You are on page 1of 82

Alain Badiou

MANIFESTO
pela filosofia

versão e nota
MD Magno
ANGéLICA - junho 1991
(psicanálise & cia)

Colégio Freudiano do Rio de Janeiro

Conselho Editorial:
Chaim Sam.uel Katz, Emmanuel Carneiro Leão,
Heloisa Buarque de Hollanda, Mareio Tavares D' Amaral,
MD Magno e Muniz Sodré

Editor:
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
(Reg. prof.: 15.178 - RJ)

Revisão da Tradução:
Aluisio Menezes e PMSJr.

Agradecimentos a:
Olandina Monteiro Cruz de Assis Pacheco

Capa:
MO Magno
(Dustração: Beardsley, 1896)

Composição:
-digitação/arte final: Tiffany anes
- revisão: André Praça Telles

Título Original:
Manifeste pour la philosophie
© Ediúons du Seuil, 1989

Todos os direitos desta edição reservados a:


aoutra editora
Av. Ataulfo de Paiva, 1079, subs. 118 - Leblon
22440 Rio de Janeiro- RJ
Tels.: 259-5543 e 259-3694
SUMÁRIO

1. Possibilidade, 1
2. Condições, 7
3. Modernidade, 13
4. Heidegger visto como lugar comum, 17
5. Nihilismo?, 23
6. Suturas, 29
7. A era dos poetas, 35
8. Eventos, 43
9. Questões, 51
10. Gesto platônico, 59
11. Genérico, 63

. Nota - MD Magno, 69
1. Possibilidade

Os filósofos vivos, na França de hoje, não há muitos, em-


bora haja, sem dúvida, mais do que em outros lugares. Digamos
que os contamos, sem dificuldade, pelos <iedos das mãos. Sim,
uma pequena dezena de filósofos, se entendemos com isto os que
propõem para nosso tempo enunciados singulares, identificáveis,
e se, conseqüentemente, ignoramos os comentadores, os indis-
pensáveis eruditos e os vãos ensaístas.
Dez filósofos? Ou melhor, "filósofos". Pois o estranho
é que, na sua maioria, eles dizem que a filosofia é impossível,
que ela acabou, delegada a outra coisa que não ela mes~; Lacoue-
-Labarthe, por exemplo: "Não se deve mais estar em desejo de
filosofia". E, quase ao mesmo tempo, Lyotard: "A filosofia como
arquitetura está em ruínas". Mas será que podemos conceber
uma filosofia que não seja de modo algum arquitetônica? Uma
''escrita das ruínas'' , uma ''micrologia'', uma paciência do ''graf-
fiti" (metáforas, para Lyotard, do estilo de pensamento contem-
porâneo) estará ainda, para com a "filosofia", em qualquer sentido
que a tomemos, em alguma relação que não de simples homo-
nímia? Também o seguinte: o maior de nossos mortos, Lacan,
não era ele "anti-filósofo"? E como interpretar que Lyotard só
possa evocar o destino da Presença no comentário dos pintores,
que o último grande livro de Deleuze tenha por tema o cinema,
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

que Lacoue-Labarthe (ou Gadamer na Alemanha) se devote à


antecipação poética de Celan, ou que Derrida vá requerer Ge-
net? Quase todos os nossos "filósofos" estão em busca de uma
escrita por desvios, de suportes indiretos, de referentes oblfquos, .
para que advenha, no lugar presumidamente inabitável da filo-
; sofia, a transição evasiva de uma ocupação do terreno.~ no co-
ração desse desvio- o sonho angustiado de quem não é poeta,
nem crente, nem "judeu"... - encontramos isto que aviva a
brutal intimação concernente ao engajamento nacional-socialista
de Heidegger: diante do processo que a época nos intenta, à lei-
tura do dossier desse processo, cujas peças maiores são Kolyma
e Auschwitz, nossos filósofos, tomando o século em suas costas,
e fi.nalmente os séculos dos séculos desde Platão, decidiram
confessar-se culpados. Nem os cientistas, tantas vezes postos na
berlinda, nem os militares, nem mesmo os poJfticos, considera-
ram que os massacres do século afetavam de modo durável sua
corporação. Os sociólogos, os historiadores, os psicólogos, to-
dos prosperam na inocência. Só os filósofos interiorizara.IJl que
o pensamento, seu pensamento, se encontrava com os crimes his-
tóricos e políticos do século, e de todos os séculos dos quais este
procede, ao mesmo tempo como obstáculo a qualquer continuação
e como tribunal de uma prevaricação intelectual coletiva e his-
tória. ·
Poderíamos evidentemente pensar que há, nessa singula-
rização filosófica da inteJectualidade do crime, orgulho demais.
Quando Lyotard credita a Lacoue-Labarthe a ''primeira deter-
minação filosófica do nazismo'', ele tem por assentado que tal
determinação possa depender da filosofia. Ora, isto não tem a
menor evidência. Sabemos, por exemplo, que a "determinação"
das leis do movimento não depende de modo algum da filosofia.
De minha parte, sustento que mesmo a antiga questão do ser-
-enquanto-ser não depende exclusivamente dela: é uma questão
do campo matemático. É portanto muito bem imaginável que a
detenninação do nazismo, do nazismo como política por exem-
plo, seja subtraída, de direito, à forma de pensamento específico
2
POSSIBILIDADE

que depois de Platão merece o oome de filosofia. Nossos mo-


destos partidários do impasse da filosofia bem poderiam sustei
mão firme, deter. a perseguição da idéia segundo a qual .. tudo.,
depende da filosofia. Ora, é mesmo preciso reconhecer que o
engajamento nacional-socialista de Heidegger foi um dos pontos
de chegada desse totalitarismo especulativo. Com efeito, que fez
Heidegger senão presumir que a "decisão resoluta" do povo
alemão, encarnada pelos nazistas, era transitiva a seu pensamento
de professor hermeneuta? Posturar que a filosofia faz- só ela
-a contabilidade dos avatares, sublimes ou repugnantes, da po-
lítica do século, é algo como a astúcia da razão hegeliana até
o mais íntimo do dispositivo de nossos anti-dialéticos. É postular
que existe um espírito do tempo, uma determínação essencial,
da qual a filosofia é o princípio de captura e de concentração.
Comecemos melhor por imaginar que, por exemplo, o nazismo
não é, como tal, um objeto possível da filosofia, que ele não caiba
dentro das condições que o pensamento filosófico é capaz de con-
figurar em sua ordem própria. Que ele não é um evento parà
esse pensamento. O que de modo algum significa que ele seja
impensável.
Pois é quando o orgulho vira carência perigosa que nossos
filósofos, do axioma que imputa à filosofia a carga dos crimes
do século, tiram as conclusões conjuntas do impasse da filosofia
e do caráter impensável do crime. Para quem supõe que é do
ponto do pensamento de Heidegger que devemos filosoficamente
dar conta do extermínio dos judeus da Europa. o impasse é, com
efeito, flagrante. Podem safar-se dessa expondo que ali há algo
de impensável, de inexplicável, um entulho para qualquer con-
ceito. Prestes a sacrificar a própria filosofia para lhe salvar o
orgulho: pois que a filosofia deve pensar o nazismo, e que ela
não tem competência para isto, ,é porque o que ela deve pensar
é impensável, e a filosofia está no passe de um impasse.
Proponho sacrificar o imperativo e dizer: se a filosofia
é incapaz de pensar o extermínio dos judeus da Europa, é porque
não é seu dever nem está em seu poder pensá-lo. É que cabe
3
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

a uma outra ordem de pensamento tornar efetivo esse pensamento.


Por exemplo, ao pensamento da historicidade, quer dizer, 'da His-
tória examinada do ponto da política.
Jamais é realmente modesto enunciar um "fim", um tér-
mino, um impasse radical. O anúncio do "fim das grandes nar-
rativas" é tão imodesto quanto a própria grande narrativa, a certeza
do ''fim da metafísica'' se move no elemento metafísico da cer-
teza, a desconstrução do conceito de sujeito exige uma categoria
central - o ser, por exemplo - cuja prescrição historiai é ainda
mais determinante, etc. Transida pelo trágico de seu objeto su-
posto - o extermínio, os campos de concentração - a filosofia
transfigura sua própria impossibilidade em postura profética. Ela
se orna com as cores sombrias do tempo, sem levar em conta
que essa estetização, também ela, é uma injustiça feita às víti-
mas. A prosopopéia contrita de abjeção é tanto uma postura, tanta
imposrura, quanto a cavalaria corneteira da parousia do Espírito.
O fim do Fim da História é talhado no mesmo pano desse Fim.
Uma vez delimitado o desempenho da filosofia, o patos
de seu "fim" dá lugar a uma bem outra questão que é a de suas
condições. Eu não sustento que a filosofia seja a todo instante
possível. Proponho examinar, em geral , sob que condições ela
o é, na conformidade com sua destinação. Que as violências da
história a possam interromper, é o que não se deve deixar
acreditar-se sem exame. É conceder uma estranha vitória a Hi-
tler e seu esbirros declarar que eles foram capazes de ter metido
o impensável, de uma vez por todas, dentro do pensamento, e
de ter assim concluído a cessação de seu exercício arquiterurado.
Ao anti-intelectualismo fanático dos nazistas.. devemos nós, de-
pois de seu arrasamento militar, oferecer a revanche de que o
próprio pensamento, poHtico ou filosófico, ficou de fato sem jeito
de dar conta daquilo que se propunha anulá-lo? Digo isto como
o estou pensando: seria fazer morrer os judeus uma segunda vez
se sua morte fosse causa do fim daquilo para o que eles, deci-
sivamente, contribuíram: política revolucionária por um lado,
por outro lado filosofia racional. A mais essencial piedade para
4
POSSIBILIDADE

com as vítimas não pode residir no estupor do espfrito, em sua


vacilação auto-acusadora face ao crime. Ela reside, sempre, na
continuaçao daquilo que os designou como representantes da Hu-
manidade aos olhos do carrasco.
Afirmo não somente que a filosofia é hoje possível, mas
também que essa possibilidade não tem a forma da travessia de
um fim. Trata-se, muito pelo contrário, de saber o que quer di-
zer: dar um passo a mais. Um só passo. Um passo na configu-
ração moderna, essa que, depois de Descartes, liga às condições
da filosofia os três conceitos nodais que são o ser, a ver<tade e
o sujeito.

5
'-.
2. Condições

A filosofia teve um começo; ela não existe em todas as con-


figurações históricas; seu modo de ser é a descontinuidade no
tempo como no espaço. Portanto é mesmo preciso supor que ela
exige condições particulares. Quando medimos o desnível entre
as cidades gregas, as monarquias absolutas do Ocidente clássico,
as sociedades burguesas e parlamentares, logo aparece que toda
a esperança de determinar as condições da filosofia a partir so-
mente da base objetiva das ''formações sociais'' ou mesmo a
partir dos grandes discursos ideológicos, religiosos, míticos, está
votada ao fracasso. As condições da filosofia são transversais,
são procedimentos uniformes, reconhecíveis a longa distância,
e cuja relação ao pensamento é relativamente invariante. O nome
dessa invariância é claro: trata"se do termo "verdade". Os pro-
cedimentos que condicionam a filosofia são os procedimentos
de verdade, identificáveis como tal em sua recorrência. Não po"
demos mais crer nas narrativas pelas' quais um grupo humano
encanta sua origem ou seu destino. Sabemos que o Olimpo é ape"
nas uma colina, e que o Céu só está cheio de hidrogênio ou de
hélio. Mas que a série dos números primos é ilimitada, isto se
demonstra hoje exatamente como nos Elementos de Euclides, de
que Ffdias seja um grande escultor não há dúvidas, que a de-
mocracia ateniense seja uma invenção política cujo tema ainda
nos ocupa, e que o amor designa a ocorrência de um Dois onde

7
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

o sujeito fica transido, nós o compreendemos lendo Safo ou Platão


tanto quanto lendo Comeille ou Beckett.

Contudo, tudo isto não existiu sempre. Há sociedades sem


matemáticas, outras cuja "arte", em coalescência com funções ·
ságradas obsoletas, nos é opaca, outras onde o amor está ausente,
ou indizível, outras enfim onde o despotismo jamais cedeu à in-
venção polftica, nem mesmo tolerou que ela fosse pensávet Me-
nos ainda esses procedimentos terão existido desde sempre em
conjunto. Se a Grécia viu nascer a filosofia, certamente não foi
porque ela detinha o Sagrado na fonte mítica do poema, ou por-
que o velamento da Presença lhe fosse familiar à guisa de uma
proposição esotérica sobre o Ser. Muitas outras civilizações an-
tigas procederam ao depósito sacro do ser no proferimento po-
ético. A singularidade da Grécia é muito mais a de ter inte"ompido
a narrativa das origens pela proposição laicizada e abstrata, de
ter ferido o prestígio do poema com o do materna, de ter con-
cebido a Cidade como um tema aberto, disputado, vacante, e
de ter trazido à cena pública as tempestades da paixão.
A primeira configuração filosófica que se propõe a dispor
esses procedimentos, o conjunto desses procedimentos, num es-
paço conceitual único, atestando assim no pensamento que eles
são compossíveis, é a que leva o nome de Platão. c cAqui não
entra quem não for geômetra'', prescreve o materna como con-
dição da filosofia. A dolorosa-.....
dispensa dos poetas, banidos da
Cidade por causa de imitação - entendamos: por captura de-
masiado sensível da Idéia - indica ao mesmo tempo que o p<):
ema está em causa e que é preciso medi-lo à inelutável interrupção
da narrativa. Do amor, O B01UJ.uete ou o Fédon dão a articulação
à verdade em textos insuperáveis. A invenção política é enfim
argumentada como .texrura do próprio pensamento: no fim do
livro 9 de A República, Platão indica expressamente que sua Ci-
dade ideal não é um programa nem uma realidade, que a questão
de saber se ela existe ou pode existir é indiferente, e que então
8
CONDI COES

~ não se trata de política, mas da política como condição de pen-


samento, da formulação intrafilos6tica das razões pelas quais não
há filosofia sem que a política tenha o estatuto real de inna in-
venção possível.
Afirmaremos então que há quatro condições da filosofia,
a falta de uma só delas acarretando sua dissipação, bem como
a emergência de seu conjunto condicionou sua aparição. Estas
condições são; o materna, o poema, a invenção política e o amor,
Chamaremos estas condições de procedimentos gen~ricos , por
razões sobre as quais retornarei mais adiante e que estão no cen-
tro de O Ser e o Evento. Essas mesmas razões estabelecem que
os quatro tipos de proced~mentos genéricos especificam e clas-
sificam, a esta luz, todos os procedimentos suscetíveis de pro-
duzir verdades (s6 há verdade científica, artística, política ou
amorosa). Pode-se dizer então que a filosofia tem por condição
que haja verdades em cada uma das ordens em que são atestáveis.
Deparamo-nos com dois problemas. Primeiro, se a filoso-
fia tem por condições os procedimentos das verdades, isto sig-
nifica que, por si mesma, ela não produz verdades. De fato, esta
situação é bem conhecida: quem pode citar um único enunciado
filosófico sobre o qual se faça sentido dizer que ele é " verda-
deiro"? Mas então, qual é exatamente o desempenho da filoso-
fia? Segundo, assumimos que a filosotia é "una", no·que é lícito
falar de "a" filosofia, de reconhecer um texto como filosófico.
Que relação essa unidade presumida sustenta para com a plura-
lidade das condições? Qual é esse nó de quatro (os procedimen-
tos genéricos, materna, poema, invenção política e amor) e do
um (a filosofia)? Vou mostrar que estes dois problemas têm uma
resposta única, contida na definição da filosofia, tal como aqui
representada como veracidade inefetiva .sob condição da efeti-
vidade do verdadeiro.
Os procedimentos de verdade, ou procedimentos genéricos.
se distinguem da acumulação dos saberes por sua origem even-
tural. Quando nada acontece. senão o ·que é conforrpe às regras
de um estado de coisas, pode certamente haver conhecimento,
9
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

enunciados corretos, saber acumulado; o que não pode haver é


verdade. Uma verdade tem de paradoxal que ao mesmo tempo
ela é uma novidade, logo algo de raro, de excepcional, e que,
no que toca ao próprio ser daquilo de que ela é verdade, ela é
também o que há de mais estável, de mais próximo, ontologi~
camente falando, do estado de coisas iniciaL O tratamento deste
paradoxo exige longos desenvolvimentos, mas o que é claro é
· que a origem de uma verdade é da ordem do evento.
Chamemos ''situação'', para sermos breves;-um estado de
coisas, um múltiplo apresentado qualquer. Para que se desenvolva
um procedimento de verdade relativo à situação, é preciso que
um puro evento suplemente essa situação. Esse suplemento não
é nem nomeável nem representável pelos r~ursos da. situação
(sua estrutura, a língua estabelecida que lhe nomeia os termos,
etc.). E~ é inscrito por uma nomeação singular, quando entra
em jogo um significante a mais. E são os efeitos dessa entra~a
na situaçllo de um nome-a-mais que vão tramar um procedimento
genérico e diswr o suspense de uma verdade da situação. Pois,
de saída, na situação, se nenhum evento a suplementa, não há
nenhuma verdade. Há somente o que chamo de veridicidade. Em
diagonal, perfurando todos os enunciados verídicos, há chance
de. que a'dvenha uma verdade, desde que um evento tenha encon-
trado seu nome extranumerário. .
A .filosofia tem por operação específica propor um espaço
conceitual 4nificado onde ganham lugar as nomeações de. even-
tos.que servem de ponto de partida aos procedimento de verdade.
A filosofia busca reunir todos os .nomes-a-mais. Ela trata, no
pensamento, do caráter compossfvel <los procedimentos que a con-
dicionam. Ela não estabelece nenhuma yerd.ade, mas dispõe um
lugar das verdades. Ela configura os procedimentos genéricos
por um acolhimento, um abrigo. edificado com relação à sua si-
multaneidade díspar. A filosofia empreende pensar seu tempo
colocando em-lugar-comum o estado dos procedimentos que a
condicionam. Seus operadores, quaisquer que eles sejam, visam
sempre pensar "em conjunto", configurar, num exercício de pen-
10
CONDIÇÕES

