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Instituto de Artes
Campinas
2015
Fernando Seiji Sagawa
Campinas
2015
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Agradecimentos
À Regina Machado pela orientação atenta, coesa e ao mesmo tempo sensível e por me fazer
(re)descobrir o lado cantor do saxofone.
Agradeço especialmente a toda minha família pelo suporte e incentivo sempre presentes e
incondicionais. Agradeço em particular: ao meu pai, Jorge, por me ensinar a importância dos
detalhes que extrapolam a funcionalidade; à minha mãe, Ana Rita, pelo exemplo de harmonia
entre força e sensibilidade; e à minha irmã, Juliana, pela parceria e pelos estudos de piano que
me iniciaram no universo musical.
À Laura Françozo pelo companheirismo e afeto e pelas trocas tão produtivas de ideias.
Aos amigos e grandes músicos Gustavo de Medeiros, Dhieego Andrade, Kiko Woiski e
Henrique Cantalogo que construíram comigo o recital e tornaram esta pesquisa mais musical e
interessante.
Aos companheiros de som do Grupo Obra-Aberta, Lucas, Marcelo, Fabio, Henrique e Theo,
que tanto me ensinaram sobre musica neste período.
Aos professores Marco Tulio e José Roberto Zan pelas direções apontadas no exame de
qualificação.
Aos professores Sergio Molina e José Augusto Mannis pela leitura atenta do trabalho e pelo
diálogo construtivo durante o recital e a banca de defesa.
À FAPESP – Fundação de Amparo a Pesquisa que financiou este trabalho através de bolsa de
estudos concedida entre julho de 2013 e julho de 2015.
RESUMO
Nesta pesquisa propomos estudar, por meio de abordagens teórica e prática, cinco gravações
do saxofonista Victor Assis Brasil nas quais ele interpreta canções brasileiras. No plano
teórico, a partir de paralelos com o modelo de análise do gesto vocal desenvolvido por Regina
Machado, buscamos relacionar os recursos expressivos, formas de variação da melodia,
estratégias de improvisação e escolhas de arranjo com os significados gerados pela relação
entre melodia e letra das canções interpretadas. Após esse levantamento do projeto
interpretativo de cada gravação, buscamos detectar as recorrências e particularidades na
abordagem desse saxofonista interpretando canções brasileiras. No plano da prática,
apoiando-nos nessa compreensão teórica das gravações, propusemos três maneiras de
assimilação e interação com a performance de Victor Assis Brasil: 1) reinterpretação das
gravações; 2) proposta de projeto interpretativo inédito que utilize características e
procedimentos recorrentes levantados pelas análises; 3) proposta de projeto
interpretativo livremente influenciado pela memória adquirida com a reprodução das
transcrições e incorporando recursos interpretativos detectados nas análises.
In this research, we intend to study through theoretical and practical approaches, five
recordings of saxophonist Victor Assis Brasil in which he plays Brazilian songs. From the
theoretical side our approach will be based on the vocal gesture analysis proposed by Regina
Machado. Using this model implies relating the expressive resources, ways to change the
melody and improvisation and arrangement strategies choices to the meanings generated by
the relation between melody and lyrics of the songs. After this survey of the interpretive
design of each recording, we seek to detect recurrences and peculiarities in this saxophonist’s
approach to Brazilian songs. On the level of practice, supported by this theoretical
understanding of the recordings, we proposed three ways of appropriation and interaction with
the performance of Victor Assis Brasil: 1) reinterpretation of the recordings; 2) proposal of
unprecedented interpretative project using recurring features and procedures raised by
analysis; 3) proposed interpretive project freely influenced by acquired memory with
playback the transcripts and incorporating interpretative resources detected in the analyzes.
Keywords: Victor Assis Brazil; saxophone; interpretative practices; Semiotics Song; samba-
jazz.
Sumário
Introdução ................................................................................................ 1
1 Contextualização .................................................................................... 4
1.1 Breve biografia e revisão da discografia .................................................. 4
1.2 Proposta de periodização da discografia ................................................ 11
1.3 Samba-jazz ............................................................................................. 12
1.3.1 Samba, jazz e Bossa Nova: atrito e conciliação ..................................... 12
4 Análises .................................................................................................. 48
4.1 “Minha Saudade” ................................................................................... 48
4.2 "Feitiço da Vila" ..................................................................................... 68
4.3 “Dindi” ................................................................................................... 84
4.4 “Só tinha de ser com você” .................................................................. 102
4.5 “O Cantador” ........................................................................................ 112
Anexos.................................................................................................. 141
10
Introdução
musicais presentes em sua produção e localizar em que partes da sua discografia se encontram
as interpretações instrumentais de canção. A construção desse panorama pretende auxiliar a
escolha das gravações que serão analisadas no sentido de possibilitar, ao final do trabalho,
uma visão global de como esse saxofonista abordou o repertório de canção durante sua
carreira. Na segunda parte desse capítulo, apresentaremos considerações a respeito do samba-
jazz, dando especial atenção para sua relação com o jazz e com a Bossa Nova. Como veremos
em sua biografia, Victor Assis Brasil dialogou constantemente com esse repertório e,
consequentemente, uma melhor compreensão de suas características se mostrou útil durante o
desenvolvimento das análises.
No Capítulo 2 – Considerações sobre a prática, buscaremos detalhar os procedimentos
práticos adotados, ressaltando seu caráter de complementaridade em relação à parte teórica da
pesquisa. Inicialmente, abordaremos como o objetivo prático de incorporar características das
interpretações de Victor Assis Brasil na própria performance direcionou escolhas relacionadas
à metodologia de análise. Em seguida, apresentaremos os estágios dessa dimensão prática e
como cada um deles se apoia nas análises formalizadas para dialogar com o objeto estudado.
No final desse capítulo, descreveremos os três modelos de apresentação dos resultados
práticos propostos por esta pesquisa.
O Capítulo 3 contém a descrição das ferramentas e referenciais teóricos utilizados
nesta pesquisa. A partir da adaptação do modelo de análise do comportamento vocal proposto
por Machado, apresentaremos uma proposta de abordagem das gravações dividida em duas
partes: 1) a análise da canção independentemente da interpretação, buscando encontrar os
sentidos contidos em seu núcleo de identidade melodia-letra conforme a proposta da
Semiótica da Canção (TATIT, 2007); e 2) a definição e análise do projeto interpretativo do
saxofonista e de como esse dialoga com os sentidos da canção.
Durante o Capítulo 4, desenvolveremos as análises individuais de cinco gravações de
Victor Assis Brasil: “Feitiço da Vila”, “Minha Saudade”, “Dindi”, “Só tinha de ser com você”
e “O Cantador”. Como descrito no parágrafo acima, buscaremos estabelecer relações de
sentido entre os projetos interpretativos e as canções realizadas. Mais especificamente, cada
análise pretende identificar escolhas de arranjo, maneiras de usar os recursos idiomáticos e
estratégias de variação melódica que apontem para um diálogo da performance do saxofonista
com as particularidades de cada núcleo melodia-letra. De uma perspectiva ainda anterior às
relações de sentido, as análises buscarão também evidenciar o grau de comprometimento de
cada projeto interpretativo com as canções. Em outras palavras, se a gravação demonstra
maior preocupação com aspectos ligados ao repertório instrumental como a improvisação e a
12
1. Contextualização
Victor Assis Brasil nasceu no Rio de Janeiro em 28 de agosto de 1945, junto com
seu irmão gêmeo João Carlos Assis Brasil, com o qual, futuramente, compartilharia a mesma
escolha profissional: a carreira de músico. Aos doze anos, começou a tocar bateria e gaita-de-
boca sendo que nessa última, segundo Raffaelli, ele já demonstrava interesse pelo repertório
do jazz ao copiar solos de saxofonistas e trompetistas das gravações a que tinha acesso. Aos
dezessete anos ganha um saxofone alto e segundo diversas fontes (RAFFAELLI;
LINHARES, 2011; MAURITY, 2006), inicia o aprendizado desse instrumento com Paulo
Moura1.
Pouco tempo depois, em meados dos anos 1960, o saxofonista passou a frequentar
as jam sessions que aconteciam no que ficou conhecido como Beco das Garrafas – quarteirão
do Rio de Janeiro que nessa época era famoso pelo grande número de casas noturnas com
música ao vivo. Ambiente de efervescência cultural, o Beco das Garrafas é entendido hoje
como importante espaço de experimentação e consolidação da Bossa Nova e principalmente
do que seria, posteriormente, chamado de samba-jazz. Em 1965, ao tocar no “Clube do Jazz e
da Bossa” causa boa impressão no maestro e pianista Friedrich Gulda, que o convida a
participar do Concurso Internacional de Viena2 no ano seguinte (PINTO, 2011). No mesmo
ano de 1966, já na Europa, participa também do Festival de Berlim, ficando em primeiro lugar
na categoria saxofone (Ibid.).
De volta ao Brasil, ainda em 1966, o saxofonista carioca grava seu primeiro disco
intitulado Desenhos. Naturalmente, esse registro apresenta de forma marcante as
características do meio musical no qual Victor estava inserido no Beco das Garrafas – a
saber, a grande proximidade e tensão entre repertórios e procedimentos associados ao jazz, à
Bossa Nova e ao samba. No disco notamos a divisão meio a meio entre composições do
próprio Victor e canções de compositores ligados à Bossa Nova – dentre eles João Donato,
Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Marcos Valle. Nas composições autorais, ouvimos uma
proximidade maior com o jazz no que diz respeito à rítmica e ao acompanhamento – que,
1
Nenhuma das fontes consultadas afirma com precisão durante quanto tempo e nem quantas foram as aulas de
Victor Assis Brasil com Paulo Moura.
2
(Internationaler Wettbewerb für Modernen Jazz Wien 1966)
14
entre outras coisas, aparecem em sua maioria com swing3 de colcheia característico desse
gênero (ouvir, por exemplo, “Dueto”, faixa seis do disco Desenhos). Nas versões
instrumentais das canções brasileiras, a acentuação jazzística abre espaço para a subdivisão
em semicolcheias e acentuações mais características do samba e da Bossa Nova (ouvir, por
exemplo, “Minha Saudade”, faixa nove do disco Desenhos).
No entanto, uma divisão clara entre essas duas influências – brasileira e norte-
americana – é apenas aparente. Assim como no Beco das Garrafas, o disco de estreia de
Victor Assis Brasil apresenta elementos desses repertórios diversos em intensa interação
dentro de cada uma das faixas, independente de sua autoria. Adotando o procedimento que
hoje é entendido como comum à época, as músicas tiradas do repertório de Bossa Nova são
ouvidas em uma abordagem, no geral, jazzística. No caso específico de músicas como
“Primavera” e “Minha Saudade”, podemos ouvir o referencial rítmico do samba – bem como
um referencial melódico associado à música brasileira – trabalhados a partir de modelos de
improvisação e interação comuns ao jazz pós anos 19404.
Já aparente na audição de Desenhos, a presença em maior ou menor grau dessas
duas influências principais não aparece sempre na mesma proporção. Como será apresentado
mais adiante, Victor Assis Brasil ora se aproxima mais de elementos e procedimentos da
Bossa Nova e do samba – demonstrando por vezes um comportamento que poderíamos
chamar de cancional – ora de elementos e procedimentos do jazz, focando sua performance
mais no caráter de instrumentista improvisador.
Dois anos depois de Desenhos, a saxofonista carioca lança seu segundo disco
intitulado Trajeto (1968). Participam da gravação o trompetista Claudio Roditi, o pianista
Aloísio Aguiar, Sérgio Barroso no contrabaixo e Claudio Caribe na bateria – sendo esse
quinteto um dos dois grupos fixos que o saxofonista liderava nesse período.5 Em Trajeto
ouvimos também a primeira participação de Hélio Delmiro em gravações do saxofonista –
sendo que o guitarrista se tornaria uma participação constante em vários discos seguintes de
Victor Assis Brasil.
Esse segundo disco, de 1968, não apresenta – ao menos não explicitamente – a
influência do samba-jazz ou de outros ritmos brasileiros. O repertório é composto
3
O termo swing aqui se refere a uma maneira específica de tocar determinados ritmos no repertório jazzístico.
Tal comportamento pode ser resumido na forma irregular de se tocar a figura rítmica de colcheia. Ao invés de
duas colcheias dividirem um tempo exatamente ao meio, a primeira passa a ser mais longa e a segunda
proporcionalmente mais curta.
4
A análise da interação/fricção entre os elementos e procedimentos do jazz e da música brasileira, bem como a
discussão em torno da definição do termo samba-jazz, será mais aprofundada adiante.
5
Segundo Pinto (2011), além desse quinteto, Victor monta nesse período (1966-68) um sexteto formado por:
Haroldo Mauro Júnior (piano), Ricardo Santos (contrabaixo), Ion Muniz (sax alto), Alfredo Gomes (bateria) e
Cláudio Roditi (trompete).
15
exclusivamente por temas de jazz. As únicas duas faixas que fogem a essa regra (“Stolen
Stuff” composta pelo próprio Victor Assis Brasil e “Plexus” por Aloísio Aguiar) não destoam
no repertório já que estão claramente referenciadas também no repertório jazzístico6. A
presença de standards na gravação de um conjunto de músicos brasileiros indica um
posicionamento bastante específico da parte de Victor. Como o nome e seu repertório
sugerem, o disco Trajeto apresenta uma incursão de Victor e seus colegas no repertório do
jazz – sendo essa imersão um posicionamento incomum à postura predominante dos músicos
brasileiros da época que buscavam estabelecer diálogos entre esse repertório norte-americano
e a música brasileira (MAURITY, 2006, p. 19).
Esse posicionamento de Victor Assis Brasil faria especial sentido um ano mais
tarde (1969), quando ele, tendo recebido uma bolsa de estudos, parte para a Berklee School of
Music, em Boston – a mais antiga escola de jazz dos EUA. No entanto, o que poderia ser um
caminho sem volta em direção à influência jazzística e um abandono à influência da música
brasileira, não se concretiza nesses termos extremos. Como foi analisado de forma mais
aprofundada por Pinto em “Victor Assis Brasil: a importância do período na Berklee School
of Music (1969-1974) em seu estilo composicional”, dois fatores apontam para a continuidade
da dicotomia entre jazz e música brasileira na produção de Victor mesmo durante e após seu
período na Berklee. A partir de depoimentos de outros músicos brasileiros, que também
estudaram na Berklee nesse mesmo período – dentre eles Nelson Ayres, Célia Vaz e Cláudio
Roditi –, Pinto propõe uma reconstrução das experiências musicais de Victor nos EUA.
