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O PARANGOLÉ

Antonio Cicero1

Hélio Oiticica chamava o Parangolé de "antiarte por excelência". 1 Trata-se de uma


espécie de capa (lembra ainda bandeira, estandarte, tenda) que não desfralda
plenamente seus tons, cores, formas, texturas, grafismos ou as impregnações dos
seus suportes materiais (pano, borracha, tinta, papel, vidro, cola, plástico, corda,
esteira) senão a partir dos movimentos -- da dança -- de alguém que a vista. O
Parangolé foi descoberto (é a palavra que Hélio emprega) em 1964. Muita coisa
tem sido dita sobre esse estranho objeto e em particular as palavras de Waly
Salomão são admiráveis: "O primeiro Parangolé foi calcado na visão de um pária
da família humana que transformava o lixo que catava nas ruas num conglomerado
de pertences"2. Quero porém observar o Parangolé em primeiro lugar como parte
do processo brasileiro de radicalização do construtivismo.

Contra o clichê que, tomando o homem tropical -- logo, o brasileiro -- como um


escravo da natureza circunstante, dos vícios ou das paixões que sofre, o reduz à
passividade, pode dizer-se, com Hélio Oiticica, que "uma vontade construtiva
geral" constitui a primeira característica da arte brasileira de vanguarda. Não é
retrospectivo, é visionáriamente prospectivo e febrilmente racional o olhar do país
que projetou e construiu Brasilia. O Brasil se concebe como o verdadeiro crisol em

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Este ensaio faz parte do livro de Antonio Cicero O mundo desde o fim (Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1995; Vila Nova de Famalicão: Quase, 2009).
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que os dados naturais ou artificiais, raciais ou culturais se mediatizam, fundem e


refundem criativamente. Nessa experiência, que nos impele a ser o "país do
futuro", segundo a famosa expressão de Stefan Zweig, se encontra nossa paradoxal
distinção, isto é, nossa força.

Foi sem dúvida em virtude de um olhar voltado para o futuro que, na 1 a Bienal de
São Paulo, em 1951, a peça Unidade Tripartida, do artista concretista suíço Max
Bill, causou grande impacto em alguns jóvens artistas brasileiros, principalmente
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Como se sabe, os concretistas rejeitam
radicalmente todo ilusionismo e alusionismo. Chamam a sua arte de "concreta" e
não "abstrata" justamente porque, nas palavras de Theo Doesburg, "nada é mais
real do que uma linha, uma cor, uma superfície... Uma mulher, uma árvore, uma
vaca são concretas no estado natural, mas no estado de pintura são abstratos,
ilusórios, vagos, especulativos, ao passo que um plano é um plano, uma linha é
uma linha, nem mais nem menos"3. Contra o ilusionismo/alusionismo, não só a
pintura concreta mas toda pintura construtiva se desfizera, desde a primeira metade
do século, tanto da perspectiva quanto da cor natural. A superfície não almejava
mais que suas duas dimensões reais. O quadro, que já não se abria mais feito uma
janela para outras coisas, não pretendia representar mais nada. Ele simplesmente se
apresentava. Conservava, contudo, a forma de uma janela e o enquadramento ainda
evocava o espaço virtual4 da representação.

Abramos um parêntese. Se tomamos o construtivismo como a disposição de, num


primeiro momento, decompor radicalmente "o conteúdo representacional e os
limites técnico-formais"5 das artes plásticas, descobrindo, por assim dizer, os
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elementos puros com os quais, num segundo momento, poder-se-á proceder à re-
construção do mundo, entendemos que, fugindo ao naturalismo, ele pode se valer
da fenomenologia na tentativa de reconstituição da experiência elementar pré-
reflexiva ou mesmo antepredicativa. Assim, para Merleau-Ponty, "a linguagem da
pintura não é instituída pela natureza: está por fazer-se e refazer-se"6. É o que
permite a Hélio Oiticica pensar em "transformar o que há de imediato na vivência
cotidiana em não-imediato; eliminar toda relação de representação e conceituação
que porventura haja carregado em si a arte" 7. Ou seja: a epoché fenomenológica
permite pensar com um novo rigor não-cientificista a radicalização do espírito
originariamente construtivo que, recusando qualquer noção tradicional, pretende
reconduzir a arte ao ponto zero. Hélio diz, com razão, serem construtivos "os
artistas que fundam novas relações estruturais, na pintura (cor) e na escultura, e
abrem novos sentidos de espaço e tempo"8. O preço disso, porém, não pôde deixar
de ser o rompimento com a letra do concretismo que, naquela época, parecia
pretender transformar a figura tradicional do artista na do projetista e,
positivisticamente recusando o que considerava como o mito do artista, se
orientava para a imagem do designer, do profissional do desenho industrial. Tal
rompimento foi a opção feita por alguns artistas cariocas que chamavam sua arte
de neoconcreta.