sarnento único, a disposição epocal do materna, do poema, da


invenção política e do amor (ou estatuto eventural do Dois). Neste
sentido, a única questão da fiJosofia é mesmo a da verdade, não
que ela produza alguma, mas porque ela propõe um modo de
acesso à unidade de um momento das verdades, um sítio con-
ceitual onde se refletem como compossíveis os procedimentos
genéricos.
É claro que os operadores filosóficos não devem ser enten-
didos como somatórios, como totalizações. O caráter eventural
e heterogêneo dos quatro tipos de procedimentos de verdade ex-
clui inteiramente seu alinhamento enciclopédico. A enciclopédia
é uma dimensão do saber, não da verdade, a qual faz furo no •
saber. Nem mesmo é sempre necessário que a filosofia mencione
os enunciados, ou estados locais, dos procedimentos genéricos.
Oª conceitos filosóficos tramam.um espaço geral dentro do qual
o pensamento acede ao tempo, a seu tempo, na medida em que
os procedimentos de verdade desse tempo encontrem ali o abrigo
de sua compossibilidade. A metáfora adequada não é portanto
do registro da adição, nem mesmo o da reflexão sistemática. É
mais a de uma liberdade de circuiaç:ão, de um mover-se de um
pensamento no elemento articulado por um estado de suas con-
dições. Pelo meio conceitual da filosofia, figuras locais tão in-
trinsecamente heterogêneas quanto podem ser as do poema, do
materna, da invenção política e do amor, são relacionadas, ou
relacionáveis, à singularidade do tempo. A filosofia pronuncia,
não a verdade, mas a conjuntura, quer dizer, a conjunção pen-
sável das verdades ..
Urna vez que a filosofia é um exercício de pensamento so-
bre a brecha do tempo, uma torsão reflexiva sobre o que a con-
diciona,_ela se sustenta, o mais freqüente, em condições precárias,
nascentes. Ela se institui na abordagem da nomeação interveniente
pela qual um evento engata num procedimento genérico. O que
condiciona uma grande filosofia, muito para além dos saberes
instituídos e consolidados, são as crises, irrupções e paradoxos
da matemática, os terremotos da língua poética. as ·revoluções
11
MANIFESTO PELA FILOSOAA

e provocações da política inventada, as vacilações da transação


dos dois sexos. Antecipando em parte o espaço de acolhimento
e de abrigo no pensamento para esses procedimento frágeis, dis·
pondo como compossíveis trajetórias cuja simples possibilidade
ainda não está firmemente estabelecida, a filosofia agrava os pro-
blemas. Heidegger tem razão em escrever que "é mesmo a ta-
refa autêntica da filosofia agravar, fazer pesar o Dasein (então
historiai)" porque "o agravamento é uma das condições funda-
mentais decisivas para o nascimento de tudo que é grande''.
Mesmo se deixarmos de lado os equívocos da ''grandeza'', con-
viremos em dizer que a filosofia sobrecarrega·o possível das ver-
dades por seu çonceito de compossfvel. É que ela tem por função
''agravante'' dispor .os procedimentos genéricos na dimensão,
não de seu pensamento próprio, mas de sua historicidade conjunta.
No que diz respeito ao sistema de suas condições, cujo de-
vir díspar ela configura pela construção de um espaço .deis pen-
samentos do tempo, a filosofia serve de passagem entre a
efetividade procedimental das verdades e a livre questão de seu
ser temporal.

12
3. Modernidade

Os operadores conceituais pelos quais a filosofia configura


suas condições, situam em geral o pensamento do tempo sob o
paradigma de uma ou várias dessas condições. Um procedimento
genérico, próximo de seu sítio evenrural de origem, ou confron-
tado a impasses de sua persis~cia, servé de referente principal
para o·desenvolvimento da compossibilidade das condições. As-
sim, no contexto da crise política das cidades gregas e do re-
manejamento ••geométrico'' -depois de Eudóxio- da teoria
das grandezas, Platão empreende fazer das matemáticas e da po-
lítica, da teoria das proporções e da Cidade como imperativo,
os referentes axiais de um es~ço de pensamento do qual o termo
".dialética" designa a função de exercício. Como as matemáticas
e a política podem ser ontologicamente compossfveis? Tal ~ a
questão platônica à qual o operador da Idéia vai fornecer .uma
vecção resolutiva. A poesia vai, de chofre, ver-se posta sob sus-
peição - mas esta suspeita 6 uma forma aceitável de configu-
ração - e o amor vai, segundo a própria expressão de Platão,
ligar o ''repentino'' de um encontro ao fato de que uma verdade
- aqui a da Beleza - advém como indiscernível, não sendo nem
· discurso (logos) nem saber (episteme).
Conviremos em chamar "período" da filosofia uma se-
qüência de sua existência em que persiste um tipo de configu-
ração especificada por uma condição dominante. Ao longo de
13
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

todo esse período, os operadores de compossibilidade dependem


dessa especificação. Um período faz nó dos quatro procedimen-
tos genéricos no estado singular, pós--eventural, em que se en-
contram, sob a jurisdição dos conceitos através dos quais um dentre
eles é inscrito no espaço de pensamento e de circulação que faz
filosoficamente oficio de determinação do tempo. No exemplo
platônico, a Idéia é manifestamente um operador do qual o ma-
tema é o principio "verdadeiro" subjacente, a política se inventa
como condição do pensamento sob a jurisdição da Idéia (donde
o rei-filósofo e o papel notável representado pela aritmética e
pela geometria na educação desse rei ou guardião) e a poesia
imitativa·é mantida à distância, tanto mais que, como mostra Platão
tanto no Górgtas quanto no Protdgoras, há uma cumplicidade
paradoxal entre·a poesia e. a sofistica: a poesia é a dimensão se-
creta, esotérica, sofística, porque ela leva ao cúmulo a flexibi-
lidade, a variância da lfngua.
A questão é então para nós a seguinte: Haverá um período
m(Xlerno da filosofia? A acuidade desta questão se prende hoje
ao que declara a maioria dos filósofos, de uma parte que há com
efeito um tal período, de outra parte que somos contemporâneos
de seu término. É o sentido da expressão ..pós-moderno", mas
mesmo entre os que economizam esta expressão, o tema de um
" fim" da modernidade filosófica, de um esgotamento dos ope-
radores. que lhe eram próprios - muito especialmente a catego-
ria de Sujeito - , está sempre presente, ainda que sob o esquema
do fun da metafísica. A maior parte do tempo, de resto, esse
fim é assinado ao proferimento nietzscheano.
Se designarmos empiricamente os "tempos modernos"
pelo período que vai do Renascimento até hoje, é certamente di-
fícil falar de um perfodo, rio sentido de uma invariância hierár-
quica na configuração filosófica das condições. É com efeito
evidente:
- que na idade clássica, a de Descartes e Leibniz, é a
condição matemática que é dominante, sob o efeito do evento
galileano, o qual tem por essência introduzir o infinito no materna; ·
14
MODERN IDADE

- que a partir de Rousseau e de Hegel, escandida pela


Revolução francesa, a compossibilidade dos procedimentos ge-
néricos está sob a jurisdição da condição histórico-política;
- que entre Nietzsche e Heidegger, é a arte, cujo coração
é o poema, que retoma, por uma retroação anti-platônica, nos
operadores pelos quais a filosofia designa nosso tempo como o
de um nihilismo esquecedor.
Há então, ao longo desta seqüência temporal, um deslo-
camento da ordem, do referente principal a partir do qual é de-
senhada a compossibilidade dos procedimentos genéricos. A
coloraç40 dos conceitos é um bom testemunho desse desloca-
mento entre a ordem cartesiana das razões, o patos temporal do
conceito em Hegel e a metaforização metapoética de Heidegger.
De qualquer modo, esse deslocamento não deve dissimu-
lar a invariância, ao menos até Nietzsche, mas prosseguida e es-
tendida por Freud e Lacan como por Husserl, do tema do Sujeito.
Este tema ·só sofre uma desconstrução radical na obra de Hei-
degger e de seus sucessores. As refundições às quais ele é sub-
metido pela política marxista como pela psicanálise (a qual é o
tratamento moderno da condição amorosa) dependem da histo-
ricidade das condiç~e não.da invalidação do operador filosó-
fico que trata essa historicidade.
É portanto cômodo definir o período moderno da filosofl3
pelo uso organizador central que nele é feito da categoria d.e..Su-
jeito. Embora esta categoria não prescreva um tipo de configu-
ração, um regime estável da compossibilidade, ela basta para o
que conceme à formulação da questão: o período moderno da
filosofia já acabou? O que é o mesmo que dizer: propor para
nosso tempo um espaço de compossibilidade, em pensamento,
das verdades que nele se prodigalizam, será que isso exige a ma-
nutenção, e o uso, mesmo profundamen~ alterado, ou subver-
tido, da categoria de Sujeito? Ou, ao contrário, nosso tempõ é
aquele onde o pensamento exige que essa categoria seja descons-
trufda? A esta questão Lacan responde por um remanejamento
radical de uma categoria mantida (o que significa que, para ele,
15
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

· o período moderno da filosofia continua, a qual é também a pers-


pectiva de Jambet, de Lardreau e a minha). Heidegger (mas tam-
bém DeJeuze com algumas nuances, Lyotard, Derrída,
Lacoue-Labarthe e Nancy finnemente) responde que nossa época
é aquela onde "a subjetividade é empurrada para seu término",
que conseqüentemente o pensamento só pode terminar. para além
desse "término" que não é outra coisa senão a objetivação des-
trutiva da Terra, que a categoria de Sujeito deve ser desconstru-
ída e tida como último avatar (moderno, precisamente) da
metafísica; e que o dispositivo filosófico do pensamento racio-
nal, do qual essa categoria é o operador ·central, está a partir
desse ponto mantido no esquecimento sem fundo daquilo que o
funda, que ''o pensamento só começará quando tivermos apren-
dido que essa coisa tão magnificada por séculos, a Razão, é o
inimigo mais encarniçado do pensamento''.
Será que ainda somos, e a que título, ga1ileanos e carte-
sianos? Razão e Sujeito, será que ainda estão, ou não, aptos a
servir de vetor às configurações da filosofia, inesmo se o sujeito
é descentrado .ou vazio, e a razão submetida ao acaso extranu-
merário do evento? Será que a verdade é o não-velamento velado
cujo risco só o poema acolhe em palavras? Ou será. que ela é
aquilo pelo que a filosofia designa, em seu espaço próprio, os
procedimentos genéricos disjuntos que trançam a continuação obs-
cura dos Tempos modernos? Devemos nós continuar, ou deter,
a meditação de uma espera? Tal é a única questão polêmica sig-
nificativa hoje em dia: decidir se a forma do pensamento do tempo,
filosoficamente instruída pelos eventos do amor, do poema, do
materna e da política inventada, permanece, ou não, apegada a
essa disposição que Husserl ainda chamava de "meditação car-
tesiana''.

16
4. Heidegger visto corno lugar comum

O que é que diz o ~eidegger " corrente", aquele que or-


ganiza uma opinião? Ele diz isto:

1) O rosto moderno da metafísica, tal como ela se articu-


lou em tomo da categoria de ~ujeito, está na época de seu tér-
mino. O verdadeiro sentido da categoria de Sujeito se mostra
no processo universal de objetivação, processo cujo nome apro-
priado é: o reino da técnica. O devir-sujeito do homem não é
senão a transcrição metafísica última do estabelecimento desse
reino: ''O próprio fato de o homem tomar-se sujeito e de o mundo
tomar-se objeto não passa de uma conseqüência da essência da
técnica no movimento de sua instalação". Precisamente por ser
um efeito do desenvolvimento planetário da técnica, a categoria
de sujeito é inapta a fazer voltar-se o pensamento para a essência
desse desenvolvimento, Ora, pensar a técnica como o último ava-
tar historiai, e fecho, da época metafísica dQ ser, é hoje o único
programa possível para o próprio pensamento. O pensamento
não pode então estabelecer seu sítio a partir do que nos põe a
injunção de manter a categoria de Sujeito: esta injunção -é indis-
tinguível daquela da técnica.

17
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

2) O reino planetário da técnica põe flm à filosofia; nele,


os possíveis da filosofia, quer dizer•. da metaffsica, estão irre-
versivelmente esgotados. Nosso tempo não é mais ex~te
''moderno' •, se entendemos por • 'moderno•' a configuração pós-
-cartesiana da metafisica, a qual organizou, até Nietzsche, a to-
rnada do Sujeito ou da Consciência sobre a disposição do texto
filosófico. Pois nosso tempo é o da efetuaç/Jo do último rosto
da metafisica, .o tempo de esgotamento de seus possíveis e, con-
seqüentemente, o tempo da expansão in-diferente da técnica, a
qual não tem mais que se representar numa filosofia, pois que
nela a filosofia, ou mais precisamente o que a filosofia detinha
e significava da potência do ser, acaba em vontade devastadora
,da Terra.

3) O término técnico da metaffsica, cujas duas principais


"conseqüências necessárias" são a ciência moderna e o Estado
totalitário, pode e deve ser determinado pelo pensamento como
nihilismo , quer dizer, justamente como efetuação do não-
-pensamento. A técnica leva a seu cúmulo o não-pensamento por-
que só há pensamento do s.e.r, e porque a técniea é o último destino
do recolhimento do ser dentro da estrita consideração do ente.
A técnica é, com efeito, um querer, uma relação ao ser cuja for-
çação no esquecimento é essencial, pois que reaJiza a vontade
de subjugar o ente na sua totalidade. A técnica é a vontade de
arrazoamento e de domínio sobre o ente tal como ele aí está,
como fundo disponível, sem limite, à manipulação subjugadora.
O único ..conceito" de ser que a técnica conhece é o de matéria
prt11Ul, proposta sem restrições à forçação do querer-produzir
e do querer-destruir desencadeados. A vontade visando o ente,
que constitui a essência da técnica, é nihilista, no que elà trata
o ente sem levar em conta de modo algum o pensamento de seu
ser, e num tal esquecimento do ser que chega a esquecer esse
mesmo esquecimento.. Daí resulta que o querer imanente à téc-
nica convoca ao nada o ser do ente que ele trata em totalidade.
A vontade de arrazoamento e de domínio é uma só e mesma coisa
18
HEIOEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM

que a vontade de nadificação. A destruição total da Terra é o


horizonte necessdrio da técnica, não pela razão particular de que
exista tal ou qual prática, militar por exemplo, ou nuclear, que
institua esse risco, mas porque é da essência da técnica mobilizar
o ser, brutalmente tratado como s,imples reserva de disponibili-
dades pelo querer, na forma latente e essencial do nada.
Nosso tempo é então nihilista, tanto se o interrogamos no
que diz respeito ao pensamento, quanto se o interrogamos no
que diz respeito ao destino do ser que ele desenvolve. No que
diz respeito ao pensamento, nosso tempo dele se desvia pela ocul-
tação radical da eclosão, do deixar-ser que condiciona seu exer-
. cício, e do reino sem; partilha do querer. No que diz respeito
ao ser, qosso tempo o vota à nadificação, ou melhor: o próprio
ser está no pas~e de sua pro-posição como nada, uma vez que,
retirado e subtraído, ele s6 se prodigaliza no fechamento da
matéria-prima, na disponibilidade técnica de um fundo sem fundo.

4) Na idade moderna (aquela em que o homem se toma


Sujeito e o mundo objeto porque está se estabelecendo o reino
da técnica), depois no nosso tempo, o da técnica objetificadora
desencadeada, só alguns poetas pronunciaram o ser, ou pelo me-
nos as condições de um retomo do pensamento, fora da prescrição
subjetiva do querer técnico, à eclosão· e ao Aberto. A palavra
poética, e só ela, ecoou como possível furulaçao de um recolhi-
mento do Aberto, contra a disponibilidade infinita e fechada do
ente que a técnica esgota. Esses poetas são Hoelderlin, o insu-
perável, depois Rilke e Trakl. O dizer poético desses poetas fu-
f01H> tecido do esquecimento e deteve, preservou, não o próprio
ser, cujo destino historiai se completa no desamparo do nosso
tempo, mas a questllo do ser. Os poetas foram os pastores, os
zeladores dessa questão que o reino da técnica torna universal-
mente impronunciável.

