& POÉTICAS
DA FRONTEIRA
LEITURAS DO TERRITÓRIO
COORDENAÇÃO DE
CRISTINA ROBALO-CORDEIRO
RUI JACINTO
39
IBEROGRAFIAS
Coordenação:
Cristina Robalo-Cordeiro
Rui Jacinto
IBEROGRAFIAS
39
Coleção Iberografias
Volume 39
Textos de: Almeida Faria; Ana Paula Tavares; António Lobo Antunes; António Pintado; Bento da Cruz; Carlos Alberto Marques;
Eça de Queirós; Eduardo Barrenechea; Eduardo Lourenço; Fernando Namora; Jorge Dias; José Saramago; Julieta Monginho;
Luís F. Lindley Cintra; Manuel Alegre; Manuel António Pina; Miguel Torga; Nuno de Montemor; Orlando Ribeiro; Pierre Birot;
Teolinda Gersão; Teresa Salema; Virgílio Taborda
Âncora Editora
Avenida Infante Santo, 52 – 3.º Esq.
1350-179 Lisboa
geral@ancora-editora.pt
www.ancora-editora.pt
www.facebook.com/ancoraeditora
O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteúdos, forma e opiniões neles expressas.
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores
Apoios:
LeiTuras do TerriTório
Cristina Robalo-Cordeiro; Rui Jacinto 9
as FroNTeiras do saBer
a Literatura e as suas fronteiras 361
Cristina Robalo-Cordeiro
Muitas fronteiras 363
Anselmo Borges
Fronteira, fronteiro: Transgressão e Depende para ler o território 367
Elias J. Torres Feijó
Fronteiras da ciência 373
Carlos Fiolhais
iMaGiNÁrio da FroNTeira
Jogos de fronteira, jogos de memória 381
Eduardo Lourenço
Paris não rima com meu país 384
Manuel Alegre
conhecimento do inferno 385
António Lobo Antunes
um muro no meio do caminho 387
Julieta Monginho
a varanda era a nossa fronteira 390
Ana Paula Tavares
uma vida de aventuras 391
Manuel António Pina
Benamonte 393
Teresa Salema
venhatten 396
Almeida Faria
a Árvore das Palavras 397
Teolinda Gersão
Cristina Robalo-Cordeiro
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra/Plano Nacional de Leitura,
PNL2027 Ler+ Ciência
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT)
mais profundamente inscritos na geografia e na história, aos que nos oferecem a mudança dos
costumes, a evolução dos valores, a inovação tecnológica e digital e a investigação científica.
Assim, as descrições clássicas deixadas pelos nossos escritores, de Almeida Garrett a Miguel
Torga e José Saramago, ou pelos nossos geógrafos, de Amorim Girão a Orlando Ribeiro –
em múltiplos quadros e tão diversas interpretações – devem ser completadas, retificadas e
enriquecidas, por novas evocações e avaliações que a vida atual e múltipla do país suscita.
As ações destinadas a valorizar o património e a dar a ler e a amar o território aos nos-
sos concidadãos inserem-se de forma natural no PNL2027 Ler+ Ciência, que ambiciona
mobilizar o conjunto dos portugueses, na sua distribuição espacial tanto quanto na sua estra-
tificação socioprofissional, visando uma estratégia nacional de elevação dos níveis de literacia.
Apelando a uma participação alargada e ativa, este projeto vê o território como uma
Escola aberta a todos, e em todos procurará estimular a curiosidade histórica, o gosto
pela Literatura, pelas Artes e pela Ciência. Reforçando a ligação às comunidades locais,
através da mobilização de meios literários e científicos, em múltiplas e diversificadas
iniciativas, o projeto Leituras do Território inscreve-se na dinâmica de um conhecimento
para todos.
Colocar esta edição do Projeto Leituras do Território sob o signo da Fronteira é acrescentar-
-lhe novos sentidos. Intimamente ligada à noção de território, como elemento de delimita-
ção e separação, a fronteira representa muito mais do que uma mera divisão e unificação
de pontos diversos, determinando a área territorial precisa de um país, a sua base física,
geográfica e política (uma “linha” entre estados).
Inseparável de uma problemática identitária, o conceito de fronteira ocupa hoje um
campo metafórico mais amplo, deslocando-se do seu sentido óbvio para acolher tudo o que
às comunidades humanas diz respeito, dos problemas sociais – de cooperação ou conflito, de
isolamento ou de integração – às questões do pensamento e do espírito – percorrendo diver-
sos domínios do saber e formas de criatividade – e, no limite, à própria definição de poder.
Constituindo uma espécie de segurança contra o que vem de fora, a fronteira torna-se
para alguns uma proteção face ao inimigo, à barbárie. Quem defende uma visão progres-
siva, otimista do desenvolvimento histórico não pode senão ficar chocado pelas ruidosas
declarações de um presidente americano, pretensamente “leader do mundo livre”, apre-
sentando-se como construtor de muros em nome da proteção dos interesses nacionais dos
EUA: «Eu vou construir um grande muro, e ninguém constrói muros melhor do que eu,
acreditem. E vou construí-lo sem gastar. Vou construir um muro na nossa fronteira no Sul
e farei o México pagar por ele.” E acrescentava, no seu discurso de posse, a 20 de janeiro
de 2017, que a América começará de novo a ganhar, como nunca antes, recuperando
10 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
“Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de
que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda
tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me
aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu territó-
rio. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha
casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu
mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo
me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más
propriamente ditas” 1.
O medo de se aventurar fora de casa ou do círculo familiar tem a sua expressão religio-
sa. Assim, o termo árabe “hubud” faz da travessia da fronteira invisível uma transgressão,
mas só passando além dela aquele que escolheu a liberdade pode cumprir o seu destino.
E, com efeito, que fronteira mais imaterial e permeável do que a que separa o reino dos
vivos do dos mortos, como o mostrou em mil exemplos o antropólogo James Frazer no seu
célebre livro The Fear of the Dead?
Mas o mundo foi pondo em causa a fronteira, promovendo a sua abertura e a livre
circulação – dos seres (de pessoas, de bens) e das ideias –, aceitando o desconhecido e o
novo, e estimulando a curiosidade e a partilha. Ao abolir as fronteiras do saber, acolhemos
a interdisciplinaridade como princípio ordenador do conhecimento, ao relativizar as fron-
teiras políticas, desenhamos um novo mapa do mundo, ao recusar os quadros da História,
contamos uma outra narrativa da vida do homem, das civilizações e das culturas.
Em tempos de globalização e na linha do pensamento de Fernando Pessoa, o outramento
11 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
– Clarice Lispector diria “eu poder ser tu sem deixar de ser eu” – ajuda-nos a pensar as
convergências e as dissonâncias e a refletir sobre as novas identidades e as novas utopias.
O diálogo intercultural traz assim o Outro para o lado de cá da fronteira (real ou imaginária)
que dele nos separava.
Assim, como qualquer noção complexa, a ideia de fronteira apresenta-se ambivalente: su-
gerindo ao mesmo tempo o corte e a costura, o isolamento e a comunicação, o controle e a
passagem, ela é mais rica do que o conceito unívoco de limite. Há uma dialética da fronteira,
1
Mia Couto, Murar o medo. Intervenção nas Conferências do Estoril, feita em novembro de 2011, onde se
debateram os desafios da globalização.
como acaba de nos recordar a recente resposta dos governos à propagação do novo coronavírus:
a mobilidade, tornada negativa, e o controle, tornado positivo, trocam assim os seus valores.
Se há uma longa história das fronteiras, inseparável da dos primeiros reinos – e da ins-
tituição da propriedade coletiva – , podemos remontar muito mais longe, até ao Genesis
(3, 24) e à expulsão de Adão e Eva do Paraíso para encontrar uma espécie de arquétipo das
imagens contidas na ideia de fronteira, colocando Deus a leste do jardim de Éden, para defen-
der a sua entrada, um Anjo armado com uma espada flamejante… A palavra “transgressão”,
carregada de conteúdo teológico, atesta a primitividade da noção de passagem proibida.
A antropologia forneceria só por si matéria suficiente para uma reflexão sobre a frontei-
ra. A noção de território, tão presente hoje nas ciências sociais, e a de fonteira são natural-
mente e fortemente correlatas. E já Ferdinand de Saussure havia mostrado a importância
do tema para a geografia linguística. As línguas, como as culturas de que são insepará-
veis, não são respeitadoras das delimitações políticas estabelecidas e, como o mostraram
as correntes irredentistas na História, serviram, e podem ainda servir, para justificar as
anexações territoriais mais contrárias ao direito internacional, tão certo é que um território
não é inteiramente redutível a um espaço nem as fronteiras a demarcações materiais. É por
isso que existem leituras – e não uma leitura única – do território!
12 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
introdução
1
Friedrich Ratzel, para quem “a fronteira é constituída pelos inumeráveis pontos sobre os quais um
movimento orgânico é obrigado a parar” (Anthropogéographie, 1882-91; La géographie politique, 1897),
colocou a discussão num patamar que outros autores retomariam em obras específicas, como Géographie
des frontières, publicada por Jacques Ancel (1938), seguida de outra editada posteriormente, com o mesmo
título, por Paul Guichonnet e Claude Raffestin (1974). Raffestin abordaria o tema, novamente, em Autour
de la fonction sociale de la frontière (Espaces et sociétés, n° 70-71, 1992) e em Por uma geografia do poder
(1993). Michel Foucher, outro autor de referência, declinaria a fronteira em sucessivos títulos, durante mais
de três décadas, bem elucidativos das metamorfoses que conheceu no passado mais recente: L’invention des
frontières (1986), Fronts et frontières. Un tour du monde géopolitique (1988), L’obsession des frontières (2007)
e Le retour des frontières (2016).
que os homens desenvolvem com o meio envolvente e com outros grupos. As frontei-
ras, por tudo isto, “condicionam a territorialidade humana”.
Para Michel Foucher “a fronteira é uma descontinuidade geopolítica, com funções
de delimitação real, simbólica e imaginária”, alertando-nos para o facto de “que as fron-
teiras são difíceis de morrer e que, com a queda do Muro de Berlim, se multiplicaram
simultaneamente com a criação de novos Estados «soberanos». Lembra ainda que as
fronteiras têm três funções principais: legal (com a justiça do país e a legislação nacio-
nal); controle (com a polícia e a noção de “nacionalidade”); fiscal (com a alfândega).
Quatro fenómenos devem ser claramente distinguidos: a permanência dos contenciosos
territoriais clássicos; a criação de novas fronteiras entre Estados; a proliferação de re-
gulamentações fronteiriças; fenómenos de endurecimento, isto é, a transformação de
limites em estremas lineares. As explicações de Foucher convidam-nos a relativizar o
apagamento das fronteiras que a globalização do capitalismo tem vindo a favorecer:
“o que vale para uma transferência financeira que ocorre imediatamente não é verdade
para o transporte de um contentor que não escapa à lentidão da viagem de carga e às
esperas nas alfândegas portuárias”2. Chama ainda a atenção, em Actualité et permanence
des frontières (2010), para o facto de existirem, então, 18.000 quilómetros de muros ou
barreiras, que representam 3% do comprimento total das fronteiras terrestres, extensão
que, aliás e daí para cá, não tem parado de aumentar.
Decorre deste breve apontamento a multiplicidade de abordagens e de pontos
de vista suscitadas pelas fronteiras, tanto as externas quanto as internas, como ficará
bem espelhado nos vários ensaios que dão corpo à primeira parte desta obra. Quatro
coordenadas, representativas de outros tantos tópicos de leitura, organizam uma te-
mática ampla e abrangente: (i) as fronteiras e outros limites: o tempo, o espaço, o
modo; (ii) as fronteiras d’aquém e além Ibéria (das próximas às mais longínquas, das
antigas às mais modernas): memórias, vivências, imaginários (trans)fronteiriços; (iii)
as fronteiras e o futuro: novos limites, outros contornos do mundo; finalmente, (iv)
as fronteiras do saber.
14 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
A introdução à leitura deste tema e da Raia Central Ibérica é feita a partir de uma
breve antologia de textos, ilustrados por fotografias de Duarte Belo, agrupados em três
categorias, segundo a sua própria natureza: Imaginário da fronteira; Geografia literária:
viagens na nossa terra; Literatura geográfica: temas e territórios de fronteira.
2
https://www.cairn.info/revue-hermes-la-revue-2012-2-page-141.htm
Imaginário da fronteira
A distinção entre o real e o imaginário, quando ela se apaga como no espírito de Dom
Quixote, faz desaparecer com ela a supremacia da razão. Ora, a literatura, não sendo lou-
cura, nem tão pouco sonho, situa-se no limite destes domínios, onde de forma arrojada vai
buscar os seus símbolos, as suas imagens e os seus mitos. A Odisseia, os Lusíadas podem ser
lidos como explorações do inconsciente tanto como narrativas de viagens: a mitificação do
Cabo na figura do gigante Adamastor mostra-nos esse trabalho de metamorfose, operação
própria da poesia, que personifica a fronteira dela fazendo a entidade monstruosa que
separa o conhecido do desconhecido. Mas, como veremos nos textos aqui reproduzidos,
este imaginário da fronteira, onde se aventuram de bom grado os escritores modernos, está
longe de ter esgotado o seu poder de atração e de criação.
fronteiras políticas, foram um fecundo alfobre para debates transversais entre as várias áreas
do saber. A atualidade da fronteira aconselha, enquanto problemática instigante que impõe
uma agenda cada vez mais premente, o reencontro do historiador e do geógrafo, do linguista
e do antropólogo, do sociólogo e do economista, entre os demais saberes, para explorarem
as ténues e permeáveis fronteiras geográficas e do conhecimento. Aos herdeiros dos antigos
andarilhos cumpre continuar a viagem pelos caminhos das fronteiras geográficas e do conhe-
cimento, onde se cruzam gírias, falares e novos contrabandistas em demanda do espírito dos
lugares e de outros sinais, indeléveis e por vezes impercetíveis, que continuam a moldar a
identidade, a sociedade e a economia desses territórios e de quem neles habita.
raia central ibérica: legendas para o mapa das suas íntimas
fronteiras e do permeável diálogo (trans)fronteiriço
A Raia Central Ibérica, situada entre o Douro e o Tejo, que corresponde à parcela
da Beira mais adjacente à fronteira, ocupa um território que se reparte entre a Beira
Transmontana, a Cova da Beira e a Beira Baixa, unidades (geo)morfológicas e paisa-
gísticas que asseguram a transição entre o Norte e o Sul do Portugal mais interior. Os
limites Norte e Sul são bem definidos por aqueles dois rios, o que não acontece com
os contornos leste e oeste, relativamente indefinidos, porque as leis da natureza não
reconhecem os limites arbitrários criados pelo homem, ao imporem, amiúde, vários
tipos de fronteira, como acontece com as políticas.
Entre a Meseta e garganta epigénica que estrangula o Tejo nas Portas de Rodão de-
paramos com três níveis de aplanamento que correspondem a outros tantos patamares
duma extensa escadaria: (i) a planáltica Meseta Ibérica, a norte, que se prolonga para
além da fronteira, a leste, pelo campo charro, e despenca abruptamente, a oeste, no fosso
do Mondego, quando deixa para trás definitivamente a sua nascente serrana, assinalada
por um leve fio de água, no ponto onde o rio inflete em direção ao mar; (ii) a ampla
Bacia da Cova da Beira, ao centro, encaixada no sopé das Serras da Estrela, da Gardunha
e de Malcata; (iii) o Campo de Castelo Branco, a sul, extensa peneplanície que se prolon-
ga pela campina de Idanha até aos confins das terras raianas do Extremo mais distante,
delimitado a poente pelas charnecas que o Zêzere e a Ocreza separam do Pinhal Interior.
A Raia Central Ibérica, pequeno retângulo confinado na margem do retângulo
maior, foi encruzilhada de povos e culturas, como bem assinala a toponímia. A par-
tir dos sinais materiais e intangíveis dispersos neste espaço, é possível traçar diferentes
rotas e vários roteiros temáticos que nos permitem a sua leitura e interpretação sem a
superficialidade das instantâneas observações turísticas. Todo o universo raiano, físico
e humano, acaba projetado na fronteira, acidente redutor que resulta da ação humana,
essa cicatriz da história e espelho do mundo onde se concentra a capacidade ambivalente
16 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de separar e de unir.
De um lado e do outro lado da fronteira replicam-se aldeias e cidades, e encontra-
mos paisagens equivalentes e patrimónios complementares. A partir das várias camadas
de leitura, implícitas nas diferentes malhas temáticas que coexistem na Raia Central
Ibérica, é possível traçar diferentes rotas segundo geografias variáveis e sem fonteiras,
internas ou externas, bem definidas. O contacto direto com o território e a combina-
ção criativa duma malha temática que se concretiza numa rede fina de lugares oferece
uma ementa variada, que cada um pode escolher e combinar, enriquecendo com a sua
experiência pessoal a leitura criativa desta parcela rica diversa da Beira mais Interior.
. Paisagem: Rede Ibérica de Miradouros (Trans)Fronteiriços
Os pontos elevados configuram uma rede de locais que, a céu aberto, se impõem
como verdadeiros centros de leitura do território e de interpretação das paisagens. A
partir desses lugares, sem custos para o observador, pode-se contemplar a passagem
da história e observar a paisagem sem filtros, sem aparatos nem aparências, sítios de
eleição tais como os sobranceiros a Barca de Alva ou o rosário de elevações, desde a
Marofa às Portas de Rodão, passando por Castelo Rodrigo, Jarmelo, Guarda (Torre de
Menagem), Foios (Serra das Mesas, onde nasce o Rio Côa), Malcata, Sortelha, Varanda
dos Carquejais, Castelo Branco, Monsanto, Penha Garcia. Sem esquecer a mítica Portela
da Gardunha onde num relance é possível abarcar o fim do Portugal do Norte e o início
do Portugal do Sul.
parte do número dos vivos, que densificarão a malha que configura a Rota de Escritores
da Raia Central Ibérica.
o mundo: aquém e além-fronteiras
Alfredo Cunha
Fotógrafo
Jacques Lévy
Directeur de la chaire Intelligence spatiale à l’Université polytechnique Hauts-
-de-France et membre du rhizome de recherche Chôros. Il a obtenu en 2018
le prix international Vautrin-Lud, considéré comme le prix Nobel de géographie
En allemand, le mot Grenze (« frontière ») prend souvent le sens plus général de
limite lorsqu’il s’agit, par exemple, de poser des bornes à la liberté de celui sur lequel
on exerce une autorité. « Alles hat seine Grenzen », « il faut une limite à tout », n’est-ce
pas ? Germanophone, le leader populiste xénophobe suisse Christoph Blocher a souvent
cherché à jouer sur le mot. Dans son discours de Rafz, le 8 mai 2005 (au cours de la cam-
pagne électorale sur le référendum de ratification par la Suisse de l’accord de Schengen), il
s’est délecté de l’aubaine sémantique pour prôner d’un même mouvement de le renforce-
ment des frontières géopolitiques et le retour à une société autoritaire.
« Nous vivons à une époque où les limites ne sont plus respectées. Cela dit, je n’ai pas
à l’esprit les seules limites qui bordent un territoire national. La société, précisément,
35 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Dans une tradition légèrement plus esthétisante mais tout aussi déterminée, certains intel-
lectuels néo-conservateurs français ont la même tentation : ils nous présentent les frontières
dans des termes similaires à la manière dont psychanalystes et psychiatres décrivent parfois le
« rôle du Père » : l’expression de la loi, dont le contenu importe peu et qui pourra même être
un jour transgressée, mais qui offre l’avantage de permettre aux individus (ou par extension
aux sociétés) de « se structurer », d’avoir des « repères ». Et justement, professe Régis Debray1 :
Le mot « frontière » a beaucoup de succès, dans son sens propre mais plus encore comme
métaphore d’une multitude de réalités qui ont à voir avec les limites, c’est-à-dire avec notre pro-
pension à découper le monde en objets séparables. L’usage métaphorique de l’idée de frontière
semble une invitation à la séparation radicale entre des réalités qu’il serait tentant d’associer
ou de fondre. Est-ce la bonne approche ? Pour répondre à cette question, la prudence suggère
d’observer sérieusement la réalité de l’objet « frontière » et, seulement ensuite, d’en tirer éven-
tuellement des conclusions plus générales.Dans ce texte2, ce n’est bien sûr pas la négligence ou
l’ignorance de la réalité des frontières qui sont prônées, mais plutôt une démarche de relativisa-
tion cognitive. L’univers sémantique de la frontière est saturé d’absolus, le plus souvent lorsque
l’on convoque la notion de frontière pour parler d’autre chose. En faisant le chemin inverse de
36 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
La frontière est une figure gagnante de la pensée paresseuse. Elle s’appuie sur un bon
sens aux effets implacables : qui nierait que le licite n’est pas l’illicite, que je ne suis pas toi,
qu’ici n’est pas là ? Sans l’aide des oppositions simples que nous pouvons aisément établir
entre les choses, entre les gens ou entre les pays, où irions-nous ?
Theodor Adorno a utilisé l’expression de « jargon de l’authenticité3 », pour caractériser,
chez Martin Heidegger, l’emphase qui accompagne la prétendue reconnaissance de la
permanence transhistorique d’une essence originelle que les contingences de la « nouveauté »
et de la « technique » voileraient ou terniraient. Pour Adorno, le repli sur soi, l’ignorance de
la plasticité du monde et la mythification de l’Être marchent du même pas et les discours
contemporains sur la frontière sont une bonne expression de ce versant d’une pensée que
l’histoire fatigue. C’est d’autant plus surprenant à propos des frontières, dont l’existence
concrète dépend toujours d’événements, datés, souvent violents et rarement pensables
comme le résultat de la mise en œuvre des principes ou des valeurs qui sont censées fonder le
vivre-ensemble contemporain. Comment ces lignes de front pétrifiées pourraient-elles nous
dire quelque chose sur la bonne manière d’organiser la vie en société aujourd’hui ? Ce ne
serait possible que si on les réduisait à une métaphore de la métaphore qu’elle a engendrée :
la frontière figure la discontinuité conceptuelle et celle-ci se réincarne dans la frontière. Faute
de prendre le temps de décrire des logiques pourtant observables, serions-nous condamnés à
aborder ces objets à coup de dérivée seconde ? La « frontière naturelle », qui était sous-tendue
par une « authenticité » immanente et a longtemps hanté la géographie classique et ses corré-
lats géopolitiques, a fini par disparaître de nos esprits. Faut-il vraiment inventer un nouveau
verbiage, à prétentions transcendantes, cette fois, pour lui redonner vie ?
Si l’on veut y voir clair, il faut d’abord prendre acte du fait que la matérialité n’est
qu’une des composantes de notre monde, et que l’immatériel n’est pas irréel, pas plus qu’il
ne se réduit au simulé ou fictif. Lorsque des Berlinois disent que le Mur est encore dans
leurs têtes, ils parlent d’une frontière tout à fait concrète, qui se traduit par des pratiques
quotidiennes, par des choix d’habiter ou par des votes. Il faut donc admettre que, si nous
disons que la géographie des limites n’est pas seulement faite de barbelés et de miradors,
nous ne basculons pas pour autant dans l’univers des figures de style. En outre, la ligne
séparant deux territoires peut aussi devenir une abstraction qui s’incarne dans une autre
géométrie, celle par exemple des contrôles de sécurité en plein milieu d’un aéroport qui
se trouve en plein milieu du pays de départ. Autrement dit, il faut accepter de renoncer à
37 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Frontière(s)
Dans les 3 minutes et 20 secondes du plan-séquence qui ouvre la Soif du mal (Touch of Evil,
1958), Orson Welles nous montre une frontière poreuse à toutes sortes de réalités : à la caméra,
aux mouvements de ses personnages, à l’amour, aux trafics et à la violence. La suite du film
montre que les choses ne sont pas si simples. Les différences de développement et de mentalité,
les logiques d’État et la malignité des criminels concourent à donner une image sombre de
l’interface États-Unis/Mexique. Le spectateur est censé avoir compris à la fin que cette frontière
va continuer à faire du mal aux hommes en général et plus encore à ceux qui veulent l’ignorer.
On pourrait dire qu’il y a des frontières parce qu’il y a des États. Ceux-ci sont nés, en gros,
avec le Néolithique, lorsque les humains ont commencé à créer des surplus et donc des stocks.
On peut y voir l’origine des guerres géopolitiques classiques, avec deux options. L’une, si l’on
dispose de l’avantage de la mobilité, consiste à attaquer pour s’approprier les stocks produits
par les sédentaires ; l’autre, à défendre les territoires productifs consolidés. Dans les deux cas,
la nécessité d’avoir un appareil militaire permanent, qui incite à s’en servir, devient le premier
ressort d’un système institutionnel plus vaste, l’État, qui se tourne aussi vers l’intérieur de la
38 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
société qui l’a rendu possible. La guerre n’est donc pas qu’une conséquence de l’existence des
États, elle est aussi une cause de leur émergence. Dès lors qu’il y a des guerres, il y a des lignes
de front(ières) correspondant à un équilibre provisoire entre les forces.
L’idée de « frontière naturelle » est bien un oxymore : une frontière ne peut pas
être naturelle, puisqu’elle est le produit de différentes logiques sociales et temporalités
historiques. Pendant longtemps, en Europe de l’Ouest, les lignes de crête les plus élevées
n’ont pas constitué des frontières : le massif du Mont-Blanc est une zone où le même
groupe linguistique se partageait les différents versants, Val d’Aoste, Valais et Savoie. Ces
groupes parlaient la même langue, le franco-provençal, échangeaient beaucoup, malgré
la hauteur du relief, et continuent de partager certains aspects de leur même culture
d’aujourd’hui. Ce que l’on appelle « frontières naturelles », c’est le fait que les frontières
correspondent parfois à des limites de reliefs ou de bassins hydrographiques, qui cons-
tituent alors un des arguments pour en justifier l’existence. C’est le plus souvent une
ressource argumentative naturaliste pour justifier une guerre de conquête. Par exemple
: l’État français de la Révolution et de Napoléon avait le projet de placer la frontière
française sur le Rhin jusqu’à son embouchure. Pourquoi le Rhin plutôt que le Rhône
ou la Garonne ?
Les frontières géopolitiques, lorsqu’elles sont remises en cause, réévaluent le rapport
de force entre des États. La logique de la géopolitique, c’est d’étendre son territoire en
postulant que le bien-être de sa société en dépend. Cette idée a pu être considérée comme
rationnelle à l’époque d’une « société de stocks ». Sur un territoire, lorsque la plus grande
partie des ressources est prélevée, avec peu de valeur ajoutée, plus l’État étend ce territoire,
plus il augmente sa richesse, et par conséquent sa puissance. C’est le cercle, apparem-
ment vertueux, de la géopolitique qui justifie le recours à la force. Les cartes géopolitiques
sont striées de mythes territoriaux concurrents. Dans la géopolitique classique, chaque
État considère que son territoire est légitime dans sa plus grande extension, au regard de
l’héritage qu’il s’attribue.
Dès qu’on entre dans les « sociétés de flux », où la valeur ajoutée localement de-
vient décisive, la taille du territoire ne compte plus, sinon, s’il faut la défendre, en
négatif. De fait, on constate aujourd’hui que l’orientation impériale d’une société et
son développement socio-économique sont antinomiques. Cela avait déjà été démontré
pour l’Empire britannique, victime de ce que l’on a appelé l’overstretching, l’étirement
excessif d’un territoire, qui finit par coûter cher, pour des gains limités. Ce mouvement
39 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
d’extension a profité à certains, mais il n’est pas démontré qu’il ait profitéà la « métro-
pole » et, surtout, à l’ensemble de la société britannique. De fait, les pays les plus riches
ne sont pas nécessairement les plus étendus : on peut citer le Luxembourg, la Suisse
ou la Norvège... Ibn Khaldoun, le théoricien des empires du xivesiècle, avait montré
qu’il existait une sorte de « baisse tendancielle du profit » des empires : plus un empire
s’étend, plus il est amené à dépenser de ressources pour se maintenir. L’affaiblissement
de la composante endogène de son développement finit par en fragiliser le centre au
profit des périphéries. Les études contemporaines sur l’Empire romain confirment
cette thèse.
Limites politiques d’une société
Une autre dimension de la frontière est celle des limites politiques à l’intérieur des
États. Il faut d’abord prendre en compte l’emboîtement (l’inclusion du petit territoire dans
le grand) qui est classique dans les systèmes étatiques et horizontalisé dans le cas du fédéra-
lisme. Il s’agit ici d’interaction entre espaces, d’interspatialité qui n’appelle pas de frontière,
pas plus que la troisième interspatialité, la cospatialité (voir plus loin). La frontière repose
sur une interaction par interface, par la rencontre de deux espaces juxtaposés, et c’est une
métrique parmi d’autres de l’interaction. Le fait que la guerre ne soit pas un enjeu, même
lointain, ne signifie pas que des limites franches ne soient plus nécessaires.
S’agissant, spécifiquement, des frontières politiques (et non géopolitiques), l’enjeu
porte sur la coïncidence entre l’espace du gouvernement et l’espace de la société. Dans un
empire, le gouvernement du colonisateur a un impact sur ce qui se passe en dehors de la
« métropole » et les colonisés n’ont pas voix au chapitre : il y a donc un décalage entre les
deux espaces. Plus généralement se pose la question des limites géographiques de l’action
gouvernementale. Si des décisions prises par un gouvernement portent sur un espace qui
ne correspond pas à celui de ceux qui l’ont choisi, ces derniers deviennent alors maîtres de
décisions qui auront un effet positif ou négatif sur d’autres habitants qui, elles, n’ont aucu-
ne prise sur le gouvernement. La frontière, même si elle n’a aucun rapport avec la guerre,
est donc, quand même, nécessaire. De ce fait, il est difficile de supprimer les frontières, de
faire abstraction de la nécessité de découper les espaces politiques, de façon assez franche
pour que ceux qui prennent les décisions se les appliquent à eux-mêmes.
Le monde social n’est pas seulement l’ensemble des interactions entre êtres sociaux, c’est
aussi un tout, une société. Et ce tout existe à plusieurs échelles, pas seulement à l’échelle
mondiale qui, d’ailleurs, n’est pas le niveau de société le plus puissant du fait qu’il n’y ait pas
un niveau politique clairement défini à cet échelon. Les niveaux de sociétés établis restent,
pour le moment, selon les régions du monde, locaux, régionaux, nationaux et continentaux.
L’Europe est un cas à part : elle décrit un processus inédit avec des traits spécifiques, car
40 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
elle est composée de sociétés déjà très constituées, d’États-nations européens qui ont décidé
de construire un nouvel échelon avec toutes les difficultés inhérentes à ce projet. L’Union eu-
ropéenne (UE) commence à exister comme un pays, c’est-à-dire comme le territoire identi-
fiable d’une société, la société européenne7. Les libertés de circulation et d’échanges instituées
par l’UE tendent à réduire à peu de choses les frontières des États nationaux, qui perdent leur
consistance géopolitique et deviennent des limites régionales de l’État européen.
Les tensions que provoque un changement de frontières à l’intérieur d’un État montre
leur importance. Regardons l’histoire de la carte communale française : en 1789, nous som-
mes partis des paroisses pour établir les communes, et avons donc conservé la même trame
« administrative » jusqu’à aujourd’hui, sauf dans une partie du xixesiècle, où le pouvoir centra-
lisé autoritaire pouvait se permettre d’ajuster les limites communales à l’urbanisation, sans con-
certation ni délibération. À partir de la IIIe République (1875), il y a davantage de démocratie,
fondée sur un compromis avec les notables ruraux, qui ne veulent pas que l’on touche au pou-
voir des maires et qui disposent de moyens institutionnels puissants pour imposer leur point
de vue. De ce fait, la carte communale va rester figée, presque jusqu’à aujourd’hui. Le résultat,
c’est le décalage entre l’espace fonctionnel, vécu, et le découpage politique. Et cette situation
est coûteuse, car elle a des effets de frontière dommageables pour la justice et pour l’égalité.
Cependant, il existe de nombreux domaines de la vie sociale ou il ya peu,et de moins
en moins, de frontières : les sciences, les arts, la circulation des messages et des objets,
même si un certain nombre d’États font tout pour l’empêcher. Par ailleurs, il est souhaita-
ble qu’il y ait des limites aux territoires politiques. Ce sont deux mouvements en réalité :
d’un côté, les anciennes frontières géopolitiques sont mises à mal, de l’autre côté, un hori-
zon de philosophie politique rend utile la délimitation des espaces politiques, sans oublier
que le Monde constitue aussi un espace politique.
Entrons un peu plus avant dans la réalité empirique captée par le mot « frontière ». Les
frontières existent entre les États ou, plus généralement, entre entités politiques, que celles-
-ci soient ou non dotées de pouvoirs géopolitiques. Membranes plus ou moins étanches,
les frontières entravent la libre-circulation et donnent naissance à des interactions spéci-
fiques entre les espaces qu’elles séparent. L’analyse de ces interactions montrent que, en
rapport avec la frontière, des liens (flux licites ou illicites, infrastructures rendant ces flux
possibles) et des lieux spécifiques (postes-frontières, villes-frontières, zones-frontières…)
émergent. Comme en outre, les passages se situent à des points particuliers sur la ligne ou,
même, on l’a vu hors de la ligne, la frontière devient un système de goulots d’étranglement
41 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
qui canalisent les franchissements, d’où le paradoxe souvent signalé que la frontière semble
générer du mouvement au lieu de l’empêcher.
Ce petit mystère se dénoue dès lors qu’on compare une situation de frontière à celle qui exis-
terait s’il n’y avait pas de frontière. Il est vrai cependant que, sauf exception, comme la frontière
entre les deux Corée, il y a toujours des flux traversants et les espaces frontaliers contemporains
apparaissent comme des configurations intermédiaires entre le tout-ouvert et le tout-fermé, ce
qui plaît peut-être à certains exégètes effrayés par l’exercice, d’une totale liberté d’aller et venir.
Si maintenant on essaie de situer cette interaction entre deux espaces qu’est la fron-
tière dans un cadre plus large, on rencontre le concept de métrique. Une métrique est un
rapport à la distance– conception, mesure, pratique. On constate alors que la distinction
entre le topographique (continu) et le topologique (discontinu) appliquée à l’intérieur et
aux limites d’une aire permet de définir quatre familles de métriques (figure 1).
Métriques internes
Topographiques: Topologiques:
Métriques
territoire réseau
des limites
HORIZON RHIZOME
Topographiques
confins Espace linguistico-culturel, Espace relationnel d’un individu
quartier d’une ville
PAYS NETWORK
Topologiques :
frontière
Région rurale, État Réseau de télévision
Toutes les limites ne sont pas des frontières : celles-ci correspondent à une limite franche
entre deux territoires, mais il y a aussi des limites floues (comme les « marches » et les confins de
pays ou d’aires culturelles, ou encore le passage d’un quartier à l’autre d’une ville). La majorité
des réalités spatiales, en particulier celles, fixes ou mobiles, que créent les opérateurs, indivi-
dus compris par leur agir spatial (leur spatialité), ne sont pas des territoires mais des réseaux.
Les réseaux, qui relient des localités distinctes, sont d’ailleurs l’ordinaire de la géographicité
humaine, tandis que, du fait de leur métrique continue qui inclut les pleins et les vides, l’actuel
42 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
et le virtuel, les territoires restent toujours des utopies ou en tout cas des projets8.
C’est aussi pour ces raisons que, depuis que le modèle exclusif de l’État s’affaiblit dans
les esprits et dans la pratique, certaines frontières disparaissent ou s’affaiblissent, comme en
Europe, tandis qu’on se rend plus attentifs à d’autres différenciations de l’espace, moins reliées
au registre de la guerre, davantage porteuses des déséquilibres dynamiques de la sociétalité.
On comprend alors que seul le pays – un territoire bordé par une limite franche – offre
un paysage de frontière classique. Dans les trois autres cas, qui sont très répandus dans le
Monde d’aujourd’hui, soit il n’y a pas de limite nette (Horizont, rhizome), soit c’est une limi-
te entre deux réseaux, qui ne prend pas la forme d’une ligne de séparation visible.
réseaux contre territoires
En étudiant les « prisées » royales autour de Paris au xive siècle, Marie-Pierre Buscail9 a
montré comment les réseaux dominent dans le prélèvement de l’impôt par le roi de France,
non pas seulement en ce qu’ils sont un outil d’actualisation territoriale (comme toute admi-
nistration fiscale contemporaine lorsqu’elle organise le prélèvement), mais par le fait qu’ils dé-
finissent et circonscrivent l’espace préalable de la ressource en même temps qu’ils organisent
son exploitation. La géographie mobile des envoyés fiscaux du roi visualise le potentiel qu’ils
recensent et c’est en combinant autorité et diplomatie qu’ils s’emploient à transformer en re-
cettes. Or nous sommes là, non dans des régions récemment conquises, mais dans le cœur du
« domaine royal » dans les limites de l’Île-de-France actuelle ou dans ses environs immédiats.
Au sein d’un État qui, depuis Philippe-Auguste, est présenté comme vaste, centralisé, et déjà en
marche rapide vers la monarchie absolue, nous sommes bien loin d’un territoire uniformément
contrôlé. Cette remise en question des idées reçues sur la géographicité des sociétés du passé
constitue une ouverture théorique prometteuse pour les travaux des historiens10.
On pourrait objecter que, désormais, les États ont les moyens de réaliser jusqu’au bout
leurs projets de pays. Les murs de Belfast ou de Jérusalem seraient là pour le démontrer. En fait,
même si la frontière entre les deux pays est hermétiquement close, de nombreux Coréens du
Sud ont des connexions diverses avec des Coréens du Nord de même que, à l’époque du Rideau
de Fer, de nombreux contacts de nature variée (liens familiaux, échanges économiques, passages
légaux ou illégaux, conversations téléphoniques, diffusion d’émissions de radio et de télévision)
existaient entre l’Ouest et l’Est de l’Europe. On nommait ainsi zones d’« immaculée réception
» les rares parties de la RDA qui ne recevaient pas les émissions venant d’Allemagne de l’Ouest
et se trouvaient ainsi contraints à l’« innocence » face à la propagande de l’Est.
Aujourd’hui, on voit tous les jours à Lampedusa, à Calais ou le long du Rio Grande
comment des individus intrépides parviennent, au péril de leur vie, à passer des frontières
pourtant défendues par des moyens modernes. En outre, s’il est réussi, ce franchissement
est une opération gagnante pour les migrants car leur expulsion vers leur pays d’origine est
43 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
1
Source : <http://elpais.com/m/elpais/2014/10/22/inenglish/1413983861_652200.html>
Les espaces fluides de la pax urbana
On peut justement se demander si la frontière garde son sens dans un Monde to-
talement urbanisé. Certes l’archipel planétaire des espaces urbains se situe aussi dans
un espace mondial dont le pavage en États continue de représenter une des trames
majeures. Cependant, ce sont les villes et notamment les grandes villes qui apportent
la croissance, l’innovation et la contribution financière dont les États ne peuvent se
passer. Ils doivent donc accepter, à contrecœur, que leurs villes disposent des moyens de
leur développement. Or les relations entre les villes ne reproduisent pas celles des États
géopolitiques. Elles ne participent pas comme eux à un jeu à somme nulle, arbitré en
dernière instance par la violence. À l’échelle mondiale, se développe aujourd’hui ce qui
a pu exister dans les villes rhénanes ou hanséatique à la fin du Moyen-Âge : un rapport
mêlant concurrence et coopération, une relation de compétition pacifique car il suppose
une multitude d’échanges d’idées, de produits, de personnes et aboutit plutôt à un jeu à
somme positive. Les réseaux urbains tendent à l’emporter sur les territoires étatiques et,
du local au mondial, ces réseaux sont sans frontière.
Cela ne veut pas dire qu’il n’existe pas de différences au sein du monde urbain. Il y
en a de substantielles entre villes selon leur taille et la qualité de leur urbanité. Il y en a
aussi à l’intérieur de chaque « île » de l’archipel entre le centre, les banlieues, le périur-
bain ou les autres gradients d’urbanité faibles. C’est d’autant plus significatif que ces
configurations sont devenues davantage le résultat d’un choix. La différence est mani-
feste avec ce qu’on pouvait observer pendant des siècles dans les sociétés rurales, dont
la plupart des membres se trouvaient assignés à résidence par l’ancrage agraire ou, plus
récemment, lorsque uneimmense classe de travailleurs aux salaires faibles et au patri-
moine inexistant se trouvait contrainte de résider dans des ghettos ouvriers définis par
le faible prix du sol ou l’aide publique. Même si ces logiques n’ont pas disparu, la part
de choix a augmenté et on peut lire les dynamiques urbaines comme celles de modèles
d’urbanité concurrents qui se partagent les attentes des habitants.
45 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
La frontière comme barrière absolue et permanente entre les mains des États est une
réalité récente. Jusqu’au début du xxe siècle, les États n’avaient pas la puissance suffisante
pour surveiller et défendre des lignes interminables, surtout quand elles se trouvaient
dans des environnements naturels difficiles. La contrebande constituait une activité ba-
nale dans un monde où, il est vrai, la faible portée des mobilités faisait de la frontière une
réalité surtout locale ou régionale.
Si on considère l’univers des migrations, que on constate aisément ce n’est pas la même
chose de migrer, d’une part, à l’intérieur de l’Union européenne, d’un État ou d’un espace
qui a une logique politique interne, disposant de politiques publiques de solidarité, et,
d’autre part, entre des espaces qui n’ont pas de dispositif de solidarité entre eux. C’est le cas
de l’Afrique subsaharienne et de l’UE qui ne sont pas dans un dispositif de responsabilités
partagées sur un certain nombre de points. Ainsi, un étudiant polonais, qui vient faire
ses études en France, paye les mêmes frais d’inscription qu’un Français, ce qui n’est pas
46 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
toujours le cas pour un étudiant qui n’appartiendrait pas à l’espace européen de solidarité.
Kant considérait que la liberté d’aller et venir définissait l’hospitalité : si vous allez
quelque part, vous ne devez pas être considéré comme ennemi, vous devez être reçu
correctement, pacifiquement, de façon cordiale, sans que cela ne présage de votre ins-
tallation sur les lieux. Cependant, pratiquer l’hospitalité ne veut pas dire qu’on accorde
la citoyenneté, qui relève d’une intégration permanente et active, à égalité de droits et
de devoirs, dans une société. Ce sont ces interrogations, ces enjeux auxquels nous som-
mes confrontés aujourd’hui avec les migrations. Cela nous permet de comprendre qu’il
peut y avoir plusieurs frontières de natures différentes au même endroit : la frontière
entre l’UE et le reste du monde est à la fois une frontière d’hospitalité et une frontière
de citoyenneté. Si vous êtes demandeur d’asile, vous recevrez l’hospitalité, mais aussi la
possibilité de vous installer durablement dans le pays. Si vous êtes un migrant volontaire
qui cherche à améliorer son sort en passant par la même frontière, il peut y avoir des
législations beaucoup moins favorables, comme c’est le cas actuellement. Un ressortis-
sant de l’UE qui rentre chez lui de vacances passera lui aussi la même frontière, via les
aéroports. Là, les détenteurs de passeports biométriques disposent d’un canal autre que
ceux qui voudraient entrer dans un pays pour y résider ou obtenir un permis de séjour.
Il existe ainsi plusieurs types de relations frontalières entre sociétés, qui, même superpo-
sées, ne se confondent pas.
Le cas du commerce international montre également à quel point ce n’est pas seu-
lement l’abaissement des frontières (par la diminution des droits de douane, l’affai-
blissement des barrières non tarifaires ou la régulation des échanges) qui caractérise le
moment présent, mais, plus fondamentalement, la perte de pertinence de la notion.
Ce qu’on appelle « commerce vertical » résulte du fait qu’un bien est produit dans plu-
sieurs lieux appartenant à plusieurs pays, chacun contribuant à sa valeur finale. On sait
par exemple que la fabrication d’un iPhone coûte à Apple 179 $ dont seulement 6,5 $
pour l’assemblage chez Foxconn à Shenzhen, en Chine. L’écran et la mémoire produits
au Japon coûtent 59 $ tandis que le processeur, fabriqué en Corée du Sud en vaut 22
et que d’autres entreprises, situées notamment en Europe (dont un ajout de 30$ en
48 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Ainsi une voiture made in France n’est réellement produite en France qu’aux deux
tiers, tandis qu’inversement, dans de nombreux produits que la France importe, il existe
des composantes françaises significatives, comme dans l’informatique et la télécommu-
nication. La part des services (immatériels) dans les objets industriels se trouve égale-
ment mieux prise en compte, ce qui conduit à relativiser les notions de délocalisation ou
de désindustrialisation couramment appliqués aux pays d’industrialisation ancienne. Les
principaux pays développés voient ainsi la part des services augmenter dans l’ensemble
2
Source : Julien Bousac, <http://obgeographiques.blogspot.com/>.
de leur exportation. Pour la France, par exemple, elle passe d’un tiers à plus de la moitié,
grâce pour l’essentiel à ses services aux entreprises.
Ainsi devons-nous changer de lunettes. Il nous faut prendre en compte l’incapacité de
la carte des États, séparés par des frontières à rendre compte de l’économie d’aujourd’hui.