Segundo o autor, a ausência do saxofonista brasileiro nas aulas de saxofone e nas aulas
teóricas sobre jazz reflete uma questão mais profunda que apenas uma dificuldade de acordar
pela manhã. No depoimento de seus colegas, ao chegar aos EUA, Victor foi considerado já
proficiente em seu instrumento pelos professores norte-americanos, o que teria gerado seu
desinteresse pelas aulas e ao mesmo tempo o seu interesse por outras atividades. O
saxofonista frequentava a escola no período da tarde para tocar com os alunos e professores,
além de se aproveitar do considerável número de big bands e orquestras para fazer
experimentações no campo da composição e do arranjo, tanto na linguagem da música
popular como na da erudita (PINTO, 2011, p. 53).
6
Em “Stolen Stuff” e “Plexus”, ouvimos uma série de características que poderíamos destacar como referências
ao jazz. Durante a exposição e reexposição do tema (principalmente em “Stolen Stuff”), ouvimos um
acompanhamento baseado em ostinato e a abertura de vozes para os sopros em referência a sonoridade de bandas
de jazz dos anos 1950 como o The Jazz Messengers, por exemplo. Os ataques rítmicos convencionados na
cozinha e breques combinados de toda a banda também são bastante característicos de gravações de jazz desse
período. Nas duas faixas, ouvimos claramente nas seções de improviso a bateria tocando variações da “rítmica
do prato de condução” (ride cymbal beat) característica do jazz pós-1940 (MONSON, 1998, p. 54-57); além
disso, o baixo sustenta o acompanhamento a partir do procedimento de walking bass e o piano interage com os
solistas em um tipo característico de acompanhamento chamado comumente de comping (esse último conceito
será melhor discutido adiante).
16
7
No original: “The therme modal jazz has come to be associated with these two musical characteristics: fewer
chords (than jazz standards or bebop compositions) and (consequently) greater freedom of note (and scale)
selection […]”. MONSON, Ingrid. In the Course of Performance: Studies in the World of Musical
Improvisation. University of Chicago Press, 1998. p. 150.
8
Na ocasião da reedição em CD dos discos do Victor Assis Brasil, “Quartiniana” foi lançada no disco Jobim e
não mais em Esperanto.
18
distanciamento, por parte de Victor, do referencial até então bastante presente do samba-jazz
– que como o próprio nome explicita, dá preferência à utilização de elementos musicais
característicos do samba. No entanto, como veremos a seguir, tal distanciamento não se
confirma nos discos seguintes do saxofonista.
Um ano depois das seções no Teatro da Galeria que resultaram no disco Victor
Assis Brasil Ao Vivo, o saxofonista participou com quatro composições – inclusive o tema de
abertura – da trilha sonora da telenovela “O Grito”. Em 1976, estreia sua “Suíte para Sax
Soprano, Piano e Cordas” (PINTO, 2011. p. 45-6) e em 1978 participa do Festival de Jazz de
São Paulo, no qual foi aclamado pelo público, crítica e por músicos internacionais que
também se apresentaram no evento (RAFFAELLI, 1979).
Nesse entremeio, mais especificamente em 1977, Victor se apresenta junto ao
pianista Luis Eça no Museu de Arte Moderna, sendo que o registro dessa apresentação seria
lançado em disco postumamente (1997). Nessa gravação, os dois instrumentistas se mostram
extremamente à vontade, assumindo riscos como improvisar fora da Forma do tema, trabalhar
texturas longamente e acrescentar materiais e ideias musicais totalmente distintas dos
presentes nas composições. Por parte do Victor, notamos também, com frequência maior do
que nas gravações anteriores, o uso de efeitos como glissandos, trinados e frases inteiras com
a articulação em stacato.9
Próximo ao final precoce de sua carreira, Victor Assis Brasil lança mais dois
discos – Quinteto em 1979 e Pedrinho em 1980 – e mais uma vez dedica um deles ao jazz e o
outro à interação desse gênero com o repertório da música brasileira.
Quinteto é o único disco de Victor Assis Brasil totalmente autoral com cinco
composições do saxofonista, sendo uma delas em homenagem a Phil Woods, “Waltz for
Phil”, e outra dedicada a John Coltrane, “Waltz for Trane”. A declaração de admiração aos
dois saxofonistas norte-americanos – que começaram sua produção a partir do final de 1950 –
corrobora para a ideia de que Victor, após sua estada nos EUA, buscou atualizar sua
referência de jazz para além dos anos 1940-50. Apesar de todas as músicas do disco
remeterem às características do jazz – em termos de melodia, ritmo, harmonia e interação
entre os músicos – o saxofonista carioca demonstra, principalmente nas duas músicas mais
lentas (“Balada para Nádia” e “Waltz for Trane”), uma abordagem bastante interessante em
9
Glissando: Termo normalmente usado como uma instrução para executar uma passagem em movimento rápido
e contínuo. (Verbete Glissando do Dicionário Grove de Música. Versão online, último acesso em 08/06/2015).
Trinado: alternar entre duas notas rapidamente sendo o intervalo entre as duas notas normalmente pequeno.
Stacato: terminologia da música clássica que designa, no caso do saxofone, um ataque de língua no início da
nota e a diminuição da sua duração; pode vir ou não acompanhado de uma acentuação. A definição de staccato
será mais bem discutida no Capítulo 3, item 3.2.2.2.
20
relação ao swing feel10, variando a proporção de durações entre a colcheia do tempo forte e a
do tempo fraco – e, por vezes, até mesmo negando o swing feel e tocando todas as colcheias
com a mesma duração.
Pedrinho, assim como Desenhos e Jobim, reafirma mais uma vez a presença
concomitante do jazz e da música brasileira em toda a produção musical de Victor Assis
Brasil. Em relação ao repertório, podemos dizer que o último disco de sua carreira resume e
exemplifica toda a discografia do saxofonista já que nele ouvimos temas de jazz (“It’s all right
with me”, “’S Wonderfull” e “Night and Day”), músicas do cancioneiro brasileiro (“Nada
Será Como Antes” e “O Cantador”) e duas composições autorais (“Pedrinho” e “Penedo”).
Após o lançamento de seu último disco em 1980, poucos são os registros
biográficos a respeito de Victor Assis Brasil. O saxofonista, arranjador e compositor morreu
em 1981 de periartrite nodosa, rara doença do sistema nervoso, e encerrou precocemente sua
carreira aos trinta e cinco anos de idade.
10
O termo swing feel é aqui usado para se referir à duração irregular das figuras rítmicas de colcheia, observável
em parte considerável do repertório jazzístico.
21
Como característica comum, cada uma das fases engloba um disco totalmente
direcionado para o repertório de jazz (Trajeto, Esperanto e Quinteto) e outro com conteúdo
mais diversificado, incluindo além de temas de jazz, composições autorais em outros gêneros
e versões instrumentais de canções brasileiras (Desenhos, Jobim e Pedrinho). Considerando o
foco deste trabalho, nos propusemos a analisar gravações das três fases de sua discografia
com o intuito obter uma visão global de como o saxofonista abordou o repertório de canção
durante sua carreira. Mais especificamente, foram selecionadas: “Feitiço da Vila” e “Minha
Saudade” do disco Desenhos (1ª. Fase), “Só tinha de ser com você” e “Dindi” do disco Jobim
(2ª. fase) e “O Cantador” do disco Pedrinho (3ª. Fase).
1.3. Samba-jazz
Com o início das jam sessions em 1954 (SARAIVA, 2007, p. 37), o cenário
musical já bastante diverso de Copacabana ganha mais um elemento. A partir desse ponto, a
atenção do público das boates da zona sul do Rio passaria a se dividir entre boleros, sambas-
canção, tangos, foxtrotes, sambas e a nova “sensação do momento”: o jazz. A imagem de
“modernidade” atribuída a esse gênero norte-americano e a noção de que a sua influência
seria capaz de modernizar outras músicas transformou o jazz em sinônimo de “sofisticação” e
“bom gosto” (Ibid., p. 22).
22
“diluição”, de uso conciso do que Sandroni (2001) definiu como “paradigma da Estácio” (ver
Figura 1) – uma figuração rítmica específica que se repete ciclicamente11 e que se torna
“denominador comum nacional do que se vai entender por samba” (GOMES, 2010, p. 41).
Essa utilização concisa da matriz rítmica do samba, característica da Bossa Nova, aparece
nesse repertório no acompanhamento executado por instrumentos como o violão e o piano e
de forma geral, mantém a noção de ciclo presente no “paradigma da Estácio” (Ibid., p. 44).
Figura 1 – a) Exemplo da figuração rítmica chamada por Sandroni de “paradigma da Estácio”; b) e c) Exemplos
apresentados por Gomes (2010, p. 42-43) de uso conciso da matriz rítmica do samba no repertório da Bossa
Nova.
Como colocado por Saraiva (2007, p. 95-99; p. 100-101), o repertório sob o rótulo
de samba-jazz é aquele que se comunica com o samba através do processo de síntese
desenvolvido pela Bossa Nova. Dessa forma, a ideia de uso conciso da matriz rítmica do
samba também se faz presente no samba-jazz tanto no acompanhamento como nas melodias
escritas ou improvisados. Porém, no caso do acompanhamento, de maneira geral, essa matriz
rítmica perde o caráter de repetição cíclica e passa a ser usada livremente. Mais
especificamente, podemos ouvir no samba-jazz um desprendimento de instrumentos como o
piano e, por vezes, a bateria da função de “manter o ritmo” ou a “levada”. Ainda apoiados
sobre a matriz rítmica do samba, esses instrumentos se aproximam de um procedimento
jazzístico comumente chamado de comping em que os acompanhadores interagem de maneira
improvisada com o solista, ora respondendo aos estímulos desse, ora o provocando ou
preenchendo os espaços vazios (LEVINE, 1995).
Além dessa nuance em relação à apropriação de procedimentos do jazz pela Bossa
Nova e pelo samba-jazz, Gomes acrescenta mais uma diferença marcante entre os dois
11
Entendemos que apesar de tal figuração rítmica sofrer variações de uma música para outra ou dentro de uma
mesma música, a ideia de ciclo sempre se mantém através da manutenção da métrica (compassos de 2/4 com
predominância da subdivisão de semicolcheia), da duração das frases rítmicas (dois compassos de 2/4) e da
colocação das acentuações dentro dessas frases.
25
12
Ao aproximar Bossa Nova e cool jazz é importante ressaltar a não semelhança de abordagem em relação à
improvisação. Apesar das diferenças entre cool jazz e hardbop, em ambos a improvisação tem papel central. Na
Bossa Nova, como apontado anteriormente, a improvisação jazzística assume função secundária ou muitas vezes
nem se faz presente.
26
saudade” (um chorus) sendo as duas canções adaptadas do repertório da Bossa Nova; já no
disco Jobim em faixas como “Wave” e “Bonita”, também canções em versão instrumental,
ouvimos solos mais longos. Tal comportamento será investigado de maneira mais
aprofundada no capítulo de análises.
* * *
15
A autora tem como objetos de estudo, principalmente, pesquisas na área de Práticas Interpretativas que
abordam o repertório de música erudita, e, por conta disso, aponta para a partitura como foco das análises
estruturais desenvolvidas por esses trabalhos.
16
Aqui, buscamos estabelecer uma diferenciação entre transcrição e partitura. A primeira é posterior ao
acontecimento musical e subentende um processo de análise do mesmo. A segunda, no contexto em que aparece,
refere-se à notação que, dentro da chamada tradição da música ocidental, serve de registro e suporte para a
performance.
17
Importante ressaltar que nesse ponto do texto, bem como nos parágrafos seguintes, não apontamos a superação
das formas de análise da performance em música popular citadas. As incorporamos ao texto apenas para
contribuir, através do apontamento de semelhanças e diferenças, na definição de nossa própria abordagem do
objeto.
30
18
A definição de projeto interpretativo se baseia na ideia de gesto interpretativo (ou gesto vocal), apresentada
por Machado (2012, p. 53) e que dá nome ao conjunto de ações que materializa a relação do intérprete vocal com
os materiais musicais e textuais da canção e, consequentemente, com os sentidos contidos no regime de
integração entre melodia e letra. As relações entre projeto interpretativo e gesto vocal serão mais aprofundadas
no Capítulo 3.
31
projeto interpretativo de Victor Assis Brasil, e a canção, que estava sendo adaptada para uma
performance instrumental. No âmbito prático, esse questionamento trouxe nossa atenção para
a importância das escolhas interpretativas fora da seção de improviso nos projetos
interpretativos inéditos, que propunham relação com os desse saxofonista.
Outros dois exemplos da interação entre os planos prático e teórico desta pesquisa
são a influência direta que a audição-imitação exerceu sobre as análises de “O Cantador” e
“Só tinha de ser com você”. No primeiro caso, certa dificuldade foi sentida durante a prática,
ao se tentar respirar apenas nos mesmos lugares em que isso acontecia nas gravações; tal
constatação chamou a atenção para uma tendência de continuidade – redução de interrupções
– que posteriormente seria mais desenvolvida na análise formal. No segundo caso, a execução
da transcrição chamou a atenção para o acúmulo de tensão resultante da escolha de tonalidade
e a consequente acomodação da melodia em uma região aguda da tessitura do saxofone; esse
dado empírico, por sua vez, contribuiu na caracterização do projeto interpretativo dessa
gravação.
Por fim, o objetivo prático de reinterpretar os projetos interpretativos de Victor
Assis Brasil, serviu ainda como parâmetro para a escolha do recorte a ser estudado dentro da
obra desse instrumentista. As cinco gravações escolhidas estão contidas em seus três discos
que contém versões instrumentais de canções brasileiras. Além disso, como o apresentado no
Capítulo 1 – Contextualização, cada um dos três representa uma das fases de sua
discografia, configuração essa que planejamos intencionalmente. A partir da compreensão
desses projetos interpretativos, pretendemos a construção de um panorama das escolhas
interpretativas recorrentes e particulares nas gravações instrumentais de canção, dentro de sua
produção registrada em disco. Tal inventário de características que particularizam Victor
Assis Brasil são as chamadas marcas identitárias, que, no final do processo dessa pesquisa,
são usadas como referência para a proposição de projetos interpretativos inéditos, porém
diretamente relacionados aos seus.
Retomando o que foi desenvolvido até aqui, a metodologia proposta para a
dimensão prática dessa pesquisa possui uma Parte 1 que se subdivide em três fases:
Parte 1
(i) audição-imitação (percepção)
(ii) transcrição-análise (análise)
(iii) reinterpretação (síntese)
32
Considerando que cada uma das cinco gravações escolhidas para serem estudadas
passaram por essas três fases, o conjunto desses ciclos, por sua vez, constitui a primeira fase
(percepção) de um ciclo análogo (Parte 2), porém, mais abrangente. Seu objetivo final
(síntese) é a proposta de projetos interpretativos inéditos, que reutilizam ou fazem referência
às marcas identitárias encontradas, classificadas e repertoriadas (análise), a partir do
emparelhamento desses projetos interpretativos estudados na Parte 1.