5) A filosofia tendo terminado, o que resta é somente re-


-pronunciar a questão da qual os poetas têm a guarda, e notar
19
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

como essa questão ecoou no curso inteiro da história da filosofia


desde suas origens gregas. O pensamento está hoje sob a con-
diçllo dos poetas. Sob esta condição, ele se volta para a inter-
pretação das origens da filosofia. para os primeiros gestos da
metafísica. Ele vai procurar as chaves de seu próprio destino,
as chaves de seu próprio término efetivo, no primeiro passo do
esquedmento. Este primeiro passo do esquecimento é Platão.
A análise da "virada" platônica, quanto ao vínculo do ser e da
verdade, comanda a apreensão do destino historiai do ser, o qual
termina sob nossos olhos na provocação à nadificação. O coração
dessa ''virada'' é a interpretação da verdade e do ser corno Idéia,
quer dizer, a rescisão do poema em proveito do materna - como
digo em minha linguagem. A interrupção platônica da narrativa
poética e metafórica pelo paradigma ideal do materna, Heídeg-
ger a interpreta como a orientação inaugural do destino do ser
no sentido do esquecimento de sua eclosão, quando ela se larga
de sua apropriação inicial pela língua poética dos Gregos. Pode·
-se então também dizer que remontar às origens, tal como isto
recebe hoje sua condição do dizer dos poetas, retoma ao dizer
dos poetas gregos, dos pensadores-poetas pré-platônicos que sus-
tentavam então a tensão da abertura e da eclosão velada do ser.

6) O triplo movimento do pensamento é então: tomar a


condição no dizer dos poetas, remontar interpretativarnente à vi-
rada platônica que comanda a época .metafísica do ser, fazer a
exegese da origem pré-socrática do pensamento. Este triplo mo-
vimento permite enunciar a hipótese de um retorno dos Deuses,
de um evemo no qual o perigo mortal ao qual o querer nadifi-
cante expõe o homem - esse funcionário da técnica - seria su-
perado ou conjurado por urna espécie de abrigo do ser, uma
re-exposição ao pensamento de seu destino como abertura e
eclosão, e não como fundo sem fundo de disponibilidade do ente.
Esta suposição de um retomo dos Deuses pode ser enunciada
pelo pensamento que os poetas instruem, ela não pode eviden-
temente ser anu~ciada. Dizer que ''só um Déus pode nos sal-
20
HEIDEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM

var.. tem por sentido: o pensamento instruído pelos .poetas,


educado pelo conhecimento da virada platônica, renovado pela
interpretação dos pré-socráticos gregos, pode sustentar, no co-
ração do nihilismo, a possibilidade sem vias nem meios dizíveis
de uma re-sacralização da Terra. "Salvar" não está aqui na
acepção mole de um suplemento de alma. "Salvar" quer dizer:
desviar o homem e a terra da nadificação, nadifiçação que na
terminal figura técnica de seu destino o ser tem como ser o que-
rer. O Deus de ·que se trata é aquele do desvio de um destino.
Não se trata de salvar a alma, mas de salvar Q ser, e de salvá-lo
daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que é ele pró-
prio na implacável prescrição terminal de sua historicidade. Esta
salvação no ser de si mesmo por si mesmo impõe que se vá ao
cume do desamparo, portanto ao cume da técnica, para arriscar
o desvio, pois é no extremo do perigo que cresce também o que
salva.

21
5. Nihilismo?

Nós não admitimos que o termo "técnica''. mesmo o fa-


zendo ressoar com o grego tE'XV'l, seja capaz de designar a es·
sência de nosso tempo, nem que haja alguma relação, útil ao
pensamento, entre "reino planetário da técnica" e ''nihilismo". ·
As meditações, suputações e diatribes sobre a técnica, por mais
disseminadas que sejam, não são menos uniformemente ridícu-
las. E é preciso dizer bem alto o que muitos heideggerianos re-
finados pensam baixinho: os textos de Heidegger sobre este ponto
não escapam de modo algum a essa ênfase. o "caminho do bos-
que", o olho claro do camponês, a devastação da Terra, o en-
raizamento no sítio natural , a eclosão da rosa, todo esse patos,
desde Vigny ("nesse touro de ferro que fuma e resfolega, o ho-
mem montou cedo demais") até nossos publicitários, passando
por Georges Duhamel e Gíono, só é tecido de nostalgia reacio-
nária. O caráter estereotipado dessas ruminações que vêm disso
que Marx chamava de "socialismo feudal", é de resto a melhor
prova de seu pouco sentido pensável.
Se eu fosse dizer algo sobre a técnica, cuja relação com
as exigências contemporâneas da filosofia é tão magra, seria bem
mais lamentar que ela seja ainda tão medíocre, tão tímida. Tan-
tos instrumentos úteis ainda faltam, ou só existem em versões
pesadas e incômodas! Tantas aventuras maiores não avançam,
ou dependem do "a vida é muito devagar", vejam a exploração

23
MANIFESTO PELA FILOSOAA

dos planetas, a energia por fusão termonuclear, a máquina vo-


adora para todos, as imagens em relevo no espaço ... Sim, é pre-
ciso dizer: ''Senhores Técnicos, ainda mais um esforço, se querem
verdadeiramente o reino planetário da técnica!'' Nada de técnica
bastante, uma técnica ainda muito tosca~ esta é a verdadeira si-
tuação: o reino do capital freia e s!ímplífica a técnica, cujas vir-
tualidades são infinitas.
Aliás, é inteiramente inconveniente apresentar a ciência
como do mesmo registro, quanto ao pensamento, que a técnica.
Há certamente entre ciência e técnica uma relação de necessi-
dade, mas esta relação não implica nenhuma comunidade de es-
sência. Os enunciados que anunciam a "ciência moderna" como
efeito, se não efeito principal, do reino da técnica, são indefe~­
sáveis. Se consideramos, por exemplo, um grande teorema da
matemática moderna, digamos, porque me interessa, o que de-
monstra a independência da hipótese do contínuo (Cohen, 1963~,
encontramos nele uma concentração de pensamento, uma beleza
inventiva, uma surpresa do conceito, uma ruptura arriscada, para
dizer tudo: uma estética intelectual, que podemos, se quisermos,
aproximar dos maiores poemas deste século, ou das audácias
político-militares de um estratego revolucionário. ou das emoções
mais intensas do encontro amoroso, mas não certamente de um
moedor elétrico de café ou de uma televisão a cores, por mais
úteis e engenhosos que sejam estes objetos. A ciência, enquanto
ciência,.quer dizer. apreendida em seu procedimento de verdade,
é de resto profundamente inútil, a não ser por afirmar o pensa-
mento como tal, de maneira incondicionada. Este enunciado dos
Gregos (a inutilidade da ciência, senão como exercício puro e
condição genérica do pensamento), não há que revisá-lo, mesmo
sob o pretexto falacioso de que a sociedade grega era escrava-
gista. O dogma da utilidade acaba sempre como escusa para que
não se queira verdadeiramente, o que se chama querer, a inuti-
lidade para todos.
No que diz respeito ao "nihilismo", admitiremos que nossa
época é sua testemunha. na exata medida em que entendemos
24
NIHILISMO?

por nihilismo a ruptura da figura tradicional do vinculo, o des-


ligamento como forma de ser de tudo que faz semblante de vín·
cuJo. É indubitável que nosso tempo se sustenta numa espécie
de atomística generalizada, porque nenhuma sanção simbólica
do vínculo está em condições de resistir à potência abstrata do
capital. Que tudo que é amarrado se verifica que, enquanto ser,
é desligado, que o reino do múltiplo é o fundo sem fundo~ do
que se apresenta sem exceção, que o Um é apenas o resultado
de operações transitórias, eis o efeito inelutável da arrumação
universal dos termos de nossa situação no movimento circulante
do equivalente geral monetário. Como o que se apresenta tem
sempre uma substância temporal, e o tempo nos é, no sentido
. literal, contado, nada existe que seja intrinsecamente amarrado
a outra coisa, pois que um ou outro termo dessa suposta ligação
essencial são projetados indiferentemente na superfície neutra
da conta. Não há nada absolutamente a retomar na descrição dada ·
deste estado coisas por Marx há cento e quarenta anos:
"Por toda parte onde a burguesia conquistou o poder, ela
espezinhou as relações feudais, patriarcais, idílicas. Todos os
laços complexos e variados que unem o homem feudal a seus
superiores naturais, ela os rompeu sem piedade para não deixar
subsistir outro vínculo, entre homem e homem, senão o frio in-
teresse, as duras exigências do pagamento em dinheiro contado.
Ela afogou os tremores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo
cavalheiresco, da sentimentalidade pequeno·burguesa, nas águas
geladas do cálculo egoísta''.
O que Marx põe em evidência é, muito particularmente;
o fim das figuras sagradas do vínculo, a perempção da garantia
simbólica acordada ao vínculo pela estagnação produtiva e mo-
netária. O capital é o dissolvente universal das representações
sacralizantes, que postulam a existência de· relações intrínsecas
e essenciais (entre o homem e a natureza, entre os homens, entre
os grupos e a Cidade, entre a vida mortal e a vida eterna, etc.).
É muito característico que a denúncia do "nihilismo técnico"
seja sempre correlata da nostalgia de tais relações. O desapare-
25
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

cimento do sagrado é um tema recorreQ.te no próprio Heidegger.


e a predição de seu retomo identifica-se ao tema, tomado de Ho-
elderlin, do "retorno dos Deuses". Se entendennos por "nihi-
lismo" a dessacralização, o capital, cujo reino planetário não
deixa dúvidas - mas "técnica" e "capital" só são emparelhá-
veis numa seqüência histórica, e não no conceito -. é certamente
a única potência nihilista da qual os homens conseguiram ser tanto
os inventores quanto as vítimas.
Contudo, para Marx como para nós, a dessacralização não
é de modo algum nihilista, na medida em que "nihilismo,. deva
significar o que pronuncia que o acesso ao ser e à verdade é im-
possível. Muito ao contrário, a dessacralização é uma condiçlJo
necessária para que tal acesso se abra ao pensamentO. É eviden-
temente a única coisa que podemos e devemos saudar no capital:
ele põe a descoberto o múltiplo puro como fundo da apresentação,
denuncia todo efeito de Um como simples configuração precá-
ria, destitui as representações simbólicas nas quais o vínculo en-
contrava um semblante de ser. Que esta destituição opere na mais
completa barbárie, não deve dissimular sua virtude propriamente
ontológica. A que devemos nos ter livrado do mito da Presença,
da garantia que ela oferece à substancialidade dos vínculos e à
perenidade das relações essenciais, senão à automaticidade er-
rante do capital? Para pensar além do capital e de sua prescrição
medíocre (a conta geral do tempo), ainda é preciso panir daquilo
que ele revelou: o ser é essencialmente múltiplo, a Presença sa-
grada é puro semblante, e a verdade, como qualquer coisa, se
ela existe, não é uma revelação, menos ainda a proximidade do
que se retira. Ela é um procedimento regrado, cujo resultado é
um múltiplo suplementar.
Nossa época não é nem técnica (porque o é mediocremente) .
nem nihilista (pois é a primeira épOca que a destituição dos vín-
culos sagrados abre à genericidade do verdadeiro). Seu enigma
próprio, ao contrário das especulações nostálgicas do socialismo
feudal, cujo emblema mais perfeito certamente foi Hitler, reside
primeiramente na manutenção local do sagrado que se tentou,
26
NIHILISMO?

mas que também se denegou pelos grandes poetas depois de Ho-


elderlin. E. em segundo lugar, nas reações anti-técnicas, arcai-
zantes, que ainda prendem nossos olhos a cacos de religião (do
suplemento de alma ao islamismo). a políticas messiânicas (mar-
xismo inclusive), a ciências ocultas (astrologia, plantas curati-
vas, massagens telepáticas, terapias de grupo por futucações e
borborigmos ... ), e toda. sorte de pseudo-vínculos cujo amor ao
xarope das canções, amor sem amor, sem verdade nem encon-
tro, constitui a mole matriz universal.
A filosofia não acabou de modo algum. Mas a tenacidade
desses resíduos do império do Um, os quais constituem, eles .
sim, o nihilísmo anti-"nihilista .. , pois que se põem de través
aos procedimentos de verdade, e designam o obstáculo recorrente
oposto à ontologia subtrativa cujo -capital é o medium histórico,
nos dá a pensar que a filosofia esteve por longo tempo suspensa.
Adianto este paradoxo: a filosofia ainda não. soube, até
muito recentemente, pensar~ altura do capital, pois deixou o
campo livre, até o mais íntimo dela mesma, às vãs nostalgias
do sagrado, à assombração der Presença, à dominação obscura
do poema, à dúvida sobre sua própr:ia legitimidade. Ela não soube
trocar em pensamento o fato de que o homem se tomou. irre-
versivelmente, "senhor e dono da natureza", e que não se trata
aí nem de uma perda nem de um esquecimento, mas sim de sua
mais alta destinação - entretanto figurada, ainda, na estupidez
opaca do tempo contado. A filosofia deixou inacabada a "me-
ditação cartesiana'', perdendo-se na estetização do querer e no
patos do término, do destino do esquecimento, do traço perdido.
Ela não quis reconhecer sem desvio a absolutidade do múltiplo
e o não-ser do vínculo. Ela se agarrou à língua, à literatura, à
escrita, como aos últimos representantes possíveis de uma deter-
minação a priori da experiência, ou como ao lugar preservado
de uma clareira do Ser. Ela declarou, depojs de Nietzsche, que
o que havia começado com Platão entrava em seu crepúsculo,
mas esta arrogante declaração encobria a impotência de conti-
nuar esse começo. A filosofia não denuncia nem incensao "ni-
27
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

hilismo moderno" senão na medida de sua própria dificuldade


de apreender por onde transita a positividade atual, e por falta
de conceber que acabamos de entrar cegamente numa nova etapa
da doutrina da verdade, que é a do múltiplo-sem-Um, ou das
totalidades fragmentárias, infmitas e índiscemfveis...Nihilismo"
é um significante tapa-buraco. A verdadeira questão permanece:
o que áconteceu com a filosofia para que ela recuse friorenta-
mente a liberdade e a potência que uma época dessacralizante
lhe propõe?

28
6. Suturas

Se a filosofia é, como estou sustentando, a configuração,


como pensamento, do fato de que suas quatro condições gené-
ricas (poema, materna, política e amor) são compossfveis na forma
eventural que prescreve as verdades do tempo. uma suspensão
da filosofia pode resultar do fato de que o livre jogo requisitado
para que ela defina um regime de passagem, ou de circulação
intelectual entre os procedimentos de verdade que a condicionam,
se encontra restrito, ou bloqueado. A causa mais freqüente de
tal bloqueio é que em vez de edificar um espaço de compossi-
bilidade através do qual se exerça um pensamento do tempo, a
filosofia delega suas funções a tal ou qual de suas. condições,
ela entrega·o todo do pensamento a um procedimento genérico.
A filosofia se efetua então no elemento de sua própria supressão
em proveito desse procedimento.
Chamarei de sutura esse tipo de situação. A filosofia é
.posta em suspensão de cada vez que se apresenta como suturada
a umá de suas condições, e se proibe por isso de edificar livre-
mente um espaço sul generis onde as nomeações eventurais que
indicam a novidade das quatro condições venham inscrever-se
e afirmar, num exercício de pensamento que não se confunda
com nenhuma delas, sua simultaneidade e, portanto, um certo
estado configurável das verdades da époéa.