Nous l’avons accepté pour des entités plus petites et nous calculons la valeur ajoutée d’une
région ou d’une ville, par exemple, sans limiter les calculs aux flux de produit finis. Les
comptabilités nationales permettent d’identifier les chaînes de valeur internes à un pays sans
s’embarrasser des frontières internes. Mais cette fois, le pays, c’est le Monde.
d’autres frontières
Les frontières n’ont pas disparu. Elles perdent de leur signification du fait que ce qui
était mobile ou connectable, les opérateurs, acteurs ou objets, l’est devenu bien davantage
et fait de cette mobilité et de ces connexions un élément majeur de leur productivité. Si
elle n’est pas aveugle, la société à laquelle ces acteurs et ces objets appartiennent finit par
accepter cette liberté. C’est pourquoi les sociétés, qui, elles, demeurent rivées au sol,ne
peuvent plus et ne souhaitent même plus imposer leur fixité à leurs composantes mobiles,
individus et objets.
Dans le même temps, les frontières sont tout de même nécessaires à toutes les échelles
pour déterminer les limites de la responsabilité politique d’une société sur elle-même.
Ledéclin de la géopolitique rend le politique plus fort et l’établissement même d’une société
politique a besoin de savoir qui fait quoi où, à toutes les échelles. Or, quand les sociétés
changent, sous l’effet de l’urbanisation, par exemple, il serait logique que leurs frontières
locales ou régionales changent aussi pour que l’espace des solutions se rapproche de l’espace
des problèmes. Ce n’est jamais facile, mais dans un monde en paix, on peut s’employer à
faire jouer aux frontières un rôle dans l’établissement d’une justice spatiale15. La stabilité des
frontières rend le futur délibérable, leur plasticité le rend réalisable. La paix fait perdre de
50 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
leur intérêt et de leur sens aux frontières nationales mais elle en redonne à celle des villes, des
régions ou des continents.
Prendre conscience des avantages et des inconvénients de se représenter la réalité à l’aide
de discontinuités formalisées nous permet de revenir vers la frontière comme objet spatial
spécifique. Il est historiquement situé et sa définition précise permet a contrario d’aperce-
voir tout ce qui, dans nos environnements, ne peut être pensé sous la figure de la frontière.
L’essentiel reste de faire changer la notion de frontière de catégorie cognitive : quitter la
métaphysique obsessionnelle de la séparation pour entrer dans l’univers fatigant de l’auto-
invention du monde par ses habitants.
*
1
DEBRAY, Régis, « La frontière, c’est la paix », Le Journal du Dimanche, 14 novembre 2010. Voir
aussi Régis Debray, Éloge des frontières, Paris, Gallimard, 2010
2
Cet article prend appui sur plusieurs travaux déjà publiés, notamment : Lévy, Jacques, 2014.
« Les limites de la frontière et les limites de ces limites », in Jean Birnbaum (dir.), Repousser les
frontières ?, Paris, Gallimard, p. 67-86.
LÉVY, Jacques, Maitre, Ogier&Romany Thibault, 2016. « Rebattre les cartes. Topographie et topo-
logie dans la cartographie contemporaine », Réseaux, vol. 34-195, p. 17-52.
LÉVY, Jacques, 2020. « Penser la frontière », entretien avec Jean-Thomas Rieu et Sophie Delheaume,
TDCTextes et Documents pour la Classe, mars 2020, p. 6-9.
3
ADORNO, Theodor, Jargon de l’authenticité, Paris, Payot-Rivages, 2009 [1965].
4
LÉVY, Jacques, L’espace légitime, Paris, Presses de Sciences Po, 1994.
5
LÉVY, Jacques, « Au-delà du dis/continu : quelques remarques », EspacesTemps Les Cahiers, Continu/
discontinu. Puissances et impuissances d’un couple, n°82-83, pp. 12-16. Disponible sur :
6
LÉVY-LEBLOND, Jean-Marc, Aux contraires. L’exercice de la pensée et la pratique de la science, Paris,
Gallimard, 1996.
7
KAHN, Sylvain & Lévy, Jacques, 2019. Le pays des Européens, Paris, Odile Jacob.
8
Voir sur ce point les articles « Hyperspatialité » et « Synchorisation » du Dictionnaire de la géogra-
phie et de l’espace des sociétés, Paris, Belin, 2013 (nouvelle édition), dirigé par Jacques Lévy
et Michel Lussault, ainsi que l’ouvrage de Boris Beaude, Internet : changer l’espace changer la
société. Les logiques contemporaines de synchorisation, Paris, FYP, 2012.
9
BUSCAIL, Marie-Pierre, 2015. « L’expression des rapports de pouvoir par et pour l’espace au
Moyen Âge », EspacesTemps.net, février 2015, <http://www.espacestemps.net/articles/rap-
ports – de-pouvoir-moyen-age>.
10
EspacesTemps.net, Traverse « Dulac/Une rencontre spatio-temporelle », octobre 2014, <http://
www.espacestemps.net/articles/une-rencontre-spatio-temporelle>.
11
Voir la carte des restrictions d’accès en Cisjordanie sur le site : <http://www.ochaopt.org> et en
particulier : <https://www.ochaopt.org/sites/default/files/westbank_a0_25_06_2020_final.pdf>
12
Voir Jacques Lévy, « Topologie furtive », EspacesTemps.net, février 2008 <http://www.espaces-
temps.net/articles/topologie-furtive>
51 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
13
Voir YuqingXing, & Neal Detert, « How iPhone Widens the US Trade Deficitswith PRC »,
Discussion Paper 10-21, GRIPS, novembre 2010, <http://www3.grips.ac.jp/~pinc/data/10-
21.pdf>.
14
Voir sur ce point les publications de l’OCDE et les travaux de Guillaume Daudin, Christine
Rifflart et Danièle Schweisguth.
15
LÉVY, Jacques, Fauchille , Jean-Nicolas &Póvoas, Ana, Théorie de la justice spatiale. Géographies
du juste et de l’injuste, Paris, Odile Jacob, 2018.
desterritorialização e limites territoriais:
reflexões numa perspectiva latino-americana
Rogério Haesbaert
Geógrafo, Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
Este ensaio, ainda que breve diante da complexidade do tema, tem por objetivo
problematizar os processos denominados de desterritorialização no mundo contem-
porâneo, em sua íntima vinculação com a questão dos limites geográficos, concebidos
como inerentes a toda construção espacial e/ou territorial, mas profundamente mar-
cados pelo contexto geo-histórico em que estão situados. Trata-se de revisitar debate
já bastante referido no passado (por exemplo, em Haesbaert, 1995 e 2004, para a
desterritorialização, e em Haesbaert, 2006 e 2016 para os muros/limites fronteiri-
ços), aqui recolocado sob o prisma do chamado pensamento descolonial, de raízes
latino-americanas.
desterritorialização e território: imbróglios conceituais
Criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari e desenvolvido em seguida no livro “Mil
Platôs”, o conceito de desterritorialização conhece numerosas extensões metafóricas ou
simbólicas, tanto nas artes, línguas, literatura, história, antropologia quanto na sociolo-
gia. [e na Geografia] Mas o sucesso desse conceito carrega em si mesmo seu limite pois o
termo se tornou uma espécie de saco de gatos que cada um utiliza como bem entende, o
que nos leva a perguntar: estamos lidando com um efeito de moda ou com um conceito
relevante? (Albert e Kouvouama, 2013:13, tradução livre)
É nesse sentido que devemos destacar ao mesmo tempo a “fecundidade” de sua ampla
difusão numa área como a Geografia e a especificidade com que o utilizamos, em nosso
campo, buscando certo rigor a fim de não cometer “violências epistemológicas”. Foi assim
que aprofundamos a crítica à polissemia do termo em nosso trabalho “O mito da des-
territorialização” (Haesbaert, 2004). O primeiro dilema a ser superado é o que envolve a
concepção mais ampla de desterritorialização, quando esta, especialmente em seu uso por
outras ciências sociais, se confunde com “desespacialização”.
Muitos acabaram confundindo de tal forma “território” e “espaço (geográfico)” que os
dois se transformaram, ainda que de maneira implícita, praticamente em sinônimos. Muito
dessa confusão proveio de outra simplificação, a do espaço visto apenas a partir do fator
“distância” (física), como se a “superação” ou o debilitamento das distâncias, sobretudo em
seu sentido físico e padronizado, ou como espaço absoluto, significasse desterritorialização.
Assim, um espaço desistoricizado levou a uma concepção demasiado genérica de des-
territorialização como simples superação das distâncias ou redução do peso das condições
espaço-materiais de nossa existência. Diversos outros dilemas conceituais da desterrito-
rialização, nas mais diversas áreas (da Economia aos Estudos Culturais, da Sociologia à
Ciência Política), já foram discutidos (ver, por exemplo, Haesbaert, 2004, especialmente
cap. 5). Na conclusão de “O Mito da Desterritorialização” traçamos um elenco de situa-
ções e/ou de interpretações que correspondem ao sentido “mítico” com que muitos, nas
Ciências Sociais, veem a desterritorialização – “mito”, aqui, no sentido do senso comum
de simplificação, ilusão, fábula ou representação exagerada. Assim, afirmamos que dester-
ritorialização não poderia significar simplesmente:
Outras leituras, hoje dominantes, ampliam a noção de poder e, com isso, as práticas de
territorialização aparecem associadas a qualquer indivíduo, classe ou grupo social. Assim,
falar de território e des-territorialização é falar também de escala, desde a concepção mais
restrita, que associa o território a uma escala específica e de limites teoricamente bem
definidos, a escala nacional ou do moderno Estado nação, até aquelas mais amplas, que
estendem o território da escala do corpo (o “corpo-território” das feministas indígenas
latino-americanas) até a escala global (o planeta como delimitação de nosso “território-
-mundo”). Associado à questão das escalas geográficas aparece também a questão das esca-
las históricas: no primeiro caso, o conceito de território se restringe ao mundo moderno
(ou, no máximo, desde sua instituição no Império Romano); no segundo, inerente à nossa
condição social em sentido amplo, pode estender-se a toda a história humana.
Outro debate relativamente recente relativo à concepção de território diz respeito não ape-
nas à existência efetiva do território enquanto espaço através do qual se desdobram as práticas
de poder, mas, sobretudo, à sua configuração enquanto instrumento metodológico no entendi-
mento do espaço geográfico. Assim, por exemplo, Lévy (1994) associa-o a uma das “métricas”
fundamentais do espaço geográfico, a “métrica topográfica”, marcada pela exaustividade e a
continuidade/contiguidade em superfície – frente à “métrica topológica” ou das redes1.
Em outra abordagem, distinta mas com algumas vinculações possíveis, que parte de
uma oposição entre território e rede, uma ala importante da Geografia anglófona acabou
defendendo a contraposição entre uma abordagem “territorial” e uma abordagem relacio-
nal (ou conectiva, “em rede”) do espaço geográfico, como se uma abordagem “territorial”
se opusesse a uma abordagem “relacional” (a esse respeito ver, por exemplo, Jonas, 2012).
Centrado numa visão jurídico-estatal de território, Samir Amin (2004) chega a defender
uma “leitura não territorial” da política espacial.
Ao contrário, no nosso ponto de vista, tanto podemos ter os tradicionais territórios-
-zona ou que priorizam o domínio de áreas, Estado nação à frente, quanto os territórios-
-rede, espaços onde a modalidade predominante de controle é a lógica reticular, como em
territórios de grandes corporações transnacionais. Não se trata de território como uma
categoria puramente analítica, mas recheada de conteúdo político, e de relações de poder
para além do poder meramente estatal.
Na verdade, todo espaço geográfico é uma conjugação inseparável de duas grandes
lógicas de des-ordenamento, a lógica zonal e a lógica reticular. E como nem tudo é “lógico”
em termos da organização espacial, inspirados na realidade latino-americana, propusemos
também a consideração dos “aglomerados”, espaços marcados pela ausência de uma lógica
clara de ordenamento ou moldados por uma confusão de lógicas espaciais onde, pelo
menos durante certo período de tempo (como os de grande conflito armado), não há
clareza sobre a lógica espacial predominante.
57 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Apesar do caráter geral desses elementos territoriais, a zona ou área e a rede, comuns tam-
bém ao espaço geográfico em seu conjunto, o mais importante é situar geo-historicamente
suas configurações concretas e pretensões (ou não) de universalização. Daí a relevância,
1
Apesar de trabalhar com esquemas em que essa oposição é evidente, o autor ressalta que há “outra via” para
se trabalhar com a métrica reticular: “redes e territórios estão de fato ligados por uma dupla construção em
abismo [double construciton en abîme]. Um território pode se reduzir em seu funcionamento a uma rede ex-
tremamente densa e, inversamente, a própria ideia de rede supõe um referente territorial. Encontramo-nos
assim frente a uma dupla ao mesmo tempo muito simples e muito produtiva – com territórios e redes damos
a volta no espaço”. (Lévy, 1994:77, tradução livre) Nesse sentido, o que Lévy propõe como distinção entre
métricas territorial e reticular se aproxima muito do que denominamos lógicas espaciais zonal e reticular.
como veremos mais à frente, de identificarmos o território e, em consequência, a desterri-
torialização, contextualizados a partir de sua construção efetiva por determinados sujeitos
sociais e o uso prático da própria designação, como ocorre entre os povos originários e
diversos movimentos sociais na América Latina.
A leitura que vincula o território mais a um espaço absoluto e não relacional é, na ver-
dade, outra maneira de simplificar a própria leitura da desterritorialização. Nesse sentido,
a rede, como se fosse a contraface do território, estaria associada a uma visão relacional do
espaço. Enquanto o território teria limites mais definidos e fixos, a rede, eminentemente
desterritorializadora, não estabeleceria limites claros. Demonstramos, entretanto, o quan-
to podemos nos territorializar também “em rede”, pois uma das formas mais disseminadas
hoje, de controle (político, em sentido amplo) do espaço se efetua através do controle
e “canalização” de redes – ou, mais simplesmente, pelo controle de hubs ou de polos de
conexão das redes. Deleuze e Guattari já afirmavam que podemos nos territorializar pela
própria repetição (implicando controle) do movimento.
Como todo conceito, território também é um conceito composto. Para sua compreen-
são, portanto, é preciso analisar seus diversos componentes. Enquanto espaço político, os
elementos do território podem também ser considerados componentes do próprio espaço
geográfico, em sentido amplo. Dois deles já foram mencionados aqui: zonas e redes. Outro
elemento decisivo e que nos interessa mais de perto são os limites e/ou fronteiras – até por-
que uma das definições mais óbvias de desterritorialização é a que a vincula à destruição ou
fragilização dos limites territoriais, ressaltando sua conotação política.
Na verdade, pode-se afirmar, a ação de delimitar é condição inerente a toda constru-
ção de um espaço geográfico. Heidegger (2006[1954]) destacava a importância do limite
não como fim de um fenômeno, mas como “aquilo a partir do qual alguma coisa começa
58 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
a ser (seinWesenbeginnt)”. Nesse sentido, a própria fronteira estatal, para Machado (1998)
não traduz a ideia de fim, “mas de começo do Estado, o lugar para onde ele tende a se
expandir”. (p. 41) O próprio espaço, para Heidegger, “é essencialmente o que foi ‘arranja-
do’ [‘arrumado’], o que se faz entrar no seu limite”. (2006 [1954]:183)2. Ou seja, o limite
demonstra que toda disposição no espaço implica alguma forma de des-ordenamento ou,
como preferimos, de des-articulação espacial. Nos termos de Hissa:
2
Na tradução francesa: “comme les Grecs l’avaient observé, ce à partir de quoi quelque chose commence à
être (sein Wesen beginnt)”; “est essentiellement ce qui a été ‘ménagé’, ce que l’on a fait entrer dans sa limite”.
(grifos no original)
O limite almeja a precisão e se insinua como muro, mas contraditoriamente, atra-
vés da fronteira, apresenta-se como transição, como mundo do permanente vir-a-ser e
da ausência pulsante. Nesses termos, como pensar a fronteira como demarcação entre
domínios? (2002:35)
Latouche (2014), por sua vez, afirma que “a condição humana está circunscrita por
limites” (p. 11). É interessante que, como na crise sanitária do Covid-19, no mundo pós-
-pandemia da gripe espanhola e entreguerras, o escritor Paul Valéry já nos alertava que
“o tempo do mundo finito [em outras palavras, limitado] começa[va]” (apud Latouche,
2014:15). Falar em “época do espaço” é falar não apenas de simultaneidade e “tempo real”
mas também de uma época dos limites.
Em síntese e de modo geral, se o limite ou, mais amplamente, a fronteira3 é um
constituinte imprescindível de todo território, sua transformação ou destruição pode ser
tomada como o primeiro indicador de um processo de desterritorialização. Ocorre que,
como o próprio território, esses limites também podem ser concebidos de diferentes
formas, dependendo da leitura absoluta ou relativa/relacional que fizermos do espaço
em que se dão essas delimitações. Fundamental, portanto, é identificar o grau de fixidez
e impermeabilidade com que são concebidos os territórios enquanto espaços de poder.
Como já vimos, a exemplo dos limites político-administrativos estatais, para os
mais “tradicionais”, os territórios e seu limites portariam, obrigatoriamente, a nega-
ção da relacionalidade, incorporando unicamente uma lógica zonal ou em áreas bem
definidas, contínuas/contíguas e exclusivas, como se o próprio Estado nação não com-
portasse uma multiplicidade de manifestações em termos de soberania territorial e
controles fronteiriços. A China, em seu processo de abertura gradativa e territorial-
mente hierarquizada ao capitalismo evidencia claramente essas geografias múltiplas
do poder estatal.
A leitura não-relacional do território e de seus limites implica, em primeiro lugar, a
separação espaço-tempo e, em consequência, uma visão desistoricizada, abstrata e universal-
59 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
3
Para o debate geográfico sobre a distinção entre limite e fronteira ver, entre outros, Machado, 1998.
Retomamos mais amplamente o tema dos limites em Haesbaert, 2016.
fecundo, vivo, dialético” (1979:159), na verdade implicava a dissociação entre espaço e
tempo. Embora o autor não tenha aprofundado esse debate ao longo de sua obra, nem res-
saltado como devia uma concepção relacional de espaço, abriu um grande debate centrado
na consideração de que estaríamos passando da “grande obsessão” pela história e os dilemas
do tempo, no século xix (sintetizada na crença na ideia de progresso, pautada num tempo
único, linear, sem interferência da diversidade espacial), para uma época que “talvez seja a
época do espaço”, “época da simultaneidade”, da “justaposição”, “do perto e do distante,
do lado a lado, do disperso” (Foucault, 1986:22). Nesta, por outro lado, corremos outro
risco, o da sobrevalorização de um espaço destituído de sua densidade temporal, alicerçado
na simultaneidade do “tempo real” vivido, presente. Como já afirmamos, o espaço:
Tiempo, espacio, orden y estratificación [em otras palabras, limites] son elementos
imprescindibles para la relacionalidad del todo. Juntando el aspecto de ‘cosmos’ con el
de ‘relacionalidad’, podemos traducir (que siempre es ‘traicionar’) pacha como “cosmos
interrelacionado” o “relacionalidad cósmica”. (Estermann, 1998:45)
sua vez à crescente exclusão (ou inclusão precária) promovida pelo capitalismo contem-
porâneo, deve ser associada ao fato de esses discursos serem moldados fundamentalmente
a partir dos países centrais. Pois é justamente a partir de um outro ponto de vista, “peri-
férico”, que gostaríamos de destacar aqui a abordagem que vincula desterritorialização e
exclusão [...], precarização. (Haesbaert, 2004:312)
intimamente associada à ideia de limite, de delimitação, pelo simples fato de que quando
os limites do território (que podem representar também segurança e/ou proteção) são
colocados em questão é que a desterritorialização se torna evidente. No que se refere à rea-
lidade latino-americana, especialmente entre os povos originários (ou tradicionais, no caso
brasileiro), e também entre muitos grupos periféricos de grandes metrópoles, o território,
para além de uma categoria analítica, se transforma numa categoria da prática política,
profundamente impregnada nas/das lutas sociais.
Seu sentido amplo (como “territórios de vida”) e sua característica de ferramenta de
luta é fruto, sobretudo, do nível de expropriação geográfica efetuado através do padrão
de acumulação neoextrativista dominante na região (extrativismo que se estende da esfera
natural à financeira). Através dele ocorre como que uma politização de todas as esferas da
existência, quando está colocada em xeque a vida, e não apenas aquela dos grupos sociais
subalternos, mas também a de todos os seres vivos – demandando-se, assim, também, uma
política dos direitos da natureza.
Por isso, numa visão antropológica, cultural, associando desterritorialização e perda de
limites, Nates (2010) define a desterritorialização como “a perda dos limites [linderos] ter-
ritoriais criados a partir de códigos culturais historicamente localizados”. Por outro lado,
considera também como desterritorialização (eu diria, neste caso, des-reterritorialização)
“quando a própria população decide des-fazer as relações territoriais e as representações
espaciais (em nível mítico ou de práticas políticas sobre o território), isto é, quando
uma população decide des-alinhar-se”, exemplificando com o caso da colonização, quan-
do povos autóctones foram (e ainda são) obrigados a reinventar suas referências sim-
bólico-territoriais (e, consequentemente, seus limites) para fazer frente à nova situação
colonizadora. (Nates, 2010:216)
Essa amplitude prático-política com que o refazer de limites territoriais – e a des-
-reterritorialização – impregna a vida latino-americana se reflete sobremaneira nas
múltiplas iniciativas por autonominação dos grupos sociais. Experiências como a de
Cherán (Haesbaert, 2020a), no México, demonstram bem esse jogo territorial por
autonomia no próprio interior da territorialidade estatal hegemônica, encontrando
brechas para, via pluralismo jurídico, elaborar formas de autogestão e outra interação
com a natureza.
O próprio padrão moderno-colonial do capitalismo periférico contemporâneo,
de uma desterritorialização pretensamente ilimitada, demanda essa nova construção
de limites, mais múltipla, especialmente aqueles que, mais flexíveis e moduláveis,
subvertem os espaços absolutos de uma lógica estatal exclusivista. São marcados
por uma inter ou transterritorialidade em que uma mesma delimitação física pode
incluir múltiplos limites em termos de territorialidades sobrepostas, intercambiáveis
65 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
e/ou partilhadas.
No interior dos diversos processos de dominação neoliberal não há como negar,
também, a fragilização e/ou a complexificação e “multiplicação” dos limites estatais,
onde tantas vezes legalidade e ilegalidade se confundem. Regiões inteiras, como no caso
de Colômbia e México, são territorializadas por grupos armados do narcotráfico e/ou
paramilitares – no México agrupados sob a ambígua designação de “autodefesas”. Na
cidade do Rio de Janeiro, recente pesquisa apontou que um quarto dos bairros está nas
mãos das milícias, misto de policiais legais e ilegais, impondo controle não só sobre
vários setores da economia (venda de gás, tevê a cabo, segurança, loteamento imobiliário
comércio de drogas), mas também na política, elegendo seus representantes junto ao
poder instituído e negando acesso a outros políticos nos territórios sob seu comando.
As disputas entre os diversos grupos do narcotráfico entre si, com as milícias e com a
polícia demonstra a grande volatilidade do controle (e dos limites) territoriais em muitas
áreas da cidade.4
Finalmente, uma outra contribuição que um olhar sobre a realidade latino-americana
subalterna pode nos proporcionar sobre o território, a des-territorialização e seus limites,
é a concepção de corpo-território. Partindo da ação de grupos subalternos cujo nível de
expropriação e violência a que estão sujeitos alcança muitas vezes a escala do corpo, movi-
mentos indígenas e/ou feministas organizaram diversas lutas com base na resistência cen-
trada no próprio corpo, entendido de modo relacional e, assim, intimamente vinculado
ao meio, ao espaço – inclusive natural – do qual faz parte e no qual se insere (para um
detalhamento dessa concepção ver Haesbaert, 2020b). Trata-se, sem dúvida, da proposi-
ção mais desafiadora à “descorporificação” do território em muitas leituras hegemônicas,
feita a partir de lutas sociais muito concretas.
sintetizando
4
Para o mapa das áreas dominadas por cada grupo armado ver o “Mapa dos Grupos Armados do Rio
de Janeiro”, disponível em https://nev.prp.usp.br/mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro/. Para
um balanço, ainda que jornalístico, de pesquisa sobre esses territórios, ver https://g1.globo.com/rj/rio-
-de-janeiro/noticia/2020/10/19/rio-tem-37-milhoes-de-habitantes-em-areas-dominadas-pelo-crime-
-organizado-milicia-controla-57percent-da-area-da-cidade-diz-estudo.ghtml
em sentido geral, um pouco como na expressão filosófica deleuziana de “linha de fuga”,
ou, geográfica e sociologicamente, como todo processo de saída/abandono, destruição
e/ou debilitamento territorial, dinâmica inerente a todo processo sociopolítico;
em sentido estrito, geográfica e sociologicamente, como precarização – ou perda
de controle – territorial, já que ausência completa de território nunca irá ocorrer, o
controle do ou o poder sobre o espaço – a começar pelo nosso corpo e seu entorno
– como condição básica de nossa existência.
A segunda possibilidade, é claro, não exclui a primeira, apenas destaca, dentro dela,
um processo normalmente pouco enfatizado. Essa precarização, como ressaltamos, tão
evidente para o caso latino-americano, alia perda de controle tanto das condições materiais
quanto simbólicas da existência, já que para muitos grupos o espaço está impregnado de
simbolismos identitários. No caso dos povos originários isso é muito evidente, já que são
dotados, quase sempre, de um forte laço territorial que os empodera enquanto espaço de
referência identitária.
Vinculando os conceitos de território, limites territoriais e desterritorialização,
como uma espécie de pano de fundo, encontramos o espaço geográfico e as relações
de poder, já que território, pelo próprio histórico do conceito ao longo da história do
pensamento geográfico, está sempre associado à espacialização das relações de poder.
Vimos, portanto, que território e, consequentemente, des-territorialização (com hífen),
não podem ser concebidos sem uma definição mais clara do que entendemos por poder,
pois dependendo da concepção de poder muda a ideia de território à qual estamos
nos referindo.
Podemos ter desde o conceito de território como entidade meramente estatal, prove-
niente do poder político em seu sentido moderno mais estrito, até como entidade geográfica
que molda todas as nossas práticas, de um poder inerente à toda “condução de condutas”,
simplificando a complexa concepção de poder de Michel Foucault. Longe, porém, de
mero caráter funcional, o território abriga o poder em sua multidimensionalidade, o que
67 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
implica considerar, por exemplo, suas dimensões econômica e simbólica (muitas vezes
intimamente conjugadas), cada vez mais relevantes.
Quanto ao limite territorial, como uma modalidade de limite geográfico centrado
nas relações de poder, ele é um constituinte inerente a todo território e, portanto, foco
central em todo processo que objetiva abandonar, destruir ou transformar um territó-
rio – ou seja, em toda dinâmica de des-territorialização. Mas é importante considerar
que, como o poder espacializado, em suas múltiplas dimensões, se exerce tanto sobre
áreas ou zonas quanto sobre redes e polos de conexão (como os hubs de comunicação/
/informação, cada vez mais estratégicos), os limites, no sentido concreto, podem ser
mais ou menos definidos, incluindo tanto processos de zonificação (que ainda assim
podem admitir sobreposição de domínios) quanto de contenção (efeito barragem) e
“canalização” de fluxos (Haesbaert, 2014).
Finalmente, longe de uma proposição teórica destituída de “chão”, da base concreta em
que é concebida, demonstramos como um contexto geo-histórico como o latino-americano
interfere em nossa construção conceitual, especialmente através do elo, também indisso-
ciável, entre des-territorialização/território/limite como categorias analíticas da Geografia
e como categorias da prática em sua utilização efetiva, além de categorias normativas, em
projetos políticos hegemônicos e/ou subalternos. Muito provavelmente a América Latina
é o continente em que mais se difundiu a categoria território como instrumento de luta
pelos movimentos sociais, a tal ponto que a (re)definição de limites políticos tornou-se
fundamental nas dinâmicas des-reterritorializadoras em busca de maior autonomia.
Embora grande parte desses limites ainda seja recomposta dentro do padrão das
lógicas territoriais zonais estatais, novos rearranjos têm sido conquistados em termos de
autonomia territorial, dentro de um sistema multiescalar e de pluralismo jurídico. Por
outro lado, entretanto, não podemos esquecer que a América Latina é também um dos
espaços com maiores níveis de desigualdade socioeconômica e violência em todo o mun-
do. Nesse sentido, juntamente com as lutas por autonomia e conquista de novas formas de
controle jurídico-político territorial, como vimos, temos os conflitos por território capita-
neados por poderes ditos paralelos mas que, na verdade, também se compõem, de forma
ainda mais autoritária, heterônoma, com os poderes tradicionais do Estado. Metrópoles e
regiões inteiras sofrem com esses processos constantes de des-reterritorialização em função
da disputa entre grupos armados que, contraditoriamente, portam o discurso prioritário
de garantia da segurança à população.
Contudo, a busca por autonomia numa visão integrada e multi ou transescalar de
território, é certamente o mais importante legado de uma perspectiva latino-ameri-
cana sobre o tema. Neste caso, um dos maiores desafios é, em primeiro lugar, refazer
as relações de poder de modo muito mais justo e igualitário. Isso passa, obrigatoria-
68 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
mente, por uma outra leitura do território (um “território do(s) comum(ns)”, como
defendemos em relação a Cherán [Haesbaert, 2018a]) e de seus limites. Tal como na
instituição de uma sociedade mais autônoma, proposta por Castoriadis (1982), trata-
-se da construção de territórios cujos limites (internos ou externos) tenham flexibili-
dade suficiente para serem repostos, des-reterritorializados, toda vez que a sociedade
em questão reconhecer, por consenso, a necessidade de um novo arranjo, respeitando
a interação com a territorialização de seus vizinhos. Em síntese, e a partir dessa pers-
pectiva podemos afirmar que (des)territorialização envolve o poder de conceber/viver/
refazer nossos limites espaciais, geográficos.
Trata-se, no fundo, de lutas que desafiam as concepções tradicionais, eurocentra-
das, de conceber o território, os limites territoriais e a desterritorialização. Ainda que
continuem dominados por uma territorialidade estatal de relações de poder pretensa-
mente homogeneizantes e universais, com limites/fronteiras exclusivistas, absolutos,
esses movimentos encontram brechas no sistema jurídico e, jogando com múltiplas
escalas (que incluem convenções da ONU), propõem outras lógicas, relacionais, de
limites e articulações territoriais. Alguns grupos indígenas, como os guarani da fron-
teira Brasil-Paraguai-Argentina-Bolívia reivindicam mesmo o reconhecimento de sua
condição como povos transterritoriais. Devemos estar muito atentos a experiências
des-reterritorializadoras como essas, que veem o território como território de vida,
pois têm consciência de que o modelo de poder hegemônico ameaça, em primeiro
lugar, nossa própria existência. Defender dinâmicas reterritorializadoras mais autô-
nomas, numa concepção múltipla e relacional de nossos limites territoriais, significa
gerir o conjunto das condições, inclusive ecológicas, que garantem nossa sobrevivência
no planeta.
referências bibliográficas
Lúcio Cunha
Universidade de Coimbra; CEGOT, CEI e Departamento de Geografia e Turismo
que actualmente vivemos nos mostra à escala global e, mesmo, à escala da União Europeia.
O medo e a tentativa de resistência ao contágio tornaram fronteiras transparentes e mais ou
menos permeáveis, em fronteiras opacas e de transposição difícil para as pessoas, para os bens
económicos e por vezes mesmo para as ideias e para uma cultura que se pretendia comum.
Fronteiras fluidas passaram, no curto tempo de alguns dias, a fronteiras rígidas que “pren-
dem” fora dos seus espaços naturais, viajantes e trabalhadores, mercadorias e bens, pondo em
causa a ordem internacional e o funcionamento liberal do Mundo, apesar de todas as mani-
festações de cooperação, entreajuda e solidariedade internacionais. Como referiu RIBEIRO
(2003) as fronteiras intra-europeias foram-se dissipando, ao mesmo tempo que outras se
foram reforçando ou emergindo, mas a crise pandémica que vivemos, serviu, entre muitas
outras coisas, para nos recordar a importância dos estados-nação, da necessidade de articu-
lação identidade/alteridade (nós e os outros) dentro e fora do espaço da União Europeia.
Como referiu a Autora, “a construção europeia far-se-á na simbiose do uno e do múltiplo”
(KASTORYANO, 2000), “…far-se-á também no imaginário ou não se fará…” (BOIA,
1998) e, citando MORIN (1987), “… a metamorfose está inacabada”. Estava-o há 40 e há
20 anos atrás e, como ficou demonstrado pelo exemplo da crise pandémica actual, assim
continua hoje. Com a construção europeia as fronteiras foram mudando de significado, mas
nunca perderam verdadeiramente o seu significado (pecado) original, o de separar, dividir e
demarcar, para no seu interior, continuar a agregar, identificar e unir.
Aquilo que é verdade em relação às fronteiras físicas e materiais, como é o caso
das fronteiras políticas, é também verdade naturalmente, a outras escalas e com outras
repercussões, para as fronteiras conceptuais, as das ideias, das ciências, das disciplinas e
dos métodos que as servem.
Com esta nota despretensiosa sobre as fronteiras da (e na) Natureza temos três ob-
jectivos principais: por um lado, debater o conceito de fronteira na sua aplicação aos
problemas da Natureza e do Ambiente e, ao fazê-lo, tentar situar a Geografia, enquanto
ciência de charneira (e, nalgumas situações, também de fronteira) entre a Natureza e a
Sociedade; por outro lado, pretende-se, numa perspectiva mais prática, reflectir sobre as
fronteiras que a Natureza coloca às suas várias geografias ao longo do tempo e do espaço;
finalmente, é também nossa intenção debater para alguns exemplos locais de regiões de
fronteira política no nosso país, o modo como a Natureza tem significado na sua dinâ-
mica territorial, no desenvolvimento endógeno e na valorização local.
A Geografia é uma das ciências que estuda a relação Sociedade – Natureza (CUNHA, 1991).
Procurando uma definição recente, num dos mais recentes dicionários de Geografia Aplicada
entende-se que a Geografia “é a ciência do território, sendo este entendido como uma constru-
ção social e o resultado das interacções e interdependências entre a Natureza e a Sociedade, que
analisa, explica e representa as diversas paisagens da Terra (VINUESA e BARAJAS, 2016). Esta
perspectiva aplicada não pode deixar de colocar o território no centro do objecto geográfico,
pois ele é o objecto da acção, através do planeamento e do ordenamento que, de algum modo,
procuram articular os dados da Natureza e do Ambiente, pondo-os ao serviço da Sociedade e das
pessoas. Por outro lado, a necessidade de articular Sociedade e Natureza nos estudos geográficos,
além de um desígnio de aplicação, estende-se naturalmente à Geografia teórica, dando corpo a
muitos outros conceitos consagrados, como os conceitos de paisagem e lugar, ou de conceitos
mais recentemente utilizados como os conceitos de risco, de impacte ambiental, de sustentabili-
dade, para referir apenas mais indiscutíveis (CUNHA, 2011).
Uma das principais pensadoras brasileiras na área da Geografia Física, Dirce
SUERTEGARAY (2010), tomando como base a investigação que desenvolve nos areais
gaúchos, apresenta a relação Natureza – Sociedade, numa perspectiva de percurso meto-
dológico, do seguinte modo:
Fig. 1 – As relações entre Natureza e Sociedade na Geografia Física, numa adaptação da uma figura
de Suertegaray (2010) e a posição da Geografia (ponteado).
Onde se situa a Geografia (Física) neste discurso metodológico? Como é que esta
ciência concilia os estudos da Natureza com os da Sociedade para fazer o seu percurso
analítico, metodológico e discursivo?
Podemos pensar a Geografia Física como tendo um percurso que vai da Natureza
para a Sociedade. O estudo dos recursos naturais, dos impactes ambientais e dos ris-
cos vão nesse sentido. O geógrafo (físico), para além de procurar analisar a expressão
espacial do funcionamento dos sistemas naturais, procura avaliar recursos naturais
(minerais e não minerais; da terra, da água, do ar, da vida e do solo; renováveis ou
não renováveis) para o funcionamento económico e social, ao mesmo tempo que pro-
cura compreender os impactes sobre o Ambiente que resultam desta sua intervenção
extractiva e, por vezes, mesmo predadora, bem como os riscos que resultam do modo
como o Ambiente e a evolução, por vezes violenta e inesperada, da Natureza se faz em
face do Ser Humano e da Sociedade. Por seu turno, a Geografia Humana preocupa-se
mais com a organização espacial da Sociedade, o modo como ocupa os espaços natu-
rais e os transforma em territórios, analisando as modalidades de ocupação (urbana,
rural, industrial, turística), os fluxos relacionais que se estabelecem, o funcionamento
dos serviços estabelecidos.
Em qualquer dos seus dois ramos, a Geografia, física ou humana, estuda a interacção
Natureza e Sociedade e quase podemos dizer que apenas o foco de abordagem muda: da
Natureza para a Sociedade, na Geografia Física, e da Sociedade para a Natureza, no caso
da Geografia Humana. Por isso hoje é forte a tendência (teórica) para deixar de falar em
Geografia Física e Geografia Humana, para pensar apenas em termos de Geografia, cujo
objecto de estudo se encontra nas múltiplas facetas dos territórios e das paisagens e cujos
percursos metodológicos são diversos, complexos e que se entrecruzam com os das ciências
naturais e sociais...
Na perspectiva de SUERTEGARAY (ob. cit.), o campo de trabalho de Geografia
Física entre dois percursos, o da Natureza e o Sociedade que “nunca estão em paralelo…
ou seja em que “um não subtrai o outro” vai-se abrindo ou estreitando, à medida que
74 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
da Terra de continentes e oceanos, à escala das centenas e dezenas de milhares de anos com
as flutuações quaternárias do nível do mar, devidas essencialmente ao glacio-eustatismo, à
escala do tempo histórico dos milhares ou das centenas e dezenas de anos, muitas vezes já
por imposição da dinâmica antrópica, como é o caso das alterações dinâmicas da linha de
costa provocadas pelas muitas obras que aí são operadas por imperativos económicos portu-
ários, turísticos, urbanos e industriais. Esta linha de fronteira natural vai continuar instável
e, a manter-se a situação poluente que o actual modelo de desenvolvimento determina, as
alterações climáticas poderão provocar, até final deste século, um aumento de nível médio
das águas do mar que se situará entre os 40 e os 80 cm, conforme se sigam os modelos mais
optimistas ou mais pessimistas (IPCC, 2014). Esta evolução na vertical, com valores que
parecem reduzidos e até quase insignificantes, pode traduzir uma evolução na horizontal
da ordem das centenas de metros, que não deixará de criar problemas sérios às cidades e às
instalações costeiras, sobretudo em tempos de tempestade.
Para além desta linha divisória maior, em termos gerais e a uma escala pequena (dos
continentes, das grandes regiões ou dos países) permanecem bem marcadas outras frontei-
ras naturais que, na paisagem, delimitam as grandes linhas geológicas, sejam elas as linhas
tectónicas maiores, sejam os contornos ou limites dos diferentes tipos de afloramentos.
No caso português, por exemplo, são bem patentes na paisagem os confrontos das rochas
graníticas com as rochas xistosas e quartzíticas, no Maciço Hespérico, ou dos calcários,
com as margas e arenitos, nas orlas mesocenozóicas. Juntamente com as linhas tectónicas
maiores, estes confrontos justificam compartimentos geomorfológicos regionais, como as
serras e os seus desenhos cartográficos gerais, assim como os aspectos de pormenor que
delimitam, quase sempre, paisagens vegetais e antrópicas suficientemente contrastadas.
Ainda utilizando o caso português como exemplo, o mesmo acontece com as pai-
sagens vegetais, particularmente com aquelas que marcam as diferenças entre os climas
mais marcadamente mediterrâneos do Sul com os climas ainda mediterrâneos, mas com
feição mais atlântica, do Noroeste. Ou com o zonamento altitudinal da vegetação em al-
titude bem marcado nas principais montanhas, como é o caso da Serra da Estrela (Jansen,
2002), em que com base nos limiares hipsométricos dos 900 e dos 1600 metros, se distin-
guem claramente os andares mesotemperado, supra temperado e orotemperado, quando
se sobe vertente noroeste da Serra, e os andares mesomediterrâneo, supra mediterrâneo e
orotemperado, quando se sobe a vertente sudeste.
Aumentando a escala, ou seja aumentando o pormenor da análise, outras fronteiras
surgem no arranjo do espaço e no modo como a Sociedade o transforma em território.
Neste caso, o relevo de pormenor, o traçado dos rios ou mesmo o desenho das áreas flo-
restais podem marcar diferenças de utilização, de valorização social e de apropriação da
Terra que estabelecem fronteiras com diferentes significados ao longo do tempo histórico,
76 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
parecendo, pelo menos no caso português, progressivamente menos vincadas, mais per-
meáveis e até menos visíveis ou perceptíveis com o passar do tempo. Sirva como exemplo
simples o papel do relevo na selecção dos locais de implantação dos castelos medievais que
estão, se não na origem de muitas das principais cidades, pelo menos na matriz estrutural
da malha urbana em que, em tempos de conflito, a insuficiência da fronteira natural era
suprida com a construção de muralhas artificiais. Outro exemplo está na importância que
os rios tiveram e vão tendo no desenvolvimento urbano das principais cidades litorais,
inicialmente com progressivo desenvolvimento urbano das suas margens direitas (Porto,
Coimbra, Lisboa, Setúbal, para referir apenas os exemplos mais óbvios) e que, nos tempos
mais recentes, com o progressivo aumento das facilidades de atravessamento, com uma
difusão ou um espalhamento para as duas margens, ainda que com claras diferenciações
funcionais e sociais, que mostram a importância histórica da barreira fluvial, como fron-
teira de um espaço urbano.
têm mesmo correspondência do outro lado da fronteira, como acontece com o Parque de
Baixa Limia-Serra do Xurés, que emparelha com o Parque Nacional da Peneda-Gerês, ou
com o Parque Natural de Arribes del Duero que emparelha com o nosso Parque Natural
do Douro Internacional. Nestes e noutros casos, se não há verdadeiramente uma gestão
comum, há pelo menos muitos pontos de acordo e de gestão partilhada nos espaços de
conservação da Natureza transfronteiriços.
É difícil saber se o estado de abandono da agricultura e do mundo rural, em geral, ou
seja a diminuição da pressão sobre a Terra promove ou não a recuperação dos geossiste-
mas naturais (BERTRAND e BERTRAND, 2002; PASSOS, 2006 e 2011), do coberto
vegetal autóctone e o retorno da fauna selvagem, até porque o envelhecimento e a rarefac-
ção dos “jardineiros da Natureza” – os agricultores – e das suas tarefas do dia a dia, a par
com as mudanças estruturais da floresta, acabam por se transformar também em forças
de degradação, como mostra o exemplo, cada vez mais frequente, dos incêndios florestais
numa floresta de tendência mono-específica (eucaliptos ou, quando muito pinheiros e
eucaliptos) que substituiu não só os antigos espaços florestais, mas também os terrenos
agrícolas progressivamente abandonados.
conclusão
ALMEIDA, A. C. (2012) – Rural Abandonment And Landscape Evolution In The Central Region Of
Portugal. In Cravidão, F., Cunha, L. E Santos, N. – Regional and local responses in Portugal: in
the context of marginalization and globalization. Coimbra, IUC, pp. 53-63.
BERTRAND, C. e BERTRAND, G. (2002) – Une Géographie transversière – L’environnement à
travers Territoires et Temporalités. Paris, Editions Arguments.
BOIA, L. (1998) – Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Les belles lettres.
CUNHA, L. (1991) – Geografia Física, Geografia Humana e os estudos do Ambiente. Cadernos de
Geografia, Coimbra, 10, pp. 221-232.
CUNHA, L. (1995) – Turismo e desenvolvimento na Raia Central. A paisagem e o ambiente como
recursos. Cadernos de Geografia, Coimbra, 14, pp. 129-138.
CUNHA, L. (2002) – “Caracterização física. A Raia Central: quadro físico, paisagem e ambiente”.
In SANTOS, José Luis e CAETANO, Lucília (coord.) – Modelos de organización territorial en
la Raya Central Ibérica. Una visión de conjunto. Ediciones Universal, Salamanca, pp. 55-60.
CUNHA, L. (2008) – Lugares de ontem, lugares de hoje, lugares de amanhã. Permanência e mu-
dança nos lugares raianos. In Jacinto, Rui (coord.) – Transversalidades – territórios, diálogos e
itinerários ibéricos. CEI, Guarda, pp. 19-25.
CUNHA, L. (2011) – O ser humano e a natureza. In Jacinto, Rui – Transversalidades – fotografia
sem fronteiras. Territórios, sociedades e culturas em tempos de mudança. Guarda CEI, pp.33-35.
CUNHA, L. (2016) – Recursos naturais. In Fernandes, J. A. R., Trigal, L. L. e Spósito, E. S. –
Dicionário de Geografia Aplicada. Porto Editora, Porto.
