You are on page 1of 14

ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1719

O PERCURSO DA ANÁLISE DO DISCURSO: UM ESTUDO


DA CONTRAPROPAGANDA DO PT

Maria Emília de Rodat de Aguiar Barreto Barros*

Este trabalho foi elaborado durante o cumprimento da disciplina de Análise do


Discurso II, da Pós-Graduação em Letras-Lingüística da UFBA. Consiste em uma pesquisa
dos percursos da Análise do Discurso, objetivando-se, principalmente, traçar o surgimento
dessa área do saber no âmbito dos estudos da linguagem. Nesse traçado, buscou-se definir
alguns conceitos circunscritos a essa área, em forma de resenha: sujeito de discurso, língua
(na perspectiva discursiva), memória discursiva, interdiscurso, intradiscurso, formação
discursiva, ideologia.
Ao fazer tal abordagem, pôde-se também proceder à análise de textos em que havia
a soma do verbal e não verbal, uma vez que a compreensão foi feita no sentido de retomar
os conceitos anteriormente mencionados. Nesse sentido, a escolha das peças se deu por se
entender que “todo texto é heterogêneo: quanto à natureza das linguagens (oral, escrita,
científica, literária, narrativa, descrição etc); quanto à posição do sujeito”. (ORLANDI,
2002, p. 70). Os corpora selecionados dizem respeito à contrapropaganda do PT, no
sentido de desprestigiar o partido. Analisaram-se os textos, pensando-se no contexto de
eleições, e na perpetuação dos governantes no poder. Assim, a candidatura petista era alvo
de críticas daqueles. Tal escolha ainda foi feita baseada no resultado histórico da campanha:
o presidente Luís Inácio Lula da Silva, um dos mais votados do mundo. Isso comprova
também a idéia de sujeito discursivo: o sujeito que significa em condições determinadas.
O trabalho está dividido em três itens, afora a introdução, as considerações finais, a
referência bibliográfica e os anexos: antecedentes da Análise do Discurso; interpretação,
compreensão, ideologia; um exemplo de análise discursiva: a contrapropaganda do PT.

1. ANTECEDENTES DA ANÁLISE DO DISCURSO

Há muitas maneiras de se estudar a linguagem. A primeira delas é a língua como


normas do bem dizer, que está circunscrita à Gramática. Esse modo de observar a língua
advém dos povos antigos: hindus, no Oriente, a partir dos quais prevaleceu o estudo do
“certo e errado”, desde o século IV a.C, pois havia uma preocupação com a compreensão
correta dos antigos textos religiosos “Vedas”. (CÂMARA JÚNIOR, 1975). No ocidente,
tais estudos iniciam-se com os gregos e surge Dionísio de Trácia como o primeiro
gramático ocidental; a “Technē Grammatikē” já determinava os caminhos para introduzir
os falantes na “arte de ler e escrever corretamente”. Tais estudos, apesar de remontarem ao
mundo antigo, ainda são realizados atualmente.
A segunda maneira tem a atenção voltada para a língua enquanto sistema de signos,
ou enquanto sistema de regras formais. Tal perspectiva está circunscrita à Lingüística

*
Aluna do Doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Letras-Lingüística da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Professora de Lingüística da Universidade Tiradentes (UNIT – SE).
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1720

