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Religião - Ensaios, vol. 1/2.

São Paulo: Olho d'Água e


Goethe Institut, 2010.

GEORG SIMMEL

Que as exigências sociais se manifestem em


termos religiosos e que a relação do indivíduo com a coletivi-
dade seja classificada como dever para com Deus, isso é apenas
uma ilustração ou objetivação da motivação emocional íntima
já enraizada nas relações sociais. Para ser mais preciso, ao as-
sumir a forma social, tais impulsos interiores se tornam o lugar
ou o objeto da disposição de espírito religiosa.
A relação da criança, plena de devotamento com seus pais;
do patriota entusiasta com sua pátria ou do cosmopolita ardo-
roso com a humanidade; a relação do trabalhador com sua clas-
se insurgente; do senhor feudal, cônscio de sua nobreza, com
seus pares; a relação do subordinado com seu senhor, a cuja
regra se submete; ou ainda do verdadeiro soldado com seu
exército — todas essas relações, de um conteúdo infinitamen-
te variado, quando olhadas do ponto de vista psicológico, têm
uma tonalidade comum que só se pode chamar de “religiosa".
Todas elas contêm uma mistura peculiar de devotamento desin-
teressado e desejo fervente, de humildade e exaltação, de con-
cretude sensível e abstração espiritual, e tudo isso ocorre não
apenas em estados alternados de espírito, mas numa unidade
persistente que só podemos compreender racionalmente me-
diante sua distinção nesses pares de opostos. Daí resulta um
certo grau de tensão emocional, um fervor e uma firmeza espe-
cíficos das condições subjetivas, uma inclusão do sujeito numa
esfera superior, embora ele a sinta como algo íntimo e pessoal.
A tais elementos afetivos, com que se constrói o aspecto interior
e também o exterior desse tipo de relações, podemos qualificar
como religiosos. Isso se manifesta assumindo uma substância
concreta, pelo fato de que o deus cria ou sanciona as relações
entre os humanos. Por exemplo, os deuses podem ser distingui-
dos entre aqueles que existem ora para garantir a desigualda-
de, isto é, legitimar as desigualdades existentes; ora para
garantir a igualdade entré humanos, tendo sido criados para que

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AREUGIAO

exista um ser ante o qual todos são iguais. Mas, justamente por
não impedir a igualdade da consagração transcendente, essa
divergência de conteúdo coincide com a identidade de estru-
tura desses ideais por sua característica social e os prepara para
serem abarcados pela vida religiosa. Precisamente por serem
religiosos, esses ideais são dotados de uma qualidade que os
distingue das relações baseadas no puro egoísmo ou na suges-
tão, que são determinadas por forças exteriores ou mesmo pu-
ramente morais. Na maioria dos casos, talvez se possa designar
essa tonalidade afetiva como “piedade", que é a disposição da
alma tornada religião assim que se projeta sobre formas parti-
culares: no presente contexto, vale notar que a pietas exprimia
o comportamento dedicado tanto aos humanos quanto aos deu-
ses. A piedade, que de algum modo é a religiosidade em esta-
do fluido, não precisa atingir a forma sólida do comportamento
para com os deuses, tornar-se religião. É característico das dis-
posições ou funções que em sua essência lógica remetam para
além da alma e, no entanto, permaneçam em seu interior, sem
assumir nenhum tipo de objeto. Há almas amorosas cujo ser e
ação inteiros se encontram impregnados de uma peculiar ter-
nura, calor e devotamento de amor e que, contudo, jamais sen-
tem amor por uma pessoa particular; há corações maldosos
cujos pensamentos e desejos possuem uma disposição cruel e
egoísta, sem que se materializem em ações realmente nocivas;
há pessoas com inclinação artística cujo modo de ver as coisas,
de viver a vida e de modelar suas impressões e sentimentos é
inteiramente artístico e, no entanto, jamais criarão uma obra de
arte. Assim também, há pessoas de natureza piedosa que não
direcionam sua piedade a nenhum deus e, portanto, a nenhu-
ma daquelas figuras que são o puro objeto da piedade: em suma,
são pessoais religiosas sem uma religião. Esses indivíduos
situam-se entre aqueles que experimentam e sentem as relações
mencionadas acima dentro de uma atitude de religiosidade. Que
chamemos essas pessoas de “religiosas" se explica porque, nas-
cido delas, já existe o fenômeno da religião desenvolvido e dis-
tinto e porque este se tornou a pura manifestação dos impulsos,
disposições e necessidades que, nas relações citadas, são gera-
das no contato com o material social empírico.

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