Parte 2
(i) Audição-imitação-análise- (percepção)
reinterpretação das cinco
gravações escolhidas (Parte 1)
(ii) Levantamento das marcas (análise)
identitárias
(iii) Projetos interpretativos (síntese)
inéditos
Parte 3
(i) Partes 1 e 2 (percepção)
(ii) Incorporação das marcas
identitárias de Victor Assis
Brasil ao nosso repertório geral (análise)
de referenciais musicais
conhecidos
(iii) Projetos interpretativos livres (síntese)
33
2.2.1. Reinterpretação
para uma situação real de performance com outros músicos, para, assim, efetivamente
construir uma reinterpretação. Reproduzimos as mesmas escolhas de arranjo de Victor Assis
Brasil no que diz respeito à Forma, tonalidade e harmonia e fizemos uma única adaptação na
instrumentação – substituindo o piano pela guitarra elétrica19. A parte tocada pelos
instrumentos de acompanhamento (guitarra, baixo e bateria), apesar de não transcrita nota a
nota, seguiu a divisão de funções característica do jazz pós-1940 e do samba-jazz ouvidas nas
gravações analisadas.
Para a parte tocada pelo saxofone, inicialmente, propusemos executar a
transcrição – assim como o feito na reprodução literal – sobre o acompanhamento tocado
pelos outros músicos. Tal procedimento incluiu não só a reprodução das inflexões e variações
nas seções de exposição da melodia das canções, como a reprodução dos solos improvisados
também transcritos. Essa abordagem se mostrou parcialmente eficiente.
A análise da gravação de referência de “O Cantador” revelou um projeto
interpretativo estreitamente ligado ao material cancional bem como sugeriu um maior
planejamento do uso dos recursos interpretativos do que as outras gravações. Assim sendo,
representando um projeto interpretativo mais fechado, com menos indeterminação, a
transcrição se aproxima da ideia de partitura dentro do contexto da música de concerto20,
servindo de guia para a performance. Nessa situação, a proposta inicial de execução da
transcrição sobre o acompanhamento ao vivo apresentou resultados satisfatórios, isto é, foi
capaz de gerar uma releitura que transcende a imitação da gravação.
Nos casos de “Feitiço da Vila” (Faixa 1 do CD – ANEXO D), “Minha Saudade”
(Faixa 2) e “Dindi” (Faixa 5), essa proposta de reinterpretação, a partir da execução strictu
senso da transcrição, mostrou-se inadequada. Como demonstraram as análises, a performance
do saxofonista, nessas gravações, aponta para um número maior de escolhas tomadas durante
a interpretação, e que levam em conta, entre outras coisas, a interação improvisada dele com
os outros músicos. Além disso, as seções de solo improvisado do saxofonista demonstram
menor grau de relação com o material melódico de cada canção, sugerindo também um nível
menor de planejamento. Nesses casos, apoiados nas observações das análises, propusemos
maior maleabilidade para determinados parâmetros e seções, visando melhor fluência na
interação com os outros músicos e maior contundência em relação às proposições de cada
19
A apresentação dos resultados práticos desta pesquisa contou com a colaboração do Sem Pé Nem Quarteto,
fundado em 2010 no Instituto de Artes da UNICAMP, e formado por Gustavo Santos (guitarra), Francisco
Woiski (baixo elétrico), Dhieego Andrade (bateria) e pelo pesquisador deste trabalho (saxofone). Com o intuito
de aproveitar a coesão do grupo – essencial à execução do repertório estudado que envolve improvisação e
interação entre os instrumentistas – optamos pela substituição do piano pela guitarra.
20
Aqui nos referimos principalmente ao repertório da música de concerto até meados do séc. XX, quando as
partituras apresentavam menor grau de indeterminação ou de escolhas para o intérprete.
35
projeto interpretativo. Como exemplo, podemos citar em “Minha Saudade” a opção pela
manutenção dos procedimentos de variação da melodia – como acréscimo de notas repetidas e
o deslocamento de figuras rítmicas – porém, sem necessariamente aplicá-los nas mesmas
passagens. Em “Dindi”, o comportamento de constante interferência sobre os contornos da
melodia, através de acréscimo de notas ou de frases inteiras improvisadas (fills), também é
mantido, mas não imitado literalmente, já que fazemos uso de outras notas acrescentadas e de
novas frases improvisadas.
Ao mesmo tempo, ainda nesses casos em que a reinterpretação apresenta maior
maleabilidade em relação à gravação e à transcrição, características definidoras de cada
projeto interpretativo, como tonalidade, andamento e incidência recorrente de determinado
recurso idiomático sobre uma parte específica da melodia, continuam norteando a
performance. Em “Minha Saudade”, procuramos salientar as diferenças de articulação e de
textura rítmica entre exposição da melodia e solo improvisado. Já em “Feitiço da Vila”,
mantivemos ornamentações recorrentes em passagens específicas e o uso da blue note na
variação do sexto c. das seções A. No caso de “Dindi”, mantivemos o padrão “a tempo no A”
e “rubato no B” e os longos bends de chegada sobre partes específicas da melodia.
Resumindo, as reinterpretações propuseram a reutilização do arranjo e dos
recursos expressivos fundamentais para a caracterização do projeto interpretativo tido como
referência. Ao mesmo tempo, cada uma delas abordou sua respectiva transcrição de uma
maneira diferente, e utilizou quantidades e qualidades diferentes de indeterminação
(improvisação), conforme a pertinência desse recurso em relação ao projeto interpretativo em
questão. De forma esquemática, as principais abordagens foram:
21
Leito em que o personagem da mitologia grega Procusto torturava suas vítimas, fazendo com que se
adaptassem ao tamanho do móvel, cortando os pés dos indivíduos grandes e estirando os pequenos pelos pés. Em
sentido figurado, “leito de Procusto” sugere uma “interpretação artificiosa que visa encaixar à força um
princípio, uma afirmação num determinado sistema ou corrente de opinião”. (Dicionário HOUAISS, 2004, 1ª.
reimpressão. Vide verbete de leito).
22
O desajuste temporal, a que nos referimos em relação ao samba-jazz, baseia-se no fato de que esse repertório
continuou utilizando elementos musicais da Bossa Nova, durante as décadas de 1960 e 1970, em atrito com
novas referências que se integravam à música popular brasileira – como o rock, por exemplo (ver o item Samba-
jazz do Capítulo 1).
37
relação a nossa apropriação da produção de Victor Assis Brasil, décadas depois do último
disco gravado por ele.
Em termos musicais, o projeto interpretativo proposto para “Saudosismo” (Faixa
3) se estrutura conforme o paradigma tema-improviso-tema acrescido de introdução e coda
originais, que reaproveitam partes do material melódico e harmônico da canção. Essa
configuração pode ser ouvida em todas as gravações de Victor analisadas, sendo exceção
apenas “Só tinha de ser com você”, que não possui introdução. Durante a exposição e
reexposição da melodia da canção, procuramos utilizar estratégias de variação da melodia
como deslocamento rítmico, acréscimo de apojaturas e repetição de notas da própria melodia.
Tais recursos foram detectados nas análises de “Feitiço da Vila”, “Minha Saudade” e “Só
tinha de ser com você”, e sugerem uma intenção de não descaracterização da melodia.
Também, com referência nessas gravações, buscamos estabelecer abordagens diferentes entre
as seções de interpretação da melodia da canção e a seção de solo improvisado através de
alteração da textura rítmica, uso de padrões de articulação diferentes e aumento da tessitura.
Essa abordagem, como o desenvolvido nas análises, sugere um projeto interpretativo que se
divide entre o diálogo com os sentidos do núcleo melodia e letra e a execução instrumental,
ligada ao repertório jazzístico, que foca na fluência e inventividade do improvisador dentro
desse idioma.
A escolha por “Juízo Final” (Faixa 7) traça um paralelo com a escolha do
saxofonista estudado de acrescentar “Feitiço da Vila” em seu primeiro álbum, Desenhos
(1966). A música de Noel Rosa, além de ser a mais antiga do repertório, é a única que não se
liga diretamente com o repertório da Bossa Nova. Analogamente, com “Juízo Final”
buscamos expandir o referencial de canção brasileira abordado. O projeto interpretativo nesse
caso busca ligações mais diretas com as gravações de “Dindi” e “O Cantador”. Ainda que a
Forma mantenha o paradigma tema-improviso-tema, procuramos manter características da
melodia da canção – como tessitura, saltos intervalares marcantes e motivos rítmicos – na
seção de solo improvisado. Na interpretação da melodia, associamos bends de chegada e
apojaturas, não simultaneamente, aos saltos ascendentes de oitava presentes na seção A da
melodia. Em referência à gravação de “Dindi” analisada, aplicamos um andamento mais
desacelerado com o intuito de valorizar os prolongamentos vocálicos (notas longas) da
melodia e incentivar as variações agógicas, tanto no saxofone, como nos instrumentos de
acompanhamento.
38
Como última forma de resultado prático, propusemos uma interação menos direta
com o referencial estudado e analisado. Nos projetos interpretativos livres, ao mesmo tempo
em que incorporamos outras referências musicais, mantivemos estruturas e procedimentos
recorrentes na produção de Victor Assis Brasil, como, por exemplo, a presença de seções de
solo improvisado dentro de uma estrutura geral tema-improviso-tema. Com isso, buscamos
construir um contexto musical que possibilitasse a utilização, de maneira menos planejada,
das marcas identitárias assimiladas. Mais especificamente, entendemos que essa utilização se
deu de duas formas diferentes: através do condicionamento motor adquirido nos processos de
imitação e reinterpretação, e, portanto, um uso involuntário ou inconsciente das marcas
identitárias; e na adequação para outros contextos musicais e, consequente, ressignificação
dos recursos de interpretação detectados nas gravações de Victor Assis Brasil através das
análises.
As músicas, que deram suporte a esse experimento, foram “Composição #2”
(Faixa 4 do CD – ANEXO D), “Chica de Fafe” (Faixa 8) e “Preguiça” (Faixa 9), todas
autorais e concebidas desde o início como música instrumental.
39
23
Dentre os principais livros de Luiz Tatit que abordam o tema temos Semiótica da Canção: melodia e letra (1994), O
Cancionista (1995), O Século da Canção (2004) e Elos de Melodia e Letra (2008).
24
TATIT, Luiz. 2007, p. 45.
25
Idem.
41
temos uma tendência à redução da duração das notas – através da valorização dos ataques
consonantais, em detrimento dos prolongamentos vocálicos –, a aceleração do andamento e a
presença de procedimentos de reiteração de motivos. Na dimensão da letra, notamos a
presença das ideias de celebração, exaltação e de proximidade e semelhança entre sujeito e
objeto. Canções como “Águas de março”, “Aquarela do Brasil” e “O que é que a baiana tem”
são exemplos de integração entre melodia e letra que se identificam com esse modelo de
tematização.
Por sua vez, as canções passionalizadas lidam com a ideia geral de disjunção,
afastamento entre sujeito e objeto e apresentam, como característica predominante, os
procedimentos relacionados à expansão. De maneira geral, encontramos nessas canções a
valorização dos prolongamentos de notas/vocálicos e, consequentemente, uma maior atenção
ao desenvolvimento da melodia no campo da tessitura. No plano musical, ainda temos a
preferência por andamentos desacelerados, a presença mais frequente de grandes saltos
intervalares e uma tendência maior à variação dos motivos, do que a sua repetição imediata.
Na dimensão da letra, o caráter geral de afastamento entre sujeito e objeto se materializa nos
sentimentos de saudade e de dor ou ainda na forma de esforço no sentido da conjunção. Em
canções como “Eu e a brisa”, “Beatriz” e “Eu sei que vou te amar” encontramos exemplos
típicos de relação melodia-letra alinhados com o modelo de passionalização.
A teoria Semiótica da Canção apresenta ainda um terceiro regime de integração
entre melodia e letra, o figurativizado. Nesse caso, a interação entre melodia e letra se
encontra condicionada a comportamentos característicos da fala cotidiana. Além das
possibilidades de concentração e expansão dos contornos já presentes na fala – como as
entoações de afirmação, interrogação e de exclamação –, a predominância do regime
figurativizado gera ainda acentuações e durações melódicas, que negam as métricas musicais
mais convencionais ao respeitar o ritmo da fala. Machado (2012, p. 47) acrescenta ainda que,
quando valorizado pelo intérprete, esse regime de integração entre melodia e letra atribui
veracidade ao enunciador. Importante notar que, mesmo em canções, nas quais predominam a
tematização ou a passionalização, o regime figurativizado também está presente em maior ou
menor grau, já que a imbricação entre melodia e letra, como vimos, dá-se justamente na
sobreposição das leis musicais e de prosódia.26
Assim como o desenvolvido em relação às forças de concentração e expansão, a
atuação dos modelos de integração entre melodia e letra nunca se dá de maneira absoluta, mas
26
Marcio Luiz Gusmão Coelho, em sua tese de doutorado intitulada “O arranjo como elemento orgânico ligado à canção
popular brasileira: uma proposta de análise semiótica” (2007), leva adiante essa observação de presença constante da
figurativização e questiona a sua classificação como modelo de compatibilidade entre melodia e letra, já que, em uma
situação hipotética, na qual o único processo atuante fosse o de figurativização, a entoação permaneceria como fala e não se
tornaria melodia.
42
“[...] não há como conceber continuidade sem a presença, ainda que virtual, da
interrupção (basta pensarmos genericamente na apreensão que acompanha o
sentimento de felicidade em função do receio de perdê-la ou, inversamente, na
esperança que subjaz à felicidade, tornando-a suportável). Uma se justifica pela
outra.” (TATIT, 2007, p. 199, grifo nosso)
27
A descrição e interpretação dessas formas combinadas de integração entre melodia e letra são melhor
desenvolvidas durante as análises.
43
e os sentidos construídos pela melodia e pela letra é pertinente, ainda que essa última não seja
ouvida nas gravações. “Resgatada” pela ação do intérprete através de um tratamento
específico do material musical, a letra pode ser relembrada pelo ouvinte que conhece a canção
em gravações anteriores.
A segunda consideração a cerca da ausência da letra nas gravações instrumentais
está relacionada com a própria natureza da canção. Como apresentamos durante esse capítulo,
a existência da canção, segundo a proposta de Tatit, depende da interação entre a fala e as leis
musicais, ou resumidamente, da integração entre melodia e letra. Muito além da simples
sobreposição desses elementos, o trabalho do compositor de canção envolve a adequação –
por vezes deformação – do primeiro em prol da clareza do segundo ou vice-versa. A essa
relação atribuímos, por exemplo, o fato de que a letra de uma canção, separada de sua
melodia, não necessariamente apresente sentido ao ser entendida como texto escrito ou falado,
pois sua construção obedece também às leis musicais. Analogamente, ao ficarmos somente
com os elementos musicais de uma canção, não anulamos completamente a presença da letra,
já que a métrica, as entonações e os acentos associados a essa última contribuíram na
construção da melodia o dos outros elementos diretamente ligados a ela.