propriamente dita e pode ser exemplificada através da dicotomia saussuriana langue versus
parole. Essa dicotomia, entretanto, provocou a exclusão da fala do campo dos estudos
lingüísticos, uma vez que Ferdinand Saussure colocava a língua como objeto de estudo da
Lingüística (o estudo da língua pela língua). Nesse contexto, era impossível haver uma
discussão acerca do sujeito. Também havia uma exclusão do contexto de realização da
língua, ou seja, das condições de produção. Para ele, a fala era algo individual e, portanto,
uma noção não pertinente lingüisticamente; enquanto que língua era algo abstrato e ideal a
constituir um sistema sígnico sincrônico e homogêneo, desenvolvido no nível fonético,
fonológico, morfológico. Chomsky, por sua vez, na década de 50 do século XX,
contrariando os ideais behavioristas de Bloomfield, postula que há uma faculdade de
linguagem inata. Estuda a competência versus desempenho e afirma que a sintaxe é mais
importante que a semântica, uma vez que aquela é capaz de gerar estrutura. Com isso,
inaugura os postulados da Gramática Gerativa, os quais foram amplamente estudados
durante essa época. Entretanto, questiona-se o fato de como se trabalhar o nível sintático
sem levar em conta o aspecto semântico. E, durante a crise dos estudos acerca da
linguagem, mais ou menos na década de 60 do século XX, questionam-se os aspectos
semânticos, pois não há como se estudar o sistema sem observar o sentido, como explicar o
sentido figurado, como desvendar as dificuldades de tradução.
Por conta disso, alguns estudiosos passam a buscar uma maior compreensão de
linguagem, que esteja distante do ideal de língua como sendo um sistema ideologicamente
neutro, da dicotomia saussuriana. É nesse contexto que surge o discurso, operando a ligação
necessária entre o nível propriamente lingüístico e o extralingüístico. Surge, então, a
terceira perspectiva de estudos da linguagem. Nesta, a palavra é tida como muitas maneiras
de significar. Nesse sentido, assume o centro dos estudos a Análise do Discurso. Esta não
trata da língua, não trata da Gramática, apesar de importarem para o estudo; trata do
Discurso que, por sua vez, significa palavra em movimento, prática de linguagem.
Com o estudo do discurso, observa-se o homem falando, e procura-se compreender
a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico. E o discurso consiste em utilização
da língua por um sujeito em certas condições de produção; é o lugar em que se pode
observar a relação língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por
/ para sujeitos. Os estudos discursivos não separam forma e conteúdo, pois, para tais
estudos, a língua não só é percebida como uma estrutura, mas sobretudo como um
acontecimento. Assim, soma-se a estrutura ao acontecimento, resultando na forma material
vista como acontecimento do significante (língua) em um sujeito afetado pela história.
Segundo Orlandi (2002, p. 19), para a Análise do Discurso:

a) a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente


autônoma (distinguindo-se da Lingüística, ela reintroduz a
noção de sujeito na análise da linguagem);
b) a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos
reclamam sentido);
c) o sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da
língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre
o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o
discurso funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1721

Nesse contexto, a Análise do Discurso é herdeira de três regiões do conhecimento,


quais sejam: a Psicanálise, a Lingüística, o Marxismo. No entanto, não se relaciona com
estas servilmente, pois trabalha uma outra noção: o discurso, ou seja, a Análise do Discurso
constitui um novo objeto que vai afetar essas formas de conhecimento em seu conjunto.
Além disso, a AD, tendo como julgamento a questão do sentido, constitui-se no espaço em
que a língua tem a ver com a Filosofia e com as Ciências Sociais. Nessa perspectiva, a
linguagem é linguagem porque faz sentido e a língua só faz sentido porque se inscreve na
História. (ORLANDI, 2002, p.25).
E, finalmente, para trabalhar o sentido, não algo em si mas com relação a, a Análise
do Discurso reúne três regiões de conhecimento em suas articulações contraditórias:
a. a teoria da sintaxe e da enunciação;
b. a teoria da ideologia;
c. a teoria do discurso, que é uma determinação histórica dos processos de
significação, mas atravessada pela teoria do sujeito de natureza psicanalítica.

A articulação dessas três regiões nos estudos do discurso provoca


uma posição crítica assumida nos anos 60, séc. XX, em relação à
noção de leitura, de interpretação, que problematiza a relação de
sujeito com o sentido (da língua com a história). (ORLANDI,
2002, p.25)

Dada a dimensão dos estudos da AD, em relação ao processo de comunicação,


aquela área do saber também traz contribuições a esta, uma vez que afirma que a língua não
é um código entre outros; não há uma separação entre emissor e receptor, pois estão se
realizando ao mesmo tempo. Assim, não há transmissão de informações, mas um processo
de constituição de sujeitos e produção de sentidos. Como bem afirma Orlandi (2002, p.21):

A linguagem serve para comunicar e para não comunicar. As


relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus
efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o
discurso é feito de sentidos entre locutores.