29
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

O século dezenove, entre Hegel e Nietzsche, foi ampla-


mente dominado por suturas, e é por isso que a filosofia parece
nele sofrer um eclipse. A principal dessas suturas foi a sutura
positivista, ou cientificista, que esperou da ciência, que ela con-
figurasse por si mesma o sistema acabado das verdades do tempo.
Esta sutura ainda domina, embora seu prestígio esteja abalado,
·a filosofia acadêmica anglo-saxônica. Seus efeitos mais visíveis
caem naturalmente sobre o estatuto das outras condições.
Tratand.o-se da condição política, ~la se vê retirada de todo es-
tatuto eventural, e reduzida à defesa pragmática do regime liberal-
-parlamentar. O enunciado ao mesmo tempo latente e central é,
de fato, que a polftíca nao depende de modo algum do pensa-
mento: A condição poética é foracluída, registrada no suplemento
cultural, ou proposta como objeto às análises linguísticas~ A con-
dição amorosa é ignorada: devo a Jean-Luc Nancy esta profunda
observação de que a essência dos USA é de ser um país onde
o sentimentalismo e o sexo coexistem em detrimento do· amor.
A surura da filosofia à sua condição científica a reduz progres-
sivamente a não ser mais do que uma raciocinação analítica, cuja
linguagem, em todos os sentidos do termo, paga as contas. Li-
vre carreira é assim oferecida a uma religiosi~ade difusa que serve
de algodão hidrófilo para as feridas e mossas da brutalidade ca-
pitalista.
Em sua forma canônica dominante, o marxismo propôs
ele próprio uma sutura, a da filosofia à ·sua condição polftica.
É todo o equívoco da famosa tese sobre Feuerbach, que pretende
substituir a "interpretação" do .mundo por sua transformação
revolucionária. A política é aqui filosoficamente designada como
só ela capaz de configurar praticamente o sistema geral do sen-
tido, e a filosofia é votada a sua supressão realizante. Que a po-
lítica, de resto amplamente identificada por Marx com o
movimento real da História, seja a forma última da totalização
da experiência, destitui simultaneamente as outras condições e
a filosofia que pretendia inscrever sua compossibilidade com a
política. Conhecemos os ressaibos de Marx e dos marxistas re-
30
SUTURAS

lativos a tudo que diz respeito à atividade artística, da qual não


chegaram nem a pensar a singularidade nem a respeitar o rigor
inventivo. Quanto aos efeitos de verdade da diferença dos sexos,
eles sofreram, no fmal das contas, a dupla ocultação do purita-
nismo "socialista" e do desprezo no qual era mantida a psica-
nálise (a qual é, a meu ver, a única verdadeira tentativa moderna
de fazer do amor um conceito).
Quanto à condição científica, o negócio é mais complicado.
Marx e seus sucessores, nisto tributários da sutura positivista
dominante, sempre pretenderam elevar a política revolucionária
à categoria de uma ciência. Eles mantiveram o equívoco entre
"ciência da História" - o materialismo histórico - e o movi-
mento dirigido da História pelo viés da política. Desde a origem,
opuseram o socialismo deles, "cientffiço". aos diversos socia-
lismos "utópicos". Podemos então afirmar que o marxismo cru-
zou duas suturas, com a política e com a ciência. De resto, é
a rede complexa dessa dupla suturação que Stalin, particular-
mente, chama de "filosofia" - ou materialismo dialético. Disso
resulta que a dita "filosofia" se apresenta sob a forma estranha
de "leis", as "leis da dialética'\ equivocamente aplicáveis à
Natureza e à História.
Mas em última instância, como na visão "materialista"
a ciência é remetida a suas condições técnico-históricas, a dupla
sutura é articulada sob o domínio da política, a qual pode, so-
zinha, totalizar tamb~m a ciência, como se vê quando o mesmo
Stalin se meteu a legiferar sobre a genética, a linguística ou a
física relativista, em nome do proletariado e de seu Partido. Esta
situação criou uma paralisia filosófica tão embrulhada que, quando
Louis Althusser empreendeu, nos anos sessenta. pôr novamente
em jogo o pensamento marxista. não viu outra saída senão re-
verter a articulação das duas suturas em proveito da ciência. e
fazer do marxismo filosófico algo como a epistemologia do ma-
terialismo histórico. Em parte alguma a pregnâncía das suturas
na filosofia dessa época é mais visível do que no esforço heróico
com o qual Althusser empreendeu reverter o marxismo para o
31
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

lado da sutura da filosofia à ciência, na justa consciência em que


ele estava de que o domínio de sua sutura à condição política
era ainda mais nocivo. O preço a pagar por esta operação de trans-
ferência foi o de manter a delegação da política a um órgão tão
suspeito e deteriorado corno o Partido Comunista Francês, o que
conseqüentemente proibia o pensamento de apreender isto. A in-
vestida filosófica, depois de alguns sucessos iniciais, veio fra-
cassar no evento de Maio de 68, cuja nomeação no pensamento
excedia, por todos os lados, os recursos da condição científica,
e exibia cruelmente a perempção histórica do PCF.
A tese que adianto é, em definitivo, a seguinte: se a filo·
sofia está no círculo fechado de sua suspensão, talvez depois de
Hegel, é porque ela está cativa de uma rede de suturas a suas
condições, especialmente a suas condições científica e política,
que a proíbem de configurar sua compossibilidade geral. É então
exato· que algo do tempo, do nosso ·tempo, lhe escape, e que ela
tenha dado de si mesma uma imagem desfeita e encolhida.
Um signo infalível pelo qual se reconhece que a filosofia
está sob o efeito dirimente de alguma sutura a uma de suas con- ·
dições genéricas é a monótona repetição do enunciado segundo
o qual a "forma sistemática" da filosofia se tornou doravante
impossível. Este axioma anti-sistemático é hoje em dia sistemá-
tico. Lembrei, no início deste livro. a forma que lhe dá Lyotard,
mas, com exceção sem dúvida de Lardreau e Jambet, ele é co-
mwn a todos os filósofos franceses contemporâneos e especial-
mente a todos aqueles que se iluminam por essa singular
constelação típica onde encontramos os sofistas g~;egos, NietzS-
che, Heidegger e Wíttgenstein.
Se entendemos por "sistema" uma figura enciclopédica,
ela própria dotada de uma chave-mestra ou ocdenada por algum
significante supremo, acho mesmo que a dessacralização·modema
proíbe seu desenvol~imento. A filosofia, a não ser talvez Aris-
tóteles e Hegel, terá ela, de resto, jamais sustent;ado tal ambição?
Se entendemos por "sistematicidade", como devemos fazê-lo,
o requisito de uma configuração completa das quatro cond.ições
32
SUTURAS

genéricàs da filosofia (o que, ainda uma vez, não exige de modo


algum que os resultados dessas condições sejam exibidos ou
mesmo mencionados), segundo urna exposição que exponha tam-
bém· sua regra de exposição, então é da essência da filosofia ser
sistemátiça, e nenhum filósofo jamais duvidou disto, de Platão
até Hegel. De resto. é por isso que a recusa da ''sistematicidade"
vai hoje em dia de par com o sentimento moroso, de que falei
no começo deste texto, de uma "impossibilidade" da filosofia
mesma. É a confissão de que ela não é de modo algum impos-
sível, mas está entravada pela rede histórica das suturas.
Não posso conceder a Lyotard sua defmição da filosofia:
um discurso à procura de suas próprias regras. Há .pelo menos
duas regras universais, na falta das quais não se tem mais ne-
nhuma razão de falar de filosofia. A primeira é que ela deve dis-
por as nomeações eventurais de suas condições e, portanto, tomar
possível o pensamento simultâneo, conceimalmente unificado do
materna, do poema, da invenção política e do Dois do amor. A
segunda é que o paradigma de percurso, ou de rigor. que esta-
belece esse espaço de pensamento, no qual os procedimentos ge-.
néricos encontram abrigo e acolhimento, deve ser exibido no
interior desse abrigo e desse acolhimento. É outra maneira de
dizer que a filosofia s6 é des-suturada se ela é, por sua própria
conta, sistemática. Se a contrario a filosofia declara a impossi-
bilidade do sistema, é que ela está suturada, é que ela entrega
o pensamento a uma só de suas condições.
Se, no século dezenove e mais além, a filosofia sofreu a
dupla sutura à sua condição política e· à sua condição científica,
compreendemos muito bem que, especialmente depois de Nietzs-
che, se tenha exercido sobre ela a tentação de se entregar, pela
sutura, a uma.outra condição. A arte estava inteiramente desig-
nada para isto. O que culmina com Heidegger é o esforço, anti-
-positivista e anti-marxista, de entregar a filosofia ao poema.
Quando Heidegger designa como efeitos cruciais da técnica, de
uma parte a ciência moderna. de outra parte o Estado totalitário,
ele indica na realidade as duas suturas dominantes, das quais o
33
MANIFESTO PElA FILOSOFIA

pensamento só se salvará abandonando-as. A via que ele propõe


não é a da filosofia, a seus olhos realizada na técnica, é aquela,
pressentida por Nietzsche, mesmo pot Bergson, prolongada na
Alemanha pelo culto filosófico dos poetas~ na França pelo feti-
chismo da literatura (Blanchot, Derrida, Deleuze também••.), que
delega o vivo do pensamento à condição artística. Servidora a
Oeste da ciência, a Leste da política, a filosofia tentou, na Eu-
ropa ocidental, servir pelo menos ao outro Mestre, o poema. A
situação atual da filosofia é: Arlequim servidor·de três senhores.
Podemos mesmo acrescentar que um Levinas, à g\iisa da pro-
posição dual sobre o Outro e seu rosto, sobre a Mulher, visualiza
que .a filosofia possa também se tornar o valete de sua quarta
condição, o amor.
Adianto que é hoje possível, portanto exigível, romper to-
dos esses contratos. O gesto que proponho é pura e simplesmente
o da filosofia, o da des-sutura. Acontece que o desempenho prin-
cipal, a dificuldade suprema, é a de des-suturar a filosofia de
sua condição poética. Positivismo e marxismo dogmático não
constituem mais do que posições ossificadas. São suturas pura-
mente institucionais ou acadêmicas. Em contrapartida, o que deu
poder à sutura poetizante, a Heidegger portanto, está longe de
se desfazer, até por falta de ter sido examinado.
O que foram e o que pensaram os poetas no tempo em
que a filosofia perdia seu espaço próprio, suturada que estava
ao materna ou à política revolucionária?

34
7. A era dos poetas

No período que se abre, grosso modo, logo depois de He-


gel, período no qual a fllosofia está o mais freqüentemente su-
turada seja à condição científica, seja à condição política, a poesia
tomou para si certas funções da filosofia. E também todo mundo
concorda em dizer que então se trata de um período excepcional
para essa arte. Contudo, a poesia e os poetas de que falamos não
são nem toda a poesia nem todos os poetas. Trata-se daqu~les
cuja ob.i:a é imediatamente reconhecível como uma obra de pen-
samento, e para a qual o poema é, no lugar mesmo onde a fi-
losofia desfalece, o lugar da língua onde se exerce uma proposição
sobre o ser e sobre o tempo. Esses· poetas não decidiram
substituírem-se aos filósofos, não escreveram na consciência cla-
rificada de uma tal substituição. Melhor, é preciso imaginar que
se exercia sobre eles uma espécie de pressão intelectual induzida
pela ausência de livre jogo dentro da filosofia, pela necessidade
de constituir, do interior de sua arte, esse espaço geral de aco-
lhimento para o pensamento e para os procedimentos genéricos
que~ suturada, a filosofia não conseguia mais estabelecer. Se a
poesia foi singularmente designada para este ofício, foi, de uma
parte, porque ela não figurava, pelo menos até Nietzsche e Hei-
degger, entre as condições a que, de maneira privilegiada, a fi-
losofia se suturava; de outra parte, porque é uma vocação remota

35
MANIFESTO PElA FILOSOFIA

da..Jl(>eSia, arte..do_yínculo .entre.a...palavra..e...a..experiência, ter,


como seu horizonte quimérico, o ideal da Presença tal como uma
palavra pode fundá-la. A rivalidade do poeta com o filósofo é
uma velha história, como vemos no exame especialmente severo
ao qual Platão submete a poesia e os poetas. A desforra contra
Platão, da qual Nietzsche foi o profeta, não podia não se ancorar
na jurisdição do poema. Descartes, Leibniz, Kant ou Hegel bem
podiam ser matemáticos, historiadores, físicos, se há uma coisa
que eles não eram, era poetaS. Mas depois de Nietzsche todos
pretendem isso, todos Invejam os poetas, todos são poetas fra-
cassados ou aproximativos, ou notórios, como vemos com Hei-
degger, mas também com Derrida, ou Lacoue-Labarthe, e mesmo
Jambet ou Lardreau saúdam a inelu~vel vertente poética das ele-
vações metaffsicas do Oriente.
É que houve, com efeito, uma era dns poetas, no tempo
da sutura deserdada dos filósofos. Houve um tempo, entre Ho-
elderlin e Paul Celan, em que o sentido trêmulo do que fosse
esse tempo mesmo, o modo de acesso mais aberto à questão do
ser, o espaço de compossibilidade menos aprisionado em suturas
brutas, a formulação mais alerta da experiência do homem mo-
demo, foram desencadeados e sustentados pelo poema. Um tempo
no qual o enigma do tempo foi tomado pelo enigma da metáfora
poética, em que o próprio desligamento se enlaçou no "como"
da imagem. Toda uma época se representou em curtas filosofias
como uma época consistente e sobretudo orientada. Havia o pro-
gresso, o sentido da História, a fundação milenar, o advento de
um outro mundo, e de outros homens. Mas o real dessa época
era bem mais a inconsistência e a desorientação. A poesia, pelo
menos a poesia Hmetaffsica", a poesia mais concentrada, a mais
intelectualmente tensa, a mais obscura também, ela sozinha, de-
signou e articulou-essa desorientação essencial. A poesia traçpu,
nas representações orientadas é.la História, uma diagonal desorien-
tadora. A secura cintilante desses poemas fez a cesura - pa·r a
retomar um conceito de Lacoue-Labarthe, vindo de Hoelderlin
- do patos histórico. ·
36
A ERA DOS POETAS

Os representantes canônicos da era dos poetas são objeto,


a partir do momento em que a filosofia tenta suturar-se à con-
dição poética, de uma eleiç(J() filosófica. Michel Deguy chega
a dizer- é verdade que ele é poeta - : ..A filosofia, para pre-
parar para a poesia". Em todo caso, para preparar a lista dos
poetas que a filosofia reconhece que se apossaram, por longo
tempo, de suas funções ordinárias. ·
No que me conceme (mas. sustento que a era dos poetas
acabou, e é do ponto desse fecho que enuncio minha própria lista,
lista por conseqüente fechada), reconheço sete poetas cruciais,
não que eles sejam forçosamente os "melhores poetas .. , impra-
ticável distribuição de prêmios, mas que periodizaram, escan-
dira.m, a era dos poetas. Trata-se de Hoelderlin, o profe~ deles,
seu vigia antecipador, depois, todos posteriores à Comuna de
Paris, que marcou a abertura da desorientação representada como
sentido orientado, Mallanné, Rimbaud, Trakl, Pessoa, Mandeis-
- tam e Celan.
Não se trata aqui de estudar o emaranhamento histórico,
as reviravoltas, os poemas fundadores, as operações singulares
(como O Livro de Mallarmé, o desregramento de Rimbaud, os
heterônimos de Pessoa... ) que são tantas operações conceituais
cujo total não alinhável compõe a era dos poetas como a era do
pensamento. Algumas observações entretanto.

1) A linha fundamental seguida por nossos poetas e que


lhes permite subtraírem-se aos efeitos das suturas filosóficas é
a da destituiçlJo da categoria de objetq. Mais praticamente: a
destituição da categoria de objeto, e da de objetividade, como
formas necessárias da apresentação. O que tentam os p~ da
era dos poetas é abrir um acesso ao ser, ali mesmo onde o ser
não se ·pode sustentar pela categoria apresentativa do objeto. A
poesia é, então, essencialmente desobjetivante. Isto não significa,
de modo algum, que o sentido seja entregue ao sujeito, ou ao
subjetivo. Muito pelo contrário, pois o de que a poesia tem uma
consciência aguda, é do vínculo organizado pelas suturas entre
37
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

"objeto" ou objetividade, e "sujeito". Esse vínculo é constitu-


tivo do saber ou do conhecimento. Mas o acesso ao ser que a
poesia tenta não é da ordem do conhecimentó. Ele é então dia-
gonal à oposição sujeito/objeto. Quando Rimbaud enche de sar-
casmo a ''poesia subjetiva'', ou quando Mallarmé estabelece que
o poema só tem lugar se seu autor como sujeito é ausentado,
eles entendem que a verdade do p<>ema tem advento na medida
em que o que ele enuncia não depende nem da objetividade nem
da subjetividade. Pois, para todos os poetas da era dos poetas,
se.a consistência da experiência está ligada à objetividade, como
pretendem as filosofias suturadas ao se reclamarem de Kant, então
é preciso sustentar audaciosamente que o ser inconsiste, o que
Celan resumirá admiravelmente:

"Sobre as inconsistências
se apoiar"

A poesia, que procura o traço, ou o limiar, da Presença,


nega que possamos nos manter em tal soleira ao mesmo tempo
que conservando o tema da objetividade e, por via de conseqüên-
cia, também não é mais um sujeito - correlato obrigatório do
objeto - que é o suporte de tal experiência. Se a poesia captou
no obscuro a escuridão do tempo, é porque, qualquer que seja
a diversidade e mesmo a dimensão inconciliável de seus proce-
dimentos, ela destituiu o quadro "objetivante" sujeito/objeto den-
tro do qual, no elemento das suturas, se afirmava filosoficamente
que esse tempo estava orientado. A desorientação poética é, de
saída, sob a lei de uma verdade que fura e oblitera tooo conhe-
cimento, que existe uma experiência subtraída simultaneamente
à objetividade e à subjetividade.

2) O que deu força ao pensamento de Heidegger foi ele


cruzar a critica propriamente filosófica da objetividade com sua
destituiç(U) poética. O golpe de gênio - só que ele jamais deixa
de ser um modo de sutura. desta ~ez à condição poética - foi:
38
A ERA DOS POETAS

- apreender, especialmente através do exame de K.ant,


que o que separava a "ontologia fundamental" da doutrina do
conhecimento era a manutenção, na segunda, da categoria de ob-
jeto, fio condutor e limite absoluto da crítica kantiana;
- não cair, nem por isso, no subjetivismo, ou numa fi-
losofia radical da consciência, via seguida em defmitivo por Hus-
serl, mas, bem ao contrário, pronunciar a desconstrução dó tema
do sujeito, considerado como último avatar da metafísica e cor-
relato forçoso da objetividade;
- manter assim firmemente a distinção capital entre saber
e verdade, ·ou entre conhecimento e pensamento, distinção que
é o fundamento latente do empreendimento poético;
- chegar assim ao ponto onde é possível entregar a filo-
sofia ~ poesfa. Esta sutura aparece como· uma garantia de força,
pois é verdade que houve uma era dos poetas. A existência dos
poetas deu ao pensamento de Heidegger, sem ela aporético e de-
sesperado, um solo de historicidade, de efetividade, capaz de
lhe conferir - uma vez que a miragem de uma historicidade po-
lítica se concretizou e se dissolveu no horror nazista - o que
devia ser sua única ocorrência real.
Até hoje, o pensamento de Heidegger mantém seu pader
de persuasão por ter sido o único a captar o que estava em jogo
no poema, nomeadamente a destituição do fetichismo do objeto,
a oposição da verdade ao saber e, finalmente, a desorientação
essencial de nossa época.
É por isso que não poderia existir crítica fundamental de
Heidegger senão esta: a era dos poetas acabou, é preciso .des-
-suturar também a filosofia de sua condição poéti<;.a . O que quer
dizer: a desobjetificação, a desorientação não estão mais hoje
em dia obrigadas a se enunciarem pela metáfora poética. A de-
sorientação é conceitualizdvel.