GASPAR, J. (1995) – Introdução. In Gaspar, J. – Geografia. Enciclopédia temática Portugal Moderno,
Lisboa, POMO, pp. 9-12.
GUICHARD, F. (1990) – Géographie du Portugal. Paris, Masson.
IPCC (2014) – Cambio climático 2014. Informe de sintesis. Resumen para responsables de politicas.
https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/ar5_syr_final_spm_es.pdf (31 de dezembro
de 2020).
JACINTO, R. (1995) – As regiões portuguesas de fronteira: perspectivas de desenvolvimento e de
cooperação transfronteiriça, Cadernos de Geografia, Coimbra, 14, pp. 37-54.
JANSEN, Jan (2002) – Guia geobotânico da Serra da Estrela. ICN, Parque Natural da Serra da
Estrela, Manteigas.
80 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Álvaro Domingues
Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da
Universidade do Porto (FAUP)
mente aqui no Reino Unido. As pessoas do que em breve seria conhecido como o Silicon
Valley já mudavam de empresas e de locais de trabalho tão frequentemente como quem
toma uma chávena de café; já conduziam uma hora de automóvel para frequentar
um centro comercial gigante; usavam o avião como se fosse um autocarro; como quem
muda de chapéu, decidiam um fim-de-semana em Acapulco ou Puerto Vallarta.
Naquela era pré-Internet, os californianos passavam horas ao telefone indiferentes ao
facto de estarem a falar com alguém ao fim da rua ou a 3000 milhas de distância”1
1
Peter Hall ( 2007), Melvin M. Webber: Maker and Breaker of Planning Paradigms, AccessMagazine, special
issue, winter 2006-2007, San José State University, 17-22
Dos anos de 1920’, pela escrita de Ernest Burgess e Robert Park, a herança que tinha
ficado da Escola de Chicago era a de que a “cidade” correspondia a um imaginário razo-
avelmente auto-explicativo que reunia num lugar densamente construído uma formação
social diversa e alargada; uma nodalidade inscrita num território definido; uma ecologia
urbana definida por um agregado socio-territorial claro. Fora desse território/sistema auto-
-contido estaria o mundo da não-cidade, o subúrbio, o rural, o espaço natural, etc. – toda
a urbanização era cidade.
Fora de portas, o subúrbio seria uma espécie de compasso de espera, um desarranjo
súbito provocado pelas dores de crescimento urbano, aguardando a estabilidade e a incor-
poração na cidade que assim alargaria os seus limites por sucessivas contiguidades.
O subúrbio raramente teve um discurso positivo e esse estigma originou até o para-
doxo de não ter sido incorporado numa das muitas metamorfoses que as cidades foram
registando ao longo dos tempos. Nos anos de 1950’, Corbusier dedicava-lhe estes mimos:
cidade, estradas modernas…), desfocando-se da geografia dos nomes e dos povoados com
limites precisos como no tempo em que as muralhas desenhavam limites físicos e políticos.
Contudo, o imaginário poderoso da cidade – a tal reputação de que fala Corbusier – e
a longa persistência da palavra e da coisa, provocaram uma curiosa anomalia epistemológi-
ca que parece manter-se até hoje: em vez do conhecimento construir e organizar taxiono-
mias, modos de problematização e representações da urbanização que se ia transformando
2
Le Corbusier (1957), La Carte d’Athènes, Paris: ed. Minuit (trad. portuguesa S. Paulo: Hucitec, EDUSP,
(1993), parágrafo 22.
em modo acelerado, cristalizou-se a “cidade” como uma espécie de ideal-tipo, de repre-
sentação ideológica de múltiplos sentidos, remetendo tudo que não correspondesse a esse
referente imagético para outras categorias habitualmente conotadas negativamente. Nos
relatos do senso comum, fora do conhecimento organizado em campos científicos, a “cida-
de” também seguiu o seu caminho pela linguagem das conversas de todos os dias, desig-
nando realidades, objectos e cartografias muito distintas – da cidade do bilhete-postal, à
cidade futurista dos filmes de ficção –, garantindo a reprodução da palavra para todo o
sempre: quanto mais imprecisa, mais elástica, mais moldável; quanto mais polissémica,
maior a ilusão de que o significado da palavra e as coisas por ela designadas são claros e
explicáveis. Admitindo o carácter disruptivo que caracteriza muitos processos de urba-
nização e a extrema variabilidade dos contextos sociais em que operam, nem sequer se
questiona se toda a urbanização pode ser cidade; abundam até os mapas em que as cidades
são círculos ou pontos com nome próprio, apesar da banalização da fotografia aérea ou da
imagem de satélite, e dos suportes de representação como o Google Earth. As formas, as
extensões e as geografias da urbanização são imensas.
Diferentemente da cidade pensada como um lugar, a urbanização é um processo em
modo contínuo – toma forma e lugar nas mais diversas circunstâncias e geografias – ,
depositando algures construções diversas e funções variadas, relações e ambiências, e orga-
nizando-se nas mais variadas escalas, do local ao global, do micro ao macro. Os encontros
na velha praça multiplicam-se por outros lugares e sites, presencialmente, por mensagens
ou sinais remotos. No passado, aquilo que na vida urbana só a proximidade, a diversidade
e a aglomeração permitiam, pode-se agora espaçar por dezenas ou centenas de quilómetros,
pode-se dissipar pelo mundo todo, densificando-se ou dispersando-se, separando, como
sempre, riqueza e pobreza, conforto ou privação; aproximando, segregando, misturando.
Muito estranho seria se perante a aceleração tumultuosa da inovação tecnológica, da
globalização económico-financeira, do extremo contraste entre sociedades, países e luga-
res do mundo, os processos e as formas de urbanização fossem os mesmos de sempre. A
urbanização não é mais do que uma espécie de territorialização da sociedade e da sua (des)
85 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
organização. Esse é o legado de autores como Henri Lefèbvre3 que, justamente, via nas
contradições da “produção social do espaço”, das relações dominantes de produção e nos
ciclos de acumulação do capital, os fundamentos de uma geografia crítica da urbanização
como arena onde se disputa poder, lucro, propriedade, valorização do capital, riqueza ou
miséria. Essa geografia da urbanização – densa e compacta; estendida ou difusa; contínua
3
Henri Lefèbvre (1974) Le droit à la ville, Antropos, Paris: 1968.; Idem (1970), La revolution urbaine, Paris:
Gallimard.; Idem (1973) De lo rural a lo urbano, Barcelona; Ediciones Peninsula.; Idem (1974), La produc-
tion de l’espace. 2èmme éditions. Paris: Anthropos. Edward Soja, Manuel Castells e David Harvey são alguns
dos nomes mais conhecidos que seguiram e aprofundaram este legado de Lefèbvre.
ou descontínua – é muito distinta da representação da cidade como um aglomerado com
um limite definido, uma forma e um centro.
Para processos e formas urbanas distintas, são necessários novos conceitos urbanos. P.J.
Taylor e R. E. Lang, 2004, compilaram cem nomes diferentes para esses conceitos4:
Broadly speaking, there are two ways to view the abundance of terms. One is to
celebrate the variety: the world, especially the urban world, is inherently “messy” and
therefore it is only to be expected that it should be described in multifarious ways. The
other is to suspect that there is more than a little incoherent thinking abroad in con-
temporary urban studies. A degree of conceptual disintegration is to be expected, but
this invention of concept after concept is hardly conducive to credible understanding of
what is going on in and between our cities.
through what categories, methods and carto-graphies should urban life be unders-
tood? – must once again become a central focalpoint for urban theory, research and
action.If the urban is no longer coherently contained within or anchored to the city – or,
for that matter, to any other bounded settlement type – then how can a scholarly field
devoted to its investigation continue to exist? Or, to pose the same question as a challenge
of intellectual reconstruction: is there – could there be – a new epistemology of the urban
that might illuminate the emergente conditions, processes and transformations associated
with a world of generalized urbanization?
tíguo a uma “cidade” e distinto e oposto e um espaço “exterior” suburbano, rural, etc.
circundante. Os materiais da urbanização – sistemas sócio-técnicos ou infraestruturas, edi-
fícios, complexos industriais e logísticos, etc. – tal como a geografia daquilo que alimenta
o metabolismo urbano – produtos alimentares, energia, água, matérias-primas, capital
6
Ananya Roy (2005), Urban Informality, toward an Epistemology of Planning, Journal of the American Planning
Associarion, vol. 71, No. 2, Spring 2005. pp.147-158. https://www.wiego.org/sites/default/files/migrated/
publications/files/Urban-Informality-Roy.pdf
7
Neil Brenner; Christian Schmid (2015), Towards a new epistemology ofthe urban?, CITY, 2015, Vol. 19, Nº.
2–3, pp.151-182, http://dx.doi.org/10.1080/13604813.2015.1014712
e meios de produção, etc. –, distribuem-se e conectam-se ao nível global. O tradicional
hinterland ou área de influência próxima da cidade, explodiu em sistemas e redes multies-
calares que tocam os territórios mais remotos do planeta.8
tes das cidades” e, dentro desses recintos encontrar e justificar razões para clarificar
discursos e acções. A insistência do “local” (e do que decorre da suposta pertinência
dessa condição, como a dicotomia local/global) coloca cada vez mais interrogações
8
Cf. Brenner, N., ed. (2014), Implosions/Explosions: Towards a Study of Planetary Urbanization. Berlin: Jovis.
Ver também a investigação do Urban Theory Lab da Harvard Graduate School of Design, http://www.
urbantheorylab.net/about/
Cf. Neil Brenner; Nikos Katsikis (“2009, Operational Landscpaes – Hinterlands of the Capitalocene”, in
Ed Wall , ed. (2020), The Landscapists –redefining landscape relations, Architectural Design, vol.90, Issue 1,
pp. 22-31 https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/ad.2521
do que evidências. Objectivamente, aquilo que denominamos local é o que ocor-
re, o que se regista ou o que se manifesta num determinado lugar. Querendo com
isso identificar dinâmicas sociais (por sua vez, supostamente inscritas em recintos
espaciais) no tempo em que as redes e toda a espécie de geografias relacionais se vão
aprofundando e complexificando, é como querer confinar o vento. O local deixou de
ser uma categoria totalizante como no tempo e que Jorge Dias estudou Vilarinho da
Furna: uma aldeia comunitária, um território marcado com fronteiras precisas, um
vínculo estável, uma geografia pré-moderna resgatada ao tempo longo, uma terra que
um dilúvio submergiu.
Claro que os lugares produzem diferenças. Existem também muitas fronteiras que
persistem e outras que estão em permanente invenção ou deslocação. Contudo, o territó-
rio – diferentemente do terreno – é uma construção política, um artefacto social sujeito a
mudanças rápidas ou lentas, previsíveis ou completamente disruptivas.
A mutação da cidade para o urbano não se fez por simples ampliação da cidade (para a periferia ou para os su-
búrbios, que é o nome a que se dá quando a cidade cresce para outra coisa, anulando-a); o urbano trata de outra
ordem espacial e social caracterizada como sabemos pela centrifugação (e também pela neocentralização),
pela extensividade, pela descontinuidade, pela fragmentação.
As redes que suportam a auto-mobilidade vão da auto-estrada de grande capacidade aos caminhos estreitos. A
lógica que articula os mecanismos conhecidos da hidráulica e da capacidade dos “tubos” face à dimensão
e viscosidade dos “fluxos, combina-se com as lógicas mais erráticas da percolação e da dissipação.
Não pode haver um modelo que funcione apenas com uma destas físicas.
90 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
À dupla transformação do rural e do urbano é muito simplificador atribuir o conceito híbrido de rurbanização
(não se trata de cruzar duas entidades “puras” e sempre idênticas, de onde resulta uma terceira); a construção
no meio dos campos também não significa “cidade jardim” (isso é um modelo datado e conhecido para juntar a
utopia do melhor do “campo” e da “cidade” e criar comunidades quase auto-suficientes). O que está a acontecer
é biologia mais complexa e mais próxima do transgénico. Um território pode misturar “genes” que pertencem a
universos e codificações diferentes.
La vieja frontera ante los nuevos desafíos
de la cooperación territorial:
la demanda de un futuro de esperanza
para la raya ibérica
Valentín Cabero
Catedrático de Geografia Jubilado de la Universidad de Salamanca
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e de Ordenamento do Território (CEGOT)
introducción
Las fronteras se han cerrado. Una grave crisis sanitaria lo ha exigido. Las cicatrices históricas
y de soberanía han recobrado su significado como obstáculo a la movilidad y como control al
intercambio de bienes y personas. La crisis sanitaria del coronavirus se ha convertido en una
pandemia global cuya incidencia social, económica y territorial nos ha mostrado el alto grado
de vulnerabilidad de nuestros modelos de vida y de desarrollo, dominados por un capitalismo
1
António Pintado; Eduardo Barrenechea (1974) – A Raia de Portugal, a fronteira do subdesenvolvimento.
Afrontamento, Porto.
voraz, desigual y consumista. Los males asociados al Covid-19 y sus impactos socioeconómicos
han detenido la fluidez y la permeabilidad de las relaciones transfronterizas. En estas graves
circunstancias, los dos gobiernos peninsulares han tenido que declarar el Estado de Alarma
(España, art. 116.3 de la Constitución Española, 1978) y el Estado de Emergencia (Portugal,
art. 19 de la Constitución de Portugal, 1976) para abordar con instrumentos constitucionales
la crisis sanitaria y garantizar el bien común de la salud pública en ambos países, luchando con-
tra los efectos letales de la pandemia. Por ello, como una necesidad ciudadana y política, las
fronteras entre España y Portugal, entre Francia y España, han permanecido cerradas o con el
máximo control de las actividades e intercambios considerados esenciales.
El papel biopolítico o geopolítico tradicional que siempre jugaron las fronteras, como
filtro de personas y bienes, especialmente de los emigrantes, fue reforzado por el control sa-
nitario. La situación que se abatió de forma abrupta y dramática sobre el mundo en general
y sobre las regiones fronterizas en particular, mostró más claramente dos tipos de problemas
inevitables: la fragilidad económica y social en las áreas fronterizas y el regreso gradual de la
frontera. Las zonas fronterizas tienen que afrontar una nueva generación de problemas, de
carácter más intangible, que se suman a viejas dificultades, de tipo material, que van de la
habitual falta de infraestructuras y equipamientos a las limitaciones económicas, sociales y
políticas. La frontera ya no es, por todas estas razones, apenas un concepto con una exclusiva
connotación política para invadir las diferentes áreas científicas y suscitar preocupaciones
que, en definitiva, también son de carácter ético y moral.
Esta dimensión del tema quedó patente en la reciente Carta Encíclica sobre Fraternidad y
Amistad Social, presentada por el Papa Francisco el 3 de octubre de 2020, donde se nos invita
“a un amor que traspasa las barreras de la geografía y el espacio”, entre amplias referencias a
la frontera, glosadas de varias formas. El tema de apertura de la Carta es precisamente “Sin
fronteras” [3-8], recordando la visita de San Francisco de Asís al sultán Malik-al-Kamil, en
Egipto, “un episodio que nos muestra su corazón sin fronteras, capaz de superar distancias de
procedencia, nacionalidad, color o religión”. Al hablarnos de “Pandemias y otros flagelos de
la historia” [32-36] concluye que “ojalá no sea inútil tanto sufrimiento, mas hayamos dado
92 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
un salto hacia una nueva forma de vida y descubramos, finalmente, que necesitamos y somos
deudores los unos de los otros, para que la humanidad renazca con todos los rostros, todas las
manos y todas las voces, libre de las fronteras que creamos”.
Continúa con “Sin dignidad humana en las fronteras” [37-41] y, posteriormente, en “El
prójimo sin fronteras” [80-83], se refiere a propósito de “Nociones inadecuadas de un amor
universal”, que “el amor que se extiende más allá de las fronteras está en la base de lo que
llamamos «amistad social» en cada ciudad o en cada país “. Apela al valor de la solidaridad
cuando habla de “cuidar la casa común, que es el planeta”, apela “a ese mínimo de conciencia
universal y preocupación por el cuidado mutuo que aún puede existir en las personas”, a un
comportamiento que reconoce “los derechos de todo ser humano, incluyendo a los naci-
dos fuera de nuestras propias fronteras”. Habla de “Derechos sin fronteras” [121-123]: “por
tanto, nadie puede ser excluido; no importa dónde haya nacido, y menos cuentan los privi-
legios que otros puedan tener porque hubieran nacido en lugares con mayores posibilidades.
Los confines y fronteras de los Estados no pueden impedir que esto se cumpla. Así, como es
inaceptable que una persona tenga menos derechos simplemente por el hecho de ser mujer,
también es inaceptable que el lugar de nacimiento o de residencia determine, en sí mismo,
menos oportunidades de vida digna y desarrollo. En “El límite de las fronteras” [129-132]
se reconoce que “Cuando el prójimo es una persona migrante se agregan desafíos complejos.
Lo ideal sería evitar las migraciones innecesarias y para ello el camino es crear en los países
de origen la posibilidad efectiva de vivir y de crecer con dignidad, de manera que se puedan
encontrar allí mismo las condiciones para el propio desarrollo integral”.
El tema sobre Local y universal [142] “Cabe recordar que «entre la globalización y la
localización también se produce una tensión. Hace falta prestar atención a lo global para no
caer en una mezquindad cotidiana. Al mismo tiempo, no conviene perder de vista lo local,
que nos hace caminar con los pies sobre la tierra. Las dos cosas unidas impiden caer en al-
guno de estos dos extremos: uno, que los ciudadanos vivan en un universalismo abstracto y
globalizante” […]; otro, que se conviertan en un museo folklórico de “ermitaños” localistas,
condenados a repetir siempre lo mismo, incapaces de dejarse interpelar por el diferente […].
Señala que [142] “Hay que mirar lo global, que nos rescata de la mezquindad casera. Cuando
la casa ya no es hogar, sino que es encierro, calabozo, lo global nos va rescatando porque es
como la causa final que nos atrae hacia la plenitud. Simultáneamente, hay que asumir con
cordialidad lo local, porque tiene algo que lo global no posee: ser levadura, enriquecer, poner
en marcha mecanismos de subsidiaridad. Por lo tanto, la fraternidad universal y la amistad
social dentro de cada sociedad son dos polos inseparables y coesenciales. Separarlos lleva a
una deformación y a una polarización dañina”.
“Una adecuada y auténtica apertura al mundo supone la capacidad de abrirse al vecino,
en una familia de naciones. La integración cultural, económica y política con los pueblos cer-
93 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
canos debería estar acompañada por un proceso educativo que promueva el valor del amor al
vecino, primer ejercicio indispensable para lograr una sana integración universal.”. Esta idea,
expresada en “Desde la propia región” [151-153] fue precedida por consideraciones sobre “El
sabor local” [143-145] y “El horizonte universal” [146-159], donde concluye: “Este enfoque,
en definitiva, reclama la aceptación gozosa de que ningún pueblo, cultura o persona puede
obtener todo de sí. Los otros son constitutivamente necesarios para la construcción de una
vida plena. La conciencia del límite o de la parcialidad, lejos de ser una amenaza, se vuelve la
clave desde la que soñar y elaborar un proyecto común. Porque «el hombre es el ser fronterizo
que no tiene ninguna frontera»”.
La crisis actual vino a cabalgar sobre las debilidades estructurales que penden sobre las
zonas fronterizas, sobradamente conocidas, acentuando el sentimiento de pérdida, material y
simbólica, cuya degradación se agravó con la crisis de las deudas soberanas iniciadas en 2008.
Estas páginas se presentan como una reflexión para el debate, como un diálogo necesario con
las instituciones y con los responsables públicos que han de llevar a cabo las acciones inme-
diatas y a medio o largo plazo, y particularmente se dirigen a la ciudadanía y a los habitantes
del área rayana que deben ser los protagonistas en la construcción de su futuro y de la coope-
ración transfronteriza. Tras la primera ola de la pandemia y la segunda, aún entre nosotros,
la apertura de nuevo de nuestras fronteras nos desvela con severidad escenarios frágiles y
vulnerables que merecen nuestra atención, y exigen una mirada inteligente y verdaderamente
comprometida con los territorios ibéricos de frontera y de baja densidad.
2
El General Humberto Delgado, uno de los principales opositores al régimen de Salazar, sería asesinado po
lo PIDE, junto a la frontera española, en los Almerines, cerca de Olivenza, el 13 de febreo de 1965.
Portugal, la frontera del subdesarrollo”(edición en español, 1972); sin duda, supuso un
aldabonazo, una denuncia y una mirada crítica sobre el Oeste peninsular olvidado, en-
frentándonos a una situación insostenible para los diez distritos portugueses y las siete
provincias españolas fronterizas. Sus páginas nos permiten revisitar la frontera y recordar
las carencias y condiciones de pobreza en aquellos momentos; he aquí sus palabras sobre
la región centro: “La región Centro ocupa, aun así, una posición intermedia, central,
entre el latifundio de cultivos extensivos, al sur (Algarve y Alentejo), y el minifundio
pobre del norte. No tiene las oportunidades de desarrollo de Faro o el triste destino de
Trás-os-Montes. La región Centro es el reino, no de la mesocracia, sino de la mediocri-
dad, de los tonos cenicientos, del tiempo perdido. No se queda impresionado ni por la
riqueza pujante ni por la pobreza en demasía: es «centrista», en detalle mediocre, triste,
anodina. En otras palabras, «ni carne ni pescado». Estamos en las Beiras. Al sur aparece
el Alto Alentejo, borde del latifundio, de los grandes cultivos y de la vida semifeudal. Al
norte limita con Trás-os-Montes: el reino de la autarquía, de los montes suaves, de los
minifundios. Las Beiras, una región bisagra en la que sólo los pinos y otras especies arbó-
reas dan al paisaje un tono que engaña. El «mentiroso» verde de las Beiras. Un verde que
cubre el paisaje, pareciendo otorgarle una riqueza de la que carece. Un verde que cubre
una vida nada pujante, una emigración que no cesa. Un andar que es más un arrastrar”
(Pintado; Barrenechea, 1974: 181-182).
La imagen que se creó a partir de los espacios rayanos, construida al inicio de la segunda mitad
del siglo XX, y que los albores de las democracias no consiguieron contrarrestar por completo,
permanece hasta hoy con la misma marca inscrita lapidariamente por Pintado y Barrenechea:
“muro de la vergüenza” y “frontera del subdesarrollo” (ob. cit.). Los mapas extraídos del citado
libro y reproducidos aquí reflejan la impresión vigente: dos países costeros y centralizados en
sus capitales metropolitanas, tendencia que el trazado de las modernas vías de comunicación
enfatiza y acentúa; las zonas fronterizas. poco permeables, son márgenes donde se propaga
la rarefacción y el vacío demográfico, económico, social. Verdaderos calcañares del mundo.
Con la Revolución de los Claveles en Portugal y la Transición española, se fraguan
afortunadamente nuevas relaciones de colaboración, que ofrecen una primera imagen
y aproximación en el encuentro de Guarda (1976) entre los Ministros de Exteriores de
España y Portugal (Areilza y Melo Antunes), abriendo así una etapa de propuestas enca-
minadas a resolver problemas de comunicación y de convivencia comunes que denomina-
mos “el espíritu de Guarda”; inmediatamente se firmara un renovado Tratado de Amistad y
Cooperación entre España y Portugal (1977–1978), avanzando ambos hacia la apertura de
la frontera y caminando conjunta y resueltamente hacia Europa; y con esta perspectiva se
señalan cinco áreas de cooperación: economía, cultura, cooperación científica y tecnológi-
ca, comisión de límites y cooperación militar. Poco o nada tiene que ver ya con los tiempos
más oscuros del contrabando y de los aislamientos interiores. Para entonces, la emigración
de españoles y portugueses había roto por muchas partes las sierras, valles y planaltos de la
raya ibérica y también los pasos y montañas de Los Pirineos.
Son nuevos tiempos para ambos países y para las relaciones fronterizas. Al mismo
tiempo que se abre camino y se asienta la democracia, el “espíritu de Guarda” se plasma
en una filosofía y política cooperativa que tiene múltiples manifestaciones; se realizan
encuentros y coloquios científicos entre universidades como la de Coimbra y Salamanca;
se intercambias experiencias entre instituciones vecinas tanto de tipo económico como
de servicios; o se mejoran los intercambios mercantiles locales con una mayor permeabi-
lidad en la propia raya. Se iniciaban los primeros pasos para la incorporación a Europa.
Precisamente, en el preámbulo del nuevo Tratado de Amistad puede leerse: “Conscientes
de que el refuerzo de la cooperación entre los dos países peninsulares servirá la causa de
la unidad europea y contribuirá a la paz y seguridad internacionales, creando una zona
geográfica de estabilidad y progreso en la confluencia del atlántico y del mediterráneo”.
3
El 11 y 12 de marzo de 1988, el Consejo Europeo adoptó en Bruselas el primer presupuesto comunitario
plurianual para los años 1989-1993, con frecuencia denominado “Paquete de medidas Delors”.
4
Danuta Hübner (2008) – La importancia de las regiones, en Política de Cohesión de la UE 1988-2008.
Invertir en el futuro de Europa, Inforegio, 26, 2008, p.3.
5
Desde aquellas fechas hemos asistido a la programación de cinco períodos: Interreg I (1990-1993), Interreg
II (1994-1999), Interreg III (2000-2006), Interreg IV (2007-2013) e Interreg V (2014-2020).
social y territorial armonioso de la Unión en su conjunto. Interreg se articula en torno a
tres grandes ejes de cooperación: transfronterizo (Interreg A), transnacional (Interreg B) e
interregional (Interreg C)6”.
En este contexto de integración y de políticas públicas europeas, cuando España y
Portugal están asumiendo y aplicando los primeros acuerdos de la Adhesión, han de hacer
frente a problemas seculares de colaboración y de permeabilidad fronteriza desde territo-
rios marginales y periféricos. Frente al yugo de la fatalidad de estos lugares, perdidos en
el tiempo y en el espacio, que diría Miguel Torga en los Cuentos de la Montaña, sobre las
tierras de Tras-os-Montes y el Douro, la raya ibérica y las comarcas fronterizas despiertan
y toman conciencia de sí mismas, en palabras de los geógrafos François Guichard y Jorge
Gaspar. El profesor y economista Cepeda lo expresa de este modo: “La preocupación sobre
el desarrollo de las zonas de frontera no resultó, obviamente, de las características particu-
lares de estas zonas, sino del proceso de integración económica que la adhesión económica
de los dos países a la Comunidad Europea desencadenó y de la necesidad de garantizar el
máximo aprovechamiento de los fondos comunitarios para evitar las tendencias perversas
de esa misma adhesión. Fue efectivamente necesario adherirse a la Comunidad para que
los países ibéricos constatasen la necesidad la necesidad de asomarse juntos para los proble-
mas reales de las zonas fronterizas, que merecen finalmente un cierto esfuerzo de análisis7”.
100 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
6
Comisión Europea – Cooperación Transfronteriza: El programa Interreg de la UE celebra sus treinta años
contribuyendo a acercar a los ciudadanos (17.02.2020).
7
F. Cepeda (1999) – El desarrollo de la zona de frontera Trás-os-Montes/ Zamora, en Actas del 6º Congreso
Económico Regional de Castilla y León, Zamora, nov de 1988, Junta de castilla y León, 1999, p. 174.
En efecto, el acercamiento, el redescubrimiento y el análisis de los territorios fronte-
rizos supuso un gran empeño y entusiasmo por parte de algunos profesores y gestores pú-
blicos, con el firme propósito de convertir a la cooperación transfronteriza en un ejemplo
de inversión de las políticas públicas y de sensibilidad en favor de sus gentes y territorios8.
Hablábamos entonces de “un nuevo paradigma de desarrollo para las áreas de borde o fron-
terizas”, que demandó un esfuerzo de conocimiento y de intercambio entre españoles y por-
tugueses, de actualización de diagnósticos, de armonización estadística, de representaciones
cartográficas, de metodologías consensuadas, de trabajos de campos compartidos, de debates
y discusiones con los poderes locales, o de propuestas de intervención asentadas en el terri-
torio, que se reflejan bien en documentos y trabajos escritos a dos manos en aquellos años.
Acerca de aquellas primeras intervenciones públicas y de cooperación transfronterizas,
a partir de los fondos europeos y de Interreg, en los años noventa, escribíamos: “Un balance
somero del Interreg I nos lleva a valorar como positivas y casi prioritarias en la red viaria,
en algunos equipamientos culturales y deportivos, y en el abastecimiento y construcción de
redes de saneamiento. También puede señalarse como positivo el impulso dado a la valora-
ción del patrimonio natural y cultural o a la defensa del patrimonio construido. Aunque de
alguna manera aproximó a las comunidades de ambos lados de la frontera, tras décadas de
darse la espalda, no puede hablarse aún de resultados efectivos en la cooperación transfronte-
riza. El programa operacional presentado por España y Portugal en el ámbito del Interreg II
(1994-1999), intentaba darles continuidad a las políticas iniciadas en el Interreg I, en especial
a las de permeabilidad transfronteriza y recuperación del patrimonio, alargando al mismo
tiempo y reforzando otros dominios y agentes como la participación de las universidades9”.
Con la crisis del coronavirus, la sociedad ha tenido que detenerse, pararse, y mirarse
101 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
la trilogía mediterránea. Son elementos claves y vitales, con frecuencia rotos o perdidos, cuya
pervivencia hace menos vulnerables a los territorios de baja densidad como los fronterizos.
10
Con gran sentido geográfico, y partiendo de las virtudes gastronómicas locales, Carlos García nos dejó
una crónica de la Cimeira/ Cumbre Ibérica 2020 muy próxima y sugerente: “Un menú de frontera para una
Cumbre de Altura” (La Vanguardia, 10/10 /2020), subrayando la calidad de la comida de la Beira Alta e
interior rayano, al mismo tiempo que recordaba la figura y ausencia en Guarda de Eduardo Lourenço y
su impulso para unir España y Portugal a través de las actividades culturales bajo las premisas revitalizado-
ras de un nuevo iberismo, en particular desde el Centro de Estudios Ibéricos. Lamentablemente, Eduardo
Lourenço falleció a los 97 años el día 1 de diciembre en Lisboa; la cultura portuguesa, ibérica y europea han
quedado un poco huérfanas, al igual que el Centro de Estudios Ibéricos. Su memoria y una parte sobresa-
liente de su legado permanece en la Biblioteca Municipal de Guarda que lleva su nombre.
Su revitalización y conocimiento ha encontrado un indudable apoyo en los grupos
de acción local y en la cooperación entre vecinos rayanos. Con el apoyo de los fondos
europeos y de Interreg, la cooperación transfronteriza más próxima al mundo rural ha
impulsado ferias y mercados locales con motivo de algún evento regional o efeméri-
des. Algunas de ellas aprovechan símbolos fenológicos de referencia como el “Día del
almendro” o días señalados en el santoral para mostrar e impulsar los productos natu-
rales y ecológicos (Feria Eco-natural, Ecoraya, Feria transfronteriza de San Miguel…)
y para la promoción de los productos agroalimentarios locales (quesos, aceites, embu-
tidos, dulces tradicionales, artesanías locales…). La más antigua y conocida, la Feria
Rayana, impulsada inicialmente por Idanha-a-Nova, ha tenido que suspender este
año 2020 la XXIV celebración en Moraleja (Cáceres), debido a la crisis generada por
el coronavirus. La promoción de los productos de la tierra, de los recursos natura-
les, gastronómicos, culturales y turísticos se enmarcan en esta feria multisectorial en
una referencia geográfica de indudable significado y alcance transfronterizo: el Tajo
Internacional, que delimita, une y separa a la Beira Interior Baixa de la Extremadura
cacereña y de las tierras de Alcántara.
Ahora bien, cuando tanto se enuncia y opina sobre economía circular, resiliencia y sis-
temas productivos sostenibles, merecen un reconocimiento los grupos de acción local que
mantienen un espíritu activo y de cooperación en los entornos de la raya. Sus iniciativas
transversales y de abajo hacia arriba, movilizando los recursos comarcales y sensibilizando
a los consumidores en favor de los productos agroalimentarios locales, naturales, frescos,
saludables y de calidad, fortalecen los circuitos cortos y los mercados de proximidad. La
pandemia Covid-19 ha llenado de preocupaciones e inquietudes a los propios grupos de
acción local; son muy conscientes de la parálisis de numerosos servicios en el medio rural
y de los impactos socioeconómicos inmensos asociados a las restricciones de movilidad
y de confinamiento. Y consideran imprescindible que las intervenciones inmediatas al
estado de emergencia y de la pandemia sean de malla fina, de cercanía, bien asentadas en
el territorio y envolviendo a la sociedad civil. De ahí que, a pesar de las dificultades, se
104 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
. Los vínculos con la naturaleza, con el medio ambiente y con los paisajes naturales y cul-
turales. Los vínculos humanos con la naturaleza son vitales y mucho más en una sociedad
del riesgo como la nuestra, que ha abusado de acciones antrópicas agresivas y del expolio
de los recursos naturales no renovables y renovables. Es evidente que nuestras vidas y nu-
merosos aspectos de las relaciones transfronterizas se ha interrumpido por la pandemia en
estos meses de la primavera y verano de 2020, pero la naturaleza ha seguido sus ritmos, los
incendios forestales no han cesado, y el cambio climático y la pérdida de biodiversidad no
han disminuido, según los últimos datos e informes, tanto si contemplamos los hechos a
escalas globales como si los vivimos en nuestros territorios más próximos (ONU: United
in Science, 2020; WWF: Informe Planeta Vivo, 2020).
Parece incuestionable que las consecuencias y desafíos del Covid-19 nos sitúan como
seres humanos y como sociedad frente al cambio climático y al deterioro ambiental. A la
crisis ecológica se le ha sumado la crisis sanitaria del Covid-19, multiplicando las amenazas
e incertidumbres de los riesgos globales, alejándonos de las seguridades predicadas aquí y
allá bajo los principios neoliberales del laissez faire, laissez passer. No es extraño que, en
estas atmósferas inseguras, el concepto de resiliencia como principio de adaptación y de
respuesta a las mudanzas y adversidades de las condiciones socio-ambientales, se haya des-
parramado en escritos científicos de toda índole y en los discursos políticos o geopolíticos
de distinto signo12. Al parecer, poco a poco sustituye al concepto que ha dominado en los
discursos científicos y políticos desde hace tres décadas: la sostenibilidad.
11
Ver con cierto detalle: Posicionamiento REDR. Plan Estratégico Nacional PAC y Leader 2021 – 2027, en
http://www.redr.es/recursos/doc/2020/junio_2020/
12
En este contexto y lenguaje se enmarca el Plan de Recuperación, Transferencia y Resiliencia del Gobierno de
España. Pensamos que resulta más fácil hablar de resiliencia en sentido general que darle verdadero sentido
105 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
y llenarla de contenidos concretos para alcanzar un país resiliente o una sociedad española o ibérica resi-
liente, aunque se tengan claras las amenazas, malestares y riesgos que se ciernen sobre nosotros: el cambio
climático, la crisis energética, y ahora, además, las pandemias. En el caso portugués, la “Visão Estratégica
para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030” elaborada por el Prof. António Costa e Silva,
constituye un documento que encuadra las opciones y prioridades que deberán guiar la recuperación de los
efectos económicos adversos causados por la actual pandemia. A partir de esta visión estratégica se diseñará
el Plan de Recuperación, para presentar a la Comisión Europea. Recibió el título de Plano de Recuperação e
Resiliência – Recuperar Portugal 2021-2020. Servirá de referencia para el modelo de desarrollo del país en
un contexto post-Covid19 basado en 10 ejes estratégicos: “(i) uma Rede de Infraestruturas Indispensáveis,
(ii) a Qualificação da População, a Aceleração da Transição Digital, as Infraestruturas Digitais, a Ciência
e Tecnologia, (iii) o Setor da Saúde e o Futuro, (iv) Estado Social, (v) a Reindustrialização do País, (vi)
a Reconversão Industrial, (vii) a Transição Energética e Eletrificação da Economia, (viii) a Coesão do
Território, Agricultura e Floresta, (ix) um Novo Paradigma para as Cidades e a Mobilidade e (x) Cultura,
Serviços, Turismo e Comércio” (https://www.portugal.gov.pt/pt/).
No obstante, en los mensajes políticos renovados se habla de un nuevo desarrollo
sostenible, más sólido e inclusivo, con pautas de relación y movilidad más respetuosas
con nuestros recursos ambientales estratégicos, entre los que lógicamente sobresalen
el agua y todo lo relacionado con lo verde. Más bien tendríamos que hablar de una
reconstrucción de las políticas públicas y de las esperanzas depositadas en los distintos
ámbitos transfronterizos, que con la pandemia cobran un significado más estratégico
y fundamental para la supervivencia colectiva y peninsular. Son muchas las claves me-
dioambientales y fuentes de la vida vinculadas a los territorios transfronterizos, parti-
cularmente en el manejo de los recursos hídricos comunes y de los espacios naturales
compartidos. Naturalmente, el modelo que hemos vivido hasta hoy, bajo parámetros de
concentración y especulación urbana o bajo la apropiación y el manejo destructivo o
caótico de nuestro patrimonio natural – con incendios pavorosos en nuestros territorios
de baja densidad – no puede continuar.
Recordemos que la destrucción de nuestros ecosistemas, con graves consecuencias
para las vidas humanas y para el medio ambiente y su biodiversidad, ha tenido como gran
protagonista a los incendios forestales, dejando tras de sí un rastro de desolación, y amena-
zando a espacios naturales protegidos y simbólicos. En algunos momentos (2011) hemos
asistido a una oleada de incendios en las provincias de Zamora y Salamanca que han
afectado desgraciadamente al Parque Natural del Douro Internacional – Parque Natural
Arribes del Duero, o más al norte, al Parque Natural de Montesinho – Reserva Natural de
la Sierra de la Culebra – Parque Natural del Lago de Sanabria, ámbitos de altísimo signifi-
cado natural y cultural con recursos estratégicos extraordinarios, pues conservan herencias
geomorfológicas, biogeográficas y culturales representativas e históricas.
Paralelamente a los desastres y deterioros de todo tipo, asistimos a una inquietud social
por el reconocimiento explícito de los valores, tanto naturales como culturales, asociados
a los espacios naturales protegidos; en gran medida han sido asumidos por las administra-
ciones públicas de uno y otro lado, al compás de nuestra integración en la Unión Europea
y la asunción de principios de conservación y ordenación como los comprometidos con la
106 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
puesto manos a la obra y han unido con sus manos y trabajos uno y otro lado, uno y otro
pueblo, como nos lo recuerda el puente construido en el otoño de 1991 por los habitan-
tes de Aldea del Obispo (E) y de Vale da Mula (P) sobre la línea fronteriza marcada por
la rivera común del Turones/Tourões13. Un paso fronterizo y un pequeño puente abierto
13
Una de las crecidas del río Turones se había llevado la puente o pontón tradicional que franqueaba el camino y el
paso entre la localidad salmantina de Aldea del Obispo y la vecina portuguesa de Vale da Mula, bien conocido y
transitado por los vecinos y los contrabandistas de antaño; apenas unos tres kilómetros los separan en aquellos
extremos ignorados de ambos países. En pocos días, con sentido común y el esfuerzo colectivo de los vecinos,
reconstruyeron o levantaron el puente con mejoras muy notables de la infraestructura (hierro, hormigón,
granito, anchura, accesos…), facilitando el paso, además de a las personas, a los automóviles y a los tractores.
con trabajo concejil y mantenido por iniciativa de los propios vecinos, sin aduana y sin
vigilancia. Así fue durante siglos en los pueblos fronterizos. La vida local se fortaleció y las
necesidades básicas y de proximidad se remediaron con dignidad en una zona muy despo-
blada y de baja densidad. Entonces conocieron en Madrid, en Valladolid, o en Lisboa que
existían a uno y otro lado de la raya esos lugares olvidados y con topónimos tan expresivos.
Bien cerca, a unos quince kilómetros y a una escala ibérica de largo alcance y recorri-
do, el enlace de la frontera entre la A-62 española y la A-25 portuguesa, entre Fuentes de
Oñoro (E) y Vilar Formoso (P), sigue pendiente, sin terminarse, aunque en estos momen-
tos sus obras se encuentren bastante avanzadas. Este enlace de menos de cinco kilómetros
y “cuello de botella” lleva esperando más de 12 años su apertura, pues desde el año 2008
que se abrió el tramo de la autovía de Ciudad Rodrigo – Fuentes de Oñoro, ha quedado
sin finalizar hasta hoy por distintas vicisitudes. Cabe subrayar que estamos ante el eje
vertebrador del occidente de la península Ibérica en la Red Transeuropea de Transporte (E
– 80), clave para la cohesión territorial, el intercambio de bienes y personas, y el desarrollo
económico. Hasta los cierres de las fronteras por la pandemia circulaban por aquí más de
2,5 millones de vehículos al año y entre 7,5 y 9 millones de personas, convirtiéndose en
un cruce y paso estratégico para el transporte internacional de mercancías en “vehículos
longos” (TIR), símbolos del mercado global, y para los miles de autobuses de viajeros que
han encontrado aquí una buena acogida y hospitalidad. La caída del tráfico y del transpor-
te será de un 65% con la declaración de los estados de Alarma y Emergencia, aunque con la
apertura veraniega del 1 de julio se recuperó, pero en los momentos de máximo trasiego
del mes de agosto el descenso se calcula en un 25%. Estos datos contrastan con la ima-
gen y memoria que tenemos de la antigua Nacional 620, la histórica carretera de Burgos
a Portugal, itinerario sobre el que monta la A-62 y la E-80, conocida entonces como la
“ruta de portugueses” que procedentes de Europa se dirigían hacia el Centro y Norte de
Portugal, hacia Lisboa, Aveiro y Oporto, y colapsaban con largas retenciones y atascos la
circulación en las vacaciones estivales.
Las mayores dificultades de comunicación en la raya ibérica han venido condicionadas
110 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
por los relieves serranos que se interponen o por los propios ríos que delimitan y marcan la
frontera a lo largo de cientos de kilómetros en la llamada raya húmeda, en muchos tramos
profundamente encajada. Las comunicaciones transversales han sido una gran carencia
histórica que gracias a la cooperación y a los fondos europeos se han corregido en gran
parte. Podríamos hablar de una fiebre general por los puentes a raíz de nuestra integración
europea, cuya construcción logra salvar obstáculos difíciles y seculares, convirtiéndose en
símbolos de unión entre territorios próximos y lejanos. Algunos ejemplos de indudable
significado territorial y transfronterizo nos permiten entender su transcendencia geográfica
en la movilidad humana y en el transporte de bienes. En 1991 se inaugura el largo puente
internacional del Guadiana, cerca de la desembocadura, entre Ayamonte (E) y Castro
Marín (P); atrás quedaba el viejo barco, dando paso al gran corredor entre el Algarbe (P)
y Andalucía (E) que unirá las autovías portuguesas y andaluzas desde el sur. El puente
nuevo e internacional sobre el Miño entre Tuy (E) y Valença do Miño (P) se inaugura en
1995, facilitando las conexiones de largo recorrido entre Galicia y el norte de Portugal.
Por estos puentes internacionales, que han permanecido relativamente transitables duran-
te la pandemia, circulan habitualmente el mayor número de vehículos ligeros que cruzan
diariamente la frontera ibérica; em 2016, 13.063 por el puente nuevo entre Tuy y Valença
do Minho, y 9.942 por el puente de Ayamonte y Monte Francisco (Vila Real S. Antonio).
Aunque por aquí también circulan diariamente un elevado número de transportes pesados
y de mercancías, la mayor intensidad media diaria de vehículos pesados corresponde a los
pasos fronterizos de la raya seca: em 2016, 2.291 por Fuentes de Oñoro–Vilar Formoso,
y 2.104 por Badajoz–Caía.14
No faltan otros ejemplos de puentes que han rasgado proximidades fluviales infran-
queables o lejanías periféricas y marginales; unos han acercado territorios hasta convertir-
los en una calle más de convivencia y unión de dos poblaciones ribereñas como el puente
entre Salvatierra do Miño (E) y Monção (P) que ha cumplido 25 años, 1995; otros, como
el puente internacional de Monfortinho (P), sobre el río Eljas/Erges, en 1993, una inter-
vención dudosa para los esquemas centralistas y lejanos de Madrid, vertebra ahora territo-
rios marginales en la alta Extremadura y en la Beira Interior Sur, en el distrito de Castelo
Branco; además de acercarnos a las históricas termas de Monfortinho; próximamente sus
funciones se ampliarán al enlazar la autovía autonómica EX–A1 con el IC-31 y la autoes-
trada A-23 en Castelo Branco. De gran trascendencia territorial consideramos el reciente
puente internacional de Quintanilha sobre el río Manzanas/ Maçãs (2007 /2009) entre las
localidades de San Martín de Pedroso (E) y Quintanilha (P), en Trás-os-Montes y en el dis-
trito de Braganza; aunque el nuevo puente de 595 metros de longitud se termina en el año
2007 no se pondrá en servicio hasta el año 2009, cuando finalizan las obras de acceso al
mismo. La conexión y enlace de la N. 122 con la IP-4 convierte a este paso en un tránsito
111 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
clave para el noroeste español y para el norte de Portugal. A su vera queda el viejo puente
de principios del siglo XX, los límites meridionales del Parque Natural de Montesinho, los
paisajes de las tierras de Aliste y de la Reserva de la Sierra de la Culebra, y un lugar sagrado
para los vecinos de la raya: la ermita de la virgen “La Riberina”.
