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Diário de Vaticínios.

Estava sentado e lia um diário com confissões que não eram suas. Não mais.
Lia uma passagem que narrava sobre o momento em que chegara ao banco de praça, onde
agora estava, e encontrara o diário, um velho diário que muito se assemelhava ao caderno que
pretendia comprar numa papelaria perto de sua casa quando, mais tarde, se encaminhasse para o
repouso, o diário que agora lia narrava tudo o que acontecera até que ele o lê-se.
Um diário de vaticínios. Foi a conclusão que chegou após ler as poucas páginas que
antecediam a passagem que lera inicialmente. Nestas o autor escreveu num estilo intimista e de
forma não muito objetiva alguns acontecimentos que levaram o leitor a identificar-se com o redator
de uma forma tal que só poderiam haver duas explicações:
a) Aquele que escreveu o conhecia intimamente e agora queria pregar-lhe algum
tipo de brincadeira de mal-gosto e controlar-lhe o comportamento afim de
provar alguma premissa;
b) O autor do diário era ele mesmo e por isso deixara o diário ali sobre o banco
da Place de la Concorde de fronte a Chámps Élisée Avenue onde costumava

*
Marcos Cristiano Dos Reis é formado em teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) Intellectus Fidei e
graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás.

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sentar-se para meditar.
Lembranças de um futuro que não acontecera, mas que era exposto como passado,
juntamente com memórias de um passado que ninguém mais conhecia, mas narradas como se
fossem públicas. Tudo estava ali, naquelas palavras, nas palavras tudo está.
A letra evidentemente era a dele, era levemente inclinada para a direita, os “t”s e os “v”s
eram escritos isolados do restante das palavras, uma peculiaridade da forma de escrever que o leitor
trazia desde a adolescência.
O diário de capa azul, gasta pelo uso e com o amarelo das páginas marcadas pelo tempo
trazia um fecho de metal que imitava uma cabeça de cavalo, isto o distinguia como um dos raros
diários produzidos pela Dark Horse. Ele mesmo trabalhava na Dark Horse e só haviam quinhentos
exemplares lançados a não mais que quinze dias em virtude da comemoração dos sete anos da
primeira publicação em quadrinhos da obra de James: Sense of Past, feita por aquela editora.
Como aquele diário poderia parecer tão gasto e velho? E como alguém deixaria algo tão
caro abandonado em um banco da Place de la Concorde?
Mas tais preocupações não lhe ocupavam tanto a mente quanto a preocupação gerada pela
constatação que o autor cuidara de espalhar pistas de sua identidade em todo o conteúdo do diário.
Não somente o nome e os dados pessoais, que eram os mesmos que os do leitor, com
exceção do endereço que havia sido riscado e sobre ele anotado um novo que o leitor não
conhecia. Ou os desenhos rascunhados nos cantos das páginas. Mas sobretudo a narração de fatos
muito íntimos do passado do leitor, fatos que o marcaram profundamente e que ninguém, da sua
convivência, naquele momento histórico, tinha conhecimento.
Como, por exemplo, quando, no passado, a namorada o preteriu e ao fazê-lo declarou que
ele “não a satisfazia como mulher”. Ou o fato de que em seu presente ele tinha que conviver com
outra frustração afetiva presenciando aquela que ele ama namorando com outro em sua frente e
manter-se calado ante tal situação. Fatos que endureceram o seu coração, que o vergaram
levemente e o tornaram tão isolado quanto os “t”s e os “v”s que ele utilizava em sua grafia.
As pistas eram tantas e tão convincentes que levaram o leitor, inexoravelmente, à conclusão
de que ele mesmo era o autor de tais escritos.
Sobre os eventos narrados que remetiam ao passado ele não via problemas, mas
incomodava-lhe não lembrar-se de ter escrito sobre os mesmos. Incomodava mais ainda ver sua
letra grafada em um alfarrábio que nunca lhe pertencera.
Ao ler confrontava-se com um estado de coisas que iam além do que estava expresso no
texto e, de certo modo, do que o autor estava em condições de expressar como suas intenções
específicas. Como sujeito da interpretação, o leitor, se inseria “naturalmente” no texto a partir de

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um caminho que buscava superar o fosso que o separava do texto acessando um campo de jogo por
ele mesmo construído. Ao fazê-lo foi conduzido a uma interpretação que teve que admitir como
insuperável.
Escreveu o diário no futuro com a finalidade única de trazê-lo ao passado para explicar as
conseqüências das decisões que tomaria em breve. Ao pensar nisto o leitor fechou o diário que
olhava, apesar de já não percebê-lo, absorto que estava nas elucubrações que o tomavam
avalassadoramente e lembrou-se das dificuldades que vinha passando e nas ponderações que estas
motivavam. A pergunta em sua mente já não era sobre a plausibilidade das viagens no tempo, ou
sobre a (im)possibilidade de mudar o futuro, mas sobre as conseqüências das decisões que haveria
de tomar.
E se ao ler o diário as decisões que tomasse a partir dele o futuro se confirmasse? E se o
futuro não fosse horrível como supunha? (Este último e persistente pensamento sempre afastava de
sua mente argumentando que se não houvesse algo obscuro nele, no futuro, não haveria motivos de
voltar ao passado). O futuro nunca é o mesmo quando nele, a partir do presente/passado, refletimos.
Abriu novamente e leu na anti capa do surrado diário que o autor astutamente havia anotado,
como que antevendo estes pensamentos e reações:
“Sua decisão já foi tomada , por isso abriu o diário novamente”
Ao questionamento que formava-se em sua mente sobre a possibilidade de escolhas livres,
caso o autor tenha previsto o que pensara e a forma como reagiria, também havia uma anotação
sucinta e enigmática:
“Estamos aqui para fazer o que estamos aqui para fazer, e é assim que o que deve ser feito
deve ser feito”.
Agora o leitor encontrava-se ante o dilema: deveria decidir se daria crédito aos “seus”
escritos ou não. E da sua decisão o futuro se constituiria. Pensou em tudo o que lera até aquele
momento e nas últimas palavras da anti-capa do diário, já estava sentado naquele banco de praça a
mais de uma hora e agora deveria partir.
Levantou-se ainda com os pensamentos a ferros, em devaneios e inquietações sobre a
possibilidade insólita de uma teleologia que o unisse ao irrefreável destino do futuríco autor.
Pensava sobre a enigmática expressão do final da anti-capa: “Sapere Aute”. Que em sua percepção
ainda nublada pelas dúvidas coadunava com a frase que o intrigara inicialmente quando sentou-se
no banco.
Toscamente rascunhada na capa azul e gasta, cujo o cavalo de metal mostrava ferrugens
como marcas do tempo, lia-se:

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“SE NÃO ESTIVESSE ESCRITO VOCÊ O TERIA NOTADO?”
Cuidadosamente retirou a rosa que trazia na lapela de sua jaqueta e a depositou entre as
páginas do diário deixando-os delicadamente sobre o banco. Respirou fundo e sem olhar para os
lados partiu.
Depois de algum tempo passado sai do café donde observei toda a ação e dirigi-me ao banco
da praça. Sem pressa acomodei-me. Tomei o diário em minhas mãos e o abri na página que a rosa
marcava.
Ali o leitor havia anotado, talvez em resposta à pergunta alçada:
“A linguagem é a morada do ser”
Por alguns momentos observei os transeuntes a entrar e a sair na campos elísios e depois
voltei a escrever.

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