Outra consideração importante a respeito da ausência da letra se volta para o
próprio desenvolvimento das análises. No intuito de relacionar o projeto interpretativo com
os significados da canção, sempre emparelhamos as escolhas interpretativas do saxofonista
com o núcleo melodia-letra, nunca apenas com a letra. Dessa forma, as associações da
performance instrumental com as imagens e sentidos presentes na letra sempre são mediadas
pelo material musical, que é a parte da canção diretamente manipulada por Victor Assis
Brasil.
Retomando a apresentação do modelo de análise usado como referência, algumas
considerações ainda se fazem necessárias. Como dissemos acima, Machado (2012, p. 45)
propõe a descrição e análise do conjunto de escolhas interpretativas, que materializam a
interação do cantor com o material cancional. Esse conjunto de escolhas é o chamado gesto
vocal, e sua análise busca, mais especificamente, compreender os sentidos gerados pela
interpretação, em termos de concordância ou discordância, com os valores selecionados pelo
compositor da canção e inscritos em sua melodia e letra. Analogamente, propusemos delinear
o projeto interpretativo de Victor Assis Brasil e apontar relações de sentido entre ele e as
canções que foram gravadas. Dentro dessas análises, incluímos não apenas as seções em que o
saxofonista interpreta a melodia de cada canção, como também considerações sobre o arranjo,
os solos improvisados e a interação do saxofone com os outros instrumentos.
45
“[...] trata a voz a partir de elementos naturais, passando pelo desenvolvimento das
competências físicas através da elaboração técnica, e chegando por fim, ao nível
interpretativo, que exige do cantor a elaboração intelectual e sensível”
(MACHADO, 2007, p. 53-54).
Extensão: todas as notas (alturas) alcançadas por uma voz, desde a mais
grave até a mais aguda.
Tessitura: recorte da extensão compreendendo apenas as notas que são
produzidas com menos esforço físico, de maneira confortável.
Registros vocais: são os diversos ajustes musculares que possibilitam o uso da voz
nas diferentes regiões de sua extensão. Os principais registros
vocais são: basal (extremo grave), modal (registro da fala e da
maior parte da tessitura) e elevado (extremo agudo).
Timbre: características físicas que particularizam determinada voz (ou
instrumento ou fonte sonora) e que normalmente estão
associadas com a presença maior ou menor de determinadas
parciais harmônicas.
O nível técnico está relacionado aos recursos que o cantor utiliza para manipular –
ora potencializando, ora controlando – as características particulares de sua voz (nível físico).
46
28
O saxofonista norte-americano James Cartes, por exemplo, demonstra uma predileção por utilizar o limite
superior de sua extensão durante os improvisos. Como exemplo oposto, podemos citar Paul Desmond, que
mantém a tessitura de seus solos dentro de um intervalo relativamente restrito e de execução confortável, indo do
médio grave ao agudo.
49
diferenciam pela maneira de produção sonora29: primeira, segunda e terceira oitavas (sendo
que a terceira também é conhecida como superagudo). Cada uma das partes apresenta
variações em relação ao timbre geral do instrumento, que podem ser amenizadas ou
ressaltadas pela ação do intérprete. Como desenvolveremos adiante, a mudança de registro ou
a opção por um registro específico (condicionada pela escolha da tonalidade) são recursos
fundamentais da atuação do intérprete no nível interpretativo.
Em relação à alteração do timbre, podem ser ouvidos com mais frequência dois
tipos diferentes nas gravações de Victor Assis Brasil: o bend e a combinação entre elevação
da língua e aumento da pressão da coluna de ar.
O bend corresponde a uma rápida variação do timbre combinada com uma
oscilação na afinação da nota. Sua produção depende da variação da pressão do lábio inferior
29
Considerando como foco deste trabalho os sentidos gerados através da utilização dos diferentes registros, não
temos a pretensão de nos aprofundar nas questões físicas e acústicas relacionadas à produção sonora em cada um
desses registros. Para mais informações a esse respeito, consultar, por exemplo: INGHAM, Richard (org). The
Cambridge Companion to the saxophone. Nova York: Cambridge University Press, 2009.
50
sobre a palheta. Esse recurso idiomático pode ser ouvido em todas as interpretações
analisadas, sendo que suas ocorrências podem ser dividias em três tipos diferentes:
Bend de chegada – início da nota abaixo de sua afinação (lábio inferior mais
relaxado que o usual), gradualmente se chega à afinação correta da nota
aumentando a pressão do lábio inferior.
3.2.2.2. Articulação
30
Para a descrição detalhada de todas as possibilidades combinatórias entre ataque de língua, coluna de ar e
digitação, consultar: KORSH, Kyle. The mechanics of the saxophone. In: The Cambridge Companion to the
saxophone. Nova York: Cambridge University Press, 2009. p. 85.
51
3.2.2.3. Apojaturas
O termo apojatura pode ser usado com dois significados diferentes. O primeiro
está relacionado à teoria do contraponto e diz respeito a notas de dissonância posicionadas em
tempo forte e que, eventualmente, apresentam uma resolução em uma nota consonante
(ALMADA, 2000). O segundo significado, que adotaremos neste trabalho, é usado por
métodos de instrumento e de leitura de partituras31 e se refere a notas de duração muito curta,
que precedem outras notas mais importantes da melodia. Normalmente, são grafadas em
tamanho menor que as outras notas e sua duração não é somada na contagem de tempos de
um compasso.
31
Esse mesmo uso do termo apojatura também foi encontrado em trabalhos acadêmicos voltados para as
Práticas Interpretativas. Entre eles O estilo interpretativo de Jacob do Bandolim (CORTES, 2006) e Manezinho
da flauta no choro – uma contribuição para o estudo da flauta brasileira (GORITZKI, 2004).
52
No caso da música popular, em que o uso desse tipo de recurso não é fixado pela
partitura e, consequentemente, fica a cargo do instrumentista, notamos que as apojaturas
acontecem com mais frequência sobre determinadas partes da extensão do instrumento. Mais
especificamente no saxofone, as posições das chaves combinadas com os movimentos de
digitação tornam a presença de apojaturas entre determinadas notas mais natural ou até
mesmo involuntária. Essa facilidade na produção de certas apojaturas acaba transformando-as
em um recurso capaz de particularizar a performance dos saxofonistas: de um lado, temos os
que deliberadamente as evitam, e de outro, aqueles que as utilizam voluntária ou
involuntariamente. No caso de Victor Assis Brasil, notamos o uso constante das apojaturas,
tanto em posições de fácil execução, como em outras menos confortáveis, justificando assim a
importância de sua identificação para a compreensão do projeto interpretativo desse
saxofonista. Combinadas a outros recursos idiomáticos, podem valorizar ou alterar
determinadas passagens e, assim, contribuir na compreensão de como esse saxofonista se
relaciona com o núcleo de sentido da canção.
permite que as partes mais altas da melodia alcancem notas distantes da região da fala,
acumulando tensão a essas passagens e chamando a atenção para o trajeto sugerido por ela.
Dessa maneira, juntamente com outros recursos idiomáticos e escolhas de arranjo, o
saxofonista constrói seu projeto interpretativo em profunda concordância com os valores
passionalizados da canção.
4. Análises32
Introdução
Melodia e Letra33
32
Durante todas as quatro análises que seguem, as indicações de compasso (c. ou cc.) se referem às transcrições
das gravações de Victor Assis Brasil que podem ser consultadas em versão integral no ANEXO A.
33
A letra e a melodia de “Minha Saudade” se encontram em versão integral nos anexos B1 e C1.
58
objeto, cuja ausência gera a saudade, apenas como elemento intermediário desse ciclo. No
primeiro verso, o sujeito propõe a descrição de seu sentimento (“Minha saudade é”) através da
qual ele evoca a pessoa amada (“saudade de você”). No segundo verso, se aproveita da
presença do objeto dentro do discurso para culpá-lo pela saudade que sente (“[você] que não
quis levar de mim / a saudade de você”) e, assim, trilhar o caminho contrário do primeiro
verso e chegar novamente na “[Minha saudade é] a saudade de você”, fechando a
configuração cíclica presente no texto. A segunda materialização da ideia de oposição entre
saudade e objeto de desejo está na forma como o sujeito se refere ao último, a pessoa amada.
Todas as vezes que o sujeito evoca a figura da pessoa amada diretamente através do pronome
de tratamento “você”, esse aparece de forma subordinada à saudade (“A saudade de você”).
Fora desses casos, a presença da pessoa amada no discurso fica em segundo plano,
subentendida nas conjugações verbais (“Que não quis levar de mim”) e no uso do pronome
possessivo teu (“A viver sem teu amor”).
Analisando a segunda e a terceira estrofes notamos que os dois procedimentos
identificados na primeira são, na verdade, uma manifestação em nível intenso do projeto
extenso da canção, sendo esse a manutenção de um tênue equilíbrio entre a celebração gerada
pela superação do desenlace amoroso (discurso remissivo) e a relação do sujeito com a
saudade (discurso emissivo). A segunda estrofe – fortemente ligada à primeira, através da
repetição de material musical e de uma relação causal presente na letra – confirma tanto o
desenlace (“tão cedo me esqueceu”) como a presença marcante da saudade (“mas eu tenho até
hoje a saudade de você”), ambos sugeridos pela primeira estrofe. Na terceira estrofe,
permanecem os dois elementos principais – saudade e desenlace amoroso – porém, agora em
relação de oposição mais claramente estabelecida: o desenlace é dado como superado (“Eu já
me acostumei a viver sem teu amor”), ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, a
saudade permanece e, assim, confirma a sua existência autônoma, independente da distância
do objeto de desejo ou do desenlace amoroso.
Em uma visão geral, a melodia de “Minha Saudade” se divide em duas seções
distintas – que chamaremos de A e B – e que se acoplam à letra como indicado no esquema
abaixo:
1ª. Estrofe – A
2ª. Estrofe – A
3ª. Estrofe – B
59
34
Dance conosco (1958), João Donato e Seu Trio (1962), Tamba Trio 1962 (1962), Cannoball’s Bossa Nova
with Bossa Rio (1963), Apresentando Rosinha de Valença (1964), Bud Shank, Donato, Rosinha de Valença
(1965).
60
35
Por “transpor uma segunda diatônica para baixo” entendemos uma transposição que varia entre segunda maior
ou menor dependendo do contexto harmônico sobre o qual a transposição se aplica.
61
descritas acima se mantêm até o momento de resolução melódica dessa seção, em que o
retorno à nota mais grave da tessitura é substituído por um salto cadencial de quarta
ascendente em direção à tônica (cc. 23-24 da transcrição). Tal evento interrompe o fazer
emissivo – parada36 – e prepara a colocação de novas relações, que serão introduzidas pela
seção B. Na nova seção, os intervalos de quarta e quinta justas – característicos da seção A –
são suprimidos e a melodia se restringe a saltos de segundas e terças. Além disso, apesar de a
ideia de gradação descendente e a extensão da tessitura continuarem as mesmas, o
encadeamento harmônico propõe um “desvio de rota” em relação ao centro tonal. Essa
oposição gerada no plano de expressão entre concentração (reiteração de procedimentos
anteriores) e expansão (distanciamento do centro tonal) materializa a oposição, também
estabelecida no plano de conteúdo. No início da terceira estrofe, notamos uma parada dentro
do discurso do sujeito, que revela sua relação atual com o objeto (“Eu já me acostumei/ a
viver sem teu amor”), pela primeira vez, desvinculada do sentimento de saudade. No final da
terceira estrofe, a parada-da-parada reestabelece esse vínculo recolocando a saudade como
centro do discurso. Simultaneamente, o trajeto harmônico, que acompanhou a breve mudança
de foco do discurso, também retorna ao centro tonal e prepara a volta, na melodia e na letra,
do fazer emissivo predominante na seção A.
Resumindo, a canção se organiza em: estrofes 1 e 2, melodia A – construção do
contexto de desenlace amoroso, com foco sobre a saudade instalada no sujeito pelo objeto; e
estrofe 3, melodia B – superação do desenlace amoroso, porém, com a saudade ainda
presente. Vemos, então, o sujeito lidando com a coexistência entre a euforia do desenlace
superado e a disforia da saudade, que assume caráter de condição permanente. Essa
construção que aproxima opostos se materializa na canção pela presença dos elementos
remissivos, não apenas em alternância com os emissivos, mas, também, em concomitância
com eles, expresso, por exemplo, no procedimento de desenvolvimento gradual da melodia
pela tessitura.
A partir do que foi levantado em relação à canção, e ignorando os riscos do
processo de dedução aplicados a um fenômeno cuja recepção é essencialmente subjetiva,
podemos alocar a canção “Minha Saudade” em um modelo de integração melodia-letra,
predominantemente, passional com atuação recessiva da tematização. Ainda que as ideias de
trajeto e busca sejam centrais, elas sofrem uma mudança de foco tão intensa quanto peculiar:
inicialmente associadas à distância entre sujeito e objeto, acabam revelando-se, na realidade,
36
Ver Cap. 3, item Semiótica da Canção e Gesto Vocal.
63
Protocolo
37
Com exceção a do disco Apresentando Rosinha de Valença, de 1963.
38
Ver Cap. 1, item Samba-jazz.
64
como “It’s all right with me” em lá menor (nenhum acidente) e “Pro Zeca” em Lá mixolidio
(dois sustenidos).
Ao observarmos a estruturação Formal de “Minha Saudade”, podemos notar um
alinhamento com o que é normalmente chamado de forma standard ou simplesmente
standard. Dentro deste trabalho, entendemos que o standard diz respeito à organização da
performance musical em dois níveis: um global e outro local. No primeiro, temos o que foi
chamado por diversos autores como paradigma tema-improviso-tema (PIEDADE, 2005;
MAXIMIANO, 2009; BASTOS, 2013), procedimento sedimentado pela prática jazzística,
que ordena a performance em: apresentação do material musical previamente conhecido
(tema), solos improvisados sobre repetições da harmonia que acompanha o tema (improviso)
e reapresentação do tema. Em nível local, a forma standard rege a organização interna das
partes do tema e, consequentemente, da sequência harmônica que se repete durante os
improvisos. No caso de “Minha Saudade”, ouvimos a sequência A A B A, frequente na forma
standard (MAXIMIANO, 2009, p. 45) e também presente em todas as outras gravações
anteriores da mesma canção.
Levando em conta esses aspectos de nível intenso e extenso podemos representar
a Forma de “Minha Saudade” da seguinte maneira:
Recursos idiomáticos
39
Ver Cap. 3, item Articulação rítmica.
