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°filia Aranfes (org.

Apesar de ter sido


uma figura excepcional da
vida política e cultural no Brasil,
responsável em grande parte pela moder-
nização das arfes plásticas em nosso meio, e de
sua projeção no exterior, Mário Pedrosa não tinha fido
até agora nenhuma edição mais completa de sua vastíssima obra.
Os poucos textos recolhidos em livros estão em sua maioria esgotados.
Lapso do mercado editorial brasileiro que a Edusp, ao iniciar com Milico dal
Mesa edição de quatro volumes de Textos Escolhidos, vem finalmente corrigir.
Neste primeiro volume estão reunidos ensaios, conferências e depoimentos que dis-
cutem as relações da arte com a política e o conseqüente papel do crítico nessa
mediação, tanto quanto o das instituições, como Salões, Bienais e Museus. De fato,
trata-se de um livro essencial para se entender o que para Mário Pedrosa era a voca-
ção política da arte — da qual nunca abriu mão. Mesmo ao tomar a defesa da arte
abstrata, manteve-se sempre fiel à máxima: 'A independência da arfe para a revolu-
ção e a revolução para a libertação definitiva da arfe'.

Política das Artes


Textos gscolhidos 1
Mário Pedrosa

°filia Aranfes (org.)


EsT
Reitor Flávio Fava de Moraes
Vice-reitor,' hlyriani

edllSp
til)ITOR s DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

/'residente Sérgio Miceli Pessha de Barros


Diretor Editorial Plinio Martins Filho
Editor-assistente Rodrigo Lacerda

GnlliSS(7m Editorial Sérgio Miccli Pessha de Barros (Presidente)


Davi Arrigucci Jr.
José Augusto Penteado Aranha
Oswaldo Paulo Forattini edUSP
Tupis Comes Corrêa l MIEM
ARTE CULTA E ARTE POPULAR

Que significa essa distinção?


Sempre existiu a diferença entre arte culta e arte popular?
Na realidade, essa é uma diferença que aparece na época moderna. Na
arte primitiva, nas pinturas rupestres das cavernas de Altamira, por exemplo,
não podemos distinguir a parte reservada à arte erudita da parte que seria
arte popular. Pode-se dizer o mesmo da arte egípcia, da arte pré-colombiana
ou da arte medieval, para citar outros exemplos. A diferenciação entre ambas
nasce com a sociedade capitalista, com a formação da burguesia, com a divi-
são da sociedade em classes. Nela se expressa a dominação ideológica e de
classe da burguesia (que se identifica com a arte erudita) sobre as classes domi-
nadas e sobre a arte popular de origem camponesa ou proletária. É, portan-
to, natural analisar esta distinção dentro do contexto das lutas de classes.
"a arte"
A "arte erudita", "arte culta", "arte burguesa", ou simplesmen te
constitui um dos "aparelhos ideológicos" (para utilizar a terminologia de
Althusser) em que se apóia o poder da burguesia. Com efeito, idéias corno
"o criador", "o artista", valores da sociedade burguesa, são vinculadas direta-
mente à idéia de êxito e de triunfo do indivíduo. "O artista" só existe corno
produtor de arte erudita; quem faz arte popular não é artista, dificilmente
um criador, mas apenas um artesão.
* Comunicação ao Seminário de Arte Popular realizado na Cidade do México, em 1975. Publicado
em Arte em Revista n9 3, SP, Kairós-CEAC, trad. de Elisabeth Ferreira e Iná Camargo Costa,
pp. 22-26.
322 POLÍTICA DAS ARTES