La trabazón y el tejido de pueblos vecinos con puentes accesibles han creado en la raya
ibérica formas de cooperación y de relación de proximidad esperanzadoras; así parecen
14
Los datos corresponden al Observatorio Transfronterizo España-Portugal 2016, República Portuguesa,
Economía – Gobierno de España, Ministerio de Fomento, 2018.
expresarlo los habitantes de Pomarão (P) y el Granado (E) con el puente construido sobre
el río Chanza (2008), afluente del Guadiana, uniendo las tierras alentejanas de Mértola
con las onubenses del Andévalo, aunque los sistemas productivos locales no acaban de
despegar. Lástima que no se aprovechase con inteligencia ambiental el muro de conten-
ción de la presa del Chanza (1989), pues el puente corre paralelo al muro de la presa con
irremediable impacto ambiental. Asimismo, con indudable entusiasmo por parte de las
autoridades y vecinos se inauguró (2007) el puente entre Zarza la Mayor (E) y Salvaterra
do Extremo (P), sobre el río Eljas; “una puerta abierta al futuro y a la convivencia” entre
rayanos que viven en auténticas tierras extremas de bajísima densidad, rodeadas de enci-
nares o alcornocales adehesados, olivares y frutales, y de algunos caminos fantasmales o
de ruinas de castillos roqueros medievales, antaño vigilantes (Castillo de Peñafiel en el lado
español y Castelo de Salvaterra do Extremo en el lado portugués); un puente fronterizo
original sobre un azud que con las crecidas del río Eljas se desborda peligrosamente y sus
aguas ya han arrastrado algún coche.
Las presas de nuestros grandes embalses fronterizos, con sus carreteras culminantes, han
sido hasta nuestra integración europea, los grandes caminos de comunicación transfronte-
riza y de control aduanero, como observamos en el Duero internacional. El paso fronterizo
entre Miranda de Douro (E) y Torregamones (E) se abre paso sobre la presa de Miranda
(1961), uniendo las comarcas zamoranas con la Tierra de Miranda y Tras-os-Montes, en el
distrito de Braganza. Miranda de Douro es una referencia monumental, mercantil y turísti-
ca para los castellano-leoneses y españoles, donde disfrutan de una hospitalidad amigable y
afectiva. A los atractivos monumentales y culturales se ha sumado gracias a la cooperación
transfronteriza un crucero ambiental que aprovecha las aguas del embalse de Miranda,
acercándonos empíricamente a los paisajes naturales y culturales tan sorprendentes de los
Arribes del Duero en aquellos recovecos y rincones olvidados; justamente allí, en las “pedras
graníticas y amarelas”, es donde José Saramago inició su Viaje a Portugal (1981). Del mismo
modo, aguas abajo, la presa, embalse y central de Bemposta (1964), sirve de paso entre
Fermoselle (E) y Bemposta (P), dos expresivos topónimos rayanos que remarcan la belleza
112 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de sus emplazamientos, uniendo las tierras trasmontanas del Concejo de Mogadouro con
las zamoranas y salmantinas. Desde el salto y presa de Bemposta, ahora pintada con unos
amarillos intensos que contrastan con los verdes cenicientos del entorno y con los grises de
los hormigones de la obra hidráulica, podremos contemplar los paisajes rurales construidos
con tanto esfuerzo en los encajamientos de Los Arribes y del Parque Natural del Duero
Internacional. Igualmente, aguas abajo, la presa, embalse y central de Saucelle (1956), une
las tierras de la penillanura salmantina y la del concejo portugués de Freixo de Espada á
Cinta; no obstante, aunque en 1960 se establece una aduana de segunda clase en este paso,
no se abrirá la frontera y de forma muy parcial hasta 1980, pues tan solo será durante las
fiestas patronales de uno y otro lado; en 1988 se ampliara la apertura a todos los fines de
semana, sábado y domingo, y días festivos. Finalmente, desde 1995 con la supresión de los
controles de fronteras (Acuerdos de Schengen) la apertura se mantendrá hasta el mes de
marzo de 2020 que se cerrará con la pandemia.
Más abajo, en ese lugar tan simbólico, donde le Duero gira en hacia el Oeste e inicia el
camino hacia su desembocadura en Oporto, después de recibir al río Águeda, topamos con
un puente de hierro (1887) que cruzaba el ferrocarril de La Fuente de San Esteban–Barca
d´Alba-Pocinho, y ahora con un puente de hormigón construido con fondos europeos
(2000); una conexión con aires modernizadores y sustitución del vaivén del tren que
durante un siglo unió las tierras ibéricas y europeas con el litoral atlántico portugués a
través del valle del Duero. En aquel entorno se resumen siglos de historia fronteriza entre
España y Portugal, de domesticación agrícola propia de gigantes (Alto Douro Vinhateiro,
Patrimonio de la Humanidad), de ingeniería ferroviaria valiente y original, de navegabi-
lidad y transporte fluvial prudente; también se condensan allí miles de años de modelado
fluvial y de encajamiento del río Duero y de sus afluentes, que descienden con energía en
su busca, formando relieves anfractuosos y bravíos de “caideros”, “fervencias”, “cadozos”
y pozas o pozos humeantes.
El gran déficit de las conexiones en la raya ibérica es el ferrocarril. Los datos de trans-
porte son evidentes. En el reparto modal, el transporte de viajeros por ferrocarril entre
España y Portugal apenas si representa el 0,5% de la movilidad (2016) frente al 92 %
por carretera; el aéreo representaba el 7,1% y el fluvial el 0,4%. Para las mismas fechas, el
transporte de mercancías por ferrocarril es algo superior, del 5,9%, y desciende al 70,6%
por carretera, mientras asciende visiblemente el marítimo al 23,5%15. Por otra parte, según
algunos expertos, las inversiones en infraestructuras en Portugal se han concentrado en los
últimos años en las carreteras, en un 90%. En España, las inversiones entre carreteras y
ferrocarriles han estado bastante equilibradas, centradas en la alta velocidad.
Desde la Expo de Sevilla, en 1992, España apuesta por una política e inversiones ferro-
viarias centradas en la Alta Velocidad, que se enmarca en el Plan de Transporte Ferroviario
113 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de 1987. Dos años antes se habían cerrado unos 1.000 kilómetros de líneas ferroviarias
consideradas obsoletas, entre ellas algunas fronterizas o próximas a la raya. El empeño y las
inversiones se concentran en un primer momento en el nuevo trazado del AVE Madrid-
Sevilla que entrará en servicio en la primavera de 1992, para la inauguración de la Expo de
Sevilla. La sola contemplación y análisis de los planes de infraestructuras y la alta velocidad
a medio y largo plazo (1993-2007) nos señalan tres perspectivas territoriales evidentes: el
15
Observatorio Transfronterizo España-Portugal: Evolución de 2012-2016, Secretaría General de Transporte
(Gobierno de España, Ministerio de Fomento) – Gabinete de Estrategia e Estudios (República Portuguesa,
Economía), Junio 2018.
gran vacío de intervenciones en todo el oeste español y en el ámbito fronterizo, aunque se
insinúa el camino de la alta velocidad hacia la frontera por Badajoz-Lisboa; sigue la dispo-
sición radial y centralizada en Madrid de la nueva red ferroviaria lo que debilita la cohesión
y equilibrio territorial, y se mantiene el afán político de unir con alta velocidad a todas las
capitales de provincia16. Todo muy lejos de las necesidades de la raya ibérica.
Por su parte, desde la Expo de Lisboa (1998), Portugal no se ha enfrentado a una política
ferroviaria de manera contundente, capaz de articular y vertebrar los territorios más periféricos
y del interior fronterizo. Quizás las fuerzas y energías presupuestarias se concentraron y se
agotaron entonces en aquella arquitectura tan reveladora del Parque de las Naciones y en
aquella estación de Oriente en Lisboa, “catedral de la ingeniería”, en palabras de António
Guterres, donde se integran el ferrocarril, el metro y los autobuses.
Frente a los 64 pasos fronterizos por carretera que conectan a España y Portugal,
tan sólo tenemos tres conexiones ferroviarias activas: Valença do Minho–Tui (Linha do
Minho), Vilar Formoso–Fuentes de Oñoro (Linha da Beira Alta) e Elvas–Badajoz (Linha
do Leste). En estas circunstancias es difícil cumplir con los objetivos estratégicos previstos
en los distintos planes ibéricos de infraestructuras para asegurar “la movilidad y accesibi-
lidad de las personas y bienes de todo el país” (Portugal) y avanzar en la “cohesión social
y territorial”. Cuando nos detenemos en la vertebración territorial y volvemos la vista
atrás, son muchos los lamentos que leemos y escuchamos por los cierres de ferrocarriles
valorados en su momento como no rentables, y por las pérdidas de servicios ferroviarios
considerados históricos y estratégicos para la articulación y equilibrio territorial. Por ello,
resulta esperanzador para el interior portugués y para el entorno fronterizo, la apertura
y mejora integral de la línea de la Beira Baixa, entre Guarda y Covilhã que permanecía
cerrada desde el año 2009. Una apuesta de 46 Km. muy esperada por los municipios o
concejos de Guarda, Belmonte y Covilhã, y que se enmarca dentro del plan de mejora
de infraestructuras y de revitalización del transporte ferroviario en el Norte de Portugal,
tratando de enlazar y conectarse con la red española.
En este sentido, son muchas las voces que abogan y defienden, por ejemplo, la reaper-
114 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
tura de la vía férrea del Duero como línea transfronteriza e internacional, pasando preci-
samente por los caminos y puente de hierro de La Fregeneda. Se han oído en la Asamblea
de la República portuguesa y se han escuchado y escrito en Europa, señalando que la
Línea del Duero, cerrada inexplicablemente en España en 1985 y en Portugal en 1988, con
“un potencial económico desaprovechado”, sigue manteniendo su valor estratégico como
alternativa más sensata para unir el litoral portugués del norte con el interior ibérico; y
16
Puede seguirse con cierto detalle el análisis de las políticas ferroviarias en España que realiza Josefina Cruz
Villalón: “La política ferroviaria en España. Balance de su planificación y ejecución de los últimos treinta
años”, Boletín de la Asociación de Geógrafos Españoles, nº 74, 2017, pp. 333-359.
estas voces precisan, además, que el ferrocarril redivivo generaría valor social, económico
y cultural, impulsando la integración y cohesión territorial a partir de los extraordinarios
recursos naturales y patrimoniales.
Sobre estas opciones basadas en la lógica territorial y en la recuperación integral de
la línea, observamos una dejación y olvido de la política de cohesión y desarrollo por
parte de Madrid y Lisboa, y una ausencia de sensibilidad hacia toda la región fronteriza
del Douro/ Duero. Las autoridades regionales de Castilla y León, en Valladolid, y las
de Salamanca, siguen también ausentes y lejos de los problemas reales del mundo rural
transfronterizo y deciden, después de años de reivindicación por grupos y plataformas
– la asociación Todavía es un buen ejemplo – en defensa del patrimonio ferroviario
y cultural, por el exclusivo uso turístico y senderista de la línea. El sueño europeo y
el de los propios concejos del Duero, que apuestan por reactivarla como línea regular
de pasajeros y de mercancías, merecería más coraje y solidaridad territorial por parte
nuestros gobiernos nacionales y regionales. Mientras, hemos asistido al despilfarro
imperdonable de millones de euros en artificios insensato alejados del territorio y de
los ciudadanos.
En el año 2008, el presidente de La Junta de Castilla y León anunció con toda la
parafernalia posible un Plan Regional del Valle del Duero que consistía básicamente en
la construcción de cinco grandes cúpulas faraónicas, “las cúpulas del Duero”, con una
inversión de unos 1.000 millones de euros, que sería modelo de desarrollo sostenible y
de política regional. A la zona fronteriza del Duero se le atribuía “la cúpula del agua”.
Nunca se cumplió el plan, a pesar de la propaganda desplegada, salvo una polémica y
judicializada Ciudad del Medio Ambiente en Soria, en el alto Duero, reconvertida ahora
en Parque Empresarial del Medio Ambiente. Un fiasco más y un sumidero de millones
de euros. Por su parte, la Diputación de Salamanca, construyó con fondos europeos el
Muelle de Vega Terrón (1995), en la orilla española en el encuentro del río Águeda con el
Duero, cuya función en el transporte de mercancías ha sido un fracaso total, lo mismo que
su conversión en una especie de lanzadera turística. Una frustración total con millones de
115 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
17
Las incertidumbres son muy reales; el 93,5 % de los españoles se muestran muy preocupados por los efectos
y riesgos del coronavirus, temores que se relacionan con las formas de convivencia, con las situaciones en las
ciudades, con las condiciones de vida y bienestar… que se trasladan a propósitos en favor de “vivir de una
manera sencilla y tranquila”, de “disfrutar de la naturaleza” (CIS, Encuesta sobre los efectos y consecuencias del
coronavirus, octubre/ noviembre de 2020). Ver: F. Tezanos (2020) – La pandemia que transforma nuestras
sociedades, en Sistema Digital, nº 312, Diciembre, 2020, pp. 5-10.
18
VIII Foro Parlamentario Hispano-Portugués, Asamblea de la República de Portugal, 14-09-2020. Ver.
Pablo González Velasco – Meritxell Batet quiere una relación estratégica con Portugal para políticas integra-
das propias, El Trapezio (14-09-2020).
con pueblos y aldeas casi vacías conllevan una percepción llena de sentimientos de aban-
dono, cuando más se necesita una vertebración a escala local y de proximidad por parte de
las pequeñas villas, cabeceras de comarca o de concelho. A propósito de las relaciones y ar-
ticulación en la raya de Castilla y León con una parte de Trás-os-Montes y la Beira Interior
Alta se escribía en aquellas aproximaciones y diagnósticos de los años noventa acerca de
los “condicionantes derivados del sistema de asentamientos, caracterizado por la mínima
presencia de ciudades en Portugal (Bragança, Guarda, Covilhã) a su vez muy dependientes
de las grandes ciudades del país, e insuficiente en cuanto a la talla de pequeña ciudad (y
villa) en el occidente de Castilla y León (Benavente, Toro, Zamora, Salamanca, Ciudad
Rodrigo, Béjar), estando muy distantes unas de otras ciudades”19.
Durante estos treinta años de integración europea, en mayor o menor grado, las ciuda-
des y núcleos intermedios transfronterizos han recibido ayudas europeas y de la cooperación
transfronteriza; y es bien visible la renovación de sus paisajes urbanos y de sus bienes mo-
numentales, a pesar de que muchas de ellas hayan sufrido en sus entrañas funcionales las
consecuencias de las pérdidas demográficas de sus inmediatos entornos rurales. Para reforzar
su posición, se han buscado acuerdos a través de las Agrupación Europea de Cooperación
Territorial (AECT), naciendo asociaciones de interés económico y urbano o “eurociudades”
entre núcleos de distinto tamaño de uno y otro lado, y mantener así proyectos comunes de
cooperación apoyados por los fondos europeos. En estas estrategias y planes comunes se
suele subrayar el valor añadido que aportan las ciudades o núcleos participantes, al abordar
juntos el progreso económico y la promoción del espíritu empresarial, las mejoras de las
infraestructuras y equipamientos, la promoción, protección y conservación del patrimonio
natural y cultural, sin olvidar las relaciones sociales y la cooperación ciudadana a través de las
instituciones respectivas. Con frecuencia, además, los diseños y planes comunes se justifican
por la creatividad e innovación de las propuestas, que persiguen como objetivo final “for-
talecer el papel de las ciudades en la cohesión territorial y la dinamización socioeconómica
del espacio transfronterizo hispano-portugués”. Un reto voluntarioso que se enfrenta a unas
realidades rurales maltrechas y envejecidas, con mujeres y hombres resistentes al desaliento,
117 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
19
L. López Trigal (1999) – Nuevos escenarios de desarrollo en las áreas de la frontera hispano-lusa. In Actas del 6º
Congreso Económico Regional de Castilla y León, Zamora, nov de 1988, Junta de Castilla y León, 1999, p. 191.
también de riquezas que se han acumulado en pocas manos con el trabajo de miles de jor-
naleros, emigrados en su mayoría lejos de estas tierras. Desde la desembocadura del Miño
hasta el estuario del Guadiana, recorremos unos 1234 kilómetros y atravesamos territorios
y paisajes marcados por el entrecruce de las condiciones físicas mediterráneas y atlánticas20;
junto a la idea de mosaico en la formación de los paisajes y de modos de vida de larga dura-
ción, podríamos destacar los ejemplos de las grandes explotaciones adehesadas y montados
meridionales sobre encinares, alcornocales y montes mixtos, o los minifundio de policultivo
y “colturas promiscuas” ejemplares en los valles y montañas más septentrionales, siempre
buscando la complementariedad de la trilogía mediterránea (pan, vino y aceite); no obstante,
los matices vendrán señalados por el mayor o menor dominio de “terras quentes” o “terras
frías”, de valles encajados o penillanuras, de montañas graníticas y sierras apalachenses. En
estos confines, al lado de géneros de vida que tan bien estudiaron Leite de Vasconcelos, Jorge
Dias, Franz Krüger, Julio Caro Baroja, Antonio Llorente Maldonado, o más recientemente
Ángel Iglesias Ovejero, perviven características léxicas antiguas que nos muestran un rico pa-
trimonio lingüístico y cultural a lo largo de toda la franja rayana, en estrecha ligazón con la
vida rural, las tradiciones orales y los intercambios locales (ganadería, agricultura, artesanía,
contrabando, fiestas y romerías…). El testimonio más sobresaliente nos queda en el miran-
dés, segunda lengua, lógicamente junto al portugués, reconocida oficialmente en Portugal.
Las mudanzas modernizadoras relacionadas con los recursos mineros y sobre todo
con los aprovechamientos hidroeléctricos y con los regadíos, rasgarán estos modelos
rurales en los momentos de máximo crecimiento demográfico en muchos puntos de
la frontera y en las zonas adyacentes, hasta dejarlos finalmente exangües. Son historias
apasionantes y a veces muy dramáticas, pues convertirán a los ríos fronterizos com-
partidos en la fuente principal de energía y de riqueza de la península durante muchas
décadas. El mundo campesino puso las tierras, también la mano de obra y la fuerza
humana, e incluso la imagen necesaria de amor a la patria. Los capitales lejanos prote-
gidos por las dos dictaduras se beneficiarán hasta nuestros días con ingentes plusvalías.
La sola enumeración de las presas y embalses nos acerca a los cambios tan radicales que
118 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
ha sufrido la raya Ibérica y sus modos de vida rural en el pasado siglo y en el presente.
No faltan interpretaciones y análisis que nos hablan del saqueo inmisericorde de estas
tierras humildes y trabajosas. Desde aquellos tiempos, el éxodo rural a los grandes cen-
tros urbanos ibéricos y a los países europeos marcará el devenir de los pueblos y aldeas
rayanas hasta nuestros días, cuando se vuelve a apostar, bajo un sueño quizás utópico,
20
En las raíces de cuánto decimos se encuentra la obra clásica para la geografía ibérica de Orlando Ribeiro
(1945) – Portugal, o Mediterráneo e o Atlántico. Coimbra, Colección Universitas; y para entender las mudan-
zas vividas en los tiempos actuales puede seguirse el análisis de Jorge Gaspar (1993) – As Regiões Portuguesas.
Direcção-Geral do Desenvolvimento Regional, Lisboa.
por un mundo rural vivo. Un reto gigantesco y de dimensiones multifuncionales frente
al abandono y la despoblación, en el que se imbrican problemas económicos y de sobe-
ranía alimentaria, problemas medioambientales y energéticos, problemas de equidad en
los servicios básicos como los sanitarios, problemas patrimoniales como la gestión de los
bienes comunes, y naturalmente, aquellos de mayor hondura y que están en la base de
la recuperación de un mundo rural vivo: los demográficos y sociales.
También se cumplen treinta años de la iniciativa Leader que ha contribuido decisivamente,
desde los años noventa, al mantenimiento y recuperación de los tejidos rurales en las comarcas
y concelhos fronterizos. Los grupos de acción local de uno y otro lado han sido claves para
adoptar estrategias de desarrollo local y de lucha contra la despoblación, de movilización de
los recursos endógenos y de favorecer la participación de la mujer en las nuevas alternativas de
recuperación. Entre las mediadas e intervenciones económicas, sociales, medioambientales o
culturales destacan con cierta fuerza las acciones relacionadas con el turismo rural y de interior,
partiendo de las grandes oportunidades que brindan el patrimonio natural y cultural, las arte-
sanías locales, o en muchos lugares las arquitecturas locales y sobre todo las fortalezas y villas
abaluartadas que jalonan la raya ibérica desde la Edad Media, un testimonio simbólico del pa-
sado. Bien podríamos hablar de un “turismo de frontera”, en la estela de Antonio Campesino,
Carminda Cavaco o Fernanda Cravidão, con virtudes poderosas para dar alguna cohesión y
sentido cultural a muchos núcleos intermedios y áreas rurales rayanas.
Estas acciones cobran una repercusión más integradora cuando enlazan inteligentemente
con los viejos caminos rurales e históricos, algunos de los cuales hunden sus trazados y empe-
drados en las tramas viarias y calzadas romanas. Pueden convertirse en verdaderos itinerarios
y corredores culturales, entreverando las propuestas de recuperación de un mundo rural vivo.
Entre las múltiples rutas posibles (enológicas, religiosas, ecológicas, guerras napoleónicas,
etc.) podríamos subrayar el sentido secular, ambiental, rural y cultural de los caminos de
la trashumancia y de los caminos a Santiago con gran significado transfronterizo. Todas las
sierras transfronterizas guardan huellas elocuentes ligadas a la vida pastoril. Las fiestas de la
trashumancia en la Sierra de la Estrella (Sabugueiro) o en la Sierra de Gardunha (Alpedrinha)
119 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
nos recuerdan los caminos ganaderos que enlazaban las tierras fronterizas de la Beira Baja
y de Extremadura con las sierras, dejándonos unas riquezas y manifestaciones culturales de
estos modos de vida, que nos hablan expresamente de telares y artesanía textil (cobertor de
“papa”, etc.), de razas ganaderas autóctonas, de la producción de quesos (“queijos da serra”),
de gastronomía local, o de identidades folclóricas21.
21
Los cencerros (chocalhos) son sobre todo de uso ganadero, pero también tienen una vertiente etnográfica
como instrumento musical (“Festival de Chocalhos” de Alpedrinha). El arte de la Chocalheira en Portugal
(fabricación de cencerros) fue reconocido por la Unesco en 2015 como Patrimonio Cultural Inmaterial de
la Humanidad, con la necesidad de su salvaguarda urgente.
Asimismo, los caminos transfronterizos a Santiago nos muestran distintas rutas con mayor
o menor presencia o consolidación; nos pueden llevar a Santiago de Compostela desde la
Sierra de la Estrella, desde diferentes enlaces con la Vía de la Plata, o desde Lisboa a Braga, de
donde sale el Caminho da Geira romana e dos arrieros; la ruta parte de Braga, sigue y monta
sobre la calzada romana que unía Astorga con Braga (“Geria romana”) hasta la raya con Galicia,
en Portela do Homen; luego continua el camino de los arrieros que transportaban el vino de
O Ribeiro hasta Santiago. Un itinerario lleno de enseñanzas y de paisajes asombrosos; además
de seguir la calzada romana, una de las mejor conservadas en la actualidad, según los arqueólo-
gos, atraviesa los paisajes extraordinarios del Parque Nacional de Peneda-Gerês, limítrofe con
el Parque Natural de Baixa Limia y Sierra de O Xurés; desde el año 2009 configuran una de
las tres grandes reservas de la biosfera transfronterizas. Con su promoción, al mismo tiempo
que se recuperan el patrimonio y los recursos naturales en el entorno del camino con las ac-
tividades camineras religiosas o profanas, se fortalece el turismo cultural, el desarrollo local, y
el conocimiento de estos territorios periféricos y de interior. Aunque los peregrinos a Santiago
han descendido notablemente por la pandemia, se constata que los caminos naturales, corre-
dores ecológicos, o vías verdes han aumentado su demanda en España más de un 70 %22; la
necesidad de contacto con la naturaleza, la búsqueda de calma y tranquilidad, o el refugio en el
sosiego y la espiritualidad son inquietudes y aspiraciones humanas que pueden verse satisfechas
y realizadas en los caminos a Santiago transfronterizos.
Y en esa cohesión territorial más cercana al mundo rural, cumplen una función ejemplar
algunos núcleos, aldeas, villas y pueblos de referencia patrimonial, simbólica e histórica, que
conservan la memoria de su presencia secular en la raya, convirtiéndose en goznes de conoci-
miento, de atracción y de disfrute del patrimonio cultural o de los paisajes de sus entornos.
Destacamos al respecto el significado de la red formada por las “Aldeias Históricas de Portugal”
en la región Centro de Portugal, cuya recuperación monumental e integral, cuando las ruinas
y el olvido amenazaban con su abandono y desolación, merecen nuestro reconocimiento y
por parte de la sociedad hispano-lusa su conocimiento y su visita. Son auténticos palimpses-
tos del poblamiento histórico y testimonios extraordinarios de la vida fronteriza, que ofrecen
120 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
22
Según una encuesta realizada por la Fundación de los Ferrocarriles Españoles (FFE), la actividad de las vías
verdes ha aumentado en un 71,4% durante el verano. Un síntoma quizás más de como la pandemia impulsa
el acercamiento a la naturaleza y lejos de los entornos turísticos masificados.
23
Euro Efe/Euractiv: Carlos García, Turismo de aldea, una alternativa en tiempos de covid (29.10.2020).
Fronteras de la Esperanza: la cohesión (económica, social y territorial)
en el inicio de un nuevo ciclo de políticas públicas.
La Fregeneda-Barca d´Alba sobre el rio Águeda Paso fronterizo por la presa de Saucelle
Salamanca al Día (18.03.2020) Salamanca al Día, 18-03-2020
Necesitamos recuperar también y con mayor energía el espíritu ibérico que a finales de los
años setenta y en los años ochenta del pasado siglo XX animó nuestro ingreso en la Unión
Europea y estimuló de forma activa las relaciones fronterizas a diferentes escalas, compar-
tiendo proyectos, infraestructuras y equipamientos.
De algún modo y con gran preocupación, en la Cimeira/Cumbre Luso–Española, ce-
lebrada en Guarda el 10 de octubre de 2020, se abordó con ese espíritu la gestión común
de la frontera ibérica, dentro de la situación tan grave y excepcional de salud provocada
por el Covid-19. Por ello, la cooperación se convierte en un compromiso renovado y
fundamental para ambos países, poniendo el acento en la Estrategia Común de Desarrollo
Transfronterizo (ECDT), aprobada en esta cumbre, con el objetivo esencial de fortalecer la
cohesión territorial del interior ibérico y fronterizo, y de apoyar los desafíos demográficos
y la lucha contra la despoblación. Naturalmente, se afrontan otros ámbitos de esfuerzo
compartido como la gestión ambiental y energética, con particular sensibilidad por las
alteraciones y mudanzas climáticas; asimismo, se apuesta una vez más por la integración
y cohesión territorial a partir de la mejora de las infraestructuras y de los transportes de
proximidad, con acciones ferroviarias y viarias específicas que con frecuencia se han ido
postergando año tras año; asimismo, se reiteran los retos y sinergias económicas comunes
que requiere la superación de la crisis asociada a la pandemia.
24
Jornada: “UE foro Historias Ibéricas”, 23.01.2020, sede Agencia EFE en Madrid, EURO-EFE, 29.01.2020.
inversiones públicas a lo largo de estos años, y de la complejidad regional de la frontera
más larga y antigua de Europa a la hora de tomar decisiones compartidos en los viejos y
nuevos escenarios de la Raya. A la par se mostraron algunos ejemplos de proyectos de co-
operación considerados sostenibles.
Asimismo, en la Unión Europa valoraban los logros y transcendencia de la cooperaci-
ón transfronteriza a escala nacional y regional con la iniciativa Interreg, el programa insig-
nia para la política territorial más allá de las fronteras. Textualmente se nos dice: “Interreg
es la encarnación de los valores fundamentales de la UE: cooperación entre personas,
regiones y países cercanos a nosotros. En una época de creciente introspección para algu-
nos ciudadanos y con un diálogo político que tiende a pasar por alto los logros de Europa,
Interreg ha tomado medidas para superar estos obstáculos, a la vez que ayuda a construir
una Europa más cohesionada basada en la cooperación”25. Se apostaba, por tanto, por la
movilidad y los desplazamientos transfronterizos, por los servicios públicos cercanos, por
la lucha conjunta contra los incendios forestales y el cambio climático, o por compartir
problemas comunes relacionados con la educación, la cultura, la sanidad, el empleo, la
naturaleza o el patrimonio, “fomentando la confianza y el respeto entre las personas que
comparten un espacio común”26,” lo que tiene un valor incalculable desde un punto de
vista político, económico y social”, según la comisaria para la Cohesión y las Reformas.
Evidentemente, todo ha quedado trastocado o roto por la pandemia. Las medidas
preventivas sobre los contagios del Covid-19, aprobadas por los respectivos gobiernos, han
traído consigo dificultades para el desarrollo de los proyectos y de las actividades previstas.
Cuando todos los esfuerzos han tenido que centrarse en detener y controlar los impactos
tan negativos de la pandemia, sobre todo las consecuencias sanitarias, sin olvidar las socia-
les y económicas, es lógico entender que las autoridades responsables del seguimiento de
los proyectos Interreg hayan flexibilizado los tiempos de ejecución, verificación y control,
con el fin de mitigar los efectos derivados de las restricciones a la movilidad y a los con-
tactos sociales. Se ha impuesto de nuevo la frontera y ahora los territorios online, las rea-
lidades virtuales y distópicas. Las limitaciones, prohibiciones e impedimentos no pueden
128 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
25
Comisión Europea: Interreg: treinta años compartiendo y cuidando a través de las fronteras (1.06.2020).
26
Ibidem
ambiental y cultural; no siempre, sin embargo, los fondos se asignaron a la resolución
de los problemas transfronterizos, y se dirigieron a financiar proyectos de signo más
urbano y político, alejados de las zonas de borde, y muy condicionados en España por los
intereses de las comunidades autónomas y de los poderes provinciales. Por ello, saluda-
mos con esperanza los ejes o pilares contemplados en la Estrategia Común de Desarrollo
Transfronterizo firmada por Antonio Costa y Pedro Sánchez en Guarda el 10 de octubre
de 2020; se caracteriza por la dimensión transversal de las propuestas de cooperación y
por la medidas multisectoriales, incidiendo en la creación de figuras como el trabajador
transfronterizo – con ventajas en servicios y movilidad –, en la mejora de las tramas y redes
de comunicación, o en la programación de acciones conjuntas culturales o medioambien-
tales de lucha contra el cambio climático y los incendios forestales. Los cinco ejes o pilares
contemplados y comprometidos en la Estrategia son: movilidad, infraestructuras, gestión de
servicios, desarrollo económico, y ambiente y cultura.
Los retos y desafíos pendientes reclaman energías renovadas y ánimos colectivos y
solidarios. Como nos invita a reflexionar y a debatir la comisaria para la Cohesión y las
Reformas, son momentos “para preguntarnos y reflexionar sobre algo que consideramos
un valor fundamental en la Unión Europea, a fin de que cobre un nuevo aliento: el espíritu
de cooperación, impulsado por la firme convicción de que juntos somos más fuertes»27.
Sin duda y sin dilación, tendremos que repensar con esperanza y coraje el futuro de los
territorios de nuestra Raya Ibérica.
27
Comisión Europea. Cooperación transfronteriza: El programa Interreg de la UE celebra sus treinta años
contribuyendo a acercar a los ciudadanos (17.02.2020).
Fronteiras d’aquém e além Ibéria:
memórias, vivências, imaginários
(trans)fronteiriços
Fragmentos de uma raia inacabada:
narrativas dum certo imaginário Beirão
Pedro Salvado
Universidade de Salamanca. Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla
y León (IIACYL). Máster Universitario en Antropologia de Iberoamérica.
Câmara Municipal do Fundão.
Rui Jacinto
Centro de Estudos de Geografia e de Ordenamento do Território (CEGOT); Centro
de Estudos Ibéricos (CEI)
cação e que, como ela, invocam frequentemente a autoridade científica para fundamentarem
na realidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor” (Bourdieu, 1989: 115).
xos gráficos gravados nos bancos xistosos das margens dos principais rios deste território
(Côa, Tejo e Zêzere), constituem autênticas bibliotecas, à imagem de Babel, onde ficaram
gravadas em diversas “línguas” os percursos líquidos duma terra sem fronteiras, veículos
relacionais entre as comunidades humanas e a transcendência do invisível.
1
“O viajante que contempla esses fraguedos medonhos, essas penedias de blocos, encavalitados uns sobre
os outros, pensa naturalmente em bruscas convulsões das entranhas do globo, numa espécie de dies irae
do planeta. A história natural é [às vezes] mais simples: a ação lenta das águas, o implacável desmoronar
das montanhas, que tem em si o factor mais poderoso da acção terrestres – o tempo!” (Orlando Ribeiro,
Guia de Portugal).
O cenário é duma geomorfologia simbolicamente domesticada a que se associam
mil sentidos e sentires numa íntima e fecunda relação entre as maternais curvas dos
vales moldados por aquelas linhas de água e a virilidade pronunciada dos relevos
residuais como acontece no caso da Serra da Marofa, da Serra da Opa com as suas
mouras encantadas, ou do Cabeço das Fráguas, local da reunião dos ancestrais deuses
Lusitanos. Para não falar em Monsanto, hoje da Beira, esse lugar mítico e santificado
de todas as beiras, desde as naturais e culturais às espirituais. Este singular monte-ilha
(inselberg) não tem paralelo nos restantes cumes e horizontes visuais que se entendem
entre o Douro e o Tejo, onde pontificam, além da Marofa já referida, o Jarmelo, a
Malcata, a Gardunha, o Monte de S. Martinho, a crista de Penha Garcia ou das Portas
de Rodão. São marcas que tecem uma geografia do sagrado e do profano e conferem
ao território da Raia Central Ibérica uma identidade própria e relativamente diversa.
As três coordenadas de leitura da Raia Central, que a seguir se apresentam, não per-
dem de vista nem deixam ter o foco nas Terras de Idanha, referência laboratorial no senti-
do que lhe foi atribuído por Orlando Ribeiro, tradição seguida pelos seus discípulos com
proveitosos resultados.
Velhos ritos: o sagrado e o profano ao redor do(s) Monte(s) Santo(s). O espírito que emana
deste território raiano está patente em diversas marcas materiais que traduzem a passagem
do tempo e em sinais mais intangíveis inscritos por uma permanente tensão entre presença
e ausência. A identidade territorial é moldada por aquelas marcas, estes sinais e o espírito
que emana das paisagens, naturais e humanas, e de certos lugares, traços indeléveis de im-
perecíveis reminiscências telúricas indissociáveis de formas de sacralização cuja verdadeira
descodificação está longe de ser conseguida. Entre estes sinais que traduzem a memória dum
tempo e dum espaço destaca-se a mítica paisagem que envolve a topografia do Monte Santo,
um dos pontos mais salientes deste imaginário por continuar a ser palco dum dos cultos e
festas (trans)fronteiriças mais emblemáticas.
Esta finisterra beiroa também se pode considerar “ao mesmo tempo o limite, a ba-
135 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
liza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde estes
dois mundos comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o
mundo sagrado. (…) Um número considerável de mitos, de ritos e de crenças diversas
derivam deste “sistema do mundo” tradicional” que, surpreendentemente, continuam
ativas desempenhando o papel ancestral de religação cíclica entre os homens e os luga-
res. Estas razões mostram a importância de “compreender o papel do espaço sagrado
na vida das sociedades tradicionais – qualquer que seja, aliás, o aspecto particular sob
que se apresente este espaço: lugar santo, casa cultual, cidade, “mundo”. Encontramos
por toda a parte o simbolismo do Centro do Mundo, e é ele que, na maior parte dos
casos, nos torna inteligível o comportamento religioso em relação ao “espaço em que se
vive” (Eliade, 1948 [2006]: 50-51). No silêncio da Raia Central os deuses continuam
vivos através dos ritmos a eles e elas associados; a religião, aqui, continua a ser um dos
principais sinais da resiliência do território.
O território está pontuado de santuários que nos mostram as marcas dum sagrado
que radica em velhas crenças fundadas em elementos naturais, principalmente as ligadas
à água e à terra. A paisagem religiosa milenar afirma-se nestes elementos que tiveram
continuidade no sincretismo de ancestrais panteões pré-romanos que o cristianismo na
sua afirmação mariana havia de continuar. As termas e as águas santas acabaram por ser
agentes de novas sacralizações que se afirmaram através de “outras crenças”, em contraste
com as sacralizações do tempo longo, mais materiais e terrenas, inerentes ao tempo curto
e rápido, traduzindo os anseios associados aos processos de desenvolvimento. As barragens
e os regadios adquirem, neste particular, enorme valor simbólico, materialidades que, de
alguma maneira, violam aqueles ancestrais equilíbrios e relativizam o valor espiritual das
paisagens raianas. Da terra provinha o pão, o vinho e o azeite, fonte de luz, igualmente
presentes no culto cristão, como recordam os primitivos batistérios colocados nas entradas
da Catedral de Idanha-a-Velha.
Os campos, as campanhas e as campinas da Beira Baixa lembram um manto de
Ceres, essa deusa das plantas, dos cereais e do amor maternal, celebrada por mulheres
do povo, em Maio, retratada com um cetro, um cesto de flores e frutos e tinha uma
coroa feita de espigas de trigo. Estes elementos, maior ou menos evidentes, conti-
nuam a ser os símbolos com presença assegurada na Festa do Castelo, de Monsanto,
a celebrada Nossa Senhora do Castelo2: a marafona, o pote de flores, a substituir o
cereal, lançado da Fortaleza, promessas da desejada fertilidade e autossuficiência,
acabariam por viajar em tempos mais recentes para a igualmente mítica Campanha
do Trigo. São ritos e cultos que marcam a passagem dum tempo que obedece ao
ritmo dos equinócios e dos solstícios, como testemunham as várias festas em honra
de Nossa Senhora que parece, igualmente, não conhecer fronteiras, como acontece
136 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
2
Para Ernesto Veiga de Oliveira, na obra Festividades ciclicas de Portugal, “nas celebrações do primeiro de
Maio, ter-se-ia operado um sincretismo de práticas e crenças, talvez de origens diferentes, mas todas con-
vergentes, recobrindo a obscura ideia, que subsistem no espírito do Homem, da necessidade de desencadear
formas efecivas de protecção e de esconjuro a opor à insegurança da vida e à omnipresente presença do mal”.
Afinal, como enfatizou um dia os antropólogos Henri Hullert e Marcel Mauss, “Si los dioses, cada uno a su
hora, salen del templo y se hacen profanos, en cambio vemos que lo relativo a la propia sociedad humana
– la patria, la propriedad, el trabajo, la persona humana…-, entra en el templo progresivamente”. “Así, lo
que antes era profano ahora puede ser sagrado, tal es por ejemplo, la ciencia, el mercado, o el estado. Si los
dioses, cada uno a su hora, salen del templo y se hacen profanos, en cambio vemos que lo relativo a la propia
sociedad humana – la patria, la propiedad, el trabajo, la persona humana... – entran en el templo.”
A somatização efusiva da vivência do ritual acabou por passar do sagrado para o pre-
domínio de práticas lúdicas, identitariamente fugazes, destituídas de qualquer sentir
religioso. No entanto, o processo de construção de um discurso patrimonial não é,
de todo, um processo unilateral e unívoco. A ritualidade monsantina continua a ser
uma continuada “invenção da tradição” (Hobsbaw e Ranger, 1983). Mas o sentir da
mensagem intemporal do sagrado que se apreende neste “monte dos deuses” perma-
nece inalterável, adejando fortemente. Afinal, “Si los dioses, cada uno a su hora, salen
del templo y se hacen profanos, en cambio vemos que lo relativo a la propia sociedad
humana – la patria, la propriedad, el trabajo, la persona humana… –, entra en el
templo progresivamente”.
As datas dessas romarias coincidiam ou com o fim do ciclo dos trabalhos agrícolas
ou com a data em que o cereal do pão estava prestes a ser colhido, ritmavam para os
camponeses raianos o fluir do ano. Por isso esquecidas antigas e, por vezes, sangren-
tas querelas, as populações raianas dos dois países ibéricos encontraram nas romarias,
em louvor da Virgem Maria, sob várias invocações (Nossa Senhora da Azenha, Nossa
Senhora da Póvoa, Nossa Senhora do Almurtão ou Nossa Senhora do Incenso, …) laços
de amizade e de convívio fraterno. A mesma fé e os mesmos anseios as irmanavam, os
mesmos motivos impeliam o seu peregrinar e as suas preces: saúde, boas pastagens para
o gado, boas colheitas que assegurassem trabalho e afugentassem a fome, palavra mais
temida que a guerra em territórios de fronteira.
O Monte Santo e a singularidade da paisagem natural e humana envolvente. Silhueta do monte, a aldeia alcan-
dorada de Monsanto e a procissão de Nossa Senhora do Castelo, durante a Festa das Maias, a chegar
à capela localizada no interior da antiga fortaleza: o convívio do sagrado e do profano,
a crença na marafona e o novo mito, encenado, dos Templários.
Exemplifiquemos com o caso da romaria de Nossa Senhora da Azenha, cuja ermida
se ergue num vale nas margens do Ponsul, localizado no limite entre os antigos conce-
lhos de Monsanto e de Penha Garcia. Com três festividades ao longo do ano, a grande
romaria ocorre, atualmente, no segundo Domingo de Setembro, data em que a imagem
é trazida através dos campos desde Monsanto até à ermida. Mas nem sempre assim foi.
Outrora, no segundo Domingo de Setembro, realizava-se uma feira, e a grande festivida-
de religiosa tinha lugar na segunda–feira. No passado era nesta feira que se compravam
as sementes para a safra do ano seguinte, que se vendiam os produtos das colheitas, que
se acordavam negócios de gados e de sementeiras. Todo o arraial, em torno da capela,
se enchia de gado. Nos inícios da década de 60 do século xx as feiras foram proibidas
aos domingos. Foi a partir dessa data que a feira da Senhora da Azenha se inicia no se-
gundo sábado de Setembro e a festividade grande no domingo. É este o dia grande em
que, depois da missa na igreja de S. Salvador, Matriz da vila de Monsanto, a Senhora
da Azenha deixa a povoação para vir habitar a sua ermida, onde outrora permanecia
todo o inverno. Atualmente, nesse domingo festivo uma mescla de falares ressoa no ar.
Muitos são os espanhóis, vindos do outro lado da raia, que aqui se juntam na mesma
devoção à Senhora caminheira, que protege o gado, as sementeiras e afugenta as pragas
de gafanhotos, outros dos inimigos estruturais do ciclo da terra. E, pela tarde é a festa.
Atuam bandas, acordeões, ranchos folclóricos e, nalguns anos, vêm também grupos de
cantares e danças tradicionais do outro lado da raia. Assim aconteceu em 1986 em que
ao Rancho de Monsanto se juntou o grupo de Danzas e Cantares da cidade espanhola
de Cória. Dança-se e canta-se acompanhando o voltear dos ranchos ao sabor da música
tradicional em língua portuguesa e, em certos anos, com a sonoridade alegre e caden-
ciada das músicas espanholas, dançam-se sevilhanas ao som de castanholas. Irmanados
na mesma devoção à Virgem, portugueses e espanhóis confraternizam no arraial da
Senhora da Azenha, banhado pelo Ponsul.
A romaria da Senhora da Póvoa era outrora uma das romarias mais concorridas da
raia beirã. A ermida localiza-se no sopé da Serra d’Opa, fronteira geológica entre a terra
138 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
fria da Meseta e os campos mais luminosos que nos apontam as terras do sul. As festi-
vidades duravam três dias: com início no domingo do Espírito Santo, prolongando-se
por segunda e terça-feira. Outrora, os romeiros deslocavam-se em carros de bois vistosa-
mente ornamentados com arcos floridos. Vinham de todos os pontos da raia portuguesa.
E a fama dos milagres da Senhora da Serra d’ Opa atraia igualmente muitos espanhóis.
Algumas quadras do cancioneiro desta romaria, recolhido na década de 30 do século xx
por Adelino Robalo Cordeiro, traduzem o cansaço da viagem dos peregrinos, por vezes
longa e difícil, perseguindo uma crença sem fronteiras rogando a proteção da Virgem em
sentires que atravessaram as linhas vitais do quotidiano da raia:
Nossa Senhora da Póvoa,
À Vossa porta me assento,
Cansadinha do caminho,
Virgem dai-me algum alento.