3) Há entretanto, no balanço heideggeriano da era dos po-


etas, um ponto de falsificação. Heidegger faz como se o dizer
poético identificasse a destituição da objetividade e a destituição
39
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

da ciência. Arriscando o Aberto do próprio seio do desamparo


técnico, o poema faria comparecer, exporia, a •'ciência moderna"
na categoria da objetivação .do mundo e do sujeito como vontade
nadificadora. Heidegger ''monta'' a antinomia do materna e do
poema de maneira a que ela coincida com a oposiçao do saber
com a verdade, ou do par sujeito/objeto com o Ser. Ora, esta
montagem não é legível na poesia da era dos poetas. A relação
autêntica dos poetas com as matemáticas é de ordem inteiramente
diversa. Aparece como uma relação de rivalidade em torsão, de
comunidade heterogênea no mesmo ponto. A vontade " algébrica' '
da poesia mallarrnaica é flagrante, e quando ele escreve " vós,
matemáticos, expirantes", é apenas para apontar que no lugar
preciso onde opera a conspiração do acaso e do infinito, a poesia
resgata o materna. Quando Rimbaud anota- sentença particular-
mente profunda sobre a essência literal da ciência: "Fracos se
punham a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, que pode-
riam rapidamente rumar para a loucura!'', ele inscreve, no mesmo
golpe, a paixão do materna ao lado dos desregramentos salva-
dores, pois o que é no fundo a matemática senão a decisão de
pensar sobre as letras? Lautréamont. digno herdeiro de Platão,
de Spinoza e de Kant, considera que as matemáticas o salvaram,
e o salvaram no ponto preciso da destituição do par sujeito/objeto,
ou Homem/mundo: "Oh, matemáticas severas, não as esqueci,
depois que suas sábias lições, mais doces do que o mel, se in-
filtraram no meu coração como uma onda refrescante. Sem vo-
cês, em minha luta contra o homem, talvez eu tivesse sido
vencido" .
E quando Pess()a escreve: ''O binômio de Newton é tão
belo como a Vênus de Mito/O que há é pouca gente para dar
por isso", nos dá a pensar que, .melhor do que opor a verdade
do poema ao nihilismo latente do materna, o imperativo é agir
de modo que, dessa identidade de beleza, não mais ''pouca gente'',
mas todo mundo, dê por isso afinal.
A poesia, mais profunda nisso do que seu servidor filó-
sofo, teve completa consciência de uma partilha de pensamento
40
A ERA DOS POETAS

com as matemáticas, porque ela cegamente percebeu que tam-


bém o materna, em sua pura doação literal, em sua sutura vazia
para qualquer apresentação múltipla, questionava e destituía a
prevalência da objetividade. Os poetas souberam, é verdade que
melhor do que os próprios matemáticos, que não existia objeto
matemático.
Toda sutura é um exagero. pois como já repeti com Hei-
degger, a filosofia agrava os problemas. Suturada a uma de suas
condições, ela lhe empresta virtudes que, do interior do exercí-
cio dessa condição. não poderíamos perceber. Ao isolar o poema
como figura única do pensamento e do risco, como instância de
destino do desamparo e da salvação; ao chegar a visualizar, ·se-
guindo René Char, um "poder dos poetas e dos pensadores",
Heidegger excedeu a jurisdição poética que, salvo quando ela
"faz a pose" (o que, que fazer?!, é o caso de Char, mais vezes
que o dele), não legifera sobre tal unicidade e trata em particular
o materna - mas também a política e o amor - com um viés
inteiramente diverso. Ele não fez melhor em relação ao poema
do que aqueles - eu fui um deles - que absolutizaram filoso-
ficamente a política desde o interior da sutura marxista, muito
para além do que a política real estava em condições de enunciar
sobre si mesma. Também não melhor do que aquilo que, como
promessas mirabolantes, os filósofos positivistas extirparam de
urna ciência a mais não poder, e para a qual a promessa, qual-
quer que ela seja, é inteiramente estranha.

4) A operação central a partir da qual podemos incluir e


pensar um poeta da era dos poetas é seu "método" de desobje-
tivação, portanto o procedimento, o mais freqüentemente muito
complexo, que ele opera para produzir verdades na falta do sa-
ber, para enunciar a desorientação no movimento metafórico de
uma destituição do par sujeito/objeto. São esses procedimentos
que diferenciam os poetas e peri.odizam a era dos poetas. Eles
dependem principalmente de dois tipos: coloca-se a falta, ou se
coloca o excesso. O objeto ou é subtraído, retirado da Presença
41
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

por sua própria auto-dissolução (é o método de Mallarmé), ou


é extirpado de seu domínio de aparição, desfeito por sua exceção
solitária, e tornado por conseguinte substituível por qualquer ou-
tro (é. o método de Rimbaud). O poema regra a falta, ou desregra
a apresentação. Simultaneamente, o sujeito é rescindido, seja pela
ausentificação (Mallarmé), seja por pluralização efetiva (Pessoa,
Rimbaud: "Perante vários homens, conversei bem alto com um
momento de suas outras vidas. - Assim, eu amei um porco").
Nada melhor do que o inventário desses procedimentos indica
até que ponto esses poemas são conexos, de fato substituídos pro-
visoriamente, aos ''andaimes'' do espaço de pensamento que de-
fine a filosofia.

5) A obra de Paul Celan enuncia, em fronteira terminal,


e desde o interior da poesia, o fim da era dos poetas. Celan ter-
mina Hoelderlin.

42
8. Eventos

Que seja hoje possível, logo necessário, des-suturar a filo-


sofia e proclamar seu renascimento; que após a longa suspensão
que acarretaram os privilégios sucessivos e ruinosos da condição
científica (positivismo), da condição política (marxismo) e da
condição poética (de Nietzsche até hoje), retoma o imperativo
de configurar as quatro condições a partir de uma doutrina in-
teiramente refundida da verdade; que em ruptura para com os
anúncios repetidos do "fim.da filosofia", do " fim da metafísica",
da "crise da razão", da "desconstrução do sujeito", a tarefa
seja a de retomar o fio da razão moderna, de dar um passo a
l11llis na filiação da "meditação cartesiana": tudo isto não pas-
saria de um voluntarismo arbitrário se aquilo que Jhe funda o
sentido não se achasse tendo o estatuto de eventos cruciais so-
brevindos, embora segundo nomeações ainda suspensas, ou pre-
cárias, ao registro de cada uma das quatro condições. São estes
eventos do materna; do poema, do pensamento do amor e da po-
lítica inventada que nos prescrevem o retorno da filosofia, na
aptidão de dispor um lugar intelectual de abrigo e de acolhimento
para aquilo que, desses eventos, é presentemente nomeável.
Na ordem do materna, o trajeto que vai de Cantor a Paul
Cohen constitui esse evento. Ele funda o paradoxo central da
teoria do múltiplo e o articula pela primeira vez de maneira in-
tegralmente demonstrativa num conceito discernível do que seja
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

uma multiplicidade indiscernfvel. Resolve, num sentido oposto


àquele que Leibniz propunha, a questão de saber se um pensa-
mento racional de ser-enquanto-ser se dobra ou não à soberania
da língua. Sabemos hoje que não é nada disso, e que, ao con-
trário, é só levando em conta a existência de multiplicidades quais-
quer, inomináveis, "genéricas,., multiplicidades que nenhuma
propriedade da língua delimita, que temos a chance de aproxi-
mar a verdade do ser de um múltiplo dado. Se a verdade faz furo
no saber. se portanto não há saber da verdade, mas somente pro-
duçao de verdades, é que, pensada matematicamente em seu ser
- logo como multiplicidade pura - uma verdade é genérica,
subtraída a qualquer designa~ão exata, excedentária com relação
ao que esta permite discernir. O preço a pagar por essa certeza
é que a quantidade de um múltiplo suporta uma indeterminação,
uma espécie de falha disjuntiva que constitui todo o real do pró-
prio ser: é propriamente tmpossfvel pensar a relação quantitativa
entre o ..número" dos elementos de um múltiplo infinito e o nú-
mero de suas partes. Esta relação tem somente a fonna de um
excesso errante: sabemos que as partes são mais numerosas do
que os elementos (teorema de Cantor), mas nenhuma medida desse
"mais" se deixa estabelecer. É de resto nesse ponto real - o
excesso errante no quantitativo intmito - que se estabelecem
as grandes orientaçlJes no pensamento. O pensamento nominalista
recusa este resultado, e só admite à existência as multiplicidades
nomeáveis. Ele é anterior ao advento do materna de que falo,
e é portanto um pensamento conservador. O pensamentQ_gans-
cendente crê que a determinação de um ponto-múltiplo, situado
para além das medidas ordinárias, regrará, fixará ..de cima",
a errância do excesso. É um pensamento que tolera o indiscer-
nfvel, mas como efeito transitório de uma ignorância relativa a
algum múltiplo "supremo". Ele não homologa portanto o ex-
cesso e a errância como leis do ser. mas espera uma língua com-
pleta, embora admitindo que dela não dispomos ainda. É um
pensamento profético. Enfim. o pensamento genütco assume o·
indicemlvel como o tipo de ser de qualquer verruide e toma a
44
EVENTOS

errância do excesso pelo real do ser. pelo ser do ser. Como disso ·
resulta que qualquer verdade é uma produção infinita suspensa
a um evento, irredutível aos saberes estabelecidos e determinada
somente pela atividade dos fiéis desse evento, podemos dizer que
o pensamento genérico é, no sentido mais amplo, um pensamento
militante. Se devemos correr aqui o risco de um nome para o
advento do materna de que somos os filósofos contempor~eos,
conviremos em dizer que esse evento é o da multiplicidade in-
discernfvel, ou genérica, como ser-em-verdade do múltiplo puro
(logo: como verdade do ser-enquanto-ser)!
Na ordem do amor, do pensamento do que ele é de fato
portador de verdades, o evento é a obra de Jacques Lacan. Não
vamos entrar aqui na questão suplementar do estatuto da psica-
nálise, questão outrora fórmulada, em referência à sutura posi-
tivista, sob a forma "a psicanálise é ciência?", e que prefiro
enunciar assim: "A psicanálise é um procedimento genérico?
Ela faz pane das condições da filosofia?". Notemos apenas que
sendo dado que, depois de Platão até Freud e Lacan, a filosofia
s6 conheceu quatro procedimentos genéricos, seria considerável,
e justificaria um pouco a arrogância freqüente dos sectários da
psicanálise, que esta impõe ao filósofo tratar de uma quinta. Se-
ria com efeito uma revolução no pensamento, urna época intei-
ramente nova das atividades configurantes da filosofia. Mas a
supormos que a psicanálise não seja mais que um dispositivo de
opinião endossado por práticas instin.Jcionais, disso resultaria ape-
nas que Freud e Lacan são na realidade filósofos, grandes pen-
sadores que, a propósiro desse dispositivo de opinião, contribuíram
para a conceituação do espaço ger:al no qual os procedimentos
genéricos do tempo vêm encontrar o abrigo e o acolhimento de
sua compossibilidade. Eles tiveram, em qualquer hipótese,. o
imenso mérito de manter e refundir a categoria de sujeito, em
tempos nos quais a filosofia, diversamente suturada, abdicava
sobre este ponto. Eles terão, à sua maneira, prosseguido a ••me-
ditação cartesiana••, e não foi por acaso que Lacan lançou, desde
o começo de sua obra essencial, a palavra de ordem de um ''re-
45
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

tomo a Descartes". Talvez mesmo eles só puderam fazer isto


recusando o estatuto de filósofo, se não que reclamando para si,
como Lacan, a anti-filosofia. A situação de pensamento de Freud
e de l...acan sem dúvida foi a de ac~mpanhar, como seu avesso,
a operação dessubjetivante da era dos poetas.
Pode parecer singular fazer de l...acan um teórico do amor
e não do sujeito, ou do desejo~ É que eu examinó aqui seu pen-
samento do estrito ponto de vista das condições da filosofia. É
be~ possível (mas o número e a complexidade dos textos que
ele consagra íl isto não deixam de constituir sintoma) que o amor
não seja um conceito central da obra explícita de l...acan. É con-
tudo pelo viés das inovações de pensamento que tratam disso que
seu empreendimento faz evento e condição para o renascimento
da filosofia. De resto, não conheço nenhuma teoria do amor que
seja tão profunda quanto a sua depois da de Platão .. o Platão do
Banque~e com o qual Lacan dialoga incanSavelmente. Quando
Lacan escreve: "0 ser como tal. é o amor que o vem abordar
no encontro", a função propriamente ontológica que ele indica
para o amor mostra bem qual incisão ele tem consciência, neste
ponto, de operar nas configurações da filosofia.
É que o amor é aquilo a partir do que se pensa o Dois,
em refenda do domínio do Um, do qual ·entretanto ele suporta
a imagem. Sabemos que Lacan procede uma espécie de dedução
lógica do Dois dos sexos. da "parte" mulher e da "parte;' ho-
mem de um sujeito, partitura_que.combiria a negação e os quan-
tificadores - universal e existencial - para defi~r uma mulher
como não-toda e o pólo masculino como vetor do Todo assim
estropiado. O amor é a efetividade desse Dois paradoxal que,
por si mesmo, está no elemento da não:-relação, do des-ligado.
Ele é a "abordagem" do Dois como tal. Originado no evento
de um encontro (esse .. repentino .. sobre o qual Platão já insiste
com força), o amor trama a experiência infinita, ou interminá-
vel, disso que desse Dois já constitui um excesso irremediável
sobre a lei do Um. Direi na minha linguagem que o· amor faz
advir como multiplicidade sem nome, ou genérica, uma verdade
46
EVENTOS

sobre a diferença dos sexos, verdade evidentemente subtraída


ao saber, especialmente ao saber daqueles que se amam. O amor
é a produção, em fidelidade ao evento-encontro, de uma verdade
sobre o Dois.
Lacan é um evento para a filosofia porque agencia toda •
espécie de sutilezas sobre o Dois, sobre a imagem do Um no
des-ligado do Dois, e com isso ordena os paradoxos genéricos
do amor. A.demais, nutrido por sua experiência, sabe também
enunciar, em referência e comparação com o amor cortês, por
exemplo, o estado contemporâneo -da questão do amor. Propõe
não somente um conceito, articulado segundo as chicanas da <;li-
ferença e de seu procedimento vivo~ mas uma análise de conjun-
tura. Eis porque o anti-filósofo Lacan é uma condição do
renascimento da filosofia. Uma filosofia é hoje possível por de-
ver ser compossível com Lacan. ·
Na ordem da política, o evento se concentrou na seqüên-
cia histórica que vai aproximadamente de 1965 a 1980 e que viu
desencadear-se o que Sylvain Lazarus chamou de "eventurali-
dades obscuras", quer dizer: obscuras do ponto de vista da po-
lítica. Encontram-se entre elas: Maio de 68 e suas seqüelas, a
Revolução cultural chinesa, a revolução iraniana, o movimento
operário e nacional na Polônia ("Solidariedade"). Não cabe di-
zer aqui se esses eventos, enquanto puros fatos, foram fastos ou
nefastos, vitoriosos ou fracassados. O que é certo é que estamos
na suspensiJo de sua nome(lçllo polftica. Exceto sem dúvida o
movimento polonês, essas ocorrências políticO-históricas são ainda
mais opacas quando são elas próprias representadas, na consci-
ência de seus atores, por quadros de pensamento cujo caráter
elas aliás denunciavam como perecido. É assim que Maio de 68
ou a Revolução cultural se referiam comumente ao marxismo-
-leninismo, cuja ruína logo apareceu - enquanto sistema de re-
presentação política - como estando precisamente inscrita na
própria natureza dos eventos. O que se passava, ainda que pen-
sado segundo esse sistema, não era nele pensável. Do mesmo
modo, a revolução iraniana se inscreveu no seio de uma predi-
47
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

cação islâmica freqüentemente arcaizante, ao passo que o núcleo


da convicção popular e de sua simbolização excedia de todos os
lados a sua predicação. Nada atestou melhor que um evento é
extranumerário, com relação não somente ao seu sítio, mas tam-
bém à língua djsponfvel, do que esse desacordo entre a opaci-
dade da intervenção e a vã transparência das representações. Desse
desacordo resulta que os eventos em questão ainda n(J() foram
nomeados. ou melhor, que o trabalho de sua nomeação (o que
chamo de lntervençaa_no evento) ainda não terminou, longe.dL~.
Uma polftig,1 é hoje, entre outras coisas. a capacidade de esta-
bilizar fielmente, e a longo curso, essa nomeação. A filosofia
está sob condição da política na e:xata medida em que o que ela
dispõe como espaço conéeitual se verifica homogêneo a essa es-
tabilização cujo processo próprio é, ele mesmo, estritamente po-
lftico. Vemos como Maio de 68, a Polônia, etc., participam da
des-suturação da filosofia: o que ali está em jogo quanto à po-
lftica, não é certamente transitivo à filosofia, como o ''materia-
lismo dialético" pretendia sê-~o à política' staliniana. É, ao
contrário, a dimensão excessiva do evento e a tarefa que esse
excesso prescreve l) polftlca que condicionam a filosofia, porque
ela tem o dever de estabelecer que as nomeações politicamente
Inventadas do evento são compossíveis com o que simultanea-
mente (quer dizer: para nossa época) faz ruptura na ordem do
materna, do poema e do amor. A filosofia é novamente possível
:· justamente porque ela não tem que legiferar sobre a História ou
sobre a política, mas somente que pensar a re-abertura contem-
porânea da possibilidade da política, a partir das eventuralidades
obscuras.
Na ordem do poema, o evento é a obra de Paul Celan,
ao mesmo tempo por ela própria e pelo que ela detém, em última
linha, da era dos poetas por inteiro. É sintomático que seja na
referência aos poemas de Celan que empreendimentos de pen-
samento tão diversos como os de Derrida, de Gadamer ou de
Lacoue-Labarthe, pronunciam a inelutável sutura da filosofia a
sua condição poética. O sentido que empresto a esses poemas
EVENTOS