ARTE CULTA E ARTE POPULAR 323


Os objetos produzidos pela arte erudita transformam-se em capital (e isto
em seu pleno sentido especulativo, pois são uma espécie de ações com as quais Na sociedade capitalista, é claro que a arte desempenha um papel na
defesa dos interesses da b urguesia. Mas, e antes da sociedade capitalista? E
se joga nas Bolsas) e sua posse contribui para a acumulação de riquezas que
sustenta o poder da burguesia na sociedade de classes. O mercado de arte é antes, inclusive, que aparecesse essa distinção entre arte e artesanato? Que
função cumpria a arte? Nas soc iedades pré-capitalistas havia também grupos
um dos que mais claramente expressam o que significa, na sociedade indivi-
dualista, o fenômeno da acumulação de capital e o sistema de símbolos de pres- dominantes e massas dominadas. Não existindo, nessas sociedades, diferen-
tígio em que se afirma a luta pelo status nesta sociedade. Efetivamente, o valor ça entre arte erudita e arte popular, nelas também a arte desempenhava o
de troca de uma obra de arte compõe-se de uma pequena quantidade de "valor- papel de defensora dos interesses dos grupos dominantes? A resposta é cate-
górica: sim.
trabalho" e de uma gigantesca — imensa — (que torna absolutamente desprezí-
Durante milênios a arte foi u mdlinguagem popular na medida em que
vel o primeiro valor) quantidade de "valor-prestígio". O prestígio se transforma
em valor econômico a ponto de poder ser medido com precisão em dinheiro. continha uma mensagem (religiosa, por exemplo, na Idade Média ) que deve-
ria ser entendida por todos, inc lusive pelos analfabetos. Que a linguagem fosse
Vale mais a assinatura que a obra. Picasso era capaz de produzir centenas de
milhares de dólares num só dia e quem recebesse um cheque seu deveria pen- popular não implicava que fosse diferente da linguagem da classe dominan-
sar bem no que seria mais conveniente: se trocá-lo no banco pelo dinheiro esti- te ou que expressasse outra coisa que não fosse a ideologia dessa classe. É
pulado ou vendê-lo no mercado de arte pelo dinheiro que valeria "essa" assinatura. possível fazer toda uma história da arte mostrando como a imagem, ao longo
dos séculos, está destinada a d ifundir os símbolos do poder e a "persuadir"
Para fixar o valor da obra no mercado, não tem nenhuma importância
se, dentro da sociedade capitalista, o artista lhe é servil e intransigente defen- (função das ideologias) o povo a aceitar a autoridade estabelecida.
Façamos aqui uma breve resenha histórica à guisa de exemplo:
sor de seus valores ou se é contestador e denuncia seus vícios. Inclusive, pode-
ríamos dizer que, no mercado capitalista, o protesto tem melhor cotação que Desde a época egípicia até fins da Idade Média, as figuras aparecem repre-
a postura submissa. Assim, o artista famoso representa, dentro da sociedade sentadas em tamanhos diferentes, numa escala hierárquica, que é uma forma
simbólica de representar a au toridade e de transmitir ao povo a idéia do poder.
burguesa, a plena encarnação do herói individualista, o maior fetiche criado
por essa sociedade e, por isso, por encarnar seu mito primordial, essa socie- Vejam-se os retratos dos faraós, dos funcionários da Suméria ou dos reis de
dade vê-se obrigada a gratificá-lo com todos os bens que possui, porque ele Assur, ou da imagem de Deus no Código de Hamurábi, que é ainda maior
que a do rei: o maior tamanho e xpressa o maior poder.
representa a máxima realização dos valores que ela defende e deve mostrar
que aquele que é capaz de realizar esses valores alcança o paraíso burguês, Certamente, cada cultura cria seu próprio tipo de autoridade. No Egito,
"A Terra Prometida do Capitalismo". a personificação do faraó p e rmitia uma certa aproximação do retrato. Por
outro lado, na iconografia meso potâmica ou na africana de Benin, de con-
Por outro lado, com o passar do tempo, a arte erudita reivindica para si
toda a criatividade humana, convertendo toda obra em arte burguesa — até teúdo algo diferente, aparece, por exemplo, um estereótipo, pois a imagem
do chefe é a expressão de um pr incípio abstrato da autoridade.
mesmo as provenientes de sociedades pré ou não-capitalistas (inclusive as que
nasceram como "artesanais") — na medida em que transforma esses objetos As numerosas estrelas, que mostram os reis egípcios vencendo seus ini-
em valores de troca. Para isso, conta com a colaboração dos Museus, destina- migos, são também transmissão de autoridade e o mesmo ocorre com a arte
assíria, onde os monarcas aparecem executando atos de bravura (matando
dos a "consagrar" a obra colocada em suas salas, o que faz subir às nuvens o
leões), que destacam seu poder s obrenatural em relação a outros mortais.
preço de outras do mesmo autor ou do mesmo estilo no mercado de valores
(nem vale a pena falar da manipulação que neste sentido fazem as galerias, Nenhuma iconografia, porém, destacou mais os princípios da autorida-
de que a romana. A estátua i dealizada de Augusto. A eqüestre de Marco Aurélio.
pois sua finalidade mercantil é por demais evidente).
Na referência aos Museus, tocamos na história da arte e imediatamente Originalmente, sob o cavalo havia a figura de um inimigo ferido, de um bár-
se nos coloca de novo a legitimidade de contrapor a arte popular à erudita. baro caído. Além disso, as estátuas eqüestres dos imperadores tinham um poder
extraordinário. Diante delas, eram realizadas as execuções públicas e os pri-
POLÍTICA DAS ARTES ARTE CULTA E ARTE POPULAR 325
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finalmente, a sacralizar de novo o poder do rei para assegurar sua suprema-