Além disso, o discurso não corresponde à noção de fala. Aquele tem a sua
regularidade, tem seu funcionamento, o qual é possível apreender se não há oposição entre
o social e o histórico, entre o sistema e a realização; o subjetivo e o objetivo; o processo e o
produto. E a língua é condição de possibilidade do discurso.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1722

2. INTERPRETAÇÃO, COMPREENSÃO, IDEOLOGIA

Segundo Orlandi (2002), toda leitura precisa de um artefato teórico que se efetue.
“A leitura mostra-se como não transparente, articulando-se em dispositivos teóricos” (2002,
p. 25). Nesse sentido, a Análise do Discurso se diferencia da Hermenêutica, pois visa fazer
compreender como os objetos simbólicos produzem sentido, analisando os próprios gestos
de interpretação. Isso significa que a AD não estaciona na interpretação, mas trabalha seus
limites, seus mecanismos, como parte do processo de significação. Assim, não procura um
sentido verdadeiro através de uma chave de interpretação, entretanto, há um método, há
construção de dispositivo teórico. Tal dispositivo tem que colocar o dito em relação ao não-
dito, observando-se o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar. Por
conta disso, devem se levar em conta a ideologia e o inconsciente, descrevendo-se a relação
do sujeito com a memória. Então, não há uma verdade oculta atrás do texto, há gestos de
interpretação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo deve ser capaz de
compreender.
Nessa perspectiva, a compreensão vai além da interpretação. Para esta, o sentido é
construído pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. Quando
se interpreta, já se está preso em um sentido. Enquanto que naquela procura-se saber como
um objeto simbólico (enunciado, texto, pintura) produz sentido; como as interpretações
funcionam. A compreensão procura a explicitação dos processos de significação presentes
no texto e permitem que se possam “escutar” outros sentidos que ali estão, compreendendo
como eles se constituem.
Como a AD tem como objeto o discurso (e este, como mencionado anteriormente,
consiste em utilização da língua por um sujeito em certas condições de produção, é o lugar
em que se pode observar a relação língua e ideologia, compreendendo como a língua
produz sentidos por e para sujeitos), ela visa à compreensão de como o objeto simbólico
produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Isso porque:
“os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas
condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos”.
(ORLANDI, 2002, p. 30)
Ao discurso, como dito, interessam também as condições de produção. Estas dizem
respeito aos sujeitos e à situação; à memória, que também faz parte da produção do
discurso; às circunstâncias da enunciação, isto é, o contexto imediato, em sentido amplo, o
contexto histórico, ideológico. Resumindo, tais condições funcionam de acordo com certos
fatores, o que se chama de relação de sentidos, pois não há discurso que não se relacione
com outros, não há começo absoluto nem ponto final para o discurso: um dizer tem relação
com outros dizeres realizados, imaginados e possíveis. “As condições de produção
implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é
institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário”. (ORLANDI,
2002, p. 40)
No que se refere à memória, esta tem suas características quando pensada em
relação ao discurso. Assim, surge a noção de interdiscurso, de intradiscurso e de memória
discursiva. O interdiscurso corresponde àquilo que se fala antes, em outro lugar,
independentemente, e esquecido. O intradiscurso, àquilo que se diz naquele momento dado,
em condições dadas. E, finalmente, a memória discursiva corresponde ao saber discursivo
que torna possível todo dizer e que o retoma sob forma de preconstruído, o já-dito que está
na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1723

Orlandi, citando Courtine, afirma que este idealiza um gráfico para explicar acerca
das definições de interdiscurso e de intradiscurso. O primeiro corresponde, neste gráfico,
ao eixo vertical, em que se encontram todos os dizeres já ditos, e esquecidos; o conjunto
representa o dizível. Enquanto que, no eixo horizontal, encontra-se o intradiscurso, que
consiste no eixo da formulação, ou o que se está falando naquele momento, em condições
dadas. Entretanto, tal formulação é determinada pela relação que se estabelece com o
interdiscurso. Nesse sentido, o dizer se encontra na confluência dos dois eixos: o da
memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é nesse jogo que se tiram os
sentidos. Estes, por sua vez, realizam-se no ser, pois “são determinados pela maneira como
nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que significam e não pela nossa
vontade”. (ORLANDI, 2002, p. 30)
Quanto à formação discursiva, esta está relacionada à formação ideológica, uma vez
que aquela se define de acordo com esta. Isso significa que, de acordo com uma situação
sócio-histórica dada, define-se o que pode ser dito. Nessa perspectiva, as formações
discursivas são também conceituadas como regionalizações do interdiscurso, configurações
específicas dos discursos em suas relações. É também através da noção de formação
discursiva que se podem compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos.
Então, quando, durante a campanha presidencial (2002 – 2003), os candidatos Lula (PT) e
Serra (PSDB) falavam sobre educação, saúde, desemprego, estas palavras não significavam
para ambos a mesma coisa, haja vista cada um deles pertencerem a formações discursivas
diferenciadas. Enquanto que para Lula, educação tem a ver com construção de sujeitos, de
cidadãos; para Serra, a qualidade do ensino passa por conteúdos elaborados, prédios
exuberantes (segundo publicidade do governo). Saúde para o primeiro tem a ver com
prevenção; para o segundo, tecnologia, e assim por diante.

