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Como levantar a indeterminação

que o ensino secundário de Matemática é.


Arsélio Martins
Julho, 18, 1995

No idea is really bad, unless we are uncritical. What is really bad is


to have no idea at all.[POLYA]

1 Ideias variadas ou ideias avariadas?


Está em curso um processo de preparação de uma proposta de ajustamento dos
programas do ensino secundário de matemática. De certo modo, quase pode-
mos dizer que o processo é mais importante que os resultados. Muitas pessoas
e instituições puderam pronunciar-se sobre o que se deve fazer ou desfazer e
sobre o que se vai fazendo ou desfazendo. Mas cada pessoa e cada instituição
tem as suas próprias ideias sobre o que deve ser ou não deve ser leccionado.
Ninguém tem dúvidas que a leccionação de alguns temas, em abstracto, deve
ser assegurada: geometria (no plano), análise funcional (generalidades sobre
funções, limites, continuidade e derivação), álgebra (IR, equações e inequações).
Mas a leccionação de quaisquer outros assuntos tem defensores e detractores.
Assim acontece com a estatı́stica e probabilidades, complexos, cónicas, estru-
turas algébricas, por exemplo. Dentro de cada grande tema, há ainda direito a
opiniões diversas sobre qual deve ser a abordagem e sobre quais devem ser os
itens de conteúdo a considerar. Se pensarmos nos problemas das metodologias (e
isso também influencia a escolha de uma abordagem entre diversas abordagens),
as opiniões variam entre as infinitamente negativas e as infinitamente positivas.
Há pessoas para quem certas metodologias são tudo e os conteúdos são nada e
outras para quem os conteúdos são tudo e a quaisquer que sejam metodologias
dizem nada. Mas há uma opinião que recolhe a unanimidade ou quase: a carga
horária de 4 horas semanais para a leccionação secundária de Matemática é
manifestamente insuficiente. Todos estão de acordo que 4 horas semanais não
chegam para leccionar o actual programa.; pouca gente tem opinião sobre que
conteúdos retirar do programa actual para o tornar exequı́vel em 4 horas; não
se vislumbram opiniões seguras sobre o que é afinal a matemática indispensável
para a formação secundária que precisa de mais de 4 horas semanais para ser

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leccionada. Tal diversidade de ideias não é um mal em si, antes é uma coisa
boa se as pessoas se mantiverem interessadas e a tomem como ponto de partida
para um debate necessário sobre a formação secundária em Matemática

2 A direcção para um currı́culo de núcleo cen-


tral ganha sentido.
Esta situação de diversidade incapacitante por parte da comunidade do ensino da
matemática, factor posto em evidência pela discussão do ajustamento, ilumina
cruamente o desconhecimento de cada um dos subsistemas de ensino relativa-
mente a outro (e o desconhecimento permite uma atribuição da culpa por todo
o mal) e o desconhecimento das finalidades de cada subsistema por parte dos
seus mais directos protagonistas. Aliás, a discussão das quatro horas semanais
da Matemática iluminou cruelmente o palco em que os professores, à maneira
de figurantes que não conhecem o texto do drama, obedecem a marcações numa
peça em que cada grupo de docentes deambula desesperado, separado, surdo e
insensı́vel a todos os apelos dos outros grupos.

2.1 Das intenções da reforma e dos programas


O Grupo de Trabalho encarregado da proposta de reorganização dos planos cur-
riculares considerava que, procurando interpretar a Lei de Bases, uma ”unidade
de objectivos e a concepção organizativa determinam o carácter terminal do en-
sino secundário, garantindo-lhe uma identidade própria de metas, conteúdos,
estratégias e regime de progressão e desvinculando-o da função quase exclusiva
de ponte para o ensino superior que tem vindo a desempenhar” e afirmava que
”o esquema de selecção para ingresso nos cursos do ensino superior deve ser
independente do sistema do ensino secundário” e acabava afirmando que ”o
aluno após o termo do ensino secundário devia poder candidatar-se às provas
de acesso a qualquer curso, independentemente da área cientı́fica em que obteve
a sua formação”[DOC.REFORMA]. Como é lógico, os autores dos programas
actualmente em vigor afirmam que ”as opções tomadas procuram ir ao encontro
das expectativas sociais respeitantes s competências e atitudes que devem ser de-
senvolvidas neste nı́vel de ensino, tendo em conta nomeadamente os princı́pios
estabelecidos na Lei de Bases do Sistema Educativo e no projecto curricular em
que a disciplina se integra” e tendo presente que ”o programa se destina a um ci-
clo de três anos, com apenas quatro horas semanais em cada ano”. Os autores
dos programas consideram ainda que ”continuando a ser eixos organizadores
do currı́culo o desenvolvimento de capacidades/aptidões e atitudes/valores, a
aquisição de conhecimentos assume agora peso relevante”[PROGRAMAS]. É
legı́timo concluir que os conteúdos temáticos do programa foram escolhidos por
serem fundamentais para uma formação secundária de matemática (quer para
quem pretende integrar-se imediatamente no mundo do trabalho, quer para

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quem pretende prosseguir os estudos) e que eles podem ser tratados (aprendi-
dos, pois tal como se diz no programa, ”este assenta no pressuposto de ser o
aluno agente da sua aprendizagem” nas quatro horas semanais previstas para
cada um dos três anos do ciclo.