sioneiros podiam obter perdão e apelar para o imperador se conseguissem
tocá-las. O que importava era lembrar, permanentemente, ao povo (como cia sobre os vassalos.
Cômodo, que se fez representar como Hércules) o poder do imperador e a A iconografia de Napoleão não é menos significativa. Bonaparte não foi
um monarca hereditário, antes teve que legitimar sua própria autoridade,
proteção que este recebia da divindade.
No mundo bizantino, a imagem do imperador não só aparecia nos afres- erupção revolucionária. Por essa razão, utilizou a arte para legitimar suas pre-
cos e mosaicos, mas também nas moedas e nos tecidos. A imagem do poder tensões. David foi seu promotor (para usar um anacronismo). Para esse obje-
devia se divulgar o máximo possível, pois o povo "devia" reconhecer sua auto- tivo são suficientes seus retratos idealizados, a coroação etc. Mas também o
retrato de Gross, que mostra o imperador visitando os leprosos, é significati-
ridade.
O cristianismo conservou as imagens tradicionais, sagradas, da autorida- vo. Ao aparecer tocando as chagas dos efermos com as mãos, vincula o impe-
i.,
de, substituindo-as apenas por Deus Pai, ou por Cristo, o Cristo pantócrator rador aos antigos reis capetos, que curavam os doentes ao toque de sua mão.
Quer dizer, vincula a nova-autoridade à antiga, através de um gesto simbóli-
(do românico, Tahull etc.).
No Renascimento, a imagem do poder se individualiza, laicizando-se. O co. A burguesia instala sobre a sociedade um poder político bastante instável
poder abstrato se transforma no príncipe. O retrato de Lorenzo de Medici, para eternizar seu poderio econômico. A arte perde suas últimas vinculações
ou de algum duque veneziano, mostra-nos o indivíduo, personalizado, que com o sagrado. Torna-se cada vez mais individual e laica.
Podemos afirmar agora que, enquanto a arte se mantém figurativa, sua
se converteu em poder. É o indivíduo que encarna a virtude (como diria Burk-
hardt ou Von Martin), que entende a vida como obra de arte, que teve a capa- linguagem permanece ao alcance das massas. É curioso que, em nossa época,
cidade singular de erigir-se em autoridade máxima. Nascem então os condottieri só se faz arte abstrata, na medida em que uma tecnologia muito mais sofisti-
e a filosofia política da sociedade individualista é exposta em O Príncipe de cada, e que toma impulso depois da revolução impressionista, oferece à bur-
Maquiavel. Na galeria de retratos deste herói-indivíduo da época, não pode- guesia outras formas mais eficazes de difundir sua ideologia (a fotografia, os
mos nos esquecer do Doge Lourenço Lerdano de Bellini, nem do Carlos V de mass media). Só depois de transferir sua mensagem de "poder" aos meios de
comunicação de massa, a arte erudita pode permitir-se o hermetismo. A par-
Ticiano, nem do Henrique VIII de Holbein.
A partir do Renascimento, onde o que predomina como gênero de pin- tir do Renascimento, a burguesia nascente vai-se transformando na principal
tura é o retrato, o poder é representado por símbolos e alegorias: a Águia compradora de arte até que, em nosso século, torna-se a única consumidora
Imperial, as Quatro Partes do Mundo que rendem homenagem ao rei ou — como
de uma arte nova que só os iniciados sabem "apreciar". Ser iniciado, por outro
lado, implica uma práxis que requer um tempo do qual só dispõem aqueles
no caso de Carlos V— as Colunas de Hércules, sobre as quais aparece o lema plus
que estão liberados da servidão do trabalho e podem desfrutar da ociosida-
ultra como símbolo da conquista do planeta.
Rubens é um exemplo desta representação alegórica da autoridade: basta de. É precisamente o nosso século a época em que se dá a mais alta e mais
passear pela imensa sala do Louvre, onde está exposto o Ciclo de Medici, para refinada especialização da história da crítica da arte e da estética de que se
confirmá-lo. tem notícia, ambas transformadas em disciplinas que se pretendem autôno-
Uma concepção distinta do poder está expressa no famoso quadro de Van mas, exatamente como as modernas ciências do homem, a sociologia, a psi-
Dyck, também no Louvre, de Carlos I. Ali, o que interessa é mostrar o rei cologia, a antropologia, a lingüístic, a comunicação, a informática. Na
como um perfeito cavalheiro. O símbolo de sua autoridade é sua atitude, seu história da arte, essa época é precisamente a que vai ser definida como um
porte de aristocrata e sua elegância, além do cetro, que era uma prerrogati- período histórico em si, assim como o barroco, o rococó, ou seja, a arte moder-
va real da Europa de então. na. Hoje, a partir do "informal" e da pop art, podemos insinuar que estamos
Se continuarmos percorrendo o Louvre, vamos encontrar um retrato em no fim da época da "arte moderna", pois os traços específicos que a defini-
que se empregaram todos os recursos então conhecidos pela iconografia para ram, sobretudo enquanto valores plásticos, formais e estéticos, começam a