[...] podemos dizer que o sentido não existe em si mas é


determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no
processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As
palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as
empregam. Elas ‘tiram’ seu sentido dessas posições, isto é, em
relação às formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem. (ORLANDI, 2002, p. 42)

Nessa direção, os estudos acerca do sentido, da semântica também são influenciados


pelo conceito de ideologia, como visto no item anterior. Segundo Marx, a ideologia estava
reduzida a uma categoria filosófica de ilusão ou mascaramento da realidade social, por ele
estabelecer uma crítica ao sistema capitalista. Para ele, a ideologia das classes dominantes
consistia em idéias dominantes. E, nesse contexto, propõe um desnudamento da ideologia
burguesa.
Althusser corrobora tal idéia, afirmando que a classe dominante possui mecanismos
de perpetuação do poder, de reprodução das condições “materiais”, ideológicas e políticas
de exploração. Defende a tese de que o Estado garante a perpetuação da sua ideologia
através de Aparelhos Repressores (polícia, Justiça...) e Aparelhos Ideológicos (Família,
Igreja, Escola, Meios de Comunicação de Massa...). Estes últimos também consistem em
repressão, uma vez que funcionam de modo sutil, inculcando a ideologia dominante, a
reprodução das relações de produção na grande massa dominada (BRANDÃO, 1977).
Nesse contexto, surge a idéia de sujeito assujeitado, por a ideologia dominante controlá-lo,
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1724

através dos Aparelhos Ideológicos do Estado. Dentre tais Aparelhos, a Mídia consiste no
principal e a tecnologia vem acentuar o papel desta. Nessa perspectiva, o sujeito nasce na
ideologia, logo, é assujeitado na ideologia.
Diante desse contexto de assujeitamento, questiona-se acerca da existência das
revoluções ocorridas no mundo, pois se o sujeito é assujeitado na ideologia, não as faria.
No sentido discursivo, surge uma outra perspectiva de ideologia e de sujeito. Para a Análise
do Discurso, a ideologia é condição para a constituição do sujeito e dos sentidos.
Segundo Orlandi (2002, p. 46), “[...] a ideologia não é ocultação mas função da
relação necessária entre linguagem e mundo. Linguagem e mundo se refletem no sentido da
refração, do efeito imaginário de um sobre o outro”.
E acrescenta (2002 p. 48):

Enquanto prática significante, a ideologia aparece como efeito da


relação necessária do sujeito com a língua e com a história para
que haja sentido. [...] é também a ideologia que faz com que haja
sujeitos. [...] nem linguagem, nem sentidos nem os sujeitos são
transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em
processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem
conjuntamente.

Nesse sentido, nega-se a idéia de sujeito assujeitado e justifica-se a existência das


revoluções em todo mundo. Entretanto ainda existe uma ambigüidade: o sujeito, que se
determina o que diz, é determinado pela exterioridade na sua relação com os sentidos. Mas
é condição da linguagem a incompletude, pois nem os sujeitos nem os sentidos estão
completos.
Enquanto o sujeito significa em condições determinadas: a língua, o mundo, as
experiências, os fatos, a memória discursiva; os fatos fazem sentido por se inscreverem em
formações discursivas que representam nos discursos as injunções ideológicas. O discurso
tem na língua e na história sua materialidade.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1725

3. UM EXEMPLO DE ANÁLISE DO DISCURSO: A CONTRAPROPAGANDA DO PT

Charge representativa da “evolução” do candidato Lula à Presidência da República2