68
118-119). Além de esta última forma de articulação sugerir o swing do jazz, notamos ainda
outros distanciamentos entre as escolhas de articulação para o tema e para as seções de
improviso e coda. Nas duas últimas, o staccato não é usado (única exceção no cc. 107) e
ouvimos uma tendência a ataques de língua mais suaves que os da exposição e reexposição da
melodia, estabelecendo-se, assim, no plano da articulação, uma oposição entre um fluxo
contínuo (improviso) e outro estriado (tema).
transcrição (Figura 8) – ouvimos uma mudança radical na textura melódica, que abandona a
rítmica de semicolcheia-colcheia-semicolcheia em favor de semicolcheias seguidas ou rápidos
glissandos e introduz fragmentos de escala (indicados pela letra a na Figura 8) e motivos
diatônicos (b e b’), que não integram a melodia da canção. Tal comportamento, somado ao fill
de bateria também ouvido nos cc. 40 e 41, garante o estabelecimento de uma fronteira clara
entre o final do tema e início do improviso, e já, de início, sugere a independência dessa
última seção em relação aos significados atribuídos à canção.
40
São exceções a esse comportamento melódico do improviso os cc. 50, 52 e 72 em que ouvimos saltos
intervaleres de maior extensão (oitavas justas e sexta maior) e mudanças bruscas de direção.
41
KERNFELD, Barry. Verbete Improvisation do Dicionário Grove de Música. Versão online, último acesso em
08/06/2015. Ver também KERNFELD apud BASTOS, 2013, p. 43-45.
42
O solo provavelmente mais emblemático na utilização da fórmula melódica 1 2 3 5 é o de John Coltrane na
música “Giant Steps”, integrante de álbum homônimo.
71
incompleto ou com pequenas variações, nos cc. 41-42 e 73-74. Notamos ainda a presença
apenas da primeira metade desse segundo fragmento nos cc. 55 e 59.
Há, ainda, outro comportamento musical de Victor Assis Brasil na seção de solo
improvisado que gostaríamos de destacar. Durante toda a exposição da melodia, ouvimos
pouca ou nenhuma variação de dinâmica na performance do saxofonista, que se mantém entre
mezzo forte e forte. No entanto, logo após o fill introdutório para o solo, notamos uma
considerável variação de dinâmica durante o primeiro A e o início do segundo. De maneira
geral, essa primeira parte do solo fica com uma dinâmica menos intensa que as partes
subsequentes, característica que, somada à presença de notas mais longas nos cc. 42-45, é
usada de forma recorrente por improvisadores de jazz para a preparação de um ápice do
improviso43. Entendemos que essa mudança no comportamento do saxofonista, relativamente,
brusca em relação à exposição do tema, mas justificada dentro da construção do improviso,
aponta, mais uma vez, para a independência entre a performance instrumental e os
significados presentes na integração melodia-letra de “Minha Saudade”.
Variações e recorrências
43
Ver, por exemplo, as sugestões para construção de um solo improvisado presentes nos métodos How to
impovise (Hal Crook, 1991) e Jery Coker’s Complete Method for Improvisation (Jery Coker, 1980).
72
da anterior por acontecer sobre notas no interior de uma frase. Suas ocorrências podem ser
descritas como a substituição de uma nota com duração de colcheia por duas semicolcheias
iguais (Figura 11).
No entanto, ainda que as variações melódicas propostas por Victor Assis Brasil
afastem sua interpretação da lógica entoativa de um cantor – que leva em consideração as
divisões métricas da letra – a ausência de ferramentas, como acréscimo de notas inexistentes
na melodia, ornamentações e fills improvisados44, contribui para a não descaracterização dos
contornos da melodia da canção, durante sua exposição e reexposição. Interpretamos essa
abordagem bipartida, juntamente com as assimetrias entre tema e improviso em relação ao
uso das articulações, como mais um fator que materializa a relação de atrito entre elementos
ligados ao samba e à canção popular brasileira, e elementos e procedimentos ligados ao jazz.
Do ponto de vista extenso, exposição e reexposição do tema se aproximam em
relação aos recursos utilizados para variação da melodia. Ouvimos o deslocamento rítmico
nos cc. 96 e 99, por exemplo, bem como o acréscimo de notas repetidas nos cc. 89, 90 e 96.
Apesar disso, ao observarmos a repetição das seções durante a gravação, notamos a não
associação fixa entre esses recursos de variação e partes específicas da melodia. A Figura 13
alinha os três últimos compassos de cada seção A, com o objetivo de evidenciar a
irregularidade nas variações, procedimento que, se aplicado a outras partes, apresentaria
resultados semelhantes. Levando isso em consideração, podemos estabelecer um parentesco
entre as interpretações de “Minha Saudade” e “Feitiço da Vila” – lançadas no mesmo disco
Desenhos –, já que ambas se utilizam do mesmo conjunto de recursos de variação, durante
toda a interpretação. Esses recursos, porém, não se fixam a passagens específicas da melodia
que, por sua vez, aparece diferente a cada repetição.
Figura 13 – Quatro últimos cc. de cada seção A conforme a gravação de “Minha Saudade” por Victor Assis
Brasil.
44
No caso do fill improvisado, ou preenchimento de pausas da melodia com frases improvisadas, temos uma
exceção nos cc. 83-84 que será comentada logo à frente.
75
Considerações Finais
Introdução
Melodia e Letra45
Como sugerido pelo título da canção, temos como temática principal da letra a
exaltação da Vila Isabel, bairro natal de Noel Rosa. Mais especificamente, o enunciador
atribui ao objeto a capacidade de conciliar a boêmia e a decência, o malandro e o bacharel,
sendo que, desse cenário, poderia surgir um novo samba, um “feitiço decente”. No entanto,
como veremos ao tratar detalhadamente da letra, a proposta de conciliação pacífica
subentende uma ideologia de “branqueamento” do samba, conveniente para a incipiente
45
A letra e a melodia de “Feitiço da Vila” se encontram em versão integral nos anexos B2 e C2.
78
classe média moradora da Vila Isabel e presente na canção na figura dos “bacharéis”.
Reforçando positivamente esse discurso, o sujeito do enunciado gradualmente se revela em
conjunção com o objeto exaltado e se declara, no final da música, integrante orgulhoso dessa
comunidade.
As duas primeiras estrofes de “Feitiço da Vila” se mostram comprometidas com a
descrição da Vila Isabel através da caracterização dos membros de sua comunidade: com uma
“propensão natural” para se tornarem sambistas, até mesmo os “bacharéis” são malandros ou
ao menos não os temem (“quem é bacharel/ não tem medo de bamba”). A possível
contradição presente na ideia de um bairro de classe média ser a nova morada do samba é
amenizada, ou camuflada, através da comparação com outras combinações supostamente
naturais como “São Paulo dá café” e “Minas dá leite”. Além disso, a repetição imediata de
motivos rítmicos, característica do processo de concentração e presente na melodia dessas
estrofes, constrói uma ideia de identidade entre os elementos apresentados pela letra e facilita
sua recepção como uma unidade coesa. Como último recurso de convencimento, o enunciador
sincroniza a afirmação que resume a letra até esse ponto da canção – “a Vila Isabel dá samba”
– com a chegada da melodia e da harmonia no centro tonal, atribuindo a frase um caráter
assertivo. A combinação entre a descrição que ressalta positivamente características da
comunidade (como a coragem de seus bacharéis) e o processo de concentração melódica que
ameniza suas contradições estabelece, já nas duas primeiras estrofes, o caráter de exaltação e
aponta para a predominância da euforia na canção.
Com a chegada da terceira estrofe e a mudança de material melódico, o
enunciador extrapola a condição da Vila Isabel de reduto para agente transformador do
samba, tornando esse gênero musical mais “decente”, porém, não menos atraente (“[A Vila
Isabel] Transformou o samba num feitiço decente/ que prende a gente”). No final dessa
terceira estrofe, pela primeira vez o sujeito se coloca no enunciado (“que prende a gente”) ao
sugerir seu pertencimento ao bairro e a identificação com a música ali produzida. As ideias de
“pertencer” e “estar preso” à Vila Isabel reforçam mais uma vez o caráter tematizado da letra
ao sugerir que sujeito e objeto estão em conjunção. Assim como nas estrofes anteriores, esse
estado juntivo também é reforçado pelo perfil melódico, comprometido com o processo de
concentração (essas características da melodia serão melhor apresentadas adiante).
Além de continuar com a exaltação do objeto e sugerir pela primeira vez seu
estado de conjunção com o sujeito, podemos ainda apontar outros sentidos depreendidos na
terceira estrofe de “Feitiço da Vila”. Para descrever o samba que nasce em sua comunidade, o
sujeito-enunciador enumera elementos como “farofa”, “vela” e “vintém” que supostamente
trariam indecência ao samba. Não por coincidência, todos eles fazem referência a rituais de
79
46
A composição de “Feitiço da Vila” teve por contexto o embate entre Noel Rosa e Wilson Batista,
representantes, respectivamente, do samba “branco” alinhado com os valores da incipiente classe média
brasileira, dos anos 1930, e do samba de morro ligado aos bairros de periferia habitados principalmente por
afrodescendentes.
80
melodia, o sujeito-enunciador confirma seu pertencimento à Vila Isabel e celebra sua total
identidade e conjunção com ela.
Protocolo
marchinhas. Dessa forma, entendemos que essa primeira gravação localiza sua realização
mais próxima dos elementos de celebração, de exaltação à Vila Isabel presentes na letra da
canção (“A Vila tem / um feitiço sem farofa [...] que nos faz bem”) e em sua construção
melódica. Além disso, na interpretação de João Petra de Barros e de Noel Rosa notamos
escolhas de interpretação como a não sustentação dos prolongamentos vocálicos dos finais de
frase – por exemplo, em “Vila”, “vacila” e “samba” – e a acentuação dos ataques
consonantais de passagens como “[...] faz dançar os galhos do arvoredo”. Todas essas
características valorizam elementos inerentes ao processo de concentração melódico e
alinham essa interpretação com o regime tematizado predominante em “Feitiço da Vila”.
Na interpretação instrumental de Victor Assis Brasil, ouvimos uma tendência
geral ao prolongamento das notas em finais de frases (c. 10, 11, 12), favorecidos pela escolha
de um andamento mais desacelerado. Em oposição às terminações curtas de “Vila”, “vacila” e
“samba” ouvidas na gravação original, o saxofonista opta por valorizar o processo de
expansão, pouco presente na integração melodia-letra original, e, assim, acrescenta valores
passionalizados a sua interpretação. Paralelamente a isso, tal escolha de andamento acaba
também por estender a duração real da música e, consequentemente, torna o tempo de
percurso da melodia pela tessitura mais longo.
Outra característica da interpretação de Victor que podemos associar ao
andamento é que, sendo mais lento, ele facilita a execução de variações rítmicas da melodia
baseadas em subdivisões rápidas – como as de sextina e de fusa – empregadas constantemente
em sua interpretação (c. 11, 19, 24, 33). Essa intensa quantidade de variações rítmicas com
que o saxofonista executa as melodias originais também contrasta com a abordagem da
primeira gravação, na qual ouvimos a reiteração de uma mesma rítmica em todas as
exposições e reexposições dos materiais melódicos. Além disso, a constante alteração da
melodia sugere a descaracterização dos motivos rítmicos, dificultando, assim, a percepção de
suas repetições constantes, marca do regime tematizado. Juntamente com o andamento
desacelerado, esse comportamento interpretativo reforça a presença de valores
passionalizados em seu projeto interpretativo.
Do ponto de vista estrutural, Victor Assis Brasil opta em sua versão instrumental
de “Feitiço da Vila” pelo paradigma tema-improviso-tema, comum ao repertório do jazz pós-
1940 e incorporado pelo samba-jazz. Essa organização Formal compreende características
específicas em dois níveis diferentes de organização: um micro, que diz respeito ao número de
repetições de cada material melódico e em que ordem aparecem (chamado no jazz de chorus);
e um outro macro, referente a quantos chorus são tocados e qual o conteúdo de cada um.
83
Intro | ATema A’Tema BTema A”Tema | AImproSax A’ImproSax BImproSax | ATema A’Tema BTema
A”Tema | Coda
48
A organização AABA para o chorus de “Feitiço da Vila” já havia sido usada na versão também instrumental de Casé e Seu
Conjunto no disco Samba Irresistível de 1960. Apesar de não haver nenhuma ligação formalizada, as duas versões dialogam
diretamente na medida em que ambas se utilizam da mesma organização do chorus para dar suporte a uma performance com
improvisação.
84
Recursos Idiomáticos
49
Recurso de arranjo recorrente em música popular (instrumental principalmente) e que consiste na repetição de
um número pequeno de compassos no final de uma música. O número de repetições pode ser previamente
estabelecido ou indeterminado.
50
No c. 36 podemos evidenciar uma passagem cromática característica e a partir do c. 96 ouvimos frases sobre a
pentatônica menor de lá com a presença da blue note (mi bemol).
51
A maneira como foram notadas as duas variações de bend de chegada está esquematizada na Figura 8.
86
52
O uso de ornamentações sobre a melodia da canção será melhor detalhado no item seguinte, Variações e
recorrências.
88
com outros fatores – para o que Monson (1996, p. 139) definiu como intensificação, ou seja, a
construção de um clímax dentro de uma performance improvisada através da interação entre
os músicos. Combinando elementos musicais internos e externos de uma determinada
performance, os músicos tomam decisões coletivas em relação ao desenvolvimento de
determinado improviso.
Variações e recorrências
conforme a rítmica em que são empregadas. Apesar de sua constância durante a gravação,
notamos mais uma vez o não atrelamento de seu uso a partes específicas da melodia.
Figura 21 – Exemplos de variação melódica empregadas por Victor Assis Brasil no primeiro
compasso de cada seção A de sua versão de “Feitiço da Vila”.
Considerações Finais
4.3. “Dindi”
Introdução
Composta por Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, e gravada pela primeira vez em
1959, “Dindi” se consagrou através de inúmeros intérpretes como Sylvia Telles, Alaíde Costa,
Elza Soares e Maysa. Como tendência geral, todas essas gravações reforçaram seu caráter
passional, com a presença constante de andamentos lentos e arranjos orquestrais de grande
dramaticidade. Tanto pela presença de uma introdução em forma de verse, como pela
existência de versões em inglês, essa canção faz alusão ao repertório de canção ligado aos
musicais norte-americanos, influência marcante na produção de compositores brasileiros das
décadas de 1950 e 1960.
Em seu disco de homenagem a Tom Jobim, gravado em 1970, Victor Assis Brasil
adapta a canção “Dindi” para o universo instrumental, trabalhando com um tênue equilíbrio
entre alterações no material composicional e a manutenção de suas características mais
marcantes. A seguir, buscaremos apontar os elementos que particularizam essa gravação
dentro de sua produção, e sua relação com os significados contidos na interação entre melodia
e letra da canção.