. Outros mitos, novos sinais: tradição e modernidade, memória e pontes para o diálogo trans-
fronteiriço. O Estado encarregou-se de impor a fronteira com rigidez, de maneira absoluta,
ao invés da linha imprecisa, fluida, porosa, por vezes mera abstração construída pela história
e pelo espírito dos homens. O seu papel foi, assim, reforçado e a sua presença assinalada
com marcos de pedra, postos fronteiriços ou simples riscos inscritos num mapa que adqui-
ram uma inusitada transcendência. Desde que no decurso do século xviii os nacionalismos
vincaram os estado-nação, a fronteira adquiriu um significado mais imperativo que, apesar
de cambiantes ditados por algumas flutuações conjunturais, acabou por se prolongar até
aos nossos dias. A relativa sacralização das fronteiras acontece, pois, num contexto político,
cultural e científico bem determinado, acompanhando a emergência da ciência moderna,
particularmente, da geografia e da cartografia. Os mapas onde se passam a implantar, ao es-
baterem a conceção mais abstrata da fronteira, conferiram-lhe uma dimensão mais concreta,
real, pretensamente fixa e imutável, paulatinamente reforçada pela diplomacia, pelos tratados
e pelas comissões instituídas para regular a sua demarcação entre os estados.
As novas qualidades que foram adquirindo com o tempo alteraram o modo como as
populações raianas passaram a olhar, a interpretar e a relacionarem-se com a fronteira. As
comunidades locais criaram eventos e manifestações devido à sua presença que são, hoje, em
alguns casos, simples memória, sem vitalidade nem expressão, reminiscência residual dum pas-
139 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de novas oralidades que aumentaram a riqueza lexical. Ao invés das línguas nacionais,
as geografias das línguas, dialetos e falares raianos, como o mirandês, o quadrazenho
(Quadrazais, Sabugal), o fenómeno das falas da Serra da Gata ou, mais a sul, o barran-
quenho (Barrancos), mostram como a raia sempre soube encontrar um falar comum para
comunicar entre os habitantes do lado de cá e do lado de lá duma mesma fronteira.
O nome dos lugares fornece-nos, por outro lado, pistas importantes para a desco-
dificação do território a que nem sempre se tem dado a devida atenção. A toponímia,
como as paisagens, escondem sob o seu manto diáfano uma geografia que urge desocultar,
inscrições por vezes pouco percetíveis, mas que contém informações sobre o processo de
povoamento, a ocupação, o uso e as funções dos territórios os as condições naturais, como
se adianta a título indicativo : (i) a ocupação primordial do espaço e o tipo de povoamento,
como Aldeia (Bispo, Castro (Marim), Vila e Vilar (Formoso; Torpim); Monte (Trigo) e
Arraial, as Salvaterra (do Extremo) ou as Seguras; (ii) a passagem e permanência doutros
povos, contactos e culturas, presente em Almeida, Almendra, Almofala, Alfaiates, Alcafozes,
Alcongosta, Alcântara; (iii) função militar, representada pelo rosário de castelos, paralelos à
linha de fronteira: Castelo Branco; Castelo Rodrigo; Castelo Mendo; ….), Torre (Centum
Cellas…), Atalaia; (iv) morfologia do terreno (Monsanto) ou a natureza (Rosmaninhal); (v)
sagrado e nomes de santos, além do Mon(te)santo, um santoral que liga elementos e topo-
grafias, do alto e do baixo, do vale e da montanha, Salvador, Santo Estevão e S. Miguel (de
Acha), coroando um conjunto de devoções onde dominam as Senhoras, testemunhadas
pela toponímia em Santa Margarida (Aldeia de), Senhora da Póvoa (Vale da).
Pontes e acessibilidades: Ponte Internacional sobre o Rio Memória e ruínas: ruínas consolidadas do Palácio de
Águeda, paralela à antiga ponte ferroviária, hoje desati- Cristóvão de Moura, objeto de intervenção no âmbito
vada, na confluência com o Douro (Barca d’ Alva). do Programa das Aldeias Históricas (Castelo Rodrigo).
141 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
A necessidade de permeabilizar a fronteira introduziu a ponte nos vários discursos com significados ambivalen-
tes: o imperativo real de aumentar o número de pontos de passagem levou a pugnar por novas pontes de atraves-
samento, termos que foi glosado, metaforicamente, como traço de união, facilitador do diálogo e da cooperação
transfronteiriça. O modo de intervir e preservar a memória passou, em alguns casos, por manter a ruína e o
efeito do tempo sobre os lugares e o património.
A visita anual aos marcos e malhões da fronteira para confirmação dos limites pela
Comissão prevista no Tratado que foi celebrado entre os dois países ibéricos denuncia
um papel mais político e imperativo, decidido pelo estado central, que as comunidades
locais assumiram como um gesto simbólico que transformaram num ritual profano, uma
festa de reencontro e de celebração da amizade entre os povos de aquém e além-fronteiras.
Afirmação de nacionalismo, este cerimonial resistiu ao tempo e à adesão de Portugal e da
Espanha à União Europeia, bem como ao mito da Europa sem fronteiras.
Nos tempos mais recentes, assistiu-se a proliferação de Feiras, Comunidades de
Trabalho, Gabinetes de Iniciativas Transfronteiriças, Associações de Desenvolvimento
Local e diversos Centros, Culturais e de Estudos, que são o reflexo quer do esbatimento
das fronteiras como do novo significado, mais subtil mas igualmente simbólico, que
passaram a assumir. Os recursos financeiros disponibilizados para promover projetos
materiais e intangíveis com o objetivo de esbater o seu efeito de muro intransponível
proporcionaram novas oportunidades de relacionamento e reencontro que geram fluxos
transfronteiriços distintos dos que eram baseados nas trocas, formais e informais, de
bens e pessoas. Estas iniciativas de cooperação transfronteiriça, como se referirá mais
adiante, correspondem à versão contemporânea, porventura menos popular e mais
burocratizada, de permeabilizar a fronteira.
O conhecimento dos labirintos da memória e os caminhos seguidos pelos atores e o
efeito das políticas é indispensável para enquadrar os novos sinais, nem sempre positivos,
que foram despontando no espaço raiano. É ainda importante para o desenho de estra-
tégias mais eficazes para reverter o ciclo vicioso das dinâmicas recessivas que se instala-
ram, mitigar incertezas, reabilitar a depauperada autoestima e relativizar falsas expetativas,
tarefas indispensáveis para abrir um horizonte de esperança que urge inventar.
três décadas de prosperidade que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Foi um pequeno
passo até ao 25 de abril de 1974 e início das transições democráticas.
Os alicerces que governavam o país e o mundo foram abalados bem como os para-
digmas que regiam a leitura das dinâmicas socio-territoriais e que presidiam à definição
das estratégias de desenvolvimento. Os problemas emergentes não encontravam resposta
na ortodoxia teórica nem nos manuais académicos que norteavam o esboço das políticas
públicas, levando a questionar o modelo de desenvolvimento vigente que se baseava em
grandes projetos, sobretudo “indústrias motrizes”, verticalizadas, praticamente inexisten-
tes na região, e em polos de desenvolvimento. Se o caso de Sines, Cachão, etc., são bons
exemplos desta abordagem em Portugal, o projeto Aproveitamento Hidro-agricola da Cova
da Beira (MAP-MOP, 1977) correspondeu à tradução regional desta opção estratégica.
O positivismo hegemónico e a crença cega na tecnocracia sairiam debilitados desta con-
tenda, tendência que, no nosso caso, não foi abraçada de imediato por estarmos a viver um
momento em que todos os sonhos pareciam possíveis. Como alguém já escreveu, tais dog-
mas acabaram substituídos por novos mitos, infalíveis para nos salvar dum subdesenvolvi-
mento endémico, onde “a Regionalização constituía o 3º mito que consumíamos num curto
espaço de tempo: tinham sido antes a Democracia e o Mercado Comum” (Gaspar, 1982).
As mudanças conceptuais entretanto ocorridas, a que se juntou o abrandamento do papel
e da intervenção do Estado, estão na origem um novo modo de encarar a região em geral e
às áreas de fronteira em particular, vistas como periféricas e marginais. Importa reter que se
encontravam sob grande pressão, sujeitas a uma pesadíssima erosão demográfica, devido à
sangria gerada por processos migratórios, particularmente intensos e dolorosos nos anos 60.
ao conteúdo, encontra-se bem expresso numa adjetivação onde pontifica, com assidui-
dade, termos como desenvolvimento local, endógeno, integrado, sustentável (1987).
Aqueles momentos, incontornáveis da “construção europeia”, duma nova moldura
geopolítica e contemporâneos da renovação do discurso sobre o desenvolvimento, coin-
cidem com a adoção, no caso europeu, das regiões de fronteiras onde as tipologias de
áreas problema, a par das áreas rurais e urbanas, merecedoras de discriminação positiva
para efeitos de políticas públicas.
A Europa sem fronteiras (1992) surge nesta conjuntura como uma metáfora imaginada
sob o primado do mercado e da livre circulação de bens, como já havia acontecido com
o espírito que inspirou o Tratado de Roma. À tentativa de esbater as fronteiras políticas
junta-se a vontade de apagar as fluidas e variáveis fronteiras económicas, que o Mercado
Único continuamente vai refazendo, restando às fronteiras reais o reconhecimento de fra-
gilidades em termos de infraestruturas, equipamentos, serviços, etc... As Região de fron-
teira, incluídas na grelha que identifica áreas de intervenção prioritária, passam a alimentar
a expetativa duma discriminação positiva para superar precaridades reconhecidas. Desde
então, beneficiam de recursos provenientes de Iniciativas Comunitárias, designadamente
o INTERREG, que tem enquadrado ao longo dos sucessivos ciclos de programação vários
Programas de Cooperação Transfronteiriça.
Crises posteriores, como a crise económica e financeira, que deflagrou em 2008, ou
a que estamos a atravessar, desde o início de 2020, ao arrepio duma crise sanitária global
sem precedentes, continuam a deixar marcas devastadoras que contribuem para configurar
a nova geografia dos territórios mais frágeis, particularmente os fronteiriços. O sentimento
de perda já instalado é cavalgado por esta conjuntura reúne todos os ingredientes para
aprofundar e dilatar as assimetrias económicas, sociais e territoriais pré-existentes. Embora
percorrendo outros meandros e novos labirintos, meio século volvido desde a pretérita
crise da década de 70, parece termos regressado ao ponto de partida, impotentes e sem
instrumentos, conceptuais ou estratégias assertivas, para enfrentar novos desafios e rever-
ter a espiral recessiva dum ciclo vicioso que parece sem retorno para as áreas fronteiriças.
Aqui chegados, parece natural acompanhar um dos autores atrás mencionado para
quem “a região tornou-se objeto político, matéria operacional para técnicos, terreno
de descontentamento para reivindicações ou revoltas, discurso para homens políticos
no poder”. A atualidade desta observação leva-nos a insistir na ideia que “a região, se
existe, é um espaço vivido. Vista, apreendida, sentida, anulado ou rejeitada, modelada
pelos homens e projetando neles imagens que os modelam. É um reflexo. Redescobrir
a região é, pois, procurar captá-la onde ela existe, vista pelos homens” (Fremont, 1976:
11-17)3. Revisitar os espaços fronteiriços a partir desta perspetiva é, uma vez mais, voltar a
146 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
3
“A etimologia da palavra região (regio), tal como a descreve Emile Benveniste, conduz ao princípio da
divisão, acto mágico, quer dizer, propriamente social, de diacrisis que introduz por decreto uma des-
continuidade decisória na continuidade natural (não só entre as regiões do espaço, mas também entre
as idades, os sexos, etc.). Regere fines, o acto que consiste em “traçar as fronteiras em linhas rectas”, em
separar “o interior do exterior, o reino do sagrado do reino profano, o território nacional do território
estrangeiro” é um acto religioso realizado pela personagem investida da mais alta autoridade, o rex, en-
carregado de regere sacra, de fixar as existências daquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, por
um dizer executório, o que se diz, de fazer sobreviver o porvir anunciado. (…) O auctor, mesmo quando
só diz com autoridade aquilo que é, mesmo quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no
ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e
oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como
dignas de existir, como conformes à natureza das coisas, «naturais”.” (Pierre Bourdieu (1989) – O poder
simbólico, pp: 114).
percorrer os caminhos da Raia na presunção de atualizar a leitura duma parcela da Beira
recorrendo a uma incursão mnemónica que não se resuma a uma história da fronteira, a
uma arqueologia dos processos, dos léxicos e das vontades, um balanço temperado entre
investigação e ação, entre teoria e prática, entre paixão e razão.
A fronteira é, antes de mais, uma estremadura4, um conceito balizado entre realidade
e imaginário, amálgama onde conflui o político, o cultural, o económico e o social, que
denota capacidade latente para sobreviver à história e resistir à geografia, como demons-
tra os múltiplos significados que lhe foram sendo atribuídos ao longo do tempo e os
vários papéis que continua a desempenhar5. Ler a Raia de Portugal para além de algumas
aparências obriga a apelar a lembranças remotas, trazer à luz do dia factos e aconteci-
mentos esvanecidos que se encontram encriptados numa gramática cuja interpretação
obriga a cruzar o fenomenológico, o simbólico e o afetivo para se encontrarem diferentes
sinais, ritos e demais códigos.
Na verdade, a contemporaneidade das reivindicações ou das cenografias dos viveres
do presente ou do ansiado futuro, inscrevem-se numa estratigrafia do tempo longo. A
percepção, necessariamente emocionais, tem limites. À Raia Central, mista nos seus
elementos, tem uma parcela do seu território bem delimitada entre a serra da Malcata-
-Gata e o Tejo. Este fragmento da fronteira seja no seu sentido linear, seja num sentido
territorial, caracteriza-se pela sua pluralidade e conjugação de problemas e de situação,
de características, de emblemas e estereótipos. A raia da terra das Idanhas é uma fron-
teira de transição entre o norte e o sul da geografia física peninsular, um bom exemplo
das tendências da cooperação das políticas centrais de ambos os Estados, dominada no
último século pela questão das acessibilidades, visando a união entre centros, pela pas-
sagem e não muito à permanência, à continuação dos destinos das raízes históricas de
comunidades que sempre viveram na e com a fronteira.
Não percorrer os mesmos caminhos nem repetir erros já cometidos pressupõe que
se comece a olhar, a ler e a interpretar as regiões fronteiriças com outros olhos, desenhar 147 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
4
“A palavra Estremadura é originariamente um nome que, tanto em espanhol como em português, designa
a “orla fronteiriça mais exterior”. Na época da Reconquista tardia foi empregada por ambos os povos para
designar o sector de luta das guerras contra os mouros e desta maneira conservou em ambos os lados da fron-
teira política uma significação territorial” (H. Lautensach, citado por Orlando Ribeiro, 1987, A formação de
Portugal. ICLP: 123).
5
Fronteira conhece diferentes significados: a parte limítrofe de um espaço em relação a outro; o marco, a raia,
a linha divisória entre duas áreas, regiões, estados, países; o fim, o termo, o limite (Dicionário Houaiss); o
mesmo dicionário enumera alguns tipos de fronteira: agrícola, artificial, acumulação, tensão, esboçada, lin-
guística, morta, natural, etc.. Para os geógrafos “a fronteira é um instrumento geográfico de diferenciação e,
por consequência, ao fim e ao cabo, de organização do espaço”, “um instrumento imaginado pelos homens
para introduzir uma certa ordem e o que não é verdade porque cristalizou inumeráveis conflitos ao longo da
história que é o seu lado negativo” (Guichonnet, Raffestin, 1974: 9-14).
programas, projetos e intervenções para estes territórios que sejam menos invasivos dos
valores e respeitadores dos sentimentos das pessoas que se encontram em união de facto
com aqueles lugares. Importa começar por compreender o que amarra e atraí a estes
sítios recônditos, presentes e ausentes, que indizíveis laços afetivos os unem às comuni-
dades de origem ou de destino. Importa sublinhar que estas fluidas ligações acabam por
deixar marcas indeléveis impressas nas paisagens raianas, sinalética, por vezes subtil, que
carece duma abordagem holística para ser descodificada. São sinais específicos que dis-
tinguem e identificam cada um dos espaços que compõem o diverso mosaico regional.
Marca própria, nem sempre percetível a quem os olha de fora e a que os residentes não
ficam indiferentes, interfere na maneira como uns e outros acabam por interagir, sentir
e viver cada parcela que constitui o universo raiano.
Na biblioteca raiana, plural nas suas expressões, autores, matérias e geografias, des-
tacam-se alguns títulos pelo impacto que produziram nos ritmos das apreensões imagé-
ticas das realidades sociais transfronteiriças. Em 1972, a editora de Madrid Cuadernos
para el Diálogo publicou a obra “La raya de Portugal. La frontera del subdesarrollo” da
autoria dos jornalistas Antonio Pintado e Eduardo Barrenechea que reunia crónicas
publicadas no jornal Informaciones que então assegurava, na capital de Espanha, uma
ténue cultura progressista nos cinzentos quotidianos do regime franquista. A publicação
adveio de uma viagem proposta pelo diretor do jornal, Jesús de la Serna, e registaria
para o futuro uma dura radiografia fina de um dos territórios conscientemente mais
esquecido e desconhecido pelos centros políticos ibéricos: a raia estruturada pela secular
linha de fronteira luso-espanhola. Em tempos de ditaduras ibéricas revelava-se uma rea-
lidade que as duas centralidades políticas pretendiam esconder numa península social
148 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Coincidências: a zona raiana com a implantação do itinerário seguido pelos jornalistas Antonio Pintado e
Eduardo Barrenechea, em 1972, e o que foi apresentado, em 2020, para as intervenções a realizar no âmbito da
Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço (ECDT, 2021-2027) entre Portugal e Espanha.
ideia de um velho continente sem fronteiras internas. Até essa data muito mudaria nos
territórios limítrofes.
As “lágrimas ibéricas, que redoblan y repican por ambas naciones, y muy en concreto
por los habitantes de su frontera” perdiam intensidade afirmando-se uma escolha intrínse-
ca das terras da fronteira em colocar à luz as cartografias vivenciais de seculos de contacto
subterrâneo. As leituras impressionistas da “Frontera del subdesarrollo, frontera del corcho
que insonoriza los gritos de reivindicación y acolcha los lamentos de una incomunicación
entre sus habitantes que desde siempre – sea cual fuere el régimen político imperante en
ambos países de un mismo solar ibérico – no se: cansan de hablar y hablade fraternidades
y buena voluntad, pero que en la práctica poco o nada hacen para acabar con la bolsa de
pobreza más grande de toda la Europa comunitaria que sigue perpetuándose. España y
Portugal siguen, después de tantos años y con un proyecto común europeo, viviendo de
espaldas, de costas voltadas” constituíam realidades do passado que deveriam ser transfor-
madas na afirmação de um sentido identitário do território raiano comum. O silêncio da
Lusitânia interior que tinha acompanhado “toda a nossa viagem por ambos os lados da
fronteira”, tangível e sufocante em 1972 já não dominava a paisagem raiana. O território
raiano detinha, afinal, vozes. Não era afónico. Amordaçadas durante séculos por desdéns,
guerras, medos, limites, barreiras e retóricas historicistas centralistas, as múltiplas vozes das
fronteiras ansiavam apenas por quem as soubesse escutar. Afinal a Raia era, também, a
linha do horizonte onde nascia o sol, certeza de iluminação da vida.
“Há na Península Ibérica uma grande zona (maior em extensão superficial que a
Grécia ou a Checoslováquia, vez e meia a Áustria, três vezes maior que a Dinamarca ou
Suíça e quatro vezes a Holanda e Bélgica…), formada por nove distritos portugueses e seis
províncias espanholas, que constitui, no seu conjunto, a mais notável e extensa concentração
do subdesenvolvimento da Europa” (Antonio Pintado e Eduardo Barrenechea, 1971: 9).
afirmação democrática das duas nações ibéricas determinaram uma transformação nas té-
nues dinâmicas relacionais entre as comunidades e os respetivos poderes locais e regionais
situados nos territórios separados pela linha de fronteira. Com a constituição das regiões
autonómicas despontará, no estado espanhol, uma cartografia política reveladora da di-
versidade identitária da velha Ibéria afirmando outras capitalidades que, de uma maneira
paulatina, diminuíram o despótico centralismo de Madrid. Ao mesmo tempo, o assumir
da cooperação transfronteiriça como um objetivo estratégico pelas administrações dos dois
governos concentrará nas paisagens da fronteira uma confluência de recursos económi-
cos, técnicos e simbólicos sem paralelo na sua secular história. De um modo indelével
alteraram-se as gramáticas, as substâncias, os léxicos, entrelaçaram-se e codificaram-se
memórias, assumiram-se esquecimentos, planificaram-se futuros comuns, concebeu-se
uma renovada imagética para as margens do “espaço deprimido” da fronteira. Os anti-
gos muros-distâncias, mentais e físicos, separatórios dos horizontes raianos adquiriram
um inusitado interesse por parte das administrações centrais e regionais dos dois países.
Importância revelada em intensidades de desigual ritmo e em operacionalidades projetivas
proporcionais ao anúncio da disponibilização de fundos comunitários destinados a inver-
ter a situação aferrada a essa olvidada periferia percecionada como uma das regiões mais
atrasadas, envelhecida e pobre da Europa.
columna vertebral que articula y une al Area Rayana (unificadora) y, precisamente por ello,
configura un área cultural peculiar que tiene como eje medular la complementariedad y la
interdependencia transfronteriza: Es la cultura de Frontera” (Uriarte, 1994).
A entrada de Portugal na União Europeia não significou o fim da sua fronteira penin-
sular como de um modo errado, em muitas ocasiões, se propagou. Assistiu-se sim a uma
abertura física e uma diluição da fronteira percecionada e vivida como um limite aduaneiro
controlado, vigiado, policiado e impeditivo da livre circulação de bens e, principalmente,
de pessoas. A fronteira marcava diferenças políticas, administrativa, jurídicas, económicas,
alfandegárias e a sua derrocada imagética, como linha invisível de materialidades (muros
de pedra, cancelas de ferro, guaritas, ameias, carros de policias, ritualidades das burocracias
de passagem, o controlo dos passaportes, das cartas de condução, das idades, etc.), temo-
rosas, repulsivas e separatórias, provocará a maior transformação funcional e simbólica em
séculos da sua existência histórica.
A abertura das fronteiras entre os países da Comunidade Europeia fomentou, assim,
uma alteração social e económica nas regiões raianas desestabilizando equilíbrios, comple-
mentaridades e solidariedades impostas, mais sentidas ou mais subterrâneas. A Raia era
o viver e a fronteira o controlo das passagens. Abertas as fronteiras despontaram outros
sistemas comerciais, novos segmentos em espaços nos quais a maior parte da economia
subterrânea tradicional dificilmente poderia singrar. Como apontaria Carminda Cavaco o
apagar da fronteira, política e económica histórica provocará “efeitos locais catastróficos a
curto e médio prazo: desaparecimento total das funções administrativas da fronteira, in-
cluindo a cobrança de direitos alfandegários sobre as mercadorias entradas; de rendimento
para diferentes grupos sociais neles envolvidos”.
A diluição de significações e de a interiorização por alguns sectores profissionais das
comunidades raianas subordinadas à fronteira vigiada e controlada provocou uma plura-
lidade de sentires que percorreu vários estados de numa bipolaridade de comportamen-
tos coletivos: da exaltação até ao desanimo e ao esquecimento. Mas quando falamos da
fronteira luso-espanhola, a mais antiga e extensa da União Europeia, tópico descritivo do
seu património histórico, foram vários os comportamentos, as evoluções e as adaptações
ao novo tempo das fronteiras abertas nos 1234 Km da sua extensão. Apesar da geografia
político-administrativa ser distinta como a sua rede urbana, investimentos comunitários,
acessibilidades, abandono dos campos serem distintos nas duas faixas territoriais frontei-
riças constituídas por 17 regiões NUT III representam 23,5% do território ibérico e 10%
da população dos dois estados. As 10 NUT III fronteiriças de Portugal têm uma área de
50.200 Km2 e representam cerca de 55% do território do continente e 20% da população.
A linha unifica, nos nossos dias, uma diversidade de tempos de viver a fronteira for-
mando um corredor, não uniforme, em termos populacionais e económicos, constituído
158 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
por grandes espaços rurais de muito baixa densidade populacional, em declínio acelerado
e em situação de empobrecimento gradual, paisagens de silêncios onde avultam algumas
cidades ainda dotadas de dinâmicas sociais e económicas. Mas como notou Jorge Gaspar:
“As fronteiras são, a um tempo, espaços de inovação e de comunicação e espaços de acumu-
lação de arcaísmos e persistência nas divisões. (…) Nas terras fronteiriças, de um e de outro
lado, desenvolveram-se estratégias de afirmação e de sobrevivência, de ameaça e de diálogo.
Ao mesmo tempo que se sublinharam as diferenças reforçando as expressões culturais de
cada comunidade, inventaram-se canais de troca que faziam reverter em vantagem o que
era uma barreira. Depois, a perspectiva de integração na Comunidade Económica Europeia
com os inerentes apoios ao desenvolvimento económico e social, prolongaram o tempo dos
optimismos, reforçados com a antevisão do fim das fronteiras – a liberdade de comunicação
total iria decerto criar novas oportunidades. A última dúzia de anos, apesar da melhoria das
infraestruturas e da valorização das comunidades locais, representaram um tempo de espe-
rança, mas também de frustrações. O fim da fronteira, jovem de sete séculos, não contribuiu
para travar os esvaziamentos humano, de um e de outro lado, em certo sentido, pode dizer-se
que se acentuou o fosso: para que servem as novas acessibilidades, se escasseiam os utentes”.
Foi nesta realidade que a experiência do território de Idanha-a-Nova é uma exceção ao
determinismo, resistindo – o verbo é mesmo resistir – numa garantia dos equilíbrios entre
as comunidades e o meio garantindo a continuidade da sua permanência.
viam nestes centros do interior peninsular. Daqui partia uma via que se dirigia a Igaedis, a
Egitânia visigoda, berço histórico das terras das Idanhas que assumiria o epíteto de velha
no século xiii. E, nesta identificação de locais da fronteira histórica, avulta promontório
de Monsanto santuário da fronteira do sagrado, mole pétrea de todos os limites e ritos de
cruzamento e de sincretismos religiosos das civilizações do norte e do sul peninsulares.
Desde a pré-história que uma renovação de sentires se mantém até aos nossos dias numa
cerimónia de união entre ancestrais fronteiras da espiritualidade, cuja manifestação supre-
ma é a Festa do Castelo de Monsanto com os seus adufes e as suas misteriosas marafonas,
bonecas femininas, sem olhos mas que vigiam…
Os castelos da Raia segundo Duarte de Armas
Em 1852, o erudito José Viu deste modo descreveu o vetusto monumento “A las dos
leguas atravesaban el río que ahora se llama Eljas por un belíssimo puente del cual nadie
absolutamente se ha acordado decir nada. Estamos hablando del puente de Segura, que
en el día separa a España de Portugal.”
E, em 1578, anos depois da captação de Duarte de Armas Sebastián de Aguirre e
Diego de Castañeda e Pedro Villegas, vizinhos de Alcântara afirmavam “concuerdan en
que el lugar donde estaba elevado el puente, entonces derruido, era el sitio ideal para reedi-
ficarlo y en que los perjuicios para la villa de Alcántara eran inmensos pues no llegaban las
mercancías y por ello había perdido mucho dinero ya que no podía cobrar la aduana de las
mercaderías que por allí pasaban especialmente las de invierno. (…) E que conviene que
se vuelva a hacer e reedificar porque es muy útil e provechosa para las comarcas de Castilla
como a las de Portugal e a todos los vecinos comarcanos”.
Em Segura, o rio Erges vincava o limite aquático separador e asseverava a fronteira-
-linha cumprindo os desígnios estabelecidos, anos antes, pelos dois reinos. Com nascen-
te em Serra de Gata, em Segura, as suas margens encontravam-se há séculos unidas por
uma ponte, notável construção romana, situada num lugar muito peculiar da história
da fronteira gizada num tempo de fronteiras do mundo e das raias das religiosidades
entre cristãos e muçulmanos. O monumento está carregado de códigos, mensagens,
sinais e memórias hoje mais ou menos desconhecidas, num limar entre visibilidades e
invisibilidades. A ponte de Segura, delineada por Duarte d’ Armas, apresenta parte das
suas guardas derrubadas. Este aspeto de abandono e de registo da destruição do prin-
cipal suporte de ligação entre os extremos de Castela e Portugal, nesta região, poderá
ser relacionado ou evocar o papel que Segura tinha tido durante a guerra terminada em
1480, cuja ponte era estratégica como nó de comunicações entre a Extremadura e a zona
do noroeste de Portugal.
Na apreensão de Salvaterra, o primeiro plano é ocupado pela borda castelhana
do Erges dominada pela fortaleza de Peñafiel, traçado com grande pormenor, hoje
uma ruína erma nos campos de Zarza la Mayor. A imagem testemunha a porosida-
de das estremas e um consentimento por parte do “inimigo ocasional” em permitir
debuxar um dos seus principais castelos de vigilância que demarcavam diferenças de
poder. Zonas de delimitação militar adquirem, paulatinamente, um valor de territó-
rio onde se aplica o direito e a demarcação das diferenças envolvendo-se duma im-
portância cada vez mais simbólica. Os castelos afirmavam presenças e distinções.
Diferenças que se revelavam nas bandeiras que se divisavam de torre para torre. Os
castelos viam e eram olhados, vigiavam-se uns aos outros, fiscalizando as transações
proibidas, por exemplo metais preciosos e armas, cobravam as rendas e controla-
vam o comércio, eram os espaços de segurança das comunidades e dos respetivos al-
162 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
fozes garantes dos calendários e das monotonias cíclicas dos trabalhos e dos dias.
Como escreveu Romero de Magalhães: “La nación era poco más que la tierra donde
se nacía (acaso también una lengua que se hablaba). La pátria, tierra de los padres, indi-
caba el orígen. La ampliación de estas nociones a todos los habitantes del território bajo
la sujeción a un mismo rey tardará en generalizarse”. Com efeito, o tempo da construção
e aprensão mental da fronteira, como linha, foi lenta: “La frontera es la concreción de
una historia política, que puede no haber tenido en cuenta la vida de los pueblos. Y entre
Portugal y el reino de Castilla las delimitaciones resultan a trozos bien dudosas. Donde
hay rios y cursos de agua se puede decir que el trazado se acuerda sin grandes conflictos,
igualmente si los hay para el pago de los derechos de pescado. Pero no por otras partes.
Por las sierras se ponen cruces y piedras, hay árboles que sirven de referencia. Hay, tam-
bién, a veces, mojones com los símbolos de Portugal y de Castilla”.
A fronteira foi um ponto quente da guerra, mas também um espaço percorrido
nas complementaridades económicas, principalmente na passagem sazonal dos rebanhos
transumantes. O contrabando emerge no séc. xvi como resposta à burocracia régia e
a fronteira deixou de ser um apenas uma área de vigilância militar ou de conflituali-
dade bélica para estar sujeita a uma intensa vigilância aduaneira. Mas houve exceções
nesta fronteira porosa do Erges que alcançaram um verdadeiro sentido de convergên-
cia estratégica e de convivência transfronteiriça como o caso da criação, em 1749, por
Felipe V, da Real Fabrica de Sedas de Zarza la Mayor, cujo verdadeira designação foi
Real Compañía de Comercio y Fábricas de Extremadura que provocou um intercâmbio
ímpar de matérias primas, de utilização de terras comuns para plantio de amoreiras
junto da fronteira e de contrabando de seda…
Apontemos também o fenómeno da partilha entre as comunidades raianas das águas
termais e santas de Monfortinho durante anos geridas em efetiva comunhão ou as roma-
rias raianas das Senhoras, como atrás referimos, que são sempre metade de cada nação.
Indiquemos, finalmente, as fronteiras linguísticas e culturais, “descobertas” e reveladas
por José Leite de Vaconcelos, Orlando Ribeiro ou por José Matoso, que consideravam
as terras das Idanhas um mundo de transição entre todos os rumos, que utilizaram
como um grande observatório-laboratório de paisagens iluminadas, mas, também, de
narrativas metafóricas e de intensa densidade literária, de que é extraordinário exemplo
o escritor Fernando Namora.
Não terá sido, assim, um simples acaso a escolha, em 1986, pelo Jornal do Fundão,
163 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
6
“O “espírito da Guarda” mais não foi do que do que o esforço luso-espanhol para ultrapassar as tensões e a
carga de potenciais conflitos entre os dois Estados, na segurança de que em Espanha parecia irreversível o ca-
minho para a democracia e de que em Portugal as tentações esquerdistas e radicais estavam duradoiramente
afastadas” (César Oliveira, 1995: 219).
Apontemos, também, as entrevistas e a importância da visão inovadora do jovem alcalde
salmantino Jesus Málaga ou o texto referencial do jornalista democrático Henrique de
Sena, entre outras colaborações que formam este incontornável documento da história da
discursividade transfronteiriça jornalística entre a Beira Interior e Castela e Leão.
“Raia-Traço-de-União”, sentença torguiana que já tinha sido aplicada a outras longitu-
des, nomeou um dos principais painéis das II Jornadas da Beira Interior, organizadas pelo
Jornal do Fundão. A realização, em Monfortinho, deste fórum de definição e das linhas mes-
tras em que devia assentar o futuro desenvolvimento da almejada região da Beira Interior
revestiu-se de um valor simbólico. As termas de Monfortinho, apesar de possuírem uma
oferta hoteleira de referência na região, eram servidas por uma fraca acessibilidade e vivia o
seu dia a dia no limite geográfico da fronteira-barreira, numa subtil e ritmada complementa-
ridade entre termalismo, turismo cinegético e contrabando. O “traço de união” recordava a
junção de vontades que terminassem o aparente silêncio da paisagem raiana.
Capas das publicações que reúnem as comunicações feitas nas Jornadas da Beira Interior, organizadas por
António Paulouro, diretor do Jornal do Fundão (Iª edição, Fundão, 1983; IIª edição, Monfortinho, 1986). Em
apenas três anos, com a integração europeia, ocorre uma substancial mudança conceptual: o velho pastor soli-
tário dá lugar duas figuras que se aproximam para um diálogo na proximidade da fronteira, construção política
que parece começar a esvanecer e a deixar de ser fator de separação.
tem de ter traço-de-união. Mas à letra dos tratados tem de corresponder a fraterna convi-
vência, a acção cultural ampla e diversificada que cimente as bases do entendimento. Nestas
jornadas, foi dada ênfase e à questão Raia Traço-de-União que, evidenciando as assimetrias
luso-espanholas em zonas de potencialidades similares, determina a necessidade imperiosa de
restabelecer equilíbrios perdidos, mercê de um esforço de desenvolvimento incentivado sem
o que se assistirá inevitavelmente à agudização de problemas de degradação social”.
O laboratório de Monfortinho visibilizaria, também, um ator local que a partir dessa
data irá desempenhar um papel muito relevante e peculiar na cooperação entre a Beira e a
província de Cáceres, o presidente da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, Joaquim Morão.
O autarca tinha a perceção que o desenvolvimento da periferia da Beira Baixa, onde o con-
celho de Idanha se inscrevia, passaria, inevitavelmente, por uma conjugação de futuros mais
fluídos com as terras raianas espanholas. Nesse final de século, assinalado pela anunciada e
multiplicada formação de uma nova arquitetura europeia, a velha fronteira, lida por muitos
como um limite carregado de negatividades e de repulsividades estruturais, transformou-se
numa “linha-horizonte” de um idealizado território emocional de cooperação.
queria sem fronteiras, Joaquim Morão tinha um sentido dual tirando partido das caracterís-
ticas da geografia política do concelho de Idanha-a-Nova, o terceiro maior concelho em área
de Portugal que carregava uma realidade de dupla periferia face às “capitalidades” centrais
tanto dos estados nacionais como da própria região onde se inseria: a antiga Beira Baixa.
Mourão assumia esse “determinismo” e um certo fatalismo condicionante, ao compreender
a necessidade da afirmação de uma “capitalidade” do espaço periférico que fizesse convergir
desejos, que potencializasse um sentido experimental e empírico das perspetivas de desenvol-
vimento possibilitado pelos quadros financeiros europeus, que fizesse confluir massa critica
técnica e criativa que eliminassem estereótipos negativos ou folclóricos.
Os sons que se escutavam no território deixaram de ser apenas notas dos tradicionais adu-
fes ou cantos para emergirem fonemas de palavras de reivindicação. A Idanha era, no mapa
da interioridade raiana, uma capital que comunicava, passando de um horizonte de subser-
viência a um território de parceria e de cooperação reequilibrando-se as distâncias. Outro dos
referentes fundamentais da gramática singular do poder local prendeu-se com a relação entre
a autarquia e a atávica estrutura social dominante até então que se caracterizava pela existência
de extremos socioeconómicos e de vincadas fronteiras entre uma minoria terratenente e uma
maioria deserdada do uso e da fruição da terra, dependentes de um ritmo e de uma sazonalida-
de agrária e pastoril estrutural tão bem descrita pelo historiador Albert Silbert ou por Orlando
Ribeiro, sublime geógrafo leitor da paisagem e das almas dos homens desta estremadura beiroa.
A excecionalidade do autarca Joaquim Morão caracterizou-se sempre por um pragmatismo
de grande capacidade de influência e negociação-reivindicação junto dos centros políticos cen-
trais e um alargado consenso e receção democrática positiva junto das populações. Apontemos
algumas distintas categorias temporais de intervenções como a fase inicial das infraestruturas
(saneamento básico, acessibilidades e, principalmente, o direito à fruição da água, bem precioso
que nestas terras tardiamente fora introduzido nos espaços domésticos aldeãos). A segunda fase
materializou-se através da construção de equipamentos públicos em que se criaram condições
vivenciais nas comunidades que atenuassem a evidente deserção demográfica. Em todas as fre-
guesias surgiram polidesportivos, centros de dia, parques de lazer e outros equipamentos, sendo
dada particular atenção à criação de pequenas zonas ditas industriais que garantissem a passagem
ou a complementaridade entre o sector primário para um incipiente sector secundário que, no
entanto, se traduziu em experiências de pouco impacto nas dinâmicas das economias locais.
Diferente foi o caso do sector do turismo que, nos inícios da década de 90, merecerá
particular atenção com o surgimento de novas unidades hoteleiras e o outras ofertas como o
turismo de natureza potencializado com a criação do Parque Natural do Tejo Internacional ou
o parque de campismo da Barragem da Idanha, obra do Estado Novo, construída por questões
sociais e afirmadora do regadio mas que, em finais de século xx, não vai ser um instrumento de
apoio às ansiadas mudanças da agricultura mas sim uma reserva liquida de fruição turística do
170 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
território. O turismo venatório também colocará a Idanha nos mapas de oferta nacional e in-
ternacional. Particular atenção mereceu o turismo cultural com a afirmação de duas freguesias,
únicas ao nível do seu património, na rede das Aldeias Históricas de Portugal7 iluminando-se
7
“A tentativa de intervir em espaços mais débeis e com dificuldades estruturais, decorrentes dum persistente
abandono demográfico e da desvalorização das actividades tradicionais, esteve na base da definição de políticas
de desenvolvimento visando apoiar iniciativas que contribuíssem para reverter a situação de perda em que tais
territórios se vêem, cada vez mais, envolvidos. A multiplicidade de iniciativas levadas a cabo em Portugal, desde
o início dos anos 90, apoiadas por diferentes Intervenções Operacionais e Iniciativas Comunitárias, reflecte a
evolução conceptual no desenho das estratégias de desenvolvimento territorial (regional e local), inspiradora
de novas práticas, e o facto das áreas mais deprimidas do Continente português constituírem espaços naturais,
para novas abordagens e ensaio deste tipo de intervenções” (Boura. 2004: 115-126).
um passado histórico adormecido de duas comunidades que tinham ambas sido envolvidas por
um estatuto de “capitalidade” em momentos distintos da história do território: Idanha-a-Velha
durante o período romano e Monsanto na longa Idade Media, tempo de todas as fronteiras.
Nesta nova modelação das Terras das Idanhas, o cume da ação política foi materializado
com a construção do Centro Cultural Raiano (CCR)8, assumindo-se a emergência e a afirmação
de uma idealizada “cultura raiana” como cartografia programática nas linhas de atuação futura.
O CCR adquiriu uma importância simbólica insubstituível na recomposição das imagens emi-
tidas e associadas às terras das Idanhas emitidas em direção ao centro nacional. Com efeito, e
apesar de se ter associado à arquitetura uma leitura historicista e apresentado o CCR como um
novo castelo ou nos programas de acção utilizarem léxicos de gestão militar como as palavras
estratégia, ataque ou luta, o CCR afirmou, em primeiro lugar, através das materialidades expos-
tas, a cultura como um território intangível afirmador da identidade imemorial do território,
anulando a nefasta associação a estas terras periféricas às palavras incultura e analfabetismo.
Conjugaram-se ruralidades com consumos culturais do mundo urbano, atingiram-
-se outros públicos que vão fruir essas fronteiras positivas de fusão entre a tradição e a
modernidade, escreveram-se outras letras com a introdução de novas figuras de estilo na
gramática dos textos do território e, principalmente, mudaram-se os sons. As paisagens so-
noras da tradição interpenetraram-se com textualidades eruditas centrais fixadas em letras
e imagens em órgãos de comunicação nacionais, quebrando-se o ilhamento comunicacio-
nal a que, durante décadas, esteve sujeita a cultura da Terra das Idanhas. Obra de notável
traço arquitetónico, com um excelente enquadramento e respeito pela geologia e flora
envolventes, o Centro Cultural Raiano revelava-se como um lugar-produtor catalisador de
futuros culturais transfronteiriços. A associação da palavra raia a este equipamento, preten-
deu ancorar definitivamente a designação fronteira à história. A raia era o território berço
da ação e o Centro Cultural Raiano reforçaria o seu carácter difusor e recetor de culturas
materiais e imateriais de tornando-se num locus de comunhão ibérica.
Os coordenadores dessa esperançosa fase do centro reiteravam Miguel Torga, poeta que
irá ampliar uma tendência de releitura do território e das suas especificidades culturais e emo-
171 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
O território é uma construção social como apontou Henry Lefevre, com o que tudo
isso implica de consenso e conflito, negociação, poder, legitimação, imposição ou aceitação
e o CCR é um palco das interrogações culturais raianas: uns muros que falem plasmando
um conceito de cultura semiótico que seguia Clifford Geertz, quando escreveu que “o
conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como
Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teia de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura
do significado”. O CCR dava novos significados. Facto confirmada com a realização no
seu auditório de uma das principais sessões da Jornada da Interioridade, “Perspectivas
de desenvolvimento do Interior”, colóquio promovido pelo Presidente da República
Jorge Sampaio quer recordaria (13.06.1997): “Desde o início do meu mandato como
Presidente da República, tenho procurado trazer o problema das assimetrias regionais de
desenvolvimento para o primeiro plano da discussão pública sobre as grandes questões,
em Idanha-a-Nova, tive o gosto de promover e animar uma discussão sobre “Perspectivas
de desenvolvimento do Interior”, em que, para além de técnicos, responsáveis políticos e
representantes de organismos com grande experiência nas questões do desenvolvimento
regional, participaram alguns investigadores da área das Ciências Sociais. A partir de três
intervenções introdutórias (a cargo dos Professores João Ferreira de Almeida e Rui Canário
e eu próprio), estendeu-se o debate à audiência, sem, no entanto, ter sido possível dar a
palavra a todos os que, entretanto, haviam manifestado a intenção de se pronunciar sobre
as questões levantadas”.
Lisboa pensava o todo nacional na periferia e a Idanha era o centro. Por essa época,
nas páginas do jornal Expresso, na sua coluna “Visitas ao país real”, o historiador César
Oliveira exultava, considerava a Idanha um caso exemplar, e interrogava: “Idanha-a-
Nova tem cerca de 1.100 Km2, 14.115 habitantes repartidos por 17 freguesias, 10.886
alojamentos e uma relação área/habitante de 20 Km2 para 1 habitante. A freguesia/
sede do concelho tem cerca de 2450 moradores. Dos alojamentos existentes são habi-
tualmente ocupados 5828. Numa amostragem de 1407 famílias, mais de 50 por cento
(exactamente 788) não têm crianças, sendo que, entre as famílias com crianças e que na
amostra totalizam 619, 557 têm apenas duas. Só em Monsanto verificou-se nos últimos
173 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
la Comarca de Olivenza).
Para muitos técnicos que faziam parte da associação La Raya / A Raia difundia-se
a utopia de um novo conceito de “nação raiana” quase na linha de Benedict Anderson;
a raia era entendida como “uma comunidade política imaginada – e que é imagina-
da ao mesmo tempo como intrinsecamente limitada e soberana”, “limitada” pelas suas
fronteiras com outras nações, imaginada como “soberana” e imaginada como uma
“comunidade”, de sonhos fraternos” (Anderson 2005: 27). Mas como indicou Marshall
Sahlins as nações, como outras formas de “comunidade”, não são apenas construções
simbólicas assentes num sentimento partilhado de pertença, as comunidades obtêm as
suas identidades a partir da alteridade confirmada na fronteira que se desenha entre
“o nós” e “os outros” (Sahlins 1996: 301). La Raya / A Raia, no contexto das políticas
de integração europeia, baseava-se, essencialmente, na procura de uma solidariedade
comum dos cidadãos do território. As experiências transfronteiriças e transnacionais
eram “laboratórios” sociais para a nova identidade pós-nacional europeia. As fronteiras
neste processo não eram geográficas, mas psicológicas e culturais, isto é, fronteiras de
identidade. As visões etnocêntricas atenuaram-se e abriram-se a uma visão europeia,
centrada num mundo que integrava e incluía a própria identidade nacional. A La Raya/
/A Raia confirmava a diversidade raiana numa Europa dita “sem fronteiras”.
