis, já que vários
músicos participavam da produção e gravação dos dois repertórios.
A diferença em relação ao caráter e a presença ou não da improvisação na Bossa
Nova e no samba-jazz pode também ser associada ao fato de uma manifestação ser
majoritariamente instrumental e a outra não. Sem a presença do cantor, o solista instrumental
passa a ser o centro da performance e características como proficiência técnica e exploração
dos limites do instrumento passam a ser valorizadas. A fim de dar espaço para que tudo isso
pudesse acontecer, podemos apontar no repertório do samba-jazz a tendência a “solos
extensos e virtuosísticos” (Ibid., p. 60), ao passo que na Bossa Nova os improvisos são mais
concisos e no geral buscam relações com a melodia da canção da qual participam.
Olhando mais especificamente para a produção de Victor Assis Brasil, notamos
uma curiosa alternância entre solos curtos e outros mais extensos. Em seu primeiro disco
(Desenhos) – que apontamos como mais diretamente relacionado ao samba-jazz – o
saxofonista improvisa solos mais curtos em faixas como “Primavera” (um chorus) e “Minha

12
Ao aproximar Bossa Nova e cool jazz é importante ressaltar a não semelhança de abordagem em relação à
improvisação. Apesar das diferenças entre cool jazz e hardbop, em ambos a improvisação tem papel central. Na
Bossa Nova, como apontado anteriormente, a improvisação jazzística assume função secundária ou muitas vezes
nem se faz presente.
26

saudade” (um chorus) sendo as duas canções adaptadas do repertório da Bossa Nova; já no
disco Jobim em faixas como “Wave” e “Bonita”, também canções em versão instrumental,
ouvimos solos mais longos. Tal comportamento será investigado de maneira mais
aprofundada no capítulo de análises.

* * *

Apesar das diferenças em termos de caráter e da maneira como incorporaram a


influência do jazz, a Bossa Nova e samba-jazz compartilham de um repertório comum – seja
em termos de composições ou em um entendimento mais amplo de repertório enquanto um
conjunto de referências. Segundo Saraiva (2007, p. 100-101), aquilo que hoje se consolida –
ou busca se consolidar – como samba-jazz se apropria do “samba” via Bossa Nova, seja
através da “diluição da matriz rítmica” (GOMES, 2010, p. 42) ou do repertório de
composições propriamente ditas. Assumindo o caráter de legitimidade atribuído à Bossa
Nova, enquanto música popular moderna, e sua consequente consagração em termos de
alcance de público, entendemos que o samba-jazz, compartilhando de seu repertório – ainda
que sem a presença da letra e em uma abordagem musical ora semelhante, ora distinta –
dialoga em grande parte com um mesmo universo temático.
Partindo dessa relação de distinção em abordagem musical e proximidade em
temática estabelecida entre o samba-jazz e o universo da canção – mais especificamente à
Bossa Nova –, entendemos ser possível apontar, dentro do recorte da produção de Victor
Assis Brasil proposto neste trabalho, relações entre sua interpretação instrumental e sentidos
atribuídos ao repertório cancional por ele adaptado. Dentro de sua discografia, notamos a
presença constante do repertório da Bossa Nova reinterpretado através da abordagem do que
vem sendo chamado de samba-jazz. Tendo isso em vista, buscaremos apontar, nas análises
contidas neste trabalho, as nuances entre o foco na performance instrumental – dialogando
mais diretamente com o referencial jazzístico instrumental – e as possíveis ligações entre as
interpretações de Victor Assis Brasil e esse universo temático e de sentidos contidos nas
canções gravadas por ele.
27

2. Considerações sobre a prática

O conteúdo deste capítulo tem por finalidade apresentar a metodologia utilizada


para o desenvolvimento da parte prática desta pesquisa, bem como esclarecer a mútua
influência entre essa metodologia e o modelo de análise das gravações de Victor Assis Brasil
adotado.

2.1. Justificativa para a metodologia

O estudo de música popular ainda se dá principalmente através do que Teixeira e


Hentshke (2009, p. 74-75) definiram como prática informal, ou seja, situações de aprendizado
que envolvam, entre outras coisas, “o desenvolvimento cinestésico e aural”. Na prática, o
procedimento mais comum dessa forma de estudo é o de “aprender músicas de ouvido”, ou
seja, através da audição de uma gravação e sem o auxílio de uma partitura. Mais do que
simplesmente assimilar partes estruturais de determinada música – como melodia, harmonia e
Forma – o instrumentista que aplica esse método de aprendizado incorpora também os
recursos expressivos pertencentes ao gênero musical envolvido e ao intérprete no qual se
referencia.
No entanto, dado que o fazer musical e, consequentemente, a atividade de um
instrumentista são processos criativos, a simples imitação da performance de outro
instrumentista consagrado não seria suficiente como recurso formador. Levando isso em
conta, podemos dizer que o desafio do processo de aprendizagem do instrumentista popular
reside em encontrar estratégias de prática que contribuam na síntese de uma maneira
particular de interpretar articulando as diversas referências musicais que ele, deliberada ou
intuitivamente, adquire. No contexto da música popular, a busca por essas características que
particularizem a performance é reforçada pela constante valorização de atributos como a
capacidade de improvisar, rearranjar e reinterpretar.
Sob essa perspectiva, olhando novamente para a prática informal associada à
música popular, notamos que o procedimento audição-imitação – comumente presente no
discurso de instrumentistas profissionais ou estudantes – não descreve a totalidade dessa
forma de aprendizado baseada no “desenvolvimento cinestésico e aural”. Como descrito no
parágrafo anterior, a necessidade de articular diversas referências de maneira particular
acrescenta à cadeia audição-imitação uma fase posterior de síntese de uma performance
inédita. Seja reaproveitando o mesmo material musical presente na performance de referência
ou explorando novos repertórios, o intérprete associa recursos expressivos adquiridos via
28

audição-imitação com outras referências já assimiladas e constrói sua maneira particular de


interpretar.
Contudo, ao acrescentarmos a fase de síntese de uma nova performance nesse
processo de aprendizado do intérprete, o procedimento de audição, imitação e reinterpretação
ainda se encontra incompleto. Segundo Mannis (2014, p. 212), a síntese constitui a última
instância da rotina de processos cognitivos que caracterizam o processo criativo, sendo
precedida pela análise e essa, pela percepção. Nas palavras do autor “[...] algo só pode ser
analisado após ter sido percebido, e só pode ser sintetizado após ter sido identificado,
classificado e repertoriado, portanto, analisado” (Ibid., p. 213). Dentro desse plano de ação, a
construção de uma reinterpretação a partir de recursos expressivos assimilados pelos
processos de audição e imitação13 pressupõe uma análise das interpretações tomadas como
referência na fase de percepção.
Assim como o constatado em relação à síntese de uma nova interpretação, o
processo de análise, que como vimos também é inerente à prática informal, nem sempre é
mencionado no discurso de seus praticantes. Siste (2009, p. 21-24), ao revisar diversos artigos
acadêmicos sobre a área de Práticas Interpretativas, aponta a tendência de alunos e
professores de não formalizarem suas reflexões a respeito da prática do instrumento, seja em
relação às estratégias de ensino e aprendizagem ou em relação aos processos criativos
propriamente ditos. No entanto, o que transparece desse levantamento é que, tanto na prática
formal14, como na informal, o que está ausente não é o processo analítico, mas sim a sua
formalização, ficando essa a cargo, por exemplo, daqueles que desenvolvem pesquisa
acadêmica na área.
Dentro desse âmbito da pesquisa em Práticas Interpretativas, Siste (2009, p.72-73)
aponta para a recorrência de dois tipos de análise: uma voltada para o contexto em que foi
concebida a obra, e outra voltada para a obra em si, focada principalmente em seus aspectos
estruturais. No atual projeto de pesquisa, ainda que o objeto de estudo tenha sido abordado de
maneira expandida, levando em consideração sua posição na carreira de Victor Assis Brasil e
sua relação com outros eventos musicais e históricos, focamos a maior parte do trabalho na
análise do referencial sonoro propriamente dito e ao aproveitamento desse referencial e dessas
análises dentro do âmbito prático, que visa o aprimoramento da própria performance como
intérprete.
13
Dentro da ideia de processos cognitivos, a própria audição-imitação encerra em si um ciclo primário de percepção, análise
e síntese que tem como função checar a compreensão adquirida em relação ao objeto. Cada imitação realiza a checagem, por
comparação, da assimilação da performance estudada e possibilita o levantamento de recursos expressivos na fase de análise
mais geral, dentro do ciclo cognitivo em que a audição-imitação representam apenas a fase de percepção (ver MANNIS,
2014, p. 212-216).
14
Aqui utilizamos o termo prática formal no sentido de situações ligadas ao ensino da denominada música clássica ocidental,
conforme a definição apresentada por Teixeira e Hentshke (2009, p. 74).
29

Ainda em relação ao processo de análise presente neste projeto, algumas


considerações se fazem necessárias. Diferente dos trabalhos estudados por Siste, em que a
partitura tem papel central na análise estrutural das obras15, adotamos como referência para as
análises contidas nessa pesquisa a representação do objeto formada pelo conjunto fonograma-
transcrição16. Segundo Napolitano (2003), o fonograma materializa uma melhor representação
de uma performance de música popular, já que, com frequência, o intérprete não se apoia em
material notado ou o utiliza de maneira bastante livre. Nesse sentido, o fonograma é o
principal elo entre a performance estudada e as observações levantadas na análise. Por sua
vez, a transcrição – que na realidade já materializa resultados de uma primeira análise, em que
elementos são notados e outros são deixados de lado – facilita a visualização de estruturas
gramaticais como a Forma ou padrões gerados pela recorrência de elementos temporalmente
distantes na gravação. Essa abordagem centrada na complementaridade entre fonograma e
transcrição tem sido sistematicamente adotada por outras pesquisas em Práticas
Interpretativas, cujo objeto se insere no repertório da música popular (ver, por exemplo,
BASTOS, 2013; FERREIRA, 2009; LINHARES, 2007; MAURITY, 2006; MAGALHÂES
PINTO, BOREM, 2013; MAXIMIANO, 2009).
No entanto, apesar da semelhança em relação ao referencial adotado para as
análises, a presente pesquisa propõe abordagens diferentes do objeto se comparada com esses
trabalhos. A primeira delas está relacionada com o objetivo prático desta pesquisa de
sintetizar reinterpretações ou ainda propor novas interpretações completas e não se aprofundar
unicamente sobre o estilo de improvisação do referencial estudado. Nesse sentido, ampliamos
o escopo de observação das seções de solo improvisado para toda a performance contida na
gravação – exposição e reexposição da melodia da canção, introduções e codas. Tal
abordagem é, na verdade, parcialmente distinta, já que trabalhos como os de Bastos (2013),
Linhares (2007), Maximiano (2009), também levam em conta a estrutura formal das
gravações analisadas, mas, nem sempre consideram nas análises as escolhas interpretativas do
instrumentista estudado fora da seção de improviso.17

15
A autora tem como objetos de estudo, principalmente, pesquisas na área de Práticas Interpretativas que
abordam o repertório de música erudita, e, por conta disso, aponta para a partitura como foco das análises
estruturais desenvolvidas por esses trabalhos.
16
Aqui, buscamos estabelecer uma diferenciação entre transcrição e partitura. A primeira é posterior ao
acontecimento musical e subentende um processo de análise do mesmo. A segunda, no contexto em que aparece,
refere-se à notação que, dentro da chamada tradição da música ocidental, serve de registro e suporte para a
performance.
17
Importante ressaltar que nesse ponto do texto, bem como nos parágrafos seguintes, não apontamos a superação
das formas de análise da performance em música popular citadas. As incorporamos ao texto apenas para
contribuir, através do apontamento de semelhanças e diferenças, na definição de nossa própria abordagem do
objeto.
30

A segunda particularidade metodológica, também resultante do objetivo prático da


pesquisa, está relacionada com quais parâmetros, elementos e procedimentos são observados
durante as análises. Concentrando menos a atenção na identificação e caracterização dos
materiais melódicos e rítmicos utilizados nas seções de improviso e buscando uma
compreensão mais global, propusemos uma sistematização para a análise do projeto
interpretativo de Victor Assis Brasil em cada gravação. Entendemos projeto interpretativo18
como o levantamento das escolhas interpretativas do saxofonista que estabeleçam sua
interação com o núcleo melodia-letra da canção tida como referência para a performance. Sob
essa perspectiva, a seção de improviso se integra como mais uma parte desse projeto global; e
parâmetros como articulação, timbre, arranjo, harmonia, comportamento melódico e rítmico
são analisados de maneira a esclarecer sua organização durante toda a gravação e sua relação
com os sentidos depreendidos da imbricação entre melodia e letra da canção. A estrutura
detalhada das análises será apresentada no Capítulo 3 – Referências para as análises.
Também nesse caso, a abordagem e foco das análises em relação ao objeto não
são inéditos. Maximiano (2007) e Bastos (2013), por exemplo, propõem o estabelecimento de
relações entre as seções de improviso e a canção interpretada em termos de semelhanças ou de
reaproveitamento de contorno melódico. No entanto, a metodologia utilizada neste projeto
acrescenta a dimensão textual da canção (via Semiótica da Canção) e a dimensão da
interpretação de maneira mais global, ao levar em conta as escolhas interpretativas do
saxofonista também nas seções de exposição e reexposição da melodia.
Interessante notar que a proposta de construir reinterpretações instrumentais de
canção, tendo como referência os projetos interpretativos de Victor Assis Brasil, resulta da
intensa interação entre os planos teórico e prático desta pesquisa. Logo no início do
desenvolvimento do projeto, durante os primeiros esforços deliberados de audição e imitação,
defrontamo-nos com duas gravações do saxofonista, que não continham seções de solo
improvisado do mesmo, estando sua participação restrita à exposição e reexposição da
melodia e às seções de introdução e coda. Tal fato sugeriu a importância atribuída pelo
saxofonista a essas outras seções, já que seu conteúdo seria suficiente para justificar sua
participação nas gravações. A partir dessa constatação, questionamos a metodologia
pretendida até aquele momento – de análise somente das seções de solo improvisado – e nos
questionamos em relação a quão intensos eram os laços entre as escolhas, que compunham o

18
A definição de projeto interpretativo se baseia na ideia de gesto interpretativo (ou gesto vocal), apresentada
por Machado (2012, p. 53) e que dá nome ao conjunto de ações que materializa a relação do intérprete vocal com
os materiais musicais e textuais da canção e, consequentemente, com os sentidos contidos no regime de
integração entre melodia e letra. As relações entre projeto interpretativo e gesto vocal serão mais aprofundadas
no Capítulo 3.
31

projeto interpretativo de Victor Assis Brasil, e a canção, que estava sendo adaptada para uma
performance instrumental. No âmbito prático, esse questionamento trouxe nossa atenção para
a importância das escolhas interpretativas fora da seção de improviso nos projetos
interpretativos inéditos, que propunham relação com os desse saxofonista.
Outros dois exemplos da interação entre os planos prático e teórico desta pesquisa
são a influência direta que a audição-imitação exerceu sobre as análises de “O Cantador” e
“Só tinha de ser com você”. No primeiro caso, certa dificuldade foi sentida durante a prática,
ao se tentar respirar apenas nos mesmos lugares em que isso acontecia nas gravações; tal
constatação chamou a atenção para uma tendência de continuidade – redução de interrupções
– que posteriormente seria mais desenvolvida na análise formal. No segundo caso, a execução
da transcrição chamou a atenção para o acúmulo de tensão resultante da escolha de tonalidade
e a consequente acomodação da melodia em uma região aguda da tessitura do saxofone; esse
dado empírico, por sua vez, contribuiu na caracterização do projeto interpretativo dessa
gravação.
Por fim, o objetivo prático de reinterpretar os projetos interpretativos de Victor
Assis Brasil, serviu ainda como parâmetro para a escolha do recorte a ser estudado dentro da
obra desse instrumentista. As cinco gravações escolhidas estão contidas em seus três discos
que contém versões instrumentais de canções brasileiras. Além disso, como o apresentado no
Capítulo 1 – Contextualização, cada um dos três representa uma das fases de sua
discografia, configuração essa que planejamos intencionalmente. A partir da compreensão
desses projetos interpretativos, pretendemos a construção de um panorama das escolhas
interpretativas recorrentes e particulares nas gravações instrumentais de canção, dentro de sua
produção registrada em disco. Tal inventário de características que particularizam Victor
Assis Brasil são as chamadas marcas identitárias, que, no final do processo dessa pesquisa,
são usadas como referência para a proposição de projetos interpretativos inéditos, porém
diretamente relacionados aos seus.
Retomando o que foi desenvolvido até aqui, a metodologia proposta para a
dimensão prática dessa pesquisa possui uma Parte 1 que se subdivide em três fases:

Parte 1
(i) audição-imitação (percepção)
(ii) transcrição-análise (análise)
(iii) reinterpretação (síntese)
32

Considerando que cada uma das cinco gravações escolhidas para serem estudadas
passaram por essas três fases, o conjunto desses ciclos, por sua vez, constitui a primeira fase
(percepção) de um ciclo análogo (Parte 2), porém, mais abrangente. Seu objetivo final
(síntese) é a proposta de projetos interpretativos inéditos, que reutilizam ou fazem referência
às marcas identitárias encontradas, classificadas e repertoriadas (análise), a partir do
emparelhamento desses projetos interpretativos estudados na Parte 1.

Parte 2
(i) Audição-imitação-análise- (percepção)
reinterpretação das cinco
gravações escolhidas (Parte 1)
(ii) Levantamento das marcas (análise)
identitárias
(iii) Projetos interpretativos (síntese)
inéditos

Extrapolando a relação direta com as gravações de Victor Assis Brasil e


assumindo o objetivo de demonstrar uma assimilação menos literal, mais profundamente
incorporada à própria prática musical e do saxofone, chegamos a uma Parte 3 da metodologia.
Abrangendo as duas partes anteriores e agrupando-as com referenciais musicais assimilados
de outras fontes, propusemos a construção de projetos interpretativos livres, isto é, que
trabalham com a totalidade de nosso repertório musical em uma síntese que desvirtua,
resignifica e concatena “elementos e processos de origem cruzada” (MANNIS, 2014, p. 219).

Parte 3
(i) Partes 1 e 2 (percepção)
(ii) Incorporação das marcas
identitárias de Victor Assis
Brasil ao nosso repertório geral (análise)
de referenciais musicais
conhecidos
(iii) Projetos interpretativos livres (síntese)
33

2.2. Apresentação dos resultados práticos

Levando em consideração a metodologia descrita e justificada acima, propusemos


três maneiras diferentes de apresentar os resultados dessa pesquisa em seu âmbito prático.
Cada uma delas se relaciona mais diretamente a uma parte da metodologia, propondo
maneiras diferentes de interação com as gravações de Victor Assis Brasil. A primeira delas é
o que chamamos de reinterpretação (Parte 1 da metodologia), e pode ser ouvida nas versões
do recital (ver ANEXO D) de “Feitiço da Vila”, “Minha Saudade”, “Dindi” e “O Cantador”.
Como segunda forma de relação propusemos, para canções que não foram gravadas por
Victor, projetos interpretativos inéditos, que buscam relação direta com as marcas identitárias
desse saxofonista carioca (Parte 2 da metodologia). Para esse caso, escolhemos “Saudosismo”
de Caetano Veloso e “Juízo Final” de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares. A terceira
materializa uma forma de relação mais remota com o referencial estudado, e se baseia na ideia
de condicionamento motor adquirido através dos processos de imitação e reinterpretação, e da
apropriação, transformação e ressignificação livres dos recursos de interpretação, detectados
nas gravações de Victor Assis Brasil por meio das análises (Parte 3 da metodologia). Nessa
categoria estão três músicas autorais intituladas “Composição #2”, “Preguiça” e “Chica de
Fafe”.

2.2.1. Reinterpretação

Como vimos, as propostas de reinterpretação se apresentam como resultado dos


processos de audição, imitação, transcrição e análise que compõem a primeira parte da
metodologia dessa pesquisa. O processo de audição-imitação, normalmente simultâneo ao de
transcrição, se materializa no que chamamos de reprodução literal, isto é, executar a
transcrição simultaneamente à gravação original, buscando reproduzir da maneira mais fiel
possível – sonoridade, articulação, agógica, respiração, etc. – a performance estudada. Essa
fase tem importância fundamental na aquisição de habilidades motoras ligadas à digitação,
embocadura e articulação, que são requisitos básicos para a assimilação, na prática, da
performance de referência. No entanto, como o apresentado no início deste capítulo, o
processo de audição-imitação de per si não é suficiente para a construção de uma
reinterpretação, sendo essa possível se acompanhada por um processo analítico da
performance de referência.
Após essa primeira parte da metodologia, levamos então a transcrição, as
habilidades motoras necessárias à sua execução e a compreensão do projeto interpretativo
34

para uma situação real de performance com outros músicos, para, assim, efetivamente
construir uma reinterpretação. Reproduzimos as mesmas escolhas de arranjo de Victor Assis
Brasil no que diz respeito à Forma, tonalidade e harmonia e fizemos uma única adaptação na
instrumentação – substituindo o piano pela guitarra elétrica19. A parte tocada pelos
instrumentos de acompanhamento (guitarra, baixo e bateria), apesar de não transcrita nota a
nota, seguiu a divisão de funções característica do jazz pós-1940 e do samba-jazz ouvidas nas
gravações analisadas.
Para a parte tocada pelo saxofone, inicialmente, propusemos executar a
transcrição – assim como o feito na reprodução literal – sobre o acompanhamento tocado
pelos outros músicos. Tal procedimento incluiu não só a reprodução das inflexões e variações
nas seções de exposição da melodia das canções, como a reprodução dos solos improvisados
também transcritos. Essa abordagem se mostrou parcialmente eficiente.
A análise da gravação de referência de “O Cantador” revelou um projeto
interpretativo estreitamente ligado ao material cancional bem como sugeriu um maior
planejamento do uso dos recursos interpretativos do que as outras gravações. Assim sendo,
representando um projeto interpretativo mais fechado, com menos indeterminação, a
transcrição se aproxima da ideia de partitura dentro do contexto da música de concerto20,
servindo de guia para a performance. Nessa situação, a proposta inicial de execução da
transcrição sobre o acompanhamento ao vivo apresentou resultados satisfatórios, isto é, foi
capaz de gerar uma releitura que transcende a imitação da gravação.
Nos casos de “Feitiço da Vila” (Faixa 1 do CD – ANEXO D), “Minha Saudade”
(Faixa 2) e “Dindi” (Faixa 5), essa proposta de reinterpretação, a partir da execução strictu
senso da transcrição, mostrou-se inadequada. Como demonstraram as análises, a performance
do saxofonista, nessas gravações, aponta para um número maior de escolhas tomadas durante
a interpretação, e que levam em conta, entre outras coisas, a interação improvisada dele com
os outros músicos. Além disso, as seções de solo improvisado do saxofonista demonstram
menor grau de relação com o material melódico de cada canção, sugerindo também um nível
menor de planejamento. Nesses casos, apoiados nas observações das análises, propusemos
maior maleabilidade para determinados parâmetros e seções, visando melhor fluência na
interação com os outros músicos e maior contundência em relação às proposições de cada

19
A apresentação dos resultados práticos desta pesquisa contou com a colaboração do Sem Pé Nem Quarteto,
fundado em 2010 no Instituto de Artes da UNICAMP, e formado por Gustavo Santos (guitarra), Francisco
Woiski (baixo elétrico), Dhieego Andrade (bateria) e pelo pesquisador deste trabalho (saxofone). Com o intuito
de aproveitar a coesão do grupo – essencial à execução do repertório estudado que envolve improvisação e
interação entre os instrumentistas – optamos pela substituição do piano pela guitarra.
20
Aqui nos referimos principalmente ao repertório da música de concerto até meados do séc. XX, quando as
partituras apresentavam menor grau de indeterminação ou de escolhas para o intérprete.
35

projeto interpretativo. Como exemplo, podemos citar em “Minha Saudade” a opção pela
manutenção dos procedimentos de variação da melodia – como acréscimo de notas repetidas e
o deslocamento de figuras rítmicas – porém, sem necessariamente aplicá-los nas mesmas
passagens. Em “Dindi”, o comportamento de constante interferência sobre os contornos da
melodia, através de acréscimo de notas ou de frases inteiras improvisadas (fills), também é
mantido, mas não imitado literalmente, já que fazemos uso de outras notas acrescentadas e de
novas frases improvisadas.
Ao mesmo tempo, ainda nesses casos em que a reinterpretação apresenta maior
maleabilidade em relação à gravação e à transcrição, características definidoras de cada
projeto interpretativo, como tonalidade, andamento e incidência recorrente de determinado
recurso idiomático sobre uma parte específica da melodia, continuam norteando a
performance. Em “Minha Saudade”, procuramos salientar as diferenças de articulação e de
textura rítmica entre exposição da melodia e solo improvisado. Já em “Feitiço da Vila”,
mantivemos ornamentações recorrentes em passagens específicas e o uso da blue note na
variação do sexto c. das seções A. No caso de “Dindi”, mantivemos o padrão “a tempo no A”
e “rubato no B” e os longos bends de chegada sobre partes específicas da melodia.
Resumindo, as reinterpretações propuseram a reutilização do arranjo e dos
recursos expressivos fundamentais para a caracterização do projeto interpretativo tido como
referência. Ao mesmo tempo, cada uma delas abordou sua respectiva transcrição de uma
maneira diferente, e utilizou quantidades e qualidades diferentes de indeterminação
(improvisação), conforme a pertinência desse recurso em relação ao projeto interpretativo em
questão. De forma esquemática, as principais abordagens foram:

Interpretação da melodia Seção de solo


Esquema 1 seguindo a transcrição seguindo a transcrição
Esquema 2 seguindo a transcrição improvisada
mesmos procedimentos de improvisada
Esquema 3 variação da melodia usados
de forma improvisada
36

2.2.2. Projeto interpretativo inédito

A segunda forma de apresentação prática dos resultados dessa pesquisa se


relaciona diretamente com a segunda parte da metodologia empregada, voltada para a
identificação das marcas identitárias de Victor Assis Brasil. A partir do emparelhamento das
cinco análises, listamos recursos interpretativos, tipos de relação com o material cancional e
escolhas de arranjo recorrentes em mais de uma gravação. Tendo em mãos esse repertório de
procedimentos e estratégias encontrados na produção do saxofonista, propusemos projetos
interpretativos para canções que não foram gravadas por ele. Importante notar que não nos
utilizamos desse conjunto de marcas identitárias como um “leito de Procusto”21,
generalizando escolhas interpretativas tomadas em relação a uma canção para outros
contextos. Na prática, partimos de uma mesma proposição que o referencial estudado –
interpretar no saxofone uma canção do repertório brasileiro – e, ao tomar as escolhas
interpretativas nesse contexto, voltamos a atenção para as relações identificadas nos projetos
interpretativos de Victor Assis Brasil, entre o material musical e os recursos interpretativos, e
desses entre si.
Tal proposta de interação com o referencial estudado se materializou nas
interpretações de “Saudosismo” (1969), de Caetano Veloso, e “Juízo Final” (1973), de Nelson
Cavaquinho e Élcio Soares.
A primeira foi escolhida por trabalhar com um repertório harmônico, melódico e
rítmico referenciado na Bossa Nova, característico também da produção de Victor Assis
Brasil ligada ao samba-jazz (sendo as gravações de “Minha Saudade” e “Só tinha de ser com
você” exemplos possíveis). Ao mesmo tempo, como o desenvolvido pela letra, a canção
apresenta esses elementos como anacrônicos, tanto no tempo objetivo (o ano de lançamento
da canção é posterior ao chamado período intenso da Bossa Nova), como no tempo subjetivo
do sujeito-enunciador que relembra com saudosismo a época em que ouvia “João [Gilberto]
girando na vitrola sem parar”. Essa característica de desajuste temporal, colocada dentro do
contexto deste trabalho, mostrou-se pertinente tanto em relação ao samba-jazz22, como em

21
Leito em que o personagem da mitologia grega Procusto torturava suas vítimas, fazendo com que se
adaptassem ao tamanho do móvel, cortando os pés dos indivíduos grandes e estirando os pequenos pelos pés. Em
sentido figurado, “leito de Procusto” sugere uma “interpretação artificiosa que visa encaixar à força um
princípio, uma afirmação num determinado sistema ou corrente de opinião”. (Dicionário HOUAISS, 2004, 1ª.
reimpressão. Vide verbete de leito).
22
O desajuste temporal, a que nos referimos em relação ao samba-jazz, baseia-se no fato de que esse repertório
continuou utilizando elementos musicais da Bossa Nova, durante as décadas de 1960 e 1970, em atrito com
novas referências que se integravam à música popular brasileira – como o rock, por exemplo (ver o item Samba-
jazz do Capítulo 1).
37

relação a nossa apropriação da produção de Victor Assis Brasil, décadas depois do último
disco gravado por ele.
Em termos musicais, o projeto interpretativo proposto para “Saudosismo” (Faixa
3) se estrutura conforme o paradigma tema-improviso-tema acrescido de introdução e coda
originais, que reaproveitam partes do material melódico e harmônico da canção. Essa
configuração pode ser ouvida em todas as gravações de Victor analisadas, sendo exceção
apenas “Só tinha de ser com você”, que não possui introdução. Durante a exposição e
reexposição da melodia da canção, procuramos utilizar estratégias de variação da melodia
como deslocamento rítmico, acréscimo de apojaturas e repetição de notas da própria melodia.
Tais recursos foram detectados nas análises de “Feitiço da Vila”, “Minha Saudade” e “Só
tinha de ser com você”, e sugerem uma intenção de não descaracterização da melodia.
Também, com referência nessas gravações, buscamos estabelecer abordagens diferentes entre
as seções de interpretação da melodia da canção e a seção de solo improvisado através de
alteração da textura rítmica, uso de padrões de articulação diferentes e aumento da tessitura.
Essa abordagem, como o desenvolvido nas análises, sugere um projeto interpretativo que se
divide entre o diálogo com os sentidos do núcleo melodia e letra e a execução instrumental,
ligada ao repertório jazzístico, que foca na fluência e inventividade do improvisador dentro
desse idioma.
A escolha por “Juízo Final” (Faixa 7) traça um paralelo com a escolha do
saxofonista estudado de acrescentar “Feitiço da Vila” em seu primeiro álbum, Desenhos
(1966). A música de Noel Rosa, além de ser a mais antiga do repertório, é a única que não se
liga diretamente com o repertório da Bossa Nova. Analogamente, com “Juízo Final”
buscamos expandir o referencial de canção brasileira abordado. O projeto interpretativo nesse
caso busca ligações mais diretas com as gravações de “Dindi” e “O Cantador”. Ainda que a
Forma mantenha o paradigma tema-improviso-tema, procuramos manter características da
melodia da canção – como tessitura, saltos intervalares marcantes e motivos rítmicos – na
seção de solo improvisado. Na interpretação da melodia, associamos bends de chegada e
apojaturas, não simultaneamente, aos saltos ascendentes de oitava presentes na seção A da
melodia. Em referência à gravação de “Dindi” analisada, aplicamos um andamento mais
desacelerado com o intuito de valorizar os prolongamentos vocálicos (notas longas) da
melodia e incentivar as variações agógicas, tanto no saxofone, como nos instrumentos de
acompanhamento.
38

2.2.3. Projeto interpretativo livre

Como última forma de resultado prático, propusemos uma interação menos direta
com o referencial estudado e analisado. Nos projetos interpretativos livres, ao mesmo tempo
em que incorporamos outras referências musicais, mantivemos estruturas e procedimentos
recorrentes na produção de Victor Assis Brasil, como, por exemplo, a presença de seções de
solo improvisado dentro de uma estrutura geral tema-improviso-tema. Com isso, buscamos
construir um contexto musical que possibilitasse a utilização, de maneira menos planejada,
das marcas identitárias assimiladas. Mais especificamente, entendemos que essa utilização se
deu de duas formas diferentes: através do condicionamento motor adquirido nos processos de
imitação e reinterpretação, e, portanto, um uso involuntário ou inconsciente das marcas
identitárias; e na adequação para outros contextos musicais e, consequente, ressignificação
dos recursos de interpretação detectados nas gravações de Victor Assis Brasil através das
análises.
As músicas, que deram suporte a esse experimento, foram “Composição #2”
(Faixa 4 do CD – ANEXO D), “Chica de Fafe” (Faixa 8) e “Preguiça” (Faixa 9), todas
autorais e concebidas desde o início como música instrumental.
39

3. Referências para as análises

As análises propostas nesse trabalho têm como objetivo geral estabelecer


possíveis relações de sentido entre a performance instrumental de Victor Assis Brasil e o
conteúdo das canções gravadas por ele. Mais especificamente, utilizamos a proposta de
“análise do comportamento vocal”, apresentada por Regina Machado, como modelo para o
estabelecimento de relações entre os significados contidos em uma canção e as escolhas do
intérprete que a realiza. No item que segue, Semiótica da Canção e Gesto Interpretativo,
apresentaremos as ferramentas de análise utilizadas por esse modelo, e no seguinte, Do Gesto
Vocal para o Instrumental, como elas foram adaptadas para o contexto da música
instrumental e do saxofone.