1989/90 1994/95 1998/9 2002/033

A charge “A Evolução do“Homi”” consiste em um discurso que desautoriza a


candidatura, por apontar a eternização do posto de candidato de Luís Inácio Lula da Silva.
A própria palavra “evolução” parte do pressuposto de que havia um estágio de
“involução”. Tal evolução remete ainda ao quadro de evolução da espécie homem,
enquanto tal, do macaco ao homo sapiens. Nesse contexto, para entendê-la há a necessidade
de se articular a memória discursiva, o conhecimento enciclopédico, o interdiscurso. Além
disso, o “Homi” (entre aspas e assim escrito) remete o leitor à fala estigmatizada de
homem. O artigo “o” induz a uma ambigüidade: a) define o homem de quem se pretende
falar; b) remete para o homem enquanto espécie. Tal ambigüidade provoca riso, uma vez
que o chargista remete o leitor para o desenvolvimento / a evolução (e aí essa palavra
significa desenvolvimento) de Lula enquanto uma espécie. Essa lógica é evidenciada pela
denominação de cada fase desse homem, utilizando-se, supostamente, terminações latinas,
de acordo com as nomenclaturas científicas:
“Lula primatus” → refere-se ao surgimento do candidato / o conhecimento dele
pelas massas populares. Além disso, remete o leitor a uma fase do candidato quando era
considerado primitivo, grosseiro, analfabeto, enfim, como um “primatus” ( primata).
“Homo grevistus” → em que “grevistus” corresponde a uma fase desse homem.
Apesar de haver uma politização do candidato, no sentido de ser capaz de reivindicar
mudanças, numa época de existência da ditadura militar, o chargista o coloca ainda num
estágio de pouca evolução, enquanto linha evolutiva da espécie. Há, nesse sentido,
comparando-se com o último estágio, a idéia de evolução que corresponde a valores
burgueses: vestimentas, postura...
“Candidatus eterni” → apesar de o candidato já estar numa postura próxima a de
homo sapiens, o chargista remete o leitor a um estado de eternidade de sua candidatura e,

2
Correspondência recebida, por e-mail, no dia 11/11/02 às 12:47:30, com o título da evolução. Site ignorado.
3
Datas acrescentadas pela pesquisadora.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1726

portanto, de fracasso, por conta de mais uma eleição perdida. Mais uma vez desautoriza a
candidatura, por deixar perpassar a idéia de insistência.
“Lulinha sapiens” → denominação irônica, aponta para a só então constituição do
candidato enquanto espécie humana. E o próprio sufixo –inho apresenta uma ambigüidade,
haja vista poder significar: o lado de menosprezo, conotando um homem menor; ironia;
aproximação, intimidade (segundo os jornais, mais “light”) com as elites do país. As
vestimentas são representativas das elites: gravata, sapato social; garrafa de “vinho caro”4
nas mãos. Tudo isso corrobora a imagem de aproximação desse candidato com as elites
sociais. Ademais, a cor vermelha, representação do PT, só se encontra na estrela - no peito -
e na gravata, conotando também um distanciamento do candidato das ideologias partidárias
radicais. Por conta disso, tal imagem aponta para a última fase de evolução da “espécie
Lula”, quando chega a “Presidentum est”. Essa fase é caracteristicamente figurativizada
desde uma possível “progressão das vestimentas” até o “V” / “L” da vitória. Além disso,
essa fase é representada pelo “Homem ereto”!
Essa charge revela ainda uma carga ideológica implícita: só pode ser presidente
aquele que passa por um estágio “evolutivo” ou que faz parte das elites sociais; o pobre,
analfabeto, pode ser comparado ao “homem-macaco”, ou seja, ainda quadrúpede, uma vez
que o estágio “Lula primatus” representa esse homem advindo desse contexto.
Além disso, as cores significam um expediente de argumentação. Nesse sentido, há
um esvaziamento do candidato Lula, pois, à medida que “evoluía”, tornava-se fútil. Isso
porque a cor vermelha que, no quadro, representa os dois primeiros estágios, simboliza uma
cor ativista; enquanto que a terceira, a laranja (3º estágio, respectivamente) a cor dos
indecisos. A amarela, por sua vez, conota a sensação do vazio. E, finalmente, o preto
representa, para a nossa sociedade, tanto o requinte, a sofisticação, quanto o luto. Essa cor
está presente também no título do texto.
Quanto aos instrumentos utilizados pelo “homi”, vão de ferramentas para
encanador, remetendo ao fato de ele ter sido torneiro mecânico, passando pelo alto-falante,
enquanto grevista; charuto na boca, na fase de “indecisão”; garrafa de vinho, elitização do
candidato; até a faixa presidencial.
Isso só pode ser percebido na medida em que, diante de um texto, remete-se a um
discurso, explicitando-o nas regularidades, nas formações discursivas, pois: “o que nos
interessa não são as marcas em si mas o seu funcionamento que procuramos descrever e
compreender”. (ORLANDI, 2002, p. 65)
Nesse contexto, a charge consiste em uma representação discriminadora da história
da ascensão do candidato Lula à Presidência da República, principalmente, no que diz
respeito às suas origens humildes, apontando, então, para a impossibilidade de as massas
ascenderem. No entanto, nem todos apreendem tal discriminação exatamente por ela estar
circunscrita às informações implícitas, como anteriormente mencionado, mas, como faz
parte do gênero piada, vai provocar o riso, mesmo nos mais ingênuos.