representar o poder: o retrato de Luís XIV de Rigaud. O absolutismo tende, ser recusados. Mais que a velha moda do século passado, a da "arte pela arte",
POLÍTICA DAS ARTES

a "arte moderna" transforma-se numa arte para iniciados e dá origem ao mais


acabado elitismo, com o qual participa ou contribui, necessariamente, para
a ampliação do mercado capitalista, para o qual criou e vai criando novas mer-
cadorias de tipo cada vez mais raro, de puro "consumo conspícuo", como o
definia Marx. A arte moderna, a arte abstrata, a pop art, a minimal art, a body
art, a conceptual art etc. são todas produtos de consumo conspícuo, ainda que
nem mesmo a burguesia entenda verdadeiramernte todos esses novos ismos,
mas os aceite na medida em que vendem. Neste sentido, a "arte erudita", qual-
quer que seja o apreço que se lhe dê nos círculos iniciados e interessados, é
uma forma de mistificação cultural. Sobretudo, na medida em que reproduz
e projeta essa mistificação como os bens supremos que os grandes monopó-
lios das multi, ou melhor, transnacionais levam para todo o mundo, principal-
mente para os países da periferia, como os emblemas, os símbolos da BONECOS MECANIZADOS DE JOSÉ MOLINA, BOCAINA, 5,a0 PAULO
civilização cosmopolita do global shopping center a que os sumo-sacerdotes das
gigantescas empresas monopolistas querem reduzir o planeta.
E a arte popular? Esta sempre foi um produto que nunca participou das
honras da historiografia da arte erudita, capítulo da grande história das nações
do mundo ocidental. Mesmo em países como o México, cujas tradições de
criatividade popular são tão respeitáveis e tão antigas, a arte popular ficou de
fora da história, digamos, nobre.
O Renascimento, como se sabe, criou as belas-artes — pintura, escultura,
arquitetura — e as separou das artes que passaram a ser consideradas "meno-
res". Aquelas eram o apanágio dos grandes criadores, com direito a grandes
biografias e à convivência dos príncipes e dos nobres, sendo elevados à cate-
goria de membros das profissões liberais os Da Vinci, os Michelangelo, os
Rafael etc. e os outros, simples artesãos, plebeus das artes mecânicas. Esta
separação social marcou a história da arte burguesa desde o Renascimento.
Atualmente, volta-se a pregar, dentro da luta contra a sociedade de clas-
ses, o retorno do artista à condição de artesão. Lembrando-se de Marx, para
quem a pequena indústria do pré-capitalismo era o viveiro da produção social,
era o ambiente de onde emergiam os gênios criadores da indústria e das artes,
passou-se a dizer que o artesanato é a fonte mais autêntica da cultura popu-
lar. Ou a cultura que deve ser restabelecida no quadro da luta revolucionária.
Cuidado com o andor!
Muitas instituições, muitos políticos e inclusive teóricos mitificam candi-
damente o artesanato. Nem sempre ele representa uma forma criadora do
povo que signifique uma posição revolucionária. Pelo contrário, freqüente-
328 POLÍTICA DAS ARTES ARTE CULTA E ARTE POPULAR 329