3.1. Semiótica da Canção e Gesto Interpretativo

Como o apontado por diversos autores (BARTHES, 1990; ZUMTHOR, 2005) a


voz, tanto nos aspectos físicos como nos simbólicos, carece de ferramentas capazes de
descrevê-la e compreendê-la em sua diversidade e profundidade. Dentro do contexto da
canção popular midiatizada, sua capacidade de combinar, simultaneamente, conteúdos
musicais e linguísticos acrescenta ainda a necessidade de compreensão da relação entre esses
discursos distintos, e deles com o entorno social e cultural que os cerca.
Entendendo o intérprete vocal como aquele que articula e realiza esse conjunto de
planos de expressão e conteúdo em um único discurso – a canção –, Regina Machado propõe
uma compreensão dos significados do canto com o intuito de contribuir para esse desvendar
da voz. Em sua tese de doutorado intitulada “Da intenção ao gesto interpretativo: análise
semiótica do canto popular brasileiro” (2012), a autora analisa o gesto vocal levando em conta
tanto a voz propriamente dita – que em si encerra um sistema semiótico, portador de sentido
nos planos de expressão e conteúdo (MACHADO, 2012, p. 43) –, como a sua relação com a
canção que realiza. Em ambos os casos, essa compreensão dos sentidos da voz condiciona e é
condicionada pela copreensão da própria canção, já que essa passa a existir enquanto
fenômeno audível através da atuação de um intérprete. Levando isso em consideração, essa
análise do gesto vocal propõe, mais especificamente, uma extensão da teoria Semiótica da
Canção na direção de abarcar também a relação entre intérprete e canção.
40

Apresentada e desenvolvida por Luiz Tatit, em uma série de trabalhos23, a


Semiótica da Canção apresenta um modelo de compreensão da canção popular brasileira, a
partir da análise de seu núcleo de identidade: o conjunto formado por melodia e letra. Da
combinação desses elementos, depreendemos o tempo e o espaço da enunciação, sobre os
quais se desenrola a relação entre o sujeito e o objeto, balizadora dos significados da canção.
Em termos estruturais mínimos, a interação entre melodia e letra, grosso modo,
estabelece-se a partir do alinhamento entre ataques rítmicos, representados no plano
linguístico pela presença de consoantes, e alturas e vogais responsáveis, no texto linguístico,
pelas durações. Nas palavras do próprio autor:

“O processo de estabilização melódica de uma canção prevê necessariamente a


imbricação dos ataques rítmicos (representados foneticamente pelas consoantes e
acentos vocálicos) com as durações de sonoridade propriamente dita (instaladas
foneticamente nas vogais), dando origem ao que chamamos de perfil rítmico-
melódico.” (TATIT, 2007, p. 45)

A existência desse perfil rítmico-melódico – como a própria dualidade do termo


sugere – depende da atuação de dois processos distintos: de um lado, os ataques rítmico-
consonantais garantem seu desenrolar no tempo; do outro, as vogais e seus prolongamentos
sugerem sua expansão vertical, delineando sua tessitura. Os dois processos, também
chamados respectivamente de concentração e expansão, em constante alternância e
concorrência, condicionam as diferentes possibilidades de integração entre melodia e letra. Ao
passo que a predominância da concentração sugere “a conjunção imediata dos motivos”24,
através da periodicidade dos acentos (ataques rítmico-consonantais); a expansão, quando em
posição de dominância, aponta para a “conjunção à distância, mediada por uma rota a ser
percorrida [tessitura]”25.
Fundamentados nesse encaixe mínimo entre elementos musicais e fonéticos, os
processos de concentração e expansão extrapolam a atuação local (nível intenso) e agem
também em nível global (nível extenso), articulando os planos de conteúdo e expressão da
canção na direção de uma mesma zona de sentido. A partir dessa confluência, temos a
definição de dois modelos de integração entre melodia e letra, a tematização e a
passionalização.
As canções tematizadas trabalham com a ideia geral de conjunção entre sujeito e
objeto, a partir da predominância do processo de concentração. Do ponto de vista musical,

23
Dentre os principais livros de Luiz Tatit que abordam o tema temos Semiótica da Canção: melodia e letra (1994), O
Cancionista (1995), O Século da Canção (2004) e Elos de Melodia e Letra (2008).
24
TATIT, Luiz. 2007, p. 45.
25
Idem.
41

temos uma tendência à redução da duração das notas – através da valorização dos ataques
consonantais, em detrimento dos prolongamentos vocálicos –, a aceleração do andamento e a
presença de procedimentos de reiteração de motivos. Na dimensão da letra, notamos a
presença das ideias de celebração, exaltação e de proximidade e semelhança entre sujeito e
objeto. Canções como “Águas de março”, “Aquarela do Brasil” e “O que é que a baiana tem”
são exemplos de integração entre melodia e letra que se identificam com esse modelo de
tematização.
Por sua vez, as canções passionalizadas lidam com a ideia geral de disjunção,
afastamento entre sujeito e objeto e apresentam, como característica predominante, os
procedimentos relacionados à expansão. De maneira geral, encontramos nessas canções a
valorização dos prolongamentos de notas/vocálicos e, consequentemente, uma maior atenção
ao desenvolvimento da melodia no campo da tessitura. No plano musical, ainda temos a
preferência por andamentos desacelerados, a presença mais frequente de grandes saltos
intervalares e uma tendência maior à variação dos motivos, do que a sua repetição imediata.
Na dimensão da letra, o caráter geral de afastamento entre sujeito e objeto se materializa nos
sentimentos de saudade e de dor ou ainda na forma de esforço no sentido da conjunção. Em
canções como “Eu e a brisa”, “Beatriz” e “Eu sei que vou te amar” encontramos exemplos
típicos de relação melodia-letra alinhados com o modelo de passionalização.
A teoria Semiótica da Canção apresenta ainda um terceiro regime de integração
entre melodia e letra, o figurativizado. Nesse caso, a interação entre melodia e letra se
encontra condicionada a comportamentos característicos da fala cotidiana. Além das
possibilidades de concentração e expansão dos contornos já presentes na fala – como as
entoações de afirmação, interrogação e de exclamação –, a predominância do regime
figurativizado gera ainda acentuações e durações melódicas, que negam as métricas musicais
mais convencionais ao respeitar o ritmo da fala. Machado (2012, p. 47) acrescenta ainda que,
quando valorizado pelo intérprete, esse regime de integração entre melodia e letra atribui
veracidade ao enunciador. Importante notar que, mesmo em canções, nas quais predominam a
tematização ou a passionalização, o regime figurativizado também está presente em maior ou
menor grau, já que a imbricação entre melodia e letra, como vimos, dá-se justamente na
sobreposição das leis musicais e de prosódia.26
Assim como o desenvolvido em relação às forças de concentração e expansão, a
atuação dos modelos de integração entre melodia e letra nunca se dá de maneira absoluta, mas
26
Marcio Luiz Gusmão Coelho, em sua tese de doutorado intitulada “O arranjo como elemento orgânico ligado à canção
popular brasileira: uma proposta de análise semiótica” (2007), leva adiante essa observação de presença constante da
figurativização e questiona a sua classificação como modelo de compatibilidade entre melodia e letra, já que, em uma
situação hipotética, na qual o único processo atuante fosse o de figurativização, a entoação permaneceria como fala e não se
tornaria melodia.
42

sim em termos de dominância e recessividade, ou seja, depende da coexistência – em forma


de alternância ou concorrência – entre mais de um dos regimes.

“[...] não há como conceber continuidade sem a presença, ainda que virtual, da
interrupção (basta pensarmos genericamente na apreensão que acompanha o
sentimento de felicidade em função do receio de perdê-la ou, inversamente, na
esperança que subjaz à felicidade, tornando-a suportável). Uma se justifica pela
outra.” (TATIT, 2007, p. 199, grifo nosso)

A percepção de um modelo hegemônico, que continua durante todo o discurso, só


é possível pela presença do diferente que, por oposição, evidencia as características do outro.
Em nível intenso, encontramos na concatenação de cada elemento musical e fonético a
alternância e atrito entre as forças de disjunção (expansão) e conjunção (concentração), sendo
o resultado desse embate a emergência de um regime de integração de melodia e letra
predominante. No nível extenso, temos a competição por hegemonia entre essas mesmas
forças de disjunção e conjunção, porém, agora atuando em longo prazo, como, por exemplo,
no encaminhamento da harmonia, na construção da forma, na estrutura narrativa adotada pela
letra e na relação do núcleo melodia-letra com elementos do arranjo.
Essa perspectiva da coexistência de forças distintas dentro do discurso cancional
expande a compreensão do objeto para a relação entre fazer emissivo e remissivo. O primeiro,
associado ao modelo de integração melodia-letra predominante, é aquele que trabalha no
sentido de anular a diferença, de evitar a atuação das forças e processos secundários. O
segundo materializa o anti-projeto da canção, interrompendo o fazer emissivo sempre que
possível, obrigando-o a se reafirmar e, consequentemente, mantendo vivo o discurso (TATIT,
2007, p. 200).
A dinâmica entre os fazeres emissivo e remissivo se manifesta, entre outras
maneiras, em formas específicas de interação entre melodia e letra, que materializam essa
atuação recíproca de dois modelos de integração (TATIT, 2008, p. 23-26). Para o caso de uma
canção em que a tematização predomina, podemos ainda assim encontrar traços de variação
na repetição de motivos (nível intenso) ou a presença de seções contrastantes na Forma (nível
extenso), que denotam a atuação secundária da passionalização. Por sua vez, em uma canção
alinhada com a passionalização, podemos também encontrar traços do regime tematizado em
recursos como o desenvolvimento gradual da tessitura, que ordena a expansão da melodia,
através da sugestão de motivos que são progressivamente reiterados e transpostos27.

27
A descrição e interpretação dessas formas combinadas de integração entre melodia e letra são melhor
desenvolvidas durante as análises.
43

A presença recíproca de mais de um modelo de integração entre melodia e letra


cria no campo da enunciação a possibilidade do intérprete de, a partir da realização da canção,
“elaborar o seu canto em função do efeito de sentido desejado” (MACHADO, 2012 p. 47-
48). Nessa perspectiva, a proposta de análise do gesto vocal aponta para duas possibilidades
de relação com a canção. De um lado, temos escolhas interpretativas que dão vazão ao fazer
emissivo e, consequentemente, valorizam o conjunto de sentidos selecionados pelo
compositor e construídos através do regime de integração melodia-letra predominante. No
outro, a atuação do intérprete aponta na direção de trazer à tona valores secundários (fazer
remissivo) ou até mesmo, em casos extremos, ressignificar os enunciados.
Dentro desta pesquisa, buscamos, a partir da análise dos projetos interpretativos
de Victor Assis Brasil, compreender como esse saxofonista – em posição semelhante à do
cantor – se relaciona com o núcleo de identidade das canções que gravou. Partindo da
identificação do regime de integração entre melodia e letra predominante, procuramos
observar, dentre as escolhas interpretativas do instrumentista, quais potencializam as
características desse regime e quais o ignoram ou descaracterizam.
Além disso, considerando que as gravações analisadas também incorporam
elementos de outros repertórios, como o jazz e o samba-jazz, delineamos como essas
influências são abordadas pelo saxofonista e apontamos semelhanças e diferenças entre essas
abordagens e as escolhas interpretativas relacionadas diretamente ao material cancional.
Nesse caso, as considerações giram em torno principalmente do grau de semelhança entre as
escolhas feitas pelo instrumentista improvisando e interpretando a melodia da canção.
A transposição do modelo de análise proposto por Machado para o contexto de
interpretações instrumentais exige algumas considerações a respeito da evidente ausência da
letra nas gravações de Victor Assis Brasil e, consequentemente, da pertinência dessa proposta.
Primeiramente, constatamos que na época das gravações, o repertório de canções
brasileiras escolhido pelo saxofonista era amplamente conhecido através de interpretações de
cantores consagrados como Aracy de Almeida, João Gilberto, Elis Regina, Dori Caymmi e
Sylvia Telles. Levando em consideração que a experiência musical não é um processo
estanque e que, naturalmente, o receptor associa aquilo que ouve a experiências musicais
anteriores, entendemos que a interpretação instrumental de uma canção pode, ainda que em
nível subliminar, sugerir sua letra ao reavivar a memória de outras interpretações cantadas.
Em reforço a essa ideia, acrescentamos o fato de que as interpretações de Victor Assis Brasil
dificilmente alteram as melodias a ponto de torná-las irreconhecíveis, o que favorece a
reconstrução do núcleo de identidade melodia-letra por parte do ouvinte. Sendo assim,
entendemos que a proposta de buscar relações entre o projeto interpretativo desse saxofonista
44

e os sentidos construídos pela melodia e pela letra é pertinente, ainda que essa última não seja
ouvida nas gravações. “Resgatada” pela ação do intérprete através de um tratamento
específico do material musical, a letra pode ser relembrada pelo ouvinte que conhece a canção
em gravações anteriores.
A segunda consideração a cerca da ausência da letra nas gravações instrumentais
está relacionada com a própria natureza da canção. Como apresentamos durante esse capítulo,
a existência da canção, segundo a proposta de Tatit, depende da interação entre a fala e as leis
musicais, ou resumidamente, da integração entre melodia e letra. Muito além da simples
sobreposição desses elementos, o trabalho do compositor de canção envolve a adequação –
por vezes deformação – do primeiro em prol da clareza do segundo ou vice-versa. A essa
relação atribuímos, por exemplo, o fato de que a letra de uma canção, separada de sua
melodia, não necessariamente apresente sentido ao ser entendida como texto escrito ou falado,
pois sua construção obedece também às leis musicais. Analogamente, ao ficarmos somente
com os elementos musicais de uma canção, não anulamos completamente a presença da letra,
já que a métrica, as entonações e os acentos associados a essa última contribuíram na
construção da melodia o dos outros elementos diretamente ligados a ela.
Outra consideração importante a respeito da ausência da letra se volta para o
próprio desenvolvimento das análises. No intuito de relacionar o projeto interpretativo com
os significados da canção, sempre emparelhamos as escolhas interpretativas do saxofonista
com o núcleo melodia-letra, nunca apenas com a letra. Dessa forma, as associações da
performance instrumental com as imagens e sentidos presentes na letra sempre são mediadas
pelo material musical, que é a parte da canção diretamente manipulada por Victor Assis
Brasil.
Retomando a apresentação do modelo de análise usado como referência, algumas
considerações ainda se fazem necessárias. Como dissemos acima, Machado (2012, p. 45)
propõe a descrição e análise do conjunto de escolhas interpretativas, que materializam a
interação do cantor com o material cancional. Esse conjunto de escolhas é o chamado gesto
vocal, e sua análise busca, mais especificamente, compreender os sentidos gerados pela
interpretação, em termos de concordância ou discordância, com os valores selecionados pelo
compositor da canção e inscritos em sua melodia e letra. Analogamente, propusemos delinear
o projeto interpretativo de Victor Assis Brasil e apontar relações de sentido entre ele e as
canções que foram gravadas. Dentro dessas análises, incluímos não apenas as seções em que o
saxofonista interpreta a melodia de cada canção, como também considerações sobre o arranjo,
os solos improvisados e a interação do saxofone com os outros instrumentos.
45

Buscaremos, agora, definir mais claramente os aspectos que compõem o gesto


vocal e quais os possíveis sentidos gerados a partir da interação com o material cancional.
A compreensão do comportamento vocal leva em consideração o que Machado
(2007; 2012) chamou de níveis da voz, sendo ao todo três deles: físico, técnico e
interpretativo. Nas palavras da autora, essa configuração da análise

“[...] trata a voz a partir de elementos naturais, passando pelo desenvolvimento das
competências físicas através da elaboração técnica, e chegando por fim, ao nível
interpretativo, que exige do cantor a elaboração intelectual e sensível”
(MACHADO, 2007, p. 53-54).

Essa estratificação do comportamento vocal obedece a um propósito analítico, já


que, no momento da performance, a atuação dos três níveis se dá de forma intensamente
imbricada. A compreensão de cada um dos níveis da voz, bem como de sua interação, permite
a construção de um panorama da performance do cantor, de como ele manipula características
particulares da sua voz com a intenção de gerar determinado efeito de sentido.
O nível físico contempla as características ligadas à fisiologia da voz, a sua
constituição física. Embora essas características existam independentemente do
desenvolvimento de qualquer técnica vocal, como veremos adiante, elas podem ser
manipuladas pela ação do intérprete. Os principais itens observados no nível físico são:

Extensão: todas as notas (alturas) alcançadas por uma voz, desde a mais
grave até a mais aguda.
Tessitura: recorte da extensão compreendendo apenas as notas que são
produzidas com menos esforço físico, de maneira confortável.
Registros vocais: são os diversos ajustes musculares que possibilitam o uso da voz
nas diferentes regiões de sua extensão. Os principais registros
vocais são: basal (extremo grave), modal (registro da fala e da
maior parte da tessitura) e elevado (extremo agudo).
Timbre: características físicas que particularizam determinada voz (ou
instrumento ou fonte sonora) e que normalmente estão
associadas com a presença maior ou menor de determinadas
parciais harmônicas.

O nível técnico está relacionado aos recursos que o cantor utiliza para manipular –
ora potencializando, ora controlando – as características particulares de sua voz (nível físico).
46

Por exemplo, com as variações de emissão – ajustes intencionais de musculatura e de região


de ressonância – o intérprete pode valorizar ou amenizar a presença de determinados
harmônicos e, consequentemente, alterar o timbre e a intensidade dinâmica de sua voz.
O nível interpretativo se volta para a compreensão das maneiras como o cantor
articula suas possibilidades físicas e recursos técnicos na construção da interpretação de uma
canção específica. A partir disso, esse nível de análise do comportamento vocal busca
esclarecer os sentidos gerados pela realização do intérprete e sua relação com os conteúdos da
própria canção. Mais especificamente, Machado (2007, p. 52-53) aponta dois campos de
atuação no nível interpretativo.
O timbre manipulado corresponde a alterações do timbre natural, através de
mudanças na emissão, da variação consciente de registro e do usa da técnica vocal. Essas
possibilidades de variação timbrística dentro de uma interpretação geram um efeito de
descontinuidade na escuta, que tanto pode atrair o ouvinte pela renovação de interesse, como
afastá-lo pelo excesso de informação ou pela monotonia gerada pela sua ausência. Dessa
maneira, o uso do timbre manipulado, por meio da combinação de informação e redundância,
pode favorecer a eficácia de uma interpretação em sua comunicação com o ouvinte.
Outro campo de atuação dentro do nível interpretativo é a articulação rítmica, ou
seja, a maneira como o intérprete relaciona o tempo da melodia com o tempo da letra. Mais
precisamente:

“[...] é a maneira como a voz articula os tempos do discurso musical associados ao


discurso linguístico; como constrói no plano da expressão, cada sílaba (ação local),
cada palavra (ação local ampliada) e, depois, cada frase (ação global) e cada período
(ação global ampliada), atuando na construção de uma significação no campo
extenso, mediante ações intensas” (MACHADO, 2012, p. 52).

Em nível silábico, a articulação rítmica interage diretamente com a relação entre


melodia e letra estabelecida pelo compositor da canção. Através do destaque dos ataques
rítmicos/consonantais, o intérprete favorece a percepção das forças de concentração presentes
em um regime tematizado ou ainda pode ressignificar um enunciado passionalizado,
atenuando os processos de expansão nele inscritos. Inversamente, através da valorização dos
prolongamentos de notas/vocálicos, o intérprete pode dar vazão à disforia de um núcleo
melodia-letra passional ou propor novos sentidos para uma canção concebida com valores
eufóricos.
A articulação rítmica se relaciona ainda com o andamento (velocidade da
pulsação) da interpretação. Em nível intenso, a escolha por um andamento acelerado ou
47

desacelerado, respectivamente, favorece a diminuição ou o aumento dos prolongamentos


vocálicos em termos absolutos, atuando diretamente sobre a recepção dos estados fóricos
(disforia e euforia). Ao mesmo tempo, essa mesma escolha de andamento afasta (expansão)
ou aproxima (concentração) as ocorrências de ataques consonantais, o que igualmente pode
ser usado pelo intérprete para condicionar a recepção dos estados fóricos.
Em nível extenso, a escolha do andamento atua sobre outros elementos da canção
como encaminhamento harmônico e o acompanhamento. Assim como no nível intenso, o uso
de andamentos acelerados favorece os processos de concentração associados à tematização,
ao passo que os desacelerados privilegiam os processos de expansão ligados à
passionalização. Mais precisamente, interpretações com andamento acelerado favorecem a
percepção da repetição de motivos e o alinhamento entre os acentos da melodia e do
acompanhamento. A ideia de identidade, gerada por esses processos de repetição e
coincidência de acentos, reforça o estado de proximidade entre sujeito e objeto, característico
das canções tematizadas. Por sua vez, andamentos desacelerados favorecem a percepção dos
trajetos melódicos pela tessitura, ao prolongar as vogais e distanciar a repetição dos motivos.
Essa valorização do percurso, e não da identidade imediata de motivos, reforça a ideia de
disjunção entre sujeito e objeto, ocorrência central nas canções passionalizadas.
Finalmente, com a descrição e análise dos três níveis da voz chegamos à definição
de gesto interpretativo. Através da manipulação das características físicas de sua voz, por
meio de técnicas formalizadas ou adquiridas intuitivamente, o cantor realiza a canção dando
vazão aos sentidos construídos pela relação melodia e letra, modificando esses sentidos ou
ainda acrescentando novos.

“O cantor equilibra ou desequilibra intencionalmente todos os componentes de


melodia e letra, traduzindo-os por meio da escolha da emissão, do timbre, da
articulação rítmica e da capacidade entoativa. Por esse gesto, que vai configurar a
qualidade emotiva, é que se manifestam os aspectos passionais ou temáticos da voz,
em sintonia com os valores inscritos na composição” (MACHADO, 2012, p. 54)

3.2. Do gesto vocal para o instrumental

A definição e análise dos projetos interpretativos de Victor Assis Brasil, tomando


como modelo o gesto vocal e, consequentemente, a descrição e análise dos três níveis da voz,
exige adaptações que levam em consideração as idiossincrasias do saxofone e a ausência da
letra. A seguir, definiremos os níveis físico, técnico e interpretativo do ponto de vista da
performance instrumental, tomando por base o saxofone.
48

3.2.1. Nível Físico e as características do saxofone

O primeiro nível da voz, descrito e analisado no delineamento do comportamento


vocal, é o chamado nível físico e inclui considerações a respeito da extensão, tessitura, timbre
e registros. Todos esses parâmetros são também facilmente observados no saxofone, com a
diferença de serem condicionados pela combinação entre características do instrumento em si
e características fisiológicas, e não apenas pelas últimas, como no caso da voz.
As particularidades do timbre do saxofone respondem principalmente a dois
fatores: o instrumento e a ação do instrumentista. O primeiro deles inclui uma relação
delicada entre o instrumento em si e as escolhas de boquilha e palheta. A ação do
instrumentista diz respeito à embocadura, ao posicionamento da cavidade bucal e à velocidade
e ao volume da coluna de ar. Todos esses aspectos se relacionam com características
fisiológicas do instrumentista (como tamanho da caixa torácica, por exemplo), que são
compensadas ou potencializadas pelas técnicas adquiridas ou desenvolvidas por ele.
A extensão dos saxofones possui um limite inferior fixo, delimitado pelo tamanho
do tubo do instrumento, e um limite superior variável, condicionado pela habilidade do
instrumentista. Por sua vez, a tessitura do instrumento, ou seja, o recorte de notas mais
utilizado dentro da extensão total, está normalmente relacionada com a regularidade do timbre
entre as notas e o maior controle da intensidade. No entanto, apesar de os métodos de
orquestração e arranjo fixarem a tessitura, tomando esses parâmetros como referência, ela
pode variar conforme o instrumentista e o gênero tocado. Dentro de repertórios com a
presença marcante da improvisação, notamos maior flexibilidade dos limites de tessitura do
saxofone28; em repertórios ligados à notação convencional, como nas big bands e orquestras,
a tessitura exigida apresenta menos variação e, no geral, respeita as limitações de regularidade
no timbre e capacidade de controle dinâmico; em peças de música contemporânea ou em
performances de improvisação livre, com frequência, a tessitura utilizada se aproxima da
extensão total do instrumento/instrumentista.
Como vimos, para utilizar toda a extensão da voz, o cantor se utiliza de diferentes
ajustes musculares, correspondentes aos diversos registros, que são acessados pelo controle de
ar e emissão. Analogamente, podemos dividir a extensão do saxofone em três partes que se

28
O saxofonista norte-americano James Cartes, por exemplo, demonstra uma predileção por utilizar o limite
superior de sua extensão durante os improvisos. Como exemplo oposto, podemos citar Paul Desmond, que
mantém a tessitura de seus solos dentro de um intervalo relativamente restrito e de execução confortável, indo do
médio grave ao agudo.
49

diferenciam pela maneira de produção sonora29: primeira, segunda e terceira oitavas (sendo
que a terceira também é conhecida como superagudo). Cada uma das partes apresenta
variações em relação ao timbre geral do instrumento, que podem ser amenizadas ou
ressaltadas pela ação do intérprete. Como desenvolveremos adiante, a mudança de registro ou
a opção por um registro específico (condicionada pela escolha da tonalidade) são recursos
fundamentais da atuação do intérprete no nível interpretativo.

3.2.2. Nível Técnico e os recursos idiomáticos

Dentro da análise do comportamento vocal, o nível técnico engloba a


compreensão dos recursos utilizados pelo cantor para manipular as características (nível
físico) de sua voz. Em outras palavras, é a identificação das técnicas vocais utilizadas na
interpretação, tenham sido elas aprendidas formalmente ou desenvolvidas intuitivamente.
Analogamente, ao analisarmos a performance de um saxofonista, podemos observar no nível
técnico da interpretação uma série de recursos utilizados por ele para alterar o timbre, os
modos de ataque e finalização de cada nota (articulação), e explorar outras características
particulares do saxofone como sua anatomia e mecânica (apojaturas). A esse conjunto de
técnicas e estratégias utilizado pelo intérprete damos o nome de recursos idiomáticos.
Como apresentamos no Capítulo 2 – Considerações sobre a prática, esses
recursos de interpretação podem ser adquiridos através da audição e imitação da performance
de outros instrumentistas e, consequentemente, estão associados a repertórios específicos.
Sendo assim, a sua identificação, além de ser fundamental na definição e análise do projeto
interpretativo, permite-nos observar como o instrumentista estudado lida com as diversas
influências musicais presentes em sua produção.

3.2.2.1. Recursos de alteração do timbre

Em relação à alteração do timbre, podem ser ouvidos com mais frequência dois
tipos diferentes nas gravações de Victor Assis Brasil: o bend e a combinação entre elevação
da língua e aumento da pressão da coluna de ar.
O bend corresponde a uma rápida variação do timbre combinada com uma
oscilação na afinação da nota. Sua produção depende da variação da pressão do lábio inferior

29
Considerando como foco deste trabalho os sentidos gerados através da utilização dos diferentes registros, não
temos a pretensão de nos aprofundar nas questões físicas e acústicas relacionadas à produção sonora em cada um
desses registros. Para mais informações a esse respeito, consultar, por exemplo: INGHAM, Richard (org). The
Cambridge Companion to the saxophone. Nova York: Cambridge University Press, 2009.
50

sobre a palheta. Esse recurso idiomático pode ser ouvido em todas as interpretações
analisadas, sendo que suas ocorrências podem ser dividias em três tipos diferentes:

Bend de chegada – início da nota abaixo de sua afinação (lábio inferior mais
relaxado que o usual), gradualmente se chega à afinação correta da nota
aumentando a pressão do lábio inferior.

Bend de repetição – início da nota afinado, variação de afinação para baixo


(relaxamento do lábio) e retorno para a afinação inicial.

Bend de queda – chamado na literatura norte-americana de short gliss down


(LAWN apud LINHARES, 2007, p. 32), corresponde a uma queda de afinação
no final de uma nota.

A combinação entre elevação da língua e aumento da pressão da coluna de ar


torna o timbre mais metálico, com maior presença de harmônicos agudos. Tal recurso é
utilizado, no geral, de forma sutil (com pouca intensidade) na produção de Victor Assis
Brasil, mas assume papel de destaque na interpretação de “Dindi”.

3.2.2.2. Articulação

No contexto dos instrumentos de sopro, o termo articulação se refere a de que


maneira a produção de som começa e como ela termina, esteja esse som isolado ou no meio
de uma frase. Apesar de muitas vezes as diversas possibilidades de articulação serem
resumidas à presença ou não do ataque de língua na palheta, elas levam em consideração,
além disso, a sincronia ou independência entre coluna de ar e digitação das chaves do
instrumento30. A seguir, descrevemos as principais articulações encontradas nas gravações de
Victor Assis Brasil analisadas:

30
Para a descrição detalhada de todas as possibilidades combinatórias entre ataque de língua, coluna de ar e
digitação, consultar: KORSH, Kyle. The mechanics of the saxophone. In: The Cambridge Companion to the
saxophone. Nova York: Cambridge University Press, 2009. p. 85.
51

Tenuto: coluna de ar constante, digitação e ataques de língua simultâneos. Nas


transcrições deste trabalho, notas sem marcação de articulação foram tocadas
em tenuto.

Staccato: digitação e ataques de língua simultâneos, coluna de ar interrompida


antes do final da nota. Articulação representada por um ponto sobre a nota
tocada em staccato.

Legato: coluna de ar constante, ataque de língua e digitação independentes.


Também nos referimos a essa articulação pelo termo “notas ligadas”.
Articulação representada por um arco sobre as notas em questão.

Na música popular, as partituras, quando utilizadas, dificilmente contêm


indicações de como cada nota deve ser articulada. Ainda que materiais melódicos específicos
possam sugerir determinados padrões de articulação, a escolha por quais utilizar fica a cargo
do instrumentista. Considerando que podemos identificar a qual repertório cada padrão faz
referência e que o intérprete pode utilizar esse padrão também em outros repertórios, a análise
de seu comportamento em relação à articulação aponta para as diversas influências musicais
presentes em sua produção. Mais do que isso, podemos entender o intérprete como um
mediador do contato entre esses repertórios, e a sua performance como campo no qual se
estabelece esse atrito.

3.2.2.3. Apojaturas

O termo apojatura pode ser usado com dois significados diferentes. O primeiro
está relacionado à teoria do contraponto e diz respeito a notas de dissonância posicionadas em
tempo forte e que, eventualmente, apresentam uma resolução em uma nota consonante
(ALMADA, 2000). O segundo significado, que adotaremos neste trabalho, é usado por
métodos de instrumento e de leitura de partituras31 e se refere a notas de duração muito curta,
que precedem outras notas mais importantes da melodia. Normalmente, são grafadas em
tamanho menor que as outras notas e sua duração não é somada na contagem de tempos de
um compasso.

31
Esse mesmo uso do termo apojatura também foi encontrado em trabalhos acadêmicos voltados para as
Práticas Interpretativas. Entre eles O estilo interpretativo de Jacob do Bandolim (CORTES, 2006) e Manezinho
da flauta no choro – uma contribuição para o estudo da flauta brasileira (GORITZKI, 2004).
52

No caso da música popular, em que o uso desse tipo de recurso não é fixado pela
partitura e, consequentemente, fica a cargo do instrumentista, notamos que as apojaturas
acontecem com mais frequência sobre determinadas partes da extensão do instrumento. Mais
especificamente no saxofone, as posições das chaves combinadas com os movimentos de
digitação tornam a presença de apojaturas entre determinadas notas mais natural ou até
mesmo involuntária. Essa facilidade na produção de certas apojaturas acaba transformando-as
em um recurso capaz de particularizar a performance dos saxofonistas: de um lado, temos os
que deliberadamente as evitam, e de outro, aqueles que as utilizam voluntária ou
involuntariamente. No caso de Victor Assis Brasil, notamos o uso constante das apojaturas,
tanto em posições de fácil execução, como em outras menos confortáveis, justificando assim a
importância de sua identificação para a compreensão do projeto interpretativo desse
saxofonista. Combinadas a outros recursos idiomáticos, podem valorizar ou alterar
determinadas passagens e, assim, contribuir na compreensão de como esse saxofonista se
relaciona com o núcleo de sentido da canção.

3.2.3. Nível Interpretativo

A última instância de análise do comportamento vocal é o chamado nível


interpretativo, que procura compreender os sentidos gerados pela interpretação e sua relação
com valores contidos no núcleo melodia-letra da canção. O resultado desse procedimento é a
delimitação, ainda que parcial, do gesto vocal. Como fizemos com os níveis físico e técnico,
buscaremos agora estabelecer paralelos entre essa análise do nível interpretativo e as
particularidades do saxofone, construindo assim ferramentas para a compreensão dos projetos
interpretativos de Victor Assis Brasil.

3.2.3.1 Timbre manipulado

Através da combinação de escolhas interpretativas, o saxofonista seleciona


timbres específicos de determinadas regiões do instrumento para tocar uma melodia, ou até
mesmo pode alterar o timbre, durante momentos pontuais da melodia e, assim, criar
descontinuidades no decurso melódico. Duas dessas escolhas são particularmente importantes,
pois precisam ser tomadas antes da performance: a tonalidade e o registro.
A escolha de tonalidade define qual intervalo da extensão do instrumento a
melodia da música irá ocupar. Entendemos que essa escolha pode gerar dois tipos de
acomodação. Na primeira, as partes mais graves ou agudas da melodia atingem os limites da
53

extensão do instrumento. Nesse caso, a escolha de tonalidade favorece o aparecimento de


outras características do timbre do instrumento, que podem ser acompanhadas ou não pelo
acúmulo de tensão gerado pela dificuldade de execução nessas regiões. Essas
descontinuidades do timbre podem se alinhar, dentro de uma canção passional, com o
processo de expansão que favorece a não-repetição no intuito de evidenciar a distância e as
diferenças entre sujeito e objeto.
A outra acomodação da melodia na extensão do instrumento apresenta as
características inversas. Nesses casos, a escolha de tonalidade seleciona um intervalo da
extensão do instrumento que coincide com sua tessitura, isto é, com as regiões em que a
execução é confortável, facilmente controlada. Como resultado, temos um timbre que tende a
homogeneidade e sugere relaxamento. Por sua vez, essas características podem alinhar a
interpretação, dentro de uma canção tematizada, com o processo de concentração ocupado em
valorizar as recorrências e a conjunção entre sujeito e objeto.
Em alguns casos, mesmo com a tonalidade fixada, o saxofonista ainda pode optar
entre um dos três registros do instrumento (primeira oitava, segunda oitava ou superagudo)
para acomodar a melodia. Dentro do recorte analisado neste trabalho, notamos em “Só tinha
de ser com você” que Victor Assis Brasil escolhe apresentar a melodia na segunda oitava,
mesmo sendo possível e mais confortável fazê-lo na primeira oitava. Combinada com a
escolha de tonalidade, essa opção torna o timbre cada vez mais brilhante, conforme a melodia
ascende na tessitura, praticamente atingindo o limite desse registro da segunda oitava.
A identificação e compreensão de como se articulam certos recursos idiomáticos
também podem apontar para as ligações entre o projeto interpretativo do saxofonista e o
núcleo de sentido da canção. Como veremos nas análises de “Só tinha de ser com você”,
“Dindi” e “O Cantador”, a maneira como Victor utiliza os bends de chegada e as apojaturas
demonstra sua atenção com particularidades da melodia de cada canção. Nos três casos, esses
recursos idiomáticos recorrem sobre saltos intervalares ascendentes característicos de cada
melodia. O efeito de atraso ou dificuldade gerado por eles chama a atenção para esses saltos
que, por sua vez, materializam o processo de expansão característico de canções passionais.
No caso de instrumentistas que tocam mais de um tipo de saxofone, as
possibilidades de manipulação do timbre também englobam a escolha do instrumento. Cada
membro da família de saxofones – soprano, alto, tenor e barítono – possuem extensões,
tessituras e características timbrísticas diferentes, que alteram a interação do instrumentista
com a música que executa, consequentemente, alterando os sentidos gerados pela
interpretação. Como exemplo, temos a escolha de Victor Assis Brasil pelo saxofone soprano
na gravação de “Dindi”. Com uma tessitura mais aguda que a dos outros saxofones, o soprano
54

permite que as partes mais altas da melodia alcancem notas distantes da região da fala,
acumulando tensão a essas passagens e chamando a atenção para o trajeto sugerido por ela.
Dessa maneira, juntamente com outros recursos idiomáticos e escolhas de arranjo, o
saxofonista constrói seu projeto interpretativo em profunda concordância com os valores
passionalizados da canção.