4
Fato ocorrido entre os dois candidatos à presidência, quando Serra criticou Lula por estar bebendo um vinho
caro (R$: 200,00 a garrafa). Este respondeu que o pobre também sabia saborear os bons vinhos.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1727

Capa da Revista Veja (veiculada no dia 23/10/02)5

Na semana do 2º turno das eleições à Presidência da República (23/10/2002), esta


capa foi veiculada pela revista Veja. O monstro que é “pintado” pela revista traz em seu
pescoço a estrela vermelha, símbolo do PT. Não é um monstro de “sete cabeças”, segundo
o ditado popular, mas de “três”, os quais assustam a população com seus ideais
revolucionários. Essas cabeças sempre foram “pintadas” como figuras demoníacas, mesmo
quando existia o bloco de países comunistas. Depois, com a “Queda do Muro de Berlim”,
final da década de 80, do século XX, tais idealistas foram ainda mais tidos como
demonistas, haja vista o estado em que se encontravam os países que pertenciam àquele
bloco. Logo, esses idealizadores, veiculados por uma revista, e com “caras” de malignos,
às vésperas de eleição, vieram trazer à tona o “medo” daquele sistema que poderia
empurrar o Brasil para “o fundo do poço”. Afinal, seria um sistema de “terror”, segundo a
visão dos reacionários. Tal sentimento sempre foi inculcado pelo capitalismo nas
sociedades em que esse sistema é vigente. Isso significa uma retomada ao ideal de terror ao
socialismo.
O monstro representa a figura do demônio, por figuratizar alguns de seus aspectos:
o rabo de Satã, segundo o ideal dessa figura, inculcada pela Igreja Católica; as unhas
também são de acordo com o ideal de tal personagem, inculcada na mente da coletividade;
ele está preso a cordas vermelhas (cor do PT e do demônio), possivelmente puxadas por
líderes petistas (os 30% mencionados no slogan).
Cada uma das cabeças traz nomes de personalidades importantes para o socialismo:

5
http://www2.uol.com.br/veja/23/10/02/sumario.html. Acessado em 28/11/02
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1728