mente nele se expressa a ideologia da dependência, na medida em que é uma destinava-se a um comércio de luxo, exclusivamente para turistas. O melhor
produção destinada a atender o interesse pelo folclórico do mercado turísti- exemplo desta forma de exploração era, em Santiago, o Chilean Art, cujo nome
co. Esse interesse é o reflexo da imagem colonizadora que os países capitalis- basta para indicar o tipo de mercado a que nos referimos. Com a organização
tas impõem à nossa América. Outras vezes esteve a serviço da ideologia fascista. das cooperativas artesanais, que se ocupam diretamente da venda, o artesão
São conhecidos os exemplos históricos em que o fascismo aparece estimulan- se liberta do comerciante dirigente intermediário. Simultaneamente, surge
do a arte "popular" como uma forma de demonstrar os valores da raça: os um novo mercado. A redistribuição da renda durante a UP, que favorece os
trajes típicos e os calções de couro foram grandes modas na Alemanha de setores mais desprovidos, cria um novo público. Isso terá um duplo efeito: de
Hitler. O artesanato só se torna revolucionariamente valioso quando contri- um lado, dá uma grande liberdade criadora ao artesão, pois o aumento da
bui para romper a estrutura de classes e põe em questão o monopólio da ati- demanda garante sua subsistência e afile sua família, sem que ele esteja sujei-
vidade criadora da burguesia. to a um patrão que lhe impõe um tipo único de modelo; por outro lado, a
Dentro desses limites, interessa-nos analisar a experiência artesanal no difusão do artesanato entre os setores populares também contribui para a desa-
Chile de Allende. lienação do "gosto". Nas casas da pequena burguesia e nos lares proletários,
O crescimento da atividade criadora correspondeu, de maneira natural, lentamente, os tapetes "criollos", as tecelagens de palha e crina, as estatuetas
ao avanço de uma classe. Desde o período da democracia cristã, existia uma policromadas de Melipilla ou as pedras de Toconao vão substituindo, nas pare-
cooperativa nacional que organizava a venda e a produção do artesanato: des, as más reproduções e as folhas de calendário, contribuindo assim para a
Cocema (Cooperativa Centro de Mães). A função desta instituição era, con- formação de um novo ambiente plástico íntimo para o chileno.
tudo, fundamentalmente comercial. Na realidade, servia de intermediária entre Desse modo, a condição da mulher é profundamente afetada pelo desen-
o artesão e o cliente, centralizando na capital a venda dos produtos. Sem dei- volvimento dessa indústria. Modifica-se sua condição no lar. A mulher do cam-
xar de lado esta função, importante pois contribuiu para criar um mercado ponês ou do operário, antes dedicada exclusivamente aos mais duros trabalhos
de que necessitava o povo desempregado, a Unidade Popular orientou em domésticos e, freqüentemente, tendo que contribuir para o orçamento traba-
outros aspectos o sistema cooperativo. A popularidade que as produções arte- lhando como criada nas casas da burguesia local (lavando, cozinhando, lim-
sanais adquiriram e o mercado interno e de exportação que se criou em torno pando etc.), descobre uma atividade que, além de liberá-la dessas necessidades,
delas, onde a demanda superava amplamente a oferta, permitiu não só o estí- compensando-a economicamente com vantagens, dá-lhe um prestígio que afir-
mulo dessa atividade, como também a criação de numerosas pequenas indús- ma sua situação no lar, assim como no interior do grupo local e familiar.
trias e a incorporação, em forma de centros de mães ou comunidades de bairros, A nova condição do artesão motiva também a burguesia a incorporar-se
de novos setores à produção. Assim, por exemplo, formou-se em Ilha Negra, a esta atividade, até então vista como indigna de sua classe. Todo oficio manual
uma cooperativa de "tecelãs" que ficou famosa pelo impulso que lhe deu um sempre pareceu impróprio para a alta burguesia e para a chamada "classe
dos moradores, que organizou uma exposição de seus trabalhos em Paris: média", salvo, naturalmente, aqueles que podiam ser considerados artísticos
Neruda. Durante três anos, todas as mulheres dos pescadores trabalharam e que, conseqüentemente, alcançavam uma cotação especial no mercado, como
tecendo tapetes. Em outras regiões, desenvolveram-se, inclusive, vilas em torno a chamada joalheria artística. Com esse título, o suposto artista pretendia (e
de uma indústria, como é o caso de Toconao, ao norte do Chile, onde os habi- pretende) diferenciar a sua produção da do joalheiro operário, tanto do ponto
tantes se dedicavam ao talhe de estatuetas em predra-sabão. de vista do status como do econômico. Neste ponto, opera-se no Chile, como
A expansão do artesanato a estes níveis produziu, de imediato, importan- em toda sociedade em que o processo revolucionário começa a pagar as dife-
tes efeitos sociais. Em primeiro lugar, mudou a condição de artesão. No Chile, renças de classe, uma ruptura na ideologia burguesa. A distinção entre arte-
até então, essa era el hombrecito aquél... ou Ia murjercita aquélla. Sua condição são e artista se desvanece e o artesão assume a condição social de artista. Esta
continuava sendo uma clara expressão do sistema "patronal". Dependia total- transformação atinge imediatamente outros setores. A universidade percebe
mente dos donos de boutiques, que lhe pagavam preços ínfimos. Seu produto que é oportuno preocupar-se com o artesanato e, nas escolas de arte, ele torna-
330 POLfTICA DAS ARTES