3.2.3.2. Articulação rítmica

A imbricação entre o tempo da melodia e o tempo da letra (do texto) é o que


Machado chamou de articulação rítmica. Na prática, corresponde a como o cantor manipula
os ataques consonantais/rítmicos e prolongamentos vocálicos e, consequentemente, como ele
valoriza ou ameniza os processos de expansão e concentração inscritos no núcleo melodia-
letra. No contexto do saxofone, a análise da articulação rítmica, ainda que perca a dimensão
fonética, busca apontar o nível de comprometimento da interpretação com o projeto original
da canção, através da observação de como a rítmica da melodia (durações e acentuações) é
abordada.
Em paralelo ao que seria o nível silábico da articulação rítmica de um cantor,
podemos apontar dois recursos interpretativos, usados por Victor Assis Brasil, para lidar com
os elementos estruturais da melodia de cada canção (notas, motivo, frases): as variações
rítmicas e a articulação.
As variações rítmicas da melodia compreendem um conjunto de estratégias e
procedimentos característicos, normalmente associados a um repertório específico. Com isso,
queremos dizer que uma estratégia de variação recorrente em determinado contexto pode não
funcionar ou ser bem aceita em outros. No caso de nosso objeto de estudo, ouvimos com
frequência a omissão, repetição ou prolongamento de notas e a antecipação ou atraso de frases
inteiras ou de suas partes. A observação de como o saxofonista utiliza a omissão e a repetição
de notas pode apontar para uma preocupação em manter o número de notas igual ao número
de sílabas contidas nas letras, ou para o abandono dessa relação e o consequente tratamento da
melodia como material puramente musical. Os outros recursos, também usados por cantores,
já foram comentados durante a apresentação do modelo de análise do comportamento vocal.
A articulação, como apresentado no item Nível técnico e recursos idiomáticos,
define como um instrumentista de sopro inicia e termina a nota em termos de coluna de ar,
ataque de língua e digitação. Sua atuação, semelhante às possibilidades do cantor de valorizar
os ataques consonantais ou os prolongamentos vocálicos, pode ressaltar um motivo rítmico
com a maior incidência e intensidade de tenutos e stacatos, ou valorizar os contornos da
55

melodia dando preferência ao uso de sequências em legato. Tendo em mãos essas


possibilidades, o saxofonista pode favorecer o processo de concentração ou de expansão de
uma melodia de forma análoga ao cantor no plano da articulação rítmica.
As alterações de andamento, sejam de abrangência local (agógica) ou global
(andamento da gravação), produzem efeitos de sentido semelhantes tanto no contexto do gesto
vocal, como do projeto interpretativo. Andamentos acelerados aproximam as recorrências
melódicas e favorecem o processo de concentração, ao passo que os desacelerados estendem o
trajeto melódico, aumentam os prolongamentos (notas longas) e, consequentemente,
favorecem o processo de expansão.

3.3. Estrutura geral das análises

Tendo em vista as considerações registradas nesse capítulo e a adaptação do


modelo proposto por Machado para a compreensão do gesto vocal, estruturamos as análises
dos projetos interpretativos de Victor Assis Brasil em seis partes:

Introdução – breve contextualização da canção de referência e disposição de sua


gravação na discografia do saxofonista.

Melodia e Letra – análise semiótica da canção; identificação dos regimes,


principal e secundário, de integração entre melodia e letra; levantamento de perfis
melódicos característicos e eventuais considerações sobre gravações anteriores às
de Victor.

Protocolo – identificação e análise das escolhas interpretativas, realizadas pelo


saxofonista anteriormente à performance em si. Dentre elas, temos aquelas ligadas
diretamente à interpretação do saxofonista – qual o instrumento, tonalidade e
andamento utilizados – e outras relacionadas a aspectos mais gerais da gravação,
como a instrumentação e a estrutura Formal.

Recursos Idiomáticos – identificação e análise dos recursos idiomáticos (nível


técnico) encontrados na gravação e de como eles interagem com os sentidos da
melodia e da letra (nível interpretativo).
56

Considerações Sobre o Improviso – no caso de a gravação estudada apresentar


uma seção com solo improvisado, buscamos apontar o uso de recursos
idiomáticos, de variações da melodia e de formas específicas de desenvolvimento
motívico, que possam associar a performance nessa seção com as escolhas
interpretativas da exposição e reexposição da melodia.

Variações e Recorrências – Nível intenso: identificação de como são e de que


forma acontecem as variações melódicas dentro do projeto interpretativo do
saxofonista. A frequência e a localização das variações, bem como a maneira
como alteram o contorno melódico, são levantadas no intuito de identificar
padrões interpretativos que, por sua vez, também possam ser relacionados aos
significados da canção. Nível extenso: busca por semelhanças e diferenças entre
introdução, exposição e reexposição da melodia, seções de solo improvisado e
coda, no intuito de constatar o nível de planejamento do projeto interpretativo em
questão.
57

4. Análises32

4.1. “Minha Saudade”

Introdução

Composta em parceria por João Donato e João Gilberto em 1958, “Minha


Saudade”, apesar de concebida com letra, rapidamente se torna favorita dos grupos
instrumentais, que seriam posteriormente classificados como representantes do samba-jazz.
Sua concisão melódica e estrutura harmônica compatíveis com a Forma standard dos temas
de jazz, provavelmente, contribuíram para o fato de a maioria de suas gravações ouvidas
como referência para esse trabalho ser instrumental.
Acreditamos que, não por coincidência, a interpretação de Victor Assis Brasil para
essa música se encontra em seu primeiro disco Desenhos (1966), aquele com o repertório e
sonoridade mais alinhados com a prática do samba-jazz. A presente análise se propõe a
entender como o saxofonista articula os procedimentos recorrentes a essa prática, no caso
específico de “Minha Saudade”, bem como busca elementos que particularizem ou alinhem
essa interpretação com relação às outras versões instrumentais de canção, analisadas neste
trabalho.

Melodia e Letra33

Como sugere o título da canção, o plano de conteúdo (letra) de “Minha Saudade”


trabalha, desde seu início, com um sujeito presente no enunciado e com a ideia de
distanciamento entre esse sujeito e o objeto. No entanto, como buscaremos demonstrar logo
adiante, a importância da saudade em si sobrepõe-se ao desejo de uma futura conjunção –
usual para essa conjuntura de passionalização – e a relação do sujeito com “sua saudade” se
torna elemento independente dentro da narrativa estabelecida pelo enunciador. Já na primeira
estrofe, essa oposição assimétrica entre o sentimento de saudade deixado pela ausência da
relação amorosa e a busca pela pessoa amada se encontra materializada de duas maneiras.
A primeira é a construção do discurso em forma de ciclo fechado, em que a
saudade é, ao mesmo tempo, começo e fim, motivação e conclusão do discurso, ficando o

32
Durante todas as quatro análises que seguem, as indicações de compasso (c. ou cc.) se referem às transcrições
das gravações de Victor Assis Brasil que podem ser consultadas em versão integral no ANEXO A.
33
A letra e a melodia de “Minha Saudade” se encontram em versão integral nos anexos B1 e C1.
58

objeto, cuja ausência gera a saudade, apenas como elemento intermediário desse ciclo. No
primeiro verso, o sujeito propõe a descrição de seu sentimento (“Minha saudade é”) através da
qual ele evoca a pessoa amada (“saudade de você”). No segundo verso, se aproveita da
presença do objeto dentro do discurso para culpá-lo pela saudade que sente (“[você] que não
quis levar de mim / a saudade de você”) e, assim, trilhar o caminho contrário do primeiro
verso e chegar novamente na “[Minha saudade é] a saudade de você”, fechando a
configuração cíclica presente no texto. A segunda materialização da ideia de oposição entre
saudade e objeto de desejo está na forma como o sujeito se refere ao último, a pessoa amada.
Todas as vezes que o sujeito evoca a figura da pessoa amada diretamente através do pronome
de tratamento “você”, esse aparece de forma subordinada à saudade (“A saudade de você”).
Fora desses casos, a presença da pessoa amada no discurso fica em segundo plano,
subentendida nas conjugações verbais (“Que não quis levar de mim”) e no uso do pronome
possessivo teu (“A viver sem teu amor”).
Analisando a segunda e a terceira estrofes notamos que os dois procedimentos
identificados na primeira são, na verdade, uma manifestação em nível intenso do projeto
extenso da canção, sendo esse a manutenção de um tênue equilíbrio entre a celebração gerada
pela superação do desenlace amoroso (discurso remissivo) e a relação do sujeito com a
saudade (discurso emissivo). A segunda estrofe – fortemente ligada à primeira, através da
repetição de material musical e de uma relação causal presente na letra – confirma tanto o
desenlace (“tão cedo me esqueceu”) como a presença marcante da saudade (“mas eu tenho até
hoje a saudade de você”), ambos sugeridos pela primeira estrofe. Na terceira estrofe,
permanecem os dois elementos principais – saudade e desenlace amoroso – porém, agora em
relação de oposição mais claramente estabelecida: o desenlace é dado como superado (“Eu já
me acostumei a viver sem teu amor”), ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, a
saudade permanece e, assim, confirma a sua existência autônoma, independente da distância
do objeto de desejo ou do desenlace amoroso.
Em uma visão geral, a melodia de “Minha Saudade” se divide em duas seções
distintas – que chamaremos de A e B – e que se acoplam à letra como indicado no esquema
abaixo:

1ª. Estrofe – A
2ª. Estrofe – A
3ª. Estrofe – B
59

Na dimensão do ritmo, notamos a presença marcante de dois motivos reiterados


constantemente e que são construídos basicamente a partir da síncope característica
(semicolcheia-colcheia-semicolcheia). Na seção A, a melodia é construída sobre o motivo
representado na Figura 2. Após o impulso introdutório de uma anacruse, a seção se desenrola
sobre a repetição praticamente literal – em termos rítmicos – desse motivo. Na melodia de B,
um segundo motivo rítmico (Figura 2) é introduzido e sua repetição com pequenas variações
ocupa toda essa seção. Sob a visão da Semiótica da Canção, e sua proposta de associação
entre o plano de conteúdo e o plano de expressão, respectivamente, letra e melodia, podemos
entender que essa construção melódica baseada na repetição de motivos rítmicos materializa,
na melodia, o discurso remissivo de tematização, presente na letra e centrado na ideia de
superação do desenlace amoroso.

Figura 2 – Motivos rítmicos característicos das seções A e B de “Minha Saudade”.

Essa característica de repetição de motivos rítmicos em “Minha Saudade” é


constantemente reforçada na maioria das interpretações anteriores às de Victor Assis Brasil34.
Ouvimos em todas essas gravações a reiteração sistemática da pulsação, através do
alinhamento de todas as camadas do acompanhamento com uma mesma subdivisão mínima
de semicolcheias. Tal procedimento valoriza a ideia de ciclo gerada pela pulsação constante,
que, por sua vez, favorece a percepção das repetições também cíclicas (tematizadas) na
dimensão rítmica da melodia (TATIT, 2007, p. 45-46). Tudo isso ainda é reforçado pela
opção comum por andamentos acelerados, que aproximam as repetições em termos absolutos
– tanto da melodia, como do acompanhamento – tornando-as mais evidentes.

34
Dance conosco (1958), João Donato e Seu Trio (1962), Tamba Trio 1962 (1962), Cannoball’s Bossa Nova
with Bossa Rio (1963), Apresentando Rosinha de Valença (1964), Bud Shank, Donato, Rosinha de Valença
(1965).
60

No entanto, ao analisarmos o desenvolvimento das alturas na melodia de “Minha


Saudade”, notamos que, apesar de no plano rítmico predominar a repetição de pequenos
motivos, estes estão associados a uma expansão discreta, porém, constante da tessitura. Na
melodia de A, cada repetição de seu motivo rítmico característico expande a tessitura em dois
semitons para baixo (Figura 3). Em B, a cada repetição de seu motivo, as alturas são
transpostas uma segunda diatônica para baixo35 (Figura 4). A associação entre repetição de
motivos rítmicos e a expansão da tessitura – ou expansão gradual da melodia pela tessitura –
é característica de canções predominantemente passionais (fazer emissivo), porém, com traços
marcantes de tematização (fazer remissivo), (TATIT; LOPES, 2008, p. 25). Enquanto a
expansão vertical materializa o trajeto percorrido pelo sujeito em busca do objeto, a coesão
gerada pela repetição motívica subentende um controle, em maior ou menor grau, desse
trajeto por parte do sujeito. No caso específico de “Minha Saudade”, ainda que exista a
distância materializada pelo desenrolar melódico sobre a tessitura, ela está totalmente sob
controle, com os motivos rítmicos e melódicos garantindo a manutenção da direcionalidade
estabelecida, sugerindo que a distância entre sujeito e objeto pode ser transposta sempre que o
primeiro quiser.

Figura 3 – Melodia da seção A de “Minha Saudade”.

35
Por “transpor uma segunda diatônica para baixo” entendemos uma transposição que varia entre segunda maior
ou menor dependendo do contexto harmônico sobre o qual a transposição se aplica.
61

Figura 4 – Melodia da seção B de “Minha Saudade”.

De forma semelhante ao analisado na construção da letra, na qual a oposição entre


“separação amorosa superada” e “saudade permanente” extrapola a atuação local e ocupa toda
a letra, a aproximação entre passionalização e tematização presente no procedimento de
expansão gradual da melodia pela tessitura também se torna projeto global na construção da
melodia. No entanto, simplesmente apontar a aproximação de procedimentos opostos
(elementos emissivos e remissivos) não é suficiente para particularizar a canção – já que a
dinâmica de um discurso depende, de maneira geral, justamente da alternância desses
elementos – se fazendo necessário, então, o detalhamento de como se articulam esses opostos.
Em “Minha Saudade” a tessitura total de doze semitons é especialmente pequena
em relação ao que se espera de uma canção, cujo regime de integração melodia-letra
predominante seja a passionalização. Essa tessitura, rapidamente, apresenta-se na sua
totalidade logo no início da melodia de A, com o gesto ascendente da anacruse e o início do
motivo característico dessa seção (vide Figura 3). O que segue é uma gradação que se alonga
no tempo, ao percorrer o caminho inverso da ascendência inicial para chegar novamente à
nota mais grave da tessitura. Nesse processo de gradação, se os saltos intervalares de quarta e
quinta não propõem mudanças bruscas na trajetória, essa ocorre de forma sutil no
encaminhamento harmônico quando as alterações da dominante (nona menor e décima
terceira menor), logo antes do retorno ao centro tonal, sugerem uma alteração, logo frustrada,
de campo harmônico maior para o homônimo menor (ver, como exemplo, c. 15 da
transcrição). De forma geral, o que vemos na melodia de A é o estabelecimento de uma
trajetória que, gradualmente, ocupa a tessitura (passionalização), porém, o faz de forma
controlada pelo procedimento de desenvolvimento gradual.
Logo em seguida, esse mesmo trajeto é reiterado com a apresentação da segunda
estrofe e a repetição da melodia A. Todas as relações entre fazer emissivo e remissivo
62

descritas acima se mantêm até o momento de resolução melódica dessa seção, em que o
retorno à nota mais grave da tessitura é substituído por um salto cadencial de quarta
ascendente em direção à tônica (cc. 23-24 da transcrição). Tal evento interrompe o fazer
emissivo – parada36 – e prepara a colocação de novas relações, que serão introduzidas pela
seção B. Na nova seção, os intervalos de quarta e quinta justas – característicos da seção A –
são suprimidos e a melodia se restringe a saltos de segundas e terças. Além disso, apesar de a
ideia de gradação descendente e a extensão da tessitura continuarem as mesmas, o
encadeamento harmônico propõe um “desvio de rota” em relação ao centro tonal. Essa
oposição gerada no plano de expressão entre concentração (reiteração de procedimentos
anteriores) e expansão (distanciamento do centro tonal) materializa a oposição, também
estabelecida no plano de conteúdo. No início da terceira estrofe, notamos uma parada dentro
do discurso do sujeito, que revela sua relação atual com o objeto (“Eu já me acostumei/ a
viver sem teu amor”), pela primeira vez, desvinculada do sentimento de saudade. No final da
terceira estrofe, a parada-da-parada reestabelece esse vínculo recolocando a saudade como
centro do discurso. Simultaneamente, o trajeto harmônico, que acompanhou a breve mudança
de foco do discurso, também retorna ao centro tonal e prepara a volta, na melodia e na letra,
do fazer emissivo predominante na seção A.
Resumindo, a canção se organiza em: estrofes 1 e 2, melodia A – construção do
contexto de desenlace amoroso, com foco sobre a saudade instalada no sujeito pelo objeto; e
estrofe 3, melodia B – superação do desenlace amoroso, porém, com a saudade ainda
presente. Vemos, então, o sujeito lidando com a coexistência entre a euforia do desenlace
superado e a disforia da saudade, que assume caráter de condição permanente. Essa
construção que aproxima opostos se materializa na canção pela presença dos elementos
remissivos, não apenas em alternância com os emissivos, mas, também, em concomitância
com eles, expresso, por exemplo, no procedimento de desenvolvimento gradual da melodia
pela tessitura.
A partir do que foi levantado em relação à canção, e ignorando os riscos do
processo de dedução aplicados a um fenômeno cuja recepção é essencialmente subjetiva,
podemos alocar a canção “Minha Saudade” em um modelo de integração melodia-letra,
predominantemente, passional com atuação recessiva da tematização. Ainda que as ideias de
trajeto e busca sejam centrais, elas sofrem uma mudança de foco tão intensa quanto peculiar:
inicialmente associadas à distância entre sujeito e objeto, acabam revelando-se, na realidade,

36
Ver Cap. 3, item Semiótica da Canção e Gesto Vocal.
63

como parte de um processo de autodescoberta do sujeito, que toma consciência do sentimento


de saudade enquanto uma condição.

Protocolo

Como o apresentado no Cap. 1, o disco Desenhos (1966) – do qual foi extraído a


gravação de “Minha Saudade” – apresenta forte influência do contexto do Beco das Garrafas
e do repertório ali praticado e, posteriormente, chamado de samba-jazz. Dentre os elementos,
que apontam para esse alinhamento, estão a própria presença de “Minha Saudade” – música
recorrente nas gravações de samba-jazz anteriores a 1966 – e um número maior de
semelhanças que de diferenças em relação a essas interpretações anteriores.
A interpretação de Victor Assis Brasil apresenta um andamento médio-acelerado
(aproximadamente 96 bpm) semelhante às gravações anteriores encontradas e ouvidas. Como
colocado anteriormente na seção de análise da melodia e da letra, esse andamento favorece a
percepção de elementos composicionais como a repetição constante de motivos rítmicos. Por
sua vez, dentro do modelo de análise semiótica da canção, esse elemento composicional está
relacionado às ideias de celebração e conjunção entre sujeito-objeto, valores remissivos
(secundários) do projeto cancional de “Minha Saudade”.
Outra semelhança evidente entre a gravação do saxofonista e as anteriores diz
respeito à instrumentação. Em todas elas37, ouvimos a formação de trio de jazz com piano,
baixo acústico e bateria, sendo acrescida ou não de instrumentos de sopro. Assim como nas
outras gravações instrumentais de canções de Victor Assis Brasil, analisadas neste trabalho,
cada instrumento mencionado acima e ouvido em “Minha Saudade” participa do arranjo de
maneira usual aos repertórios do jazz e do samba-jazz. A bateria marca constantemente a
subdivisão de semicolcheias no prato de condução ou no chimbau fechado, ao mesmo tempo
em que improvisa sobre figuras rítmicas de tamborim no aro da caixa; o piano, também
apoiado nessa mesma subdivisão e se utilizando de variações de rítmicas características do
tamborim, mostra o encaminhamento harmônico, ao mesmo tempo em que interage com a
rítmica da melodia, através do procedimento jazzístico normalmente chamado de comping38;
o baixo acústico media as conduções harmônica e melódica propostas pelos dois anteriores,
improvisando melodias que ao mesmo tempo conectam as mudanças de acorde e contribuem
na manutenção da pulsação. Importante notar que a textura criada pela interação entre esses
instrumentos se mantém estável durante toda a música, o que pode ser interpretado como a

37
Com exceção a do disco Apresentando Rosinha de Valença, de 1963.
38
Ver Cap. 1, item Samba-jazz.
64

ausência de preocupação no tratamento da melodia da canção, ficando essa, em termos de


arranjo, sob o mesmo contexto musical dos improvisos.
Em relação à escolha de tonalidade, a interpretação de Victor Assis Brasil se
diferencia das anteriores, apresentando-se na tonalidade de Fá Maior, ao invés de Sol Maior,
como nas versões de João Donato e Seu Trio – Muito à vontade (1962), Tamba Trio 1962
(1962), Cannoball’s Bossa Nova with Bossa Rio (1963) e Bud Shank, Donato, Rosinha de
Valença (1965). Retomando as análises anteriores, a escolha de tonalidade pode ser
interpretada ao menos de duas maneiras diferentes. A primeira delas está relacionada ao que
Machado (2012, p. 59) apresenta como a intenção do intérprete vocal de alocar a melodia da
canção em uma parte específica de sua tessitura. Dessa maneira, o intérprete valoriza
determinadas características de sua voz que, por sua vez, podem reforçar valores já
predominantes no plano de conteúdo ou trazer à tona aqueles que estão em segundo plano. No
caso da interpretação de “Minha Saudade” em questão, a escolha pela tonalidade de Fá Maior
aloca a melodia em uma região considerada confortável do saxofone alto, por não atingir nem
o extremo grave e nem o agudo da tessitura do instrumento (Figura 5 – tessitura ocupada pela
melodia em Ré Maior conforme transposição para o sax alto). A sensação de relaxamento
gerada pelo conforto da tessitura escolhida pode ser interpretada como mais uma forma de
evidenciar os valores ligados à tematização, presentes de forma secundária tanto na letra,
como na melodia.

Figura 5 – Tessitura ocupada pela melodia de “Minha


Saudade” na gravação de Victor Assis Brasil.

Outra possível interpretação em relação à mudança de tonalidade está associada à


presença de solo improvisado. Ainda que os métodos de estudo de improvisação jazzística
reiterem a importância de se dominar todas as tonalidades, os improvisadores, principalmente
em andamentos acelerados, tendem a optar por tonalidades com menos acidentes. No caso
específico de Victor Assis Brasil, podemos citar, além da própria interpretação de “Minha
Saudade”, que está em Ré Maior (dois sustenidos) para o saxofone alto, outros fonogramas
65

como “It’s all right with me” em lá menor (nenhum acidente) e “Pro Zeca” em Lá mixolidio
(dois sustenidos).
Ao observarmos a estruturação Formal de “Minha Saudade”, podemos notar um
alinhamento com o que é normalmente chamado de forma standard ou simplesmente
standard. Dentro deste trabalho, entendemos que o standard diz respeito à organização da
performance musical em dois níveis: um global e outro local. No primeiro, temos o que foi
chamado por diversos autores como paradigma tema-improviso-tema (PIEDADE, 2005;
MAXIMIANO, 2009; BASTOS, 2013), procedimento sedimentado pela prática jazzística,
que ordena a performance em: apresentação do material musical previamente conhecido
(tema), solos improvisados sobre repetições da harmonia que acompanha o tema (improviso)
e reapresentação do tema. Em nível local, a forma standard rege a organização interna das
partes do tema e, consequentemente, da sequência harmônica que se repete durante os
improvisos. No caso de “Minha Saudade”, ouvimos a sequência A A B A, frequente na forma
standard (MAXIMIANO, 2009, p. 45) e também presente em todas as outras gravações
anteriores da mesma canção.
Levando em conta esses aspectos de nível intenso e extenso podemos representar
a Forma de “Minha Saudade” da seguinte maneira:

Intro | ATema A’Tema BTema A’’Tema | AImproSax A’ImproSax BImproSax A’’ImproSax |


AImproPiano A’ImproPiano BImproPiano A’’ImproPiano | ATema A’Tema BTema A’’Tema | Coda

Ainda em relação à Forma e às escolhas de arranjo, “Minha Saudade” apresenta


uma série de semelhanças com as outras interpretações analisadas neste trabalho. Em todas
elas, Victor Assis Brasil acrescenta uma introdução inédita, não ouvida em nenhuma gravação
anterior (sendo única exceção “Só tinha de ser com você” que não possui introdução). Mais
especificamente, em “Feitiço da Vila”, “Dindi” e “Minha Saudade” – todas com o saxofone
tocando já na introdução – essa seção inédita é composta por fragmentos da melodia ou da
harmonia da canção interpretada. Além disso, notamos também que quatro das cinco
interpretações analisadas, incluindo “Minha Saudade”, terminam com uma seção de coda com
vampi (repetição cíclica de um pequeno número de cc.) e fade out.
66

Recursos idiomáticos

Se levarmos em conta a variedade de recursos idiomáticos encontrados em


“Feitiço da Vila” – gravação integrante do mesmo álbum Desenhos – “Minha Saudade”
apresenta o mesmo conjunto de recursos, porém os utiliza de maneira particular. Dentre os
mais recorrentes estão os bends de chegada e os ornamentos.
Os bends de chegada, como na maioria dos casos analisados neste trabalho,
aparecem associados a saltos intervalares ascendentes, como os ouvidos nos cc. 9, 21, 25, 27,
49, 76 e 100 da transcrição. Com exceção do c. 49, todas as outras aparições desse recurso
estão sobre passagens da melodia da canção, o que sugere, preliminarmente, abordagens
diferentes para a interpretação do tema e do improviso. Outras características notáveis dos
bends utilizados nessa gravação são a curta duração e a pequena extensão (quão longe da
afinação alvo ele começa), deixando-os, assim, pouco perceptíveis. Levando isso em conta e
acrescentando o fato de que os bends de chegada, no geral, não incidem sobre passagens
específicas da melodia, entendemos nesse caso não ser possível associar diretamente esse
recurso idiomático aos significados da canção.
A principal ornamentação utilizada em “Minha Saudade” (ver Figura 6) pode ser
ouvida nos cc. 55, 56, 60 e 73. Corroborando a ideia de separação entre as abordagens
interpretativas da melodia e do solo, notamos que todas as ocorrências desse ornamento estão
concentradas na seção de improviso e completamente ausentes na exposição e reexposição da
melodia. Podemos apontar ainda outros ornamentos como apojaturas (c. 107, 109) e
glissandos (c. 39, 40), de presença menos marcante, que também confirmam a diferenciação
de abordagens entre seções, e são ouvidos apenas durante o solo improvisado ou durante o
Coda, também improvisado e com pouca relação com o material melódico da canção.
Outro recurso idiomático importante na individuação dos instrumentistas de sopro
é o vibrato. Na interpretação em questão, em decorrência do andamento mais acelerado, que
encurta a duração das notas sustentadas, e do comportamento melódico de Victor, que
privilegia as semicolcheias, o vibrato pode ser ouvido com clareza apenas nos cc. 2, 4, 16, 25
e 34. Assim como nas outras gravações do saxofonista analisadas neste trabalho, esses
vibratos têm por característica: serem usados apenas na metade final das notas, frequência
oscilatória media ou lenta e pequena amplitude. Devido a sua discrição e pequeno número de
aparições, assim como o constatado em relação ao bend de chegada, entendemos que, para o
caso desta análise, o uso e características do vibrato não podem ser relacionados a partes ou
conteúdos específicos da canção, mas integram o conjunto de marcas identitárias de Victor
Assis Brasil.
67

Figura 6 – Exemplo de ornamentação usada


em “Minha Saudade”.

Em relação à articulação, Victor Assis Brasil apresenta diversas combinações


possíveis entre tenutos, staccatos, legatos e ghost notes. Como observado por diversos
autores, na prática da música popular, dificilmente, encontram-se partituras que contenham as
articulações notadas, ficando a cargo do intérprete a escolha por quais utilizar e em que
combinações. Tendo isso em vista, a análise de como um intérprete articula pode revelar, ou
ao menos sugerir, seus referenciais musicais. Nesse caso, observando a gravação em nível
global, podemos associar a grande variedade de padrões de articulação como um
comportamento recorrente e valorizado no meio jazzístico (ver FABRIS e BOREM, p.22;
BASTOS, p. 64-65).
Partindo para a análise local, notamos, de forma mais evidente, um atrito entre
padrões de articulação relacionados ao repertório do samba, e outros, mais diretamente
ligados à prática do jazz norte-americano. Durante a exposição e reexposição da melodia,
prevalece a articulação em tenuto, na qual cada início de nota recebe um ataque de língua,
sem que a coluna de ar seja interrompida (ver transcrição anexa). Ouvimos também, com
frequência menor, staccatos sobre a colcheia da síncope característica e suas variações (cc. 9,
37, 79, 81), recurso de articulação recorrente entre saxofonistas habituados com os
repertórios do samba e do choro. De modo geral, essas escolhas de articulação, juntamente
com o andamento acelerado, ressaltam o caráter rítmico da melodia e, consequentemente,
favorecem a percepção de características ligadas à tematização39, regime de integração
melodia-letra secundário em “Minha Saudade”.
Por outro lado, durante a seção de improviso, notamos a utilização de sequências
com três ou mais notas em legato (cc. 46, 47, 52, 56, 59, 66, 69, 70 e 73), em alternância com
grupos de semicolcheias ligadas duas a duas, como nos exemplos da Figura 7 (cc. 59, 61-62,

39
Ver Cap. 3, item Articulação rítmica.
68

118-119). Além de esta última forma de articulação sugerir o swing do jazz, notamos ainda
outros distanciamentos entre as escolhas de articulação para o tema e para as seções de
improviso e coda. Nas duas últimas, o staccato não é usado (única exceção no cc. 107) e
ouvimos uma tendência a ataques de língua mais suaves que os da exposição e reexposição da
melodia, estabelecendo-se, assim, no plano da articulação, uma oposição entre um fluxo
contínuo (improviso) e outro estriado (tema).

Figura 7 – Exemplos de articulações utilizadas por Victor Assis Brasil


durante o solo improvisado em “Minha Saudade”.

Considerações sobre o improviso

Como colocado acima, quando apresentávamos a estrutura Formal de “Minha


Saudade” de Victor Assis Brasil, o solo improvisado de saxofone se desenrola sobre um ciclo
harmônico completo – um chorus – ocupando aproximadamente um quarto do tempo da
gravação. Essa observação aponta mais uma vez para a ligação entre a interpretação desse
saxofonista com versões instrumentais anteriores – João Donato e seu trio e Tamba Trio, por
exemplo – que também apresentam solo de apenas um chorus ou ainda menores. Essa
semelhança de duração entre exposição do tema e improviso, se comparada com a
desproporção que favorece o improviso presente em gravações de jazz, ou até mesmo outras
gravações de Victor, pode ser interpretada como uma tentativa de limitar o distanciamento
entre essas seções, ao não permitir divagações muito longas ao improvisador.
No entanto, a concisão do improviso por si não é suficiente para garantir sua
semelhança com a melodia da canção, sendo isso determinado pelo comportamento melódico
adotado pelo intérprete. Já na frase que prepara o início do improviso – cc. 40-41 da
69

transcrição (Figura 8) – ouvimos uma mudança radical na textura melódica, que abandona a
rítmica de semicolcheia-colcheia-semicolcheia em favor de semicolcheias seguidas ou rápidos
glissandos e introduz fragmentos de escala (indicados pela letra a na Figura 8) e motivos
diatônicos (b e b’), que não integram a melodia da canção. Tal comportamento, somado ao fill
de bateria também ouvido nos cc. 40 e 41, garante o estabelecimento de uma fronteira clara
entre o final do tema e início do improviso, e já, de início, sugere a independência dessa
última seção em relação aos significados atribuídos à canção.

Figura 8 – Frase que prepara o início do improviso (cc. 40-41 da transcrição).

Com o desenrolar do improviso de saxofone, ouvimos a reafirmação dos vários


comportamentos melódicos inaugurados em sua frase introdutória (cc. 40 e 41). Improvisando
sobre os ciclos harmônicos das seções A e B, o saxofonista mantém uma textura rítmica
baseada em sequências de semicolcheias, que se alinham com a subdivisão tocada pela bateria
no prato de condução. Também em oposição à textura rítmica da melodia podemos apontar
ainda a presença de sextinas (c. 46) e fusas (cc. 54-56, 59, 61, 63, 67-69, 71 e 73), compondo
frases inteiras ou ornamentando as sequências de semicolcheias. Com exceção dos cc. 50 e
52, a figura de semicolcheia-colcheia-semicolcheia, estrutural na constituição do motivo
rítmico da melodia de A, não é retomada durante o improviso. Além disso, como fica evidente
a partir do segundo A de solo (c. 50 em diante), o saxofonista utiliza frases consideravelmente
mais longas que as ouvidas na exposição da melodia da canção. Todas essas distinções são
reforçadas pela oposição descrita no item Recursos Idiomáticos entre escolhas de
articulação, que, no improviso, sugerem fluxo contínuo e no tema fluxo intermitente.
Em relação às alturas, a tendência presente no plano do ritmo de se opor às
características da melodia da canção também se confirma. Durante todo o improviso a
tessitura se expande uma quarta justa para cima e uma terça menor para baixo, passando de 12
para 20 semitons, o que, inicialmente, poderia ser entendido como um reforço do caráter
predominante de passionalização presente na relação melodia-letra da canção. No entanto, ao
observarmos como o improviso ocupa essa nova extensão da tessitura, rapidamente, essa
ligação entre improviso, melodia e letra da canção se desfaz. Características melódicas caras à
70

passionalização, como mudanças bruscas de direção, grandes saltos intervalares ou


desenvolvimento gradual – esse último particularmente marcante em “Minha Saudade” –
praticamente não são ouvidos40. Em negação a isso, ouvimos acordes arpejados ou fragmentos
de escala, que criam arcos de ascendência-descendência, com durações variadas e sem um
plano geral claro de exploração da tessitura, diluindo, assim, a percepção de sua extensão.
Em nível local, e ainda em relação às alturas, destacamos a utilização de
aproximações cromáticas, entre notas subsequentes de uma escala ou arpejo, recurso
praticamente inexistente na melodia da canção, ou mesmo na interpretação proposta por
Victor Assis Brasil. Ainda que esse recurso também esteja presente em outros repertórios
como o choro, exemplos como os dos cc. 49, 61 e 69 sugerem mais especificamente uma
abordagem da improvisação impregnada com elementos musicais do jazz e consequente
alinhamento dessa performance com o repertório do samba jazz, no geral, mais comprometido
com a performance instrumental, do que com os significados da canção.
Ainda em nível local, notamos o uso de fragmentos melódicos repetidos
literalmente ou com pouca variação – procedimento também descrito por Teixeira (2014, p.
70-76), em trabalho anterior sobre Victor Assis Brasil e apontado como recorrente em sua
produção. Segundo Kernfeld41, o uso de fragmentos melódicos recorrentes é um procedimento
intrínseco à improvisação jazzística e, no geral, acontece de duas maneiras diferentes. Na
primeira, o fragmento ou os fragmentos escolhidos são tratados como motivos cujas variações
e transformações balizam o discurso melódico. Na segunda, chamada improvisação formular
(conforme tradução de BASTOS, 2013, p. 43-45), fragmentos, fórmulas ou licks melódicos
pré-conhecidos são concatenados em um novo discurso, que é tanto mais fluente, quanto
menos notáveis forem suas partes integrantes.
No caso de “Minha Saudade”, foram identificados dois fragmentos melódicos
que, apesar de se repetirem durante a performance, não assumem o centro do discurso
melódico e se integram a diferentes momentos do improviso – comportamento que se alinha
com o conceito de improvisação formular. O primeiro desses fragmentos pode ser ouvido nos
cc. 52-53 e novamente nos cc. 72-73 (Figura 9 – Fragmento 1), e é constituído pela fórmula
melódica conhecida como 1 2 3 5 (Lá Maior) – recorrente em improvisos de jazz e em seus
métodos de estudo42 –, seguida pelo arpejo de dó diminuto. O segundo fragmento se revela
completamente nos cc. 56-57 (Figura 9 – Fragmento 2), podendo também ser ouvido,

40
São exceções a esse comportamento melódico do improviso os cc. 50, 52 e 72 em que ouvimos saltos
intervaleres de maior extensão (oitavas justas e sexta maior) e mudanças bruscas de direção.
41
KERNFELD, Barry. Verbete Improvisation do Dicionário Grove de Música. Versão online, último acesso em
08/06/2015. Ver também KERNFELD apud BASTOS, 2013, p. 43-45.
42
O solo provavelmente mais emblemático na utilização da fórmula melódica 1 2 3 5 é o de John Coltrane na
música “Giant Steps”, integrante de álbum homônimo.
71

incompleto ou com pequenas variações, nos cc. 41-42 e 73-74. Notamos ainda a presença
apenas da primeira metade desse segundo fragmento nos cc. 55 e 59.