(mas também, num certo sentido, aos de Pessoa e de Mandels-


tam) é exatamente inverso. Leio ali, poeticamente_enunciada,
a confissão .de que a poesia não se basta a si mesma, que ela
demanda ser libertada do fardo da sutura, que ela espera uma
filosofia libertada da autoridade arrasante do poema. Lacoue-
-Labarthe teve a intuição deslocada dessa demanda quando de-
cifra em Celan uma "interrupção da arte". A interrupção a meu
ver não é a da poesia, mas a· da poesia IJ qual a filosofia se en-
tregou. O drarna de Celan·foi ter tido que afrontar o sentido em
não-senso da época, s.ua desorientação, só com o recurso soli-
tário do poema. Quando, emAnabase, ele evoca a "subida" para
"a palavra tenta: reúne", é ao ultra-p~ma que ele aspira, à par-
tilha de um pensamento menos submerso na unicidade metafó-
rica. O imperativo que nos lega essa poesia, o evento do qual
ela nos preme a achar alhures o nome, é o apelo poético à re-
constituição de uma coleta em partilha da disposição conceiwal
de nosso tempo, é a formulação, no poema, do fim da era dos
poetas, da qual esquecemos demais que ela fez a glória, mas tam-
bém ·o tormento e a solidão de seus poetas, solidão agravada,
e não reduzida, pelas filosofias que ali se suturavam.
Tudo repousa, é bem verdade, no sentido que se dá ao
encontro de Celan e de Heidegger, episódio quase mítico de nossa
época. A tese de Lacoue-Labarthe é a de que o poeta judeu so-
brevivente não pôde, o quê? Tolerar? Suportar? Em qualquer
caso, superar o fato de que o filósofo dos poetas guardava em
sua presença, e em toda presença, o mais completo silêncio so-
bre o extermínio. Nao duvido por um segundo de que isto seja
verdadeiro. Mas há também, e necessariamente, que ir ver o fi-
lósofO era experimentar o que a •'subida'' para o sentido da época
podia esperar dele no elemento do ultra-poema. Ora, esse filó-
sofo remetia ao poema, precisamente, de sorte que o poeta es-
tava, diante dele, mais sozinho do que nunca. É preciso ver bem
que a questão de Heidegger "por que poetas?" pode tornar-se,
para o poeta, ''por que filósofos?'', e que se a resposta a essa
questão é ''para que haja poetas ••, duplica·se a solidão do poeta,
49
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

da qual a obra de Celan faz evento por ter poeticamente pedido


que se a resgate. Estas duas significações do encontro não são,
de resto, contraditórias. Como podia Heidegger quebrar o es-
pelho do poema - o que, a seu modo, faz a poesia de Celan
- , ele que não acreditou poder elucidar, na ordem das condições
políticas, seu próprio engajamento nacional-socialista? Esse si-
lêncio, além de ofender da maneira mais grave o poeta judeu,
era também uma irremediável carência filosófica, pois levou a
seu cúmulo, e até o intolerável, os efeitos redutores e nadifican-
tes da sutura. Celan pôde ali experimentar no que é que dava,
no fundas contas, o fetichismo filosófico do poema. O mais pro-
fundo sentido de sua obra poética é o de nos livrar desse feti-
chismo, de liberar o poema de seus parasitas especulativos, de
restituf-lo à fraternidade de seu tempo, onde ele terá então que
se avizinhar, no pensamento, com o materna, com o amor, com
a invenção política. O evento é que~ no desespero e na angústia,
Celan, o poeta, descerra, em poesia, o passe dessa restituição.

Tais são os eventos que, em cada um dos procedimentos


genéricos, condicionam hoje a filosofia. Nosso dever é produzir
a configuração conceitual suscetível de acolhê-los, por menos
nomeado's, ou mesmo percebidos, que eles ainda estejam. Como
é que o genérico de Paul Cohen, a teoria do amor de Lacan, a
polftica fiel a Maio de 68 e à Polônia, o apelo poético de Celan
ao ultra-poema, podem ser simultaneamente possíveis para o pen-
< sarnento? Não se trata de modo algum de totalizá-los, pois são
heterogêneos, não-alinháveis, esses eventos. Trata-se de produ-
zir os conceitos e as regras de pensamento, talvez o mais distante
de qualquer menção explícita desses nomes e desses atos, talvez
o mais perto deles, isto depende, mais tais que, através desses
conceitos e dessas regras, nosso tempo será representável como
o tempo em que Isto do pensamento teve-lugar, isto que jamais
teve lugar, que jamais aconteceu, e que .a partir de então é par-
tilhável por todos~ mesmo pelos que o ignoram, porque uma fi-
losofia constituiu para todos o abrigo comum desse
"ter-tido-lugar", desse "ter acontecido".

50
9. Questões

Em seu conteúdo, o gesto de recomposição da filosofia que


proponho é amplamente ditado pela singularidade dos eventos
que afetaram os quatro procedimentos genéricos (Cantor-Goedel-
-Co~en para o materna, Lacan para ·o conceito de amor, Pessoa-
·Mandelstarn-Celan para·o poema, a seqüência das eventuralidades
obscuras, entre 1965 e 1980, para a invenção política). As gran-
des questões conceituais induzidas-pelo suspense dessas ocorrên-
cias do pensamento, e que se trata de projetar filosoficamente
num espaço único (onde serão pensados os pensamentos de nosso
tempo). se destacam bem claramente, uma vez cumprido oba-
lizamento eventural. De resto, mesmo quando negam à filosofia
o direito de existir. e que fazem polêmica contra a sistemacidade,
nossos filósofos, heideggerianos. sofistas modernos, lacanianos
metafísicos, doutrinários do poema, sectários das multiplicida-
des proliferantes, trabalham todos essas questões: a gente não
se subtrai tão facilmente ao imperativo das condições, mesmo
desprezado, pois o que o funda teve lugar, acomeceu.
Uma primeira questão enire essas é a do Dois, para além
de sua formulação ordinária, quer dizer, dialética. Mostrei que
ele sustentava toda a analítica do amor. Mas é bem claro que
ela está no coração da inovação política,·na forma do lugar que
desde então deve ocupar ali o conflito. O marxismo clássico foi
51
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

um dualismo forte: proletariado contra burguc , : . Ele fez do an-


tagonismo a chave de toda representação política. " Luta de clas-
ses'' e ''revolução'', depois - na visão estatal Jas coisas -
"ditadura do proletariado,, fizeram a armadura do campo de
reflexão das práticas: A política só era pensável na r ·dida em
que o movimento da História era estruturado por um L' ..is es-
sencial, fundado no real da economia e da exploração. A política
"concentrava a economia", o que quer dizer que ela organizava
a estratégia do Dois em torno do poder do Estado. Ela tinha como
fim último a destruição da maquinaria política do adversário, ela
substituía os..confrontos dispersos e mais ou menos pacíficos que
opõem, no terreno social, os explorados aos exploradores, por
um confronto global, cada classe estando projetada num órgão
polftico que a representa, um partido polftico de classe. Ulti-
mamente, só a violência (insurreição ou guerra popular prolon-
gada) podia resolver o conflito. Mas precisamente, o que as
eventu~idades obscuras dos anos ~70 trouxeram à ordem do
dia, foi o declínio, a inoportunidade históricà dessa potente con-
cepção. O. que se procura hoje é um pensamento da política que,
mesmo tratando o conflito, tendo o Dois estrutural no seu campo
de. intervenção, não tome esse Dois por essênCia objetiva. Ou
melhor, à doutrina objetivista do Dois (as classes são transitivas
ao processo de produção), a inovação política em curso tenta opor
uma visão do Dois "em hístoricidade", · o que
quer dizer que o Dois real é uma produç!Jo eventural, uma pro-
dução política, e não um pressuposto objetivo, ou "científico".
Devemos hoje proceder um reviramento da questão do Dois: tipo
mesmo do conceito em objetividade (a luta de classes. ou a dua-
ljdade dos sexos, ou o Bem e o Mal.. .. ), ele vai se tomar aquilo
que amarra a produção aleatória que se remete a um evento. O
Dois, e não como dantes o Um, é o que advém, o Dois é pós-
-eventural. O Um (a unidade de cJasse, a fusão amorosa, a Sal-
vação... ) era participado pelo homem como sua dificuldade e
sua tarefa. Estaremos mais dispostos a pensar que nada é mais
difícil que o Dois, nada é mais submetido simultaneamente ao
52
QUESTOES

acaso e ao labor fiel. O mais alto dever do homem é o de pro·


duzir conjuntamente o Dois e o pensamento do Dois, o exercfcto
do Dois.
A segunda questão é a do objeto e da objetividade. Mos-
trei que a função decisiva dos poetas foi estabelecer que o acesso
ao ser e à verdade supunha a destituição da categoria de objeto
como forma orgânica da apresentação. O objeto pode muito bem
ser uma categoria do saber. Ele faz obstáculo à produção pós·
-eventural das verdades. A desobj~tivação poética, condição de
uma abertura à nossa época como época desorientada, autoriza
o enunciado filosófico seguinte, em sua nudez radical: tQda ver-
dade é sem objeto.
O problema fundamental é então o seguinte: a destituição
da categoria de objeto acarreta a destituição da categoria de.su:..
jeito? Este é, sem nenhuma dúvida, o efeito visível da maioria
dos poemas da era dos poetas. Notei a pluralização, a dissemi-
nação do sujeito em Rimbaud, seu ausentamento em Mallanné.
O sujeito da poesia de Trakl só ocupa o lugar do Morto. Hei·
degger, suturado aos poetas, houve por bem dizer que é impos·
sível pensar o sítio con.temporâneo do Homem a partir das
categorias de sujeito e de objeto. A contrario, Lacan só foi o
guardião do sujeito na medida em que retomou também, reela·
borou, a categoria de objeto. En.quanto causa do desejo, o objeto
lacaniano (bem próximo, a bem dizer, por seu caráter insimbo-
1izável e pontual, do "objeto transcendental = x .. de Kant) é
detenninação do sujeito em seu ser, o que Lacan explícita assim:
"Esse sujeito que crê poder aceder si mesmo, ao se designar
no enunciado, não é outra coisa senão esse tal objeto".
Podemos resumir a situação a partir da lógica, das suturas,
tal como ela presidiu até hoje odes-ser da filosofia contemporânea.
As filosofias suturadas a sua condição científica fazem a maior
questão da categoria de objeto, e a objetividade é sua norma re-
conhecida. As filosofias suturadas à condição política, quer di·
zer, as variantes do "velho marxismo", ou bem afirmam que
o sujeito "emerge" da objetividade (passagem da "classe-em-
53
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

-si" à "classe-por-si", geralmente por virtude do Partido), ou


bem, mais conseqüentes, destituem o sujeito a favor da objeti-
vidade (para Althusser, a matéria da verdade depende do pro-
cesso sem sujeito), e se juntam parado~Jmente a Heidegger,
fazendo do sujeito um simples operador da ideologia burguesa
(para Heidegger, "sujeito" é uma elaboração secundária do reino
da técnica, mas a gente pode se entender, se esse reino é de fato
também o da burguesia). Para os filósofos suturados ao poema,
ou mais geralmente à literatura, às artes mesmo, o pensamento
dispensa tanto objeto quanto sujeito. Para os lacanianos, enfim,
há conceitos aceitáveis tanto como de um como do outro. Todos
estão de acordo num único ponto, que é um axioma tão geral
da modernidade filosófica que não posso deixar de me juntar a
ele: em todo caso, não se trata de definir a verdade como ''ade-
quação do sujeito e do objeto''. Todos divergem quando se trata
de dispor efetivamente a crítica da adequação, pois não estão de
acordo sobre o estatuto dos termos (sujeito e ~bjeto) entre os
quais ela opera.
Notaremos que esta tipologia deixa um lugar vazio: o de
um pensamento que manteria a categoria de sujeito, mas conce-
deria aos poetas a destituição do objeto. A tarefa de tal pensa-
mento é produzir um conceito de sujeito tal que não se sustente
COlll.nenhuma menção ao objeto, um. sujeito, se assim posso di-
~r, sem contraparte. Este lugar tem má reputação, pois evoca
o idealismo absoluto do bispo Berkeley. Entretanto, é em ocupar
esse lugar, como se terá compreendido, que eu me empenho.
Tenho por central, com vistas a um renascimento ppssível da
filosofia, o problema do sujeito sem objeto, assim como a de-
sabjetivação, operando a ~unção · entre a verdade e o saber,
fundou a era dos poetas, portanto a crítica decisiva das suturas
positivistas e marxizantes. De.resto. afirmo que um só conceito,
o de procediment() genérico, subsume a desobjetiv~o da ver-
dade e a do sujeito, fazendo aparecer o sujeito como simples frag-
mento finito de uma verdade p6s-eventural sem objeto. Só na
via do sujeito sem objeto é que poderemos simultaneamente ~
54
. QUESTOES

-abrir a "meditação cartesiana" e continuar fiéis às aquisições


da era dos poetas, numa fidelidade propriamente filosófica, por-
tanto des-suturada. Pensando bem, é a tal movimento do pensa-
mento ·que, estou convencido disto, nos convocam os poemas
de Paul Celan, e particularmente essa injunção misteriosa que
combina a idéia de que o acesso ao ser não é pela via aberta e
majestosa da objetividade com a prevalência subtrativa das mar-
cas, da inscrição, sobre a extensão enganosa da doação sensível:

"Um sentido nos chegatambém


pela vereda mais estreita
que fratura
a mais mortal das nossas
marcas erigidas"

A terceira questão é a do indiscernfvel. A soberania da


língua é hoje um dogma geral, se bem que, entre a •'tfngua exata"
com que sonham os positivistas e o "dizer poético" dos heideg-
gerianos, haja bem mais do que um mal-entendido sobre a .e s-
sência da linguagem. Exatamente como um abismo separa o
nominalismo integral de Foucault e a doutrina do simbólico de
Lacan. Contudo, sobre o que todos estão de acordo, inscritos
que estão no que Lyotard chama "a grande virada linguageira"
da filosofia ocidental, é que, nas ourelas da linguagem e do ser,
não há nada, e que ou bem existe uma possível "coleção do ser"
na linguagem, ou bem o que é só. é tal por ser nomeado, ou bem
o ser como tal é subtraído à linguagem, o que jamais teve outr<>
sentido que não o de o entregar a uma outra lfngua, seja do po-
eta, do Inconsciente ou de Deus.
Já indiquei que, sobre este ponto, só o materna nos guia.
A convicção contemporânea é a mesma de Leibniz: não poderia
haver indiscernfvel para o pensamento, se entendemos por "in-
discernfvel" um conceito explícito do que é subtraído à língua.
Do que é subtraído à língua não pode haver conceito, nem pen-
samento. É a razão pela qual o insimbolizável real de Lacan é
55
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

o "horror", do mesmo modo que ao que advém, enquanto ad-


vento, Lyotard crê que se deve dar o nome de "frase". O que
não é nomeáv.er, é melhor manter à. di,tância do pensamento.
Do "pdncípio dos indiscerníveis" de Leibniz, Wittgenstein deu,
no fim do Tractatus, a versão que faz consenso; ''O de que é
impossível falar, é preciso calar". Ora, nós sabemos, depois do
evento no materna que constituem os operadores de Paul Cohen,
que é muito exatamente possível produzir um conceito de indis-
cernfvel, e de estabelecer, sob certas condições, a existência de
multiplicidades que caem nesse conceito, as multiplicidades "ge-
néricas''. É portanto simplesmente falso que o de que não po-
demos falar (no sentido de que não há nada a dizer a seu respeito
que o especifique, que lhe dê propriedades separadoras), deve-
mos calar. Devemos, ao contrário, nomeá-lo, devemos discerni·
-lo como indiscernível. Não estamos mais obrigados, se aceitarmos
estar dentro dos efeitos da condição matemática, a escolher entre
o nomeável e o impensável. Não estamos mais suspensos entre
o que tem explicitação dentro da língua e o de que s6 se tem
uma "experiência" inefável, se não insustentável, e que des-
monta o espírito. Pois se o indiscernível põe a pique o poder
separador da linguagem, não é por isso menos proposto ao con-
ceito, o qual pode legiferar demonstrativamente sobre sua exis-
tência.
Deste ponto, é possível retomar o objeto e o Dois, e mos- .
trar o vútculo profundo que existe entre nossos três problemas. .
Se. a verdade não tem o que fazer da categoria de objeto, é pre-
cisamente porque ela é sempre, como resultado de um proCedi-
mento infinito, um mútiplo indiscem{yel. Se o Dois é estrangeiro
a qualquer fundamento objetivo da política ou do amor, é porque
esses procedimentos visam lndiscemitsub-conjuntos, existenciais
ou populares, e não lançá-los "contra'' o que domina sua situação.
É que um amor suplemento uma vida, mais do que a liga a uma
outra. É que uma política, a partir de seu evento fundador, tende
a delimitar o indelimitável, a fazer existir como múltiplo pessoas
cuja lfngua estabelecida não pode apreender nem a comunidade
56
OUESTOES

nem o interesse: Se enfim o Dois é um:1 produção, e não um


es~do, é porque o que E>.le distingue, passo a ~asso, da situação
em que reina o Um nãl · "um outro Um", .nas a figura ima-
nente daquilo que nllO fm contado.
A .filosofia deve hoje nodular a destituição do objeto, a
reversão da instância do Dois, e o pensamento do indiscernfvel.
Ela deve sair fora, só a favor do sujeíto. da forma da objetivi-
dade, tomar o Dois por uma descendência, aleatória e tenaz, do
evento, e identificar a verdade ao qualquer, ao sem nome, ao
genérico. Fazer o· nó dessas três prescrições supõe um espaço
de pensamento complexo, cujo conceito central é o de sujeito
sem objeto, ele mesmo conseqüência da genericidade como de-
vir fiel, dentro do próprio ser, de um evento que o suplementa.
Tal espaço, se chegarmos a agenciá-lo, acolherá a figura contem-
porânea das quatro condições da filosofia.
Quanto à sua /o11M, o gesto filosófico que proponho é
platônico.