ARTE CULTA E ARTE POPULAR


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se uma das atividades que têm preferência. Os artistas, por sua vez, "descem
de seu pedestal" e se interessam pelo "oficio", o qual não faz distinção entre iniciativas. No início, pequenas festas em comum, porém logo são convida-
a soldagem do escultor e a do artesão. O artesanato chega a parecer uma ati- dos cantores para dar recitais e grupos de balé e de teatro. De vez em quan-
do, realiza-se, inclusive, um grande espetáculo. Com a
vidade tão importante como a pintura ou a escultura. Além disso, torna-se co laboração da
remunerativa. embaixada em Santiago, é apresentado em El Teniente o grande show de
músicos cubanos De Santiago a Santiago.
Por outro lado, os objetos artesanais mudam de significado. Antes eram O êxito dessas "aventuras" culturais
entusiasma os trabalhadores, os quais descobrem sua capacidade
um souvenir turístico e a maioria deles trazia gravada sua condição: lia-se Recuerdo organizati-
de Chile nos cinzeiros de cobre, etiqueta que, frequentemente, podia ser lida va e sua possibilidade de participar, inclusive de montar, espetáculos que antes
em várias línguas. Com a UP, a situação muda: o artesanato passa a ser pres- eram o apanágio da burguesia. Dus instituições da Universidade Central de
tigiado e seu público mais importante começa a ser, em primeiro lugar, a pró- Santiago participaram ativamente Ira coordenação deste trabalho: o Instituto
de Extensão Musical e o Instituto de Arte Latino-americana.
pria burguesia chilena, especialmente a de esquerda, que começa a decorar
suas casas buscando uma identificação nacional ou latino-americana. E logo É preciso assinalar, por último, que a organização do trabalho artesanal
abre-se uma possibilidade de demanda para as classes trabalhadoras, que adqui- nos centros operários dá origem, como em outros casos, a uma pequena indús-
rem uma capacidade de consumo tal que lhes permite atender a suas neces- tria que, embora nos primeiros tempos apenas seja capaz de financiar uma
oficina, logo se projeta como uma fonte de receita para a c
sidades diretas e ascender a outros mercados. Assim, o artesanato participa omunidade local.
ativamente da transformação da sociedade. Tanto na medida em que é um A experiência de El Teniente se repete em outras indústrias. Em El Salvador,
campo onde se avança na "destruição" dos valores de classe, quanto na que outra das grandes minas de cobre do país, e nas empresas estatizadas da capi-
contribui para a desalienação cultural que se expressa incluive na concepção tal: Textil Progreso etc. Ao mesmo tempo, criam-se nos bairros operários, que
do lar: trata-se de criar um novo ambiente íntimo para o chileno. rodeiam a cidade de Santiago, "centros de mães", nos quais se reúnem as
Naturalmente, este auge leva à criação de uma política de fomento, a qual mulheres dos moradores em torno de uma atividade artesanal, de preferên-
é realizada, primeiro, por instituições universitárias em ativa colaboração com cia a tecelagem. Por sua vez, as Casas de Cultura (havia uma em cada muni-
as empresas recém-estatizadas. Em Santiago, o Instituto de Arte Latino-ame- cípio) não querem ficar atrás e organizam cursos para os vizinhos do setor.
ricana realiza um primeiro projeto e, juntamente com a mina de El Teniente, O que dava uma nova dignidade a esses grupos era o fato de que o povo