2.2 A realidade das intenções ou o programa que não foi


programa
A realidade veio mostrar que as intenções destes documentos nunca foram apro-
priadas verdadeiramente pelo Ministério, não foram compreendidas e apropri-
adas pelos agentes sociais, não foram compreendidas e apropriadas pelos profes-
sores. A realidade veio mostrar que as intenções não passaram de intenções. De
despacho em despacho, o Ministério transformou essas intenções reformistas em
coisa nenhuma, o ensino superior sempre olhou para o ensino secundário como
uma simples ponte (com portagem) entre o ensino básico obrigatório 1 e o ensino
superior, os professores do ensino secundário sempre se preocuparam mais com
a transição para o ensino superior, os pais levantam o problema do ingresso e
dos programas para o ingresso e nunca levantam o problema das verdadeiras
aprendizagens dos filhos.
O programa não foi programa. Dos conteúdos fundamentais escolhidos para
serem leccionados nas quatro horas, foram leccionados alguns (em segunda es-
colha pelos professores) em cinco horas e a única preocupação visı́vel é com a
definição do programa das provas usadas para o ingresso no ensino superior. As
segundas escolhas dos temas pelos professores (diversas e contraditórias) veio
mostrar que não houve uma verdadeira apropriação do que é o programa do
ensino secundário de matemática, compromisso assumido sobre o que deve ser
a formação secundária de matemática como parte de uma formação secundária
geral (compromisso em conteúdos, objectivos, metodologias e horas).
Esta incompreensão assume ainda maior visibilidade se atentarmos na exigência
das cinco ou seis horas de Matemática que não vem acompanhada por qual-
quer proposta fundamentada sobre o que se entende por formação secundária
matemática essencial. Os conteúdos actualmente previstos em programa são os
essenciais? São essenciais as abordagens desses conteúdos e os nı́veis de pro-
fundidade previstos nos programas? E é sobre isto que pouca gente se entende:
nem há uma plataforma consensual mı́nima de exigências por parte do ensino
superior, nem há plataforma por parte do ensino secundário. Uma exigência
universal de 5 ou 6 horas de matemática não pode constituir a base de qualquer
plataforma. Um programa de acção em defesa da matemática deve basear-se
num mobilizador programa para a (leccion)acção dos professores de matemática,
coisa que este programa ainda não conseguiu ser.
1 Há professores que ainda não compreendem as palavras básico e obrigatório

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2.3 Como levantar a indeterminação
Para além do esforço de definição do que pode ser um programa do ensino
secundário de Matemática que reúna o consenso da comunidade matemática
e da comunidade do ensino, é preciso que as ideias fundamentais resultantes
desse esforço sejam apropriadas pelos professores que as vão dinamizar e pelas
comunidades destinatárias. fundamental identificar ”os conteúdos ou proces-
sos matemáticos, bem como as actividades” que constituam um ”corpo geral de
ideias matemáticas acessı́vel a todos os alunos”. Isto significa identificar clara-
mente ”tópicos tradicionais de álgebra, geometria, trigonometria e funções que
permanecem como componentes importantes”[NORMAS] do ensino secundário,
significa identificar ”tópicos de estatı́stica, probabilidades e matemática disc-
reta” significa identificar ”a representação gráfica” como ponte de ligação e um
possı́vel fio condutor, significa identificar o ”realce que deve ser dado com-
preensão de conceitos, s representações e relações, modelação matemática e
resolução de problemas” em contraste com um menor ênfase que deve ser dado
”à memorização de procedimentos e de factos isolados e às competências em
técnicas de papel e lápis”[NORMAS], actualmente dominantes. Isto significa
identificar a necessidade da utilização da tecnologia com capacidades gráficas
(computadores e calculadoras) e a necessidade de utilizar vários métodos de
ensino, ”para além das tradicionais exposições dos professores e das discussões
conduzidas por ele”. É preciso identificar conceitos fundadores (em vários ramos
da matemática) e formas de raciocinar que promovam ”o desenvolvimento, con-
solidação e aprofundamento de formas rigorosas e cientı́ficas de raciocı́nio”, as-
segurem ” a compreensão dos elementos fundamentais da metodologia cientı́fica
e a utilização das técnicas principais do trabalho intelectual”, proporcionem ”as
bases teóricas necessárias para que os alunos se familiarizem com sistemas de in-
terpretação da realidade” e desenvolvam ”capacidades de integração, elaboração
e assimilação de informações e mensagens” [DOC.REFORMA]. Mas é preciso
também identificar o papel das tecnologias já disponı́veis, como ferramentas que
libertam os estudantes e os professores de rotinas penosas, das limitações que as
(sempre importantes) técnicas de ”papel e lápis” representam, ao mesmo tempo
que é preciso identificar a importância que a comunicação (oral e escrita) assume
agora para organizar os resultados das experiências (muito mais diversas) e para
realizar sı́nteses construtivas e significativas de mais e mais ricas aprendizagens
arriscadas.