. 57
10. Gesto platônico

Registrar o fim de urna era dos poetas, convocar comove-


tor da ontologia as formas contemporâneas do materna, pensar
o amor em sua função de verdade, inscrever as vias de um co-
meço da poHtica: estas quatro feições são platônicas. Platão tam·
bém deve manter os poetas, cúmplices inocentes da sofística, no
exterior do projeto de fundação fiJosófica, incorporar à sua visão
do "logos" o tratamento matemático do problema dos números
irracionais, fazer justiça, na ascensão para o Belo e para as Idé-
ias, ao repentino do amor, e pensar o crepúsculo da Cidade de-
mocrática. Ao que é preciso acrescentar que, assim como Platão
tem por interlocutores ao mesmo tempo coriáceos e portadores
de modernidade, os profissionais da sofística, também a tenta-
tiva de radicalizar a ruptura para com as categorias clássicas do
pensamento de'fme hoje o que é razoável chamar de uma ''grande
sofística" que se remete essencialmente a Wittgenstein. Im-
portância decisiva da linguagem e de sua variabilidade em jogos
heterogêneos, dúvida quanto à pertinência do conceito de ver-
dade, proximidade retórica dos efeitos da arte, política pragmá-
tica e aberta: quantos traços comuns aos sofistas gregos e a tantas
orientações contemporâneas, e que explicam porque os estudos
e referências consagradas a Górgias ou Protágoras se multipli-
caram recentemente. 'Estamos, também nós, confrontados com

59
MANIFESTO PElA FILOSOFIA

a obrigação de uma crítica do rigor sofista, no respeito de tudo


que ela comporta de ensinamentos sobre a época. O jovem Platão
sabia que era preciso ao mesmo tempo ultrapassar as chicanas
sutis da sofística e se instruir junto a elas sobre a essência das
questões do seu tempo. Nós também. Que a transição em curso
entre a era das suturas e a era de um ·recomeço da filosofia veja
o reino dos sofistas, é inteiramente natural. A grande sofística
moderna, linguageira, estetizante, democrática, exerce sua função
dissolvente, examina os impasses, retrata o que nos é contem-
porâneo. Ela é para nós tão essencial quanto o libertino o foi
para Pascal: ela nos Instrui sobre as singularidades do tempo.
Configuração anti-sofística do·matema (inaugural), dopo-
ema (dispensado), da política (refundada) e do amor (pensado).
o..gesto filosófico que proponho é um gesto platônico. O século,
até hoje, foi anti-platônico. Não conheço nenhum tema que seja
mais disseminado, nas e~colas filosóficas as mais variadas e as
mais dilaceradas, do que o anti-platonismo. Na rubrica "Platão"
do dicionário filosófico encomendado por Stalin; lia-se: " ideó-
logo dos proprietários d~ escravos''. o QUe era curto e grosso.
Mas o existencialismo sartreano, em sua polêmica contra as es-'
sências, tinha por alvo Platão. Mas Heidegger data da "virada
platônica ••, qualquer que seja seu respeito pelo que ainda há de
grego no recorte l~inoso da Idéia, o começo do esquecimento.
Mas a filosofia contemporânea da linguagem t<~ma o partido .elos
sgfistas ~ontra Platão. Mas o pensamento dos direitos do homem
faz remontar a Platão a tentação totalitária - o que é notável
na inspiração de Popper. Mas Lacoue-Labarthe procura caçar.
na relação ambígua de Platão com a rnimese, a origem do des-
tino da política no Ocidente. Não acabaríamos de enunciar todas
as seqüências anti-platônicas, todos os agravos, todas as descons-
truções, que Platão sofre.
O grande "iiJ.ventor" do anti-platon~smo comemportneo.
na_aurora da sutura da filosofia ao poema, e porque o platoni$IPO
~ra a principal interdição de tal sutura, foi Nietzsche. Conhece-
mos o diagnóstico estabelecido por Nietzsche no prefácio de Pa-
60
GESTO PLAT0NICO

ralém de Mal e Bem: "Por menos médicos que sejamos, podemos .


mesmo nos perguntar quem pôde infectar com essa doença Platão
a mais bela planta humana da Antiguidade" . Platão é o nome
da doença espiritual do Ocidente. O próprio cristianismo é ape-
nas um "platonismo para uso do povo". Mas o que enche Nietzs-
che de alegria, o que enfim dá curso aos "espíritos livres", é
que o Ocidente entra em convalescença: "a Europa respira, con-
solada desse pesadelo' •. De fato, a ultrapassagem do platonismo
foi engajada e essa ultrapassagem em curso libera uma energia
de pensamento sem precedente: "A luta contra Platão(... ) criou
na Europa um estado de tensão espirirual magnífico e até agora
desconhecido". Os "espíritos livres, muito livres", os " bons
Europeus'', seguram em suas mãos o arco assim tendido, e pos-
suem "sua flecha, seu manejo e, quem sabe?, tz1vez seu alvo".
Sabemos que logo vai aparecer que esse "alvo" é - dissipada
a sangrenta, inominável mentira de sua assunção política - a
pura e simples entrega do pensamento ao poema. A. polêmica
de Nietzsche contra a "doença-Platão", o ponto de aplicação
da terapêutica européia, concerne ao conceitq de verdade. O
axioma radical a partir do qual "espíritos livres" podem garan-
tir o velório do platonismo, velório que é também a vigília e o
despertar do pensamento, está em dispensar-se a verdade: "Que
um jufzo seja falso, isto n~o é, a nosso ver, uma objeção contra
esse juíw" . Jl{ietzsche abre um século entregue aos antagonis-
mo.s e às potências, por essa completa erradicação da referência
à verdade, tida como o maior sintoma da doença-Platão. Curar-
-se do platonismo é, primeiro, curar-se da verdade. E essa cura
não será completa se não se acompanhar de um Q9io resoluto
·pelo matema, tido como uma carapaça dentro da qual se aninha
a fraqueza doente do platônico: "O que dizer do alfarrabi smo
matemático .com que Spinoza acaba de encouraçar e mascarar
sua filosofia ( ... ) a fim de coagular de saída a coragem do as·
saltante ( ... )~quanta timidez, quanta vulnerabilidade pessoal trai
essa mascarada num anacoreta doente!''. A fil osofia por aforis·
mos e fragmentos, poemas e enigmas, metáforas e sentenças,
61
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

todo o estilo nietzscheano que teve tanto eco no pensamento con-


temporâneo, se énraíza na dupla exigência de destituição da ver-
dade e de dispensa do materna. Anti-platônico ao extremo.•
Nietzsche inflige ao materna a sorte que Platão reserva ao po-
ema, a de uma suspeita fraqueza, de uma doença do pensamento,
de uma "mascarada".
Não há d4vida de que Nietzsche foi durave1mente vence-
dor. É verdade que o século "se curou" do platonismo, e que,
no seu pensamento mais vivo, ele se suturou ao poema, aban-
donando o materna às raciocinações da sutura positivista. A prova
a contrario nos é dada pelo seguinte: o único grande pensamento
abertamente platônico, e ao mesmo tempo moderno, foi o de Al-
bert Lautman, nos anos trinta. Ora, este pensamento é de ponta
. a ponta armado pelas matemáticas. Ele ficou por muito escon-
dido e deconhecido, depois que os nazistas, tendo assassinado
Lautman, interromperam seu. curso. Ele é hoje o único ponto
de apoio que podemos descobrir, em quase cem anos, para a pro-
posição platônica que o atual momento exige·de nós, se coloca-
mos de lado a espontaneidade ''platonizante'' de muitos
matemáticos, em particular Goedel e Cohen e, é claro, a doutrina
lacaniana da verdade. Tudo se passou como se o proferimento ·
nietzscheano houvesse cerrado, à guisa de sutura ao poema, o
destino conjuntamente anti-materna e anti-verdade de um século.
Hoje é preciso inverter o diagnóstico nietzscheailo. O século e ·
a Europa devem imperativamente curar-se do anti-p.latonismo.
A filosofia só existirá na medida em que proponha, à altura deste
momento, uma nova etapa da história da categori~ de verdade.
É a verdade que é, hoje em dia, uma idéia nova na Europa. E,
como para Platão, como para Lautman, ·a novidade dessa idéia
se ilumina na freqüentação das matemáticas.

62
11. Genérico

O que um filósofo moderno retém da grande sofística é o


seguinte ponto: o ser·é essencialmente múltiplo. Já ·Platão, no
Teeteto, apontava que a ontologia subjacente à proposição sofís-
tica se sustinha na mobilidade múltipla do ser e, com ou sem
razão, ele cobria essa ontologia com o nome de Heráclito. Mas
Platão resguardava os direitos do Um. Nossa situação é mais com-
plexa, pois temos que registrar que, na escola da grande sofística
moderna, depois de duros avatares, nosso século terá sido o da
contestação do Um. O sem-ser do Um, a autoridade sem 'nmite
do múltiplo, não podemos voltar atrás quanto a isto. Deus re-
almente está morto, assim como todas as categorias que dele de-
pendiam na ordem do pensamento do ser. Q passe que é o nosso
é. o de um platonismo do múltiplo.
Platão pensava poder arruinar a variância linguageira e
a retórica da sofística a partir das aporias de uma ontologia do
múltiplo. Certamente que, por nossa -vez, reencontramos essa
junção entre a disponibilidade flexível da linguagem (teoria de
Wittgenstein sobre os jogos de linguagem) e a forma-múltiplo
da apresentação (finos levantamentos descritivos de um Deleuze).
Mas o ponto fraco mudou de lugar: devemos assumir omúltiplo
e preferir marcar os limites radicais do que a linguagem pode
constituir. Donde o caráter crucial da questão do indiscernfvel.

63
MANIFESTO PEtA FILOSOFIA

A principal dificuldade se prende à categoria ~e verdade.


Se o ser é múltiplo. como salvar e sta· categoria. salvação que
é o verdadeiro centro de gravidade de todo gesto platônico? Para
que haja uma verdade, não é preciso primeiro que seja pronun-
ciado o Um de uma multiplicidade, e não é a propósito desse
Um que o juízo de verdade é possível? Ademais, se o ser é múl-
tiplo, é preciso que uma verdade também o seja. salvo que ela
não tenha mais nenhum ser. Mas. como conceber uma verdade
C;Omo múltipla em seu ser? Atendo-se firmemente ao múltiplo,
a grande sofística moderna renuncia à categoria de verdade, como
já o faziam os ''relativistas'' da sofística grega. A inda aí, Nietzs-
che inaugura o processo da verdade. em nome da múltipla po-
tência da vida. Como não podemos nos subtrair àjurisdiçãq dessa
potência sobre o pensamento do ser, é forçoso propor uma dou-
trina da verdade compatível com a irredutível multiplicidade do
ser-enquanto-ser. Uma verdade não pode ser senão a produção
~guiar de um múltiplo. Toda a questão é que esse múltiplo será
subtraído à autoridade da língua. Ele será indiscernível, ou me-
lhor: ele ter~ s(do indiscemfvel. ·
Aqui, a categoria central é a ~ultiplicidade genérica . Ela·
• vem fundar o platonismo- do múltiplo, permitindo pensar uma
verdade ao mesmo tempo como resultado-múltiplo de um pro-
cedimento singular. e como furo, ou subtração, no campo do
nomeável. Ela toma possível assumir '4ma ontologia do múltiplo
puro, sem renunciar à verdade, e sem ter que reconhecer o ca-
ráter constituinte da variação linguageira. Ela é. ademais, o es-
queleto de um espaço de pensamento onde se deixam recolher,
· e situar como compossíveis. as quatro condições da filosofia.
Poema, materna, política inventada e amor. em seu estado con-
temporâneo, não serão com efeito nada mais do que os regimes
de produção efetiva, em situações múltiplas, de múltiplos gené-
ricos. fazendo verdade dessas situações.
É no campo da atividade matemática que o conceito de
múltiplo genérico foi primeiro produzido. Ele foi com efeito pro-
posto por Paul Cohen, no começo dos anos sessenta, para resol-
64
GEN~RICO

ver problemas muito técnicos deixados em suspenso há quase


um século, e que diziam respeito à •'potência,., ou quantidade
pura, de certas multiplicidades infinitas. Podemos dizer que o
·conceito de múltiplo genérico veio encerrar a primeira etapa dessa
teoria ontológica que, desde Cantor, leva o nome de •'teoria dos
conjuntos". Em Q Ser e o Evento. desenvolvi completamente
a dialética entre a edificação matemática da teoria do múltiplo
puro e as proposições conceituais que podem hoje refundar a fi-
losofia. ·Eu o fiz sob a hipótese geral de que o pensamento do
ser-enquantoMser se realiza nas matemáticas, e que, para acolher
e tomar compossíveis suas condições, a filosofia deve determi-
nar "o-que-não-é-o-ser-enquanto-ser.. , que designei como
"evento". O conceito de genericidade é introduzido para dar
conta dos efeitos, internos a uma situação-múltiplo·, de..Ílm eventô
q\,le a suplementa. Ele designa o estatuto de certas multiplicida-
des que simultaneamente se inscrevem numa situação e nela tra-
mam, de maneira consistente, um acaso irreversivelmente
subtraído a qualquer nomeação. Esta interseção-múltiplo da con-
sistência regrada de uma situação e do aleatório eventural que
a suplementa, é muito precisamente o lugar de uma verdade da
sjtuação. Essa verdade resulta de um procedimento infinito,· e
o que podemos dizer dela é somente que, a supor o término do
procedimento, ela "terá sido" genérica, ou indiscemfvel.
. Meu propósito aqui é somente indicar porque é razoável
considerar que um múltiplo genérico é o tipo de ser de uma ver-
dade. Sendo dado um múltiplo, seja aquilo de que todo ser é múl-
tiplo puro, múltiplo-sem-Um, como pensar o ser do que faz
verdade de tal múltiplo? Aí está toda a questão. Uma vez que
o fundo sem fundo do que é presente é a inconsistência, uma
verdade será o que, do interior do apresentado, como pane desse
apresentado, faz vir à luz a inconsistência na qual se sustenta,
em última instância, a consistência da apresentação. O que é ma-
ximalmente subtraído à consistência, à regra que domina e re-
calca o múltiplo puro (regra que chamo de conta-por-um), só
pode ser um múltiplo especialmente "evasivo", indistinto, sem
65
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

contorno, sem nomeação explícita possível. Um múltiplo, se as-


sim podemos dizer, exemplarmente qualquer. Se quisermos. a
um só tempo, afirmar que a autoridade do múltiplo é ilimitada
quanto ao ser e que há verdade, é preciso que essa verdade obe-
deça a três critérios:
- Uma vez que ela deve ser verdaçJe de um múltiplo, e
isto sem recurso à transcendência do Um, é..preciso que ela seja
uma produção inumente a esse múltiplo. Uma verdade será uma
parte do múltiplo inicial, da situação da qual há verdade.
- Uma vez que o ser é múltiplo, e que é preciso que a
verdade seja, uma verdade será um múltiplo, logo uma parte-
-múltiplo da situação de que ela é verdade. É claro que ela não
poderia ser uma...parte. "já" dada, ou presente. Ela resultará de
um procedimento singular. De fato, esse procedimento só po-
derá ser engatado no ponto de um supJemento, de algo que está
em excesso para -com a situ~ção, quer dizer, um evento. Uma
verdade é o resultado infinito de uma suplementação aleatória.
Toda verdade é pós-eventura1. Em particular, não há verdade
"estrutural", ou objetiva. Dos.enunciados estruturais aceitáveis
pela situação, não diremos jamais que são verdadeiros, mas·so-
mente que são verídicos. Eles Jl.ão dependem da verdade. mas
do saber. ·
- Uma vez que o ser da situação é sua inconsistência,
uma verdade desse ser se apresentará como multiplicidade qual-
q~er, parte anônima, consistência reduzida à apresentação como
tal, sem predicado nem singularidade nomeável. Uma verdade
será assim uma parte genérica da situação, "genérica" designando
que ela é uma parte qualquer da situação, que ela não diz nada
de particular sobre a situação, senão justamente seu ser-múltiplo
enquanto tal, sua inconsistência fundamental. Uma verdade é essa
consistência mínima (uma parte, uma imanência sem conceito)
que verifica, na situação-, a inconsjstência que constitui seu ser .
Mas como de começo qualquer parte da situação é apresentada
como singular, nomeável, regrada segundo a consistência, a parte
genérica que é uma verdade terá que ser produzida. Ela consti- .
66
GEN~RICO ·

tuirá o horizonte-múltiplo infinito de um procedimento pós-


-eventural que chamaremos de procedimento genérico.
Poema, materna, política inventada e amor são, muito exa-
tamente, os diferentes tipos possíveis de procedimentos genéri-
cos. O que eles produzem (o inominável na própria língua, a
potência da pura letra, a vontade geral como força anônima de
toda vontade nomeável, e o Dois dos sexos como o que jamais
foi contado por um) dentro de situações variáveis nunca é mais
do que-uma verdade dessas situações sob a forma de um múltiplo
genérico, cujo nome não pode ser rotulado por nenhum saber,
nem pode nenhum saber discernir previamente o seu estatuto.
A partir de tal conceito de verdade, como produção pós-
-eventural de um múltiplo genérico da situação de que ela é ver-
dade, podemos nos recompor com a tríade constitutiva da filosofia
rru>.dema: ser, sujeito, verdade. Do ser-enquanto-ser, diremos
que as matemáticas constituem historicamente o único pensamento
possível, porque elas são, n_~ potência vazia da letra, a inscrição
infinita do múltiplo puro, do múltiplo sem predicado, e que este
é o fundo do que é dado, apreendido em sua apresentação. As
matemáticas são a ontologia efetiva. Da verdade, diremos que
ela está suspensa a essa suplementação singular que é o evento,
e que seu ser, múltiplo como o ser de tudo que é, é o de uma
parte genérica, indiscemível, qualquer, a qual, efetuando o múl-
tiplo no anonimato de sua multiplicidade, pronuncia seu ser. Do
sujeito, enfim, diremos que ele é um momento finito do proce-
dimento genérico. Neste sentido, é notável ter que concluir que
só existe sujeito na ordem própria de um dos quatro tipos de ge-
nericidade. Todo sujeito é artístico, científico, político ou amo-
roso. O que, de resto, cada um sabe por experiência, pois fora
destes registros não há senão a existência, ou a individualidade,
mas nenhum sujeito.
A genericidade, no coração conceitual de um gesto platô-
nico voltado para o múltiplo, funda a inscrição e a compossibi-
lidade das condições contemporâneas da filosofia. Da política
· inventada, quando ela existe, nós sabemos, pelo menos desde
67
MANIFESTO PELA F il OSOFIA