uma das grandes jazidas de cobre da região central, funda a Casa de la Cultura se incorporava a uma tarefa criadora, nela encontrando um explêndido alar-
de Coya. Nela se instala um grupo de artesãos que abre diversas oficinas des- gamento de suas faculdades de inteligência, sensibilidade e sociabilidade. O
povo sentia-se com uma nova consciência de seu
tinadas aos trabalhadores: tear, cinzelamento em cobre, escultura, pintura papel na grande sociedade.
etc. A resposta é imediata: uma grande quantidade de operários, aproveitan- Por isso mesmo, os "centros de mães" constituíram-se numa forma de estru-
do suas horas livres, incorpora-se às oficinas. Mas são sobretudo suas mulhe- turação política em nível de bairro, a partir dos quais fr
equêntemente se orga-
nizaram as JAP, ou seja, as juntas vizinhas de a
res que acorrem a elas. O incremento das possibilidades econômicas bastecimento e preços, através
permitiu-lhes liberar parte de seu tempo para novas atividades. Um exemplo: das quais o governo de Allende tentou romper o bloqueio econômico com
a capacidade de comprar uma máquina de lavar ou de costura, para uma mulher que o cercavam o capitalismo estrangeiro e o nacional com seus aliados, as
que tem quatro ou cinco filhos, permite-lhe reduzir consideravelmente seu associações de transportes e os pequenos comerciantes. Era natural que, depois
horário de trabalho e lhe dá a oportunidade de se dedicar a outras tarefas. do golpe, o fascismo não hesitasse em perseguir esses centros e tentasse con-
O interesse pelo trabalho nas oficinas era tão grande que estas tinham que trolá-los, porque representavam outro dos avanços que o povo realizou duran-
te a experiência de Allende.
permanecer abertas depois dos turnos normais e mesmo nos dias de festa.
Não se pode tratar desi nteressadamente da arte popular, assim como, na
Os grupos artesanais geram, por sua vez, outras atividades. Como se con-
vertem em centros de reunião, no seio de uma prolongada convivência, tomam arte erudita, se analisam as qualidades de suas grandes obras. Isto só existe
em determinados contextos. Nas grandes economias monopolistas, a arte popu-
382 POLÍTICA DAS ARTES

lar não tem condições de sul sistir, pois, de uma forma ou de outra, é absor-
vida e negada desde que tenha obtido algum êxito em algum de seus centros
provincianos. O mercado não permite que nenhuma outra atividade sobre-
viva fora dele. Nas economias primitivas ou subdesenvolvidas, quando sobre-
vivem, essas atividades vegetam. Nas sociedades em vias de transformação
revolucionária, em um sentido de libertação nacional e socialista, essa arte
pode florescer desde que haja duas condições essenciais para isso: a liberda-
de criativa e a alegria popular. Quanto à arte erudita, não há mais condições
para a sua existência, nem nas grandes democracias do Ocidente, nem nos
países de economia socializante. Nos países imperialistas ou capitalistas, não
se pode confundir "liberdade de criação" com o "exercício experimental da
liberdade" que praticam ou podem praticar seus artistas; nos países não mais
capitalistas, até agora, falta a seus artistas, no geral, uma autêntica liberdade
de criação; quanto ao exercício experimental, as condições sociais existentes
ainda não permitem que seus artistas o pratiquem. Nessas condições, a arte
erudita é sempre um produto híbrido.

Paris, julho de 1975.

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