Pois bem, esses artistas, em particular Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape,
que privilegiavam a experimentação e a pesquisa da linguagem plástica --
características do construtivismo autêntico -- realizam pinturas que dispensam o
enquadramento e o espaço virtual que, com isso, se revelam como convenções
tradicionais, isto é, como preconceitos. O quadro não é necessário para que se dê a
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pintura pura. Deve-se frisar que nenhum dos três abandona o quadro num gesto
contra a pintura mas, ao contrário, por radicalizar a exigência da imanência da
pintura. Ou seja, para eles, a pintura em si dispensa o enquadramento e o espaço da
representação. Hélio diz que o fim do quadro, "longe de ser a morte da pintura, é a
sua salvação, pois a morte mesmo seria a continuação do quadro como tal, e como
`suporte' da pintura... A pintura teria que sair para o espaço"9. Podemos acrescentar
que, na medida em que, para Hélio, a pintura caracteriza-se principalmente pela
cor, ela dispensa tanto o quadro quanto a composição. Hélio chama agora o que faz
de "estruturas-cor no espaço e no tempo"10: "a chegada à cor única, ao puro espaço,
ao cerne do quadro, me conduziu ao próprio espaço tridimensional... Já não quero
o suporte do quadro, um campo a priori onde se desenvolva o `ato de pintar', mas
que a própria estrutura desse ato se dê no espaço e no tempo... Dessa nova posição
e atitude foi que nasceram os núcleos e os penetráveis" 11. Sobre o Penetrável, diz
ele que "abre novas possibilidades ainda não exploradas dentro desse
desenvolvimento, a que se pode chamar construtivo, da arte contemporânea"12.

Assim também, o Parangolé tem o efeito de "liberar a pintura dos seus antigos
liames". Mas a pintura do Parangolé já não é só -- nem principalmente -- pintura.
Trata-se de algo que, em determinado momento, Hélio descreveu através da
mesma expressão que empregava para conceituar os Bólides: "transobjeto". O
transobjeto é feito com as mais diversas técnicas, dos mais diversos materiais
(plásticos, panos, esteiras, telas, cordas etc.) que, no entanto, parecem se esquecer
do sentido de suas individualidades originais ao se refundirem na totalidade da
obra. Mais importante: o Parangolé não pode ser exposto como uma pintura
convencional. Ele deve ser não apenas visto mas tocado: e não apenas tocado mas
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vestido. O corpo compõe com o Parangolé que veste uma unidade sempre nova. "O
ato de vestir a obra já implica uma transmutação expressivo-corporal do
espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição". A dança de
quem veste o Parangolé não apenas o revela ao espectador que o não veste mas
principalmente ao dançarino mesmo que, nesse processo, se revela a si próprio. O
Parangolé em si constitui o começo e o fim do círculo, a partir do qual o corpo se
faz obra e o dançarino, espectador. Talvez possamos dizer que, quando alguém
veste um Parangolé, compõe com ele um novo transobjeto. Assim, oriundo da
pintura -- e em nome da pintura -- o Parangolé rompe com a pintura. Trata-se
mesmo, uma vez que extrapola do âmbito da visibilidade para o da tactibilidade, de
uma antipintura. Nem o seu modo de produção nem o seu modo de exposição nem
o seu modo de fruição pertence a qualquer das belas artes tradicionais.

Em que sentido, então, pode-se afirmar que o Parangolé seja "antiarte"? É sem
dúvida correto assim caracterizá-lo precisamente nos dois sentidos em que
acabamos de chamá-lo de "antipintura". Em primeiro lugar, no sentido de que não
pertence a nenhuma das artes tradicionais. Em segundo lugar, no sentido de que
somente pode ser fruido enquanto compõe com o próprio fruidor um novo
transobjeto, o que não ocorre nas obras plásticas tradicionais. Nesses sentidos,
porém, a antiarte não passa de uma forma não-convencional de obra de arte.
Entretanto, a palavra "antiarte" pode ter um terceiro -- e mais forte -- sentido, em
que se relaciona com a expectativa do fim da arte ou do fim da obra de arte. Eu
mesmo já cedi à tentação de considerar o Parangolé como antiarte nesse terceiro
sentido. Penso, porém, que estava então enganado. Embora não se atualize
plenamente senão quando vestido por alguém que com ele dance, o Parangolé não
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deixa de ser obra. Ele não consiste em roupa ou adereço, que sirva para agasalhar,
cobrir, expressar ou enfeitar quem o usa; nem em fantasia, que sirva para
disfarçar/expor seu usuário. O Parangolé não serve para nada; é quem o usa que
serve para revelá-lo. Em outras palavras, ele não é simplesmente mediatizado por
quem o veste. Quem o veste pode senti-lo até como um brinquedo, um desafio ou
um trambolho, mas em momento algum se acostuma com ele ou se esquece de que
ele possui a distinção de uma identidade própria, caprichosa, irredutível. O
Parangolé não é confortável. Dança-se com ele, mas é ele quem guia a dança. Ele é
o anti-instrumento. Trata-se, portanto, de algo que, sem pertencer mais ao âmbito
da pintura, onde se originou, recusa-se a abandonar o âmbito da arte e se afirma
irredutivelmente como obra. Na década de sessenta, o poeta Ferreira Gullar, um
dos teóricos do movimento neoconcreto, propôs a Hélio "uma exposição para
destruir tudo, uma exposição com hora marcada, começando às 17 e terminando às
18 horas. A proposta era colocar um dispositivo explosivo dentro das obras. O
pessoal vê as obras, quando chegar às 18 horas a gente pede pra sair todo mundo
pois a exposição vai acabar, e detona a exposição... Hélio respondeu simplesmente:
`eu não vou destruir minhas obras'"13. Lembro-me da afirmação de Hegel de que "o
homem, na medida em que quer ser efetivo, tem que existir e, para isso, deve
limitar-se. Quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a efetividade
alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio."14 Em meio ao turbilhão,
Hélio permanece artista e, no limite, reafirma a diferença entre obra e vida,
condição necessária do mundo.