Figura 9 – Fragmentos melódicos encontrados no solo


de “Minha Saudade” e que podem ser relacionados ao
procedimento de improvisação formular.

Há, ainda, outro comportamento musical de Victor Assis Brasil na seção de solo
improvisado que gostaríamos de destacar. Durante toda a exposição da melodia, ouvimos
pouca ou nenhuma variação de dinâmica na performance do saxofonista, que se mantém entre
mezzo forte e forte. No entanto, logo após o fill introdutório para o solo, notamos uma
considerável variação de dinâmica durante o primeiro A e o início do segundo. De maneira
geral, essa primeira parte do solo fica com uma dinâmica menos intensa que as partes
subsequentes, característica que, somada à presença de notas mais longas nos cc. 42-45, é
usada de forma recorrente por improvisadores de jazz para a preparação de um ápice do
improviso43. Entendemos que essa mudança no comportamento do saxofonista, relativamente,
brusca em relação à exposição do tema, mas justificada dentro da construção do improviso,
aponta, mais uma vez, para a independência entre a performance instrumental e os
significados presentes na integração melodia-letra de “Minha Saudade”.

Variações e recorrências

Até este ponto da análise, buscamos identificar, em nível local, a utilização de


recursos idiomáticos e de estratégias de improvisação no decorrer da gravação de Victor Assis
Brasil. A partir disso, salientamos o atrito entre referências de música brasileira e do jazz,
distribuído de maneira heterogênea entre exposição e reexposição do tema e improviso, além

43
Ver, por exemplo, as sugestões para construção de um solo improvisado presentes nos métodos How to
impovise (Hal Crook, 1991) e Jery Coker’s Complete Method for Improvisation (Jery Coker, 1980).
72

de levantar indícios que apontam para o distanciamento entre o projeto interpretativo do


saxofonista e os significados atribuídos à canção no item Melodia e Letra desta análise. A
partir de agora, buscaremos compreender como Victor Assis Brasil articula seu projeto
interpretativo em termos de repetição ou abandono de recursos e estratégias no decorrer da
performance.
Durante a exposição do tema de “Minha Saudade”, na gravação analisada,
notamos a predominância, por parte do saxofonista, de duas estratégias de variação melódica:
o deslocamento e consequente variação do ritmo, e a repetição de notas. Com a primeira nos
referimos a passagens como as dos cc. 14-15 e 28-29 (Figura 10). Nos dois casos, o efeito
conseguido é de atraso no desenrolar da melodia, provocado pela repetição de uma nota (cc.
14-15) ou pelo prolongamento de outra (cc. 28-29). A segunda estratégia de variação
melódica, baseada no acréscimo de notas repetidas, pode ser ouvida nos cc. 20, 22, 27, 30, 34
e 36 e, naturalmente, implica em mudanças na rítmica da frase.

Figura 10 – Exemplos de deslocamento e acréscimo de notas como


recursos de variação da melodia utilizados em “Minha Saudade”.

Além do já comentado em relação aos cc. 14-15, o acréscimo de notas repetidas


altera a rítmica de três outras formas. A primeira, mais facilmente percebida no c. 22 (mas
também presente nos cc. 20, 29 e 38), transforma uma repetição da última nota de uma frase
em anacruse da frase seguinte (Figura 11). A segunda corresponde à ação de subdividir uma
nota final de uma frase, como ouvimos nos cc. 27, 34 e 36, por exemplo (Figura 11). Por
último, a terceira alteração rítmica provocada pelo acréscimo de notas repetidas se diferencia
73

da anterior por acontecer sobre notas no interior de uma frase. Suas ocorrências podem ser
descritas como a substituição de uma nota com duração de colcheia por duas semicolcheias
iguais (Figura 11).

Figura 11 – Exemplos de variação melódica por acréscimo de notas repetidas.

Importante observar que o conjunto de variações melódicas resultante desse


procedimento de acréscimo de notas repetidas denota, na gravação analisada, uma apropriação
da melodia da canção, que não necessariamente leva em consideração sua relação com a letra.
Em alguns casos analisados no parágrafo anterior, o acréscimo de notas ignora o paralelo
entre ritmo e métrica da letra, criando, por exemplo, passagens em que duas notas iguais
ocupam uma posição correspondente, em outras gravações, a uma única nota entoada sobre
uma única sílaba. Como exemplos possíveis temos o c. 27, em que uma segunda nota mi é
acrescentada à parte da melodia, que corresponde à sílaba “-mei” de “acostumei”; ou ainda o
c. 36, em que, analogamente, um segundo dó sustenido é associado à sílaba “-cê” de “você”.
(Figura 12).

Figura 12 – Exemplo de incompatibilidade entre notas acrescentadas e o


número de sílabas da letra da canção.
74

No entanto, ainda que as variações melódicas propostas por Victor Assis Brasil
afastem sua interpretação da lógica entoativa de um cantor – que leva em consideração as
divisões métricas da letra – a ausência de ferramentas, como acréscimo de notas inexistentes
na melodia, ornamentações e fills improvisados44, contribui para a não descaracterização dos
contornos da melodia da canção, durante sua exposição e reexposição. Interpretamos essa
abordagem bipartida, juntamente com as assimetrias entre tema e improviso em relação ao
uso das articulações, como mais um fator que materializa a relação de atrito entre elementos
ligados ao samba e à canção popular brasileira, e elementos e procedimentos ligados ao jazz.
Do ponto de vista extenso, exposição e reexposição do tema se aproximam em
relação aos recursos utilizados para variação da melodia. Ouvimos o deslocamento rítmico
nos cc. 96 e 99, por exemplo, bem como o acréscimo de notas repetidas nos cc. 89, 90 e 96.
Apesar disso, ao observarmos a repetição das seções durante a gravação, notamos a não
associação fixa entre esses recursos de variação e partes específicas da melodia. A Figura 13
alinha os três últimos compassos de cada seção A, com o objetivo de evidenciar a
irregularidade nas variações, procedimento que, se aplicado a outras partes, apresentaria
resultados semelhantes. Levando isso em consideração, podemos estabelecer um parentesco
entre as interpretações de “Minha Saudade” e “Feitiço da Vila” – lançadas no mesmo disco
Desenhos –, já que ambas se utilizam do mesmo conjunto de recursos de variação, durante
toda a interpretação. Esses recursos, porém, não se fixam a passagens específicas da melodia
que, por sua vez, aparece diferente a cada repetição.

Figura 13 – Quatro últimos cc. de cada seção A conforme a gravação de “Minha Saudade” por Victor Assis
Brasil.

44
No caso do fill improvisado, ou preenchimento de pausas da melodia com frases improvisadas, temos uma
exceção nos cc. 83-84 que será comentada logo à frente.
75

Ao mesmo tempo, apesar de a ideia geral de sempre variar a melodia estar


presente tanto em “Minha Saudade”, como em “Feitiço da Vila”, podemos apontar distinções
em relação à abordagem dos recursos de variação. No samba de Noel Rosa e Vadico, a
melodia permanece reconhecível, porém, é entremeada por frequentes ornamentações e
acrescida de notas ou frases inteiras que extrapolam seus contornos fixados nas gravações
anteriores. Sobre a música de João Donato e João Gilberto, o saxofonista opta por variações
mais sutis que alteram pouco ou nada ao contorno original.
A percepção de tal projeto interpretativo hegemônico (fazer emissivo) em relação
à melodia da canção é facilitada justamente, no momento em que esse é interrompido pelo
fazer remissivo – o que Tatit (2007, p. 199-203) chamou de parada–, sendo, logo depois,
obrigado a se reafirmar – parada-da-parada. No caso da interpretação de “Minha Saudade”
por Victor Assis Brasil, a parada se materializa no uso isolado do recurso de variação
melódica, que viemos chamando nesse trabalho de fill improvisado. Sua única aparição nos
cc. 83-84 nega, momentaneamente, todas as características de interpretação da melodia,
ouvidas e analisadas até então, ao acrescentar alturas estranhas à melodia, utilizar
ornamentações livremente e não respeitar a subdivisão rítmica da melodia (semicolcheias). A
parada é tão significativa, quanto rápida, e já no cc. 85 é interrompida pelo retorno do
discurso emissivo (parada-da-parada) que se estabiliza sem mais interrupções, até a chegada
da próxima seção – a Coda (c. 107 da transcrição).
A Coda em “Minha Saudade” é constituída por outro improviso de saxofone sobre
um ciclo de quatro acordes (ver transcrição a partir do c. 107). Apesar de sua curta duração,
podemos notar nessa seção a presença de vários procedimentos e escolhas interpretativas que,
durante a gravação, definiram as particularidades de cada seção. Nos cc. 107-115, ouvimos a
manutenção da textura rítmica da melodia da canção baseada em figuras que mesclam
colcheias e semicolcheias (como a síncope característica, por exemplo). Também, nessa
primeira parte da Coda, notamos ainda o uso da mesma tessitura e escolhas de articulação
semelhantes às da exposição e reexposição do tema. A partir do c. 116, a textura rítmica se
altera para sequências mais longas de semicolcheias, ao mesmo tempo em que a tessitura se
expande e os padrões de articulação comuns ao jazz reaparecem, sendo que todas essas
características relembram a seção de solo improvisado. Como um resumo de todo o projeto
interpretativo, a seção final de “Minha Saudade” confirma o atrito entre os referencias do
samba e do jazz norte-americano – que se alternam ou se sobrepõe, mas que ainda assim
podem ser identificados separadamente (PIEDADE, 2011).
76

Gostaríamos ainda de fazer outra observação em relação à continuidade das


escolhas interpretativas e sua relação com a melodia e com a letra. Como depreendemos da
análise semiótica de “Minha Saudade”, a seção B propõe uma interrupção – parada – em
relação aos valores desenvolvidos pelas duas estrofes anteriores (ambas sobre a melodia de
A). É visível a mudança de motivo rítmico, o distanciamento do centro tonal e a revelação, na
letra, da superação do desenlace amoroso. Na gravação do saxofonista, apesar de a parada
não aparecer na alternância entre seções A e B, ela pode ser percebida em nível global, com o
solo improvisado ocupando a função de parada, ao negar as escolhas interpretativas da
exposição e reexposição da melodia.

Considerações Finais

A gravação de “Minha Saudade” por Victor Assis Brasil se apresenta claramente


dividida: de um lado, temos as escolhas interpretativas tomadas em relação à exposição e
reexposição da melodia; e do outro, a seção de solo improvisado com escolhas contrastantes.
Seja na variedade e uso dos recursos idiomáticos, ou no comportamento melódico, o
saxofonista se alterna entre um olhar atento à melodia da canção e suas principais
características; e outro voltado para a fluidez e inventividade da improvisação dentro de um
referencial jazzístico e que, consequentemente, se afasta do material composicional. Em meio
a isso, as poucas características comuns a todas as seções – como o andamento acelerado e a
estrutura de acompanhamento – apontam para um projeto interpretativo, que reforça o regime
de integração secundário, a tematização, ligado mais à ideia de celebração pela superação do
desenlace amoroso do que ao sentimento de saudade, central do regime passional
predominante na canção.
Integrante do primeiro álbum de Victor Assis Brasil, fortemente influenciado pelo
samba-jazz, “Minha Saudade” se configura como campo de intenso atrito entre elementos e
procedimentos do jazz e da música brasileira, materializados nos diferentes motivos rítmicos e
padrões de articulação, na estrutura Formal de standard e em ideias de arranjo que
sobrepõem, por exemplo, uma maneira de acompanhamento característica do jazz (o
comping) com figuras rítmicas do samba.
77

4.2. “Feitiço da Vila”

Introdução

Em seu álbum de estreia – Desenhos (1966) –, Victor Assis Brasil se mostra


totalmente imerso no ambiente das boites e jam sessions da zona sul do Rio e apresenta um
repertório em diálogo direto com o samba-jazz. Nele ouvimos diversas versões instrumentais
de canções bossanovistas e composições do próprio saxofonista, que demonstram forte
influência do jazz.
Em meio a esse contexto – externo e interno ao disco – nos deparamos com
“Feitiço da Vila”, composição de Noel Rosa e Vadico gravada pela primeira vez em 1934.
Estruturalmente transformada para se assemelhar a um standard de jazz, a exaltação à Vila
Isabel se torna campo de experimentação e propõe um projeto interpretativo de samba
instrumental centrado na improvisação e na interação entre os instrumentistas.

Melodia e Letra45

“Feitiço da Vila” possui, na maioria de suas gravações, dois materiais melódicos


distintos – que chamaremos de A e B – que se distribuem sobre cinco estrofes, conforme
indicado no esquema abaixo:

1ª. estrofe – A (Seção A)


2ª. estrofe – A (Seção A’)
3ª. estrofe – B (Seção B)
4ª. estrofe – A (Seção A”)
5ª. estrofe – A (Seção A”’)

Como sugerido pelo título da canção, temos como temática principal da letra a
exaltação da Vila Isabel, bairro natal de Noel Rosa. Mais especificamente, o enunciador
atribui ao objeto a capacidade de conciliar a boêmia e a decência, o malandro e o bacharel,
sendo que, desse cenário, poderia surgir um novo samba, um “feitiço decente”. No entanto,
como veremos ao tratar detalhadamente da letra, a proposta de conciliação pacífica
subentende uma ideologia de “branqueamento” do samba, conveniente para a incipiente

45
A letra e a melodia de “Feitiço da Vila” se encontram em versão integral nos anexos B2 e C2.
78

classe média moradora da Vila Isabel e presente na canção na figura dos “bacharéis”.
Reforçando positivamente esse discurso, o sujeito do enunciado gradualmente se revela em
conjunção com o objeto exaltado e se declara, no final da música, integrante orgulhoso dessa
comunidade.
As duas primeiras estrofes de “Feitiço da Vila” se mostram comprometidas com a
descrição da Vila Isabel através da caracterização dos membros de sua comunidade: com uma
“propensão natural” para se tornarem sambistas, até mesmo os “bacharéis” são malandros ou
ao menos não os temem (“quem é bacharel/ não tem medo de bamba”). A possível
contradição presente na ideia de um bairro de classe média ser a nova morada do samba é
amenizada, ou camuflada, através da comparação com outras combinações supostamente
naturais como “São Paulo dá café” e “Minas dá leite”. Além disso, a repetição imediata de
motivos rítmicos, característica do processo de concentração e presente na melodia dessas
estrofes, constrói uma ideia de identidade entre os elementos apresentados pela letra e facilita
sua recepção como uma unidade coesa. Como último recurso de convencimento, o enunciador
sincroniza a afirmação que resume a letra até esse ponto da canção – “a Vila Isabel dá samba”
– com a chegada da melodia e da harmonia no centro tonal, atribuindo a frase um caráter
assertivo. A combinação entre a descrição que ressalta positivamente características da
comunidade (como a coragem de seus bacharéis) e o processo de concentração melódica que
ameniza suas contradições estabelece, já nas duas primeiras estrofes, o caráter de exaltação e
aponta para a predominância da euforia na canção.
Com a chegada da terceira estrofe e a mudança de material melódico, o
enunciador extrapola a condição da Vila Isabel de reduto para agente transformador do
samba, tornando esse gênero musical mais “decente”, porém, não menos atraente (“[A Vila
Isabel] Transformou o samba num feitiço decente/ que prende a gente”). No final dessa
terceira estrofe, pela primeira vez o sujeito se coloca no enunciado (“que prende a gente”) ao
sugerir seu pertencimento ao bairro e a identificação com a música ali produzida. As ideias de
“pertencer” e “estar preso” à Vila Isabel reforçam mais uma vez o caráter tematizado da letra
ao sugerir que sujeito e objeto estão em conjunção. Assim como nas estrofes anteriores, esse
estado juntivo também é reforçado pelo perfil melódico, comprometido com o processo de
concentração (essas características da melodia serão melhor apresentadas adiante).
Além de continuar com a exaltação do objeto e sugerir pela primeira vez seu
estado de conjunção com o sujeito, podemos ainda apontar outros sentidos depreendidos na
terceira estrofe de “Feitiço da Vila”. Para descrever o samba que nasce em sua comunidade, o
sujeito-enunciador enumera elementos como “farofa”, “vela” e “vintém” que supostamente
trariam indecência ao samba. Não por coincidência, todos eles fazem referência a rituais de
79

religiões afro-brasileiras, revelando um discurso preconceituoso de que o “samba decente”


seria aquele produzido por uma comunidade “branca”. Levando isso em consideração,
entendemos então que a terceira estrofe divide sua atenção entre a exaltação a Vila Isabel ao
mesmo tempo em que desvaloriza o samba produzido em bairros/comunidades de
afrodescendentes46. Essa mesma simultaneidade pode ser percebida no material musical B que
a acompanha. Ao mesmo tempo que a melodia mantém seu alinhamento com o processo de
concentração e, consequentemente, com a ideia de exaltação, o encaminhamento harmônico
sai da região de tônica (predominante no material A) para a de subdominante e, assim,
também sugere uma atenção dividida, um afastamento do foco principal, a Vila Isabel.
A partir da quarta estrofe, a letra passa a particularizar a relação entre sujeito e
objeto exaltado, reforçando ainda mais claramente o estado eufórico predominante na canção,
ou seja, aquele caracterizado pela conjunção e pelo reforço das semelhanças entre actantes.
Durante a quarta estrofe, o sujeito-enunciador se revela como participante das atividades
características da Vila Isabel, a boêmia e o samba, e, assim, denota sua proximidade constante
com o bairro. Por sua vez, na quinta e última estrofe, o sujeito ressalta seu próprio caráter
decente (“Sei tudo o que faço/ sei por onde passo/ paixão não me aniquila”), sua condição de
“sambista sem ser malandro”, colocando-se em total sincronia com o objeto, que engendra
contradição semelhante (ser morada do samba sem a presença de elementos afro).
Partindo para análise da melodia, encontramos de início a sugestão do processo de
expansão, característico do estado disfórico, oposto ao encontrado na letra. O motivo rítmico
marcante do material A é repetido e transposto durante o desenvolvimento da melodia,
sugerindo uma expansão gradual da tessitura (Figura 14). Tal recurso, segundo Tatit (2008,
p. 21-23) materializa o caminho percorrido pelo sujeito para alcançar o objeto – e,
consequentemente, está associado ao regime passionalizado. Porém, como vemos na Figura
14, o procedimento de gradação é interrompido no terceiro, no sexto e no sétimo compassos
do material A, ficando a percepção do trajeto comprometida. Além disso, outro fator que
cofirma a importância secundária do caráter passional nessa seção da melodia é a pequena
extensão de sua tessitura, com apenas treze semitons (uma oitava mais uma segunda menor).
Entendemos então que, com a descontinuidade do trajeto melódico vertical e sua pequena
extensão, se torna mais evidente a identidade gerada pela repetição do motivo rítmico e,
consequentemente, um maior alinhamento do material A com o processo de concentração
característico do regime tematizado.

46
A composição de “Feitiço da Vila” teve por contexto o embate entre Noel Rosa e Wilson Batista,
representantes, respectivamente, do samba “branco” alinhado com os valores da incipiente classe média
brasileira, dos anos 1930, e do samba de morro ligado aos bairros de periferia habitados principalmente por
afrodescendentes.
80

Figura 14 – Esquema da melodia da seção A de “Feitiço da Vila”.

Nos quatro primeiros cc. do material melódico B, que acompanha a terceira


estrofe da letra, ouvimos a negação definitiva da ideia do processo de expansão com o
aparecimento de um novo motivo que se repete seguidamente, sem interrupções. Mais
importante do que isso, além dessas repetições não se desenvolverem verticalmente (através
de transposições), em cada nova aparição do motivo notamos uma sutil diminuição na
tessitura que ele ocupa (Figura 15 – motivo a). Após esse momento de estabilidade da
melodia, segue a frase b. (Figura 15) que, de forma decidida e direta, varre toda a tessitura da
música e paulatinamente estabiliza a tessitura em torno da nota sol (frase c), preparando de
maneira suave, sem grandes saltos intervalares, o retorno do material A. De forma metafórica,
podemos dizer que o enunciador, simultaneamente a elogiar o objeto com um título de
nobreza (“Tendo nome de princesa”), percorre toda a distância que o separa da Vila Isabel e
se une a ela – “Que prende a gente” (grifo nosso). O que se inicia como uma exaltação a Vila
Isabel se expande para a celebração do enunciador por fazer parte da mesma. Ao mesmo
tempo, o valor positivo atribuído a esse pertencimento e a busca intencional pela conjunção
(materializada na frase b) denotam a concordância do sujeito-enunciador com a ideologia de
que o samba é tão melhor quanto mais distante estiver da “vela” e da “farofa”.
Em “Feitiço da Vila”, como buscamos demonstrar, prevalece o caráter de
exaltação associado ao regime tematizado. Mais especificamente, a construção de sentidos
entre melodia e letra aponta para uma nuance entre dois estados diferentes de euforia, que ao
final se conectam. Inicialmente, notamos a presença de um enunciador que exalta a Vila
Isabel não só por ser reduto do samba, mas também por transformá-lo e “enobrecê-lo”. Com o
desenrolar da canção, aos poucos esse enunciador sinaliza seu pertencimento ao tão exaltado
bairro e sua participação nas atividades de sua comunidade. Por fim, diretamente através da
letra (“Eu sou da Vila!”) e metaforicamente através da rápida varredura da tessitura pela
81

melodia, o sujeito-enunciador confirma seu pertencimento à Vila Isabel e celebra sua total
identidade e conjunção com ela.

Figura 15 – Material melódico B de “Feitiço da Vila”.

Protocolo

Como desenvolvemos no Cap. 3, item Semiótica da canção e gesto vocal, a


escolha de um andamento influencia diretamente a expressão e, consequentemente, a
percepção dos estados fóricos na realização de uma canção. Em outras palavras, diferentes
andamentos são capazes de revelar aspectos também diferentes das disposições emocionais já
presentes na canção. No caso de “Feitiço da vila”, encontramos notável diferença entre a
escolha de andamento da primeira gravação47 dessa canção e da interpretação de Victor.
Na mais antiga, lançada poucos meses antes do Carnaval de 1934, ouvimos um
andamento mais acelerado que, associado a outras características como tipo de
acompanhamento, instrumentação e arranjo, aproximam a gravação do universo das
47
Odeon de 22 de outubro de 1934, lançada em dezembro seguinte. Disco 11175-A, matriz 4938.
82

marchinhas. Dessa forma, entendemos que essa primeira gravação localiza sua realização
mais próxima dos elementos de celebração, de exaltação à Vila Isabel presentes na letra da
canção (“A Vila tem / um feitiço sem farofa [...] que nos faz bem”) e em sua construção
melódica. Além disso, na interpretação de João Petra de Barros e de Noel Rosa notamos
escolhas de interpretação como a não sustentação dos prolongamentos vocálicos dos finais de
frase – por exemplo, em “Vila”, “vacila” e “samba” – e a acentuação dos ataques
consonantais de passagens como “[...] faz dançar os galhos do arvoredo”. Todas essas
características valorizam elementos inerentes ao processo de concentração melódico e
alinham essa interpretação com o regime tematizado predominante em “Feitiço da Vila”.
Na interpretação instrumental de Victor Assis Brasil, ouvimos uma tendência
geral ao prolongamento das notas em finais de frases (c. 10, 11, 12), favorecidos pela escolha
de um andamento mais desacelerado. Em oposição às terminações curtas de “Vila”, “vacila” e
“samba” ouvidas na gravação original, o saxofonista opta por valorizar o processo de
expansão, pouco presente na integração melodia-letra original, e, assim, acrescenta valores
passionalizados a sua interpretação. Paralelamente a isso, tal escolha de andamento acaba
também por estender a duração real da música e, consequentemente, torna o tempo de
percurso da melodia pela tessitura mais longo.
Outra característica da interpretação de Victor que podemos associar ao
andamento é que, sendo mais lento, ele facilita a execução de variações rítmicas da melodia
baseadas em subdivisões rápidas – como as de sextina e de fusa – empregadas constantemente
em sua interpretação (c. 11, 19, 24, 33). Essa intensa quantidade de variações rítmicas com
que o saxofonista executa as melodias originais também contrasta com a abordagem da
primeira gravação, na qual ouvimos a reiteração de uma mesma rítmica em todas as
exposições e reexposições dos materiais melódicos. Além disso, a constante alteração da
melodia sugere a descaracterização dos motivos rítmicos, dificultando, assim, a percepção de
suas repetições constantes, marca do regime tematizado. Juntamente com o andamento
desacelerado, esse comportamento interpretativo reforça a presença de valores
passionalizados em seu projeto interpretativo.
Do ponto de vista estrutural, Victor Assis Brasil opta em sua versão instrumental
de “Feitiço da Vila” pelo paradigma tema-improviso-tema, comum ao repertório do jazz pós-
1940 e incorporado pelo samba-jazz. Essa organização Formal compreende características
específicas em dois níveis diferentes de organização: um micro, que diz respeito ao número de
repetições de cada material melódico e em que ordem aparecem (chamado no jazz de chorus);
e um outro macro, referente a quantos chorus são tocados e qual o conteúdo de cada um.
83

No nível micro, o saxofonista opta pela organização A A B A, sendo o A referente


à melodia e harmonia que acompanham as duas primeiras e as duas últimas estrofes da versão
original e B referente à melodia e harmonia que acompanham a terceira estrofe. Tal
organização do chorus, comum ao repertório de canção norte-americano que por sua vez foi
frequentemente adaptado para o contexto jazzístico instrumental, demonstra desprendimento
por parte de Vitor Assis Brasil em relação à letra da canção – já que as quatro estrofes
diferentes associadas ao material de A não caberiam dentro da Forma A A B A. Levando em
conta a familiaridade do saxofonista e dos outros instrumentistas com o repertório jazzístico, a
escolha por essa estrutura Formal aponta para uma preocupação maior com a desenvoltura da
execução instrumental do que com o núcleo de sentido melodia-letra da canção.48
No nível macro de organização, a gravação de Victor pode ser esquematizada da
seguinte maneira:

Intro | ATema A’Tema BTema A”Tema | AImproSax A’ImproSax BImproSax | ATema A’Tema BTema
A”Tema | Coda

Apesar de em nível global essa estrutura estar em concordância com o paradigma


tema-improviso-tema, notamos na gravação de Victor uma assimetria incomum: o improviso
de saxofone acontece sobre um chorus com duração diferente (AAB) daquela na qual é
apresentada a melodia original (AABA). Levando em conta que essa diferença não aparece
associada a nenhum elemento de arranjo pré-determinado, entendemos que ela acontece
graças ao caráter de indeterminação contido em uma interpretação envolvendo improvisação.
Como apontado por Monson (1998, p. 152-154), em uma performance de jazz, alguns
elementos de arranjo são definidos durante a própria performance a partir da interação entre
os músicos. Dentre esses elementos podemos citar: o número de chorus que serão usados para
o improviso, como será o acompanhamento e até mesmo ajustes no tamanho do chorus para
adequar um eventual “erro” de algum dos músicos. Entendemos que o último caso se encaixa
na versão analisada de “Feitiço da vila”. Victor Assis Brasil, ao invés de continuar solando no
que seria o último A de um chorus AABA, inicia a reexposição do tema – fato percebido
pelos acompanhadores que também iniciam a reexposição do tema a partir desse final
precipitado do solo de saxofone.

48
A organização AABA para o chorus de “Feitiço da Vila” já havia sido usada na versão também instrumental de Casé e Seu
Conjunto no disco Samba Irresistível de 1960. Apesar de não haver nenhuma ligação formalizada, as duas versões dialogam
diretamente na medida em que ambas se utilizam da mesma organização do chorus para dar suporte a uma performance com
improvisação.
84

Na escolha de tonalidade, Mí bemol Maior (som real), o saxofonista demonstra


uma preocupação no geral mais relacionada à simples adequação da melodia a uma tonalidade
confortável do que a uma escolha de cunho expressivo que ressaltaria determinada
característica timbrística do instrumento. Na transposição para o saxofone alto, o tom de Mí
bemol passa a ser Dó Maior, sobre o qual os improvisadores normalmente têm maior
domínio. Concomitantemente, essa tonalidade aloca a melodia em uma região da tessitura
bastante confortável para o saxofone (Figura 16), na qual sequências de notas, mesmo que
rápidas, soam bem definidas; o controle da variação de dinâmica é grande e de execução
confortável e o timbre é equilibrado entre todas as notas.

Figura 16 – Tessitura ocupada pela melodia de “Feitiço da Vila” na


versão de Victor Assis Brasil (conforme transposição para saxofone
alto).

Outra escolha anterior à performance que podemos destacar na versão de “Feitiço


da Vila” de Victor Assis Brasil diz respeito à instrumentação e sua participação no arranjo. Na
gravação em questão, ouvimos saxofone, piano, baixo acústico e bateria, formação que, como
apresentado no Cap. 1 deste trabalho, é característica do jazz pós-1940 e que foi incorporada
pelo repertório associado ao samba-jazz. Tão importante quanto a escolha dos instrumentos é
a função desempenhada por eles. Nesse caso, também notamos uma ligação direta com o
repertório do samba-jazz principalmente na adaptação da matriz rítmica do samba ao
procedimento chamado comping. De forma mais específica, notamos a manutenção dessa
matriz rítmica do samba no “prato de condução” da bateria e no baixo, além de uma maior
liberdade do piano e da caixa e bumbo da bateria para interagir com o solista. Assim como a
escolha pela Forma característica dos standards, a escolha dos instrumentos e atuação de cada
um apontam para um projeto interpretativo mais comprometido com a performance
instrumental do que para um diálogo com os sentidos do núcleo melodia e letra.
85

Recursos Idiomáticos

Durante a exposição e reexposição do tema em “Feitiço da Vila”, Victor se utiliza


principalmente dos recursos idiomáticos comumente chamados de ghost notes e bends. É
também notável a presença de apojaturas e ornamentos que serão abordados adiante no item
Variações e Recorrências.
As ghost notes são ouvidas principalmente em frases improvisadas acrescentadas
à melodia da canção ou a espaços em que essa está ausente. Mais especificamente, podemos
citar o c. 36 – um fill que ocupa o lugar de uma nota longa – e a partir do c. 96 – improviso
final de Victor em fade out sobre o vampi49 (Coda). Nos dois casos esse recurso idiomático
aparece associado a materiais melódicos que fazem referência ao jazz50. A presença das ghost
notes associadas a esses materiais melódicos específicos pode ser entendida como um caso de
incorporação de elementos do jazz por parte do solista e, consequentemente, um diálogo com
o repertório do samba-jazz (Cap. 1).
Na gravação de “Feitiço da Vila” ouvimos bends de queda – apenas nos c. 38 e 96
– e o uso constante do bend de chegada, sobre o qual focaremos nossas observações. Os
bends de chegada nessa gravação acontecem de duas formas diferentes: uma com pequena
variação de afinação e curta duração (c. 19, 25, 27, 32); outra com uma variação de afinação
maior e de duração mais longa (c. 15, 22, 30, 37).51 As duas formas do bend de chegada
aparecem na maioria das vezes associadas a intervalos ascendentes, assim como também
acontece em “Só tinha de ser com você”, “Dindi”, “O Cantador” e “Minha Saudade”. No
entanto, levando em consideração a exposição e a reexposição do tema tocadas por Victor,
não encontramos nenhum tipo de padrão que relacione o uso dos bends de chegada a partes
específicas da melodia ou a um grupo de intervalos mais específico.

49
Recurso de arranjo recorrente em música popular (instrumental principalmente) e que consiste na repetição de
um número pequeno de compassos no final de uma música. O número de repetições pode ser previamente
estabelecido ou indeterminado.
50
No c. 36 podemos evidenciar uma passagem cromática característica e a partir do c. 96 ouvimos frases sobre a
pentatônica menor de lá com a presença da blue note (mi bemol).
51
A maneira como foram notadas as duas variações de bend de chegada está esquematizada na Figura 8.
86

Figura 17 – Notação usada na transcrição para diferenciar os dois tipos


de bend de chegada.

No exemplo da Figura 18, destacamos o material melódico do quinto compasso de


A – esteja ele em qualquer parte do chorus, da exposição ou da reexposição. O bend de
chegada mais longo ora é utilizado, ora não na chegada a nota lá e, mesmo quando utilizado,
não acontece entre intervalos de mesmo tamanho.
Tais levantamentos em relação à utilização dos bends apontam, ainda que
especulativamente, para a não intenção do saxofonista de evidenciar partes ou características
específicas da melodia. Por outro lado, gostaríamos de ressaltar que, ainda que seu uso não se
associe diretamente a um projeto interpretativo relacionado à canção (melodia e letra), o bend
de chegada sobre intervalos ascendentes integra o conjunto de marcas identitárias capazes de
individualizar a performance de Victor Assis Brasil, já que também foram encontrados em
todas as outras gravações analisadas neste trabalho.