Melodia e Letra53
53
A letra e a melodia de “Dindi” se encontram em versão integral nos anexos B3 e C3.
94
convida Dindi a ficar e contemplar (“Olha, Dindi / Fica, Dindi”) como subterfúgio para ela
não se distanciar.
Até esse ponto, apreendemos como elementos principais da narrativa uma tensão
entre a euforia do sujeito/enunciador de estar próximo de seu objeto de desejo, e a disforia
presente nas sugestões de que o enlace amoroso ainda não se concretizou, e de que a
proximidade entre actantes pode se desfazer com a partida, afastamento de Dindi. O primeiro
elemento, ligado aos valores da tematização, como a celebração e a felicidade, é reforçado
pelo estado contemplativo em que se encontra o enunciador, arquetípico de pessoas
apaixonadas. Por sua vez, a disforia, característica do regime de integração melodia-letra
passionalizado, é reforçada pelo prolongamento das interjeições – “Ah, Dindi” – que
adquirem caráter de lamento.
A terceira estrofe de “Dindi”, acompanhada de novo material musical – seção que
chamaremos de B –, retoma as ideias de movimento e partida bem como o estado
contemplativo ao praticamente repetir versos da introdução (“E bandos de nuvens [...]/ pra
onde elas vão, ah, eu não sei”), apenas substituindo a imagem utilizada como metáfora (“E as
águas desse rio/ Onde vão, eu não sei”). É notável também nessa estrofe o não direcionamento
do discurso diretamente ao enunciatário, instaurando-se um momento de reflexão interior
gerada pela contemplação de elementos da natureza. As ideias de movimento e partida são
contrapostas à estaticidade da condição do sujeito de contemplar e esperar a chegada/retorno
de Dindi – recolocada como destinatária do discurso, apenas nas últimas palavras da estrofe.
Com o retorno do material musical de A e a apresentação da quarta e última
estrofe – seção A’’ – temos a confirmação dos valores apresentados durante o verse e o
restante da canção como determinantes para o desfecho da narrativa. Após mais uma
declaração de seu amor (“Você, Dindi/ Que é a coisa mais linda que existe”), o sujeito aceita
sua condição de contemplador e pede ao menos para poder continuar observando seu objeto
de desejo (“Deixe, Dindi, que eu te adore”), já que o enlace amoroso não se concretiza.
Como citado acima, após o verse, “Dindi” apresenta ainda dois materiais musicais
distintos – A e B – que se desenrolam sobre uma tessitura de quatorze semitons. Observando-
os de maneira global, os dois materiais têm como característica comum a repetição das partes
finais de suas respectivas melodias, como uma simulação de eco. Além disso, notamos
também que, apesar da repetição mais frequente de A – ouvido três vezes – que de B – ouvido
uma vez –, o primeiro não pode ser considerado um refrão, já que a cada aparição vem
associado a uma estrofe diferente da letra. A seguir, buscaremos descrever e analisar cada um
desses materiais de maneira a particularizá-los e associá-los com as partes da letra que
acompanham.
96
54
Aqui nos referimos às interpretações contidas nos discos Amor de gente moça (1959) e Amor em Hi-fi (1960),
de Sylvia Telles, Alaíde Costa Canta Suavemente (1960) e Maysa (1964). A título de gerar contraste e, assim,
facilitar a percepção das escolhas interpretativas, que salientamos em relação a esses discos, citamos a
interpretação de Elza Soares no disco Um show de Elza (1965), na qual os prolongamentos vocálicos não são
sustentados e os ataques consonantais são valorizados.
98
incerteza – presentes no fluir das águas do rio, que tem destino incerto –, e do outro, a
estaticidade e a certeza – subentendidas na crença de que Dindi chegaria/retornaria (“A minha
vida inteira, [...] esperei por você”) e no consequente estado de espera e contemplação
assumido pelo sujeito. Nesse contexto, a expansão da melodia pela tessitura, combinada com
a sequência de modulações, apoia as ideias de movimento e incerteza, ao passo que a
previsibilidade gerada pela repetição do perfil melódico (ritmo e direcionalidade) reforçam as
ideias de certeza, de estaticidade.
Protocolo
Figura 24 – Texturas ouvidas na introdução de “Dindi” conforme gravação de Victor Assis Brasil.
55
“Its all right with me”, “My funny valentine” e “Smoke gets in your eyes” são exemplos possíveis de canções
que, originalmente, integravam espetáculos musicais, e se organizam na estrutura (verse) A A B A e,
posteriormente, se tornaram standards, isto é, são continuamente reinterpretados por músicos de jazz em versões
instrumentais com presença marcante de improvisação (ver LEVINE, 1995, p. 383).
56
Nesse caso, a afirmação de que “Dindi” não apresenta uma seção de solo improvisado de saxofone soprano se
apoia no paradigma tema-improviso-tema que define essas seções como aquelas que ficam entre seções de
exposição da melodia. Ainda que a parte tocada pelo saxofone após o solo de guitarra apresente variações e
materiais melódicos consideravelmente distantes da melodia original, sua posição dentro da Forma da música
favorece sua percepção enquanto retorno do tema.
57
Aqui estamos nos referindo a Standards de jazz que tenham número fixo de cc. para o tema e para a seção de
improviso e estamos excluindo aqueles em que o improviso não acontece sobre ciclo harmônico do tema como
“Peace” de Ornette Coleman, por exemplo.
58
Aqui, fazemos referência às interpretações de “Dindi” presentes nos discos Amor em Hi-fi (1960) de Sylvia
Telles, Alaíde Costa Canta Suavemente (1960) de Alaíde Costa e Um show de Elza (1965) de Elza Soares.
102
como em “Só tinha de ser com você” (próxima análise a ser apresentada), essas escolhas de
arranjo favorecem a comparação entre as escolhas interpretativas de cantores e as de Victor
Assis Brasil.
A Forma da gravação analisada possui ainda uma introdução e uma Coda, que
emolduram os dois ciclos A A B A centrais, e pode ser esquematizada da maneira como
segue:
Intro | ATema ATema BTema ATema | AImproGuitarra AImproGuitarra BTema ATema | Coda
Figura 25 – Comparação entre melodia e letra do verse com o motivo melódico da introdução da gravação de
Victor Assis Brasil.
trinados. Essa configuração pode sugerir uma ligação entre a introdução e a seção B, cuja
pertinência é favorecida pela semelhança entre as letras associadas às essas duas seções
(verse/introdução e seção B).
Figura 26 – Melodia e progressão harmônica da seção A de “Dindi” conforme gravação de Victor Assis Brasil.
Recursos Idiomáticos
59
Ver o Item Protocolo das análises de “Só tinha de ser com você”, “Minha Saudade” e “Feitiço a Vila”.
105
Os bends de queda são ouvidos sempre no último c. de cada chorus (cc. 63 e 80),
porém, são usados sobre materiais melódicos diferentes em termos de ritmo e alturas. O único
bend de repetição é ouvido no c. 8, fato que colabora com as observações feitas em análises
anteriores de que esse recurso integra o conjunto de características, que particularizam a
performance de Victor Assis Brasil, mas que nem sempre estão associadas a características
específicas da canção interpretada.
Em termos de articulação, a tendência geral, durante a introdução e exposição do
tema, é de uma grande variedade de combinações entre tenuto e legato, que levam mais em
consideração o material musical, ao qual se associam, do que padrões de articulação pré-
60
Entendemos que seu uso mais frequente do bend de chegada em “Dindi” também está associado à escolha de Victor Assis
Brasil pelo sax soprano, que produz esse efeito com mais facilidade e variedade que os outros saxofones e,
consequentemente, possibilita seu uso em um maior número de situações.
106
definidos. Na Figura 28 (cc. 36-39, 44-47, 60-63), temos os quatro últimos cc. de cada seção
A da exposição da melodia. Notamos que, apesar de a posição de um stacato ser recorrente
(cc. 36 e 44), as sequências de articulações são tão diversas quanto são as variações da
melodia. Eventualmente, no entanto, quando um perfil melódico muito marcante é reutilizado
– como nos cc. 22, 45 e 73 (Figura 28) – ouvimos também a reutilização da mesma
articulação.
timbre manipulado (Cap. 3), essas alterações pontuais geram descontinuidade na escuta e,
consequentemente, chamam a atenção do ouvinte para as passagens em que são utilizadas. No
caso específico dos cc. 52 e 56, essa manipulação do timbre se associa ao bend de chegada e
reforça ainda mais o sentido de disforia, gerado por esse recurso idiomático que acumula
tensão aos saltos ascendentes.
Outro recurso idiomático utilizado exclusivamente em “Dindi” (levando em conta
o recorte desta pesquisa) são os sons “não convencionais”, ouvidos nos cc. 44, 51 e 71. Da
união entre frases de tessitura grande, executadas muito rapidamente, e a dissincronia entre
digitação e ataques de língua surgem sons sem altura definida e com o timbre alterado. Esse
recurso também pode ser ouvido em outras faixas do mesmo disco, como “Wave”, e sua
presença reforça o apontamento de que, nessa fase de sua discografia (1969-1974), o
saxofonista atualizava os referencias jazzísticos de sua produção, incorporando elementos e
procedimentos do jazz modal e do Free jazz (vide Cap. 1, item Samba, jazz, Bossa Nova:
atrito e conciliação).
Ouvimos também em “Dindi”, com frequência menor que os recursos citados
acima, trinados (cc. 54 e 81) e apojaturas (cc. 10, 12, 71, 75 e 79). Em especial, esse último
pode ser interpretado de forma semelhante ao bend de repetição: ainda que nem sempre esteja
diretamente associado a partes específicas da melodia, está presente em todas as gravações
aqui analisadas de Victor Assis Brasil e contribui na particularização de sua performance.
A última escolha interpretativa que gostaríamos de destacar em “Dindi”, apesar de
não poder ser considerada um recurso idiomático, está associada à pós-produção (mixagem).
Durante a Coda, a partir do c. 85, notamos um sensível aumento na quantidade de reverb no
canal do saxofone. O reverb é um efeito de processamento de sinal, que simula ambiências
variadas, e, da maneira como foi usado, cria a sensação de que o saxofone se distancia do
ouvinte. Essa sugestão de afastamento se alinha com a mesma ideia de afastamento central na
letra de “Dindi” e materializada pelo movimento das nuvens, que são levadas pelo vento ou
pela iminente partida da mulher amada. Assim como no caso do bend de chegada e da
manipulação do timbre, a escolha interpretativa pelo aumento do reverb sugere a atenção do
intérprete com os sentidos da canção na construção do projeto interpretativo.
Variações e Recorrências
atenção, respectivamente, para o contorno melódico e para os saltos intervalares. Além disso,
se aproveitando do andamento desacelerado, Victor Assis Brasil aplica constantes variações
de agógica, desalinhando as acentuações da melodia e do acompanhamento, comportamento
característico das canções passionais (ver Cap. 3).
O projeto interpretativo de “Dindi” ainda apresenta uma característica importante
em relação às variações e recorrências da melodia. Assim como em “Feitiço da Vila”, mais do
que sempre variar a melodia, o saxofonista constrói uma progressão que aumenta,
paulatinamente, a frequência de intervenções, seu tamanho e o grau de alteração da melodia.
No caso de “Dindi”, esse comportamento é levado às últimas consequências, resultando na
descaracterização de grande parte da melodia da reexposição (cc. 65-80) e o consequente
afastamento da interpretação, nessa seção, de possíveis ligações com sentidos da melodia e da
letra. Ainda assim, notamos que, nessa gradação de “menos variado” para “descaracterizado”,
Victor Assis Brasil mantém uma característica fundamental do regime de integração passional
predominante em “Dindi”. A cada acréscimo de nota na melodia, a cada fill improvisado,
ouvimos a sugestão de expansão vertical da melodia, que passa a percorrer um intervalo da
tessitura cada vez maior em cada vez menos tempo, culminando com os cc. 71 e 72, cujas
frases ocupam, praticamente, toda a tessitura do instrumento.
Considerações Finais
Localizada no meio do período em que Victor Assis Brasil estudava nos EUA
(1969-1974), a gravação de “Dindi” reforça a constatação de que, nessa fase, o saxofonista
atualizava seu referencial jazzístico, acrescentando elementos e procedimentos do jazz modal
e do Free jazz ao já conhecido bebop, dos anos 1940. Na prática, ouvimos recursos, como
sons sem altura definida e transformações mais radicais do material composicional, com o
intuito de criar, por exemplo, seções modais na introdução e nas partes B da melodia.
Do ponto de vista das ligações entre projeto interpretativo e o sentidos contidos
na integração entre melodia e letra, o saxofonista apresenta em sua gravação uma construção
de dualidade assimétrica, que estabelece paralelos com a relação entre euforia e disforia
presente na canção. Como fazer remissivo, temos uma interpretação que varia a melodia
radicalmente e se assemelha às gravações de “Feitiço da Vila” e “Minha Saudade”, mais
comprometidas com a performance instrumental. Por outro lado, na atuação do fazer emissivo,
ouvimos a constante ligação com o estado disfórico que predomina no núcleo de identidade
da canção. Em termos de arranjo, o saxofonista, além de não inserir uma seção de solo
improvisado, mantém ideias estruturais importantes para a construção de sentido da canção
110
Introdução
Victor Assis Brasil grava a canção “Só Tinha de ser com você”, em 1970, no
disco Victor Assis Brasil Toca Tom Jobim, o terceiro de sua carreira. Como apontado
anteriormente na análise de sua discografia, esse disco dialoga fortemente com o que
definimos por samba-jazz, em diversas características: na instrumentação, na Forma, na
escolha do repertório – apenas composições de Jobim associadas ao repertório da Bossa Nova
– na presença, praticamente, constante da matriz rítmica do samba, na maneira de interagir
entre acompanhadores e solista e, por fim, na importância atribuída ao improviso sobre a
sequência de acordes da música.
No entanto, especificamente em “Só tinha de ser com você”, notam-se algumas
características particulares – como a ausência de improviso por parte de Victor e o uso de
determinados recursos idiomáticos de maneira sistemática sobre partes da melodia original –
que, como pretendemos demonstrar, apontam para a presença de um projeto interpretativo
atento aos significados da canção.
Melodia e Letra61
A letra de “Só tinha de ser com você” se organiza em três estrofes diferentes, cada
uma delas acompanhada por um material melódico também diferente, configuração que já de
início sugere um comprometimento em nível extenso com o processo de expansão. Como o
desenvolvido no Cap. 3, esse processo de expansão, predominante em canções disfóricas
(passionais), valoriza o desenvolvimento da canção em partes diferentes (em oposição à
repetição literal de um refrão, por exemplo), bem como favorece o aumento do trajeto
percorrido pela melodia e pela letra, materializando, assim, a distância entre sujeito e objeto.