Na verdade, talvez o mais impressionante em Hélio Oiticica é que, tendo


metodicamente provocado e experimentado o cáos da quebra das categorias, tenha
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sido capaz de se tornar o parteiro de uma obra mundificadora, isto é, de uma obra
que, patentemente, abre um novo e claro cosmo. Metaesquemas, Bólides,
Penetráveis, Ninhos, Barracões, Cosmococas, Quasi-Cinemas, Parangolés etc. são
elementos numinosos que, embora possam fazer parte do plano do Éden, resultam
de um processo de decantação crítica do mundo real, de onde manifestamente
provêm. Hélio diz ter descoberto a dança "por uma necessidade vital de
desintelectualização, de desinibição intelectual,... de livre expressão"; e completa:
"seria o passo definitivo para a procura do mito, uma retomada desse mito e uma
nova fundação dele na minha arte"15. Na Grécia de Homero, mythos, como épos,
quer dizer palavra. Mas enquanto épos quer dizer o significante memorizado ou
guardado -- seja um único vocábulo, seja um poema longo como a Odisséia --
mythos quer dizer a palavra que não se guarda, a palavra que se esquece, a palavra
que escapa e se perde: e também quer dizer significado. O poeta é aquele que faz
épe, significantes, formas. Ora, tanto a palavra "Parangolé" quanto o objeto
Parangolé são significantes ou épe. O seu significado ou mythos é a dança que o
Parangolé provoca, o "ato expressivo direto" que nos remete, por exemplo, a
Mangueira ou a Jimmy Hendrix ou sabe-se lá a quê. O Parangolé encontra o mito
porque é épico. Assim como a diferença entre obra e vida, a diferença entre épos e
mythos fende o ser para inaugurarar um mundo. Por outro lado, o Parangolé e a
dança mítica do Parangolé ou, o que dá no mesmo, o mito dessa dança, tomada
como "o ato plástico em sua crudeza essencial", reúne dois continentes que, no
Ocidente, se haviam separado desde a Grécia arcaica: o das artes expressivas,
compreendendo originalmente a própria dança, a música e a poesia, e o das artes
plásticas, compreendendo a arquitetura, a escultura e a pintura. Também os gregos
arcaicos consideravam a dança como a mais importante de todas as artes. Mas
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enquanto os gregos presenciavam o começo da diáspora das artes, o fim dela é que
é antecipado pelo descobridor do Parangolé.

1.OITICICA, H. Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p.79.


2.Salomão, W. “Homage”. In: Hélio Oiticica. Paris: Catalogue de la Gallerie Nationale du Jeu de Paume, 1992, p.242..
3.Cit. p. COCCHIARALE, F., e GEIGER, A. B. Abstracionismo Geométrico e Informa.,Rio de Janeiro: Funarte, 1987,
p.16.
4.Expressão de Ferreira GULLAR.
5.V. NUNES, B. Depoimento em Lygia Clark e Hélio Oiticica. Catálogo da Sala Especial do 9o Salão Nacional de Artes
Plásticas. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.
6.MERLEAU-PONTY, M. L'Oeil et l'esprit. Paris: Gallimard, 1964, p.51.
7.OITICICA, H.. Op. cit., p.53.
8.Ibid. p.55.
9.Ibid. p.27.
10.Ibid. p.51.
11.Ibid.
12.Ibid. p.54.
13.GULLAR, F. Depoimento em Lygia Clark e Hélio Oiticica, Catálogo da Sala Especial do 9o Salão Nacional de Artes
Plásticas. Rio de Janeiro: Funarte, 1986.
14.HEGEL, G.W.F. “Enzyklopædie der philosophischen Wissenschaften” Bd. III. In: Werke in zwanzig Bänden,Bd.8.
Frankfurt: Suhrkamp, 1970, §92, Zusatz.
15.OITICICA, H.. Op. cit., p.72.

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