Karl Marx, grande idealizador do comunismo, autor do “Manifesto Comunista” e


“O Capital”, através dos quais idealizava o homem justo e social, defendendo as bases
humanistas, que iam de encontro à filosofia capitalista. Para ele, o capitalismo era apenas
uma etapa. Esse manifesto significava retrocesso para os ideais capitalistas: a teoria do
livre mercado, do capital e, posteriormente, da qualidade total.
Lênin e Trotsky6 foram contemporâneos, mas não estavam no mesmo partido.
Lênin procurou ser o máximo possível fiel ao marxismo e, por conta disso, foi significativo
para a União Soviética. Foi ele quem conseguiu industrializar esse país econômica e
politicamente. Foi o grande instaurador do socialismo. No entanto, Lênin morre e assume
seu lugar Stalin. Enquanto aquele significou progresso, este implicou em retrocesso para
este país. Segundo dizem, era um visionário economicamente, mas um dinossauro
politicamente. Nesse sentido, perseguiu seus adversários e chegou a matar mais do que
Hitler. Ele não se incomodava com os comunistas dos outros países, daí o retrocesso
político. Por conta disso, tornou-se grande perseguidor de Trotsky que, por sua vez,
defendia a intervenção da União Soviética na defesa dos comunistas nos outros países, no
intuito de fazer a revolução social no mundo. Assim, é perseguido por Stalin, deportado
para o México, onde foi assassinado por ordem de Stalin.
Diante desse contexto histórico, infere-se que os três simbolizavam a difusão do
socialismo para o mundo, o que significa um grande “perigo” para a humanidade. No
entanto, “não vemos nos textos os “conteúdos” da história. Eles são tomados como
discursos, em cuja materialidade está inscrita a relação com a exterioridade”. (ORLANDI,
2002, p. 68) Essa história está materializada na gravura do monstro com as cabeças dos
líderes acima estudados.
Além da linguagem não-verbal, a revista associa dois “slogans”: 1. “O que querem
os radicais do PT” (em letras bem visíveis), abaixo segue, com letras menores: “Entre os
petistas, 30% são de alas revolucionárias. Ficaram silenciosos durante a campanha. Se
Lula ganhar, vão cobrar a fatura. O PT diz que não paga”; 2. “Brasil: o risco de um calote
na dívida”. O primeiro remete o leitor às possíveis intenções petistas: transformar o Brasil
num país “comunista” e, portanto, algo inaceitável para os dias de hoje. Além disso, aponta
para o que 30% da ala petista está preparada, apesar de silenciosa. A conjunção “se”, além
de estabelecer uma condição, aponta para uma ameaça. O segundo, praticamente, revela
uma conseqüência do primeiro: esse país, comprometido com o FMI, iria dar-lhe um calote,
o que significa pressão internacional, e, mais uma vez, motivo para a instauração do medo.
Com essa capa, a revista Veja faz um apelo a toda sociedade brasileira que não vote
no candidato petista, lembrando-lhe o terror que tal candidato poderia trazer ao Brasil.
Claramente, a revista satanizou o PT, num apelo quase dramático, numa contrapropaganda
de caráter terrorista, uma vez que amedrontava a população com a figura satânica: a dos
líderes comunistas.
Ao mesmo tempo em que a mídia tentava satanizar a imagem petista, ela retomava a
mesma idéia da ditadura militar, durante a qual o comunista era tido como vilão, “comedor
de criancinhas”, ateu etc. Isso revela o caráter de produtividade da mídia e não de

6
Informações retiradas a partir da resenha do livro “Uma Revolução Perdida – A História do Socialismo
Soviético”, de Daniel Aarão Filho, feita pelo aluno, Francisco Sá Barreto dos Santos, do curso de História
Contemporânea II, para a Profa. Dra. Suzana Cavani, Universidade Federal de Pernambuco, maio de 2002.
Material não publicado (mimeo)
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1729

criatividade, pois retoma o mesmo e antigo discurso do medo, do “Bicho Papão”, ou seja, é
a mesma novela contada muitas e muitas vezes, com muitas variações.
Essa leitura só pôde ser feita, acionando-se a história e, com conhecimento de tais
fatos, pôde-se construir uma compreensão da representação simbólica daquilo que se
pretendia uma “inocente” capa de revista.
Trabalhou-se, nesse sentido, a materialidade histórica da linguagem, e o texto
consiste na unidade de análise e constitui essa materialidade, como unidade de sentido em
relação à situação.

Capa da Revista Época (veiculada em 04/11/02)7

Uma semana após as eleições, dia 04/11/02, a revista Época veiculou em sua capa a
fotografia de Lula, agora o presidente historicamente mais votado pelo povo. Tal pintura,
lado a lado com um mendigo, revela a comparação entre Lula e esse mendigo. As
fisionomias dos dois também demonstram as intenções de comparação entre ambos.
Somada a isso, manchete da revista: “Lula: um sonho popular”, em que o nome “Lula” se
encontra grafado em letras vermelhas, identidade petista; e o “Um sonho Popular”, em
letras brancas, que culturalmente é a cor da paz. Logo, a população, nesse instante estaria
representada por um sentimento de paz, de esperança. Abaixo, em letras menores, uma
outra manchete corrobora tal argumentação, afirmando: “O país não mudou. Mas há uma
nova esperança nas ruas”. É importante observar ainda a construção adversativa desse
período, uma vez que a segunda oração, a coordenada sindética, introduzida pela conjunção
mas é a que possui um maior peso argumentativo, por consistir em destruição do 1º