Figura 18 – Variações no uso do bend de chegada entre o 4º e 5º


compassos das seções A.
87

Considerações sobre o improviso

Nesse item da análise pretendemos levantar características da seção de solo


improviso da gravação de “Feitiço da Vila” que reforcem ou não a interação do projeto
interpretativo de Victor Assis Brasil com os significados atribuídos a canção.
Em aspectos gerais, o improviso ocupa um tempo proporcionalmente curto em
relação ao total do fonograma (aproximadamente 1’30’’ de um total de 6’20’’). Em termos de
tessitura, se expande para além da melodia original em quatro semitons (terça maior) para
cima e para baixo. Notamos também uma tendência de dois compassos de duração para cada
frase – podendo elas iniciarem ou não com uma anacruse. Ornamentações52 recorrentes na
exposição da melodia continuam sendo usadas, porém com frequência menor (c. 41, 45, 47,
55, 63).
Analisando mais especificamente o primeiro A dessa seção, notamos que são
recorrentes as frases com direcionalidade clara – ascendente ou descendente e por vezes uma
e depois outra – que percorrem parte considerável dessa tessitura expandida (c. 41, 46 e 47,
por exemplo). Essa escolha por salientar a extensão da tessitura de forma direta aponta,
inicialmente, para a intenção do saxofonista de construir um perfil melódico com
características passionais em seu improviso, mantendo assim um diálogo com escolhas
tomadas na interpretação do tema.
Ainda dentro da ideia de características associadas à passionalização, podemos
salientar a presença de um desenvolvimento motívico no início do segundo A do solo (c. 49-
51). Além da sugestão de um desenvolvimento gradual da tessitura, notamos na execução
desse motivo a presença marcante dos bends de chegada entre intervalos ascendentes que
culminam em notas agudas do saxofone. Como colocado anteriormente, esse efeito simula
dificuldade na realização dessas notas, acrescentando tensão a essas passagens e,
consequentemente, chamando a atenção para essas partes do percurso melódico que
materializam o processo de expansão da tessitura.
Na seção B do solo, notamos no comportamento melódico de Victor uma mescla
entre a direcionalidade clara apresentada no primeiro A e a repetição de motivos presente no
segundo A. Na Figura 19 a e a’ marcam as frases que retomam a ideia de direcionalidade e b,
c, d, e indicam os fragmentos motívicos e suas reaparições. A ideia de síntese construída
nessa seção pelo reaproveitamento de ideias melódicas usadas anteriormente aponta – junto

52
O uso de ornamentações sobre a melodia da canção será melhor detalhado no item seguinte, Variações e
recorrências.
88

com outros fatores – para o que Monson (1996, p. 139) definiu como intensificação, ou seja, a
construção de um clímax dentro de uma performance improvisada através da interação entre
os músicos. Combinando elementos musicais internos e externos de uma determinada
performance, os músicos tomam decisões coletivas em relação ao desenvolvimento de
determinado improviso.

Figura 19 – c. 56-65 – Seção B do improviso de Victor Assis Brasil em “Feitiço da Vila”.

No caso aqui analisado, além do uso conciso e alternado de comportamentos


melódicos já apresentados anteriormente, notamos também a anacruse tocada pelo
saxofonista para introduzir essa seção B do solo (“Frase chamada para intensificação” -
Figura 19). Baseada na subdivisão de fusas e ocupando mais de uma oitava, ela também
sugere esse processo de intensificação para a seção que se inicia. Imediatamente depois, no
primeiro e segundo compassos de B, a sugestão é acatada pelo baixista que toca um pedal
sobre a nota fá (Figura 19) com uma rítmica diferente da base utilizada até então. Piano e
bateria se juntam ao baixo e abandonam a estrutura de acompanhamento ouvida até esse
ponto. Por sua vez, durante esses dois compassos, o saxofonista repete um mesmo motivo
rítmico inédito até esse ponto do improviso, contribuindo para a construção de uma textura
contrastante com o resto da gravação.
89

A ideia de intensificação presente na seção B do improviso corrobora ainda a


justificativa previamente levantada para a assimetria na Forma do improviso. Assumindo que
o clímax construído nessa seção tenha atingido um certo ideal de improviso – com
apresentação de ideias, desenvolvimento, clímax e finalização – o retorno antecipado do tema
no c. 65 é rapidamente assimilado pelos acompanhadores e executado com naturalidade.
Voltando para uma visão mais geral do improviso, a análise de suas três seções
aponta para a não preocupação em associar os materiais melódicos utilizados no solo com
partes da melodia original, comportamento que guarda similaridade com o de não-recorrência
nas variações melódicas identificado durante a exposição e reexposição do tema.
Combinados, os dois procedimentos apontam para um projeto interpretativo menos atento ao
núcleo melodia-letra da canção e mais focado em aspectos característicos do jazz e do samba-
jazz como a improvisação e a intensa interação entre os instrumentistas.

Variações e recorrências

Na exposição e reexposição do tema de “Feitiço da Vila” ouvimos uma grande


quantidade de ocorrências e tipos de variação melódica, seja em relação às alturas ou à
rítmica. Além disso, tais recursos de variação melódica são usados sobre praticamente todas
as frases da melodia não improvisada (melodia da canção), sendo que nenhuma seção A ou B
da melodia é tocada duas vezes da mesma maneira. Dentre os recursos mais utilizados na
gravação em questão podemos citar o fill, o deslocamento rítmico ou a variação livre da
rítmica, acréscimo de notas entre duas notas chave da melodia, apojaturas e ornamentações
diversas.
Os fills, presentes nos c. 16, 24, 28, 32, 36, 72, 88, são frases improvisadas que
substituem notas longas da melodia ou preenchem espaços de pausa da mesma. Na gravação
analisada notamos que eles são utilizados em partes diferentes das melodias de A e B
conforme essas são repetidas. Notamos também que não existe uma constância em seu uso se
compararmos à exposição do tema (fill nos c. 16, 24, 28, 32, 36) e sua reexposição (fill apenas
nos c. 72 e 88).
Um dos recursos de variação melódica mais recorrente em “Feitiço da Vila” são
os ornamentos – notas acrescentadas, rápidas e que ficam em torno de uma ou mais notas da
melodia. Uma observação mais minuciosa aponta especificamente para uma ornamentação
que podemos descrever por: nota da melodia, segunda diatônica acima, retorno para nota da
melodia (Figura 20). Tal forma de variação é empregada ao menos vinte e três vezes durante a
exposição e reexposição da melodia e foi notada de diversas maneiras na transcrição (anexa)
90

conforme a rítmica em que são empregadas. Apesar de sua constância durante a gravação,
notamos mais uma vez o não atrelamento de seu uso a partes específicas da melodia.

Figura 20 – Exemplo da ornamentação mais usada na interpretação de


Victor Assis Brasil.

A sequência de exemplos da Figura 21 compreende todas as aparições de cada 1º


compasso de cada uma das seções A tocadas na gravação de Victor Assis Brasil e pretende
demonstrar outras formas de variação melódica utilizadas. Nos exemplos a e b notamos a
manutenção da rítmica e das alturas e a variação na articulação; em c temos, a partir do
segundo mi, o abandono da melodia original, a inserção de uma frase diferente e o retorno do
contorno melódico original nas duas últimas semicolcheias do compasso (mi, ré); em d temos
a omissão da nota fá e uma variação rítmica; e combina variação rítmica e a ornamentação
descrita anteriormente; em f temos o acréscimo da nota sol no início do compasso (final de
um fill do compasso anterior), variação do ritmo e o atraso da resolução da frase (em todas as
outras aparições, a nota ré vem adiantada na última semicolcheia do compasso).
Podemos ressaltar ainda um aumento da quantidade de variações durante toda a
exposição do tema (c. 9-40). O primeiro e o segundo A da gravação (na transcrição marcados
com A e A’) apresentam pouca variação rítmica e o gradual aumento da quantidade de
ornamentações e notas acrescentadas. Em B e A”, ouvimos frases mais distantes dos
contornos originais (c. 29, 32, 33) e um maior número de notas acrescentadas e fills (c. 24, 32,
36). Esse aumento da variação durante a exposição culmina com o abandono da melodia
original e início do improviso de Victor Assis Brasil.
Em termos de recorrências entre cada repetição da melodia, além do contorno
geral dessa melodia e da progressão harmônica, poucos são os outros apontamentos possíveis
nessa interpretação. O terceiro compasso de cada parte A sempre apresenta a mesma
ornamentação sobre a nota ré; com frequência a blue note (mi bemol para a tonalidade de Dó
maior) é acrescentada ao sexto compasso das melodias de A. Além disso, concluímos até aqui
91

que o projeto interpretativo ouvido em “Feitiço da Vila” apresenta de forma recorrente as


maneiras de variação da melodia, mas essas não aparecem atreladas a partes específicas da
melodia original.

Figura 21 – Exemplos de variação melódica empregadas por Victor Assis Brasil no primeiro
compasso de cada seção A de sua versão de “Feitiço da Vila”.

Considerações Finais

O projeto interpretativo de Victor Assis Brasil em “Feitiço da Vila” se apresenta,


de maneira geral, menos conectado com o núcleo de identidade da canção se comparado com
as outras interpretações do saxofonista analisadas neste trabalho. As escolhas de tonalidade,
de instrumentação e de arranjo se alinham com características comumente encontradas no
repertório associado ao samba-jazz e, portanto, atentam mais para aspectos da performance
dos instrumentistas do que para o material cancional. Além disso, nessa interpretação notamos
como característica constante o uso de estratégias de variação. Alterações no ritmo e no
contorno melódico, acréscimos de notas e de recursos idiomáticos são livremente
empregados, sugerindo uma abordagem improvisada mesmo em relação à melodia da canção.
Tal comportamento, além de aumentar as semelhanças entre a seção de solo e as seções de
exposição e reexposição da melodia, demonstra um menor comprometimento em manter os
contornos melódicos característicos da canção.
No entanto, apesar da maior preocupação com aspectos da performance
instrumental, podemos apontar algumas ligações entre o projeto interpretativo do saxofonista
92

e os sentidos depreendidos da interação entre melodia e letra da canção. A escolha por um


andamento mais lento, a presença de prolongamentos nos finais de frase, o constante uso do
bend de chegada sobre saltos ascendentes e a expansão da tessitura original durante o tema e
o improviso apontam para um reforço do caráter disfórico – de distanciamento entre sujeito e
objeto – presente de forma secundária na melodia e na letra da canção. Combinando um
comportamento alinhado com a performance instrumental, e valorizando características
menos evidentes do núcleo original de identidade da canção, a gravação de Victor Assis
Brasil propõe uma nova leitura de “Feitiço da Vila” aberta à construção de novos significados.
93

4.3. “Dindi”

Introdução

Composta por Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e gravada pela primeira vez em
1959, “Dindi” se consagrou através de inúmeros intérpretes como Sylvia Telles, Alaíde Costa,
Elza Soares e Maysa. Como tendência geral, todas essas gravações reforçaram seu caráter
passional, com a presença constante de andamentos lentos e arranjos orquestrais de grande
dramaticidade. Tanto pela presença de uma introdução em forma de verse, como pela
existência de versões em inglês, essa canção faz alusão ao repertório de canção ligado aos
musicais norte-americanos, influência marcante na produção de compositores brasileiros das
décadas de 1950 e 1960.
Em seu disco de homenagem a Tom Jobim, gravado em 1970, Victor Assis Brasil
adapta a canção “Dindi” para o universo instrumental, trabalhando com um tênue equilíbrio
entre alterações no material composicional e a manutenção de suas características mais
marcantes. A seguir, buscaremos apontar os elementos que particularizam essa gravação
dentro de sua produção, e sua relação com os significados contidos na interação entre melodia
e letra da canção.

Melodia e Letra53

A canção “Dindi” apresenta em seu início um tipo específico de introdução, o


verse. Recorrente em canções que integram espetáculos musicais norte-americanos (ou que
seguem esse modelo), tem como principais funções avançar com a história e contextualizar os
personagens e os acontecimentos que serão abordados durante a canção. Não apenas por seus
aspectos funcionais, o verse também se assemelha ao recitativo da ópera em suas
características musicais. Assim como ouvimos na introdução de “Dindi”, a melodia do verse,
no geral, apresenta-se em uma tessitura pequena, com a presença marcante de notas repetidas
em sequência e com a parte do solista em tempo rubato.
A letra dessa seção se organiza em duas estrofes distintas, cada uma delas
acompanhada por um mesmo material melódico que se repete. Na primeira, notamos a
construção de um estado de contemplação, que descreve o céu e o movimento das nuvens.
Ainda nessa estrofe, temos a sugestão sutil da ideia de partida (“Pra onde elas vão[?]”),

53
A letra e a melodia de “Dindi” se encontram em versão integral nos anexos B3 e C3.
94

fundamental no restante da canção, e um sujeito se apresentando também como enunciador do


discurso (“Eu não sei”). Na segunda estrofe, a ideia de movimento (das nuvens, da partida)
permanece na figura do vento que move as folhas. Além disso, no último verso dessa
introdução, o sujeito reforça o fato de também ser o enunciador no momento em que se dirigi
ao enunciatário (“são minhas e de você também”).
Presente na letra, a sugestão sutil da dualidade entre estar próximo ou mover-se e
partir é reforçada pelo encaminhamento harmônico dessa seção. O material melódico que
acompanha as duas estrofes do verse se constrói sobre uma alternância entre duas tonalidades,
de forma que, durante a introdução, ainda não sabemos claramente sobre qual tonalidade a
canção irá desenrolar-se. Durante os quatro primeiros compassos, ouvimos a sequência –
CMA7 | CSUS9 | CMA7 | CSUS9 – que estabelece a tonalidade de Dó Maior. Nos quatro compassos
seguintes, ouvimos a típica progressão – Ima7 | VIm | II7 | V7 –estabelecendo outra tonalidade,
a de Lá Maior. Tal estrutura – quatro cc. em Dó Maior, quatro cc. em Lá Maior – se repete na
apresentação da segunda estrofe da introdução e, por fim, conduz ao início da canção que
confirma a tonalidade de Dó Maior.
No início da primeira estrofe, a presença de uma interjeição seguida por um
vocativo (“Ah, Dindi”), elementos comuns ao discurso falado, confirma a coincidência entre
sujeito e enunciador (debreagem enunciativa), bem como revela a identidade do enunciatário
– Dindi. Com o prosseguimento dessa estrofe da canção – seção A –, a ligação entre sujeito e
objeto começa a se particularizar. Ao mesmo tempo que o primeiro revela seu amor pelo
segundo, utiliza-se de construções como “Se soubesses” e “O mundo seria”, que deixam
subentendido que esse amor, correspondido ou não, ainda não se concretizou. Além disso, em
plano secundário, podemos apreender uma ligação sutil com o estado contemplativo do verse
na frase “O mundo seria [todo] lindo”, relação que será explorada mais adiante.
A segunda estrofe – seção A’ – apresenta-se sobre o mesmo material musical da
primeira estrofe e direciona o discurso também da mesma forma: sujeito-enunciador se
dirigindo à Dindi. Na letra dessa seção, a ideia de partida – sugerida no verse pela imagem das
nuvens sendo levadas pelo vento – assume papel central. A possibilidade imaginada pelo
sujeito de se distanciar do objeto de desejo (“Se um dia você for embora”) logo é contraposta
por estratégias que tentam evitá-la (“me leva contigo” ou “fica, Dindi”). Esse medo do
afastamento, ainda que não seja suficiente para confirmar o enlace amoroso recíproco, ao
menos indica a proximidade entre sujeito e objeto o que, mesmo não sendo ideal do ponto de
vista do sujeito, é melhor que a ausência total do outro. Mais uma vez, na segunda estrofe,
encontramos também indícios que retomam a atmosfera do verse quando o enunciador
95

convida Dindi a ficar e contemplar (“Olha, Dindi / Fica, Dindi”) como subterfúgio para ela
não se distanciar.
Até esse ponto, apreendemos como elementos principais da narrativa uma tensão
entre a euforia do sujeito/enunciador de estar próximo de seu objeto de desejo, e a disforia
presente nas sugestões de que o enlace amoroso ainda não se concretizou, e de que a
proximidade entre actantes pode se desfazer com a partida, afastamento de Dindi. O primeiro
elemento, ligado aos valores da tematização, como a celebração e a felicidade, é reforçado
pelo estado contemplativo em que se encontra o enunciador, arquetípico de pessoas
apaixonadas. Por sua vez, a disforia, característica do regime de integração melodia-letra
passionalizado, é reforçada pelo prolongamento das interjeições – “Ah, Dindi” – que
adquirem caráter de lamento.
A terceira estrofe de “Dindi”, acompanhada de novo material musical – seção que
chamaremos de B –, retoma as ideias de movimento e partida bem como o estado
contemplativo ao praticamente repetir versos da introdução (“E bandos de nuvens [...]/ pra
onde elas vão, ah, eu não sei”), apenas substituindo a imagem utilizada como metáfora (“E as
águas desse rio/ Onde vão, eu não sei”). É notável também nessa estrofe o não direcionamento
do discurso diretamente ao enunciatário, instaurando-se um momento de reflexão interior
gerada pela contemplação de elementos da natureza. As ideias de movimento e partida são
contrapostas à estaticidade da condição do sujeito de contemplar e esperar a chegada/retorno
de Dindi – recolocada como destinatária do discurso, apenas nas últimas palavras da estrofe.
Com o retorno do material musical de A e a apresentação da quarta e última
estrofe – seção A’’ – temos a confirmação dos valores apresentados durante o verse e o
restante da canção como determinantes para o desfecho da narrativa. Após mais uma
declaração de seu amor (“Você, Dindi/ Que é a coisa mais linda que existe”), o sujeito aceita
sua condição de contemplador e pede ao menos para poder continuar observando seu objeto
de desejo (“Deixe, Dindi, que eu te adore”), já que o enlace amoroso não se concretiza.
Como citado acima, após o verse, “Dindi” apresenta ainda dois materiais musicais
distintos – A e B – que se desenrolam sobre uma tessitura de quatorze semitons. Observando-
os de maneira global, os dois materiais têm como característica comum a repetição das partes
finais de suas respectivas melodias, como uma simulação de eco. Além disso, notamos
também que, apesar da repetição mais frequente de A – ouvido três vezes – que de B – ouvido
uma vez –, o primeiro não pode ser considerado um refrão, já que a cada aparição vem
associado a uma estrofe diferente da letra. A seguir, buscaremos descrever e analisar cada um
desses materiais de maneira a particularizá-los e associá-los com as partes da letra que
acompanham.
96

A melodia de A pode ser dividida em cinco frases, como representado na Figura


22. Notamos, na organização geral dessa seção, uma alternância entre uma tendência ao
desenvolvimento melódico, durante as três primeiras frases, e a ideia de repetição
característica das duas frases finais. Do ponto de vista da Semiótica da Canção, o
desenvolvimento está associado ao regime de expansão (passionalização), ao passo que a
repetição se alinha com o regime de concentração (tematização). Levando isso em conta,
entendemos que essas características da melodia reforçam em nível intenso essa oposição
entre os processos de concentração e expansão também presentes na letra. No entanto, ao
analisarmos as seções A, A’ e A’’ de maneira mais abrangente – não olhando apenas para a
melodia – notamos que a tendência à concentração se encontra apenas em nível superficial.
Durante as duas frases finais, que possuem material melódico repetido, outras dimensões da
canção como letra e harmonia sugerem a hegemonia do processo de expansão. Como vimos
anteriormente, cada seção A, A’ e A’’ apresenta uma estrofe diferente da letra. Por sua vez, a
harmonia que acompanha as frases repetidas não se repete analogamente, percorrendo o
caminho – subdominante, subdominante menor e tônica (Figura 22).

Figura 22 – Esquema da melodia de cada seção A de “Dindi”.

Corroborando a ideia de hegemonia do regime passional (processo de expansão),


apontamos ainda para a presença de prolongamentos vocálicos como aqueles que
acompanham a interjeição “Ah”, ou ainda a segunda sílaba de todas as aparições da palavra
“Dindi” (doze no total). Essa valorização dos prolongamentos contribui para destacar o
contorno melódico e, consequentemente, seu desdobramento no tempo e na tessitura. Quando
evidente, esse trajeto percorrido pela melodia materializa a ideia de disjunção entre sujeito e
objeto, ao mesmo tempo que sugere a dinâmica de busca pela conjunção (TATIT, 2007, p. 45-
46). Como depreendemos na análise da letra, as estrofes que acompanham o material musical
97

A (1ª, 2ª e 4ª estrofes) subentendem uma proximidade física entre o enunciador e Dindi, ao


mesmo tempo que revelam a impossibilidade de se concretizar o enlace amoroso (disjunção).
Por outro lado, durante essas seções da canção, o enunciador lança mão de estratégias que
visam manter ao menos essa proximidade que permite contemplá-la (busca pela conjunção).
Interessante notar que essas características relacionadas ao regime de
passionalização foram constantemente reforçadas nas diversas realizações de “Dindi”. Em
versões como as de Sylvia Telles, Alaíde Costa e Maysa54, ouvimos a opção pela sustentação
desses prolongamentos vocálicos, bem como seu alargamento em termos absolutos pela
escolha de andamentos médios ou lentos. Além disso, todos esses arranjos optam por
formações orquestrais, com especial atenção para os instrumentos de cordas friccionadas
(violino, viola e cello), cuja sedimentação de seu uso dentro do repertório cancional, bem
como sua facilidade na sustentação das notas, segundo Coelho (p. 135-136), os coloca em
estreita compatibilidade com os valores do regime de passionalização.
Na seção B, ouvimos um processo modulatório, que parte do terceiro grau menor
(mi menor se considerarmos a tonalidade de Dó Maior), passa pelo segundo grau menor (ré
menor), e chega novamente na tônica com o início da seção A’’. Esse distanciamento da
tonalidade predominante nas outras seções da canção funciona como reforço da parada
identificada na letra, que compõe essa seção B. Como foi detalhado anteriormente, notamos
nessa estrofe que o discurso deixa de se dirigir à Dindi e adquiri um caráter de contemplação e
autorreflexão por parte do sujeito-enunciador. Ao final da seção, com o retorno do
enunciatário ao discurso, o encaminhamento harmônico prepara o retorno da tonalidade e do
material melódico de A – elementos que nesse caso constituem a parada-da-parada.
Em concordância com as modulações harmônicas dessa seção (mi menor, ré
menor, Dó Maior), identificamos no desenvolvimento melódico um procedimento de
desenvolvimento gradual da melodia também descendente. A frase que se desenrola durante
os quatro primeiros cc. da seção B, repete-se nos quatro seguintes, transposta um tom para
baixo, construção que sugere a conquista gradual da tessitura total da canção, desde a nota
mais aguda (primeira nota da seção B) até a mais grave (Figura 23). No caso de “Dindi”,
entendemos que esse desenvolvimento gradual da melodia – definido na Semiótica da Canção
como materialização de uma busca empreendida pelo sujeito a procura do objeto – reforça a
ideia de distancia entre opostos presente na letra. De um lado, temos o movimento e a

54
Aqui nos referimos às interpretações contidas nos discos Amor de gente moça (1959) e Amor em Hi-fi (1960),
de Sylvia Telles, Alaíde Costa Canta Suavemente (1960) e Maysa (1964). A título de gerar contraste e, assim,
facilitar a percepção das escolhas interpretativas, que salientamos em relação a esses discos, citamos a
interpretação de Elza Soares no disco Um show de Elza (1965), na qual os prolongamentos vocálicos não são
sustentados e os ataques consonantais são valorizados.
98

incerteza – presentes no fluir das águas do rio, que tem destino incerto –, e do outro, a
estaticidade e a certeza – subentendidas na crença de que Dindi chegaria/retornaria (“A minha
vida inteira, [...] esperei por você”) e no consequente estado de espera e contemplação
assumido pelo sujeito. Nesse contexto, a expansão da melodia pela tessitura, combinada com
a sequência de modulações, apoia as ideias de movimento e incerteza, ao passo que a
previsibilidade gerada pela repetição do perfil melódico (ritmo e direcionalidade) reforçam as
ideias de certeza, de estaticidade.

Figura 23 – Esquema da melodia da seção B de “Dindi”.

A melodia da seção B apresenta ainda frases com a subdivisão rítmica de


semicolcheias, recurso ainda não explorado nas seções anteriores (vide Figura 23). São
notáveis duas sequências de semicolcheias (primeiro e quinto cc. de B) que, atreladas a um
gesto descendente diatônico, evidenciam a expansão vertical da melodia e reforçam seu
caráter passionalizado. Interessante notar que esses gestos descendentes podem ser entendidos
como variações do material melódico do quarto c. da seção A. Da mesma forma, o efeito de
eco (repetição da parte final de uma frase) presente nos demais cc. de B retoma esse mesmo
procedimento usado anteriormente. Ao relacionar A e B, essa dinâmica de reaproveitamento
de material aponta para a tendência de desenvolvimento melódico – característica do processo
de expansão – e se distância da repetição literal – característica do processo de concentração.
Ainda que, em nível global, a melodia de A se repita três vezes durante toda a canção, essas
repetições também podem ser entendidas como variações se levarmos em conta as partes da
letra – sempre diferentes – que as acompanham.
Como procuramos desenvolver, “Dindi” apresenta a predominância de valores ligados
à disforia, ou seja, que evidenciam a distância entre sujeito e seu objeto de desejo. A dinâmica
99

de expansão, presente em toda a melodia, tanto no sentido vertical (tessitura), como no


horizontal (desenvolvimento melódico), adianta-se em relação à letra e inicia o movimento de
busca empreendida pelo sujeito em direção ao objeto, impulsionado apenas pela iminência da
partida (do movimento de afastamento). Com o desenrolar do plano de conteúdo, o
distanciamento prenunciado pela melodia se revela como metáfora para a impossibilidade de
enlace amoroso, restando ao sujeito aproveitar da momentânea proximidade com o objeto
para contemplá-lo.

Protocolo

A gravação de “Dindi” por Victor Assis Brasil, integrante do álbum


exclusivamente dedicado a Tom Jobim, apresenta como atmosfera predominante o andamento
desacelerado e a tendência ao uso de notas/sons prolongados – seja em termos de duração ou
através de efeitos de espacialização por processamento de sinal como o reverb, por exemplo.
Já na primeira parte da introdução (antes da entrada do saxofone) temos o estabelecimento
dessa atmosfera através da sobreposição de duas camadas. A primeira, tocada por contrabaixo
acústico, piano rhodes e bateria, estabelece a pulsação com notas longas e acordes sustentados
com duração de mínimas e semínimas (Figura 24). A guitarra acrescenta a segunda camada
constituída de um ostinato de sextinas de semicolcheias (Figura 24) que, graças à maneira
como são executadas e à escolha de timbre e efeitos, funcionam mais como textura – contínua
e homogênea – do que como uma marcação de subdivisão. De maneira geral, os
instrumentistas ouvidos até esse ponto do fonograma demonstram maior preocupação com a
caracterização de cada camada, do que com o encaixe rítmico vertical, ficando os começos de
c. propositadamente desalinhados, reforçando ainda mais a atmosfera de desaceleração e
disforia.
Com a entrada do saxofone soprano, o andamento lento se confirma e segue
durante toda a gravação. Tal escolha expande as possibilidades de variação agógica, que são
amplamente exploradas por Victor Assis Brasil e pelos demais instrumentistas, sendo o
desalinho rítmico vertical, descrito acima, um comportamento constante. Mais
especificamente, durante as seções com material musical A, ouvimos o saxofone mantendo
uma pulsação regular, em oposição aos instrumentos de acompanhamento, que contraem e
expandem a pulsação de forma irregular e independente. Durante as seções B, essa relação se
inverte quando contrabaixo e bateria passam a sustentar uma mesma pulsação regular e o
saxofone fica mais livre, adiantando ou atrasando os inícios de frase. O andamento
100

desacelerado favorece ainda a exploração de subdivisões diversas – como tercinas de


semicolcheias, fusas, tercinas de fusas – amplamente usadas pelo saxofonista em “Dindi”.

Figura 24 – Texturas ouvidas na introdução de “Dindi” conforme gravação de Victor Assis Brasil.

Essa diferença de textura entre A e B, gerada pela alteração de comportamento em


relação à pulsação, coloca a gravação analisada ao mesmo tempo próxima e distante das
interpretações anteriores. Em praticamente todas elas, também encontramos estratégias de
arranjo que visam à diferenciação entre seções, de modo a ressaltar a parada presente na
melodia e na letra da seção B. No entanto, no que tange a interação dos intérpretes com a
pulsação, a gravação de Victor Assis Brasil se organiza de forma oposta às outras, sendo que
as últimas apresentam pulsação bem definida nas seções A e mais flutuante nas seções B.
Obsevando a tessitura utilizada pelo saxofonista durante toda a gravação algumas
observações podem ser feitas. Inicialmente, se levarmos em conta as outras gravações
analisadas neste trabalho, notamos a preferência por tonalidades que, na transposição para o
saxofone, tenham um número pequeno de acidentes. No caso de “Dindi”, Victor Assis Brasil
opta pela tonalidade de Dó Maior, que na transposição para o saxofone soprano resulta em Ré
Maior (apenas dois acidentes). Além disso, nessa tonalidade, partes agudas da melodia, como
o início da seção B, alocam-se próximas ao limite superior da tessitura do instrumento. Tal
configuração aponta para a intencionalidade do intérprete de associar timbres específicos do
instrumento a determinadas partes da melodia. Mais especificamente, Machado chama a
atenção para a capacidade do intérprete de favorecer a percepção de determinado estado
fórico presente na canção, através dessa associação entre regiões específicas do instrumento
ou voz com determinadas partes da melodia (MACHADO, 2012, p. 59). No caso de “Dindi”,
o destaque gerado pela maior estridência da região aguda do sax soprano, durante o início de
cada frase de B (c. 48 e 52), potencializa a percepção desses pontos extremos da melodia e,
consequentemente, da expansão da tessitura que materializam. Esse destaque para
características melódicas relacionadas à passionalização é ainda reforçado pelo
prolongamento dessas notas iniciais de cada frase e o uso marcante de bends, elementos que
serão discutidos no item seguinte, Recursos idiomáticos.
101

Como comentamos na seção de análise da melodia e da letra de “Dindi”, a parte


principal da canção é formada por quatro estrofes diferentes que se combinam a dois materiais
musicais distintos, resultando na estrutura AEstrofe1 AEstrofe2 BEstrofe3 AEstrofe4. Tal configuração
se alinha com a estrutura ouvida em grande número de standards de jazz e que, por sua vez,
reproduz a estrutura das já citadas canções norte-americanas associadas ao repertório dos
espetáculos musicais55. A gravação de Victor Assis Brasil mantém esse núcleo A A B A como
ciclo principal (chorus), que se repete por duas vezes. A primeira é inteiramente ocupada pela
exposição da melodia no saxofone soprano e acompanhamento dos outros instrumentos
(contrabaixo, bateria, guitarra e Rhodes). A segunda repetição desse ciclo se divide entre o
solo de guitarra (A A) e a reexposição da melodia da canção no saxofone soprano (B A).
Interessante notar que, levando em consideração o solo de guitarra, “Dindi” mantém no
aspecto geral o chamado paradigma tema-improviso-tema (PIEDADE, 2005; MAXIMIANO,
2009; BASTOS, 2013), recorrente no repertório do jazz e em diversos outros influenciados
por ele. No entanto, duas particularidades chamam a atenção nessa gravação: o solo de
guitarra ocupa apenas metade de um chorus; e o saxofone soprano, instrumento que expõe e
reexpõe a melodia, não possui uma seção de improviso56.
Dentro do paradigma tema-improviso-tema, para os casos de ciclos harmônicos
com duração pré-definida57, ouvimos na maior parte das vezes os solistas improvisarem sobre
certo número de ciclos completos. No caso analisado, o solo de guitarra, que ocupa apenas
meio chorus, ao mesmo tempo em que ignora essa tendência faz referência a um
procedimento recorrente nos arranjos de canção. Aproveitando exemplos próximos, ouvimos
em versões anteriores de “Dindi” – como as de Sylvia Telles, Alaíde Costa e Elza Soares58 – a
inserção de um interlúdio instrumental sobre uma parte do ciclo A A B A seguido pelo
retorno da voz na parte restante. Essa mesma configuração de arranjo – seção instrumental
menor que um chorus e entre seções cantadas – também pode ser associada à ausência de solo
do saxofone soprano, que nesse caso estaria desempenhando função análoga a da voz. Assim

55
“Its all right with me”, “My funny valentine” e “Smoke gets in your eyes” são exemplos possíveis de canções
que, originalmente, integravam espetáculos musicais, e se organizam na estrutura (verse) A A B A e,
posteriormente, se tornaram standards, isto é, são continuamente reinterpretados por músicos de jazz em versões
instrumentais com presença marcante de improvisação (ver LEVINE, 1995, p. 383).
56
Nesse caso, a afirmação de que “Dindi” não apresenta uma seção de solo improvisado de saxofone soprano se
apoia no paradigma tema-improviso-tema que define essas seções como aquelas que ficam entre seções de
exposição da melodia. Ainda que a parte tocada pelo saxofone após o solo de guitarra apresente variações e
materiais melódicos consideravelmente distantes da melodia original, sua posição dentro da Forma da música
favorece sua percepção enquanto retorno do tema.
57
Aqui estamos nos referindo a Standards de jazz que tenham número fixo de cc. para o tema e para a seção de
improviso e estamos excluindo aqueles em que o improviso não acontece sobre ciclo harmônico do tema como
“Peace” de Ornette Coleman, por exemplo.
58
Aqui, fazemos referência às interpretações de “Dindi” presentes nos discos Amor em Hi-fi (1960) de Sylvia
Telles, Alaíde Costa Canta Suavemente (1960) de Alaíde Costa e Um show de Elza (1965) de Elza Soares.
102

como em “Só tinha de ser com você” (próxima análise a ser apresentada), essas escolhas de
arranjo favorecem a comparação entre as escolhas interpretativas de cantores e as de Victor
Assis Brasil.
A Forma da gravação analisada possui ainda uma introdução e uma Coda, que
emolduram os dois ciclos A A B A centrais, e pode ser esquematizada da maneira como
segue:

Intro | ATema ATema BTema ATema | AImproGuitarra AImproGuitarra BTema ATema | Coda

Durante a introdução ouvimos alguns elementos musicais do verse transfigurados


e reorganizados. A partir do c. 5, ouvimos o saxofone repetir a melodia dos dois primeiros cc.
do verse, porém sem respeitar as divisões rítmicas que acompanham a separação silábica. Em
outras palavras, temos uma tendência geral ao prolongamento em detrimento das subdivisões
sobre uma mesma nota presentes nas versões cantadas (Figura 25). Entre os cc. 12 e 17,
notamos que o saxofone aplica variações sobre esse fragmento melódico do verse. Em termos
rítmicos, vemos uma concentração de movimento nas anacruses dos cc. e sobre o início de
cada c., sendo que as partes centrais continuam preenchidas por notas mais longas. No plano
das alturas, as variações giram em torno de permutações da sequência de notas sol-dó-fá. Com
a chegada do c. 18, todas as formas de variação cessam, o fragmento melódico do verse é
retomado ainda mais simplificado (apenas com duas notas) e encerra a primeira parte da
introdução (c. 20).
Apesar de manter a mesma progressão de acordes correspondente ao fragmento
melódico explorado, notamos nessa seção duas alterações em relação à harmonia. Diferente
das gravações cantadas de “Dindi”, em que verse e o restante da canção estão na mesma
tonalidade, na interpretação de Victor Assis Brasil, a introdução aparece meio tom acima do
núcleo central da música. Além disso, o arranjo do saxofonista acrescenta uma nota pedal
executada pelo contrabaixo, que acrescenta ambiguidade a progressão de dois acordes ao
transformar o primeiro deles – Mí bemol Maior, tonalidade da seção – em um acorde de
suspensão (sus) – Mí bemol Maior com baixo na nota fá. A combinação desses dois
procedimentos com o comportamento melódico, centrado na permutação e variação de um
pequeno fragmento melódico, cria uma atmosfera que retoma os valores construídos pela
melodia e letra do verse. De maneira resumida, podemos associar a repetição cíclica da
melodia e da harmonia, e a ambiguidade dessa última, com a ideia de suspensão do tempo e
de contemplação. Simultaneamente, a transposição dessa seção em relação ao restante da
103

música pode ser associada à temática de distanciamento ou de partida inaugurada pelo


“movimento das nuvens” no verse.