Na cronologia da história da cooperação transfronteiriça contemporânea da Raia
Central ibérica destaca-se a data 3 de Junho de 1994. Em Alcântara, vila de pontes e
de fronteiras ancestrais, assinou-se um protocolo de colaboração entre as duas adminis-
trações nacionais, a Comissão de Coordenação da Região Centro (CCRC) e a Junta da
Extremadura. O texto do protocolo, assinado simbolicamente pelos dois responsáveis
políticos na Ponte de Alcântara, previa um amplo leque de ações a desenvolver entre as
duas administrações através da elaboração de projetos comuns que contemplariam os
transportes e comunicações, o ambiente, o turismo, o património, o comércio, a indús-
tria, a agricultura, o aproveitamento florestal, a educação e a formação profissional, a
cultura e desportos, entre outros.
O presidente da Comissão de Coordenação da Região Centro, Viegas Abreu, decla-
rava ao Jornal do Fundão que o processo de aproximação e de esbatimento da fronteira
era “um desafio novo de que as duas regiões têm de sair vencedoras, contribuindo para
o funcionamento eficaz do mercado interno, incentivando a livre circulação de pes-
soas, de mercadorias e de recursos financeiros”, considerando ainda tratar-se “de uma
tarefa da nossa geração que exige aprofundamentos e aperfeiçoamentos a realizar pelas
gerações seguintes, com base num melhor conhecimento recíproco sobre as realidades
e potencialidades das duas regiões, no respeito pela identidade de cada uma delas na
valorização das nossas raízes comuns e na afirmação dos nossos interesses convergentes”.
177 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
O presidente da CCRC assumia que a raia era vítima de “atrasos estruturais resultantes
da posição periférica (…) território que alguns autores consideram como fronteira de
subdesenvolvimento”. Um subdesenvolvimento periférico assumido pelo presidente da
Região da Extremadura e que era urgente diluir, prevendo: “Os problemas que nos afec-
tam falam de uma grave situação. As nossas comarcas – desfavorecidas, agrárias e perifé-
ricas – possuem recursos naturais e culturais para continuar a construir o futuro. (…) Os
vinte e nove municípios espanhóis da Serra de Gata e de Alcântara confiam na continui-
dade das iniciativas e programas autonómicos e europeus que, como o Leader II, contri-
buam para o desenvolvimento destas comarcas rurais da Comunidade da Extremadura”.
“A cooperação há-de impor-se à insularidade”, sublinhava Juan Carlos Rodríguez Ibarra.
E para o presidente da Extremadura “No desenvolvimento, não cabe a indiferença do
que permanece quieto na margem, sem atravessar o rio e sem navegar por suas águas”.
Apesar de se considerar imprescindível, o papel das autarquias na concretização dos
projetos e os seus responsáveis não participariam nas comissões técnicas criadas pelo
protocolo de cooperação. Apenas eram “ouvidos” e estavam representados pelos téc-
nicos municipais ou enquadrados nos quadros das associações de desenvolvimento. A
primeira reunião técnica teve lugar logo no próprio dia em que o protocolo foi assinado.
Nas Termas de Monfortinho, localidade ligada, por fim, pela recente ponte, à raia espa-
nhola, técnicos portugueses e espanhóis começaram a definir as áreas e os objetivos de
intervenção após a tradicional comensalidade luso-espanhola oficial.
Ao mesmo tempo que a La Raya / A Raia afirmava o seu projeto, as práticas de
cooperação transfronteiriça eram, do lado português, partilhadas por outras organizações
que tinham por base de trabalho perspetivas mais localistas. Tal foi o caso da Egitânia
(Associação de Desenvolvimento das Terras da Idanha) cujo raio se limitava ao concelho
de Idanha-a-Nova ou a associação de desenvolvimento Amato Lusitano que vinculará o ide-
ário transfronteiriço à cidade de Castelo Branco. A Amato Lusitano intensificará o interesse
dos públicos urbanos pela redescoberta da raia e esteve na base da organização do “Raia
sem fronteiras – RSF – Festival de Cultura” que aportou até à capital regional os fluxos
culturais emitidos pelo então muito dinâmico Gabinete de Iniciativas Transfronteiriças da
Junta da Extremadura, numa parceira ímpar de geografias, expressões e sentires.
Mas, se a La Raya / A Raia aproximou territórios rurais, a fundação em fevereiro
de 1997 do Triângulo Urbano Ibérico Raiano, que recebeu o acrónimo de TRIURBIR,
ancorou às dinâmicas da cooperação que percorriam a Beira interior sul, as aspirações de
três das principais cidades da Raia: Cáceres, Placência e Castelo Branco. A TRIURBIUR
desenvolverá estratégias no âmbito social, cultural, económico, política de juventude e
no turismo afirmadas em projetos comuns a estes centros urbanos e traduzindo vontades
politico-empresariais. Dez anos mais tarde, a cidade de Portalegre entraria para a orga-
178 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de Nossa Senhora do Almurtão, no coração das Campanhas das Idanhas, o rogo ritmado
ao som dos adufes “Não queirais ser castelhana” convive com os altifalantes das vendas ou
no santuário fronteiriço de Nossa Senhora da Azenha, entre Monsanto e Penha Garcia,
devoção muito participada pelos raianos espanhóis de Valverde del Fresno e de Cilleros,
a feira confirma o tempo de festa e de visita aos locais sagrados da raia. A Feira Raiana
visibilizou e emblematiza os produtos endógenos, revitalizado as paisagens económicas
locais, enquadrando-as noutras escalas e apoiando um ambicionado “mercado comum
transfronteiriço” identificado pela complementaridade e circulação de produtos como ma-
teriais de construção, alfaias, gaz, gasolina, bens alimentares, eletrodomésticos, turismo,
restauração e ócio de proximidade, entre outros. Esta realidade, extinguirá em definitivo
a atávica “economia subterrânea” alicerçada em redes e fluxos centrados no contrabando.
A Feira Raiana exprimia um território que incluía todas as extremas da ruralidade e
apropriava-se da palavra “feira”, nessa época muito ligada a dinâmicas urbanas centrais. O
cartaz constituiu um meio fundamental e determinante para a divulgação da iniciativa e
do inovador rumo político do porvir da cooperação transfronteiriça das Terras das Idanhas.
O suporte levaria a novidade do acontecimento junto dos centros do poder chegando a
todos os sítios de sociabilidade quotidiana das aldeias e vilas dos territórios vizinhos. Não
houve café ou gasolineira da Raia onde não fosse afixado. O cartaz instituirá um parâme-
tro iconográfico, formal e cromático que, sem grandes alterações, se repetirá nas edições
posteriores organizadas em Idanha-a-Nova.
aproximação entre os dois países. No último plano, delineou-se um sol quiçá assinalando
9
Um quarto de século volvido desde a primeira edição da Feira Raiana a imagem utilizada no cartaz,
apesar de nuances, mantém um padrão similar reproduzindo os sinais que de imediato se associam ao
território, onde se incluem, entre outros, o pastor e a pastorícia, o celho, a paisagem de largos horizon-
tes, a casa, o campanário da igreja. Reagindo aos sinais dos tempos, o conteúdo da respetiva mensagem
regista mudanças mais significativas: o lema inicial “desenvolvimento rural e cooperação transfrontei-
riça” passou a ter conotações com patrimónios, produtos da terra, etc.. Este apontamento lembra-nos
campanhas anteriores, mais marcadamente ideológicas, cuja iconografia se colou a certos lugares do
concelho: o Concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal (1938), que contemplou Monsanto com
o seu galo de prata, ou a promoção turística das Termas de Monfortinho. Além da campanha de desen-
volvimento do turismo interior promovida pelas Aldeias Históricas de Portugal, envolvendo as aldeias
de Monsanto e Idanha-a-Velha.
o horizonte fronteiriço das terras das Idanhas: a raia de Espanha, a Este, onde todas as
manhãs irrompe a luz do dia. Este pastoralismo icónico poderá ser também relacionado
com a estratigrafia mnemónica das ancestrais Campanhas da Idanha e as invernadas dos
pastores da Serra da Estrela perduravam nos pastos verdejantes desenhados no cartaz, base
de um produto “marca” da imagem da nova ruralidade local: o queijo. Aliás, não terá sido
um acaso que a inauguração da cooperativa de queijos de Idanha-a-Nova coincidiu e foi
enquadrada no programa da primeira Feira.
A confirmação transfronteiriça do projeto ferial viria a ser uma realidade, em
Setembro de 1996, com a realização da III ª Feira Raiana em Cória. No cartaz, dois
monumentos da vetusta cidade da raia espanhola, a catedral e a ponte romana, que une
as margens do rio Alagão, enquadram em primeiro plano, um casal vestido com os trajes
típicos da comarca, onde sobressai o colorido lenço da figura feminina. Uma árvore sa-
lienta-se de campos parcelados pintados de distintas cromias. No centro da composição
ressalta um mapa do espaço gerido pela associação La Raya / A Raia. Pela segunda vez (a
primeira havia sido no cartaz da II edição em Idanha-a-Nova), e num suporte destinado
a um público alargado, expressava-se a cartografia da utopia político-territorial raiana
anulando-se qualquer representação da antiga linha da fronteira separadora. No cartaz
sobressai o símbolo da associação – a ponte – que com todos os seus significados uniria
as margens que a história dividira.
Em entrevista, o alcalde de Cória, atestava esses novos ventos de fraternidade ibérica
que, através da concretização da Feira Raiana, sopravam na velha fronteira, e afirmava: “La
cooperación transfronteriza es un concepto que no debe tomarse como una utopía sino
como una forma de apostar por el desarrollo del norte de la región, una forma de colabo-
ración empresarial y también ciudadana, porque los vecinos de estas cinco comarcas deben
asumir como suya esa idea que surgió en la mente de los políticos y que no debe quedarse
solamente en los cuatro días de la feria, sino en el trabajo diario y el devenir de cada ciudad
y cada Pueblo”. No mesmo suporte, uma das várias revistas, nem sempre bilingues, nessa
época surgidas em âmbitos académicos, empresariais ou turísticos, que confirmavam o
182 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
formais cumprimentos e realce de boa amizade que une os nossos países, pediu para que a
Aduana estivesse aberta todo o dia, a construção da ponte sobre o Erges em Monfortinho e
que fosse eliminada a fronteira entre Portugal e Espanha, o que favorecia extraordinariamente
o comércio e turismo, nesta zona. Sobre esta última pretensão, de seguida reproduzo parte do
seu discurso que considerei muito interessante: “Portugal, pelas suas características físicas vem
a ser uma continuação de Espanha, como provam seus rios e cordilheiras entre estas nações
“hermanas” não deviam existir fronteiras, como aconteceu em tempos passados, durante o
reinado de Filipe II que foi reconhecido soberano de Portugal nas Cortes de Tomar em 1581,
formou a unidade peninsular durante 70 anos e também porque ambas as nações tiveram
os mesmos destinos, tradições marinheiras que descobriram novos mundos ao mundo. (…)
Prometeu interessar-se, com o melhor do seu esforço na concretização da construção da
ponte sobre o Erges e todas as pontes que fossem necessárias para melhor unir as duas nações
vizinhas. Após as suas palavras ergueu a sua taça num brinde por Portugal e Espanha”.
A Feira Raiana se, por um lado veio afirmar uma cartografia de cooperação que anulou a
linha de fronteira, expressando vontades e desígnios das distintas administrações técnico-po-
líticas responsáveis pela gestão das comarcas espanholas e do concelho de Idanha-a-Nova, por
outro afirmou uma área de atuação periférica relativamente aos principais objetivos estratégi-
cos do Gabinete de Iniciativas Transfronteiriças, sediado em Mérida. A V Edição realizou-se,
em 1998, na vila de Moraleja e contou com a presença do presidente da Extremadura Juan
Carlos Rodrigues Ibarra. O transfronteiriço era o modismo prevalecente nas comunidades,
suportado na descoberta do “outro” e no esgotamento das áreas de cooperação. Começam-
se a definir dois eixos de coadjuvação de densidade económica muito diferenciada entre as
administrações centrais-regionais, responsáveis pela definição dos ritmos e dos investimentos
e utilização dos fundos comunitários: um entre a Província de Cáceres e a Região Centro de
Portugal e o outro entre Mérida-Badajoz e a região do Alentejo.
A veemência da “redescoberta do vizinho”, o investimento de fundos que promoves-
sem os contactos económicos e culturais entre as duas regiões periféricas traduziu-se, por
exemplo, na realização de várias feiras, mais urbanas é certo, mas onde a enunciada coo-
peração transfronteiriça constituía sempre o grande objetivo a ser cumprido. Entretanto,
com a aproximação temporal da Expo 98 de Lisboa, o turismo começa a ser introduzido
como um dos temas centrais do conjunto ferial raiano. A ponte era agora não para o vizi-
nho próximo, mas até Lisboa em direção a essa grande reunião mundial da união de todas
as geografias do Mundo e onde a raia assumia o seu papel como um território ponte entre
o interior peninsular e o mar. Esta antiga relação entre a raia e pontos políticos centrais,
nomeadamente capitais, fundamentou o que podemos classificar como o “síndrome da
estrada ausente” ou da “ponte desejada”, sentimentos que continuaram a fazer parte das
reivindicações aos poderes centrais na tentativa de obter uma aproximação da periferia ao
184 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
admirado centro. A Raia não foi palco de um complexo de édipo territorial, o filho perifé-
rico queria voltar a ser dominado pelo pai. A ponte/estrada, simultaneamente metáfora e
materialidade sonhadas, será imperante em todos os discursos.
A ponte do emblema fundacional da associação La Raya / A Raia investiu-se de dife-
rentes significantes aportando a outras geografias. O simbolismo da ponte, como aquilo
que permite passar de uma margem para a outra, passagem da terra para o céu, do estado
humano para os estados supra-humanos, do mundo sensível para o mundo suprassensível
como se define em qualquer dicionário de símbolos transformou-se num objeto de esco-
lha. Como afirmam, no seu Dicionários dos símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant
“A ponte coloca o homem numa via estreita, onde inexoravelmente encontra a obrigação
de escolher. E a sua escolha condena-o ou salva-o”, tal foi o caso da La Raya / A Raia.
A VI edição da Feira, em 1999, decorreu em Alcântara e a VIII, em 2001, em Valência
de Alcântara, vila do sul junto à raia alentejana. O cartaz dessa edição continuou a tendência
comunicacional original ao apresentar elementos estereotipados da cultura material e folclórica
local representada por um tamborileiro, e elementos do património construído. A represen-
tação de uma anta aludia ao extraordinário património arqueológico megalítico pré-histórico
da comarca e as telhas evocaram a tradição do ancestral fabrico de olaria tradicional nesta
comunidade. Depois de duas edições em Idanha-a-Nova em 2000 e 2002, a itinerância da
Feira Raiana prosseguiu em 2003 na comarca de Las Hurdes, localização mais afastada da
linha de fronteira. Em 2003, a X edição teve a particularidade de decorrer em diversas aldeias
da Mancomunidad de las Hurdes. Com o tema “A raia/ la raya caminhos de culturas” foi
uma organização da ADICHURDES e teve como principal objetivo “romper com el “mito”
de Las Hurdes de Buñuel y mostrar la realidade de la comarca”. As atividades do certame
decorreram de uma maneira integrada em várias localidades numa pioneira atitude de des-
centralização das temáticas do programa ferial. Assim, durante esses dias, a Feira Raiana foi
eixo de união de várias aldeias como Ladrillar, Nuñomoral, Pinofranqueado, Caminomorisco,
Casares de Las Hurdes e Casar de Palomero. O cartaz, com um design inovador, não se-
guiu a tendência folclorizante apresentando como símbolos expressões gráficas datadas
da pré-história localizadas no território de las Hurdes, prova da sua ancestralidade cultural.
Em 2004, a Feira regressa a Idanha-a-Nova para, em 2005, ser acolhida em
Montehermoso, municipio do Valle del Alagón, pequeno centro agrícola que rondava
os 5.300 habitantes, “con 2.272 hectáreas de cultivo de regadío, así como explotaciones
ganaderas. También cuenta con numerosas empresas del sector de la construcción y un
polígono para 80 empresas”, como se lia num folheto publicitário. A Feira Raiana ex-
punha outras realidades do mundo rural raiano expressando a pluralidade de paisagens
que contrariavam a ideia preconcebida da ruralidade como horizontes de longa duração
estagnados. A partir de 2008, a associação La Raya / A Raia transformaria os seus objeti-
185 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
vos primordiais apostando numa ação mais funcionalista. A própria feira não se realizou
em 2007 e em 2008 e discutia-se o seu modelo de circulação pelo espaço raiano comum.
Propôs-se mesmo uma alteração da denominação da feira que assumiria a designação de
“jornadas de cooperación internacional o encuentros hispanolusos” porque “aunque la
filosofía se mantiene, la feria necesitaba cambios y nuevas propuestas”. Mas a feira deixou
de se efetivar em território espanhol.
A Feira vai constituir uma nova geografia e o mapa inicial da associação La Raya / A Raia
diluiu-se assim como os temas também foram variando com a introdução de novos motivos.
A edição de 2006 teve como tema central o “Património”. No cartaz desenha-se a típica casa
de adobe do Ladoeiro e o sol é vermelho. No programa, a palavra “festival” começou a fazer
parte do jargão ferial, no caso: “Festival do Borrego” e “Festival da Melancia”.
A XIV edição, em 2009, decorreu em Idanha-a-Nova e foi dedicada ao tema “Turismo
de Natureza”. A Feira Raiana é projetada como “o evento maior na região e uma referência
histórica no contexto das feiras de atividades económicas e da cooperação transfronteiriça”.
A iniciativa congregava, como se noticiou, “um conjunto de eventos temáticos que lhe tra-
zem uma dimensão verdadeiramente global: a VIII Conferência Europeia de Geoparques,
já considerada a mais participada de sempre com 100 apresentações de todo o Mundo, a
II Feira Internacional de Geoparques e o IFIF – Festival de Cinema de Documentário e
Internet, iniciativas com reflexo à escala mundial, que se associam a este momento particu-
larmente importante na nossa região, para debater o papel e a importância do património
natural e histórico-cultural, onde Idanha-a-Nova, na medida em que integra o Geopark
Naturtejo da Meseta Meridional, assume especial destaque”. O cartaz da edição acrescen-
tou à linha tradicional de motivos utilizados desde sempre, uma figura antropomórfica,
representação hipotética de um turista da natureza utilizador dos circuitos pedestres então
definidos no território raiano. Contempla o voo dos abutres do Tejo Internacional, rio que
também faz parte da composição afirmando uma idealizada cor azul. Mas, a informação
é dominada pelo “eventismo” produzido ao redor do património geológico do concelho
que se firmará nessa altura como um dos principais valores distintivos da sua identidade.
Em 2012, produto de uma persistente operação de diplomacia de proximidade entre
o presidente da Câmara de Idanha-a-Nova e o alcalde de Moraleja, a Feira Raiana voltou
a efetuar-se em Espanha. Cumpria-se a XVI edição. Contudo, o mapa da utopia identitá-
ria que havia delimitado os ritmos da cooperação no território operativo e simbólico da
associação La Raya / A Raia, organização então desvanecida nos seus sonhos e vontades
fundacionais, tinha-se diluído. Os tempos da cooperação eram outros e, com a diminuição
da capacidde económica europeia destinada à cooperação transfronteireiça, muitos dos
antigos dinâmicos actores funcionalizaram ou migraram para outros territórios e adminis-
trações. Moraleja arrogará, de novo, o quebrar a linha da fronteira entre a Extremadura
186 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
e a Beira Baixa como uma razão justificante da organização ferial. A próspera vila raiana
centralizará e municipalizará a Feira unindo-se a outras redes e poderes. O cartaz expressa
essas alterações, o design atualiza-se evitando referencias identitárias mais tradicionais,
plasmando uma linguagem mais comtemporânea e menos figurativa.
O campo do cartaz é ocupando por uma fotografia de especiarias, como o pimentão
em pó, de vivas cromias. Na programação, a emergência das “novas cozinhas” associadas aos
clássicos “produtos locais” são motivos inovadores mas que encobrem a cozinha tradicional
das localidades em favor do chef mediático. Um jornal de Cáceres aguçava o apetite anun-
ciando que a Feira Raiana, em Moraleja, queria “dar a conocer la riqueza agroalimentaria de
Cáceres y de los vecinos de La Raya, como se conoce la frontera con Portugal, las delicatessen
de la provincia que se pondrán sobre la mesa”. Contudo, as ritualidades de comensalidade
encontravam-se, desde sempre, ligadas aos encontros fronteiriços tradicionais. Por exemplo,
em muitas terras da raia luso-espanhola, o cerimonial, codificado e que continua ativo
em muitas povoações raianas, da comprovação da linha de fronteira advinda do Tratado de
Limites oitocentista, termina com um fraternal almoço de comunhão.
Retomando-se o acordo de alternância, propósito que tinha ficado definido desde a edição
de 1996 entre todos os elementos da associação La Raya / A Raia e respetivos poderes políticos,
Moraleja marca e exprime o território do “outro” repetindo, afinal, aquilo que a autarquia liderada
por Joaquim Morão tinha concretizado anos antes em Idanha-a-Nova: polarizar e capitalizar a
iniciativa garantindo, através da construção de toda uma infraestrutura fixa, a sua continuida-
de e afirmação nos contextos políticos comarcais e regionais. Com efeito, a Feira Raiana revela
hoje uma cartografia de cooperação pendular entre duas “centralidades” municipais, colocando
em contraste realidades económicas e sociais da raia ibérica contemporânea muito diferencia-
das. Moraleja registava, em 2019, 6.750 habitantes, 68 dos quais portugueses. Em 2013, re-
sidiam na vila de Idanha-Nova e na anexada antiga freguesia de Alcafozes, 2.352 habitantes.
Para os raianos espanhóis Moraleja é a porta de entrada para a serra de Gata, oro-
grafia fronteiriça ibérica de saliente espessura cultural, onde opera uma oferta turística
enraizada na identidade das comunidades e no ambiente, ao contrário da realidade turís-
tica de Monfortinho, de recorte empresarial convencional, associada ao termalismo e ao
turismo cinegético. Na avenida de Moraleja, uma placa indica o caminho para Portugal
que dista 34 quilómetros. Passados alguns quilómetros, a estrada bifurca-se em direção à
antiga fronteira de Segura, passando por Zarza la Mayor. A outra estrada percorre cam-
pos distantes e vazios de gentes até ao encontro do horizonte das portuguesas termas de
Monfortinho, vencendo uma fronteira que continua pouco ativa. No contexto regional
da Extremadura e da raia portuguesa, a Feira reforça a imagem identitária de Moraleja
atestando a sua expansão comercial e industrial assumindo um cenário privilegiado para a
perceção dos ritmos que formam o viver quotidiano raiano.
187 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
10
Eduardo Lourenço (1999) – A nau de Ícaro. Lisboa, Gradica, pp.: 62.
do mundo as linhas fronteiriças mais materiais ou imateriais determinam víveres e mobili-
dades espaciais. Depois de Schengen e da fronteira na Europa ser palavra já esquecida, que
perdurava em memórias, voltou a ter horários e controlo de passagem. A 16 de Março de
2020, os governos de Portugal e de Espanha comprometeram-se “a cooperar com o objetivo
de combater a pandemia de Covid-19, através da gestão do tráfego transfronteiriço entre
os dois países, através de um conjunto de medidas excecionais e de partilha da informação
relevante relativa à situação epidemiológica da Covid-19 nos respetivos países, em particular
nas regiões transfronteiriças.” As zonas de passagem foram fechadas e sua permeabilidade de
novo vigiada. E assistimos a variadas as reações das comunidades à reativação das ancestrais
geografias da sobrevivência e das complementaridades num regresso aos velhos e esquecidos
trilhos do contrabando. O jornal Expresso anunciava, em Maio de 2020, que a “Pandemia
reativa rotas do contrabando” e que “a Reportagem sobre a vida na fronteira” as povoações
da raia não gostam de fronteiras fechadas. A proibição da passagem imposta pela covid-19
pôs novamente a uso os caminhos do contrabando, com os portugueses a ir a salto a Espanha
comprar bilhas de gás e trabalhar informalmente nos campos agrícolas.”
O confinamento obrigou a um regresso à primeira fronteira do Homem – o corpo, incu-
tindo-lhe objetos fronteiriços e condicionando o cruzamento continuado das fronteiras dos
quotidianos. Hoje, nas geografias da pandemia, a fronteira volta a vincar-se na consciência
do coletivo como uma barreira que separa do “outro” provocando uma sensação indelével e
estranha de segurança como se o problema estivesse apenas do lado de lá da linha imaginária.
Já não se erguem castelos pétreos mas emergem, de novo, as muralhas mentais. O inimigo
“imaterial” não é o nuclear da anunciada raia apocalíptica. O inimigo temido foi reinventado
confirmando Umberto Eco: “Parece que não se pode passar sem o inimigo”. Com efeito,
as fronteiras nunca se extinguem, perduram. A fronteira luso-espanhola sempre lá esteve e
continuará a erigir um portal linear dual com o “outro”, qual ponte invisível de temores ou
de renovados sonhos soprados por Janus, confirmando que somos sempre a soma de muitas
e perpétuas fronteiras: “Fronteras, en fin, de todas clases: geográficas, históricas, biológicas,
sociales, psicológicas...Todas partiendo y acuchillando el continuo multidimensional que
191 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
nos envuelve, para facilitarnos nuestra instalación en él, para permitirnos una interpretación
de lo que sería un caos; es decir, un orden que no comprendemos. Todas permitiendo dife-
renciar, pero sin que puedan confundirse con los limites“ como escreveu José Luís Sanpedro.
Concluindo, contudo, que: “El fronterizo es sustancialmente ambivalente – es decir, instala-
do en ambos lados de la divisoria, aun cuando no en igual medida— y es también ambiguo,
porque oscila entre ambas identidades: la originaria y la tentadora”11.
A fronteira é sempre raiz, sonho e tentação.
11
José Luis Sampedro (1991) – Desde la frontera. Real Academia Española, Madrid.
Bibliografia
Fronteira. Enquadramento
BOURDIEU, Pierre (1989) – O poder simbólico. Difel, Lisboa. Cap. V: A identidade e a represen-
tação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região. Pp: 113-115.
CMCB (2002) – Fronteiras, espelhos do mundo. Câmara Municipal de Castelo Branco.
Conseil de L’Europe – CPPLRE (1994) – 5ª Conférence européenne des régions frontallières
(1991). Strasbourg. Conseil de l’Europe.
ELIADE, Mircea (1948 [2006]) – O sagrado e o profano. A essência das religiões. Livros do
Brasil, Lisboa.
FREMONT, Armand (1980 [1976]) – A região, espaço vivido. Livraria Almedina, Coimbra.
GUICHONNET, P. e RAFFESTIN, C. (1974) – Géographie des frontières. Paris, PUF.
HAESBAERT, Rogério (1999) – Identidades territoriais. In Zeny Rosendahl; Roberto Lobato
Correia, Manifestações da Cultura no espaço. Ed. UERJ, Rio de Janeiro
HUBERT, Henry y MAUSS, Marcel (1968) – Lo sagrado y lo profano: Las funciones sociales de lo
sagrado, Barcelona, Barral Editores.
RAFFSTIN, Claude (1993) – Autour de la fonction sociale de la frontière. Espaces et Societés, n°
70/71. pp. 157-164.
TUAN, Yi-Fu (1974; 1980) – Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio am-
biente. São Paulo: Difel.
Fronteira; Castelos
ALARCÃO, Jorge de (2013) – A Beira Baixa: Terra tomada sem guerra. Centro de Estudos
Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto.
AMANTE, Maria de Fátima Calça (2007) – Fronteira e identidade: construção e representação
identitárias na raia luso-espanhola. Lisboa, ISCSP.
Annexos ao Tratado de Limites celebrado entre Portugal e Hespanha aos 29 de Setembro de 1864
e Instrucções pelas quaes têem de regular-se os commissarios de um e outro paiz encarrega-
dos da demarcação definitiva da fronteira. 1867. Lisboa, INCM
ARMAS, Duarte de (1990) – Livro das Fortalezas (Duarte de Armas, 1510). Fac-simile do Ms.
159 da Casa Forte do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Introdução de Manuel da Silva
192 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Contrabando
AMANTE, Fátima (2007) – Do contrabando à geminação: Fóios e Eljas no reatar da relação
social. AAVV. Jornadas do Contrabando: Actas. Sabugal, Sabugal, pp.47-56.
CABANAS, António (2006) – Carregos. Contrabando na Raia Central. Arte Mágica.
FONSECA, Inês; ROVISCO, Eduarda; FREIRE, (coord.) (2009) – Contrabando na Fronteira
Luso-Espanhola. Lisboa, Nelson de Matos.
MELÓN JIMÉNEZ, M.A. (1999) – Hacienda, comercio y contrabando en la frontera de Portugal
(siglos XV-XVIII). Cáceres: Cicon ediciones.
ROVISCO, Eduarda (2009) – La empresa más grande que tenía el gobierno português y español
era el contrabando. Práticas e discursos sobre contrabando na raia do concelho de Idanha-a-
Nova. In FONSECA, Inês; ROVISCO, Eduarda; FREIRE, (coord.) (2009) – Contrabando na
Fronteira Luso-Espanhola. Lisboa, Nelson de Matos, pp. 89-129.
ROVISCO, Eduarda (2013) – Não queiras ser castelhana: fronteira e contrabando na Raia da Beira
Baixa. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian: Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Idanha
ALMEIDA, Fernando de (1956) – Egitânia, História e Arqueologia. Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, Lisboa.
ANDRADE, Mário Marques de (1988 [1949]) – Subsídios para a Monografia de Segura: Aldeia
Raiana das Mais Pitorescas. Edição de autor.
BARGÃO, José Dias (1999 [1945]) – Monografia de Salvaterra do Extremo. (Lisboa, Astória limi-
tada). Câmara Municipal de Idanha-a-Nova.
BARRETO, António Pedrosa (1950) – Memorial ou História dos Banhos da Fonte Santa de
Monfortinho. Porto, Tipografia Sequeira.
BOURA, Isabel (Coord.) (2002) – Aldeias Históricas de Portugal. Um património com Futuro.
Coimbra, Comissão de Coordenação da Região Centro.
BOURA, Isabel (2004) – Património e mobilização das comunidades locais: das Aldeias Históricas
de Portugal aos Contratos de Aldeia. Cadernos de Geografia, Nº 21-23 [2002-2004], Coimbra
FLUC, pp: 115-126.
BRITO, Joaquim Pais de (1982) – O Estado Novo e a aldeia mais portuguesa de Portugal”. A.
Costa Pinto et al (orgs). O Fascismo em Portugal: Actas do colóquio realizado na Faculdade de
Letras de Lisboa em Março de 1980. Lisboa, A Regra do Jogo, pp. 511-532.
BUESCO, M. Leonor (1961) – Monsanto. Etnografia e linguagem. Lisboa, Centro de Estudos Filológicos.
DIAS, Jaime Lopes (1933) – Aspirações de Idanha-a-Nova. A barragem do Ponsul. Famalicão,
Tipografia Minerva.
DIAS, Jaime Lopes (1932) – Sobre alguns problemas e aspirações regionais. V Congresso Beirão –
Memorial. Lisboa, Livraria Ferrin.
DIAS, Jaime Lopes (1945) – O problema da terra e dos que a cultivam. Conferência realizada no
salão de festas de A Voz do Operário na noite de 18 de Abril de 1945. Edição do autor.
195 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
AAVV. (1999) – Diálogos Raianos. Ensaios sobre a Beira Interior. Edições Colibri. Lisboa.
BERMEJO, Jose M.; SALVADO, Pedro; MORENO, Jose C. (s/d). La Raya/ A Raia Luso-Cacereña.
BERMEJO, Jose; M., SALVADO, Pedro; MATEUS, António; LONGO, Paulo (1998) – A Raia
La Raya Luso-Cacereña. Roteiro Turístico / Guía Turístico.
CABERO DIÉGUEZ, Valentín (2003) – Iberismo e Cooperação: Passado e Futuro da Península
Ibérica. Coleção Iberografias Nº 1, Guarda, CEI.
CAVACO, Carminda (coord.; 1995). As regiões de fronteira: inovação e desenvolvimento na perspectiva
do Mercado Único Europeu. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.
ESPINA BARRIO, Angel B. (2001) – Antropologia en Castilla y León e Iberoamérica. III.
Fronteras, Salamanca: Instituto de Investigaciones Antropológicas de Castilla y León.
Gabinete De Iniciativas Transfronteiriças (1985) – Portugal en la prensa regional extremeña. Revista
de Prensa. (Mayo de 1985 – Diciembre de 1995). Junta de Extremadura.
Gabinete De Iniciativas Transfronteiriças (1996) – Portugal en la prensa regional extremeña. Revista
de Prensa. (Enero de 1996 – Octubre de 1997). Junta de Extremadura.
JACINTO, Rui (1993) – O desenvolvimento urbano das áreas de fronteira: estrangulamentos e
perspectivas face a novas centralidades. Lisboa, MPAT.
JACINTO, Rui (1995) – As regiões portuguesas de fronteira: perspetivas de desenvolvimento e de
cooperação transfronteiriça. Cadernos de Geografia, Vol. Nº 14, pp: 37-54.
JACINTO, Rui Jacinto; BENTO, Virgilio (coord.; 2006) – O interior raiano do Centro de
Portugal – Outras fronteiras, novos intercâmbios. Coleção Iberografias Nº 8, Guarda, CEI.
MAP-MOP (1977) – Aproveitamento Hidro-agricola da Cova da Beira – aspetos técnicos econó-
mico-sociais, Outubro de 1977. Grupo de Trabalho para a Cova da Beira, MAP-MOP.
MEDINA GARCÍA, E. (2011) – La Cooperación Transfronteriza entre el Noroeste de Extremadura
(España) y la Beira Interior Sul (Portugal): una aproximación desde la perspectiva cualitativa
(2ª parte). Almenara. Revista Extremeña de Ciencias Sociales, 3, pp. 32-70.
OLIVEIRA, César (1995) – Cem anos nas relações Luso-espanholas. Política e Economia. Lisboa,
Edições Cosmos.
PINTADO, Antonio; BARRENECHEA, Eduardo (1972) – La raya de Portugal. La frontera
del subdesarrollo. Cuadernos para el Diálogo, Madrid. Edição portuguesa: (1974). A raia de
Portugal. A fronteira do subdesenvolvimento. Porto, Afrontamento.
Presidência da República (Debates (1997) – Perspectivas de desenvolvimento do Interior. Colóquio
promovido pelo Presidente da República durante a Jornada da Interioridade (Idanha-a-Nova,
13.06.1997). Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
REIGADO, F. Marques; MATOS, António J. F. de (1998) – Actas do seminário Beira Interior
como região de fronteira: actualidade e perspectiva. Covilhã, UBI.
REIGADO, F. Marques (1993) – A fronteira Luso-Extremanha face ao mercado único europeu.
Desenvolvimento transfronteiriço: o caso particular da Raia Central (Portugal) e de Cáceres
e Salamanca (Espanha). In El Desarrollo Regional de Extremadura. Cámara de Comercio e
Industria de Cáceres, pp. 281-298.
REIGADO, F. Marques (1996) – Raia central e desenvolvimento transfronteiriço. Raya / Raia:
Revista Hispano Portuguesa de desarrollo transfronterizo 0, pp. 112-130. 197 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
REIS, Alda; LOPES, Mota (1983) – Estudo de abertura de novas fronteiras na Região Centro.
Coimbra, CCRC, MAI, policopiado.
cabo verde: o Mar (azul)
fronteira (líquida) da insularidade
Quando o navegador Gil Eanes dobrou o Cabo Bojador em 1434 e navegou no que se pen-
sava ser o mar tenebroso, a barca atravessa ainda uma longa costa que margina o poente do deserto
do Sahara, com uma prolongada vista de terras áridas1. Essa aventura abre precedente a novas in-
cursões que chegam às proximidades do Rio Senegal, onde surge a presença de uma comunidade
de etíopes hespérios2, troféu que levam ao Infante Don Henrique para demonstrar que tinham
ultrapassado os limites dos mares habitualmente navegados, próximos do mediterrâneo.
“…diz-se que existe também outra ilha frente ao monte Atlas, denominada
199 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Atlântide (…). Desde esta ilha, a cinco dias de navegação costeira, se encontram umas
paragens desabitadas junto aos etíopes hespérios e o cabo que denominamos Hesperu
Ceras, a partir de este ponto, a linha da costa gira pela primeira vez para o ocaso e para
o mar Atlântico3. Contam que, em frente de este cabo, estão as ilhas Górgades, morada
em outro tempo das Górgonas a uma distância de terra firme, segundo Jenofonte de
Lámpsaco, de dois dias de navegação” (Plínio-Livro VI Capítulo 31).
1
Gomes Eanes de Zurara – Crónicas do Descobrimento de Conquista da Guiné
2
Homens de pele escura, isto é, negros.
3
Ou seja, a terra entra ao poente para o mar atlântico.
As enciclopédias clássicas, nomeadamente de Plínio o Velho, descreviam o percurso
do Atlântico próximo do Mediterrâneo, entre as lendas e os relatos de marinheiros anti-
gos. Posterior a Gil Eanes, outros marinheiros desbravam os mares da costa ocidental da
África. Atribui-se a Vicente Dias a chegada ao primeiro “Cabo” de vegetação abundante,
após longa travessia da costa desértica do Sahara e do litoral árido e semiárido do Sahel
ocidental. O contraste de vegetação convida os marinheiros a denominarem de “Verde” o
promontório extremo poente, que passou a ser o cabo Verde, ou “promontorium viridis”.
A localização deste cabo coincidia com o Promontório das Hespérides (Hesperu cerus)4,
espaço lendário descrito por Plínio o Velho.
Recorde-se que o uso de “Cabos” como marco de referência na expansão marítima
aparece na primeira fase da expansão portuguesa, porque o domínio da navegação astro-
nómica vai ter como referências as coordenadas do astrolábio. A descoberta de ilhas por
volta de 1460, ao poente do “promontorium viridis”, coincide com o espaço lendário onde
as “Hespérides”, no extremo poente do mundo vigiavam o jardim dos deuses onde cresciam
maçãs de ouro, ilhas também vizinhas das monstruosas Górgones5.
Plínio descreve com alguma precisão as ilhas Afortunadas, hoje correspondente às
Canárias, mas reconhece “todos os dados acerca disto são tão incertos, que Estácio Seboso
afirmou que, fazendo navegação costeira, desde as ilhas das Górgonas até às Hespérides,
navegando frente ao Atlas, o trajeto é de quarenta dias e de estas até ao Hesperu Ceras é
de um dia” sobre a localização das Górgonas e das Hespérides, admite que as Hespérides
estariam a um dia de navegação do Hesperu Ceras.
É baseada no texto de Plínio que o geógrafo português dos finais do seculo XV, Duarte
Pacheco Pereira (1460-1533), aceita a tese das ilhas serem já conhecidas pelos marinheiros
antigos. As ilhas de Cabo Verde seriam a fronteira sul da Macaronésia, limite extremo do
espaço lendário da Mitologia Greco-Romana.
“ Pois já temos escrito do cabo Verde, e como se antigamente chamou Aspérido promon-
tório, assim devemos escrever das ilhas que cem léguas em mar dele estão, as quais também
200 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
na antiguidade foram chamadas Aspéridas, segundo diz Plinio na Natural Historia no seu
sexto livro, capitulo trinta e um, e agora a principal delas chamamos ilha de São Tiago”6
4
Naturalis História – Livro VI capítulo 31.
5
Filhas de Fórcis e Ceto, Esteno, Euríale e Medusa, habitava o extremo ocidente não longe do reino dos
mortos vizinha da Hespérides.
6
Duarte Pacheco Pereira –Esmeraldo do situ Orbis capítulo 28.º.
Passamos o limite aonde chega
O sol, que para Norte os carros guia;
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Clímene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega
Do negro Sanagá a corrente fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se dos nossos Cabo Verde.
O povoamento das ilhas de Cabo Verde teve início num período em que Portugal
estabelecia trocas comerciais com os reinos da costa ocidental africana, denominados Rios
da Guiné. A tecnologia náutica portuguesa dava uma grande vantagem no domínio das
distâncias, mas também na navegação de alto mar, rapidamente se podia navegar sem o
apoio dos cabos costeiros. O povoamento da ilha de Santiago e o estabelecimento de uma
base administrativa e logística nas ilhas de Cabo Verde, favoreciam a Portugal vantagens
nas trocas comerciais com os Rios da Guiné, entre a foz do Senegal e o Cabo das Palmas,
espaço também denominado Rios da Guiné de Cabo Verde. Baseado em Cabo Verde,
Portugal podia manter de perto o controlo do tráfico da costa e ao mesmo tempo criar
nas ilhas uma plataforma de armazenamento e reexportação dos produtos resgatados no
continente, sem risco de ataque de reinos ribeirinhos.
André Álvares de Almada7 assinala que a maioria dos Reinos da Costa Ocidental afri-
cana eram súbditos do Império do Mali, onde residia o “César dos Negros”. O império do
Mali, como os outros impérios de interior do Sahel, consolidou o seu poderio na faixa
de transição entre a zona húmida das savanas da África Ocidental e o Deserto do Sahara.
No período que antecede a expansão ultramarina, o comércio entre a Savana africana e
o mediterrâneo fazia-se através das caravanas, que atravessavam o deserto a chegavam à
costa norte da África, nomeadamente a Ceuta e Tanger, praças comerciais que chegaram a
ser conquistadas por Portugal. Notícias sobre o império do Mali e da sua importância no
tráfico de produtos africanos, com destaque para o ouro, peles preciosas, marfim, escravos
já eram do conhecimento dos portugueses antes da expansão marítima. O comércio trans-
-sahariano era dominado por caravanas de camelos conduzidas pelas comunidades que
viviam nas margens do grande deserto. As descrições de viagens, tais como conhecidas no
século xv no mediterrâneo, estavam recheadas de lendas e seres fantásticos.
Dominando a navegação atlântica, Portugal cria na ilha de Santiago uma plataforma
administrativa e comercial de controlo de tráfico na África do Oeste e, também, de toda
a navegação entre a Europa e o Atlântico Sul e entre a África e as Américas. A localização
do arquipélago no mar largo, a 500 km da ponta de “Cabo Verde” no Senegal, ficaria longe
para as canoas africanas, na eventual incursão contra essa base lusitana, mas suficiente-
mente perto para os portugueses controlarem as praças na costa africana, considerando as
vantagens dos seus navios e os conhecimentos de navegação de alto mar. Com o tratado
202 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
7
Tratado breve dos Rios da Guiné de Cabo Verde, 1594.
ilhas de origem vulcânica, montanhosa, como dizia Duarte Pecho Pereira, “são terras altas e
fragosas, com caminhos maus de andar”. No entanto este autor ainda acrescenta: as ilhas são
estéreis porque vizinhas do tropico de Câncer chove apenas três meses ao ano”8.
O quadro de aridez e dos ciclos de seca era conhecido nos primórdios da ocupação das
ilhas e, neste aspeto, Cabo Verde diferencia-se dos outros arquipélagos da Macaronésia9, as
chuvas estão concentradas no verão, à semelhança do quadro saheliano.
Ilídio da Amaral (1926-1917) considera o arquipélago de Cabo Verde a fronteira
atlântica do Sahel, considerando a extensão da faixa de aridez continental, com ciclos de
secas e oscilação das precipitações, até ao espaço marítimo das ilhas de Cabo Verde. Assim,
o arquipélago seria o extremo oeste da zona de transição entre os climas da Savana e o
deserto do Sahara, o arquipélago onde o Sahel transvasa as terras do interior africano e se
estabelece no domínio marítimo.
A insularidade vulcânica deixou as marcas de relevos montanhosos, vales encaixados,
barrancos, picos e serras que deram origem a uma grande diversidade de nichos ecológicos,
à semelhança dos arquipélagos da Macaronésia, pelo que a flora e a fauna primitiva registam
relíquias de um paleoclima que diferencia as ilhas da costa continental próxima. No entanto,
no Holocénico recente, as plantas do Sahel marcam a presença no arquipélago, testemunho
de uma evolução climática com maior afluxo de ventos de leste nos últimos milhares de anos.
O quadro histórico do povoamento das ilhas de Cabo Verde foi num período em que
Portugal dominava o comércio da África de Oeste e os produtos africanos que navegavam
pelo deserto passaram a ser transportados através das águas do Atlântico. Os impérios
do Sahel, progressivamente, deixaram de controlar o tráfico entre a África Ocidental e a
Europa, sobretudo no Mediterrâneo.