1793, que ela só pode ser hoje igualitária, anti-estatal, traçando


na espessura histórica e social a genericidade da humanidade e
a desconstrução dos estratos, a ruína das representações diferen-
ciais ou hierárquicas, a assunção de um comunismo das singu-
laridades. Da poesia, sabemos que ela explora uma língua
inseparada, oferecida a todos, não instrumental, uma palavra que
· funda a genericidade da própria palavra. Do materna, sabemos
que ele apreende o múltiplo despojado de qualquer distinção apre-
sentativa, a genericidade do ser-múltiplo. Do amor, enfim, sa-
bemos que, para além do encontro, ele se declara fiel ao puro
Dois que ele funda, e que ele faz verdade genérica disso de haver
homens e mulheres.
A filosofia é hoje o pensamento do genérico como tal, que
começa, que já começou, pois "Uma magnificência se desfral-
dará, qualquer, análoga à Sombra de outrora".

68
Nota

MD Magno

Depois de lido este Manifesto, seria melhor relê-lo à luz


de pelo menos quatro outros volumes do autor, nomeadamente:
Théorie du sujet. teoria do sujeito (1982), Peut-on penser la po-
litique?, podemos pensar a polftica? (1985), mas, principalmente,
L ·~rre etl'événement. o ser e o evento (1988) eLe Nombre et
les nombres, o Número e os números (1990) - todos publicados
pela Seuil, de Paris. Não deixem também de ler Rhapsodie pour
le thNitre, rapsódia para o teatro (1990), pela Imprimerie Natio-
nale.
Os leitores advertidos hão de notar, flagrantemente, que
o Ba~iou que ora se apresenta já não é mais aquele, então re-
conhecível pelo público brasileiro (anos sessenta). Mas ele não
deixa de ser, por outro lado, o mesmo insistente nessa antiga
questão com que já freqüentava os (entre nós de boa fortuna)
hoje quase que esquecidos Cahiers pour l'analyse.
Mais próximo, por exemplo, de mim - sob a égide do
mesm(ssimo Mestre - depois do seu percurso de meditação e
militância. chega a paragens algo desérticas que não pude deixar
de freqüentar na aventura de certas incursões psicanalíticas. E
tudo isto para melhor, como eu aposto.

69
MANIFESTO PElA FILOSOFIA

O lacanismo decadente, já tão cedo, tanto por redução pura


e simples à normal banalidade da papagaia palração da frase feita
(pelo Mestre, naturalmente), quanto pelo maJentendido genera.:.
lizado ou ocasionais erros mesmo <le roteiro, só teria a ganhar
(em diligência e respeito) do seu trato com esta ponderação (em
série-dade) conseqüente- no rigor do materna.
O hoje famigeradfssimo sujeito (sobremodo entre ditos psi-
canalistas), tornado o crachá dos santíssimos partícipes do bes-
teirol das igrejinhas terapêuticas (não se sabe por que, tantas delas,
·auto.proclamadas instituições psicanalíticas) , pode limpar o seu
queixo, se não mesmo a gravata, da baba linguageira - e se ads-
crever corretamente ao que se nos pinte inarredável como evento.
(Assim traduzo, embora meio sem jeito, nesse texto, o événe-
ment do conceito, a não se confundir, de modo algum, com co-
luna social ou programa cultural de qualquer um dos jornais por
mais que de sobeja importância). Tal evento só sendo possível
nalgum sítio eventural de boa lavra. (Assim eu quis traduzir o
événementiel e similares, de modo a distinguir do mero ocasio-
nal ou casuístico do eventual de nosso hábito, com a justificativa
que qualquer amigo do "bom português" certamente me con-
cede). Ali é o lugar de eclosão, a cada vez, desse tão raro su-
jeito, na verdade ... Verdade essa que não nos deixaria confundir
o verdadeiro, o!Surjeito (melhor nome?), com a pasmaceira desse
definitivamente sem-jeito que se introduziu bem depressa, e ve-
ridicamente, em nosso total supermercado: eis a moeda corrente
de "reconhecimento" (vejam só!) na boa transa dita "inter-
-subjetiva", tão bem agenciada por toda espécie de especialista
pstu, alternativo ou onodoxo, neste nosso, de fato, ''planeta dos
macacos'' evidente. .
Também, o autor não bate bem de frente com o meu já
um tanto usado Pleroma (de 1986), até mesmo andando às vezes
lado a lado muito antes pelo contrário. Assim cómo até chega
a arrumar de melhor jeito o que, de mais antigo (1981), co·mecei
a sugerir como diferocracia à política inventávet (no entanto ab-
solutamente sem-lugar ora possível). "Comunismo das singula-
70
NOTA

ridades' ', para ele, ou seja, a ''solidariedade dos buracos-negros''


suspeitada por Sollers. Só que estes não deixam escapar de si
absolutamente nada que se preste à normal percepção, pois que
sua melhor definição é a de que são buracos-brancos, mas para
outros que não os do seu lado dito de cá.
Quanto ao amor (cujos dilúvios cristianos não resultaram
senão em todo o ódio que se vê), <> que nasceu para Dois jamais
chegará a ser Um - como Lacan sobre Freud deixou bem ·de-
monstrado e cada qual pode provar com boca própria. O que
daf se tira hoje,..facilmente, ~m ~ecer passo nenhum além dos
mesmos Mestres, é que o sexo (não os sexos, dois, reprodutores
do .animal , mas) o dos pós-primatas, ele é terceiro: 3 !> para o
Dois da impossível relação, assim como terceiro de terçar a transa
ou trança do quatérnio onde finge que goza A Morte que não
há . N<> entanto, o que das eventuras desse~ casos acomete, e
mesmo sem querermos, nossa chaga, nos empuxa e nos açoda,
em havendo alguma Sorte e melhor disposição, à efetividade vera
de pensar.
E de nada adianta a remissã<> obcecada disso tudo à poesia
(de qualquer linhagem ou estofo) que já tem, ela mesma, casa
própria para cuidar. Não posso eu, repete sempre ela, me en-
carregar da caiação da tua fachada de pensamento, assim tam-
bém como ninguém pinta como eu ... (como se costuma falar).
Matemática, Poética, Política e Erótica (como prefiro cba.,.
mar, para meu uso) , as quatro "condições" de Badiou, como
é que se oferecem elas à aventura de sua compossibilidade na
Filosofia? É esta que as nodula, ou já se apresentarão adrede-
mente noduladas ao escopo de sua questão?
~ara alguma consistência na meditação psicanalítica, La.:.
can introduziu a topologia do Nó Borromeano, que pod~ aqui·
nos ajudar. São rodinhas de barbante que você pode encadear
umàs com as outras.(mínimo de três). de modo a que, tirada uma
qualquer, todas as outras estejam separadas, desencadeadas que
foram por ~sta única seção. Ato que vem demonstrar que as tais
rodinhas, em heterogeneidade, cada qual não tem a ver, em sua
71
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

nodulação, com nenhuma das outras diretamente, senão que cada


uma delas, qualquer, dado seu encadeamento, é que amarra, em
virtude de sua própria cunhagem no porcima-porbaixo tortuoso
do seu curso, as outras todas desse Nó. Assim amarradas, então,
foi qualquer uma a que amarrou.
Mas não é. bem assim. Pois, no aJo desse enlace, uma de-
las, como nodulante, se tomou. Não é por menós que, a certa
altura do seu Semln(lrio soberano, Lacan nos apresenta, desta-
cados, os três registros-toros de Real, Simbólico e Imaginário,
e nos aponta como, em Freud, é já um quarto, como Sintoma,
que os vem nodular. Ali esse quarto substitui, como ato apre-
sentado e encarnado, a simples nodulação dos outros três. E o
nome desse Sintoma af, à rilão de mestre Freud, não é, para La-
can, e muito precisamente, senão o (hoje tomado abobrinha cul-
. tural) Complexo de Édipo, com o qual, agora o digo eu, vinha
Freud nomear senão o quê?: a erótica que se joga em cada e
todo caso de humana amarração, ali proposta com aquele. con-
teúdo (na verdade, cultural). ·
Assim mesmo como aqui venho compor que a nodulação
possível de Matemática, Poética, Polftica e Erótica, no Um pro-
visório e múltiplo do nó de quatro que requeiro borromeano, foi
a Psicanálise que o ofereceu à hoje novamente possível Filosofia
(segundo-a manifestação de Badiou) para sua com-sideração como
o buquê de sua compossibílidade.
Enquanto dormitavam . os filósofos embalados · pelas
cançõezinhas h~pnóticas dessas longas suturas, foi Lacan depois
de Freud que nos despertou à nodulaçao reconstituidora, pelo
tratam~nto da erótica (a partir deles possivelmente e pela pri-
meira vez) conceituável como isso mesmo que criaram com o
nome gen~rlco de Psicanálise, para o pior ou para o melhor.
O renascimento da Filosofia, quem diria?, como neta da
Phi1osophia, é hoje como a filha da Psicanálise. Uma empresa
da maior tra-dição, que vem de mãe para filha desde a eventura
de Platão.
Vantagem tambéin, que traz esse bebê, para a própria Psi-
72
NOTA

canálise- a qual não tem que ser anti-Filosofia, e muito menos


Filosofia, mas que encontra de uma vez o seu lugar como Clí-
nica G~ral.
Primeiro: historicamente, é a Psicanálise que, durante uma
era de trevas na sutura, renodula as condições da Filosofia,
. propiciando-lhe a devida devolução. E a chamada de Lacan so-
bre sua postura, no menos pior dos casos, como anti-Filosofia,
é um repúdio de qualquer ten~iva de sutura da Filosofia à Psi-
canálise, tentação que não é de se não suspeitar em quanto ''psi-
canalismo" de ocasião (cf. Robert Castel), se não psicanalhice
de montão. . ·
Segundo: conceitualmente~ é a Psicanálise que, nos tem- ·
pos modernos, acolhe e dá guarida ao Dois do amor. Quer dizer
que toda não-relação como resultante eventural de qualquer ver-
dade no campo da Erótica, é a Psicanálise que se encarrega hoje
de seu acossamento à pronunciação. O que se verifica na fim-
dação lacaniana de (toda) transfer~ncia como um seu conceito
fundamental, mediante uma coleta que percorre todo o campo
desde o Banquete de Platão (a culminar no re-trato do amor-conês
e sua disjunção).
Terceiro: efetivamente, é a psicanálise, como o discurSo
adequado ao tratamento contemporâneo da Erótica, que acossa
a se pronunciar, não cada uma das outras "condições ... mas a
questao - na verdade amorosa, transferencial, erótica em suma
- que cada uma delas propõe, por simplesmente existir, a cada
qual de nós, falantes mais ou menos dispostos à subjetivação.
Ninguém é matemático, político ou poeta, senão por seu amor.
Nem amante e amado também. E psicanalista muito menos, que
vive de co-memorar o Dois. · ·
Assim, se a Filosofia trata de discorrer sobre a compos-
sibilidade pós~ventural de suas condições (Matemática, Poética,
Política e Erótica), o que cabe então à Psicanálise? Como aquela
que foi capaz de acolher a condição Erótica corno a noduladora .
desse quatro no "Um" do Nó (chafurdando no amor para dele
distanciada recolher o Dois a cada emergência de verdade no
73
MANIFESTO PELA FILOSOAA

seu pantap.al), o que lhe cabe é sua Clínica Geral: acossamento


da verdade que terá-sido, à pronúncia do evento que será-tido
(na interpretação).
E daf, o diálogo infinito da Psicanálise com a Filosofia
- pois das com-siderações desta em torno da compossibilidade
nesse Nó, aquela há de tirar alguma gasolina para seu motor,
de cujo movimento esta há de colher as eventuras que colher para
sua aventura de compossibilitação. E assim por diante e para.sem-
. pre, até que a Morte as não separe jamais: enquanto Isso durar.
Filosofia: "veracidade efetiva sob condição de efetividade
do verdadeiro'' (Badiou). ·
Psicanálise: acossamento da situação à pronúncia do even-
tural, para advento de verdades efetivaS. À eclosão do Sujeito.
Eis a Clínica Geral como Militância do psicanalista. A Fi-
losofia ajudando, como agora podemos esperar.

Recreio, março de 1991

74
Publicaçftes d~
literatura:
• Cantoprollxo (poemas)
MO Magno
• Neves do Sillndo
Claudia Ribeiro
• NaviO de Vldto
Claudia Ribeiro
• Carne a Carne:
Contatos com Deus
Clare lsabella Paine
• Aboq·ue/Abeque. 2.• ed.
MO Magno
Teotía/Ensaios:
• Sen11n6rlos de MD Megno:
- Rosa Rosae. 3~ ed.
- O Pol'l'e e o Pone do Quincaa
Berro D6gua
- O Pato Lógico. 2! ed.
-A Múslc., 2:' ed.
- Psicanilise lfl PoJétlca
(Corte Real)
- Ordem e Progreuo
Por Dom e Regresso
- O Sexo doa Anjos
(Sexualidade Humana)
- De Mysterio Magno
IA Nova Psicanálise)
• A Traduçlo
Potíguara Mendes da Silveira Jr.
• O Amor do Censor
(Ensaio sobre a Ofdem dogmática)
Pierre Legendre
• A Diferença Sexu_., 3:' ed.
Sonia Nassim
• luo é o Pais
Betty Milan
• PslcanMise Belja·Fior
Joilozinho Trinta e os analistas
do Colégio

• REVIRAO
Revista da Pratica Freudiana
- N~ 1: Revirilo,. nasce uma
estrela
- N:' 2 : Brasil, o momento de
concluir
- N:' 3: Maneiro, J)Ot ul"t1 novo
significante
• CLINICA PSICANALITICA n! 3
Revista
• ANGá.ICA (psicanálise & cia)
- A Crise das Idéias etc.
- Manifesto )>ele filosofia
Alain Badiou
MANIFESTO A filosofia é hoje possível na plenitude de
sua ambição . A filosofia mesmo, tal como a en-
pela fil~sofia tendia Platão.
O que acarretou seu eclipse no século XIX,
foi ela ter-se identificado, "suturado", de cada
vez, a um só dos campos em que se põe, para
além do saber, uma verdade: o científico (posi-
tivismo), o político (marxismos), depois, com
Nietzsche e mais ainda Heidegger, o poema.
Ora, as matemáticas, a poesia, a política
como invenção e o amor como pensamento são
mesmo quatro condições da filosofia: mas todas
as quatro são requeridas, a filosofia sendo esse
pensamento único que lhes dá acolhimento e
abrigo.
O programa é então o de uma restituição
do pensamento filosófico ao espaço completo das
verdades que o condicionam. Donde as questões
centrais que qualquer filosofia se coloca hoje: o
Sujeito, uma vez que não podemos manter a ca-
tegoria do objeto, arruinado com o objetivismo;
o Dois, uma vez que não podemos nos satisfazér
com o esquema dialético; enfim a função do in-
discemível , ponto onde se dá a reexaminar a re-
lação entre linguagem e pensamento.

COLÉGIO FREUDIANO DO RIO DE JANEIRO

editora

HI1GfLICH psicanálise & oa

You might also like