Figura 25 – Comparação entre melodia e letra do verse com o motivo melódico da introdução da gravação de
Victor Assis Brasil.

Do c. 21 até o c. 31 temos uma seção de transição entre a introdução e o primeiro


A. Nela, elementos como o pedal sobre a nota fá e o acorde de Mí bemol Maior tocado pelo
Rhodes são mantidos. Ao mesmo tempo, elementos inéditos na gravação como a tonalidade
de Ré Maior, sugerida pelo saxofone, e o ritmo de samba tocado pela bateria prenunciam a
mudança de tonalidade e de material melódico e harmônico. Essa seção também é marcada
pelo uso de uma longa sequência de notas repetidas e articuladas em stacato (cc. 22-24),
material que não está presente na melodia original da canção, mas recorrente na interpretação
do saxofonista (cc. 45 e 73).
Com o final dessa seção de transição, chegamos à exposição da melodia. Ainda
que a melodia estabeleça claramente a tonalidade de Ré Maior (na transposição para o sax
soprano), a progressão harmônica dessa seção é radicalmente alterada e sistematicamente
evita essa tonalidade. Durante os quatro primeiros cc. da melodia de A, ouvimos uma
sequência cromática descendente de acordes de dominante com décima terceira, cada um
ocupando um tempo do c.. Esse gesto descendente executado por guitarra, contrabaixo e
piano rhodes é repetido no quinto e sexto cc.. e interrompido por um acorde dominante com
décima primeira aumentada no sétimo c.. Por fim, no oitavo c., apesar de guitarra e piano
tocarem a tríade de Ré Maior (tonalidade da melodia), sugerindo, finalmente, concordância
entre harmonia e melodia, o contrabaixo continua tocando a nota Ab, mantendo, assim, a
ambiguidade da harmonia (Figura 26 – ciclo harmônico da seção A). Para acompanhar a
seção B, o saxofonista substitui a cadência mais usual por um único acorde menor nos quatro
primeiros cc. (F#m7MA), e outro nos quatro restantes (Em7MA). Notamos também, durante essa
seção, o estabelecimento de duas camadas de acompanhamento: baixo e bateria em ostinato
rítmico sobre a fundamental de cada acorde; e guitarra e piano Rhodes com notas longas e
104

trinados. Essa configuração pode sugerir uma ligação entre a introdução e a seção B, cuja
pertinência é favorecida pela semelhança entre as letras associadas às essas duas seções
(verse/introdução e seção B).

Figura 26 – Melodia e progressão harmônica da seção A de “Dindi” conforme gravação de Victor Assis Brasil.

Em termos de instrumentação, “Dindi” apresenta uma plástica sonora particular


dentro da discografia do saxofonista, principalmente, por conta do timbre dos dois
instrumentos elétricos – Rhodes e guitarra – e da forma como eles se colocam no arranjo.
Diferente das outras gravações analisadas neste trabalho, os dois instrumentos harmônicos
não utilizam o procedimento de comping59, apesar de continuarem na função de
acompanhadores. Durante o verse, ouvimos ostinatos fixos; nas seções A, eles tocam acordes
em semínima, coincidindo com a pulsação, sem explorar subdivisões; durante as seções B, o
piano rhodes se mantém tocando acordes sustentados e a guitarra acrescenta uma nova
camada tocando uma nota por vez sempre em trinado.

Recursos Idiomáticos

Notamos em “Dindi” o uso frequente de recursos idiomáticos variados, sendo que


parte deles já foi identificada nas outras gravações analisadas e outra parte é ouvida
exclusivamente nessa interpretação. Ainda que o arranjo não inclua um solo improvisado de
saxofone, dentro do paradigma jazzístico tema-improviso-tema, as abordagens pouco fixas da
melodia da canção e do material melódico da introdução mostram grande variedade na
combinação de recursos como bends, articulações e manipulações de timbre de maneiras
diversas, contribuindo para a construção de um projeto interpretativo bastante particular. A
seguir, buscaremos compreender como Victor Assis Brasil lança mão desses recursos, e

59
Ver o Item Protocolo das análises de “Só tinha de ser com você”, “Minha Saudade” e “Feitiço a Vila”.
105

verificar a existência de possíveis relações entre eles e significados específicos do núcleo


melodia-letra da canção.
Tanto pela frequência, como pela intensidade de seu uso, os bends estão entre os
recursos mais marcantes da interpretação em questão. Em maior número estão os bends de
chegada que são ouvidos, com extensões e durações diferentes, nos cc. 34, 39, 35, 42, 43, 48,
52, 55, 56, 58, 59, 65, 68 e 69.60 Assim como adotado na transcrição de “Feitiço da Vila”,
utilizamos grafias diferentes para indicar bends com intensidade e duração menores (Figura
27 – a) ou maiores (Figura 27 – b). Em especial para o c. 52 utilizamos ainda uma terceira
grafia (Figura 27 – c), por se tratar de intensidade e duração ainda maiores que as notadas
através da grafia de b. Como na maioria dos casos analisados nesta pesquisa, os bends de
chegada estão associados a saltos intervalares ascendentes. Mais especificamente, salientamos
o uso desse recurso em todo primeiro e quinto cc. das seções B (cc. 48, 52, 65 e 69), incidindo
sempre sobre a primeira nota de cada um desses cc.. Acreditamos que, não por coincidência,
tais notas da melodia são pontos críticos do processo de expansão da tessitura e que,
consequentemente, a sensação de atraso ou esforço sugerida pelo bend de chegada reitera essa
característica do regime de passionalização, predominante em “Dindi”.

Figura 27 – Notações utilizadas para representar os bends de chegada


na transcrição da gravação de “Dindi” analisada.

Os bends de queda são ouvidos sempre no último c. de cada chorus (cc. 63 e 80),
porém, são usados sobre materiais melódicos diferentes em termos de ritmo e alturas. O único
bend de repetição é ouvido no c. 8, fato que colabora com as observações feitas em análises
anteriores de que esse recurso integra o conjunto de características, que particularizam a
performance de Victor Assis Brasil, mas que nem sempre estão associadas a características
específicas da canção interpretada.
Em termos de articulação, a tendência geral, durante a introdução e exposição do
tema, é de uma grande variedade de combinações entre tenuto e legato, que levam mais em
consideração o material musical, ao qual se associam, do que padrões de articulação pré-

60
Entendemos que seu uso mais frequente do bend de chegada em “Dindi” também está associado à escolha de Victor Assis
Brasil pelo sax soprano, que produz esse efeito com mais facilidade e variedade que os outros saxofones e,
consequentemente, possibilita seu uso em um maior número de situações.
106

definidos. Na Figura 28 (cc. 36-39, 44-47, 60-63), temos os quatro últimos cc. de cada seção
A da exposição da melodia. Notamos que, apesar de a posição de um stacato ser recorrente
(cc. 36 e 44), as sequências de articulações são tão diversas quanto são as variações da
melodia. Eventualmente, no entanto, quando um perfil melódico muito marcante é reutilizado
– como nos cc. 22, 45 e 73 (Figura 28) – ouvimos também a reutilização da mesma
articulação.

Figura 28 - quatro últimos cc. de cada seção A da exposição da melodia de “Dindi”.

A partir da reexposição do tema (cc. 65), notamos algumas particularidades nas


sequências de articulações escolhidas. Com a intensificação das variações melódicas, e a
consequente descaracterização da melodia da canção, chamam a atenção sequências mais
longas de notas em legato que acontecem sobre frases muito rápidas (cc. 70 e 71). Notamos
ainda o aparecimento de um padrão de articulação característico do jazz, em que notas do
tempo fraco recebem ataque de língua e se ligam à nota do tempo forte seguinte, sendo
exemplos possíveis os cc. 72 e 76. Nesses casos, a alusão ao jazz é ainda reforçada pelo uso
momentâneo do swing característico desse repertório. Levando em consideração essas
alterações presentes nessa seção, podemos dizer que o saxofonista altera seu comportamento
articulatório conforme se distancia da melodia da canção. Mais especificamente, padrões de
articulação pré-estabelecidos são usados quando o comportamento melódico está mais
próximo da improvisação do que da execução da melodia. Abordagens semelhantes foram
encontradas nas análises de “Só tinha de ser com você” e “Minha Saudade”, ao compararmos
as articulações usadas na exposição dessas melodias e nas seções improvisadas.
Sobre a primeira nota dos cc. 40, 52 e 56, ouvimos um tipo de manipulação
intensa do timbre não encontrada nas outras gravações analisadas. Através da elevação da
língua (diminuição da cavidade bucal), e do aumento de pressão da coluna de ar, o saxofonista
gradualmente torna mais metálico o timbre dessas notas longas. Como vimos na definição do
107

timbre manipulado (Cap. 3), essas alterações pontuais geram descontinuidade na escuta e,
consequentemente, chamam a atenção do ouvinte para as passagens em que são utilizadas. No
caso específico dos cc. 52 e 56, essa manipulação do timbre se associa ao bend de chegada e
reforça ainda mais o sentido de disforia, gerado por esse recurso idiomático que acumula
tensão aos saltos ascendentes.
Outro recurso idiomático utilizado exclusivamente em “Dindi” (levando em conta
o recorte desta pesquisa) são os sons “não convencionais”, ouvidos nos cc. 44, 51 e 71. Da
união entre frases de tessitura grande, executadas muito rapidamente, e a dissincronia entre
digitação e ataques de língua surgem sons sem altura definida e com o timbre alterado. Esse
recurso também pode ser ouvido em outras faixas do mesmo disco, como “Wave”, e sua
presença reforça o apontamento de que, nessa fase de sua discografia (1969-1974), o
saxofonista atualizava os referencias jazzísticos de sua produção, incorporando elementos e
procedimentos do jazz modal e do Free jazz (vide Cap. 1, item Samba, jazz, Bossa Nova:
atrito e conciliação).
Ouvimos também em “Dindi”, com frequência menor que os recursos citados
acima, trinados (cc. 54 e 81) e apojaturas (cc. 10, 12, 71, 75 e 79). Em especial, esse último
pode ser interpretado de forma semelhante ao bend de repetição: ainda que nem sempre esteja
diretamente associado a partes específicas da melodia, está presente em todas as gravações
aqui analisadas de Victor Assis Brasil e contribui na particularização de sua performance.
A última escolha interpretativa que gostaríamos de destacar em “Dindi”, apesar de
não poder ser considerada um recurso idiomático, está associada à pós-produção (mixagem).
Durante a Coda, a partir do c. 85, notamos um sensível aumento na quantidade de reverb no
canal do saxofone. O reverb é um efeito de processamento de sinal, que simula ambiências
variadas, e, da maneira como foi usado, cria a sensação de que o saxofone se distancia do
ouvinte. Essa sugestão de afastamento se alinha com a mesma ideia de afastamento central na
letra de “Dindi” e materializada pelo movimento das nuvens, que são levadas pelo vento ou
pela iminente partida da mulher amada. Assim como no caso do bend de chegada e da
manipulação do timbre, a escolha interpretativa pelo aumento do reverb sugere a atenção do
intérprete com os sentidos da canção na construção do projeto interpretativo.

Variações e Recorrências

Olhando em uma perspectiva global, o projeto interpretativo de “Dindi” se revela


bipartido, tanto em relação ao arranjo, como em relação às escolhas no plano da interpretação.
Durante a introdução e a Coda, ouvimos um acompanhamento harmonicamente estático,
108

baseado na repetição de um ciclo pequeno de dois cc., e o comportamento melódico do


saxofonista restrito a um fragmento do verse, que é variado apenas com o acréscimo de duas
notas (vide o item Protocolo desta análise). Por outro lado, durante a exposição e reexposição
do tema ouvimos cadências harmônicas mais longas e maior liberdade dos acompanhadores,
principalmente, em relação ao ritmo. No plano da interpretação, a melodia sofre intensas
variações de ritmo e de contorno, bem como é combinada com frases inteiramente
improvisadas (fills).
Em relação ao uso de recursos idiomáticos, essa divisão entre intro/coda e
exposição/reexposição da melodia é mantida. No primeiro caso, o saxofonista mantém um
timbre menos brilhante e se utiliza de poucos desses recursos: algumas apojaturas e as
articulações básicas (tenuto e stacato). Essas características, combinadas com variações
melódicas simples (sempre sobre as mesmas notas e sobre a mesma subdivisão) e a
estaticidade do acompanhamento, conferem à introdução e à coda um caráter de serenidade.
No caso da exposição/reexposição, ouvimos o uso frequente e variado de outros recursos
idiomáticos como bends, manipulações do timbre, fills melódicos e sons sem altura definida.
Por sua vez, essas características se combinam com variações melódicas mais radicais, e com
um acompanhamento com direcionalidade clara (gesto descendente), tornando a exposição e
reexposição da melodia enérgicas e agitadas apesar do andamento lento.
Como o desenvolvido na análise de seu núcleo melodia-letra, “Dindi” apresenta
uma dualidade entre o estado contemplativo do sujeito, durante o verse, e o sofrimento pelo
distanciamento iminente do objeto e a impossibilidade de enlace amoroso, presentes nas
outras quatro estrofes da música. Do ponto de vista musical, essa dualidade também se
mantém já que os materiais musicais A e B reutilizam pouco ou nada do que foi apresentado
no verse. Alinhado a isso, o projeto interpretativo de Victor Assis Brasil não só incorpora
essa dualidade, como a reforça. Alterando, significativamente, o acompanhamento e as formas
de variação e interpretação da melodia, entre as seções periféricas (intro/coda) e as seções
centrais, o saxofonista materializa a posição ambígua em que se encontra o sujeito da canção:
eufórico por poder contemplar seu objeto de desejo e disfórico pela iminente separação.
No entanto, essa dualidade não é simétrica e o fazer emissivo, que nesse caso
favorece a disforia, constrói, durante toda a narrativa, um conjunto de impossibilidades e
incertezas em relação ao enlace amoroso que, no fim, acabam por resignar o sujeito a apenas
continuar observando e adorando seu objeto de desejo. Na gravação do saxofonista, esse
mesmo fazer emissivo guia sua interpretação que, sistematicamente, valoriza e reforça as
características passionais (disfóricas) da melodia. Na exposição e reexposição da melodia,
ouvimos a presença constante de notas sustentadas e bends de chegada que chamam a
109

atenção, respectivamente, para o contorno melódico e para os saltos intervalares. Além disso,
se aproveitando do andamento desacelerado, Victor Assis Brasil aplica constantes variações
de agógica, desalinhando as acentuações da melodia e do acompanhamento, comportamento
característico das canções passionais (ver Cap. 3).
O projeto interpretativo de “Dindi” ainda apresenta uma característica importante
em relação às variações e recorrências da melodia. Assim como em “Feitiço da Vila”, mais do
que sempre variar a melodia, o saxofonista constrói uma progressão que aumenta,
paulatinamente, a frequência de intervenções, seu tamanho e o grau de alteração da melodia.
No caso de “Dindi”, esse comportamento é levado às últimas consequências, resultando na
descaracterização de grande parte da melodia da reexposição (cc. 65-80) e o consequente
afastamento da interpretação, nessa seção, de possíveis ligações com sentidos da melodia e da
letra. Ainda assim, notamos que, nessa gradação de “menos variado” para “descaracterizado”,
Victor Assis Brasil mantém uma característica fundamental do regime de integração passional
predominante em “Dindi”. A cada acréscimo de nota na melodia, a cada fill improvisado,
ouvimos a sugestão de expansão vertical da melodia, que passa a percorrer um intervalo da
tessitura cada vez maior em cada vez menos tempo, culminando com os cc. 71 e 72, cujas
frases ocupam, praticamente, toda a tessitura do instrumento.

Considerações Finais

Localizada no meio do período em que Victor Assis Brasil estudava nos EUA
(1969-1974), a gravação de “Dindi” reforça a constatação de que, nessa fase, o saxofonista
atualizava seu referencial jazzístico, acrescentando elementos e procedimentos do jazz modal
e do Free jazz ao já conhecido bebop, dos anos 1940. Na prática, ouvimos recursos, como
sons sem altura definida e transformações mais radicais do material composicional, com o
intuito de criar, por exemplo, seções modais na introdução e nas partes B da melodia.
Do ponto de vista das ligações entre projeto interpretativo e o sentidos contidos
na integração entre melodia e letra, o saxofonista apresenta em sua gravação uma construção
de dualidade assimétrica, que estabelece paralelos com a relação entre euforia e disforia
presente na canção. Como fazer remissivo, temos uma interpretação que varia a melodia
radicalmente e se assemelha às gravações de “Feitiço da Vila” e “Minha Saudade”, mais
comprometidas com a performance instrumental. Por outro lado, na atuação do fazer emissivo,
ouvimos a constante ligação com o estado disfórico que predomina no núcleo de identidade
da canção. Em termos de arranjo, o saxofonista, além de não inserir uma seção de solo
improvisado, mantém ideias estruturais importantes para a construção de sentido da canção
110

como: a diferenciação entre B e A (parada e parada-da-parada) e a separação entre o verse e


o restante das seções. No plano da interpretação, a formas de variação da melodia, a escolha
de tonalidade e de instrumento e o uso dos recursos idiomáticos, sistematicamente, reforçam
as características melódicas do regime de integração entre melodia e letra passional.
111

4.4. “Só tinha de ser com você”

Introdução

Victor Assis Brasil grava a canção “Só Tinha de ser com você”, em 1970, no
disco Victor Assis Brasil Toca Tom Jobim, o terceiro de sua carreira. Como apontado
anteriormente na análise de sua discografia, esse disco dialoga fortemente com o que
definimos por samba-jazz, em diversas características: na instrumentação, na Forma, na
escolha do repertório – apenas composições de Jobim associadas ao repertório da Bossa Nova
– na presença, praticamente, constante da matriz rítmica do samba, na maneira de interagir
entre acompanhadores e solista e, por fim, na importância atribuída ao improviso sobre a
sequência de acordes da música.
No entanto, especificamente em “Só tinha de ser com você”, notam-se algumas
características particulares – como a ausência de improviso por parte de Victor e o uso de
determinados recursos idiomáticos de maneira sistemática sobre partes da melodia original –
que, como pretendemos demonstrar, apontam para a presença de um projeto interpretativo
atento aos significados da canção.

Melodia e Letra61

A letra de “Só tinha de ser com você” se organiza em três estrofes diferentes, cada
uma delas acompanhada por um material melódico também diferente, configuração que já de
início sugere um comprometimento em nível extenso com o processo de expansão. Como o
desenvolvido no Cap. 3, esse processo de expansão, predominante em canções disfóricas
(passionais), valoriza o desenvolvimento da canção em partes diferentes (em oposição à
repetição literal de um refrão, por exemplo), bem como favorece o aumento do trajeto
percorrido pela melodia e pela letra, materializando, assim, a distância entre sujeito e objeto.
No caso aqui analisado, esse processo de expansão, apesar de constante, acontece de maneira
gradual e controlada pela atuação secundária do processo de concentração, que insere
recorrências no discurso.
Durante a primeira estrofe de “Só tinha de ser com você”, temos a apresentação
do sujeito, que se coloca também como enunciador do discurso (“Eh, só eu sei”), e de seu
objeto de desejo, que, por sua vez, coincide com a função de enunciatário, aquele para quem o

61
A letra e a melodia de “Só tinha de ser com você” se encontram em versão integral nos anexos B4 e C4.
112

discurso de dirige. O primeiro, apesar de declarar efusivamente seu amor pelo segundo, não
revela se esse enlace amoroso já se concretizou ou se é correspondido. Construída com versos
curtos, essa primeira estrofe apresenta ainda a ideia de uma trajetória anterior, de que o amor
declarado já existia antes mesmo de se estabelecer qualquer relação entre os actantes. No
entanto, apenas quando esse objeto passa a ser conhecido pelo sujeito, essa trajetória adquire
um sentido: a conjunção. Atrelada à predominância de prolongamentos vocálicos, essa ideia
de trajeto em direção à conjunção com o objeto inaugura, no plano de conteúdo, a atuação do
regime passionalizado, dominante em “Só tinha de ser com você”.
Na segunda estrofe, o enunciador passa a caracterizar essa possibilidade de
conjunção ainda sem revelar se ela já ocorreu ou se poderá ocorrer. Mais uma vez se referindo
a experiências anteriores, afirma que as outras relações amorosas eram “mais uma dor” se
comparadas com a atual possibilidade de enlace. Essa exaltação do objeto de desejo, e da
esperada conjunção com ele, é acompanhada por uma alteração estrutural da letra, que
diminui a presença de prolongamentos vocálicos e se utiliza de frases maiores. Tal
configuração de sentido, relacionada à exaltação do objeto, e a maior concentração de ataques
consonantais, caracterizam a presença do regime tematizado nessa estrofe, que, assim, coloca-
se em oposição à primeira, comprometida com a passionalização.
A terceira estrofe de “Só tinha de ser com você”, apesar de continuar exaltando o
objeto de desejo (“Você que é bonito demais”), finalmente revela a não realização do enlace
amoroso. Na passagem “você que é feito de azul, me deixa morar nesse azul”, o enunciador,
ao pedir para se unir ao outro, deixa subentendida a atual situação de disjunção. Com a
continuação dessa estrofe, através do verso “se ao menos [você] pudesse saber”,
depreendemos ainda que sujeito e objeto não apenas estão separados, como o segundo não
tem consciência do afeto demonstrado pelo sujeito.
De maneira esquemática, na letra encontramos uma progressão que parte da
descoberta do objeto de desejo pelo sujeito (primeira estrofe), passa pela exaltação desse
objeto (segunda estrofe), e termina com a não realização do enlace, que permanece como
projeto (terceira estrofe). Ainda que, no término desse caminho percorrido pelo sujeito, o
estado disfórico prevaleça, notamos a presença marcante da euforia na exaltação do objeto de
desejo e na constante possibilidade de conjunção. Como buscaremos demonstrar, a seguir,
esse atrito entre os dois estados fóricos opostos determina também a construção da melodia da
canção.
Conforme apresentado de maneira esquemática na Figura 29, em nível extenso, a
tessitura ocupada pela melodia de “Só tinha de ser com você” desenvolve um trajeto de
expansão gradual durante suas três estrofes, o que, segundo a Semiótica da Canção, pode ser
113

compreendido como uma metáfora do trajeto percorrido pelo sujeito na busca por seu objeto
de desejo. Além disso, podemos destacar ainda a presença de saltos intervalares grandes entre
a última nota da melodia de cada estrofe e a primeira nota da melodia da estrofe subsequente;
mais um elemento característico do processo de expansão, e que, consequentemente, contribui
para a construção do caráter de passionalização presente nessa canção.

Figura 29 – Desenvolvimento da tessitura na melodia das três estrofes de “Só tinha de ser com você” (conforme
transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil).

No entanto, como o constatado na letra, notamos também a atuação secundária,


porém, marcante, do processo de concentração na canção analisada. Especificamente, na
melodia, que acompanha a primeira estrofe, algumas características reforçam essa ideia de
atuação recíproca entre os regimes passional e tematizado. Os prolongamentos vocálicos,
presentes nessa estrofe, favorecem a percepção do contorno melódico e evidenciam, dentro
dessa seção A (melodia e letra da primeira estrofe), um tímido procedimento de expansão da
tessitura ouvido em seus quatro primeiros cc., e que reproduz, em nível intenso, a expansão
geral que ocorre durante toda a música. Porém, a partir do c. 9, esse procedimento é
substituído pela repetição literal de um mesmo motivo melódico, clara manifestação do
regime tematizado. Não por coincidência, esses motivos se repetem sobre as estrofes “Sem
saber/ que era só/ pra você”, momento em que o enunciador se dirige pela primeira vez ao
enunciatário e declara seu amor.
Durante a segunda e terceira estrofes (seções B e C, respectivamente), o
procedimento de desenvolvimento gradual da melodia pela tessitura passa a direcionar a
totalidade da melodia. Na prática, ouvimos um motivo (Figura 30) que é repetido e transposto
sistematicamente, delineando assim um trajeto no campo da tessitura. Além de bastante
característico ritmicamente – uma variação do que ficou conhecido como a “batida de João
Gilberto” (GOMES, 2010, p. 42-3) –, esse motivo se utiliza apenas de saltos intervalares
pequenos, de no máximo uma terça maior. Essas duas características – rítmica marcante e
tessitura pequena – ligam esse elemento melódico, em nível intenso e local, ao processo de
concentração (tematização), comprometido com a exaltação do objeto de desejo contida na
segunda e terceira estrofes. Ao mesmo tempo, em nível extenso e global, o conjunto de
114

repetições desse mesmo elemento materializa o fazer emissivo comprometido com a


passionalização, e que volta sua atenção para o trajeto percorrido pelo sujeito em direção à
conjunção ainda não concretizada.

Figura 30 – Exemplos do motivo melódico repetido com frequência na 2a. e 3a. estrofes de “Só tinha de
ser com você” (extraídos da transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil).

De um ponto de vista global, obervamos em “Só tinha de ser com você” o


desenvolvimento de um grande trajeto melódico durante as três estrofes da canção. Em
concordância a isso, no plano de conteúdo, podemos apontar a revelação gradual do estado de
disforia entre sujeito e seu objeto. No entanto, como que diluindo esse regime de integração
melodia-letra passionalizado, encontramos também elementos ligados à tematização,
sugerindo uma possibilidade de correspondência entre o sujeito e a “pessoa amada” (Que eu
sempre fui só de você / Você sempre foi só de mim) ou a concretização da união
sujeito/objeto em um futuro próximo.

Protocolo

Em relação às escolhas interpretativas tomadas anteriormente à performance, a


gravação analisada apresenta semelhanças e diferenças com outras interpretações da mesma
música anteriores. Ao mesmo tempo, sugere também ser influenciada por características do
samba-jazz, referencial importante da produção de Victor Assis Brasil. A seguir, analisaremos
escolhas relacionadas ao andamento, à tonalidade, à Forma e à instrumentação, e buscaremos
apontar como elas influenciam na percepção dos sentidos contidas na interação entre melodia
e letra da canção.
Na gravação de “Só tinha de ser com você” por Victor Assis Brasil, ouvimos uma
introdução muito breve de apenas um tempo de compasso 2/4, realizada pela bateria. De
caráter funcional, essa introdução indica o andamento e a subdivisão rítmica predominante na
peça – a de semicolcheia. O andamento em questão é levemente mais acelerado do que o da
115

maioria das gravações anteriores62. De forma geral, andamentos acelerados favorecem a


percepção dos ataques rítmicos da melodia e aproximam as repetições de motivo.
Consequentemente, na gravação aqui analisada, essa escolha interpretativa reforça as
características ligadas à tematização, regime de integração secundário na canção.
Em relação à Forma, as escolhas do saxofonista apontam para uma tensão entre
estruturas recorrentes no samba-jazz em contraposição a outras mais comuns ao universo da
canção. Assim como na execução padrão de um standard de jazz, na gravação de Victor Assis
Brasil encontramos a estrutura tema-improviso-tema acrescida de uma coda – um improviso
de saxofone em fade out sobre uma harmonia cíclica de oito compassos. Durante a primeira
exposição do tema, ouvimos em sequência os três materiais melódicos diferentes que
acompanham as três estrofes de letra – seções A, B e C. O improviso acontece sobre a
harmonia dessas mesmas seções, e a reexposição do tema, apenas sobre A e B. No entanto,
dentro dessa estrutura Formal, Victor opta por não fazer um solo improvisado, passando essa
tarefa para o guitarrista Hélio Delmiro. Além disso, notamos também a escolha – ainda que
incidental – por um improviso de curta duração sobre apenas um chorus. Tais
comportamentos podem sugerir ao menos duas interpretações: que o saxofonista atribui
importância a sua interpretação da melodia da canção, sendo essa suficiente para justificar sua
participação na gravação; e a proposição de uma Forma intermediária entre o samba-jazz e o
universo da canção, na qual improviso e interpretação da melodia possuem importâncias
semelhantes.
De forma análoga aos intérpretes vocais, os instrumentistas de sopro, com
frequência alteram a tonalidade de uma música para adequar a tessitura da melodia à tessitura
de seu instrumento. Mais do que isso, segundo Machado (2012, p. 59), a escolha de uma
tonalidade específica por parte do intérprete pode sugerir a intenção de expor determinada
região de sua tessitura “que possivelmente se compatibilizaria com o plano de conteúdo” da
canção. Guardadas as devidas proporções entre a voz e o saxofone, o caso aqui analisado
aponta para essa intencionalidade na escolha da tonalidade.
Além de simplesmente alocar a melodia em uma tessitura possível para o
saxofone alto, Victor escolhe a tonalidade de Mí bemol (som real) para que a parte mais
aguda da melodia coincida com uma região aguda da tessitura do saxofone. Mais
precisamente, devido à escolha de tonalidade realizada por Victor, a melodia que acompanha
os quatro primeiros versos da terceira estrofe (Figura 31) é iniciada pela nota Fá 5 (Ré 6 na

62
Foram ouvidas as versões presentes nos seguintes discos: Caymmi visita Tom (1964), Antônio Carlos Jobim &
Sergio Mendes (1964), The Astrud Gilberto Album With Antônio Carlos Jobim (1965), Trio 3-D convida (1965),
Bossa Nova York (Sergio Mendes, 1967) e Inútil Paisagem (Eumir Deodato, 1964).
116

transposição para o saxofone), que corresponde a uma região aguda do saxofone. Dessa
forma, o saxofonista acrescenta brilho e projeção ao timbre dessa passagem clímax da
melodia e, consequentemente, favorece a percepção do percurso melódico. Seguindo os
preceitos da Semiótica da Canção, o caráter passional de uma melodia revela-se também pela
percepção de um longo percurso melódico, estabelecido pela distância entre seus extremos,
fato que materializa a distância entre sujeito e objeto. No caso dessa canção, esse estado
juntivo é tratado na letra e reiterado pela melodia que realiza um salto em direção ao agudo, e
estabiliza a permanência nessa região, através de movimentos repetitivos: “é você que é feita
de azul/ me deixa morar nesse azul/ me deixa encontrar minha paz”.

Figura 31 – c. 34-37 da transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil de “Só tinha de ser com
você” (Anexo 1).

No que diz respeito à instrumentação, a gravação de Victor se encaixa na


definição que Gomes (2010) propõe para o samba-jazz, na qual, segundo entendemos, o disco
de Victor Assis Brasil em questão se encaixa63. Segundo o autor (2010: p. 47), o samba-jazz
abarca um processo de fricção intenso entre o jazz e o samba. Nesse processo foram
incorporados do jazz não apenas procedimentos – como um tipo específico de improviso, o
comping64 e a Forma do standard –, mas, também, elementos de estilo – como
comportamento melódico, repertório e instrumentação. Na gravação em questão, ouvimos
uma instrumentação de quarteto consagrada pelo jazz a partir dos anos 1940 – saxofone,
piano, baixo e bateria – acrescido de guitarra, instrumento também bastante comum a todo o
repertório jazzístico.

63
Apesar de o disco “Victor Assis Brasil toca Tom Jobim” (1970) estar fora da periodização do samba-jazz
proposta por Gomes (p. 82-89), a saber 1952-1967, entendemos que esse disco dialogue diretamente com o
Samba-Jazz e suas características.
64
Forma de acompanhamento harmônico e/ou rítmico, improvisado e característico do Jazz pós-anos 1940.
Com frequência não é cíclico e se apoia (determina) (n)a subdivisão rítmica da peça musical. Segundo Levine, o
comping tem a função de dar suporte e estimular harmonicamente e ritmicamente um solista.
117

Recursos idiomáticos

Na gravação de Victor de “Só tinha de ser com você”, notamos a presença


marcante de recursos idiomáticos, como a articulação, o bend, o glissando, “notas mortas”
(ghost notes), a apojatura, o trinado e o “som rouco” (growling). Nesse trabalho,
concentraremos nossa atenção sobre a articulação e o bend, que, além de serem ouvidos com
mais frequência, sugerem um planejamento de seu uso por parte do intérprete.
Produzido a partir da variação na pressão dos lábios ao tocar uma única nota, esse
recurso idiomático tem como resultado sonoro a variação da afinação dessa nota. Bastante
ouvido nas gravações de Victor Assis Brasil, divide-se em três tipos diferentes: bend de
chegada, bend de repetição e bend de queda. A seguir, buscaremos ligações entre as
ocorrências dos dois primeiros tipos, mais frequentes na gravação estudada, e as
características melódicas, que particularizam o núcleo melodia e letra da canção.
Os bends de chegada podem ser ouvidos nos cc. 5, 13, 37, 41 e 59 e aparecem
associados, principalmente, a saltos intervalares ascendentes que atingem notas do limite
superior da tessitura da melodia. A utilização desse recurso nessas situações gera uma
sensação de atraso ou de dificuldade na execução desses saltos, o que pode favorecer a
percepção de que esses são ainda mais longos. Somando isso à escolha de tonalidade, que
aloca esse limite da tessitura melódica em uma região brilhante do saxofone, podemos apontar
para um comportamento interpretativo, que sistematicamente valoriza, chama a atenção, para
elementos melódicos relacionados à percepção do trajeto melódico e que, consequentemente,
alinha-se com a integração melodia e letra predominante na canção, a passionalização.
O segundo tipo de bend descrito acima – que será chamado de bend de repetição
– pode ser ouvido nos c. 9, 23, 29, 31, 35, 45 e 71. De maneira geral, o bend de repetição
sugere uma repetição de nota sem a interrupção da coluna de ar e sem um toque de língua. Na
interpretação aqui analisada, esse bend é utilizado como recurso de variação nas duas
primeiras notas da figura rítmica  – motivo melódico que, como o colocado na
análise da melodia e da letra, é recorrente e fundamental na construção da melodia de “Só
tinha de ser com você”.
Semelhante a versões instrumentais anteriores – como a de Eumir Deodato
(1964), do Trio 3-D (1965), e a presente no disco Bossa Nova York (1967), de Sergio Mendes
– Victor reitera com frequência essa figura rítmica, com ou sem o bend de repetição. Tal
comportamento, potencializado pela escolha de um andamento mais acelerado, sugere um
reforço do caráter motívico da melodia e, consequentemente, uma valorização do regime
secundário de integração entre melodia e letra presente na canção, a tematização.
118

Outro importante fator na definição do projeto interpretativo analisado diz


respeito à maneira como o saxofonista combina as diversas possibilidades de articulação das
notas. Notamos, durante a exposição e reexposição da melodia, a predominância de notas
tocadas em tenuto que, intercaladas com notas acentuadas pelo bend de repetição, facilitam a
percepção do motivo rítmico característico que se repete durante toda a melodia das seções B
e C. No entanto, durante a parte final da música (c. 78 em diante) – seção em que o
saxofonista improvisa em torno da melodia e, em seguida, livremente sobre o loop da coda –
ouvimos uma alteração no comportamento articulatório, que passa a utilizar sequências de
notas ligadas (cc. 79 e 92), e, até mesmo, o padrão comumente utilizado por saxofonistas
associados ao jazz (cc. 86-87, por exemplo). Assim como o encontrado nas análises de
“Minha Saudade” e “Dindi”, notamos na gravação estudada que o saxofonista abandona
escolhas de interpretação alinhadas com o material melódico da canção, na medida que se
afasta desses materiais e passa a improvisar.