No caso aqui analisado, esse processo de expansão, apesar de constante, acontece de maneira
gradual e controlada pela atuação secundária do processo de concentração, que insere
recorrências no discurso.
Durante a primeira estrofe de “Só tinha de ser com você”, temos a apresentação
do sujeito, que se coloca também como enunciador do discurso (“Eh, só eu sei”), e de seu
objeto de desejo, que, por sua vez, coincide com a função de enunciatário, aquele para quem o
61
A letra e a melodia de “Só tinha de ser com você” se encontram em versão integral nos anexos B4 e C4.
112
discurso de dirige. O primeiro, apesar de declarar efusivamente seu amor pelo segundo, não
revela se esse enlace amoroso já se concretizou ou se é correspondido. Construída com versos
curtos, essa primeira estrofe apresenta ainda a ideia de uma trajetória anterior, de que o amor
declarado já existia antes mesmo de se estabelecer qualquer relação entre os actantes. No
entanto, apenas quando esse objeto passa a ser conhecido pelo sujeito, essa trajetória adquire
um sentido: a conjunção. Atrelada à predominância de prolongamentos vocálicos, essa ideia
de trajeto em direção à conjunção com o objeto inaugura, no plano de conteúdo, a atuação do
regime passionalizado, dominante em “Só tinha de ser com você”.
Na segunda estrofe, o enunciador passa a caracterizar essa possibilidade de
conjunção ainda sem revelar se ela já ocorreu ou se poderá ocorrer. Mais uma vez se referindo
a experiências anteriores, afirma que as outras relações amorosas eram “mais uma dor” se
comparadas com a atual possibilidade de enlace. Essa exaltação do objeto de desejo, e da
esperada conjunção com ele, é acompanhada por uma alteração estrutural da letra, que
diminui a presença de prolongamentos vocálicos e se utiliza de frases maiores. Tal
configuração de sentido, relacionada à exaltação do objeto, e a maior concentração de ataques
consonantais, caracterizam a presença do regime tematizado nessa estrofe, que, assim, coloca-
se em oposição à primeira, comprometida com a passionalização.
A terceira estrofe de “Só tinha de ser com você”, apesar de continuar exaltando o
objeto de desejo (“Você que é bonito demais”), finalmente revela a não realização do enlace
amoroso. Na passagem “você que é feito de azul, me deixa morar nesse azul”, o enunciador,
ao pedir para se unir ao outro, deixa subentendida a atual situação de disjunção. Com a
continuação dessa estrofe, através do verso “se ao menos [você] pudesse saber”,
depreendemos ainda que sujeito e objeto não apenas estão separados, como o segundo não
tem consciência do afeto demonstrado pelo sujeito.
De maneira esquemática, na letra encontramos uma progressão que parte da
descoberta do objeto de desejo pelo sujeito (primeira estrofe), passa pela exaltação desse
objeto (segunda estrofe), e termina com a não realização do enlace, que permanece como
projeto (terceira estrofe). Ainda que, no término desse caminho percorrido pelo sujeito, o
estado disfórico prevaleça, notamos a presença marcante da euforia na exaltação do objeto de
desejo e na constante possibilidade de conjunção. Como buscaremos demonstrar, a seguir,
esse atrito entre os dois estados fóricos opostos determina também a construção da melodia da
canção.
Conforme apresentado de maneira esquemática na Figura 29, em nível extenso, a
tessitura ocupada pela melodia de “Só tinha de ser com você” desenvolve um trajeto de
expansão gradual durante suas três estrofes, o que, segundo a Semiótica da Canção, pode ser
113
compreendido como uma metáfora do trajeto percorrido pelo sujeito na busca por seu objeto
de desejo. Além disso, podemos destacar ainda a presença de saltos intervalares grandes entre
a última nota da melodia de cada estrofe e a primeira nota da melodia da estrofe subsequente;
mais um elemento característico do processo de expansão, e que, consequentemente, contribui
para a construção do caráter de passionalização presente nessa canção.
Figura 29 – Desenvolvimento da tessitura na melodia das três estrofes de “Só tinha de ser com você” (conforme
transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil).
Figura 30 – Exemplos do motivo melódico repetido com frequência na 2a. e 3a. estrofes de “Só tinha de
ser com você” (extraídos da transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil).
Protocolo
62
Foram ouvidas as versões presentes nos seguintes discos: Caymmi visita Tom (1964), Antônio Carlos Jobim &
Sergio Mendes (1964), The Astrud Gilberto Album With Antônio Carlos Jobim (1965), Trio 3-D convida (1965),
Bossa Nova York (Sergio Mendes, 1967) e Inútil Paisagem (Eumir Deodato, 1964).
116
transposição para o saxofone), que corresponde a uma região aguda do saxofone. Dessa
forma, o saxofonista acrescenta brilho e projeção ao timbre dessa passagem clímax da
melodia e, consequentemente, favorece a percepção do percurso melódico. Seguindo os
preceitos da Semiótica da Canção, o caráter passional de uma melodia revela-se também pela
percepção de um longo percurso melódico, estabelecido pela distância entre seus extremos,
fato que materializa a distância entre sujeito e objeto. No caso dessa canção, esse estado
juntivo é tratado na letra e reiterado pela melodia que realiza um salto em direção ao agudo, e
estabiliza a permanência nessa região, através de movimentos repetitivos: “é você que é feita
de azul/ me deixa morar nesse azul/ me deixa encontrar minha paz”.
Figura 31 – c. 34-37 da transcrição da interpretação de Victor Assis Brasil de “Só tinha de ser com
você” (Anexo 1).
63
Apesar de o disco “Victor Assis Brasil toca Tom Jobim” (1970) estar fora da periodização do samba-jazz
proposta por Gomes (p. 82-89), a saber 1952-1967, entendemos que esse disco dialogue diretamente com o
Samba-Jazz e suas características.
64
Forma de acompanhamento harmônico e/ou rítmico, improvisado e característico do Jazz pós-anos 1940.
Com frequência não é cíclico e se apoia (determina) (n)a subdivisão rítmica da peça musical. Segundo Levine, o
comping tem a função de dar suporte e estimular harmonicamente e ritmicamente um solista.
117
Recursos idiomáticos
Variações e recorrências
Considerações finais
4.5. “O cantador”
Introdução
Melodia e letra65
65
A letra e a melodia de “O Cantador” se encontram em versão integral nos anexos B5 e C5.
122
abrangência do seu cantar, o sujeito também deixa transparecer em “vou pra onde a estrada
levar” e em “só sei cantar” sua passividade em relação a essa condição de cantador.
A segunda estrofe se aprofunda ainda mais na condição do cantador e na relação
de proximidade entre essa atividade e a de viajante. Nessa comparação, ao menos dois
aspectos são ressaltados. O primeiro coloca que o cantador, assim como o viajante, não tem
um objetivo ou destino para sua atividade, mas que a exerce por simplesmente não conseguir
deixar de fazer. O segundo aspecto é a noção de que cantador e viajante são observadores e
que, consequentemente, suas canções ou relatos não dizem respeito a eles próprios, e sim ao
que viram e presenciaram. Nos dois casos, notamos o reforço na ideia de passividade por
parte do sujeito em relação ao seu cantar. Ao mesmo tempo, ainda nessa estrofe, o sujeito
enfatiza – semanticamente (letra) e expressivamente (melodia) – a força de seu canto capaz
até mesmo de lidar com a morte. Através dessa antítese passividade-força, a segunda estrofe
prepara de forma sutil a intensificação do conflito entre as duas “dores” que se encontram no
sujeito: a de caráter universal, observada por ele no mundo, e a particular, resultante de sua
própria vivência.
Na terceira e última estrofe de “O Cantador”, a individualidade do sujeito, até
então perceptível apenas em indicadores sintáticos – como conjugações verbais e pronomes –,
assume, brevemente, o centro do discurso. A passividade da condição de cantador se revela
impotência perante a dor não mais arquetípica, mas, sim, particular do sujeito, vivida por ele.
O sofrimento vence a passividade e encoraja o sujeito a questionar pela primeira e única vez
sua condição (“De que serve meu canto e eu/Se em meu peito há um amor que não
morreu/Ah, se eu soubesse ao menos chorar”). Porém, a condição irrefreável de cantador
rapidamente se sobrepõe ao sofrimento. Ainda que a dor particular do sujeito passe a ser
conteúdo de seu canto, sua condição de observador e solitário torna a “dor cantada” impessoal
(“Ah, eu canto a dor de uma vida perdida sem amor”) e reafirma sua posição de passividade e
impotência ao ponto de nem ao menos poder sofrer a própria dor (“Ah, se soubesse ao menos
chorar/ [...] só sei cantar”).
A ideia de que a sina do cantador irá prevalecer em relação ao sofrimento
particular do sujeito é ainda reforçada pela organização dos materiais melódicos em relação à
letra. A utilização de uma mesma melodia para a primeira e terceira estrofes, estabelecendo
uma ideia de ciclo fechado, repetitivo, materializa a imagem do cantador que também repete
sempre as mesmas ações: viaja solitário, observa o mundo e canta o que vê. Apesar do breve
questionamento apresentado pela letra na terceira estrofe, a reiteração da primeira seção da
melodia no desfecho da canção deixa claro que, no final, a sina prevalece: ao cantador resta
apenas cantar.
123
66
As ideias de fazer emissivo e remissivo se encontram melhor detalhadas no Cap. 3 – Referências para as
análises, item Semiótica da Canção e Gesto Vocal.
67
A organização em antecedente e consequente das frases que compõem um período diz respeito à organização
interna das seções da Forma Ternária arquetípica – ver A practical Approach to the Study of Form in Music,
Cap. 5 – The Ternary Principle (SPENCER, TEMKO, 1988). As diferenças entre as escolhas formais de Victor
Assis Brasil e as outras gravações de “O Cantador” serão melhor desenvolvidas adiante.
124
percepção do trajeto melódico que, por sua vez, materializa a distância entre sujeito e objeto.
O uso da gradação nesse caso prepara uma intensificação da disforia, cujo auge coincide com
a nota mais aguda de cada seção, prolongada e acessada por um salto intervalar não diatônico
(quarta justa). Essa forma de desenvolvimento da melodia centrada no aumento da disforia
repete o esquema geral de intensificação do conflito entre “dor universal” e “dor particular”,
observado na letra.
não tão gradual como a observada no sentido contrário. A ideia de retorno e relaxamento,
proporcionada por esse gesto contrário ao sentido inicial da melodia, pode ser interpretada
como um sinal de acordo ou conjunção – ainda que em nível superficial – entre sujeito e sua
sina. A repetição desse gesto descendente, logo adiante na melodia (cc. 15-17), reforça ainda
mais essa ideia de acordo68 ou aceitação do sujeito em relação à sua condição. Na segunda
seção da melodia (que acompanha a segunda estrofe), o retorno descendente após o clímax,
além de não ser repetido, mantém o caráter gradual observado na subida. Tais características
acabam por não sugerir tão claramente as ideias de retorno e relaxamento, presentes no final
da seção melódica anterior e – em conjunto com a letra da segunda estrofe – sinalizam a
intensificação subsequente do conflito entre sujeito e sua sina.
Além da imbricação entre construção melódica e letra, os pontos de clímax
melódico acima citados – através da combinação entre prolongamento vocálico e agudização
– ainda acrescentam diretamente a dimensão interpretativa na construção de significado. A
ideia de sina do cantador, construída literalmente pela letra e metaforicamente pela articulação
melódica, realiza-se metalinguisticamente através do destaque gerado pela projeção exigida à
execução dessas notas agudas e prolongadas. Como pudemos constatar em outras gravações
de “O Cantador”69, a capacidade dos pontos culminantes de articular três dimensões – letra,
melodia, interpretação – não foi ignorada por nenhum intérprete. Seja através de mudança de
registro (Dori Caymmi, Nana Caymmi e Elis Regina) ou através de alterações no arranjo
(modulações para outras tonalidades na interpretação de Elis Regina, por exemplo), todos os
intérpretes voltaram a atenção de suas realizações para essas passagens. Do ponto de vista
semântico, esse ponto articulador materializa o canto forte capaz de representar as dores do
mundo ou de lidar com a morte. Mais do que isso, ao transformar o enunciador em
“cantador”, desde a primeira seção melódica, esses pontos culminantes adiantam o desfecho
da canção – a vitória da sina, universal e forte, sobre o sujeito passivo e com sua dor
particular.
De maneira geral, notamos em “O Cantador” a predominância de construções
melódicas e imagéticas (na letra) ligadas à disforia. Especificamente, destacamos a presença
de construções ligadas à continuidade – desenvolvimento gradual da melodia pela tessitura,
manutenção da textura rítmica e semelhança entre as seções – que atuam como fazer emissivo,
favorecendo as ideias de ciclo fechado e universalidade contidas na sina do cantador. Ao
68
Segundo Tatit (2007, p. 44-47), na relação entre sujeito e objeto, a noção de junção fluente e sem obstáculos,
característica de canções aceleradas (tematizadas), está intimamente ligada, entre outros fatores, à ideia de
repetição imediata.
69
Foram ouvidas as versões de Dori Caymmi (Dori Caymmi, 1972), Nana Caymmi (Só Louco, 1989) e Elis
Regina (ao vivo no 3º. Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, 1967).
126
mesmo tempo, apontamos também os momentos de breve quebra dessa continuidade (fazer
remissivo) e seu paralelo com o conflito entre as emoções e vontades particulares do sujeito e
a sua sina.
Protocolo
70
Aqui nos referimos à instrumentação homogênea durante todo o arranjo, a presença de notas longas que
perduram mesmo entre mudanças de acorde e, em oposição ao arranjo de Elis Regina, o uso de uma única
tonalidade.
71
Ainda que grande parte dos métodos de improvisação jazzística recomendem que se estude igualmente todos
os tons, observamos na prática uma preponderância de tonalidades com menos acidentes.
127
tinha de ser com você”, uma intencionalidade maior do que simplesmente colocar a melodia
em uma tessitura possível para o saxofone. Durante a exposição da melodia, temos uma
tessitura que abrange o intervalo Lá-4/Ré-5, mostrado na Figura 34, sendo que seu limite
inferior se encontra em uma região média-grave confortável, e o superior, em uma região
mais brilhante e com maior projeção. Essa escolha de tonalidade possibilita que, mesmo sem
grandes variações dinâmicas, o saxofonista consiga dar destaque para as partes clímax da
melodia, situadas na extremidade superior da tessitura e, dessa forma, consiga reforçar a
construção da continuidade (variações suaves de dinâmica) sem deixar de interagir com os
elementos característicos da melodia.