2.4 O incontornável ensino superior e as condições iniciais


Partindo do pressuposto que não é possı́vel desligar o ensino secundário do
ingresso no ensino superior , afigura-se-nos necessário que o ensino superior
participe no esforço de definição do programa do ensino secundário com um
consenso sobre uma plataforma mı́nima de exigências prévias ao ensino superior.
Assim, deve assumir-se que, para além dos tópicos essenciais acessı́veis a todos

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os alunos e importantes para o prosseguimento de estudos, pode ser necessário
identificar e indicar assuntos matemáticos adicionais que podem e devem ser
estudados por serem condições prévias e facilitadoras do ingresso no ensino
superior, sem que constituam factor de exclusão para a generalidade dos alunos.

3 Ajustamento das Conclusões


Este conjunto de ideias de organização de ensino, que aparece nas ”Normas”
designado por currı́culo de núcleo central, exige uma distinção entre temas e
conteúdos. Se podemos e devemos assumir que todos os alunos têm igualdade
de acesso aos mesmos temas curriculares, não sugerimos que ”todos os alunos
devam explorar os conteúdos com a mesma profundidade ou com o mesmo nı́vel
de formalismo” [NORMAS]. Os temas fundamentais devem ser escolhidos de
tal modo que todos os intervenientes tenham consciência que, embora em nı́veis
e com abordagens diferentes, todos eles devem ser abordados com (e por) to-
dos os alunos. A haver diferenciação, ela deve ser assumida nos conteúdos em
que cada grande tema se possa subdividir e no nı́vel de aprofundamento do seu
ensino. É preciso evitar que em nome das dificuldades de aprendizagem ou do
que se pensa ser o nı́vel de aprofundamento deste ou daquele conteúdo (dentro
de um grande tema) se deixem de abordar qualquer outro dos grandes temas
(considerados essenciais). O professor tem de planificar o seu trabalho para
abordar todos os grandes temas previstos, mesmo que para isso tenha de sacri-
ficar rigor e formalismo neste ou naquele conteúdo. O professor tem de cumprir o
compromisso com os temas, utilizando metodologias e tecnologias mais eficazes
(e transferı́veis), escolhendo os conteúdos mais importantes e abordando-os de
um modo que seja ”consistente com a capacidade de abstracção dos alunos”.
A aplicação experimental e a generalização da aplicação dos novos e actuais
programas vieram demonstrar que esta ideia central não foi apropriada sequer
pelos autores dos novos programas. Mas considerando que há boas intenções
nos programas, elas são anuladas pelas leituras que deles fizeram os autores
dos manuais (programas que os professores leem e aplicam) Qualquer ligeira
apreciação dos manuais mais vendidos (adoptados por mais escolas) revela que
não houve leitura temática (há conteúdos perdidos em amontoados de exercı́cios
rotineiros, que constituem ao mesmo tempo uma benção (facilitadora e descul-
pabilizadora) e a perdição para os professores ) e que não houve leitura das
meotodologias (quando estas poderiam ter polido as esquinas dos exercı́cios de
passar o tempo).
No sentido de transformar este actual programa num ”programa de temas”
os ajustamentos, agora previstos, pretendem obrigar a uma leitura temática -
com imposições ou limitações (que são sempre infelizes) de tempos máximos
dedicados a cada tema em cada ano, com informações circunstanciadas (que são
sempre infelizes) de metodologias e de tecnologias a utilizar, dando uma clara
predominância às intuições, verificações simples e conjecturas (para tentar evitar

5
- e como isto é também infeliz! - a predominãncia do formalismo, das definições
e demonstrações sem compreensão real e raciocı́nio, dos exercı́cios rotineiros).

References
[POLYA] Polya, G., Mathematics and Plausible Reasonning, Vol I – Induction
and analogy in Mathematics, Princeton University Press, Priceton, 1990.

[PROGRAMAS] DGEBS, Ensino Secundário – Programas de Matemática e


Métodos Quantitativos, Ministrio da Educação e INCM, Lisboa, 1992.
[DOC.REFORMA] Fraústo da Silva e outros, ”Proposta de reorganização dos
planos curriculares dos ensinos básico e secundário” em CRSE, Documentos
Preparatórios I, Ministério da Educação, Lisboa, 1987.

[NORMAS] NCTM, Normas para o currı́culo e a avaliação em matemática


escolar, APM e IIE, Lisboa, 1991.

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