Variações e recorrências

Além da possível intencionalidade já mencionada na escolha da tonalidade e no


uso dos recursos idiomáticos do saxofone, existem ainda dois procedimentos estruturais na
interpretação de Victor Assis Brasil que apontam para uma construção de coerência em seu
projeto interpretativo.
O primeiro desses procedimentos está relacionado ao uso de recursos
interpretativos de maneira recorrente na exposição e reexposição do tema. Apesar de essa
última ser menos extensa – deixando a melodia da terceira estrofe de fora –, podemos listar
uma série de semelhanças entre as duas seções. Logo na passagem do c. 2 para o c. 3,
ouvimos um glissando do Sol para o Síb que se repete na reexposição (c. 57). Esse caminho
em direção ao agudo, suavizado pelo glissando, é apresentado adiante de forma contrastante
no c. 5, com um bend de chegada que “dificulta o caminho” até a nota Sí, sendo esse recurso
também repetido na reexposição no c. 59 (Figura 32). Notamos ainda, a inserção de frases
improvisadas (fill) em passagens equivalentes das seções de exposição e reexposição da
melodia. Os c. 8 e 15, que seriam pausas da melodia original, são preenchidos por breves
frases improvisadas pelo intérprete. De forma análoga, quando esses mesmos espaços
aparecem na reexposição da melodia (c. 62 e 69), Victor também os preenche com novas
frases improvisadas.
119

Figura 32 – Recorrência do uso de recursos idiomáticos em partes análogas da exposição e reexposição


do tema.

Outro ponto estrutural para a construção de coerência no projeto interpretativo


analisado são os procedimentos de variação da melodia aplicados pelo saxofonista. De forma
resumida, o instrumentista não acrescenta notas no decorrer da melodia, apenas nos
momentos de “descanso”, de pausa. Tal procedimento se assemelha ao que no jazz é
comumente chamado de fill – e que, como o termo sugere, significa preencher os espaços de
uma melodia, no geral, preparando a sua retomada. Esse comportamento pode ser observado
durante toda a parte tocada pelo saxofonista, porém, é mais evidente nos c. 8, 15 e 69. Nos
dois últimos casos, esses “comentários” percorrem a distância vertical que separa as seções A
e B, chamando a atenção, mais uma vez, para o trajeto desenvolvido pela melodia na tessitura
e, consequentemente, reforçando o alinhamento entre a interpretação e a ideia de disjunção
entre sujeito e objeto presente no núcleo melodia-letra.
Em relação às variações rítmicas da melodia, Victor Assis Brasil se utiliza de
alguns recursos similares aos encontrados em interpretações vocais. Dentre eles, ouvimos a
alteração da rítmica de notas repetidas, como se o saxofonista alterasse o ritmo das divisões
silábicas. Essa aproximação entre cantor e instrumentista se torna ainda mais estreita, quando
relembramos que na gravação estudada o intérprete não acrescenta notas à melodia, igualando
seu número de ataques rítmicos em uma frase ao número de sílabas do verso correspondente.
Podemos apontar também o adianto ou atraso de resoluções da melodia. A primeira dessas
possibilidades pode ser ouvida nos c. 36 e 38, por exemplo, ao passo que a segunda
possibilidade é marcante nos c. 41-42, 57 e 59-60.
Apesar de algumas exceções (como nos c. 28, 30 e 47), essas decisões em relação
à variação da melodia figuram durante toda a parte tocada por Victor, e podem sugerir um
entrelaçamento entre duas propostas distintas de seu projeto interpretativo: a manutenção da
120

melodia original, no intuito de se manter próximo da canção e de seus significados; e uma


performance interessante, do ponto de vista do instrumentista e da técnica do saxofone – que,
aqui, entendemos como o uso combinado de recursos idiomáticos do saxofone e da
capacidade de improvisação do intérprete na construção de sentido no plano expressivo.

Considerações finais

Quando dissociada da letra, a canção adquire relativa flexibilidade em relação à


reconstrução de seus sentidos. Nesse contexto, o intérprete toma decisões que podem
direcionar sua performance para caminhos opostos: o resgate, a partir desse meio
instrumental, das relações entre melodia e letra contidas na composição da canção; ou o
abandono dessas relações e o uso dos recursos disponíveis na construção de novos sentidos, a
partir desse material revisitado.
Em “Só tinha de ser com você”, Victor Assis Brasil localiza sua interpretação
entre os dois extremos, por vezes, comprometendo-se mais com o interesse gerado pela
performance instrumental em si, e, em outros momentos, atentando para as características da
integração entre melodia e letra. Em escolhas como a instrumentação, as estratégias de
acompanhamento e a estrutura Formal, a gravação analisada transparece ser influenciada pelo
repertório do samba-jazz, majoritariamente instrumental e centrado na improvisação com
referencial jazzístico. Ao mesmo tempo, concentrando sua performance nas seções de
exposição e reexposição do tema, e não improvisando na seção central de solo, o saxofonista
sugere igual importância entre improvisação e interpretação da melodia da canção, sendo a
última suficiente para justificar sua participação na gravação.
Como procuramos demonstrar durante a análise, essa atenção dada pelo
saxofonista ao material cancional estabelece relações ainda mais profundas entre os sentidos
contidos na interação melodia e letra e seu projeto interpretativo. Através da escolha de
tonalidade, do uso de recursos idiomáticos como o bend de chegada e de procedimentos de
variação, que não descaracterizam os contornos melódicos, Victor Assis Brasil favorece a
percepção do trajeto desenvolvido pela melodia na tessitura e alinha sua interpretação com o
regime passionalizado, predominante na melodia e na letra de “Só tinha de ser com você”.
Simultaneamente, com a opção por um andamento mais acelerado e o uso combinado de
bends de repetição e articulação em tenuto, o saxofonista também reforça o processo de
concentração melódica (materializado nas repetições de motivos rítmicos) comprometido com
o regime secundário de tematização.
121

4.5. “O cantador”

Introdução

Composição de Dori Caymmi e Nelson Motta, “O Cantador” tornou-se


largamente conhecida através da interpretação de Elis Regina, no 3º Festival da Música
Popular Brasileira da TV Record de 1967. Desde então, foi gravada por diversos intérpretes,
entre eles, o próprio Dori Caymmi, em seu álbum homônimo de 1972, e Nana Caymmi, no
álbum Só Louco, de 1989. De perfil melódico marcante, com saltos ascendentes em direção ao
agudo e notas longas nessa região, a canção exige a atenção dos cantores nas escolhas de
tonalidade e emissão.
Em versão instrumental, “O Cantador” foi gravada por Victor Assis Brasil em
duas ocasiões diferentes: no ano de 1977, no disco Ao Vivo no Museu de Arte Moderna, em
duo com Luis Eça; e em 1980, no seu último disco de estúdio intitulado Pedrinho. A segunda
gravação, objeto desta análise, apresenta escolhas interpretativas e de arranjo incomuns aos
universos do jazz e do samba-jazz. A seguir, buscaremos delinear essas particularidades e
apontar ligações entre a performance do saxofonista e os sentidos gerados pela integração
entre melodia e letra da canção.

Melodia e letra65

Já no título da canção – “O Cantador” –, ao mesmo tempo em que podemos


depreender seu caráter metalinguístico, ao utilizar fazer cancional como tema para sua
realização, notamos também a opção por individualizar o sujeito através do artigo definido
“o”. Como buscaremos demonstrar nesse item, o paradoxo entre a condição universal de “um
cantador” e a individualidade “d’o cantador”, encerrado em um só sujeito, extrapola o título e
guia o projeto cancional como um todo.
De modo geral, nas duas primeiras estrofes, notamos a caracterização feita pelo
próprio sujeito a respeito de sua condição. Inicialmente aproximada à imagem de viajante,
logo no quarto verso da primeira estrofe, tal condição se revela plenamente na forma do
viajante-cantor, o cantador, e, imediatamente, coloca em evidência o caráter de universalidade
dessa condição que canta “a dor, a vida e a morte [e] o amor”, enquanto categorias
arquetípicas de emoções e acontecimentos. Ao mesmo tempo, e em oposição a essa

65
A letra e a melodia de “O Cantador” se encontram em versão integral nos anexos B5 e C5.
122

abrangência do seu cantar, o sujeito também deixa transparecer em “vou pra onde a estrada
levar” e em “só sei cantar” sua passividade em relação a essa condição de cantador.
A segunda estrofe se aprofunda ainda mais na condição do cantador e na relação
de proximidade entre essa atividade e a de viajante. Nessa comparação, ao menos dois
aspectos são ressaltados. O primeiro coloca que o cantador, assim como o viajante, não tem
um objetivo ou destino para sua atividade, mas que a exerce por simplesmente não conseguir
deixar de fazer. O segundo aspecto é a noção de que cantador e viajante são observadores e
que, consequentemente, suas canções ou relatos não dizem respeito a eles próprios, e sim ao
que viram e presenciaram. Nos dois casos, notamos o reforço na ideia de passividade por
parte do sujeito em relação ao seu cantar. Ao mesmo tempo, ainda nessa estrofe, o sujeito
enfatiza – semanticamente (letra) e expressivamente (melodia) – a força de seu canto capaz
até mesmo de lidar com a morte. Através dessa antítese passividade-força, a segunda estrofe
prepara de forma sutil a intensificação do conflito entre as duas “dores” que se encontram no
sujeito: a de caráter universal, observada por ele no mundo, e a particular, resultante de sua
própria vivência.
Na terceira e última estrofe de “O Cantador”, a individualidade do sujeito, até
então perceptível apenas em indicadores sintáticos – como conjugações verbais e pronomes –,
assume, brevemente, o centro do discurso. A passividade da condição de cantador se revela
impotência perante a dor não mais arquetípica, mas, sim, particular do sujeito, vivida por ele.
O sofrimento vence a passividade e encoraja o sujeito a questionar pela primeira e única vez
sua condição (“De que serve meu canto e eu/Se em meu peito há um amor que não
morreu/Ah, se eu soubesse ao menos chorar”). Porém, a condição irrefreável de cantador
rapidamente se sobrepõe ao sofrimento. Ainda que a dor particular do sujeito passe a ser
conteúdo de seu canto, sua condição de observador e solitário torna a “dor cantada” impessoal
(“Ah, eu canto a dor de uma vida perdida sem amor”) e reafirma sua posição de passividade e
impotência ao ponto de nem ao menos poder sofrer a própria dor (“Ah, se soubesse ao menos
chorar/ [...] só sei cantar”).
A ideia de que a sina do cantador irá prevalecer em relação ao sofrimento
particular do sujeito é ainda reforçada pela organização dos materiais melódicos em relação à
letra. A utilização de uma mesma melodia para a primeira e terceira estrofes, estabelecendo
uma ideia de ciclo fechado, repetitivo, materializa a imagem do cantador que também repete
sempre as mesmas ações: viaja solitário, observa o mundo e canta o que vê. Apesar do breve
questionamento apresentado pela letra na terceira estrofe, a reiteração da primeira seção da
melodia no desfecho da canção deixa claro que, no final, a sina prevalece: ao cantador resta
apenas cantar.
123

No plano musical de “O Cantador”, encontramos duas seções melódicas


diferentes que se combinam a três estrofes de letra. Comparadas entre si, as duas seções
melódicas apresentam mais semelhanças do que contrastes. Ainda que apresentem diferenças
em seu desenvolvimento temático, as melodias das duas seções se desenrolam em uma mesma
tessitura e atingem o ponto culminante – cada qual no seu tempo e a sua maneira – sobre uma
mesma nota (Fá 5, som real). Tal configuração de restrição das possibilidades melódicas pode
ser interpretada como materialização, no plano da melodia, da sina do cantador que se
sobrepõe às vontades do indivíduo e limita sua ação.
No entanto, como colocado por Tatit (2007, p. 199) “[...] não há como conceber
continuidade sem a presença, ainda que virtual, da interrupção [...]” e a proposta de
homogeneidade e valorização das semelhanças na construção melódica, através do uso
deliberado de graus conjuntos e da manutenção da textura rítmica – ideias que serão
retomadas mais adiante –, é interrompida pelo ponto culminante da melodia de cada seção
(cc. 10-11 e 24-25) (Figura 33). De forma repentina, praticamente todos os procedimentos que
delineavam a ideia de continuidade são negados: a progressão por graus conjuntos é
substituída por um salto intervalar mais extenso, e a textura rítmica baseada na subdivisão de
semicolcheia é substituída por prolongamentos vocálicos amplos o suficiente para unir o final
de uma estrofe ao início da outra (“... só sei cantar_ah, eu canto a dor...”). A quebra do fluxo
é tão intensa quanto rápida e o projeto hegemônico de continuidade (fazer emissivo)
interrompe a parada (fazer remissivo66) tão logo o prolongamento vocálico termina (cc. 11 e
25) (Figura 33). Para além da ideia básica de contraste para a manutenção do interesse, a
parada se apresenta como nó que, negando a retidão da linha, reforça a percepção dessa
característica oposta à sua.
No plano intenso, a noção de continuidade presente na ideia de sina do cantador é
reforçada pela maneira como a melodia se desenvolve. As frases que compõem cada uma das
duas seções não se organizam no esquema antecedente-consequente construindo terminações
cadenciais. Cada uma delas deixa sua terminação em aberto, protela seu final até a próxima
frase, em uma espiral ascendente que termina no ponto culminante de cada seção (cc. 10-11 e
24-25, respectivamente)67. Essa configuração melódica, dentro da Semiótica da Canção,
recebe o nome de desenvolvimento gradual da melodia pela tessitura ou simplesmente
gradação, e constitui um recurso característico de canções passionalizadas, pois favorece a

66
As ideias de fazer emissivo e remissivo se encontram melhor detalhadas no Cap. 3 – Referências para as
análises, item Semiótica da Canção e Gesto Vocal.
67
A organização em antecedente e consequente das frases que compõem um período diz respeito à organização
interna das seções da Forma Ternária arquetípica – ver A practical Approach to the Study of Form in Music,
Cap. 5 – The Ternary Principle (SPENCER, TEMKO, 1988). As diferenças entre as escolhas formais de Victor
Assis Brasil e as outras gravações de “O Cantador” serão melhor desenvolvidas adiante.
124

percepção do trajeto melódico que, por sua vez, materializa a distância entre sujeito e objeto.
O uso da gradação nesse caso prepara uma intensificação da disforia, cujo auge coincide com
a nota mais aguda de cada seção, prolongada e acessada por um salto intervalar não diatônico
(quarta justa). Essa forma de desenvolvimento da melodia centrada no aumento da disforia
repete o esquema geral de intensificação do conflito entre “dor universal” e “dor particular”,
observado na letra.

Figura 33 – Pontos culminantes do perfil melódico das seções A e B.

Reforçando, ainda, a construção de continuidade no desenvolvimento melódico,


notamos a manutenção de uma mesma textura rítmica durante toda a canção – sendo exceções
as paradas (discurso remissivo) nos pontos culminantes. Apoiadas na subdivisão de
semicolcheia, todas as frases da melodia exploram, seguidamente, antecipações e atrasos que
geram a sensação de flutuação em relação à pulsação. Esse desalinho entre a rítmica da
melodia e a pulsação reiterada pelo acompanhamento – outra construção característica de
canções passionalizadas (TATIT, 2007, p: 95) – sugere que o desfecho melódico está sempre
mais à frente, na coincidência entre esses elementos, e transforma cada frase em componente
de um único e grande desenvolvimento melódico que demora a se resolver.
Ao retomarmos a ideia dos pontos clímax de cada seção melódica, como paradas
no discurso emissivo, notamos ainda especificidades em como se dá o retorno do fluxo – ou a
parada da parada (TATIT, 2007, p. 205-214). Na primeira seção melódica (que acompanha a
primeira e a terceira estrofes), o movimento melódico é retomado em sentido descendente e
percorre, predominantemente por graus conjuntos, toda a tessitura que havia sido
“conquistada” até o momento no movimento ascendente anterior – seja por salto ou por
desenvolvimento gradual. Além disso, essa descida pela tessitura se dá de forma mais rápida e
125

não tão gradual como a observada no sentido contrário. A ideia de retorno e relaxamento,
proporcionada por esse gesto contrário ao sentido inicial da melodia, pode ser interpretada
como um sinal de acordo ou conjunção – ainda que em nível superficial – entre sujeito e sua
sina. A repetição desse gesto descendente, logo adiante na melodia (cc. 15-17), reforça ainda
mais essa ideia de acordo68 ou aceitação do sujeito em relação à sua condição. Na segunda
seção da melodia (que acompanha a segunda estrofe), o retorno descendente após o clímax,
além de não ser repetido, mantém o caráter gradual observado na subida. Tais características
acabam por não sugerir tão claramente as ideias de retorno e relaxamento, presentes no final
da seção melódica anterior e – em conjunto com a letra da segunda estrofe – sinalizam a
intensificação subsequente do conflito entre sujeito e sua sina.
Além da imbricação entre construção melódica e letra, os pontos de clímax
melódico acima citados – através da combinação entre prolongamento vocálico e agudização
– ainda acrescentam diretamente a dimensão interpretativa na construção de significado. A
ideia de sina do cantador, construída literalmente pela letra e metaforicamente pela articulação
melódica, realiza-se metalinguisticamente através do destaque gerado pela projeção exigida à
execução dessas notas agudas e prolongadas. Como pudemos constatar em outras gravações
de “O Cantador”69, a capacidade dos pontos culminantes de articular três dimensões – letra,
melodia, interpretação – não foi ignorada por nenhum intérprete. Seja através de mudança de
registro (Dori Caymmi, Nana Caymmi e Elis Regina) ou através de alterações no arranjo
(modulações para outras tonalidades na interpretação de Elis Regina, por exemplo), todos os
intérpretes voltaram a atenção de suas realizações para essas passagens. Do ponto de vista
semântico, esse ponto articulador materializa o canto forte capaz de representar as dores do
mundo ou de lidar com a morte. Mais do que isso, ao transformar o enunciador em
“cantador”, desde a primeira seção melódica, esses pontos culminantes adiantam o desfecho
da canção – a vitória da sina, universal e forte, sobre o sujeito passivo e com sua dor
particular.
De maneira geral, notamos em “O Cantador” a predominância de construções
melódicas e imagéticas (na letra) ligadas à disforia. Especificamente, destacamos a presença
de construções ligadas à continuidade – desenvolvimento gradual da melodia pela tessitura,
manutenção da textura rítmica e semelhança entre as seções – que atuam como fazer emissivo,
favorecendo as ideias de ciclo fechado e universalidade contidas na sina do cantador. Ao

68
Segundo Tatit (2007, p. 44-47), na relação entre sujeito e objeto, a noção de junção fluente e sem obstáculos,
característica de canções aceleradas (tematizadas), está intimamente ligada, entre outros fatores, à ideia de
repetição imediata.
69
Foram ouvidas as versões de Dori Caymmi (Dori Caymmi, 1972), Nana Caymmi (Só Louco, 1989) e Elis
Regina (ao vivo no 3º. Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, 1967).
126

mesmo tempo, apontamos também os momentos de breve quebra dessa continuidade (fazer
remissivo) e seu paralelo com o conflito entre as emoções e vontades particulares do sujeito e
a sua sina.

Protocolo

Na interpretação de “O Cantador”, presente no disco Pedrinho (1980) de Victor


Assis Brasil, notamos a escolha por um andamento intermediário entre as interpretações de
Dori Caymmi (1972) e a de Elis Regina (1967). Essa última, registro do 3º Festival da Música
Popular Brasileira da TV Record, combina andamento acelerado e arranjo para potencializar a
interpretação da cantora, que acrescenta conteúdo eufórico à canção. Na gravação do
compositor da canção, Dori Caymmi, notamos o reforço da ideia de continuidade, de sina,
presente na integração melodia-letra através de prolongamentos vocálicos e de elementos de
arranjo70, sendo todas essas escolhas potencializadas pelo andamento mais lento. A
interpretação do saxofonista, apesar do andamento intermediário, guarda uma quantidade de
semelhanças maior com a gravação de Dori Caymmi, do que com a de Elis Regina. Como
desenvolveremos adiante, Victor Assis Brasil também atribui importância central à ideia de
continuidade em sua interpretação, e a escolha por um andamento confortável contribui para
viabilizar esse projeto, ao valorizar os prolongamentos de notas e desacelerar as mudanças de
direção da melodia.
Como o desenvolvido no subitem Timbre manipulado (Cap. 3), ao menos duas
questões são levadas em consideração na escolha de tonalidade por parte de um saxofonista.
A primeira delas se baseia na premissa de que os improvisadores tem um maior grau de
intimidade com determinadas tonalidades em detrimento de outras71. No caso analisado –
ainda que o andamento confortável favoreça a improvisação mesmo em tonalidades
consideradas difíceis –, Victor opta pela tonalidade de Fá Maior, que resulta em Ré Maior na
transposição para o saxofone alto (apenas dois sustenidos). A escolha por essa tonalidade de
certo contribui para a sensação de relaxamento e fluência presente em toda a interpretação do
saxofonista.
A segunda questão levada em consideração diz respeito à alocação da melodia na
tessitura do instrumento. Na interpretação de “O Cantador” notamos, assim como em “Só

70
Aqui nos referimos à instrumentação homogênea durante todo o arranjo, a presença de notas longas que
perduram mesmo entre mudanças de acorde e, em oposição ao arranjo de Elis Regina, o uso de uma única
tonalidade.
71
Ainda que grande parte dos métodos de improvisação jazzística recomendem que se estude igualmente todos
os tons, observamos na prática uma preponderância de tonalidades com menos acidentes.
127

tinha de ser com você”, uma intencionalidade maior do que simplesmente colocar a melodia
em uma tessitura possível para o saxofone. Durante a exposição da melodia, temos uma
tessitura que abrange o intervalo Lá-4/Ré-5, mostrado na Figura 34, sendo que seu limite
inferior se encontra em uma região média-grave confortável, e o superior, em uma região
mais brilhante e com maior projeção. Essa escolha de tonalidade possibilita que, mesmo sem
grandes variações dinâmicas, o saxofonista consiga dar destaque para as partes clímax da
melodia, situadas na extremidade superior da tessitura e, dessa forma, consiga reforçar a
construção da continuidade (variações suaves de dinâmica) sem deixar de interagir com os
elementos característicos da melodia.

Figura 34 – Tessitura da melodia de “O Cantador” na gravação de


Victor Assis Brasil.

No âmbito da instrumentação, ouvimos além do saxofone a formação de trio de


jazz clássico – piano, baixo acústico e bateria. Essa formação, também característica do
samba-jazz, é a escolha mais recorrente nas interpretações de canções brasileiras de Victor
Assis Brasil. No caso estudado, notamos que cada instrumento desempenha sua função mais
usual – a bateria faz a condução rítmica reinterando com frequência a subdivisão de
semicolcheias, o piano centraliza o encaminhamento harmônico, e o baixo desempenha a
mediação entre essas duas funções. Com duas breves exceções na introdução e na coda, a
textura gerada por essa configuração de timbres e de funções se mantém homogênea durante
toda a música. Mesmo nas seções de improviso – para as quais poderíamos esperar uma maior
interatividade entre os músicos e, consequentemente, um maior nível de variações – notamos
pouca ou nenhuma alteração na conduta dos acompanhadores. Tais escolhas relacionadas à
instrumentação participam na construção da sensação de continuidade presente na gravação
do saxofonista, e serão retomadas no item Variações e Recorrências desta análise, para
contribuir na caracterização do projeto interpretativo em questão.
128

Sobre a Forma

A canção “O Cantador” se organiza, do ponto de vista melódico, em dois


materiais diferentes que, aqui, serão chamados de A e B. No entanto, nas versões cantadas, a
extensão da letra exige a repetição de uma dessas partes. Tanto nas interpretações anteriores
às de Victor Assis Brasil, como nas posteriores, a Forma escolhida – ao menos para a primeira
exposição da melodia e da letra – pode ser representada como (A B A), sugerindo uma
organização em Forma Ternária72. Em contraste a essa organização Formal mais utilizada – e
que faz parte da arquitetura cancional –, ouvimos na gravação do saxofonista a exposição da
melodia original em Forma Binária (A B) e manutenção desse formato durante as seções de
improviso.
Em uma primeira interpretação possível para essa diferenciação proposta pelo
instrumentista, atentamos para uma valorização maior da melodia em detrimento da letra. Ao
mesmo tempo em que o saxofonista desconsidera o encaixe da letra sobre a melodia, ele
transparece uma interpretação específica e coerente dos materiais musicais de A e de B.
Apresentando tessitura e direcionalidade melódica semelhantes, as seções A e B em “O
Cantador” podem ser compreendidas coerentemente como o fechamento de uma Forma
Binária, na qual B – em oposição à Forma Ternária – trabalha mais com as semelhanças do
que com as diferenças em relação a A73.
Saindo da análise em nível local, podemos ainda enquadrar a escolha Formal de
Victor Assis Brasil ao projeto interpretativo geral que tem na ideia de continuidade, fluxo
ininterrupto, sua principal característica. A escolha pela Forma Binária, que valoriza a
continuidade de uma mesma ideia entre as seções A e B, em detrimento da Forma Ternária,
que busca coerência através do contraste entre as seções, apoia o projeto – ainda que
impossível – de um fluxo sem interrupções, de uma apreensão mais homogênea mesmo de
seções distintas.
Há ainda outra escolha Formal notável na gravação do saxofonista que contribui
para a construção do projeto extenso de sua interpretação. Todas as gravações de cantores que
foram ouvidas acrescentam interlúdios instrumentais em cada uma das trocas de seção.
Mesmo esses interlúdios sendo, no geral, de curta duração, eles são suficientes para pontuar o
desenrolar da Forma ao longo do arranjo, isto é, deixam claro o final de uma seção e o início

72
Dentro do repertório da música clássica ocidental, são denominadas peças ou seções em Forma Ternária
aquelas que se organizam em três partes. Mais especificamente, as três partes desenvolvem, respectivamente,
uma primeira ideia ou proposição, uma segunda ideia contrastante e, por fim, a reapresentação da primeira
ideia (SPENCER e TEMKO, 1988, p. 76-95).
73
Ver A practical Approach to the Study of Form in Music, Cap. 4 – The Binary Principle (SPENCER, TEMKO,
1988)
129

da outra. Na gravação de Victor, as ausências de melodia foram suprimidas e o início de cada


nova seção se conecta ao final da seção anterior. Mais do que isso, como podemos notar nos
cc. 18, 30-31 e 47, o intérprete distingue o final de uma seção e o início da seguinte apenas
pelo sentido melódico, sem a utilização de pausas, e, assim, torna as divisões Formais ainda
menos perceptíveis, reforçando a possibilidade de apreensão de um fluxo único, continuo.
No entanto, observando a Forma em questão, de um ponto de vista ainda mais
geral, notamos elementos que interrompem a ideia de continuidade. A estrutura completa da
gravação do saxofonista pode ser esquematizada da seguinte maneira:

Intro | ATema BTema AImproSax BImproSax | AImproPiano BImproPiano | ATema BTema | Coda

Sendo a coda uma repetição da “Introdução”, e a divisão em A e B para os


improvisos uma referência à harmonia de cada uma dessas seções, já que nelas a melodia
original não é ouvida. Levando esse esquema em consideração, podemos apontar que, assim
como na melodia original de cada seção da canção, essa estrutura geral apresenta uma quebra
em sua ideia de continuidade. No caso melódico, essa quebra foi chamada anteriormente de
parada ou clímax de cada seção e se referia a alterações relativamente bruscas no perfil
melódico – saltos intervalares maiores substituindo graus conjuntos e prolongamentos
substituindo sincopas em semicolcheia. No caso da Forma adotada no arranjo de Victor Assis
Brasil, ouvimos, logo após a introdução, o estabelecimento de uma textura homogênea que
seguiria ininterrupta até o Coda, não fosse pela seção de improviso de piano, em que não
ouvimos o saxofone. Porém, assim como no caso da melodia, essa textura predominante na
gravação (fazer emissivo) se reestabelece tão logo o improviso de piano termina, e segue até a
Coda que encerra a música. Ainda analogamente à melodia, podemos relacionar o
desenvolvimento da interpretação nesse plano global da Forma com a imagem conflituosa
entre universal (sina do cantador, continuidade) e particular (dor individual, interrupção)
presente na letra. Também nesse plano, a inércia do cantador em seguir sua sina –
materializada pelo projeto de continuidade – sobrepuja a dor particular e suas
descontinuidades impressas na Forma, na melodia e na letra.

Recursos Idiomáticos

Considerando as análises anteriores feitas neste trabalho, “O Cantador” não


acrescenta recursos idiomáticos inéditos ao vocabulário do saxofonista, mas se utiliza dos já
conhecidos de maneira específica. De modo geral, os mais frequentes são as ornamentações e
130

os bends, ao passo que ghost notes e outras manipulações de timbre, como o som rouco,
aparecem em número tão pequeno de vezes que serão desconsideradas para efeito de análise.
As ornamentações utilizadas em “O Cantador” são principalmente de dois tipos:
apojaturas, que conectam duas notas; ou um tipo específico de ornamentação, que gira em
torno de uma nota. Apesar de o primeiro tipo (Figura 35 – cc. 6, 8 e 10) ainda poder ser
dividido entre apojaturas que usam apenas uma nota (cc. 7, 10, 20, 40 e 68, por exemplo) e as
que usam duas notas (cc. 6, 8, 55 e 66), todas elas fazem uma ligação direta entre as notas que
conectam, sem mudanças de direção. Tendo isso em conta, apojaturas como as encontradas
nos cc. 6, 10, 34, 55 e 66 podem ser contabilizadas junto com os recursos empregados na
realização do projeto de continuidade, por camuflarem saltos intervalares não diatônicos
(maiores que uma segunda) e, assim, valorizar a fluidez do desenvolvimento melódico.

Figura 35 – Exemplos de apojaturas utilizadas em “O Cantador”.

O segundo tipo de ornamentação utilizado pode ser esquematizado como: nota


central, nota um grau diatônico acima, nota central, nota um grau diatônico abaixo (Figura 36)
e está presente nos cc. 12, 16, 24, 27, 50, 54, 76, 84 e 87. Tal recurso é usado, principalmente,
para dar movimento a notas repetidas ou paradas e, dessa forma, assim como as apojaturas,
pode ser interpretado como parte do projeto de movimento contínuo que buscamos delinear
dentro da interpretação do saxofonista.

Figura 36 – Modelo de ornamentação utilizada em “O Cantador”.


131

Os diversos tipos de bends são utilizados com frequência menor em “O Cantador”


do que em outras interpretações de Victor (ver análises de “Só tinha de ser com Você” e
“Feitiço da Vila”). O bend de chegada, utilizado cinco vezes, aparece em quatro dessas vezes
(cc. 24, 51, 80 e 84) associado a saltos intervalares não diatônicos e ascendentes. O efeito de
atraso e dificuldade gerado por esse recurso pode ser interpretado como uma forma de
destacar, suavemente, esses saltos intervalares, que foram identificados na análise da melodia,
em um nível sintático superficial, como elementos remissivos, isto é, que contradizem as
características melódicas hegemônicas.
O bend de repetição aparece quatro vezes durante a música (cc. 22, 38, 46 e 75),
sendo uma na exposição do tema, uma na reexposição do tema e duas durante o improviso.
Nos dois primeiros casos, o bend de repetição incidi sobre uma mesma parte da melodia (cc.
22 e 82). Ao levarmos em consideração o desenvolvimento gradual da melodia pela tessitura,
na segunda estrofe da música, notamos que esses dois bends de chegada fazem parte de um
reforço progressivo e sistemático das notas que explicitam esse desenvolvimento (Figura 37).
A progressão se inicia no c. 20, com as apojaturas preparando as notas sol sustenido e lá;
passa pelo c. 22, com o bend de repetição sobre o dó sustenido; e culmina com o bend de
chegada sobre a nota ré no c. 24. Tal procedimento sugere a intenção do projeto interpretativo
de reforçar conteúdos construídos pela relação melodia-letra. Mais do que isso, integra o
projeto específico do saxofonista de valorizar o metafórico caminhar do cantador, que se
materializa no gradual avanço da melodia pela tessitura.
As outras duas aparições do bend de repetição, localizadas no improviso e sem
associações com materiais melódicos específicos, não são consideradas como partes
estruturais do projeto interpretativo em questão. Por outro lado, assumindo a espontaneidade
de seu uso, podemos apontar esse recurso, ainda que preliminarmente, como característico da
produção desse saxofonista.

Figura 37 – Recursos idiomáticos diversos reforçando o processo de desenvolvimento gradual da melodia pela
tessitura.
132

Partindo para outra dimensão da interpretação, notamos algumas recorrências no


uso do vibrato ao longo de toda a gravação. De forma geral, ele é pouco pronunciado e, por
vezes, pode passar despercebido. Em notas mais longas de tessitura média – tanto na melodia
como no improviso – ouvimos um vibrato de pequena amplitude, frequência alta e que,
normalmente, concentra-se no final da nota. Já nas notas longas de tessitura aguda, o clímax
de cada seção melódica (cc. 10, 24, 70 e 84), não ouvimos nenhum tipo de vibrato. Tal
comportamento pode ser entendido como em concordância com a abordagem da dinâmica –
no geral, de pouca variação – e aponta no sentido de valorizar mais uma vez a continuidade
entre as partes da melodia, ao não acentuar a dramaticidade latente das passagens clímax.