7
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/o,6993.Esp/88-1654,00.html. Acessado em 28/11/02.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1730

argumento. Isso significa que, discursivamente, a oração “Mas há uma nova esperança nas
ruas” é mais significativa que a primeira, “O país não mudou”.
Nesse contexto, a capa da revista perpassa o ideal de fé, de esperança do povo
brasileiro, no sentido de haver ascensão social. No entanto, retomando-se a charge
analisada neste trabalho, reitera-se a idéia de “evolução da espécie”, perpassada em ambas
as figuras: a de evolução e a de Lula, antes mendigo, agora presidente. Nesse contexto, há
uma ambigüidade textual, no sentido de desvalorização e valorização simultaneamente,
pois aquele que antes era torneiro, passa a presidente; aquele que antes era mendigo, passa
a presidente. Questionam-se, então, as expectativas acerca desse presidente que era
torneiro, era um homem do povo, um mendigo.
Tal remissão foi feita, uma vez que se sabe que o objeto empírico é inesgotável, pois
um discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. É o
jogo entre o interdiscurso (o já-dito e esquecido) e o intradiscurso (a formulação). Nesse
sentido, mais uma vez, a mídia instaura a incerteza na mente das pessoas, através de textos
que veiculam ideais burgueses de sociedade, de povo, de política.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto das eleições pode haver uma comparação / contraste entre o que foi
veiculado pela Mídia, no sentido de se constituir uma contrapropaganda, e o resultado das
urnas, depois concretização das eleições. Apesar de um discurso antigo de medo e terror
contra os ideais socialistas terem vindo à tona, o povo insistiu em optar por mudanças e,
leiam-se, mudanças radicais. Mesmo tido como “Lulinha light”, pode-se inferir que a
ideologia partidária defendida pelo candidato é a do PT, cujas idéias são voltadas para o
socialismo, o humanismo, enfim. Isso significa dizer que, embora tenha havido toda uma
inculcação das idéias de direita, o povo votou contra os ideais desse Estado.
Nessa perspectiva, o povo brasileiro se constituiu, talvez pela primeira vez na
História, sujeito nas eleições, isto é, a partir do seu lugar, enquanto povo, disse o que disse,
em dadas situações. Conseguiu, então, produzir sentido a partir da ideologia, mesmo que
essa tenha sido de direita. Assim não houve assujeitamento, ao contrário, o povo se
constituiu como tal e produziu uma revolução no Brasil: a primeira ascensão de um homem
do povo, esquerdista. Ele pôde, dessa vez, efetuar o jogo entre eixos da memória
(constituição) e da atualidade (formulação), e produziu o sentido, desmascarando a velha
ideologia de direita. E, como afirma a AD, a ideologia é condição para constituição do
sujeito e dos sentidos.
Fez-se essa leitura a partir dos “corpora” escolhidos e do contexto eleitoral. Nesse
sentido, tentou-se proceder a uma análise o menos subjetiva possível, explicitando-se,
assim, o modo de produção de sentidos do objeto em observação. Sabe-se, no entanto, que
a subjetividade faz parte do ser e, portanto, admite-se a possibilidade de tal existência.
Concorda-se, então, com a afirmação de Orlandi (2002, p.70) com a qual se finaliza
este trabalho: “Compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, é
compreendê-lo enquanto objeto lingüístico-histórico, é explicitar como ele realiza a
discursividade que o constitui”.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1731

REFERÊNCIAS

BARROS, D. L. P. Dialogia, polifonia e enunciação. In BARROS, D. L. P de, FIORIN, J.


L. (org.). Dialogia, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2003.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: UNICAMP, 1977.
CÂMARA JR., J. M. História da lingüística. Petrópolis: Vozes, 1975.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,
2002.
ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas:
Pontes, 2001. (115 -133)
PASTOUREAU, M. Dicionário das cores do nosso tempo. São Paulo: Estampa, 1993.
ANAIS DA XX JORNADA – GELNE – JOÃO PESSOA-PB 1732

You might also like