Sobre a Forma
72
Dentro do repertório da música clássica ocidental, são denominadas peças ou seções em Forma Ternária
aquelas que se organizam em três partes. Mais especificamente, as três partes desenvolvem, respectivamente,
uma primeira ideia ou proposição, uma segunda ideia contrastante e, por fim, a reapresentação da primeira
ideia (SPENCER e TEMKO, 1988, p. 76-95).
73
Ver A practical Approach to the Study of Form in Music, Cap. 4 – The Binary Principle (SPENCER, TEMKO,
1988)
129
Intro | ATema BTema AImproSax BImproSax | AImproPiano BImproPiano | ATema BTema | Coda
Recursos Idiomáticos
os bends, ao passo que ghost notes e outras manipulações de timbre, como o som rouco,
aparecem em número tão pequeno de vezes que serão desconsideradas para efeito de análise.
As ornamentações utilizadas em “O Cantador” são principalmente de dois tipos:
apojaturas, que conectam duas notas; ou um tipo específico de ornamentação, que gira em
torno de uma nota. Apesar de o primeiro tipo (Figura 35 – cc. 6, 8 e 10) ainda poder ser
dividido entre apojaturas que usam apenas uma nota (cc. 7, 10, 20, 40 e 68, por exemplo) e as
que usam duas notas (cc. 6, 8, 55 e 66), todas elas fazem uma ligação direta entre as notas que
conectam, sem mudanças de direção. Tendo isso em conta, apojaturas como as encontradas
nos cc. 6, 10, 34, 55 e 66 podem ser contabilizadas junto com os recursos empregados na
realização do projeto de continuidade, por camuflarem saltos intervalares não diatônicos
(maiores que uma segunda) e, assim, valorizar a fluidez do desenvolvimento melódico.
Figura 37 – Recursos idiomáticos diversos reforçando o processo de desenvolvimento gradual da melodia pela
tessitura.
132
74
A escolha por uma pausa menor entre as seções foi identificada e analisada anteriormente no item Protocolo,
quando falávamos a respeito da estrutura Formal da gravação.
133
agrupamentos com quatro ou mais semicolcheias, bem como de subdivisões menores (como
quintinas, sextinas e etc.), sendo que essas figuras rítmicas praticamente não são ouvidas
durante a exposição das melodias das canções. Para o caso aqui analisado, destacamos, na
seção de improviso, a predominância de figuras rítmicas que derivam da melodia da canção.
Mais especificamente, podemos destacar a rítmica que ocupa o primeiro tempo dos cc. 5, 7,
12, 13, 16, 17, 23 e 27 – uma colcheia seguida por duas semicolcheias. Esse agrupamento,
antecedido pela semicolcheia que chamamos de anacruse para o solo, torna-se o motivo
rítmico predominante de toda a primeira parte do improviso (Figura 39).
Figura 39 – Primeira parte do solo improvisado de “O Cantador” com indicações das repetições do motivo
rítmico característico e suas variações.
nível local, por um elemento remissivo. Colocado de outra forma, o autor aponta que a
interrupção do fluxo, mesmo que rápida, contribui para a percepção do próprio fluxo. Tendo
isso em vista, o caráter de quebra momentânea do fluxo, presente no c. 43, reforça, por
contraste, o projeto hegemônico do solo de ser uma continuação da exposição do tema, e não
uma seção contrastante a ele75.
Podemos apontar ainda outro parâmetro em que o c. 43 contrasta em relação à
seção A do improviso (c. 31-47). Nessa seção, Victor Assis Brasil trabalha a escolha de notas
no intuito de simular um contraponto a duas vozes, tendo como estratégia básica a alternância
quase constante entre duas regiões da tessitura – uma mais aguda e outra mais grave. Esse
procedimento fica bastante claro nos cc. 32-34, 39-42 e 44-45 (figura 39), onde notamos o
saxofonista conduzindo as mudanças de acordes em duas regiões da tessitura de forma
independente, saltando de uma para outra, e, consequentemente, acrescentando saltos
intervalares grandes (maiores que uma terça) ao perfil melódico. Levando isso em
consideração, a interrupção desse procedimento, causada pelo perfil melódico baseado em
arpejos do c. 43, não só fica evidente como se conecta com alterações subsequentes.
A segunda parte do improviso (c. 47-60), que acontece sobre a harmonia da parte
B da canção, se inicia com um curto desenvolvimento sobre resquícios da intervenção do c.
43. Nos c. 47-49, ouvimos fragmentos de escalas – material praticamente ausente na primeira
parte do improviso – distribuídos sobre uma rítmica majoritariamente de sextinas – que
também se opõe à subdivisão em semicolcheias, predominante na primeira parte. No entanto,
apesar dessas características, esse início da segunda parte do improviso não se configura
como uma ruptura tão radical em relação ao fluxo contínuo tema-improviso, quanto à
intervenção do c. 43 graças a sua inserção no contexto. Ao passo que o fill do c. 43 interrompe
a resolução da cadência preparada desde o c. 39, essa segunda parte do solo não interrompe a
cadência que a antecede (c. 44 até primeiro tempo do c. 47). Graças à concretização dessa
terminação cadencial – ainda que o repouso seja momentâneo – a introdução do novo material
melódico, já no segundo tempo desse mesmo c. 47, soa menos contrastante que a do c. 43,
contribuindo, assim, para renovar o interesse do solo, sem negar a ideia de continuidade do
projeto interpretativo como um todo.
Outro elemento que contribui para a conexão entre as partes A e B do improviso é
o fato de que, logo após o início de B e a apresentação desse novo material (c. 47-49), ele
75
Também em relação ao c. 43, Teixeira aponta para a semelhança desse fill melódico com um fragmento da
melodia de “Grooving High”, de Charlie Parker, configurando, assim, um procedimento de citação característico
de solos improvisados dentro do repertório jazzístico. (ver TEIXEIRA Filho, Jair. “Nada será como antes”: a
música de Victor Assis Brasil no álbum Pedrinho. Campinas, 2014. Dissertação (Mestrado). Universidade
Estadual de Campinas, Unicamp, Instituto de Artes, Campinas, 2014, p. 128-129.
136
Variações e Recorrências
76
Segundo o desenvolvido por Coelho (2007), no Cap. 3 de sua tese de Doutorado, a dinâmica de
desenvolvimento de um discurso depende, entre outras coisas, da presença virtual de um anti-projeto que, ao
intervir na realização do projeto hegemônico, dá sentido para a existência desse último. Partindo para o plano da
realização cancional, podemos dizer que a ideia de trajeto empreendido pelo sujeito em busca do objeto dentro
de uma canção de valores disfóricos adquire sentido e força graças à presença de uma possibilidade – ainda que
137
Considerações finais
77
Importante ressaltar que as duas paradas a que estamos nos referindo se diferenciam em relação à
intencionalidade, por parte do intérprete. No caso do solo de piano, entendemos que a sua presença, bem como
sua localização, dentro da estrutura da gravação, decorre de um planejamento anterior à performance. Por outro
lado, ainda que o fill melódico da reexposição seja uma exceção em relação ao modus operandi de variação
melódica adotado, tal característica não é suficiente para afirmarmos a intencionalidade de seu uso e de sua
posição na estrutura da gravação.
139
o reforço do discurso proposto pela melodia e pela letra e, aliados aos outros aspectos
apresentados na análise, constroem o projeto interpretativo de Victor Assis Brasil, que dialoga
intensamente com a canção que realiza.
Partindo para uma interpretação mais subjetiva, mas sem deixar de lado as
observações feitas a partir da análise sistemática da interpretação de “O Cantador”, sugerimos
um paralelo entre o comprometimento do saxofonista, em dialogar com possíveis significados
da canção, e a condição do “cantador” de viver em função de seu canto, a ponto de suprimir
sua própria individualidade. Victor Assis Brasil, focado em realizar a canção dando vazão aos
significados da melodia e da letra, volta todos os seus recursos interpretativos no fechamento
do projeto interpretativo comprometido com a ideia de continuidade. Em decorrência disso,
equilibra a importância das seções de exposição do tema e de improviso, e desfaz a assimetria
– comum à música instrumental de referencial jazzístico – que favorece o solo em detrimento
do material musical.
140
Considerações Finais
Este trabalho se propôs a estudar uma parte da realização musical de Victor Assis
Brasil como saxofonista, em interpretações que denotassem o atrito entre elementos da música
brasileira e do jazz norte-americano. No entanto, mesmo com o final prematuro da carreira, a
produção de Assis Brasil nessa área é grande em extensão e em variedade, o que exigiu uma
restrição ainda maior no recorte proposto. Sendo assim, nos voltamos, mais especificamente,
para o estudo das gravações em que ele interpreta canções brasileiras. A abordagem desse
objeto se deu em duas dimensões diferentes, teórica e prática, que foram desenvolvidas de
maneira concomitante, com interferências e contribuições nos dois sentidos. De maneira
geral, na parte teórica, analisamos cinco interpretações do saxofonista, “Minha Saudade”, “O
cantador”, “Só tinha de ser com você”, “Feitiço da Vila” e “Dindi”. No âmbito prático, a
partir dos resultados encontrados nas análises, propusemos: reinterpretações para essas
gravações, projetos interpretativos inéditos para canções que ele não gravou e projetos
interpretativos livremente influenciados pelos estudos teórico e prático desenvolvidos nesta
pesquisa.
A seguir, apresentaremos considerações sobre cada fase deste trabalho,
começando pelo plano teórico contido nos Capítulos 1, 3 e 4, e terminando no plano prático
comentado, principalmente, no Capítulo 2. Tal ordenação, que a princípio se mostra pouco
natural, foi escolhida por motivos de clareza, já que a linearidade do texto não comportaria o
desenvolvimento dos dois planos da forma simultânea como ocorreram.
Durante o primeiro capítulo, tivemos como objetivo contextualizar a produção de
Victor Assis Brasil e observar qual a participação das versões instrumentais de canção em seu
repertório gravado. Para tanto, revisamos a biografia do saxofonista, dando especial atenção a
sua discografia: em que momento da carreira cada disco foi gravado, qual seu repertório e
quais as principais características musicais ouvidas em cada um deles. A partir dessas
observações, detectamos a influência constante e diversificada do jazz e do samba-jazz em
suas gravações. Além disso, notamos que seus álbuns de estúdio se encaixavam em dois
modelos de repertório: três deles apenas com temas de jazz (Standards ou autorais); e outros
três, com repertório mais variado (versões instrumentais de canção, temas de jazz e
composições autorais). Levando tudo isso em conta – biografia e características de cada
álbum – propusemos uma organização de sua discografia de estúdio em três fases:
digitação, aos recursos idiomáticos e às manipulações de timbre, todas elas necessárias para a
reprodução literal das gravações (imitação). Além disso, durante essa interação prática com o
objeto, experienciamos características que particularizam cada gravação, e que foram
posteriormente incorporadas no desenvolvimento das análises teóricas. A partir da
compreensão, proporcionada por essas últimas, propusemos reinterpretações para as canções
gravadas pelo saxofonista.
Essa primeira parte da pesquisa – audição-imitação-transcrição-análise-
reinterpretação – funcionou como subsídio para a segunda parte, que estabelece uma interação
com a performance de Victor Assis Brasil de um ponto de vista mais global. A partir da
comparação entre as cinco gravações analisadas, e do consequente levantamento de suas
marcas identitárias, propusemos projetos interpretativos inéditos para canções que não foram
gravadas por ele. Mais precisamente, essas interpretações se concentram em aspectos da
performance instrumental que, conforme demonstraram as análises, receberam a atenção do
saxofonista e estabeleceram ligações entre sua atuação e os sentidos da canção.
A terceira parte, por sua vez, incorpora as duas anteriores e propõe um diálogo
menos sistemático com a produção de Victor Assis Brasil. A partir da combinação entre
estruturas e procedimentos, recorrentes nas gravações analisadas com outros referenciais
musicais, buscamos construir projetos interpretativos, que possibilitassem a utilização, de
maneira menos planejada, das marcas identitárias identificadas e assimiladas durante o
desenvolvimento da pesquisa. Objetivamente, essa utilização se deu de duas formas
diferentes: através do condicionamento técnico adquirido nos processos de imitação e
reinterpretação e, portanto, um uso involuntário ou inconsciente das marcas identitárias; e na
adequação para outros contextos musicais, e consequente resignificação desses recursos de
interpretação detectados nas gravações analisadas.
Por fim, e de forma resumida, com o desenvolvimento desta pesquisa buscamos
aprofundar a compreensão da produção de Victor Assis Brasil e ressaltar sua importância e
individualidade dentro do contexto musical brasileiro. Ao mesmo tempo, o recorte estudado e
a metodologia de análise proposta tiveram como intuito contribuir para o entendimento das
relações existentes entre os repertórios da música instrumental e da canção popular
midiatizada, constantemente combinados na atuação de intérpretes como Victor Assis Brasil.
Em uma perspectiva ainda mais geral, propusemos uma forma de integração entre os estudos
prático e teórico da performance instrumental, levando em consideração particularidades do
repertório de música popular como a presença de improvisação e a ausência frequente de
registros em partituras.
145
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em 1977 e lançado postumamente em 1997). Gravadora: Imagem. Reg.: 2006
__________________. Ao Vivo do 1º Festival de jazz de São Paulo de 1978. (digitalização
disponibilizada via internet em 2007)
150
ANEXO B1
Minha saudade
É a saudade de você
Que não quis levar de mim A (1ª. estrofe)
A saudade de você
E foi assim
Que tão cedo me esqueceu
E eu tenho até hoje A’ (2ª. estrofe)
A saudade de você
Eu já me acostumei
A viver sem teu amor
Só não consegui B (3ª. estrofe)
Foi viver sem ter saudade
166
ANEXO B2
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba. A’ (2ª. estrofe)
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a vila Isabel dá samba.
A vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém B (3ª. estrofe)
Que nos faz bem,
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente
ANEXO B3
Ah, Dindi
Se soubesses o bem que eu te quero A (1ª. estrofe)
O mundo seria, Dindi,
tudo, Dindi, lindo, Dindi
Ah, Dindi
Se um dia você for embora A’ (2ª. estrofe)
me leva contigo, Dindi
Olha, Dindi, fica, Dindi
Dindi
Que é a coisa mais linda que existe A’’ (4ª. estrofe)
É você não existe, Dindi
Deixa, Dindi, que eu te adore, Dindi
169
ANEXO B4
“Só tinha de ser com você” (1964) – Tom Jobim e Aloysio de Oliveira
É, só eu sei
Quanto amor eu guardei A (1ª. estrofe)
Sem saber que era só prá você
ANEXO B5
Amanhece, preciso ir
Meu caminho é sem volta e sem ninguém
Eu vou pra onde a estrada levar A (1ª. estrofe)
Cantador, só sei cantar
Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor
Ah! eu canto a dor, canto a vida e a morte, canto o amor