Considerações sobre o improviso

Em todas as outras gravações de Victor Assis Brasil analisadas nesse trabalho, os


solos improvisados de saxofone, quando presentes, são facilmente discrimináveis das seções
de exposição e reexposição do tema. Em “Dindi”, essas duas seções distintas estão separadas
pelo improviso de outro instrumento – piano e guitarra, respectivamente. Já em “Feitiço da
Vila” e “Minha Saudade”, o início dos improvisos é marcado por uma alteração brusca na
abordagem de parâmetros, como direcionalidade melódica, textura rítmica e desenvolvimento
motívico. No caso de “O Cantador”, todos esses recursos foram amenizados ou evitados,
gerando como resultado uma sensação de continuidade quase suficiente para tornar ambígua a
separação entre melodia da canção e improviso.
Em comparação com as duas gravações do começo de sua carreira (“Feitiço da
Vila” e “Minha Saudade”), o início do solo improvisado de “O Cantador” inverte a lógica de
preenchimento (fill) do tempo “livre”, que existe entre o último ataque da melodia e o início
do chorus. Nas duas mais antigas, tão logo ouvimos a última nota da melodia, esse espaço é
preenchido por frases que funcionam como anacruse para a entrada do solo e que, além disso,
introduzem as características que diferenciam a textura do solo em relação à melodia. Na
interpretação da canção de Dori Caymmi, além desse momento de intersecção entre seções ser
menor74, o saxofonista opta por prolongar o final da melodia, ao mesmo tempo em que reduz
para apenas uma semicolcheia a anacruse para o solo (Figura 38).
Do ponto de vista rítmico, o improviso de saxofone de “O Cantador” também
busca uma relação mais clara de associação que de ruptura em relação à melodia da canção.
Nos outros improvisos mencionados acima, podemos apontar o uso deliberado de

74
A escolha por uma pausa menor entre as seções foi identificada e analisada anteriormente no item Protocolo,
quando falávamos a respeito da estrutura Formal da gravação.
133

agrupamentos com quatro ou mais semicolcheias, bem como de subdivisões menores (como
quintinas, sextinas e etc.), sendo que essas figuras rítmicas praticamente não são ouvidas
durante a exposição das melodias das canções. Para o caso aqui analisado, destacamos, na
seção de improviso, a predominância de figuras rítmicas que derivam da melodia da canção.
Mais especificamente, podemos destacar a rítmica que ocupa o primeiro tempo dos cc. 5, 7,
12, 13, 16, 17, 23 e 27 – uma colcheia seguida por duas semicolcheias. Esse agrupamento,
antecedido pela semicolcheia que chamamos de anacruse para o solo, torna-se o motivo
rítmico predominante de toda a primeira parte do improviso (Figura 39).

Figura 38 – Transição entre “final da melodia” e “início do solo improvisado” em “O Cantador”.

Em relação à ligação entre as frases e semifrases formadas pelo desenvolvimento


desse motivo rítmico, podemos apontar ainda outra semelhança entre as seções com melodia
da canção e a de solo improvisado. Durante a exposição e reexposição do tema, Victor Assis
Brasil conecta, quase que ininterruptamente, as frases da melodia, ao substituir pausas por
prolongamentos de notas, e ao diminuir a quantidade e a duração das respirações. Esses dois
procedimentos podem ser ouvidos durante todo o solo, sendo exceções as pausas nos cc. 48 e
51. (A rítmica e as respirações – marcadas com vírgula – podem ser visualizadas parcialmente
na Figura 39 ou integralmente na transcrição anexa).
134

Figura 39 – Primeira parte do solo improvisado de “O Cantador” com indicações das repetições do motivo
rítmico característico e suas variações.

Seguindo a essa primeira parte do improviso, que valoriza a continuidade através


do desenvolvimento de um mesmo motivo e, consequentemente, da manutenção da textura
rítmica da melodia original, ouvimos no c. 43 uma rápida mudança de procedimento.
Unicamente, durante esse compasso, a rítmica do improviso se apoia sobre a subdivisão de
fusas e tercinas de fusas, ao mesmo tempo em que a direcionalidade do motivo melódico
anterior é abandonada. Não por coincidência, essa passagem corresponde a um momento de
repouso na melodia original, o que favorece a percepção dessa frase do c. 43 como um fill
melódico. Por sua vez, esse comportamento pode sinalizar a intencionalidade do saxofonista
em abordar o improviso como continuidade da melodia, já que ele estaria respeitando as
características dessa última durante a maior parte do solo, e acrescentando material
contrastante apenas nos seus momentos de repouso.
Como já explorado no item Melodia e Letra desta análise, Tatit chama a atenção
para a tomada de consciência em relação ao projeto emissivo quando esse é interrompido, em
135

nível local, por um elemento remissivo. Colocado de outra forma, o autor aponta que a
interrupção do fluxo, mesmo que rápida, contribui para a percepção do próprio fluxo. Tendo
isso em vista, o caráter de quebra momentânea do fluxo, presente no c. 43, reforça, por
contraste, o projeto hegemônico do solo de ser uma continuação da exposição do tema, e não
uma seção contrastante a ele75.
Podemos apontar ainda outro parâmetro em que o c. 43 contrasta em relação à
seção A do improviso (c. 31-47). Nessa seção, Victor Assis Brasil trabalha a escolha de notas
no intuito de simular um contraponto a duas vozes, tendo como estratégia básica a alternância
quase constante entre duas regiões da tessitura – uma mais aguda e outra mais grave. Esse
procedimento fica bastante claro nos cc. 32-34, 39-42 e 44-45 (figura 39), onde notamos o
saxofonista conduzindo as mudanças de acordes em duas regiões da tessitura de forma
independente, saltando de uma para outra, e, consequentemente, acrescentando saltos
intervalares grandes (maiores que uma terça) ao perfil melódico. Levando isso em
consideração, a interrupção desse procedimento, causada pelo perfil melódico baseado em
arpejos do c. 43, não só fica evidente como se conecta com alterações subsequentes.
A segunda parte do improviso (c. 47-60), que acontece sobre a harmonia da parte
B da canção, se inicia com um curto desenvolvimento sobre resquícios da intervenção do c.
43. Nos c. 47-49, ouvimos fragmentos de escalas – material praticamente ausente na primeira
parte do improviso – distribuídos sobre uma rítmica majoritariamente de sextinas – que
também se opõe à subdivisão em semicolcheias, predominante na primeira parte. No entanto,
apesar dessas características, esse início da segunda parte do improviso não se configura
como uma ruptura tão radical em relação ao fluxo contínuo tema-improviso, quanto à
intervenção do c. 43 graças a sua inserção no contexto. Ao passo que o fill do c. 43 interrompe
a resolução da cadência preparada desde o c. 39, essa segunda parte do solo não interrompe a
cadência que a antecede (c. 44 até primeiro tempo do c. 47). Graças à concretização dessa
terminação cadencial – ainda que o repouso seja momentâneo – a introdução do novo material
melódico, já no segundo tempo desse mesmo c. 47, soa menos contrastante que a do c. 43,
contribuindo, assim, para renovar o interesse do solo, sem negar a ideia de continuidade do
projeto interpretativo como um todo.
Outro elemento que contribui para a conexão entre as partes A e B do improviso é
o fato de que, logo após o início de B e a apresentação desse novo material (c. 47-49), ele

75
Também em relação ao c. 43, Teixeira aponta para a semelhança desse fill melódico com um fragmento da
melodia de “Grooving High”, de Charlie Parker, configurando, assim, um procedimento de citação característico
de solos improvisados dentro do repertório jazzístico. (ver TEIXEIRA Filho, Jair. “Nada será como antes”: a
música de Victor Assis Brasil no álbum Pedrinho. Campinas, 2014. Dissertação (Mestrado). Universidade
Estadual de Campinas, Unicamp, Instituto de Artes, Campinas, 2014, p. 128-129.
136

gradualmente se transforma, tornando-se semelhante à textura rítmica da primeira parte. Ao


mesmo tempo em que, no parâmetro das alturas, o improviso reitera os fragmentos de escala,
apresentados no início dessa seção B, a textura rítmica retorna para a subdivisão de
semicolcheias e para os motivos rítmicos que remetem à melodia original, mantendo, assim, a
coerência intrínseca do solo e desse com o plano extenso da interpretação.

Variações e Recorrências

Até esse ponto da análise buscamos apontar, no nível intenso, os recursos e


escolhas interpretativas tomadas por Victor Assis Brasil e relações de significado possíveis
entre esses e os significados da canção “O Cantador”. Já nessa parte da análise, pudemos
notar paralelos entre a “sina do cantador de cantar a dor do mundo que vê” e escolhas
interpretativas que favorecem as ideias de continuidade (sina) e de valorização da disforia.
Partindo para um nível mais abrangente da análise do projeto interpretativo, buscaremos
compreender de que maneira a articulação dessas escolhas interpretativas durante toda a
performance se alinha com esse projeto identificado em nível intenso.
Como desenvolvemos anteriormente, quando olhávamos para a seção de solo
improvisado, a gravação de “O Cantador” de Victor Assis Brasil apresenta relações de
parentesco entre a exposição da melodia e o improviso, em um grau de profundidade não
encontrado nas outras gravações analisadas nesse trabalho. No entanto, apesar de essa
característica favorecer a percepção do projeto de continuidade, esse não se realiza de forma
total no plano extenso. O solo de piano não apenas gera descontinuidade no fluxo textural – já
que altera a instrumentação –, como acrescenta também descontinuidade, em termos de
escolhas interpretativas, se assumirmos que o saxofonista não interferiu verbalmente na
performance do outro improvisador.
No entanto, a presença do solo de piano interrompendo a continuidade do discurso
é decorrência não apenas da impossibilidade física e técnica de se manter um fluxo contínuo –
principalmente para o saxofone –, mas, também, da necessidade de se criar contraste para
evidenciar determinada ideia (TATIT, 2007, p. 199). Ademais, o desenvolvimento do
discurso depende da dinâmica de alternância ou disputa entre projeto hegemônico e anti-
projeto76. Tendo isso em conta, podemos entender a descontinuidade causada pela mudança

76
Segundo o desenvolvido por Coelho (2007), no Cap. 3 de sua tese de Doutorado, a dinâmica de
desenvolvimento de um discurso depende, entre outras coisas, da presença virtual de um anti-projeto que, ao
intervir na realização do projeto hegemônico, dá sentido para a existência desse último. Partindo para o plano da
realização cancional, podemos dizer que a ideia de trajeto empreendido pelo sujeito em busca do objeto dentro
de uma canção de valores disfóricos adquire sentido e força graças à presença de uma possibilidade – ainda que
137

de textura do solo de piano, como um elemento remissivo que, momentaneamente, nega as


ideias de continuidade e de valorização dos prolongamentos, para, logo em seguida, ceder
espaço para a confirmação dessas ideias com a reexposição da melodia pelo saxofone.
Ao analisarmos em nível extenso o uso dos recursos idiomáticos por parte de
Victor Assis Brasil, notamos a recorrência de alguns desses recursos sobre materiais
melódicos específicos. Sejam os usados isoladamente – como as apojaturas dos cc. 10, 14 e
70, por exemplo – ou as sequenciais de recursos idiomáticos variados – como nos cc. 20, 22,
24 e cc. 80, 82, 84 analisados anteriormente –, por serem reinterados na reexposição de forma
análoga a que apareceram na exposição, evidenciam a atenção do intérprete em relação ao
material musical da canção, em oposição a usá-lo apenas como suporte para a improvisação.
Mais especificamente, notamos também que o uso extensivo dos recursos idiomáticos está
associado, na maior parte das vezes, com elementos da melodia que materializam valores
disfóricos, entendidos como predominantes em “O Cantador”.
Ainda em relação aos recursos idiomáticos, e sua articulação global na
interpretação, notamos a ausência quase total do que viemos chamando de fill ou
preenchimento melódico improvisado – comportamento condizente com a ideia geral de não
interrupção do fluxo melódico. Esse recurso idiomático foi identificado apenas em dois
momentos da performance. O primeiro corresponde ao c. 43 que, como procuramos justificar
ao analisar a seção de improviso, pode ser ouvido como um fill. Apesar da mudança de
textura rítmica e da direção melódica, essa intervenção no fluxo melódico parte da mesma
nota, na qual termina a frase anterior, e caminha por graus conjuntos até a retomada desse
fluxo, mantendo, assim, certo grau de coerência com as características gerais da seção, e,
consequentemente, não figurando uma ruptura tão intensa. O segundo momento em que
ouvimos claramente um fill melódico corresponde ao c. 74, já na reexposição da melodia.
Nesse caso, a ruptura acontece não apenas na textura rítmica e na direção, mas, também, em
termos de tessitura. Preenchendo a descanso da melodia que antecede a reiteração da última
frase da seção A (cc. 70-74 repetidos nos cc. 75-78), esse fill melódico não só chama atenção
para o salto intervalar, já existente na melodia, como o dobra de tamanho, o que resulta em
um arpejo ascendente sobre o acorde F6 (Fá com sexta), que ocupa duas oitavas completas.
Ainda que esse procedimento de expandir a tessitura, e de chamar a atenção para o trajeto
percorrido na mesma, esteja alinhado com o projeto interpretativo de reforçar valores
disfóricos – prolongamento de terminações melódicas, valorização da expansão gradual da
tessitura, não coincidência entre os ciclos melódicos e o acompanhamento –, entendemos que

remota – de conjunção. Analogamente, em uma canção de valores predominantemente eufóricos, a celebração da


conjunção entre sujeito e objeto se justifica grosso modo pelo risco – real ou hipotético – de disjunção.
138

a utilização desse recurso contesta, momentaneamente, a outra característica particular dessa


interpretação ligada à ideia de fluxo ininterrupto. Resumindo, podemos entender essa
passagem como portadora de valor emissivo, em nível intenso e, simultaneamente, portadora
de valor remissivo no nível extenso.
Retomando a noção de que a coerência do discurso cancional depende da
predominância dos mesmos valores fóricos, tanto em nível extenso, como em nível intenso,
atentamos para as duas paradas em nível extenso identificadas até o momento – o solo de
piano e o fill melódico da reexposição. Ao analisarmos o modo de integração entre melodia e
letra de “O Cantador”, identificamos na última estrofe um momento de rebeldia do sujeito em
relação a sua sina de cantador, uma breve parada em que a dor particular sobrepuja a
condição universal e solitária do cantador. Se entendermos a conjunção da exposição e da
reexposição da melodia como a realização da canção na interpretação de Victor Assis Brasil, a
parada materializada no fill melódico do c. 74 ocupa, em nível extenso, uma posição
proporcionalmente análoga à parada da terceira estrofe. Por sua vez, olhando de um nível
estrutural ainda superior, o solo de piano representa, em relação ao restante da gravação, uma
interrupção – parada – em posição também análoga à identificada na terceira estrofe77.

Considerações finais

A análise aqui proposta, para a gravação de Victor Assis Brasil da canção “O


Cantador”, evidenciou a aproximação entre escolhas do projeto interpretativo e características
ligadas à ideia de disforia presente no núcleo de significado melodia-letra. Nesse sentido,
podemos destacar estratégias, como o prolongamento das terminações de frase, a ênfase dada
às gradações através da utilização de recursos idiomáticos, e a supressão das pausas entre
seções, e o consequente reforço da não coincidência entre os ciclos melódico e do
acompanhamento.
Ao mesmo tempo, através do delineamento do projeto interpretativo do
saxofonista, evidenciamos conexões entre a ideia de continuidade presente na sina do
cantador e estratégias de ação, tanto no plano intenso, como no extenso da interpretação. A
concatenação de mais de uma frase dentro da mesma respiração, alterações na Forma, as
semelhanças entre tema e improviso e a homogeneidade do acompanhamento contribuem para

77
Importante ressaltar que as duas paradas a que estamos nos referindo se diferenciam em relação à
intencionalidade, por parte do intérprete. No caso do solo de piano, entendemos que a sua presença, bem como
sua localização, dentro da estrutura da gravação, decorre de um planejamento anterior à performance. Por outro
lado, ainda que o fill melódico da reexposição seja uma exceção em relação ao modus operandi de variação
melódica adotado, tal característica não é suficiente para afirmarmos a intencionalidade de seu uso e de sua
posição na estrutura da gravação.
139

o reforço do discurso proposto pela melodia e pela letra e, aliados aos outros aspectos
apresentados na análise, constroem o projeto interpretativo de Victor Assis Brasil, que dialoga
intensamente com a canção que realiza.
Partindo para uma interpretação mais subjetiva, mas sem deixar de lado as
observações feitas a partir da análise sistemática da interpretação de “O Cantador”, sugerimos
um paralelo entre o comprometimento do saxofonista, em dialogar com possíveis significados
da canção, e a condição do “cantador” de viver em função de seu canto, a ponto de suprimir
sua própria individualidade. Victor Assis Brasil, focado em realizar a canção dando vazão aos
significados da melodia e da letra, volta todos os seus recursos interpretativos no fechamento
do projeto interpretativo comprometido com a ideia de continuidade. Em decorrência disso,
equilibra a importância das seções de exposição do tema e de improviso, e desfaz a assimetria
– comum à música instrumental de referencial jazzístico – que favorece o solo em detrimento
do material musical.
140

Considerações Finais

Este trabalho se propôs a estudar uma parte da realização musical de Victor Assis
Brasil como saxofonista, em interpretações que denotassem o atrito entre elementos da música
brasileira e do jazz norte-americano. No entanto, mesmo com o final prematuro da carreira, a
produção de Assis Brasil nessa área é grande em extensão e em variedade, o que exigiu uma
restrição ainda maior no recorte proposto. Sendo assim, nos voltamos, mais especificamente,
para o estudo das gravações em que ele interpreta canções brasileiras. A abordagem desse
objeto se deu em duas dimensões diferentes, teórica e prática, que foram desenvolvidas de
maneira concomitante, com interferências e contribuições nos dois sentidos. De maneira
geral, na parte teórica, analisamos cinco interpretações do saxofonista, “Minha Saudade”, “O
cantador”, “Só tinha de ser com você”, “Feitiço da Vila” e “Dindi”. No âmbito prático, a
partir dos resultados encontrados nas análises, propusemos: reinterpretações para essas
gravações, projetos interpretativos inéditos para canções que ele não gravou e projetos
interpretativos livremente influenciados pelos estudos teórico e prático desenvolvidos nesta
pesquisa.
A seguir, apresentaremos considerações sobre cada fase deste trabalho,
começando pelo plano teórico contido nos Capítulos 1, 3 e 4, e terminando no plano prático
comentado, principalmente, no Capítulo 2. Tal ordenação, que a princípio se mostra pouco
natural, foi escolhida por motivos de clareza, já que a linearidade do texto não comportaria o
desenvolvimento dos dois planos da forma simultânea como ocorreram.
Durante o primeiro capítulo, tivemos como objetivo contextualizar a produção de
Victor Assis Brasil e observar qual a participação das versões instrumentais de canção em seu
repertório gravado. Para tanto, revisamos a biografia do saxofonista, dando especial atenção a
sua discografia: em que momento da carreira cada disco foi gravado, qual seu repertório e
quais as principais características musicais ouvidas em cada um deles. A partir dessas
observações, detectamos a influência constante e diversificada do jazz e do samba-jazz em
suas gravações. Além disso, notamos que seus álbuns de estúdio se encaixavam em dois
modelos de repertório: três deles apenas com temas de jazz (Standards ou autorais); e outros
três, com repertório mais variado (versões instrumentais de canção, temas de jazz e
composições autorais). Levando tudo isso em conta – biografia e características de cada
álbum – propusemos uma organização de sua discografia de estúdio em três fases:

Antes do período nos Estados Unidos – Desenhos e Trajeto


Durante o período nos Estados Unidos – Jobim e Legacy
141

Após o período nos Estados Unidos – Pedrinho e Quinteto

Particularmente, em relação ao repertório, cada fase engloba um disco apenas com


temas de jazz (Trajeto, Legacy e Quinteto) e outro que inclui versões instrumentais de
canções brasileiras (Desenhos, Jobim e Pedrinho). Essa configuração orientou a delimitação
do recorte desta pesquisa, englobando gravações das três fases, sendo “Minha Saudade” e
“Feitiço da Vila” da primeira; “Só tinha de ser com você” e “Dindi”, da segunda; e o “O
Cantador”, da terceira. Com isso, tivemos a intenção de obter uma visão global de como o
saxofonista abordou o repertório de canção durante sua carreira.
Continuando com o desenvolvimento do plano teórico da pesquisa, o terceiro
capítulo aborda como se estruturam as análises. Considerando as particularidades do objeto –
versões instrumentais de canções – nos utilizamos do modelo de análise do comportamento
vocal proposto por Machado, fazendo as adaptações necessárias para o contexto do saxofone.
Esse modelo se divide em duas partes: a análise do núcleo de identidade da canção (melodia e
letra), conforme o proposto pela Semiótica da Canção; e a análise da interpretação,
propriamente dita, com foco na compreensão de como ela interage com os sentidos e
particularidades da canção.
A análise Semiótica da Canção busca compreender os sentidos gerados pela
integração entre a melodia e a letra da canção, levando em conta desde a interação entre seus
elementos mínimos – consoantes e vogais no plano textual e durações e alturas no plano
musical – até as relações entre possíveis interpretações da letra e contornos melódicos
específicos. Dentro dessa proposta, definem-se três regimes de integração entre melodia e
letra – passionalizado, tematizado e figurativizado. A identificação dos regimes de integração
principais e secundários, das canções analisadas neste trabalho, permitiu-nos elencar os
elementos melódicos que caracterizam cada uma delas. Mais tarde, na análise da performance
de Victor Assis Brasil, as escolhas interpretativas tomadas em relação a esses elementos
foram o principal parâmetro para o estabelecimento de ligações entre os projetos
interpretativos e os sentidos da canção.
A análise do comportamento vocal, como o proposto por Machado, baseia-se na
observação de três níveis da voz: físico, técnico e interpretativo. O primeiro trata de aspectos
fisiológicos da voz, como a extensão, a tessitura, os registros e o timbre. Todos esses aspectos
também podem ser igualmente obervados no saxofone e foram incluídos nas análises de cada
gravação. O nível técnico da voz observa as estratégias que o cantor lança mão para favorecer
ou modificar as características físicas de sua voz. Nesse caso, as diferenças entre voz e
saxofone exigiram adaptações na transposição do modelo de análise para o novo contexto. No
142

lugar de atentar para a emissão vocal, observamos na atuação do saxofonista escolhas


interpretativas relacionadas à alteração do timbre, à articulação e à digitação (especificamente,
tratamos das apojaturas). No nível interpretativo, a análise se volta para a compreensão do
gesto vocal, isto é, de que maneiras a atuação do intérprete interage com os sentidos
encontrados no regime de integração entre melodia e letra da canção. A partir da observação
do timbre manipulado e da articulação rítmica, que combinam as escolhas dos níveis físico e
técnico, já em contato com o material composicional, podemos compreender como o cantor
materializa os sentidos contidos no núcleo de identidade da canção, ou ainda como ele
ressignifica esse enunciado. Adaptando a compreensão do gesto vocal para a análise dos
projetos interpretativos de Victor Assis Brasil, além de observar se o saxofonista reforça ou
altera os sentidos do núcleo melodia e letra, no nível interpretativo, buscamos compreender
ainda um estágio anterior de relação, ou seja, o grau de comprometimento da performance
instrumental em dialogar com a canção.
No capítulo quatro, foram desenvolvidas as análises individuais de cada gravação
selecionada. Como apresentado no parágrafo anterior, essas análises tiveram como objetivos
gerais: 1) identificar o grau de comprometimento da performance em dialogar com os sentidos
da canção; e 2) encontrar as marcas identitárias recorrentes, ou seja, as suas escolhas
interpretativas que materializam sua relação com a melodia e com a letra.
Em relação ao comprometimento com os sentidos da canção, as gravações se
dividiram em dois grupos. Em “Feitiço da Vila” e “Minha Saudade”, localizadas na primeira
fase de sua discografia, percebemos um diálogo menos intenso com o núcleo melodia-letra e
os sentidos nele presentes. Através de escolhas, como tonalidade confortável para
improvisação, chorus estruturado em “AABA” (característico de Standards de jazz),
inconstância nas variações da melodia, e o uso diferenciado dos recursos idiomáticos entre as
seções de tema e solo, o saxofonista constrói seus projetos interpretativos mais voltados para
a performance instrumental. Nesses casos, o material cancional é abordado de maneira
semelhante a materiais já concebidos como instrumentais, ficando o foco sobre a
improvisação e a interação entre os instrumentistas.
Nos projetos interpretativos de “Só tinha de ser com você”, “Dindi” e “O
Cantador”, gravados na segunda e terceira fases de sua discografia, notamos um maior
comprometimento com os regimes de integração melodia-letra, principal e secundário, de
cada canção. Nessas gravações, a escolha de tonalidade sugere a intenção do saxofonista de
destacar determinadas partes da melodia ao associá-las com regiões específicas da tessitura do
instrumento. Em concordância a isso, apontamos também a maior semelhança entre as seções
de solo improvisado com as de exposição da melodia da canção, conseguida através da
143

manutenção da textura rítmica, da tessitura e de um mesmo tipo de aplicação dos recursos


idiomáticos. Em relação à Forma, essas gravações apresentaram escolhas menos
convencionais aos repertórios do jazz e do samba-jazz como chorus estruturados em “AB” ou
“ABC” e, por vezes, a ausência de solo improvisado de saxofone. Todas essas características
apontam para uma maior integração entre performance instrumental e o material cancional,
sendo que o segundo ocupa papel central em cada um desses projetos interpretativos.
Em relação às marcas identitárias, as cinco gravações analisadas apresentaram
diversas recorrências em termos de uso de recursos idiomáticos, de arranjo e de variação da
melodia. De forma esquemática, temos:
i) Presença constante do bend de repetição;
ii) Presença constante do bend de chegada sobre intervalos ascendentes;
iii) Vibratos, quando usados, apresentam oscilação de afinação pequena e incidem
sobre a metade final das notas;
iv) Uso das mesmas ferramentas de variação da melodia nas seções de exposição e
reexposição do tema;
v) Semelhanças na instrumentação e Forma dos arranjos:
a. Piano, contrabaixo e bateria: formação característica do jazz pós 1940 e,
consequentemente, também marcante no repertório do samba-jazz estão
presentes em todas as cinco gravações analisadas;
b. Quatro das cinco gravações possuem introduções inéditas; quando o
saxofone é ouvido nessas seções (três dos cinco casos), elas apresentam
relação direta com a melodia ou com a harmonia da canção;
c. Quatro das cinco gravações analisadas terminam em fade-out;
d. O paradigma tema-improviso-tema está presente em todos os arranjos,
mesmo quando esses não incluem solo de saxofone; nesses casos a seção
de solo improvisado é executada por outro instrumento.

Como desenvolvemos no segundo capítulo, a compreensão de como Victor Assis


Brasil aborda o repertório de canções brasileiras, bem como o levantamento de suas marcas
identitárias dentro desse contexto, mantiveram diálogo contínuo com o desenvolvimento do
plano prático desta pesquisa. Essa relação entre os dois planos, prático e teórico, pode ser
entendida em três partes.
A primeira delas começa com a abordagem inicial das gravações, através dos
processos de audição e imitação, que acontece de forma simultânea à fase preliminar de
análise, a transcrição. Nesse ponto, trabalhamos na aquisição de habilidades técnicas ligadas à
144

digitação, aos recursos idiomáticos e às manipulações de timbre, todas elas necessárias para a
reprodução literal das gravações (imitação). Além disso, durante essa interação prática com o
objeto, experienciamos características que particularizam cada gravação, e que foram
posteriormente incorporadas no desenvolvimento das análises teóricas. A partir da
compreensão, proporcionada por essas últimas, propusemos reinterpretações para as canções
gravadas pelo saxofonista.
Essa primeira parte da pesquisa – audição-imitação-transcrição-análise-
reinterpretação – funcionou como subsídio para a segunda parte, que estabelece uma interação
com a performance de Victor Assis Brasil de um ponto de vista mais global. A partir da
comparação entre as cinco gravações analisadas, e do consequente levantamento de suas
marcas identitárias, propusemos projetos interpretativos inéditos para canções que não foram
gravadas por ele. Mais precisamente, essas interpretações se concentram em aspectos da
performance instrumental que, conforme demonstraram as análises, receberam a atenção do
saxofonista e estabeleceram ligações entre sua atuação e os sentidos da canção.
A terceira parte, por sua vez, incorpora as duas anteriores e propõe um diálogo
menos sistemático com a produção de Victor Assis Brasil. A partir da combinação entre
estruturas e procedimentos, recorrentes nas gravações analisadas com outros referenciais
musicais, buscamos construir projetos interpretativos, que possibilitassem a utilização, de
maneira menos planejada, das marcas identitárias identificadas e assimiladas durante o
desenvolvimento da pesquisa. Objetivamente, essa utilização se deu de duas formas
diferentes: através do condicionamento técnico adquirido nos processos de imitação e
reinterpretação e, portanto, um uso involuntário ou inconsciente das marcas identitárias; e na
adequação para outros contextos musicais, e consequente resignificação desses recursos de
interpretação detectados nas gravações analisadas.
Por fim, e de forma resumida, com o desenvolvimento desta pesquisa buscamos
aprofundar a compreensão da produção de Victor Assis Brasil e ressaltar sua importância e
individualidade dentro do contexto musical brasileiro. Ao mesmo tempo, o recorte estudado e
a metodologia de análise proposta tiveram como intuito contribuir para o entendimento das
relações existentes entre os repertórios da música instrumental e da canção popular
midiatizada, constantemente combinados na atuação de intérpretes como Victor Assis Brasil.
Em uma perspectiva ainda mais geral, propusemos uma forma de integração entre os estudos
prático e teórico da performance instrumental, levando em consideração particularidades do
repertório de música popular como a presença de improvisação e a ausência frequente de
registros em partituras.
145

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Discografia

BRASIL, Victor Assis. Desenhos (1966). Gravadora: Forma. Reg.: FM 17


__________________. Trajeto (LP 1968). Gravadora: Equipe. Reg.: EJC-6004
__________________. Jobim (1970). Gravadora: Quartin. Reg.: LP-RSO-2
__________________. Esperanto (LP 1970). Gravadora: Tapecar. Reg.: LPX.37
__________________. Ao Vivo no Teatro da Galeria (1974). Gravadora: Magic Music/CID.
Reg.: MM 3010
__________________. Victor Assis Brasil Quinteto (1979). Gravadora: EMI-Odeon. Reg.:
064 422844
__________________. Pedrinho (1980). Gravadora: EMI-Odeon. Reg.: 064 422856
149

__________________. Luiz Eça & Victor Assis Brasil No Museu De Arte Moderna (gravado
em 1977 e lançado postumamente em 1997). Gravadora: Imagem. Reg.: 2006
__________________. Ao Vivo do 1º Festival de jazz de São Paulo de 1978. (digitalização
disponibilizada via internet em 2007)
150

ANEXO A – Transcrições das gravações de Victor Assis Brasil


ANEXO A1 – “Minha Saudade”
ANEXO A2 – “Feitiço da Vila”
ANEXO A3 – “Dindi”
ANEXO A4 – “Só tinha de ser com você”
ANEXO A5 – “O Cantador”

ANEXO B – Letras das músicas analisadas neste trabalho


ANEXO B1 – “Minha Saudade”
ANEXO B2 – “Feitiço da Vila”
ANEXO B3 – “Dindi”
ANEXO B4 – “Só tinha de ser com você”
ANEXO B5 – “O Cantador”

ANEXO C – Melodia e letra das músicas analisadas neste trabalho


ANEXO C1 – “Minha Saudade”
ANEXO C2 – “Feitiço da Vila”
ANEXO C3 – “Dindi”
ANEXO C4 – “Só tinha de ser com você”
ANEXO C5 – “O Cantador”

ANEXO D – CD com registro do Recital de Mestrado de Fernando Seiji Sagawa realizado no


dia 27 de Agosto de 2015 e citado nesta pesquisa.
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ANEXO B1

“Minha Saudade” (1958) – João Donato e João Gilberto

Minha saudade
É a saudade de você
Que não quis levar de mim A (1ª. estrofe)
A saudade de você

E foi assim
Que tão cedo me esqueceu
E eu tenho até hoje A’ (2ª. estrofe)
A saudade de você

Eu já me acostumei
A viver sem teu amor
Só não consegui B (3ª. estrofe)
Foi viver sem ter saudade
166

ANEXO B2

“Feitiço da Vila” (1934) – Noel Rosa e Vadico

Quem nasce lá na vila


Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba A (1ª. estrofe)
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo

Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba. A’ (2ª. estrofe)
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a vila Isabel dá samba.

A vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém B (3ª. estrofe)
Que nos faz bem,
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente

O Sol na vila é triste


Samba não assiste
Porque a gente implora: A’’ (4ª. estrofe)
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora.
167

Eu sei tudo que faço,


Sei por onde passo,
Paixão não me aniquila. A’’’ (5ª. estrofe)
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte,
Meus senhores, eu sou da vila!
168

ANEXO B3

“Dindi” (1959) – Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

Céu, tão grande é o céu


E bandos de nuvens que passam ligeiras Verse (1ª. estrofe)
Prá onde elas vão, ah, eu não sei, não sei

E o vento que toca nas folhas


Contando as histórias que são de ninguém Verse (2ª. estrofe)
Mas que são minhas e de você também

Ah, Dindi
Se soubesses o bem que eu te quero A (1ª. estrofe)
O mundo seria, Dindi,
tudo, Dindi, lindo, Dindi

Ah, Dindi
Se um dia você for embora A’ (2ª. estrofe)
me leva contigo, Dindi
Olha, Dindi, fica, Dindi

E as águas desse rio


Onde vão, eu não sei B (3ª. estrofe)
A minha vida inteira, esperei, esperei por você,

Dindi
Que é a coisa mais linda que existe A’’ (4ª. estrofe)
É você não existe, Dindi
Deixa, Dindi, que eu te adore, Dindi
169

ANEXO B4

“Só tinha de ser com você” (1964) – Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

É, só eu sei
Quanto amor eu guardei A (1ª. estrofe)
Sem saber que era só prá você

É, só tinha de ser com você


Havia de ser prá você
Senão era mais uma dor
Senão não seria o amor B (2ª. estrofe)
Aquele que a gente não vê
O amor que chegou para dar
O que ninguém deu pra você

É, você que é feita de azul


Me deixa morar nesse azul
Me deixa encontrar minha paz
Você que é bonita demais
Se ao menos pudesse saber C (3ª. estrofe)
Que eu sempre fui só de você
Você sempre foi só de mim
Que eu sempre fui só de você
Você sempre foi só de mim
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ANEXO B5

“O Cantador” (1967) – Dori Caymmi e Nelson Motta

Amanhece, preciso ir
Meu caminho é sem volta e sem ninguém
Eu vou pra onde a estrada levar A (1ª. estrofe)
Cantador, só sei cantar
Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor
Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor

Cantador não escolhe o seu cantar


Canta o mundo que vê
E pro mundo que vi meu canto é dor B (2ª. estrofe)
Mas é forte pra espantar a morte
Pra todos ouvirem a minha voz
Mesmo longe ...

De que servem meu canto e eu


Se em meu peito há um amor que não morreu A’ (3ª. estrofe)
Ah! se eu soubesse ao menos chorar
Cantador, só sei cantar
Ah! eu canto a dor de uma vida perdida sem amor
Ah! eu canto a dor de uma vida perdida sem amor
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ANEXO D - CD com registro do Recital de Mestrado de Fernando Seiji Sagawa realizado no


dia 27 de Agosto de 2015 e citado nesta pesquisa (caso o CD não esteja disponível, por favor
entre em contato através do endereço eletrônico fsagawa@gmail.com).

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