A navegação transatlântica promoveu a troca de plantas e animais entre o Velho e o Novo
Mundo e a posição de Cabo Verde permite a chegada de plantas de todos os continentes, que
são aclimatadas ou acidentalmente introduzidas, originando uma flora e vegetação domina-
das pelas plantas introduzidas que foram assumidas no quotidiano dos homens das ilhas. 203 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
O arquipélago de Cabo Verde é formado por dez ilhas e vários ilhéus, mas no seu
conjunto as ilhas apresentam uma grande dispersão, as distâncias extremas ultrapassam
dois graus de latitude e de longitude. Comparado com o arquipélago das Canárias
(7447 km2), as ilhas de Cabo Verde (4033Km2) estão mais distantes umas das outras
e representam uma maior fragmentação territorial. O distanciamento e o número de
ilhas geram custos de gestão territorial, sobretudo pela proliferação de equipamentos
de acesso, circulação interna e diminuição de economia de escala. O povoamento do
conjunto das ilhas teve início no século xv pelas ilhas de Santiago e do Fogo, as outras
ilhas foram povoadas num processo que se prolonga pelos séculos xvi e finais do século
xviii, a ilha do Sal consolida o seu povoamento no século xix e Santa Luzia permanece
deserta.
Em contrapartida, a natureza marítima atribui ao arquipélago uma Zona Económica
Exclusiva (ZEE) estimada em 734 265 km2 por área emersa de apenas 4.033 km2, razão
pela qual os sucessivos Governos de Cabo Verde vêm tentando aproveitar as potencialida-
des do espaço marítimo e dos seus recursos para o desenvolvimento do País.
A inserção oceanográfica do País atribui ao arquipélago uma dimensão mais marítima
do que terrestre, aliás o processo do povoamento das ilhas e as funções desempenhadas nos
primórdios do povoamento integram as ilhas numa dimensão essencialmente oceânica:
plataforma administrativa e religiosa avançada na África do Oeste, escala de navegação
entre a Europa e o Atlântico Sul, entre a África e as Américas.
Em 1497, na sua primeira viagem à Índia, Vasco da Gama fez a sua escala de abasteci-
205 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
mento no Porto da Praia de Santa Maria, então parcela da Capitania de Alcatrazes, porto
que veio assumir a sede do Governo de Cabo Verde até a atualidade. Entre os séculos xvi e
finais do século xix, praticamente todas as grandes viagens de exploração dos mares do Sul
fizeram escala de abastecimento no Porto da Praia, nomeadamente corsários como Francis
Drake (1585), Jacques Cassard (1712), missões de exploração como M. Ferdinand Berthoud
(1769), James Cook (1772 e 1776), James Hingston Tukey (1816), FitzRoy e Charles Darwin
(1832). Veleiros comerciais de diversas nacionalidades, com destaque para a Companhia
da Índias, faziam escalas de navegação no arquipélago, antes da longa travessia dos mares
do Atlântico Sul.
Na primeira metade do século xx, com a navegação a vapor, estabelece-se a escala de
abastecimento na emergente Cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, mantendo a
situação privilegiada no Atlântico Médio.
Atualmente, é na perspetiva da valorização da economia Azul que Cabo Verde visa va-
lorizar a sua ZEE nos domínios da pesca e navegação. As águas territoriais de Cabo Verde
estabelecem fronteiras com a Mauritânia, com o Senegal, a Gâmbia e águas internacionais
do Atlântico Médio.
A viragem para a economia azul vai exigir uma autêntica revolução cultural em Cabo
Verde, porque a cultura crioula sempre viu o mar como a verdadeira fronteira das ilhas,
o limite onde as terras acabam e as águas começam. Não obstante a perceção do mar ser
o caminho para a diáspora na terra longa, via de entrada e saída de navios ao longo de
gerações, constitui o limite das ilhas, o fator de separação e a dificuldade de conexão entre
as parcelas.
A delimitação externa e as fronteiras com o vasto oceano e os países vizinhos ainda
são recentes e na prática constituem limites acordados entre Estados e as normas interna-
cionais. Não constituem problemas no quotidiano dos homens das ilhas, não obstante o
desafio de segurança de uma vasta zona marítima para o Estado de Cabo Verde.
Nos finais do século xviii, João da Silva Feijó10 classifica o cabo-verdiano como um
povo rural de costas viradas ao mar, toda a economia estava centrada na agricultura e des-
conhecia-se as pescas, não obstante um clima árido sujeito a secas cíclicas e prolongadas.
“Sendo abundante de peixes as costas daquelas ilhas, a pescaria é pouco atendida pelos
habitantes, exceto quando o flagelo da fome busca destruí-los. Então satisfeitos com uma cana,
uma linha, e um anzol, andam de pedra em pedra pelas costas, buscando a subsistência”11
abundantíssimas de peixe todas as costas do mar, a pescaria é somente deles atendível na última
extremidade da fome. Então, ocupados com uma cana na mão, ou em umas lanchinhas, estas
de figueira brava, vão nas costas do mar buscar a sua subsistência, desprezando absolutamente
esta ocupação apenas têm na mão uma maçaroca de milho para comer 12”.
Com efeito, os primeiros povoadores e todo o processo do povoamento das ilhas
estiveram ligados ao mar, ao domínio do espaço marítimo e comércio transatlântico.
10
Ensaio económico sobre as Ilhas de Cabo Verde (1797) por João da Silva Feijó.
11
Idem (1784).
12
António Pusich – Ensaio Físico-Político das Ilhas de Cabo Verde,1810.
No entanto, nos finais do século xvii, Cabo Verde perde o domínio do tráfico da costa
da Guiné e, progressivamente, os reinóis regressam à Metrópole deixando as terras aos
brancos da terra e crioulos emergentes, naturais das ilhas que tinham perdido os laços
com o continente vizinho e com o Reino. Essa geração dos crioulos das ilhas não do-
mina nem o mar largo nem o comércio da costa da Guiné, estabelece-se na terra e vive
da agricultura e da pecuária. Documentos do século xvii e xviii relatam a decadência
dos núcleos urbanos costeiros da Ribeira Grande e da Praia. Alcatrazes desapareceu no
início do século xvi, os terratenentes mais abastados exploravam os vales irrigados e
andar húmido, deixando as terras marginais aos rendeiros e meeiros. A cultura cabo-
-verdiana constrói-se no mundo rural, onde a terra, a chuva, a seca, a cultura do milho,
são elementos essenciais.
“Nos tempos antigos foi esta cidade grandemente populosa e chegou a ter duas
freguesias. Hoje, porém, está quase deserta, pois que não há nela mais habitantes
que os cónegos que fazem nela a sua residência, obrigados da assistência do coro, e,
algumas mais pessoas; porque como nesta cidade não há coisa alguma de venda, e
precisa vir tudo de fora, e para estas conduções se necessita de abundância de bes-
tas, que não há, costumam habitar estes povos pelas suas fazendas, aonde acham
maior comodidade”13.
O Porto da Praia, que mais longamente prestou serviço de escala no arquipélago, entre
finais do século xv e finais do século xix, tirava benefício da produção agropecuária da ilha,
sobretudo nos vales próximos, para vender aos navios que faziam aguada em escala para
os mares do Sul. Esta troca comercial portuária não quebrou a ligação ao mundo rural,
as lides do mar sempre foram vistas como ofício de marujos estrangeiros e aventureiros.
Navios estrangeiros, sobretudo americanos, que pescavam baleia em águas de Cabo
Verde nos finais do século xviii, chegaram a contratar cabo-verdianos para essas lides, caso
curioso os crioulos aproveitaram a oportunidade para emigrar e trabalhar em terra, nos
207 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Estados Unidos
A viragem para o mar tem sido esforço de governantes e políticos, sobretudo depois da
Independência. Recentemente o discurso tem sido em torno de centrar uma viragem para
a economia azul, com a valorização do mar em dimensões que vão das pescas à navegação,
praias, turismo e prestação de serviços ao nível internacional.
Apesar do mar ser ao mesmo tempo elemento de separação e união das ilhas, o poeta
Jorge Barbosa nos ilustra uma visão crioula do mar em Cabo Verde.
13
Notícia corográfica e cronológica do bispado de Cabo Verde, 1784.
Poema do mar
O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
Cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...
O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!
O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
208 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
referência bibliográfica
ALVARES DE ALMADA, André (1589) – Tratados breve dos Rios da Guiné de Cabo Verde.
AMARAL, Ilídio (1986) – As Fronteiras do Sahel: alguns aspetos geográficos. Garcia de Orta, Série
Geografia, Lisboa, 11 (1-2), 1986, 1-54.
ANÓNIMO (1784) Noticia Coreográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde.
BARBOSA, Jorge (1941) – Poesias (Ambiente).
CAMÕES, Luís (1572) – Os Lusíadas.
GOMES EANES DE ZURARA (1453) – Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné.
PACHECO PEREIRA, Duarte (Séc. XVI) – Esmeraldo do situ Orbis.
PLÍNIO SEGUNDO, Caio (Séc. I) – História Natural, Vol. VI.
PUSICH, António (1810) – Ensaio Físico-Político das Ilhas de Cabo Verde.
SILVA FEIJÓ, João da (1797) – Ensaio económico sobre as Ilhas de Cabo Verde.
Emílio J. Zeca
Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pelo PPGEEI/UFRGS; Investigador
Auxiliar do Departamento de Paz e Segurança do Centro de Estudos Estratégicos
e Internacionais – CEEI/UJC e Professor de Estudos de Segurança, na Universidade
Joaquim Chissano – UJC, em Moçambique
introdução
a necessidade de aceder a recursos para a prossecução dos seus fins tradicionais. No caso
dos territórios colonais potugueses, as fronteiras traçadas pelos colonizadores resultam das
reivindicações territoriais das potências imperialistas europeiras e as decisões emandas das
Conferência de Berlim de 1884-1885.
O presente texto versa sobre os elementos históricos, conflituosos e cooperativos relacio-
nados com as questões de delimitação das fronteiras coloniais portuguesas, em África, com
destaque para a realidade moçambicana. A questão das fronteiras coloniais portuguesas, em
África, abrangeu os territórios da Guiné Portuguesa, África Ocidental Portuguesa – Angola
e África Meridional Portuguesa – Moçambique, no quadro de um projecto geopolítico,
geoestratégico e geoeconómico colonial que pretendia ligar o Atlântico e o Índico, conhe-
cido como Mapa Cor-de-Rosa. O processo histórico, conflitual e cooperativo envolvendo a
questão da delimitação de fronteiras coloniais portuguesas deve ser analisado tendo “como
pano de fundo a necessidade da ocupação efectiva dos territórios” (Souto, 1995, p. 209),
tendo em conta das decisões emanadas da Conferência de Berlim de 1884-1885.
A Conferência de Berlim de 1884-1885 marcou o início de uma “verdadeira corrida”
para a partilha retalhada do continente africano, abrindo espaço para a necessidade de se
delimitar as fronteiras dos espaços reclamados como sendo parte da esfera soberana das
potências imperialistas europeia, sem ter em conta a matriz cultural, sociológica e étnica
dos territórios visados. A partilha de África colou em causa o princípio orientador da
conceptualização de fronteira de Karl Hanshofer (1940)1 e os outros teóricos da Escola
de Munique que postulam que “o Estado tem direito a fronteiras naturais derivadas da
penetração cultural e de decorrentes da natureza do seu poder” (Dias, 2010, p. 129). No
contexto dos resultados de Berlim, as fronteiras coloniais passaram a ser elementos que
representam muito mais do que uma mera divisão e unificação dos pontos territoriais
diversos de uma base física das unidades políticas existentes, em África.
A geografia política dos territórios coloniais portugueses é marcada por um artificialismo
fronteiriço, fruto de situações de conflitos e cooperação. Os conflitos envolveram os interes-
ses e objectivos estratégicos de Portugal e os das outras potências europeias imperialistas, por
um lado, sobretudo Inglaterra, Alemanha, França e Holanda, e por outro, os interesses vitais
das comunidades nativas africanas que viram-se agredidas pelas campanhas militares de ocu-
pação. Tratou-se de campanhas miliares de ocupação, “pacificação” e conquista que tiveram
lugar entre 1886 e 1920 e que geraram fortes resistências dos Reinos, Estados e Impérios
africanos pré-coloniais, como aponta Souto (1995, p. 249-251). A cooperação foi um dos
mecanismos de construção de paz que foi concretizada por meio de acordos de delimitação
de fronteiras que Portugal firmou com as outras potências imperialistas europeias.
Nos estudos geopolíticos, as fronteiras têm sido classificadas como naturais, geo-
métricas ou arbitrárias, enquanto elementos de delimitação territorial e política que,
212 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
1
HANSHOFER, Karl (1940). Geopolítica. Munique.
Para a elaboração do presente texto recorreu-se a uma metodologia qualitativa assente
no método histórico, process tracing e técnica documental. O método histórico permitiu
sistematizar os elementos históricos que concorreram para o processo de delimitação de fron-
teiras colonais portuguesas, em África, enquanto o método o process tracing permitiu fazer
o rastreamento, análise e sistematização de todo os processos. Finalmente, a técnica docu-
mental permitu pesquisar e consultar a documentação relvante e a produção científica sobre
o assunto.
O texto presente encontra-se estruturado em quatro blocos analíticos principais. O
primeiro bloco analítico versa sobre a histórica da presença colonial portuguesa em África.
O segundo bloco analítico apresenta as questões histórias das fronteiras coloniais portu-
guesas, tendo como base as decisões da Conferência de Berlim de 1884-1885. O terceiro
bloco analítico faz uma incursão sobre as principais disputas e conflitos relacionados com
as fronteiras coloniais portuguesas, tendo em conta os interesses estratégicos de outras
potências imperialistas, na África Meridional, com destaque para Inglaterra, Alemanha e
Holanda. Finalmente, apresenta-se um bloco analítico que versa sobre os mecanismos de
cooperação que contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que emergiram sobre
as questões fronteiriças nos espaços reivindicados pelo Estado Colonial Português.
2
As Ilhas de Cabo Verde funcionaram como importante e relevante capitania, para garantir a administração
marítima daquela área, visto que transformou-se num entreposto comercial estratégico para o comércio de
escravos e outros produtos.
este converteu-se ao Cristianismo onde foi batizado, tornando-se em João I do Congo.
Em Moçambique, os portugueses chegaram, somente, em 1498, na viagem de Vasco da
Gama para a Índia. Os territórios costeiros moçambicanos eram de influência árabe que
estabeleciam trocas comerciais – ouro, algodão, ferro e especiarias – desde Sofala até o
Norte de Moçambique. Foi a partir no início do século xvi que os portugueses começa-
ram a criar feitorias3.
Portugal faz parte do grupo dos primeiros Estado a enveredar pelas viagens de “descobri-
mentos”, em África. Isso deu-lhe enormes vantagens, para que criasse capitanias, feitorias e
entrepostos comerciais sob o seu controlo ou influência. Todavia, a conjuntura interna portu-
guesa e a global vigente entre meados do século xix e inícios do século xx desafiou bastante a
presença de Portugal, em África. A crise durante o século xix fruto da contração comercial, o
reconhecimento da independência do Brasil e a ilegalização do tráfico de escravos trouxeram
problemas estruturais que fizeram com que o Estado português perdesse o controlo de grande
parte das suas redes de relações mercantis, sobretudo, com o Oriente e com Europa.
No século xix o continente africano passou a ser encarado como uma região apetecí-
vel de ocupação. Concorreu para este facto, a curiosidade científica, a procura crescente de
produtos tropicais, a necessidade de matérias-primas e o potencial de novos mercados, que
a Revolução Industrial exigia. O comércio internacional e intercontinental sofreu um incre-
mento notável com a navegação a vapor, com o aparecimento dos EUA a partir de 1865 e
da Alemanha, depois de 1870, que vieram pôr em causa a hegemonia britânica. Todo este
tráfico trouxe uma pressão concorrencial muito forte sobre os produtos portugueses, que
sofriam de falta de competitividade. A devastação havida na primeira metade do século xix,
contribuiu também para que Portugal falhasse a primeira revolução industrial.
A presença portuguesa, em África, começou, inicialmente, a ser orientada em termos
estratégicos pela necessidade de encontrar uma rota para as Índias, como forma de ter
acesso a produtos rentáveis no mercado europeu. Posteriormente, os objectivos e interesses
desta presença passaram a ser norteados por questões mercantilistas, a busca de metais
preciosos e, posteriormente, o comércio de escravos e marfim. Para a concretização destes
214 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
objetivos, o acesso e controlo dos territórios eram elemento crucial. Para tal, a religião e a
ameaça e uso da força foram os princípios mecanismos usados para a concretização desta
empreitada. Todavia as dificuldades de garantir uma presença efectiva, por meio de uma
administração directa e ostensiva nos vastos territórios que Portugal reivindicava como
sendo da sua posso e estando sob o seu controlo abriram espaço para que surgissem reivin-
dicações por outras potências, em relação aos referidos territórios.
3
Em Moçambique, em 1905, foi fundada a Feitoria em Sofala, para extração do ouro na região; em 1530 foi
fundada a Feitoria de Sena e em 1544 a Feitoria de Quelimane.
Em Moçambique, até meados do século xix, a presença portuguesa era bastante fraca
no interior. Para concretizar o princípio de ocupação efectiva emanado da Conferência de
Berlim de 1884-1885, que será discutido, posteriormente, Portugal levou a cabo um con-
junto de campanhas militares de ocupação e conquista, entre 1886 e 1920 (Souto, 1995,
p. 249), como forma de colmatar a sua fraca presença territorial e as reclamações interna-
cionais sobre a posse dos territórios que reivindicava. De acordo com Botelho (1934, p.
171-172), as campanhas militares de ocupação e conquista tiveram três fases principais: a
primeira abrangeu os territórios de Lourenço Marques até ao Pungué e foi realizada nos
sertões de Lourenço Marques, Inhambane e Sofala; a segunda abrangeu os territórios do
Vale do Zambeze e as terras limítrofes com operações levadas ca cabo contra povoações
fortificadas e aringas; e a terceira abrangeu a região do Rovuma.
As campanhas militares portuguesas de ocupação e conquista não foram simples, por-
que as unidades militares portuguesas encontraram fortes resistências nativas. Todavia,
essas campanhas deveriam ser levadas a cabo, porque “a pacificação e controlo efectivo dos
territórios eram os pré-requisitos para o reconhecimento do poder colonial” (Souto, 1995,
p. 249), diante das aspirações britânicas de anexar áreas estratégicas que faziam parte de
Moçambique, com destaque para as terras altas e férteis de Manica, Vale do Chiré e a Baía
de Lourenço Marques e a visão ambiciosas de Cecil Rhodes, com o seu projecto de cons-
truir uma linha férrea que ligasse a região de Cabo ao Cairo, propondo o controlo de uma
parte substancial de Moçambique (Isaacman e Issacman, 1983, p. 235).
No início das campanhas militares de ocupação e conquista, sobretudo até 1895, as
forças portuguesas sofreram muitas baixas, diante da preponderância militar dos Reinos,
Estados e Impérios pré-coloniais. Os portugueses enfrentaram resistência do Estado de Gaza,
no Sul, e dos Estados Afro-Islâmicos da Costa – Sacul, Sangage, Quitangonha e Angoche
– no Norte de Moçambique. A situação mudou após, 1895, quando o exército português
adquiriu superioridade militar, permitindo que essas expedições militares contribuíssem para
“alargar as áreas de influência portuguesa para o interior” (Souto, 1995,p.2699), por meio da
obtenção por parte das autoridades locais lealdade e vassalagem à Coroa Portuguesa.
215 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
A história das fronteiras coloniais portuguesas tem uma relação directa com os resul-
tados emanados da Conferência de Berlim de 1884-1885. Antes da realização da referida
conferência, a presença portuguesa nas suas colónias limitava-se à administração e ocupa-
ção de áreas estratégicas ao longo da costa, prevalecendo no desconhecido toda a região do
hinterland. Os territórios ultramarinos portugueses só passam a ter alguma importância
estratégica como área de exportações a partir de 1880, com o crescimento dos mercados,
em Angola e Moçambique, visto que estes passaram a absorvem parte dos produtos que
não se conseguia colocar noutros destinos.
A situação deficitária política e económica que o Estado Português vivia, no início
do século xix, não permitia disponibilizar os meios e recursos necessários, para que fosse
levado a cabo um processo de colonização efectiva, em larga escala, particularmente, em
Angola e Moçambique. Estes dois territórios foram sempre vastos, em termos de áreas e
com diversos desafios para alcançar o seu interior, a presença de Reinos, Estado e Impérios
locais, com poder político e militar substancial. Entre o século xv e xix, as vastas áreas
entre Angola e Moçambique tinham sido objecto apenas de algumas viagens de explo-
ração, todavia, necessitavam-se de uma presença efectiva do aparato colonial português,
visto que estes territórios, por um lado, eram ocupados por unidades políticas amorfas
designadas de Reinos, Estados e Impérios pré-coloniais4 e, por outro, eram ambicionados
por outros Estados que tinham projectos estratégicos.
A emergência de situações de contestação e reivindicação de algumas áreas sob o con-
trolo português por parte de outras potências como Inglaterra, Alemanha e Holanda fez
com que Portugal levasse a cabo um conjunto de iniciativas políticas, diplomáticas e mili-
tares, com vista a garantir os seus objectivos e interesses estratégicos nestas áreas. Diante
dos receios de poder perder os territórios que ocupava, em África, Portugal propôs a reali-
zação de uma conferência internacional para resolver, de forma pacífica, os diferendos que
as opunham as potências imperialistas nos territórios africanos. Infelizmente, no início,
essa proposta não vingou, mas algum tempo depois, a ideia foi colhida pelo antigo polí-
tico e diplomata prussiano, Otton Von Bismark5, que retomou a iniciativa e consultou as
outras potências, que o encorajaram a convocar a referida conferência.
A Conferência de Berlim teve lugar entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de
Fevereiro de 1885, onde participaram 15 Estados6, cujo objectivo declarado da mesma
4
Estado de Gaza, Império Monomotapa, Xeicados e Sultanatos, no Norte de Moçambique, entre outras
216 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Geográfica, sem contudo endereçar convite a Portugal para nela participar. Um ano antes
da Conferência de Berlim, o Reino Unido procurou firmar um Tratado com Portugal, a
fim de resolver as disputas em relação à região contestada no Congo. Finalmente, no dia
7 de Junho de 1884, Bismark rejeitou, por nota, o Tratado do Zaire8. De seguida, outros
7
Ata Geral da Conferência de Berlim. 26 de Fevereiro de 1885, Berlim.
8
O Tratado do Zaire de 1884 foi firmado entre Portugal e a Inglaterra e provocou protestos por parte
da França e da Bélgica, potências com iguais interesses naquela região africana (Costa, 2001, p. 45-
67). Posteriormente, foi rejeitado pela Alemanha e contestado pela França, Holanda e Estados Unidos
da América. A contestação desse tratado resulta da corrida pela partilha de África, envolvido as grandes
potências imperialistas europeias.
Estados, como França, Holanda e EUA, contestaram o mesmo tratado que acabou por não
ser ratificado. É neste contexto de contendas que é organizada da conferência internacio-
nal destinada a resolver as contendas coloniais, em África.
A Conferência de Berlim de 1884-1885 foi um dos mais importantes eventos político-
-diplomáticos para a delimitação das fronteiras coloniais portuguesas e das outras potên-
cias europeias imperialistas realizados na segunda metade do século xix. Esta conferência
regulou as questões do Direito Internacional Colonial. A Conferência institucionalizou o
peso específico e a capacidade de penetração das grandes potências europeias, no interior
de África, inviabilizando definitivamente a tese dos direitos históricos de posse e ocupação.
Para as questões coloniais, os Artigos 34 e 35 da Acta final da Conferência de Berlim ins-
titucionalizam a “Doutrina de Zonas de Influência” e o “Princípio da Ocupação Efectiva”.
Os dois princípios, acima mencionados, foram instituídos pela declaração referen-
te às condições essenciais a serem preenchidas para que ocupações novas nas costas do
continente africano sejam consideradas como efetivas. Estes encontram-se plasmados no
Capítulo VI da Acta Geral da Conferência de Berlim de 1884-1885:
Artigo 34. A Potência que de agora em diante tomar posse de um território nas costas
do continente africano situado fora de suas possessões atuais, ou que, não os tendo tido até
então, vier a adquirir algum, e no mesmo caso a Potência que aí assumir um protetorado,
fará acompanhar a Ata respetiva de uma notificação dirigida às outras Potências signatárias
da presente Ata, a fim de lhes dar os meios de fazer valer, se for oportuno, suas reclamações.
consagrou como regra de Direito Internacional o princípio de “uti possidetis jure” do litoral
africano afastando, definitivamente, os denominados “direitos históricos”, defendidos por
Portugal. O novo entendimento, que se vinha esboçando desde há uma década, veio a exi-
gir de qualquer Estado a posse real dos territórios sobre o qual reclamava a sua soberania.
Esta posse podia ser comprovada, entre outras formas, por um tratado assinado com a
população local e o exercício de actos efectivos de administração, ou pelo estabelecimento
de uma ocupação militar suficiente para assegurar a posse, ou pela aquisição de direitos de
exploração económica permanente. O objectivo era, em qualquer caso, assegurar que os
Estados reclamassem direitos sobre territórios onde não tinham qualquer tipo de presença.
Apesar da insistência britânica para que este princípio fosse aplicável a todo o continente, a
reacção negativa de todas as outras potências impede-o inicialmente, ficando na declaração
final de Berlim restrita às regiões costeiras. Daí o imperativo de alargamento da ocupação
efectiva ao interior do continente através da definição de “esferas de influência”.
Para os interesses do Estado Português, a questão mais importante da Conferência de
Berlim foi o conteúdo do Capítulo VI do Acto Geral de Berlim que previa a “declaração
relativa às condições essenciais a preencher, para que as novas ocupações na costa do con-
tinente africano sejam consideradas efectivas”, assim como é forçado a reconhecer o prin-
cípio da livre navegação dos rios internacionais. Em termos práticos, Portugal conseguiu
assegurar dois resultados principais: primeiro, impedir o estabelecimento da “Associação
Internacional Africana” na margem direita do Zaire; segundo, garantir a não inclusão no
Acto Geral a referência inglesa à internacionalização do Zambeze.
No final da Conferência de Berlim, as decisões ditaram a submissão e a colonização
dos povos africanos. Um dos aspectos importantes a ter em conta no que tange aos resul-
tados da desta conferência tem que ver com o facto de no dia 14 de Fevereiro de 1885,
Portugal, por influência britânica, assina uma Convenção para regular as relações com
a “Associação Internacional do Congo”, onde reconheceu-se a delimitação de fronteiras
encontradas pelos seus pares europeus. Nove dias depois, a 23 de Fevereiro de 1985, este
território viria a constituir o Estado independente do Congo, recebendo como soberano
Leopoldo II da Bélgica. E finalmente, no dia 26 de Fevereiro de 1885, Portugal assina a
Acta Geral da Conferência de Berlim.
No caso específico de Portugal, o alargamento da ocupação efectiva ao interior do con-
tinente através da definição de “esferas de influência” foi consubstanciado por meio de um
Projecto denominado de “África Meridional Portuguesa”, vulgarmente conhecido como
“Mapa Cor-de-Rosa”. Tratou-se de um documento cartográfico resultante das viagens de
exploração que antecederam a realização da Conferência de Berlim. Após as viagens de
exploração entre Angola e Moçambique realizadas entre 1877 a 1880, a Sociedade de
Geografia de Lisboa9 publicou um mapa10 onde grande parte de África Central aparecia
219 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
sob o domínio português, abrindo inclusive uma subscrição pública para o estabelecimen-
to de “estações civilizadoras” ao longo do território africano.
9
A partir de meados do século xix, as questões pela luta contra a escravatura e a tendência europeia para
o alargamento da sua influência em África, contagiou a própria opinião pública começando a surgir as
“Sociedades de Geografia” que, no caso português, foi fundada em 11 de Novembro de 1875.
10
Inicialmente, o Governo Português não apoiou publicamente. A Comissão Nacional Portuguesa de
Exploração e Civilização d’Africa da “Sociedade de Geografia de Lisboa chegou a abrir uma subscrição
permanente, cujo produto consistiu no “Fundo Africano” destinado a auxiliar a exploração científica,
comercial e agrícola na Africa Equatorial e Austral, abrangendo o território que compreendia a região entre
Angola a Moçambique.
Foi na sequência da Conferência de Berlim que, em Novembro de 1899, Portugal
decretou o estatuto do indigenato para os cidadãos dos territórios africanos “lusófonos”,
nomeadamente, Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé, legiti-
mando e, com isso, o trabalho forçado indígena. O primeiro instrumento que concre-
tizou essa decisão foi o Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e
Moçambique, de 192611, o Acto Colonial de 1930, aprovado pelo Decreto nº 18 570
de 8 de Julho de 1930; a Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma
Administrativa Ultramarina de 1933, aprovada pelo Decreto-Lei nº 23228, de 15 de
Novembro de 1933 e finalmente o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias
da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por Decreto-lei de 20 de Maio de 1954, e
que era uma lei que visava a “assimilação” dos indígenas na cultural colonial. O estatuto
foi abolido, em 1961, com as reformas introduzidas por Adriano Moreira quando foi
Ministro do Ultramar, com o objectivo de permitir aos indígenas um acesso mais fácil
e abrangente à cidadania portuguesa e aos direitos inerentes a ela. Estes instrumentos
procuraram definir e estabelecer o conjunto de deveres e “ditos direitos indígenas”, em
Angola, Moçambique e Guiné.
Entre as decisões da Conferência de Berlim que tiveram maior peso e que afectaram
directamente a dimensão colonial de Portugal, destacam-se a declaração sobre a liberda-
de de culto e a ocupação efectiva dos territórios. Naquele contexto, Portugal não estava
capacitado para fazer frente a estes desafios e tentou desenvolver diversas acções para tor-
nar mais efectiva a sua presença e salvaguardar os seus interesses. Ao longo de séculos, os
portugueses exploraram os territórios africanos sob o seu domínio com violência e etno-
centrismo, onde a propaganda ideológica do Estado Novo12 e a sua Política Ultramarina
foram instrumentos usados no momento do auge da ideologia exploratória. Essa situação
prevaleceu até a emergência de vários grupos nacionalistas que se organizaram em movi-
mentos pró-direitos civis e políticos dos grupos nativos para lutar pela sua independência.
Depois de um processo de luta armada de libertação nacional, pressões internas e externas,
Portugal reconheceu a independência das suas ex-colônias africanas entre 1974-1975.
220 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
11
Decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926, que aprova o Estatuto Político, Civil e Criminal dos
iindígenas de Angola e Moçambique. Mais tarde este instrumento foi extensivo à Guiné e, sucessivamente,
modificado pelo Decreto nº 13.698, de 30 de Novembro de 1927; o Decreto nº 16.473, de 6 de Fevereiro
de 1929; e o Decreto-Lei nº 39.666, de 30 de Maio de 1954. O Decreto nº 16.474, de 6 de Dezembro de
1929, aprovou o Diploma Orgânico das Relações de Direito Privado entre Indígenas e não Indígenas (Neto,
2015, p. 121).
12
A política ultramarina do Estado Novo foi bastante violenta, onde a propaganda tinha um peso forte. Por
exemplo, em 1934, no quadro dos esforços para a continuação do controlo dos territórios ultramarinos
foi produzido um cartaz que dizia: “Portugal Não é um Estado Pequeno”. Este cartaz é uma das imagens
marcantes do período da propaganda ideológica colonial, em relação aos territórios ultramarinos, com
objectivos didácticos e de propaganda, em Portugal e no estrangeiro.
3. disputas e conflitos de Fronteiras coloniais Portuguesas
13
Foi uma Companhia Britânica criada por Cecil Rhodes, em 1889, fundindo a Central Gold Search Association
e a Exploring Company, Ltd. para atuar na África Austral, nos moldes da Companhia Britânica das Índias
222 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Orientais. A companhia foi aprovada pela Cora Britânica e tinha privilégios majestáticos. O objetivo central
da mesma era de operacionalizar o processo de colonização britânica, através da exploração económica da
região – sobretudo o Zimbabwe – dentro dos princípio da ocupação efetiva emanado da Conferência de
Berlim, procurando unir as operações coloniais britânica do Cairo ao Cabo. A Companhia cessões as suas
funções depois de ser absorvida, em 1965, pelo Complexo Mineral Industrial chamado Anglo American PLC
(Burnham, 1926 e Rasmussen e Rubert, 1990).
14
State Papers do Foreign Office, Volume XLIV, contem a correspondência trocada em 1853 e 1854 sobre esse
assunto. Esse facto pode ser confirmado pelo Ofício Reservado nº 26, de 6 de Novembro de 1854, Londres,
que podem ser consultados no Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros de
Portugal – AHD Caixa nº 67, Folha 173.
15
Em Setembro de 1845, o Reino Unido tinha reconhecido os direitos portugueses sobre os territórios de
Ambriz, Molembo e Cabinda, em Angola. Uma década depois, em 1855, o Governo Português mandou
ocupar militarmente o Ambriz, o que provocou protestos por parte do Governo Britânico.
Seguindo as orientações do Governo da Metrópole, em 1855 o Governo-Geral de
Angola organizou uma expedição para garantir a ocupação efectiva do Ambriz. Esta deci-
são foi justificada pela mudança de posição britânica quanto ao reconhecimento da sobe-
rania portuguesa sobre aquele território. Em de Setembro de 1855, o Encarregado de
Negócios Britânico, em Lisboa, entregou uma nota ao Ministro do Ultramar, na qual não
reconhecia a soberania portuguesa, neste território, e por conseguinte não consentia a ocu-
pação de Ambriz. O Governo português, quer em notas dirigidas ao representante britâni-
co em Lisboa, quer em notas entregues pelo Ministro Português, em Londres, defendeu os
direitos de Portugal. O Governo britânico, apesar de ter apresentado várias reclamações,
acabou por aceitar a ocupação do Ambriz.
Em meados de Junho de 1856, o Parlamento Português aprovou o Decreto que abolia
a escravatura no distrito de Ambriz e nos territórios de Cabinda e Molembo. Esta decisão
contribui para a resignação britânica sobre a titularidade de Ambriz. Todavia, quando as
forças militares portuguesas, em Luanda, passaram para o Quicembo, foram obrigadas a
retirar-se por parte dos contingentes militares ingleses e norte-americanos. Desta feita, o
Governo britânico continuou a contestar a posse de Cabinda e Molembo, assunto que foi
ressuscitado durante a Conferência de Berlim e posteriormente.
Na África Oriental Portuguesa, Moçambique, Portugal envolveu-se em tensões,
crises e conflitos fronteiriços com os bóeres holandeses, para a delimitação da fron-
teira sul, com os ingleses, para a definição da fronteira centro e com os alemãs, para a
delimitação da fronteira norte. Na região Sul, embora tivesse sido criada a Capitania
de Moçambique, “os territórios do sul de Inhambane foram então, certa forma, aban-
donados de presença portuguesa” (Monteiro, 1993, p. 65). A região meridional de
Moçambique era bastante rica em marfim e isso despertava o interesse dos holande-
ses que tinham sido expulsos da Baía de Lourenço Marques, em 197316. A região de
Lourenço Marques despertava interesse do independentismo bóer e do expansionismo
britânico proveniente da Cidade do Cabo.
No dia 22 de Janeiro de 1815 foi assinado o Tratado Luso-Britânico e dois anos
223 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
depois, no dia 28 de Julho de 1817 foi assinada a Convenção Adicional que reconhecia
Lourenço Marques como o limite fronteiriço sul. Todavia, cinco anos depois, Inglaterra
inicia, em 1822, um conjunto de acções contenciosas que somente vão terminar em 1875.
Em 1861, os ingleses, temendo que os bóeres ocupassem Lourenço Marques, desembarca-
ram nas Ilhas de Inhaca e dos Elefantes, em Moçambique. O Capitão Wiliam Fitz Owen,
da “Royal Navy”, sob pretexto de uma excursão científica, fez o reconhecimento da Costa
16
Os austríacos tinham estabelecido uma feitoria, em Lourenço Marques, em 1771, mas foram, igualmente
expulsos, em 1781. Os portugueses defendiam que tinha “descoberto” a Baía de Lourenço Marques,
conhecida como Delagoa Bay, em 1544.
Sul de Moçambique, instalou-se nas Ilhas de Inhaca e dos Elegantes, chegando mesmo a
firmar acordos com os Regulados de Catembe e Matola, procurando diplomaticamente
afastá-los da influência portuguesa e consolidar a presença britânica. Na sequência desses
eventos, houve um conjunto de protestos do Governo Português, onde os ingleses acaba-
ram por retirar-se, sendo substituídos por tropas portuguesas. A retirada inglesa de Inhaca
foi apenas temporária, porque pouco tempo depois, o Capitão Bickford, comandando
uma embarcação de guerra britânica “entrou na Baía de Lourenço Marques e declarou a
anexação dos territórios em causa à Colónia do Natal” (Monteiro, 1993, p. 67).
Em relação ao Transval, em meados do século xix havia consciência situacio-
nal entre Portugal e esses Estado sobre a necessidade de se delimitar a fronteira, em
Moçambique e o Transval, visto que tanto os portugueses como os bóers eram contra
o avanço expansionista britânico, na região. Esta situação fez com que no dia 29 de
Junho de 1869 fosse assinado o Assinatura do Tratado de Paz, Amizade e Limites entre
Portugal e o Transval – República da África Meridional. Este tratado tinha a validade
de seis meses e constitui a base para a delimitação da Fronteira Sul de Moçambique.
Em 1879, Inglaterra opôs-se a este tratado recorrendo aos acordos estabelecidos com
os Regulados de Catembe e Matola, por parte do Capitão Fitz Owen. Diante da insis-
tência dos direitos soberanos por parte dos portugueses, decidiu-se recorrer à arbitra-
gem francesa, por parte do Presidente Mac Mahon decidiu pelo reconhecimento dos
direitos portugueses.
Em 1887, o Governo Português, através do Ministro dos Negócios Estrangeiros,
José Vicente Barbosa du Bocage, decidiu avançar com um plano de expansão na região
Sul de Moçambique, depois de ter garantido no ano anterior, através de tratados, res-
pectivamente com a França e a Alemanha, os limites fronteiriços na Guiné, no Sul de
Angola e Norte de Moçambique. O plano de expansão apostava na ocupação efectiva,
na modernização, na afirmação da soberania, na definição de fronteiras no interior do
continente e no recurso ao investimento estrangeiro, como forma de garantir a presença
portuguesa nestes territórios.
224 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
do citado limite sobre o Lago Niassa, segue a margem deste lado na sua direcção sul até
ao paralelo 13º 30´ de latitude sul; corre daí na direcção sueste até a margem oriental
do lago Chiuta, à qual acompanha até ao seu extremo. Segue daí em linha recta até
à margem oriental do lago Chilwa ou Chirua, pela qual continua até o seu extremo
limite a sul e a oriente; daí por ma recta até ao afluente mais oriental do rio Ruo,
correndo com este afluente e seguindo, subsequentemente, pela linha média do leito
do Rio Ruo até à confluência deste com o Rio Chire Da confluência com o Rio Ruo e
Chire, a fronteira seguirá a linha central do leiro do último deste rio até um pouco a
um ponto logo abaixo de Chiunga. Daí correrá, exatamente, para oeste até encontrar a
linha divisória das águas entre o Zambeze e o Chire e seguirá essa linha entre estes rios
e depois entre o primeiro rio e o lafo Niassa até encontrar o paralelo 14º de latitude
sul. Daí correra na direcção do sudoeste até ao ponto em que o parelo 15º de latitude
sul encontra o Rio Aruangua e seguirá a linha média deste até a sua junção com o
Zambeze (Artigo I do Tratado Luso-Britânico de 1891).
O tratado luso-britànico de 1891 foi a peça mais importante num conjunto de trata-
dos que definem as fronteiras de Moçambique, apesar de terem existido, anteriormente
a ele, outros tratados que definiram partes de fronteiras e outros, posteriores, que modi-
ficaram alguns aspetos de detalhe a ele inerentes (Liesegang, 1993, p. 2-4). Este tratado,
em termos gerais, é a base para a compreensão do processo de delimitação de fronteiras,
em Moçambique, tendo em conta as dinâmicas próprias que se verificou na delimitação
da fronteira sul, norte e ocidental de Moçambique.
tensões político-diplomáticas entre Portugal, Reino Unido e Alemanha sobre a questão das
fronteiras e os interesses estratégicos de cada um adas parte nos territórios por estes Estado
reivindicados, no século xix, produziram uma história profícua de acordos e alianças estra-
tégicas, como forma de garantir os interesses e objectivos portugueses, nos territórios onde
reivindicava a sua soberania.
Os esforços de resolução dos conflitos fronteiriços por via pacífica fizeram com que,
entre 1837 e 1839, fossem retomadas as negociações luso-britânicas para a elaboração
de um tratado. Tratou-se de um esforço político diplomático para superar um tratado
que exigia a abolição do tráfico de escravos, uma exigência britânica que era considerada
excessiva pelo lado português, a perpetuidade do mesmo, o direito de visita livre de embar-
cações portuguesas nos mares de África e o direito de explorar em profundidade as costas
dos domínios portugueses. Estas pretensões britânicas foram rejeitadas de forma liminar
por parte dos portugueses. Na sequência, em 1842, foram assinados dois convénios luso-
-britânicos, respectivamente, um sobre comércio e navegação e outro relativo à abolição
do tráfico da escravatura. As negociações para a firmação destes acordos foram conduzidas
pelo Duque de Palmela, vindo a terminar após a assinatura do Tratado Luso-Americano.
Em relação às disputas do Congo, em 1884, procurou-se firmar um Tratado entre
Portugal e Inglaterra como forma de resolver as disputas territoriais e fronteiriças de forma
pacífica e negocial. O Reino Unido, que até então se recusava a reconhecer que Portugal
possuía direitos territoriais ao norte de Ambriz, firmou o tratado reconhecendo a sobe-
rania portuguesa sobre as duas margens do baixo Congo. Todavia encontrou oposição
da Alemanha que não o ratificou. Acordos concluídos com o Estado Livre do Congo, o
Império Alemão e a França, em 1885-1886 fixaram os limites da Província, excepto no
Sudeste, onde a fronteira entre Barotze, Noroeste da Rodésia, e Angola foi determinada
por um sistema anglo-saxão. O acordo Português de 1891 e a sentença arbitral do Rei Vítor
Emanuel III em 1905 foram determinantes para delimitação das fronteiras angolanas.
Em 1898, o Governo Balfour assinou, com a Alemanha, dois acordos secretos pre-
vendo a partilha das colónias portuguesas, em África. Com o apoio da França, a denúncia
pública destes convénios e de alguma forma robustecidos pelas vitórias militares obtidas
na Sul de África, com destaque para as campanhas de Moçambique entre 1894 e 1897, foi
possível levar o Reino Unido a denunciar os acordos anglo-germânico, a honrar a Aliança
e o Acordo de 1891. Em relação à França e Alemanha, tal acontece logo em 1886, através
de duas convenções: uma luso-francesa e outra luso-alemã, que estabelecerem tratados de
limites, todavia, sem manifestação de intenções de aproximação político-diplomática.
O processo de delimitação de fronteiras coloniais portuguesas resultou de processo de
negociações, conciliações e arbitragem internacional que resultaram em acordos. No caso da
Guiné Portuguesa, o Tratado Luso-Francês de 1886 foi o elemento determinante no proces-
228 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
17
PELISSIER, René (1977). Les Guerres Grises: Résistance et Revoltes en Angola : 1845-1941. Edição do Autor,
Orgeval/Montamets.
de delimitação das fronteiras iniciou em 1869, com a assinatura do Tratado de Paz, Amizade
e Limites Entre Portugal e o Transval – República da África Meridional e estendeu-se até
18 de Novembro de 1954, com a assinatura do Acordo de fronteiras entre Portugal e a
Federação das Rodésias e Inglaterra, sobre a fronteira entre Moçambique e o atual Malawi.
Para o caso específico de Moçambique, importa destacar que em 1869, foi assinado o
Tratado de Pretória, entre Portugal e a República Independente do Transvaal18, República da
África Meridional – na atual África do Sul. Este tratado foi o primeiro a estabelecer os limites
territoriais entre Moçambique e aquela república. O tratado estipulava que “o limite sul da Baía
de Lourenço Marques atingia a latitude 26º30´ de latitude, isto é, compreendia toda a Baía e
continuava para o Oeste, até atingir os montes Libombos e seguindo a cadeia destes montes
[a deliimitação de fronteiras acordada, em 1891, seguiu este tracejado] (Souto, 1995, p. 269).
Na região centro de Moçambique – Província de Manica – e no Lago Niassa, “a
questão de delimitação de fronteiras apresentou-se extreamente difícil e complexa”
(Souto, 1995, p. 270). Tratou-se de uma zona de grandes disputas e conflitos, devido
aos interesses conflituantes entre portugueses e ingleses. Portugal tinha desde cedo o
seu plano do Mapa Cor-de-Rosa, mas os ingleses tinham a Bristh African Campany –
BSAC cujo planos era atuar em grande parte desta área, sobretudo a região de Manica e
Zimbábue. Esse conflito atingiu a sua escalada, em 1988, quando começaram as expe-
dições militares portuguesas para ocupação de territórios no interior de Moçambique,
como fora referido, anteriormente. A expedição de Serpa Pinto a região do Shire e ao
Niassa, em agosto de 1889, proporcionou uma reação militar da Inglarerra que apresen-
tou um Ultimato, no dia 11 de Janeiro de 189019, insentivando de forma pereemptória
o governo português a chamar de imediato todas as suas tropas militares que se encon-
travam na região de Shire, Makololo20 e Mashona.
18
No século xix, Transvaal representava os territórios da República Bôer – República Sulafricana, denominada
de República do Transvaal. Era um território que ocupava a área Norte da atual África do Sul, entre a zona
montante do Rio Vaal eo Rio Limpopo. Em 1902, a região foi anexada pelos britânicos e, em 1910, tornuu-
se numa das províncias da África do Sul independente, juntando-se à Colônia do Cabo, formando assim a
229 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
União Sulafricana.
19
O Governo de Sua Majestade [Inglaterra] dirigido pelo Lord Salisbury dirigiu uma nota ao seu ministro em
Lisboa para ser transmitisse ao governo português o seguinte: “que se enviem ao Governador de Moçambique
instruções telegráficas imediatas para que todas e quaisquer forças militares portuguesas atualmente no
Shire e nos países dos Macololos e Machonas se retirem. O Governo de Sua Majestade [britânica] entende
que sem isto as seguranças dadas pelo Governo Português são ilusórias. Mr. Petre ver-se-á obrigado, à
vista das suas instruções, a deixar imediatamente Lisboa com todos os membros da sua delegação, se uma
resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade
Enchantress (britânica) estará em Vigo, esperando as suas ordens” (Parente, 2004, p. 270).
20
Era uma das tribo da região do Alto Zambeze que pertenciam ao grupo dos sotho da África do Sul e com
semelhanças dos basotho do Lesoto. Esta tribo foi obrigada a deixar a região e migrar-se em direção ao
Vale do Zambeze e Malawi, devido a expansão do Reino de Tshaka Zulu, durante o período do Mfecane
(Phiri, 2005, p. 851-852 e Gann e Duignan, 1999, p. 413-414).
Diante do ultimato militar britânico, Portugal tinha duas alternaticas: “ou recuava para
o sul do Rio Ruo, ou se dava a rutura e estalava-se o conflito armado entre os dois Estados”
(Souto, 1995, p. 270) que eram aliados, desde as velhas guerras na Europa. Todavia, diante do
poderio militar inglês, Portugal foi obrigado a ceder e retitou as suas tropas. O ultimato inglês
abalou as pretenções ocupacionistas de Portugal, na região, e pressionou a Cora Portuguesa a
iniciar conversações com Inglaterra, para a delimitação de fronteiras no Niassa e Manica.
No dia 20 de Agosto de 1890, foi assinado um acordo entre Portugal e Inglaterra
onde as cedências portuguesas eram grandes, porque além da delimitação das fronteiras,
Portugal fazia concessões a nível de completa liberdade de comércio; livre navegação nos
lagos, rios e portos; isenção de impostos aduaneiros nas zonas de livre comércio; isen-
ção de taxas de trásito de mercadorias e pessoas, entre outros (Axelson, 1967, p. 259).
Quando os termos do acordo foram divulgados, a imprensa portuguesa reagiu apontando
que Portugal tinha sido humilhado pela Inglaterra com o acordo e com o ultimato militar.
Alguns textos da época chegaram mesmo a afirmar que era melhor que “Portugal tivesse
vendido Moçambique interiro [a Inglaterra], a conservá-lo sob tão vergonhosas condições”
(Axelson, 1967, p. 318). Diante desta situação, a Corte Portuguesa recursou ratificar o
tratado, criando outras situações de animosidade, tensão e crise entre os dois Estados.
Com a decisão, acima referida, Portugal cometeu um erro estratégico, porque, primei-
ro não tinha capacidades militares para fazer face ao exercítio britânico, em situação de
confronto militar e, segundo, a não ratificação do acordo dava uma espécie de carta-branca
as forças militares de Cecil Rhodes para invadir a região de Manica. Apercebendo-se do
erro estratégico, Portugal prôpos que Inglaterra assinasse um “Modus Vivendi” que “iria
vigorar durante as discussões de um novo tratado” (Souto, 1995, p. 271). Tratava-se de
uma forma de estabeler uma situação de coexistênia pacífica e não invasão de territórios.
Esta proposta de Portugal foi aceite e , no dia 14 de Novembro de 1890, foi assinado o
“Modus Vivendi” que reconhecia, provisoriamente, as fronteiras estabelecidas no Tratado
de 20 de Agosto de 1890 e que o mesmo iria vigorar durante seis meses.
As negociações do novo acordo entre Portugal e Inglaterra foram dificéis e longas, por-
230 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
considerações Finais
direito de exercer soberania naqueles territórios, visto que não nativos daqueles locais.
Esse problema foi resolvido por via de campanhas militares que culminaram com a
submissão dessas unidades políticas e o desenvolvimento de relações de vassalagem. A
segunda dimensão conflitual emergiu dos protestos apresentados por outras potências
imperialistas europeias, como Inglaterra, França, Holanda e Alemanha. Diante de difi-
culdades internas e incapacidades de usar meios coercivos para dissuadir as pretensões
destas outras potências europeias, estrategicamente, Portugal reivindicou os seus direitos
por com recurso aos meios pacíficos de gestão e resolução de conflitos, nomeadamente,
negociação, conciliação e arbitragem.
O artificialismo das fronteiras coloniais portuguesas e a dificuldade de Portugal ocupar
efectivamente os territórios que reivindicava soberania criou um legado com reflexos nega-
tivos no processo de gestão e securitização das fronteiras pós-coloniais. A geografia política
e a questão das fronteiras herdadas da herança colonial trouxeram problemas e desafios no
domínio sócio-político e cultural, porque subverteu, tecnicamente, o tipo de relação em
povos cujas etnias ocupam espaços com contiguidade geográfica, mas descontinuidade fron-
teiriça. No caso de Moçambique, as questões das fronteiras marítimas e as fronteiras lacus-
tres, no lago Niassa, são um autêntico problema político-diplomático, que poderia ter sido
acautelado nos acordos de delimitação de fronteira que foram firmados no período colonial.
resumo
Palavras-chave:
Fronteiras Colonias Portuguesas, História, Conflito, Cooperação.
232 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
referências Bibliográficas
PHIRI, Bizeck J. (2005). Lozi Kingdom and the Kololo. In: Shillington, Kevin. Encyclopedia of
African History. Volume II. Routledge, New York.
RATZEL, Friederich. O Solo, a Sociedade e o Estado. Revista do Departamento de Geografia da
USP, Vol. 02, p. 93-101, 1983.
ROSIÈRE, Stéphane (2007). Géographie Politique et Géopolitique : Une Grammaire de L´Espace
Politique. Elipses, Paris.
SOUTO, Amélia Neves (1995). Guia Bibliográfico Para Estudantes de História de Moçambique.
Coleção Nosso Chão Nº 06. Centro de Estudos Africanos, Maputo.
ZECA, Emílio Jovando (2017). Limites e Fronteiras na África Austral: Moçambique e Processo de
Delimitação e Desafios da Reafirmação Fronteiriça na Região. Monções: Revista de Relações
Internacionais da UFGD, Dourados, v.6. n.12, Jullho/ Dezembro, p. 217-235.
Timor, géohistoire des frontières stratifiées 1
Frédéric Durand
Professeur des Universités en Géographie, Université Toulouse II Jean-Jaurès
Chercheur au laboratoire LISST-CNRS UMR 5193
L’île de Timor est composée pour sa moitié orientale du premier État indépendant du
troisième millénaire, après des troubles qui en ont fait le lieu d’un des plus grands drames
humain du XXe siècle. Une indépendance relativement réussie depuis 2002 et une volonté
du pays de se projeter résolument vers l’avenir font désormais oublier cette période sombre
de son histoire.
Timor est aussi une des rares îles divisées au monde, même si l’existence de sa frontière
terrestre entre l’Indonésie et la République Démocratique du Timor oriental – relative-
ment connue – tend à occulter une situation nettement plus complexe, notamment de par
la présence de petites îles alentour et d’une délimitation maritime qui associe l’Australie
aux négociations pour le partage des ressources en mer de Timor.
Pour aborder cette complexité, l’approche géohistorique s’avère la plus pertinente, afin
235 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
de prendre la mesure de l’imbrication des frontières – sur terre et en mer – entre les trois
pays concernés, dans un contexte qui a été marqué par plusieurs siècles de présence colo-
niale et par une invasion suivie d’une occupation militaire du Timor oriental (Timor-Leste
en portugais) par l’Indonésie de 1975 à 1999.
Ainsi, une analyse des tractations et de l’évolution des découpages depuis la période colo-
niale permet de montrer qu’alors que le droit international d’inspiration occidentale cherche
1
« Article publié pour la première fois le 10 juin 2020 dans la revue Géoconfluences. http://geoconfluen-
ces.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/dossiers-regionaux/asie-du-sud-est/articles-scientifiques/
timor-geohistoire-des-frontieres-stratifiees
à favoriser le principe de frontières nettes et bien marquées, particulièrement depuis la fin du
XIXe siècle (Foucher, 1988), les contraintes des pratiques et les rapports de forces entre pays
tendent à induire la superposition ou la stratification de plusieurs frontières. Les tracés peuvent
ainsi être différents pour les droits sur les fonds marins et pour ceux sur la colonne d’eau qui la
surplombe, ou bien les droits souverains d’un État sur un territoire peuvent être contrebalancés
par ceux des populations d’un pays voisin d’y poursuivre des pratiques traditionnelles.
Le cas de l’île de Timor témoigne de ces évolutions ainsi que de l’option qui pourrait
devenir plus fréquente à l’avenir de zones d’exploitation en commun pour lesquelles la
procédure de délimitation de la frontière serait différée afin de permettre une extraction
plus rapide des ressources.
Au carrefour des migrations entre l’Asie et le Pacifique, l’île de Timor qui s’étend sur
30 777 km² – une taille équivalente à celle de la Belgique – a été traversée et peuplée
par de nombreux groupes humains depuis plus de 60 000 ans. Même si elles se sont
mêlées, il est possible de distinguer au moins deux grandes origines des populations : les
plus anciennes, apparentées linguistiquement aux Mélanésiens de Nouvelle-Guinée, et
236 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
les Austronésiennes, arrivées de Taiwan via les Philippines et les Moluques il y a environ
4 500 ans.
Les brassages ont induit le découpage de l’île en une multitude de chefferies ou royau-
mes qui ont évolué au gré des rapports de forces locaux, avant le début de l’influence
occidentale avec l’arrivée des Portugais au début du XVIe siècle, puis de la Compagnie
néerlandaise des Indes Orientales (VOC) au XVIIe siècle.
Avant même qu’une frontière nette ne soit définie entre ce qui allait devenir deux
colonies séparées, les Portugais avaient été amenés à distinguer deux territoires : Bellos à
l’est, qui regroupait les royaumes leur étant favorables, et Servião, à l’ouest, correspondant
à ceux qui leurs étaient opposés et tendaient à se rapprocher de la VOC. Cette distinction
– que de nombreux administrateurs ont cherché à conforter par des analyses linguistiques,
culturelles, voire « raciales » – était en fait des plus mouvantes et des plus floues, sachant
que certains royaumes décidaient de changer d’alliance au gré des situations. C’est ainsi
que l’ensemble du Wehale – parfois qualifié d’ « Empire » – qui regroupait sous une tutelle
symbolique des dizaines de royaumes du centre de l’île, a plusieurs fois changé d’allégeance
entre les deux puissances européennes (carte 1).
À cette époque, les enjeux dépassaient aussi le périmètre de Timor, puisque des
implantations portugaises existaient également dans d’autres îles et particulièrement
dans l’est de l’île de Flores, ainsi que dans les petites îles voisines de Solor, Adonara,
Lomblem, Pantar et Alor.
La distinction binaire des Portugais minimisait aussi une autre composante importan-
te, celle des métis ou Topasses, également appelés « Portugais noirs ». Principalement basés
dans la région de l’actuelle enclave d’Oecussi/Ambeno au nord-ouest de l’île de Timor, mais
aussi dans les îles environnantes comme Flores, ils cherchaient à échapper aux emprises
occidentales. Gaspar da Costa, le chef des Topasses au milieu du XVIIIe siècle, aurait réuni
une armée de 50 000 hommes et failli chasser les représentants de la VOC de Timor. En
1769, les Topasses obligèrent également les Portugais à quitter leur fort principal à l’ouest
pour s’installer dans la région de l’actuelle capitale Dili (Hägerdal, 2012) (carte 2).
Au milieu du XIXe siècle, il y avait encore à Timor une cinquantaine de royaumes rela-
tivement indépendants alliés aux Portugais, et une vingtaine liés aux Pays-Bas, sachant que
l’influence néerlandaise directe n’excédait guère quelques dizaines de kilomètres autour
de leur fort de Kupang à l’extrémité occidentale de l’île. Les représentants des Pays-Bas
parvinrent néanmoins à négocier en 1851 avec le gouverneur portugais Joaquim Lopes de
Lima un traité qui leur était très favorable. Ils y cédaient certes la riche enclave de Maubara
au centre de la côte nord et donnaient 200 000 florins, mais ils obtenaient en échange
238 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
que les Portugais renoncent à la plupart de leurs revendications sur Flores et les îles adja-
centes, ainsi que sur plusieurs territoires enclavés dont le royaume de Maukatar (Pélissier,
1996). Le territoire sous contrôle portugais se trouvait donc principalement limité à la
partie orientale de Timor, à l’enclave d’Oecussi/Ambeno sur la côte ouest, ainsi qu’aux îles
d’Ataúro (au large de la capitale Dili) et de Jaco (à l’extrémité orientale), ce qui correspond
sensiblement aux frontières terrestres actuelles entre Timor oriental et Indonésie.
Dans un premier temps, le gouvernement portugais refusa de reconnaître la validité
de ce traité et destitua même le gouverneur Lopes da Silva qualifié de « félon ». Les Pays-
Bas refusèrent toutefois de renégocier sur le fond, y compris lors de nouveaux traités en
1854 et 1859, quand le Portugal proposa de céder d’autres possessions – notamment en
Afrique – contre la souveraineté sur la totalité de l’île de Timor.
Les incertitudes sur les alliances et les limites territoriales des royaumes, ainsi que la
présence de nombreuses enclaves rendirent encore nécessaires deux conventions en 1893 et
en 1904, puis un arbitrage de la Cour Internationale de Justice de La Haye en juin 1914
pour finaliser la délimitation de la frontière. Les grandes lignes du partage de 1851 ne furent
toutefois pas remises en question, même si on peut signaler un premier cas de stratification.
En effet, les Portugais obtinrent que les Pays-Bas s’engagent à maintenir la pratique du catho-
licisme à l’ouest de Timor, ce qui fut d’ailleurs respecté (Durand, 2004) (carte 3).
Carte 3. Les délimitations locales et coloniales à la fin du XIXe siècle 239 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
s’y rendaient aussi parfois lors de leurs congés. Étant donné sa dimension et l’absence
de source d’eau potable, personne n’avait toutefois pensé à revendiquer Batek avant
l’indépendance du Timor oriental en 2002 (cf. infra).
Pour apaiser les tensions, et contre la promesse que les populations de l’enclave
d’Oecussi pourraient continuer à y faire des rituels traditionnels, José Ramos Horta
renonça en août 2004 lors d’une visite à Timor ouest à continuer de revendiquer l’îlot.
Même s’il n’y a pas eu d’accord bilatéral pour l’officialiser, l’Indonésie a tenu à signaler
le fait devant le Conseil de Sécurité de l’ONU le 24 août 2004, en mentionnant aussi
le droit traditionnel accordé aux populations de l’enclave. Depuis, l’Indonésie a installé
une base militaire à Batek, ce qui rend assez peu vraisemblable l’exercice de ce droit.
Après l’indépendance, la frontière terrestre a également fait l’objet d’âpres négocia-
tions, essentiellement dues à des ambiguïtés ou divergences entre les cartes de la fin du
XIXe siècle et du début du XXe siècle, mais aussi potentiellement à des changements
dans le cours de petites rivières en un siècle.
Tandis que jusqu’aux années 1970, les conflits frontaliers avaient essentiellement
concerné les espaces émergés, le dernier quart du XXe siècle et le début du suivant sont
marqués par la montée des enjeux des délimitations maritimes. Le cas de l’île de Timor
se révèle particulièrement complexe dans la mesure il concerne trois États et qu’il a aussi
impliqué des interventions directes de l’ONU. Ces multiples négociations ont amené
à la création de frontières stratifiées différenciant notamment les droits sur les fonds
marins, la colonne d’eau et les usages.
Jusqu’au début des années 1970, la question des frontières ne se posait quasi-
ment que pour les espaces émergés. Avec les perspectives d’exploitation off-shore et
l’augmentation de la pêche, l’enjeu du contrôle des mers et des fonds marins est deve-
nu majeur.
Pour l’île de Timor, le problème de la délimitation maritime se pose sur deux grands
espaces : au nord entre l’Indonésie et Timor-Leste, et au sud, en mer de Timor, sachant
que dans ce dernier cas, le partage concerne également l’Australie, ce qui complique les
négociations.
Le sujet de la frontière maritime nord n’est réapparu qu’en 1999, puisque l’annexion
de la partie orientale de Timor l’avait provisoirement effacé en 1975. Après le réfé-
rendum d’autodétermination, le gouvernement indonésien avait indiqué ne pas sou-
haiter traiter cette question avant d’avoir résolu les délimitations terrestres, d’autant
que le différend sur la région de Noel Besi/Citrana conditionnait le tracé de la lig-
ne de côte et donc de sa zone économique exclusive (ZEE) prévue par la Convention
de Montego Bay.
Après la fixation des frontières terrestres en juillet 2019, l’établissement de celles en
mer devrait vraisemblablement s’effectuer sur la base de la ligne médiane, sans prise en
compte de l’île Batek pour Timor-Leste. Cela pourrait certes accroître la ZEE est-timo-
raise, mais il est peu probable que ce pays cherche à négocier à ce sujet, compte tenu du
manque d’éléments concrets du dossier et du rapport de force entre les deux nations.
Une telle demande aurait de faibles chances d’aboutir, tout en risquant d’envenimer
leurs relations et de freiner l’adhésion de Timor-Leste à l’ASEAN, toujours en cours
d’étude depuis 2011.
conclusion
Le XIXe siècle et le début du XXe avaient été marqués par la réduction du nombre
de frontières et en même temps par le renforcement de leurs délimitations cartographi-
ques ainsi que de leur caractère symbolique. La fin du XXe siècle et le début du XXIe
ont vu une complexification du phénomène, particulièrement en raison de conflits liés à
l’indépendance et de l’avènement du droit de la mer.
Ces nouvelles contraintes ont induit la formation de frontières stratifiées qu’illustre bien le
cas de l’île de Timor, avec la superposition de différentes délimitations pour le territoire terres-
tre, les fonds marins, les ressources qu’ils contiennent et certaines pratiques traditionnelles. S’y
ajoutent des zones de coopération conjointes où la souveraineté peut être commune, du moins
pour les ressources, et dont le statut peut être différé de plusieurs décennies. À cela peuvent
également s’ajouter des règles ou restrictions liées aux zones de protection naturelle.
Ces innovations permettent aux États de sauvegarder l’honneur national attaché au
symbole du territoire, tout en évitant la confrontation militaire et en répondant au prag-
matisme économique ainsi qu’aux rapports de forces entre voisins. La fréquence de ce type
d’approche pourrait augmenter à l’avenir, notamment en mer de Chine méridionale pour
désamorcer les tensions liées aux revendications simultanées d’espaces par la Chine et par
de nombreux pays d’Asie du Sud-Est.
Bibliographie
Cabasset Christine, 2018. « Les ZDC en mer de Timor, d’un espace de tensions à un compromis
entre le Timor-Leste et l’Australie », dans Fau N. et Tréglodé B. de (dir.), Mers d’Asie du Sud-
Est. Paris, CNRS éditions, p.195-227.
Defert Gabriel, 1992. Timor-Est, le génocide oublié, Paris, L’Harmattan, 323 p.
Dovert Stéphane et Durand Frédéric, 2016, « Cronica de uma anexação hesitante: a invasão do
Timor Português pela Indonésia, 1974-1976 », dans Feijo Rui (dir.), Timor-Leste: Colonialismo,
Descolonização, Lusotopia. Lisbonne, Edições Afrontamento, p.329-351.
Durand Frédéric, 2006. Timor 1250-2005, 750 ans de cartographie et de voyages, Toulouse-Bangkok,
Éditions Arkuiris-IRASEC, 520 p.
Durand Frédéric, 2004, Catholicisme et protestantisme dans l’île de Timor : 1556-2003 ; Construction
d’une identité chrétienne et engagement politique contemporain, Toulouse-Bangkok, Éditions
249 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Arkuiris-IRASEC, 240 p.
Durand Frédéric, 2002, Timor Lorosae, Pays au carrefour de l’Asie et du Pacifique, un atlas géo-his-
torique, Marne-la-Vallée/Bangkok, Presses Universitaires de Marne-la-Vallée/IRASEC, 208 p.
Foucher Michel, 1998. Fronts et frontières. Un tour du monde géopolitique, Paris, Fayard, 478 p.
Hägerdal (Hans), Lords of the Land, Lord of the Sea. Conflicts and Adaptation in Early Colonial
Timor, 1600-1800, Leiden, KITLV, 2012, 345 p.
Pélisser René, 1996. Timor en guerre, Orgeval, Pélissier éditeur, 368 p.
Redon Marie, 2014. « Les enjeux frontaliers du Timor-Leste, entre terre et mer », dans Araujo e
Corte-Real B. de, Cabasset C. et Durand F. (dir.), Timor-Leste contemporain, l’émergence d’une
nation, Paris-Bangkok, Éditions des Indes Savantes-IRASEC, p.309-336.
Minhas memórias sobre as fronteiras
amazônicas: entre andanças e reflexões
O limite e o alcance
Jadson Porto
Curitiba, 20/06/2020
Sou natural da cidade de Santarém (Estado do Pará, Brasil). Esta cidade está na confluência
do rio Tapajós com o rio Amazonas. Sou neto de agricultores de origem ribeirinha da região
do Tapará, no Estado do Pará. Nasci em 1967, em um período em que mudanças iniciaram a
aparecer pela rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163) e seus impactos na cidade, principalmente
no interior, como também da construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Curuá-una1.
Não fui um garoto ribeirinho, mas tomei muito banho no rio Tapajós, nos igarapés ama-
zônicos. Nasci na cidade, em casa. Não nasci na floresta. Àquela época, Santarém já havia
alcançado 100 mil habitantes. A sua articulação com o exterior sempre foi pelo e através do rio
Amazonas. Após o final da década de 1970, a Rodovia Cuiabá-Santarém tornou-se alternativa
de acesso à cidade, estimulando-a a crescer acompanhando esta nova via de comunicação.
Ainda criança, meu irmão e eu acompanhamos nossos pais na mudança para Belém,
capital do Estado do Pará. Na década de 1970, a cidade de Belém estava também em pro-
cesso de transformação e expansão urbana, a caminho de sua metropolização2. A partir de
então, mudei-me 36 vezes de cidades pelo Brasil (nas férias, voltávamos a Santarém). Neste
momento, mudam-se as vias de transporte. Não íamos mais de ônibus e nem de barco.
O avião começa a integrar a minha rotina de deslocamento nas férias escolares. Em 1994,
252 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
chego em Macapá, capital do Estado do Amapá, onde habito e trabalho como docente de
ensino superior na Universidade Federal do Amapá.
Formei-me em Bacharel e Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal do
Pará. Lá descobri uma faceta da geografia e da tecnologia, mas não me preocupava com
as suas avaliações e reflexões: a compressão do espaço-tempo (HARVEY, 1989). Ficava
(como fico até hoje) fascinado com a possibilidade de em algumas horas estar em outra
1
A UHE de Curuá-Una situa-se a 70 km ao sul da cidade de Santarém, no rio Curuá-Una, afluente da margem
direita do rio Amazonas. Foi a primeira usina construída na Amazônia.
2
Sobre o assunto, vide: Trindade Jr. (1998; 1999; 2016).
parte do país, depois de entrar numa caixa fechada; sem a possibilidade de sentir a brisa
no rosto (na época os ônibus não usavam ar condicionados, o que permitia a viagem com
a janela aberta), principalmente quando atravessava uma nuvem.
Voltei para Amazônia! Na cidade à beira do rio, mas não sou ribeirinho. Macapá está
na esquina do rio Amazonas com a linha do Equador3. Voltei a navegar pelos rios amazô-
nicos, como também circulo pelas rodovias ali instaladas após a década de 1970.
Chego à fronteira! Alcanço o limite ou o limite é a minha fronteira alcançada?
Sou morador de um Estado fronteiriço, mas não sou morador da fronteira. Interajo
constantemente com ela, seja pelas visitas à linde, por transpassá-la eventualmente, seja pelas
reflexões efetuadas em minhas pesquisas sobre o assunto (a espacialidade da fimbria Amapá/
Guiana francesa; a inversão da fronteira; a fronteira amapaense como um circuito híbrido de
economia; a condição fronteiriça amapaense; a (trans)fronteirização Brasil/França)4.
O Estado do Amapá se localiza ao Norte do Brasil e possui fronteira com Suriname e
Guiana Francesa (Figura 1). Sua origem como integrante da federação brasileira é decor-
rente de sua criação como Território Federal (1943) (PORTO, 2003). A partir de então,
vários aspectos sobre o uso do seu território começam a ser (re)construídos, vivificando-o,
vivenciando-o ou por ali passando.
3
Expressão poetizada por Fernando Canto e musicalizada Zé Miguel, intitulada “Meu endereço”.
4
Vide Porto (2010; 2014a; 2014b; 2017); Porto, Theis (2015) e; Santos e Porto (2013).
Minhas memórias e meus sentimentos de pertencimento a um Estado de fronteira são re-
flexivos e conflituosos. Reflexivos, porque analiso, e a explico com teorias! Conflituosos, porque
vejo, participo e convivo nas desigualdades ali estabelecidas, materializo as explicações. Assim,
o limite que está ao meu alcance, nem sempre o alcanço. O limite se afasta a cada vez que me
aproximo. Mas a fronteira, permanece, embora às vezes se expande ou se retrai.
A fronteira é fluida e dinâmica. Seu limite não é somente físico o político. É principal-
mente social, pois as relações ali estabelecidas vão para além de suas institucionalizações.
A perna que possuo é muito pequena para o passo que tenho que dar, pois cada vez mais
a distância social me transfere para outro lado. A distância política me transporta para
outro viés. A distância cultural me carrega para as descobertas. Seja qual for o passo dado,
o limite muda. Às vezes alcanço uma particularidade, embora eu perceba a sua totalidade.
Ser morador de um Estado fronteiriço, não é ser um morador fronteiriço. Embora eu
perceba a dinâmica sobre como é usada na construção de sua forma do território e do seu
conteúdo. Deve ser visto além das relações sociais e territoriais imediatas; de ator sociopo-
lítico e econômico em um ente federativo fronteiriço, litorâneo, amazônico e estratégico
no contexto das relações entre blocos econômicos e militares.
Esses fatores expõem a variedade e complexidade que o Estado do Amapá apresenta em
sua condição fronteiriça. Desde a criação do ente federativo Amapá, como Território Federal,
a busca e as ações que visem a vivificação e vitalização espacial, para que seja formatada a fun-
ção desta fronteira na economia-mundo5, organizando seu comportamento quanto ao uso
do território e transformando-o em espaços destinados a grandes negócios, pois para o capital
não há nem limites e nem fronteiras. Ele alcança e aciona espaços, pessoas e instituições.
A fronteira está lá! Eu a vejo! O limite, não! Eu o sinto!
Quanto ao morador..., seja da fronteira ou do estado fronteiriço..., este tenta viver e
vivenciar o espaço ali vivido.
referências
254 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
5
Sobre a vivificação e vitalização da fronteira pelos Territórios Federais, enfatizando o caso amapaense, vide Porto
(2003); Porto (2014); Porto e Superti (2018; 2020); Porto, Superti e Oliveira (2020).
_____. Desenvolvimento Geográfico Desigual da faixa de fronteira da Amazônia setentrional brasileira:
Reformas da condição fronteiriça amapaense (1943-2013). Blumenau, FURB/PPGDR, 2014a.
Relatório de pós-doutoramento em Desenvolvimento Regional.
_____. A reconstrução da condição fronteiriça amapaense: da expansão colonial às intenções de
interações transfronteiriça. Acta Geográfica (UFRR), v. 8, p. 149-167, 2014b.
_____. Desenvolvimento geográfico desigual da faixa de fronteira da Amazônia setentrional brasi-
leira: Aspectos das reformas da condição fronteiriça amapaense (1943-2013). In: COSTA, J.
M. (Org.). Amazônia: Olhares sobre o território e a região. Rio De Janeiro: Autografia, 2017. p.
401-424.
PORTO, J. L. R.; SUPERTI, E. O uso do território como parte de políticas públicas centraliza-
das brasileiras: A atuação dos Territórios Federais. In: PORTO, J. L. R.; SCHWEITZER, A.
Estrategias territoriales para la ocupación del continente sudamericano: inserción de la periferia y
institucionalización espacial. Macapá/ Rio Gallegos, UNIFAP/UNPA-UARG, 2018. p. 140-156.
PORTO, J. L. R.; SUPERTI, E. Visões de defesa nacional na formação da condição fronteiriça dos ex-
-territórios federais amazônicos: da ocupação a vivificação espacial. Palmas, PPGDR/UFT, 2020.
Atividade pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da
Universidade Federal de Tocantins.
PORTO, J. L. R.; SUPERTI, E.; OLIVEIRA, N. M. Vivificação da fronteira setentrional brasi-
leira: a formação da condição fronteiriça no Amapá. Palmas, PPGDR/UFT, 2020. Atividade
pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade
Federal de Tocantins.
PORTO, J. L. R.; THEIS, I. M. Circuitos da Economia na fronteira amapaense: um híbrido de
subsistemas para a sua reorganização espacial. Labor & Engenho, v. 9, p. 101-114, 2015.
SANTOS, P. G. S; PORTO, J. L. R. Novos usos da Fronteira Amapá-Guiana Francesa: Expectativas
de construção e ensaios de cooperação. Revista GeoNorte, v. 7, p. 1152-1168, 2013.
TRINDADE JR., S-C. C. Faces da urbanização na fronteira: a dinâmica metropolitana de Belém
no contexto da urbanização amazônica. Experimental, São Paulo, v. 4/5, n. 1, p. 71-90, 1998.
_____. Belém: forma metropolitana e cotidianidade na Amazônia brasileira. Humanitas
(Belém), Belém, v. 15, n. 2, p. 143-158, 1999.
_____. Formação metropolitana de Belém (1960-1997). Belém: Paka-Tatu, 2016. 392p.
255 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
representações e vivência (trans)fronteiriças:
Quaraí, uma geografia vivida
Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua:
o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a
forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Nasci na campanha, sem ser camponesa ou latifundiária, filha dum comerciante rural,
proprietário de um armazém1 de secos e molhados, no limite com o Uruguai. Esta minha
narrativa, ao fazer apelo a esta memória e ao trânsito entre as margens dum rio, que serve de
257 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
fronteira, acaba por entrecruzar diferentes territórios e por abrir múltiplas possibilidades de
compreensão do espaço geográfico. Tratando-se dum território, que tem, na sua constituição
matricial, um limite fronteiriço, somos impelidos a abordar, não, apenas, o lugar, a paisagem
ou a região, mas a fronteira, como um todo, enquanto questão, que se impõe, de maneira
absoluta e incontornável.
1
Comércio varejista de secos e molhados. Eram chamados de armazéns de secos e molhados, em função do
conteúdo vendido, que poderia se líquido ou sólido, em que se vendia, desde botões, até bebidas, azeite e
tudo mais. Caracterizava-se pela eficiência no atendimento ao público, por parte do proprietário e de seus
auxiliares, e tinha sua grande estratégia de sucesso na venda a prazo, para pagamento ao final do mês, sendo,
os produtos, arrolados na caderneta ou borrador.
Começo por falar de lugar, do lugar de origem – Saladeiro2 ‒, local de abate de animais
e de produção de charque, comercializado pelo Uruguai, via Montevideo. No município
de Quaraí existiam, então, dois saladeiros (São Carlos e Novo São Carlos), criados com
capital uruguaio e europeu, que foram a base da economia da cidade, entre os anos de
1880 e de 1930, quando ambos encerraram suas atividades. Esta é a minha pátria, o meu
território de origem, onde se localizava a casa de comércio, próxima das atuais ruínas do
Saladeiro Novo São Carlos. Posteriormente, ainda muito criança, ocorre a mudança para
uma nova casa, construída na área das antigas ruínas deste saladeiro, muito próxima à
margem do rio Quaraí, que faz a divisa Brasil-Uruguai (Figuras 1A e 1B).
(Fonte: acervos pessoais de Antonio Augusto Nadal da Luz (1A) e de Dirce Suertegaray (1B))
2
Estabelecimento, em que se prepara a carne-seca; charqueada. Termo de origem espanhola, comum no Rio
Grande do Sul, utilizado, em substituição à palavra “charqueada”.
terminar em conflitos maiores e em peleias3. De algo de mais grave, não há lembrança;
a habilidade de diálogo do dono da venda (José) e dos demais membros da família, que
ali trabalhavam, não permitia excessos. O dia transcorria normalmente, chegando bem,
ao final.
Feita as compras, o retorno à casa se fazia pelo mesmo transcurso de vinda. Agora,
carregados de mercadorias, que podiam ser víveres, para a alimentação, tecidos, para
vestuário, armarinhos, alparcatas, remédios (homeopatias), doces, bolacha e tanto
mais, como lâmpadas, abajures, panelas, etc. Quando as compras eram de maior por-
te, a rota de travessia do rio era outra. Para desviar da guarda de fronteira, que custu-
mava fazer ronda no porto, atravessavam o rio a cavalo, na conhecida volta do perau,
margem de rio, com declive abrupto. Este era um local de águas menos profundas.
Dependendo do fluxo, os cavalos passavam a trote (andar entre o passo e o galope),
sobre as pedras do fundo do leito. Em tempos de rio mais cheio, os cavalos passavam
a nado.
Hoje, a casa de comércio, como o Saladeiro, também virou ruína, mas persistem o
alicerce e o poço (Figuras 2A e 2B). A pequena propriedade, local do estabelecimento
comercial, foi comprada pelo grande fazendeiro, que destruiu as duas casas, tanto a
primeira, minha casa de nascimento e do primeiro armazém estabelecido, quanto a
segunda, a nova casa e o novo armazém, mais próximos da margem do rio. Este local,
que é, também, lugar, faz parte de um bairro rural, vinculado à cidade de Quaraí, que faz
fronteira com a cidade de Artigas, no Uruguai.
3
Peleia é um termo que tem origem do espanhol (pelea) e significa confronto, batalha. É utilizado no sul do
Brasil, particularmente, na fronteira do Rio Grande do Sul, para expressar desentendimento, briga, quando
dois ou mais adversários, por conflitos de interesses, batem-se corpo a corpo. Pode ser considerada, também,
uma discussão agressiva.
Quaraí é cidade pequena, de 25.000 habitantes, que não cresce há muitos anos, em
termos de população, mas muito já se transformou (Figuras 3A e 3B). Por sua vez, Artigas
(no Uruguai), é capital de departamento e sua população se aproxima de 80.000 habi-
tantes. É essa conjugação, ou conurbação, que faz dessa fronteira algo peculiar. Separadas
pelo rio fronteiriço, Quaraí e Artigas são unidas pela Ponte da Concórdia (Figuras 4A
e 4B). As Figuras 5A e 5B indicam que, nos anos de 1950, a cidade era a da foto, com
poucos carros. Na atualidade (Figuras 6A e 6B e 7A e 7B), as cidades, cuja arquitetura
segue, ora a tradição espanhola, ora a portuguesa, predominante na cidade brasileira,
expressam diferenças arquitetônicas e de preservação, ao longo do tempo.
(Fonte: acervos pessoais de Antonio Augusto Nadal da Luz (3A) e de Dirce Suertegaray (3B))
260 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
(Fonte: acervos pessoais de Antonio Augusto Nadal da Luz (5A) e de Dirce Suertegaray (5B))
4
Termo originário do espanhol (cuchillo), que designa objetos, como lâminas e facas, e, na Geografia, descreve
uma linha ou uma ondulação no topo de uma forma de relevo. No Rio Grande do Sul, o termo é utilizado,
para se referir a formas de colinas características do relevo da campanha gaúcha e de parte do Pampa da
América Latina.
Esta é a paisagem dominante na Campanha do RS, região da fronteira Sul (entre
Brasil, Argentina e Uruguai), espaço de conflitos políticos pelo domínio espanhol e portu-
guês. De origem latifundiária e pastoril, esta paisagem compõe o território gaúcho, artis-
ticamente expresso na Estética do frio, de Vitor Ramil, através da milonga5. A escolha da
milonga, como ritmo musical desta parcela do território brasileiro, diferentemente do
Brasil, dominantemente tropical, confere a essa Geografia a expressão mais intimista dos
solitários gaúchos e das gaúchas viventes da imensidão pampiana, da criação de gado, das
aguadas e dos nevoeiros e geadas, em tempos invernais, da nostalgia do lugar.
O território, a partir de sua construção cultural, é alargado, para além das atuais frontei-
ras entre Brasil, Uruguai e Argentina e para além dos ritmos musicais comuns, resultando em
hábitos comuns, como beber chimarrão e comer churrasco de carne de boi e/ou de ovelha,
que fazem parte da identidade e da tradição alimentar local, bem como na coincidência nas
vestes e na lida campeira, entre tantas manifestações de aproximação. Este território deu ori-
gem ao gaucho, um perfil humano, que caracteriza os indivíduos dos povos tradicionais desse
espaço, cuja miscigenação vinculou espanhóis, portugueses, indígenas e negros.
Este espaço, que é geográfico, revela a imbricada relação social entre política, econo-
mia, natureza e cultura.
5
Tipo de música platina de ritmo dolente ou lamentoso, cantada com acompanhamento de guitarra ou de violão.
Tal significa dizer que, diferentemente de regiões distantes de áreas de fronteira
geopolítica, nesses lugares – principalmente, nas cidades –, medidas econômicas ou
políticas implementadas afetam imediatamente, positiva ou negativamente, a população
vizinha (OLIVEIRA, 1997, p. 127). Mélo (2004), ao estudar, social e culturalmente,
a fronteira Brasil-Uruguai, relata representações constituintes das integrações cultural,
socioeconômica e política.
Em relação à integração cultural, o estudioso destaca: fatores linguísticos, como a
introdução do espanhol nas escolas das cidades de fronteira do Brasil e do português nas
cidades do Uruguai, em alguns casos, antes do estabelecimento do Mercosul (Sant’Ana
do Livramento). No cotidiano dessas cidades de fronteira, o idioma, híbrido, é denomi-
nado portunhol; a sociabilidade é tida como uma de suas características, de onde se ide-
aliza que a população fronteiriça é mais solidária, que as pessoas têm boa índole, que a
criminalidade é menor; Há a referência, ainda, à cordialidade do fronteiriço, das “vivên-
cias regulares e integradas” e das relações familiares e das festividades comuns entre
brasileiros e uruguaios; há, igualmente, o compartilhamento, em relação ao comércio e
aos serviços, uma vez que as populações das cidades da fronteira sul do Brasil partilham
de muitas atividades, seja no âmbito do comércio, seja nas possíveis regulações e acordos
locais, seja no lazer, seja, mais recentemente, na educação (MÉLO, 2004). Quanto ao
último tópico, é cada vez mais comum que estudantes do ensino fundamental de Quaraí
realizem seus estudos na cidade vizinha, Artigas. Há, também, uma integração étnica
– plasmada no gaúcho –, originária da fusão dos povos indígena, espanhol, português
e africano, que se conforma, em associação com a Geografia da região (Pampa), com a
historiografia e com a paisagem.
Em termos de integração econômica, nestas paragens, o espaço vivido está associado
à estrutura fundiária, composta de grandes propriedades, predominantemente; à pecu-
ária, como atividade econômica fundante; às lidas do campo; ao rodeio; à marcação do
gado; às tropas, em deslocamento; à tosa da ovelha, entre outras; aos hábitos de vestir a
bombacha, a bota de cano alto, o poncho, etc.; à alimentação, no gosto pelo churrasco;
264 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
6
O vocábulo tem origem no português (marron) e espanhol (cimarrón). Significa clandestino, chucro, bárbaro.
A palavra foi empregada, pelos colonizadores da região platina, para designar a bebida amarga de origem
indígena, derivada da erva-mate (Ilex paraguaiensis). Essa bebida também é denominada mate e constitui
hábito entre os habitantes da América do Sul, sobretudo, na Argentina e no Uruguai. No Brasil, a bebida é
consumida e faz parte da cultura do Rio Grande de Sul.
(...) [a] pobreza [estaria presente] nos dois lados da fronteira, sendo o desem-
prego cíclico da fronteira decorrência de uma espécie de “pêndulo”: quando questões
cambiais e econômicas favorecem uma das localidades, desfavorecem a outra. Em
que pese a ressalva de que a existência da pobreza, como apontam os diferentes agen-
tes, seria de ordem estrutural e histórica, antecedendo a própria formação dos dois
Estados Nacionais, são enfatizados os aspectos ligados à integração.
Cabe, ainda, indicar, como problema socioeconômico, uma economia balizada pela
metáfora do pêndulo, ou seja, ora os preços de mercadorias e/ou o câmbio beneficiam
o Uruguai, ora, o Brasil (MÉLO, 2004). Isto, associado à presença de um significativo
percentual de fronteiriços, denominados doble-chapa, o que significa dupla nacionali-
dade, que, portanto, podem trabalhar dos dois lados da fronteira, não ameniza a situa-
ção econômica da população, de maneira geral, uma vez que, havendo possibilidade de
emprego de um ou de outro lado da fronteira, tal trabalho será demandado por esses
indivíduos, por vezes, de forma clandestina.
A crise econômica e a pobreza resultam em outras práticas, como o abigeato7 e o contra-
bando, que constituem elementos de tensão no cotidiano da fronteira. A terra (propriedade)
constitui outro elemento de conflito, que, pode-se dizer, ocorre em duas frentes: de um lado,
há a preocupação dos proprietários do Uruguai, em relação à implantação de assentamentos
do MST na região da fronteira, a partir dos anos 1990, merecendo destaque os assentamen-
tos de Bagé e de Livramento, que poderiam gerar pressão sobre a fronteira; de outro, existe a
questão da aquisição de terras por proprietários brasileiros, em processo denominado estran-
geirização da terra, contido nos discursos políticos (dos parlamentares) uruguaios:
Mesmo segundo o dirigente da Frente Ampla que, “em princípio, apoia a refor-
ma agrária brasileira”, a existência de grande número de propriedades em mãos de
265 // Geografias & Poéticas da Fronteira. Leituras do Território
Quaraí é uma cidade fronteiriça, cujo território pertenceu, ora à Espanha, ora a Portugal. Na
origem, suas terras eram habitadas por índios guaicurus, mas, após a chegada do europeu no con-
tinente, a posse dessa gleba se alterna entre Portugal e Espanha, em face das lutas por territórios.
A posse portuguesa só vai ser efetivada, a partir das Guerras Cisplatinas, no início do século xix.
José Joaquim de Melo uma sesmaria em local onde hoje se encontra a cidade. Três anos
depois, aquela área foi comprada por João Batista de Castilhos, denominando-se, desde
essa época, “Passo do Batista” o trecho do rio Quaraí em que mais tarde surgiram a cidade
do mesmo nome e a de Artigas, na margem uruguaia. Entre 1835 e 1844, o território
foi teatro de inúmeros combates por se ter incorporado ao grupo republicano durante a
Revolução Farroupilha. Quando, em 1852, o Governo uruguaio determinou a fundação de
San Eugenio, atual Artigas, o Governo brasileiro apressou-se em fortificar a margem direita,
para onde destacou uma guarnição militar8.
8
Obtido do IBGE, em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/riograndedosul/Quaraí.pdf.
Desde então, inicia-se a formação do embrião desta cidade de fronteira, formalizada
na planta e no traçado do futuro povoado de Quaraí, constituída de um plano ortogonal,
com seu centro ocupado por uma praça, em cujo entorno se distribuíam os poderes: a
prefeitura (no quadrante sul), a Igreja (no quadrante oeste), a justiça e a cadeia (no qua-
drante leste) e as atividades de comércio e de serviços (no quadrante norte). O arruamento
ortogonal é constituído de quadras de 100 m x 100 m e suas ruas apresentam uma largura
expressiva, fundamentada em uma estratégia militar, por se tratar de cidade de fronteira.